Os Irmãos Karamazov
Os Irmãos Karamazov
Os Irmãos Karamazov
ISSN 1809-2586
maio-agosto de 2011
1-Introduo
alertar o leitor de que na obra de arte a viso poltica aparece de uma maneira ou de
outra.
Essa concepo parece ter validade em Os irmos Karamzov mais que em
qualquer outro romance do escritor russo. Aqui Dostoivski consegue dar o mximo de
independncia a seus personagens. Em cada um deles fala um cidado literrio com
plenos direitos, sem qualquer rano de classe por parte do escritor. Nesse aspecto parece
se encaixar perfeitamente na concepo de Roberto Schwarz sobre a literatura russa do
sculo XIX, quando este afirma que uma das chaves para a sua compreenso a ideia
de que o progresso uma desgraa e o atraso, uma vergonha 1, pois ningum est
isento de crtica na prosa dostoievskiana: tanto as mazelas propriamente russas como as
importadas da Europa ocidental so apresentadas sem contemporizao.
Nesse sentido a afirmao do carter russo ganha contornos de drama no
romance, pois as limitaes impostas pelas condies econmicas da Rssia aparecem
de forma direta ou indireta no discurso e nas atitudes de cada personagem, os quais
revelam, em seu conjunto, as profundas contradies de uma nao, cujo progresso
assumia em diversas dimenses um carter fantasmagrico.
mostra de uma bela maneira como indiretamente uma narrativa pode captar as marcas
de um momento histrico:
Essa bela passagem sintetiza bem duas coisas: a decadncia dos senhores de
terra e o avano do capital. Aps a libertao dos servos, as necessidades de avano
tcnico e a diminuio do valor das terras inviabilizaram seu cultivo a muitos membros
da pequena nobreza proprietria que, endividados, se viram obrigados a vend-las e a
abandonar a antiga atividade, o que significou a runa de famlias h muito tempo
ligadas s atividades do campo.
Com relao ao avano do capital, o sucesso da venda dos Pltnikov d bem o
tom dessa realidade. O contraste com o fracasso das outras vendas revela que o
monoplio j chegava para ficar. Naquele novo estgio, ele j se instalava na provncia.
A capacidade de ampliao dos negcios atravs do investimento na diversificao no
deixava espaos a quem no pudesse se adaptar s novas circunstncias. Assim, o
sucesso dos Pltnikov diretamente proporcional runa dos demais, que vo sendo
engolidos.
Nesse sentido, o fato de o narrador se atribuir certa ignorncia dos fatos no o
impede de se revelar bastante perceptivo aos movimentos de seu tempo e, assim,
acabamos por perceber a intencionalidade do escritor, que nos chama a perceber o
carter velado e frequentemente mais verdadeiro que est por trs da fachada dos
acontecimentos.
articulada, Smierdiakv diz que no lugar do soldado teria negado seu credo para
salvar sua pele. O interessante na passagem no a autoiseno de uma possvel
culpa, visto que provavelmente qualquer um, dadas as circunstncias extremas,
isentaria a si prprio ou aquele que apenas quisesse proteger sua prpria vida. O que
vale aqui a maneira como Smierdiakv articula seu discurso:
Porque s eu dizer aos verdugos: No, eu no sou cristo e amaldio o
meu verdadeiro Deus, que imediatamente serei anatemizado pelo supremo
tribunal divino e totalmente excomungado pela santa Igreja como se eu fosse
um pago, e isso no mesmo instante no assim que eu acabar de
pronunciar, mas assim que eu pensar em pronunciar de maneira que no se
passar um quarto de segundo e eu j estarei excomungado. assim ou no
Grigori Vasslievitch? (DOSTOIVSKI, 2008, p.189).
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inutilidade. Nesse sentido, podemos dizer que a primeira crise da razo de Ivan (ou, ao
menos, sensao dela) na narrativa.
Fidor Pvlovitch percebe que h um interesse do filho bastardo por Ivan. Este,
por sua vez, recusa o outro, talvez j com base em sua intuio. No desencontro das
personalidades de Ivan e Smierdiakv, Dostoivski capta bem o momento histrico,
mostrando como o esprito revolucionrio ainda no est maduro na Rssia. Na
conversa entre o pai e Ivan, aps a sada de Smierdiakv, a concluso que Ivan tira do
irmo , em ltima instncia, um balano da situao do pas:
- ...tu te tornaste uma curiosidade para ele [Smierdiakv]: o que tu fizeste
para anim-lo tanto? acrescentou, virando-se para Ivan Fidorovitch.
- Absolutamente nada respondeu este -, resolveu me estimar; um lacaio e
grosseiro. carne de vanguarda, alis, para quando chegar a hora.
- De vanguarda?
- Haver outros melhores, mas haver tambm iguais a ele. Primeiro haver
os iguais a ele, depois viro os melhores.
- E quando que vai chegar a hora?
- A acha vai pegar fogo, mas talvez nem chegue a consumir-se. Por
enquanto, o povo no gosta l muito desses borra-panelas. (DOSTOIVSKI,
2008, p.194)
Vemos que Smierdiakv percebe sua ligao com Ivan, ainda que de forma
errnea, pois acredita que h um trao de verdadeira intelectualidade que os une. Ivan,
por sua vez (como podemos depreender da passagem), no percebe nada que os
aproxime devido sua posio de classe.
Mais frente, o desenrolar dos fatos se encarregar de mostrar a Ivan que entre
ele e o irmo bastardo h realmente uma ligao, s que em nvel inconsciente. Isso
resolvido formalmente pelo escritor numa srie de dilogos entre os dois, os quais
tomaro espao gradativamente maior na narrativa e revelaro a duplicidade do carter
de Ivan rapidamente ao leitor e s num ltimo momento ao prprio Ivan.
No momento em que Ivan decide partir em definitivo para Moscou, temos o
primeiro dos dilogos, j bastante esclarecedor para o leitor. Aps Smierdiakv explicar
detalhadamente a dificuldade financeira pela qual passa Dmitri e mostrar que
Grchenka, mulher inteligente e vida por dinheiro, iria certamente preferir o pai ao
irmo p-rapado (p.377), Ivan inicialmente se assusta com a ideia de que Dmitri possa
atentar contra o pai, mas no chega a fixar-se nela. Tanto que a ideia de Smierdiakv de
que algo ocorreria na ausncia de Ivan, no impede que este mantenha a deciso de
viajar:
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... ele sabia desse pacote s de ouvir dizer, nunca o havia visto
pessoalmente, e se o tirasse de debaixo do colcho, por exemplo, ele o
deslacraria depressa, ali mesmo, para conferir: o dinheiro estaria realmente
ali? E largaria o pacote ali mesmo, j sem tempo de julgar que depois disso
ele serviria de prova contra ele, porque um ladro novato, que antes nunca
havia roubado nada, porque um nobre de bero, e se agora tivesse
resolvido roubar, seria justamente como se no estivesse roubando, mas
apenas pegando de volta o que lhe pertencia, pois havia anunciado para toda
a cidade e at se gabara de antemo e de viva voz, diante de todo mundo,
que iria casa de Fidor Pvlovitch e lhe tomaria o que seu. (ibidem,
p.815)
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Em relao aos outros meninos da escola, um pouco mais jovens que ele, Klia
mantm um ar de superioridade, como se tivesse maior experincia de vida que eles.
Seu racionalismo importado vinha em parte de leituras que fizera de livros deixados
pelo seu falecido pai e, por essa razo, critica nos meninos e em sua prpria me o que
considera sentimentalismo exagerado (p.684). Contudo, no se trata de um menino de
m ndole, mas apenas de algum que precisa ter seu potencial redirecionado para uma
atitude mais equilibrada.
Numa conversa com Smrov (um dos garotos da turma) enquanto vo casa de
Ilicha (outro dos meninos), que est doente, vemos esse conflito na personalidade de
Klia. Tendo discutido com Ilicha na escola e maltratado seu cachorro, que fugira,
Klia decide visit-lo em casa, levando um cachorro semelhante, como substituto do
animal desaparecido:
- Mas que raio de sentimentalismo esse em que vocs todos caram? A
turma inteira de vocs vai l?
- No so todos, so uns dez da nossa turma que vo sempre l, todo dia.
Isso no tem importncia.
-Em tudo me surpreende o papel de Alieksi Karamzov: amanh ou depois
de amanh o irmo dele vai ser julgado por aquele crime, mas ele fica
gastando tanto tempo em sentimentalismo exagerado com garotos!
- A no existe nenhum sentimentalismo exagerado. Agora tu mesmo ests
indo fazer as pazes com Ilicha.
- As pazes? Expresso ridcula. Alis, no permito que ningum analise os
meus atos. (DOSTOIVSKI, 2008, p.684)
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Veremos atitude semelhante mais frente quando eles cruzarem com o mujique
Matvii, com quem Klia ir travar um breve dilogo. Aps a conversa ento se dirigir
novamente a Smrov com a segurana de quem julga conhecer bem as classes baixas:
Ele um bom mujique falou Klia para Smrov. Gosto de conversar com o povo e
estou sempre pronto a ser justo com ele (p.686).
Como vemos, o discurso de Klia revestido de um autoritarismo prprio de um
socialismo duro, de cima para baixo, que prev um controle sobre as classes
socialmente inferiorizadas, s quais caberia apenas a obedincia s regras dos lderes
intelectualizados, responsveis pela conduo dos caminhos polticos.
Ao ouvir as sbias palavras de Alicha, entretanto, Klia atingir o equilbrio.
Voltar a ter atitudes prprias sua idade e se deixar emocionar como os demais
meninos ao ver o pobre Ilicha sorrindo pela ltima vez com a visita da turma.
Alicha ser o responsvel no s pelo incio da reeducao poltica de Klia,
como tambm por deixar o germe do amor no corao dos demais garotos. Seu
socialismo de base crist a forma poltica pela qual o prprio Dostoivski acreditava
que a Rssia deveria se pautar. No toa que cabe a Alicha o discurso final, aps a
morte de Ilicha, no qual rene todos os meninos. Ao falar da incerteza do futuro,
lembra que certos valores e sentimentos no devero ser esquecidos:
... em primeiro lugar haveremos de nos lembrar dele [Ilicha] por toda a
nossa vida. E ainda que venhamos a nos dedicar aos mais importantes
assuntos, a conquistar honrarias ou a cair na maior desgraa apesar de tudo
nunca vos esqueais como certa vez nos sentimos bem aqui, todos
comungando, unidos por aquele sentimento to bom e bonito, que durante
aquele momento de nosso amor pelo infeliz menino nos fez, talvez,
melhores do que em realidade somos...Sabeis que no h nada mais elevado,
nem mais forte, nem mais saudvel, nem doravante mais til para a vida que
uma boa lembrana, sobretudo aquela trazida ainda da infncia, da casa
paterna. (DOSTOIVSKI, 2008, p.996)
sejam entendidas plenamente ali naquele momento. E natural que fosse assim, pois,
pensando em termos histricos, aquela gerao ainda no estava pronta para a
revoluo, o que Dostoivski sabia muito bem.
Assim sendo, num sentido benjaminiano, podemos dizer que o escritor deixava
por meio do personagem uma tese sobre a histria, pois a lembrana, trazida como
elemento que ilumina o presente, serviria como fator estimulante oposio aos
desmandos do regime czarista, comportando um sentido teolgico-poltico.
Vemos ento que os personagens aqui analisados se apresentam, de maneira
complementar ou antagnica, como meios de compreenso mtua de suas
personalidades, que s podem ser reveladas de maneira plena na exposio de seus
pontos de vista quando estes so colocados em confronto dialgico.
3- Concluso
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