Libâneo Diretrizes Curriculares Da Pedagogia
Libâneo Diretrizes Curriculares Da Pedagogia
Libâneo Diretrizes Curriculares Da Pedagogia
ANA VITAL
Consideraes iniciais
H uma racionalidade no mbito das instituies sociais e da legislao que
consiste em dar forma quilo que vai se instituindo na prtica social de forma
assistemtica e espontnea. Leis e dispositivos normativos vo sendo exigidos para
regular a variedade de solues dadas a demandas e dilemas da prtica social, atender
a necessidade de se estabelecer normas comuns ou adequar o funcionamento das
instituies a mudanas que vo ocorrendo em vrias esferas da sociedade. Por outro
lado, freqente ocorrer a autonomizao do institucional e do legal quando se
sobrepem aos ditames da realidade, assim como pode surgir uma legislao com baixo
grau de generalizao a setores da realidade quando se curva, demasiadamente, a
interesses polticos, tericos, corporativos, etc., dentro de um campo cientfico e
profissional.
A legislao educacional referente ao sistema de formao de educadores, no
Brasil, desde os anos 1980, tem padecido dessas limitaes, alm da falta de coerncia e
sistematicidade, em parte devido a diferentes concepes de formao, em parte a certo
distanciamento das necessidades e demandas da realidade escolar. A Resoluo do CNE
sobre as diretrizes curriculares do curso de Pedagogia, recentemente aprovada, mais
um acrscimo a esse distanciamento entre a lei e a realidade e desorganizao legal,
mantendo inseguros educadores e alunos de diversas instituies formadoras, (e alunos)
em relao a modelos de formao, ao perfil profissional, a formatos curriculares e a
modalidades de exerccio profissional.
Visando a anlise dessas questes, sero abordados, a seguir, os seguintes
pontos: 1) a necessidade social da formao de qualidade de educadores e o lugar da
Pedagogia; 2) o contedo da Resoluo do CNE e suas insuficincias e limites; 3) a
intencionalidade da Resoluo, antecedentes histricos e ideolgicos e conseqncias
pedaggicas, curriculares e instituies; 4) posies em favor da cincia pedaggica e
formao profissional voltado para uma viso ao mesmo tempo mais global e mais
diversificada do mundo, da cultura, dos problemas humanos.
Antes de tecer a crtica aos dispositivos da Resoluo, fao um resumo das
minhas posies sobre a Pedagogia e a formao profissional no campo educacional.
O pedagogo espanhol Quintanas Cabanas escreve que a Pedagogia a cincia da
educao em geral, ela apresenta as linhas diretrizes a que deve submeter-se a atividade
educativa, ou seja, os fundamentos e fins da educao, o sujeito da educao, o
educador e todos os tipos e modalidades de educao. (1995). Tambm o pedagogo
francs Gaston Mialaret traz uma definio bastante esclarecedora:
A Pedagogia uma reflexo sobre as finalidades da educao e uma anlise
objetiva de suas condies de existncia e de funcionamento. Ela est em
relao direta com a prtica educativa que constitui seu campo de reflexo e
anlise, sem, todavia, confundir-se com ela (Mialaret, 1991).
Todo trabalho docente trabalho pedaggico, mas nem todo trabalho pedaggico
trabalho docente. A docncia uma modalidade de atividade pedaggica, de modo que
o fundamento, o suporte, a base, da docncia a formao pedaggica, no o inverso.
Ou seja, a abrangncia da Pedagogia maior do que a da docncia. Um professor um
pedagogo, mas nem todo pedagogo precisa ser professor.
d) Resulta dessas posies, uma concluso muito clara: Se h uma imensa
variedade de prticas educativas na sociedade, haver tambm uma diversidade de
Pedagogias, e uma diversidade de pedagogos. O que significa dizer que so pedagogos
todas as pessoas que lidam com algum tipo de prtica educativa relacionada com o
mundo dos saberes e modos de ao.
e) A formao profissional do pedagogo pode, pois, desdobrar-se em mltiplas
especializaes profissionais, uma delas a docncia, mas seu objetivo especfico no
somente a docncia. A formao de educadores extrapola o mbito escolar formal,
abrangendo tambm esferas mais amplas da educao no-formal e formal.
Essas afirmaes levam, como se pode deduzir, a recusar inteiramente os termos
da Resoluo do CNE. A Resoluo do CNE dispe em seus artigos 2 e 4 que o curso
de Pedagogia um curso de formao inicial de professores para exercer funes de
magistrio. Portanto, pedagogo o profissional que ensina na educao infantil e nos
anos iniciais do ensino fundamental. Alm disso, dispe que todo profissional que atua
na gesto e organizao de sistemas de ensino, na coordenao, na elaborao e
execuo de projetos, na avaliao de sistemas, na pesquisa e difuso cientfica, ,
tambm, professor. Entendo, primeiramente, que, por razes lgico-conceituais, o curso
de Pedagogia pode incluir, mas no reduzir-se a um curso de Formao de professores
de Educao Infantil e Anos iniciais do ensino fundamental. Segundo, porque no tem
sustentao terica afirmar que a base da formao do pedagogo a docncia.
simplesmente absurdo dizer que um coordenador pedaggico exerce nessa funo o
magistrio; que o planejador da educao exerce magistrio; que o especialista em
avaliao est exercendo o magistrio, que o pesquisador exerce o magistrio. Podemos
dizer que esses profissionais so pedagogos, mas docentes no. Resulta em
empobrecimento do campo cientifico e profissional da Pedagogia atribuir a
denominao pedagogo apenas aos professores que exercem o magistrio na Educao
Infantil e nos Anos Iniciais do ensino fundamental.
2. O contedo da Resoluo do CNE: insuficincias e limites.
O projeto de Resoluo aprovado pelo CNE tem como objetivo instituir as
Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Graduao em Pedagogia. Farei
uma anlise critica da Resoluo considerando a concepo de Pedagogia e de docncia,
as modalidades de formao e o perfil do profissional a que chama de pedagogo.
A insuficincia mais evidente refere-se falta de uma conceituao clara de
Pedagogia. O texto estabelece a que se destina o curso, as modalidades de formao, as
competncias do egresso, mas no explicita a natureza e o objeto do campo do
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em nosso pas perduram ainda hoje, com conseqncias para a concepo de escola, de
ensino, de gesto escolar, de formao profissional.
As explicaes desta polarizao so bastante plausveis. Entre o final da dcada
de 1970 e incio da dcada de 1980 ocorre um perodo de crise do regime militar,
forando certa liberalizao. O arrefecimento do controle poltico, da censura, junto
com resistncias dos setores de esquerda organizados, favoreceu a produo de
pesquisas e publicaes no campo da educao contra prticas autoritrias e ideolgicas
no regime militar. Foi nesse contexto histrico que se realizou, em 1980, a I CBE
Conferncia Brasileira de Educao. Uma das entidades que se fez presente nessa
Conferncia foi o Comit Pr-Participao na Formao do Educador. O que movia a
atuao desse Comit era as crticas legislao corrente no curso de Pedagogia, toda
ela ligada aos pareceres e resolues produzidos por Valnir Chagas ao longo das
dcadas de 1960 e 70. Essa legislao era denunciada como tecnicista, destinada a
consolidar a educao tecnicista baseada na racionalidade tcnica, na busca de
eficincia e produtividade, contra uma educao critica e transformadora. Havia um
alvo paralelo das crticas, a Lei 5.540/68, produzida pelo regime militar, que regulava
todo o ensino superior na perspectiva tecnicista e do qual resultou a Res. 2/69 do CFE
de regulamentao do curso de graduao em Pedagogia. No dizer de Silva (1999), com
a Lei da Reforma Universitria a tradio liberal de nossa universidade fica
interrompida e nasce o que alguns crticos passaram a chamar de universidade
tecnocrtica, ainda que mesclada com nuanas do pensamento liberal.
O que desejo acentuar em relao ao movimento pela reformulao dos cursos
de formao de educador iniciado por volta dos anos 1980, que por detrs desses fatos
havia um forte peso da discusso poltica e ideolgica no meio educacional. No foi
casual que a base de sustentao terica das crticas era o marxismo, em alta no meio
educacional poca, e especialmente, a tese da diviso social do trabalho na sociedade
capitalista e sua reproduo na escola, seja em relao aos objetivos de formao, seja
na forma de diviso tcnica do trabalho expressa, principalmente, no trabalho do
pedagogo especialista e do professor. J tratei desse assunto em outro texto, vou aqui
apenas resumir o argumento principal. (Libneo, 2005)
Segundo esse posicionamento, o que caracteriza a sociedade capitalista a
diviso social do trabalho em que os lugares na produo so ocupados por duas classes
sociais antagnicas, uma que se ocupa do trabalho intelectual, outra do trabalho manual,
uma classe social que pensa, outra que faz o trabalho fsico. Resulta da a ciso entre o
trabalhador e os meios ou instrumentos de trabalho, em que esses meios so providos
pelos gestores do processo de produo. Essa diviso social do trabalho, expresso das
relaes capitalistas de produo, e que se manifesta na organizao do processo de
trabalho, se reproduz em todas as instncias da sociedade, inclusive nas escolas, nas
quais haveria dois segmentos de trabalhadores opostos entre si, os especialistas (diretor,
coordenador pedaggico) e os professores. Ou seja, tal como na fbrica, tambm na
escola ocorre a diviso tcnica do trabalho, levando fragmentao do trabalho
pedaggico, isto , dividindo as tarefas escolares entre os que pensam e o que fazem,
entre os que controlam e os que executam, instaurando a desigualdade na escola e
promovendo a desqualificao do trabalho dos professores. E como se elimina essa
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para ajudar a professora a melhorar seu trabalho, repercutindo assim na ampliao das
chances de incluso dos alunos?
As consideraes que acabo de expor invalidam afirmaes de documentos da
ANFOPE segundo as quais, ao valorizar a docncia, se pe o foco no processo de
ensino e aprendizagem. Na verdade, a viso sociologizada do discurso pedaggico est
voltada muito mais para a normatizao das formas de gesto, das relaes de trabalho e
das relaes de poder do que para o trabalho pedaggico e tcnico na sala de aula. Ao
dizer isso, apenas realo que se trata de um posicionamento ideolgico at certo ponto
legtimo, de conceber a escola como um lugar onde interagem grupos sociais cuja
dinmica est impregnada de relaes de poder, mas que omite a natureza e a funo
peculiar das relaes de ensino, dissolvendo o pedaggico no sociolgico, caindo no
reducionismo sociolgico.
O que ocorre que estamos, de fato, frente a duas concepes de escola j
constatadas em outros pases. Forquin (1993, p.165-167) identifica no pensamento
pedaggico contemporneo, com muita pertinncia, duas leituras inconciliveis do
fenmeno educativo: uma, a abordagem interna da intencionalidade educativa prtica
em situaes especficas de ensino; outra, a abordagem analtica externa que se volta
para a anlise de prticas e de instituies educativas por meio da busca de relaes
causais e determinismos provenientes dos contextos mais amplos da ao educativa.
Escreve esse autor:
A razo sociolgica est inteiramente voltada para a descrio, a explicao, a
objetivao dos fenmenos. O determinismo sua fora heurstica, o
relativismo sua tentao natural, o cinismo terico (...) sua atitude. Ao
contrrio, a razo pedaggica essencialmente normativa e prescritiva, sua
tentao natural o universalismo, (...) sua postulao normal uma certa
espcie de idealismo prtico. por isso que a colaborao entre sociologia e
Pedagogia objeto de um contencioso perptuo e o teatro de um perptuo malentendido (p.166).
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