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Onde Está A Felicidade

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ONDE EST A FELICIDADE?

CAMILO CASTELO BRANCO

Esta obra respeita as regras do


Novo Acordo Ortogrfico

A presente obra encontra-se sob domnio pblico ao abrigo do art. 31 do


Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos aps a morte do
autor) e distribuda de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita,
o benefcio da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a
sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer
circunstncia. Foi a generosidade que motivou a sua distribuio e, sob o
mesmo princpio, livre para a difundir.
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PRLOGO

A vinte e um de Maro do corrente ano de mil oitocentos e cinquenta e seis,


pelas onze horas e meia da noite, fez justamente quarenta e sete anos que o Sr.
Joo Antunes da Mora, morador na Rua dos Armnios, desta sempre leal
cidade do Porto, estava na sua casa. At aqui no h nada extraordinrio. O
Sr. Joo Antunes podia estar onde quisesse.
A histria assim comea fria e desgraciosamente. uma espcie de Anjo do
Nascimento. A descrio de uma tempestade, saraiva a estalar nas vidraas, o
vento norte a assobiar nos forros, o arvoredo secular a ramalhar rangendo, e
duas dzias mais de caretas que a natureza faz humanidade espavorida, e que
os romancistas, desde Longo at ns, descrevem com invarivel frase em
todas as ocasies que lhes no ocorre outra coisa... A mim tambm me no
ocorre agora o que vinha dizendo... Penso que a minha ideia era apresentar o
Sr. Joo Antunes da Mora. Devia ser outra melhor. Tive-a e esqueci-a.
Qualquer que ela seja, a todo o tempo que tornar, nunca vir tarde: o leitor
ser, ento, indemnizado da pobreza, do trivial, do estilo esfalfado com que
venho a depravar-lhe o paladar, afeito s apimentadas iguarias do romance,
cuja cabea vem sempre, ou deve sempre vir, sacudindo rajadas e fuzilando
relmpagos.

Seria gastar muita cera com o Sr. Joo Antunes esse luxo descritivo. Lamartine
faz de um pedreiro um filsofo: a omnipotncia do gnio o Santo Antnio
destes tempos de incredulidade: faecit mirabilia...
Quem , pois, o morador na Rua dos Armnios? L vamos. O Sr. Joo
Antunes da Mora, por alcunha o Kgado natural da Lixa, viera rapazito de
doze anos para o Porto, conduzido pelo seu tio materno, o tio Antnio
Cabeda, com destino de embarcar para o Brasil. Achando-se no cais da
Ribeira, com o dito seu tio, admirando o tamanho de um late, que o bom
Antnio Cabeda denominava uma nau de guerra martima, corri grande
espanto do rapaz, chegou-se a eles um homem gordo, de jaqueta de ganga
amarela, e chinelos de ourelo, perguntando ao tio Antnio se o rapaz
embarcava. resposta afirmativa, disse o homem gordo, mandando cobrir os
admiradores da nau de guerra martima, que era dono de duas lojas de
mercearia na Fonte Taurina, e muito desejava meter numa delas um rapaz que
tivesse boa pinta para o negcio.

A respeito de pinta ela aqui est como se quer disse o tio,

levantando com orgulho a cara do sobrinho, como o troquilhas que mostra os


dentes de um cavalo.

No tem mau olho, no disse o merceeiro. E quer vossemec

deix-lo comigo? O Brasil em toda a parte. Tenha ele cabea, e boa aquela
para o negcio, que o mais em toda a parte se arranja dinheiro.

Tu queres ir ou ficar, rapaz? perguntou o tio, atirando com a perna direita


sobre o pau de lodo.

Eu... resmungou o rapaz, fazendo em torcidinhas a borda do

barrete.

V... decidir! Isto mar de encambar enguias. Assim, como assim,

este senhor diz bem: o Brasil em toda a parte. Queres, ou no queres?

O que vossemec quiser; eu antes quero ficar mais perto da minha

gente. Acho que o Brasil l por a abaixo muito longe.

Est dito! exclamou o lavrador, assentando uma palmada na espdua

rolia do bacalhoeiro o rapaz fica com vossemec. Trate-mo bem, que ele,
a respeito de ler e escrever, como se quer: e de foras? Isso ento, com
licena de vossemec, levanta-lhe a do cho duas arrobas nos dentes... Anda
l, rapaz.
Joo Antunes entrou em casa do patro, jantou com o tio e disse-lhe adeus.
Poucos anos decorridos, o sobrinho do tio Antnio Cabeda era o primeiro
caixeiro, mais tarde o genro do seu patro, e depois o seu herdeiro. Com a
avultada riqueza, herdou tambm o apelido de Kgado, que o fra, desde
muito, da antiqussima ascendncia de bacalhoeiros na Fonte Taurina, como
consta de apontamentos curiosssimos, que, a serem verdadeiros, recuam esta
genealogia at D. Moninho Viegas, primeiro conde do Porto, de cujo servio

sara a estabelecer-se o primeiro Kgado na Fonte Taurina. Legtimo era, pois,


o orgulho que tinham do seu apelido o
Sr. Joo Antunes da Mora, posto que a varonia dos Kgados expirasse no seu
sogro.
O Sr. Joo enviuvara sem descendncia. A linha colateral, representada por
outros bacalhoeiros de Miragaia, propusera ao vivo o trespasse das suas
mercearias, com avultoso interesse, com o fim de no sarem da famlia. O Sr.
Joo Antunes anuiu, trespassou o negcio, e retirou-se com o seu grande
capital sua casa da Rua dos Armnios.
O Sr. Joo, segundo o clculo dos seus vizinhos, valia o melhor de cem
contos, moeda corrente, slida, e tangvel.
O capitalista precisava consumir em alguma coisa a sua imensa atividade. Por
no achar expediente mais lucrativo, dava dinheiro a juros sobre hipotecas;
mas, nas escrituras, o juro da lei era uma inocente mentira. O Sr. Joo
emprestava de quarenta por cento para cima, e no cansavam fidalgos que lhe
fertilizassem o dinheiro, capitalizando no ttulo a usura enorme com que se
divertiam e arruinavam. (Vejam-se os filhos desses, e contemporneos
nossos.)
O nosso homem no desmentira a pinta que lhe enxergara no olho do seu
defunto tio, Antnio Cabeda. Usurrio, avarento, devoto da Senhora das
Dores dos Congregados, particular amigo do bispo-governador, relacionado

com famlias nobres, e especialmente com o chanceler, valendo mais de


cinquenta contos desde que se retirara do negcio, o Sr. Joo Antunes, posto
que adventcio e intruso na veneranda prognie dos Kgados, era
inquestionavelmente o mais maroto de todos, sem lisonja.
Nunca, porm, to salientes sobressaem os relevos do carcter de Joo
Antunes, como na noite de vinte e um de Maro de mil oitocentos e nove. E
a est bem cabida a justificao do desazado comeo deste romance, nata dos
romances verdicos, milagre de literatura mercantil, como infelizmente esta
em que a desenvoltura da imaginao faz que o leitor esperto no creia as
sinceras crnicas de que sou editor, eu, o menos escandaloso dos inventores.
Os contemporneos de Joo Antunes e nossos, simples intuio da poca
que vem datada, conhecem que a invaso francesa sucedeu, poucos dias
depois daquele em que, na Rua dos Armnios, o bacalhoeiro, s onze horas e
meia da noite, aflito, impaciente, frentico, de instante a instante, coava pela
fresta de urna janela de pau a sua vertiginosa cabea.
Ao anoitecer, Joo Antunes recolhera-se aterrado. As notcias convergiam
assustadoras de todos os pontos. Os franceses entravam em Chaves, e
desciam, torrente devastadora, no respeitando haveres, velhice, pudor,
religio linguagem da gazeta da poca. Para maior consternao das almas
tementes a Deus, entre as quais avultava a do Sr. Joo Antunes, uma
participao do quartel-general de Braga em retirada dizia que o general

Bernardim Freire, suspeito jacobino, fra assassinado pelo povo, e que os fiis
vassalos, comandados pelo baro de Eben, tal derrota sofreram no Carvalho
de Este, que lhe era escasso o tempo para fugirem na direo do Porto.
Acrescentavam os informadores: que os brbaros assolavam, incendiavam,
desonestavam as virgens, matavam as velhas desonestadas, comiam, como
antropfagos, as crianas, e, para alm do mais, saqueavam. Este, sobre todos,
horrvel verbo do discurso arrepiador, ps o Sr. Joo Antunes em miservel
estado.
E, para cmulo de infortnio, dias antes emprestara o aterrado capitalista cem
moedas, a juro de oitenta e cinco, ao fidalgo da Bandeirinha, Joo da Cunha
Arajo Portocarreiro, tenente-coronel de Infantaria n 6. A pressa com que o
devedor partira para a trincheira do seu comando, e a desordem em que se
achavam os negcios forenses foram causa de se no lavrar a escritura,
imprudncia nunca sucedida nas transaes do usurrio!
O pior era que alguns populares da Legio rosnavam que Joo da Cunha era
jacobino, e agrupavam partido para facciosamente o prenderem, como rebelde
a el-rei, nosso senhor.
E Antunes sem ttulo das cem moedas! Se matam o jacobino, com que
documento hei de apresentar-te viva? Esta fnebre interrogao custava
ao ilustre enxerto dos Kgados um estorcego de dedos, e uma cibra forte na
perna direita, afetada por ameaos de paralisia local.

A avareza no foi capaz de estimular a natural cobardia do usurrio. Antunes


da Mora, nos acessos frequentes de vertigem pela desesperada sorte das suas
cem moedas, quase esteve a enfiar pelas mangas o capote de camelo, e
atravessar a cidade, sem cinco ris na algibeira (o cauto Joo Antunes no
acreditava na honradez dos fiis vassalos, e tinha razo) at bateria do
Bonfim, para onde fra destacado Portocarreiro, o devedor que a mente
alucinada lhe afigurava insolvel. A natureza, porm, recalcitrava: as pernas
falhavam coragem do srdido credor, e um suor frio, acompanhado de
sbita revoluo de intestinos, redobrava as angstias do infeliz Gobsek,
muito conhecido dos leitores de Balzac.
Porque se no deitava ele na sua cama de bancos de pinho, procurando no
sonho, ao menos, realizar um ttulo autntico das fatais cem moedas?
No se deitava, primeiro porque no tinha sono; segundo, porque, a serem
exatas as notcias de Braga, a marcharem os franceses sobre o Porto, era
necessrio acautelar os farrapos da cama, nicos sujeitos ao saque; terceiro e
ltimo motivo, porque o Sr. Joo Antunes esperava algum pelas traseiras
marradas, que dava no ar livre, jogando com a cabea fra da fresta com a
rapidez de uma catapulta.
No passou vivalma na Rua dos Armnios at meia-noite.
O bacalhoeiro fitava o ouvido na direo de Miragaia, quando ouviu o rumor
de passos. Apoiou o queixo na fresta, ampliou com a mo a concha da orelha,

e esperou at convencer-se que era finalmente chegado o seu vizinho


barqueiro Antnio Correia, por alcunha o Moiro.

Senhor Joo! bradou da rua o barqueiro.

C estou tua espera, rapaz. Ento que me dizes?

Que hei de eu dizer-lhe, Senhor Joo? Que o levaram trinta milhes de

diabos...

A quem?

Ao fidalgo da Bandeirinha.

Santo nome de Deus! L se me vai o meu dinheiro! Vocs mataram-no

de todo? O homem j no fala?

Nem um triste pio! O caso foi assim: prendemo-lo para o trazermos ao

bispo; mas, s duas por trs, o bispo era capaz de o pr no olho da rua,
porque os grandes acodem uns pelos outros. Quando chegmos ao Padro
das Almas, o senhor Raimundo Jos Pinheiro fez uma prdica ao povo em
que dizia que o melhor era dar cabo de todos os jacobinos. Palavras no eram
ditas, o Francisco Reteniz mete uma bala na cabea ao fidalgo, e eu, como
quem no quer a coisa, fui-lhe arrumando com a chanfaina pela cernelha. O
jacobino pediu que o deixassem confessar, mas foi como se nada. Fervia a
tapona de criar bicho, que era um louvar a Deus! Aquele l fica estatelado no
Padro das Almas... Amanh h de ter companheiros... A coisa no fica aqui.

O Lus de Oliveira espicha. O chanceler h de lev-lo tambm o Diabo.


Todos os presos da Inconfidncia ho de ser feitos em postas na Relao...
Joo Antunes j no ouvia o sanguinrio vizinho. A palavra chanceler foi
como um jorro de chumbo candente que lhe caiu sobre os ventrculos do
corao, tapando-lhos. Antunes no respirava: as contraes do diafragma
tiravam-lhe pelos intestinos rugidores. que todos os choques morais desta
organizao excntrica feriam-lhe imediatamente com o estmago e rgos
subjacentes. Enfermidade por certo original e nica! Desventura suprema para
um capitalista aterrado na fatal poca da invaso dos franceses! Golpes
repetidos de clera espordica que o miserando sofria no baixo-ventre, a cada
ameaa de saque, a cada assalto imaginrio aos seus cento e cinquenta contos
de ris!
Mas o programa do barqueiro, a respeito do chanceler, porque que perturba
assim Joo Antunes?
Vamos v-lo. Agora, sim: os plidos terrores recuam diante do usurrio. Ei-lo
envergando o capote de quartos, cerzindo s orelhas a carapua de toral,
enfiando as canelas trmulas nas fartas meias de l. Desce precipitadamente o
caracol perigoso da escada, cose fechadura a orelha perspicaz, abre e fecha
mansamente a porta desconjuntada. E, depois, perna aqui, perna acol, o Sr.
Joo Antunes parou na Rua de Cedofeita, porta do chanceler-governador
das justias, Manuel Francisco da Silva e Velga Magro de Moura. (O estirado

do nome pouco de novela; mas tolere-se lealdade do conto a impertinncia


dos apelidos, que constituem em Portugal a propriedade nica de muitos
filhos dalgo.) A porta foi-lhe aberta ao terceiro toque. O tilintar acelerado da
campainha significava a perturbao do importuno, que, a urna hora da noite,
quebrava o sonho tranquilo do magistrado.
A voz gosmenta do antigo bacalhoeiro era bem conhecida aos criados do
chanceler. Foi-lhe franqueada a porta, e conduziram-no, sem prvia licena, ao
quarto do amo.
Joo Antunes da Mora apresentou entre os cortinados do leito do governador
uma cara pavorosa. Os pequeninos olhos, de uma cor equvoca, encovara-os a
opilao da plpebra superior, efeito do susto horrvel que lhe incutira o
assassino do fidalgo da Bandeirinha. Ao correr das faces, esponjosas e
vermelhas, em tempos de prspera segurana, o custico do terror sorvera-lhe
os sucos oleosos, deixando-lhe, na aridez da pele, traos de uma agonia s
comparvel do avarento que v rolar num abismo todo o seu capital!

Que tem, senhor Meta?! disse alvoroado o chanceler.

Graas a Deus que ainda est vivo! exclamou, impando, Joo

Antunes.

Que ainda estou vivo?! Essa boa! Pois esperava encontrar-me morto?

Longe v o agoiro! Sente-se a... Que isso?

Sabe vossa excelncia o que deve fazer j, j, sem mais prembulos?

Fuja, seno matam-no... Fuja!...

Matam-me! atalhou impressionado o governador, sentando-se no

leito.

o que lhe digo... matam-no, senhor chanceler...

Porqu?!

Isso que eu no sei. Vossa excelncia est condenado a ser morto

amanh corri Lus de Oliveira, e com os presos da Inconfidncia.

Mas que mal fiz eu? Quem que me mata?

Os mesmos que mataram hoje o tenente-coronel Joo da Cunha, que l

se me foi com cem moedas, sem ttulo, nem testemunhas. Eu que lho digo...
porque o sei de um dos prprios matadores do fidalgo da Bandeirinha.

Ser por eu ter querido salvar ontem o desgraado Joo da Cunha?

No sei porque . A grande questo vossa excelncia fugir quanto

antes...

Isso impossvel! O meu posto de honra este: no o largo.

Qual posto nem meio posto de honra! Aqui no h honra nem

vergonha. Cada qual salve o seu dinheiro e a sua vida das unhas da canalha,
que a vossa excelncia j devia ter metido na enxovia, carregada de ferros.

Enfim, no h tempo a perder. Vossa excelncia far o que quiser... Eu venho


buscar o meu caixozinho.

O seu caixo est acol no gaveto daquela papeleira, tal qual

vossemec o l deixou; mas diga-me: essa terrvel notcia que me d tem


algum fundo de verdade?

J disse a vossa excelncia o que sei. Se quer o conselho de um amigo,

fuja; se no tem medo, no dou nada pela vida da vossa excelncia.

Isso um terror pnico! Vossemec ouviu isso a algum farrapilha de

cfila de ladres, que assassinaram Joo da Cunha, e no se lembra que essa


quadrilha amanh h de ser amarrada com uma grilheta, e conduzida ordem
do bispo para o Castelo da Foz...

Sabe que mais, meu senhor? Eu no queria estar entre a pele e a camisa

do bispo. Mais dia, menos dia, descobrem que ele jacobino, e matam-no. Se
eu tivesse tempo, ainda ia hoje avis-lo.

Para que fugisse? disse o chanceler, sorrindo.

Est bem visto.

J vejo que vossemec tem partida a mola real da cabea. Ora, Senhor

Joo Antunes, agora conheo a razo etimolgica do apelido do Kgado.


Enquanto a mim, vossemec sonhou que me matavam, e por essa ocasio lhe
roubavam o seu peclio. Acordou atarantado, e correu a buscar o seu

dinheiro, inventando urna descosida peta para justificar o improviso da


resoluo. No tinha preciso de tanto. Assim como me fez depositrio do
seu cofre, podia levantar quando bem lhe aprouvesse o depsito. Era
escusado vir meter medo criana de cabelos brancos. Eu chamo um meu
criado para lhe conduzir o cofre.
Nada... no preciso, senhor chanceler. Eu c me arranjo. Oxal que a vossa
excelncia no tenha de arrepender-se do desprezo com que recebeu o meu
aviso.

No hei de ter, se Deus quiser.

Pois Deus o queira.

V, v-se deitar descansado; ponha o caixo debaixo do travesseiro, ou,

para mais segurana, adormea de bruos sobre ele, e acorde com ideias mais
alegres. Amanh, se estiver de pachorra, aparea por aqui, contar-me- com
mais sossego o seu sonho sanguinrio.
O chanceler ria-se, enquanto Joo Antunes gemia para erguer do gaveto da
papeleira um caixo volumoso de dois palmos de altura, com outros tantos de
largueza. De sobre o joelho, gemeu de novo sobraando-o com admirvel
energia, e retirou-se seriamente cmico, enquanto o governador vibrava a
mais sonora e conscienciosa das gargalhadas.

Joo Antunes atravessou inclume da Rua de Cedofeita dos Armnios,


sentando-se para resfolegar algumas vezes. Na sua rua, quela hora, reinava
um silncio tumular, quando o barqueiro, seu incmodo vizinho, no estendia
os delrios da costumada bebedeira at de madrugada.
O capitalista fechou-se por dentro; acendeu a bugia; reconheceu a identidade
do caixo, analisando um a um os cartuchos das peas, e os valores em
brilhantes, na maior parte penhores de emprstimos feitos s principais
fidalgas do Porto. O caixo era de uma forma apropriada. Tinha uma tampa,
que se abria com uma chave de segredo, para deixar ver seis pequenas gavetas,
tambm fechadas cada uma com diferente chave: precauo estpida, de
pouca importncia para o ladro que tivesse um brao para transportar o
caixo e um prego para abri-lo, muito do seu vagar. Cinco destas gavetas
continham moedas em oiro e em papel. A alegria cintilava nos olhos do
usurrio; mas o sombrio susto contrastava em calafrios, que o no deixavam
digerir plenamente o quilo da sua felicidade.
Desceu ao andar trreo da pequena casa. Era um quadrado sem pavimento,
frio como um subterrneo, sem sinal de vida, apenas trilhado pelo lavrador de
S. Cosme, que de ano a ano vinha levantar os esplios acumulados e
regateados. Era esse um ramo de comrcio que o hbil economista taxara num
cmputo infalvel: o produto devolviam-lho em nabos.

No mais escuro do recinto lgido e escuro, o Sr. Antunes cavou um fosso de


quatro palmos, escutando o menor rudo, e desconfiando at dos ecos surdos
da enxada. Depois, mergulhou um como derradeiro olhar de profundo amor
sobre o caixo, e dep-lo carinhosamente na cova, como Joung faria sua
filha querida. Calcou e recalcou a terra, cobrindo-a de lixo, de arestas de pedra,
e cavacos de madeira apodrecida.
Eram trs horas da manh. O Sr. Joo Antunes comeu duas sardinhas de
escabeche, afogou-as em meia garrafa de vinho, e deitou-se. Quando, porm,
o sono parecia afagar-lhe as plpebras rolias, acometeu-o uma ideia fnebre
a perda das cem moedas emprestadas ao fidalgo da Bandeirinha , e no
houve mais reconciliar o sono. Rompia a manh; rufavam os tambores das
baterias do sul, erguia-se um motim sinistro de todos os lados, mistura
confusa de vozes, de clarins, de estridor de carretas, de toque de sinos
remotos a rebate. Joo Antunes lanou-se fra da enxerga, saudou o primeiro
raio de sol, que lhe resvalou nas faces lvidas, desceu ao sepulcro provisrio
do seu dinheiro, aplaudiu-se da perfeio com que o fizera, e saiu, mais seguro
que nunca, do seu depsito confiado s entranhas da terra.
O usurrio ia tentar um desesperado esforo, aconselhado pela insnia, para
salvar as suas cem moedas emprestadas ao defunto brigadeiro Joo da Cunha.
A casa da Bandeirinha ficava-lhe mo. Nessa casa devia existir a viva do
desgraado jacobino. Joo Antunes, indeciso, estacou minutos diante do

herldico porto dos Portocarreiros. Venceu, porm, a sordidez, e o


desalmado puxou com deciso de credor a campainha. Veio falar-lhe um
criado lacrimoso. O bacalhoeiro, modelando a voz em piedoso diapaso, disse
que muito precisava falar Sra. D. Maria Rira, sobre negcios de muito
transcendncia.
A infeliz viva, abandonada de todos, rodeada de pequeninos filhos, mais
corajosa do que permitido a uma mulher que perdera, horas antes, um
marido extremoso, precisava de algum que a aconselhasse, que se condoesse
do seu infortnio, que lhe desse para seus filhos um esconderijo. O nome de
Joo Antunes, noutra ocasio, ser-lhe-ia importuno; tal hspede, sempre vil
em negcios de dinheiro, precav-la-ia contra o ardil de alguma nova
traficncia. Neste momento de aflio extrema, a desolada viva precisava de
algum, amigo ou inimigo, porque as suas lgrimas eram de condoer as feras, e
as feras deviam apiedar-se da sua viuvez.
Foi, pois, recebido Joo Antunes numa alcova, onde D. Maria Rira, rodeada
de criadas, com duas meninas nos braos, de quarto em quarto de hora,
sucumbia desmaiada, e voltava terrvel conscincia da vida para invocar o
seu marido, a essas horas acutilado, com a face na terra ensanguentada,
esperando que uma corda o arrastasse nas ruas do Porto.

Que desgraa, senhor Mora! exclamou a viva correndo

impetuosamente ao encontro do impassvel bacalhoeiro Que desgraa! O


meu marido morto... as minhas filhinhas sem pai... o meu querido marido!...

Conforme-se com a vontade de Deus, excelentssima senhora.

No posso conformar-me com a vontade de Deus...

No blasfeme, Senhora Dona Maria!... A nossa Senhora das Dores dos

Congregados lhe perdoe.

Pois hei de crer que Deus permitisse a morte vil que o meu marido

teve? Por quem , Senhor, no diga que Deus a providncia deste


acontecimento!... O que eu sofro! O que tenho de sofrer!

Com vossa excelncia no nada.

Comigo?! Comigo tudo. Eu sou a mulher desse honrado militar que

os infames mataram. Quero pedir aos homens justia contra os assassinos!


Vingana, Deus de justia, vingana, que mataram o pai destas meninas, o
marido desta viva, que de joelhos vos pede vingana, justia e misericrdia!
D. Maria terminou a invocao por um trmulo de todas as fibras. O escarlate
sanguneo do rosto demudou-se em repentina lividez. As lgrimas
borbulharam-lhe das plpebras cerradas, e os pasmos nervosos, contorcendolhe os dedos, em forma de garras, davam quele misto de horror e lstima

uma forma especial de morrer, uma trabalhosa agonia com intervalos de


delrio.
Joo Antunes, como ningum o mandava sentar, sentou-se o mais espontnea
e acomodadamente que pde, murmurando em tom compassivo:

Valha-nos a Senhora das Dores dos Congregados! Tudo so trabalhos

neste mundo. Todos temos que sofrer...

E voltando-se para as criadas, que amparavam a viva desfalecida,

perguntou no mesmo tom: Esses fanicos costumam durar muito


senhora?

Isto no so fanicos... respondeu de mau humor a velha Genoveva,

criada antiga da casa, e inimiga do usurrio, cujas manhas ela conhecia to


bem como sua ama.

Se vossemec continuou ela enraivecida chama a isto fanicos,

capaz de dizer que a senhora est fingindo estes desmaios.

O santinha, eu sempre ouvi chamar fanicos, ou faniquitos, a essas

coisas. Eu tambm fui casado, e a minha mulher (Deus lhe fale na alma)
tambm tinha esses fanicos.

Destes? Antes ela os tivesse... Parece que Deus escolhe os bons e os

que fazem mais falta para pagarem pela maldade dos que no fazem falta
nenhuma...

Que quer voc dizer com isso? interpelou formalizado o ex-

bacalhoeiro, que no era literalmente estpido.

J disse... Sabe que mais, senhor Joo? Vossemec no vem c a coisa

boa; o melhor que no venha afligir ainda mais minha ama. Vossemec que
lhe quer?

O que eu lhe quero ainda me no esqueceu: voc muito confiada,

no assim que os donos desta casa costumam pagar os favores que devem.
Ah! j vejo que vossemec vem em boa ocasio para que lhe paguem favores.
Vem muito a propsito... Sabeis vs que mais? disse ela com arremesso,
voltando-se para as criadas levem da essa meninas, que esto a chorar,
enquanto eu levo a senhora para a cama... Senhor Joo, venha noutra mar.

Todas as mars so boas... Quando o senhor Joo da Cunha (Deus lhe

fale na alma) me pediu cem moedas antes de ontem, eu no lhe disse que no
era boa a mar.

Eu volto j disse a criada conduzindo ao colo a ama sem sinal de

vida. E, voltando, assumiu ares de senhora, e atordoou um pouco o


imperturbvel estoicismo do usurrio.

Ento que quer vossemec: dinheiro?

Sendo possvel, quero o meu dinheiro; no sendo possvel, quero um

ttulo, ou um penhor, porque sou pobre, no tenho num ano o rendimento

que a Senhora Dona Maria Rira tem num ms e passo muitas necessidades, e
trabalho muito na minha agncia para viver sem vergonhas do mundo e ser
til aos meus amigos, quando eles no querem o meu prejuzo. Ora a est. O
auxlio da Nossa Senhora das Dores dos Congregados me falte se o que eu
digo no pura verdade. Emprestei ao fidalgo cem moedas, e preciso saber se
a fidalga est pronta a tomar sobre si o pagamento; alis, eu provarei com
todo o Porto que no sou capaz de pedir aquilo que se me no deva.

Mas vossemec no v que uma dor de corao pedir dinheiro a uma

infeliz viva no dia em que lhe mataram o seu marido?

Enfim, morrer deste, ou daquele modo, tudo morrer. Voc diz que a

viva infeliz; no estou por isso; infeliz sou eu, se perder o meu dinheiro;
enquanto ela, se rica era, rica fica; o marido no levou as quintas consigo para
o outro mundo. Eu no digo que quero j o dinheiro; mas como h viver e
morrer, e eu estou resolvido a fugir amanh aos franceses, no sei para onde,
preciso de levar um documento que a todo o tempo seja resgatado pela
senhora.

Quem lhe h de falar a ela em tal coisa?

Falo-lhe eu, que, louvado Deus, no tenho papas na lngua. V voc l

ao quarto da senhora, e diga-lhe, se ela estiver em jeito de me ouvir, que eu


preciso falar-lhe para descanso de ambos ns.

Eu no vou l com essa embaixada.

Pois ento esperarei que a Senhora Dona Maria me fale. Eu daqui no

vou sem ttulo ou dinheiro.

Se houvesse aqui um homem nesta casa, vossemec iria...

Com que ento ameaa-me!... Valha-me Nossa Senhora das Dores dos

Congregados... Por bem fazer, mal haver... o que acontece a quem d o seu
dinheiro... Pois sempre lhe digo, senhora velha criada, sem vergonha nem
temor de Deus, que tanto se me d que haja c homens como mulheres. No
tenho medo nenhum. o que eu lhe digo! E no me faa ferver o sangue, que
se no temos despautrio, e a coisa d de si! Olhe que eu sou capaz de lhe
meter um meirinho pelas portas dentro!
Genoveva acreditava na perversidade do usurrio, e receou muito mais do que
as infames ameaas dele prometiam. A ousadia com que at a lhe falava,
sufocou-a o medo, por alguns minutos; mas, um rpido pensamento alentou-a
de toda a sua coragem. Retirou-se da sala, onde Joo Antunes ficou sozinho,
calculando as consequncias da sua resoluo, e dando-se os parabns de ser
to patife, Genoveva voltou, e arremessou-lhe cara um rolo de papel.

A tem, seu malvado; a tem duas aes da Companhia; so o meu

salrio de cinquenta anos de servio nesta casa. Quando a fidalga lhe pagar as
cem moedas, voc h de restituir-me as minhas aes; e, se mas negar (que
muito capaz disso), tantos demnios o acompanhem para as profundas do

Inferno quantos foram os minutos que eu trabalhei para ganhar esse


dinheiro!...

No sou capaz de ficar com o alheio. Voc no me conhece.

Joo Antunes retirava-se doido de contentamento. O arremesso, que lhe


impeliu cara de greda o rolo de papel, recebeu-o como se recebe a maviosa
insolncia de amante ciumenta, que nos d um beijo onde nos deu o belisco.
Radioso de glria, com passo firme e pescoo ao alto, como quem volta de
triunfar em perigosa empresa, o intruso na srdida fieira, dos Kgados, por
estar perto da Cordoaria, donde vinha o rugido de um grande rebolio,
caminhou para l, cosendo-se bem com as algibeiras, para no ser explorado
por algum dos fiis vassalos, que vomitavam os pulmes, bradando: Viva a
santa religio, e morram os jacobinos!
Com efeito, a populaa, em cardumes, aglomerava-se em redor da Relao,
vozeando infernalmente. Acabava de chegar Porta do Olival um
redemoinho de homens, fardados uns, outros esfarrapados, garotos, mulheres
esqulidas com o peito nu, e as pernas salpicadas de lama. Uma salva de
chuas, baionetas, espadas e espingardas, cruzando-se, tocando-se e
baralhando-se no ar, ajuntavam ao alarido das vozes o tinido asprrimo dos
ferros: e ao quadro da canalha infrene, bria, terrvel e omnipotente, os laivos
sanguneos da carnagem.

Era, pois, a canalha que frua a sua hora de triunfo, de sculo a sculo. Era o
tribuno de um dia aclamado nos comcios da taverna. Podem estranhar o agro
desta linguagem. Acharo talvez insolncia nos eptetos com que denegrimos
as revoltas populares, que os de m-f poltica tratam sempre de justificar com
alguma causa sublime, e at corri a inviolvel providncia do progresso.
Notem, porm, que o povo sanguinrio, a que aludem essas e outras linhas de
igual desprezo, no abraava, repelia a ideia da reforma; no apregoava a
liberdade, assassinava os apstolos dela; no vinha ao teatro da rebelio trocar
a existncia por um sorvo do ar livre que soprava do lado da Frana, embora
impregnado do aroma do sangue; vinha estrangular, na garganta dos raros
precursores da liberdade em Portugal, a palavra tmida da redeno.
Joo Antunes reconhecera de longe o seu vizinho barqueiro, e o carniceiro
Antnio de Sousa, amigo do seu vizinho. Com tais protees, afoitou-se a ver
de perto o que era que ocupava o centro daquela multido. Mais perto viu o
cadver de Joo da Cunha, amarrado pelo pescoo, fraturado em todas as
salincias do rosto, despedaado, enfim, porque viera arrastado desde o
Padro das Almas.
Joo Antunes sentiu os seus crnicos incmodos de intestinos. Levou
maquinalmente a mo ao abdmen revoltoso, como ns a levaramos cabea
esvada. Quis retirar-se; mas no o ajudavam as pernas vacilantes. E j no
podia recuar. Foi de envolta nas turbas, que se aglomeraram em redor dele.
Achou-se porta da Relao, e presenciou, fora, uma cena em que devia

representar um papel digno doutro homem. Vai ver-se como um infame pode
passar por boa pessoa. Ver-se- tambm como a avareza alarga a esfera das
suas funes at onde se no encontra um resto de sentimento nobre... e,
contudo, mais admirvel ainda a facilidade com que as grandes infmias se
escondem.
Os chefes da anarquia eram Constantino Gomes de Carvalho, soldado p-decastelo da fortaleza da Foz; Francisco Jos Reteniz, soldado da legio;
Antnio Correia, por alcunha o Moiro (vizinho de Joo Antunes), e o
carniceiro Antnio de Sousa. Eram estes os ferventes apstolos da revolta
contra os jacobinos; foram estes os fautores do memorvel dia vinte e dois de
Maro de mil oitocentos e nove: dia de vergonha e de oprbrio para esta
cidade, que deixou acutilar, no seu seio, por mos, infames, alguns dos seus
mais honrados filhos, primeiros mrtires de uma ideia to pouco aproveitada...
e que to cara pagaram a fama, que a histria no conhece, quarenta anos
depois do sacrilgio.
Estava o usurrio suando copiosamente entre as compressas da populaa,
quando de diferentes centros da multido saram estes brados: Queremos os
presos da Inconfidncia! Morra o Lus de Oliveira! Morra o Vicente Jos da
Silva!
Ao prospeto facinoroso seguiu-se a execuo. O carcereiro, quase de rastos,
abriu as portas. O primeiro preso arrastado o brigadeiro Lus de Oliveira. Os

repeles que sofrera at porta da cadeia foram to originais, ou to em


harmonia corri o instinto dos fiis vassalos do trono e do altar, que o pobre
homem vinha quase nu, enquanto o seu casaco, calas e colete eram trocados
pelos andrajos dos bravos propugnadores da independncia nacional.
Abraado a uma imagem da Virgem Me de Deus, Lus de Oliveira pedia de
joelhos que o deixassem confessar. Uns dos amotinados diziam que sim,
outros que no, at que o patriota Constantino Gomes de Carvalho, por
encurtar razes, e obviar uma desinteligncia facciosa, houve por bem
enterrar-lhe o gume de uma espada no pescoo. Momentos depois, o
brigadeiro no tinha uma feio: era uma lcera, onde b verme esqulido da
plebe cevava a ferocidade.
Aps este foram assassinados dez ou doze da Inconfidncia. Formou-se uma
longa arreata de cadveres: a canalha ovante rugia um alarido de imprecaes,
um como hino de infernal triunfo. Deram por todas as ruas da cidade o
aougue em espetculo. Passaram a Vila Nova, arremessando-os do Cais da
Bica ao Douro.
Joo Antunes no acompanhara o prstito dos canibais. A sua situao no
saberei eu dizer se era menos atribulada que a do preso arrancado pelo
carrasco da enxovia, e, morto, apenas respirava o ar livre. E a razo era esta: o
usurrio, aturdido com as rpidas evolues da carnagem, esqueceu-se de que
levava no bolso dos fartos cales de belbutina um rolo de papis. Ilaqueado

na rede que as pinhas de povo lhe faziam, toda a sua atividade era pouca para
evadir-se a uma formal esmagadela. Lutara em vo um quarto de hora.
Sentira-se trs vezes escorchar na parte mais sensvel dos intestinos
melindrosos. Por ltimo, consegue escoar-se por uma clareira, onde devia ser
solenemente acutilado Vicente Jos da Silva. ento que se lembra de apalpar
a algibeira...
O mais certo que os honrados moradores da cidade tiraram
plenissimamente a utilidade das moradias, porque no saram de casa. Dez mil
assassinos arregimentados viriam da Maia ou de Valongo? Devemos crer com
a tradio e testemunho, ainda vivo, dos contemporneos da invaso francesa
que eram muito do Porto os anarquistas da invaso, E, se o no eram, o
nmero dos honrados moradores do Porto como reza a sentena, era
diminutssimo...
No encontra o rolo! Ressuma-lhe um suor frio dentre os leos espremidos na
presso. Sente nuseas, consequncia do revolvimento subitneo das vsceras.
Leva automaticamente cabea esfrica as mos convulsas. Arranca do ntimo
um rugido como o do macaco entalado na cauda. Descora, cambaleia, cai, no
direi como o abeto das montanhas, mas como o grego Lcio metamorfoseado
em jumento, sob o peso do seu infortnio!
Joo Antunes foi transportado em braos casa de um sapateiro na Porta do
Olival, ministraram-lhe asperses de gua choca de uma celha em que a sola

amolecia; imprimiram-lhe valentes solavancos, capazes de ressuscitarem um


morto; capitularam-no de bbado, como hoje se capitula um bbado de
colrico, e mandaram-no ao Diabo, quando a nada se movia o bruto
miserando.
Por fim, Joo Antunes revive, e encara em redor de si uma boa dzia de
mariolas, destacados do grosso do exrcito, que, a essas horas, arrastava os
cadveres, a hecatombe oferecida ptria, religio, e ao amantssimo
prncipe, que comia bananas no Brasil.
Mal desperto ainda, o avarento revirou os olhos pvidos em torno, e teve a
imprudncia de chamar ladres dos seus papis aos benemritos patriotas que
o rodeavam. Palavras no eram ditas, o infeliz acordou de todo, tangido por
quatro homricos pontaps, que lhe comunicaram uma atividade nova.
Casualmente, passava o meirinho geral com ordens para o carcereiro, e o
padre Domingos de Queirs, sargento de artilharia. Conheceram Joo
Antunes, e empregaram esforos de tocante eloquncia para o arrancarem s
unhas do povo. O triste contava ao padre-sargento e ao meirinho a mpia
espoliao que sofrera, ele, to amante da religio!, to fiel vassalo do seu rei!,
to devoto da nossa Senhora das Dores dos Congregados, como era pblico e
notrio!
Lgrimas e splicas inteis. Aconselharam-no que se acomodasse, para no
perder o precioso capital da vida. No tinha, porm, pernas que o levassem

dali, onde o infando crime fra perpetrado. Esperava ver o seu vizinho
barqueiro; talvez ele, por tralhas ou malhas lhe restitusse as suas aes da
Companhia, o penhor das suas choradas cem moedas. E esperou.
s duas horas da tarde voltava a plebe, pedindo cabeas.
Joo Antunes viu de longe o seu vizinho; correu a encontr-lo; mas o outro
no lhe deu grande importncia, posto que muitas vezes, a ttulo de vigilante
guarda da sua casa, lhe arrancasse para vinho alguns cobres, espremidos
primeiro entre os dedos avaros do merceeiro.

L vai! exclamou o barqueiro. Eu no lho disse?

Quem, Antnio? disse Joo Antunes.

O chanceler, o jacobino, o herege! Morra o chanceler, que nos queria

mandar arrancar na Relao por matarmos o jacobino da Bandeirinha!

Morra! Morra o chanceler! respondiam compactas centenares de

vozes roucas, cansadas, exalando a hlito ptrido de aguardente.


Vinha, pois, o enfermo chanceler numa cadeirinha para ser supliciado no
cadafalso raso, encharcado ainda de sangue das outras reses. O magistrado,
que motejara o aviso do Kgado, vinha quase morto naturalmente. Perto da
cadeirinha, avultava frei Manuel da Rainha dos Anjos, com o seu hbito, e
com a sua veneranda fisionomia, e corri a sua tocante eloquncia falando s
turbas, to depressa enfurecidas como amansadas, na sua estpida conscincia

dos deveres, Dizia o frade que conduzissem o preso presena do


reverendssimo bispo-governador, para ser mais solenemente sentenciado
pena ltima, se a merecesse. Recorrera o bom do religioso astcia, quando
viu impotente a palavra sacrossanta do seu ministrio de paz.
Joo Antunes presenciara a cena, e teve um desses palpites que assaltam raras
vezes o homem entalado nas costas do infortnio. S assim poderei salvar o
meu dinheiro!, rugiu ele l dentro das soturnas cavidades que o verme da
avareza lhe minara na alma.
E, chegando ombro a ombro com o barqueiro, disse-lhe ao ouvido:

Antnio!, queres ganhar vinte peas?

Ol se quero!... Quer o senhor Joo que eu d cabo de algum diabo-

alma?

No: quero que salves o chanceler.

Isso no pode ser!

Pode... recebes hoje mesmo as vinte peas.

Mas, senhor Joo, vossemec bem v que os capites do povo no sou

eu s; o Constantino, o Reteniz, o carniceiro e eu...

Pois d-se a cada um dos outros dez peas.

Dez pouco.

Doze.

Vinte, como a mim.

Vinte muito: quinze.

Espere a que eu volto j.

O barqueiro deu um assobio com os dedos; ouviram-se apitos semelhantes;


num segundo estavam todos quatro em conferncia, afastados um pouco da
populaa, que parecia comovida pelas instantes lamrias do confessor do
chanceler. Entretanto, Joo Antunes calculava... mas o parlamentrio no o
deixou tirar a prova real dos seus clculos.

Est dito: sessenta e cinco peas para rodos disse-lhe o Moiro ao

ouvido. O homem vai ser remetido ao bispo, e de l dem-lhe a escapula.


Sabia?

E no fazem isso pelas sessenta peas? uma conta redonda!

replicou jovialmente o usurrio.

Nada de regatear, senhor Joo! Se quer, quer; seno est ali, e est a

mergulhar no Douro!

Pois bem: est feito o contrato; mas tu nunca hs de dizer que eu te fiz

esta proposta.

No, que se vossemec o disser, no torna a dar um pio! Ouviu?

Ouvi: nem uma palavra a tal respeito.

O barqueiro fez um aceno ao tribuno-chefe, que era o carniceiro. O carniceiro


bradou:

Rapazes! O jacobino vai ser remetido ao senhor bispo-governador, para

ser condenado e justiado de modo que agrade santa religio e a el-rei, nosso
senhor. Deixemo-lo ir, e vamos dar cabo de alguns hereges, que ainda esto
na cadeia do outro chanceler da Relao, do abade de Lobrigos e do
Penteeiro. E victo srio! Neste homem ningum toca! Vai um dos chefes
acompanh-lo ao pao do senhor bispo. Que do Moiro?

Aqui estou!

Vai tu com ele, e viva o prncipe regente, nosso senhor!

Viva!

E viva a santa religio!

Viva!

E viva o povo portuense!

Viva!

Morram os jacobinos, os hereges, e os fidalgos que no so c da nossa

aquela de patriotismo!

Morram! A multido abriu passagem cadeirinha. Seguiam-na de perto

o frade, o usurrio e o barqueiro. Joo Antunes disse ao ouvido do frade:

Fui eu que o salvei.

Pois bom foi. Eu logo vi que a minha palavra era froixa para poder

tanto, sem auxlio divino.

No diga nada a vossa reverncia. Calemo-nos. Apeado da cadeirinha, o

governador das justias subiu as escadas do pao encostado ao confessor e ao


seu velho amigo bacalhoeiro.

Bem mo dizia vossemec, senhor Joo Antunes murmurou o plido

chanceler.

Avisei-o. Vossa excelncia riu-se de mim, e quem o salvou fui eu.

Vossemec?!

Sim, senhor.

Pensei que foram as exclamaes do meu padre confessor.

No gente disso... Boas exclamaes so o dinheiro.

Fez bem, meu amigo... C em cima falaremos... Quem aquele homem

que fica ao p da cadeirinha? Parece-me que um dos que me prenderam.

Tal e qual. Foi com ele que eu fiz o contrato da sua vida.

E ele vem buscar o dinheiro? Se o houver mo.. . seno eu lho darei l. No


ser necessrio... O bispo h-se ter dinheiro... muito?

Duzentas peas: so quatro os chefes; cinquenta para cada um.

Dera muito mais para no passar por este sobressalto: pela vida dera

tudo; e a obrigao em que me deixa o meu salvador no se paga com


dinheiro. Vossemec um honrado homem!
D. Antnio de S. Jos de Castro veio receber nos braos o governador das
justias.

Venho para vossa excelncia me sentenciar disse o magistrado.

Est sentenciado a ser meu hspede disse o bispo, sorrindo.

Pouco depois, foi chamado ao interior do palcio Joo Antunes, e recebeu


duzentas peas e um fervoroso abrao de gratido.
O usurrio vinha pelo ar, no obstante o peso. Lucrava cento e trinta e cinco
peas de comisso. Roubado em seiscentos mil ris, valor das aes da
Companhia, achava-se com duzentos e sessenta e quatro mil ris de mais?, em
indemnizao dos pontaps. Nunca to lucrativo lhe correra o negcio!
O barqueiro recebeu as sessenta e cinco estipuladas, e correu a distribu-las
mas no correu tanto que no entrasse numa taverna da Porta de Carros a
beber um quartilho do Alto Douro, enquanto Joo Antunes entrava nos
Congregados a rezar a estao quotidiana sua devotssima Senhora das

Dores. Feita a reza, entrou numa estalagem a dejejuar-se, e esteve em riscos de


perder a digesto com um par de murros, por desavenas com o estalajadeiro
a troco de uns quebrados no meio quartilho de vinho. Tinha magnficas
torpezas o Sr. Joo.
E, depois, correu a casa a saudar o sarcfago do seu dinheiro. Estava ali a sua
vida, o seu sangue, cuja correria ele ativou, engrossando-o com mais cento e
trinta e cinco peas, que entalou por entre as outras.
Quatro dias depois das gloriosa cenas que descrevi em face dos genunos
documentos, o exrcito francs acampava na Agra de S. Mamede, a meia lgua
do Porto. Travavam-se as primeiras escaramuas, em que a guarnio da
cidade sempre sovada, por assim dizer, a bofetes do adestrado inimigo.
deliciosa, porm, de sensato riso uma descrio dos sucessos, manuscrito
preciosssimo no seu gnero, estranho parto de mentira e pssimo estilo, que
devemos lucubrao ociosa de um frade, e que me veio mo por favor de
um ilustre antiqurio. Segundo ele, era um gosto ver fugir vinte mil franceses,
comandados por Soult, por Loison, por Delaborde, por Quesnei, e por tantos
outros dos que viram as pirmides e assustaram a Europa, abalada pelo brao
de ferro de Bonaparte. Eram estes os que fugiam a uma guarnio de seis mil
maltrapilhos, de trezentos padres, dirigindo a artilharia, composta por meia
dzia de obuses, que at ento serviram de lastro a navios mercantis, e para
esse efeito faziam amontoados em armazns de Miragaia! O bom do
historiador, no podendo combinar o sucesso da invaso momentnea com

rasgos de tanto patriotismo nos defensores, foge pela tangente da Providncia,


e diz que o Senhor nos quisera punir com o ltego da sua clera, representada
no marechal Soult. Seria isso?
Seria. No obstante, Joo Antunes, no dia vinte e seis, para evadir-se clera
do Senhor, que muito respeitava depois da Senhora das Dores dos
Congregados, quis passar a Vila Nova de Gaia, e de l farejar as vicissitudes da
guerra. Certssimo ia ele de que o seu dinheiro, sepultado quatro palmos
abaixo da crusta do globo, passara ao domnio dos mundos subterrneos,
onde s um furo ao alto feito pelos antpodas, poderia empalm-lo.
Felizmente o bacalhoeiro jubilado no sabia nada de antpodas.
O pior foi que o no deixaram passar para alm do rio. A plebe desptica
obstrura a passagem, quebrando a comunicao das barcas, e vociferava
contra a cobardia dos fugidios aos franceses, que no entrariam nunca no
Porto. Outros, menos, felizes do que o Sr. Joo Antunes, fugindo ao saque,
foram assaltados pelas guardas patriotas. Devemos acreditar piamente o
frade historiador: ...sendo outros logo na mudana esbulhados de parte do
seu precioso (pelas sentinelas), pretextando ser necessria a revista do que
levavam. Boa gente! H destes patriotas...
Soult condoera-se deste punhado de imbecis, que lhe faziam negaas das
destroadas baterias. Enviou ao Porto um parlamentrio, propondo uma
benfica paz. O parlamentrio foi despido das suas insgnias e acutilado. Um

legtimo rancor passou por cima da miservel defesa. Os franceses entraram,


como poderiam ter entrado quatro dias antes. Os bravos defensores
reservaram os derradeiros assomos de herosmo para a fuga, e valeu-lhes
muito a reserva. Fugiam intrepidamente. Diz, porm, o frade, que pelos
modos foi dos ltimos a fugir, que se fizeram a galhardias inauditas. E
justo, conta ele, mostrar posteridade o valor incansvel e a maior
intrepidez que assaz mostrou na Bateria 14 S. Pedro ao Lindo Vale o
padre Domingos de Queirs, natural desta cidade, e sargento da companhia
dos artilheiros eclesisticos, que fez sobre o inimigo o mais bem acertado
fogo, causando-lhe notvel dano, conservando-se com o mesmo valor e
intrepidez at entrada do inimigo, botando fogo plvora, de que se seguiu
a morte a muitos, e ficar todo queimado. Foi pena que ficasse queimado o
ilustre padre Domingos de Queirs, sargento de artilharia! Excelente pessoa!
Mcio Cvola de sotaina, que se queimou espontaneamente, instando consigo,
no sabemos quantos padres seus camaradas! Como tens sido ultrajado, mrtir
do Glgota, pelos que servem o azeite da lmpada do teu templo, h
dezanove sculos!...
Tentar descrever Joo Antunes, quando lhe disseram que os franceses
entraram pela Prelada, um absurdo.
Perdeu a cabea. Galgava o pequeno recinto da sua casa, de ngulo para
ngulo, com as unhas fincadas na cabea hirta. A Rua dos Armnios, h
pouco deserta, estava sendo passagem dos que fugiam do Cidral, do Monte

dos judeus e das travessas circunvizinhas.

ponte! ponte! era o grito de todos. Antunes teve um intervalo lcido:


fugir como os outros. O seu dinheiro ficava inacessvel ao saque: afora o
dinheiro, a velha roupa da cama, trs cadeiras desconjuntadas, no lhe davam
grande aflio. Um livro de assentos com algumas pblicas-formas de
escrituras, esse tomou-o ele debaixo do capote inseparvel, e entrou na
torrente dos fugitivos. A onda engrossava cada vez mais. A gritaria era uma
dissonante e infernal mistura de exclamaes! Crianas gritando pelas mes
que se esqueciam dos filhos. Velhos suplicando de mos erguidas aos filhos
que os no deixassem. Damas mimosas vagindo a cada pisadela, que lhes
esmagava o calado de seda. Mulheres esfarrapadas disputando, a murro, cada
passo, que davam no caminho da suposta salvao, Frades e freiras, soldados
e meretrizes, confundidos, embaralhados, rezando, praguejando, dando-se
proteo da Virgem, e invocando a omnipotncia de Satans.
E neste vrtice, que redemoinhava pela Porta Nobre, ia Joo Antunes
embrulhado, revolvido, ofegante, esfarrapado, furioso umas vezes, outras
contrito, fazendo promessas onerosas Senhora das Dores, e arrependendose da imprudente prodigalidade; rangendo os dentes de raiva a cada aperto, e
aventurando um pontap traioeiro na criana, que lhe tolhia o passo;
apertando ao peito o livro dos assentos e as pblicas-formas das escrituras, e
levantando, frentico, a gola do capote rebelde, que os empuxes lhe

desaprumavam do dorso derreado... Agonia indescritvel! Expiao


tormentosa de todas as maroteiras dos Kgados, desde o servo de D.
Moninho Viegas at ao sobrinho de Antnio Cabeda!
A enxurrada chegara ponte. Todos sabem como a se fizeram trs mil
cadveres. Os alapes estavam abertos, por descuido ou por traio. A
multido entulhou as barcas: o peso quebrou as entenas estrondosamente; as
fauces do abismo engoliram massas compactas, jorros de centenares de
corpos, famlias vinculadas no derradeiro abrao.
Se da aglomerao de gritos pde ouvir-se distinto um rugido inimitvel, esse
rugido foi de Joo Antunes da Mora.
Morrera um grande maroto; mas a espcie no se perdeu.

CAPTULO I

Os romances fazem mal a muita gente. Pessoas propensas a adaptarem-se aos


moldes que admiram e invejam na novela, perdem-se na contrafao, ou ho
de em pbulo ao ridculo. Nestes ltimos tempos, h muitos exemplos desta
verdade, e tanto mais sensveis, quanto a nossa sociedade pequena para se
nos esconderem, e intolerante para admiti-los sem rir-se. Homens, sem
originalidade, ou originalmente tolos, macaqueiam tudo que sai fra da esfera
comum. Crdulos at ao absurdo, aceitam como reais e legtimos os partos
excntricos de cabeas excntricas, e prometem-se dar tom a uma sociedade
mesquinha, onde no aparecem o Zaffie da Salamandra, o Trmor de Lelia, o
Brlart de Atar-Gull, o Vautrin do Pre-Goriot, o Leicester de Luxo e Misria,
enfim) o homem fatal. Estes imitadores so perigosssimos, ou irrisrios. No
topando na vida ordinria o lugar que lhes compete, querem conquist-lo por
fora. E, depois, das duas uma: ou atingem o apogeu da perversidade,
calcando a honra, cuspindo na face da sociedade, e caprichando em
abismarem-se com as vtimas; ou o que quase sempre acontece
imaginam-se homens excecionais, sonhando como Obbermann, raivando
como Hamlet, escarnecendo a virtude como Byron, amaldioando como
Fausto e acusando sempre o mundo ignbil que os no compreende.

Se vos impacientam reflexes, leitores, encurtemos o prefcio de uma


apresentao.
Quero mostrar-vos o Sr. Guilherme do Amaral. Ides conhecer uma vtima dos
romances.
Este rapaz, de vinte e tantos anos, da provncia da beira Alta. Nasceu e viveu
at aos dezoito anos na aldeia dos seus pais. Aos quinze foi a Coimbra estudar
preparatrios para formar-se em qualquer faculdade. Voltando de frias, viu
morrer a sua me, e, como j no tinha pai, emancipou-se aos dezoito. A sua
casa rende doze mil cruzados. Guilherme do Amaral considera-se livre e rico.
A sua paixo predominante no era a caa, nem a pesca, nem os cavalos: era o
romance. Comprou centenares de volumes franceses, leu de dia e de noite,
decorou pginas, que lhe eletrizaram o corao combustvel, afeioou-se aos
caracteres do grosso terror, como diz J. Janin; achou piegas o amor etreo de
Romeu, de Petrarca, de Bernardim, de Antony e de Rastignac...
Impregnado desta lio escandecida, olhou em torno de si, e viu-se s. Queria
mundo, queria ar, ansiava nutrio para a fome de impresses fulminantes.
Resolveu deixar a pitoresca aldeia, e escreveu sobre a campa da sua me um
adeus romntico, em estilo apocalptico, e tal que ela, se o ouvisse, no o
entenderia. Foi para Lisboa. Apresentou algumas cartas de valiosa
recomendao: teve excelente acolhimento. A sua entrada nos sales

impressiona os finos observadores, e no indiferente s mulheres. Isto


passa-se em 1843.
Guilherme do Amaral deve natureza alguns favores externos, que no
desmentem o molde interior em que ele ajusta a sua torcida vocao. plido;
tem olhos grandes, negros e ardentes; no os lana com a penetrao da
curiosidade, ou da anlise mordaz; ajeita-os a no sei que suave melancolia,
espcie de dolorosa intusceo, vista mais profunda para o ntimo de si que
para as indiferentes frivolidades, que o rodeiam.
No baile, passeia quase sempre fumando na sala deserta, onde se fuma. A
responde, na frase mais concisa, s perguntas benvolas dos que o intitulam
amigo, e ele apenas conhece, ou finge apenas conhecer. Se vem ao salo onde
giram as valsas vertiginosas, encosta-se ao batente da porta, amortece a vista,
inclina a cabea sobre o ombro, franze a testa como causticada pelo
aborrecimento, v o seu relgio, onde meia-noite, boceja como enfastiado, e
retira-se ao seu quarto. A abre um romance, e l at s quatro horas da
manh.
E vive assim um ano. No tem um amigo intimo; no tem uma mulher que
lhe queira; no conhece mesmo, dentre tantas, a organizao especial onde o
seu carcter poderia ajustar-se.
Algum dos seus conhecidos perguntou-lhe um dia:

Quantos anos tem, Guilherme?

Vinte e um.

H quantos anos vive na sociedade?

A minha sociedade no neste mundo.

Se assim dissesse o pontfice, corriam melhor as coisas da Igreja... O

senhor est cansado...

Estou.

Deve ter tido uma vida tempestuosa, terrveis naufrgios no mar das

aspiraes...

Sinto-me morto; mas no sei quando vivi.

Alguma existncia anterior atual. H homens que tm uma vaga

reminiscncia de uma vida anterior.

possvel?

No lhe dou como sistema a minha opinio; mas, ao v-lo de vinte e

um anos, amputado do grande corpo social, creio em todas as maravilhas da


metempsicose. Ram, em 184, julgava ser o Ramus de 1540. O pior que
morreu doido... Queira dizer-me: no ama?

No posso amar: ponho a mo sobre o peito, e retiro-a gelada.

Tem por consequncia uma imagem quimrica, que o furta aos amores

mais ou menos sensuais deste mundo?

Sonho uma imagem: no a encontrarei na face da terra.

Que juzo faz das mulheres deste globo?

Pssimo: mentira, matria, venalidade, corrupo.

Tem-nas experimentado?

No: no quero. H em mim a preexistncia de todas as desiluses. A

cobra cascavel pressente-se de longe pelo rudo que faz, rojando-se. Dispenso
as experincias ociosas.

Deve parecer-lhe bem infame este mundo! Como julga os homens?

Como os julgou Vautrin, o homem estoico de Balzac.

Vautrin m autoridade; se bem me recordo, era um forado das gals.

Que importa! A desgraa desvendara-o: tinha a cincia das lgrimas:

fez-se um filsofo, mais crvel que Rousseau, nas longas viglias do seu
infortnio.

Quer adot-lo como mestre?

Sou absolutamente original: no estudo ningum.

Amou?

Nunca: penso que j respondi a essa pergunta.

No tinha ainda respondido. Eu, na sua posio, recolhia-me tebaida

da minha aldeia. A vida de Lisboa deve provocar a sua intolerante indignao.

No vejo essa vida provocante. At hoje, a vista do meu esprito no

desceu. A guia, por enquanto, libra-se entre as nuvens. Quando descer,


deixarei um rasto de sangue...
O interlocutor de Guilherme do Amaral sorriu-se. No dia seguinte,
reproduzia-se nos cafs, nas praas, e nas salas o dilogo, recebido com
gargalhadas. O provinciano, empalado na mordacidade sarcstica do seu
conhecido, passou ao domnio do ridculo, do desfrute, como diziam
maviosamente as mulheres, j de si indesfrutveis. Um literato denominou-o
Vautrin de cuecas; outro, Artur de feira da ladra; outro, Byron de escabeche;
outro, Zaffie de tamancos; outro, Leicester empalhado. Esgotaram todos os
pseudnimos da caricatura; inverteram em irriso a funeral seriedade do
provinciano, imolando-o zombaria das mulheres como um suplcio
merecido, por ousar ultraj-las.
Um folhetim, sem personaliz-lo, escrito por certo Maxime de Trailles (vide
Balzac) que ento era o primeiro no estilo da zombaria, e no sarcasmo oral,
hoje, espcie de conde Talorme de Mery (vide Amor e Roma), exerce as
funes diplomticas do seu modelo... esse folhetim, acinzelado de modo que
no escondia a menor feio de Guilherme, deu ao provinciano a publicidade
galhofeira, para ele no tinha ainda, fra de uma pequena roda. Para maior

afronta, remeteram-lhe o jornal em carta fechada, aconselhando-o que


deixasse Lisboa, e voltasse ao ninho seu paterno a cultivar o repolho e a
batata. Os chascos, as ironias e as injrias eram-lhe a to custicas, to
pungentes sua vaidade, que Amaral, juvenil de mais para sacudir a farpa,
sentiu-a no corao, envergonhou-se de si prprio, concentrou-se na
conscincia da importncia que lhe davam, e arrependeu-se de ter parodiado,
tanto letra, os monstruosos moldes dos seus romances.
Estava, portanto, o aflito rapaz muito longe do cinismo indispensvel para
arrostar as insolncias do folhetinista, justamente aquele que lhe arrancara,
num dilogo, as extravagantes teorias.
Guilherme do Amaral, os poucos dias que esteve em Lisboa, viveu-os
encerrado no seu quarto de hospedaria. Ningum o procurou durante esses
dias; mas, na vspera da sua sada, quando visitava, despedindo-se, as pessoas
que o apresentaram, encontrou uma, que lhe disse o seguinte:

Faz bem saindo de Lisboa. Isto aqui no o que a vossa senhoria

imaginou de l. As excentricidades so aqui bem recebidas; mas necessrio


que o excntrico no toque na chaga irritvel desta gente. Vossa senhoria disse
ao seu amigo, ou conhecido... que as mulheres eram a mentira, a venalidade e
a corrupo. Disse, talvez, a verdade; mas isso no se diz a toda a gente. O
excntrico pode embriagar-se todos os dias, que ningum por isso o
ridiculariza: o mais que fazem lament-lo. Pode ser desordeiro, e visitar

todas as noites o corpo da guarda, que ningum o achincalha. Pode calotear,


seduzir, infamar reputaes... no por isso expulso pelo marido da mulher
infamada; o que, porm, no pode, fitar a luneta com soberano desprezo nas
mulheres das salas, e dizer: Tudo isto me enoja. O senhor clebre: ,
talvez, um ctico, exagerando a moda; seja-o muito embora, mas no o diga
aos homens, diga-o s mulheres, que, muito longe de se ofenderem,
lisonjeiam-se com a esperana de o conquistarem, galvanizando-o fora de
descargas eltricas, de sorrisos voluptuosos. Est cansado? Deite-se, durma,
no venha sociedade, aplique-se os tnicos gerais da solido, que vigorizam
o esprito e convalescem os desejos saciados. A sala no serve para todos.
Ora, se o seu cansao uma fico, um irrefletido amor de celebridade, como
amigo lhe aconselho que se deixe disso. Viva como toda a outra gente.
Coma, beba, durma, ame, aborrea, seduza, infame, defenda as mulheres
infamadas pelos outros, bata-se com os maridos das suas condessas de
Restaud, jogue a sua casa, indemnize-se das perdas, imitando o seu censor, o
signatrio pseudnimo do folhetim em que a vossa senhoria
zombeteiramente pintado... Quer o meu amigo a celebridade do salo? Nada
de convcios e recriminaes contra as mulheres. Profundo silncio com os
homens; mas, com elas, uma eloquncia lnguida, uma lamuriante saudade por
um anjo, que sonhou aos quinze anos, de modo que, bem apurada a viso, o
anjo venha a ser a mulher com quem fala, e pouco depois a outra com quem
falar, e depois a outra, at dona da casa, embora tenha cinquenta anos. De

cara a cara, sem testemunhas, pode-se dizer a uma mulher tudo, que afronta o
seu amor-prprio: ela sofre, cala-se, e resigna-se; mas, diante de um homem,
isso muito srio. Est provado por isso que a honra no est na conscincia,
est na opinio pblica: ns sentimo-nos desonrados quando os outros dizem
que o fomos. Ao ouvido de uma mulher, diga-lhe: Vossa excelncia
mentira, venalidade, corrupo; ela rir-se-, se estiver perfeitamente
desenvolvida; e, se o no estiver, cala-se por vergonha, e desenvolve-se; aos
homens, nem uma palavra em desabono. Se lhe convm dizer que as suas
iluses morreram de apoplexia fulminante, diga-o sem entono dogmtico, sem
o pedantismo chulo de certos parvos que do prelees de ceticismo no
alcoice, encostados ao ombro nu das mulheres perdidas. No sei que mais lhe
diga. Nada de arremedos. Leia, mas no imite; e, a querer sair da natureza,
invente alguma novidade, que o no comprometa com os caprichos da
opinio em voga. Se moda ser ctico, seja-o, mas v dando provas de que
acredita como S. Tom, ao menos naquilo que toca... O meu amigo, seja feliz.
Se no h nada a esperar dos meus conselhos, stulta est gloria... pior para si...

Quarenta e oito horas depois, Guilherme do Amaral, prodgio de memria,


repetia, num quarto de hospedaria, no Porto, a lio do seu oficioso
preceptor.

CAPTULO II

No caiu em terra ingrata a semente. Guilherme do Amaral, como todos os


homens sem originalidade, indefinidos na conscincia prpria, bisonhos da
experincia das coisas, que individualiza a ndole das pessoas, aceitou as
teorias do cavalheiro lisbonense como boas para o uso ordinrio, sem
contudo sarem da esfera extraordinria.
O que repugnava ao provinciano era a vida comum, o vegetar trivial das
vocaes vulgares, o insosso desperdcio de jbilos tolos, e de aspiraes
tacanhas em que a mocidade consumia o vigor do esprito entre o
contentamento de vestir uma casaca elegante e as douras de ver tarde o
namoro na janela. Viver feio das mximas, que o amigo condodo lhe dera
em Lisboa, convinha-lhe, frisava com a sua nova ndole, poupando-se irriso
com que fra galardoado por inexorveis crticos, que no valiam, ao meu ver,
tanto como ele, e larga indemnizao de ridculo teriam de dar-lhe, se Amaral
lhes pedisse meas.
Guilherme no conhecia ningum no Porto; mas, mesa redonda da guia de
Oiro, encontrou rapazes de provncia, seus conhecidos da feira de Viseu, j
relacionados no Porto, e prontos a apresent-lo aristocracia, mediocracia, e
populao importante dos botequins. Guilherme no rejeitou.

Dava um baile nesses dias o baro da Carvalhosa. Um cavalheiro de Viseu


pediu uma carta de convite a um seu amigo, provinciano, rico, valendo o
melhor de trezentos mil cruzados, solteiro, muito sisudo, e excelente partido
para uma menina. O baro deu pressurosamente a carta, e foi repetir
baronesa as informaes que ouvira. Ultrapassando as leis da etiqueta, foi
deixar um bilhete a Guilherme do Amaral. Na vspera do baile, recebeu com a
mais expansiva cordialidade o provinciano, apresentando-o sua mulher, e s
suas duas filhas, e convidando-o para o jantar do aniversrio da sua filha
Margarida, no domingo posterior ao baile. Tudo isto parecia uma boa estreia a
Guilherme. Agradava-lhe a franqueza da sociedade portuense; mas dispunhase a no desmentir a melancolia do seu novo sistema, nas libaes prazenteiras
de um festim.
Uma hora depois que Amaral entrara no baile do baro da Carvalhosa, todas
as mulheres sabiam que o provinciano era solteiro, rico, e muito sisudo.

Dizem que rico murmurava ao ouvido da sua amiga uma

interessante menina de olhos lnguidos, tez macilenta, e sorriso melanclico.

J ouvi dizer respondeu a prima.

Ouviste!? E ser muito rico?

Penso que sim; meu tio conselheiro falou em trezentos mil cruzados.

Sim?! No ter namoro?

Penso que no, ao menos no Porto. Disse a Margaridinha que tinha a

certeza de que no.

Queres tu ver que ela...

Tem as suas vistas? Acho que sim...

Mas ela no namora h trs anos o Henrique de Almeida?

Que isso? um passatempo.

Pensei que era um namoro srio. O Henrique de Almeida um rapaz

de talento, e boa figura...

E que mais?

No tem trezentos mil cruzados; mas...

Mas... ficas a. Porque no namoras tu rapazes de talento, que h tantos

disponveis por a? Eu sei de dois ou trs que te fazem versos, pintando-te de


modo que quem te no conhecer, julga que tu no s personagem deste
mundo, e andas por aqui nos bailes mundanos fugida da corte celestial...
Sempre s, Francisquinha!... M... eu bem sei onde queres chegar...

fcil de saber... O caso que a tua palidez romntica, os teus olhos de

virgem da saudade, o teu sorriso de dolorosa resignao tem enganado muita


gente, e tu, no fim de contas, s como eu, como minha prima, como deves
ser... V como ele olha para ti...

Ele! quem?

O tal parvalheira.

Ah!... Eu no lhe acho nada de parvalheira.

Sim? Ainda bem...

Veste com certa elegncia...

Mas no vem frisado, nem traz gravata branca.

o bom tom. Fica-lhe to bem aquele desalinho... Eu gosto daquilo! E

ele olha para mim?...


E muito! Francisquinha, eu vou erguer-me para dizer alguma coisa minha
tia; hs de ver se ele me segue com os olhos.

Pois sim. Demorou-se alguns segundos, com a tia, mastigando uma

frioleira.

Sim? perguntou ela de l com os olhos.

Sim respondeu a prima vigilante com um gesto afirmativo,

Aproximaram-se.

Vamos agora para a outra sala, e veremos se ele me segue.

Foram: mas Guilherme do Amaral no se deixou da postura sombria em que


o deixaram encostado ao alisar de uma janela.

Ele no vem! disse a menina plida, mordida na sua vaidade.

Chama o teu mano, que est ali.


O mano veio.

primo, j conhece um rapaz da provncia, chamado Guilherme do

Amaral?

J me foi apresentado. Quer que lho apresente, prima?

No... Ele parece triste...

; mas muito agradvel, e diz muito bem o pouco que diz. Pode ouvir-

se falar. Quer que lho apresente?

No, primo... Ouvi dizer que a Margaridinha...

seu namoro? Isso uma calunia. O rapaz veio h cinco dias de

Lisboa, e no teve ainda tempo de tirar o corao da bagagem.

Tem graa! Que diz ele das senhoras do Porto?

Diz a verdade: que so belas, elegantes, espirituosas...

Com quem falou ele j?

Isso no sei: mas se ele falar com a minha prima, confirmar o justo

conceito que lhe merecem as senhoras portuenses. Quer que lho apresente?

No! Olha que cisma! Acha que estou morta por falar com ele?!... Sabe

se ele se demora no Porto?

No sei, minha amvel prima; decerto se demorar se os seus olhos o

prenderem.

Bonito! Est de acar em ponto! Ora diga-me: ele no dana?!

No sei, prima.

Ainda o no vi danar... Pergunte-lhe...

Quer ser seu par, priminha?

Eu! Que seca! Acha que estou morrendo de amores por ele?

No digo tanto; mas ... confesse que simpatiza...

No antipatizo... -me indiferente... Ele a vem.

Apresento-lho?

Ora!... Guilherme do Amaral, passando pelo cavalheiro que conhecia a

sua prima a fundo, deu-lhe um sorriso de cerimoniosa graa, com um ligeiro


cortejo de cabea s damas.

Senhor Amaral disse ele , consinta que o apresente minha prima

e minha mana.

E uma honra que me lisonjeia muito. Vossa excelncia parece que tem

piedade de um forasteiro, relacionando-o com pessoas to estimveis disse


Amaral.

Segue-me que no sou egosta: quero que todos, e especialmente quem

pode compreender-lhe o merecimento, sintam o prazer das suas relaes. A


minha prima considero-a nesse caso; minha mana... minha mana, e seria
irrisria a sua apologia na minha boca.

Ora o primo!

Ora o mano!

Murmuraram ambas, requebrando-se com certa galanteria j muito velha.

Creio que lhes fez justia, minhas senhoras disse Guilherme,

alisando a luva da mo esquerda.


A orquestra anunciara uma polca. D. Francisca foi roubada ao grupo pelo seu
cavalheiro. A prima no estava comprometida.

Eu no aceitei par disse ela. e a vossa senhoria no vai danar?

No, minha senhora; eu no dano. No! No gosta!

O primo apresentante retirara-se. Guilherme ofereceu o brao lnguida


Ceclia, conduziu-a a um sof e sentou-se na cadeira prxima. Em frente desse
sof viera sentar-se.

O baro com duas amigas. Margarida, agitando aceleradamente o leque,


revirava os belos olhos sobre Ceclia, e dizia s amigas com forada graa
alguma stira que as fazia rir. Ceclia fez-se desentendida, olhando vagamente,
de vez em quando, para elas, e deleitando-se mais com o frmito do leque em
estudados movimentos do que, ao que parecia, com a conversao do
cavalheiro.
Pelo que vejo, um baile deve ser-lhe uma coisa muito aborrecida! replicava
ela s razes que Amaral lhe dera de no danar.

No aborreo os bailes, minha senhora. Gozo; mas o meu rgo do

gozo um sexto sentido, todo espiritual, todo celeste. No preciso fatigar-me,


nem comprimir ao seio as flores, que vicejam nos cabelos de um anjo, para lhe
aspirar o perfume. O hlito do homem uma profanao. De longe, recebemse mais fortes as sensaes, e o esprito est mais seu, mais desembaraado
para sabore-las.

E sente muito?

Muito.

Pelo passado, pelo presente, ou pela esperana?

O meu passado uma peregrinao nas trevas, procurando a luz.

E encontrou-a?

No a encontrei. Sentei-me fatigado beira do meu trabalhoso

caminho, e esperei. O presente uma nsia do infinito, uma sede de amor,


uma splica fervente de quem pede ao cu o orvalho, que faz reverdecer a flor
queimada.

E o cu no o escuta?

surdo: os anjos j no pedem pelos homens...

E a esperana? E um tmulo que vejo no meu abismo! Que ideia to

melanclica! No pense assim! H de encontrar uma larga indemnizao aos


seus sofrimentos... Vejo que tem muita, mas muito triste poesia no corao...

E a poesia da morte, a grinalda de flores, que vem com a mortalha, a

flor sem brilho que despontou sobre a sepultura... Entristeo-a, minha


senhora?

Muito! Comeo a interessar-me, a compartir dos seus sofrimentos...

Ainda que quisesse ser alheia s suas dores, no poderia.

Agradeo, como se agradece uma gota de gua no deserto, a sua

piedade. Vossa excelncia tem sofrido?

Eu!...

A sua palidez parece-me o colorido que deixam as lgrimas na face no

aquecida ao sol da Primavera dos amores.

Viu a minha alma, senhor Amaral.

Amou?

No amei, se o amor s possvel na terra. Cr nas vises? Eu tive

uma; devorei-me em mentirosas esperanas, procurando-a... No a vi em


formas humanas.

Encontramo-nos, pois, beira do mesmo abismo...

o que eu ia dizer-lhe...

No temos lugar neste festim servido pelo acaso, ou pela Providncia.

Somos almas expulsas da unio dos corpos: vagaremos de esfera em esfera


com os coraes abertos para recebermos a metade da existncia que no
tivemos aqui.
E certo que nunca a teremos?!... Impossvel! No diga isso... no queira ser o
algoz de uma esperana, que me fala no corao, como o eco delicioso das
suas palavras.

E uma esperana, que mente.

Deixe-me sonhar uma ventura, que julguei impossvel at este

momento... que o despertar converte em realidade de espinhos.

Deixe-me crer que h no mundo quem possa levant-lo desse

abatimento.

invocar o morto, sobre que pesa uma loisa menos pesada que o

esquecimento.
O cavalheiro de Lisboa era capaz de meter, num abrao entusiasta, duas
costelas dentro ao discpulo, se pudesse presenciar o dilogo, que o leitor
decerto no entendeu melhor que eu, nem melhor que eles.
Entretanto, Margarida, visivelmente despeitada, dizia s amigas:

Que estar dizendo aquela tola?

Naturalmente, umas palavras do ar que ela l sabe, e s ela entende.

meninas! disse a filha do baro. No o veem a ele, que parece

que est a dormir? Olhem que modo aquele de encostar-se! Parece que se
deita sobre o ombro dela!

Aquilo so posies romnticas.

Acho-as indecentes! E ela!... Forte pateta! Como pende a cabea

enternecida... Pensa que se gosta muito daquelas gaifonas!... Tem feito aquilo
com dzia e meia de namoros que lhe tenho conhecido. A mania dela que
ningum compreende o seu corao. Trs dias antes de algum baile, no come
nada, e bebe vinagre para se fazer macilenta, e dar aos olhos aquele pasmo de
coelho morto. Sempre se veem coisas! No tem nada de seu, e imaginou que
arranjava marido rico e novo com aquelas momices estudadas ao espelho.
Como no acha seno poetas pobres que lhe faam corte, e esses no lhe

convm, vira-se para os brasileiros, e diz l umas trapalhices, que ela sabe, a
homens, que vm perguntar ao meu pai se ela tem legtima. Pensa a tola que o
parvalheira est morrendo por ela! Em ele sabendo a peseta que ali est, h de
chorar o tempo que tem desperdiado com ela...

Tu tens cimes, Margaridinha...

Eu! De qu? Bem me importa a mim. que me custa a ver aquela

poetisa de gua doce, pronta sempre a meter-se cara de todo o homem que
rico. Aquilo uma vergonha para o nosso sexo; pois no assim?

Tens razo, menina; eu, se fosse a ti, desenganava-o.

Tomara eu ter quem lho dissesse; mas no queria de modo nenhum que

se suspeitasse que eu tinha interesse nisso.

Queres tu que o Mesquita lho diga? Eu j os vi juntos, e no h nada

mais fcil ... Pode ser que ainda hoje se falem... Ah!, ele est acol ...
A servial amiga pediu a um cavalheiro que chamasse o indicado Mesquita,
seu conhecido namoro. Falou-lhe quase ao ouvido alguns minutos. O
submisso emissrio partiu, lisonjeado da comisso.
Ceclia retirara-se pelo brao da prima, a quem dizia: Aquele homem um
anjo: encontrei sobre a Terra o meu sonho; amo-o com delrio, com
clemncia, com frenesi.

Mesquita sentou-se ao p de Guilherme, que ficara, aparentemente, absorvido


num dos seus espasmos adquiridos pelo hbito do arremedo.

Parece que est triste, senhor Amaral...

Um pouco triste. Em mim normal esta situao.

Quem vem de Lisboa, onde todas as damas so fsica e moralmente

interessantes, deve achar bem fastidiosos os nossos bailes...

Pelo contrrio. Agora mesmo acabo de ouvir uma senhora que tem um

sistema divino de exprimir-se.

Dona Ceclia Pedrosa?

Penso que sim; no lhe sei ainda o nome, porm deve ser essa, porque

as informaes que lhe dou no podem caber a muitas, sem que eu queira
menosprezar as outras. aquela que ali vai de vestido escarlate.
justamente. E muito espirituosa; pena que seja to leviana.

Leviana? Que leviana na sua opinio, meu caro senhor?

uma mulher, que tem tido trinta namoros; que diz a todos a mesma

pgina de um romance, que decorou; que namora hoje um poeta, que lhe
chamou Safo, amanh um estpido, que lhe passou duas vezes a cavalo
porta; depois um delegado com esperanas de ser juiz; depois um brasileiro
com cinquenta contos, etecetera, etecetera, e diz a todos que no foi
compreendida at ao momento em que os encontrou. Todos eles, exceo

do poeta, que a ostra do sentimento, retiram-se do melhor modo que


podem, e ela fica sempre esperando o ltimo com dinheiro, para ser
compreendida. uma tola excntrica!
Guilherme sorriu-se, e convidou o informador a passearem na sala do fumo.
Esperava este alguma expanso do provinciano a respeito de Ceclia; mas o
precavido Amaral nem uma palavra aventurou.
Entrava um jornalista, justamente o poeta caudatrio de Ceclia. Mesquita, no
desempenho da sua melindrosa misso, queria desempenhar-se com destreza.
Para justificar a opinio que dera de Ceclia, apresentou a Guilherme o
jornalista, e perguntou-lhe:

Namoras ainda Ceclia?

Hei de namor-la toda a minha vida.

Mas sempre infeliz Otelo, atraioado sempre!

Que me importa a mim?! Tu no compreendes como eu amo aquela

mulher.

Delirantemente.

Qual delirantemente! E uma especulao literria.

No entendo; e a vossa senhoria entende, senhor Amaral?

No, senhor.

Eu lhes digo. O meu amor quela mulher tem quatro estaes em cada

ano, e cada estao tem trs meses. Amo-a em Janeiro, Fevereiro e Maro.
Cada semana, escrevo-lhe uma poesia palpitante de ternura. No fim de trs
meses so doze poesias. Depois, Abril, Maio e Junho, so para o cime:
escrevo doze poesias enfurecidas, ttricas, e incisivas como o rugido do chacal
ao qual roubaram a fmea. Julho, Agosto e Setembro, escrevo doze poesias de
ceticismo, estilo hbrido, despedaador, lancinante, custico, enfim, um qurie
de insultos contra as mulheres. Em Outubro, Novembro e Dezembro,
escrevo doze poesias de desalento, estilo lamuriante, pieguice brava, um
memento de fazer chorar as mulheres dos nossos alfaiates, um adeus de
Chatterton vida, uma maldio de Gilbert sociedade, uma coisa horrvel
que eu escrevo sempre depois de jantar, com o pesadelo de uma digesto
laboriosssima. No fim do ano de quarenta e oito semanas, tenho quarenta e
oito poesias, que vendo a um editor por cinquenta moedas, o mnimo.
Compreenderam-me agora?
Mesquita ria desentoadamente; Guilherme respondeu com um quase
impercetvel sorrir de desprezo, que o jornalista recebeu como recebia os
desdns desprezadores de Ceclia. E prosseguiu, voltando, em desforo, as
costas ao parvalheira ignaro e soez como ele esperava brevemente intitul-lo
numa coleo de quadras chistosas, dignas de Tolentino.

Agora diz-me tu, Mesquita, se esta mulher no uma preciosidade!

prosseguiu o jornalista. Quando os poetas, mingua de inspirao, se

calam como as cigarras em Setembro, eu canto todo o ano, e j vou no


terceiro da publicao da minha atormentada existncia. Sem Ceclia, acredita
que eu no fazia um verso, e Ceclia, sem mim, acredita tambm tu que no
teria uma quadra sria, nem uma imortalidade to barata. Ora, assim que se
ama: tudo que no isto, ser inferior ao sculo... Plaudite cives! Temos
sanduche e vinho do sculo XVIII. No se fala mais de mulheres: cedant
arma!
E encastoou a luneta no olho direito para medir a profundidade do tabuleiro e
a legenda das garrafas.

CAPTULO III

Mesquita j tardava ansiedade de Margarida. As informaes obtidas no lhe


pacificaram a caprichosa curiosidade. Disse que Guilherme elogiara
ardentemente a esperteza de Ceclia. Alegou, como servio, o episdio do
jornalista, do qual no colhera o fruto desejado. Na opinio dele, informador,
Amaral

amava

escandalosamente

Ceclia,

fascinado

empalmada

nos

pela

verbosidade

romances.

das

Margarida

bas-bleu,
arquejava,

disfarando com o leque o rubor, que lhe no ia mal no rosto, de um branco


desbotado. Ergueu-se com a energia de uma resoluo irrefletida, e
desapareceu entre os grupos, encostada ao brao da sua prestante amiga. Ao
passarem de uma sala para a do toucador, viram noutra, menos frequentada,
Guilherme do Amaral e Ceclia, de brao dado, e um ar de inteligncia
misteriosa na conversao, como se pudessem, sem escndalo, namorados de
trs anos, em vspera de noivado, passear assim juntos, ss e ntimos!
Margarida, enraivecida por to srios estmulos, esqueceu-se de afastar da
ponta do p impetuoso a primeira roda de folhos do vestido, e entalou-se de
modo que lhe foram na ponta do sapato de cetim branco. Assanharam-se as
iras. Fugiu-lhe dos lbios nacarinos uma exclamao colrica, de tal
indecncia, que ningum ousaria esper-la deles, a no ser a inseparvel amiga,
que no tinha nada a estranhar, nem explicaes de palavras equvocas a pedir.

Na saleta do toucador estavam senhoras, trocando-se mutuamente os favores


do enfeite. Esta, a quem uma espiral de cabelos encaracolados a ferro cara nas
evolues da polca, faltava-lhe chorar, porque a trana rebelde no cedia ao
afanoso encaracolar dos dedos. Aquela, amarrotada na manga perdida do
vestido de rendas, ansiava querendo retirar-se do baile. Aquela outra desairada
de um ombro, porque o decote do corpete de cambraia lhe fugia da linha
artstica da espdua, rogava pragas Guichard. Faltava Margarida com o seu
quinho de amargura.
No era, porm, o rasgado folho do vestido o que lhe fazia saltar o corao de
encontro s barbas de baleia. Queria-se s com a sua amiga. Passaram, por
isso, ao quarto imediato, onde as criadas, de ccoras e s escuras, espreitavam,
rindo sarcasticamente dos infortnios das damas desarvoradas.
Intimou-as para que sassem, e desafogou a boa alma comprimida nestes
anglicos queixumes:

Aquela trapalhona faz-me subir a coca ao nariz! H de ouvir-me, ou eu

no hei de ser quem sou... Eu farei que ela no torne a pr o p na minha


casa... s minha amiga, Cristina?

Vem a tempo essa pergunta... Que queres tu? Uma carta annima?

Por agora no; o que eu quero que digas Ceclia que eu preciso falar com
ela em particular.

Agora?!

Sim; pois porque no h de ser agora?

E aonde?

A fora nessa saleta. Vais?

Vou; ponto que ela esteja desengajada da contradana que vai

principiar.

Depressa. Cristina encontrou Ceclia na mais sentimental das atitudes,

suspirando palavras, que Amaral escutava, passando com uma certa


displicncia as mos pelos longos feixes da cabeleira.
Ouvido no meio segredo o recado, Ceclia, com uma graciosa curva, pediu
escusada vnia ao provinciano, e entrou na toilette, onde se achou sozinha
com Margarida.

Preciso que nos entendamos, Ceclia disse a filha do baro, atirando

com uma perna para cima da outra, mau hbito adquirido com o exemplo da
sua me, que nunca o pudera esquecer dos seus bons tempos de tecedeira.

Que nos entendamos?! Faz-me rir esse ar de imperiosa formalidade

com que me intimas!

Nada de palavres; fala como a outra gente; eu no leio nem decoro

novelas.

Pior para ti, menina, que no tens gosto, nem memria. Ora diz l, sem

te azedares: que temos de misterioso, para que nos entendamos melhor do


que nos temos entendido at aqui?

Quero falar-te a respeito desse sujeito, que tu no tens largado esta

noite.

Que eu no tenho largado! Acho muito licenciosa a frase! Eu no

agarro ningum, menina!

Nada de risotas. preciso que saibas que tal homem no velo a minha

casa para te dar um rendez-vous.

Nem eu quero imaginar que a tua casa tenha servido de rendez-vous a

algum. Seria rebaix-la muito! ... Queres tu dizer, Margarida, que o tal sujeito
teu namoro?

No sei se , nem se no .

Queres, pois, que eu lho pergunte? No tenho a menor dvida. As

amigas servem para as ocasies.

Ests a gozar comigo?

No estou a zombar contigo. Isto em mim ignorncia do fim a que

queres chegar.

Pois a bom entendedor meia palavra basta. No te faltam namoros

antigos. Andam nessas salas s dzias; escusas de andar pesca de homens


com as tuas caramunhas romnticas.

pesca de hoyiens. Ds-me honras de Clepatra, que dizem que

pescava imperadores romanos...

A vens tu com a tua cincia, e a tua cincia no te vale de nada. Pensas

que os homens ficam a morrer de amores quando te ouvem, e so os


primeiros a rir-se.

Pacincia, menina! Que hei de eu fazer-lhe! Ainda bem que a tua

ignorncia os faz chorar de pena...

Cuidas que o Guilherme te d grande importncia? No h muitas

horas que ele esteve a rir-se de ti na sala, onde se fuma, com outros rapazes.

Ora vejam que mau! Sou ridcula aos olhos dele?

s.

Pois ento que receias da competncia, Margarida? A gente tem cimes

de quem nos prevalece em merecimentos. Eu, pobre mulher, de quem um


homem escarnece, poderei ensaiar a estpida vaidade de to usurpar?... No me
entendes? Eu me explico doutro modo...

No preciso; eu no sou to ignorante como tu me fazes. O que te

digo que percas as esperanas...

De qu? Da conquista?

Sim.

Esto perdidas, minha querida amiga; mas ainda assim, quero ver

morrer a minha iluso com herosmo. j agora que me picas o amor-prprio,


hei de ver at que extremo sou vtima da zombaria de Guilherme...

Queres dizer que o namoras? atalhou a inconsequente caluniadora,

batendo com o leque no joelho.


Quero dizer que me ofereo voluntariamente ao sacrifcio. Parece-me que o
nosso Pris melanclico. Simpatizo com ele, desejo-lhe bem, e, se posso serlhe um motivo de riso, consigo roub-lo sua tristeza, e tenho-lhe feito um
bom servio, no achas? Acho que s uma grande tola, o que eu sei.

Tens razo: sou urna grande tola em te ouvir. Boas noites, Margarida.

Hs de ouvir-me mais duas palavras...

S duas? Pois sim, mas no me amarrotes os punhos do vestido. A

gente no se agarra assim como as mulheres da porta da rua... Margarida


corou, compreendendo a pungente aluso sua me.

Eu te prometo que o teu namoro comeou na minha casa, e na minha

casa h de acabar.

E que mais?

Ele h de ter muito quem lhe diga o que tu tens sido.

E que tenho sido eu, Margarida?

Uma leviana, uma doida.

Muito agradecida. Mais nada?

Agora, boas noites.

Pois sim, boas noites; mas no perders muito tempo, ouvindo-me

tambm duas palavras. Eu tinha a perguntar-te, minha ajuizada menina,


quando devo entregar-te um mao de cartas, um cordo de cabelo, uma
charuteira de massa e uma anel de oiro, que certo cavalheiro da provncia
remeteu ao meu mano, para que te entregasse. No te perturbes, menina; so
fraquezas que reciprocamente nos perdoamos: tens tido os teus acessos de
leviandade e doidice, mas isso no diminui o teu merecimento. Os objetos que
eu possuo so coisas que comprometem uma menina, se ela no tem bolsinho
prprio para comprar uma charuteira com a bonita pintura de Susana no
banho, e um anel com um brilhante de algumas moedas; mas, enfim, coisas
passadas entre mulheres no transpiram de ns, que nos protegemos na nossa
fraqueza. Queres isto amanh?

Tu pensas que me aterras com todo esse palavreado? Estou na mesma.

Isso sabia eu, Margarida; tu no te aterras facilmente, nem tens as

virtudes da Fedra.

Da...?

Era c uma mulher que dizia que no era daquelas, que, vergonhosa paz

tendo no crime, sabem ter um rosto que no cora jamais.

Ests-me insultando?

No, menina. Para que ergues assim a voz?

Posso erguer a voz, que estou na minha casa.

Mas eu que no tenho obrigao de ouvir-te...

Mas tens obrigao de ter vergonha.

E tenho-a mais mortificadora do que tu.

Do que eu?

Olha que vamos descendo ao nvel de regateiras... Adeus.

A melhor parte do dilogo fra ouvido no s pelas criadas, vizinhas da saleta,


mas por um rancho de senhoras, que pararam, perplexas, quando entravam.
Ceclia chamou o seu pai, que jogava o bstone e saiu pelo brao de um
cavalheiro, encarregado das honras do baile.
Passando por Guilherme, que fumava no corredor da sada, parou, desligou-se
do condutor, e disse-lhe a meia voz:

Se me escarneceu, fez mal, que eu no lhe merecia o escrnio; se o

caluniam, no lhe digo que se justifique, porque o tempo h de justific-lo.


Boas noites.
Amaral pasmou, e emudeceu; depois saiu. Um quarto de hora passado, sabiam
todos os homens e mulheres a descompostura que as duas damas se deram,
por causa do parvalheira melanclico.
O jornalista tirava apontamentos para uma stira, que fez as delcias da
maledicncia, e quase o expulsou dos bailes do baro. Este, sabedor da
pouca-vergonha, como ele classicamente denominava o sucesso, deu ao
diabo os bailes e as mulheres. Margarida retirou-se, incomodada, para o seu
quarto, s trs horas da manh. s cinco, finalmente, disseram os jornais que
todos os hspedes se retiraram penhorados das atenes dos donos da casa.
Mentiram descaradamente. Ceclia no tinha razes para ir penhorada das
ditas atenes.
O caso que o melanclico parvalheira recebeu nessa noite o diploma de
leo. At as velhas disseram que o queriam conhecer; mas j era tarde... em
relao a elas, e em relao ao movimento do planeta.

CAPTULO IV

Os dois ltimos captulos, que j l vo a grande aprazimento do leitor, e, mais


ainda, da leitora, so uma excrescncia neste romance: dispensavam-se bem,
se eu no quisesse historiar o miservel processo de que resultou a magnfica e
estrondosa nomeada de Guilherme do Amaral.
Quo diversas de Lisboa as coisas lhe corriam aqui! Nem de rastos o expulso
pelo escrnio da capital pagar as obrigaes que deve quele bom homem,
que lhe ensinou um novo sistema de vida.
Se quereis saber no que ficaram as desavenas de Margarida e Ceclia, lede as
quatro pginas seguintes; se vos no importa, passai-as em claro, e achareis
adiante descries rasgadas, arrojos de gnio, coisas, enfim, que no sabereis
nunca, se eu vo-las no dissesse, ingratos!
Guilherme do Amaral, pagando a visita ao irmo de Ceclia, pediu explicao
do intrincado problema em que ela o deixara. A refletida dama deu-se uns ares
de mrtir, contando com maviosas lgrimas parte do dilogo corri a sua
imaginria rival. Guilherme, que j sabia parte do escndalo, fez-se imbecil,
no atinando com o pomo da discrdia. Esta fico melodramtica no
agradou a Ceclia. Queria-o mais explcito, ou ao menos ouvir-lhe uma frase
honestamente romntica, que se parecesse com uma declarao. Amaral no
se decidia por uma nem por outra. Ceclia aventurou uma pergunta perentria:

Qual de ns lhe indiferente, Amaral?

Nenhuma, minha senhora.

Ama a ambas?

No amo nenhuma... Respeito-as ambas; mas no posso, como

Prometeu, roubar do cu o fogo, que incendeia o corao sem vida, ermo e


tenebroso como a eterna noite do tmulo.

Essa linguagem...

No nova para vossa excelncia. j me defini. Aproximamo-nos pelo

infortnio, no nos poderemos vincular pela felicidade. Quando se oferea


ocasio, muito ao meu pesar, ser esta a linguagem persuasiva que empregarei
com a senhora dona Margarida, com todas as senhoras, que tiverem a piedade
estril de tocar na mortalha de um cadver. Eu sou o smbolo da desesperana
sobre a terra. A Jeric, prometida ao proscrito expulso de Israel, no sorrir
aos meus olhos vidos. Morrerei, como Jersey, chamando a mulher fantstica
das minhas dolorosas vises.
Que valentia de estilo! Que cinzel de mestre nos arabescos desta
farandolagem! Que roldana to certeira no polimento desta elocuo de bilros!
E Ceclia gostava muito disto: foi isto o que a decidiu. Se at ali as suas
paixes eram brincadeiras, ou artifcios de habilidosa especulao, a coisa
agora era sria. Umas mulheres vence-as a gentileza, outras a valentia, outras o

talento, outras o dinheiro, outras a estupidez, outras a bondade. Ceclia


venceu-a o estilo.
Repudiada cortesmente, de dia para dia, aumentava-se-lhe a palidez natural,
entristecia-se, definhava-se, ermava, consultava as estrelas, ouvia suspirosa,
alta noite, o montono murmurar da fonte vizinha, e lia de preferncia
Antony, Jocelin, Raphael, e Amaury. Deu preocupaes sua famlia, e tomou
leites de jumenta com guas de Entre Ambos-os-Rios. Com trs meses deste
bem indicado tratamento, e banhos do mar, restabeleceu-se, isto quanto ao
corpo. A alma, porm, segundo dizem os idelogos, um ente muito mais
melindroso nas suas enfermidades.
A alma de D. Ceclia entrou em prspera convalescena, logo que um
cavalheiro do Porto, chegado de uma longa viagem, se declarou cansado da
vida, enojado da sociedade, e capaz de se aplicar um tnico de cido prssico.
Graas ao estilo com que estas coisas eram ditas, a ilustre enferma entendeu
que era aquele o homem dos seus sonhos, de que resultou sonhar-lhe nos
braos, mas honestamente, porque toda e qualquer senhora pode sonhar nos
braos do seu marido.
Tenho a satisfao de anunciar que foram felizes uma eternidade de oito dias.
Atualmente no se entendem, e continuam ambos a sonhar, cada um na sua
cama, com vises encantadoras, que se vo realizando todos os dias, menos
pavorosas que as de Macbeth...

Agora, D. Margarida. Esta fez todos os mornos imaginveis para fazer-se


entender de Amaral, no jantar do seu aniversrio. O provinciano, porm, tinha
o desplante de encar-la com a mais estoica indiferena, por duas frvolas
razoes: primeira, porque era espadada, campesina, carnosa de feies, com
ameaas de obesidade, e comia muito. Segunda, porque era ingenuamente
estpida.
No o mel para a boca dos Amarais. Nem ele soube compreender esta
mulher, nem, depois dele, veio outro que a divinizasse como ela merece.
Como quer que seja, Margarida teve o bom senso de no apaixonar-se.
Tiraram-na disso as suas amigas, e parece que uma carruagem, e um camarote
de assinatura no teatro lrico, concorreram muito para o evacuamento de uma
hidropisia de amor, que ameaou vinte e quatro horas a sua existncia
preciosa. D. Margarida est ainda solteira, realizando os profticos receios de
Guilherme: engordou, fez-se vermelha, e no inveja os braos proverbiais de
Jlia Grisi. V-se no teatro, comendo rebuados, rindo desentoadamente,
pendurando-se no parapeito do camarote, como a sua me, outrora, sobre o
tear, e persistindo na constncia de dizer muita parvoce a respeito de qualquer
coisa. uma senhora verdadeiramente feliz com os seus trinta anos.
Agora, comecemos pelo princpio. Um homem de medocre esperteza,
estreando-se brilhantemente como Guilherme do Amaral, no dava de mo a
duas aventuras lisonjeiras, que vinham roub-lo obscuridade.

Quem quer que fosse esse homem, praticava uma necedade, que viria a custarlhe cara. Ceclia e Margarida eram mulheres que davam reputao; mas no
estavam no caso de servir a imoralidade de um conquistador. Casar com
qualquer das duas no era glria para o provinciano. Seduzi-las como quem
seduz uma mulher do povo, era um comprometimento muito grave, uma
desonra, que lhe importaria o dio e a vingana, e, pelo menos, a fuga,
deixando um rasto de infmia.
Amaral era um modelo de bom juzo, desde que desfivelou a mscara que os
lisboetas lhe apuparam.
No eram aquelas as mulheres que lhe convinham. O prestgio, que elas lhe
davam, aproveitou-o sem desonestar-se. Fez-se conhecido, celebrizou-se,
estremou-se do lixo vulgar: era isso o que ele queria. Colocara-se num ponto
da escala donde tinha de descer. Desceu, sem risco de fraturar uma perna.
Achou onde nutrir a alma de Epicuro, conservando livre para a quimera a
alma de Plato. Houve-se de modo que ningum lhe pediu contas, porque os
que deviam sald-las tinham-se remido da dvida muitos anos antes... E, por
isso, se andava mal com Deus, no acontecia o mesmo com as mulheres e
com os homens. Era benquisto, piedosamente consolado nas suas tristezas,
imitado (mas s na parte moral) por muitos, e recebido ao p das senhoras,
que sabem o que dizem e o que fazem, com certa confiana de que ele no
abusava diante de gente. Isto verdade.

E assim viveu um ano, sem pisar um calo moralidade pblica, matrona


respeitvel, que respeita muito pouca gente, e nunca teve pecha que pr no
carcter imaculado do seu benjamim.
E assim correu vagaroso um ano. Guilherme aborreceu-se, e planizou uma
viagem. Aborreceu-se, porque as fezes do prazer so a saciedade, e o
verdadeiro prazer no o conhecera ele. O gozo era-lhe fcil; mas o gozo de
um dia a vspera do enojo; a gulodice do mel, que vem do estmago
encruado ao paladar em hlito azedo. No encontrou, entre tantas, uma
amiga; e quem no conheceu a mulher amiga, pe a mo sobre o corao, e
no encontra a a flor, que se rega nas lgrimas, quer de alegria, quer de
recproca tristeza.
Amar um sentimento profanado por aquela palavra vulgarssima. Amaral
no amara ningum. Valido da impostura hbil, venceu resistncias froixas; as
vencidas, porm, caam como as ninfas de Cames, na ilha dos Amores:
Deixavam-se ir dos galgos apanhando.
Se, abandonadas, faziam trejeitos de damas doloridas, isso era o cime, o
pudor retardado, o fastio, que se demorava nelas mais do que nele, ou hbito
de ningum se conformar com a sorte decretada em cima. Nunca ele viu o
que so lgrimas de mulher abandonada, quando mais de rastos se humilha
aos caprichos do homem, que faz o salto da fuga com o p sobre o corao da
que fica para calar a vergonha, e morrer nessa luta desigual. O que ele viu foi

aquilo por onde devia terminar a sua carreira de homem apostado a tirar,
segundo as circunstncias, urna vantagem real dos desejos nobres, outra da
impostura, e a derradeira do cinismo. Comeara a colher flores nas lagoas
pontinas: saiu inficionado.
O sangue, que lhe vinha do corao nobre aos pulmes viciados de podrido,
corrompera-se. O corao deu-lhe um abalo, quando se viu pobre das
sensaes ntimas que vo entalhar uma ao nobre, uma imagem santa, uma
data gloriosa na conscincia. Entristeceu-se. O que dantes era artifcio, dava-o
a natureza demudada agora.
Foi por isso que Amaral resolveu uma viagem de alguns anos.

CAPTULO V

Era uma noite, vinte e oito de Junho de 1845, vspera do milagroso apstolo
S. Pedro.
Sabeis como, nesta religiosssima cidade do Porto, se festejam todos os santos
da corte celestial, e particularmente Santo Antnio, S. Joo e S. Pedro. Este,
mais prestante que todos, pela importante misso de claviculrio da bemaventurana, gloria-se de ser festejado anualmente na cidade da Virgem com
uma poro fabulosa de estoiros, um inferno indescritvel de fogueiras, e o
consumo sobrenatural de pipas de vinho, fritadas de linguia, postas de
pescada, e bebedeiras sem cifra conhecida no Bezout.
S. Pedro de Miragaia , incontestavelmente, de todos os Pedros santos o mais
querido. Aquele espaoso areal no basta para os jorros de povo, que afluem
das ruas sobranceiras. Surgem, como por magia, as fileiras de lmpadas
variegadas; os mastros de palha e alcatro, que fedem e abrasam; as orquestras
militares, que consomem metade do tempo vozeando nas trompas
estridulosas, e outra metade nas libaes homricas, fornecidas pela
liberalidade dos mordomos; as tendas gratas gastronomia suja da
farrapagem, que as atulha, dando vivas ao santo, e praguejando obscenidades e
insolncias contra a taverneira tardia no ministrar da meia canada por cabea;
finalmente, o areal de Miragala um misto de todas as regalias que

entusiasmam o populacho, azando-lhe ocasio para que naquelas caras


sobressaiam todas as linhas grotescas de uma alegria estpida.
No longo quarteiro de casas, que se estende ao longo do arraial, vereis nessa
noite caras suportveis, que o reflexo meio fantstico da iluminao vos
afigura belas. Vereis outras, realmente belas, colocando-se de modo que a
projeo tbia da luz as favorea, na exposio noturna, aclarando-as aos olhos
do paciente amador, que passeia em baixo sorvendo pelos ps a humidade da
areia.
Entre estes, mencionada noite, podeis ter visto Guilherme do Amaral, s,
com os olhos mergulhados alm nas trevas do rio Douro, absorto, recolhido
nesses esconderijo de tristeza, que o homem de algum senso ntimo leva
consigo a toda a parte. Como ele, ajuizado desprezador desses jbilos boais,
viera ter a Miragaia, no o saberia dizer. Achava-se a, sem saber ao que viera,
e sentia no ter asas de querubim ou de hipogrifo para transportar-se ao
deserto da Lbia, ou pelo menos ao seu quarto da guia de Oiro.
Neste pensamento, cuja impossibilidade o incomodava, caminhou pela
primeira travessa escura e despovoada que se lhe ofereceu. Atravessou um
beco de aspeto pavoroso e nojento trilho: desembocou numa rua, que o
conduziu a outra, na direo oposta da guia de Oiro, para onde queria
caminhar.

Achou-se bem, apesar do ftido nauseento que ressumava das fisgas das
portas. No via ningum, ningum o via, nem o mais ligeiro sussurro: era
caminhar na escavao de uma rua de Pompeia, pela vista, e no aqueduto de
despejos de uma cidade, pelo cheiro. O romanesco tem seus caprichos
srdidos. Amaral no trocava aquela atmosfera enjoativa pelos perfumes de
nardo e rosas do toucador de alguma das suas numerosas admiradoras.
No extremo dessa rua parou, suspenso pelos gritos de quem chorava no
longe dele. Avizinhou-se de uma porta, e observou que os gemidos saam de
uma casa trrea. Distinguiu estas palavras:

Minha me, minha querida mezinha do meu corao! Encostou-se ao

batente da porta. Ouvia sempre a mesma exclamao, no respondida por


nenhuma outra.
Bateu como o cabo do chicotinho trs vezes na porta. Foi-lhe imediatamente
aberta; mas a pessoa que abrira a porta recuou, surpreendida, em ar de fecharlha na cara.
No tenha medo, menina disse cortesmente Guilherme, sustendo com a
mo a porta.

Pensei que era o meu primo... replicou trmula a mocinha.

Ouvi gritar, e julguei que podia fazer algum servio pessoa que

chorava tanto.

Era eu...

Pois que tem, menina?

Minha mezinha, que morreu agora de repente!

Sim? Talvez seja algum ataque de apoplexia... Se me d licena, eu entro

para examin-la.

Faz favor de entrar. Deus nosso Senhor o oia ... se a vossa senhoria

fosse cirurgio...

No sou cirurgio; mas se ela estiver viva, darei as providncias para

que no morra sem os ltimos recursos.

Amaral atravessara um quadrado de vinte palmos, pouco mais ou

menos, dividido doutro por uma esteira de enfardar costais, em forma de


biombo. Era a dentro que, sobre um leito de pau-cerdeira, limpamente
enroupado, com a sua coberta de chita escarlate, jazia, com a face para abaixo,
e o corpo inclinado para o soalho uma mulher. Guilherme sondou-lhe o pulso
e a testa: voltou-a de rosto, ergueu-a ao alto, e sentiu-a hirta, glida e
inteiriada.

Que me diz, meu senhor? exclamou a filha, erguendo as mos.

Digo-lhe que est morta, e sinto que tenha morrido uma me, que

merece to sentidas lgrimas a sua filha. Menina, olhe que a dor do corao
no se alivia gritando: bastam as lgrimas. Agora o que importa tratar de

enterrar a sua me. Ora diga-me: vossemec sozinha? No tem pai nem
irmos?

No, senhor: tenho um primo que fabricante, e vem por aqui algumas

vezes: mas logo hoje anda no arraial de S. Pedro, e eu no tenho por quem o
mande chamar.

Que queria a menina ao seu primo?

Queria ver como h de ser isto: tenho medo de aqui ficar sozinha; no

sei o que hei de fazer... Tenho medo de endoidecer...

Pois no h de endoidecer, menina; tudo se faz do melhor modo que

possvel. Vossemec no tem nenhuma vizinha que a receba em casa?

Tenho, sim, senhor; mas foi para o arraial fritar peixe.

Como se chama ela?

Chama-se a tia Ana do Moiro.

Espere um pouco, tenha pacincia, no se assuste; e feche a sua porta

que eu vou cham-la.


O senhor mandado por Deus... mas ela no deixa o arraial para vir c.

H de deixar... Guilherme saiu vivamente impressionado. Era uni

quadro novo, uma excitao de sentimentos, que vibravam pela primeira vez.
Os olhos da alma iam-lhe todos preocupados no lance angustioso de uma

filha, abraada ao cadver da sua me, seu arrimo partido num instante,
olhando em redor, para contemplar-se ouvida pelo silncio do desamparo. Se,
todavia, pudesse abstrair os olhos do esprito daquela cena, e fixar os do rosto
na filha dessa mulher morta, teria visto uma linda rapariga.
A passo rpido chegou a Miragaia, e perguntou a uma taverneira se conhecia a
senhora Ana do Moiro.

E aquela que acol est dando um prato de peixe quele senhor de

chapu branco.
Amaral, quando a peixeira lhe perguntava se queria pescada ou solha,
respondeu:

Vossemec h de conhecer umas suas vizinhas, que so me e filha...

A tia Rosa carpinteira?

No sei se essa; uma que tem um primo fabricante.

Primo no, sobrinho; primo vem ele a ser da prima, isto , da filha da

tia Rosa, que se chama Augusta.

Pois ento isso, vinha eu dizer-lhe que a tia Rosi morreu agora de

repente.

Morreu?! Ora essa! Que me diz o senhor? Pobre mulher!

O que eu queria era que vossemec fosse fazer companhia filha na sua

casa.

Ia, ia, assim me Deus salve... Mas no posso deixar c o meu arranjo!...

Eu ainda no lhe disse tudo. Entregue vossemec o seu arranjo a

algum, que eu dou-lhe meia moeda.

D? Olhe l o que diz!...

Eu sei o que digo; receba-a j, aqui tem cinco pintos, e venha comigo.

A filantrpica Ana do Moiro, espantada com semelhante caso, entregou filha


a direo do fogareiro em que rugia a sart, e seguiu Guilherme.

Eu vou admirada com isto! a primeira vez que vejo o senhor! Vossa

senhoria, ainda que eu seja confiada, costumava ir a casa da tia Rosa, Deus lhe
fale na alma?

No, senhora. Foi hoje a primeira vez...

Sempre h coisas! E como vossa senhoria d este dinheiro sem mais

nem ontem! Aqui h coisa, e se houver, oxal a rapariguinha, a ter de ser m,


cala em mos de quem lhe saiba dar o merecimento.

Vossemec est enganada; eu no me importa saber os merecimentos

da rapariguinha.

No que isto um modo de falar. Cada qual l se entende, como o

outro que diz... Ora a pobre tia Rosa! Ainda hoje esteve a cantar porta, e
parecia estar para muito... A gente anda neste mundo bem enganada!

Que modo de vida era o dela?

Vivia pobre; mas era muito arranjadinha. Ela dobava seda, e a filha faz

alas de homem a quatro vintns a dzia. O pai era carpinteiro, e levava muito
bem a sua vida; mas j est no reino da verdade. O que lhe valia a elas era no
pagarem renda: a casinha delas: mas agora, se no tiver quem lhe d algum
arranjo, a rapariga vende a casa.

A rua esta? perguntou Guilherme.

, sim, senhor. Bem se v que a vossa senhoria no anda afeito a estes

becos.

Como se chama esta rua?

a Rua dos Armnios. Vivo aqui h perto de cinquenta anos, e j aqui

viveu o meu pai, Deus lhe perdoe, que era barqueiro, e chamava-se Antnio,
por alcunha o Moim. No o conheci; mas isso que era um homem! Teve
uma rixa com os franceses, m raios os partam, matou dois navalhada, mas
por fim tambm o mataram... aqui...
Guilherme do Amaral no prestava a menor ateno s desventuras
genealgicas da peixeira, procurando do lado direito a casa da mulher morta.

Bateram, e entraram. A filha do antigo assassino do fidalgo da Bandeirinha


entendeu que era da tarifa carpir sobre o cadver da sua vizinha, e fez que
choramingava, abraada a Augusta, com o mais estpido fingimento.

Deixem-se agora de choradeiras disse Amaral. A menina vai para

casa da sua vizinha. De manh mandem dizer ao proco que morreu esta
mulher. No sei se a menina precisa de dinheiro: mas acho que sim. Aqui lhe
deixo com que possa suprir as suas precises, e sinto no poder consol-la da
perda da sua me. Tenha pacincia, menina. Este golpe sofri-o eu j, e sei que
se no cura seno com o tempo. Ande, v com a senhora Ana. Eu amanh
virei, ou mandarei saber se precisa de alguma coisa.

Mas eu queria saber a quem devo tantas esmolas... disse ela, soluando.

De que lhe servia saber quem eu sou? Nem a menina me conhece, nem

que me conhecesse estava em melhor situao para agradecer-me.

Eu poderei pagar-lhe com o meu trabalho, se Deus me der vida e

sade.

Pois converta o trabalho em bem seu. Adeus. Amaral sara,

experimentando os gozos da conscincia, esses momentos nicos em que o


homem se conhece abrasado de uma fasca divina, esse galardo obscuro,
ntimo, todo do corao, que s a caridade nos d.
A vizinha foi a primeira, na ausncia de Amaral, a tocar no dinheiro.

Ui! exclamou ela, quando o viu, antes de lhe tocar.

Que ? perguntou Augusta.

Duas peas!

Valha-me Deus!... disse a rf pendendo a cabea para o seio.

Tudo isto me parece um sonho... Ser aquele senhor um como h tantos casos
de mandados de Deus!
Ser, ser, o Diabo o jure! disse a filha do Moiro, associando o testemunho
do Diabo obra de Deus. Arrecada esse dinheiro, que tens para um pouco
de tempo, rapariga. Eu se fosse a ti, comprava um cordozinho, que
dinheiro que tens na gaveta, depois de pagar algumas dvidas da tua me.

Minha me, graas a Deus, s devia a vossemec dezoito vintns.

Ainda bem! No sabes quanto me consola c por dentro no teres

outras dvidas a pagar...

O que eu vou fazer deste dinheirinho mandar dizer missas por alma

dela.

Deixa-te disso. A tua me era uma devota do senhor S. Pedro, que

amanh o seu dia, e h de abrir-lhe as portinhas do cu... Deixemos aqui uma


candeia cheia de azeite, e vamos para minha casa. Anda da.

Augusta regou de lgrimas a face da sua me. Abraou-a, beijou-a, chamou-a


ainda como quem espera um milagre, alucinada a imaginao com a crena do
enviado de Deus. O cadver, porm, no estremecia entre os braos
convulsos da crdula jovem.
Fecharam a porta, e saram. Enquanto Augusta chorava inconsolvel em casa
da vizinha, a previdente peixeira cansava a inveno na descoberta do melhor
emprego s duas peas.

CAPTULO VI

Dois dias depois, Guilherme do Amaral foi Rua dos Armnios, com a
inteno de estudar de dia a suposta misria daquela casa, que no pudera ver
luz mortia da candeia, e mais ainda para cumprir a promessa que fizera de
socorrer mais algumas necessidades da rf. No h intenes mais puras!
Era meio-dia; estava fechada a porta, e aberta apenas uma fresta da pequena e
nica janela ao rs da rua. Guilherme parou em frente. Augusta viu-o, e correu
a abrir-lhe a porta, como a um parente, ou a pessoa ansiosamente esperada.

Faz favor de entrar? disse ela, corando. A casa no prpria;

mas...

Todas as casas so boas, quando vive nelas o contentamento, ou a

esperana de goz-lo um dia. Como est, Augusta?

Obrigada a vossa senhoria; eu ontem passei o dia na cama, e levantei-

me agora, porque me dizia o corao que a vossa senhoria viria.

Pois dizia-lhe o corao que eu viria aqui? Augusta baixou os olhos e

sorriu-se de um modo que tornava mais sensvel o pejo.

Porque se no senta? disse Amaral, disfarando.

Estou bem, meu senhor.

Sente-se, Augusta: sou eu que peo, ou que mando. Augusta sentou-se,

levantando os olhos a medo para o que j lhe no parecia um enviado de


mandados superiores.

Que tenciona fazer? prosseguiu o hspede, reparando na rara beleza

daquela obscura mulher.

Eu, senhor?

Sim: tenciona viver sozinha, sem parentes...

Eu no tenho seno um primo, que tambm rfo; mas cada um vive

na sua casa.

Eu sei que o seu modo de vida fazer alas. E, sim, meu senhor. Foi a

tia Ana que lho disse?

Foi.

Quanto ganha por dia nesse trabalho?

Fazendo sero, ganho trs vintns.

E vive com isso?

At aqui vivia, porque a minha me ganhava quatro vintns a dobar

seda: daqui em diante ser o que Deus quiser.

Mas isso no lhe chega... A menina se tivesse uma casa onde pudesse

servir como criada de sala, levava muito melhor a sua vida.

No duvido que sim; mas eu quero viver e morrer onde viveu e morreu

a minha me e o meu pai, que Deus tenha na sua santa glria. Diz-me o
corao, que se eu sair da minha casinha, hei de ser desgraada. Conheo
muitas raparigas, que foram servir, e poucas deram boa sada. Quase todas
andam por a, hoje numa casa, e amanh noutra, e, quando Deus quer, mais
pobres e infelizes do que saram da sua misria atrs dos ganhos.

Uma das coisas que me admiram, no tanto o seu bom juzo, como a

menina estar ainda solteira. Quantos anos tem?

Vinte, meu senhor. E no tem querido casar-se? Augusta fez-se da cor

da cereja, e no respondeu.

No tem de que envergonhar-se disse Guilherme, empenhando-se

na conversa com vivo interesse, a que o corao... ou a fantasia j no era


estranha. Eu no quero ser seu confessor; isto foi uma pergunta que no
deve mago-la.

Vossa senhoria no me magoou; mas... no sei se a gente deve dizer

tudo o que sente.

Pelo menos, aquilo que nos no envergonha pode dizer-se a toda a

gente; e o que nos envergonha, ou se no diz, ou se diz a um confessor.

Eu no tenho querido casar com o rapaz que me quer, h mais de

quatro anos.

algum oficial de ofcio? Desculpe-me a liberdade com que pretendo

saber os seus segredos.

E fabricante.

Talvez o seu primo, em quem me falou j...

Foi algum que lho disse?

Nada, no, menina: botei-me a adivinhar. Gosta dele?

Gosto dele; mas no quero casar; queria que ele fosse meu amigo, que

olhasse por mim como sua prima e mais nada.

No lhe tem amor, o que quer dizer...

O dilogo foi interrompido por passos, que subiam os degraus da escada.

Posso entrar, Augusta? disse uma voz.

o meu primo disse ela sobressaltada.

Diga-lhe que entre... pois porque se assusta?

Entra, Francisco... disse a rapariga com receio.

O fabricante, vendo o estranho hspede da sua prima, levou a mo ao bon,


fez meno de retirar-se.

Venha c, senhor Francisco... disse familiarmente Guilherme.

Aqui no h nada que o faa sair.

Este senhor disse a descorada Augusta aquela pessoa que eu te

disse, Francisco...

Ah! j sei... Tu dizias que era uma alma vinda do Cu, e eu sempre

acreditei que era pessoa deste mundo... disse o artista com boal
desembarao, mas tambm com graa.

E muito deste mundo, senhor Francisco; mas quem devia aqui estar,

quando morreu a sua tia, era vossemec. Quem tem uma prima solteira no a
deixa pelas patuscadas do arraial.

Aconteceu ir espairecer at l nessa noite; mas enfim, a vontade de

Deus foi levar a minha tia, e quem c fica no se deve matar.


Augusta fez uma visagem de aborrecida a esta resposta disparatada. Amaral
compreendeu-a, e julgou descobrir naquela mulher uma coisa, especial, um
instinto no vulgar, reprimido pelas circunstncias. Esvoaou-lhe por l um
pensamento, que o fez refletir alguns segundos, enquanto o fabricante dizia a
sua prima o lugar em que, pouco mais ou menos, a sua me fra sepultada, e o
padre a quem encomendara cinquenta missas por alma dela.

Mandou dizer cinquenta missas por alma da sua me? interrompeu

Amaral.

Mandei, sim, meu senhor, do dinheiro que a vossa senhoria me deixou,

e ainda tenho muito com que possa mandar dizer algumas por alma do meu
pai...

boa maneira de gastar o dinheiro... disse o fabricante

ironicamente.

Eu acho que bem empregado o dinheiro que nos serve de suavizar a

saudade, desempenhando a obrigao em que os vivos ficam para com as


pessoas que nos morreram. Fez a menina muito bem.
Augusta abaixou a cabea com certo ar de inteligncia. Francisca abrira a boca
ao arrazoado de Guilherme, sinal significativo de que o no entendera.
E, voltando-se para ele, Amaral continuou:

Ento vossemec fabricante?

Sim, senhor. Trabalho em Lordelo nos teares, h cinco anos.

Quanto lhe fica por dia?

Dois tostes; pouco .

E hoje deixou o trabalho?

No, senhor. Temos hora e meia de sesta no Vero, e eu venho sempre

ver a minha prima.

Deve ser muito amigo dela, e ajud-la a viver com as suas posses.

Isso que ela no quer... j quis mandar vir dispensa para nos casarmos,

e ela no diz que no, mas tambm no diz que sim.

Mas um primo para ser bom sua prima no precisa de ser seu marido.

E o que eu lhe tenho dito... atalhou Augusta com satisfao, vaidosa de ter
j dito o que era agora repetido por Amaral.

Eu no duvido replicou o fabricante , mas como casados era

outra coisa: assim no podemos viver juntos...

Podemos, podemos... interrompeu Augusta.

Este senhor que diga se uma rapariga como tu pode viver com um

rapaz sem dar que falar.


Amaral sorriu ao requerimento imbecil do seu testemunho, e respondeu:

Eu acho que pode...

Mas... disse ele onde h lume logo fumega. Eu tenho-lhe amor de

raiz h quatro anos, perto de cinco, e se ela estivesse comigo, e viesse algum
conversado falar-lhe namoro, no sei o que seria, dava por paus e por pedras,
e as ms-lnguas tinham de dizer que eu tinha m vida com a minha prima.
Se tu te calasses, fazias bem melhor... disse Augusta muito envergonhada, e
com um gesto natural de aborrecimento, que agradou muito a Guilherme;

porque nem as estudiosas mulheres da sala exprimiriam melhor um nojo


fingido.

Isto que eu digo no tira nem pe: foi a respeito de dizer este senhor

que te ajudasse a viver.

Mas vossemec pode ser-lhe til sem viver de companhia com ela;

poupar uma quarta parte do seu salrio, que junto ao da sua prima chegaria
para ela se sustentar; e, quando lhe aparecesse um casamento proveitoso,
deix-la casar, visto que ela no quer ser sua mulher. O casamento quer-se
feito livremente.
Francisco amuara, escovando a copa do bon com a mo. Augusta fixara em
Amaral os seus negros olhos, hmidos de lgrimas de reconhecimento, e ao
mesmo tempo cativos daquele pasmo de fascinao, que a mulher inocente
no sabe esconder com o leque, ou neutralizar com o sorriso desdenhoso.
Amaral no precisava ser to penetrante como era para espionar a secreta
inquietao da prima do artista. Uma mulher deve ter sido enganada dez vezes
para saber enganar um homem de medocre esperteza; e Augusta no sofrera
nunca uma s das decees, que habilitam a impostura, envenenando a
ingenuidade. Os lbios, se falassem, poderiam mentir, porque o pudor tem
disfarces; mas, silenciosos, no. O que mais a denunciava eram os olhos, onde
o alvoroo ntimo, o fogo sbito, que a queimava dentro, se refletia em

brilhos de uma alegria espontnea, em languidez de pejo, que reage contra as


expanses indiscretas da candura.
Amaral cedia, neste momento, ao orgulho, e perguntava-se se no era aquela a
sua primeira conquista gloriosa. Seria fcil em demasia, crendo-se amado? No
era, no. S cabe aos tolos a convico de que despedem torrentes magnticas
dos olhos, prostrando corri elas as vtimas, que os recebem. Bom que a
irriso os moleste, para que eles no sejam, sobre a Terra, a nica espcie
perfeitamente feliz. Ora, Guilherme do Amaral no era daquele grande
nmero de que faz meno a sagrada escritura; poderia pelo contrrio e sem
lisonja, reputar-se um gnio, o Bentham da Deontologia do corao, o
Herschel das mais apuradas lentes, para da grande distncia que vai dos olhos
ao corao da mulher, ler tudo o que l dentro se esconde a elas mesmas.
Por divertir a conversao de um assunto em que no era honesto faz-la
durar, Guilherme, olhando em redor de si, disse com benigno sorriso:

Quem v esta casa de fra no imagina como ela est asseada, fresca, e

encantadora por dentro.

Casa de pobres atalhou Augusta, recebendo o reparo com modstia,

mas gloriando-se de merec-lo.

Casa de pobres disse Guilherme , mas de pobres que no devem

invejar o luxo dos ricos sales, onde o descontentamento e muitas vezes a


vergonha a alfaia negra no meio desse brilho.

Amaral falava nesta ocasio para si. Augusta adivinhara a ideia sem conhecer a
frase. Francisco no entendeu frase nem ideia.

Minha me disse a costureira era muito amiga do asseio. Este

paninho vermelho que enfeita a cmoda custou muito barato; eu que fiz a
franja branca, que lhe d graa. Estas cadeiras f-las o meu pai, que era
carpinteiro, e todos estes mveis foram arranjados por ele. Tnhamos ali, onde
esto as esteiras, um tabique; mas haver um ano que ele caiu, e nunca o
pudemos mandar erguer.

Esta casa perguntou Guilherme no teve por cima outro

sobrado? O teto d ideia disso por ser liso...

J teve, mas houve aqui um fogo que queimou o andar de cima.

Desde que a menina aqui est?

No, meu senhor, eu lhe conto o que o meu pai contava. No tempo

dos franceses morava aqui um homem com fama de muito rir... Quando eles
entraram no Porto, como vossa senhoria h de ter ouvido dizer, muita gente
afogou-se na ponte, que por sinal l est o painel das alminhas. O homem que
morava aqui foi um dos que se afogaram, ou ento mataram-no os franceses,
porque nunca mais apareceu. Como ele tinha fama de ser rico, entraram aqui
dentro os franceses, mas dizia o meu pai que eram portugueses...

E at o principal interrompeu o fabricante acho que era um

barqueiro, pai daquela Ana, que a vossa senhoria foi buscar ao arraial.

Seria; mas a gente no deve fazer carga sua alma com uma coisa que

no se sabe ao certo atalhou Augusta. Fosse quem fosse, o caso que


os ladres, no achando nada, desesperaram-se e botaram fogo ao enxergo.
Quando acudiu gente j no podiam valer ao andar que tinha a casa; ardeu
todo, menos o sobrado. Passado muito tempo, o meu pai, que morava aqui
perto, tratou de saber quem eram os herdeiros de tal homem, e comprou
muito barata esta casinha, com teno de compor este baixo, porque no tinha
dinheiro para levant-la como ela era. Botou ao cho as paredes do andar de
cima, e solhou esta loja, que era trrea, e abriu aquela janela, porque era muito
escura. Aqui nasci, e sempre que pude, desde pequena, arranjava papel de
cores para tapar a calia da parede que j muito velha.

E deve ter soberba da sua bonita casa, Augusta disse Amaral, erguendo-

se. Eu estou sendo aqui de mais, e por isso retiro-me.

J?! perguntou ela com inocente familiaridade.

No quero estorvar o seu primo de empregar os meios com que se

amansam as meninas cruis replicou ele, sorrindo, e surpreendendo nos


olhos dela todos os segredos do corao.

Ns no temos nada a dizer murmurou Augusta, engasgando-se, e

torcendo entre os dedos a ponta do leno preto do pescoo.

Isso verdade... disse o fabricante com maliciosa inocncia ou alvar

ingenuidade. A gente conversa em coisas que no valem d c aquela palha.


Enquanto ela costura nas alas, eu sento-me ao p, e estamos horas sem dizer
nada um ao outro. De h tempos para c, deu em se fazer muito sria comigo,
e no me d palavra. Enquanto a mim, anda aqui mandinga de casrio entre
ns...

Jesus me valha! atalhou ela. No faa caso, meu senhor... Este

meu primo no escorreito, e, comeando a taramelar, no pensa o que diz,


nem se lhe d de mentir. bom rapaz; mas tem uma lngua que chega alm
do rio... Com que conscincia dizes tu que eu... Valha-me Nossa Senhora! E a
ti tambm...
Estas palavras, ditas em boa graa, exprimiam zanga e aborrecimento. O
fabricante, se dissesse bocadinhos de oiro, seria sempre, ao p de Guilherme,
um grosseiro. Compar-lo era aborrec-lo; ouvi-lo, depois do hspede, era
para Augusta uma quase vergonha de ter tal parente. Estas grandes e pequenas
impertinncias que ela sentia contra o fabricante rudemente falador eram
indcios manifestos de uma grande ou pequena misria, chamem-lhe como
quiserem, qual as marquesas de Lus XIV, e a costureira de alas da Rua dos
Armnios, chamaram amor. Mas o amor de Augusta, assim de improviso,
explica-se? Perfeitamente; uma palavra que se explica por outra: mulher.
Ser: porm, o amor no assim para todos os homens. Aqui estou eu, diz
o leitor, que tenho consumido a mocidade sem deparar uma dessas mulheres

de fibras flexveis que se dobram sob a mo magntica da minha vontade.


Pior para o meu amigo: mas nada de instaurar-se em regra, particularmente
em relao a mulheres, que so todas excetuadas. Guilherme do Amaral tinha
um condo. No era obra diablica de magia negra ou branca, nem manhas
cavilosas de sedutor professo. Era a omnipotncia da fascinao. No sabem
o que isto? E um fluido, que atua independente da vontade, e faz que uma se
lance cegamente nos vestgios ensanguentados de outra vtima, atrs do
mesmo algoz, como as mulheres de Henrique VIII; com a relevante diferena
que o monarca ingls transmitia a cadeia magntica pelos diamantes da coroa:
e o homem fatdico, o rei tirano dos espritos, exerce num olhar profundo a
sua atrao infernal.
E onde se afere a intensidade do seu magnetismo na presteza com que
escraviza a mulher cultivada at negao de todo o idealismo, e a mulher
inocente at ignorncia dos meios de furtar-se ao domnio desse homem.
E estes monstros existem? Sim, minhas cautas senhoras. Existem. No lhes
digo que se acautelem, porque seria intil.
Por consequncia, Augusta... Nada de consequncias intempestivas! Eu no
autorizo ningum a lamentar primeiro que eu a minha galante costureira da
Rua dos Armnios. to linda! Mal diria Joo Antunes da Mora, por alcunha
o Kgado, quarenta e cinco anos antes, que aquele saguo infecto deveria ser
habitado pela cara mais fragrante, mais engraada, mais travessa, mais

inteligente que eu tenho na minha galeria de mulheres, cuja imortalidade est


ao meu cargo!
O captulo seguinte pode l-lo toda a gente.

CAPTULO VII

Tinham decorrido quatro horas de aturada cogitao na vida de Guilherme do


Amaral, quando ele, juiz suficiente de si prprio, decidiu que amava a pobre
costureira de suspensrios. Estas quatro horas foram as decorridas desde que
ele se despediu da Rua dos Armnios, onde o deixmos no anterior captulo,
at que se vestiu para assistir a um jantar de despedida, que lhe era dado pelo
marido de D. Ceclia.
A, como de estilo, depois de esgotadas as saudaes ilustre dona da casa,
voltaram-se as atenes, um pouco alcoolizadas, para Amaral. Alguns maridos
suspeitos foram os primeiros a recitar as virtudes do provinciano. Damas
insuspeitas aceitaram a opinio dos seus maridos com estrepitosos aplausos.
Combinavam-se perfeitamente.
Velo, depois, o sentimentalismo da esfalfada etiqueta carpindo a sada de um
mancebo, a todos os respeitos, lustre e ornamento da boa sociedade. Era tudo
pretexto para beber: bailava a lgrima nos olhos rbidos dos convivas, ao
mesmo tempo que o frvido champanhe os ressarcia dos lquidos perdidos
pelas glndulas lacrimais.
Um deputado, com a cara ainda iluminada da aurola oratria, conquistada em
lides parlamentares sobre o fabrico de azeite de purgueira (vide o Dirio do

Governo de 1843), de p, arfando as paridas ventas ao resfolegar da


inspirao, cabelos hirtos, e olhos injetados de sacro fogo, falou assim:

Damas e cavalheiros! Silentium orecundius, muda a expresso, fala o

silncio!, traduziria eu, com a conscincia de ter dito o mais que pode dizer-se
na presente conjuntura... Engasga-se, e crava os olhos num cupido pintado
no teto pode dizer-se na presente conjuntura... se... se... Uma dama
imprudente funga um froixo de riso contagioso... se a voz da amizade, da
honra, e do dever me no inspirassem no momento solene deste angustiado
adeus. Apoiado!, exclamao do baro da Carvalhosa, e careta de aplauso
ao vizinho. Sim, senhores: o cavalheiro que a fortuna nos deu, a fortuna
caprichosa no-lo rouba! Sensao; silncio apenas quebrado pelo silvo
agudssimo de um sorvo de pitada. Em verdes anos, no o conhecereis
mais prudente, mais cauto, mais instrudo, mais respeitador dos sos
costumes, mais... mais...
Mais honrado!..., aditamento dum... Orgon, representante do de Molire
justamente mais honrado que esse de todos ns querido, de todos ns
respeitado, de todos ns... Bom que no diga de todas ns, observao
maliciosa, parte, de uma dama que conhecia perfeitamente as outras de
todos ns saudade pungentssima, e gloriosssima recordao! Apoiado!
apoiado!, palavras do baro da Carvalhosa, secundadas por vrios
comendadores, que no adormeceram ainda. Sim, senhores! O cavalheiro
Guilherme do Amaral, a todos os respeitos benemrito dos nossos

encomisticos elogios, vai partir!!!! (Quatro pontos de admirao que ele tinha
no rascunho, estudado quinze dias, razo de duas horas por dia.) O modelo
exemplarssimo dos mancebos, que nas suas virtudes nos afigura uma
senilidade precoce, vai partir! Guilherme recomenda, em orao mental, o
orador ao Diabo O tipo da inteireza, da retido, da probidade... vai partir!
E ns ficamos! Ficamos, sim! Ficamos ns!... E que no haja um man que o
prenda! E que no haja um grilho suavssimo que o algeme! E que no haja...
que no haja...
Um bacamarte!..., murmrio de um jornalista malcriado sem graa
nenhuma, que no haja... Uma comisso revisora de speeches!..., o
mesmo insolente a meia voz para uma dama que tem o mau gosto de rir-se
que no haja um amigo que o restitua aos seus amigos!... Estrondosos
bravos e arrotos. Pois bem; cumpra-se o destino! Ficaremos para saud-lo
todas as vezes que nos reunirmos com a efuso cordial com que eu proponho
um brinde ao nosso meritssimo amigo Guilherme do Amaral!! Gritaria
catica; bebem prodigiosamente: um comendador, por desculpvel engano,
leva aos lbios a taa da gua morna, onde lavara os dedos. Duas senhoras, a
rir, estalam quatro colchetes. O orador est radioso.
Amaral, atenuado o calor do entusiasmo, ergue-se com o copo em punho. Um
psiu unnime estabelece o silncio momentneo das orgias ilustradas. As
damas, todas olhos e ouvidos, no pestanejam. Os homens gordos desapertam
os coletes compressores para saborearem com todas as comodidades as

delcias do orador barra. O deputado, com ares protetores, estende o brao


como a pedir a religiosa mudez das respiraes. O prprio baro da
Carvalhosa no ousa levar ao nariz a voluptuosa pitada, que inutiliza, para no
quebrar com o sorvo estrdulo o silncio universal.

Vivamente impressionado diz Amaral com a mais cmica seriedade

pela tocante eloquncia do senhor conselheiro, inveja de Demstenes, e


honra da ptria, mal posso articular as notas confusas de um hino de
reconhecimento, que o corao egosta fecha em si, e no confia aos lbios
profanadores. Bravo, timo!, exclamao do deputado, que bate solfa
com a cabea a cada acentuao silbica do orador patusco.

Se a inspirao me de ideias grandes, quantos embries perdidos nas

mgicas entranhas dela! Quantas emoes divinas afogadas pela rudeza da


palavra humana! Quantas expanses do ntimo arrefecidas no gelo dos lbios!
que a lngua humana no est feita ainda. Bem disse o ilustrado cavalheiro,
que me precedeu, num sonoro verso: muda a expresso, fala o silncio!
E, demais, a minha posio especialssima. Eu sou o devedor de tantos
credores; e dvidas de amor s as paga o amor, o amor silencioso, o amor cuja
linguagem balbuciam os anjos, o amor, que faz seu ninho nas fibras ntimas
do seio, e a morre, quando o peso de urna pedra fria lhe esmaga o santo asilo.

Belssimo, inimitvel, originalssimo!, troveja o deputado, arrancando

aos convivas que, com honrosas excees, no entenderam nada, um rugido

de admirao. esse amor que impele o homem; todos os clculos da


cabea abortam, no vingam se os no sanciona beneplcito da fora motriz,
que roda os eixos desta mquina quebradia, chamada vida. A prova desta
assero vou dar-vo-la, senhoras, para as quais ela no precisa, porque o
amor em vs o esprito vital; e a vs tambm, cavalheiros, mais ou menos
combalidos da podrido deste sculo, donde a inspirao fugiu espavorida, e
tanto para longe, que poucos a reconhecem se ela desce do cu ao regao da
humanidade. Uma senhora velha chora, e a filha, que est em frente, ri-se.
D. Ceclia pisa o p de uma sua vizinha, que se apoquenta na persuaso de que
a pisadela foi um choque do seu p com o principal joanete do baro
imediato. O orador prossegue no seu descabelado improviso. Quereis,
pois, a prova? Ouvi-a. No h ainda um quarto de hora, que eu de fugida
traava o vasto roteiro das minhas viagens. Perguntava eu a mim mesmo em
que palmar da sia, em que floresta do novo mundo, em que osis do deserto,
em que latitude do oceano, ou em que necrpole dos imprios devastados, de
hoje a um ano, recordaria as saudosas pessoas, que vieram a azedar-me, num
festim de risos, as lgrimas ocultas, que eu verteria depois... Sensao.
Alguns que devem aos vinhos secos o sexto sentido da potica sensibilidade,
tm os olhos aguados: v-se que Virglio no mentira quando disse: sunt
lacrimae rerum, posto que eu emendaria: sunt lacrimae vini.

Lgrimas de clida saudade me cairiam da face sobre o fuste de alguma

coluna de Nnive. De l volveria, como o israelita nas margens do saudoso rio,

para o ocidente os olhos melanclicos maneira do proscrito que no


conhece os homens, que o encaram, a lua que o ilumina, a brisa que o no
refrigera, as flores que o no incensam com os perfumes da ptria! Que
diabo diz ele?!, pergunta um comendador ao membro municipal seu vizinho.
Resposta: No entendo patavina. Vede quo amargo me seria este adeus
ao canto do globo, onde se acoitam, como pedestais deste belo cu, todas as
graas, todas as maravilhas da criao, todos os xtases do amor do poeta, da
admirao do artista, das abstraes do filsofo! Eu no devia deixar a ptria,
especialmente o Porto, onde vivi os doces e fugitivos instantes da minha
juventude, j agora fanada como a flor esquecida na haste, aos ardores do sol,
sem gota de gua reanimadora! Que tremenda estopada!, observao
judiciosa do jornalista, ansioso por fumar. No devia... e, contudo, Deus
me testemunha Legtimo clssico!, reflexo, a meia voz, do deputado a
uma espcie de baro, que o no entendeu. Deus me testemunha que eu
seguia de rastos o meu destino, e, neste instante, emancipo-me da tutela
ignbil do destino, para declarar com a ufania que me d a conscincia, de
proceder como devo, que no tenho? coragem. de vos deixar; serei vosso, se
vos mereo; no irei ressequir ao sol de estranhas plagas as flores de amizade
com que fui coroado aqui! A vs, senhoras, que tendes o condo de soprar
uma cintila em cinzas apagadas! A vs, senhores, que vos honrais lisonjeando
a amizade... uma ovao sincera, uma sade fervorosa!

De p, de p! gritaram uns.

Sobre as cadeiras! urraram outros.

Exceto as damas! disse Guilherme.

As damas inclusive! bradou um parvo.

O deputado pede a palavra: no o atende ningum. O jornalista, aproveitando


a desordem, acendeu o charuto. A velha, que chorava, afetada do contgio, fez
bravuras com uma perna ferida de gota. As damas, imprudentes nas libaes,
no curavam j da simetria dos boucles, Aquela cena preliminar de uma orgia
no lhes parecia nova, nem excessiva. Pareciam feitas para o festim, como as
mulheres da corte de Baltasar. Uma queria pedir a palavra, se a no pisam
dolorosamente nesse momento. Outra pedia familiarmente ao criado um copo
de champanhe...
E Guilherme do Amaral, que no perdera um s episdio, nem bebera coisa
que lhe anuviasse os olhos penetrantes, dizia, na sua conscincia: Isto faz
nojo! A boa sociedade isto! Eis aqui a taverna servida com cristais da
Saxnia! Mais alguns copos de vinho, e estes homens despiro as casacas, e
estas mulheres agitaro no ar os tirsos de bacantes! .
Este fragmento era uma reminiscncia do sistema que em Lisboa to mau
pago lhe dera. L, estas convulses de dio ao gnero humano eram ditas em
voz alta. No Porto, o escarmentado rapaz reduzia isso a monlogos, e tinha
juzo. No se fiava de nenhum amigo, no tivera um s lapso arriscado, uma
dessas facilidades gratas vaidade, que molestam a reputao da mulher, j

sentenciada, e destroem a reputao do homem, frivolamente jactancioso. Ela


no perdeu nada, e ele perdeu tudo! Isto um absurdo, e, porque o , creio
nele, como Santo Agostinho: quod absurduin, credo.
O homem que mais de perto tratava Guilherme era o indecente jornalistapoeta, que tive a ousadia de apresentar-vos no baile do baro da Carvalhosa.
Como Amaral poderia relacionar-se com tal carcter, no sei, nem ele o sabia.
O facto, porm, deve ter uma tal ou qual explicao. O cantor de Ceclia, sua
fecunda inspirao de quarenta e oito poesias por ano, era um falador, que
no impacientava: riqueza e nervo de pensamentos, crtica, sarcasmo, riso
fulminante, ironias apimentadas, que faziam saltar a lngua aos que lhas
provavam, experincia comprovada a preo de todas as suas quimeras,
desenvoltura tolerada ao seu talento, ou imposta fora pelo terror da sua
pena molhada em fel... seriam estas as qualidades que atraram Amaral?
Foram; nem o poeta tinha outras que lhe granjeassem estima, ou desprezo,
visto a olho nu, e no estudado vagarosamente.
O provinciano principiara por onde devia acabar: antes de sair da sua aldeia,
falava da sociedade, como se recolhesse ao lar dos seus avs, pedindo aos
deuses penares o tesouro da paz, que perdera nas tormentosas borrascas do
grande mundo. Todo ele, portanto, era uma falsificao; todos os seus
pensamentos e palavras (as obras excetuam-se) um artifcio. No sabia do
corao mais do que os romances lhe ensinaram: no entrara no mago disto,

a pr o dedo sobre a lcera; no se provara em medies de formidvel


sofrimento, essas que so a envenenada iguaria, que abunda na mesa do poeta,
quando ele desse pequeno nmero, que se atravessa na torrente dos factos,
apregoando teorias de uma moral abstrusa e inexequvel.
Se praticasse com o Mentor de Lisboa, alguns dias mais, saberia muito, no
ouviria com tanto empenho as prelees baratas do jornalista. E ningum,
como este, poderia dar-lhas to importantes.
A desiluso no era um clculo, nem a imoralidade uma vocao no autor das
quarenta e oito poesias. Descreu, porque era mentira tudo o que lhe
prometera a infncia; teve razo para descrer. Desmoralizou-se, porque
precisava comungar no oramento social; no era silfo para viver do ar, nem
abelha que se desjejuasse no plen das flores: teve razo de desmoralizar-se. E
quem mais logicamente explicava a sua desmoralizao era ele. Vencia e
convencia, a ponto de Guilherme do Amaral, em rasgos de sinceridade,
confessar que a corrupo do poeta era de todas a mais racional.
E era este justamente o jornalista que, no jantar dado a Amaral, capitulara de
estopador o discurso do seu nobre amigo que lhe afinava a nsia de fumar.
O provinciano, para no perder nada, reparou no jornalista, durante o quarto
de hora de delrio que se seguiu sua estirada proposta. Viu-o sentado fra da
mesa, com as pernas em cruz, deliciando-se orientalmente no fumo, e
torcendo para Guilherme um lance de olhos muito expressivo de zombaria, e

um riso de escrnio, mais picante ainda pela atitude do charuto ao canto dos
lbios.
Os convivas passaram sala prxima, onde o caf era servido. Guilherme deu
o brao dona da casa, a potica Ceclia, casada de sete meses, que teimava
em dizer que no brotara ainda a flor ideal do seu sonhado jardim. Diria
muitas outras coisas, se o maligno poeta se no postasse ao lado dela,
recitando, em aparente abstrao, uma quadra, muito conhecida, da sua
cantara intitulada A Bacante, coisa repulsiva, que parecia escrita sobre a
srdida banqueta de uma taverna. Ceclia erguera-se, e um poeta ocupou a
cadeira vaga ao p de Guilherme.

Fizeste fugir Ceclia, com algum epigrama dos teus... disse Amaral,

risonho.

Nada, eu no fao epigramas s donas da casa onde janto, seno na

vspera, ou no dia seguinte. Estava recitando, na mais santa idealizao dos


meus xtases, uma poesia ntima. Se ela fugiu, foi decerto tua prosa.

s um cnico de alto quilate! s o Carlos Herrera dos meus romances.

E tu sers o Dom Baslio dos meus. s um assombro! Como tu podes

contar com o voto de toda esta gente para a prxima legislatura, isso que eu
no sei como se faz! Quem te deu o privilgio da virtude na imoralidade,
Amaral? Fala franco!

Pois eu sou imoral?

Tu s um gnio! s o Escoro subtilssimo da caricatura! s capaz de

provar a todos estes maridos que trazes cilcios sobre os rins! S uma vez
sincero; indemniza-me de tantas sinceridades que tenho tido contigo; quero s
uma; responde: como estavas tu por dentro, quando disparavas aquela
metralha de ironias a esta gente no teu brinde? Se vais mentir, cala-te.

No minto; respondo: ria-me.

O jornalista deu-lhe um abrao, de p, exclamando:

s um grande homem! Se o mrmore no fosse o galardo pstumo

dos tolos, tinhas uma esttua em vida. Sers feliz at morte! V que estou
inspirado, profetizando o teu destino. O ltimo dia das tuas velhacadas ser a
vspera da tua beatificao. Mestre! No posso recuar; se pudesse, seria o teu
discpulo premiado... Vou tomar caf... No viste ainda uma salva de prata
com charutos de contrabando?... Ela a vem...

CAPTULO VIII

Pois se Guilherme do Amaral, segundo a sua crvel confisso, ria


interiormente, quando reconsiderava a viagem, que as saudades dos generosos
portuenses no consentiam, como se explica esta mudana? H por ventura
um motivo srio que a explique?
H, no pode deixar de haver. Amaral retirava-se saciado do Porto, enjoado
seriamente deste delicioso burgo, que devia ser simbolizado por um Joo
Antunes da Mora de greda, a rir de um pobre forasteiro, que abre a boca,
espreguiando-se, at deslocar as maxilas. A demora do paquete impacientavao at ao momento em que saiu da guia de Oiro, e maquinalmente se deixou
ir entre o enxurro da plebe, que desaguou em Miragaia, na vspera de S.
Pedro.
Quando visitou, segunda vez, a rf da Rua dos Armnios, as suas tenes de
viajar eram as mesmas; os preparativos continuavam, e a esperana de se ver
barra fra, exclamando: fuge crudeles terras, fuge litus avarum, era insofrida.
Foi, pois, Augusta, a pobre costureira de suspensrios, a filha do defunto
carpinteiro, que passou uma esponja sobre o mapa-mndi, que o viajante
prometia trilhar em dez anos de peregrinao, atrs de um desenjoativo. Era
muito; mas realmente era!

Amaral viu esta mulher como at ali no vira alguma, a olho nu, sem a
impossvel formosura ou a monstruosa deformidade das novelas, sem os
ensaios prvios da seduo, sem o doble artifcio que o desejo da celebridade
lhe ensinara, privando-lhe de liberdade a natureza ingnua, crente e expansiva.
Um amor natural e espontneo, gerado na simplicidade do corao,
alimentando-se de si, sem ostentar-se s emulaes dos outros, abastardar-se
no jogo de pequenas misrias, que so a iguaria apetitosa da mulher saciada,
esse amor ainda Guilherme o no sentira, e muita vezes perguntara ao esprito
em liberdade se ele existia fra da inocncia, ou somente nos arrobamentos
das almas propensas ao fantstico.
A esta pergunta respondera Augusta, a mulher simples, a frescura dos vinte
anos com toda a seiva dos quinze, os lbios de rosa sem a mcula de um beijo,
os olhos de uma ternura voluptuosa, como ela se mostra sem os atavios do
fingimento, olhos donde no cara ainda uma lgrima sobre uma iluso
desvanecida.
A ndole mvel de Amaral recebeu como facto o que era apenas urna
impresso nova, exagerou a felicidade em perspetiva, porque o corao,
faminto do verdadeiro amor, rejuvenescia da velhice prematura, oferecia-se
para os jbilos da afeio ingnua, cheio de vigor, imaculado do lodo em que a
impostura o atascara, abrindo-se aos anlitos do ar puro, do santo amor que se

nutre de esperanas, e adora o reflexo do seu objeto no cu, no lago, na flor,


na madrugada, no silncio, nas trevas, e nos sonhos mais luminosos que o dia.
O que ele viu em Augusta era tudo o que podia ser, e o mais que no podia
ser. O gnio, apurado pelo desejo, enfeita a natureza de matrizes, que ela no
tem. A mulher, observada por um desses infelizes parias, que vivem longe de
ns por excurses no deserto da aspirao, transfigura-se, diviniza-se, o
querubim de um dia, a luz efmera de uma bem-aventurana impossvel sobre
a Terra.
Foi assim que a costureira, nica, pela inocncia, entre todas as mulheres, que
Amaral conhecera, se lhe afigurou. Era no acaso feliz de encontr-la que
Amaral se entretinha, acumulando esperana sobre esperana, quando o
jornalista, pontual conviva ao almoo, entrou no quarto.
A verdade expansiva; a mentira retrai-se, esconde-se at aos olhos dos
depravados. Amaral sentia o que sentiria aos quinze anos, estreando-se na
carreira das paixes, por um amor sublime. Queria, agora, um amigo, um
confidente, um homem, que ele tivesse associado sua hipocrisia, para
convert-lo verdade das afeies puras. Mais perto de si vivera s o poeta;
mas j foi dito que Amaral, integrrimo observador do sistema que trouxera
de Lisboa, no tirara nunca a mscara diante de homem nenhum. O poeta
arrancara-lha muitas vezes: surpreendeu-o nas emboscadas traioeiras;
conhecia-o, e dava-lhe uma distinta prova de estima, espionando-o, sem

denunci-lo vindicta pblica. Era uma virtude. O diable Ia vertu ta-t-elle se


nicber!
Guilherme, desde a noite do dia anterior, na sala de Ceclia, entendeu que
devia grandes obrigaes ao jornalista, lngua viperina, satrico inexorvel
contra todas as virtudes impostoras, mas tolerante com as dele. Em tal
homem, este facto incrvel era um direito legtimo confiana, e, da parte de
Guilherme, uma ingratido negar-lha.

Vem c disse Amaral ao jornalista , senta-te aqui na cama. Vamos

conversar como dois poetas da tua fora moral, ou da minha.

Visto que vamos falar seriamente, chega-te para l, que me quero deitar.

A inteligncia concebe melhor na postura horizontal. Diz l.

Como explicas tu o meu plano de no viajar desde ontem?

interrogou Amaral, dando-se no sorriso ftuo uns ares de homem


incompreensvel para o resto do gnero humano.

Do mesmo modo que o teu plano de viajar amanh. Isso no me faz

pensar um momento. Deduzo que no s um homem trivial. Tencionar


executar a qualidade inerente aos espritos-ostras, que se agarram muito
tempo mesma ideia. Dou-te os parabns por nunca saberes o que fars. O
talento assim.

H outra explicao mais razovel na minha mudana.

Impressionou-te alguma das mulheres do jantar de ontem? Faz-me

justia. Eu conheo aquela gente h um ano...

O mesmo dizem elas ao teu respeito... Eles... no. Pois que ?

O amor.

O amor! A quem?

No conheces: uma mulher do povo, uma costureira.

Conheo muitas costureiras, particularmente as da Guichard, as da

Theodorina e as da Andrillac...

No dessa gente: uma costureira que trabalha na sua casa, e ganha

trs vintns por dia.

Isso um capricho de um homem cansado. No preciso que me

descrevas a mulher: imagino-a mais viosa e linda do que ela realmente;


afigura-se-me de uma candura estpida, capaz de desmaiar se tu lhe ofereceres
o teu guarda-chuva na rua. tudo isto; mas o que tu sentes por ela um
capricho de vinte e quatro horas.

Ser?! Mas, se eu te disser que sinto em mim, pela primeira vez, os

elementos de uma paixo sria?

Resisto prova, qualquer que ela seja, e digo-te que essa rapariga nem

ao menos h de marcar na tua vida uma poca de sentimento. Essas mulheres

tm um trono de vinte e quatro horas, e aos ps uma voragem, onde caem


sem deixarem de si sequer uma lembrana. O profeta da experincia fala-te
pela minha boca indigna. Eu j tive alucinaes semelhantes.

Tu estavas corrupto quando te alucinaste: no tinhas uma fibra inteira

no corao. Eu no amei ainda, tenho o corao robusto, o meu amor no


uma alucinao; a primeira que descer at l, deve ter uma grande
superioridade sobre mim, e sobre todas as outras: h de perpetuar-se na minha
existncia, h de entrar como elemento do meu ser, h de encher este vcuo
glacial que sinto na vida.

A ests tu com as frescas reminiscncias do ltimo romance! Enquanto

a mim, vens de ler as pieguices amorudas de algum rou parisiense com a


inocentinha grisette... Diz-me c: tu podes suportar uma mulher estpida vinte
e quatro horas?

Eu no suporto a mulher estpida e m; mas o anjo da simplicidade e

do amor tem sempre tesouros do corao a dar-me, e tantos que eu no dou


metade deles por toda a tua cincia, e a das mulheres espirituosas, no teu
conceito. No quero cincia, quero amor: dispenso os dotes da cabea que
corrompem o corao.
Pois bem: eu tenho dito em poesia tudo isso e muitas outras coisas.
Aconselho aos enjoados dos esplendores da sociedade, e dos seus amores
sensuais, a cataplasma anglica de uma rapariguinha patriarcal, toda pejo, toda

acanhamento. Mas a ti, homem problemtico, digo-te que te mente o corao,


se que tu no lhe mentes a ele. A vai uma profecia: nenhuma mulher,
Aspsia ou Julieta, encher o vcuo glacial que te incomoda... A vem o
almoo...
O tabuleiro foi colocado no meio da cama; o jornalista flanqueou-o com as
pernas em anfiteatro, passando para os ps do leito; o provinciano, com as
dele, fez um tringulo, e, nesta solene e grave postura, continuaram a
discusso dos profundos segredos da alma.

Eu tenho imaginado delcias com esta mulher! dizia Guilherme. Sei

que me ama, sem ela mo ter dito: destes peitos transparentes que deixam
estudar o corao... E um prazer que faria a soberba de um parvo, mas que
produz em mim urna sensao de glria... Vinte anos, a virgindade da alma, a
beleza, um terreno inculto com os embries de todas as flores no seio... a
minha linda cativa!
Ests delicioso; mas o ch pssimo... Onde mora a pequena?

Aqui! respondeu Amaral, pondo a mo no seio, e sorrindo.

Bonito! Fala srio: quero ver a costureira atalhou o vare com a boca

tmida de costeleta.

No a profanars com os olhos.

Enquanto tu a divinizars com as mos... Que pssima distribuio de

gozos! Tenho notado que precisamos mais de uma boa organizao do amor
que da organizao do trabalho... Queres mais costeleta? No est m... chegame essa pimenta... Com que ento, a rapariguinha s pode viver sombra,
como o lrio do vale!... Confias muito pouco nela, ou em ti, ou em mim!... s
um ingrato! Nunca concorri contigo... tendo mil e uma ocasies de...

Muito agradecido, meu generoso amigo... devo-te finezas que no se

pagam com a simples denncia da morada de uma rapariga...

J a tens sob a tua paternal proteo?

No; vou tratar disso.

Ds-lhe uma linda casa de campo.

Justamente.

Rodeada de florestas drudicas, onde viro gemer as brisas da tarde:

uma fontinha, fazendo um terceto sonoroso com a r e a cigarra; um sof de


cortia enramado de hera e coberto das melenas virentes do choro... E ela, de
ombro nu, colo de cisne, e brao de Diana caadora, em rosca voluptuosa
roda desse bem-aventurado pescoo... E, depois, o leito nupcial de
contrabando... cortinados brancos, suspensos nos bicos de dois pombos,
transparentes com as pinturas mitolgicas dos amores e das graas, uma luz
quebrada, um perfume de madressilva colhida por dedos de gata; um tapete

que ensurdece os passos, passos de fada, o fantstico poisar da ondina, mais


ligeira que um sonho de manh; e por fim... uma carga de aborrecimento de
tanta felicidade... o desejo implacvel de outra vida... de outra asneira.
um fragmento do teu folhetim de hoje? o folhetim da vida, meu caro
Amaral! A verdade est, severa e nua, debaixo destes enfeites do estilo. O que
tem feito mal a muita gente no a mentira; o invlucro das palavras
artificiosas com que se doira a algema que as verdades lanam ao pulso do
homem. Em verdade, em verdade te digo, como se diz no Oriente, que de
hoje a um ano no sers mais feliz, e ters feito uma desgraada. Deixa a
rapariga. Essas mulheres no servem para ns.

Para ns! O plural absurdo. j te disse que estou morto, e tenho o

vigor de todas as crenas, creio na virtude, espero do verdadeiro amor uma


felicidade duradoura, dou a esta pobre costureira o meu corao, e ela h de
restituir-mo sem as manchas com que me retiro da sociedade magnificamente
torpe, torpissimamente faustosa.

A te vem a clera dos advrbios... No te irrites.

Faa-se a tua vontade. Retiro a censura... Pode ser que um homem excntrico
depare a ventura fra da esfera onde gravitam os homens. A costureira ser a
flama de um alquimista moral. Procura o absoluto do corao, como o heri
de Balzac, mas no te arrunes como ele. Encontrars, talvez, a verdade
abraando uma tolice. Aquele dentre vs que se cr sbio abrace a loucura

para encontrar a sabedoria: so palavras de S. Paulo, que encontrei, e embuti


hoje como pude no meu folhetim, em que falo de Catulo e Jeremias a
propsito da Norma...

CAPTULO IX

Desembaraado do poeta, Guilherme do Amaral foi Rua dos Armnios.


Augusta, como sempre, estava sozinha. A familiaridade com que Amaral lhe
estendeu a mo impressionou-a; no recusou a sua; mas o rubor dizia quanto
aquele uso lhe era estranho, e a liberdade custosa.

Porque cora assim, Augusta? Um aperto de mo um sinal de amizade,

uma ao inocente, que qualquer menina faz diante de um pai... Eu quisera


no ser para Augusta um homem to estranho que a fez corar, se lhe aperta a
mo. No me responde? Esse seu silncio arrependimento de abrir a sua
porta a um homem que no conhece?

No, senhor, eu por agora no tenho de que me arrepender...

Nem espero que venha a ter; e para que no seja injusta comigo,

arrependendo-se por alguma suspeita, devo desde j dizer-lhe que sou um seu
verdadeiro amigo... No acredita que eu seja seu amigo? Olhe para mim,
Augusta; no a quero ver assim envergonhada; ou est comigo como se est
com um irmo, ou eu no torno aqui.

Porqu? Eu no sou capaz de dizer a vossa senhoria palavras que o

magoem... Sou-lhe muito obrigada...

Obrigada! Ofendeu-me, Augusta, quando me prometia no me

magoar! Obrigada! A que favores!

No so pequenos...

Basta! A tal respeito nem mais uma palavra. Augusta dispensa os meus

servios, e os servios que eu posso fazer-lhe no a obrigam a receber-me na


sua casa, se o seu corao lhe repreende a confiana que me d. O que nos
prende no so os servios, a simpatia, o desejo de tomar como nossos os
sofrimentos ou os prazeres de uma outra pessoa. Eu sinto por Augusta o que
s pode sentir um pai por uma filha; desejo-lhe a sua felicidade; queria elev-la
at onde a sua ambio a elevasse; queria, enfim, dar tudo o que tenho, e ser
mais do que sou para ouvir-lhe dizer: Guilherme, devo-te o cu, que me
deste neste mundo.
Augusta no ousava fixar Amaral. Sentia um sobressalto no corao,
semelhante ao efeito de um susto. Frios e calores iam e vinham ao belo rosto,
que acusava fielmente as emoes de dentro. Gostava e sofria, desejava e no
desejava aquelas palavras, umas graves como as do amor paternal, outras
suavssimas de certa doura que no vm nas palavras de um pai. No se
lembrava que estava s, e, contudo, parecia-lhe que tais palavras era mau ouvilas uma rapariga, sozinha. Felizmente, Guilherme cedeu ao impulso da
inspirao. No era o fingimento que o auxiliava na expedio da frase. O
esprito frio tem a habilidade de aquecer a palavra submissa impostura. Nele,

no, pelo menos nesse instante. Disse o que nunca disse da abundncia do
corao, que pela primeira vez falava, na sua linguagem nativa, embalsamada
com os perfumes prprios, vestida simplesmente, grata aos ouvidos, no
viciados pela msica dos conquistadores por estilo.

Eu dou liberdade minha alma, Augusta prosseguiu ele, tomando-

lhe a mo. Repare bem na firmeza das minhas palavras... Esta segurana s
a d o amor e a honra. Eu amo-a, Augusta; mas este amor no pede
sacrifcios, nem inventa sedues, nem sal do caminho da verdade, para
esconder-se nos atalhos da impostura. Amo-a h vinte e quatro horas, como
se a conhecesse, amando-a, desde criana. Se me disser que este amor no
pode ser recompensado, beijo-lhe esta mo com reconhecimento, e digo-lhe:
fez bem, Augusta, em desenganar o homem que poderia fazer mais infeliz do
que ...

Vossa senhoria no v que eu sou uma pobre? disse ela, retirando a

mo trmula.
Que tem a riqueza com o corao, Augusta? Pois s poderia amar-me sendo
rica?

Ningum procura uma rapariga pobre... Isso era bom se o senhor fosse

um oficial de ofcio. Dizia a minha me que uma rapariga que quer ser mais do
que , por mais que seja, ficava sempre menos do que era.

E pensa que eu tenho a vaidade de dizer-lhe que pode valer ainda mais

do que vale? No, Augusta: a menina, sendo o que , no pode invejar mulher
nenhuma. Se soubesse o que tenho sido, julgava-se neste mundo primeira
entre todas as mulheres. Amava-me com dedicao, porque diria, vendo-se
to amada, que nenhuma outra poderia impressionar-me tanto... Augusta,
temos um belo futuro. Seja minha, diga-me que d ao meu corao todo o
domnio sobre a sua vontade.

Eu no entendo o que a vossa senhoria diz... atalhou a costureira,

assustada, afigurando-se o perigo da sua imprudncia.

No me entende? Diga antes que me no ama... No me pode amar,

Augusta?
A rapariga baixava os olhos em significativo silncio, quando o pontual
fabricante entrou, pedindo licena j com um p dentro da casa. Augusta
estremeceu. Guilherme fixou-o com superioridade e aborrecimento.
Francisco, embaado com a repetida surpresa, gaguejou um cumprimento
prima, sem dirigir sequer um gesto ao hspede, e sentou-se com grosseira
liberdade. Guilherme sofria no seu orgulho, e sentia-se, como se diz,
falsamente situado na presena do artista silencioso e da costureira vexada. A
fisionomia dela exprimia aflio; a do primo, clera comprimida.
Amaral era pouco inventivo em conflitos srios. No lhe ocorreu uma
frivolidade com que sair-se do aperto. V-lo assim era julg-lo imbecil

provinciano, pilhado nas tralhas de uma esparrela! Ergueu-se, fez um gesto de


cabea a Augusta, e disse, olhando com a sobranceria do desprezo sobre o
fabricante:

Passe muito bem, menina. No h notcia de um desenlace to prosaico

em cena que prometesse tanto! Augusta abaixara a cabea, cortejando-o, sem


responder-lhe. Francisco, corri os cotovelos sobre os joelhos, embrulhava um
cigarro, e assim permaneceu at que o hspede saiu.

Que te quer este homem, Augusta? perguntou Francisco sem

aspereza.

Que me h de querer? Passou por aqui, e entrou.

A falar a verdade, esta rua no est afeita a ver destes passeantes... A

apostar que tu no sabes o que ele te quer?

Eu no...

Ele ainda to no disse?

No me disse nada.. . que me h de dizer ele?!

Ainda s de bom tempo... Achas que estes petiscos do ponto sem n?

Eu logo vi que as duas peas levavam gua no bico... pudera no... j no h


quem d nada por serdes vs senhor quem sois... O que eu te digo que te
guardes, Augusta...

Bem guardada estou eu... Bem digo eu que me no conheces, Francisco.

Isso so lrias, rapariga... Quem me avisa meu amigo ... Eu que te digo

isto, porque me bacoreja no peito que este homem no vem c somente


para saber da tua sade.

Pois deix-lo... est enganado comigo...

Todas assim o dizem, Augusta, e ao lavar dos panos que so as

contas.

Ento que queres que lhe diga? Que no torne c?

Acho que era o mais acertado.

Isso que eu no fao; no sou malcriada nem ingrata. Um homem que

acudiu s minhas aflies, quando eu aqui estava com o corpo morto da


minha me nos braos, porta fechada, e demais a mais foi chamar a tia Ana
do Moiro, e me deu uma esmola de trs moedas, hei de mand-lo sair da
minha casa? Isso ao que eu no fao por coisa nenhuma... Deus me livre!

E se ele te disser que te quer bem, e te seduzir como estes senhores

fazem s raparigas pobres como tu?

Se me seduzir!... E tu sabes que ele me quer seduzir?!

Acho que sim.

Porqu?

Porque s nova e bonita, e vales bem as trs moedas.

No digas isso! Tu tens muito m lngua! Nenhum homem pode falar

com uma rapariga sem ser para seduzi-la!... E se ele for meu amigo?

Ah! Tu j assim ests?... Boa vai ela!... No te faas desgraada, Augusta.

V l o que fazes... Olha que ele no casa contigo...

E eu j disse que ele queria casar comigo?!

Pelo domingos se tiram os dias santos Tu j tens l no corao a

molstia... Enquanto a mim, o homem j te encheu a cabea de teias de


aranha... Ests servida... Para boa sorte te criou a tua me... Se ela fosse viva,
no vinha c este homem... Hs de dar-lhe muito gosto com este namorado...
L vir o tempo em que toras a orelha, e no hs de tirar sangue...

Acomoda-te, Francisco! No me aflijas! Eu ainda no fiz nada porque

perca.

Mas podes fazer...

A graa de Deus no me h de abandonar...

O mal teu, Augusta. Parece mesmo que o Diabo as arma! Quero casar

contigo para te ganhar o po, e tu fazes-te fina; aparece um patavina que te d


duas peas de mo beijada, e tu recebe-lo em casa, pensando que o santo
rapaz anda por este mundo a dar peas s raparigas pobres... Andar, andar;
mas o pior o resto...

Santo nome de Jesus, que me fazes perder a cabea! Que hei de eu

fazer?

Queres tu que eu lhe diga que no venha c?

E tu sabes onde ele mora?

Sei. Vi-o no domingo entrar para uma hospedaria na Batalha, e

perguntei se ele morava ali; disseram-me que sim.

E que mais soubeste dele?

Soube que era um fidalgo da Beira, muito rico, tem lacaios, e d-se-lhe

excelncia l na hospedaria.

Mas no casado?... atalhou com veemncia a costureira.

Boa vai ela! j te lembras se ele casar contigo! Pois no!... Vo-se ler os

banhos domingo... pois no leste!...


Augusta, acaba com isto enquanto tempo... Queres que eu lhe diga que no
venha a tua casa?

No...

No! Ento fala assim de uma vez para sempre... Gostas do paralta?

No gosto nem deixo de gostar... As coisas fazem-se doutro modo... Eu

bem sei o que hei de fazer. No se te importe a minha vida...

No vai a arrenegar, rapariga... Ests no teu direito. Assim como assim,

o que eu te digo so palavras que leva o vento... Tu te arrependers... Fica-te


com Deus...
O fabricante ia sair, quando a prima o segurou pelo brao, chorando.

Vem c, Francisco; no sejas meu inimigo.

Agora sou!... Se eu no fosse teu amigo, dizia-te que fizesses tolices e

comesses a isca que ele te deu no anzol das tais duas peas... Pensa, e faz o
que quiseres. Amigo hei de eu s-lo teu at morte... Quando me procurares
hs de achar-me... Se no queres casar comigo, porta-te bem, que te no ho
de faltar maridos; mas pano com ndoa no vale a quarta parte... Adeus,
Augusta; so horas de ir para o trabalho...
A costureira, sozinha, chorou muito. E que lgrimas! As primeiras, as
primcias do fel que paga o primeiro amor! Coitadinha, a fascinao era
invencvel! O primeiro raio de sol desabrochou de repente a flor toda, todos
os perfumes lhe vieram do selo, no escondeu um s polmo do seu nctar
primeira abelha que lhe tocou.
Mas a profecia, rudemente inexorvel, do fabricante, era-lhe um agoiro de
perdio infalvel. A generosidade de Guilherme pareceu-lhe um meio de
perd-la e as visitas posteriores e as palavras que lhe ouvira, uma hora antes,
tudo vinha confirmar as suspeitas de Francisco. Vejam quo pouco basta para
matar a inocncia!

Mulher, como todas, Augusta queria suspeitar as intenes de Guilherme; mas


no queria que os outros lhas descobrissem. Queria ter de lutar contra a
tentao; mas no queria que o seu primo a adivinhasse. Assim pois que a
conscincia transige com a conscincia, e muitas vezes a opinio de
estranhos que l desperta a inquietao e o remorso.
Um hora a chorar e a pensar devia preceder uma resoluo qualquer. Augusta
fechou a sua porta, e entrou na da tia Ana do Moiro.

A que vens, Augustinha? Vens com olhos de chorar? o mafarrico do

teu primo, que te persegue? Manda-o ao Diabo; Deus me perdoe, se peco.

outra coisa, tia Ana... Vossemec no disse muitas vezes a minha

me...

Deus lhe fale na alma...

Que lhe queria comprar a casa?

Disse, e no se me d de ficar com ela pelo que disserem os louvados.

E tu queres vend-la?

Eu digo-lhe, tia Ana: preciso de trs moedas; se eu lhas pagar dentro de

seis meses, com juro, fica sendo a casa minha, e, seno, vossemec d-me o
que faltar, com a condio de eu ficar na casa, enquanto viva, pagando-lhe
aluguer.

Tudo se pode fazer: mas que diacho de razo tens tu para vender a

casa?

Preciso de dinheiro...

Estou dando no vinte! Enquanto a mim, tu tiveste algumas histrias

com aquele senhor, que te deu as duas peas, e queres pagar-lhas.. Fala para a,
menina... Bem sabes que coisa que se me diz, pedra que cai num poo.
Augusta no pde estancar as lgrimas; e, como se elas no bastassem,
confessou tudo vizinha matreira, para quem as intenes do generoso
protetor da rapariga eram maliciosas antes de o serem.

Isso so arrufos, Augusta, no te aflijas! disse a filha do Moiro,

fazendo-se conhecedora do caso.

Vossemec est enganada... disse a costureira, soluando, ferida pela

suposio da vizinha. Eu no tenho dares nem tomares com o tal senhor...

No?! atalhou ironicamente a peixeira. Pois eu havia de jurar que

ele te queria muito!... H dois dias que o vejo entrar na tua casa sempre
mesma hora, e da fama j te no livras, rapariga...

Santo nome de Jesus! j me no livro da fama? Pois falam de mim?!

Pudera no... Pois pensavas que as vizinhas no tm olhos?!... A gente no


guarda cabras...

A luz me falte, tia Ana, se eu fiz coisa porque perca!

Pois sim, sim: mas que queres? Vo l tapar as bocas ao mundo! Eu, se

fosse a ti, tanto se me dava que falassem como que no. s tu livre? No tens
pai nem me; cada qual toma o rumo por onde lhe faz conta. E ele teu amigo.

Eu sei c se meu amigo ou se no !.. . Tanto se me d que seja como

que no... Vossemec empresta-me o dinheiro? Acabemos com isto... j te


disse que sim, conta com ele, mas quero que me digas o que foi isso. Assim
como assim tudo se sabe...

Eu lhe conto, tia Ana. O tal sujeito chama-se Guilherme, no do

Porto, est numa hospedaria na Batalha e fidalgo.

Cspite! Ainda o queres melhor?!

Deixe-me contar-lhe... Ele disse-me que era muito meu amigo, que me

tinha amor de pai, e que me queria fazer feliz.

Olha a tolinha! E tu no...

Eu no lhe disse que sim nem que no... Disse-me uma palavras que me

fizeram chorar, e, no sei porque era... ao mesmo tempo gostava de ouvi-lo


falar assim. Tinha-lhe medo, e no queria que ningum estivesse ao p de
mim; era uma coisa que eu no sei dizer-lhe o que era. S a lembrana dele me
fazia esquecer a minha me. Parece que adivinhava quando ele vinha; o
corao tremia-me e subia-me um calor cara que nem de febre. Quando ele

me disse hoje que me tinha amor, eu senti uma alegria c dentro, que me fazia
endoidecer. Ento depois, entrou o meu primo, e ele esteve um bocado sem
dizer nem palavra, e saiu com m cara. O Francisco comeou a dizer-me que
o que ele queria era seduzir-me, e abandonar-me... Sempre chorei, tia Ana!

Deixa-o falar... O Francisco o que ele queria sabemo-lo ns... s vezes,

Augusta, estes homens ricos casam com raparigas pobres, e so muito amigos
delas. S do meu conhecimento h trs casadas hoje no Porto com figures:
uma, que era criada de servir das senhoras Lacerdas, baronesa; outra, que
tinha um estanquinho na Rua do Prncipe, est casada com um figuro, que
assim a modo destas coisas do Governo; outra, que me comprou muito peixe
fiado, quando o amigo andava l por fra na emigrao, anda de carruagem, e
faz que me no conhece... Coisas do mundo... Mas diz o que queres fazer
agora?

Quero dar-lhe as trs moedas, e no quero que ele torne a minha casa.

Ento no gostas dele?

Gostava, se ele me quisesse para bom fim; mas, como diz o meu primo,

estes senhores no casam com raparigas como eu.

Pois faz como quiseres, Augusta... no te digo uma nem duas. O

dinheiro vou dar-to j, se o queres.

Pois se faz favor... Olhe l, tia Ana, ser melhor mandar-lho?

Como quiseres; se tu queres, levo-lho eu.

Pois sim... Mas seria melhor que ele o recebesse da minha mo... No

v ele tomar como desfeita...

Pois sim...

E ele, depois, decerto no tornar a minha casa.

Se tu o impontas, como h de ele tornar? S se no tiver vergonha.

Mas eu no queria fazer-lhe desfeita...

O rapariga, eu no te entendo, assim me Deus salve! Queres que ele

venha ou no venha?

Queria que ele no viesse; mas no se me dava que ele fosse meu

amigo,

Como h de ele ser teu amigo sem te ver? Longe da vista,, longe do

corao.

Eu queria que ele...

Diz l o que querias; no morras embuchada. .. a gente entende-se pelas

palavras...

Queria que ele viesse a minha casa, de vez em quando; mas no queria

dever-lhe nada...

Pois ento paga-lhe as trs moedas; mas olha que ele no tas aceita.

No que ento mando-lhas.

Isso outro caso, mas depois no esperes por ele mais...

o mesmo... D-me o dinheiro...

V l, menina; no ds um pontap na fortuna... Olha que ela vem uma

vez, e nunca mais torna...

Que fortuna?!

Se ele te quer fazer feliz, anda para diante...

No me d esses conselhos, tia Ana... Tenho medo que a minha me

venha do outro mundo repreender-me...

Faz o que quiseres, Augusta.

A costureira saa da casa da vizinha com as trs moedas, quando Guilherme


do Amaral, pela terceira vez, batia porta dela. Augusta, se no fosse vista,
escondia-se: tal era a perturbao e o tremor instantneo. Era tarde para fugir.
Foi, sem ver o caminho que trilhava. A tia Ana, da janela, fazia um aceno
familiar com a mo a Amaral, que lhe correspondeu. Neste aceno dizia ela
mimicamente: Conte comigo se eu for necessria.
A tia Ana negociaria a honra de Augusta como o seu pai negociara a vida do
chanceler.

Augusta, erguendo apenas os olhos para Guilherme, que lhe cedera


cortesmente o passo da porta, entrou na sua casa, esquecendo ou ignorando a
delicadeza da primazia na entrada ao hspede.

D-me licena, Augusta? disse ele com acanhamento imprprio.

Faz favor de entrar...

Eu venho restituir-lhe a paz que lhe roubei, menina. Quis faz-la feliz, e

no pude. Entrei nesta casa com a teno de ser bom, e retiro-me talvez,
deixando, em vez de amizade, dio; em vez de saudade, esquecimento. Nunca
eu ouvisse os seus gritos, Augusta, quando aqui vim guiado a esta rua por um
acaso. Foi para ambos ns infelicidade v-la eu. Para mim porque a amo com
paixo; para Augusta que me queria, talvez, amar e no pode. Algum tomou
posse do seu corao primeiro que eu. No tenho dio a quem a merece, seja
quem for. Se seu primo, seja feliz com ele...

Meu primo! atalhou ela estremecendo de emoo. O senhor est

enganado comigo...

Pois se no seu primo, seja quem for...

No ningum.

Ningum? Para que mente, Augusta? No tem necessidade de enganar-

me... outro amor que a no deixa ver o muito que a estimo, a felicidade que

lhe preparo, e o desprezo em que tenho todas as coisas deste mundo desde
que a conheo. Augusta, diga que me no pode amar porque ama outro...
A costureira deixou ver em todo o seu esplendor o brilho dos olhos
inteligentes, fixando-os no rosto insinuante de Guilherme.

Vai dizer-me a verdade... continuou ele. Vai dizer-me que no

pode ser minha, porque doutro.

No sou de ningum, j lho disse...

Mas o seu primo, h pouco, mostrou-se ofendido de me encontrar

aqui...

Meu primo no tem nada comigo... O senhor j sabe que ele quer casar

comigo, e eu no caso com ele...

Nem com outro?

Com outro? Isso no sei... consoante o corao me disser...

E de mim, no lhe diz nada o seu corao...

Do senhor?... Se eu fosse rica, ou o senhor pobre como eu...

Quereria ser minha?...

Mulher... decerto queria...

Ento, no lhe sou to aborrecido como eu pensava...

Nunca foi... E ama-me?... No me responde? j sentiu por outra pessoa o que


sente por mim?

Nunca!

jura-me que nunca?

Por esta luz que me ilumina.

Ento porque me no diz que minha? Porque me no segue? Porque

no sai desta casa para outra em que se veja senhora de tudo, que faz a
felicidade deste mundo?

Sair daqui?!...

Pois que dvida tem em deixar uma casa que no digna de si?...

As coisas no se fazem assim depressa... Antes disso...

Diga... antes disso... o qu?

Vossa senhoria bem pode entender-me... Eu quero viver com honra...

e, quando sair daqui, h de ser para entrar na igreja...

J?

Pois o senhor para que fim me quer?

Para ador-la... e no futuro...

Bem mo diziam a mim... O senhor o que quer fazer-me infeliz... Pois

isso, no. Enquanto puder trabalhar, hei de viver com honra como a minha
me viveu; em me faltando as foras, pedirei uma esmola.

Isso quer dizer que me no ama...

Ento que hei de eu dizer ao senhor? Se amar botar uma rapariga a

perder, mau amor o seu...

E eu quero p-la a perder? Augusta, no se fie nos embustes do seu

primo. Confie-se em mim, e deixe minha vontade a nobre recompensa de a


fazer minha esposa, quando algum tempo se tiver passado... Antes de ser
minha mulher, queira que eu conhea bem o seu gnio; e, se ele se conformar
com o que eu imagino que a menina , ento a farei senhora de tudo que
meu, aos olhos do mundo, porque aos meus olhos j o ...

E se o meu gnio lhe no agradar?

H de agradar.

Mas suponha que no? Quantas pessoas parecem aquilo que no so!...

Se essa desventura acontecesse, Augusta, nunca precisaria trabalhar...

Porqu?

Dava-lhe um dote com que poderia viver independente...

Agora que eu entendi tudo atalhou ela, como despertando beira

de um abismo. Tenho visto o que o senhor quer... Eu no me vendo...


Tenho vinte anos, mas sei, por ouvir dizer, o que vai pelo mundo. Vivo bem
na minha pobreza, no invejo ningum, e por isso no aceito os seus favores,
porque no preciso deles.

No seja ingrata, Augusta... Eu nunca lhe fiz favores, mas deve

agradecer-me os desejos de ser-lhe til...

J me fez favores que eu muito agradeo. Deixou-me trs moedas de

oiro, mas elas aqui esto; perdoar serem em prata...


Amaral recuou diante da mo que lhe oferecia o dinheiro.

Ofende-me cruelmente, Augusta! Eu no lhe mereo isto!

No pelo ofender... Ento precisava, e agora no preciso... Faz favor

de aceitar?

No aceito.

Pelo amor de Deus, receba este dinheiro...

No me trate assim, Augusta! Se tem escrpulos de honra em aceitar

esse dinheiro, d-o pela minha inteno aos pobres; mas, por quem , antes
me diga que me despede, eu no voltarei; o que no posso sofrer que me
empurre como um vil credor pela porta fra...

Eu no o mando sair, senhor interrompeu ela comovida, com as

lgrimas a fio.

Pois que maneira esta de tratar uma pessoa que, se lhe no fez bem,

tambm lhe no fez mal? Disse-lhe que a amava: isto ofendeu-a?

No, senhor...

Disse-lhe que a queria fazer feliz com o meu amor e com a minha

riqueza, pouca ou muita... Isto ofendeu-a?... Responda, Augusta...

O senhor quer fazer de mim sua amiga, e no sua esposa.

Minha amiga! Que feliz eu seria se a pudesse fazer minha amiga...

Quer amar-me de um modo que eu no possa aparecer com a cara

descoberta... Todos ho de dizer:... Aquela rapariga a amiga de fulano...

E que digam? Que lhe importa o que disserem, se Augusta vive s para

mim? Se eu tivesse de ser maltratado pelo meu pai, pela minha famlia, pelo
meus amigos, por todo o mundo, bastava-me o amor de Augusta, para eu
desprezar tudo que a no respeitasse... Pois a menina persuade-se que s o
casamento faz a felicidade e a honra de uma mulher? Est muito enganada, e
tem razo, porque no sabe nada do mundo. A mulher casada no feliz
quando se no conforma com as inclinaes do marido, e vive num contnuo
inferno de portas adentro. A mulher casada no tem honra, quando, obrigada
por um mau marido, esquece os seus deveres, ou julga que no tem nenhuns

com um marido que falta aos seus. Entendeu-me, Augusta? Nunca ouviu falar
como eu falo?

A quem havia eu de ouvir essas palavras? Eu no conheo seno o meu

primo, e oxal que... no conhecesse mais ningum...

Pois bom que me caiba a mim abrir-lhe os olhos para ver as coisas

como elas so; a no ser eu, poderia ser que outro lhe deixasse a experincia, e
tambm o remorso. Eu no. Digo-lhe isto, com a certeza de que no ser
minha. Quisera poder preveni-la contra as tentaes de algum sedutor que
venha, depois de mim, inquietar a sua doce tranquilidade. Ora pois, Augusta,
eu vou retirar-me, e a menina fica feliz...

Feliz!... Eu nunca mais posso ser feliz... Por isso que eu digo que oxal

eu nunca conhecesse seno o meu primo... Esse no me fazia bem nem mal...

E eu que mal lhe fiz!...

No sei, senhor Guilherme...

Quer dizer que a ofendi, sim?

Fez-me infeliz ... Eu nunca mais posso ter descanso... no o tornando a

ver...

E um anjo, Augusta! exclamou Guilherme, beijando-lhe a mo e

calando a impetuosa eloquncia do jbilo, que ela no compreenderia.

E talvez compreendesse. Amaral desconfiava que no. Bem se v, durante este


estirado dilogo, como ele procurava nivelar a frase curta capacidade de uma
costureira. No sabia o provinciano que h fenmenos de inteligncia na
mulher, uma espcie de adivinhao, luz sbita que lhe aclara o entendimento,
enquanto lhe soam aos ouvidos incultos as palavras de um arfante,
magicamente harmoniosas.
Entre parntesis: eu disse uma vez, a uma rapariga do campo, coisas
monstruosas de ternura em estilo de drama. Creio mesmo que misturei na
minha alocuo lancinante um fragmento dos Dois Renegados, tragdia em
voga. A rapariga fixava-me uns olhos pvidos de penetrante inteligncia. E
entendeu-me, creio eu. Querendo explicar o fenmeno, lembro-me que fiz, de
outra vez, parar uma doninha, escutando-me um arpejo de violo! Segredos da
mulher e da doninha. H mihi? qualis erat!...

CAPTULO X

Cedendo a mo ao casto e fervoroso beijo, Augusta sentiu aquecer-lhe o


sangue o fogo daqueles lbios. No tinha nimo de retirar a mo, nem
Guilherme vontade de larg-la. Se era muito conceder, ela no se mostrava
arrependida; se era pouco do muito que havia a gozar, ele no pedia mais. Era
esse o mtuo enlevo de duas almas, que deviam assim unidas tocar o cu, se
nesse instante a morte as despisse do invlucro material, prfido agente de
todas as loucuras. Mas a morte no ousaria tanto, ao v-los to embriagados
nas momentneas delcias da vida. O que ela faria era passar, sorrindo da
brevidade do gozo humano e da sede insacivel da alma, enquanto no desata
os ns, que a prendem fonte das guas impuras c de baixo.
E os lbios sfregos de Guilherme continuavam a libar no sei que douras da
mo extraordinariamente delicada da costureira. A ansiedade de delcias novas
impacientava-se. Como a abelha, que salta de uma em outra flor, o sequioso
amante buscou pascer a fome do ideal nos lrios do colo alvssimo. Ao
movimento inesperado, Augusta fez um sinal de despeito; mas no fugiu.
Cingida na cintura pelo brao convulsivo, tremeu como o brao que a cingia,
mas por sensao diversa. Ao sentir no pescoo o roar spero de um bigode,
e a calidez custica dos beios, fez um esforo impetuoso, soltando-se dos
braos e, desta vez, fugiu, escarlate como a rom, meigamente ressentida,

como a Haide num dos contos de Byron, que no cito textualmente, porque
no das coisas mais moralizadoras que eu conheo.
Augusta! disse Amaral, sem persegui-la. No me voltes as costas! Olha para
mim... No achas to agradvel o tu na boca de um homem que te ama?
Trata-me assim tambm. Ora diz: s o meu Guilherme... e eu sou a tua
Augusta. No queres dizer? M! Tambm a no quero tratar por tu...

Trate-me como quiser; mas eu... no devo...

Deves, Augusta. Eu no sou s teu irmo, nem teu amigo; sou mais que

o teu marido, sou teu, de alma e corao, teu por toda a vida, embora no
sejas minha. No s?

Sou... uma infeliz, se o senhor quiser que eu seja...

Eu! Poderei eu fazer-te infeliz? Hs de ainda arrepender-te do que me

dizes... Quando no tiveres nada a desejar nesta vida, olhars com tristeza para
isto que foste antes de me conhecer. Augusta! De hoje em diante no h
mulher nenhuma que no inveje a tua sorte. H muitas que ao verem-te, linda
como s, ho de morder-se de raiva. Os teus vestidos sero os mais ricos, a
tua casa a mais asseada, os teus desejos os mais depressa adivinhados, Eu hei
de adorar-te como mulher a quem devo a felicidade, que todas as outras me
roubaram. Sers o meu anjo-da-guarda. Nunca sairei de ao p de ti. Nasceste
mulher, hei de fazer-te senhora. Antes de um ano abrirs um livro ao p de
mim, e lers os infortnios dos amantes infelizes, enquanto ns nada teremos

que nos assemelhe na nossa sorte deles. Passado um ano, no te conhecers.


Educada pelo meu amor, sers tudo o que pode ser um mulher de alto
nascimento. Entrars numa sala, e as que te no conheceram na Rua dos
Armnios perguntaro donde veio mulher to bela, e to espirituosa. Ser
ento que os teus olhos, cheios de lgrimas de reconhecimento, viro
encontrar nos meus o orgulho de te possuir...
No seu arrebatamento, Guilherme esqueceu-se que falava com uma
costureira, e por pouco no se perde na nevoenta fraseologia com que
apaixonara Ceclia, com que embriagara Margarida, e com que aturdira muitas
cabeas vertiginosas.
Coisa espantosa! A costureira entendeu-o, sem dicionrio! Repetiria, pouco
mais ou menos, as expresses sumptuosas que a encantavam! Iria, como as
pedras de rojo ao som ida lira de Anfio, atrs daquele harmnico de palavras,
ainda mesmo que elas fossem as flores onde se esconde a vbora.
Mas no eram. Guilherme do Amaral nunca fra to sincero. O seu corao,
crena, esperana e orgulho estavam nesse prospeto de ventura, talvez
mentiroso como todos os prospetos com grande recheio de promessas.
Se ele se enganar, a culpa no dele: culpai a inconsequente natureza. Se ela
mente, como pode ser responsvel a vtima! No basta ao homem ser
atraioado por ela! Quem perde seno o pobre sonhador de venturas
impossveis! Julgam-no mau, porque o infeliz no encontra o gozo duradoiro,

que a imaginao lhe impe? Condenam-no, porque ele se devora em paixes


incessantes, e envelhece na mocidade? Injuriam o sequioso viajante no
deserto, porque no encontra uma gota de gua?

CAPTULO XI

O jornalista era um profeta. Os antigos videntes f-los a santidade; a


corrupo faz os profetas contemporneos. No homem gasto, vo-se as
iluses, e fica a experincia. Ora a experincia o sexto sentido, a intuio
luminosa do futuro, a prescincia das indues infalveis de um princpio
imoral. E a nica superioridade dos corrompidos sobre os puros.
O leitor recorda-se daquelas ntimas confidncias de Guilherme ao seu
comensal, num almoo na guia de Oiro.
O poeta ia adiante dos projetos do provinciano, delineando a arquitetura
romanesca da casa em que a sedutora costureira contaria por palpitaes do
corao os minutos da encantada existncia do seu efmero amante.
Para averiguarmos a importncia proftica do jornalista, procuremos Augusta.
Na Rua dos Armnios, no. A tia Ana do Moiro, conversando com o
Francisco fabricante, diz que Augusta fechara a porta, levara a chave. No dia
imediato quele em que lhe pedira e restitura trs moedas. O fabricante
chorava como uma criana ao p da filha do barqueiro, que no tinha jeito
nem vontade de consol-lo. Para ambos era claro que Augusta se entregara
descrio de Guilherme; todavia nenhum sabia onde ela estava. O artista,
instigado pelo cime e pela clera, fra guia de Oiro informar-se do

hspede; mas os criados disseram-lhe, o mais laconicamente que puderam,


que o Sr. Amaral sara da hospedaria.
Eu tenho obrigao de contar o que o fabricante no sabia, nem a Sra. Ana do
Moiro, nem os serventes da hospedaria.
Sabem onde o Candal? essa pitoresca colina que se levanta por detrs das
runas de um castelo, donde Gaia, a formosa moira, espreitava a frota do
godo, seu querido roubador, segundo a mitologia deste maravilhoso torro do
Ocidente. Como estendal de fadas, de longe braqueiam as risonhas casas,
olhando soberbas para o Porto, com o garbo de camponesas, frescas e
toucadas de flores, sem inveja aos peristilos de prfido, aos mosaicos das
alterosas paredes, s opulentas gradarias de bronze. De cada quebrada do
monte sobranceiro rebentam jorros de gua argentina, que se desenrolam
sobre a imensa alcatifa de esmeralda, que vem do sop dos edifcios, to
lmpida, a sujar-se nos becos imundos de Vila Nova, taverna que d vinho
para todo o mundo, asquerosa como nenhuma outra taverna do mundo.
Fujamos daqui para o alto. L, sim. De cada copa de madressilva julgais ver,
rociada de orvalho, surgir urna drade, encostada urna das guas, que
rumorejam entre os silvados. O poeta sobe de l nos xtases do idlio a todos
os cus da imaginao rejuvenescida. Os cnticos de Sintra, cantados c,
parecem seus. Os amores famosos de dois poetas, que alm choraram,
Bernardim e Cames, concebem-se aqui, explicam-se, entram no esprito

como um quinho de dor suave, e da saudade lcida dos amores de outro


tempo. No sabeis o que o Candal, se o no vedes assim.
Por l passara um dia Guilherme, quando o Sol se atufava no mar, deixando
sobre o oceano larga esteira de prata, em cintilantes escamas. Era essa, pois, a
hora da saudade, a do meditar anelante, a hora da poesia, que desce do cu ao
corao de todo o homem.
Amaral, sem testemunhas, com os seus instintos, no falsificados feio da
celebridade, que se procurava, era poeta, era sonhador, despia a face da
mscara abrasadora, sorvia o ar puro da natureza, sentia-se convalescer da
dolorosa enfermidade do tdio, e ansiava outro mundo melhor que o seu.
Foi no Candal que ele sentiu mais lcida a intermitente da poesia. Parara,
contemplando o ocaso do Sol, que durante dois anos no saudara, desde que
esquecera essa hora, to misteriosa na sua aldeia. A emoo, que primeiro lhe
acordara a sensibilidade entorpecida, foram saudades da sua me, imagem
santa, que vinha pedir-lhe uma lgrima tardia. Depois, uma a urna, as saudades
da sua vida infantil; o prado mais querido, a rvore de mais doce sombra, o
regato de mais plcido murmrio, a flor valida, a montanha das tradies
medonhas, o velho rafeiro que lhe lambia as mos, o escabelo de pedra no
trio da velha capela onde lera o Ren, o seu mais predileto livro dos quinze
anos. Depois, desce vida do homem prematuro. Encontra uma tediosa
uniformidade de cenas: amor sem paixo; impostura de insensato, que se

quisera destacar do vulgo, dando-se a importncia de heri de um medocre


romance. Teve vergonha de si: viu-se miservel, ignbil, e mais trivial que
todos os ftuos do seu conhecimento.
Deste lodaal levantou-se agarrado s asas do querubim da esperana. Alteouse at Deus, deixando em baixo o atesmo que abraara sem convices de
ateu; que abraara, porque era incompatvel a virtude com a sua mentirosa
personificao. De l, observou a terra a olho nu, e viu que a felicidade no
era uma quimera de infelizes?. Imaginou a mulher amada, reclinando-se nos
braos do amante, do amigo sincero, do benquisto dos homens, dela e de
Deus. Mas a mulher arriada, onde estava ela? A que zona, a que torro do
Globo levaria o poeta o eco da sua invocao?
As mulheres do seu mundo passaram-lhe diante dos olhos, e ele voltou a face
enojada para no v-las. Eram frvolas, transfiguradas como ele, destras na
impostura, recebendo a mentira pomposa com mais amor que a verdade nua.
O desalento enturvou-lhe o esprito, a luz de um momento empalideceu,
como o claro da Lua, que ento se erguia sobre as cumeadas da cidade
caraira. Amaral descera o monte de Gaia, triste e abatido, como o amigo, que
volta de acompanhar ao cemitrio o que lhe era confidente nas lgrimas.
Parou ainda, volvendo a face para o local onde tantas reminiscncias amargas,
tantas esperanas doces se enlaaram, destruindo-se.

Foi ali..., disse ele. Nunca me esquecer o stio nem a hora.. . Se eu for
menos infeliz um dia, virei a recordar a hora de hoje.
Isto passara-se a vinte e oito de Junho, justamente na vspera do arraial de
Miragaia.
Impressionado pela coincidncia da meditao com o encontro de Augusta,
Amaral, supersticioso como aqueles que veem alm do que palpvel, atribuiu
a influxo providencial o mero acaso dessa costureira, que chorava, abraada ao
cadver da sua me. Sem o precedente do Candal, Guilherme no seria to
acessvel formosura real, e ao idealismo romanesco de Augusta.
Amando-a, e tentando-a, julgou fcil convenc-la. Fantasiou, como j vimos, o
que h de melhor na vida, o amor verdadeiro, o amor sem emboscadas, a
perfeio do amor. No sabia ele que alm da perfeio est o fastio: no lera
esta verdade eterna proferida por uma mulher: O amor s vive pelo
sofrimento; cessa com a felicidade; porque o amor feliz a perfeio dos mais
belos sonhos, e tudo que perfeito, ou aperfeioado, toca o seu fim.
O leitor, assim elucidado, explica a existncia de Augusta no Candal, se me
dispensa de lhe dizer que foi a transportada numa sege, dois dias depois que a
Sra. Ana da Rua dos Armnios a vira sair e no voltar.
A casa em que ela vive a que mais perto alveja de Guilherme, na tarde das
suas tristezas cismadoras. uma bonita casa. No alardeio cpia de

conhecimentos em alvenaria; deixo o sestro das descries arquitetnicas aos


que se contentam com prender a admirao de algum mestre de obras.
Sei que era, e , muito vistosa a casa, com as suas quatro janelas de
transparentes azuis e escarlates, com as suas cornijas pintadas de azul-celeste,
as portas azuis tambm, o ptio no espaoso, mas copado de accias, de
mimosas e amoreiras, que o assombram, debruando-se sobre os muros da
quinta, que circuita o pequeno edifcio. No jardim h a miniatura da floresta, a
frescura dos caramanches, a lea dos loureiros antiqussimos, as japoneiras
com as ltimas camlias, os rainnculos, as pompnias, a rosa de todas as
cores, o mirro, a tulipa: variado matiz do branco, que diz candura; do
escarlate, que diz paixo; do azul, que diz fidelidade; do amarelo, que diz
glria; do verde, que diz esperana.
E todas as flores falavam assim ao corao de Guilherme, quando, atarefado
com a realizao das suas esperanas, dava ordens sobre ordens para que a
casa se mobilasse do mais elegante, e do mais rico. O dinheiro milagroso, no
nosso tempo, como a vara de Moiss em tempos melhores. A casa foi
magicamente alcatifada, cortinada, mobilada, perfumada... era uma azfama de
homens, rapazes e mulheres, que a impacincia de Guilherme julgava ativos
como ostras!
Em dois dias formara o den o provinciano, que mostrou um gosto superior
ao que devia esperar-se. Entrou a Eva, e com ela o inseparvel Ado, sem

leso de costela, nem receios de ser mistificado por alguma cobra das selvas
vizinhas, descendente de outra que Milton fez falar melhor que um deputado
dos nossos.
Augusta j no parece a mesma. Lucrou muito com a mudana. Um pouco
avelada das vivas cores do rosto, isso sim; mas, por isso mesmo, mais
interessante. Vo-lhe bem os olhos pisados, e a morbidez do olhar. O vestido
de lustrina preta, que lhe cai em folhos sobre o verniz do sapato, no parece
vestido em tal corpo pela primeira vez. Ana, elegncia, donaire, flexibilidade,
tudo isto, ou lho ensinou a arte, ou viera da natureza, para quando o acaso lho
prosperasse. Como ela veste uma luva da cor do leite, menos alva que o
antebrao, comprimido em pulseira, que lhe talham relevos de graciosas
roscas! Nem mais garbosa uma andaluza lanaria dos ombros a mantilha! Cai
fatigada sobre uma cadeira de estofos, com a graa imperial de uma duquesa,
extenuada de galopar no rasto de uma lebre! Como que se faz tanto de uma
costureira em quarenta e oito horas!
A omnipotncia do instinto: no conhecemos outra resposta.
Achais ftil a razo? Tendes olhos e no vedes. Ide aos sales. Se no
conheceis os modelos da elegncia, informai-vos. L achareis fenmenos mais
curiosos que o de Augusta. A mo que, h poucos anos, agitava um abano
diante de uma fornalha, v-la-eis agitar um leque, abri-lo e fech-lo,

compromet-lo num olhar travesso e num sorrir malicioso... enfim, so


coisas deste mundo, como dizia a Sra. Ana do Moiro.
Agora, devemos ouvi-la. Seria mais pasmoso ainda que a sua expresso
mudasse na razo direta do apuramento das formas! Faltava-nos ver esse
prodgio filolgico.

Gostas da tua casa, Augusta? perguntou Guilherme.

Da minha, ou da nossa? corrigiu ela com meiguice.

Da nossa...

Gosto muito... No sei para que tanta riqueza!

Para ti.

Para mim? Eu vivo bem com pouco... O que eu quero o teu amor, e

mais nada.

O meu amor tudo que vs... Menti-te?

No... perdoa-me.

J me pedes perdo?!

Hei de pedir-to sempre, Guilherme...

Mas tu ests triste!...

No se chora de alegria?

Como tu s linda! V-te quele espelho...

Ora!... No brinques comigo... Eu sou linda somente aos teus olhos...

Quem o feio ama, bonito lhe parece...

Esse anexim no do bom tom; no o tornes a dizer.

Que anexim?

E um dito do povo... Tu j no s povo.

Pois emenda todas as tolices que eu disser, sim?

Amanh de manh tens aqui um mestre de primeiras letras; de tarde

vem outro de piano: quero que estudes muito, sim?

Todo o tempo que tu quiseres.

Se em seis meses souberes escrever, dou-te dez mil beijos...

Est dito... dez mil beijos, e um j por conta...

Dois, trs, quatro... fico-te devendo, no caso de no faltares ao

contrato, nove mil novecentos e noventa e seis beijos... Depois, hs de


aprender a falar francs; depois, italiano; e, se tiveres boa voz, hs de ser uma
perfeita cantora.

E terei eu habilidade para aprender tanta coisa?

Tens. Tu no sabes o que s. H trs dias que vives comigo: s outra

mulher. Eras um prola perdida. Em seis meses aparecers na sociedade, e


rirs da ignorncia de muitas mulheres, que l passam por espirituosas.

Pois tu queres tirar-me daqui?

No; mas quero que te vejam, porque tenho orgulho de ser feliz...

E eu no queria que ningum me visse.

E eu no queria que algum me visse... algum, e no ningum...

No torno a dizer assim, Guilherme. No deixes passar nenhuma...

nenhuma no, alguma asneira...

A palavra asneira no bonito em boca de senhora; melhor dizer:

erro...

Bonito! Assim que eu gosto... Tens muita pacincia em me ensinar...

E que eu quero fazer de ti a primeira entre todas. Hs de s-la. O ltimo amor


que desampara o homem o amor combinado com o orgulho. Quero estar
prevenido para me alimentar desse, quando os outros me faltarem...
Augusta no o entendera. No importa. A ideia era um pouco confusa. Achase mais inteligvel na ampliao de Madame de Girardin. Ama-se com
todos os amores: amor de natureza, amor de corao, amor de orgulho...

preciso no esquecer este ltimo... Amar com orgulho, ter vaidade do que se
ama, apenas um luxo, mas um luxo que muito bem parece...

CAPTULO XII

Tem tido notcias do seu amigo Amaral? perguntou D. Ceclia ao

jornalista, na praia dos Ingleses, em S. Joo da Foz Visitou-o?! Eu pensei


que ele no deixava ver a ningum a romntica costureira.

Segue-se que o meu amigo deposita nela uma ilimitada confiana.

bonita, como se diz? No posso dizer-lhe que bonita, porque este adjetivo
anda por a em concordncia com muitos substantivos, que o no merecem.
mais que bonita. A imaginao no associa um composto de feies assim!
Rafael dava um trao negro sobre a cabea de todas as suas madonas, se visse
Augusta.

Sim?! Ora vejam!... espirituosa?...

Isso outra coisa: o talento a arte que a desenvolve; a formosura um

dom natural. No tem tempo ainda de ser espirituosa; mas ser, com dois
anos de estudo, um prodgio. H trs meses que vive com Guilherme, e
escreve, e l com admirvel correo. No conhece a msica; mas inventa
harmonias ao plano. Adivinha tudo. Conversa sem pretenso naquilo que
sabe. Os ares so de uma perfeita senhora, afeita desde criana convivncia
com as ilustraes, e ao estudo dos bons modelos na arte de prender os

espritos. A gente esquece-se de que esta mulher foi uma costureira de


suspensrios, trs meses antes.

Faz-me rir o seu entusiasmo! Os poetas tm coisas! Uma costureira

assim era capaz de fazer a sua felicidade, no era?

No, minha senhora.

No?!... Excentricidade! Que mais ambiciona? Os amores de uma

costureira aqueceram o vcuo glacial do seu amigo, que de certo era mais
difcil de contentar que a vossa senhoria.

Mais difcil, no... Eu tenho-me contentado com bem menos... Vossa

excelncia no ignora que eu vivi muito tempo palpitando na esperana do seu


amor...

No sei a que vem a reflexo... No se fala de mim... O que devo

observar-lhe que os instintos do senhor Guilherme do Amaral so bem


rasteiros!... Desceu muito da sua posio, abismou-se na lama. Uma senhora
ter repugnncia em estender-lhe a mo... Dava-se tanta importncia!... Vejam
no que deu todo aquele orgulho!... Inacessvel a tanta gente boa, e to fcil
seduo de uma costureira.

Inacessvel, no, minha estimvel senhora dona Ceclia. Guilherme era

acessvel a toda a tentao: deixava-se ir ao convite dos olhos provocadores da


gente boa. E, pelo conhecimento que tenho do meu amigo, protesto contra

a calnia. Amaral desempenhou, como cavalheiro que era, lealmente todos os


encargos da boa sociedade com a boa gente. se a vossa excelncia no foi,
atendida na sua concorrncia ao mercado...

Que diz?!

Digo que Amaral a no atendeu, porque tinha virtudes do sculo

catorze, misturadas corrupo do dezanove. No obstante... (no se agonie,


minha senhora; estamos conversando na mais santa intimidade), no obstante,
o meu amigo nem sempre resistiu s numerosas tentaes. Adormeceu, como
Homero, algumas vezes; teve fraquezas ingnitas degenerada raa humana,
que no parece ser a nica degenerada, porque todas as outras raas fazem,
com mais escndalo, o que a nossa tem a virtude de acautelar. Devemos ao
bom senso das senhoras as precaues, que nos poupam a uma degradao
completa.

No entendo... Vossa senhoria est desmanchando em prosa

ininteligvel uma poesia libertina... Quer dizer que a costureira do seu amigo
vale mais que as pessoas delicadas, que receberam mais ou menos
cordialmente o senhor Amaral?

Entendo que sim...

A grosseria no parece sua. E minha, e no vendo a originalidade. D-

me licena, que vou tomar o meu banho. j me chamou trs vezes a


banheira...

Tenha uma pouca de crueldade com a sua banheira, senhora dona

Ceclia; mas, para satisfao de ambos ns, conceda que eu d uma sucinta
explicao da minha grosseria. A costureira vale mais que as cordialssimas
admiradoras de Guilherme, porque a costureira no tinha uma cordialidade
elstica, pronta a estender-se na mo de cada qual que puxava por ela. Amou
um homem nico, e esse homem queria um amor nico, um corao virgem,
um rosto que exprimisse, no fogo do rubor, a primeira emoo. A costureira...
no sonhou tipos, nem sabia que os tipos sonhados desfilavam depois,
vestidos de fraque e bota de polimento, diante da fantstica sonhadora,
sempre espera do ltimo. A costureira era uma mulher simples, com a
cabea, e o corao, e o estmago no seu lugar. Pensa, ama e come como a
boa gente; mas a boa gente no pensa nem ama como ela. Quem puder
entender que entenda.

E um caos a sua explicao! No tive a glria de entend-lo. Pois,

ento, simplifiquemos: vossa excelncia no vale a costureira, ainda mesmo


com o suplemento das minhas poesias, que so cento e quarenta e quatro.
Ceclia, vermelha de clera, voltou as costas ao jornalista, que, sentado numa
pequena cadeira de pinho, ficou esboando na areia uma cabea com um
enorme nariz. Depois foi pedir fogo ao marido de Ceclia para acender um
charuto. Voltou a sentar-se, e fez profundas consideraes sociais, que
publicou no folhetim do dia imediato, com grave desfalque da sua j abalada
reputao de homem honesto.

Ainda assim, era ele o nico homem recebido em casa de Guilherme.


A primeira vez que viu e ouviu Augusta, abraou o amigo, exclamando com
sincero entusiasmo: Tinhas razo! Renego das minhas teorias. A felicidade
duradoira possvel com esta mulher. Deves amar muito a tua obra. A alma
que ela tem tua: deste-lha. Enamoras-te, cada vez mais, de um novo dote
que lhe ds. Pigmalio amava a sua esttua; tu amas a mulher que estremece
debaixo da tua mo a cada retoque do teu gnio criador. s feliz! s o
segundo Jeov desta criao. A natureza deu-lhe o primor do corpo; tu, o
primor da alma. Quando esta mulher te enjoar, suicida-te, porque no h mais
nada para ti.
Estas palavras valeram muito reputao do poeta. Desde este dia, Amaral foi
seu amigo, amigo sem reserva, sem desconfiana, Dois grandes sentimentos
simultneos: o amor de Augusta, a amizade do literato; pode ir mais longe a
ambio do homem rico, aos vinte e dois anos?
Amaral no tinha outra. Todo absorvido na sua obra, como dissera o poeta,
nada o distraa da atmosfera de rosas em que o sol de todas as manhs o
saudava com os sorrisos benficos de Deus. De ms a ms, vinha ao Porto
receber a avultada mesada, que se arbitrara. No visitava ningum. Fugia para
a sua Augusta, que vinha sempre esper-lo e abra-lo com frenesis de alegria,
no alto de Vila Nova.

O jornalista concorria duas noites de cada semana, e respirava ali dizia ele
o ar balsmico da verdadeira poesia. Falando coisas de literatura com
Guilherme, Augusta ouvia-os calada, mas dizia, nos olhos penetrantes, que os
entendia. Em coisas do corao, Amaral escolhia assuntos do ltimo livro lido
por Augusta, e ele interpretara nos lugares obscuros, ou fingia ignorar nos que
deviam ser mistrio para uma leitora ignorante. Augusta, nessas anlises,
convidada por Amaral, falava pouco e com timidez; mas ouvi-la momentos
era apurar o prazer de ouvi-la sempre. Os gabos animadores do jornalista,
recebia-os corando, e os elogios secretos do amante, agradecia-os com
lgrimas.
Em tardes serenas passeavam a cavalo. Augusta era sempre bela; mas sobre o
selim, instigando com a espora o cavalo a graciosos corcovos, era inimitvel.
Amaral revia-se na sua obra, com orgulho de artista, e ternura de amante.
Como transparecia radioso o rosto dela pelo amplo vu azul-ferrete! Que
gentileza, se o cavalo galopava, e o vu, solto ao vento, deixava ver o seu
sorriso de confiana e alegria!
Rossi-Caccia cantava ento no Porto. Amaral queria dar uma impresso nova
a Augusta, que nem de teatro lrico ouvira falar na Rua dos Arinnios.

Iremos amanh ao teatro disse ele.

Iremos...

No recebes com prazer esta resoluo?

Recebo com prazer todas as tuas vontades, Guilherme.

Vi-te empalidecer agora...

No nada...

Dou-te a escolher: queres ir, ou no ir?

No ir.

E ds-me a razo?

Dou ... Em parte nenhuma posso ser mais feliz do que sou aqui ... Para

que hei de eu ver coisas novas, se vejo tudo o que desejo?

Mas as impresses novas no tolhem o gozo das antigas.,.

A tua vontade, Guilherme.

Eu desejava que ouvisses uma das primeiras cantoras da Europa...

Desejo eu mesmo ouvi-la; mas no sem ti.

Iremos... Que tempo se est no teatro?... Trs horas?

Pouco mais ou menos. So trs horas, que no passaro to depressa

como as nossas daqui... No importa, vamos ao teatro...


Foram. Apenas se ouviu correr a chave de um camarote, estando o pano em
cima, convergiram as atenes para a segunda ordem. Augusta foi saudada

com uma bateria de binculos. Viram aparecer uma bela mulher, vestida de
preto, sozinha, sentar-se, e no mais tirar os olhos do palco.

Quem ? perguntava D. Ceclia a D. Margarida, sua vizinha de

camarote. (Tinham-se reconciliado no jantar de despedida de Guilherme.)

No sei... ser da provncia...

vistosa!

Daqui parece-o.

Eu s lhe vejo o perfil.

Tambm eu. Pela imobilidade parece parvalheira.

E todos os culos da plateia voltados para l!... Que espanto!

Ser ela ...

O qu? ...

Alguma ...

Nada... no vinha ao teatro italiano para a segunda ordem...

Mas sozinha... Estas reflexes de uma adorvel inocncia foram

cortadas pela apario de Guilherme do Amaral. O ciciar dos camarotes fez o


contralto do rumor, em basso profundo, que correu na plateia. O provinciano,
que adquirira nome de excntrico, fixava o culo na atriz, e voltava para

Augusta o rosto afetuoso da amabilidade de um namorado. Camarotes e


plateia eram-lhe indiferentes. Nem por l passeou um desses olhares que no
dizem nada.

No admiras o descaramento, Ceclia?! disse a filha do baro da

Carvalhosa.

incrvel!... Est toda a gente espantada!...

Ser da beleza da costureira...

Qual beleza! Ela no nem metade do que diziam...

E muito amarela.

Amarela, no, plida; mas aquele penteado!... Quem usa agora de

cachos!?

E no a achas to estreita dos ombros?

Acho... o que lhe faz o seio o algodo...

A mo grande,

Est feito!... Isso no tem ela mau... mas a maneira de pegar no culo

no desmente a antiga costureira de suspensrios...

Mas olha os tolos, que no tiram de l a vista!...

Ho de dizer bonitas coisas na plateia...

uma falta de respeito opinio pblica...

Uma imoralidade.

Um caso novo...

Est desacreditado o tal leo de costureiras.

digno dela... Descera o pano, e abriu-se a porta do camarote de

Guilherme. Era o jornalista, a quem o amigo cedeu o lugar. Nada mais


urbano, mais reverencioso que a postura do poeta conversando com Augusta.

Est satisfeita, minha senhora?

Estou bem.

Gostou da Rossi-Caccia?

No posso compar-la porque esta a primeira vez que entro num

teatro; mas o juzo de Guilherme muito favorvel cantora.

E o seu corao precisa de juzos alheios?

A julg-la pelo corao, no julgo nada. Guilherme disse-me o enredo

da histria, e sensibilizou-me. A msica no pode tanto como as palavras dele.


Eu li no sei aonde que o amor da msica era um sinal dos espritos
cultivados. Eu no posso dar esse sinal.

At o excesso da modstia lhe fica bem... de crer que a vossa

excelncia continue a frequentar o teatro.

Por vontade de Guilherme.

E por sua, no?

No, senhor. Tenho saudades do nosso gabinete. Este barulho atordoa-

me... Tanta gente faz-me uma impresso dolorosa.

J viu os camarotes?

Ainda no, nem me interessam. So senhoras que me no conhecem,

nem eu conheo.

E tu, Guilherme, conheces estas senhoras?...

No sei: no as vi ainda. D-me esse culo. Amaral, de um relance

fugitivo, conheceu as principais famlias. Encontrou as lentes voltadas para o


seu culo, e sorriu-se para o poeta, que o entendeu s mil maravilhas.
Augusta reparou no sorriso, e corou. Compreend-lo-ia? Finda a pera, o
jornalista deu o brao a Augusta. Amaral mandara chegar a sege. A turba da
espionagem importuna, que se acotovela ao prtico, abriu alas para a
passagem de uma mulher, cuja beleza produzia a impresso do espanto, do
respeito, da ternura, e at do susto. H mulheres que fazem isto.
Na porta travessa, onde tocam as carruagens, estavam grupos de senhoras,
que Amaral cortejou ligeiramente, quando subia carruagem para tirar uma
banqueta de veludo-carmesim, onde Augusta poisou o p esquerdo na garbosa
subida. O jornalista dera-lhe a mo, erguendo bem sonora a voz:

Tenha vossa excelncia uma feliz noite. Adeus, Amaral... at amanh.

Dentro da carruagem, Augusta apertou ao corao Guilherme, murmurando


em tom de splica:

Seja esta a primeira e ltima vinda ao teatro, sim, meu anjo?

Porqu, filha?!

So as primeiras horas de tristeza que sofro na tua companhia.

Conheo que vivo s para ti, e nada do que me rodeia me pertence. Se amas o
teatro, vem tu... no te prives de algum prazer; e, quando voltares a casa,
encontrars nos meus braos amor e contentamento.

Mas que impresso foi essa?! Ofendeu-te o olhar de algum?...

No sei se algum me olhou... eu no vi ningum; sei que o sangue me

faltava no pulso, e me subia em ondas cabea. Eu estive para pedir-te, no


segundo acto, que nos retirssemos. Estava doente, sentia um desgosto
profundo, uma vontade de chorar, que no sei como ta explique... uma coisa
semelhante ao pressentimento de grande infortnio para ti... para mim, no...

Efeitos do nosso ltimo romance...

No, meu querido Guilherme, os romances no me do nem me tiram

a tranquilidade...

Apenas apearam na sua silenciosa casinha do Candal, Augusta correu ao seu


gabinete de leitura, lanou-se sobre uma cadeira, e exclamou:

Ai!... Que desafogo!... Sou outra vez feliz!... Achei a vida!...

Guilherme, com um beijo, confirmou-lhe a restaurao da perdida felicidade.

CAPTULO XIII

Augusta olvidaria de todo o fabricante? Respondendo a todas as perguntas


que me fazem, no respondo a esta. certo que ela nunca falou em Francisco,
e Guilherme meditava tudo o que dizia para no despertar lembranas da Rua
dos Armnios.
O que posso afirmar que o fabricante no olvidou Augusta.
J sabem as baldadas diligncias que ele empregara, farejando o esconderijo da
prima. No era simples curiosidade de estranho, ou zelo de parente: era o
amor, capaz de uma loucura, e o cime, capaz de uma vingana, como elas
costumam ser nesta espcie de indivduos.
Eram passados oito meses de inteis averiguaes, quando Francisco
lobrigou, na Rua das Flores, Guilherme do Amara]. O primeiro abalo que este
encontro lhe fez foi um mpeto de raiva, que, em lugar deserto, importaria
uma boa facada. Depois, a reflexo reagiu, e o artista, coberto com a esquina
da Ponte Nova, esperou que Amaral sasse de uma ourivesaria, para expiar-lhe
os passos.
No esperou muito segundos. Amaral sara, e o fabricante seguira-o de longe,
at v-lo entrar numa sege de praa no Largo de S. Domingos. A sege trotou
para Vila Nova, e o fatigado artista, alm da ponte, j a no viu voltar para a

Rua Direita (direita como a linha reta de um brio). Recuperadas as foras, foi
muito do seu vagar seguindo o trilho dos cavalos; mas as lajes da calada no
denunciavam nada.
Perguntando a um barqueiro se vira ali passar uma sege, soube tudo que
desejava. A sege, disse o barqueiro, levava um fidalgo que morava no Candal,
e era patro de uma sua filha, criada de cozinha.
O fabricante disfarou como pde a sua curiosidade, e seguiu o caminho do
Candal. Perguntou a um lavrador onde morava um fidalgo chamado
Guilherme, viu a casa, rodeou-a por longe, e voltou para o Porto. Se se
demorasse at noite, poderia ver passar para o Porto, na mesma sege, Augusta
e Guilherme,
Nessa noite o fabricante no dormiu. Era chegada a hora de uma vingana
oito meses meditada. Na incerteza de sair-se bem da tentativa, Francisco
entendeu que devia adi-la para a noite seguinte, a fim de confessar-se, com a
louvvel esperana de entrar puro no Cu, dado o caso infausto de ser morto,
matando. (Este entendia o sacramento da penitncia maneira dos que se
confessam para minorar as penas do suicdio. No so estes, contudo, os que
molestam mais a religio, nem os padres que os absolvem. O que faz mal so
os romances e as bulas.) No dia seguinte, Francisco no foi fbrica, e fez
saber ao patro que se despedia por algum tempo. O patro, seu amigo e
protetor, procurou-o, e encontrou-o chorando.

Que tens, Francisco? Porque te despedes da minha casa?

No h remdio, patro... Cada qual vem a este mundo com a sua sina.

Mas que tens, homem? Eu, j h muito que ando desconfiado de ti!

Dantes eras um rapaz alegre, contente sempre, e, h meses a esta parte, vejo-te
assim a modo de cismtico! Que diabo tens?

So os meus pecados, patro.

Diz l, homem; tudo se remedeia, quando h amigos para as ocasies.

O meu mal no tem remdio... Assim como assim, vou-lhe contar tudo.

Eu no lhe disse, h mais de trs anos, que queria casar com uma rapariga, que
era minha prima?

Disseste, e depois nunca mais falaste nisso.

porque ela andou a empatar o casamento, at que, haver oito meses,

fugiu de casa com um casaca, e est com ele.

E agora que lhe queres?

Quero dar cabo dele.

s um asno, homem! Que te importa a, ti a rapariga! Faltam ele

mulheres!

No h nenhuma como ela; por mais que eu queira no a posso varrer

da lembrana; quando estou a comer, e me lembro dela, fica-me o bocado

arrancado na garganta; tenho passado noites em claro; aborrece-me tudo; no


sei como trabalho; nem me presta a fria... Tinha-lhe um amor de raiz, mesmo
amor c de dentro. Assim me Deus salve, que no lhe tenho a ela raiva!

E ele que culpa tem? Um co, quando lhe botam um osso, aboca-o...

No diga isso, patro, e perdoar!... A ele que eu tenho alma de lhe

trincar os fgados... Foi ele que lhe entrou pela porta dentro com trs moedas,
como quem vai comprar urna vaca. Estes homens ricos que se servem do
dinheiro para fazer a desgraa da gente pobre merecem um tiro. Ela estava,
mansa e queda, na sua casa; para que veio ele roubar-ma? Porque tinha
dinheiro, e eu precisava ganh-lo para comer. Uma rapariguinha no tem
culpa de se deixar cair na rede; eles que so os malvados, que no tm pena
de botar a perder uma mulher...

E tu casavas corri ela agora?

O que seria, isso que eu no sei, patro... Tenho-lhe uma paixo de

morrer. Est-me a parecer que casava com ela, se pudesse dar cabo do tal
tratante!

Pois ento, rapaz, digo-te que no tens vergonha nenhuma!... Pois tu

casavas com urna rapariga que andou por l a correr fadrio?!

Deixe-me, patro... Eu j no regulo bem da cabea... Aquela mulher d

comigo doido... A minha vontade era meter esta faca no pescoo...

Est quieto, rapaz... No sejas asno... Anda da comigo.

Para onde me leva?

Vamos fbrica... l falaremos. Tenho l dois teares de pano, que s tu

podes governar. De hoje em diante ficas sendo meu contramestre, ganhando


oito tostes por dia. Amanh, se quiseres casar com a filha do Manuel da
Severa, ou com a Felizarda do Cabeo de Cima, no te dizem que no. Podeste estabelecer, quando quiseres, que eu dou-te abono e dinheiro para meia
dzia de teares... Anda da, Francisco...

No vou. Assim como assim, a minha sorte foi tirada de baralha. No

me importa ser rico, nem pobre... H de ir por diante a minha ideia...

Qual ideia?

Hei de esfregar aquele pandilha que me roubou a minha prima.

E se eu te prender como regedor? Francisco abriu os olhos raiados de

lgrimas e sangue para a fisionomia severa do patro.

Pois vossemec tinha alma de me prender?!

Ol, se tenho! Pois eu no te hei de livrar de fazeres uma asneira?!

Queres ir acabar a uma forca? Pensas que se mata um homem como quem
mata um co?! E se ele primeiro te meter uma bala na cabea? Ora no sejas
cabeudo! Anda comigo, e j!

Francisco saiu maquinalmente; entrou na fbrica, sentou-se ao tear, trabalhou


meia hora; mas o patro, reparando na desordem em que ele trazia os fios das
canelas, mandou-o sair e andou por l explicando-lhe as obrigaes de
contramestre.
Ao fim da tarde, perdeu-o de vista um instante. Procurou-o; mas no houve
encontr-lo.
Francisco dissera uni operrio descera, com a clavina do patro, para as
bandas do Oiro, e passara para alm do rio num barco.
O jornalista, conforme prometera a Guilherme na sada do teatro, foi ao
Candal passar a noite.
Quando parou o cavalo em frente da casa, ouviu o rumor de um vulto, que a
escurido no deixava ver entre uma toia de carvalhos.
Afirmou-se, e no s descobriu a massa escura do quer que era, que se movia,
mas ouviu o estalar de um perro de arma de fogo.
No disposto a morrer sem explicao prvia, o poeta exclamou:

Ol! Veja l que no se engane! Se quer conhecer-me, aproxime-se.

No preciso disse o fabricante , pode passar.

O jornalista bateu no porto: um criado recebeu o cavalo: e Augusta, abrindo


urna janela, disse para fra:

s tu?

Pela pergunta disse o jornalista vejo que Amara] no est em

casa.

Ah! vossa senhoria? Queira subir.

admirvel!... Guilherme a estas horas por fra! disse, j na sala, o

jornalista, um pouco enfiado, como quem no est afeito ao estalido dos


ferros.

Recebeu uma carta da provncia disse Augusta pedindo-lhe uma

procurao por causa de uma demanda, e quis que ela fosse no correio de
amanh. Por enquanto no me d grande preocupao, porque saiu ao
escurecer.

Eu sinto muito dar-lhe preocupao com esta sada, minha senhora...

Que ?

Decara desta casa est um homem, que aperrou uma arma, quando eu

parei como lhe fiz saber que no seria eu a pessoa esperada, o homem disseme que podia passar. Receio que a espera seja para Guilherme.

Santo Deus! Que hei de eu fazer?!

Mandar um aviso a Guilherme.

Mas quem pode ser esse homem?! Guilherme no tem inimigos...

Quem sabe, minha senhora! Todos os homens distintos tm inimigos...

E a voz desse homem.

Pareceu-me a voz de um homem grosseiro, de um assassino

comprado... Se vai mandar recado a Guilherme, aconselho-lhe que o criado


saia pela porta da quinta; no, no v o assassino tolher-lhe o passo.

Diz bem... Augusta, trmula e plida de susto, mandou o criado, cuja

vontade era espreitar o vulto, do muro da quinta, e mandar-lhe para l duas


balas. Augusta no aprovou a lembrana.
Quando ela dava esta ordem, achava-se presente o hortelo, que disse ter
visto, pouco depois do anoitecer, um homem, de clavina, subir pelo lado de
Santo Antnio de Val Piedade. Era um rapaz de vinte e tantos anos, com
jaqueta e bon, assim a modo de artista acrescentou ele.
Augusta exclamou um Ah!. Foi grito de uma lembrana sbita. Terrvel,
como o remorso, devia ser o sentimento, que a fez soltar esse grito! Mais do
que vergonha e medo, a lividez sbita, que lhe assomou ao rosto, assustou o
jornalista.

Que , senhora dona Augusta? No h nada a recear. Guilherme entrar

pela porta travessa, e dar, antes de entrar, providncias para que o assassino
seja preso.

Vossa senhoria d-me licena que eu me retire por alguns momentos...

Oh! minha senhora... O que lhe peo mais nimo... Tenho j

remorsos de assust-la...

No deve t-los.. . Devo-lhe um favor impagvel... Eu volto j...

Augusta, furtando-se vista dos criados alvoroados, desceu ao ptio, abriu o


porto e foi direita toia de carvalhos caraira. A transio repentina para a
escuridade tornava-lhe mais tenebrosa a noite. Um baixo socalco da tapada
estorvou-lhe o passo, ao sair da estrada: teimou em salt-lo e caiu. Erguendose, ouviu rumor na folhagem, e destacou da massa escura da selva um vulto,
que parecia mover-se, recuando.

Francisco! murmurou ela.

O vulto retirava-se, dando-lhe a certeza de que se no enganara. Augusta deu


alguns passos, repetindo:

Francisco, meu primo... no me fujas, Augusta que te chama...

O fabricante parou, parvo de surpresa, pasmado, como o leitor e eu, menos


boais que o fabricante, ficaramos em semelhante conflito. E Augusta, cheia
de resoluo, foi ao p dele:

Porque no me respondes, Francisco?

Que queres de mim? disse o fabricante, mais comovido que ela.

Para que esta arma? Que vens tu aqui fazer?

Venho mostrar ao senhor Guilherme que um pobre tambm sabe

vingar-se como se vingam os ricos.

Vingar-se... de qu? Que mal te fez o senhor Guilherme? Se algum te

fez mal, fui eu...

Tu eras uma rapariga inocente... no soubeste o que fazias... Ele que

te botou a perder...

E que tens tu com a minha perda!?

Que tenho eu com a tua perda? Sou teu primo, e devo defender-te na

falta do teu pai.

Defender-me de qu?

De estares a de portas adentro com esse homem, que te h de atirar

com dois pontaps qualquer dia para o meio da rua.

E, se me atirar rua, eu vou pedir-te alguma esmola?

Ainda que ma no peas, hei de eu dar-ta, para te no ver andar por a

esfarrapada.

Cala-te! Tu no sabes como eu sou amada por Guilherme...

Faz ele muito bem; o amor eu lho darei...

Pois tu pensas que eu consentia que lhe pusesses as mos?

Isso o que veremos... Se no for hoje, ser outro dia...

Tu queres matar-me, Francisco! Vens de propsito fazer-me

desgraada... Pensas que me fazes tua amiga praticando uma infmia! Se


ferisses Guilherme, eu era capaz de te cravar um punhal no corao. Tenho
um primo assassino!... Que vergonha! Sal deste lugar... De hoje em diante
aborreo-te como um malvado, que me quis privar do nico bem que tenho
nesta vida... Sai daqui, indigno, quando no chamo os criados, e mando-te
entregar justia como um malfeitor, que espera com uma arma um homem
que nunca lhe fez mal.

Ento foi para isso que vieste c? atalhou o fabricante com

mansido.

Pois que pensavas? Querias que eu te viesse pedir perdo? De qu? Que

direito tens sobre mim? Quem te encarregou de zelar a minha honra? Pois tu
queres comparar-te ao homem que eu amo, miservel! Ousaste vir aqui com
uma arma para o matar covardemente? No posso ver nas tuas mos isto...
Augusta, sem grande esforo, arrancara-lhe da mo a arma, e arrojara-a a
alguns passos com pasmosa energia.
O fabricante estacara, imvel, esttua do idiotismo, diante de tanta coragem, e
fulminado pela torrente de eptetos que saam de uns lbios frementes de
raiva.

Sai daqui! prosseguiu ela, empurrando-o.

V l o que fazes, Augusta! No me empurres, porque eu no te trato

mal!

No me tratas mal?! Queres matar o meu nico amparo, o homem que

eu adoro de joelhos, o anjo que me d o Cu nesta vida... e dizes que me no


tratas mal?
A apstrofe impetuosa foi interrompida por passos, perto, e luzes, que
vinham de um e doutro extremo da estrada.

Foge! exclamou ela. Foge, que te prendem!

Deix-los prender.. que me matem at.. eu no dou um passo para

fugir...

Foge! Foge! Francisco!...

No fujo, j te disse. Ao claro dos archotes, vira Augusta homens

armados, e, frente deles, Guilherme com um par de pistolas aperradas.

Quem est aqui? exclamou Amaral.

Sou eu! disse Augusta com resoluo.

Tu!... E quem esse homem?

Aproxima-te, e conhec-lo-s. Guilherme levou-lhe cara uma lanterna,

quando dois criados lhe lanavam as mos. Ficou perplexo, procurando a


explicao nos olhos de Augusta.

Este homem no trazia uma arma de fogo?

Trazia disse o fabricante atirou-ma para ali esta esta mulher.

Retirem-se, e deixem-nos disse Amaral aos criados, e voltando-se

para o artista:

Que vinha voc fazer aqui com uma arma?

Guilherme! atalhou Augusta com a veemncia de uma splica

no perguntes nada, eu te contarei tudo. Deixa-o ir, que ele no torna aqui...

Isso ainda eu o no disse... acudiu o fabricante.

Ento que quer? disse Amaral.

No quero nada...

Quer que o mande sossegar alguns anos numa enxovia?

L isso... como o senhor quiser...

O jornalista vinha animado do melhor esprito contra o assassino, ignorando


todos os precedentes da estranha aventura. Guilherme pediu-lhe que se
retirasse. O poeta retirou, perguntando-se se andava ali pardia da Linda de
Chamounix.

V-se embora, homem... disse Amaral. As suas balas no me

podem ferir... Entenda que deve a vida sua prima; mas no lhe prometo
poup-lo se tentar segunda vez esta loucura. Eu vou-lhe buscar a sua arma...
Aqui a tem... Retire-se...
O fabricante recebeu a arma. Amaral, com as pistolas na mo, seguia-o nos
menores movimentos. A precauo era intil. Francisco seguiu vagarosamente
o caminho que trouxera, dizendo:

Adeus, Augusta. Teria dado cinquenta passos, e ouviu-se a detonao

de um tiro. Guilherme correu com Augusta na direo do fabricante.


Encontraram-no prostrado, escorrendo sangue.

Donde lhe atiraram? perguntou Guilherme.

De parte nenhuma... Fui eu que me matei. Chegaram os criados.

Amaral mandou transportar aquele homem a sua casa, e recebeu nos braos
Augusta desfalecida.
O poeta, que tambm viera, dizia consigo:

Horrvel mistrio! Um romance para o futuro!

O herosmo dramtico do fabricante parece a pardia de algum feito


estrondoso, praticado por heri de romance. A Margarida, de Emlia de
Girardin, tem um conde que se mata assim, pouco mais ou menos. O artista,

porm, se no foi original, no sabia, decerto, que plagiava. No que ele foi
mais feliz que os suicidas do nosso conhecimento, que no morreu.
Transportado a casa de Guilherme, foi observado pelo jornalista, que sabia de
tudo, inclusivamente de cirurgia. Observou que a bala no ferira a laringe nem
a faringe, nem as ramificaes arteriosas ou venosas de mais melindre.
Atravessando o msculo esternoclidomastideo, a bala sara por debaixo da
maxila inferior, sem, por grande fortuna do artista, lhe lesar este importante
instrumento da mastigao! O facultativo confirmou o prognstico do poeta,
e Francisco entrou em curativo.
Augusta era a sua enfermeira: s ela entrava no seu quarto. O fabricante,
proibido de falar, encarava a sua prima com os olhos sempre rasos de
lgrimas. s ligeiras perguntas dela sobre o seu estado, o convalescente
respondia corri o acanhamento do pejo, que o luxo do quarto que lhe
deram, e o luxo no trajar da prima, e as excelncias, que ouvia dar-lhe no
quarto prximo, concorria tudo a vex-lo por ousar apresentar-se como primo
de Augusta, e rival do fidalgo, senhor de toda aquela riqueza. E, depois, o
amor com que a sua prima velava a sua doena, as frequentes visitas do
cirurgio, a generosidade dela em no mais lhe falar na sua loucura, a
importncia que lhe davam, a ele, pobre fabricante, em paga de uma inteno
homicida, estes estmulos no feriram debalde a sua gratido. Francisco
esquecia o seu velho amor, e sentia-se em dvida de respeito e amizade ao
generoso amante de Augusta, que nunca viera ao seu quarto.

Quando, corri vinte dias de curativo, se ergueu do leito, disse-lhe Augusta que
o senhor Guilherme vinha falar-lhe. Francisco fez-se vermelho. Tinha
vergonha de encarar o homem que lhe pagara com benefcios a inteno
premeditada de mat-lo.

Senhor Francisco disse Guilherme com afabilidade , tenho muito

prazer com o seu restabelecimento. No venho repreend-lo. Vossemec fez


o que muita gente faz com melhor inteligncia do que a sua para conhecer o
que so loucuras. Quis mostrar-lhe que a sua prima no infeliz, nem se faz
m com a mudana de fortuna. Sei que lhe disse a ela que tinha vontade de
sair desta casa logo que tivesse foras para trabalhar. Eu venho dizer-lhe que
pode aqui viver como se esta casa fosse sua.

Muito obrigado, senhor Guilherme; eu no tenho serventia nenhuma,

por isso tanto faz dizer como no dizer que estou pronto no seu servio. Sou
um rapaz criado no trabalho, tenho o meu ofcio, e para l torno.

Mas, se vossemec quiser habilitar-se para ser mais que um simples

operrio, eu dou-lhe os meios para estabelecer-se no comrcio, ou na


indstria... Eu tenho quem me ofereceu j esse favor; agradeo a boa vontade
da vossa excelncia, mas no preciso, nem quero ser mais do que o meu pai.
Vou estabelecer-me, se Deus quiser, com uma fbrica de tecidos, e no me
faltar po.

Como quiser; mas v na certeza de que tem um amigo em mim, e em

Augusta uma protetora.

Eu bem o sei; e a vossa excelncia perdoar as minhas loucuras... A

gente nem sempre regula bem.

No tenho que perdoar-lhe. Bem castigado foi por si prprio. Voltou

contra si a pontaria da arma que devia matar-me. No falemos mais nisso...

CAPTULO XIV

Este episdio alterou a desculposa felicidade de Augusta. A sua alegria perdeu


muito da intimidade espontnea. Os sorrisos j no lhe vinham da conscincia
como um beneplcito sua posio de mulher engrandecida pela desonra. O
amor imenso, a sujeio forada continuao do crime, no lhe eram
incentivos, como so em tantas de igual estado, para obedecer cegamente
fatalidade, habituar-se culpa, sufocando o tardio grito do remorso.
Era uma mulher muito original, com virtudes muito inconsequentes, no era?
Pois melhor lhe fra transigir com o vcio, remediar-se com o irremedivel,
seguir enfim o sistema da submisso aos factos consumados. o que faz
muita gente melhor que a sensvel costureira.
O que ela no sabia fazer, como muita gente faz, era fingir-se, estereotipar a
graa no rosto, captar, como a escrava do harm, com blandcias contrafeitas,
o sorrir voluptuoso do seu senhor.
Amaral sentira a diferena, e debalde interrogava o silncio resignado de
Augusta.

Donde vem dizia ele uma melancolia que no est no teu gnio?

Eu sou feliz, Guilherme...

Ningum o dir... Se eu tivesse feito coisa que te afligisse at provocar-

te arrependimento de seres o que s, no estarias mais triste...

Pois vs em mim algum sinal de arrependimento?...

Todos os sinais. Eras outra antes da ida ao teatro, ou antes dos

acontecimentos com o teu primo...

O teatro no me podia fazer mudar... os acontecimentos com o meu

primo, no admira nada que me deixassem uma triste recordao.

Tudo isso passou, Augusta... O teu primo est bom e feliz... Estes

homens tm crises morais, que se no demoram muito. Falta-lhes a


inteligncia, que a pedra onde se afia o gume da dor. Tm o trabalho como
distrao, e as necessidades pequenas, todas satisfeitas, como recompensa...
Pois devo eu crer que a tua tristeza sejam saudades ou compaixo do teu
primo?

Nem saudades, nem compaixo, Guilherme. Se h algum que merea

compaixo...

s tu?!

No, no sou eu... emendou ela, abraando-o. Perdoa-me esta

loucura... Sou muito ditosa contigo; no quero compaixo seno de ti...

Qual o sofrimento que a merece, filha?

No sofro... no sofro...

E, contudo, choras!

Pois que queres? Uma mulher, por mais feliz que seja, tem necessidade

das lgrimas como do ar... chora-se insensivelmente, quando se feliz, como


se respira, quando se dorme...

No me satisfaz a explicao... Eu quero saber porque choras... No

sei, meu amigo.

Que desejas? Nada para mim, que nada tenho a desejar... tudo para ti...

quero que sejas muito feliz.

No o parece... os teus sofrimentos no me podem dar alegria.

Eles passaro... E, contudo, no passavam... Augusta esquecera os

livros, a msica, as flores, os passeios a cavalo, e at o instintivo engenho (o,


sobre todos, mais precioso talento em mulheres) com que se vestia para
surpreender o amante com atrativos novos. Guilherme no merecia isto. A
conscincia, ao mesmo tempo que o no acusava, instigava-o a ter com
Augusta uma explicao mais explcita. Antes, porm, desse acto custoso,
consultou o jornalista, confidente inaltervel das suas mais escondidas
tenes.

Como explicas a tristeza de Augusta?

Enquanto a mim, aquilo efeito de algum romance...

No .

Se me ds a certeza de que no ...

Dou.

Ento, tudo se explica. Ds licena que eu d a minha opinio.

E boa a pergunta!

A mulher quer que tu cases com ela.

Ora!...

o que te digo.

Especula, por consequncia?

No especula: cede a um sentimento honesto. A inteligncia, que lhe

apuraste de mais, desenvolveu-lhe ambies, que ela nunca teria. Entrou na


conscincia da sua desonra. Quer reabilitar-se como as heronas dos
romances, em que certas mulheres at ao penltimo captulo cambaleiam com
a sua honra sobre uma corda bamba.

Ser isso?

E, se for, que fazes?... Casas?

No. teno que nunca tive.

Nem prometeste?

Claramente no... se bem me lembro...

Mas de um modo equvoco, sim; pois fizeste mal. Se tivesses lido a

stira de Boileau contra o equvoco, no caas na imprudncia de o dizer.

Mas, desde que est comigo, nunca romos de leve por tal assunto.

Isso no argumento.

Creio que te enganas... Hoje mesmo hei de sond-la a tal respeito.

Pergunto eu: amas ainda muito Augusta?

Amei-a muito, e posso dizer que a amo ainda; todavia, desde que a vejo

corresponder-me friamente, tenho arrefecido um pouco... Foi mau contrariarme...

Contrariou-te?

Pois que entristecer-se quando eu me alegro? Pr-me na obrigao de

lhe perguntar o que tem de hora a hora, enfadar-me. Bem sabes que tudo
que obrigao pesa, e eu no quero algemas. Se eu a contrariasse, pedia-lhe,
ou no lhe pedia absolvio da culpa; no lhe tenho dado causa ao menor
desgosto, e custa-me a representar de humilde... revolta-me o predomnio, que
ela quer exercer sobre mim... Sabes tu que todas as mulheres so semelhantes,
logo que atingem um determinado grau de inteligncia!?

Ainda agora descobriste esse dogma? Isso velho. A mulher de

inteligncia cultivada na escola do savoir-vivre, cal hoje, reabilita-se amanh,


recai depois, convalesce em poucas horas, e caminha sempre na alternativa
com a face voltada para o Sol. As que, cadas uma vez, nunca mais se
levantam, so as mquinas de pura massa de ossos e msculos e membranas:
so as estpidas, que no engenham o colete de salvao com que se zomba
dos naufrgios do podre lenho, onde a virtude anda por a merc das vagas,
que so tu, e eu, e outros muitos do nosso conhecimento. Apre!, que me ia
faltando o flego! Um perodo, deste tamanho, num livro, desacreditava-me!
Em resumo, queria eu dizer, que Augusta prefere ser tua mulher a ser tua
amante. Ora agora, tu optars.

Quero-a para amante, e impossvel que ela insista na opinio

contrria.

E se insistir? Se te entalar entre os dois bicos de um dilema?

Prescindo da sua companhia especulativa. Estou certo que ela no

prescindir.

Tambm o creio... Diz-me c: na tua casa no entra padre nenhum com

uma pouca de mais moral que os abades de Lus XV?

Em minha casa entras s tu.

Pois de mim est certo que lhe no inspiro o escrpulo da incontinncia

nos costumes. Aqui h s a recear que ela penda para a mstica. Se escrupuliza,
se se fanatiza, deixa-te... Sabes tu que tenho uma suspeita muito razovel?

Qual suspeita?

O teu amor a Augusta j no admite cristalizao nenhuma.

Cristalizao!, No entendo.

porque no leste a Fisiologia do Amor, de Stendlial. Cristalizao so

as belezas imaginrias, as variantes formas, as luminosas cambiantes, que tu


associas mulher que te faz pensar duas horas, fremente de esperanas e
desejos. associar o maravilhoso ao ordinrio. Ora, tu j no imaginas nada a
respeito de Augusta. Os cristais fundiram-se: ficou a mulher...

Que eu amo ainda.

No te iludas, Amaral... Eu fui terrvel profeta...

No profetizaste... Amo Augusta; se a no amasse, era-me indiferente a

melancolia dela.

Mas no te sentes disposto a consol-la de modo que ela no duvide da

alta estima em que a tens?

Casando-me com ela? Pelo amor de Deus! Ests cmico! Pois

realmente vens aconselhar-me o casamento?

Eu aconselho o casamento a todo o homem que vive dezoito meses

com urna mulher, e ao cabo desta eternidade de amor ainda diz sem
impostura: amo-a. Mulher que se ama, depois da convivncia de dezoito
meses, ama-se toda a vida, quer seja amante, quer seja esposa, Como estou na
minha hora de sinceridade, deixa-me dizer-te que no achas mulher que valha
tanto como Augusta. Se te desligas dela, comparar-te-ei ao avarento que
amontoou um tesouro, e, embriagado da sua fortuna, passava as noites e os
dias contemplando-o; e, no frenesi do seu contentamento, endoideceu, e,
doido, arrojou o tesouro pela janela rua.
O tesouro essa mulher simples, imaculada, santa, perante a corrupo e a
doblez de todas as que conheceste. Imaginaras um anjo; o anjo saiu das tuas
mos perfeito. Fizeste de um corao em bruto o que Fdias fizera do
mrmore. Nenhum homem fizera tanto, e nenhuma mulher fra to malevel
s inspiraes de um homem. O amor pode muito, transfigura muitas ndoles,
d formas novas mulher magnetizada; mas no omnipotente, no produz o
milagre que se viu e que se v todos os dias operar em Augusta o teu amor...
Tu s um ingrato a Deus e a ela, se a abandonas!

Eu disse que a abandonava?!

Preciso eu, porventura, que mo digas?! Tu ests sendo para mim um

homem de cristal: vejo-te, sem a vista dupla do mesmerismo, as menores


operaes do esprito. Os teus reparos, enfastiados na melancolia de Augusta,

so como os abrimentos de boca no quarto acto do melhor drama. H um


ano, a tristeza de Augusta seria para ela um novo ttulo tua admirao:
chamar-lhe-ias poeta, rveuse, natureza privilegiada, esprito que entendia o
idioma dos arcanjos. Hoje, esse rosto assombrado j te no parece to belo, e
as lgrimas do corao silencioso incomodam-te.

E incomodar-me-iam em qualquer tempo, admitindo a tua explicao

do casamento.

Pois a explicao que mais honra Augusta. No te parece bem natural

este desejo numa mulher, que tu elevaste s alturas da tua inteligncia? Eu


acho at muito lgica essa nobre ambio. H um ano, Augusta era ainda a
mulher do amor, e s do amor-paixo; hoje, h ali o esprito que se d em
troca doutro esprito; a inteligncia esposando a inteligncia; a ideia clara do
dever e da honra dominando os arrebatamentos da paixo, e ensinando-lhe o
que a, plenitude da felicidade sobre a Terra.

E o casamento?

Deve s-lo quando a mulher Augusta, e o homem, a no ser o que tu

devias ser, aquilo que eu penso que seria.

Pois tu casavas?!

Com a primeira herdeira e a primeira beleza do Globo, No; mas, na tua

situao, com Augusta, sim.

s uma maravilha!

Olha, Amaral, no ofendes a minha modstia; em verdade te digo que

sou maravilha... No grites a palavra ironicamente... Maravilhoso s tu


tambm: mas para mim, s urna coisa legvel como um anncio em parangona
na quarta pgina de um jornal... A vai outra profecia... O fio que te prende a
Augusta pode ser amanh cortado pela primeira Ceclia que queira absolver-te
dos erros passados, impondo-te a penitncia de te absteres dos amores da
costureira afidalgada.

E um ultraje, que eu desmentirei...

Se h aqui um ultraje, no a ti, natureza, matrona que eu respeito pelos


seus disparates, pela importncia que ela se d nos seus desvarios. O
conhece-te! do filsofo antigo uma tolice. Quem que se conhece? Quem
pode responsabilizar-se pelos seus actos de amanh? No est definida a
virtude nem o crime. Tu hoje levantas uma mulher do nada com o entusiasmo
de um inspirado do Cu; amanh arrojas essa mulher ao nada com a fora de
um instrumento, que obedece ao brao imperioso de uma vontade superior.
No sabes se foste ontem, ou s hoje virtuoso... Somos lamentveis, meu caro
Guilherme. A depravao da raa humana prova-se em ti, e em mim, nesses
que julgam beber mais puras as guas da fonte da cincia. A inteligncia a
corrupo ostentando-se em toda a sua luz. O sandeu esconde-se; ns
galardoamo-nos com o escndalo... No sei a que vem esta nesga de filosofia...

Nem eu. Vinha a propsito de serem onze horas da noite, e eu no ter ainda
escrito o folhetim de amanh... Vou rabisc-lo no teu escritrio. Augusta deve
ter notado a demora da nossa palestra. Pede-lhe que toque a Casta Diva
enquanto eu escrevo.
Hoje escrevers sem msica... Vou decifrar o enigma, que me parece
indecifrvel depois da tua explicao.

CAPTULO XV

Augusta passeava no jardim. O gosto era extravagante numa noite de


Fevereiro, fria 'e ventosa. Amaral foi encontr-la a, encostada ao parapeito de
um mirante de pedra, voltada para o mar, que, l em baixo, rugia, enegrecido
por turbilhes de nuvens.

Achas isto encantador, Augusta? perguntou, sorrindo, Amaral.

E no encantador? Eu acho...

No sentes frio?

Ainda no... Estou aqui h meia hora, e no queria sair sem que tu

viesses ver...

O qu?... Creio que no vs nada, Augusta...

Vejo as trevas... no assim que a gente infeliz v sempre o seu futuro?

Isso depende da maneira de ver as coisas. Cada qual tem o seu vidro de

aumento ou diminuio. Ningum v como deve ver. E tu que vs no teu


futuro?

A continuao do presente...

E o presente no te agradvel?

; embora mo no invejem, eu tambm no invejo as venturas de

ningum. Mais felicidade que a que sinto, s pode dar-ma a sepultura.

Desejas a morte?

Desejo-a, antes de morrer no teu corao...

E crs que podes morrer no meu corao?

Posso; pois no posso? Que privilgio tenho eu mais que as outras?

No entendo... Queres dizer que eu tenho esquecido outras antes de ti?

Quantas ters tu esquecido, Guilherme!... No me refiro a essas; s

que tenho conhecido nos romances, onde se aprende tudo que do corao...

So, portanto, os romances que operam esta espantosa mudana no teu

carcter!...

Eu no mudei, Guilherme. No me disseste tu que me querias dar um

sexto sentido, que me faltava? Pois esse sentido que me faz sofrer. Melhor
fra que nunca mo desses.

Romanticismo, minha Augusta... No exageres o tipo que te adaptaste.

Os resultados so sempre maus... Eu sei o que isso... A natureza no quer


que a violentem com artifcios...

Queres dizer, Guilherme, que a minha tristeza so artifcios?... No sei

com que fim!... Pensas que amar-te menos o esconder-me aos teus olhos?

No , no. No posso amar-te mais, porque impossvel que outra te ame


tanto...

Outra!... Que outra?

Eu no digo que ames outra... No me queres entender, ou te enfastiam

as minhas impertinncias... Olha, Guilherme, se eu pudesse usar de artifcios,


mostrava-me sempre alegre, para te ver sempre alegre e carinhoso. Pensas que
eu no adivinho que me vou tornando aborrecida? E quereria eu s-lo?!...

Aborrecida, nunca... Sofro, verdade, porque me inquieta o segredo

dos teus pesares... Ningum sofre de imaginao exclusivamente: h sempre


uma causa. Qual a causa em ti? uma pergunta feita mil vezes; nunca me
respondes.

Se eu no posso, porque a no sei... Ser uma doena do corpo, que

principia pela alma...

No explicas assim coisa alguma. A vinda do teu primo ou a ida ao

teatro so os dois acontecimentos que eu tenho para datar a tua diferena de


costumes, de gostos, de amizade, de tudo.

De amizade, no, Guilherme... No me mortifiques assim... a calnia

terrvel!

Respondes francamente ao que vou perguntar-te? jura!...

No preciso jurar: respondo.

Querias ser o que eras antes de me conhecer?

Queria.

Est tudo explicado... O teu sofrimento remorso...

Remorso, no, nem arrependimento. Depois de te haver conhecido e

amado, no posso arrepender-me. Eu creio que o arrependimento de amar


comea no corao, e, para isso, preciso que ele odeie e no ame. Eu amo-te
muito, Guilherme. No quisera ter-te conhecido, isso sim. A estas horas, seria
o que so as mulheres da minha qualidade: a pobre costureira sem orgulho de
ser amada, sem ambies de parec-lo; sem a crtica para comparar-se s
outras mulheres, ignorando o mundo, ou vendo-o muito diferente do que ele
. o que seria, no te conhecendo, Guilherme... E o que fui, no posso
tornar a s-lo.

Mas que te fiz eu? Que desejos tens que eu te no satisfaa?

No me fizeste seno engrandecer: essa que foi a minha desgraa. Os

desejos que me satisfazes... so todos; no me queixo da menor falta... No


falemos nisto, meu filho. Princpio a ter frio, e tu?...

Vamos, Augusta.., Parece-me que a estao da minha felicidade

acabou... E mais uma mentira, uma deceo como outras muitas.


Augusta disse algumas palavras frvolas, dessas que o corao pode, apenas,
balbuciar, se o comprimem angstias grandes, como, na mulher que muito

ama, o pressentimento, o susto, a surpresa terrvel da ingratido, que, at esse


instante, lhe parecera crime impossvel.
Amaral no respondera, ou no a entendera. Entrou no escritrio, onde o
jornalista escrevia aceleradamente a quarta tira do seu folhetim. Guilherme ia
falar, quando o escritor, sem levantar os olhos do papel, lhe fez com a mo
sinal de silncio, murmurando:

No me tolhas a inspirao... Encontrei uma ideia com que posso salvar

a humanidade aflita. Eureka!. Espera...


Continuou a escrever alguns segundos, e deps a pena com os jbilos radiosos
de quem acabava de salvar a humanidade aflita.

Agora, fala...

Tens razo; s um mgico... sabes tudo o que vai no corao dos

outros: Augusta lembra-se de casar comigo.

Confessa, pois, que sou um homem impagvel!...

No teve, ainda assim, a coragem de mo dizer em estilo cho...

E tu tiveste a coragem de lhe dizer, em correto portugus, que no...

Eu no lhe disse nada. Contristou-me... No queria ouvir-lhe tal... De

ora avante todos os sorrisos dela esto envenenados.

E ela disse que abandonava o posto no caso negativo?

No... cedo ainda para me estipular condies, e creio que nunca

chegaremos a esse extremo.

Tambm o creio.

natural que um delicado desengano a restitua antiga tranquilidade.

De costureira? No...

Ah!, entendo... de femme entretenue.

E, se no acerto no alvo, viveremos mal. Para evitar o espetculo das

lgrimas, terei de procurar o riso noutras partes.

E isso, isso.. . Os homens!...

Sorris?

a maldita profecia a realizar-se. Estudos do corao... Quem te

estudar, Guilherme, Stendllal ou Balzac. Eu bem sei o era preciso a Augusta


para reconquistar o terreno que perdeu. O amor puro e santo da mocidade j
l vai; o amor-apetite esfriou; o amor-vaidade, o nico possvel em ti, j no
recebe estmulos. Augusta devia perder o pejo para te arrebatar de novo.

Perder o pejo! Que disparate!

No disparate. Se ela obedecesse a todos os teus caprichos...

Caprichos!... Quais?

Que alimentam a lavareda do teu orgulho. Tu amavas esta mulher se os

outros ta invejassem. Amava-la se ela tivesse a sagacidade de trair-te... ao


menos com os olhos num subtil disfarce... de um camarote para a plateia.
Amava-la se ela hoje se vestisse o mais sedutoramente que se pode, e ferisse
lume nas caladas do Porto com as patas do teu cavalo de Alter. A cada olho
desejoso que a seguisse, sentias uma palpitao de soberba. Quando de um
grupo se dissesse: Que bela mulher!, respondias tu: minha! E este
minha, que ningum ouve, uma expresso embriagante, s comparvel do
avarento que abraa um cofre, exclamando: meu!. A mulher, assim
desejada, deixa de ser o que nos parece a ns, e aquilo que parece aos
outros. O homem que arria apaixonadamente no cura de saber o valor que os
outros do mulher que ama. Mas este no teu amor. Se o amor, por
qualquer condescendncia, declina, o amante, cego ontem, abre hoje um olho,
e duvida se ela efetivamente aquilo que lhe parecia ontem. Na dvida,
pergunta aos outros: Que vos parece aquela mulher? Se a delicadeza ou boaf responde: uma excelente mulher, a cristalizao continua. (Eu j te
disse o que era a cristalizao.) Se a m-f ou a grosseria responde: No
presta, o amador indeciso odeia a indiscreta resposta, e persiste na dvida,
que sempre de pior partido para a mulher, sujeita alta e baixa do mercado.
Augusta no sabe estas importantes teorias; sabendo-as, e amando-as,
sacrificava-te a vergonha, de todos os sacrifcios o mais penoso que a mulher
faz, com testemunhas de vista. Se ela tivesse uma escola anterior que tem,

preparava-te com finura uma emoo reparadora da sensibilidade que se te


consome nesta vida montona do Candal. Tu precisavas hoje de um duelo, de
um grande escndalo, por causa de Augusta. A questo que os outros nos
encaream a mulher, que se nos vai barateando no trato de todos os dias, sem
perigos a afrontar, nem intervalos de saudade a sentir. O corao aptico
morre de apoplexia. Isto assim no te convm, Guilherme: faltam-te ainda
vinte anos para te emancipares do arbtrio das loucuras. A vida tranquila no
sereno regao de uma mulher, na tua idade, uma anomalia. No podes ter
seno amantes; mas estas amantes devem ser mais corrompidas que Augusta.
Segue-se da estirada preleo que eu sou um grande perverso... s posso amar
a corrupo.
No digo amar. Amar um sentimento privilegiado de certas almas, que
no so as nossas, faa-se-nos justia. Desejar outra coisa. O lao que te
prende a Augusta, h dezoito meses, no amor. E a submisso do
instrumento ao brao, a docilidade de Augusta obedecendo tua vontade
orgulhosa. Imaginaste que era delicioso fazer de uma costureira urna senhora,
e empenhaste nisso as foras do teu esprito. de uma rapariga sem educao
nem princpios quiseste fazer uma literata, e puseste nessa obra miraculosa
todas as foras da tua vontade. Acabada a obra, no tinhas mais que fazer.
Reviste-te nela alguns dias com amor de artista. Exausta a admirao, pensaste
se seria possvel idear-lhe belezas novas. No era. O esprito avarento achoulhe ainda imperfeies. Descorooaste-te, desiludiste-te, pareceu-te estulta a

glria do que fizeste, porque te no servia de nada. At aqui foste prudente


como Pedro.
O pior daqui em diante... Que tencionas fazer a esta mulher?

No sei... nem penso nisso. Por enquanto viveremos como temos

vivido. Tu vais aos extremos, quando as coisas esto no princpio. Augusta h


de reconciliar-se com o desengano: convencida de que no pode ser minha
mulher, h de desvelar-se em ser uma boa amante. Os escrpulos, se o so,
desaparecem. O amor, se ele existe, h de reagir contra as convenincias.
Prezas-te de conhecer muito do corao; mas hoje adormeceste sombra dos
teus gloriosos folhetins. ..

A propsito de folhetins, deixa-me concluir o de amanh.

CAPTULO XVI

Um tio materno de Guilherme do Amaral, rico proprietrio da provncia da


Beira e deputado s Cortes Constituintes, emigrara em 1828, e casara em
Bruxelas.
Em 1845, o exilado, que no sentira nunca saudades da ptria, veio a Portugal,
de passeio, com a sua filha nica,
O pretexto era uma viagem recreativa para Leonor; mas a causa oculta era
afast-la de um casamento inconveniente para que a sentia cegamente
inclinada.
O pai demorou-a alguns dias na sua velha casa da Beira Alta, contra a vontade
de Leonor, que no podia ver-se, na estao invernosa, rodeada de florestas e
penedias, e guinchos lamentosos das corujas. A soube ele que o seu sobrinho
Guilherme residia no Porto, solteiro ainda, gozando bom nome, apesar de
alguns desatinos de rapaz rico.
O seu pensamento era grande. Casar a sua filha com o primo era, alm de um
enlace de famlia e haveres, cortar de uma vez o vnculo dbil, ou robusto, que
poderia ainda prender o corao de Leonor ao estudante belga.

Leonor, indiferente a conhecer o seu primo, em quem o pai lhe falava muitas
vezes, desejava ver o Porto, e passar aqui o Inverno, mais suave, com os bailes
e o teatro lrico.
Outros motivos mais fortes... sabia-os ela, A sua vontade encontrou a
benevolncia paterna, e a pronta execuo. Vieram para o Porto. Antecipouos uma carta, sobrescritada a Guilherme, e por ele recebida no dia imediato ao
do captulo anterior.
Dizia o seguinte:
Guilherme.
Teu tio Teotnio Vaz chega ao Porto no dia 24 do corrente. Vai hospedar-se
na guia de Oiro, e deseja abraar-te e apresentar-te a sua filha e a tua prima.
Teu afetuoso tio.
Guilherme no mostrou a Augusta esta carta. Esta reserva um sinal de
quebra na intimidade. Amaral no se impunha j a obrigao suave dos
amantes, verdadeiramente amigos; pareceu-lhe uma puerilidade mostrar a
Augusta uma carta to simples de um tio a um sobrinho.
Na tarde do dia 24, o sobrinho do Sr. Teotnio Vaz foi ao Porto, sem dizer a
Augusta que negcios o chamavam, ou que horas demoraria. Primeira vez que
isto aconteceu. Apeou na guia de Oiro, e procurou o hspede, que lhe
disseram ter chegado ao meio-dia. Foi abraado pelo seu tio, que lhe chamava,

com as lgrimas nos olhos, o filho da sua querida irm, que, em pequenino,
tantos piparotes lhe dera nas orelhas! Teotnio, enternecido com a lembrana
dos piparotes, estava pattico! Amaral, que mal se recordava dos piparotes,
custava-lhe a suster o riso diante da respeitvel saudade do seu tio.

Leonor! disse Teotnio com a voz trmula de emoo , vem ver o

teu primo...
Leonor saiu do quarto prximo. Amaral ficou surpreendido a tal ponto que
mal podia gaguejar um cumprimento. que a sua prima fazia acreditar na
existncia dos anjos: a sua apario instantnea era uma coisa mgica, um
eclipse, que escurecia todas as realidades conhecidas, uma inovao de
impresses em corao gasto de receb-las todas.
Leonor estendeu a mo afetuosamente ao seu primo. Falava pessimamente o
portugus, mas, com tanta graa, que as damas portuguesas, se a ouvissem,
estudariam o modo de falarem assim: dificuldade que algumas vencem sem
estudo.
Guilherme, para evitar-lhe embaraos, falou em francs, coisa que o seu tio,
com dezasseis anos de residncia na Blgica, no conseguira nunca. A
conversao travou-se em assunto frtil. Vieram as comparaes do clima, da
civilizao, do Governo, da agricultura, entre as duas naes conhecidas de
Leonor.

E o mais que a prima do nosso amigo era uma excelente faladora, e o seu
pai, orgulhoso dela, fazia um aceno afirmativo, e, o que mais ainda, uma
careta clebre a cada agudeza palavrosa da menina.
Guilherme via, maravilhado, tanta beleza, e tanto desenvolvimento. Quem
falava mais era ela, e sempre interessante, em tudo engenhosa, senhora de si,
sem constrangimento, dando mais importncia ao que dizia do que pessoa a
quem o dizia, falando como quem se escuta e se admira, correndo no pulso de
jaspe, por distrao, a pulseira, enquanto o primo, cada vez mais tmido,
falava.
Neste momento desfizeram-se as ltimas lminas da cristalizao de Augusta.
A costureira passou de relance entre Leonor e Guilherme. Ia nua de todo o
prestgio, desenfeitada de todos os arrebiques que a imaginao lhe dera...
Pobre Augusta!... Se ao menos as tuas lgrimas remissem as mulheres da tua
condio!...
Eram oito horas da noite, quando Teotnio Vaz interrompeu a incansvel
loquela da filha, dizendo que a sege os esperava. Foram ao teatro. Guilherme
deu o brao sua prima, e chamou a ateno dos frequentadores do vestbulo.
Entre estes estava o jornalista. Enquanto Amaral parava diante de uma
cadeirinha, que tolhia o passo das escadas, o poeta disse-lhe quase ao ouvido:
etecetera, etecetera. Amaral sorriu-se; e Leonor, que ouvira e entendera,
procurou o leitor de Victor Hugo com os brilhantes olhos. O poeta

desaparecia entre os grupos que o rodeavam, perguntando-lhe que maravilha


era aquela.

E alguma outra costureira? perguntou um.

Onde vai este homem desencantar estas mulheres?! disse outro.

Daria carta de alforria outra?

Quando teremos as duas no campo da igualdade.

Esta um anjo.

Mas a outra mais mulher.

Um bocado de cada uma deve dar uma excelente infuso.

Portanto, voto por ambas.

Esto enganados atalhou o poeta. Aquela mulher prima do

Amaral. E a outra, que vocs esperam no campo da igualdade, l ir ter... mas


ao verdadeiro campo da igualdade... ao Prado do Repoiso.

Ao cemitrio! Ests fnebre, poeta elegaco!... No pareces o Balzac da

Rua de Santo Antnio! a vossa mania, bardos da desventura, abrir uma


sepultura a cada sofrimento, sem, ao menos, perceberdes os direitos de
coveiro... Estas mulheres no morrem assim... Renascem das larvas como a
borboleta, e tm sobre a borboleta a vantagem de se no queimarem na chama

fosfrica das paixes de lume pronto, como eu creio que so as paixes do teu
ilustre amigo.
O orador riu-se do seu epigrama, e o poeta pediu aos circunstantes que se
rissem por piedade daquela sensaboria pretensiosa.
Estava o pano em cima. Cada qual foi sentar-se, segundo a indicao dos
camarotes. O jornalista colocou-se na melhor linha de observao para o
camarote de Teotnio Vaz.
Observou ele que Leonor media com o culo de alto a baixo todos os
camarotes, no se dedignava de responder, mais ou menos de passagem, aos
curiosos da plateia, atendia quase nada ao palco, e nada, em toda a extenso da
palavra, ao que o seu primo parecia dizer-lhe. Primeira observao.
Notou ele mais que, no intervalo do segundo para o terceiro acto, entrara
na plateia superior um homem desconhecido, tipo francs, bem vestido, muito
airoso. Que este homem fixara uma luneta em Leonor, e Leonor, desde esse
momento, raro levantou os olhos do desconhecido. Segunda observao.
Terceira e ltima: que, sada do teatro, o francs, que ningum vira no Porto
antes dessa noite, fra postar-se em frente da escada que desce dos camarotes,
e Leonor, ao passar, lhe dera o mais significativo e destemido de todos os
sorrisos: facto escandaloso que todos observaram, exceto Guilherme, e o seu
tio, que era mope.

O jornalista entrou na guia de Oiro, entreteve um quarto de hora


esgaravatando umas costeletas, e ps de sentinela o criado para avisar Amaral,
quando sasse do quarto do seu tio, que ele o esperava ali.
Saram juntos, e entraram na Hospedaria Francesa, residncia do poeta. Eles a
entrarem, e o francs a entrar com eles. O francs cantava a cavatina da
Semram, e o indiferente Amaral assobiava com toda a gaucherie de um
provinciano um rond do Guilherme Tell. O poeta no assobiava nem
trauteava: ia triste e reconcentrado.

Conheces perguntou ele esse homem que vai subindo?

No: pareceu-me estrangeiro.

o namoro da tua prima.

Zombas?

o namoro da tua prima. Dizem que os olhos do amante veem tudo:

os teus, hoje, cegou-os uma catarata escandalosa! Pois tu no viste nada?

Pareceu-me que ela olhava algum da plateia com teimosa ateno...

Era aquele homem que foi cortejado nas escadas com um sorriso

anglico, quando desciam.

Palavra de honra?!

Juro-te pela minha honra e pela honra das onze mil virgens, incluindo

tua gentil prima.

No gracejes...

Ento isto mais srio do que eu pensava!... Tu amas a tua prima?

Com delrio... Isto incrvel... em mim! Mas a verdade... a verdade atroz

esta... A minha mulher fatal... ela... apareceu enfim!

Penso que vais ser punido, Guilherme...

Punido!? Que ser punido?

Desprezado.

Quem sabe? Eu no lutei ainda... Ser to poderoso o rival!...

Este homem, enquanto a mim, segue-a... a primeira vez que o vejo.

Mas o meu tio h de auxiliar-me.

Pois tu j apelas para o auxlio do teu tio contra a tua prima?! Isso

uma fraqueza, urna conquista inglria, uma ignomnia para um leo! No caias
nessa, que pior para ti. Uma mulher detesta o perseguidor, que se serve do
parapeito da sua famlia para rend-la. Pela piedade, movem-se muitas; pelo
rigor, algema-se uma mulher; mas a alma fica-lhe livre. Tu s, s vezes, inferior
ao que pensas de ti. Eu no quero saber como so esses amores fulminantes...
sei que h monstruosidades nesse gnero... V-se uma mulher, luz de um

relmpago, e fica a gente a apalp-la nas trevas. O que eu no prescindo de


saber como tu te investes de um direito adquirido sobre a tua prima!

Essa pergunta tosca no me parece tua.

No? E que hoje no conheces ningum. Que diabo de homem tu s!

Eu dava a minha reputao literria por conhecer-te! j sondaste bem o que


sentes pela tua prima? Ser isso vaidade?

No: um amor infantil, uma paixo capaz de lgrimas e de sangue...

Um duelo em perspetiva...

Que dvida... No podem viver dois homens que amam Leonor.

E, contudo, h apenas cinco horas que a viste...

Que importa? j te disse que h uma mulher fatal para cada homem...

E um homem fatal para cada cento de mulheres... Faltam-te noventa e

nove... A primeira j l vai... Deus se compadea daquela nossa irm.


Apliquemos a Augusta o parce sepultis?

No falemos agora em Augusta...

uma hora da noite. Que lgrimas ter chorado a pobre mulher!

Falemos nisto, que pattico...

Mudemos de assunto.

E que eu no estou disposto a falar de outra coisa.

Muito boas noites.

Adeus, Guilherme. Os meus respeitos Senhora Dona Augusta. C te

espero amanh.

CAPTULO XVII

As vrzeas do Candal branquejavam cobertas de neve. O frio cortava as


carnes. E o Doiro rugia em baixo, alagando os muros dbeis com que lhe
ousam mos fracas reprimir a fria das enchentes.
Era essa a noite em que Augusta, desde as nove horas da noite, esperava, na
janela, Guilherme. A febre da ansiedade no lhe deixava sentir o frio, que lhe
pisava as faces de manchas azuladas. A macerao da alma no cedia foras ao
sentimento para a macerao do corpo. A alma avara de sensibilidade nas
grandes aflies.
Augusta, naquelas longas horas, dos sentidos externos s tinha o ouvido a
levar-lhe ao corao o menor rudo que se lhe afigurava ser Guilherme.
Eram duas horas quando Amaral apeou. Viu Augusta na janela, e sentiu duas
sensaes contraditrias: compaixo e aborrecimento. O extremo zelo
aborrecia-o. A compaixo, pior ainda neste caso que o aborrecimento, era, em
Amaral, uma virtude estril, a piedade por um mendigo a quem se diz: Deus
o favorea. O que ele no queria era ter de dar uma explicao da sua
demora.
Augusta, sem o menor sinal de ressentida, veio ao encontro de Guilherme,
exclamando:

Que preocupao me deste, meu filho! Tiveste algum incmodo?

No. Porque te no deitaste?

Era-me impossvel... Se tu me tens dito que te demoravas, era melhor

para meu descanso... Para a outra vez diz-me que te demoras, sim?

Pois sim.

Ceaste?

Ceei.

Com o teu amigo?

Sim.

Estiveste sempre com ele?

No... estive no teatro.

Fizeste bem, meu Guilherme. Eu gosto que tu te divirtas, se achas

prazer no teatro... Mau... porque me no disseste que ias ao teatro?!

Porque no tinha teno de l ir.

Era a Norma?

No: era o... era o... era o Barbeiro de Sevilha.

Fizeste bem... Mas tu ests triste, Guilherme!... No queres olhar para

mim!... Enganas-me... Alguma coisa tens... Diz-me o que ... Bem sei que me
no queres afligir, mas a incerteza maior aflio.
No tenho nada, Augusta... E um desses acessos de melancolia, que so
prprios da minha organizao.

Serei eu a causa!... Talvez seja... A minha tristeza ter contribudo para a

mudana que noto no teu gnio... No quero que sofras. Eu prometo nunca
mais dizer-te coisa que te entristea. Esquece tudo o que ontem te disse.
Vivamos felizes. Eu farei tudo o que tu quiseres. Vamos ao teatro, vamos
onde tu quiseres que eu v contigo, sim?

Eu no te convido a acompanhar-me a parte nenhuma...

No me convidas, mas eu que desejo ir... Quando houver teatro,

iremos ambos, sim?

Agora... impossvel,

Porqu, Guilherme?!

Tenho um tio no Porto, e h certas relaes... que devem esconder-se

de um tio.

Tens razo... As lgrimas, de improviso, saltaram dos olhos de Augusta.

A serenidade com que ela disse: Tens razo... foi um herosmo dos muitos
que passam ocultos entre a mulher ferida no corao e o homem que lhos no

compreende, ou lhos recompensa, cravando-lhe mais dentro do peito o ferro


do escrnio ou do desprezo.
Guilherme, enjoado das lgrimas, ergueu-se com arremesso, entrou no seu
quarto, e fechou-se. j no foi pouco generosa a tolerncia de a deixar sozinha
com as suas lgrimas!... Muitos h que vituperam essa fraqueza, raivando
contra a facilidade impostora de chorar...
Augusta no queria acreditar que este rpido incidente fosse uma realidade.
Como no tinha a experincia dos factos para convencer-se do fastio de
Guilherme, consultou de relance a reminiscncia dos seus romances. Viu
mulheres infelizes, muitas amantes abandonadas na mais extremosa estao
do seu amor, muitas sacrificadas a uma frvola reverncia aos bons costumes.
Assim atormentada por numerosos exemplos, creu-se aborrecida. A paixo, a
vaidade, o cime, a vergonha coligaram-se em grupo de demnios no corao
da pobre mulher. Foi essa uma noite de suplcios inexplicveis! Amanheceulhe a luz de um horroroso dia no local onde Guilherme a deixara, exttica,
morta, imvel, como assombrada por um raio. A velo ele encontr-la, e o
aspeto de Augusta impressionou-o. A desfigurao era espantosa. Sete horas
de inferno araram-lhe o vio das feies, como ferro candente que por l
passasse. Lividez, macerao, e espasmo cadavrico nos olhos, os lbios
talhados pelo crestar da febre, todos os sintomas de urna longa tsica no seu
fim... tal era a fisionomia de Augusta.

No se precisam virtudes para simpatizar com dores semelhantes. Saint-Preux,


Don Juan e Lovelace tinham intermitentes de piedade. Porque as no teria
Guilherme do Amaral, esprito medocre, sem tipo, sem caracter, coisa trivial
no mais trivialssimo dos gneros?

Que tens, Augusta? disse ele afetuosamente, tomando-lhe a mo

abrasada. No me respondes!...

Que hei de eu responder-te, Guilherme... Tudo est acabado, entre

ns... Morreste para mim...

s louca! Que motivos te dei para me julgares morto para ti?!

Oh meu Deus!... Precisars tu falar, Guilherme!... Uma mulher que ama

no se pode enganar... No era preciso falares-me to claro... Valho menos


que a amizade de um teu tio em quem nunca me falaste... Que homem esse
que pode tanto, tanto, como eu nunca pensei pudesse mulher alguma!? H
seis meses querias que eu me mostrasse... contigo... em toda a parte; vencias a
minha repugnncia com razes fortes; dizias-me que eu era a tua vida, e a
sociedade o teu odioso inimigo ... Hoje... envergonho-te...

No me envergonhas, Augusta... Atormentas-me com a injustia. Que

lucras em fazer-me sofrer assim?

Que lucro!... Pergunta-me como doloroso ao corao arrancar estas

palavras que eu me arrependo de proferir, visto que te impacientam... ou te

magoam!... Guilherme, no sofras por mim... O que tu quiseres... faz de mim


o que quiseres; no te constranja a minha companhia... Queres tu, filho?... Eu
vou abrir-te a minha alma... No, no, cedo ainda... O sacrifcio oferecido
no teria mrito nenhum... Eu hei de ser nobre na desgraa, j que o no
posso ser na sociedade... No terei vergonha de mim prpria; ao menos isso
ser uma consolao mulher que te envergonha na presena de um tio...

Outra vez!...

No te impacientes, Guilherme... Vem c... S meu amigo, que to

mereo.
E no sou eu teu amigo, Augusta?! S?... Sou, s-lo-ei sempre. Pois ento no
tenho razo de chorar. Perdoa-me. Guilherme almoou ao p de Augusta.
No trocaram duas palavras. A situao dele era penosa, como um remorso.
Raras vezes a expiao assim principia simultnea com a culpa. A culpa,
digo eu, e, porventura, terei dito um grande absurdo. Qual era a culpa de
Amaral? Amar uma mulher, que lhe desfazia a cristalizao de outra.
Moralistas, dai-nos uma figa de azeviche para afugentar o demnio da
tentao: tr-la-emos devotamente sobre o esprito fraco, o esprito malevel,
que se presta a todas as formas, este camaleo ntimo, que varia de cor a cada
novo raio de luz dos ltimos olhos, que o fixam. Corrigi os defeitos do
sistema nervoso de Guilherme. Transfundi-lhe um sangue mais sereno, menos
irritvel, nas artrias. Dai-lhe o remanso da paz no regao de uma mulher, seja

ela rainha, ou costureira. Remi-o da infelicidade, que traz consigo a


inconstncia. Fazei que ele no chegue aos trinta anos, detestando as vinte
variedades de mulheres? que conheceu, e detestando-se por ter abusado das
fceis regalias, que o oiro, a juventude e a seduo lhe serviam em mesa de
risos e venenos, como nos festins dos Brgias. Arrancai-lhe do fundo do seio
o esprito inquieto, que principia por travessuras, e acaba em cimes
rancorosos: insuflai-lhe l uma alma nova, pacfica, fcil de nutrir-se, parca, e
suscetvel de adormecer na paz podre de uma amizade burguesa e
estupidamente feliz... Moralistas, quando tiverdes descoberto o processo de
encadear o esprito, devereis erguer um cadafalso para os infames voluntrios
que arremessarem a mulher ao abismo...
O almoo correra triste como a comunho de um agonizante. E forte o smile;
mas exato.
Guilherme mandou arrear o cavalo, deu um abrao em Augusta, e disse:
Vou hoje jantar com o meu tio. At noite. No chores, Augusta... Eu te
pagarei em amor todos os teus sofrimentos. O melhor cu tem tempestades...
A nossa h de passar ... Acredita que ningum se faz voluntariamente infeliz ...

D. Joo, num momento de humor sombrio, dizia-me, em Thorn: H s


vinte variedades de mulheres, e logo que se conhecem duas ou trs de cada
variedade comea o fastio.
Stendhal Fisiologia do Apir, cap. LIX.
O autor conhece vinte e uma variedades.

CAPTULO XVIII

Amaral, no dia seguinte, encontrou o jornalista na Batalha.


Vens muito a tempo disse o poeta inexorvel no epigrama.

De qu?

Queres ver o francs que te mostrei ontem? Repara nesse homem

encostado alm vidraa do Cruz cabeleireiro... Viste? Agora, faz um


semicrculo com os olhos, e v a tua prima por detrs de uma vidraa na
guia de Oiro... Viste? No per turbes este inocente colquio de duas almas,
que se comunicam magneticamente. Respeito s paixes alheias!
Guilherme no sabia responder s ironias do poeta. Cravou as esporas no
inocente cavalo, e, de quatro gales, entrou estrepitosamente no ptio da
hospedaria. Leonor vira-o, e no se deslocou.
O Otelo foi conduzido ao quarto do seu tio, que desmontou os culos para
abraar o seu sobrinho.

Estava agora disse ele escrevendo minha mulher, e falando de

ti, corri vaidade de ser teu tio. No imaginava encontrar-te to belo rapaz, e
to ajuizado, segundo me contam c os criados deste hotel, onde estiveste um
ano de hspede. A tua prima ficou simpatizando muito contigo...

H algum com quem ela simpatiza mais, meu caro tio.

Sim? Essa boa! Porque dizes tu isso, Guilherme?

Porque tenho olhos.

Explica-te; eu no entendo essa charada.

Se o meu tio tem interesse em entend-la tenha a bondade de vir a esta

janela...

Pois que ?

No necessrio abri-la... Queira reparar na primeira janela do primeiro

andar daquela casa caraira ...

No veja nada... sou muito mope... Espera ... aqui est um culo...

Teotnio viu pelo culo, e no se demorou na observao.

E ele!... disse o velho, trmulo.

Pois conhece-o?

Perfeitamente... o meu demnio inseparvel... o anjo mau da minha

filha... Escuta-me, Guilherme... Aquele homem um belga, um estudante, um


aventureiro. H dois anos que eu descobri o namoro da minha filha com ele.. .
Maldita hora em que a tirei do colgio!... Tenho feito tudo o que se pode fazer
para cortar estas relaes. Tive Leonor em Paris... o demnio l foi ter. Leveia para Londres, ele com ela. Viajei o ano passado na Itlia, o maldito sempre

atrs de ns, em Veneza, em Florena, em Roma. Agora, que me julgava em


terra desconhecida para o tratante, ele a est comigo! Isto h de acabar aqui,
Guilherme. Ajuda-me a salvar a tua prima da perseguio deste malvado...

De que modo, meu tio?

S franco: tu gostas da tua prima?

Quem no h de amar aquele anjo?

Queres ser meu filho? Queres casar com ela?

Isso no depende s da minha vontade. O tio bem v que no

honroso para mim aceit-la impelida por fora... Seria uma fatalidade para
ambos o nosso casamento.

Ests enganado. As mulheres tm destas criancices. Amam por

capricho, e esquecem por capricho, diz a minha mulher, que no parte


suspeita, e tudo que diz, a respeito de mulheres, um Evangelho, Faz-lhe a
corte desenganadamente, e vers como ela se volta.
Creio que se engana, meu tio. Eu posso tentar, mas, se no veno, apesar do
seu bom auxlio, posso retirar-me muito ferido da peleja. Com o amor no se
luta por vaidade; e, visto que me manda ser franco, dir-lhe-ei que, desde que vi
a minha prima, sinto uma confuso de ideias, uma paixo nascente, urna
esperana, e um desalento... mistura terrvel de cu e de inferno... que no
posso explicar-lhe.

Pois bem; explica-te com ela, e mos obra. Logo que ela te parea um

pouco inclinada para ti, tira-se dispensa, e faz-se o casamento mesmo naquela
igreja apontando para Santo Ildefonso. No h tempo a perder. Eu
chamo-a, e daqui a pouco ficas s com ela. Explica-te, ouviste? Nada de
namoros de criana. Diz a minha mulher que as mulheres gostam de clareza,
quando necessrio esclarec-las de uma dvida...
Teotnio chamou Leonor. A menina entrou com menos afabilidade que no
dia anterior. Exprimia no franzir do sobrolho o enfado com que vinha.
Apenas apertou a mo do primo, sentou-se perto da janela para ser vista do
belga. Duas, trs palavras, um lance furtivo de olhos para a janela do
cabeleireiro. Amaral mordia o lbio inferior. Teotnio bufava por detrs do
leno de assoar.

Eu volto j disse o velho, quando j no podia reprimir a zanga.

Onde vai, pap?

Vou mandar buscar uma carruagem.

Para isso escusa ir; eu toco a campainha, e o criado vem.

Nada... no preciso... Eu tenho que dizer dona da casa.

E Amaral entendia bem a cruel significao deste incidente. Leonor no queria


ficar s com ele. Receava alguma liberdade de expresso. Era, talvez, uma
desconfiana suscitada por palavras do seu pai...

O bom senso no abandona sempre um amante. Guilherme adivinhara.

Parece-me que lhe sou importuno, prima...

De modo nenhum... pelo contrrio, estimei muito conhec-lo.

E eu dera a minha vida por no conhec-la. Leonor abaixou os olhos:

no era pudor, era uma repreenso.

Eu no sou decerto culpada...

Nem eu a culpo... Ainda lhe no disse que a fazia responsvel pelos

meus desgostos...

Teria graa se o primo me fazia responsvel pelos seus desgostos... Eu

tenho o prazer de conhec-lo desde ontem tarde...

Mas a vida que passou no vida. Os infortnios presentes e os futuros

so os que se contam...

No entendo os seus infortnios... O primo est brincando comigo, e

eu no sei se lhe mereo o sentimento da ironia.

Eu no brinco, Leonor... Esta liberdade fez subir o sangue ao rosto da

impaciente menina: no era pejo, era clera. Desforrou-se da ofensa, fixando


com mais penetrao o belga, que no saa do posto.

Peo-lhe que, ao menos por delicadeza disse Guilherme sorrindo

com afetada graa enquanto me d a honra de lhe falar, d trguas s


exigncias de algum que a contempla.
Leonor estremeceu, surpreendida. Teve um mais clido assomo de clera; mas
a razo reagiu, e Leonor, sa da, dois anos antes, da inocente atmosfera de um
colgio, sorriu-se corri o desdm das nossas damas de quarenta e cinco anos, e
quarenta e cinco surpresas dessa ordem... Oh!, a Frana o pas abenoado
das mulheres; ali, aos dezasseis anos, -se perfeita; conhecem-se todas as
evasivas nos apertos, faz-se de um olhar e de um sorriso uma arma, que d em
terra com o orgulho astucioso de um ftuo.

Esse sorriso prosseguiu o desarvorado conquistador muito

significativo, prima.
Eu estimarei que o primo lhe conhea a significao... Sabe que tenho a
censur-lo de muita liberdade com uma pessoa que conhece h menos de
vinte horas?

Pois censure, mas no me crimine por isso, nem me ofenda... Esse seu

reparo um insulto...

E essas palavras, na Blgica, em Frana e em Inglaterra, nunca se dizem

a uma senhora. Em Portugal no h muito respeito s mulheres, salvo se um


primo pode dizer o que quer a uma prima... Eu no lhe digo o que quero, nem
o que penso da sua educao..

A minha educao, primo, foi boa. Aprendi a respeitar a vontade dos

outros, e, fra do colgio, tenho uma to respeitvel como ilustrada me, que
me manda, sobre todas as vontades, respeitar as vontades do corao dos
outros...

Compreendi-a.

E aborrece-me por isso?

No posso nem devo... Lastimo-me.

E um abuso de palavras sentimentais. Seja meu amigo, primo.

S-lo-ei... mas... muito longe das suas franquezas... Receio que elas me

matem...

Werther conhecido em Portugal?

, sim, prima... mas em Portugal h orgulho... Aqui no h mulher que

valha a pena do suicdio. .. E as que vem de fra...

Tambm o no merecem... Certa estou eu disso...

Dispe da minha vontade? disse Guilherme, erguendo-se.

Retira-se? Eu chamo o pai. Leonor tocou uma campainha. Veio um

criado.

Diga ao meu pai que o primo vai sair.

O senhor Teotnio Vaz disse o criado saiu...

Quando?

Agora mesmo.

E onde esteve ele at agora? redarguiu ela sobressaltada.

No quarto da vossa excelncia. Leonor lanou os olhos de revs para a

casa caraira, e no viu o belga. Assustou-se... Guilherme apertou-lhe a mo


com hipcrita cordialidade, e saiu.
Suspeitoso de que o seu tio procurava o seu demnio, encaminhou-se para l:
chegando ao ptio do cabeleireiro, viu-os. Era tarde para recuar: quis
disfarar-se, subindo, no momento em que o belga proferia com altivez estas
palavras:

No tem direito algum a privar-me que eu viaje onde viaja a sua filha.

Um passaporte legal garante-me passagem em toda a superfcie do Globo.


Hoje estou aqui: de hoje a um ano estarei com os antpodas.
Guilherme parara. O francs perguntou:

O cavalheiro quer alguma coisa? Creio que no chamado aqui. Amaral

titubeou na resposta:

Se no sou chamado... apresento-me, sem o ser...

o meu sobrinho... disse Teotnio Vaz.

Estimo muito... replicou o belga , mas nem por isso tem direito a

intervir no nosso encontro.

Tenho o direito a pedir-lhe uma satisfao menor palavra insultuosa

que dirija ao meu tio redarguiu Amaral.

E eu as mais santas disposies para dar-lhe a satisfao, posto que no

sou capaz de insultar ningum disse serenamente o belga.

Mas que tem o senhor com a minha filha? replicou Teotnio,

cruzando os braos.

O que tenho com a sua filha? Uma aliana do corao, que no

prejudica a honra do pai nem a da filha.

Mas este senhor atalhou Guilherme , que pai, repele essa

aliana... no a quer...

No tem remdio seno aceit-la.

No tenho remdio! Essa muito interessante! a maior bestialidade

que tenho ouvido!...

No uma bestialidade to grande como a faz, cavalheiro. O amor no

se amolda a vontades estranhas. O senhor, como pai, tem livres os direitos de


tiraniz-la; eu, como homem, posso am-la eternamente... No quero mais
nada... Vivo deste amor, antiga, assim que amavam nossos vigsimos avs.

Olhe que eu no me rio, senhor! Falo muito srio... preciso que se

retire quanto antes de Portugal... quando no...

Queira terminar a ameaa...

Quando no... tenho ao meu favor a lei... o senhor meu perseguidor...

No tenho esse mau gosto, cavalheiro... O perseguido, se aqui h vtima

e algoz, sou eu...

E um homem sem honra... atalhou o velho, batendo as duas maxilas

em convulsiva raiva. Homem sem honra, s pode chamar-me um doido, ou


um infame. O doido vitupera impunemente; mas o senhor no tem seno os
cabelos brancos a proteg-lo.

Meu tio no recorre proteo dos cabelos brancos... Eu sou seu

sobrinho... No dou, peo reparao e pronta.

Como queira, e quando queira. Moro na Hospedaria Francesa, quarto

nmero nove.
O belga saiu com uma cortesia e um sorriso de melflua urbanidade.

Vem comigo a casa... disse Teotnio, tomando o brao do sobrinho.

No vou...

Porque no vens? No quero duelos.

E impossvel no o haver...

No quero, j te disse... Guia-te pela minha cabea... Eu sei tudo que

passaste com a minha filha... Vem, e faz de conta que no tivemos este
encontro.

Eu tenho dignidade, meu tio!...

Bem o sei... basta seres o filho do meu irmo... s da nossa famlia; mas

os brios, guarda-os para outras ocasies... O nosso caso no se leva


pancada... Guia-te pela minha cabea. ..

Pois bem... se temos alguma coisa a dizer, subamos para a sala do

cabeleireiro.
Subiram, e fecharam-se.

Eu vou disse Teotnio imediatamente retirar-me de Portugal. No

primeiro paquete, embarco para Inglaterra. Tu deves acompanhar-nos.

Eu!...

Guia-te pela minha cabea. A tua prima h de ignorar a nossa sada, e o

infame perseguidor no saber to cedo o nosso destino...

E depois?

Minha filha, em se desenganando, ama-te; e, ao primeiro sinal, casas.

Meu tio parece uma criana? Pois entende que ela pode esquecer esse

homem!? No sabe nada do corao humano.

Sei mais do que tu. Guia-te pela minha cabea. Eu estive com a minha

mulher no mesmo caso em que ests com a minha filha. Amava um outro;
esse outro era um espadachim, e desafiou-me. Qual desafio nem meio desafio!
Se eu fra tolo! Que diabo de vitria era a minha se ele me passasse o peito
com um florete! Ponto ter a gente um pai do seu lado, e uma pouca de
prudncia... Guilherme, vens connosco?

No posso resolver-me j...

Podes, no tens a quem pedir licena...

Resolvo at noite.

Depois de amanh parte o paquete. No h tempo a perder... Espero-te

para jantares comigo. . . Nem uma palavra suspeita do que passamos a


Leonor... Entendes? Guia-te pela minha cabea...

CAPTULO XIX

O jornalista, durante esta cena, estivera, na: mais tranquila beatitude de


esprito, fumando um charuto, encostado ao ltimo frade (de pedra: nada de
equvocos anacrnicos) da Rua de Santo Antnio. Presenciara os gestos, e
adivinhara tudo.
Quando Guilherme saiu, a primeira pergunta do jornalista foi esta:

Quem so os teus padrinhos?

Vamos a tua casa... disse Amaral, acendendo um charuto, com os

olhos fitos, por debaixo da aba do chapu, nas janelas da guia de Oiro, onde
a sua prima no estava.
No corredor da Hospedaria Francesa, onde j dissemos que morava o poeta,
encontraram-se com o belga, que dava a um criado, que o no entendia, este
recado:

Se aqui vierem procurar-me, diz que me no demoro: ou que esperem,

ou que voltem s duas horas.


E, reparando nos dois que entravam, continuou:

Naturalmente procuram-me.

No, senhor disse o poeta. E seguiram seu caminho. O belga

tambm seguiu o seu, assobiando.


Guilherme no era desmedidamente corajoso. O nimo frio com que o rival o
interrogara aquecera-lhe um pouco a face. Forte em muitas coisas, a sua
organizao no se dava o melhor possvel com os mpetos de bravura.
Poderia bater-se em duelo cinquenta vezes: isso no provava mais do que
bater-se uma s, e todo o homem se bate por causa de uma mulher, ou d um
tiro na prpria cabea.
Quem o conhecia bem era o jornalista.

Que temos? perguntou este, saltando para cima da cama, seu sof de

receo, e encruzando as pernas em atitude de califa.

Temos a realizao das tuas fatais profecias.

J me no lembra a ltima...

Minha prima detesta-me.

Que ingenuidade! E tu adora-la?

No sei bem o que sinto.

Em todo o caso, no a detestas...

No.

A est o que eu no ousaria profetizar... Ainda h falta de brios,

Guilherme... Metade da tua alma est afetada de lepra. Desces s dimenses


do pigmeu... Como se pode amar assim?

No sei: h uma palavra que explica tudo: expiao.

Nada explica. Todo o homem tem arbtrio, conscincia e amor-prprio.

O mais vil de todos faz um esforo, e salva-se do vexame e da ignomnia.

Vexame e ignomnia!... que palavras to estrepitosas!... julgas-te sempre

em plena exaltao de folhetim descabelado! Onde est aqui o vexame e a


ignomnia?!

Na covardia com que te ajudas de um pai para violentar a vontade de

uma mulher... E pueril a pergunta...

Tens frases duras... No sei se admire mais a tua rudeza, se a minha

resignao!... Deixa cair a mscara, tartufo...

Eu sou teu amigo, Amaral prosseguiu o poeta, vindo sentar-se

gravemente ao lado de Guilherme. s o primeiro homem a quem falo


assim, s o primeiro e o ltimo para quem no sou dissimulado. Arquiva os
diferentes assuntos que temos discutido, e, mais tarde, estuda o carcter deste
homem de reputao odiosa... Adiante. Que h? Um duelo, no assim?

No h duelo. O meu tio no quer que eu me bata.

um excelente tio; e tu um excelente sobrinho. Aqui no h ironia. E

depois?

Meu tio vai para Inglaterra, e quer que eu o acompanhe.

Vais?

No sei ainda. Promete-me Leonor, j desenganada das esperanas que

ps no belga.

E convm-te essa mulher?

Se me convm!... No devo mentir-te... Eu amo-a... Sem a

contrariedade, am-la-ia menos. Paixo, orgulho, demncia, sinto tudo...

Recebo a demncia como explicao. Factos consumados no se

remedeiam. Casado com a tua prima, sers feliz?

Feliz!... Quem feliz?

Ningum; mas infeliz com desonra nem todos os maridos o so.

Queres dizer...

Que as mulheres, casadas por violncia, nem sempre tm as virtudes

crists da Anglica de Balzac. pena que eu tenha de observar ao homem


feito na grande sociedade o que se diz a um provinciano inexperto. julgas-te
com mritos superiores aos do Cristiano de Bernard? No receias ser
humilhado aos olhos da tua mulher pela astcia de um Gerfaut? Desculpa as

reminiscncias do romance, porque l que tu bebeste as ss e as pssimas


doutrinas do teu cdigo moral.

Eu acho imortal o interrogatrio...

Pois vela a face com o alvo amicto do pudor, meu anglico amigo. E

esta a hora solene das verdades duras. Esperas fascinar a tua prima antes ou
depois de ser tua mulher? Tem a bondade de responder.

Antes: a pergunta ociosa e sandia.

Pacincia... eu sou o sandeu... julgue-nos o futuro. Argumentemos na

mais cndida boa-f... No amas a tua prima, Amaral. Deixa-me lisonjear a tua
vaidade com esta ideia. A minha suspeita faz-te honra. No podes am-la j,
nem a amars jamais. j, no: porque o homem verdadeiramente amante
desconfia sempre de si, receia sempre a sua inferioridade para merecer
recompensa da mulher que, muitas vezes, no exige grandes mritos nem
grandes provas... No a amas, porque a viste ontem, foste hoje repelido, hs
de s-lo amanh, e, contudo, to ftuo o teu orgulho que te prometeste
vencer a resistncia... e venc-la como? Associado astcia, ao capricho, ou
violncia do pai. No a amars jamais. Concedida a hiptese de que a tua
prima vai ser tua mulher, a s ideia de que a possuis por estratagemas
cavilosos, e indignos do homem generoso e honrado, ser-te- uma acusao
da conscincia, que te no doe hoje, mas h de pungir-te o nimo frio, depois
da posse. Casado, no poders am-la por hbito. Ests passando por uma

crise decisiva. uma febre, uma congesto moral, que a reflexo no cura,
porque as circunstncias tanto apressam o desfecho que te no deixam refletir.
Tens uma nica evasiva. Refaz-te de valentia de nimo: s varonil, e diz: No
quero ser vil! Hei de ser honrado por amor de mim! Desprezo a mulher, que
s pode entregar-se-me forada por um assdio de violncias, de que eu serei
o instrumento desonroso na mo do pai.
Guilherme estava abalado. Nunca o jornalista lhe parecera to severo, nem to
respeitvel. Se quisesse replicar-lhe com uma dessas zombeteiras liberdades
prprias de mancebos, no poderia. A palavra, no autorizada pelos anos do
poeta, mas solene de seriedade, de comoo e de entusiasmo, soava-lhe como
conselhos de um velho, como austeras reflexes de um pai amigo, ou de um
irmo extremoso.
Amaral erguera-se com o mpeto da aflio, que sacode maquinalmente o
corpo, e nos obriga a andar lguas, no pequeno mbito de uma sala, sem nos
cansarmos, sem nos percebermos.
O poeta no quis acumular sensaes no esprito do seu amigo. Calou-se,
enquanto ele, atirando em feixes os cabelos para o alto da cabea, ia e vinha de
ngulo a ngulo do quarto.

E Augusta?!... murmurou Amaral, como se a pergunta fosse feita

sua conscincia.

Que dizes? perguntou o jornalista, fingindo no ter ouvido.

Nada...

E Augusta?!, pergunto eu, se nada disseste... replicou, sorrindo, o

poeta.

Isto uma fatalidade!...

Escreve Antema nessa parede, como o alquimista de Notre Dame. Eu

serei o Victor Hugo decifrador desse terrvel enigma... Se no queres discutir


passeando, como os filsofos peripatticos, senta-te aqui...

Vou sair.

Vais para o Candal?

No: hoje janto com o meu tio.

Mas so duas horas... muito cedo.

Tenho alguns passos a dar.

Aprestes de viagem?

Penso que sim...

Por consequncia, perdi o meu latim... O demnio da loucura pde

mais que a razo de um jornalista consciencioso... Estou vencido, no


verdade?

Nada de valentias hipcritas! No posso... no posso v-la ir... O meu

orgulho atrozmente ferido. Nunca experimentei o cime: nunca me vi de


pior partido em frente de um rival: vergonhoso ceder essa mulher, sem ter
esgotado todos os recursos. Hei de vencer! Hei de fascin-la! Hei de obrig-la
a pedir-me que lhe no fale nesse homem esquecido, e desprezado... e, depois,
se a minha vaidade quiser mais larga vingana, desprezo-a!

A quem?

A ela... a minha prima!

E quantas covardias, para alcanar esse incerto triunfo?

Covardias!... pois sim, covardias, se assim o queres; mas triunfo

incerto... no!... certssimo... tenho a conscincia do que posso.

E Augusta?

No sei.

Essa pobre mulher deve ter um tal ou qual peso nas tuas

consideraes... Que figura faz ela? Um empecilho, que se afasta com a ponta
do p, no assim?

No. Augusta no mulher que se afaste com a ponta do p... As que

se afastam assim, caem num abismo. Augusta no cair. Se quiser ser virtuosa,
pode s-lo, sem renunciar s regalias que tem. A casa onde vive ficar sendo a
sua casa; os criados que me servem sero os seus criados; ter tudo que

ambicionar, porque eu tenho o dinheiro com que se assegura um futuro


abundante a uma mulher.

E entendes que Augusta est assim paga e satisfeita?

Se no estiver assim paga e satisfeita, como queres tu que eu salde as

minhas contas?! Queres que eu case com ela!? Ora, meu amigo,. guarda a tua
moral para os folhetins, e no me faas blocos de virtudes, que te no vo
bem fisionomia. Parece que queres fazer de mim um piegas! Vai impor a
responsabilidade do matrimnio aos teus numerosos conhecidos, que
aumentam todos os dias a estatstica da prostituio! V l quantos desses, ao
cabo de dezoito meses, garantem s mulheres, que seduziram com um capote
e um vestido, a subsistncia brilhante de toda a vida!... sentir muito ao vivo
as dores alheias!... Eis-me aqui sozinho, no momento mais crtico da minha
vida! Quando esperava de ti os alentos, que um simples conhecido me no
negaria, encontro, no meu nico amigo, ironias, diatribes, vaticnios ofensivos
minha vaidade de homem, e, no fim de tudo, prope-se-me como remdio
eficaz o casamento com uma costureira a quem no prometi solenemente
casamento e com quem devo casar pelo simples facto de que ela quer ser
minha mulher! s importantssimo! As costureiras deviam cotizar-se para te
mandarem de presente uma grosa de camisas!

E olha que preciso delas, meu caro Amaral... Acabas de fulminar-me!...

No tenho que te responda... A costureira deve ser imediatamente expulsa,

porque teve a audcia de lembrar-se de ser honrada. E no s expulsa! Voto


que seja afogada, como Messalina, pelo alapo de uma catraia! A costureira
urna mulher infame, que teve o descoco de reputar-se credora da tua amizade,
pelo simples facto, to glorioso para ela, de tu a tirares da Rua dos Armnios,
onde tinha o pssimo gosto de viver com honra, trabalhando no ridculo
exerccio dos suspensrios! Voto que a costureira seja queimada como Joana
d'Arc! A costureira...

Tapa l a torneira do esprito interrompeu Guilherme, vestindo as

luvas, em ar de retirar-se. A ironia insulsa e parvoinha como os teus


folhetins moralizadores, em que o bom senso encontra os tours de force de
um conde de Almaviva, embuado no capote de D. Baslio... At noite... Se
tiveres a benevolncia de me esperar no Guichard, s oito horas, falaremos...

s oito horas, Amaral e o jornalista, apartados dos grupos ruidosos, que


fomentavam, no Caf Chichard, a derrota de uma companhia lrica, tiveram o
seguinte dilogo:

Em poucas palavras, diz-se tudo. No posso demorar-me, que tenho de

acompanhar a minha prima ao teatro. Acho-a doutros humores. Enquanto a


mim, Leonor persuade-se que eu pacifiquei o pai e o belga. O meu tio parece
confirmar a minha suspeita com a sua alegria. Esta ou outra razo, seja qual
for, fez nela urna incrvel mudana desde manh at tarde.

Pode ser um disfarce...

Ser; mas o que eu quero que ela me d tempo... A grande questo

familiarizar-me. Nem todas as mulheres sucumbem ao improviso de uma


impresso: aquela das que demoram muito a cristalizao, como tu lhe
chamas.

Mandas-me concluir do teu humorstico programa: que vais para

Inglaterra, depois de amanh.

Justamente.

E hoje vais dar a Augusta o abrao de despedida...

A esse respeito, falaremos depois do teatro... So oito e um quarto. At

logo.
Amaral e o jornalista entraram na sege. Apearam porta da guia de Oiro;
um subiu, e o outro foi para o teatro.

CAPTULO XX

Quarenta e oito horas depois, o jornalista, sinceramente melanclico, ao


anoitecer, entrava em casa de Augusta, no Candal.

A senhora disse uma criada est na cama.

Doente?

Bem doente. Vossa excelncia no viu no Porto o senhor Guilherme?

Vi...

E recebeu hoje uma carta para lhe entregar?

Recebi; mas no lha entreguei.

No?! Porqu?

Diga senhora dona Augusta que eu preciso muito falar-lhe; que se no

levante, se no pode; a familiaridade com que me trata, dispensa-nos de


cerimnias.
O poeta esperou. Augusta erguera-se impetuosamente, e viera procur-lo
sala. Vinha desfigurada. O roupo escuro aumentava o sinistro misterioso da
fisionomia. Os cabelos, negros como o bano, luzentes como os olhos, caamlhe at cintura. A pavidez, a imobilidade, esse torpor cadavrico dos olhos,
que se cravam na viso impalpvel da febre, assustaram o poeta.

Onde est Guilherme? perguntou ela, apenas entrou na sala.

Senhora dona Augusta... sente-se...

Diga onde est Guilherme... disse ela com impacincia. Porque

no entregou a minha carta?

S respondo s suas perguntas quando a vir mais tranquila.

Que flagelo, meu Deus!... Por quem , senhor... Responda-me:

Guilherme morreu?

No, minha senhora.

Est doente?

Tambm creio que no.

Cr... ou sabe de certo?

Creio, porque h trs horas que ele saiu do Porto.

Para onde?

Foi-lhe necessrio ir a Inglaterra...

Sem mo dizer a mim?!... Oh, santo Deus, que perdi o amor de

Guilherme!
Augusta cara sobre uma cadeira, soluando.

Senhora dona Augusta... no perdeu o amor de Guilherme... Foi uma

sada repentina, que o no deixou vir despedir-se.

No me iluda, senhor... H trs dias que daqui saiu Guilherme. .. Nem

mais uma palavra, nem um bilhete... Que desprezo! Que lhe fiz eu para isto?...
Diga-me... seja sincero comigo... Se eu no valho nada para vossa senhoria,
abandonada por Guilherme, compadea-se de uma pobre mulher... Expliqueme este horrvel segredo... Eu sei tudo amanh... que importa sab-lo hoje?!
Sou uma infeliz... abandonada, verdade?

No, minha senhora: a prova de que no abandonada...

Qual ?... Diga, diga, pelo amor de Deus!... E que a vossa excelncia fica

sendo o que era nesta casa: senhora de tudo, com os mesmos criados, e, para
assim se conservar, receber pontualmente uma mesada de cem mil ris...

Isso nada explica... No pergunto se estou pobre; pergunto se estou

abandonada... se no devo esperar aqui mais Guilherme...

Pudera iludi-la, dizendo-lhe que sim; mas eu no sei se Amaral fica em

Frana com a sua prima...

A sua prima? Que prima?

O jornalista, inconsiderado, j no podia engolir a palavra imprudente.


Augusta instava:
Que prima essa? E uma filha desse tio, chegado h pouco da Blgica.

Tenho compreendido tudo... disse com estranha serenidade a

costureira. De que serve o resto do segredo!. Agora, se no quer dar-mas,


dispenso as suas explicaes. Est tudo claro como a luz do Sol. Guilherme
da sua prima: pertence sua prima. Sou livre, livre sim, embora arraste o
grilho da desonra... Que tem isso?... Que mais queria uma costureira?...
E sorria-se; mas que sorriso aquele! O suor escorria-lhe da cara sobre as brasas
vivas da face. Tremia toda ela. As convulses do corao denunciavam-se nos
arquejos do peito. Os braos caam-lhe prostrados a cada arremesso com que
afastava da testa os cabelos desatados. O jornalista fixava-a como objeto de
estudo; mas o corao doa-lhe, e o respeito compassivo a tamanha angstia
emudecia-o. O sorriso de Augusta era a crispao que vem aos lbios, do fogo
ntimo, o prenncio, quase sempre infalvel, de demncia fulminante, e, raras
vezes, a ironia pungente com que os infelizes recebem os reveses. O poeta
no sabia optar entre estes dois sentimentos. Augusta avultava-lhe na
imaginao, excitada pelo belo horrvel, como ente extraordinrio, herona
deslocada neste sculo de trivialidades, tipo frtil de observaes, e futura
inspirao de um drama.
Augusta erguera-se de improviso: no queria chorar na presena do jornalista,
e sentia borbulharem-lhe nos olhos torrentes de lgrimas. Cont-las era
sufocar-se, morrer sem um gemido surdo, cair sem glria, morrer sem
penitncia. Ergueu-se a custo, apertou a mo ao amigo de Guilherme, e pediu-

lhe desculpa, sorrindo ainda com a graa que vos entristece, e vos deixa no
corao uma imagem para toda a vida.
O jornalista quis estorvar a sada, apertando-lhe a mo, sem larg-la. Augusta
fez um esforo senhoril, vencendo a resistncia da mo trmula, que a
segurava.

Que vai fazer, senhora dona Augusta?

Vou recolher-me cama... Sinto-me pior do corpo que do esprito...

Quero viver... devo amparar-me, e necessito de repoiso... Adeus.


Este adeus tinha o trmulo de um ltimo adeus... O poeta ia replicar, quando
ela saiu apressadamente. Aterrado, acusando-se da pouca habilidade com que
se houvera na explicao do sucesso, o jornalista deixou o Candal,
acumulando na imaginao todas as desgraas, desde a demncia ao suicdio.
Nessa noite quis escrever sob a pungente impresso, e no pde. Era,
portanto, verdadeira a sua pena!
A meia-noite, o poeta ouviu o rumor de cavalos que saam do ptio da
hospedaria. Perguntou ao criado quem sara, e soube que o estrangeiro partia
para Vigo, e fizera tirar passaporte para Inglaterra. Sem colher mais
informaes, por julgar intil averigu-las, soube que duas horas antes um
criado da guia de Oiro viera trazer ao belga um bilhete de uma senhora, que
l se hospedara quatro dias; o qual bilhete, escrito a lpis, e aberto, o criado
vira, mas no entendera, porque era em francs, com duas linhas somente.

Eram onze horas do dia imediato, e o jornalista recebeu trs grossas chaves e
o seguinte bilhete:

Il. Sr. Queira V. S.a ser o depositrio dessas chaves, que pertencem casa
do Sr. Guilherme do Amaral, Os criados foram pagos e despedidos. De V. S.
a, agradecida veneradora Augusta.

O poeta fez entrar no seu quarto o portador. Era um dos criados.

Como se entende isto? perguntou ele.

Eu sei c! A senhora, ontem noite, pagou-nos e disse-nos que s nove

horas da manh deveramos sair todos, menos eu.

E depois?

Deixe-me tomar flego, pelas almas, que eu no sei o que digo, nem o

que vi!... Uma coisa assim!... No se acredita o que eu vi!...

Pois que foi?

A senhora andou a p toda a noite, e fez-me ir buscar a um sto do

forro uma caixa de pinho, que eu nunca tinha visto, e fechou-se com ela no
quarto. De madrugada andou a passear no jardim: sentava-se, ora aqui, ora
acol, e chorava que parecia morrer! De tudo que ela dizia, s pude, por uma

fresta da cozinha, ouvir-lhe duas palavras: Era aqui... No sei o que ela
queria dizer com isto; mas o caso que se sentava no tal stio, e dava uns
gritos abafados, que me cortavam o corao. As oito horas as duas criadas
mandaram-lhe pedir licena para se despedirem. A senhora veio sala, e
abraou-as: parecia j outra; no tinha nos olhos sinal de ter chorado. As
criadas perguntavam-lhe se tinham dado motivo para serem despedidas, e ela
respondia que no, que lhe perdoassem, e que fossem boas. Valha-me Deus!
Eu no pude ter mo em mim! Fui-me ter corri ela, e disse-lhe: Vossa
excelncia que tem? No tenho nada, Gregrio; sou uma criada de servir,
que acabou o seu ano. Assim me Deus salve que tudo isto me parecia um
sonho!...

E depois?

Deixe-me descansar... eu estou c por dentro mais aflito do que

ningum pensa... Depois que os criados se despediram, a senhora disse-me


que chamasse um carreteiro. Fui pedir a um lavrador que me emprestasse o
seu criado. Quando voltei, a senhora dona Augusta tocou a campainha, e eu
fui ao seu quarto. Ai, senhor! Quando entrei no sei como no ca com a cara
no sobrado!.

Pois que era?!

A senhora dona Augusta estava outra!...

Plida, descorada ...

No era s isso ...

Pois qu?

Estava vestida como uma criada de servir! Tinha um vestidinho de

chita, umas chinelas, um leno de algodo na cabea, e um capotinho


redondo...

Sim?! atalhou o poeta estupefacto.

E tal e qual... Deu-me para chorar... No podia v-la assim... Oh

senhora, disse eu, isto que ? uma criada que se retira sem soldada,
disse ela a sorrir-se, que parecia uma santa. Pois a senhora vai assim rua?
Vou como vim, respondeu ela, caindo a soluar sobre a borda do leito.
Santo nome de Jesus! Tenho cinquenta anos, e no me consta uma coisa
assim! Pois o senhor Guilherme ser um malvado, que atire assim rua um
anjo como a minha ama? Diga-me, senhor, se me sabe dizer: isto que ? Que
demnio entrou naquela casa? Onde est meu amo, que me quero ir ter com
ele, e sou capaz de lhe partir a cabea numa parede?!
Mas, diga-me, senhor Gregrio: Dona Augusta, depois, saiu?

Mandou-me pr s costas do carreteiro a caixa de pinho, que por sinal

no pesava nada, e saiu, entregando-me esse bilhete e as chaves. Perguntei-lhe


o que devia fazer aos dois cavalos, que ficam na cavalaria: respondeu-me que
a vossa senhoria daria ordens a esse respeito. Quando chegmos ao cais de

Vila Nova, despediu-se de mim, entrou num barco, pagou ao carreteiro, e


pediu-me a minha palavra de honra de a no seguir, nem dizer o caminho que
ela levou.

Desembarcou na Ribeira?

J disse a vossa senhoria que lhe dei a ela a minha palavra de honra de

no dizer onde a senhora dopa Augusta desembarcava.

Mas eu interesso-me na sorte dela, e o senhor Gregrio deve dizer-me

o que viu.

Isso que eu no digo nem ao prprio senhor Guilherme. A palavra de

um homem no se quebra.

Viu se ela foi para as bandas de Miragaia?

E o senhor a dar-lhe... E escusado... no digo nada. Que me diz vossa

senhoria a respeito dos cavalos?

No sei... hei de pensar.. .

No que preciso traz-los j, ou ento ir para l algum tomar conta

dos animais.

V o senhor Gregrio...

Perdoar, mas no vou... No tenho alma de entrar mais naquela casa,

enquanto l no estiver a senhora dona Augusta.

Mas quem h de ir?

Isso no comigo: v quem o senhor quiser, menos eu. No quero ser

criado de tal amo: quem pe fra de casa uma senhora daquele modo capaz
de me dar um tiro falsa f. As chaves a esto: vossa senhoria far o que lhe
parecer. No quero saber de mais nada.

Mas ajude-me a dar algum expediente a isto... Aquela casa no pode

ficar assim abandonada: est cheia de objetos de valor, e pode ser roubada...

Queimada seja ela... que me importa a mim? Fui despedido...

Mas no o foi pelo legtimo dono da casa.. .

Pois diga-me onde ele est, que me quero despedir... Foi para a

provncia?

No: foi para Inglaterra.

Pois que tenha por l muita sade. .. Para tratar assim aquela boa

senhora, escusava sair do Porto... Fosse ela minha filha, ou parenta, cego eu
seja se o no perseguisse at nas profundas do Inferno! Eis aqui para que um
pai cria uma filha... Quem tem a culpa sei eu... Se houvesse uma lei que
trancasse na Relao os sedutores, no se viam por a tantas raparigas
perdidas... Enfim, Deus l sabe o que faz... O meu senhor, no o enfado mais;
o que tinha a dizer est dito. Tenha vossa senhoria muita sade, e se escrever

ao senhor Guilherme diga-lhe que ainda h homens de carcter, capazes de


dizer nas bochechas de qualquer fidalgo a verdade nua e crua.
O criado saiu. Simultaneamente a estes tocantes esclarecimentos do
compassivo criado, Augusta abria a porta da sua casa da Rua dos Armnios.
Dezanove meses eram corridos depois que aquela porta se fechara. Nem ar
nem luz entrara ali. Da couoeira da porta e das fisgas das janelas pendiam
grandes teias de aranha sobrepostas. A lingueta da fechadura ferruginosa no
corria forada pelo brao dbil de Augusta. O galego que levava a caixa de
pinho venceu a resistncia, e entraram.
Augusta, apenas respirou o ar represado, recuou para a rua, mandando abrir a
janela. Parecera-lhe respirar o miasma que ficara no leito da sua me alguns
dias depois que a levaram morta.
A esse tempo a filha do barqueiro, que ouvira ranger a chave, viera janela, e
conheceu a costureira.

s tu, Augusta? exclamou ela pasmada. Augusta, antes de responder,

fez um esforo, que lhe custou uma angstia indefinvel, uma vergonha
semelhante s dores sem nome.

Sou eu... balbuciou ela, sentando-se no degrau. A Sra. Ana do Moiro

saltou para a rua, cruzou os braos diante da costureira, deu trs balanos
solenes cabea e murmurou:

Quem te viu e quem te v, rapariga!

Pois no sou a mesma? disse Augusta, convertendo em inocente

pergunta o grito atribulado que lhe viera do corao, onde a estpida peixeira
enterrara um punhal.

A mesma! V-te a um espelho, rapariga! Ests magra, amarela, e

recosida como a pele de um bacalhau! E a dizerem-me que te viram muito


linda e muito asseada a para os Carvalhos, com um criado de farda a cavalo, e
com um figuro ao teu lado!... Com que ento, deixou-te o tal pandilha?...

Senhora Ana, peo-lhe por piedade que me deixe... respondeu Augusta,

entrando em casa e pagando ao carreteiro da caixa.

menina, no chores; eu sou sempre a mesma amiga... Enfim, isto no

a vai matar. O que te sucedeu a ti, sucede a muito boa gente. Como te ficaram
as boas mozinhas que tens para a costura, no te h de faltar que fazer. O teu
primo ainda no casou; e tomara ele que tu o quisesses, mesmo com o teu
erro...

j lhe pedi que me deixasse, senhora Ana. Peo-lhe pelas dores de Maria

Santssima que me no diga nada... faa de conta que eu no estou aqui...

Pois eu venho dar-te nimo, e tu mandas-me por fra da tua casa?! Boa

vai ela!

No preciso de nimo... Tenho muito nimo, senhora Ana. Agradeo-

lhe as suas boas tenes, mas acredite que me mortifica...

Pois ento, adeusinho... A Sra. Ana saiu, rosnando: E como ela vem

espevitada!... Pensar ela que ficou sendo fidalga por... As reticncias


tambm ela as ps na lngua, at ao momento propcio de traduzi-las em
linguagem muito ch primeira vizinha, que o demnio da maledicncia lhe
deparou.
Augusta fechara a porta. Vai dar-se nesta mulher o que no pode ser dito, e s
adivinhado pela experincia de lances semelhantes. Com as costas voltadas
para a luz, Augusta permaneceu imvel alguns segundos, de p, com os braos
pendidos e as mos enlaadas. Fixava os olhos como espavoridos no fundo
escuro, onde pendia ainda a esteira que formava o tabique do quarto da sua
me. de crer, porm, que o no visse, nem visse diante de si a mistura
confusa de recordaes cruis convertidas em imagens, umas de remorso,
outras de condenao, que lhe apontavam aquelas quatro paredes, como clula
de expiao e leito de agonia.
Depois, passou a mo esquerda pela testa banhada de suor frio, e com a
direita procurava perto de si um encosto. que lhe tremiam as pernas, e
fugiam-lhe os sentidos. Sentou-se, e encostou os cotovelos aos joelhos e a
face s mos. As lgrimas vieram, como um hlito de ar extrema sufocao,
por fim. Parecia reanimar-se. Lanou dos ombros o capote: foi ao p do

cntaro, tomou com a mo convulsiva a caneca de gua, e dep-la, recuando o


brao, como se tocasse a mo glacial de um cadver?.

Que sede, meu Deus! murmurou ela. Quem me dera uma gota de

gua...
Recaiu, prostrada, na cadeira. Tremores nervosos vinham-lhe, de instante a
instante, como aqueles abalos que precedem o adormecer, e causam o penoso
sentimento da deslocao das entranhas.
A humidade do pavimento regelara-lhe os ps, e, apesar da febre, o frio
generalizara-se. Augusta envolvera-se no capote e sentara-se sobre a cama,
abraando-se com os joelhos. Era, assim nessa postura, a imagem da demncia
tranquila. Dir-se-ia que ela viera j demente do Candal para a Rua dos
Armnios, ou que as ideias aturdidas no tinham a lucidez precisa para ver a
razovel situao do seu infortnio. E que no proferia uma palavra, no
soltava um grito, no procurava um instrumento de suicdio, no caa de
joelhos invocando a piedade do Senhor.

Urna hora assim devia preceder a execuo de uma terrvel ideia.


Augusta saltara do leito, e, cambaleando, fechara o postigo e trancara a porta.
Era completa a escuridade e o silncio subterrneo. Fora-lhe assim

compreensvel o terror das antigas emparedadas! Deitou-se. Cruzou as mos


sobre o peito, e disse no fundo do seu corao:
Meu Deus, em desconto dos meus erros, aceitai as minhas dores; tenho
sofrido mais, muito mais do que poderia gozar, se fosse sempre feliz; agora
abreviai a minha agonia; espero aqui a morte, no a demoreis pela vossa
misericrdia.
E cerrou os olhos. Mas o turbilho das imagens febris fulgurava no seio da
escuridade. Ao lampejo desses orbes de lume, que se aglomeram nas trevas, se
fechais os olhos e os comprimis, iluminava-se o vulto de Guilherme do
Amaral, qual o vira, pela primeira vez, naquele quarto. Augusta, ento, erguiase com mpeto, abrindo os olhos e estendendo os braos para a escurido. O
delrio era instantneo. A razo espancava-a com o flagelo da realidade. A
costureira recaa na atroz certeza do seu infortnio, e deixava cair a cabea de
encontro parede glida, que lha no refrigerava.
No me ouvis, meu Deus?... murmurava ela, erguendo os braos,
ajoelhando-se e caindo com a face sobre as mos, banhada de lgrimas.
Minha santa me, pedi no cu a minha morte! Resgatai uma filha...
Augusta soltara um grito, quando o corao orava assim uma serene prece.
Este grito era o despertador das angstias, dos frenesis, por assim dizer,
adormecidos na atrofia em que a deixara o jornalista, vinte e quatro horas
antes.

E, quando assim a dor ia reassumir toda a sua energia, bateram porta de


Augusta.

CAPTULO XXI

Depois que o severo Gregrio sara, deixando as chaves da casa abandonada,


o jornalista formara entes de razo, e deduzira de todos que a herona,
superior ao que ele a imaginava, passava do Candal para a Rua dos Armnios.
Amador da tragdia, e curioso investigador de tudo que pudesse aumentar o
seu grosso cabedal de experincia, o poeta, neste caso, no era s observador:
entrava de corao no enredo do futuro romance, que devera ser de lavra sua,
se o no encarregasse a pessoa menos hbil que ele.
E, portanto, o jornalista saiu logo, procurando a Rua dos Armnios, que
nunca vira. A nica pessoa encontrada a jeito a inform-lo era a Ana do
Moiro, que, da janela para a rua, traduzia literalmente a uma vizinha as
reticncias que, ainda agora, deixaremos em jeroglfico penetrao dos
leitores.
O jornalista, cortejando primeiro a Sra. Ana para captar-lhe a ateno, pediulhe o favor de lhe dar umas informaes. A peixeira desceu porta da rua,
dizendo que o no mandava subir, porque a sua casa no era prpria para
fidalgos. A filha do barqueiro tinha o bom senso de dar diplomas gratuitos de
foro grande a todo e qualquer cidado enfardado numa quinzena, que era o
invlucro favorito da poca. Com tais diplomas, a Sra. Ana, se no tirava nem
aumentava nada a condio dos agraciados, tambm lhe no aumentava o

ridculo, nem lhe tirava da algibeira os direitos de merc. A Sra. Ana,


portanto, era a nica pessoa de quem eu receberia um ttulo.
Tem vossemec a bondade de me dizer disse o jornalista se conheceu,
h cerca de dois anos, nesta rua, uma costureira chamada Augusta?

Se conheci!... Olhe... v acol aquela casinha sem sobrado, com uma

porta pintada de verde? a casa dela.

E sabe dizer-me se Augusta ter aparecido aqui desde que abandonou

aquela casa?

Eu digo-lhe: a rapariga desde que saiu de casa com um sujeito, que a

seduziu, a primeira vez que voltou l foi hoje.

Sim?! Vossemec tem a certeza de que ela veio c hoje?

Pois se eu estive com ela, h de haver hora e meia!

Muito obrigado... E sabe dizer-me se ela estar em casa?

Est, sim, senhor. Tenho estado sempre janela, dei f de ela fechar o

postigo, e no voltou a entrar nem sair ningum.


Agradecido... Aqui tem vossemec uma pequena recompensa do servio que
me fez.
Ana aceitou sem repugnncia um cruzado novo; mas no prescindiu de saber
quem lho dava.

Ento vossa senhoria conhece Augusta?

Conheo...

E conhece tambm o senhor Guilherme, que to mau pago lhe deu?

Pois vossemec conhece o senhor Guilherme?

Est bom se conheo! Sei todas estas coisas desde o seu princpio. Foi

ele quem me foi chamar ao arraial de Miragaia, na vspera de So Pedro, para


vir estar com ela, quando lhe morreu a me... Ora diga-me, ainda que eu seja
confiada, o senhor Guilherme deixou a rapariguinha?

No, senhora...

Ento foi ela que lhe fugiu?

Tambm no... Se vossemec me d licena, no me demoro mais...

Pois v, v com Deus; eu no me importa saber a vida alheia; e, se for

necessrio alguma coisa, estou aqui pronta. Ns somos uns para os outros.
O jornalista colou o ouvido fechadura da porta, e no ouviu rumor algum.
Voltou-se para a janela da peixeira, e disse-lhe, por acenos, que no ouvia
nada. A Sr.? Ana, frentica e servial, desceu para a rua, e veio confirmar ao
poeta que Augusta estava em casa, dando-lhe como prova o estar a chave por
dentro.

Foi nesse comenos que Augusta soltara um grito, e o jornalista batera na


porta.

Estar ela a matar-se!... disse a vizinha.

muito possvel... confirmou o literato, batendo com mais fora,

sem ouvir outro grito, nem alguma resposta.

O mais acertado acrescentou a peixeira arrombar o postigo;

com dois murros vai dentro.

Entendo que sim. Palavras no eram ditas, a filha de Antnio Correia

fazia p atrs, e imprimia tal choque nas rtulas do postigo que nem as
portadas internas resistiram ao impulso. Ouviram um segundo grito...

Ainda tempo... disse o poeta. Salte vossemec pelo postigo, e

abra-me a porta.
Ana, em menos tempo do que o preciso para cont-lo, saltou dentro, tirou a
tranca, abriu a porta, e correu ao fundo, onde Augusta, sentada na cama, com
os braos estendidos para o claro sbito da luz, e os olhos terrivelmente
esgazeados, parecia no entender o que se passava na sua casa.
O poeta disse ao ouvido de Ana:

Vossemec tenha a bondade de retirar-se at que eu a chame, que talvez

seja aqui necessria.

Ana saiu chofrada um pouco por no ser precisa desde logo. Custava-lhe
muito no estar em momento com os sucessos.

Que isto?! disse ele, tomando a mo de Augusta, que parecia no o

ter ainda conhecido. No conhece o seu amigo?! Senhora dona Augusta...

Dona Augusta... murmurou ela, sorrindo. Dona, Augusta sou

eu?

E... a mais nobre de todas as mulheres; a mulher que se levanta da

queda com majestade superior que tinha antes de cair...


Zombaria... atalhou ela, deixando voar nos lbios um sorriso de escrnio
de si mesma.

Zombaria?! No, senhora! Eu creio que a mo da Providncia me

conduz aqui... no vim para zombar da vossa excelncia.

Vossa excelncia!... Pelo amor de Deus!... No v o que eu sou?

E um anjo, a mais nobre de todas as vtimas, um ente superior, que

deve existir para que os incrdulos se espantem... A minha amiga... deixe-me


dar-lhe este nome... A minha amiga, receba-me no seu corao como se
recebe um irmo... chore muito na minha presena, conversemos muito nos
seus infortnios... mas viva, tenha orgulho de viver... seja superior desgraa
para se no confundir com as vtimas que sucumbem ... Eu prometo restituirlhe o amor de Guilherme...

No restituir... Esse homem morreu para mim... atalhou ela acenando

negativamente e pasmando os olhos num ponto imaginrio. Pouco depois,


uma torrente de lgrimas e soluos lhe embargam a voz. Era isto mesmo o
que o jornalista queria conseguir, e esperava no conseguir to cedo. Houve
silncio de alguns minutos. O poeta no esperava das consolaes por
palavras tirar o proveito que as lgrimas do. Deixou-a chorar, at que ela,
soluando, lhe disse:

Muito agradecida... Parece-me que estou melhor... Permita Deus que

este alvio se demore...

H de permitir... minha amiga?

E devo eu ser sua amiga?... Pois sim... sou...

Faz-me o que lhe vou pedir?

Que ? Farei, se puder.

Deixe esta casa logo que eu lhe d uma outra em que viva

acompanhada de pessoas que a estimem; e se, passado algum tempo, quiser


tornar para aqui, tornar.

No posso fazer o que me pede... No teime nesse oferecimento, que

nem lhe sei agradecer, porque me est propondo um inferno, pensando que
me faz bem... Isso era morrer sem ao menos poder chorar... No, no aceito...
Se meu amigo, no me torne a dizer tal coisa.

Que tenciona fazer?

Preciso morrer, e morrer aqui...

Eu morreria de pesar se a deixasse livremente cumprir essa louca

teno. H de viver, senhora dona Augusta, porque lhe prometo de restituirlhe Guilherme, antes de dois meses, com a splica do perdo nos lbios, e o
corao mais nobremente apaixonado do que at aqui...

No queira enganar-me, porque eu no me engano... j lhe disse que

esse homem morreu para mim...

E no me deixa ser o instrumento da Providncia? No me d tempo

que eu ceda a uma fora oculta, que me manda esperar pela volta de
Guilherme?! O senhora dona Augusta, em nome da sua me lhe peo que
espere, que creia na recompensa da virtude, que creia um pouco no meu
poder, que me ajude a alimentar a esperana de a ver outra vez feliz com o
homem que, neste momento, no sabe que mrtir deixou... No me atende?

Queria; mas no posso: Deus, se quisesse que eu esperasse, inspirava-

me... No espero nada... Acabou tudo.

E querer Deus que a vossa excelncia se suicide? julga que um acto

meritrio a desesperao?

No sei, senhor ... No me repreenda. Que pode interessar a Deus a

minha vida? Como hei de eu consolar-me? Morro, porque no posso viver ...
Se eu pudesse ser feliz, era-o...

A esperana...

Em qu?

Em mim... Desde este momento comeo a trabalhar. Sei que posso

muito no corao de Guilherme... Confia em mim?

Se eu pudesse viver... esperava!... respondeu ela com a face

iluminada por um relmpago de esperana.

Pois bem... acudiu o literato com o entusiasmo das almas nobres e

demasiado crdulas. Ajude-me, minha amiga...

Como?

Vivendo, desejando viver, sujeitando-se minha vontade...

Sair daqui? Isso no.

Pois bem, fique... mas d-me o prazer de velar pela sua vida,

melhorando-lhe, quanto eu puder, a sua situao. Eu mando-lhe para aqui


uma criada.

No preciso... no aceito...

Resiste ao menor desejo!... E ingratido!

No diga tal, que me magoa mais do que pode imaginar...

Consente, ao menos, que esta sua vizinha, que veio comigo, a sirva?

Pois sim, enquanto eu no puder trabalhar.

Deixa-me dar ordens minha vontade?

No, senhor... Essa mulher vir falar comigo; eu lhe pedirei o que

preciso.

E virei aqui todos os dias v-la.

No, no venha, de joelhos lhe pediria este favor se no contasse com a

sua generosidade. No me visite... Eu lhe farei saber o meu estado... Se eu me


vir em perigo de vida, vir ento, porque lhe quero deixar algumas palavras
para o seu amigo.

No confia em mim!... Pensei que lhe merecia a condescendncia de

poder visit-la!...

Merece-a; mas, se o seu fim aliviar os meus sofrimentos, creia que

seria intil a sua vinda a este sepulcro... O que eu no puder fazer sozinha
comigo, ningum o far.

E no deseja que eu lhe d notcias de Guilherme?

No desejo, nem quero... Se o Guilherme fosse infeliz, interessava-me

saber que o era, para ao menos imaginar o modo de lhe ser til, ou chor-lo,

se nada pudesse. Guilherme no infeliz... As minhas lgrimas no lhe


pesaro na conscincia... V, meu amigo, mande-me a minha vizinha... Tenho
muita sede... no h aqui uma gota de gua.
O jornalista saiu, entrou nas escadas da Sra. Ana, deu-lhe dinheiro, todo o
dinheiro que tinha, e muitas palavras afetuosas, com promessa de lhe dar
todos os sbados uma igual quantia para suprir a todas as precises de
Augusta
A Sra. Ana, espantada da liberalidade do novo pretendente, segundo ela, foi
desveladamente servir a costureira, comeando pela limpeza da casa.
Augusta chamou-a, e disse-lhe:

Senhora Ana, chegada a ocasio de lhe vender a casa: compra-ma?

Compro, filha; mas que preciso tens tu de a vender?

Mais preciso que nunca. No tenho cinco ris meus.

Ests enganada! Olha... aqui esto doze cruzados novos, que me deu o

senhor que de c saiu, e ficou de me dar todos os sbados outro tanto.

Pois quando lhe vierem dar no sbado o outro tanto, vossemec ter a

bondade de restituir o que recebeu agora.

Deixa-te disso, Augusta...

No me contradiga, senhora Ana. Compra-me a casa?

J te disse que sim...

Pois d-me hoje algum dinheiro, e mande-a avaliar quando quiser.

Pois sim, filha.

Vossemec d-me uma gota de gua? Morro de sede.

CAPTULO XXII

O jornalista era uma bela alma. Mrtir da opinio pblica, raros homens tenho
conhecido que tanto como ele se pagassem do galardo da conscincia. Menos
ainda hei visto que to legtimo e razovel desprezo tenham votado ao to
estpido como infame jri que por a o condenava, absolvendo infamssimos
virtuosos dos muitos e tantos que por a refervem, que eu desconfio que tu
sejas um deles, leitor. Se o no s, e te julgas ofendido, deixas de ser mau para
ser tolo. Como quiseres.
O jornalista vinha eu dizendo, que era uma bela alma. Sentir assim, doer-se
tanto, admirar com to pattico entusiasmo o heroico infortnio de Augusta,
so virtudes muito raras no homem, que, pela sua posio em contacto com
todas as desgraas, oriundas do vcio, perde a sensibilidade, e chega a encarlas com a impavidez do cinismo.
Ele no. A imagem da costureira, idealizada como ele costumava idealizar a
desgraa, no lhe esquecia um instante, ao seu pesar. O folhetim do dia
seguinte quele em que a vira, foi uma elegia em prosa, um abstruso elevar-se
para dores fantsticas, que ningum teve coragem de ler at final. Nesse dia
escreveu dez pginas de um lbum, uma longa meditao, que naturalmente
fez adormecer a dona do dito lbum, que esperava uma qualquer coisa em
linhas com letras maisculas no princpio, dedicada a ela, formosa senhora, a

ser verdade o dito dos poetas seus conhecidos, com lbios de rubim, dentes
de marfim, mos de gata e pescoo de alabastro. Toda ela, pelos modos, era
um mosaico.
Se eu pudesse haver mo o lbum, transcreveria aqui a Meditao do amigo
de Guilherme do Amaral. Transluzia desse hino uma dor sincera, uma
correo a devassos, boa cpia de mximas para uso dos nossos velhos, e
preciosssimas lies para costureiras que soubessem ler, e para leitoras que
no so costureiras.
impossvel. O lbum j no existe. A sua ilustrada dona casou com um
homem srio, avesso a poesias e romances, incendirio obscuro, espcie de
Maomet chulo, que manda aquecer os semicpios com os folhetins e
brochuras poticas empalmadas traioeiramente no toucador da sua mulher.
O lbum desapareceu em falas no fogo, de envolta com um molho de
carqueja, visto que o cnjuge irracional no podia meter o dente no primeiro,
podendo muito bem met-lo no segundo gnero de combustvel.
Apesar destes e doutros, o poeta era um nobre corao. No dia seguinte ao do
encontro na Rua dos Armnios, procurou ele a Sr. a Ana do Moiro, e soube o
que se passara. Augusta repelira o dinheiro caritativo, recebera trs moedas
por conta da casa, tomara alguns caldos de galinha, e proibira enfermeira
falar-lhe em Guilherme do Amaral.

O jornalista mandou-lhe entregar uma carta. Eram consolaes das que se


recebem com lgrimas.
Dois dias depois, soube ele que essa carta fizera chorar muito Augusta: o
poeta ficou satisfeito do resultado, que previra. Era o literato de opinio que
todas as dores se diluem no choro, e as incurveis so as que se recolhem ao
corao, embebendo as lgrimas e o sangue. As lgrimas represadas, dizia
ele num dos seus folhetins ininteligveis, sobem ao crebro, cristalizam e
produzem a demncia, ou a morte. Os mdicos riram conscienciosamente
desta patologia, e no deram at hoje, da demncia e da morte, por amor,
outra explicao melhor. Tudo o que eles tm dito inferior a isto.
Oito dias depois, o poeta procurou a Sr.? Ana.

Tenho muito que lhe contar... disse ela.

Triste ou alegre?

No pe nem tira. Eu digo-lhe, meu senhor. No sei se a vossa

senhoria sabe que Augusta, antes de ir para o senhor Guilherme, tinha um


casamento meio ajustado com um primo.

J sei.

O bom do rapaz, depois que ela desapareceu, andava como a cobra que

perdeu a peonha. Vinha onde a mim, e chorava que era uma coisa! Parecia
que morria ou endoidecia. De noite chorava em frente da porta dela, e estava

ali horas e horas ao frio e chuva, que parecia mesmo uma aventesma.
Depois, no o vi um pouco de tempo, e perguntei ao patro o que era feito
dele. Disse-me que desconfiava que se tinha botado a afogar. Rezei-lhe por
alma ao deitar da cama, e vai seno quando uma tarde rebenta-me aqui o
Francisco, muito amarelo, dizendo que tinha estado doente no hospital.
Sempre lhe direi que ganhei um medo! Pois tu no morreste?, disse-lhe eu.
No, no morri ...

E o mais que no tinha morrido... Sempre acontecem coisas!

E depois?

Depois, meu amiguinho e senhor, passados dias, o Francisco voltou a

andar por aqui de noite; mas j no fazia diabruras. .. Coitado... chorava, e


mais nada! Parecia um tolinho!... Antes de ontem, meia-noite, vinha eu
saindo de casa de Augusta para recolher a minha gata, que estava a miar na
rua, e dou com ele perfilado com a porta. s tu, Francisco?, disse-lhe eu,
preparando um murro para se fosse outro, porque, como o outro que diz, eu
no conheo flamengos meia-noite. Sou eu, tia Ana. Vossemec foi arejar a
casa de Augusta? No, rapaz; fui dar de cear tua prima, A minha
prima!, gritou ele, e foi dito e feito! Entrou pela porta dentro que parecia um
doido; foi ao p dela, e arregalou os olhos para a rapariga, que estava mesmo
aterradinha... E quer vossa senhoria saber o que eles fizeram? Deram em
chorar, chorar, chorar, que pareciam duas crianas.

E no falavam?

Nem um pio! Augusta deu-me de olho para que eu sasse, e ficou s

com ele. Quando tornei, Francisco tinha sado. Eu ia-me deitar num enxergo,
que botei aos ps da cama dela, e a rapariga disse-me: No se deite por
enquanto que tem de abrir a porta ao meu primo. E vai eu disse: Pois ele
vem c ainda hoje? Foi buscar a cama dele, e quer dormir a fra
enquanto eu estiver doente. E de feito s duas horas da noite entrou a cama
do rapaz pela porta dentro, e ele deu as boas-noites a Augusta e deitou-se. O
resto que a vossa senhoria no sabe...

Que ?...

Ontem veio ele ter comigo, e pediu-me se eu lhe vendia a casa da

prima, sem lhe dizer nada a ela, que me dava vinte mil ris de ganho. Deixei-a
ir, e ele passou-me logo o dinheiro. C enquanto a mim o rapaz quer sustentar
Augusta custa dele, e quer que ela pense que o dinheiro sou eu que o dou
pela casa. E sabe que mais? A rapariga s duas por trs casa com ele.
Esta reflexo da Sra. Ana matou algumas iluses ao jornalista. O desfecho do
drama parecia-lhe ridculo, e indigno do seu folhetim e da sua Meditao!...

E porque suspeita vossemec que ela case com o fabricante?

Porque a vejo sempre a chorar ao p dele, e o bom do rapaz bota-lhe

umas olhadelas to meigas que, pelas tralhas ou pelas malhas, dali ao

casamento no vai longe. E, a falar a verdade, ela que mais quer? O Francisco
contramestre, e ganha na fbrica de Lordelo oiro tostes por dia...

Ora diga-me: vossemec no conseguir que eu fale com ela?

No fico por isso. Eu j lhe disse que faria bem conversar um pouco

com a vossa senhoria, e ela disse-me que por enquanto no. No sei que lhe
faa... deixe-a arrijar.
O jornalista retirou-se com a descosida narrao da peixeira: levava o
entusiasmo muito desvanecido, a admirao afroixada, e, enfim, a poesia da
tragdia um pouco convertida de lcidos cristais em gua chilra. No seria
to completa a deceo, se a tagarela da vizinha contasse as coisas doutro
modo.
No h dvida que a costureira, vendo o seu primo, chorou; e o fabricante,
vendo Augusta, no chorou menos. Isto natural. Aquele homem, cinco
meses antes, tentara contra a prpria vida, por no podei tentar contra a do
homem que lhe roubara a mulher ali deitada no pobre leito, que ele quisera
enflorar com as coroas de uma paixo santa e nobre. Cinco meses antes,
Augusta velara as noites ao p do seu primo, pensara-lhe o ferimento do
pescoo, e quisera cicatrizar-lhe, em balde, com afagos e extremos de amiga, a
chaga eterna do corao. Para Augusta, nada mais santo nem mais verdadeiro
que o profundo amor do fabricante; para Francisco, sobre a Terra, nenhuma
mulher, que valesse mais que a sua prima, ainda ingrata, ainda desonrada,

ainda abandonada, ainda sem a beleza que, em menos de cinco meses, raros
vestgios conservava do que fra. Eram, pois, bem naturais essas lgrimas,
quando a mulher era Augusta, e o homem esse que vimos em menos de cinco
minutos praticar, no Candal, dois arrojos de herosmo, raras vezes reunidos:
poupar a vida do rival, por amor da amante; suicidar-se, para no ver sem
castigo o crime.
Quando a vizinha sara, Augusta estendeu a mo a Francisco, e aproximou-o
de si murmurando:

Soubeste que eu estava aqui?

No.

Ias passando na rua?

No... estava parado...

Porque viste luz?

Foi porque venho algumas vezes aqui.

A minha porta?

Sim... mas no esperava ver-te mais nesta casa.

Eras meu amigo?

Tu s sempre minha prima... Devo-te muitas obrigaes...

E vens agora pagar-mas?

No precisas de mim, Augusta; e oxal que nunca precises, mas, se

precisares, no tens outro parente; amigos ters muitos, mas amigos pelo
sangue sou eu s.

Ests vingado, Francisco.

Eu no me queria vingar, Augusta... Se ests desgraada, sabe Deus

quanto me custa ver-te assim... No me digas nada do que s passou... Eu fao


ideia...

De que fui abandonada?... Pois sim, no falemos nisso... Brevemente

terei de falar muito na minha vida ao confessor...

Pois tu ests assim doente?!

No vs que estou quase morta?

Pois no hs de morrer, Augusta... No te aflijas tanto. O passado,

passado. j mandaste chamar cirurgio?

No h cirurgia para a minha enfermidade...

Pois que tens tu?

E isto que vs... alguns dias a preencher.

Ds licena que eu venha aqui passar as noites?

No, meu primo... fica longe a fbrica, e seria necessrio aqui ficares.

Ficarei... hoje mesmo.

No...

Por quem s, d-me este prazer. Faz agora cinco meses que tu passavas

as noites a p ao meu lado...


Francisco sara, como disse a Sra. Ana, e voltara com a cama s duas horas da
noite.

CAPTULO XXIII

Francisco visitava todas as manhs a fbrica, e, por consentimento do bom


patro, voltava para a Rua dos Armnios a jantar com a sua prima. O cirurgio
vinha diariamente observar o curativo de uma doena incgnita. Ignorando os
precedentes, o intrprete da natureza contemplava os sofrimentos de Augusta
como se o pusessem em frente dos jeroglficos indianos para traduzi-los. No
obstante, o bom desejo que o hbil facultativo tinha de triunfar alguma vez de
uma molstia rebelde inspirou-lhe uma farmcia digna de melhores resultados.
Augusta queixava-se de uma agonia no corao, um mal-estar indefinvel
semelhante ao deslaar-se de todas as fibras do peito. Elucidado assim, o
cirurgio aplicou-lhe uma cataplasma de linhaa com leo de amndoas doces
no estmago, e leites de jumenta na Primavera. Excelente medicina, que lhe
no fez mal nenhum!
O fabricante, sem consultar Augusta, mudou de assistente. Veio um mdico
dos mais nomeados, e no era injusto o nome que tinha. Apenas lhe tateou o
pulso, e devassou um pouco a vida da enferma, declarou que Augusta estava
no primeiro perodo da gestao. O fabricante pediu explicao das palavras, e
empalideceu, ouvindo-a. O mdico consciencioso despediu-se: no tinha nada
a fazer contra o processo regular da doena: limitou-se a oferecer o seu
prstimo oito meses depois.

Francisco mudara de rosto, e a costureira no sabia a causa. Interrogava-o, e


ele respondia sorrindo; mas para Augusta a significao de tal sorriso era mais
expressiva do que seriam as lgrimas.

Disse-te o mdico que eu morria?... Que importa!... No estejas triste

por isso...

O mdico no me disse que morrias...

Pois ento, que tens? Porque te sentas to triste ao p de mim? Se te

aborrece esta vida, no te constranjas, Francisco... Vai para o teu trabalho, que
me ds mais prazer...

Aborreo-te aqui?

Assim desse modo, no digo que me aborreas, mas penalizas-me...

Diz-me o que tens.

Nada, Augusta... Tenho pena de te ver sofrer...

Isto est por pouco... j hoje tive vmitos, e lancei sangue...

Esses vmitos, Augusta... no so o que tu pensas. Francisco sara

aceleradamente do quarto da sua prima.

Vem c exclamou ela com veemncia. Olha, Francisco, eu no

entendi o que disseste...

Eu volto logo, Augusta. .. Vou fbrica...

Espera um momento... tira-me as suspeitas...

Isso fcil... A Ana do Moiro h de explicar-te melhor do que eu os

teus incmodos... Alguma coisa havias de trazer do Candal...


E saiu, arrependendo-se logo das ltimas palavras. Augusta compreendeu
tudo, sem recorrer aos esclarecimentos da vizinha. A novidade da emoo era
um misto de vergonha, de medo, de jbilo e de remorso. As faces plidas
fizeram-se escarlates; os saltos do corao impeliam-lhe o sangue em jatos
abrasadores cara. Queria erguer-se sem saber para que fim: procurava em
redor de si alguma coisa sem saber o que era; sentia nsias de falar sem saber
com quem.

Se ele o soubesse!... murmurou ela. Se algum lhe dissesse...

O qu? perguntava a Sr. a Ana, que entrara insensivelmente, porque

Francisco deixara aberta a porta. Que tens, Augusta? Ests to vermelha, e


com os olhos to guichos!... Parece que vendes carradas de sade, rapariga!
Alguma novidade te deram que te alegrou... No respondes?
Augusta a significao de tal sorriso era mais expressiva do que seriam as
lgrimas.

Disse-te o mdico que eu morria?... Que importa!... No estejas triste

por isso...

O mdico no me disse que morrias...

Pois ento, que tens? Porque te sentas to triste ao p de mim? Se te

aborrece esta vida, no te constranjas, Francisco... Vai para o teu trabalho, que
me ds mais prazer...

Aborreo-te aqui?

Assim desse modo, no digo que me aborreas, mas penalizas-me...

Diz-me o que tens.

Nada, Augusta... Tenho pena de te ver sofrer...

Isto est por pouco... j hoje tive vmitos, e lancei sangue.. .

Esses vmitos, Augusta... no so o que tu pensas... Francisco sara

aceleradamente do quarto da sua prima.

Vem c exclamou ela com veemncia. Olha, Francisco, eu no

entendi o que disseste...

Eu volto logo, Augusta... Vou fbrica...

Espera um momento... tira-me as suspeitas...

Isso fcil... A Ana do Moiro h de explicar-te melhor do que eu os

teus incmodos... Alguma coisa havias de trazer do Candal...


E saiu, arrependendo-se logo das ltimas palavras. Augusta compreendeu
tudo, sem recorrer aos esclarecimentos da vizinha. A novidade da emoo era
um misto de vergonha, de medo, de jbilo e de remorso. As faces plidas

fizeram-se escarlates; os saltos do corao impeliam-lhe o sangue em jatos


abrasadores cara. Queria erguer-se sem saber para que fim: procurava em
redor de si alguma coisa sem saber o que era; sentia nsias de falar sem saber
com quem.

Se ele o soubesse!... murmurou ela. Se algum lhe dissesse...

O qu? perguntava a Sra. Ana, que entrara insensivelmente, porque

Francisco deixara aberta a porta. Que tens, Augusta? Ests to vermelha, e


com os olhos to guichos!... Parece que vendes carradas de sade, rapariga!
Alguma novidade te deram que te alegrou... No respondes?

febre... penso eu...

Deixa-te disso... eu falei ao senhor doutor, que veio hoje de novo, e ele

disse-me que no era de preocupao a tua doena.

E no lhe disse mais nada?

No: nem sequer receitou para a botica. Sabes o que hs de fazer? Sal

dessa cama, que faz doena. D o teu passeio pela cidade com o teu primo, e
deixa-te de caldos de galinha, que no pem substncia...

No posso... no tenho foras...

Isso o que te parece... Vocs, as raparigas de agora, so uns tolhios...

Eu c nunca soube o que estar trs dias de cama... Se comesses um bocado


de carne assada na brasa e bebesses um gotrio do choco, punhas-te a fina

em quinze dias... Deixa-me dizer-te uma coisa enquanto estamos ss. Aquele
senhor do dinheiro, h trs dias que no mandou saber de ti, desde que eu lhe
disse que tu lhe no falavas por enquanto...

Eu desejava falar-lhe agora.

Sim. Pois isso fcil: eu sei onde ele mora, e vou hoje l, se queres.

Mas eu no queria que o meu primo o visse.

Digo-lhe que venha amanh entre as nove e as onze, que a hora em

que o Francisco est na fbrica.

Pois sim... no se esquea, no? L ir vou eu; mas, rapariga, eu acho que

ele j no para ti o mesmo homem, desde que sabe que o teu primo c vem.

No importa: eu estou certa que ele vir, e, se no vier, pacincia...

escrevo-lhe uma carta...

Pois isso era o mais acertado... Isto de homens, para onde lhe d... Eu

bem me custa andar com recadinhos e cartinhas de namoro; mas, enfim, sou
tua amiga...

Est enganada, senhora Ana... Eu no tenho namoro com esse senhor.

Faz-te fina!... Vocs pensam que metem figas nos olhos s velhas!... Boa

vai ela!...

No preciso do seu favor, senhora Ana... Deixe-me...

No te atrigues, Augusta; eu estou a brincar...

No sofro tais brincadeiras... queira deixar-me, que tenho a cabea em

lume...

Tu pareces de vidro, rapariga! No se te pode dizer nada!... Pois, quer

queiras, quer no, vou falar com o tal senhor.

No v, que o no recebo. .. E digo mais.. . prescindo dos seus servios;

no torne a entrar nesta casa.

Essa agora mais fina!... Assim que pagas as obrigaes que me

deves!?...
Augusta cara em si. Antes que a vizinha se alegasse credora de obrigaes, j
a costureira se sentia mordida na conscincia pela ingratido. Demais a mais
expulsava de uma casa, que j no era sua, a prpria dona, que poderia
expuls-la a ela!...

Desculpe-me... acudiu Augusta, tomando-lhe a mo. Eu sofro

muito... no sei o digo... Perdoe-me, senhora Ana... Sou muito-digna de


compaixo...

Est bom... no chores... Isso gnio...

Oh, meu Deus, que muito desgraada sou!... exclamou Augusta,

soluando, escondendo a face nas mos, e levantando-a, de instante a instante,


para desafogar em gemidos a dor, que parecia sufoc-la.

Que tens tu, menina?! disse meigamente a peixeira, abraando-a.

O que te fazem para chorares assim? Queres que eu v chamar o tal sujeito?

V, v, pelo amor de Deus!... preciso este sacrifcio, e esta vergonha...

v, senhora Ana.

Para vir amanh?

Hoje, hoje...

E o teu primo?

No importa... que venha hoje... logo que possa, se no morro, morro

sem ar, suicido-me, se Deus me no mata!...


A intrpida filha do barqueiro saiu aterrada, e, mal entrou em casa a buscar o
capote, corria desfilada, quanto as socas lhe permitiam, para a Hospedaria
Francesa.
O jornalista, sem averiguar o motivo da imprevista chamada, foi Rua dos
Armnios. A portadora do convite entrou primeiro a anunci-lo. O fabricante
estava ao p da sua prima, e fixou-a surpreendido, como quem lhe perguntava
se o sujeito anunciado era Guilherme do Amaral.

Francisco disse Augusta , est a uma pessoa a quem preciso falar.

Tem pacincia, retira-te alguns minutos. No quem tu pensas...

Seja l quem for, Augusta. Eu no te pergunto quem . Ests na tua

casa; podes mandar chamar quem quiseres: basta que eu venha sem ser
chamado...

Tens razo, meu amigo... Verdadeiro, s tu... No sou ingrata...

O fabricante passara pelo jornalista, e cortejou-o. Augusta sentara-se na cama,


e humedecia os lbios para poder falar, como se o obstculo palavra no
estivesse no corao.

Finalmente disse o poeta fez-me justia, senhora dona Augusta ...

Fiz-lha sempre...

Mas negou-me a sua casa...

Quis obsequi-lo assim, poupando-o ao desgosto de aturar uma mulher

demente.

E, agora, restaurou o perdido juzo?

No, senhor... Assim morrerei...

A luz muito pouca, mas parece-me que a vejo mais animada.

A sofrer... decerto... tenho obrigao de me conservar... necessrio

esperar com vida a concluso dos meus infortnios antes da morte...

Pois no espera esquecer-se do passado, perdoando o mal que lhe

fazem?

O passado nunca mais me esquecer... At aqui a desgraa era s minha...


morreria comigo; mas... algum tempo mais... e a minha desgraa ser um
legado de vergonha e indigncia...

No compreendo...

Nem eu sei o modo de me explicar.

Ah! exclamou o poeta , compreendi... E foroso que o filho de

Guilherme do Amaral seja o herdeiro da vergonha e indigncia da sua me!?


As palavras filho de Guilherme do Amaral, os olhos de Augusta cintilaram
de alegria, refletindo o seu brilho vivaz no rosto risonho. Foi um relmpago
de jbilo: as trevas, porm, cerraram-se, apenas os lbios imprudentes do
poeta deixaram fugir duas horrveis expresses: vergonha e indigncia. O
brilho dos olhos embaciara-se de lgrimas, o encarnado vigoroso das faces
desmaiou at ao amarelo do cadver. A transio assim sbita impressionara o
jornalista, e impossibilitou-a a ela de responder.

H uma nova base para as minhas esperanas, senhora dona Augusta

continuou o jornalista, atinando com o motivo da sua vinda :


Guilherme do Amaral voltar brevemente a Portugal...

Sabe-o j? atalhou ela com sobressalto.

No o sei dele; mas agoiro-o do que sei das minhas profecias, que me

no mentem nunca. Amaral est provando? uma dolorosa lio, o que o far

voltar ansioso a consolar-se no corao do anjo que deixou. Essa nsia ser
redobrada, quando souber que o seio da mulher que mais amou, alm das
palpitaes da saudade, sente os enternecimentos de um filho, cujos primeiros
vagidos sero chamar o seu pai...

Como doce ouvi-lo, senhor... assim que se arranca uma infeliz aos

braos da morte... murmurou, com dbil voz e entusiasmo no olhar


vertiginoso, a costureira, quase levando aos lbios a mo do poeta.

Fez bem em me chamar... prosseguiu ele verdadeiramente

comovido. Quero ser eu o solicitador de duas causas santas: a da me e a


do filho. Se tal a minha infelicidade que eu nada consiga, direi que Amaral
no tem no corao uma fibra pura, e mais infame do que tudo que pode
inventar-se corri o talento, mais que todos os modelos de cinismo, que ele viu
nos romances da sua paixo.

No fale assim de Amaral... impossvel que ele no ame o seu filho...

Podem cansar os carinhos da mulher, mas os da inocncia, sem culpa, sem


exigncias, isso no... H de escrever-lhe?

No prximo paquete para Londres. Tive carta dele: dizia-me apenas

que chegara.

E ao meu respeito nem urna palavra?

Talvez no tivesse tempo.. Eram s duas linhas. Amaral, a estas horas,

pensa que a vossa excelncia est no Candal, chorando, sim; mas esperando a
volta que realmente devera esperar. Foi precipitada no seu capricho; porm,
no a acuso; as almas nobres so arrojadas: traam o quadro majestoso, e
executam-no, se preciso, com o sangue das veias.

Pois fiz mal em sair?

Fez; obedeceu muito depressa ao brioso desforo... Vossa excelncia

f-lo mais por vaidade do que por outro qualquer sentimento. Consulte-se, e
ver que a sua transio voluntria para esta situao foi uma espcie de
soberba no infortnio. Repeliu com a ponta do p os favores do homem que
lhe retirava as provas de outra paixo mais persuasiva.

Sem ele de que me servia o luxo? Era ter sempre diante dos olhos o

preo porque fra comprada...

Pois a tem o que a soberba: estimar-se em muito mais do que o

preo porque se considerou vendida... No falemos nisto, a no querer vossa


excelncia tornar para o Candal.

No, no quero... Pois aconselha-me esse passo?!

No lho aconselho; mas, se o desse, no incorria no desprezo de

ningum.

Incorria no meu prprio desprezo.

respeitvel esse sentimento... No a contrario. O que eu quisera que

a vossa excelncia no experimentasse a menor privao.

No experimento nenhuma; e de todo o corao lhe agradeo os

favores, que eu aceitaria se no tivesse outros recursos.

Basta... Volverei quando vossa excelncia me ordenar, ou quando

entenda que devo inform-la da gloriosa empresa que tomei ao meu cargo.
O jornalista sara. muito de notar a delicadeza deste homem a respeito do
fabricante. Nem uma s palavra que obrigasse a defender-se Augusta das
gratuitas suposies da Ana do Moiro. O poeta nunca pudera convencer-se
que Augusta fra costureira, e estava na vulgar situao de uma costureira.
Dizia ele, e ainda diz, que lera sempre na cara daquela mulher um destino
superior, muito superior sua condio. Nenhuma outra lhe impusera tanta
reverncia nos modos e to pensada reflexo nas palavras!
Era poeta...
Sabeis o que ser poeta? querer encravar a roda teimosa das coisas deste
mundo, e sair com o brao partido.
O fabricante viera sentar-se ao p da sua prima, disfarando a comoo,
escondendo-a quando podia, a favor da escurido do quarto. Se Augusta o
visse lvido, com os olhos aguados, e os beios contrados, retraindo-se ao
gemido e respirao convulsa, julgar-se-ia amada, apaixonadamente amada,

na posio a que descera, querida ainda, quando podia esperar apenas do seu
primo extremos de piedade.
Francisco, para dizer alguma coisa, perguntou-lhe se ficara melhor com a
certeza de que o seu mal no era de morte. Esta pergunta, inocentemente
feita, magoou Augusta, que no respondeu. Corridos alguns segundos, o
fabricante perguntou se queria tomar um caldo. Augusta disse que no, com
desabrimento. O artista soltou um suspiro trmulo, que denunciou as
lgrimas, em vo represadas.

Porque choras tu, Francisco?

Eu no choro... ests enganada.

Pois eu no vejo!. .. Vem aqui ao p de mim... E, passando-lhe a mo na

face, prosseguiu: Isto que , seno lgrimas? No tenhas pena de mim, que
eu j fui mais digna de compaixo do que sou agora... Estou muito melhor... A
esperana a medicina dos desgraados... No h mal que no traga um bem.
Talvez dos meus sofrimentos de hoje dependa a minha felicidade de amanh.

Oxal.

Tu no conheceste o sujeito que esteve comigo?

No.

Recordas-te de um homem que viste uma noite, no Candal, quando

esperavas...

Recordo... no falemos nessa noite, Augusta.

Pois sim, no falemos, nem preciso falarmos. Queria dizer-te que este

sujeito o nico amigo de...

Est bom... eu sei o que me queres dizer... Que me importa a mim que

ele seja ou deixe de ser amigo do tal senhor?!


No te irrites, Francisco... Eu no te quero dar satisfaes da minha vida.
Estou conversando; se me no queres ouvir, ou no podes, retira-te!... Valhame Deus! Tu no acabas de entender que sou tua amiga, e que no tenho
razo nenhuma para esconder de ti os meus crimes, se so crimes!... Esses
teus modos speros no me comovem nem me assustam. O que me pesa
que tu no te convenas de que sou infeliz porque quero s-lo, e no sei que
haja algum, neste mundo, que possa tomar-me conta das minhas aes.

Tens razo, Augusta... Faz o que quiseres; mas no me leves a mal a

amizade que te tenho. Tudo que eu te disser para teu bem. O tempo te
mostrar que eu no queria tomar-te conta das tuas aes; se quisesse, mal de
mim!... Bem se te d a ti dos meus conselhos... Faz a tua vontade, Augusta;
mas no me mandes sair da tua casa, porque eu prometo no me intrometer
nas tuas aes. Faz de conta que eu estou aqui para guardar a tua porta, e
chamar o mdico, se te for preciso. Deus, que me trouxe a tua casa, para
alguma coisa . Enquanto no tornares a ser o que eras, s minha prima, e eu
tenho como obrigao de te fazer companhia. Depois...

Augusta ouvira impassvel a confisso sincera do artista, e no lhe respondera.


A esperana de reconquistar o amor de Guilherme seria capaz de exacerbarlhe a boa ndole contra o seu primo, se ele no desse do seu zelo uma
explicao to humilde. Humilhada julgava-se tambm ela no seu orgulho de
amante de Guilherme, abaixando-se a dar explicaes dos seus actos ao
fabricante. Posto que tornasse condio donde sara, no queria por isso
considerar-se menos do que era, ou do que imaginava ser. Pelo contrrio: o
que o poeta lhe dissera, exaltando-a pelo facto de deprimir-se, o que ela
queria que o seu primo tambm dissesse, ainda que o no entendesse assim,
porque no era poeta. A renncia das regalias do Candal, enquanto a mim,
no era virtude, examinada em todas as suas faces. Se fosse, como dizem que
so as virtudes crists, Augusta receberia todas as humilhaes como espinhos
de penitncia. Estenderia a mo a receber esmolas do seu primo, e acolheria
com agradecidas lgrimas todas as repreenses vindas dele, ou da filha do
barqueiro. Mas bem veem que no era assim. A costureira rejeitava favores,
rejeitava a proteo moral do fabricante, irritava-se menor contrariedade da
maliciosa vizinha, acolhia com exaltao as frases romanescas do jornalista,
que viera visit-la pobre pocilga, e, at a, a respeitara como se a visitasse no
seu opulento gabinete do Candal. O poeta, sim: s ele soubera compreender a
sua queda voluntria: s ele derramava flores sobre a sua misria: s ele, com
os raptos da admirao, lhe fazia sentir a grandeza do seu sacrifcio.

A linguagem rude do fabricante devera, portanto, crifasti-la mais ainda, se o


temerrio alimentava a louca esperana de fazer-se amado, agora que a
indigncia e a desonra a tornavam menos preciosa.
Eis aqui o orgulho da mulher, que no pode cair nunca da nobre altivez, que,
mesmo no infortnio, a distingue. esta soberba cunho de superioridade. Por
ela, podia vaticinar-se costureira um destino grandioso, qualquer que fosse a
vereda por onde esse destino devesse vir-lhe ao encontro. Mulher tal no
podia viver costureira; no podia, ainda que o quisesse, devorar-se
obscuramente num quarto pobre da Rua dos Armnios. A presteza prodigiosa
da sua educao literria, no Candal; a lucidez daquele esprito, que pudera
cativar dezoito meses os volveis desejos de Guilherme; a aspirao que
vinha, agora, menor contrariedade, reagir contra as algemas que ela prpria
se lanara: ai esto sobejos indcios de que o ciclo das alegrias ou dos
infortnios de Augusta no se fechara ali.
Esperemos, pois, as eventualidades.

CAPTULO XXIV

Londres, 12 de Fevereiro de 1847.

Meu caro...
Recebo a tua carta. Preveniste a minha nsia. Eu desejava uma longa hora de
conversao contigo. Era feliz quando a recebi, e o corao, assim, quer
expanses: a felicidade d-nos um ar de soberba, que s amigos toleram.
Falemos primeiro de Augusta. Espanta-me a resoluo desesperada dessa
mulher! excecional! Se no posso am-la, admiro-a; acho-a deslocada no
sculo, e quisera ver bem desenhado num romance esse tipo. Vejo-a de c
pelo prisma da poesia: um quadro histrico da minha vida, o nico de que
levo saudades na peregrinao que tenho a cumprir. No sei que fnebre
poesia assombra essa herona obscura! Se a vejo to radiosa, to inteligente,
to senhoril, como a vimos no Candal, e a comparo mulher da Rua dos
Armnios... sinto esta melancolia ntima, esta coisa indefinvel, que faz chorar
o corao, quando os olhos, esterilizados pelo sopro glacial da experincia, j
no brotam lgrimas.
Tenho d dessa mulher! Antes a queria ver passar de amante em amante,
corromper-se, esquecer-se de mim, odiar-me, at: antes isto, que imagin-la

assim, devorando-se de saudades inteis, inteis sim, porque no posso amla, no veno o fatalismo, no posso desdar os ns, como Laocoonte, das
serpentes que se me enroscam no corao.
J tributar-lhe um grande culto, meu amigo, lamentar a mulher que no
posso amar! Quantas vtimas, em igual condio, que nos no deixam sequer
uma sombra na estrada lcida dos Prazeres? Quantas esquecidas no dia
imediato ao da paixo mentirosa?
o mais que posso sentir! No sei o que possa fazer-lhe... Impressionaramme as tuas pungentes razes; mas queres tu imp-las ao corao, tu, homem
da experincia, inexorvel sndico dos mais ocultos instantes do esprito!?
Porque no aceita ela os meios amplos que lhe dou? Porque no vive rica de
oiro, se lhe furtam as riquezas do corao? Porque no h de ela, com o
dinheiro do seu primeiro amante, resistir s sedues de um segundo? O
dinheiro reabilita, e amnistia todos os crimes.
Meu amigo, exerce a tua imperiosa influncia sobre a pobre mulher. Faz que
ela torne para o Candal, ou para onde queira. Aumente-se-lhe a mesada, se
assim preciso, que eu dou ordem franca Para que as tuas ordens se
cumpram. Se fosse possvel casar-se ela, com que prazer eu no daria, sem
publicidade desonrosa para algum de ns, um dote que a tornasse mais
interessante a um marido de meios, que h tantos e to... inocentes!?... Ser
isto possvel?

No li sem emoo as novas razes que me ds para eu no dever abandonla. E, porventura, abandonei-a eu? Quantas mulheres casadas invejariam a
sorte de Augusta? Todas. Quantos maridos, saciados das mulheres, lhes
garantem uma subsistncia brilhante, enquanto eles se afastam em busca
doutras emoes? Nenhum.
A existncia de um filho no aumenta as atenes que devo me. Esse filho
ter um futuro; proteg-lo-ei sempre, como se fosse meu legtimo filho; amlo-ei desde hoje para abra-lo, quando possa, com fervor de pai... Que mais
queres de mim?
Que te conte a minha vida? Seis dias depois que estava em Londres, encontrei
o belga! Quem diria a este homem o destino de Leonor?! Preveni o meu tio.
Era difcil saber em Londres a nossa residncia. Vivemos nos arrabaldes, e a
polcia est prevenida para se no descobrir a casa campgtre em que o meu tio
espera converter o corao da filha.
E incrvel o agrado com que ela me tem recebido. Escuta-me, serenamente, as
inequvocas tentativas que fao. Ouve o pai em pueril acatamento, e, se no
responde, tambm no reage.
At hoje suspeitei que a minha prima premeditava um golpe decisivo nas
minhas importunas perseguies. Enganei-me: venho de sentir uma alegria
improvisa, uma demncia momentnea!

Se soubesses como amo esta mulher! Basta que eu te diga que meditei um
suicdio! Imagina, pois, que frenesis de jbilo eu sentiria no momento em que
ela, apertando-me carinhosamente a mo, me disse: Primo, tenho
experimentado o seu amor, e no posso ser-lhe ingrata! Diga ao meu pai que
me no tenha aqui encerrada, que eu prometo ser uma boa filha, incapaz de
resistir vontade suprema do seu pai!... Que te disse eu? Esta mulher devia
sucumbir! No me cega a vaidade, mas descubro em mim a superioridade, que
despedaa as mais robustas cadeias de dois espritos. Se o meu amor fosse um
simples capricho, a minha vingana comeava hoje. No era; menti quando to
disse. No posso ressentir-me de uma resistncia que me atormentou, e est
hoje sendo a minha glria, a minha ventura, o meu triunfo!
nestes lances que se afere o verdadeiro amor. O homem devia sujeitar-se a
esta dolorosa provao, queimar-se neste incendirio caminho, para sair
purificado, sem as fezes das iluses do momento, que germinam, mais tarde, o
fastio.
Hei de amar sempre esta mulher. Os prazeres consecutivos, sempre novos,
nunca me daro tempo a sentir nos pulsos as algemas do homem casado.
Leonor rica... e, se o no fosse, am-la-ia eu menos? No. Viajaremos,
iremos ao Oriente, meu sonho querido; sentar-me-ei com ela sobre as runas
dos imprios arrasados, e errarei por l sonhando sempre delcias novas nos
braos dela. Isto que a felicidade. nestes momentos que o homem cr
em Deus, e reputa a criao uma obra perfeita.

A minha vida at aqui o que tem sido!? Uma deceo continuada, uma ansiosa
esperana mentindo sempre, um trabalho impotente de imaginao adorando
fantasias, que a realidade atroz me no dava.
O que foi Augusta? Uma aberrao do natural, um artificio alimentado com
oiro; mas a mulher, nua de prestgio, l estava glida e estril debaixo dos
europeus. O que foram essas dzias de conquistas inglrias, que presenciaste?
Fogos-ftuos, relmpagos de um mundo de luz, todo luz, luz perene em que
hoje abri os olhos...
Sorris ao meu entusiasmo? Aqui no h poesia, no h exaltao de folhetim,
no guindo o lirismo do estilo s etreas criaes do talento, nutrido das frias
reminiscncias do corao, quais so as tuas.
O homem natural este: sou o Ado primitivo, extasiado perante as delicias
da natureza, como Buffon o descreve no den. Oh! o mundo belo, e eu
tenha pena dos que no podem v-lo com eu neste momento! Amigo, quando
este prisma me cair partido aos ps, tambm eu baterei com a face sobre a
sepultura.
Adeus: parte o paquete, Alonguei-me sem te dizer que s o primeiro e nico
amigo de Guilherme do Amaral.

CAPTULO XXV

O jornalista recebera esta carta no momento em que a Sra. Ana o vinha


chamar de mando de Augusta. Grande embarao! Queria no mostrar-lha;
mas escasseavam-lhe recursos de fantasia para entret-la na quimera, que, por
fim, seria desmentida, e mais cruel a desiluso. Foi, na incerteza do que faria.
Entrou melanclico, contrastando a ansiedade risonha de Augusta, que
esperava uma boa nova.

Teve carta? exclamou ela.

Tive ...

Ah! ... Deixe ver. .

No a tenho aqui.

No?... Est triste!... Sei tudo... Guilherme no volta.

Voltar; mas por enquanto no...

Meu Deus!... exclamou ela, desafrontando-se de um peso imaginrio,

que lhe carregava nas plpebras.

Espere, senhora dona Augusta... Guilherme seu amigo...

Meu amigo!... Que zombaria! murmurou, caindo na profundeza do

desengano.

Estima-a; quer v-la feliz, e cr que s pode s-lo com vida honesta,

sem privao nenhuma, dispondo de meios de que muito poucas senhoras


podem dispor...

Oferece-me dinheiro?... Oh!, que ultraje!

No ultraje, senhora! o mais que pode fazer um amigo, um irmo,

um pai... Enquanto que ao seu filho, desde j lhe chama seu legtimo filho,
tem um futuro, preciso que a vossa excelncia seja pai e me, e por amor
dele se resigne a ser uma espcie de viva, que chora saudades do seu esposo,
mas deseja viver, deseja riquezas para comprar, com elas, riquezas do esprito
para o seu filho...

Riquezas!... Uma herana de desonra...

Pelo amor de Deus, no tratemos de refinar o moral ao ponto de

discutirmos o que honra... Vossa excelncia no tem o direito a exigir no seu


favor reformas condio humana. Poderia ter encontrado um desses que
vulgarmente passam por honrados e, a estas horas, no teria amor, nem
estima, nem um bero onde embalasse o seu filho. No isto querer medi-la
pela craveira das mulheres que recebem afrontas destas, choram trs dias, e,
ao quarto, procuram suavizar as saudades com o primeiro que se oferece a
distrair-lhas. No, , minha senhora. Eu sou o primeiro a julg-la merecedora

doutro destino, nascida para tudo que magnfico pelo amor, e grandioso
pelos instintos nobres; mas essas virtudes, raro atendidas neste prfido jogo de
paixes vis em que nos falseamos uns aos outros, passam quase sempre
desapercebidas. Vossa excelncia no pode reputar-se absolutamente infeliz.
Ver que h de ainda colher consolaes das lgrimas que hoje semeia. A
conscincia da sua fidelidade simples memria do pai do seu filho h de darlhe assomos de alegria. O sorriso anglico dessa criana, medrando em belezas
e inteligncia, sua vista, vir com o blsamo do amor cicatrizar-lhe as feridas
que hoje sangram. Dona Augusta ser apontada como modelo das mes, e at
das vtimas de uma paixo mal indemnizada. Repare que sinto o que digo. Eu
juro pelos seus sofrimentos, que sou incapaz de trazer aos lbios uma
consolao frvola, uma impostura reprovada pela conscincia. Tenho-lhe dito
o que s podem dizer amigos, e vou daqui sem pesar de me ter esquecido uma
s ideia com que deva demov-la ao fatal propsito em que est...

Que quer que eu faa, senhor?

Que se recolha ao Candal.

Nunca! Nunca! Nunca!

Augusta estremecera a cada uma dessas exclamaes, como se a farpa

de uma serpente lhe entrasse no corao.

No tenho mais que lhe diga... murmurou com severidade o

jornalista, ressentido da impotncia do seu discurso, e at ferido na sua


vaidade de orador persuasivo. Devo retirar-me, no assim?

Quando queira; mas... no me condene sem me ouvir... Eu no quero

neste mundo coisa alguma seno o amor de Guilherme: no vivo... no posso


viver sem ele. O Candal seria um incessante despertador do meu perdido
paraso... Toda a minha felicidade de um dia, transformada em horrvel
solido, a, nesse mesmo quarto, nessas salas, nesse jardim, debaixo desse cu
onde vivi, onde amei, onde morri... senhor... no posso, no posso... ia
morrer vagarosamente, morrer em todos os minutos, assistir passagem dos
dias, dos anos, sem esperana, sem voz alguma, que me minta, ao menos, que
me afigure possvel tornar ao que fui, ao amor daquele homem... Sou menos
desgraada aqui... o meu filho morrer no meu seio, no poder sobreviverme, no abrir os olhos luz do mundo, no pedir uma esmola ao verdugo
da sua me... Se no morrer... se Deus me quer punir com a vida... trabalharei
para sustent-lo, pedirei esmola para educ-lo... Educ-lo, meu? Deus!... Para
qu? No, no. Eu era mais feliz se me deixassem na escurido da minha
ignorncia... Seria bom apurarem-me a sensibilidade com a delicadeza dos
sentimentos... mostrarem-me a luz e fugirem-me... darem-me ambies de um
ideal que eu s sabia desejar e no quereria nunca ver realizado?... Foi uma
loucura... uma crueldade... O meu filho ser um operrio... um jornaleiro, um
homem que se encoste a uma pedra, e adormea cansado de trabalho... No

me creia demente, senhor... um propsito que no desmentirei... e para


lev-lo ao fim preciso de viver obscura e pobre na casa onde morreram meus
pais, entre estas quatro paredes onde nasci, trabalhando em suspensrios,
trocando o trabalho de cada dia por um bocado de po, velando as noites para
granjear o almoo do dia seguinte, ensinando ao meu filho com fingido
contentamento a alegria na misria. Eis aqui o meu futuro. uma teno que
me no sair da alma enquanto a vir escrita no cu... e proferida pelos lbios
da minha pobre me, que, h vinte meses, morreu nesta mesma cama... Que
horrvel lembrana!... Um cadver a sair, e a desonra a entrar... Agora, sim... o
que eu sinto... um sofrimento horroroso... O meu Deus, meu Deus, tende
compaixo de mim!...
Augusta erguera as mos suplicantes, e o poeta em p, com os cabelos hirtos,
testemunhava trmulo, e at supersticioso, aquele lance. Queria ocorrer com
palavras; todas, porm, lhe pareciam vs e frias, Voltou com religioso tremor
as mos de Augusta, e sentiu-as de gelo. Aquela cara cadavrica pendeu
lentamente para os braos dele, e duas lgrimas, ao longo das faces roxas,
caram-lhe nas mos j frias, como as ltimas que fogem dos olhos com a luz.
Augusta desmaiara. O poeta encostou-a ao travesseiro, e correu a chamar Ana,
ao mesmo tempo que o artista aparecia na extremidade da rua. Pouco depois,
entrava o primeiro cirurgio, deparado s diligncias ansiosas do literato.
Augusta tornara a si; mas o facultativo disse que a no contrariassem, porque

a demncia era o desfecho natural daqueles ataques repetidos, qualquer que


fosse a causa.
Dois meses depois desta cena, que ameaava o trgico desfecho vaticinado
pelo facultativo, o poeta passeava a cavalo nas pitorescas alamedas de Lordelo,
e viu ao longe, a um lado da estrada, uma mulher que lhe pareceu Augusta,
sentada na raiz de um pinheiro. Parou o cavalo, e afirmou-se. Na incerteza,
no ousou saltar a baixa parede que o separava do pinhal. Quem quer que era,
parecia fix-lo tambm.
Instantes depois, o jornalista indeciso viu um homem, com um jumento
rdea, subindo do recosto de uma pequena colina em direo a Augusta. Era
ela, no podia deixar de ser, porque o homem era o fabricante. Esperou.
Augusta sentara-se nas andilhas, ajudada por Francisco, que, a par com ela,
erguia, um guarda-sol para lhe no darem de frente os raios ainda quentes do
Sol no ocidente.
O jumento vinha saltar num portelo a pouca distncia do poeta. Perto dele, o
fabricante parou, e alguma coisa disse a Augusta que a fez empalidecer.
Todavia, no alteraram o roteiro.
O jornalista apeou, lanou as rdeas ao pescoo do cavalo, e foi cumprimentar
Augusta. O artista recebeu-o afavelmente, e foi pegar nas rdeas ao cavalo,
que no quisera parar. O literato no consentira; mas o fabricante instara.

Tenho tido o prazer de me informar das suas melhoras progressivas,

minha senhora disse o poeta.

Estou melhor... dizem que estou.

E eu tambm o digo... Vejo-a magra, e descorada; mas est em

convalescena.

Mandam-me dar alguns passeios tarde; um sacrifcio que eu fao ao

meu primo; de quarto em quarto de hora, preciso apear-me para descansar.

Mas a vista deste belo panorama deve ser-lhe muito saudvel para o

esprito...

Isto deve ser agradvel para quem no sofre do corpo... A matria, se

sofre, tem impertinncias despticas sobre a alma... e a vossa senhoria como


passa?

Bem, minha senhora.

Disseram-me, pouco depois que esteve na Rua dos Armnios, que sara

do Porto.

verdade, minha senhora... e naturalmente sabe que estive...

Nada, no sei...

Na provncia da Beira Alta...

Ah! ... j sei... no falemos nisso... Li nos jornais...

Que leu nos jornais, senhora dona Augusta?

Vou-me recolhendo, que arrefece a tarde...

Minha senhora, eu desejo o seu completo restabelecimento... Vossa

excelncia creia que eu capricho em ser pontual nas minhas afeies...


Qualquer ocasio que me d no seu servio urna nova prova de estima.

Muito agradecida... Vamos, Francisco.

O fabricante no ouvira bem as palavras entrecortadas do dilogo; reparou,


porm, que a sua prima de lvida se tornara encarnada, e projetava dos olhos a
irradiao ameaadora da congesto cerebral, que h um ms a no assaltava.

Eu no to disse, Augusta? murmurou ele.

No nada: isto passa... preciso habituar-me a encarar as

testemunhas da minha vergonha...

No digas isso assim...

Basta que o sinta, no verdade, Francisco?

No posso ouvir-te falar em vergonha... Dava a minha vida para que te

esquecesses do passado...

Tambm eu a dava... s dando-a... s morrendo que se esquece...

Que te disse ele?... Falou-te em...

Em Guilherme?... No... Disse-me que estivera na Beira Alta... Foi

talvez o encarregado de enviar as certides para o casamento... Eu disse-lhe


que j o sabia... Fiz bem?... Fiz... fiz muito bem... Quis que ele soubesse que
me no importava... Era uma dor infame a minha saudade, se eu a sofresse...
uma ignomnia, uma vergonha sobre outra vergonha... Fiz muito bem... No
sinto nada... tenho-lhe dio... Se fosse homem... matava-o...

Que tens, Augusta? acudiu sobressaltado o fabricante, vendo-a

vermelhecer cada vez mais, e agitar-se em mpetos convulsivos sobre as


andilhas.

Matava-o, sim! disse ela, como se no ouvisse a interrupo.

Deixa-me ter o meu filho... Oxal que seja um homem... Hei de dar-lhe um
punhal e dizer-lhe: Aquele homem, que te no chama filho, cobriu de lama a
tua me; tirou-a do regao da inocncia e lanou-a no inferno de toda a vida;
arrancou-lhe uma coroa de flores, e encravou-lhe outra de espinhos. Vingame, filho; lava-me com o sangue dele este ferrete da face. A tua me arrasta-se
desonrada, h dez, h vinte, h trinta anos... Mata-o, filho e depois... e depois...

Augusta cara de bruos sobre os braos de Francisco. Os ltimos sons


daqueles lbios, que espirravam sangue, foi uma gargalhada com aquele timbre
arrepiador da demncia.

O fabricante lanou fra as andilhas, montou a cavalo, tomou a sua prima nos
braos e conduziu-a fbrica do seu patro, que era perto.
Francisco no receava a demncia da sua prima. Sabia que o acesso acabava
pela perda dos sentidos, recuperados meia hora depois. Assim fra. Ao
anoitecer, Augusta entrava na casa da Rua dos Armnios, e recebia das mos
da Sra. Ana um caldo confortativo. Deitara-se, e conversara com o seu primo
at alta noite. Adormecera tranquilamente, enquanto ele, velando, com os
olhos cheios de ternura, parecia contar-lhe as pulsaes do corao que
arquejava debaixo do lenol guarnecido de alvssimas rendas.
Desde essa tarde do encontro, Augusta nunca mais saiu. Nem ela queria, nem
o seu primo instava. Erguia-se s horas em que Francisco visitava a fbrica.
Sentava-se a trabalhar em roupas brancas, e depunha a agulha quando o
fabricante lha tirava com delicada violncia. Lia dois jornais que o artista trazia
de Lordelo, e parecia deleitar-se com os folhetins do jornalista, onde ela se
conhecera representando sob a epgrafe: Estudos do Corao Humano. As
aluses eram lisonjeiras; mas o remate do entrecho no era o seu. A mulher
meio fantstica do poeta endoidecia; e ela raciocinava ainda para conhecer que
a doida tivera muito pouca coragem no sofrimento. O seu primo no lia; mas,
lendo, no encontraria os pontos de contacto.
Eram passados cinco meses depois que o mdico prognosticara a enfermidade
de Augusta. Os sintomas externos j no deixavam dvida. O fabricante

observara a sua prima que j no era fcil esconder-se aos olhos da Ana do
Moiro.

E achas que devo esconder-me?

Parece-me que sim. No me disseste, Augusta, que tencionavas criar o

teu filho ocultamente?

Disse... mas j me no lembra com que fim o disse...

Eu tambm o no sei...

Ah!... j me recordo... no quero que ele em tempo algum conhea a sua

me para se no envergonhar... Tens razo, Francisco; devo esconder-me de


toda a gente, menos de ti... E tu disseste-me que, a todo o tempo, farias que o
meu filho conhecesse o seu pai...

Disse, e torno a dizer...

Pois sim; mas no repisemos este assunto... No posso falar nisto.

Talvez que no faas o que dizes, quando o vires...

No farei?... Nesse caso no quero v-lo... Daqui a quatro meses hs de

ter preparada uma ama, sim?

Tudo est ao meu cargo...

Pareces-me um anjo, Francisco! Como Deus te fez bom! Tu no me

odeias?

No, minha amiga, sou sempre teu primo, teu irmo.

Quem dir o corao que tens!... Nunca tiveste um instante de

aborrecimento ao p de mim?

No: o que me custa ter de te deixar sozinha algumas horas.

Ento, por l, sentes muitas saudades da tua Augusta?

S Deus o sabe! Quando me recolho, trago o corao aos saltos de

alegria por te ver... e s vezes de medo com o susto de te encontrar pior.

Que nobre alma!... E no te lembras que te desprezei por um homem

que me desprezou?

No fales nisso, Augusta...

No sentes o prazer de te vingar, sendo a Providncia que te vinga?

No: se Deus me ouvisse, eras tu feliz. Se te visse outra vez feliz com

esse homem, no te aborrecia.

No vs que tenho lgrimas nos olhos?

Mas no quero que chores... No sei a que vm essas lgrimas agora...

So boas sempre: as de gratido so doces... so as que deve chorar um

filho no seio da sua me.. H de ser to santo o amor de me!.. Olha,


Francisco... e se eu criasse o meu filho?

Faz a tua vontade, Augusta...

No, no quero: toda aquela me que no poupa o seu filho vergonha

de ter nascido sobre umas palhas no boa me.

Eu posso fazer que o teu filho durma em cama de prata. Tenho

crditos para muito mais.

No, meu caro amigo... No perjuro... O juramento de uma desgraada

mais infalvel que a palavra de um rei... Disse, h de cumprir-se. Ainda que


eu queira outra coisa, alguma vez, arrebata-me o meu filho dos braos, sim?

No sei, Augusta... O teu filho meu sobrinho... hei de querer-lhe

como se fosse tambm meu filho...

Pois tu no fazes o que disseste?

Hei de fazer o que tu quiseres no momento em que ele vier luz.

CAPTULO XXVI

Ao escurecer de um dia de Agosto de 1847, entrara, na casa da Rua dos


Armnios, o mdico que, oito meses antes, se despedira, oferecendo o seu
prstimo para oito meses depois. No faltara sua palavra, visto que a
natureza tambm no faltara sua.
A Sra. Ana do Moiro, que o vira entrar, dizia a uma vizinha que a pobre
rapariga estava muito doente, e h mais de trs meses que se no erguia da
cama. Acrescentava que a cara no era de doena, at lhe parecia nutrida, e
muito cheia do peito; mas observava a vizinha seria ostruo, ou
estaria hidrlica.
Repararam elas que o fabricante sara, quando o mdico entrou. Ir botica,
dizia uma. Mas o mdico no teve tempo de receitar, emendava a outra.
Ento no seria o mdico?, replicava a Sra. Ana. No seria, no: o Diabo o
jure!, conclua a vizinha.
E o mais que o artista no saa para longe da porta... Ia e vinha, parava e
retrocedia, umas vezes limpava o suor, outras fitava o ouvido inutilmente na
direo da porta.

Quer vossemec ver que o sujeito que entrou o tal Guilherme, que

ps o Francisco no andar da rua?

Tambm me est parecendo isso! Eu, se fosse vossemec, ia at l

como quem no quer a coisa.

Nessa no caio eu. No me abriam a porta, e Augusta est mesmo uma

espevitada da breca; por d c aquela palha prega um recado que leva o coiro e
cabelo... Olhe... l torna o Francisco para a porta.

Pois olhe que no outra coisa... o figuro que fez as pazes com ela.

Oxal, que a pobre da rapariga tem-lhe amor de raiz. Se vossemec a visse


aqui h tempos, quando lhe davam os fanicos!... Chamava por ele, e dizia
umas palavras assim a modos de estrangeiras, que eu estava pasmadinha a
ouvir-lhas. O Francisco no me deixava l parar nessas ocasies; mandava-me
embora e eu nunca pude perceber nada do que ela dizia; mas aquilo enquanto
a mim, era paixo de alma.

Seria o Demnio que se lhe meteu no corpo, salvo este?

No, tia Antnia Melra, pelos modos o Demnio no era. Bom

Demnio, enquanto a mim, o amor de raiz, que no deixa arranjar a gente a


sua vida quando ele pega deveras. Olhe que eu j sei o que isso . Quando
andei de namoro com aquele granadeiro da polcia, vossemec bem se lembra,
que cheguei a tomar verdete.

Ora, se lembro, e se no fosse a me de Augusta vossemec espichava.

Deus lhe fale na alma... foi ela que me botou pelo gargalo abaixo uma

tigela de azeite... eu fiquei muito tempo na cama, que me pus mesmo um


pelm. Que leve o Diabo paixes e mais quem com elas medra! No assim,
tia Melra?

Diz bem, tia Ana, j esse dito era muito do seu pai, Deus lhe fale na

alma.

Vossemec ainda se lembra do meu pai?

Ora se lembro! Era um moceto valente como as armas! O tio Antnio

Moiro, aquilo foi uma pena matarem-no os franceses, e foi a troco de ele
querer defender a casa do homem que morava...

Onde mora Augusta:.. isso sei-o eu bem.

Diziam que era to rico o tal Joo Antunes... e nunca se soube onde

ficou a riqueza! Parece-me que o estou vendo!... Era um pacabote baixo, com
uma cara escaveirada, no dava os bons-dias a ningum, e andava sempre
embrulhado num josezinho de camelo... Parecia mesmo um pobre. Eu era
ento rapariguinha de dezasseis anos, quando foi pelos franceses, e ele
chamou-me uma vez l dentro, e disse-me, se eu lhe botasse umas costas
numa camisa, que me dava os bocados de linho que no servissem. Veja
vossemec que sovina ele era... O mais certo que os franceses o mataram, e
lhe pilharam o dinheiro... Olhe, tia Ana, l se abriu a porta de Augusta...

o tal homem que sai... E l est parado a falar com o Francisco. Ele a vem...
Olhe vossemec, que est mais perto, se o conhece.

No lobrigo nada... O Francisco l entrou...

Augusta est prostrada numa profunda letargia. Os braos nus escorrem um


suor frio, e as faces parecem mortas. Francisco desdobra um lenol, que
envolve um objeto colocado sobre uma caixa ao p da cama. uma criana
recm-nascida, ou antes, nunca nascida, se o nascimento comea pela vida. Os
lbios do artista roam com um beijo a face anglica do pequenino cadver.
Augusta, como se o ardor daquele beijo se refletisse nas faces dela, abre os
olhos espavoridos, arrevesando-os? convulsivamente.

Augusta... murmurou Francisco, depondo o feto no lenol.

D-mo balbuciou ela.

Para qu?

Deixa-me beij-lo.

Pois no sabes?

O qu?

Est morto.

Morto! exclamou ela, esforando-se, at se sentar no leito. D-

mo, d-mo, que impossvel que esteja morto...

Disse-o o mdico, Augusta.

No importa... quero v-lo... Passou-lho aos braos. Augusta aqueceu-

o, com beijos, e banhou-o de lgrimas, como se lgrimas e beijos de me


pudessem ressuscitar um filho!...

Est morto!... j no duvido... Senti-o morrer... bem me lembra quando

foi... E, depois de um xtase de alguns minutos, prosseguiu, banhada em


lgrimas: Uma vez que me disseram... que me disseram, no... lembras-te
quando me trouxeste aquele jornal que dizia... Guilherme casa... Foi ento...
senti uma dor agudssima, um estremecimento nas entranhas... Eram os
paroxismos desta criana... Ei-la aqui morta... Deus o quis... No pedirs
contas tua me, meu anjo!... No dirs ao teu pai que tens direito parte do
corao que a sua me perdeu... No pedirs uma esmola... No amaldioars
quem te lanou ao mundo... Vai, vai para o Cu, anjinho; pede ao Senhor pela
tua me... pede-lhe que me leve junto de ti... que as minhas aflies
purificaram-me para eu poder seguir-te na bem-aventurana... Vai, meu filho...
quis-te Deus... Foram as minhas lgrimas que te resgataram do cativeiro do
mundo...
Augusta recara no letargo. O artista viera porta, onde ouvira rumor de quem
espreita, roando a face nos rtulos do postigo. Deram-lhe de fra um sinal
convencionado. Abriu a, porta.

E vossemec?... Entre; mas j no precisa: o menino nasceu morto.

Pois pena foi que no fosse batizado... era um anjinho... disse a

destinada ama de leite, dando a razo teolgica em conformidade com os


melhores praxistas.

V vossemec ao quarto... arranje l o que for necessrio, enquanto eu

preparo um caldo.

E a me est mal?

Penso que no, graas a Deus. Est muito quebrantada.

Pudera no; isso no h de ser nada; ponto que no se aflija, seno

sobe-lhe o parto cabea.


Com este rasgo de erudio obsttrica, a sisuda alde foi, como experiente que
era, finalizar as necessidades inerentes purpera.
Francisco ministrou o caldo sua prima, que o tomou maquinalmente, e
adormeceu com uma serena placidez.
Duas horas depois, voltou o mdico, e disse que no havia nada a recear,
prometendo tornar no dia imediato. A ama intil retirou-se a amamentar o seu
filho, a quem negava a nutrio para alimentar um filho alheio, prometendo
lanar o seu na roda dos expostos.

Era dia. Francisco passara a noite contemplando o filho da sua prima, e


observando o menor estremecimento da me.
Augusta acordara sobressaltada, pedindo o filho com gemidos que partiam o
corao.

Est ali... O que lhe queres, Augusta? O menino est no Cu. Oxal que

Deus nos tivesse chamado na idade dele. Agora do que se trata de o


enterrar.

Pois sim, Francisco... Vai enterr-lo ao p da minha me...

Pois queres que se d a saber isto ao proco? Ento para que te

escondeste tanto! Isso no tem jeito... Se o levo igreja, devo dizer de quem
filho...

Sim?! No quero, no quero... exclamou Augusta com estranha

resoluo.

E, se ningum o sabe, para que h de saber-se agora que ele est morto?

Lembras-te de alguma coisa?

Se quisesses, enterrava-se aqui...

Aqui?!

Sim, Augusta. No pecado, porque no cristo; sem a gua do

batismo como se no fosse nada.

E no est no Cu?

Isso de f.

Deve estar... Que importa o mais?... Pois sim... enterra-o a... terei

sempre os seus ossos comigo...

Tu prometeste que saas desta casa para a minha de Lordelo, que

comprei com essa condio... que tem que o menino a fique?


Ficar sendo esta casa a sua sepultura... Virei visit-la muitas vezes. Mas... no
ser um crime... Francisco? E se o acham enterrado?

Quem?! Esta casa nunca mais se abre.

Pois no abre?! Esta casa da Ana do Moiro.

minha, que lha comprei eu... tua, Augusta...

O que tu tens sido para mim, Francisco... disse Augusta com os

olhos vidrados de lgrimas, e uma doura de expresso encantadora para


quem a ouvia, mas dolorosa como um remorso para ela.

No chores, seno arrenego-me... No fiz seno o meu dever. Vamos ...

mos obra ... Queres dar um beijo no menino?

Sim... quero... No posso... tira-mo dos braos, por misericrdia... Faz o

que quiseres... Que vida, meu Deus!...

Augusta, no chores assim... Queres ver o stio da sepultura?

No, no... Corre-me essa cortina, Francisco...

O fabricante afastou uma troixa de roupa amontoada a um canto, e levantou


uma tbua curta; depois cavou, abalando a terra com um ferro de monte, e
tirou-a na p da enxada. Mediu com o cabo a profundidade: tinha apenas um
palmo. Continuou a escavao, alargando a abertura da cova. Eram j dois
palmos. Estendeu o cadver na sepultura, e pareceu-lhe que ficava muito
flor da terra. Enterrou quanto pde a alavanca, bateu em corpo duro, mas que
no dava o som de pedra. Escavou corri a sachola, com as mos, e com o
ferro desencabado para mais prestes deslocar a pedra que o estorvava, ou
cavar outra cova, sendo a pedra imvel.
O gume da sachola raspara em pau. algum bocado de trave velha, que
ficou enterrada quando foi o fogo, refletiu ele. Mas a superfcie desse pau era
lisa como tbua, tinha quatro lados, e no vacilava por nenhum deles. Quis
introduzir a ponta de um ferro por qualquer dos quatro lados, no pegava em
nenhum. Isto tem a forma de um caixo! disse ele a meia voz.

Que ?! perguntou Augusta.

No nada... Eu falo-te j.

Falaste em caixo...

E c uma coisa... E prosseguiu na tarefa com ansiosa freima. Correu a

mo por um dos lados do suposto caixo: encontrou uma argola. Estremeceu,

sem saber porque estremeceu. Quis exumar o quer que era, tirando com toda
a fora pela argola: no fez sequer vacilar o objeto. Raciocinou, procurando
outra argola do lado oposto: l estava. Acurvou-se sobre o fosso: puxou
valentemente por ambas, ergueu um caixo quadrado.

Augusta! exclamou ele.

Que ?!

No sei... l vou...

Afastou com o ombro a cortina, e poisou o caixo sobre a cama de Augusta.

Que isto?! disse ela.

No sei... desenterrei-o... Vou ver... Aqui h uma fechadura... espera.

Foi buscar um formo, entalou-o no friso formado entre a tbua da tampa


falsa e outra que se abria maneira de alapo. A fechadura estalou. Viram
seis gavetas fechadas. Abriu a primeira, eram rolos de papel amarelado pelo
tempo.

Dinheiro! exclamou ele, desembrulhando o primeiro sofregamente.

Oh, meu Deus! disse como assustada Augusta.

So peas... outra tambm de peas... dinheiro em papel... outra de

peas...

Faltava abrir duas. Eram brilhantes soltos, adereos completos, anis, pontes,
cruzes, pulseiras, cadeados, fivelas, medalhas, colares...
Que riqueza! exclamou o fabricante com o entusiasmo do delrio, com os
olhos chamejantes de um brilho febril. Isto teu... nosso, Augusta!

Meu!... Meu!... No pode ser... replicou Augusta, arrastando-se at ao

caixo insensivelmente.

Sim!... teu... s rica, s riqussima, Augusta... No h fidalga mais rica

do que tu!... Foi Deus que assim o quis!

Isto um sonho!... murmurou ela, no podendo suster-se sob o

peso da impresso.

No sonho... E Deus que te d esta riqueza...

Em paga do meu filho? No a quero...

A terra que cobrira o tesouro de Joo Antunes da Mora, durante trinta e oito
anos, cobre hoje a ossada do filho de Guilherme do Amaral.
Agora, leitora, ponha o livro sobre a sua mesa de estudo, sobre o livro ponha
o cotovelo, palma da mo direita encoste a sua face formosa, e adormea,
cinco anos, sobre os acontecimentos que viu desenvolvidos com uma
fidelidade digna de melhor emprego. Passados cinco anos, acorde, e leia o
captulo seguinte.

CAPTULO XXVII

Correram, pois, cinco anos. O jornalista no obtivera direta nem


indiretamente informaes de Amaral. Soubera, apenas, de um provinciano,
vindo ao Porto, que o seu amigo, pouco depois que sara de Portugal com o
seu tio, fizera vender a um brasileiro a sua melhor quinta na Beira-Alta por
quarenta mil cruzados.
Afeito com os homens, e homens como eles, o poeta desculpava o
esquecimento de Guilherme, porventura embelezado nas delcias fantasiadas
na carta que o leitor viu. De l, nas grandes capitais, relacionado com as
grandes sociedades, a ptria devia parecer-lhe mesquinha coisa, e os amigos
que deixara nela, uma lembrana fugitiva sem traos no corao.
Querendo explicar doutro modo o silncio do seu amigo, o jornalista
justificava-o com o azedume que a sua ltima carta devia causar-lhe, por ser
uma censura agra m ndole do desprezador de Augusta e ao baixo carcter
do perseguidor da prima.
Como quer que fosse, o patrono da costureira, galardoado pelos aplausos da
conscincia, no lamentava a quebra de uma falsa amizade.
Para o poeta, contente no seu procedimento nas complicadas situaes deste
obscuro drama, a vida de Augusta era um quadro triste em que ele deliciava a

imaginao, propensa a tristezas, ou depravada no gosto, depois que provou


de todos os venenos da alegria. Pensava ele que desempenhara com honra
todos os deveres de homem honesto para com Guilherme, sem desvirtuar a
considerao que deu, e poucos teriam dado, costureira da Rua dos
Armnios.
O leitor no quer que lhe moralizem os sucessos, porque, bendito seja o
Senhor, no lhe falta bom juzo prprio para moraliz-los. Aqui o que precisa
saber-se, e quanto antes, o que fez Augusta daquele dinheiro e daqueles
brilhantes. A curiosidade justa, at porque eu, distinto mexeriqueiro destas
trapalhadas humanas, a primeira coisa que perguntei quando me contaram esta
histria foi justamente o que a rapariga fez ao dinheiro.
Porque a verdade deve dizer-se: todas as perguntas so frvolas quando se
trata de perguntar solenemente quantas aes Augusta comprou do caminhode-ferro... Parvoce!...
O caminho-de-ferro nem sequer ainda ento pesava na imaginao
fomentadora dos Colberts embrionrios. A incubao do ovo no estava
ainda no seu perodo final.
Tudo isto passou-se naquele tempo, que ramos brbaros, e os caminhos-deferro, incompatveis com a nossa selvajaria, estavam ainda no catlogo das
utopias. Isto agora outra coisa. Daqui em diante at o romance nacional h
de ter mais vida, mais lances, mais animao. O autor andar com ele de terra

em terra, graas facilidade do transporte, respigando aqui e alm cenas


palpitantes da vida do prximo e da prxima. A cor local ser-lhe- mais barata
e mais correta. O leitor ter propcio azo de saber como se vive a dez lguas
da sua casa, e far ento inteira justia aos benemritos filhos da ptria, que,
primeiros, desceram das regies da quimera, para nos favorecerem com a
viabilidade pblica, manancial de todas as riquezas e elemento indispensvel
para a extrao dos cereais e dos romances.
Nisto pensava o jornalista, num momento de fervor patritico, quando lhe
entregaram a seguinte carta, carimbada em Madrid:

Meu caro
Se ainda vives, dou-te os parabns. Se morreste, repoisa l no cu
eternamente. Amanh parto por terra para Lisboa. Tenciono a demorar-me,
e depois... no sei o que ser de mim. Aparece, se tens ainda uma vaga
recordao do teu amigo
Guilherme do Amaral.

N. B. Vou hospedar-me no Hotel de Itlia, Rua de S. Francisco.

A julgar do rosto do poeta, esta carta parecia causar-lhe um extraordinrio


prazer! Deixou numa conjuno suspenso um perodo arrepiador do drama
que escrevia. Saltou para o meio do quarto, e executou quatro piruetas, rindose para a carta com os mais seguros sintomas de idiota feliz.
Mal se tinham aquietado os pensamentos cmicos que lhe tumultuavam na
cabea, e tais que lhos no podemos devassar por enquanto, recebe outra
carta, vinda de Lisboa pelo vapor.
Riu-se para o sobrescrito, exibiu segundo espetculo de piruetas e leu,
sorrindo sempre:

Meu amigo
Deixou de cumprir a sua palavra. Esperamo-lo no Vesvio? e V. S. a nem
sequer nos diz a causa da sua falta! todo de literatura, e a mulher que o amar
tem de sucumbir a to poderosa rival. Seja-lhe infiel, e venha no prximo
vapor conversar com os seus amigos. O meu marido diz que V. S. a no gosta
da nossa hospedagem. Desminta-o no se demorando. Bem conhece quanto
caro sua velha amiga
Baronesa de Armamar.

A grande comdia!..., pensava consigo o poeta, passando do riso


descomposto a uma seriedade trgica. A grande comdia humana! Pois no
tudo isto um acaso aqui na terra! Podem imputar-se estes disparates ao
providencial governo de um Deus justiceiro, razovel, e, sobretudo, srio!
Acaso, e mais nada!
Esta orao mental, pouco edificante, foi interrompida por um criado, que
anunciava a Sra. Joaquina. O leitor ainda no conhece a Sra. Joaquina, e vai
assistir a uma cena importante, da qual nem por isso ficar sabendo melhor a
razo porque a Sra. Joaquina se acha figurando quase nas ltimas pginas
deste exemplar romance.
A Sra. Joaquina entrou com um menino no colo. uma bonita criana de
quatro ou cinco anos, vestida de xadrez escarlate, com guarnies de arminho
nos pulsos e no pescoo, e um bonito gorro de veludo preto com pluma
branca sobre os encaracolados cabelos loiros que lhe ondeiam nas espduas.
O pequeno salta dos braos da Sra. Joaquina, rindo e pulando, para os braos
do poeta, que o enche de beijos.

Estava morto por c vir disse a mulher, compondo-lhe as saias

arregaadas Desde antes de ontem que ningum o atura. Est sempre:


Pap , pap; quero ir ao meu pap...

Pois fez muito bem em traz-lo... Se no viesse hoje, tinha de mand-la

chamar, senhora Joaquina, porque me parece que vou fra da terra, e demorome alguns dias, se no forem meses.

O pap vai-se embora? perguntou o menino.

Vou, mas torno, Joozinho. Tem saudades de Mim?

No queria que fosse... Se vai, choro, e quebro a loia me Joaquina.

Olha o mau! replicou a ama. com que lhe d! s duas por trs,

quebra-me a loia, e se eu lhe ralho, deita-se ao cho, e d em espolinhar-se,


que parece mesmo que tem no corpo coisa ruim. Vossa senhoria bem lhe
pode ralhar, seno h de dar contas a Deus do mimo que d a este traquinas...
Olhe a fazer beicinho! V como est melindroso? No se lhe pode dizer
nada...

No chore, Joozinho disse, acarinhando-o, o amigo de Guilherme.

Faa uma careta bem feia me Joaquina...


O pequeno fez a mais feia das caretas que sabia, e riu-se depois com a
satisfao de uma solene vingana.

J se ri? disse a ama. D-mo c, que lhe quero dar muitos beijos

como castigo! Sempre lhe quero!...


Se mo tirassem, assim me Deus salve, que eu botava-me s dezoito braas...

E porque hei de eu tirar-lho, senhora Joaquina? Vossemec tem sido

uma boa ama. Joozinho decerto no tem sentido a falta da sua me, que
Deus lhe levou to cedo.

Ainda bem que lhe deixou um to bom pai... Poucos fazem pelos filhos

que no so de matrimnio o que a vossa senhoria faz por este. Ande l, que
Deus h de ajud-lo e nunca lhe h de faltar com quem pr este menino onde
quiser. E olhe que ele sabe agradecer-lho. uma coisa que faz pasmar, o amor
que este menino tem ao seu pai. Assim que diz pap, riem-se-lhe os olhos, e
todo ele parece de arames. Bendito seja o Senhor! O que o sangue!

Sim, decerto, o sangue... disse, sorrindo para a criana o jornalista.

Ora, pois, senhora Joaquina, vossemec vai receber o ordenado de dois


meses adiantados. Sabe a quem se h de dirigir no caso de eu me demorar, e
lhe seja preciso algum extraordinrio?

Ao mesmo senhor onde vou, quando vossa senhoria est por Lisboa

alguns meses?

Justamente. Eu parto depois de amanh.

E eu tambm atalhou o menino.

Tambm quer ir, Joozinho?

Sim, pap, quero ir contigo, seno quebro a loia me Joaquina.

Isso no se faz, menino. No sou seu amigo se quebrar a loia, e

quando voltar mando-o para um colgio, e no me torna a ver.

Ento d-me um tambor e uma pipia, e uma espingarda e um

barquinho.

Pois sim, amanh l mando essas coisas: mas, se fizer travessuras

senhora Joaquina, nunca mais lhe dou brinquedo nenhum.

Olha como ele est lindo! atalhou a ama com amoroso entusiasmo.

Parece um anjo! Ainda lhe no perguntei uma coisa, meu senhor, e ando
morta por perguntar-lha.

Diga l, senhora Joaquina.

A me deste menino era assim bonita? Perdoe-me o atrevimento.

A me deste menino... a me deste menino... tartamudeou o poeta.

Est no cu, pap atalhou o menino com estranha vivacidade.

Quem lhe disse que estava no cu, Joozinho?

Foi a me Joaquina.

Pois se ela morreu, onde h de ela estar? perguntou a ama.

Eu no sei onde ela est... disse o jornalista como se falasse consigo,

pela reconcentrao com que o disse Se eu soubesse onde ela est davalhe tudo, menos... este filho...

Joaquina no o entendeu, e o leitor, por mais que esperte o entendimento com


o belisco da curiosidade, no compreender melhor.

CAPTULO XXVIII

Em Maro de 1851, doze dias depois da cena misteriosa do anterior captulo


de todos eles o mais ressabiado do tempero romanesco o jornalista pela
terceira vez procurava Guilherme do Amaral, em Lisboa, Rua de S. Francisco,
Hotel de Itlia.
O sobrinho de Teotnio Vaz apeava porta da hospedaria, quando o seu
amigo retirava, quarta vez, sem encontr-lo. O poeta pasmou, vendo-o
sozinho, e quase o no conhecia pelas longas barbas que o desfiguravam. @
Isso que pontualidade! exclamou Guilherme, abraando o perplexo
jornalista.

Vens s?!

Com um criado.

A tua famlia?

Famlia!

Sim... tu no s casado?

Credo! Que pergunta queima-roupa! Eu sou l casado, homem? O

meu anjo-da-guarda um perfeito cavalheiro... Salvou-me dessa emboscada...


Ests pasmado! Ser que eu j no sei falar portugus!

Falas corretamente... eu que j no entendo lngua nenhuma viva...

Vamos para cima... Rapaz, recolhe os cavalos. Patro, um bom quarto

com uma boa sala. janto s sete horas da tarde, com este meu amigo, que fica
sendo meu hspede.

No posso... acudiu o poeta.

Porque no podes?

Estou hospedado em casa de um amigo intolerante.

Pois tu tens algum outro amigo? Isso vaidade. algum marido com

reumatismo?... s chamado a neutralizar as impacincias da cnjuge avessa ao


reumatismo matrimonial? Conta l isso, bardo do ptrio Douro...

Ia dizer-te que vens estragado das viagens, mas agora me lembra que

no foste j muito so de c... Isso que saber falar a linguagem picaresca do


cinismo! ... Muito tens que me contar, meu caro Guilherme!... Pela amostra,
vejo que se aproveita muito por l, e no h nada para purificar coraes
como rebatiz-los com a gua lustral do Seria...

Eu falo-te j, meu homem. Deixa-me mudar de fato, e lavar a cara com

estas lmpidas guas da ptria estremecida, e depois l vou soltar a parlenda, e


provar-te, com auxlio de Aristteles, que no h asneira que no tenha um
feliz resultado. Espera a um pouco, e entretanto abre essa mala e tira-me para
fra essa trapalhada. Os meus bas chegam amanh. L que eu trago os

meus ricos apontamentos de viagem, que vem a ser o padro das minhas
glrias literrias. Vou tornar-me um trofu nacional, o mimo da ptria, o
primeiro plstico e esttico do pas. Isso que tu no esperavas, decerto...
Trago o msculo do corao, de vazio que era, cheio de gros de mostarda
que d cem por um...

A do Evangelho?

Tu vers o que ... Ora aqui est uma ceroula sem nastro! Prova-se que

o casamento necessrio para a ceroula. Ainda te no perguntei se s casado...


Em que diabo pensas tu que no me respondes?! Se no me enganam as
cortinas da alcova, ests meditando com uma cara serfica...

Estou recordando os nossos bons tempos...

E verdade, que feito da Ceclia?

Est tima.

Gorda, hem?

E fresca, apesar de trs filhos...

Que se parecem tanto com o pai como contigo, hem?

Ests bonito, Amaral!...

E as filhas do baro da Carvalhosa?

Agora visconde.

Casaram?

No.

Devem estar velhas... E Augusta?

O poeta ergueu-se de um mpeto de clera, e voltando as costas ao


interlocutor foi para a janela que dizia para o Chiado, assobiando por disfarce.

No respondes? disse Guilherme, saindo da alcova, e vindo para o

espelho da antecmara compor serenamente o lao da gravata.

s um cnico! murmurou o poeta, sem encar-lo.

Pois tu que pensas? Vem c: tu queres saber como se fazem os homens

assim? A histria, suposto que compreenda a minha vida nos ltimos seis
anos, muito simples, e diz-se em menos de quinze minutos. Eu tencionava
guard-la para a hora do jantar; mas, se me no ds a honra da convivncia, a
vai a histria. Senta-te: s todo ouvidos: vais ouvir de lngua pecadora o
cntico mais inocente, mais angelical, mais arroubado do corao humano,
como ele devia ser naqueles tempos em que a humanidade se sustentava de
bolota, e bebia as guas lmpidas dos regatos. Vai sendo grande o prefcio...
Agora comeo. Sei que recebeste uma carta minha de Londres, escrita em
Fevereiro de 1847; e outra em que te pedia urna certido de banhos corridos.

A ltima que recebi.

Foi a ltima, no h dvida nenhuma. Depois dessa carta, a no

participar-te o meu casamento com aquela divinal Leonor aqui, Amaral riuse de um modo clebre, e estorcegou o nariz como criana beliscada por
ccegas de lombrigas no devia escrever-te mais... no achas?

No sei porqu!

Por amor-prprio. Tem-se mais vergonha de um amigo, que de um

indiferente, quando se tem de confessar humilhamentos, vexames de vaidade,


que so as afrontas maiores ao homem do meu gnio. A vai o conto. Se bem
me lembro, disse-te eu de Londres... que foi o que eu te disse?

A respeito de Augusta?

No se fala agora em Augusta: isso histria parte. O te que dizia eu

de mim?

De ti? Dizias-me que vivias com o teu tio e a tua prima nos arrebaldes

de Londres, onde no chegavam as perseguies do belga. Dizias que


venceras a resistncia de Leonor, que no era seno um astucioso meio de te
compulsar o corao. Pintavas o que era um grande amor, amor nico, amor
que te endoidecia, amor que te envergonhava de teres crido noutros, que no
eram seno iluses, como Ceclia, Margarida, costureira, etecetera.
Denominavas-te o Ado primitivo, extasiado nas delcias da natureza, como
Buffon o descreve no den. Ficou-me de memria esta nesga de folhetim,
porque me servi dela na primeira ocasio em que me foi preciso escrever de

modo que nem eu nem o leitor nos entendssemos. Dizias, por fim, que
tinhas pena dos que no podiam, como tu, ver to encantador o mundo.
Rematavas a tua carta, modelo de estilo e de enfatuamento, prometendo bater
com a face na sepultura, logo que o prisma de to amadas iluses te casse
partido aos ps. Ora, como te no veio a face partida, de f que o prisma
est inteiro.. .

Ora a est o que uma chalaa fina! atalhou Amaral, contrafazendo

um riso de complacente indiferena, e enchendo de tabaco o pipo do


cachimbo turco.

Tens excelente memria prosseguiu ele, vagarosamente, alternando

as baforadas de fumo com as palavras , e a crtica dos comentrios ,


palavra de honra, excelente! No h dvida que caiu o prisma, quebrou-se,
levou-o o Diabo, encarregado ab aterno de levar deste mundo muitas coisas
boas, no sei porqu, nem para que fim! Altos e imperscrutveis desgnios do
Senhor, que manda moverem-se, esquerda e direita, as legies dos
demnios!... Pois, verdade, meu caro poeta...

O qu?

Tudo o que eu te disse nessa ridcula carta. Sentia-o como to disse.

Todas aquelas expanses eram um xtase de felicidade, uma bravata contra o


infortnio, uma soberba de Lcifer que, depois de despenhado, ainda pensa
que vencer na luta contra Deus. O meu cu deixara-o eu no Candal; era l.

No sei que voz mo dizia no corao, e a cabea, fantasiando asneiras, queria


com o escrnio calar esse anjo bom que me chorava c dentro... Aqui estou eu
a desmandar-me para a poesia da desgraa! Terrvel vezo! Ainda no pude
emancipar-me de todo deste jugo da saudade...

Saudades de quem?

Eu sei c! Saudades de tudo o que passou. Saudades da minha infncia

que estraguei, e da fortuna que repeli de mim, cuspindo-lhe no rosto. Isto so


assomos de febre, poeta. No me estejas a espreitar as lgrimas nos olhos, que
as no vs. Esto secos por um hlito infernal. Se os diques do que est
represo aqui dentro se rompessem, sairia um sangue negro, como o vmito do
envenenado... Ests morto de curiosidade? Tens razo, l vou... Infandum,
poeta, Jubes renovarem dolorem... Fuma este excelente charuto havano. Deumo em Madrid uma mariola, coisa divina, com propenses decididas para o
humano. Vers que excelente charuto... A vai o conto. A minha prima
alcanou do seu pai que deixssemos os arrebaldes de Londres, e nos
recolhssemos Blgica. O meu tio consultou a minha vontade, e eu disse que
no queria a menor violncia feita vontade de Leonor. Fiz-lhe crer que era
amado por ela, e convenci-o de que a mansido era o meio mais seguro de ela
esquecer, se no tivesse j totalmente esquecido, o estudante. O velho no
quis anuir de pronto minha boa-f: por fim cedeu, jurando na minha
esperteza, que ele julgou superior sua desconfiana senil.

Fomos para a Blgica. Tive o gosto de conhecer a minha tia, mulher dos seus
quarenta e quatro anos, ainda fresca, erudita e filsofa, francesa em toda a
extenso da palavra; e, se me no engano, contrarimo-la (seja isto dito em
prova da sua filosofia) com a nossa chegada, porque a virtuosa dona mitigava
o melhor que podia as saudades do meu ditoso tio Teotnio. Era uma mulher
de esprito: est dito tudo.
Minha prima recebia-me na antecmara do seu quarto, em presena da sua
me, tratava-me com certo rebuo, que ela denominava paixo com os seus
mistrios, e nisso, dizia ela, fazia consistir a sua ventura, visto que, por muito
que nos amssemos, o dia do noivado seria o precursor do aborrecimento.
Esta profecia, em boca de menina apaixonada pelo seu futuro noivo, parecerame anomalia! Era saber de mais em coisas que a mulher sem experincia
nunca adivinha... no te parece? Ainda assim, como eu s conhecia vinte
variedades de mulheres, julguei que aquela seria a vinte e uma.
Uma vez, disse-me o meu tio que soubesse de Leonor quando devia realizarse o suspirado casamento. Era doce a mensagem. Respondeu a menina, com o
corao palpitante de amorosas nsias, que deixssemos passar seis meses,
para ser completo o gozo das deliciosas vsperas. Acrescentou que, pela alma,
era j minha esposa; que desse amor se alimentava; que na santa idealizao
dos puros enlevos se embebia o seu esprito; e que a certeza de eu ser o anjo
que ela antevira aguardava ela como remate s suas esperanas de ser toda

minha. Esta toda pareceu-me prosaico de mais, misturado em tantas


palavras difanas e silfidicas. Mas o toute, em francs, no to chato como o
nosso toda. Ora isto aconteceu um ms depois que estvamos em nossa
casa, como o meu tio alegremente dizia.
Queres saber em que eu entretive os seis meses do prazo? De dia, passeava a
cavalo com a minha prima, lia romances, discutia em amor com a minha
futura sogra, e aprendia o alemo com a minha futura mulher. noite ia ao
teatro, umas vezes s, outras com a minha prima e o meu tio. A esposa
carinhosa do bom Teotnio raras vezes nos acompanhava, e, se pensas que
ficava regendo a casa, enganas-te. Parece ser caso averiguado que um fidalgo
pobre lhe vinha fazer a partida do xadrez, nessas noites, em que os fundos do
senhor da casa sofriam xeque e mate, sem que lhe soprassem a dama. Era
uma excelente me, como vers depois, se tiveres pacincia de levar a cabo o
relatrio destas aventuras trapalhadas... Que tal achas o charuto?

timo.

Queres tu que mandemos vir o jantar? Tenho o mais picante dos

apetites.

No: j te disse que no jantava contigo, porque me esperam. Acaba o

conto.

A vou... mas deixa-me pedir conhaque. preciso embriagar a musa

para o grande captulo desta odisseia.

CAPTULO XXIX

Eletrizado o esprito com as primeiras libaes, Guilherme do Amaral


continuou:

Deves saber, amigo meu, que o meu conhaque , como a alma de Santo

Agostinho, o princpio ativo de todas as minhas cogitaes. Nos conflitos


mais apertados desta desastrada vida, h cinco anos, devo a esta prodigiosa
emanao da parra, inventada pelo nosso av No, a minha redeno. A
estatstica dos suicdios prova que os Malefilatres e os Gilberts so em muito
pequeno nmero desde que o conhaque disputa ao Diabo as almas insepultas
da lagoa estgia. Dito isto como prefcio segunda jornada do meu drama,
prossegue a histria, sem interrupo at final.
Se eu te asseverar que nunca antecipei um beijo da minha futura mulher, no
te capacitas. Ris? Pois a verdade, sem ostentao de moral, esta. Um beijo
foi requerimento sempre indeferido. Se quis por violncia extorquir-lhe essa
graa, achava-me enganado. A virgem fugia para o regao materno, purpurina
como uma cereja! Como as mulheres arranjam este pudor de torneira flor do
rosto, isso que eu, palavra de cavalheiro, no sei explicar-te!

Pois o pudor da tua prima no era natural?

Vais ver. Se eu lhe pedia explicao da resistncia, respondia-me,

baixando os olhos com tanto pejo como severidade; que o prazer material de
um beijo era muito inferior ao gozo que se sentia desejando-o. Discorria
muito idealmente acerca deste idealssimo gozo, e acabava por censurar-me a
intil tentativa de beij-la sem que as sensaes corpreas no fossem
legalizadas pela bno sacramental. Eu ouvia isto com ares de idiota, e
perguntava a mim mesmo se eu no era um destes parvos que a natureza
caprichosa inventa de sculo a sculo para recreio da humanidade
apoquentada.
Uma vez, perseguindo-a, apertei-lhe o pulso que me fugia, a menina soltou
um suave grito, e a me saiu-nos de surpresa ao encontro. Interrogando-me,
Leonor respondeu que eu teimava em querer oscul-la. A virtuosa esposa do
meu tio, assumindo a gravidade carrancuda dos quarenta e quatro anos,
intimidou-me para que no mais violentasse o pudor da menina com o desejo
libidinoso de um beijo. Quanto era feio e pecaminoso este acto, disse-o ela,
dando-se como modelo que nem ao seu prprio marido consentia beijos
ociosos. Ao que ela chamava beijos ociosos isso que eu nunca pude atingir.
Se h indecncia no adjetivo, to oculta est que a mais suscetvel organizao
de leitora no pode perder, se um dia te deres, meu caro poeta, ao desfastio de
pores em estampa estas coisas, mngua de melhor assunto.
Nesse dia noite, houve teatro. Fui com a minha prima e o meu tio. Os
culos de teatro tinham ficado em casa por esquecimento. Vim do teatro a

casa, e, quando eu entrava no meu quarto, entrava no quarto da inimiga


fidalga de beijos ociosos o parceiro do xadrez. Estive quase a intervir na
partida; mas, reflexionando, deixei natureza hipcrita o foro das suas
regalias.

Vais-te impacientando com os episdios?... Eu vou depressa ao

desfecho.

No bebas assim conhaque, Amaral... Podes sofrer uma combusto.

Sou a salamandra deste fogo, meu amigo. Se me vires arder, toma as

minhas cinzas na copa do chapu, e espalha-as aos quatro ventos do cu, para
que no se encontrem no vale de Josafat. Adiante.
Expirara o prazo dos seis meses. O meu tio dizia-me que estava tudo
preparado para o casamento: faltavam as escrituras. Encarregou-se de falar
com a sua filha, visto que eu, arrufado desde que a me me repreendera
severamente, no tinha com Leonor seno as conversas de absoluta etiqueta.
Com efeito, o meu tio entrou no quarto da menina, que se achava adoentada
do peito, por causa de um periquito que lhe expirara nos braos. Voltando,
disse-me que Leonor queria, antes de designar o dia, falar a ss comigo alguns
instantes. Entrei: agora escuta l, poeta. A vai textualmente o meu amoroso
colquio com a virgem dos meus sonhos.

Chamei-o, primo disse ela, cansando com adorvel languidez a cada


palavra. Chamei-o para confiar-lhe um segredo.
Diga, prima. H de ouvir-me com bom corao, sim? Pois receia
que eu... Receio que se ofenda, e eu no quero nem por sombras ofendlo.
Fale... H oito meses que nos vimos. Foi um fatal encontro para
ambos. O primo imps despoticamente minha vontade o seu amor, que eu
no podia receber. Quis dissuadi-lo; lembre-se que o repeli com desdns, e
no consegui seno irritar-lhe contra mim a vaidade. Eu amava outro homem;
este homem seguia os meus passos; o primo soube-o, viu-o, desafiou-o e nem
assim desanimou de um propsito, imprprio de um cavalheiro que no tem
necessidade de levar por violncia uma mulher, havendo tantas que
voluntariamente se dariam sua riqueza e s suas qualidades pessoais. A
perseguio continuou fra de Portugal, e eu concebi um plano,
extraordinrio em senhora de educao, mas o nico talvez que poderia
salvar-me da sua tirania, coligada com a vontade indiscreta do meu pai.
violncia opus a mentira. Disse que o amava, para me no terem privada,
como em ferros, de ver o homem que amava verdadeiramente. Menti para me
deixarem ser livre. Logo que o fui, escolhi entre dois abismos o que me
pareceu menos profundo. Se naquele em que ca devo morrer, morro
contente... Compreendeu-me, primo? Sirvo-lhe deste modo?

No a entendo! respondi eu com a testa banhada de um suor frio.


Entende, entende... replicou ela, sorrindo. E quer-me assim?
Quero, quero-a assim! tornei eu, sem bem atinar com o que respondia.
Que diz, primo?! To desmoralizado est! Convm-lhe a mulher que
toda doutro homem?
No sucumbo a essa astcia. No a acredito, Leonor. Desce moralmente
com essa mentira vil. Reabilite-se, dizendo que falso tudo o que disse.
No posso: verdade tudo o que disse. No posso ser sua.
Pode e h de ser minha. Se foi impostora at hoje, antes quero ser seu
algoz que o seu ludbrio.
Sim?... disse ela com o mais cnico dos sorrisos, e a tranquilidade mais
deslavada que tu podes imaginar Sim?... Nesse caso, primo, faamos uma
conveno... Se lhe no convm ser o pai adotivo... de um filho doutro, que
deve nascer daqui a trs meses, espere que ele nasa, e serei sua depois, sem
prejudicar os nossos legtimos filhos.

Homem! Isto no te faz impresso nenhuma?!

Faz... disse o poeta, com a face entre as mos. Faz-me a impresso

do estupor moral. Lembraram-me trs palavras que eu te disse, h cinco anos,


no hotel da Rua de Santo Antnio.

Tambm me lembram:,.. vais ser punido... No foi isto?

Foi... Acaba o quadro depressa. H vergonhas que escandalizam os

ouvidos menos suscetveis... No contes a ningum esse facto... Eu adivinho o


resto.

No adivinhas, que cmico de mais, e no est na razo lgica deste

escndalo trgico. Sa aturdido do quarto de Leonor, sem destino, sem uma


ideia. Encontrei a me na antecmara, fixando-me espavorida. Encarei-a com
desprezo, sem ter a certeza ainda de que era ela a protetora do belga, filho do
seu amante de trinta anos. Ao desprezo com que a olhei, respondeu-me com
revoltante sobrecenho. E digna filha sua, bradei eu rancorosamente. Se
no lhe serve assim, deixe-a, replicou a me de Leonor.
A toada forte destas palavras acudiu o meu tio. Tomei-lhe a mo, conduzi-o
ao quarto da sua filha e, apontando-a, sentada no leito, exclamei: Mulheres
destas em Portugal esto arruadas, e um cavalheiro no anda em risco de
encontr-las onde se procuram mulheres honestas... Se sua filha, d um tiro
num ouvido, e poupe-se ignomnia de lhe dotar o filho com o patrimnio
dos nossos antepassados! Terminou o conto...

bonito. E depois? Viajaste muito, amaste muita mulher, gastaste

muito dinheiro, bebeste muitos tonis de conhaque, e ests aqui hoje rico que
nem um pro, e capaz de experimentar outras vinte e uma variedades de
mulheres...

Nada: estou muito quebrado. H cinco anos tenho gasto mais de

metade do meu patrimnio.

S?! Eu pensei que j deverias trs patrimnios como o teu.

s tolo! Eu, se no fosse ainda rico, tinha passado com armas e

bagagens para o reino escuro. Vendi duas quintas, e antecipei os rendimentos


de cinco anos. O que me fez considerveis estragos nos fundos foi, em
Londres, a filha de um correeiro, que me ficou muito cara, depois de trs
meses de cadeia. Imagina tu que se a pequena no transige por duas mil libras
esterlinas, obrigam-me a casar. A honra das mulheres em Inglaterra negoceiase de dentro da cadeia, e decide-se nos tribunais, quer seja a honra da mulher
de Jorge IV, quer seja a da filha do meu correeiro. Aquilo l muito srio. Ali
h s um homem livre e independente: o quadrilheiro, que te fila pela gola
do colete e te mete numa luta, onde morres se no tiveres dinheiro. Ora aqui
tens a minha vida, afora quatro volumes de travessuras, que trago no ba, e
submeterei tua crtica, se, por grande merc a mim, e servio ptria, os
quiseres enriquecer com os teus comentrios.

Acabaste comicamente, Amaral... interrompeu o poeta, estendendo-

lhe a mo em despedida. Depois dessa narrao vem a propsito uma


outra; mas agora no. Vou jantar. Virei s nove horas. Passas em casa a noite?

Passo; preciso dormir... Que histria trazes?

A de Augusta... queres ouvi-la?

Di-la a em duas palavras. Isso deve ser simples...

No, que ela no se diz em duas palavras. O caso vale tantas como a

tua.

Temos romance?

At logo.

CAPTULO XXX

Pois no passa connosco a noite?

No, senhora baronesa... absolva-me vossa excelncia desta grosseria...

respondeu o poeta.

Compromisso amoroso? replicou a baronesa de Amares.,

E o mais certo... acrescentou o baro, piscando o olho sua mulher.

Bem sabem disse o amigo de Guilherme que eu no tenho

nenhum desses compromissos em Lisboa. As minhas visitas aqui so to


obscuras, na intimidade de uma s famlia, que nem eu sei ainda se por a h
tentaes a compromissos srios.. .

H muito quem valha as quarenta e oito poesias anualmente...

retorquiu com graciosa inteno a baronesa.

Isso era dantes... atalhou o poeta. A imaginao podia ento

alguma coisa, e o despeito podia muito. Hoje, nem imaginao, nem despeito,
minha senhora. Alm dos trinta anos, chora-se, como o rei de Macednia,
porque no h mais mundo a conquistar.

Ainda h de ser novo de corao, e ter ento melhor corao do que o

que teve quando era novo... Gosta do trocadilho?... Ora v, que est
violentado... Quer que a gente o espere?

No, minha senhora, por modo nenhum. Seria vexar-me e oprimir-me

com um obsquio, que eu recebo com menos cerimnia e com mais


familiaridade.

Olhe que eu espero com a ceia... retorquiu o baro.

Mas a senhora baronesa no costuma cear.

No, mas espero, se nos promete vir meia-noite. Mais no espero,

porque temos amanh o baile do visconde da Laje, e preciso dormir c, para


dormir l menos. At logo.
O poeta estava, pouco depois, no Hotel de Itlia, batendo no ombro ao seu
amigo, que adormecera na cadeira almofadada, com o cachimbo turco nos
beios, e a garrafa, quase vazia de conhaque diante de si.

Ol! dormir, ou ests sonmbulo disse o jornalista.

Amaral deu um salto, estremunhado, arregaou as plpebras, e fixou o amigo


com m caradura.

E boa asneira acordar um homem que est sonhando com o fim do

mundo! Fiquei agora compreendendo a dissoluo do universo. Era tudo um


oceano de metais em combusto. A terra entrava como um rio candente e

fumegante no seio do mar; e eu era levado, em cima de um tonel de conhaque,


sobre as guas, como o esprito de Jeov.

Ferebatur super aquas... Isso devia ser bonito, e pena que eu no

esteja de vagar para te ouvir o sonho. Todo o tempo preciso para contar-te
realidades. Prometi-te a histria da costureira...

Oh! Isso uma extraordinria pontualidade!... Vamos histria; mas

no a estendas muito, que eu estou em grave risco de adormecer: quero ver no


que d o sonho.

Eu prometo acordar-te, Guilherme. Os episdios sero rpidos, porque

a biografia de Augusta, do captulo em que a deixaste para diante, uma


sucesso de fenmenos consecutivos, que derivam naturalmente uns dos
outros. Como sabes, a tua oferta dos cem mil reis, dos teus criados e da tua
pitoresca granja do Candal foi desprezada. Este feito nunca te espantou?

Palavra de honra que sim! Ao princpio tomei a carta como um

capricho; depois, lendo a tua ltima carta, entendi que Augusta se declarara
independente para escravizar de todo o seu corao a algum outro admirador
das suas excelentes qualidades.

Viva o cinismo! Isso que pr o dedo na chaga... Vai vendo como se

verificam as tuas lisonjeiras conjeturas.

A costureira, como sabes, foi para a Rua dos Armnios. Vestiu aquele baju e
aquela saia de chita que lhe viste na noite em que ela chorava sobre o cadver
da me. Foi pedir trabalho para no morrer de fome. Recorreu ao dos
suspensrios, apurou diariamente quatro vintns para po e caldo, e assim
viveu algum tempo, sustentando-se honrada na desonra em que a deixaste.

Estou gostando da austeridade da linguagem... atalhou Guilherme.

No perdeste ainda o sestro de pedagogo de romance? Porque no contas a


histria sem moraliz-la?

porque no quero que adormeas. Se te no fao figurar no conto,

perdes o interesse, e ressonas. E preciso abalar-te os nervos com doses


graduadas de estricnina. Ora escuta l, Guilherme. Esse riso descarado no te
vai bem... Rir-te-s no fim.
A costureira, ao cabo de trs meses, estava doente, e no podia trabalhar.
Vendeu a casa, e sustentou-se um ano na cama. Se as vizinhas lhe diziam:
Ainda s nova e bonita, rapariga; no faltam homens que te queiram...
Augusta chorava, indignava-se, repelia de si a corrupo das vizinhas peitadas,
e protestava morrer de misria, sem a ter encontrado na grande desonra, que
est abaixo daquela em que a puseste.
Consumido o produto da casa, Augusta vendeu os mveis, que mal a
poderiam sustentar um ms. E as vizinhas, quando lhos compravam, iam
aproveitando a oportunidade de ensin-la a livrar-se da penria por o mais

fcil dos processos ao alcance de uma rapariga formosa. E, com efeito,


doente, pobremente vestida, Augusta era ainda bela.
A fome chegou por fim, e as tentaes entraram com ela.
A to gentil e espirituosa mulher que ns vimos no Candal, desesperando de
ti, e de si, e de Deus, entregou-se, alheou-se, vendeu-se. O homem que a
comprou conheceu que comprara um mvel, uma coisa insensvel, uma
mulher sem alma para ele, chorando sempre, e sufocando nos soluos o grito
de desespero com que respondia s carcias do novo amante. Ora, uma
mulher assim aborrece, no achas?... O teu sucessor, aborrecido,
proporcionou a um terceiro a conquista da mulher que desdizia da sua
organizao e, segundo ele, tinha coisas que no pareciam de mulher
ordinria; e, com presunes de senhora, no lhe convinha.
Queres saber o que aconteceu? Augusta perdeu a vergonha. Esse grande
esprito, que tu lhe fizeste com o estudo, foi o mesmo que lhe ensinou o
abandono, a desfaatez e a corrupo, que se demorou nela mais do que era
natural. O que susteve nas alturas da honra aquela grande alma foi o instinto.
S, com esse instinto salvador, morreria sem prostituir-se; educada pela
cincia com que a dotaste, devia cair agora ou logo. No certo que o
infortnio, sem a resignao crist, faz do homem um cnico? Porque razo o
infortnio no h de produzir semelhantes efeitos na mulher?!

A temos, pois, Augusta em paralelo com o homem desmembrado da


sociedade, porque a sociedade lhe cuspiu na face; desatado dos vnculos da
honra, porque o amor dessa palavra lhe custou desenganos, vergonhas,
injrias e a fome. No eram sempre assim os homens fatais dos teus
romances? Nesses, a corrupo no sempre justificada por lies acerbas
com que vieram da sociedade? No dizem eles que a sua malvadez uma
desforra? O atraioado no faz de cada inocente um holocausto sua
vingana? E esses tais, pensando que se vingam, no so por fim levados de
mistura com as suas vtimas ltima paragem da infmia?
E o que aconteceu quela bela mulher, que, h seis anos, esporeava um
ginete de raa ao teu lado, enquanto tu, orgulhoso dela, no podias desviar-lhe
das airosas formas os olhos embelezados.
De amante em amante, traindo uns e arruinando outros, ostentava-se cnica e
calando o grito da conscincia com a celeuma das orgias... Por fim achou-se
s... S, no digo bem, achou-se rodeada de tudo que simboliza a torpeza no
seu mais rasteiro estrado. Desceu onde podia descer. Chegando a, pediu uma
enxerga num hospital. A caridade no lha negou. No sei como foram os seus
ltimos dias... Augusta, do anfiteatro anatmico, passou num cesto para o
monturo da santa casa. Acabou o conto, Guilherme do Amaral. Agora...
venha uma gargalhada.

Guilherme estava lvido. Ergueu-se; deu alguns passos no quarto; levou a mo


direita testa, e encostou-a parede como a ampar-la de um esvaimento. O
jornalista, com os olhos de revs, seguia o seu menor movimento, e parecia
contente da sua obra. Acendeu tranquilamente um charuto, e esperou.
Amaral veio sentar-se. Trazia lgrimas.

Sem remdio!... murmurou ele. Porque no valeste a essa infeliz?

S tu podias valer-lhe, Amaral. Quem pode mandar retroceder o raio

que desce? Era uma mulher a abismar-se: no h brao de homem que a


sustenha, se foi brao de homem que a despenhou.

E morreu a desgraada!... disse Amaral, como interrogando-se,

naquela voz, que uma dolorosa abstrao nos afigura no ouvida de estranhos.
E o filho?... O meu filho?... disse ele subitamente ao torpor da
meditao.

Morreu-lhe no ventre...

Vtima daquela infame mulher... Trs vtimas!...

Da tua prima?!

Sim... Como eu era feliz sem o encontro daquele demnio! E deixei-lhe

a vida!... No pensei que tinha de vingar essa desgraada...

So tardias as reflexes, Amaral. Podes ser hoje um santo, que no vales

ao passado da costureira. Di-te o remorso?... uma intermitente de poucas


horas...

No ... No pode ser... O fantasma dessa mulher h de perseguir-me...

Criancice! No h fantasmas, Guilherme. Esse teu susto acho-o nobre,

e estou contente contigo. No ests to desalmado como inculcavas... Isso


agrada a um amigo, como eu fui sempre teu, e hoje mais que nunca devo darte de mim uma boa ideia. Se sofres, prometo distrair-te, e at reabilitar-te o
corao para empresas dignas de uma alma, suscetvel de contradio. Queresme como teu anjo bom?

Quero; mas vem comigo para a provncia. Preciso da solido e de ti.

Vem ajudar-me a criar um outro corao. Se no posso esperar, quero ao


menos esquecer-me... Vamos, meu amigo? Amanh mesmo?

Iremos; mas, por enquanto, no. Tenho urgente preciso de demorar-

me em Lisboa, alguns dias. Amanh tenho um baile a que no posso faltar; e,


como estou resolvido a no deixar-te uma noite s, irs comigo.

No vou.

Vais: de hoje em diante governo-te eu. Hs de ir; se no estiveres bem,

sairemos, mas indispensvel que eu l aparea um momento. Antes?

O que quiseres; mas no me deixes j... muito cedo.

Posso demorar-me at meia-noite.

CAPTULO XXXI

A minha estudiosa leitora j leu o poema de Espronceda, El Diablo Mundo?


de crer que sim, porque a literatura espanhola e a chinesa anda por mo de
todos, e os bons poetas recebem o glorioso complemento da sua imortalidade
em mos de senhoras (quero dizer, reduzidos a oitavo-francs.) Leia, pois, de
novo o canto 11 do El Diablo Mundo, intitulado:

A TERESA
DESCANSA EM PAZ

Ver que o poeta espanhol chora uma mulher que fora

... a un tiempo cristalino rio,


Manantial de purisima limpieza,
Despues torrente de color sombrio,
Y estanque en fine de aguas corrompidas,
Entre ftido fango detenidas.

Esta pobre Teresa, atascada no charco das impurezas,

ya tan jven, y ya tan desgraciada

morreu da queda no abismo que lhe abriram. O homem que a despenhara o


poeta que a chora. O grito do remorso pede, no piedade para o verdugo, mas
d e perdo para a vtima. uma bela poesia, quando outra coisa no seja.
uma elegia mais tocante que o canto final da Traviata. O que lhe falta o
poder de atar e desatar, sancionado no Cu, ao que na terra rimem as culpas
das ovelhas tresmalhadas do rebanho do Senhor. Teresa morrera infamada, e
o cntico plangente do poeta no lhe reabilita a memria.
Guilherme do Amaral sabia de cor esta poesia, uma das suas mais prediletas,
quando o amor da excentricidade o divorciara do vulgarismo dos poetas do
seu tempo.
A morte de Augusta, qual o jornalista lha descrevera, parecia a morte da
Teresa de Espronceda. Amaral achou em si a situao do poeta espanhol, e
pediu alma contristada lembranas da poesia, inspirada por dor semelhante
sua.

E, com efeito, ausente o amigo, Amaral recitou a meia voz, e compungido, as


primeiras oitavas. As lgrimas caram-lhe sobre as mos, onde apoiava a face,
quando recitou com voz convulsa estes versos:

Pobre Teresa! Cuando ya tus ojos


Aridos ni una lgrima brotaban,
Cuando ya su color tus labios rojos
Em crdenos matices cambiaban.
Cuando de tu dolor tristes despojos
La vida y su ilusion te abandonaban
Y consumia lenta calentura
Tu corazon al par de tu amargura:

Si en tu penosa y ultima agonia


Volviste lo pasado el pensamiento,
Si comparaste tua, xistencia un dia
Tu triste soledad 'y tu aislamiento;

Oli! cruel! muito cruel! martirio horrendo!


Espantosa expancion de tu pecado!
Sobre um lecho de espinas maldiciendo
Morir el corazon desesperado!

Chegado penltima oitava, Amaral no tem alma para conceber a transio


da agonia de Espronceda para a negao da piedade, para que o feroz sorriso
de motejo com que fecha o canto. Eis aqui os versos que o terminam:

Gozemos si; la cristalina esfera


Gira bafiada en luz: bella es la vida!
Quiri a parar alcanza la carrera
Del mundo hermoso que al placer convida?
Brilla radiante el sol, la primavera
Los campos pinta en la estacin florida;
Truquese en risa mi dolor profundo...

Que haya un cadver mas, qu importa al mundo!

E o certo que o j morto autor do El Diablo Mundo enxugava nas orgias,


que lhe aligeiravam o curso da vida, as lgrimas vertidas nestes intervalos
lcidos de pesar, e vergonha de si prprio. Esses versos, que so o antema
fulminado contra os costumes, a confisso em alta voz da imoralidade do
sculo, simbolizada no poeta esses versos traduziu-os Guilherme do
Amaral letra, e sentiu-se mais desoprimido, honrando-se de ser imitador nas
amarguras e consolaes de D. Jos de Espronceda. O discpulo tinha muitas
coisas do mestre, menos o talento para legar em escritura aos vindoiros as
suas confisses.
Tudo isto vem a talho para dizer que o nosso heri, uma hora depois da meianoite, abriu a boca, espreguiou-se, estendeu-se o mais comodamente que
pde sobre o leito... de folhelho, e adormeceu.
No sabemos de boa fonte os sonhos que teve: est, porm, averiguado que
no viu o fantasma da costureira, nem incomodou os outros hspedes,
pedindo socorro, durante a noite.
Amanheceu-lhe a aurora do dia seguinte s onze horas e meia. Almoou,
cachimbou, vestiu o seu mais elegante chambre, penteou-se fantasticamente, e
foi a uma janela propcia contemplar as variadas caras das costureiras
francesas, que lhe sorriam com abenoada docilidade, na casa caraira.

Como o poeta lhe arrancara consentimento de se deixar levar a um baile


naquele dia, Amaral no se descuidou em artigo toilette. O alfaiate vizinho
venceu dificuldades para vesti-lo de improviso no ltimo apuro, visto que os
seus bas chegavam tarde.
Ao escurecer foi prevenido por carta do poeta. Deviam estar na sege s nove
horas, o mais tardar. Para Amaral, esta hora era ridiculamente burguesa: ainda
assim, anuiu ao provincianismo do seu amigo.
O jornalista, sem saltar da sege, recebeu o seu amigo, que vinha dando ao
diabo o cabeleireiro, que lhe no compreendera o desalinho byroniano do
penteado.

Gosto de te ver assim voltado para as ninharias da vida... disse

gracejando o poeta. Pelo preocupao que tens na cabea, vejo que o


espectro da costureira no se te agarra aos cabelos.

No falemos nisso... j chorei... muito para um homem da minha

ndole... E quem chorar por mim? Augusta morreu... e eu... vivo? Vivo, sim,
para assistir ao trespasse de todas as minhas esperanas... morrer mil vezes!...
Acabou-se... A existncia assim, o mundo assim, a sociedade isto.
Devoramo-nos uns aos outros. Eu matei-a, e a mim mataram-me. Que queres
tu agora?... De quem o baile? Ainda te no perguntei.

Do visconde de Laje.

No conheo. No meu tempo no havia c esse tortulho.

que rebentou depois.

Onde mora?

Ali... no vs o ptio iluminado? Apearam.

No subimos ainda disse o jornalista.

Porqu?!

Espero uma mulher a quem quero dar o brao.

So nove horas e um quarto. Deve demorar-se cinco minutos. Vamos

fumar.
No ptio estavam grupos de criados com libr, dos da casa, e estranhos. O
peristilo, em arcadas, tinha duas portas laterais da escadaria, que conduziam
ao jardim, iluminado por entre alas de almpadas variegadas, suspensas em
festes. O jornalista tomou o brao de Amaral e conduziu-o a uma dessas
avenidas, ocultando-se dos hspedes por detrs de uma coluna do arco
central.
Passados os cinco minutos, parou uma carruagem.

Ser a da mulher que esperas? perguntou Amaral. Veremos

disse o poeta, apertando-lhe ainda mais o brao.

Ento ficas aqui?! Vai ver.

Espera... E, chamando um dos criados, o jornalista perguntou-lhe:

Quem que chegou?


O senhor baro de Amares. s o amante da baronesa? perguntou Amaral.
Vais ver se ela o merece. Uma senhora saltou de uma cadeirinha de veludo
carmesim ligeiramente para a alcatifa do ptio com um p de fada vestido de
cetim azul. O claro deu-lhe em cheio na face... Guilherme do Amaral
estremeceu como um epiltico no brao do jornalista. Quis maquinalmente
dar um passo frente, e achou-se preso ao brao do amigo, que o arrastava
para trs da coluna.

Nem um passo, nem uma palavra disse o jornalista...

Aquela mulher... exclamou Amaral.

Sim... aquela mulher! Augusta!

E a baronesa de Amares... Augusta! bradou Amaral,

sacudindo-se para fugir ao brao do poeta.

Se ela te v, cravo-te um punhal, Guilherme! No me arrastes contigo,

que me desonras...

Que te desonro!...

Sim...

Mas eu quero v-la na sala... hei de v-la... Quero saber porque

zombaste de mim com a tua novela da costureira morta...

Queres que ela te agradea aquela grandeza que te deve? Nada daquilo

teu. Aquela mulher casada.

Deix-la ser... Hei de falar-lhe...

Nunca, na minha presena...

A baronesa de Amares j estava na sala, rodeada de damas, deslumbradas da


riqueza dos seus brilhantes, e de cavalheiros pasmados do seu proverbial
esprito em Lisboa, quando o jornalista entrava na sege, levando quase a rastos
o seu aturdido amigo, que passara do primeiro estupor da surpresa ao pasmo
do idiota.

Para o Hotel de Itlia bradou o jornalista. j dentro da sege,

exclamou Guilherme:
Diz-me se estou doido! arriscada a resposta disse afavelmente o hspede
da baronesa de Amares. Eu no sei se ests doido nem se no ests.

No gracejes, que me ofendes!... certo que aquela mulher Augusta?

A pergunta de doido: tens boas razes para duvidar da tua sade

intelectual. Pois no a viste? A que vem a pergunta?

Como chegou aquela mulher quela posio?

Isso so contos largos. Hs de ouvi-los com o cachimbo turco nos

beios, enquanto eu fumo um dos deliciosos charutos que te deu a mariola em


Madrid. Em sege de praa no pode conversar-se recreativamente... Tem
pacincia, que eu te recompensarei. A histria da segunda Augusta mais
agradvel que a da primeira. Hei de encantar-te os ouvidos e o corao.

Mas a histria falsa de que serviu?

De graduar a tua sensibilidade, de estudar a vida no corao morto, de

preparar-te uma surpresa, e estudar-te no rosto os efeitos dela. um egosmo


de romancista. Um extremoso amor de psicologia to pouco adiantada; o
zelo do anatmico que lida com cadveres pustulosos para chegar ao
conhecimento da vida. Ora aqui est. Se queres fazer-me um servio, e outro
fisiologia, diz-me agora tu o que sentiste quando Augusta se te figurou ali em
carne e osso, recamada de gemas, de brilhantes, de granadas, e formosa como
tu nunca a viste?

No sei o que senti... Se me deixassem, talvez que... ajoelhasse aos ps

dela...

E o que lhe dirias? Naturalmente, pedias-lhe que deixasse o marido, e

mudasse a sua residncia para o Candal, onde devem estar ainda os vestidos
que lhe deste, menos a arca de pinho com que saiu da tua casa.

So brbaras as tuas ironias!... Parece-me que tenho de restringir de

qualquer modo as liberdades que te d a amizade... Ainda agora me lembro


que me ameaaste com um punhal h pouco.

No era s ameaar-te, era ferir-te, se vences a fora que eu fiz para

segurar-te... Achas que a baronesa de Amares faria de mim um bom conceito,


pondo-lhe diante Guilherme do Amaral? E quem te diz a ti que ela no me
ama ainda?!
E indecente a fatuidade! Pois no! Aquela mulher deve estar morrendo de
saudades pela nobre criatura que a deixou nas melhores circunstncias de
realizar a histria da primeira Augusta!...

Sabes a vida desta mulher?

Perfeitamente... melhor do que a minha...

Achou um marido rico?

Oh!, muito rico! Tu conhece-lo.

Quem ?

No o viste com ela?

No reparei: quem ?

Lembras-te daquele primo...

O fabricante?!

Tal e qual, o fabricante que se desfechou uma clavaria no pescoo em

frente da tua casa no Candal.

E esse homem baro?!

Como todos os bares, desde as unhas dos ps at s pontas dos

cabelos.

Explica-te, homem... como enriqueceu o fabricante?

L vou... A sege parara no Hotel de Itlia. O jornalista mandou esperar

o boleeiro. O dilogo continuou na sala de Guilherme.

Como enriqueceu o fabricante, perguntas tu; o mesmo que perguntar

como enriqueceu Augusta.

Exatamente...

Aqui tens o facto sem redundncias; no posso demorar-me, porque

hei de ir ao baile. A costureira, meu caro Amaral, foi sempre o que eu te disse
que seria, na minha ltima carta: um anjo no sofrimento e na virtude. Eu quis
socorr-la; no aceitou os meus favores. Quem a sustentava era primeiro o seu
trabalho, depois o fabricante. No sei dizer-te o que ela sofreu; mas a tua
imaginao pode muito: calcula o que seria naquela nobre alma um
rompimento instantneo de todos os ligamentos que a prendiam felicidade:
uma paixo imensa premiada com um abandono brutal. Quando os jornais do
Porto disseram que tu casavas na Blgica com a tua prima, diz Augusta que,

lendo esta notcia, sentira em si os paroxismos do teu filho. Foi verdade. A


criana saiu-lhe do seio, como de um tmulo, morta para os braos.
Augusta escondera-se de todos, exceto do seu primo, nos ltimos meses que
precederam este desenlace. Era necessrio esconder o cadver do teu filho.
Francisco abriu uma cova aos ps da cama para sepult-lo, e nessa cova
encontrou cento e cinquenta contos de ris em dinheiro e valores. j vs que o
acaso ou a Providncia (no sei bem quem foi) lhe deu bom preo em troca
do filho. Ests satisfeito com a explicao?

E, depois casou com o primo?

Casou.

Quem te disse a ti isso? Assististe ao desenterro do dinheiro?

No assisti; mas eu te conto. Dois dias depois deste acontecimento,

recebo um bilhete de Augusta, pedindo-me que a procurasse sem demora.


Encontrei-a na cama, em risco de morrer, abrasada em febre. Disse-me que
acabava de ser intimada por um cabo de polcia para responder perante o
administrador do conselho por uma criana que uma denncia dizia ter sido
morta pela sua me. A infeliz, corri as mos erguidas, dizia que a criana
nascera morta, e estava ali sepultada aos ps da sua cama. Implorou a minha
proteo, e autorizou-me a oferecer quanto oiro eu quisesse para que a no
obrigassem a dar conta do seu filho. Tomei como delrio febril esta
prodigalidade de oiro, porque eu no sabia donde viera o oiro costureira. Sa,

prometendo-lhe remediar tudo. Fui roda dos expostos, perguntei por uma
criana que ali entrara duas noites antes. Tinham entrado duas, uma meianoite e outra s duas horas. Como qualquer das duas me servia, e ambas eram
meninos, deram-me ao meu pedido o segundo que entrou. Dei ordens para
que lhe fosse procurada uma ama, fui administrao do concelho, soube a
que a denncia do infanticdio fra dada por uma tal Ana do Moiro, nossa
conhecida. Desmenti-a, apresentando a criana que fra confiada aos meus
cuidados. Cessou a perseguio, e Augusta, abraada a essa criana que quis
ver, prometeu ser a sua me, e lanou-lhe ao pescoo um colar de diamantes.
Espantado de tal presente, perguntei-lhe donde houvera joias to preciosas.
Augusta chamou o seu primo, pediu o seu tesouro, estendeu-o sobre a colcha
da cama, e exclamou: E uma riqueza no roubada... creio que posso chamarlhe minha... o pior que no vejo aqui nada que possa desempenhar-me da
obrigao em que me tem presa! Seja nosso amigo... qualquer que seja o meu
destino. Prove-me que est contente de mim, no se esquecendo nunca da
pobre costureira...
No me lembro j do mais que ela me disse. O que sei que, no corrido
ainda um ms, Augusta estava casada com o seu primo, e eu fra o padrinho
do casamento.
Casados, saram do Porto, aconselhados por mim. Vieram para Lisboa, onde
ningum pergunta quem e donde vem, ao que traz cento e cinquenta contos.
O menino, sempre filho adotivo de Augusta, est no Porto, e brevemente vem

para um colgio de Lisboa. Creio que no tens a puerilidade de indagar o


processo que fez baro o fabricante. O que possa asseverar-te que a fortuna
tem sido doida de amores por este homem. Tem fama de milionrio, e no se
peja de dizer que principiou enchendo canelas num tear de Lordelo, e a
baronesa j disse na presena de no sei quantos titulares que tinha saudades
do tempo em que debruava de carneira as casas dos suspensrios. Se me
perguntas por o procedimento desta senhora, sabers que exemplarssimo.
Desconfio que tem morto o corao; mas a alma imensa, e consome toda a
sua atividade em valer aos infelizes. Eu tenho sido o confidente de herosmos
que morrero com ela e comigo.

Nunca te falou em mim?

Essa pergunta vaidosa. No, nunca me falou de ti.

Nem tu a ela?

Querias que eu lhe fizesse o teu elogio?! Seria engraado! Considera-la

feliz? feliz. No posso acreditar-te. Aquela mulher deve ansiar por uma
alma.

Como a tua, naturalmente... Deixa-me dar a mais santa das

gargalhadas... j nos conhecemos h muito, Amaral... Querias, talvez, por


comiserao, esmolar-lhe com o teu amor a felicidade que lhe falta? No te
aflija esse zelo do bem-estar de Augusta... O teu amor-prprio pode irritar-se;
mas deix-lo: deves acreditar que no influis nada na vida da aquela mulher.

Sabes o que a felicidade Augusta? E o esquecimento. Sabes onde se encontra


o esquecimento? A mitologia diz que no Leres; eu, que no sou pago, digo
que nas mil diverses que oferece o dinheiro. Resumindo, queres saber onde
est a felicidade?

Se quero!...

Est debaixo de uma tbua onde se encontram cento e cinquenta

contos de ris... E adeus. Vou ao baile.

FIM

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