Onde Está A Felicidade
Onde Está A Felicidade
Onde Está A Felicidade
PRLOGO
Seria gastar muita cera com o Sr. Joo Antunes esse luxo descritivo. Lamartine
faz de um pedreiro um filsofo: a omnipotncia do gnio o Santo Antnio
destes tempos de incredulidade: faecit mirabilia...
Quem , pois, o morador na Rua dos Armnios? L vamos. O Sr. Joo
Antunes da Mora, por alcunha o Kgado natural da Lixa, viera rapazito de
doze anos para o Porto, conduzido pelo seu tio materno, o tio Antnio
Cabeda, com destino de embarcar para o Brasil. Achando-se no cais da
Ribeira, com o dito seu tio, admirando o tamanho de um late, que o bom
Antnio Cabeda denominava uma nau de guerra martima, corri grande
espanto do rapaz, chegou-se a eles um homem gordo, de jaqueta de ganga
amarela, e chinelos de ourelo, perguntando ao tio Antnio se o rapaz
embarcava. resposta afirmativa, disse o homem gordo, mandando cobrir os
admiradores da nau de guerra martima, que era dono de duas lojas de
mercearia na Fonte Taurina, e muito desejava meter numa delas um rapaz que
tivesse boa pinta para o negcio.
deix-lo comigo? O Brasil em toda a parte. Tenha ele cabea, e boa aquela
para o negcio, que o mais em toda a parte se arranja dinheiro.
barrete.
rolia do bacalhoeiro o rapaz fica com vossemec. Trate-mo bem, que ele,
a respeito de ler e escrever, como se quer: e de foras? Isso ento, com
licena de vossemec, levanta-lhe a do cho duas arrobas nos dentes... Anda
l, rapaz.
Joo Antunes entrou em casa do patro, jantou com o tio e disse-lhe adeus.
Poucos anos decorridos, o sobrinho do tio Antnio Cabeda era o primeiro
caixeiro, mais tarde o genro do seu patro, e depois o seu herdeiro. Com a
avultada riqueza, herdou tambm o apelido de Kgado, que o fra, desde
muito, da antiqussima ascendncia de bacalhoeiros na Fonte Taurina, como
consta de apontamentos curiosssimos, que, a serem verdadeiros, recuam esta
genealogia at D. Moninho Viegas, primeiro conde do Porto, de cujo servio
Bernardim Freire, suspeito jacobino, fra assassinado pelo povo, e que os fiis
vassalos, comandados pelo baro de Eben, tal derrota sofreram no Carvalho
de Este, que lhe era escasso o tempo para fugirem na direo do Porto.
Acrescentavam os informadores: que os brbaros assolavam, incendiavam,
desonestavam as virgens, matavam as velhas desonestadas, comiam, como
antropfagos, as crianas, e, para alm do mais, saqueavam. Este, sobre todos,
horrvel verbo do discurso arrepiador, ps o Sr. Joo Antunes em miservel
estado.
E, para cmulo de infortnio, dias antes emprestara o aterrado capitalista cem
moedas, a juro de oitenta e cinco, ao fidalgo da Bandeirinha, Joo da Cunha
Arajo Portocarreiro, tenente-coronel de Infantaria n 6. A pressa com que o
devedor partira para a trincheira do seu comando, e a desordem em que se
achavam os negcios forenses foram causa de se no lavrar a escritura,
imprudncia nunca sucedida nas transaes do usurrio!
O pior era que alguns populares da Legio rosnavam que Joo da Cunha era
jacobino, e agrupavam partido para facciosamente o prenderem, como rebelde
a el-rei, nosso senhor.
E Antunes sem ttulo das cem moedas! Se matam o jacobino, com que
documento hei de apresentar-te viva? Esta fnebre interrogao custava
ao ilustre enxerto dos Kgados um estorcego de dedos, e uma cibra forte na
perna direita, afetada por ameaos de paralisia local.
diabos...
A quem?
Ao fidalgo da Bandeirinha.
bispo; mas, s duas por trs, o bispo era capaz de o pr no olho da rua,
porque os grandes acodem uns pelos outros. Quando chegmos ao Padro
das Almas, o senhor Raimundo Jos Pinheiro fez uma prdica ao povo em
que dizia que o melhor era dar cabo de todos os jacobinos. Palavras no eram
ditas, o Francisco Reteniz mete uma bala na cabea ao fidalgo, e eu, como
quem no quer a coisa, fui-lhe arrumando com a chanfaina pela cernelha. O
jacobino pediu que o deixassem confessar, mas foi como se nada. Fervia a
tapona de criar bicho, que era um louvar a Deus! Aquele l fica estatelado no
Padro das Almas... Amanh h de ter companheiros... A coisa no fica aqui.
Antunes.
Que ainda estou vivo?! Essa boa! Pois esperava encontrar-me morto?
leito.
Porqu?!
se me foi com cem moedas, sem ttulo, nem testemunhas. Eu que lho digo...
porque o sei de um dos prprios matadores do fidalgo da Bandeirinha.
antes...
vergonha. Cada qual salve o seu dinheiro e a sua vida das unhas da canalha,
que a vossa excelncia j devia ter metido na enxovia, carregada de ferros.
Sabe que mais, meu senhor? Eu no queria estar entre a pele e a camisa
do bispo. Mais dia, menos dia, descobrem que ele jacobino, e matam-no. Se
eu tivesse tempo, ainda ia hoje avis-lo.
J vejo que vossemec tem partida a mola real da cabea. Ora, Senhor
para mais segurana, adormea de bruos sobre ele, e acorde com ideias mais
alegres. Amanh, se estiver de pachorra, aparea por aqui, contar-me- com
mais sossego o seu sonho sanguinrio.
O chanceler ria-se, enquanto Joo Antunes gemia para erguer do gaveto da
papeleira um caixo volumoso de dois palmos de altura, com outros tantos de
largueza. De sobre o joelho, gemeu de novo sobraando-o com admirvel
energia, e retirou-se seriamente cmico, enquanto o governador vibrava a
mais sonora e conscienciosa das gargalhadas.
Pois hei de crer que Deus permitisse a morte vil que o meu marido
coisas. Eu tambm fui casado, e a minha mulher (Deus lhe fale na alma)
tambm tinha esses fanicos.
que fazem mais falta para pagarem pela maldade dos que no fazem falta
nenhuma...
boa; o melhor que no venha afligir ainda mais minha ama. Vossemec que
lhe quer?
no assim que os donos desta casa costumam pagar os favores que devem.
Ah! j vejo que vossemec vem em boa ocasio para que lhe paguem favores.
Vem muito a propsito... Sabeis vs que mais? disse ela com arremesso,
voltando-se para as criadas levem da essa meninas, que esto a chorar,
enquanto eu levo a senhora para a cama... Senhor Joo, venha noutra mar.
fale na alma) me pediu cem moedas antes de ontem, eu no lhe disse que no
era boa a mar.
que a Senhora Dona Maria Rira tem num ms e passo muitas necessidades, e
trabalho muito na minha agncia para viver sem vergonhas do mundo e ser
til aos meus amigos, quando eles no querem o meu prejuzo. Ora a est. O
auxlio da Nossa Senhora das Dores dos Congregados me falte se o que eu
digo no pura verdade. Emprestei ao fidalgo cem moedas, e preciso saber se
a fidalga est pronta a tomar sobre si o pagamento; alis, eu provarei com
todo o Porto que no sou capaz de pedir aquilo que se me no deva.
Enfim, morrer deste, ou daquele modo, tudo morrer. Voc diz que a
viva infeliz; no estou por isso; infeliz sou eu, se perder o meu dinheiro;
enquanto ela, se rica era, rica fica; o marido no levou as quintas consigo para
o outro mundo. Eu no digo que quero j o dinheiro; mas como h viver e
morrer, e eu estou resolvido a fugir amanh aos franceses, no sei para onde,
preciso de levar um documento que a todo o tempo seja resgatado pela
senhora.
Com que ento ameaa-me!... Valha-me Nossa Senhora das Dores dos
Congregados... Por bem fazer, mal haver... o que acontece a quem d o seu
dinheiro... Pois sempre lhe digo, senhora velha criada, sem vergonha nem
temor de Deus, que tanto se me d que haja c homens como mulheres. No
tenho medo nenhum. o que eu lhe digo! E no me faa ferver o sangue, que
se no temos despautrio, e a coisa d de si! Olhe que eu sou capaz de lhe
meter um meirinho pelas portas dentro!
Genoveva acreditava na perversidade do usurrio, e receou muito mais do que
as infames ameaas dele prometiam. A ousadia com que at a lhe falava,
sufocou-a o medo, por alguns minutos; mas, um rpido pensamento alentou-a
de toda a sua coragem. Retirou-se da sala, onde Joo Antunes ficou sozinho,
calculando as consequncias da sua resoluo, e dando-se os parabns de ser
to patife, Genoveva voltou, e arremessou-lhe cara um rolo de papel.
salrio de cinquenta anos de servio nesta casa. Quando a fidalga lhe pagar as
cem moedas, voc h de restituir-me as minhas aes; e, se mas negar (que
muito capaz disso), tantos demnios o acompanhem para as profundas do
Era, pois, a canalha que frua a sua hora de triunfo, de sculo a sculo. Era o
tribuno de um dia aclamado nos comcios da taverna. Podem estranhar o agro
desta linguagem. Acharo talvez insolncia nos eptetos com que denegrimos
as revoltas populares, que os de m-f poltica tratam sempre de justificar com
alguma causa sublime, e at corri a inviolvel providncia do progresso.
Notem, porm, que o povo sanguinrio, a que aludem essas e outras linhas de
igual desprezo, no abraava, repelia a ideia da reforma; no apregoava a
liberdade, assassinava os apstolos dela; no vinha ao teatro da rebelio trocar
a existncia por um sorvo do ar livre que soprava do lado da Frana, embora
impregnado do aroma do sangue; vinha estrangular, na garganta dos raros
precursores da liberdade em Portugal, a palavra tmida da redeno.
Joo Antunes reconhecera de longe o seu vizinho barqueiro, e o carniceiro
Antnio de Sousa, amigo do seu vizinho. Com tais protees, afoitou-se a ver
de perto o que era que ocupava o centro daquela multido. Mais perto viu o
cadver de Joo da Cunha, amarrado pelo pescoo, fraturado em todas as
salincias do rosto, despedaado, enfim, porque viera arrastado desde o
Padro das Almas.
Joo Antunes sentiu os seus crnicos incmodos de intestinos. Levou
maquinalmente a mo ao abdmen revoltoso, como ns a levaramos cabea
esvada. Quis retirar-se; mas no o ajudavam as pernas vacilantes. E j no
podia recuar. Foi de envolta nas turbas, que se aglomeraram em redor dele.
Achou-se porta da Relao, e presenciou, fora, uma cena em que devia
representar um papel digno doutro homem. Vai ver-se como um infame pode
passar por boa pessoa. Ver-se- tambm como a avareza alarga a esfera das
suas funes at onde se no encontra um resto de sentimento nobre... e,
contudo, mais admirvel ainda a facilidade com que as grandes infmias se
escondem.
Os chefes da anarquia eram Constantino Gomes de Carvalho, soldado p-decastelo da fortaleza da Foz; Francisco Jos Reteniz, soldado da legio;
Antnio Correia, por alcunha o Moiro (vizinho de Joo Antunes), e o
carniceiro Antnio de Sousa. Eram estes os ferventes apstolos da revolta
contra os jacobinos; foram estes os fautores do memorvel dia vinte e dois de
Maro de mil oitocentos e nove: dia de vergonha e de oprbrio para esta
cidade, que deixou acutilar, no seu seio, por mos, infames, alguns dos seus
mais honrados filhos, primeiros mrtires de uma ideia to pouco aproveitada...
e que to cara pagaram a fama, que a histria no conhece, quarenta anos
depois do sacrilgio.
Estava o usurrio suando copiosamente entre as compressas da populaa,
quando de diferentes centros da multido saram estes brados: Queremos os
presos da Inconfidncia! Morra o Lus de Oliveira! Morra o Vicente Jos da
Silva!
Ao prospeto facinoroso seguiu-se a execuo. O carcereiro, quase de rastos,
abriu as portas. O primeiro preso arrastado o brigadeiro Lus de Oliveira. Os
na rede que as pinhas de povo lhe faziam, toda a sua atividade era pouca para
evadir-se a uma formal esmagadela. Lutara em vo um quarto de hora.
Sentira-se trs vezes escorchar na parte mais sensvel dos intestinos
melindrosos. Por ltimo, consegue escoar-se por uma clareira, onde devia ser
solenemente acutilado Vicente Jos da Silva. ento que se lembra de apalpar
a algibeira...
O mais certo que os honrados moradores da cidade tiraram
plenissimamente a utilidade das moradias, porque no saram de casa. Dez mil
assassinos arregimentados viriam da Maia ou de Valongo? Devemos crer com
a tradio e testemunho, ainda vivo, dos contemporneos da invaso francesa
que eram muito do Porto os anarquistas da invaso, E, se o no eram, o
nmero dos honrados moradores do Porto como reza a sentena, era
diminutssimo...
No encontra o rolo! Ressuma-lhe um suor frio dentre os leos espremidos na
presso. Sente nuseas, consequncia do revolvimento subitneo das vsceras.
Leva automaticamente cabea esfrica as mos convulsas. Arranca do ntimo
um rugido como o do macaco entalado na cauda. Descora, cambaleia, cai, no
direi como o abeto das montanhas, mas como o grego Lcio metamorfoseado
em jumento, sob o peso do seu infortnio!
Joo Antunes foi transportado em braos casa de um sapateiro na Porta do
Olival, ministraram-lhe asperses de gua choca de uma celha em que a sola
dali, onde o infando crime fra perpetrado. Esperava ver o seu vizinho
barqueiro; talvez ele, por tralhas ou malhas lhe restitusse as suas aes da
Companhia, o penhor das suas choradas cem moedas. E esperou.
s duas horas da tarde voltava a plebe, pedindo cabeas.
Joo Antunes viu de longe o seu vizinho; correu a encontr-lo; mas o outro
no lhe deu grande importncia, posto que muitas vezes, a ttulo de vigilante
guarda da sua casa, lhe arrancasse para vinho alguns cobres, espremidos
primeiro entre os dedos avaros do merceeiro.
alma?
Dez pouco.
Doze.
Nada de regatear, senhor Joo! Se quer, quer; seno est ali, e est a
mergulhar no Douro!
Pois bem: est feito o contrato; mas tu nunca hs de dizer que eu te fiz
esta proposta.
ser condenado e justiado de modo que agrade santa religio e a el-rei, nosso
senhor. Deixemo-lo ir, e vamos dar cabo de alguns hereges, que ainda esto
na cadeia do outro chanceler da Relao, do abade de Lobrigos e do
Penteeiro. E victo srio! Neste homem ningum toca! Vai um dos chefes
acompanh-lo ao pao do senhor bispo. Que do Moiro?
Aqui estou!
Viva!
Viva!
Viva!
aquela de patriotismo!
Pois bom foi. Eu logo vi que a minha palavra era froixa para poder
chanceler.
Vossemec?!
Sim, senhor.
Tal e qual. Foi com ele que eu fiz o contrato da sua vida.
Dera muito mais para no passar por este sobressalto: pela vida dera
CAPTULO I
Vinte e um.
Estou.
Deve ter tido uma vida tempestuosa, terrveis naufrgios no mar das
aspiraes...
possvel?
Tem por consequncia uma imagem quimrica, que o furta aos amores
Tem-nas experimentado?
cobra cascavel pressente-se de longe pelo rudo que faz, rojando-se. Dispenso
as experincias ociosas.
fez-se um filsofo, mais crvel que Rousseau, nas longas viglias do seu
infortnio.
Amou?
cara a cara, sem testemunhas, pode-se dizer a uma mulher tudo, que afronta o
seu amor-prprio: ela sofre, cala-se, e resigna-se; mas, diante de um homem,
isso muito srio. Est provado por isso que a honra no est na conscincia,
est na opinio pblica: ns sentimo-nos desonrados quando os outros dizem
que o fomos. Ao ouvido de uma mulher, diga-lhe: Vossa excelncia
mentira, venalidade, corrupo; ela rir-se-, se estiver perfeitamente
desenvolvida; e, se o no estiver, cala-se por vergonha, e desenvolve-se; aos
homens, nem uma palavra em desabono. Se lhe convm dizer que as suas
iluses morreram de apoplexia fulminante, diga-o sem entono dogmtico, sem
o pedantismo chulo de certos parvos que do prelees de ceticismo no
alcoice, encostados ao ombro nu das mulheres perdidas. No sei que mais lhe
diga. Nada de arremedos. Leia, mas no imite; e, a querer sair da natureza,
invente alguma novidade, que o no comprometa com os caprichos da
opinio em voga. Se moda ser ctico, seja-o, mas v dando provas de que
acredita como S. Tom, ao menos naquilo que toca... O meu amigo, seja feliz.
Se no h nada a esperar dos meus conselhos, stulta est gloria... pior para si...
CAPTULO II
Penso que sim; meu tio conselheiro falou em trezentos mil cruzados.
E que mais?
Ele! quem?
O tal parvalheira.
frioleira.
Aproximaram-se.
Amaral?
; mas muito agradvel, e diz muito bem o pouco que diz. Pode ouvir-
Isso no sei: mas se ele falar com a minha prima, confirmar o justo
conceito que lhe merecem as senhoras portuenses. Quer que lho apresente?
No! Olha que cisma! Acha que estou morta por falar com ele?!... Sabe
prenderem.
No sei, prima.
Eu! Que seca! Acha que estou morrendo de amores por ele?
Apresento-lho?
e minha mana.
E uma honra que me lisonjeia muito. Vossa excelncia parece que tem
Ora o primo!
Ora o mano!
E sente muito?
Muito.
E encontrou-a?
E o cu no o escuta?
Eu!...
Amou?
o que eu ia dizer-lhe...
abatimento.
invocar o morto, sobre que pesa uma loisa menos pesada que o
esquecimento.
O cavalheiro de Lisboa era capaz de meter, num abrao entusiasta, duas
costelas dentro ao discpulo, se pudesse presenciar o dilogo, que o leitor
decerto no entendeu melhor que eu, nem melhor que eles.
Entretanto, Margarida, visivelmente despeitada, dizia s amigas:
que est a dormir? Olhem que modo aquele de encostar-se! Parece que se
deita sobre o ombro dela!
enternecida... Pensa que se gosta muito daquelas gaifonas!... Tem feito aquilo
com dzia e meia de namoros que lhe tenho conhecido. A mania dela que
ningum compreende o seu corao. Trs dias antes de algum baile, no come
nada, e bebe vinagre para se fazer macilenta, e dar aos olhos aquele pasmo de
coelho morto. Sempre se veem coisas! No tem nada de seu, e imaginou que
arranjava marido rico e novo com aquelas momices estudadas ao espelho.
Como no acha seno poetas pobres que lhe faam corte, e esses no lhe
convm, vira-se para os brasileiros, e diz l umas trapalhices, que ela sabe, a
homens, que vm perguntar ao meu pai se ela tem legtima. Pensa a tola que o
parvalheira est morrendo por ela! Em ele sabendo a peseta que ali est, h de
chorar o tempo que tem desperdiado com ela...
poetisa de gua doce, pronta sempre a meter-se cara de todo o homem que
rico. Aquilo uma vergonha para o nosso sexo; pois no assim?
Tomara eu ter quem lho dissesse; mas no queria de modo nenhum que
mais fcil ... Pode ser que ainda hoje se falem... Ah!, ele est acol ...
A servial amiga pediu a um cavalheiro que chamasse o indicado Mesquita,
seu conhecido namoro. Falou-lhe quase ao ouvido alguns minutos. O
submisso emissrio partiu, lisonjeado da comisso.
Ceclia retirara-se pelo brao da prima, a quem dizia: Aquele homem um
anjo: encontrei sobre a Terra o meu sonho; amo-o com delrio, com
clemncia, com frenesi.
Pelo contrrio. Agora mesmo acabo de ouvir uma senhora que tem um
Penso que sim; no lhe sei ainda o nome, porm deve ser essa, porque
as informaes que lhe dou no podem caber a muitas, sem que eu queira
menosprezar as outras. aquela que ali vai de vestido escarlate.
justamente. E muito espirituosa; pena que seja to leviana.
uma mulher, que tem tido trinta namoros; que diz a todos a mesma
pgina de um romance, que decorou; que namora hoje um poeta, que lhe
chamou Safo, amanh um estpido, que lhe passou duas vezes a cavalo
porta; depois um delegado com esperanas de ser juiz; depois um brasileiro
com cinquenta contos, etecetera, etecetera, e diz a todos que no foi
compreendida at ao momento em que os encontrou. Todos eles, exceo
mulher.
Delirantemente.
No, senhor.
Eu lhes digo. O meu amor quela mulher tem quatro estaes em cada
ano, e cada estao tem trs meses. Amo-a em Janeiro, Fevereiro e Maro.
Cada semana, escrevo-lhe uma poesia palpitante de ternura. No fim de trs
meses so doze poesias. Depois, Abril, Maio e Junho, so para o cime:
escrevo doze poesias enfurecidas, ttricas, e incisivas como o rugido do chacal
ao qual roubaram a fmea. Julho, Agosto e Setembro, escrevo doze poesias de
ceticismo, estilo hbrido, despedaador, lancinante, custico, enfim, um qurie
de insultos contra as mulheres. Em Outubro, Novembro e Dezembro,
escrevo doze poesias de desalento, estilo lamuriante, pieguice brava, um
memento de fazer chorar as mulheres dos nossos alfaiates, um adeus de
Chatterton vida, uma maldio de Gilbert sociedade, uma coisa horrvel
que eu escrevo sempre depois de jantar, com o pesadelo de uma digesto
laboriosssima. No fim do ano de quarenta e oito semanas, tenho quarenta e
oito poesias, que vendo a um editor por cinquenta moedas, o mnimo.
Compreenderam-me agora?
Mesquita ria desentoadamente; Guilherme respondeu com um quase
impercetvel sorrir de desprezo, que o jornalista recebeu como recebia os
desdns desprezadores de Ceclia. E prosseguiu, voltando, em desforo, as
costas ao parvalheira ignaro e soez como ele esperava brevemente intitul-lo
numa coleo de quadras chistosas, dignas de Tolentino.
CAPTULO III
amava
escandalosamente
Ceclia,
fascinado
empalmada
nos
pela
verbosidade
romances.
das
Margarida
bas-bleu,
arquejava,
Vem a tempo essa pergunta... Que queres tu? Uma carta annima?
Por agora no; o que eu quero que digas Ceclia que eu preciso falar com
ela em particular.
Agora?!
E aonde?
principiar.
com uma perna para cima da outra, mau hbito adquirido com o exemplo da
sua me, que nunca o pudera esquecer dos seus bons tempos de tecedeira.
novelas.
Pior para ti, menina, que no tens gosto, nem memria. Ora diz l, sem
noite.
Nada de risotas. preciso que saibas que tal homem no velo a minha
algum. Seria rebaix-la muito! ... Queres tu dizer, Margarida, que o tal sujeito
teu namoro?
No sei se , nem se no .
queres chegar.
horas que ele esteve a rir-se de ti na sala, onde se fuma, com outros rapazes.
s.
De qu? Da conquista?
Sim.
Esto perdidas, minha querida amiga; mas ainda assim, quero ver
Tens razo: sou urna grande tola em te ouvir. Boas noites, Margarida.
casa h de acabar.
E que mais?
virtudes da Fedra.
Da...?
Era c uma mulher que dizia que no era daquelas, que, vergonhosa paz
Ests-me insultando?
Do que eu?
CAPTULO IV
Ama a ambas?
Essa linguagem...
Quem quer que fosse esse homem, praticava uma necedade, que viria a custarlhe cara. Ceclia e Margarida eram mulheres que davam reputao; mas no
estavam no caso de servir a imoralidade de um conquistador. Casar com
qualquer das duas no era glria para o provinciano. Seduzi-las como quem
seduz uma mulher do povo, era um comprometimento muito grave, uma
desonra, que lhe importaria o dio e a vingana, e, pelo menos, a fuga,
deixando um rasto de infmia.
Amaral era um modelo de bom juzo, desde que desfivelou a mscara que os
lisboetas lhe apuparam.
No eram aquelas as mulheres que lhe convinham. O prestgio, que elas lhe
davam, aproveitou-o sem desonestar-se. Fez-se conhecido, celebrizou-se,
estremou-se do lixo vulgar: era isso o que ele queria. Colocara-se num ponto
da escala donde tinha de descer. Desceu, sem risco de fraturar uma perna.
Achou onde nutrir a alma de Epicuro, conservando livre para a quimera a
alma de Plato. Houve-se de modo que ningum lhe pediu contas, porque os
que deviam sald-las tinham-se remido da dvida muitos anos antes... E, por
isso, se andava mal com Deus, no acontecia o mesmo com as mulheres e
com os homens. Era benquisto, piedosamente consolado nas suas tristezas,
imitado (mas s na parte moral) por muitos, e recebido ao p das senhoras,
que sabem o que dizem e o que fazem, com certa confiana de que ele no
abusava diante de gente. Isto verdade.
aquilo por onde devia terminar a sua carreira de homem apostado a tirar,
segundo as circunstncias, urna vantagem real dos desejos nobres, outra da
impostura, e a derradeira do cinismo. Comeara a colher flores nas lagoas
pontinas: saiu inficionado.
O sangue, que lhe vinha do corao nobre aos pulmes viciados de podrido,
corrompera-se. O corao deu-lhe um abalo, quando se viu pobre das
sensaes ntimas que vo entalhar uma ao nobre, uma imagem santa, uma
data gloriosa na conscincia. Entristeceu-se. O que dantes era artifcio, dava-o
a natureza demudada agora.
Foi por isso que Amaral resolveu uma viagem de alguns anos.
CAPTULO V
Era uma noite, vinte e oito de Junho de 1845, vspera do milagroso apstolo
S. Pedro.
Sabeis como, nesta religiosssima cidade do Porto, se festejam todos os santos
da corte celestial, e particularmente Santo Antnio, S. Joo e S. Pedro. Este,
mais prestante que todos, pela importante misso de claviculrio da bemaventurana, gloria-se de ser festejado anualmente na cidade da Virgem com
uma poro fabulosa de estoiros, um inferno indescritvel de fogueiras, e o
consumo sobrenatural de pipas de vinho, fritadas de linguia, postas de
pescada, e bebedeiras sem cifra conhecida no Bezout.
S. Pedro de Miragaia , incontestavelmente, de todos os Pedros santos o mais
querido. Aquele espaoso areal no basta para os jorros de povo, que afluem
das ruas sobranceiras. Surgem, como por magia, as fileiras de lmpadas
variegadas; os mastros de palha e alcatro, que fedem e abrasam; as orquestras
militares, que consomem metade do tempo vozeando nas trompas
estridulosas, e outra metade nas libaes homricas, fornecidas pela
liberalidade dos mordomos; as tendas gratas gastronomia suja da
farrapagem, que as atulha, dando vivas ao santo, e praguejando obscenidades e
insolncias contra a taverneira tardia no ministrar da meia canada por cabea;
finalmente, o areal de Miragala um misto de todas as regalias que
Achou-se bem, apesar do ftido nauseento que ressumava das fisgas das
portas. No via ningum, ningum o via, nem o mais ligeiro sussurro: era
caminhar na escavao de uma rua de Pompeia, pela vista, e no aqueduto de
despejos de uma cidade, pelo cheiro. O romanesco tem seus caprichos
srdidos. Amaral no trocava aquela atmosfera enjoativa pelos perfumes de
nardo e rosas do toucador de alguma das suas numerosas admiradoras.
No extremo dessa rua parou, suspenso pelos gritos de quem chorava no
longe dele. Avizinhou-se de uma porta, e observou que os gemidos saam de
uma casa trrea. Distinguiu estas palavras:
Ouvi gritar, e julguei que podia fazer algum servio pessoa que
chorava tanto.
Era eu...
para examin-la.
Faz favor de entrar. Deus nosso Senhor o oia ... se a vossa senhoria
fosse cirurgio...
Digo-lhe que est morta, e sinto que tenha morrido uma me, que
merece to sentidas lgrimas a sua filha. Menina, olhe que a dor do corao
no se alivia gritando: bastam as lgrimas. Agora o que importa tratar de
enterrar a sua me. Ora diga-me: vossemec sozinha? No tem pai nem
irmos?
No, senhor: tenho um primo que fabricante, e vem por aqui algumas
vezes: mas logo hoje anda no arraial de S. Pedro, e eu no tenho por quem o
mande chamar.
Queria ver como h de ser isto: tenho medo de aqui ficar sozinha; no
quadro novo, uma excitao de sentimentos, que vibravam pela primeira vez.
Os olhos da alma iam-lhe todos preocupados no lance angustioso de uma
filha, abraada ao cadver da sua me, seu arrimo partido num instante,
olhando em redor, para contemplar-se ouvida pelo silncio do desamparo. Se,
todavia, pudesse abstrair os olhos do esprito daquela cena, e fixar os do rosto
na filha dessa mulher morta, teria visto uma linda rapariga.
A passo rpido chegou a Miragaia, e perguntou a uma taverneira se conhecia a
senhora Ana do Moiro.
chapu branco.
Amaral, quando a peixeira lhe perguntava se queria pescada ou solha,
respondeu:
Primo no, sobrinho; primo vem ele a ser da prima, isto , da filha da
Pois ento isso, vinha eu dizer-lhe que a tia Rosi morreu agora de
repente.
O que eu queria era que vossemec fosse fazer companhia filha na sua
casa.
Ia, ia, assim me Deus salve... Mas no posso deixar c o meu arranjo!...
Eu sei o que digo; receba-a j, aqui tem cinco pintos, e venha comigo.
Eu vou admirada com isto! a primeira vez que vejo o senhor! Vossa
senhoria, ainda que eu seja confiada, costumava ir a casa da tia Rosa, Deus lhe
fale na alma?
da rapariguinha.
outro que diz... Ora a pobre tia Rosa! Ainda hoje esteve a cantar porta, e
parecia estar para muito... A gente anda neste mundo bem enganada!
Vivia pobre; mas era muito arranjadinha. Ela dobava seda, e a filha faz
alas de homem a quatro vintns a dzia. O pai era carpinteiro, e levava muito
bem a sua vida; mas j est no reino da verdade. O que lhe valia a elas era no
pagarem renda: a casinha delas: mas agora, se no tiver quem lhe d algum
arranjo, a rapariga vende a casa.
becos.
viveu o meu pai, Deus lhe perdoe, que era barqueiro, e chamava-se Antnio,
por alcunha o Moim. No o conheci; mas isso que era um homem! Teve
uma rixa com os franceses, m raios os partam, matou dois navalhada, mas
por fim tambm o mataram... aqui...
Guilherme do Amaral no prestava a menor ateno s desventuras
genealgicas da peixeira, procurando do lado direito a casa da mulher morta.
casa da sua vizinha. De manh mandem dizer ao proco que morreu esta
mulher. No sei se a menina precisa de dinheiro: mas acho que sim. Aqui lhe
deixo com que possa suprir as suas precises, e sinto no poder consol-la da
perda da sua me. Tenha pacincia, menina. Este golpe sofri-o eu j, e sei que
se no cura seno com o tempo. Ande, v com a senhora Ana. Eu amanh
virei, ou mandarei saber se precisa de alguma coisa.
Mas eu queria saber a quem devo tantas esmolas... disse ela, soluando.
De que lhe servia saber quem eu sou? Nem a menina me conhece, nem
sade.
Duas peas!
Tudo isto me parece um sonho... Ser aquele senhor um como h tantos casos
de mandados de Deus!
Ser, ser, o Diabo o jure! disse a filha do Moiro, associando o testemunho
do Diabo obra de Deus. Arrecada esse dinheiro, que tens para um pouco
de tempo, rapariga. Eu se fosse a ti, comprava um cordozinho, que
dinheiro que tens na gaveta, depois de pagar algumas dvidas da tua me.
O que eu vou fazer deste dinheirinho mandar dizer missas por alma
dela.
CAPTULO VI
Dois dias depois, Guilherme do Amaral foi Rua dos Armnios, com a
inteno de estudar de dia a suposta misria daquela casa, que no pudera ver
luz mortia da candeia, e mais ainda para cumprir a promessa que fizera de
socorrer mais algumas necessidades da rf. No h intenes mais puras!
Era meio-dia; estava fechada a porta, e aberta apenas uma fresta da pequena e
nica janela ao rs da rua. Guilherme parou em frente. Augusta viu-o, e correu
a abrir-lhe a porta, como a um parente, ou a pessoa ansiosamente esperada.
mas...
Eu, senhor?
na sua casa.
Eu sei que o seu modo de vida fazer alas. E, sim, meu senhor. Foi a
Foi.
Mas isso no lhe chega... A menina se tivesse uma casa onde pudesse
No duvido que sim; mas eu quero viver e morrer onde viveu e morreu
a minha me e o meu pai, que Deus tenha na sua santa glria. Diz-me o
corao, que se eu sair da minha casinha, hei de ser desgraada. Conheo
muitas raparigas, que foram servir, e poucas deram boa sada. Quase todas
andam por a, hoje numa casa, e amanh noutra, e, quando Deus quer, mais
pobres e infelizes do que saram da sua misria atrs dos ganhos.
Uma das coisas que me admiram, no tanto o seu bom juzo, como a
da cereja, e no respondeu.
quatro anos.
E fabricante.
Gosto dele; mas no quero casar; queria que ele fosse meu amigo, que
disse, Francisco...
Ah! j sei... Tu dizias que era uma alma vinda do Cu, e eu sempre
acreditei que era pessoa deste mundo... disse o artista com boal
desembarao, mas tambm com graa.
E muito deste mundo, senhor Francisco; mas quem devia aqui estar,
quando morreu a sua tia, era vossemec. Quem tem uma prima solteira no a
deixa pelas patuscadas do arraial.
Amaral.
e ainda tenho muito com que possa mandar dizer algumas por alma do meu
pai...
ironicamente.
Deve ser muito amigo dela, e ajud-la a viver com as suas posses.
Isso que ela no quer... j quis mandar vir dispensa para nos casarmos,
Mas um primo para ser bom sua prima no precisa de ser seu marido.
E o que eu lhe tenho dito... atalhou Augusta com satisfao, vaidosa de ter
j dito o que era agora repetido por Amaral.
Este senhor que diga se uma rapariga como tu pode viver com um
raiz h quatro anos, perto de cinco, e se ela estivesse comigo, e viesse algum
conversado falar-lhe namoro, no sei o que seria, dava por paus e por pedras,
e as ms-lnguas tinham de dizer que eu tinha m vida com a minha prima.
Se tu te calasses, fazias bem melhor... disse Augusta muito envergonhada, e
com um gesto natural de aborrecimento, que agradou muito a Guilherme;
Isto que eu digo no tira nem pe: foi a respeito de dizer este senhor
Mas vossemec pode ser-lhe til sem viver de companhia com ela;
poupar uma quarta parte do seu salrio, que junto ao da sua prima chegaria
para ela se sustentar; e, quando lhe aparecesse um casamento proveitoso,
deix-la casar, visto que ela no quer ser sua mulher. O casamento quer-se
feito livremente.
Francisco amuara, escovando a copa do bon com a mo. Augusta fixara em
Amaral os seus negros olhos, hmidos de lgrimas de reconhecimento, e ao
mesmo tempo cativos daquele pasmo de fascinao, que a mulher inocente
no sabe esconder com o leque, ou neutralizar com o sorriso desdenhoso.
Amaral no precisava ser to penetrante como era para espionar a secreta
inquietao da prima do artista. Uma mulher deve ter sido enganada dez vezes
para saber enganar um homem de medocre esperteza; e Augusta no sofrera
nunca uma s das decees, que habilitam a impostura, envenenando a
ingenuidade. Os lbios, se falassem, poderiam mentir, porque o pudor tem
disfarces; mas, silenciosos, no. O que mais a denunciava eram os olhos, onde
o alvoroo ntimo, o fogo sbito, que a queimava dentro, se refletia em
Quem v esta casa de fra no imagina como ela est asseada, fresca, e
Amaral falava nesta ocasio para si. Augusta adivinhara a ideia sem conhecer a
frase. Francisco no entendeu frase nem ideia.
paninho vermelho que enfeita a cmoda custou muito barato; eu que fiz a
franja branca, que lhe d graa. Estas cadeiras f-las o meu pai, que era
carpinteiro, e todos estes mveis foram arranjados por ele. Tnhamos ali, onde
esto as esteiras, um tabique; mas haver um ano que ele caiu, e nunca o
pudemos mandar erguer.
No, meu senhor, eu lhe conto o que o meu pai contava. No tempo
dos franceses morava aqui um homem com fama de muito rir... Quando eles
entraram no Porto, como vossa senhoria h de ter ouvido dizer, muita gente
afogou-se na ponte, que por sinal l est o painel das alminhas. O homem que
morava aqui foi um dos que se afogaram, ou ento mataram-no os franceses,
porque nunca mais apareceu. Como ele tinha fama de ser rico, entraram aqui
dentro os franceses, mas dizia o meu pai que eram portugueses...
barqueiro, pai daquela Ana, que a vossa senhoria foi buscar ao arraial.
Seria; mas a gente no deve fazer carga sua alma com uma coisa que
E deve ter soberba da sua bonita casa, Augusta disse Amaral, erguendo-
CAPTULO VII
silncio!, traduziria eu, com a conscincia de ter dito o mais que pode dizer-se
na presente conjuntura... Engasga-se, e crava os olhos num cupido pintado
no teto pode dizer-se na presente conjuntura... se... se... Uma dama
imprudente funga um froixo de riso contagioso... se a voz da amizade, da
honra, e do dever me no inspirassem no momento solene deste angustiado
adeus. Apoiado!, exclamao do baro da Carvalhosa, e careta de aplauso
ao vizinho. Sim, senhores: o cavalheiro que a fortuna nos deu, a fortuna
caprichosa no-lo rouba! Sensao; silncio apenas quebrado pelo silvo
agudssimo de um sorvo de pitada. Em verdes anos, no o conhecereis
mais prudente, mais cauto, mais instrudo, mais respeitador dos sos
costumes, mais... mais...
Mais honrado!..., aditamento dum... Orgon, representante do de Molire
justamente mais honrado que esse de todos ns querido, de todos ns
respeitado, de todos ns... Bom que no diga de todas ns, observao
maliciosa, parte, de uma dama que conhecia perfeitamente as outras de
todos ns saudade pungentssima, e gloriosssima recordao! Apoiado!
apoiado!, palavras do baro da Carvalhosa, secundadas por vrios
comendadores, que no adormeceram ainda. Sim, senhores! O cavalheiro
Guilherme do Amaral, a todos os respeitos benemrito dos nossos
encomisticos elogios, vai partir!!!! (Quatro pontos de admirao que ele tinha
no rascunho, estudado quinze dias, razo de duas horas por dia.) O modelo
exemplarssimo dos mancebos, que nas suas virtudes nos afigura uma
senilidade precoce, vai partir! Guilherme recomenda, em orao mental, o
orador ao Diabo O tipo da inteireza, da retido, da probidade... vai partir!
E ns ficamos! Ficamos, sim! Ficamos ns!... E que no haja um man que o
prenda! E que no haja um grilho suavssimo que o algeme! E que no haja...
que no haja...
Um bacamarte!..., murmrio de um jornalista malcriado sem graa
nenhuma, que no haja... Uma comisso revisora de speeches!..., o
mesmo insolente a meia voz para uma dama que tem o mau gosto de rir-se
que no haja um amigo que o restitua aos seus amigos!... Estrondosos
bravos e arrotos. Pois bem; cumpra-se o destino! Ficaremos para saud-lo
todas as vezes que nos reunirmos com a efuso cordial com que eu proponho
um brinde ao nosso meritssimo amigo Guilherme do Amaral!! Gritaria
catica; bebem prodigiosamente: um comendador, por desculpvel engano,
leva aos lbios a taa da gua morna, onde lavara os dedos. Duas senhoras, a
rir, estalam quatro colchetes. O orador est radioso.
Amaral, atenuado o calor do entusiasmo, ergue-se com o copo em punho. Um
psiu unnime estabelece o silncio momentneo das orgias ilustradas. As
damas, todas olhos e ouvidos, no pestanejam. Os homens gordos desapertam
os coletes compressores para saborearem com todas as comodidades as
De p, de p! gritaram uns.
um riso de escrnio, mais picante ainda pela atitude do charuto ao canto dos
lbios.
Os convivas passaram sala prxima, onde o caf era servido. Guilherme deu
o brao dona da casa, a potica Ceclia, casada de sete meses, que teimava
em dizer que no brotara ainda a flor ideal do seu sonhado jardim. Diria
muitas outras coisas, se o maligno poeta se no postasse ao lado dela,
recitando, em aparente abstrao, uma quadra, muito conhecida, da sua
cantara intitulada A Bacante, coisa repulsiva, que parecia escrita sobre a
srdida banqueta de uma taverna. Ceclia erguera-se, e um poeta ocupou a
cadeira vaga ao p de Guilherme.
Fizeste fugir Ceclia, com algum epigrama dos teus... disse Amaral,
risonho.
contar com o voto de toda esta gente para a prxima legislatura, isso que eu
no sei como se faz! Quem te deu o privilgio da virtude na imoralidade,
Amaral? Fala franco!
provar a todos estes maridos que trazes cilcios sobre os rins! S uma vez
sincero; indemniza-me de tantas sinceridades que tenho tido contigo; quero s
uma; responde: como estavas tu por dentro, quando disparavas aquela
metralha de ironias a esta gente no teu brinde? Se vais mentir, cala-te.
dos tolos, tinhas uma esttua em vida. Sers feliz at morte! V que estou
inspirado, profetizando o teu destino. O ltimo dia das tuas velhacadas ser a
vspera da tua beatificao. Mestre! No posso recuar; se pudesse, seria o teu
discpulo premiado... Vou tomar caf... No viste ainda uma salva de prata
com charutos de contrabando?... Ela a vem...
CAPTULO VIII
Amaral viu esta mulher como at ali no vira alguma, a olho nu, sem a
impossvel formosura ou a monstruosa deformidade das novelas, sem os
ensaios prvios da seduo, sem o doble artifcio que o desejo da celebridade
lhe ensinara, privando-lhe de liberdade a natureza ingnua, crente e expansiva.
Um amor natural e espontneo, gerado na simplicidade do corao,
alimentando-se de si, sem ostentar-se s emulaes dos outros, abastardar-se
no jogo de pequenas misrias, que so a iguaria apetitosa da mulher saciada,
esse amor ainda Guilherme o no sentira, e muita vezes perguntara ao esprito
em liberdade se ele existia fra da inocncia, ou somente nos arrobamentos
das almas propensas ao fantstico.
A esta pergunta respondera Augusta, a mulher simples, a frescura dos vinte
anos com toda a seiva dos quinze, os lbios de rosa sem a mcula de um beijo,
os olhos de uma ternura voluptuosa, como ela se mostra sem os atavios do
fingimento, olhos donde no cara ainda uma lgrima sobre uma iluso
desvanecida.
A ndole mvel de Amaral recebeu como facto o que era apenas urna
impresso nova, exagerou a felicidade em perspetiva, porque o corao,
faminto do verdadeiro amor, rejuvenescia da velhice prematura, oferecia-se
para os jbilos da afeio ingnua, cheio de vigor, imaculado do lodo em que a
impostura o atascara, abrindo-se aos anlitos do ar puro, do santo amor que se
Visto que vamos falar seriamente, chega-te para l, que me quero deitar.
O amor.
O amor! A quem?
Theodorina e as da Andrillac...
Resisto prova, qualquer que ela seja, e digo-te que essa rapariga nem
que me ama, sem ela mo ter dito: destes peitos transparentes que deixam
estudar o corao... E um prazer que faria a soberba de um parvo, mas que
produz em mim urna sensao de glria... Vinte anos, a virgindade da alma, a
beleza, um terreno inculto com os embries de todas as flores no seio... a
minha linda cativa!
Ests delicioso; mas o ch pssimo... Onde mora a pequena?
Bonito! Fala srio: quero ver a costureira atalhou o vare com a boca
tmida de costeleta.
gozos! Tenho notado que precisamos mais de uma boa organizao do amor
que da organizao do trabalho... Queres mais costeleta? No est m... chegame essa pimenta... Com que ento, a rapariguinha s pode viver sombra,
como o lrio do vale!... Confias muito pouco nela, ou em ti, ou em mim!... s
um ingrato! Nunca concorri contigo... tendo mil e uma ocasies de...
Justamente.
Faa-se a tua vontade. Retiro a censura... Pode ser que um homem excntrico
depare a ventura fra da esfera onde gravitam os homens. A costureira ser a
flama de um alquimista moral. Procura o absoluto do corao, como o heri
de Balzac, mas no te arrunes como ele. Encontrars, talvez, a verdade
abraando uma tolice. Aquele dentre vs que se cr sbio abrace a loucura
CAPTULO IX
Nem espero que venha a ter; e para que no seja injusta comigo,
arrependendo-se por alguma suspeita, devo desde j dizer-lhe que sou um seu
verdadeiro amigo... No acredita que eu seja seu amigo? Olhe para mim,
Augusta; no a quero ver assim envergonhada; ou est comigo como se est
com um irmo, ou eu no torno aqui.
No so pequenos...
Basta! A tal respeito nem mais uma palavra. Augusta dispensa os meus
no, pelo menos nesse instante. Disse o que nunca disse da abundncia do
corao, que pela primeira vez falava, na sua linguagem nativa, embalsamada
com os perfumes prprios, vestida simplesmente, grata aos ouvidos, no
viciados pela msica dos conquistadores por estilo.
lhe a mo. Repare bem na firmeza das minhas palavras... Esta segurana s
a d o amor e a honra. Eu amo-a, Augusta; mas este amor no pede
sacrifcios, nem inventa sedues, nem sal do caminho da verdade, para
esconder-se nos atalhos da impostura. Amo-a h vinte e quatro horas, como
se a conhecesse, amando-a, desde criana. Se me disser que este amor no
pode ser recompensado, beijo-lhe esta mo com reconhecimento, e digo-lhe:
fez bem, Augusta, em desenganar o homem que poderia fazer mais infeliz do
que ...
mo trmula.
Que tem a riqueza com o corao, Augusta? Pois s poderia amar-me sendo
rica?
Ningum procura uma rapariga pobre... Isso era bom se o senhor fosse
um oficial de ofcio. Dizia a minha me que uma rapariga que quer ser mais do
que , por mais que seja, ficava sempre menos do que era.
E pensa que eu tenho a vaidade de dizer-lhe que pode valer ainda mais
do que vale? No, Augusta: a menina, sendo o que , no pode invejar mulher
nenhuma. Se soubesse o que tenho sido, julgava-se neste mundo primeira
entre todas as mulheres. Amava-me com dedicao, porque diria, vendo-se
to amada, que nenhuma outra poderia impressionar-me tanto... Augusta,
temos um belo futuro. Seja minha, diga-me que d ao meu corao todo o
domnio sobre a sua vontade.
Augusta?
A rapariga baixava os olhos em significativo silncio, quando o pontual
fabricante entrou, pedindo licena j com um p dentro da casa. Augusta
estremeceu. Guilherme fixou-o com superioridade e aborrecimento.
Francisco, embaado com a repetida surpresa, gaguejou um cumprimento
prima, sem dirigir sequer um gesto ao hspede, e sentou-se com grosseira
liberdade. Guilherme sofria no seu orgulho, e sentia-se, como se diz,
falsamente situado na presena do artista silencioso e da costureira vexada. A
fisionomia dela exprimia aflio; a do primo, clera comprimida.
Amaral era pouco inventivo em conflitos srios. No lhe ocorreu uma
frivolidade com que sair-se do aperto. V-lo assim era julg-lo imbecil
aspereza.
Eu no...
Isso so lrias, rapariga... Quem me avisa meu amigo ... Eu que te digo
contas.
Porqu?
com uma rapariga sem ser para seduzi-la!... E se ele for meu amigo?
perca.
O mal teu, Augusta. Parece mesmo que o Diabo as arma! Quero casar
fazer?
Soube que era um fidalgo da Beira, muito rico, tem lacaios, e d-se-lhe
excelncia l na hospedaria.
Boa vai ela! j te lembras se ele casar contigo! Pois no!... Vo-se ler os
No...
No! Ento fala assim de uma vez para sempre... Gostas do paralta?
comesses a isca que ele te deu no anzol das tais duas peas... Pensa, e faz o
que quiseres. Amigo hei de eu s-lo teu at morte... Quando me procurares
hs de achar-me... Se no queres casar comigo, porta-te bem, que te no ho
de faltar maridos; mas pano com ndoa no vale a quarta parte... Adeus,
Augusta; so horas de ir para o trabalho...
A costureira, sozinha, chorou muito. E que lgrimas! As primeiras, as
primcias do fel que paga o primeiro amor! Coitadinha, a fascinao era
invencvel! O primeiro raio de sol desabrochou de repente a flor toda, todos
os perfumes lhe vieram do selo, no escondeu um s polmo do seu nctar
primeira abelha que lhe tocou.
Mas a profecia, rudemente inexorvel, do fabricante, era-lhe um agoiro de
perdio infalvel. A generosidade de Guilherme pareceu-lhe um meio de
perd-la e as visitas posteriores e as palavras que lhe ouvira, uma hora antes,
tudo vinha confirmar as suspeitas de Francisco. Vejam quo pouco basta para
matar a inocncia!
me...
E tu queres vend-la?
seis meses, com juro, fica sendo a casa minha, e, seno, vossemec d-me o
que faltar, com a condio de eu ficar na casa, enquanto viva, pagando-lhe
aluguer.
Tudo se pode fazer: mas que diacho de razo tens tu para vender a
casa?
Preciso de dinheiro...
com aquele senhor, que te deu as duas peas, e queres pagar-lhas.. Fala para a,
menina... Bem sabes que coisa que se me diz, pedra que cai num poo.
Augusta no pde estancar as lgrimas; e, como se elas no bastassem,
confessou tudo vizinha matreira, para quem as intenes do generoso
protetor da rapariga eram maliciosas antes de o serem.
ele te queria muito!... H dois dias que o vejo entrar na tua casa sempre
mesma hora, e da fama j te no livras, rapariga...
Pois sim, sim: mas que queres? Vo l tapar as bocas ao mundo! Eu, se
fosse a ti, tanto se me dava que falassem como que no. s tu livre? No tens
pai nem me; cada qual toma o rumo por onde lhe faz conta. E ele teu amigo.
Deixe-me contar-lhe... Ele disse-me que era muito meu amigo, que me
Eu no lhe disse que sim nem que no... Disse-me uma palavras que me
me disse hoje que me tinha amor, eu senti uma alegria c dentro, que me fazia
endoidecer. Ento depois, entrou o meu primo, e ele esteve um bocado sem
dizer nem palavra, e saiu com m cara. O Francisco comeou a dizer-me que
o que ele queria era seduzir-me, e abandonar-me... Sempre chorei, tia Ana!
Augusta, estes homens ricos casam com raparigas pobres, e so muito amigos
delas. S do meu conhecimento h trs casadas hoje no Porto com figures:
uma, que era criada de servir das senhoras Lacerdas, baronesa; outra, que
tinha um estanquinho na Rua do Prncipe, est casada com um figuro, que
assim a modo destas coisas do Governo; outra, que me comprou muito peixe
fiado, quando o amigo andava l por fra na emigrao, anda de carruagem, e
faz que me no conhece... Coisas do mundo... Mas diz o que queres fazer
agora?
Quero dar-lhe as trs moedas, e no quero que ele torne a minha casa.
Gostava, se ele me quisesse para bom fim; mas, como diz o meu primo,
Pois sim... Mas seria melhor que ele o recebesse da minha mo... No
Pois sim...
venha ou no venha?
Queria que ele no viesse; mas no se me dava que ele fosse meu
amigo,
Como h de ele ser teu amigo sem te ver? Longe da vista,, longe do
corao.
palavras...
Queria que ele viesse a minha casa, de vez em quando; mas no queria
dever-lhe nada...
Pois ento paga-lhe as trs moedas; mas olha que ele no tas aceita.
Que fortuna?!
Eu venho restituir-lhe a paz que lhe roubei, menina. Quis faz-la feliz, e
no pude. Entrei nesta casa com a teno de ser bom, e retiro-me talvez,
deixando, em vez de amizade, dio; em vez de saudade, esquecimento. Nunca
eu ouvisse os seus gritos, Augusta, quando aqui vim guiado a esta rua por um
acaso. Foi para ambos ns infelicidade v-la eu. Para mim porque a amo com
paixo; para Augusta que me queria, talvez, amar e no pode. Algum tomou
posse do seu corao primeiro que eu. No tenho dio a quem a merece, seja
quem for. Se seu primo, seja feliz com ele...
enganado comigo...
No ningum.
me... outro amor que a no deixa ver o muito que a estimo, a felicidade que
lhe preparo, e o desprezo em que tenho todas as coisas deste mundo desde
que a conheo. Augusta, diga que me no pode amar porque ama outro...
A costureira deixou ver em todo o seu esplendor o brilho dos olhos
inteligentes, fixando-os no rosto insinuante de Guilherme.
aqui...
Meu primo no tem nada comigo... O senhor j sabe que ele quer casar
Nunca!
no sai desta casa para outra em que se veja senhora de tudo, que faz a
felicidade deste mundo?
Sair daqui?!...
Pois que dvida tem em deixar uma casa que no digna de si?...
J?
isso, no. Enquanto puder trabalhar, hei de viver com honra como a minha
me viveu; em me faltando as foras, pedirei uma esmola.
H de agradar.
Mas suponha que no? Quantas pessoas parecem aquilo que no so!...
Porqu?
de aceitar?
No aceito.
esse dinheiro, d-o pela minha inteno aos pobres; mas, por quem , antes
me diga que me despede, eu no voltarei; o que no posso sofrer que me
empurre como um vil credor pela porta fra...
lgrimas a fio.
Pois que maneira esta de tratar uma pessoa que, se lhe no fez bem,
No, senhor...
Disse-lhe que a queria fazer feliz com o meu amor e com a minha
E que digam? Que lhe importa o que disserem, se Augusta vive s para
mim? Se eu tivesse de ser maltratado pelo meu pai, pela minha famlia, pelo
meus amigos, por todo o mundo, bastava-me o amor de Augusta, para eu
desprezar tudo que a no respeitasse... Pois a menina persuade-se que s o
casamento faz a felicidade e a honra de uma mulher? Est muito enganada, e
tem razo, porque no sabe nada do mundo. A mulher casada no feliz
quando se no conforma com as inclinaes do marido, e vive num contnuo
inferno de portas adentro. A mulher casada no tem honra, quando, obrigada
por um mau marido, esquece os seus deveres, ou julga que no tem nenhuns
com um marido que falta aos seus. Entendeu-me, Augusta? Nunca ouviu falar
como eu falo?
Pois bom que me caiba a mim abrir-lhe os olhos para ver as coisas
como elas so; a no ser eu, poderia ser que outro lhe deixasse a experincia, e
tambm o remorso. Eu no. Digo-lhe isto, com a certeza de que no ser
minha. Quisera poder preveni-la contra as tentaes de algum sedutor que
venha, depois de mim, inquietar a sua doce tranquilidade. Ora pois, Augusta,
eu vou retirar-me, e a menina fica feliz...
Feliz!... Eu nunca mais posso ser feliz... Por isso que eu digo que oxal
eu nunca conhecesse seno o meu primo... Esse no me fazia bem nem mal...
ver...
CAPTULO X
como a Haide num dos contos de Byron, que no cito textualmente, porque
no das coisas mais moralizadoras que eu conheo.
Augusta! disse Amaral, sem persegui-la. No me voltes as costas! Olha para
mim... No achas to agradvel o tu na boca de um homem que te ama?
Trata-me assim tambm. Ora diz: s o meu Guilherme... e eu sou a tua
Augusta. No queres dizer? M! Tambm a no quero tratar por tu...
Deves, Augusta. Eu no sou s teu irmo, nem teu amigo; sou mais que
o teu marido, sou teu, de alma e corao, teu por toda a vida, embora no
sejas minha. No s?
dizes... Quando no tiveres nada a desejar nesta vida, olhars com tristeza para
isto que foste antes de me conhecer. Augusta! De hoje em diante no h
mulher nenhuma que no inveje a tua sorte. H muitas que ao verem-te, linda
como s, ho de morder-se de raiva. Os teus vestidos sero os mais ricos, a
tua casa a mais asseada, os teus desejos os mais depressa adivinhados, Eu hei
de adorar-te como mulher a quem devo a felicidade, que todas as outras me
roubaram. Sers o meu anjo-da-guarda. Nunca sairei de ao p de ti. Nasceste
mulher, hei de fazer-te senhora. Antes de um ano abrirs um livro ao p de
mim, e lers os infortnios dos amantes infelizes, enquanto ns nada teremos
CAPTULO XI
Foi ali..., disse ele. Nunca me esquecer o stio nem a hora.. . Se eu for
menos infeliz um dia, virei a recordar a hora de hoje.
Isto passara-se a vinte e oito de Junho, justamente na vspera do arraial de
Miragaia.
Impressionado pela coincidncia da meditao com o encontro de Augusta,
Amaral, supersticioso como aqueles que veem alm do que palpvel, atribuiu
a influxo providencial o mero acaso dessa costureira, que chorava, abraada ao
cadver da sua me. Sem o precedente do Candal, Guilherme no seria to
acessvel formosura real, e ao idealismo romanesco de Augusta.
Amando-a, e tentando-a, julgou fcil convenc-la. Fantasiou, como j vimos, o
que h de melhor na vida, o amor verdadeiro, o amor sem emboscadas, a
perfeio do amor. No sabia ele que alm da perfeio est o fastio: no lera
esta verdade eterna proferida por uma mulher: O amor s vive pelo
sofrimento; cessa com a felicidade; porque o amor feliz a perfeio dos mais
belos sonhos, e tudo que perfeito, ou aperfeioado, toca o seu fim.
O leitor, assim elucidado, explica a existncia de Augusta no Candal, se me
dispensa de lhe dizer que foi a transportada numa sege, dois dias depois que a
Sra. Ana da Rua dos Armnios a vira sair e no voltar.
A casa em que ela vive a que mais perto alveja de Guilherme, na tarde das
suas tristezas cismadoras. uma bonita casa. No alardeio cpia de
leso de costela, nem receios de ser mistificado por alguma cobra das selvas
vizinhas, descendente de outra que Milton fez falar melhor que um deputado
dos nossos.
Augusta j no parece a mesma. Lucrou muito com a mudana. Um pouco
avelada das vivas cores do rosto, isso sim; mas, por isso mesmo, mais
interessante. Vo-lhe bem os olhos pisados, e a morbidez do olhar. O vestido
de lustrina preta, que lhe cai em folhos sobre o verniz do sapato, no parece
vestido em tal corpo pela primeira vez. Ana, elegncia, donaire, flexibilidade,
tudo isto, ou lho ensinou a arte, ou viera da natureza, para quando o acaso lho
prosperasse. Como ela veste uma luva da cor do leite, menos alva que o
antebrao, comprimido em pulseira, que lhe talham relevos de graciosas
roscas! Nem mais garbosa uma andaluza lanaria dos ombros a mantilha! Cai
fatigada sobre uma cadeira de estofos, com a graa imperial de uma duquesa,
extenuada de galopar no rasto de uma lebre! Como que se faz tanto de uma
costureira em quarenta e oito horas!
A omnipotncia do instinto: no conhecemos outra resposta.
Achais ftil a razo? Tendes olhos e no vedes. Ide aos sales. Se no
conheceis os modelos da elegncia, informai-vos. L achareis fenmenos mais
curiosos que o de Augusta. A mo que, h poucos anos, agitava um abano
diante de uma fornalha, v-la-eis agitar um leque, abri-lo e fech-lo,
Da nossa...
Para ti.
Para mim? Eu vivo bem com pouco... O que eu quero o teu amor, e
mais nada.
No... perdoa-me.
J me pedes perdo?!
No se chora de alegria?
Que anexim?
No; mas quero que te vejam, porque tenho orgulho de ser feliz...
erro...
preciso no esquecer este ltimo... Amar com orgulho, ter vaidade do que se
ama, apenas um luxo, mas um luxo que muito bem parece...
CAPTULO XII
bonita, como se diz? No posso dizer-lhe que bonita, porque este adjetivo
anda por a em concordncia com muitos substantivos, que o no merecem.
mais que bonita. A imaginao no associa um composto de feies assim!
Rafael dava um trao negro sobre a cabea de todas as suas madonas, se visse
Augusta.
dom natural. No tem tempo ainda de ser espirituosa; mas ser, com dois
anos de estudo, um prodgio. H trs meses que vive com Guilherme, e
escreve, e l com admirvel correo. No conhece a msica; mas inventa
harmonias ao plano. Adivinha tudo. Conversa sem pretenso naquilo que
sabe. Os ares so de uma perfeita senhora, afeita desde criana convivncia
com as ilustraes, e ao estudo dos bons modelos na arte de prender os
costureira aqueceram o vcuo glacial do seu amigo, que de certo era mais
difcil de contentar que a vossa senhoria.
Que diz?!
ininteligvel uma poesia libertina... Quer dizer que a costureira do seu amigo
vale mais que as pessoas delicadas, que receberam mais ou menos
cordialmente o senhor Amaral?
Ceclia; mas, para satisfao de ambos ns, conceda que eu d uma sucinta
explicao da minha grosseria. A costureira vale mais que as cordialssimas
admiradoras de Guilherme, porque a costureira no tinha uma cordialidade
elstica, pronta a estender-se na mo de cada qual que puxava por ela. Amou
um homem nico, e esse homem queria um amor nico, um corao virgem,
um rosto que exprimisse, no fogo do rubor, a primeira emoo. A costureira...
no sonhou tipos, nem sabia que os tipos sonhados desfilavam depois,
vestidos de fraque e bota de polimento, diante da fantstica sonhadora,
sempre espera do ltimo. A costureira era uma mulher simples, com a
cabea, e o corao, e o estmago no seu lugar. Pensa, ama e come como a
boa gente; mas a boa gente no pensa nem ama como ela. Quem puder
entender que entenda.
O jornalista concorria duas noites de cada semana, e respirava ali dizia ele
o ar balsmico da verdadeira poesia. Falando coisas de literatura com
Guilherme, Augusta ouvia-os calada, mas dizia, nos olhos penetrantes, que os
entendia. Em coisas do corao, Amaral escolhia assuntos do ltimo livro lido
por Augusta, e ele interpretara nos lugares obscuros, ou fingia ignorar nos que
deviam ser mistrio para uma leitora ignorante. Augusta, nessas anlises,
convidada por Amaral, falava pouco e com timidez; mas ouvi-la momentos
era apurar o prazer de ouvi-la sempre. Os gabos animadores do jornalista,
recebia-os corando, e os elogios secretos do amante, agradecia-os com
lgrimas.
Em tardes serenas passeavam a cavalo. Augusta era sempre bela; mas sobre o
selim, instigando com a espora o cavalo a graciosos corcovos, era inimitvel.
Amaral revia-se na sua obra, com orgulho de artista, e ternura de amante.
Como transparecia radioso o rosto dela pelo amplo vu azul-ferrete! Que
gentileza, se o cavalo galopava, e o vu, solto ao vento, deixava ver o seu
sorriso de confiana e alegria!
Rossi-Caccia cantava ento no Porto. Amaral queria dar uma impresso nova
a Augusta, que nem de teatro lrico ouvira falar na Rua dos Arinnios.
Iremos...
No nada...
No ir.
E ds-me a razo?
Dou ... Em parte nenhuma posso ser mais feliz do que sou aqui ... Para
com uma bateria de binculos. Viram aparecer uma bela mulher, vestida de
preto, sozinha, sentar-se, e no mais tirar os olhos do palco.
vistosa!
Daqui parece-o.
O qu? ...
Alguma ...
Carvalhosa.
E muito amarela.
cachos!?
A mo grande,
Est feito!... Isso no tem ela mau... mas a maneira de pegar no culo
Uma imoralidade.
Um caso novo...
Estou bem.
Gostou da Rossi-Caccia?
J viu os camarotes?
nem eu conheo.
Porqu, filha?!
Conheo que vivo s para ti, e nada do que me rodeia me pertence. Se amas o
teatro, vem tu... no te prives de algum prazer; e, quando voltares a casa,
encontrars nos meus braos amor e contentamento.
a tranquilidade...
CAPTULO XIII
Rua Direita (direita como a linha reta de um brio). Recuperadas as foras, foi
muito do seu vagar seguindo o trilho dos cavalos; mas as lajes da calada no
denunciavam nada.
Perguntando a um barqueiro se vira ali passar uma sege, soube tudo que
desejava. A sege, disse o barqueiro, levava um fidalgo que morava no Candal,
e era patro de uma sua filha, criada de cozinha.
O fabricante disfarou como pde a sua curiosidade, e seguiu o caminho do
Candal. Perguntou a um lavrador onde morava um fidalgo chamado
Guilherme, viu a casa, rodeou-a por longe, e voltou para o Porto. Se se
demorasse at noite, poderia ver passar para o Porto, na mesma sege, Augusta
e Guilherme,
Nessa noite o fabricante no dormiu. Era chegada a hora de uma vingana
oito meses meditada. Na incerteza de sair-se bem da tentativa, Francisco
entendeu que devia adi-la para a noite seguinte, a fim de confessar-se, com a
louvvel esperana de entrar puro no Cu, dado o caso infausto de ser morto,
matando. (Este entendia o sacramento da penitncia maneira dos que se
confessam para minorar as penas do suicdio. No so estes, contudo, os que
molestam mais a religio, nem os padres que os absolvem. O que faz mal so
os romances e as bulas.) No dia seguinte, Francisco no foi fbrica, e fez
saber ao patro que se despedia por algum tempo. O patro, seu amigo e
protetor, procurou-o, e encontrou-o chorando.
No h remdio, patro... Cada qual vem a este mundo com a sua sina.
Mas que tens, homem? Eu, j h muito que ando desconfiado de ti!
Dantes eras um rapaz alegre, contente sempre, e, h meses a esta parte, vejo-te
assim a modo de cismtico! Que diabo tens?
O meu mal no tem remdio... Assim como assim, vou-lhe contar tudo.
Eu no lhe disse, h mais de trs anos, que queria casar com uma rapariga, que
era minha prima?
mulheres!
E ele que culpa tem? Um co, quando lhe botam um osso, aboca-o...
trincar os fgados... Foi ele que lhe entrou pela porta dentro com trs moedas,
como quem vai comprar urna vaca. Estes homens ricos que se servem do
dinheiro para fazer a desgraa da gente pobre merecem um tiro. Ela estava,
mansa e queda, na sua casa; para que veio ele roubar-ma? Porque tinha
dinheiro, e eu precisava ganh-lo para comer. Uma rapariguinha no tem
culpa de se deixar cair na rede; eles que so os malvados, que no tm pena
de botar a perder uma mulher...
morrer. Est-me a parecer que casava com ela, se pudesse dar cabo do tal
tratante!
Qual ideia?
Queres ir acabar a uma forca? Pensas que se mata um homem como quem
mata um co?! E se ele primeiro te meter uma bala na cabea? Ora no sejas
cabeudo! Anda comigo, e j!
s tu?
casa.
procurao por causa de uma demanda, e quis que ela fosse no correio de
amanh. Por enquanto no me d grande preocupao, porque saiu ao
escurecer.
Que ?
Decara desta casa est um homem, que aperrou uma arma, quando eu
parei como lhe fiz saber que no seria eu a pessoa esperada, o homem disseme que podia passar. Receio que a espera seja para Guilherme.
pela porta travessa, e dar, antes de entrar, providncias para que o assassino
seja preso.
remorsos de assust-la...
te botou a perder...
Que tenho eu com a tua perda? Sou teu primo, e devo defender-te na
Defender-me de qu?
esfarrapada.
mansido.
Pois que pensavas? Querias que eu te viesse pedir perdo? De qu? Que
direito tens sobre mim? Quem te encarregou de zelar a minha honra? Pois tu
queres comparar-te ao homem que eu amo, miservel! Ousaste vir aqui com
uma arma para o matar covardemente? No posso ver nas tuas mos isto...
Augusta, sem grande esforo, arrancara-lhe da mo a arma, e arrojara-a a
alguns passos com pasmosa energia.
O fabricante estacara, imvel, esttua do idiotismo, diante de tanta coragem, e
fulminado pela torrente de eptetos que saam de uns lbios frementes de
raiva.
mal!
fugir...
para o artista:
no perguntes nada, eu te contarei tudo. Deixa-o ir, que ele no torna aqui...
No quero nada...
podem ferir... Entenda que deve a vida sua prima; mas no lhe prometo
poup-lo se tentar segunda vez esta loucura. Eu vou-lhe buscar a sua arma...
Aqui a tem... Retire-se...
O fabricante recebeu a arma. Amaral, com as pistolas na mo, seguia-o nos
menores movimentos. A precauo era intil. Francisco seguiu vagarosamente
o caminho que trouxera, dizendo:
Amaral mandou transportar aquele homem a sua casa, e recebeu nos braos
Augusta desfalecida.
O poeta, que tambm viera, dizia consigo:
porm, se no foi original, no sabia, decerto, que plagiava. No que ele foi
mais feliz que os suicidas do nosso conhecimento, que no morreu.
Transportado a casa de Guilherme, foi observado pelo jornalista, que sabia de
tudo, inclusivamente de cirurgia. Observou que a bala no ferira a laringe nem
a faringe, nem as ramificaes arteriosas ou venosas de mais melindre.
Atravessando o msculo esternoclidomastideo, a bala sara por debaixo da
maxila inferior, sem, por grande fortuna do artista, lhe lesar este importante
instrumento da mastigao! O facultativo confirmou o prognstico do poeta,
e Francisco entrou em curativo.
Augusta era a sua enfermeira: s ela entrava no seu quarto. O fabricante,
proibido de falar, encarava a sua prima com os olhos sempre rasos de
lgrimas. s ligeiras perguntas dela sobre o seu estado, o convalescente
respondia corri o acanhamento do pejo, que o luxo do quarto que lhe
deram, e o luxo no trajar da prima, e as excelncias, que ouvia dar-lhe no
quarto prximo, concorria tudo a vex-lo por ousar apresentar-se como primo
de Augusta, e rival do fidalgo, senhor de toda aquela riqueza. E, depois, o
amor com que a sua prima velava a sua doena, as frequentes visitas do
cirurgio, a generosidade dela em no mais lhe falar na sua loucura, a
importncia que lhe davam, a ele, pobre fabricante, em paga de uma inteno
homicida, estes estmulos no feriram debalde a sua gratido. Francisco
esquecia o seu velho amor, e sentia-se em dvida de respeito e amizade ao
generoso amante de Augusta, que nunca viera ao seu quarto.
Quando, corri vinte dias de curativo, se ergueu do leito, disse-lhe Augusta que
o senhor Guilherme vinha falar-lhe. Francisco fez-se vermelho. Tinha
vergonha de encarar o homem que lhe pagara com benefcios a inteno
premeditada de mat-lo.
por isso tanto faz dizer como no dizer que estou pronto no seu servio. Sou
um rapaz criado no trabalho, tenho o meu ofcio, e para l torno.
CAPTULO XIV
Donde vem dizia ele uma melancolia que no est no teu gnio?
Tudo isso passou, Augusta... O teu primo est bom e feliz... Estes
compaixo...
s tu?!
No sofro... no sofro...
E, contudo, choras!
Pois que queres? Uma mulher, por mais feliz que seja, tem necessidade
Que desejas? Nada para mim, que nada tenho a desejar... tudo para ti...
No .
Dou.
E boa a pergunta!
Ora!...
o que te digo.
Ser isso?
Nem prometeste?
Mas, desde que est comigo, nunca romos de leve por tal assunto.
Isso no argumento.
Amei-a muito, e posso dizer que a amo ainda; todavia, desde que a vejo
Contrariou-te?
lhe perguntar o que tem de hora a hora, enfadar-me. Bem sabes que tudo
que obrigao pesa, e eu no quero algemas. Se eu a contrariasse, pedia-lhe,
ou no lhe pedia absolvio da culpa; no lhe tenho dado causa ao menor
desgosto, e custa-me a representar de humilde... revolta-me o predomnio, que
ela quer exercer sobre mim... Sabes tu que todas as mulheres so semelhantes,
logo que atingem um determinado grau de inteligncia!?
contrria.
prescindir.
nos costumes. Aqui h s a recear que ela penda para a mstica. Se escrupuliza,
se se fanatiza, deixa-te... Sabes tu que tenho uma suspeita muito razovel?
Qual suspeita?
Cristalizao!, No entendo.
melancolia dela.
com urna mulher, e ao cabo desta eternidade de amor ainda diz sem
impostura: amo-a. Mulher que se ama, depois da convivncia de dezoito
meses, ama-se toda a vida, quer seja amante, quer seja esposa, Como estou na
minha hora de sinceridade, deixa-me dizer-te que no achas mulher que valha
tanto como Augusta. Se te desligas dela, comparar-te-ei ao avarento que
amontoou um tesouro, e, embriagado da sua fortuna, passava as noites e os
dias contemplando-o; e, no frenesi do seu contentamento, endoideceu, e,
doido, arrojou o tesouro pela janela rua.
O tesouro essa mulher simples, imaculada, santa, perante a corrupo e a
doblez de todas as que conheceste. Imaginaras um anjo; o anjo saiu das tuas
mos perfeito. Fizeste de um corao em bruto o que Fdias fizera do
mrmore. Nenhum homem fizera tanto, e nenhuma mulher fra to malevel
s inspiraes de um homem. O amor pode muito, transfigura muitas ndoles,
d formas novas mulher magnetizada; mas no omnipotente, no produz o
milagre que se viu e que se v todos os dias operar em Augusta o teu amor...
Tu s um ingrato a Deus e a ela, se a abandonas!
do casamento.
E o casamento?
Pois tu casavas?!
s uma maravilha!
Nem eu. Vinha a propsito de serem onze horas da noite, e eu no ter ainda
escrito o folhetim de amanh... Vou rabisc-lo no teu escritrio. Augusta deve
ter notado a demora da nossa palestra. Pede-lhe que toque a Casta Diva
enquanto eu escrevo.
Hoje escrevers sem msica... Vou decifrar o enigma, que me parece
indecifrvel depois da tua explicao.
CAPTULO XV
E no encantador? Eu acho...
No sentes frio?
Ainda no... Estou aqui h meia hora, e no queria sair sem que tu
viesses ver...
Isso depende da maneira de ver as coisas. Cada qual tem o seu vidro de
A continuao do presente...
E o presente no te agradvel?
Desejas a morte?
que tenho conhecido nos romances, onde se aprende tudo que do corao...
carcter!...
sexto sentido, que me faltava? Pois esse sentido que me faz sofrer. Melhor
fra que nunca mo desses.
com que fim!... Pensas que amar-te menos o esconder-me aos teus olhos?
terrvel!
Queria.
Agora, fala...
Tambm o creio.
De costureira? No...
Sorris?
Caprichos!... Quais?
CAPTULO XVI
Leonor, indiferente a conhecer o seu primo, em quem o pai lhe falava muitas
vezes, desejava ver o Porto, e passar aqui o Inverno, mais suave, com os bailes
e o teatro lrico.
Outros motivos mais fortes... sabia-os ela, A sua vontade encontrou a
benevolncia paterna, e a pronta execuo. Vieram para o Porto. Antecipouos uma carta, sobrescritada a Guilherme, e por ele recebida no dia imediato ao
do captulo anterior.
Dizia o seguinte:
Guilherme.
Teu tio Teotnio Vaz chega ao Porto no dia 24 do corrente. Vai hospedar-se
na guia de Oiro, e deseja abraar-te e apresentar-te a sua filha e a tua prima.
Teu afetuoso tio.
Guilherme no mostrou a Augusta esta carta. Esta reserva um sinal de
quebra na intimidade. Amaral no se impunha j a obrigao suave dos
amantes, verdadeiramente amigos; pareceu-lhe uma puerilidade mostrar a
Augusta uma carta to simples de um tio a um sobrinho.
Na tarde do dia 24, o sobrinho do Sr. Teotnio Vaz foi ao Porto, sem dizer a
Augusta que negcios o chamavam, ou que horas demoraria. Primeira vez que
isto aconteceu. Apeou na guia de Oiro, e procurou o hspede, que lhe
disseram ter chegado ao meio-dia. Foi abraado pelo seu tio, que lhe chamava,
com as lgrimas nos olhos, o filho da sua querida irm, que, em pequenino,
tantos piparotes lhe dera nas orelhas! Teotnio, enternecido com a lembrana
dos piparotes, estava pattico! Amaral, que mal se recordava dos piparotes,
custava-lhe a suster o riso diante da respeitvel saudade do seu tio.
teu primo...
Leonor saiu do quarto prximo. Amaral ficou surpreendido a tal ponto que
mal podia gaguejar um cumprimento. que a sua prima fazia acreditar na
existncia dos anjos: a sua apario instantnea era uma coisa mgica, um
eclipse, que escurecia todas as realidades conhecidas, uma inovao de
impresses em corao gasto de receb-las todas.
Leonor estendeu a mo afetuosamente ao seu primo. Falava pessimamente o
portugus, mas, com tanta graa, que as damas portuguesas, se a ouvissem,
estudariam o modo de falarem assim: dificuldade que algumas vencem sem
estudo.
Guilherme, para evitar-lhe embaraos, falou em francs, coisa que o seu tio,
com dezasseis anos de residncia na Blgica, no conseguira nunca. A
conversao travou-se em assunto frtil. Vieram as comparaes do clima, da
civilizao, do Governo, da agricultura, entre as duas naes conhecidas de
Leonor.
E o mais que a prima do nosso amigo era uma excelente faladora, e o seu
pai, orgulhoso dela, fazia um aceno afirmativo, e, o que mais ainda, uma
careta clebre a cada agudeza palavrosa da menina.
Guilherme via, maravilhado, tanta beleza, e tanto desenvolvimento. Quem
falava mais era ela, e sempre interessante, em tudo engenhosa, senhora de si,
sem constrangimento, dando mais importncia ao que dizia do que pessoa a
quem o dizia, falando como quem se escuta e se admira, correndo no pulso de
jaspe, por distrao, a pulseira, enquanto o primo, cada vez mais tmido,
falava.
Neste momento desfizeram-se as ltimas lminas da cristalizao de Augusta.
A costureira passou de relance entre Leonor e Guilherme. Ia nua de todo o
prestgio, desenfeitada de todos os arrebiques que a imaginao lhe dera...
Pobre Augusta!... Se ao menos as tuas lgrimas remissem as mulheres da tua
condio!...
Eram oito horas da noite, quando Teotnio Vaz interrompeu a incansvel
loquela da filha, dizendo que a sege os esperava. Foram ao teatro. Guilherme
deu o brao sua prima, e chamou a ateno dos frequentadores do vestbulo.
Entre estes estava o jornalista. Enquanto Amaral parava diante de uma
cadeirinha, que tolhia o passo das escadas, o poeta disse-lhe quase ao ouvido:
etecetera, etecetera. Amaral sorriu-se; e Leonor, que ouvira e entendera,
procurou o leitor de Victor Hugo com os brilhantes olhos. O poeta
Esta um anjo.
fosfrica das paixes de lume pronto, como eu creio que so as paixes do teu
ilustre amigo.
O orador riu-se do seu epigrama, e o poeta pediu aos circunstantes que se
rissem por piedade daquela sensaboria pretensiosa.
Estava o pano em cima. Cada qual foi sentar-se, segundo a indicao dos
camarotes. O jornalista colocou-se na melhor linha de observao para o
camarote de Teotnio Vaz.
Observou ele que Leonor media com o culo de alto a baixo todos os
camarotes, no se dedignava de responder, mais ou menos de passagem, aos
curiosos da plateia, atendia quase nada ao palco, e nada, em toda a extenso da
palavra, ao que o seu primo parecia dizer-lhe. Primeira observao.
Notou ele mais que, no intervalo do segundo para o terceiro acto, entrara
na plateia superior um homem desconhecido, tipo francs, bem vestido, muito
airoso. Que este homem fixara uma luneta em Leonor, e Leonor, desde esse
momento, raro levantou os olhos do desconhecido. Segunda observao.
Terceira e ltima: que, sada do teatro, o francs, que ningum vira no Porto
antes dessa noite, fra postar-se em frente da escada que desce dos camarotes,
e Leonor, ao passar, lhe dera o mais significativo e destemido de todos os
sorrisos: facto escandaloso que todos observaram, exceto Guilherme, e o seu
tio, que era mope.
Zombas?
Era aquele homem que foi cortejado nas escadas com um sorriso
Palavra de honra?!
Juro-te pela minha honra e pela honra das onze mil virgens, incluindo
No gracejes...
Desprezado.
Pois tu j apelas para o auxlio do teu tio contra a tua prima?! Isso
uma fraqueza, urna conquista inglria, uma ignomnia para um leo! No caias
nessa, que pior para ti. Uma mulher detesta o perseguidor, que se serve do
parapeito da sua famlia para rend-la. Pela piedade, movem-se muitas; pelo
rigor, algema-se uma mulher; mas a alma fica-lhe livre. Tu s, s vezes, inferior
ao que pensas de ti. Eu no quero saber como so esses amores fulminantes...
sei que h monstruosidades nesse gnero... V-se uma mulher, luz de um
Um duelo em perspetiva...
Que importa? j te disse que h uma mulher fatal para cada homem...
Mudemos de assunto.
espero amanh.
CAPTULO XVII
para meu descanso... Para a outra vez diz-me que te demoras, sim?
Pois sim.
Ceaste?
Ceei.
Sim.
Era a Norma?
mim!... Enganas-me... Alguma coisa tens... Diz-me o que ... Bem sei que me
no queres afligir, mas a incerteza maior aflio.
No tenho nada, Augusta... E um desses acessos de melancolia, que so
prprios da minha organizao.
mudana que noto no teu gnio... No quero que sofras. Eu prometo nunca
mais dizer-te coisa que te entristea. Esquece tudo o que ontem te disse.
Vivamos felizes. Eu farei tudo o que tu quiseres. Vamos ao teatro, vamos
onde tu quiseres que eu v contigo, sim?
Agora... impossvel,
Porqu, Guilherme?!
de um tio.
A serenidade com que ela disse: Tens razo... foi um herosmo dos muitos
que passam ocultos entre a mulher ferida no corao e o homem que lhos no
abrasada. No me respondes!...
Outra vez!...
mereo.
E no sou eu teu amigo, Augusta?! S?... Sou, s-lo-ei sempre. Pois ento no
tenho razo de chorar. Perdoa-me. Guilherme almoou ao p de Augusta.
No trocaram duas palavras. A situao dele era penosa, como um remorso.
Raras vezes a expiao assim principia simultnea com a culpa. A culpa,
digo eu, e, porventura, terei dito um grande absurdo. Qual era a culpa de
Amaral? Amar uma mulher, que lhe desfazia a cristalizao de outra.
Moralistas, dai-nos uma figa de azeviche para afugentar o demnio da
tentao: tr-la-emos devotamente sobre o esprito fraco, o esprito malevel,
que se presta a todas as formas, este camaleo ntimo, que varia de cor a cada
novo raio de luz dos ltimos olhos, que o fixam. Corrigi os defeitos do
sistema nervoso de Guilherme. Transfundi-lhe um sangue mais sereno, menos
irritvel, nas artrias. Dai-lhe o remanso da paz no regao de uma mulher, seja
CAPTULO XVIII
De qu?
ti, corri vaidade de ser teu tio. No imaginava encontrar-te to belo rapaz, e
to ajuizado, segundo me contam c os criados deste hotel, onde estiveste um
ano de hspede. A tua prima ficou simpatizando muito contigo...
janela...
Pois que ?
No veja nada... sou muito mope... Espera ... aqui est um culo...
Pois conhece-o?
honroso para mim aceit-la impelida por fora... Seria uma fatalidade para
ambos o nosso casamento.
Pois bem; explica-te com ela, e mos obra. Logo que ela te parea um
pouco inclinada para ti, tira-se dispensa, e faz-se o casamento mesmo naquela
igreja apontando para Santo Ildefonso. No h tempo a perder. Eu
chamo-a, e daqui a pouco ficas s com ela. Explica-te, ouviste? Nada de
namoros de criana. Diz a minha mulher que as mulheres gostam de clareza,
quando necessrio esclarec-las de uma dvida...
Teotnio chamou Leonor. A menina entrou com menos afabilidade que no
dia anterior. Exprimia no franzir do sobrolho o enfado com que vinha.
Apenas apertou a mo do primo, sentou-se perto da janela para ser vista do
belga. Duas, trs palavras, um lance furtivo de olhos para a janela do
cabeleireiro. Amaral mordia o lbio inferior. Teotnio bufava por detrs do
leno de assoar.
meus desgostos...
so os que se contam...
significativo, prima.
Eu estimarei que o primo lhe conhea a significao... Sabe que tenho a
censur-lo de muita liberdade com uma pessoa que conhece h menos de
vinte horas?
Pois censure, mas no me crimine por isso, nem me ofenda... Esse seu
reparo um insulto...
outros, e, fra do colgio, tenho uma to respeitvel como ilustrada me, que
me manda, sobre todas as vontades, respeitar as vontades do corao dos
outros...
Compreendi-a.
S-lo-ei... mas... muito longe das suas franquezas... Receio que elas me
matem...
criado.
Quando?
Agora mesmo.
No tem direito algum a privar-me que eu viaje onde viaja a sua filha.
titubeou na resposta:
Estimo muito... replicou o belga , mas nem por isso tem direito a
cruzando os braos.
aliana... no a quer...
nmero nove.
O belga saiu com uma cortesia e um sorriso de melflua urbanidade.
No vou...
E impossvel no o haver...
passaste com a minha filha... Vem, e faz de conta que no tivemos este
encontro.
Bem o sei... basta seres o filho do meu irmo... s da nossa famlia; mas
cabeleireiro.
Subiram, e fecharam-se.
Eu!...
E depois?
Meu tio parece uma criana? Pois entende que ela pode esquecer esse
Sei mais do que tu. Guia-te pela minha cabea. Eu estive com a minha
mulher no mesmo caso em que ests com a minha filha. Amava um outro;
esse outro era um espadachim, e desafiou-me. Qual desafio nem meio desafio!
Se eu fra tolo! Que diabo de vitria era a minha se ele me passasse o peito
com um florete! Ponto ter a gente um pai do seu lado, e uma pouca de
prudncia... Guilherme, vens connosco?
Resolvo at noite.
CAPTULO XIX
olhos fitos, por debaixo da aba do chapu, nas janelas da guia de Oiro, onde
a sua prima no estava.
No corredor da Hospedaria Francesa, onde j dissemos que morava o poeta,
encontraram-se com o belga, que dava a um criado, que o no entendia, este
recado:
Naturalmente procuram-me.
Que temos? perguntou este, saltando para cima da cama, seu sof de
J me no lembra a ltima...
No.
depois?
Vais?
ps no belga.
Queres dizer...
Pois vela a face com o alvo amicto do pudor, meu anglico amigo. E
esta a hora solene das verdades duras. Esperas fascinar a tua prima antes ou
depois de ser tua mulher? Tem a bondade de responder.
mais cndida boa-f... No amas a tua prima, Amaral. Deixa-me lisonjear a tua
vaidade com esta ideia. A minha suspeita faz-te honra. No podes am-la j,
nem a amars jamais. j, no: porque o homem verdadeiramente amante
desconfia sempre de si, receia sempre a sua inferioridade para merecer
recompensa da mulher que, muitas vezes, no exige grandes mritos nem
grandes provas... No a amas, porque a viste ontem, foste hoje repelido, hs
de s-lo amanh, e, contudo, to ftuo o teu orgulho que te prometeste
vencer a resistncia... e venc-la como? Associado astcia, ao capricho, ou
violncia do pai. No a amars jamais. Concedida a hiptese de que a tua
prima vai ser tua mulher, a s ideia de que a possuis por estratagemas
cavilosos, e indignos do homem generoso e honrado, ser-te- uma acusao
da conscincia, que te no doe hoje, mas h de pungir-te o nimo frio, depois
da posse. Casado, no poders am-la por hbito. Ests passando por uma
crise decisiva. uma febre, uma congesto moral, que a reflexo no cura,
porque as circunstncias tanto apressam o desfecho que te no deixam refletir.
Tens uma nica evasiva. Refaz-te de valentia de nimo: s varonil, e diz: No
quero ser vil! Hei de ser honrado por amor de mim! Desprezo a mulher, que
s pode entregar-se-me forada por um assdio de violncias, de que eu serei
o instrumento desonroso na mo do pai.
Guilherme estava abalado. Nunca o jornalista lhe parecera to severo, nem to
respeitvel. Se quisesse replicar-lhe com uma dessas zombeteiras liberdades
prprias de mancebos, no poderia. A palavra, no autorizada pelos anos do
poeta, mas solene de seriedade, de comoo e de entusiasmo, soava-lhe como
conselhos de um velho, como austeras reflexes de um pai amigo, ou de um
irmo extremoso.
Amaral erguera-se com o mpeto da aflio, que sacode maquinalmente o
corpo, e nos obriga a andar lguas, no pequeno mbito de uma sala, sem nos
cansarmos, sem nos percebermos.
O poeta no quis acumular sensaes no esprito do seu amigo. Calou-se,
enquanto ele, atirando em feixes os cabelos para o alto da cabea, ia e vinha de
ngulo a ngulo do quarto.
sua conscincia.
Nada...
poeta.
Vou sair.
Aprestes de viagem?
A quem?
E Augusta?
No sei.
Essa pobre mulher deve ter um tal ou qual peso nas tuas
consideraes... Que figura faz ela? Um empecilho, que se afasta com a ponta
do p, no assim?
se afastam assim, caem num abismo. Augusta no cair. Se quiser ser virtuosa,
pode s-lo, sem renunciar s regalias que tem. A casa onde vive ficar sendo a
sua casa; os criados que me servem sero os seus criados; ter tudo que
minhas contas?! Queres que eu case com ela!? Ora, meu amigo,. guarda a tua
moral para os folhetins, e no me faas blocos de virtudes, que te no vo
bem fisionomia. Parece que queres fazer de mim um piegas! Vai impor a
responsabilidade do matrimnio aos teus numerosos conhecidos, que
aumentam todos os dias a estatstica da prostituio! V l quantos desses, ao
cabo de dezoito meses, garantem s mulheres, que seduziram com um capote
e um vestido, a subsistncia brilhante de toda a vida!... sentir muito ao vivo
as dores alheias!... Eis-me aqui sozinho, no momento mais crtico da minha
vida! Quando esperava de ti os alentos, que um simples conhecido me no
negaria, encontro, no meu nico amigo, ironias, diatribes, vaticnios ofensivos
minha vaidade de homem, e, no fim de tudo, prope-se-me como remdio
eficaz o casamento com uma costureira a quem no prometi solenemente
casamento e com quem devo casar pelo simples facto de que ela quer ser
minha mulher! s importantssimo! As costureiras deviam cotizar-se para te
mandarem de presente uma grosa de camisas!
Justamente.
logo.
Amaral e o jornalista entraram na sege. Apearam porta da guia de Oiro;
um subiu, e o outro foi para o teatro.
CAPTULO XX
Doente?
Vi...
No?! Porqu?
Guilherme morreu?
Est doente?
Para onde?
Guilherme!
Augusta cara sobre uma cadeira, soluando.
mais uma palavra, nem um bilhete... Que desprezo! Que lhe fiz eu para isto?...
Diga-me... seja sincero comigo... Se eu no valho nada para vossa senhoria,
abandonada por Guilherme, compadea-se de uma pobre mulher... Expliqueme este horrvel segredo... Eu sei tudo amanh... que importa sab-lo hoje?!
Sou uma infeliz... abandonada, verdade?
Qual ?... Diga, diga, pelo amor de Deus!... E que a vossa excelncia fica
sendo o que era nesta casa: senhora de tudo, com os mesmos criados, e, para
assim se conservar, receber pontualmente uma mesada de cem mil ris...
lhe desculpa, sorrindo ainda com a graa que vos entristece, e vos deixa no
corao uma imagem para toda a vida.
O jornalista quis estorvar a sada, apertando-lhe a mo, sem larg-la. Augusta
fez um esforo senhoril, vencendo a resistncia da mo trmula, que a
segurava.
Eram onze horas do dia imediato, e o jornalista recebeu trs grossas chaves e
o seguinte bilhete:
Il. Sr. Queira V. S.a ser o depositrio dessas chaves, que pertencem casa
do Sr. Guilherme do Amaral, Os criados foram pagos e despedidos. De V. S.
a, agradecida veneradora Augusta.
E depois?
Deixe-me tomar flego, pelas almas, que eu no sei o que digo, nem o
forro uma caixa de pinho, que eu nunca tinha visto, e fechou-se com ela no
quarto. De madrugada andou a passear no jardim: sentava-se, ora aqui, ora
acol, e chorava que parecia morrer! De tudo que ela dizia, s pude, por uma
fresta da cozinha, ouvir-lhe duas palavras: Era aqui... No sei o que ela
queria dizer com isto; mas o caso que se sentava no tal stio, e dava uns
gritos abafados, que me cortavam o corao. As oito horas as duas criadas
mandaram-lhe pedir licena para se despedirem. A senhora veio sala, e
abraou-as: parecia j outra; no tinha nos olhos sinal de ter chorado. As
criadas perguntavam-lhe se tinham dado motivo para serem despedidas, e ela
respondia que no, que lhe perdoassem, e que fossem boas. Valha-me Deus!
Eu no pude ter mo em mim! Fui-me ter corri ela, e disse-lhe: Vossa
excelncia que tem? No tenho nada, Gregrio; sou uma criada de servir,
que acabou o seu ano. Assim me Deus salve que tudo isto me parecia um
sonho!...
E depois?
Pois qu?
senhora, disse eu, isto que ? uma criada que se retira sem soldada,
disse ela a sorrir-se, que parecia uma santa. Pois a senhora vai assim rua?
Vou como vim, respondeu ela, caindo a soluar sobre a borda do leito.
Santo nome de Jesus! Tenho cinquenta anos, e no me consta uma coisa
assim! Pois o senhor Guilherme ser um malvado, que atire assim rua um
anjo como a minha ama? Diga-me, senhor, se me sabe dizer: isto que ? Que
demnio entrou naquela casa? Onde est meu amo, que me quero ir ter com
ele, e sou capaz de lhe partir a cabea numa parede?!
Mas, diga-me, senhor Gregrio: Dona Augusta, depois, saiu?
Desembarcou na Ribeira?
J disse a vossa senhoria que lhe dei a ela a minha palavra de honra de
o que viu.
um homem no se quebra.
dos animais.
V o senhor Gregrio...
criado de tal amo: quem pe fra de casa uma senhora daquele modo capaz
de me dar um tiro falsa f. As chaves a esto: vossa senhoria far o que lhe
parecer. No quero saber de mais nada.
ficar assim abandonada: est cheia de objetos de valor, e pode ser roubada...
Pois diga-me onde ele est, que me quero despedir... Foi para a
provncia?
Pois que tenha por l muita sade. .. Para tratar assim aquela boa
senhora, escusava sair do Porto... Fosse ela minha filha, ou parenta, cego eu
seja se o no perseguisse at nas profundas do Inferno! Eis aqui para que um
pai cria uma filha... Quem tem a culpa sei eu... Se houvesse uma lei que
trancasse na Relao os sedutores, no se viam por a tantas raparigas
perdidas... Enfim, Deus l sabe o que faz... O meu senhor, no o enfado mais;
o que tinha a dizer est dito. Tenha vossa senhoria muita sade, e se escrever
fez um esforo, que lhe custou uma angstia indefinvel, uma vergonha
semelhante s dores sem nome.
saltou para a rua, cruzou os braos diante da costureira, deu trs balanos
solenes cabea e murmurou:
pergunta o grito atribulado que lhe viera do corao, onde a estpida peixeira
enterrara um punhal.
a vai matar. O que te sucedeu a ti, sucede a muito boa gente. Como te ficaram
as boas mozinhas que tens para a costura, no te h de faltar que fazer. O teu
primo ainda no casou; e tomara ele que tu o quisesses, mesmo com o teu
erro...
j lhe pedi que me deixasse, senhora Ana. Peo-lhe pelas dores de Maria
Pois eu venho dar-te nimo, e tu mandas-me por fra da tua casa?! Boa
vai ela!
Pois ento, adeusinho... A Sra. Ana saiu, rosnando: E como ela vem
Que sede, meu Deus! murmurou ela. Quem me dera uma gota de
gua...
Recaiu, prostrada, na cadeira. Tremores nervosos vinham-lhe, de instante a
instante, como aqueles abalos que precedem o adormecer, e causam o penoso
sentimento da deslocao das entranhas.
A humidade do pavimento regelara-lhe os ps, e, apesar da febre, o frio
generalizara-se. Augusta envolvera-se no capote e sentara-se sobre a cama,
abraando-se com os joelhos. Era, assim nessa postura, a imagem da demncia
tranquila. Dir-se-ia que ela viera j demente do Candal para a Rua dos
Armnios, ou que as ideias aturdidas no tinham a lucidez precisa para ver a
razovel situao do seu infortnio. E que no proferia uma palavra, no
soltava um grito, no procurava um instrumento de suicdio, no caa de
joelhos invocando a piedade do Senhor.
CAPTULO XXI
aquela casa?
Est, sim, senhor. Tenho estado sempre janela, dei f de ela fechar o
Conheo...
Est bom se conheo! Sei todas estas coisas desde o seu princpio. Foi
No, senhora...
necessrio alguma coisa, estou aqui pronta. Ns somos uns para os outros.
O jornalista colou o ouvido fechadura da porta, e no ouviu rumor algum.
Voltou-se para a janela da peixeira, e disse-lhe, por acenos, que no ouvia
nada. A Sr.? Ana, frentica e servial, desceu para a rua, e veio confirmar ao
poeta que Augusta estava em casa, dando-lhe como prova o estar a chave por
dentro.
fazia p atrs, e imprimia tal choque nas rtulas do postigo que nem as
portadas internas resistiram ao impulso. Ouviram um segundo grito...
abra-me a porta.
Ana, em menos tempo do que o preciso para cont-lo, saltou dentro, tirou a
tranca, abriu a porta, e correu ao fundo, onde Augusta, sentada na cama, com
os braos estendidos para o claro sbito da luz, e os olhos terrivelmente
esgazeados, parecia no entender o que se passava na sua casa.
O poeta disse ao ouvido de Ana:
Ana saiu chofrada um pouco por no ser precisa desde logo. Custava-lhe
muito no estar em momento com os sucessos.
eu?
Deixe esta casa logo que eu lhe d uma outra em que viva
nem lhe sei agradecer, porque me est propondo um inferno, pensando que
me faz bem... Isso era morrer sem ao menos poder chorar... No, no aceito...
Se meu amigo, no me torne a dizer tal coisa.
teno. H de viver, senhora dona Augusta, porque lhe prometo de restituirlhe Guilherme, antes de dois meses, com a splica do perdo nos lbios, e o
corao mais nobremente apaixonado do que at aqui...
que eu ceda a uma fora oculta, que me manda esperar pela volta de
Guilherme?! O senhora dona Augusta, em nome da sua me lhe peo que
espere, que creia na recompensa da virtude, que creia um pouco no meu
poder, que me ajude a alimentar a esperana de a ver outra vez feliz com o
homem que, neste momento, no sabe que mrtir deixou... No me atende?
meritrio a desesperao?
minha vida? Como hei de eu consolar-me? Morro, porque no posso viver ...
Se eu pudesse ser feliz, era-o...
A esperana...
Em qu?
Como?
Pois bem, fique... mas d-me o prazer de velar pela sua vida,
No preciso... no aceito...
Consente, ao menos, que esta sua vizinha, que veio comigo, a sirva?
No, senhor... Essa mulher vir falar comigo; eu lhe pedirei o que
preciso.
poder visit-la!...
seria intil a sua vinda a este sepulcro... O que eu no puder fazer sozinha
comigo, ningum o far.
saber que o era, para ao menos imaginar o modo de lhe ser til, ou chor-lo,
Ests enganada! Olha... aqui esto doze cruzados novos, que me deu o
Pois quando lhe vierem dar no sbado o outro tanto, vossemec ter a
CAPTULO XXII
O jornalista era uma bela alma. Mrtir da opinio pblica, raros homens tenho
conhecido que tanto como ele se pagassem do galardo da conscincia. Menos
ainda hei visto que to legtimo e razovel desprezo tenham votado ao to
estpido como infame jri que por a o condenava, absolvendo infamssimos
virtuosos dos muitos e tantos que por a refervem, que eu desconfio que tu
sejas um deles, leitor. Se o no s, e te julgas ofendido, deixas de ser mau para
ser tolo. Como quiseres.
O jornalista vinha eu dizendo, que era uma bela alma. Sentir assim, doer-se
tanto, admirar com to pattico entusiasmo o heroico infortnio de Augusta,
so virtudes muito raras no homem, que, pela sua posio em contacto com
todas as desgraas, oriundas do vcio, perde a sensibilidade, e chega a encarlas com a impavidez do cinismo.
Ele no. A imagem da costureira, idealizada como ele costumava idealizar a
desgraa, no lhe esquecia um instante, ao seu pesar. O folhetim do dia
seguinte quele em que a vira, foi uma elegia em prosa, um abstruso elevar-se
para dores fantsticas, que ningum teve coragem de ler at final. Nesse dia
escreveu dez pginas de um lbum, uma longa meditao, que naturalmente
fez adormecer a dona do dito lbum, que esperava uma qualquer coisa em
linhas com letras maisculas no princpio, dedicada a ela, formosa senhora, a
ser verdade o dito dos poetas seus conhecidos, com lbios de rubim, dentes
de marfim, mos de gata e pescoo de alabastro. Toda ela, pelos modos, era
um mosaico.
Se eu pudesse haver mo o lbum, transcreveria aqui a Meditao do amigo
de Guilherme do Amaral. Transluzia desse hino uma dor sincera, uma
correo a devassos, boa cpia de mximas para uso dos nossos velhos, e
preciosssimas lies para costureiras que soubessem ler, e para leitoras que
no so costureiras.
impossvel. O lbum j no existe. A sua ilustrada dona casou com um
homem srio, avesso a poesias e romances, incendirio obscuro, espcie de
Maomet chulo, que manda aquecer os semicpios com os folhetins e
brochuras poticas empalmadas traioeiramente no toucador da sua mulher.
O lbum desapareceu em falas no fogo, de envolta com um molho de
carqueja, visto que o cnjuge irracional no podia meter o dente no primeiro,
podendo muito bem met-lo no segundo gnero de combustvel.
Apesar destes e doutros, o poeta era um nobre corao. No dia seguinte ao do
encontro na Rua dos Armnios, procurou ele a Sr. a Ana do Moiro, e soube o
que se passara. Augusta repelira o dinheiro caritativo, recebera trs moedas
por conta da casa, tomara alguns caldos de galinha, e proibira enfermeira
falar-lhe em Guilherme do Amaral.
Triste ou alegre?
J sei.
O bom do rapaz, depois que ela desapareceu, andava como a cobra que
perdeu a peonha. Vinha onde a mim, e chorava que era uma coisa! Parecia
que morria ou endoidecia. De noite chorava em frente da porta dela, e estava
ali horas e horas ao frio e chuva, que parecia mesmo uma aventesma.
Depois, no o vi um pouco de tempo, e perguntei ao patro o que era feito
dele. Disse-me que desconfiava que se tinha botado a afogar. Rezei-lhe por
alma ao deitar da cama, e vai seno quando uma tarde rebenta-me aqui o
Francisco, muito amarelo, dizendo que tinha estado doente no hospital.
Sempre lhe direi que ganhei um medo! Pois tu no morreste?, disse-lhe eu.
No, no morri ...
E depois?
E no falavam?
com ele. Quando tornei, Francisco tinha sado. Eu ia-me deitar num enxergo,
que botei aos ps da cama dela, e a rapariga disse-me: No se deite por
enquanto que tem de abrir a porta ao meu primo. E vai eu disse: Pois ele
vem c ainda hoje? Foi buscar a cama dele, e quer dormir a fra
enquanto eu estiver doente. E de feito s duas horas da noite entrou a cama
do rapaz pela porta dentro, e ele deu as boas-noites a Augusta e deitou-se. O
resto que a vossa senhoria no sabe...
Que ?...
prima, sem lhe dizer nada a ela, que me dava vinte mil ris de ganho. Deixei-a
ir, e ele passou-me logo o dinheiro. C enquanto a mim o rapaz quer sustentar
Augusta custa dele, e quer que ela pense que o dinheiro sou eu que o dou
pela casa. E sabe que mais? A rapariga s duas por trs casa com ele.
Esta reflexo da Sra. Ana matou algumas iluses ao jornalista. O desfecho do
drama parecia-lhe ridculo, e indigno do seu folhetim e da sua Meditao!...
casamento no vai longe. E, a falar a verdade, ela que mais quer? O Francisco
contramestre, e ganha na fbrica de Lordelo oiro tostes por dia...
No fico por isso. Eu j lhe disse que faria bem conversar um pouco
com a vossa senhoria, e ela disse-me que por enquanto no. No sei que lhe
faa... deixe-a arrijar.
O jornalista retirou-se com a descosida narrao da peixeira: levava o
entusiasmo muito desvanecido, a admirao afroixada, e, enfim, a poesia da
tragdia um pouco convertida de lcidos cristais em gua chilra. No seria
to completa a deceo, se a tagarela da vizinha contasse as coisas doutro
modo.
No h dvida que a costureira, vendo o seu primo, chorou; e o fabricante,
vendo Augusta, no chorou menos. Isto natural. Aquele homem, cinco
meses antes, tentara contra a prpria vida, por no podei tentar contra a do
homem que lhe roubara a mulher ali deitada no pobre leito, que ele quisera
enflorar com as coroas de uma paixo santa e nobre. Cinco meses antes,
Augusta velara as noites ao p do seu primo, pensara-lhe o ferimento do
pescoo, e quisera cicatrizar-lhe, em balde, com afagos e extremos de amiga, a
chaga eterna do corao. Para Augusta, nada mais santo nem mais verdadeiro
que o profundo amor do fabricante; para Francisco, sobre a Terra, nenhuma
mulher, que valesse mais que a sua prima, ainda ingrata, ainda desonrada,
ainda abandonada, ainda sem a beleza que, em menos de cinco meses, raros
vestgios conservava do que fra. Eram, pois, bem naturais essas lgrimas,
quando a mulher era Augusta, e o homem esse que vimos em menos de cinco
minutos praticar, no Candal, dois arrojos de herosmo, raras vezes reunidos:
poupar a vida do rival, por amor da amante; suicidar-se, para no ver sem
castigo o crime.
Quando a vizinha sara, Augusta estendeu a mo a Francisco, e aproximou-o
de si murmurando:
No.
A minha porta?
precisares, no tens outro parente; amigos ters muitos, mas amigos pelo
sangue sou eu s.
No, meu primo... fica longe a fbrica, e seria necessrio aqui ficares.
No...
Por quem s, d-me este prazer. Faz agora cinco meses que tu passavas
CAPTULO XXIII
por isso...
aborrece esta vida, no te constranjas, Francisco... Vai para o teu trabalho, que
me ds mais prazer...
Aborreo-te aqui?
por isso...
aborrece esta vida, no te constranjas, Francisco... Vai para o teu trabalho, que
me ds mais prazer...
Aborreo-te aqui?
Deixa-te disso... eu falei ao senhor doutor, que veio hoje de novo, e ele
No: nem sequer receitou para a botica. Sabes o que hs de fazer? Sal
dessa cama, que faz doena. D o teu passeio pela cidade com o teu primo, e
deixa-te de caldos de galinha, que no pem substncia...
em quinze dias... Deixa-me dizer-te uma coisa enquanto estamos ss. Aquele
senhor do dinheiro, h trs dias que no mandou saber de ti, desde que eu lhe
disse que tu lhe no falavas por enquanto...
Sim. Pois isso fcil: eu sei onde ele mora, e vou hoje l, se queres.
Pois sim... no se esquea, no? L ir vou eu; mas, rapariga, eu acho que
ele j no para ti o mesmo homem, desde que sabe que o teu primo c vem.
Pois isso era o mais acertado... Isto de homens, para onde lhe d... Eu
bem me custa andar com recadinhos e cartinhas de namoro; mas, enfim, sou
tua amiga...
Faz-te fina!... Vocs pensam que metem figas nos olhos s velhas!... Boa
vai ela!...
lume...
deves!?...
Augusta cara em si. Antes que a vizinha se alegasse credora de obrigaes, j
a costureira se sentia mordida na conscincia pela ingratido. Demais a mais
expulsava de uma casa, que j no era sua, a prpria dona, que poderia
expuls-la a ela!...
O que te fazem para chorares assim? Queres que eu v chamar o tal sujeito?
v, senhora Ana.
Hoje, hoje...
E o teu primo?
casa; podes mandar chamar quem quiseres: basta que eu venha sem ser
chamado...
Fiz-lha sempre...
demente.
fazem?
No compreendo...
No o sei dele; mas agoiro-o do que sei das minhas profecias, que me
no mentem nunca. Amaral est provando? uma dolorosa lio, o que o far
voltar ansioso a consolar-se no corao do anjo que deixou. Essa nsia ser
redobrada, quando souber que o seio da mulher que mais amou, alm das
palpitaes da saudade, sente os enternecimentos de um filho, cujos primeiros
vagidos sero chamar o seu pai...
Como doce ouvi-lo, senhor... assim que se arranca uma infeliz aos
que chegara.
pensa que a vossa excelncia est no Candal, chorando, sim; mas esperando a
volta que realmente devera esperar. Foi precipitada no seu capricho; porm,
no a acuso; as almas nobres so arrojadas: traam o quadro majestoso, e
executam-no, se preciso, com o sangue das veias.
f-lo mais por vaidade do que por outro qualquer sentimento. Consulte-se, e
ver que a sua transio voluntria para esta situao foi uma espcie de
soberba no infortnio. Repeliu com a ponta do p os favores do homem que
lhe retirava as provas de outra paixo mais persuasiva.
Sem ele de que me servia o luxo? Era ter sempre diante dos olhos o
ningum.
entenda que devo inform-la da gloriosa empresa que tomei ao meu cargo.
O jornalista sara. muito de notar a delicadeza deste homem a respeito do
fabricante. Nem uma s palavra que obrigasse a defender-se Augusta das
gratuitas suposies da Ana do Moiro. O poeta nunca pudera convencer-se
que Augusta fra costureira, e estava na vulgar situao de uma costureira.
Dizia ele, e ainda diz, que lera sempre na cara daquela mulher um destino
superior, muito superior sua condio. Nenhuma outra lhe impusera tanta
reverncia nos modos e to pensada reflexo nas palavras!
Era poeta...
Sabeis o que ser poeta? querer encravar a roda teimosa das coisas deste
mundo, e sair com o brao partido.
O fabricante viera sentar-se ao p da sua prima, disfarando a comoo,
escondendo-a quando podia, a favor da escurido do quarto. Se Augusta o
visse lvido, com os olhos aguados, e os beios contrados, retraindo-se ao
gemido e respirao convulsa, julgar-se-ia amada, apaixonadamente amada,
na posio a que descera, querida ainda, quando podia esperar apenas do seu
primo extremos de piedade.
Francisco, para dizer alguma coisa, perguntou-lhe se ficara melhor com a
certeza de que o seu mal no era de morte. Esta pergunta, inocentemente
feita, magoou Augusta, que no respondeu. Corridos alguns segundos, o
fabricante perguntou se queria tomar um caldo. Augusta disse que no, com
desabrimento. O artista soltou um suspiro trmulo, que denunciou as
lgrimas, em vo represadas.
face, prosseguiu: Isto que , seno lgrimas? No tenhas pena de mim, que
eu j fui mais digna de compaixo do que sou agora... Estou muito melhor... A
esperana a medicina dos desgraados... No h mal que no traga um bem.
Talvez dos meus sofrimentos de hoje dependa a minha felicidade de amanh.
Oxal.
No.
esperavas...
Pois sim, no falemos, nem preciso falarmos. Queria dizer-te que este
Est bom... eu sei o que me queres dizer... Que me importa a mim que
amizade que te tenho. Tudo que eu te disser para teu bem. O tempo te
mostrar que eu no queria tomar-te conta das tuas aes; se quisesse, mal de
mim!... Bem se te d a ti dos meus conselhos... Faz a tua vontade, Augusta;
mas no me mandes sair da tua casa, porque eu prometo no me intrometer
nas tuas aes. Faz de conta que eu estou aqui para guardar a tua porta, e
chamar o mdico, se te for preciso. Deus, que me trouxe a tua casa, para
alguma coisa . Enquanto no tornares a ser o que eras, s minha prima, e eu
tenho como obrigao de te fazer companhia. Depois...
CAPTULO XXIV
Meu caro...
Recebo a tua carta. Preveniste a minha nsia. Eu desejava uma longa hora de
conversao contigo. Era feliz quando a recebi, e o corao, assim, quer
expanses: a felicidade d-nos um ar de soberba, que s amigos toleram.
Falemos primeiro de Augusta. Espanta-me a resoluo desesperada dessa
mulher! excecional! Se no posso am-la, admiro-a; acho-a deslocada no
sculo, e quisera ver bem desenhado num romance esse tipo. Vejo-a de c
pelo prisma da poesia: um quadro histrico da minha vida, o nico de que
levo saudades na peregrinao que tenho a cumprir. No sei que fnebre
poesia assombra essa herona obscura! Se a vejo to radiosa, to inteligente,
to senhoril, como a vimos no Candal, e a comparo mulher da Rua dos
Armnios... sinto esta melancolia ntima, esta coisa indefinvel, que faz chorar
o corao, quando os olhos, esterilizados pelo sopro glacial da experincia, j
no brotam lgrimas.
Tenho d dessa mulher! Antes a queria ver passar de amante em amante,
corromper-se, esquecer-se de mim, odiar-me, at: antes isto, que imagin-la
assim, devorando-se de saudades inteis, inteis sim, porque no posso amla, no veno o fatalismo, no posso desdar os ns, como Laocoonte, das
serpentes que se me enroscam no corao.
J tributar-lhe um grande culto, meu amigo, lamentar a mulher que no
posso amar! Quantas vtimas, em igual condio, que nos no deixam sequer
uma sombra na estrada lcida dos Prazeres? Quantas esquecidas no dia
imediato ao da paixo mentirosa?
o mais que posso sentir! No sei o que possa fazer-lhe... Impressionaramme as tuas pungentes razes; mas queres tu imp-las ao corao, tu, homem
da experincia, inexorvel sndico dos mais ocultos instantes do esprito!?
Porque no aceita ela os meios amplos que lhe dou? Porque no vive rica de
oiro, se lhe furtam as riquezas do corao? Porque no h de ela, com o
dinheiro do seu primeiro amante, resistir s sedues de um segundo? O
dinheiro reabilita, e amnistia todos os crimes.
Meu amigo, exerce a tua imperiosa influncia sobre a pobre mulher. Faz que
ela torne para o Candal, ou para onde queira. Aumente-se-lhe a mesada, se
assim preciso, que eu dou ordem franca Para que as tuas ordens se
cumpram. Se fosse possvel casar-se ela, com que prazer eu no daria, sem
publicidade desonrosa para algum de ns, um dote que a tornasse mais
interessante a um marido de meios, que h tantos e to... inocentes!?... Ser
isto possvel?
No li sem emoo as novas razes que me ds para eu no dever abandonla. E, porventura, abandonei-a eu? Quantas mulheres casadas invejariam a
sorte de Augusta? Todas. Quantos maridos, saciados das mulheres, lhes
garantem uma subsistncia brilhante, enquanto eles se afastam em busca
doutras emoes? Nenhum.
A existncia de um filho no aumenta as atenes que devo me. Esse filho
ter um futuro; proteg-lo-ei sempre, como se fosse meu legtimo filho; amlo-ei desde hoje para abra-lo, quando possa, com fervor de pai... Que mais
queres de mim?
Que te conte a minha vida? Seis dias depois que estava em Londres, encontrei
o belga! Quem diria a este homem o destino de Leonor?! Preveni o meu tio.
Era difcil saber em Londres a nossa residncia. Vivemos nos arrabaldes, e a
polcia est prevenida para se no descobrir a casa campgtre em que o meu tio
espera converter o corao da filha.
E incrvel o agrado com que ela me tem recebido. Escuta-me, serenamente, as
inequvocas tentativas que fao. Ouve o pai em pueril acatamento, e, se no
responde, tambm no reage.
At hoje suspeitei que a minha prima premeditava um golpe decisivo nas
minhas importunas perseguies. Enganei-me: venho de sentir uma alegria
improvisa, uma demncia momentnea!
Se soubesses como amo esta mulher! Basta que eu te diga que meditei um
suicdio! Imagina, pois, que frenesis de jbilo eu sentiria no momento em que
ela, apertando-me carinhosamente a mo, me disse: Primo, tenho
experimentado o seu amor, e no posso ser-lhe ingrata! Diga ao meu pai que
me no tenha aqui encerrada, que eu prometo ser uma boa filha, incapaz de
resistir vontade suprema do seu pai!... Que te disse eu? Esta mulher devia
sucumbir! No me cega a vaidade, mas descubro em mim a superioridade, que
despedaa as mais robustas cadeias de dois espritos. Se o meu amor fosse um
simples capricho, a minha vingana comeava hoje. No era; menti quando to
disse. No posso ressentir-me de uma resistncia que me atormentou, e est
hoje sendo a minha glria, a minha ventura, o meu triunfo!
nestes lances que se afere o verdadeiro amor. O homem devia sujeitar-se a
esta dolorosa provao, queimar-se neste incendirio caminho, para sair
purificado, sem as fezes das iluses do momento, que germinam, mais tarde, o
fastio.
Hei de amar sempre esta mulher. Os prazeres consecutivos, sempre novos,
nunca me daro tempo a sentir nos pulsos as algemas do homem casado.
Leonor rica... e, se o no fosse, am-la-ia eu menos? No. Viajaremos,
iremos ao Oriente, meu sonho querido; sentar-me-ei com ela sobre as runas
dos imprios arrasados, e errarei por l sonhando sempre delcias novas nos
braos dela. Isto que a felicidade. nestes momentos que o homem cr
em Deus, e reputa a criao uma obra perfeita.
A minha vida at aqui o que tem sido!? Uma deceo continuada, uma ansiosa
esperana mentindo sempre, um trabalho impotente de imaginao adorando
fantasias, que a realidade atroz me no dava.
O que foi Augusta? Uma aberrao do natural, um artificio alimentado com
oiro; mas a mulher, nua de prestgio, l estava glida e estril debaixo dos
europeus. O que foram essas dzias de conquistas inglrias, que presenciaste?
Fogos-ftuos, relmpagos de um mundo de luz, todo luz, luz perene em que
hoje abri os olhos...
Sorris ao meu entusiasmo? Aqui no h poesia, no h exaltao de folhetim,
no guindo o lirismo do estilo s etreas criaes do talento, nutrido das frias
reminiscncias do corao, quais so as tuas.
O homem natural este: sou o Ado primitivo, extasiado perante as delicias
da natureza, como Buffon o descreve no den. Oh! o mundo belo, e eu
tenha pena dos que no podem v-lo com eu neste momento! Amigo, quando
este prisma me cair partido aos ps, tambm eu baterei com a face sobre a
sepultura.
Adeus: parte o paquete, Alonguei-me sem te dizer que s o primeiro e nico
amigo de Guilherme do Amaral.
CAPTULO XXV
Tive ...
No a tenho aqui.
desengano.
Estima-a; quer v-la feliz, e cr que s pode s-lo com vida honesta,
um pai... Enquanto que ao seu filho, desde j lhe chama seu legtimo filho,
tem um futuro, preciso que a vossa excelncia seja pai e me, e por amor
dele se resigne a ser uma espcie de viva, que chora saudades do seu esposo,
mas deseja viver, deseja riquezas para comprar, com elas, riquezas do esprito
para o seu filho...
doutro destino, nascida para tudo que magnfico pelo amor, e grandioso
pelos instintos nobres; mas essas virtudes, raro atendidas neste prfido jogo de
paixes vis em que nos falseamos uns aos outros, passam quase sempre
desapercebidas. Vossa excelncia no pode reputar-se absolutamente infeliz.
Ver que h de ainda colher consolaes das lgrimas que hoje semeia. A
conscincia da sua fidelidade simples memria do pai do seu filho h de darlhe assomos de alegria. O sorriso anglico dessa criana, medrando em belezas
e inteligncia, sua vista, vir com o blsamo do amor cicatrizar-lhe as feridas
que hoje sangram. Dona Augusta ser apontada como modelo das mes, e at
das vtimas de uma paixo mal indemnizada. Repare que sinto o que digo. Eu
juro pelos seus sofrimentos, que sou incapaz de trazer aos lbios uma
consolao frvola, uma impostura reprovada pela conscincia. Tenho-lhe dito
o que s podem dizer amigos, e vou daqui sem pesar de me ter esquecido uma
s ideia com que deva demov-la ao fatal propsito em que est...
convalescena.
Mas a vista deste belo panorama deve ser-lhe muito saudvel para o
esprito...
Disseram-me, pouco depois que esteve na Rua dos Armnios, que sara
do Porto.
Nada, no sei...
esquecesses do passado...
Deixa-me ter o meu filho... Oxal que seja um homem... Hei de dar-lhe um
punhal e dizer-lhe: Aquele homem, que te no chama filho, cobriu de lama a
tua me; tirou-a do regao da inocncia e lanou-a no inferno de toda a vida;
arrancou-lhe uma coroa de flores, e encravou-lhe outra de espinhos. Vingame, filho; lava-me com o sangue dele este ferrete da face. A tua me arrasta-se
desonrada, h dez, h vinte, h trinta anos... Mata-o, filho e depois... e depois...
O fabricante lanou fra as andilhas, montou a cavalo, tomou a sua prima nos
braos e conduziu-a fbrica do seu patro, que era perto.
Francisco no receava a demncia da sua prima. Sabia que o acesso acabava
pela perda dos sentidos, recuperados meia hora depois. Assim fra. Ao
anoitecer, Augusta entrava na casa da Rua dos Armnios, e recebia das mos
da Sra. Ana um caldo confortativo. Deitara-se, e conversara com o seu primo
at alta noite. Adormecera tranquilamente, enquanto ele, velando, com os
olhos cheios de ternura, parecia contar-lhe as pulsaes do corao que
arquejava debaixo do lenol guarnecido de alvssimas rendas.
Desde essa tarde do encontro, Augusta nunca mais saiu. Nem ela queria, nem
o seu primo instava. Erguia-se s horas em que Francisco visitava a fbrica.
Sentava-se a trabalhar em roupas brancas, e depunha a agulha quando o
fabricante lha tirava com delicada violncia. Lia dois jornais que o artista trazia
de Lordelo, e parecia deleitar-se com os folhetins do jornalista, onde ela se
conhecera representando sob a epgrafe: Estudos do Corao Humano. As
aluses eram lisonjeiras; mas o remate do entrecho no era o seu. A mulher
meio fantstica do poeta endoidecia; e ela raciocinava ainda para conhecer que
a doida tivera muito pouca coragem no sofrimento. O seu primo no lia; mas,
lendo, no encontraria os pontos de contacto.
Eram passados cinco meses depois que o mdico prognosticara a enfermidade
de Augusta. Os sintomas externos j no deixavam dvida. O fabricante
observara a sua prima que j no era fcil esconder-se aos olhos da Ana do
Moiro.
Eu tambm o no sei...
odeias?
aborrecimento ao p de mim?
que me desprezou?
No: se Deus me ouvisse, eras tu feliz. Se te visse outra vez feliz com
CAPTULO XXVI
Quer vossemec ver que o sujeito que entrou o tal Guilherme, que
espevitada da breca; por d c aquela palha prega um recado que leva o coiro e
cabelo... Olhe... l torna o Francisco para a porta.
Pois olhe que no outra coisa... o figuro que fez as pazes com ela.
Deus lhe fale na alma... foi ela que me botou pelo gargalo abaixo uma
Diz bem, tia Ana, j esse dito era muito do seu pai, Deus lhe fale na
alma.
Moiro, aquilo foi uma pena matarem-no os franceses, e foi a troco de ele
querer defender a casa do homem que morava...
Diziam que era to rico o tal Joo Antunes... e nunca se soube onde
ficou a riqueza! Parece-me que o estou vendo!... Era um pacabote baixo, com
uma cara escaveirada, no dava os bons-dias a ningum, e andava sempre
embrulhado num josezinho de camelo... Parecia mesmo um pobre. Eu era
ento rapariguinha de dezasseis anos, quando foi pelos franceses, e ele
chamou-me uma vez l dentro, e disse-me, se eu lhe botasse umas costas
numa camisa, que me dava os bocados de linho que no servissem. Veja
vossemec que sovina ele era... O mais certo que os franceses o mataram, e
lhe pilharam o dinheiro... Olhe, tia Ana, l se abriu a porta de Augusta...
o tal homem que sai... E l est parado a falar com o Francisco. Ele a vem...
Olhe vossemec, que est mais perto, se o conhece.
Para qu?
Deixa-me beij-lo.
Pois no sabes?
O qu?
Est morto.
preparo um caldo.
E a me est mal?
Est ali... O que lhe queres, Augusta? O menino est no Cu. Oxal que
escondeste tanto! Isso no tem jeito... Se o levo igreja, devo dizer de quem
filho...
resoluo.
E, se ningum o sabe, para que h de saber-se agora que ele est morto?
Aqui?!
E no est no Cu?
Isso de f.
Deve estar... Que importa o mais?... Pois sim... enterra-o a... terei
No nada... Eu falo-te j.
Falaste em caixo...
sem saber porque estremeceu. Quis exumar o quer que era, tirando com toda
a fora pela argola: no fez sequer vacilar o objeto. Raciocinou, procurando
outra argola do lado oposto: l estava. Acurvou-se sobre o fosso: puxou
valentemente por ambas, ergueu um caixo quadrado.
Que ?!
No sei... l vou...
peas...
Faltava abrir duas. Eram brilhantes soltos, adereos completos, anis, pontes,
cruzes, pulseiras, cadeados, fivelas, medalhas, colares...
Que riqueza! exclamou o fabricante com o entusiasmo do delrio, com os
olhos chamejantes de um brilho febril. Isto teu... nosso, Augusta!
caixo insensivelmente.
peso da impresso.
A terra que cobrira o tesouro de Joo Antunes da Mora, durante trinta e oito
anos, cobre hoje a ossada do filho de Guilherme do Amaral.
Agora, leitora, ponha o livro sobre a sua mesa de estudo, sobre o livro ponha
o cotovelo, palma da mo direita encoste a sua face formosa, e adormea,
cinco anos, sobre os acontecimentos que viu desenvolvidos com uma
fidelidade digna de melhor emprego. Passados cinco anos, acorde, e leia o
captulo seguinte.
CAPTULO XXVII
Meu caro
Se ainda vives, dou-te os parabns. Se morreste, repoisa l no cu
eternamente. Amanh parto por terra para Lisboa. Tenciono a demorar-me,
e depois... no sei o que ser de mim. Aparece, se tens ainda uma vaga
recordao do teu amigo
Guilherme do Amaral.
Meu amigo
Deixou de cumprir a sua palavra. Esperamo-lo no Vesvio? e V. S. a nem
sequer nos diz a causa da sua falta! todo de literatura, e a mulher que o amar
tem de sucumbir a to poderosa rival. Seja-lhe infiel, e venha no prximo
vapor conversar com os seus amigos. O meu marido diz que V. S. a no gosta
da nossa hospedagem. Desminta-o no se demorando. Bem conhece quanto
caro sua velha amiga
Baronesa de Armamar.
chamar, senhora Joaquina, porque me parece que vou fra da terra, e demorome alguns dias, se no forem meses.
Olha o mau! replicou a ama. com que lhe d! s duas por trs,
J se ri? disse a ama. D-mo c, que lhe quero dar muitos beijos
uma boa ama. Joozinho decerto no tem sentido a falta da sua me, que
Deus lhe levou to cedo.
Ainda bem que lhe deixou um to bom pai... Poucos fazem pelos filhos
que no so de matrimnio o que a vossa senhoria faz por este. Ande l, que
Deus h de ajud-lo e nunca lhe h de faltar com quem pr este menino onde
quiser. E olhe que ele sabe agradecer-lho. uma coisa que faz pasmar, o amor
que este menino tem ao seu pai. Assim que diz pap, riem-se-lhe os olhos, e
todo ele parece de arames. Bendito seja o Senhor! O que o sangue!
Ao mesmo senhor onde vou, quando vossa senhoria est por Lisboa
alguns meses?
barquinho.
Olha como ele est lindo! atalhou a ama com amoroso entusiasmo.
Parece um anjo! Ainda lhe no perguntei uma coisa, meu senhor, e ando
morta por perguntar-lha.
Foi a me Joaquina.
pela reconcentrao com que o disse Se eu soubesse onde ela est davalhe tudo, menos... este filho...
CAPTULO XXVIII
Vens s?!
Com um criado.
A tua famlia?
Famlia!
Sim... tu no s casado?
com uma boa sala. janto s sete horas da tarde, com este meu amigo, que fica
sendo meu hspede.
Porque no podes?
Pois tu tens algum outro amigo? Isso vaidade. algum marido com
Ia dizer-te que vens estragado das viagens, mas agora me lembra que
meus ricos apontamentos de viagem, que vem a ser o padro das minhas
glrias literrias. Vou tornar-me um trofu nacional, o mimo da ptria, o
primeiro plstico e esttico do pas. Isso que tu no esperavas, decerto...
Trago o msculo do corao, de vazio que era, cheio de gros de mostarda
que d cem por um...
A do Evangelho?
Tu vers o que ... Ora aqui est uma ceroula sem nastro! Prova-se que
Est tima.
Gorda, hem?
Agora visconde.
Casaram?
No.
assim? A histria, suposto que compreenda a minha vida nos ltimos seis
anos, muito simples, e diz-se em menos de quinze minutos. Eu tencionava
guard-la para a hora do jantar; mas, se me no ds a honra da convivncia, a
vai a histria. Senta-te: s todo ouvidos: vais ouvir de lngua pecadora o
cntico mais inocente, mais angelical, mais arroubado do corao humano,
como ele devia ser naqueles tempos em que a humanidade se sustentava de
bolota, e bebia as guas lmpidas dos regatos. Vai sendo grande o prefcio...
Agora comeo. Sei que recebeste uma carta minha de Londres, escrita em
Fevereiro de 1847; e outra em que te pedia urna certido de banhos corridos.
participar-te o meu casamento com aquela divinal Leonor aqui, Amaral riuse de um modo clebre, e estorcegou o nariz como criana beliscada por
ccegas de lombrigas no devia escrever-te mais... no achas?
No sei porqu!
A respeito de Augusta?
de mim?
De ti? Dizias-me que vivias com o teu tio e a tua prima nos arrebaldes
modo que nem eu nem o leitor nos entendssemos. Dizias, por fim, que
tinhas pena dos que no podiam, como tu, ver to encantador o mundo.
Rematavas a tua carta, modelo de estilo e de enfatuamento, prometendo bater
com a face na sepultura, logo que o prisma de to amadas iluses te casse
partido aos ps. Ora, como te no veio a face partida, de f que o prisma
est inteiro.. .
O qu?
Saudades de quem?
Fomos para a Blgica. Tive o gosto de conhecer a minha tia, mulher dos seus
quarenta e quatro anos, ainda fresca, erudita e filsofa, francesa em toda a
extenso da palavra; e, se me no engano, contrarimo-la (seja isto dito em
prova da sua filosofia) com a nossa chegada, porque a virtuosa dona mitigava
o melhor que podia as saudades do meu ditoso tio Teotnio. Era uma mulher
de esprito: est dito tudo.
Minha prima recebia-me na antecmara do seu quarto, em presena da sua
me, tratava-me com certo rebuo, que ela denominava paixo com os seus
mistrios, e nisso, dizia ela, fazia consistir a sua ventura, visto que, por muito
que nos amssemos, o dia do noivado seria o precursor do aborrecimento.
Esta profecia, em boca de menina apaixonada pelo seu futuro noivo, parecerame anomalia! Era saber de mais em coisas que a mulher sem experincia
nunca adivinha... no te parece? Ainda assim, como eu s conhecia vinte
variedades de mulheres, julguei que aquela seria a vinte e uma.
Uma vez, disse-me o meu tio que soubesse de Leonor quando devia realizarse o suspirado casamento. Era doce a mensagem. Respondeu a menina, com o
corao palpitante de amorosas nsias, que deixssemos passar seis meses,
para ser completo o gozo das deliciosas vsperas. Acrescentou que, pela alma,
era j minha esposa; que desse amor se alimentava; que na santa idealizao
dos puros enlevos se embebia o seu esprito; e que a certeza de eu ser o anjo
que ela antevira aguardava ela como remate s suas esperanas de ser toda
timo.
apetites.
conto.
CAPTULO XXIX
Deves saber, amigo meu, que o meu conhaque , como a alma de Santo
baixando os olhos com tanto pejo como severidade; que o prazer material de
um beijo era muito inferior ao gozo que se sentia desejando-o. Discorria
muito idealmente acerca deste idealssimo gozo, e acabava por censurar-me a
intil tentativa de beij-la sem que as sensaes corpreas no fossem
legalizadas pela bno sacramental. Eu ouvia isto com ares de idiota, e
perguntava a mim mesmo se eu no era um destes parvos que a natureza
caprichosa inventa de sculo a sculo para recreio da humanidade
apoquentada.
Uma vez, perseguindo-a, apertei-lhe o pulso que me fugia, a menina soltou
um suave grito, e a me saiu-nos de surpresa ao encontro. Interrogando-me,
Leonor respondeu que eu teimava em querer oscul-la. A virtuosa esposa do
meu tio, assumindo a gravidade carrancuda dos quarenta e quatro anos,
intimidou-me para que no mais violentasse o pudor da menina com o desejo
libidinoso de um beijo. Quanto era feio e pecaminoso este acto, disse-o ela,
dando-se como modelo que nem ao seu prprio marido consentia beijos
ociosos. Ao que ela chamava beijos ociosos isso que eu nunca pude atingir.
Se h indecncia no adjetivo, to oculta est que a mais suscetvel organizao
de leitora no pode perder, se um dia te deres, meu caro poeta, ao desfastio de
pores em estampa estas coisas, mngua de melhor assunto.
Nesse dia noite, houve teatro. Fui com a minha prima e o meu tio. Os
culos de teatro tinham ficado em casa por esquecimento. Vim do teatro a
desfecho.
minhas cinzas na copa do chapu, e espalha-as aos quatro ventos do cu, para
que no se encontrem no vale de Josafat. Adiante.
Expirara o prazo dos seis meses. O meu tio dizia-me que estava tudo
preparado para o casamento: faltavam as escrituras. Encarregou-se de falar
com a sua filha, visto que eu, arrufado desde que a me me repreendera
severamente, no tinha com Leonor seno as conversas de absoluta etiqueta.
Com efeito, o meu tio entrou no quarto da menina, que se achava adoentada
do peito, por causa de um periquito que lhe expirara nos braos. Voltando,
disse-me que Leonor queria, antes de designar o dia, falar a ss comigo alguns
instantes. Entrei: agora escuta l, poeta. A vai textualmente o meu amoroso
colquio com a virgem dos meus sonhos.
muito dinheiro, bebeste muitos tonis de conhaque, e ests aqui hoje rico que
nem um pro, e capaz de experimentar outras vinte e uma variedades de
mulheres...
No, que ela no se diz em duas palavras. O caso vale tantas como a
tua.
Temos romance?
At logo.
CAPTULO XXX
respondeu o poeta.
alguma coisa, e o despeito podia muito. Hoje, nem imaginao, nem despeito,
minha senhora. Alm dos trinta anos, chora-se, como o rei de Macednia,
porque no h mais mundo a conquistar.
que teve quando era novo... Gosta do trocadilho?... Ora v, que est
violentado... Quer que a gente o espere?
esteja de vagar para te ouvir o sonho. Todo o tempo preciso para contar-te
realidades. Prometi-te a histria da costureira...
capricho; depois, lendo a tua ltima carta, entendi que Augusta se declarara
independente para escravizar de todo o seu corao a algum outro admirador
das suas excelentes qualidades.
A costureira, como sabes, foi para a Rua dos Armnios. Vestiu aquele baju e
aquela saia de chita que lhe viste na noite em que ela chorava sobre o cadver
da me. Foi pedir trabalho para no morrer de fome. Recorreu ao dos
suspensrios, apurou diariamente quatro vintns para po e caldo, e assim
viveu algum tempo, sustentando-se honrada na desonra em que a deixaste.
naquela voz, que uma dolorosa abstrao nos afigura no ouvida de estranhos.
E o filho?... O meu filho?... disse ele subitamente ao torpor da
meditao.
Morreu-lhe no ventre...
Da tua prima?!
No vou.
CAPTULO XXXI
A TERESA
DESCANSA EM PAZ
ndole... E quem chorar por mim? Augusta morreu... e eu... vivo? Vivo, sim,
para assistir ao trespasse de todas as minhas esperanas... morrer mil vezes!...
Acabou-se... A existncia assim, o mundo assim, a sociedade isto.
Devoramo-nos uns aos outros. Eu matei-a, e a mim mataram-me. Que queres
tu agora?... De quem o baile? Ainda te no perguntei.
Do visconde de Laje.
Onde mora?
Porqu?!
fumar.
No ptio estavam grupos de criados com libr, dos da casa, e estranhos. O
peristilo, em arcadas, tinha duas portas laterais da escadaria, que conduziam
ao jardim, iluminado por entre alas de almpadas variegadas, suspensas em
festes. O jornalista tomou o brao de Amaral e conduziu-o a uma dessas
avenidas, ocultando-se dos hspedes por detrs de uma coluna do arco
central.
Passados os cinco minutos, parou uma carruagem.
que me desonras...
Que te desonro!...
Sim...
Queres que ela te agradea aquela grandeza que te deve? Nada daquilo
exclamou Guilherme:
Diz-me se estou doido! arriscada a resposta disse afavelmente o hspede
da baronesa de Amares. Eu no sei se ests doido nem se no ests.
dela...
mudasse a sua residncia para o Candal, onde devem estar ainda os vestidos
que lhe deste, menos a arca de pinho com que saiu da tua casa.
Quem ?
No reparei: quem ?
O fabricante?!
cabelos.
Exatamente...
hei de ir ao baile. A costureira, meu caro Amaral, foi sempre o que eu te disse
que seria, na minha ltima carta: um anjo no sofrimento e na virtude. Eu quis
socorr-la; no aceitou os meus favores. Quem a sustentava era primeiro o seu
trabalho, depois o fabricante. No sei dizer-te o que ela sofreu; mas a tua
imaginao pode muito: calcula o que seria naquela nobre alma um
rompimento instantneo de todos os ligamentos que a prendiam felicidade:
uma paixo imensa premiada com um abandono brutal. Quando os jornais do
Porto disseram que tu casavas na Blgica com a tua prima, diz Augusta que,
Casou.
prometendo-lhe remediar tudo. Fui roda dos expostos, perguntei por uma
criana que ali entrara duas noites antes. Tinham entrado duas, uma meianoite e outra s duas horas. Como qualquer das duas me servia, e ambas eram
meninos, deram-me ao meu pedido o segundo que entrou. Dei ordens para
que lhe fosse procurada uma ama, fui administrao do concelho, soube a
que a denncia do infanticdio fra dada por uma tal Ana do Moiro, nossa
conhecida. Desmenti-a, apresentando a criana que fra confiada aos meus
cuidados. Cessou a perseguio, e Augusta, abraada a essa criana que quis
ver, prometeu ser a sua me, e lanou-lhe ao pescoo um colar de diamantes.
Espantado de tal presente, perguntei-lhe donde houvera joias to preciosas.
Augusta chamou o seu primo, pediu o seu tesouro, estendeu-o sobre a colcha
da cama, e exclamou: E uma riqueza no roubada... creio que posso chamarlhe minha... o pior que no vejo aqui nada que possa desempenhar-me da
obrigao em que me tem presa! Seja nosso amigo... qualquer que seja o meu
destino. Prove-me que est contente de mim, no se esquecendo nunca da
pobre costureira...
No me lembro j do mais que ela me disse. O que sei que, no corrido
ainda um ms, Augusta estava casada com o seu primo, e eu fra o padrinho
do casamento.
Casados, saram do Porto, aconselhados por mim. Vieram para Lisboa, onde
ningum pergunta quem e donde vem, ao que traz cento e cinquenta contos.
O menino, sempre filho adotivo de Augusta, est no Porto, e brevemente vem
Nem tu a ela?
feliz? feliz. No posso acreditar-te. Aquela mulher deve ansiar por uma
alma.
Se quero!...
FIM