Economia e Cultura: Tropicalismo, Indústria Cultural e o Desenvolvimentismo Brasileiro
Economia e Cultura: Tropicalismo, Indústria Cultural e o Desenvolvimentismo Brasileiro
Economia e Cultura: Tropicalismo, Indústria Cultural e o Desenvolvimentismo Brasileiro
INSTITUTO DE ECONOMIA
MONOGRAFIA DE BACHARELADO
Economia e Cultura:
Tropicalismo, Indstria Cultural e o
Desenvolvimentismo Brasileiro
AGOSTO 2014
Economia e Cultura:
Tropicalismo, Indstria Cultural e o
Desenvolvimentismo Brasileiro
_________________________________________
AGOSTO 2014
Retocai o cu de anil
Bandeirolas no cordo
Grande festa em toda a nao.
Despertar em toda a nao
O avano industrial
Vem trazer nossa redeno
Pois j temos o sorriso engarrafado
J vem pronto e tabelado
somente requentar
E usar,
somente requentar
E usar,
Porque made, made, made, made in Brazil
Porque made, made, made, made in Brazil
(Parque Industrial, Tom Z)
AGRADECIMENTOS
Gostaria primeiramente de agradecer meu pai e minha me que foram pessoas
indispensveis em todo meu processo de formao, do jardim de infncia ao presente
encerramento de minha graduao em cincias econmicas. No poderia deixar de me
lembrar do meu av Archimedes Gerumaglia (in memorian) por todo carinho, incentivo e
fora em grande parte desse processo. Toda minha famlia, mais ou menos envolvida,
sedimentou as bases de todo esse percurso.
Agradeo tambm minha orientadora Maria Mello de Malta por me abrir as portas
para um novo olhar de economista ao me apresentar o Laboratrio de Estudos Marxistas
(LEMA IE/UFRJ) e sua equipe. O conhecimento e as trocas que me foram proporcionadas
nesse espao na maior parte da minha graduao simbolizou verdadeira catarse diante da
mesquinhez com que tratada uma cincia social bsica - como a economia mesmo em um
espao pblico de altssima qualidade como o Instituto de Economia da UFRJ. Estudar a
economia com base na histria do pensamento dos autores que sobre ela refletem e seu
contexto histrico material foi uma linha libertadora em meio a tantas curvas IS-LM,
produtividades marginais de capital e trabalho e o to clamado pleno emprego isso sem falar
da mo invisvel smithiana que resolveria grande parte de nossos problemas (nem no longo
prazo).
A partir do perodo em que me mudei para o Rio de Janeiro aps ser aprovado no
vestibular da UFRJ s experincias foram muitas e fico contente em agradecer a todos
aqueles que, ao longo desses anos, tive o prazer de conhecer mesmo que os nomes no
caibam. Pelos anos de IE, agradeo em especial os amigos Renato Brito Gomes, Victor
Guedes, Vincius Cunha Ferreira que me acompanharam e me acompanham desde o incio do
curso. Aos demais que tive a oportunidade de conhecer em viagens em especial aquela que
durou umas dezenas de horas do Rio a Joo Pessoa -, no LEMA e nos espaos comuns da
universidade. Celso(v), Elis de Aquino, Renata Mello, Carla Curty, Larissa Mazolli, Camille
Periss, Mariana Resstom so os nomes que me vm imediatamente cabea. Ao longo
desses anos no Instituto de Economia fui feliz em ver o desdobrar, ainda que paulatino, de um
ambiente acadmico um tanto elitista, misgino e heteronormativo o que ficava
imediatamente claro no carter opressor dos trotes em um ambiente mais acolhedor com um
CASA(Centro Acadmico Stuart Angel) bastante preocupado em acolhimento estudantil no
RESUMO
O presente trabalho tem como propsito relacionar o objeto da cultura com a anlise
econmica a partir da metodologia do materialismo histrico marxista e do conceito de
indstria cultural de Adorno e Horkheimer. Adoto como recorte a movimentao cultural
tropicalista na MPB e o padro de desenvolvimento econmico brasileiro com base, a priori ,
na substituio de importaes de bens de consumo durveis: de JK ao milagre econmico .
Tendo em vista o processo de industrializao como elemento chave no debate do
desenvolvimentismo no Brasil, considero o campo da cultura, no bojo de uma mesma
economia burguesa, parte integrante desse processo. Assim, no primeiro captulo, a
metodologia terica de Marx e o pensamento da Escola de Frankfurt so apresentados. No
captulo dois, trabalho o percurso de desenvolvimento da economia brasileira a partir de JK e
o debate terico a respeito do carter emancipatrio ou dependente da industrializao
brasileira no bojo da economia internacional. Em seguida, discuto a partir da viso de Roberto
Schwarz, Carlos Nelson Coutinho, Helosa Buarque de Hollanda e Marcos Gonalves, o
contedo e o posicionamento poltico da Tropiclia no esteio da indstria cultural no Brasil.
Por fim, ressaltarei o elemento contraditrio do Tropicalismo em comum com o padro de
acumulao da economia brasileira.
Palavras-chaves:
LISTA DE TABELAS
SUMRIO
INTRODUO ...............................................................................................................5
I: Nota de esclarecimento ao leitor ....................................................................................5
II: Economia e cultura: a exploso tropicalista e o modelo de desenvolvimento brasileiro
...........................................................................................................................................6
Bibliografia .....................................................................................................................60
INTRODUO
I Nota de esclarecimento ao leitor
A trajetria do presente trabalho se d paralelamente s minhas atividades no
Laboratrio de Estudos Marxistas (LEMA) do Instituto de Economia da UFRJ do qual fui
bolsista no perodo entre agosto de 2010 e agosto de 2012 sob orientao da Prof. Dr Maria
Mello de Malta. A minha participao nas atividades acadmicas do LEMA foi de
fundamental importncia para a compreenso da economia como uma cincia humana ou, em
outros termos, uma cincia social bsica. Reconheo hoje que meu interesse pelo objeto de
estudo entre economia e cultura foi despertado num primeiro momento na disciplina de
Histria do Pensamento Econmico Brasileiro (HPEB) - sob coordenao de Maria Malta e
ministrado pelo corpo de pesquisadores do LEMA, em 2010 - em que desenvolvi um trabalho
de relao da msica Alegria, Alegria de Caetano Veloso com seu contexto histrico
material. Assim, pude ver que nesses trabalhos culturais de relao entre msicas de artistas
brasileiros como Caetano, Chico Buarque, Gilberto Gil, Z Keti, Raul Seixas e os Mutantes;
com o recorte histrico que estudvamos os anos do desenvolvimentismo o objeto da
economia estava para alm dos livros de clculo e dos manuais norte-americanos de macro e
microeconomia. Dois anos depois, na disciplina de Economia e Filosofia: A ordem do
mercado ministrada pela Prof. ngela Ganem me aproximei do conceito de indstria
cultural de Adorno e Horkheimer. Para o trabalho de concluso de curso, elaborei o artigo Um
Passeio entre a Vanguarda e a Indstria Cultural: a propsito da Tropiclia1 publicado em
agosto de 2013 - em que pude iniciar meus estudos sobre a Tropiclia e suas relaes com as
bases materiais.
Em sntese, todo esse trabalho no seria possvel se eu no tivesse um contato mais
profundo com o pensamento de Karl Marx e assim enxergar a possibilidade de relacionar o
campo cultural o produto cultural (na estrutura) e seu contedo ideolgico (superestrutura) com a ordem econmica. Este trabalho est sob co-orientao do Prof. Bruno Borja que, a
partir da obra de Celso Furtado, desenvolve com maior densidade o estudo da dimenso
1
ZINCONE, Rafael.. Um passeio entre a vanguarda e a Indstria Cultural: a propsito da Tropiclia. In:
Revista
Wolfius,
agosto
de
2013.
Rio
de
Janeiro.
Disponvel
para
acesso
em:
http://www.revistawolfius.com.br/index.php/Wolfius/article/view/35/50 acessado em 18 de junho de 2014 s
17:04.
O Tropicalismo alcanou maior pblico na msica popular quando comparado s manifestaes presentes no
campo do teatro, das artes plsticas e do cinema. Cf. COELHO, F. Nota Editorial. In: COHN, S. & COELHO, F.
(Org.) Encontros Tropiclia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
Esse trabalho est organizado por uma introduo, trs captulos e a concluso. O
primeiro captulo expe a metodologia terica em que me baseio: o materialismo histrico
marxista e o conceito de indstria cultural apresentado por Adorno e Horkheimer. No segundo
captulo, apresento o percurso da economia brasileira a partir dos anos 1950 at a passagem
dos anos 1960 para 1970. Discuto, com base no pensamento de economistas e socilogos
brasileiros, o modelo de desenvolvimento adotado pela ditadura civil-militar. Na terceira
seo, analiso o objeto do tropicalismo a partir desse mesmo recorte temporal e discuto com
trs diferentes vises: primeiramente a de Roberto Schwarz, em seguida de Helosa Buarque
de Hollanda e Marcos Gonalves e, por fim, a de Carlos Nelson Coutinho. Alm desses
autores, compartilho das anlises estticas e lingusticas de Celso Favaretto, os dados da
indstria fonogrfica brasileira apresentados no trabalho de Eduardo Vicente e, por fim,
algumas contribuies dos prprios personagens do movimentao Tropiclia, em especial:
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Glauber Rocha e Hlio Oiticica. Na concluso,
apresento a sntese dessa discusso de acordo com as questes aqui propostas.
_CAPTULO 1_
ECONOMIA E CULTURA:
QUESTO DE MTODO
Denominao comum empregada aos pensadores do Instituto de Pesquisa Social (Institut fr Sozialforschung)
fundado por Carl Grnberg em 1923 como um anexo da Universidade de Frankfurt.
5
Os clssicos da Economia Poltica no concebiam as leis econmicas como histricas e sociais mas sim como
naturais e a-histricas.
6
Para Adam Smith, a ordem social estaria no livre mercado e no no estabelecimento do Contrato Social , seja o
de Hobbes ou Locke.
10
Para Ricardo, os salrios tendem a gravitar em torno do valor necessrio para a subsistncia. Assim, medida
que se custa mais caro produzir os alimentos para o consumo dos trabalhadores, o salrio de subsistncia se
elevar, pressionando os lucros do capital para baixo. A forma como o produto agregado se distribui entre
salrios, lucros e renda da terra no interfere na determinao do valor ou do preo desse produto, por isso, o
aumento dos salrios no pode ser repassado ao preo. Mesmo assim, os lucros tendem a cair, porque so
pressionados pelos salrios, mesmo que estes girem em torno do valor mnimo para a subsistncia. A renda da
terra, por sua vez, tende a aumentar progressivamente nas terras mais frteis, medida que terras menos frteis
so incorporadas ao cultivo. A renda proporcional produtividade da terra. Segundo Ricardo, taxas de lucros
cada vez menores desestimulariam o prosseguimento da acumulao de capital. Portanto, para solucionar esse
problema, ele defendia a reduo dos salrios de subsistncia com a finalidade de fazer refluir o cultivo de terras
menos frteis. Com isso, ele tentava revogar a lei dos cereais, defendendo o livre comrcio.
8
Diferentemente da interao sujeito-natureza de outros animais cuja produo no vai alm do que necessitam
imediatamente para si e para suas proles. Neste caso, trata-se tambm de um processo inconsciente.
9
Marx, [1859] 2009.
11
(MARX, [1859] 2008). Com efeito, as leis econmicas do capitalismo constituem o ncleo
duro de sua anlise terica.
Florestan sintetiza sua Introduo Contribuio da Crtica da Economia Poltica de
Marx apontando quatro grandes contribuies advindas do materialismo histrico. So elas:
1) as condies em que a generalizao legtima: as leis sociais e econmicas s so vlidas
para determinadas formas sociais e durante um perodo determinado de seu desenvolvimento;
2) a noo de determinismo: existe regularidade nos fenmenos sociais, mas a vontade
humana intervm nos acontecimentos histricos s na natureza ocorre o inevitvel; em o 18
Brumrio de Lus Bonaparte escreveu a este respeito: os prprios homens fazem a sua
histria, mas no a fazem arbitrariamente, e sim em certas condies determinadas;
3) a noo de interdependncia dos fatos sociais: os fatos sociais articulam-se entre si por
conexes ntimas; a antiga noo de consensus [consenso latim] de Augusto Comte recebe
uma formulao mais objetiva: o resultado a que chegamos no que a produo, a
distribuio, a troca, o consumo so idnticos, mas que todos eles so membros de uma
totalidade, diferenas numa unidade;
4) existncia de fatores dominantes: um fator desempenha a funo de fator dominante a
produo nas modernas sociedades capitalistas atuando sobre os demais fatores em termos de
relaes recprocas determinadas (FERNANDES, [1946] 2008, p. 25-26)
Ou seja, a riqueza do mtodo de Marx est em pautar que as relaes sociais entre os
homens so contradas involuntariamente e sempre admitindo a existncia de um fator
determinante nessas relaes: a produo nas modernas sociedades capitalistas a base
material.
A partir da reviso crtica que faz na sua Contribuio Crtica da Economia Poltica
(1859), Marx conclui que as relaes jurdicas, bem como as formas do Estado, no podem
ser explicadas por si mesmas posto que as mesmas compem a superestrutura - nem pela
chamada evoluo geral do esprito humano; essas relaes, para ele, teriam ao contrrio, suas
razes nas condies materiais de existncia. Disto, resume da seguinte forma o resultado
geral a que chegou:
Na produo social da prpria existncia, os homens entram em relaes determinadas,
necessrias, independente da sua vontade; essas relaes de produo correspondem a um grau
determinado do desenvolvimento de suas foras produtivas materiais. A totalidade dessas
relaes de produo constitui a estrutura econmica da sociedade, a base real sobre a qual se
eleva uma superestrutura jurdica e poltica e qual correspondem formas sociais determinadas
de conscincia. O modo de produo da vida material condiciona o processo de vida social,
poltica e intelectual. No a conscincia dos homens que determina o seu ser; ao contrrio,
o seu ser social que determina sua conscincia. (MARX, [1859] 2008, p.47)
qualquer objetivao seria uma impossibilidade concreta. Quando o ser-humano interage com
a natureza transforma-se a si mesmo, da mesma forma que adquire experincias e
conhecimentos que possibilitam que essa interao se recoloque em um patamar superior: o
processo de desenvolvimento das foras produtivas. Nas palavras de Marx e Engels: a soma
das foras produtivas acessveis ao homem condiciona o estado social (MARX e ENGELS,
[1845-46] 2007, p.34), ou seja, o somatrio das foras de produo constitui a estrutura de
uma sociedade (Cf. GOMES, 2013).
Em seu prefcio da Contribuio Crtica da Economia Poltica, Marx defende que
no bojo das economias burguesas, as relaes que os homens estabelecem com os fins de
reproduo da vida humana so a base das leis e do Estado poltico a que se submetem na
superestrutura ideolgica. Isso no significa, entretanto, que a superestrutura seja um reflexo
imediato de suas bases. Em outras palavras, equivaleria pensar a relao dessas duas
dimenses de forma determinista conforme o marxismo vulgar: uma via de mo nica em que
as relaes sociais da superestrutura apareceriam como resultados passivos das bases
econmicas.
Tratando-se de lgica dialtica, esta superestrutura no seria um mero resultado da
base material. A superestrutura daria, ela prpria, os contornos definitivos a esta base, onde o
desenvolvimento histrico se apresentaria num processo contnuo de transformao (Cf.
BORJA, 2013).
reintegrando-a ao todo, havendo uma prioridade lgica deste sobre a dinmica interna de cada
parte considerada isoladamente.
Parece mais correto comear pelo que h de concreto e real nos dados; assim, pois, na
economia, pela populao, que a base e o sujeito de todo o ato social da produo. Todavia,
bem analisado, este mtodo seria falso. A populao uma abstrao se deixo de lado as
classes que a compem. Essas classes so, por sua vez, uma palavra sem sentido se ignoro os
elementos sobre os quais repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital etc. Estes
supem a troca, a diviso do trabalho, os preos etc. O capital, por exemplo, no nada sem
trabalho assalariado, sem valor, dinheiro, preos etc. Se comeasse, portanto, pela populao,
elaboraria uma representao catica do todo e, por meio de uma determinao mais estrita,
chegaria analiticamente, cada vez mais, a conceitos mais simples; do concreto representado
chegaria a abstraes cada vez mais tnues, at alcanar as determinaes mais simples.
Chegando a este ponto teria que fazer a viagem de modo inverso, at dar de novo com a
populao, mas desta vez no com uma representao catica de um todo, porm com uma rica
totalidade de determinaes e relaes diversas. (MARX, [1859] 2009, p.258)
Isso quer dizer que a essncia da metodologia do materialismo histrico de Marx est
em evidenciar a historicidade no s das partes como tambm a totalidade que as compreende.
O modo de produo material histrico em uma sociedade, assim como a produo cultural
em particular. Para fins deste estudo, as manifestaes tropicalistas - objeto dessa monografia
- somente se desenvolvem dentro das possibilidades dadas por sua realidade objetiva, ou seja,
sua base material.
Em concordncia com o pensamento de Lukcs e Goldmann, Michael Lwy defende a
ideia de que todo conhecimento e interpretao da realidade social esto ligados, direta ou
indiretamente, a uma perspectiva global socialmente condicionada, ou seja, aquilo que chama
de viso social de mundo. Assim, em pleno acordo com esses autores que Lwy define a
14
(...) a verdade objetiva sobre a sociedade antes concebida como uma paisagem pintada por
um artista e no como uma imagem independente do sujeito; e que, finalmente, tanto mais
verdadeira ser a paisagem, quanto mais elevado o observatrio ou belvedere onde est situado
o pintor, permitindo-lhe uma vista mais ampla e de maior alcance do panorama irregular e
acidentado da realidade social. (LWY, 2009, p.17)
A viso social de mundo para Lwy nada mais seria que a viso do mundo social, isto
, de um conjunto relativamente coerente de ideias sobre o ser humano, a sociedade, a
histria, e sua relao com a natureza. Alm disso, esta viso de mundo estaria ligada a certas
posies sociais: aos interesses materiais e polticos de certos grupos ou classes sociais.
Nesse sentido, Lwy defende que as vises de mundo podem ser ideologias, utopias,
ou mesmo combinar elementos ideolgicos com elementos utpicos. Ademais, argumenta que
uma mesma viso de mundo pode ter um carter utpico num determinado momento histrico
e posteriormente adquirir um carter plenamente ideolgico. Adoto, pois, o conceito de
ideologia a falsa conscincia - tal como elaborado por Marx:
As ideias da classe dominante so, em cada poca, as ideias dominantes, isto , a classe que a
fora material dominante da sociedade , ao mesmo tempo, sua fora espiritual dominante. A
classe que tem a sua disposio os meios de produo material dispe tambm dos meios da
produo espiritual, de modo que a ela esto submetidos aproximadamente ao mesmo tempo o
pensamento daqueles aos quais faltam os meios de produo espiritual. As ideias dominantes
no so nada mais do que a expresso ideal das relaes materiais dominantes apreendidas
como ideias, portanto, so a expresso das relaes que fazem de uma classe dominante, so as
ideias de sua dominao. (MARX e ENGELS, [1933] 2007, p.47)
Seguindo este raciocnio, a definio mais adequada de ideologia para LWY (2009,
p.14) seria, em suas palavras, uma forma de pensamento orientada para a reproduo da
ordem estabelecida. A manifestao cultural e mesmo um produto cultural pode muito
bem dispor de conscincia ou falsear a realidade da qual faz parte.
15
comunicaes de massa.10 Em outras palavras, o que essa escola traz de indito o estudo do
fenmeno da cultura de massas situando-o no bojo de sua totalidade - o contexto histricomaterial em que se faz ou fez presente. Com este mesmo propsito, trabalho as manifestaes
musicais da Tropiclia no esteio da cultura de massas, sobretudo no que diz respeito ao rdio
e televiso no Brasil no deixando de lado a indstria fonogrfica .
No artigo A indstria Cultural - publicado em 1947 no livro Dialtica do
Esclarecimento - Adorno e Horkheimer elaboram o conceito de indstria cultural preferindoo ao termo cultura de massas. Defendem a ideia de que aquilo que em seus esboos
denominavam cultura de massas no era de fato criao espontnea e autntica das massas, e
sim contedos produzidos por grandes conglomerados industriais e direcionados para esse
pblico com fins de mercado. Defendem, pois, a ideia de que todas as produes culturais de
massa no contexto da produo industrial sofrem o processo de mercantilizao, padronizao
e massificao.
Nessa mesma linha de raciocnio, argumentam que a indstria cultural, por meio de
todo seu aparato tcnico, expressa a viso social de mundo da classe burguesa, ou seja, dos
detentores dos meios de produo.
A expresso indstria no deve ser tomada ao p da letra, como processo de
produo em sentido estrito. O termo significa para Adorno e Horkheimer a estandardizao
do produto cultural. Nesse sentido, defendem a ideia de que toda sorte de manifestao da
indstria cultural idntica sob o domnio do monoplio. Em suas prprias palavras:
(...) a cultura contempornea confere a tudo um ar de semelhana. O cinema, o rdio, as
revistas constituem um sistema. Cada sistema coerente em si mesmo e o so em conjunto. At
mesmo as manifestaes estticas de tendncias polticas opostas entoam o mesmo louvor do
ritmo de ao. (...) O que no se diz que o terreno no qual a tcnica conquista seu poder sobre
a sociedade o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A
racionalidade tcnica hoje a racionalidade da prpria dominao. Ela o carter compulsivo
da sociedade alienada de si mesma. (ADORNO & HORKHEIMER, 2009, p. 99 - 100).
Sigo as ideias de Douglas Kellner. In: KELLNER, D. A Cultura da Mdia. Bauru: EDUSC, [1998]2001.
16
17
_CAPTULO 2_
18
outra luz inesperada sobre a aventura dos anos 60, j que esse perodo que
s considerado remoto e datado por aqueles que temiam os desafios
surgidos ento, e que ainda os temem por os saberem presentes demais em
sua nova latncia.
(Caetano Veloso)
O desenvolvimento uma viagem com mais nufragos do que
navegantes. (Eduardo Galeano)
Em 1956, Juscelino Kubistchek foi eleito Presidente do Brasil e teve como principal
plano econmico o famoso Plano de Metas cujo slogan era 50 anos em 5 . Tal poltica adotava
como prioridade a transformao estrutural da economia brasileira promoo da
infraestrutura interna, principalmente nas reas de energia e transportes com a finalidade de
consolidar a industrializao, sobretudo de bens de consumo durveis. Ademais, a acelerao
necessria para o cumprimento do Plano de Metas advinha, segundo Francisco de Oliveira
20
11
A referncia a planalto central do pas continua a mesma, como uma clara aluso a Braslia (o moderno) e
ao interior (o serto, o arcaico): o luxo no lixo e a carnavalizao do monumental; a bossa e a palhoa cada uma
contendo a outra a bossa o novo jeito brasileiro, que, no entanto, pressupe o velho e o contm; a palhoa o
velho que pressupe e contm o novo. (FAVARETTO, [1979] 2007, p.72)
21
fonte de crdito em divisas, como pela importao de know-how - e, por outra, o aumento da
explorao do trabalho por meio do congelamento dos salrios reais - como forma de
diminuir os custos de produo do empresariado. FURTADO (1974, p.81) aponta para o
mesmo caminho em seu O Mito do Desenvolvimento Econmico:
Ano
1958
1959
1960
1961
1962
1963
1964
1965
1966
1967
1968
Com base nos dados expostos, OLIVEIRA ([1972] 2013, p.80) defende o argumento
de que a crescente taxa de explorao do trabalho somente foi contra-arrestada apenas
quando o poder poltico dos trabalhadores pesou decisivamente. Embora os anos JK sejam
12
22
conhecidos como os anos dourados e o salrio mnimo tenha sido recorde em 1958, os
determinantes fundamentais do modelo de desenvolvimento brasileiros o aumento da
relao excedente-salrio e protagonismo do capital estrangeiro estavam sendo afirmados.
Nesse sentido, Oliveira defende a ideia da formao das bases de um modelo econmico
assentado no aumento da explorao do trabalho e da manuteno de significativo exrcito
industrial de reserva que ganharia novos impulsos e se consolidaria entre os anos de 1968 e
1973. No se trataria, para o autor, de um modelo econmico da ditadura e sim de um
aprofundamento daquele j existente e em esboo no perodo democrtico anterior ao golpe.
Vale lembrar que a essncia do modelo de desenvolvimento, compreendido no recorte
espao-temporal aqui estudado, era o atendimento das demandas de consumo dos grupos de
alta renda que ao invs de importarem passavam a consumir produtos made in Brazil14.
Recuperando Furtado (1974), o delineamento do desenvolvimento industrial no Brasil se
explica antes pelo comportamento cultural (dependente) de uma classe, motivado por uma
ideologia maior e estrangeira: a reproduo do american way of life na repblica das
bananas. Neste modelo, as classes trabalhadoras no constituam o mercado consumidor da
indstria de bens de consumo durveis. Com salrios prximos ao nvel de subsistncia,
acessavam basicamente mercadorias originrias da indstria de bens de consumo nodurveis como produtos de alimentao e vesturio.
Ademais, mesmo antes do golpe militar, o projeto de industrializao brasileira
apresentava de antemo certa ambiguidade na conduo de seus centros decisrios: tratava-se,
pois, de um projeto de emancipao nacional ou de manuteno da condio de dependncia?
A industrializao per se - o desenvolvimento das foras produtivas industriais - seria
sinnimo de desenvolvimento e soberania econmica nacional? Ao refletir sobre essas
questes, OLIVEIRA ([2003]2013, p.77) nos diz:
Lembrando que eram esses ltimos estratos da populao os maiores beneficiados em renda desse modelo de
crescimento. Alm da inflao privilegiar os mais ricos, pelo rentismo, em detrimento dos mais pobres. A alta
classe mdia assumia novas ocupaes com a implantao do novo corpo industrial. Ou seja, ganhavam os mais
abastados e perdiam os trabalhadores. (Cf. OLIVEIRA, [1972] 2013, p.78)
23
em 1966 perodo central do debate das ideias em tela do historiador Caio Prado Jnior:
15
O termo burguesia nacional, no contexto do debate da revoluo brasileira, correspondia a ideia de uma
burguesia nacional-industrial que seria a vanguarda da revoluo burguesa no Brasil em contraposio a
burguesia agrrio-exportadora cujos interesses estavam em manter o status-quo.
24
16
Ver Crescimento, distribuio de renda e progresso tcnico: as controvrsias sobre o padro de acumulao
(2012) de Pablo Bielschowsky e Revoluo Brasileira, dualidade e desenvolvimento: do nacionaldesenvolvimentismo Escola de Sociologia da USP (2012) de Marco A. Rocha presentes em Ecos do
Desenvolvimento: uma histria do pensamento econmico brasileiro (2012), coordenado por Maria Malta.
26
1950-1955 6,7%
1956-1961 8,2%
1962-1967 4,0%
1968-1973 12,2%
1974-1980 7,1%
Fonte: IBGE
SALM, C. (2011)
27
28
Adotou-se uma poltica de correo salarial orientada pelo critrio da manuteno do salrio mdio verificado
no binio anterior acrescido da porcentagem correspondente ao aumento da produtividade. De acordo com
Hermann, essa regra foi aplicada administrao pblica e em 1966 estendeu-se ao setor privado. Num primeiro
momento, os salrios eram corrigidos de acordo com a mdia dos dois anos anteriores, num segundo momento
precisamente 1965 muda-se a regra de correo e os salrios passam a ser corrigidos de acordo com ainflao
prevista pelo PAEG. Mesmo com a mudana de regras, o resultado das polticas foi o mesmo: a perda real do
poder de compra das classes trabalhadoras. (Cf. HERMANN, 2005)
19
O diagnstico de Furtado a respeito da tendncia estagnao, dos anos 1962-1967, e suas supostas causas
distribuio de renda e escassez de poupana sero analisadas na prxima sesso deste captulo.
29
As polticas fiscal e salarial do Paeg forma mantidas praticamente sem alteraes: os dficits do governo foram
sendo reduzidos e as correes salariais seguiram a regra criada em 1966, baseada na inflao estimada pelo
governo e no na inflao efetiva.
30
crdito ao setor privado (25% no milagre contra 7% antes), j que a manuteno do ajuste
fiscal reduziu a absoro de recursos pelo setor pblico. (Cf. HERMANN, 2005)
Tavares e Serra escrevem, no ano de 1970, Ms all del estancamiento na sede da
Cepal em Santiago do Chile j durante os anos do milagre econmico e, assim, procuravam
compreend-lo. O artigo desconstruiu a ideia de parte da intelectualidade de esquerda, de que
com a necessria tendncia estagnao do desenvolvimento capitalista no Brasil, o poder
dos militares seria enfraquecido, o que abriria novas oportunidades revoluo brasileira.
Contudo, o que ambos os autores buscam demonstrar que estruturas arcaicas prevalecentes
na economia brasileira, como a concentrao de renda e de terras, no constituram
empecilhos ao desenvolvimento capitalista no Brasil, como certamente o caso da falta de
oportunidades de investimento. Pelo contrrio, pobreza, concentrao fundiria e subemprego
propulsionaram a modernizao brasileira acentuando seus traos arcaicos.
Em seu modelo, Furtado (1966) vincula a estagnao estrutura da demanda logo,
distribuio de renda. Assim, argumenta que a industrializao com base na substituio de
importaes no gerou seu prprio mercado (como ocorrido com o mercado de massas
americano) e manteve os padres de consumo das classes de maior renda que eram
culturalmente reproduzidos dos grandes centros. Isso, com efeito, impedia o aumento da taxa
de poupana. Furtado desenvolveu sua anlise tomando como foco a evoluo decrescente da
relao produto-capital (Y/K) na medida em que avanava a industrializao. Assim, quanto
menor fosse a relao Y/K menor seria a taxa de crescimento de uma economia dada a taxa de
acumulao (S/I). (Cf. SALM, 2011)
Tavares e Serra, no entanto, criticam a nfase dada por Furtado na relao produtocapital (Y/K) pois se trataria de um fator ex post que no permitiria a explicao da dinmica
do modelo de desenvolvimento em observao. Antes de mais nada, o empresrio no decide
o quanto poupar e sim o quanto de sua renda destinada demanda (para consumo pessoal ou
investimento).21 Nesse sentido, o empresrio decide o quanto investir de acordo com suas
expectativas sobre a taxa de lucro. Contudo, nas indstrias mais modernas a taxa de lucro
poderia se manter mesmo que a relao produto-capital adotasse uma trajetria decrescente.
Ela vai depender, sobretudo, da relao excedente-salrio e da tecnologia incorporada em
novos equipamentos promovendo uma maior produtividade do capital (Cf. SALM, 2011).
21
De acordo com o Princpio da Demanda Efetiva, no se decide poupar posto que a poupana uma varivel
residual ou seja, o ltimo componente da renda a ser determinado de acordo com a sua variao. O que se
decide a parcela da renda destinada demanda.
31
Isto se verifica com o aumento da explorao do trabalho reforado pelas reformas do PAEG
e pelo desenvolvimento tecnolgico que promove o que Marx denominaria de mais-valia
relativa.
Para alm disso, Oliveira ([1974]2013) argumenta que a industrializao desse perodo
sobretudo a indstria de bens de consumo durveis dependeu fortemente da importao de
insumos industriais que no eram produzidos no Brasil e, portanto, de um contexto
internacional favorvel ao investimento externo e ao comrcio entre naes. Portanto, certo
que as elevadas taxas de crescimento verificadas entre os anos de 1968 e 1973 so, em grande
parte, resultados da expanso do comrcio mundial, da melhoria das relaes de troca e da
entrada de capitais estrangeiros (como emprstimos ou investimentos diretos). No entanto,
explica que o departamento 1 da indstria brasileira indstria de bens de capital no
acompanhou o crescimento do departamento 2 indstria de bens de consumo - o que tornava
esse processo de industrializao bastante dependente do mercado internacional. Tamanho
quebra-cabea refora o carter dependente do desenvolvimento industrial brasileiro cuja
dinmica , grosso modo, ditada pelo comrcio internacional.
Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto tomam como foco em Dependncia e
desenvolvimento na Amrica Latina (1970) a internacionalizao do mercado interno
brasileiro. Assim, explicam que se a condio de dependncia do Brasil tem explicaes
exteriores nao - o sistema centro-periferia -, a configurao entre as classes sociais que
possibilita a dependncia e lhe d fisionomia. Com efeito, as relaes entre as classes sociais
no Brasil de 1970 configura, alm de sua essncia, a condio de dependncia de um modelo
de desenvolvimento econmico baseado na indstria de bens de consumo durveis. A aliana
do Estado ditatorial com o empresariado (principalmente os grupos transnacionais), aliado a
um fraco poder de barganha das classes trabalhadores, define, de acordo com esses autores, os
contornos de um modelo de desenvolvimento capitalista dependente das economias centrais e
baseado no poder de compra das classes dominantes.
Furtado, em 1974, retoma a discusso da dependncia em O mito do desenvolvimento
econmico acentuando o impacto da colonizao cultural:
32
LP econ. K7
1967
4,0
1,7
4,5
0,02 -
6,4
16,4%
1968
5,4
2,4
6,9
0,09 -
9,5
48,4%
1969
6,7
2,3
6,7
0,2
9,8
3,1%
1970
7,4
2,1
7,3
0,5
10,7
9,2%
1971
8,6
2,8
8,7
1,0
13
21,5%
1972
9,9
2,6
11,6
1,9
16,8
29,2%
1973
10,1
3,2
15,3 -
2,9
21,6
28,6%
Fonte: ABPD
22
33
esses anos tinham vantagens de custos em relao produo de msica nacional j que,
embora os sucessos estrangeiros fossem impressos no Brasil, eles no exigiam custos como o
de gravao das msicas e de produo da arte da capa. Em acordo com a sucessiva denncia
de Furtado sobre o mimetismo cultural verificado no padro de consumo dos brasileiros
sobretudo daqueles de rendas mais altas, apresento a seguinte tabela de Vicente realizada
com base nos dados da empresa de pesquisa de mercado Nopem a respeito da participao
da msica internacional sobre os 50 LPs mais vendidos entre os anos de 1965 e 197323:
Tabela 4 - Participao do repertrio internacional na listagem dos 50% LPs mais vendidos no eixo Rio/So Paulo entre
1965/1973.
Ano
N de LPs (50)
1965
14
1966
17
1967
14
1968
1969
1970
22
1971
23
1972
24
1973
16
Fonte: NOPEM
Isso demonstra que embora o mercado de LPs ainda no fosse massificado e ainda
restrito populao de altas rendas - que reproduzia o padro de consumo dos grandes centros
a msica nacional demostrou significativa hegemonia nesse segmento na dcada de 1960,
com destaque para os anos de 1968 e 1969 no calor da manifestao tropicalista. Contudo,
considero importante observar que a msica importada ganha significativa participao no
repertrio dos brasileiros consumidores de LP, frao essa que se consolida na dcada de
1970. Assim, o mimetismo cultural das classes de alta renda recorrentemente apontado na
obra de Furtado - fica cada vez mais evidente no mercado fonogrfico, conforme se verifica
entre os anos de 1970 e 1973. O efeito-demonstrao sobre a classe consumidora de bens de
consumo durveis no se verifica apenas no fato de se comprar LPs mas tambm em consumir
msica produzida no mercado estrangeiro.
23
34
Vicente ento explica que com o objetivo de compensar essa diferena e incentivar a
gravao de msica nacional, uma lei de incentivos fiscais foi promulgada em 1967
facultando s empresas abater do montante do Imposto de Circulao de Mercadorias os
direitos comprovadamente pagos a autores e artistas domiciliados no pas (Idart, 1980: 118).
Segundo o autor, as gravaes beneficiadas recebiam o selo Disco Cultura. Assim, nesse
perodo e, sobretudo, na dcada de 1970 , os artistas de maior projeo na msica popular
brasileira concentraram-se nas gravadoras multinacionais - principalmente na Phillips - que
passou a congregar nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa,
Maria Bethnia, Jorge Bem e Elis Regina, entre outros.
Em sua totalidade, o processo de desenvolvimento econmico nacional torna-se cada
vez mais ambguo. Se de um lado, dado o fato da existncia de um forte processo de
transformao estrutural da economia brasileira, de outro, discutvel, nessa trajetria, a
internalizao dos seus centros decisrios: o desenvolvimento em bases nacionais. Para fins
desta discusso, apresento outros dados:
A conta de servios e rendas registrou dficits crescentes, passando de cerca de
US$600 milhes em 1967 para US$2,1 bilhes em 1973. A causa desse salto foi o
aumento das despesas com juros e remessas de lucros reflexo da crescente
captao de capital externo e com fretes decorrente do aumento da corrente de
comrcio (soma das importaes e exportaes). Assim, o dficit de conta corrente
saltou de US$276 milhes em 1967 para US$2,51 bilhes em 1973. Portanto, o
milagre no campo das contas externas s foi possvel porque o ingresso de capital
no pas elevou-se acentuadamente: a dvida externa bruta brasileira saltou de US$3,4
bilhes para US$14,9 bilhes no mesmo perodo um aumento de 332%. Esse
endividamento mais do que compensou a necessidade de dficit em conta corrente,
permitindo inclusive o acmulo de reservas internacionais pelo Bacen, que
chegaram a US$6,4 bilhes em 1973, ante US$0,2 bilho em 1967. (HERMANN,
2005, p.88)
num s corpo a nao - imbrincados ao serto, rua antiga estreita e torta e criana
sorridente feia e morta. Da mesma forma que Cardoso & Faletto e Oliveira defendem o
moderno e o arcaico como determinaes de um mesmo desenvolvimento capitalista tardio e
dependente. Identifico estes opostos reunidos na construo tropicalista de um s Brasil. Sua
roupagem moderna evidencia estes opostos como paralelos de um mesmo processo e no
contrapartes estanques. Mesmo que aparentemente alegre em sua forma, a ironia de um Brasil
que se desenvolve de forma autoritria e empobrecedora est dada.
Da mesma forma que a intelectualidade de esquerda debateu - entre os anos de baixo
crescimento e o milagre - o modelo de desenvolvimento brasileiro, a Msica Popular
Brasileira (e seus rumos) tambm estiveram em discusso no final da dcada de 1960
especialmente nos anos de 1967 e 1968. Alm de questes acerca do significado de msica
popular brasileira e o que nela se encaixaria, o que preocupava artistas e a intelectualidade
ligada msica eram anseios semelhantes aos dos pensadores do desenvolvimento: a linha
evolutiva da M.P.B.
A hiptese acima esboada da Tropiclia como alegoria irnica de um capitalismo
perifrico, autoritrio e dependente do Brasil de seu tempo - antes de ser um consenso se
inscreve na larga controvrsia que discuto no terceiro captulo deste trabalho. Encaminhei,
portanto, algumas questes: a Tropiclia foi capaz de construir uma crtica antropofgica em
relao ao consumo da esttica pop internacional? A Tropiclia apontou alternativas noalienadoras de consumo dos produtos - no somente culturais originados nos grandes
centros imperialistas? Aproveito, assim, a questo da dimenso cultural e ideolgica das
naes imperialistas sobre o padro de desenvolvimento dos pases capitalistas perifricos,
pensada por Furtado e reforada por Cardoso e Faletto, para o estudo da Tropiclia na esteira
do desenvolvimento.
36
_CAPTULO 3_
37
anos de exlio em uma Paris cujo ar estava cheio dos vnements de mai24 (os acontecimentos
de maio de 1968). (Cf. SCHWARZ, [1979] 2009) Assim, Schwarz elabora seu balano
histrico a respeito da cultura e da poltica brasileiras observadas na dcada de 1960.
Sob esse recorte espao-temporal, Schwarz apresenta os seguintes elementos: at o
ano de 1964 parte da produo cultural de esquerda no Brasil atuou diretamente ligada aos
setores camponeses e operrios: a classe trabalhadora. Os Centros Populares de Cultura
(CPCs) da Unio Nacional dos Estudantes (UNE), alm de outras agremiaes de esquerda,
militavam atravs de peas e apresentaes musicais nos teatros mantidos por sindicatos e
organizaes de classe. Aps o golpe militar, essa ligao foi imediatamente cortada com a
proibio das encenaes, exibies e apresentaes dirigidas a este setor e nestes locais. A
produo cultural de cunho esquerdizante permanece hegemnica entre os anos de 1964 e
1968, porm confinada a um segmento de classe restrito: setores ligados a produo
ideolgica tais como estudantes, artistas, jornalistas, parte dos socilogos e economistas, a
parte raciocinante do clero, arquitetos etc mas da no sai nem pode sair por razes
policiais. (Cf. SCHWARZ, [1978] 2009, p.8)
Isto posto, mesmo confinada, essa produo cultural de esquerda alcana uma massa
de pblico cada vez maior nos setores da burguesia. Assim, em contraposio ideologia de
esquerda presente nesse circuito, a direita ditatorial decreta o fim das atividades de cunho ou
natureza poltica25 em todos os campos inclusive na cultura atravs do AI-5. Com efeito,
tal decreto instituiu oficialmente a censura no pas que se materializava de diversas formas:
substituio, perseguio, priso, tortura, expulso do meio acadmico aposentadoria
24
Um crtico na periferia do capitalismo. Entrevista de Schwarz concedida a Luis Henrique Lopes dos Santos e
Mariluce Moura na Revista Fapesp.
In:http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Schwarz,%20Roberto/Roberto%20Schwarz%20%20Entrevista%20Revista%20da%20Fapesp.pdf. Acessado em 27 de julho de 2014 s 23:58.
25
Conforme presente no inciso IV do artigo quinto do texto original do AI-5.
39
Schwarz quer com isto dizer que o Tropicalismo no campo musical atravs de uma
linguagem simples e de fcil reproduo alcana pblicos diversos: tanto um pblico letrado
e consciente das referncias e intertextualidades presentes em suas letras e atinge tambm
aqueles que iro simplesmente apreci-las e reconhec-las em estilos que lhes so familiares
o pop internacional e a prpria msica popular do Brasil27. Em outras palavras, Schwarz
defende que o tropicalismo, atravs de um estilo compatvel com o gosto popular, atinge um
pblico amplo entre aqueles uma minoria que compreenderiam a alegoria de Brasil de seu
tempo e aqueles a grande maioria que estariam em contato sua obra sem, contudo,
reconhecer sua imanente metfora: de um Brasil que conforma seus absurdos, o arcaico e o
moderno.
Na viso de Schwarz, a roupagem do estilo tropicalista a sua grande novidade num
primeiro momento, que questiona na seguinte passagem:
26
ZINCONE, Rafael. Um passeio entre a vanguarda e a indstria cultural: a propsito da Tropiclia. Rio de
Janeiro: Revista Wolfius, 2013. In: http://www.revistawolfius.com.br/index.php/Wolfius/article/view/35.
Acessado em 14 de agosto de 2014 s 19:28.
27
Um exemplo que considero interessante a msica 2001 dos Mutantes , presente no lbum que leva o nome
do grupo: Mutantes (1968). A msica faz referencia direta msica caipira brasileira, bastante difundida entre a
classe trabalhadora daquela poca principalmente do campo. A msica alia a esttica de origem estrangeira
presente no cotidiano urbano do Brasil de 1968 e faz referncia direta ao ritmo de A Marvada Pinga composta
por Ochelsis Laureano em 1937, que ficou clebre na voz de Inezita Barroso.
40
Esta citao de A Indstria Cultural demonstra bem que a indstria da cultura no est
comprometida com a sntese do particular para o universal e a tenso entre esses dois polos,
pelo contrrio, objetiva a no tenso. Assim, o Tropicalismo, na viso de Schwarz, traz essa
distenso nas suas alegorias mesmo que os polos contraditrios existam: o arcaico e o
moderno. Ao refletir sobre o processo de modernizao pelo qual passava o Brasil e a
encruzilhada em que se encontrava a esquerda e suas demandas no imediato ps-golpe, o
movimento opta por absorver a modernizao conciliando seus absurdos, assumindo a
impossibilidade de ruptura com os mesmos.
Em contrapartida, Schwarz indica no cinema contemporneo ao Golpe uma alternativa
verdadeiramente crtica ao status-quo: uma esttica da fome em Vidas Secas, Deus e o Diabo
na Terra do Sol e Os Fuzis respectivamente de Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e
Ruy Guerra. Tal esttica tem suas linhas de fora na oposio direta modernizao
tecnolgica e econmica vigente no pas e neste ponto que a direo tomada pelo
Tropicalismo contrria para Schwarz: registra o atraso do pas como coisa aberrante,
tomando como contrapontos a vanguarda e a moda internacionais.
Ao ver de Schwarz, o Tropicalismo no discutia diferentes possibilidades para o
Brasil, bem como no vislumbrava alternativas engendradas pela esquerda. A desigualdade
social existente no pas, os resqucios no superados de um passado colonial as relaes
servis de trabalho no campo e o grande latifndio, por exemplo - eram para o movimento,
caractersticas inerentes ao pas, intrnsecas ex-colnia continental da Amrica do Sul, que
conviveria com uma mistura mantenedora de todos esses traos no esteio da modernizao do
pas. Assim, questiona se a modernizao realizada pelo regime civil-militar do Brasil seria
41
necessariamente boa questionamento este que para ele estava ausente na Tropiclia.
Conforme foi argumentado na segunda seo deste trabalho, o processo de modernizao da
economia brasileira foi capaz de aumentar a renda brasileira em nvel absoluto no perodo do
milagre, porm concentrou-a em mdio prazo agravando os ndices de pobreza e a
manuteno de considervel exrcito industrial de reserva que permitia alm dos
dispositivos legais prprios de uma autocracia congelar o salrio dos trabalhadores no nvel
de subsistncia.
importante frisar que alm do Tropicalismo de Gil, Caetano e Tropiclia ou Panis et
Circenses, o cinema novo de Glauber Rocha e o mtodo de alfabetizao Paulo Freire
considerados politicamente de esquerda para Schwarz - so tambm construes tropicalistas.
Em suas palavras:
Assim, defendem a ideia de que era subsistente na produo cultural do imediato psgolpe o contedo ideolgico em voga nos anos pr-1964, sobretudo durante o governo Jango.
Mesmo que nos primeiros anos da ditadura brasileira fossem permitidos espetculos
divulgadores de contedos polticos - como o musical Opinio - concordam diretamente com
Schwarz ao defenderem que o intelectual e o artista de esquerda separaram-se imediatamente
de seu pblico - os trabalhadores com a instalao do regime ditatorial em 1964. Com
efeito, diferentemente dos tempos CPCs, o artista-intelectual no estava mais em contato
direto com o oprimido e sim com parcelas da classe mdia e alta em oposio aos
stablishments da ditadura de direita. Segundo Hollanda e Gonalves, esse pblico restrito
passaria a ser a massa poltica que conheceria seu momento de radicalizao nas passeatas de
1967 e 1968. Em suas palavras:
43
Ambos os autores apontam como linha evolutiva do processo cultural desse perodo
o Cinema Novo e a musicalidade Tropiclia. Definem o primeiro como tendo um papel de
frente no campo da reflexo poltica e esttica alm de retratar as contradies do intelectualpoltico no contexto de ditadura. J o segundo, seria para eles a renovao da cano popular
no Brasil tendo como eixo temtico os impasses e inquietaes da situao ps-1964.
Embora no me proponha colocar o Cinema Novo em questo, vale lembrar que seus
caracteres de crtica social e seu texto marcado pela informao moderna repercutiram no
ambiente cultural da poca, conforme se observa nas seguintes palavras de Caetano: toda
aquela coisa de tropiclia se formulou dentro de mim no dia em que via terra em transe
(VELOSO, C. apud HOLLANDA, H. B. & GONALVES, M. A., [1982] 1987, p. 51).
De acordo com Hollanda e Gonalves, a vanguarda cinematogrfica influenciou
diretamente aquilo que em 1968 se constituiria em movimento - o Tropicalismo - com a
impresso do lbum manifesto Tropiclia ou Panis et Circenses (1968) . Em suas palavras:
Tomo como exemplo A Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade (1964) que reuniu diversos segmentos da
classe mdia brasileira, sobretudo ligados ao clero, e que se opunham as reformas de base propostas pelo ento
45
concordncia
com
aquilo
que Adorno
Horkheimer
denominariam
espontaneidade29 do sujeito na arte popular, Coutinho defende que se h uma norma proposta
em seu ensaio, seria, pois, a defesa intransigente da mais ampla e radical liberdade de criao
cultural. Nesse sentido, explica que essa liberdade de criao lhe parece condicionada por dois
limites. Primeiramente, a liberdade de criao estaria implicada por condicionamentos
sociais as bases materiais -, dos quais o criador pode ou no estar consciente. Alm disso,
defende que a liberdade de criao no seria restringida, mas ao contrrio potenciada, se o
criador tomasse conscincia da sua produo cultural.
Para uma justa conceituao da questo cultural no Brasil, Coutinho busca
relacionar cultura brasileira e cultura universal. Sugere, pois, a seguinte pergunta:
De que modo se articulou a evoluo das formas econmico-sociais brasileiras, de
cuja reproduo e transformao a nossa cultura momento determinado e
determinante, com o desenvolvimento do capitalismo em nvel mundial?
(COUTINHO, [1990] 2011, p.36)
Com o fim de respond-la, sugere que a palavra capitalismo - inserida na questo sugere de antemo parte da resposta. Partindo deste ponto, explica que o Brasil emerge na
poca do predomnio do capitalismo mercantil, ou seja, na poca da criao de um mercado
46
30
Coutinho assinala que o objetivo central do colonialismo, na poca do capitalismo mercantil, era extorquir
valores de uso produzidos pelas economias no capitalistas dos povos colonizados tendo por fim transform-los
em valores de troca no mercado mundial. Busca acentuar que a subordinao das economias perifricas ao
capital mercantil metropolitano se dava no terreno da circulao. (Cf. COUTINHO, [1990] 2011, p. 38)
47
Em sntese, Coutinho defende que a histria da cultura popular brasileira pode ser
esquematicamente definida como sendo a histria dessa assimilao mecnica ou crtica,
passiva ou transformadora da cultura universal pelas vrias classes e camadas sociais
brasileiras. Com isso argumenta que quando o pensamento brasileiro, em sua generalidade,
importa uma ideologia universal, isso prova de que determinada classe ou camada social do
pas encontrou nessa ideologia a expresso de seus prprios interesses brasileiros de classe.31
Em suas palavras:
O processo no certamente mecnico, comportando a possibilidade de erros ou
desvios: mas me parece justo dizer que, quando transplantada para o Brasil por
uma classe progressista e anticolonial, uma corrente cultural avanada contribui para
formar em nosso pas uma conscincia social efetivamente nacional-popular,
contrria ao esprito de dependncia, quilo que Nelson Werneck Sodr chamou de
ideologia do colonialismo (ou seja, a adoo por brasileiros de correntes culturais
como o racismo que justificam a nossa situao de dependncia) (COUTINHO,
[1990] 2011, p.42)
Coutinho alerta para o fato de que no necessariamente esse vinculo com a cultura universal, condicionada
pela relao de dependncia ou de subordinao econmica, impe um carter dependente ou alienado
totalidade de nossa cultura. (Cf. COUTINHO, [1990] 2011, p.41)
48
americanizao era o fato de ela no ter chegado a mim com nenhum trao de rebeldia.
(VELOSO, C., 1997, p.24)
Pode-se inferir que a oposio que procurou marcar no foi sobre a procedncia dos
modelos culturais - o que se restringiria a um nacionalismo simplista - mas sim entre
apropriaes vivas destes modelos e o consumo alienador, seja do externo, seja do interno.
Nesse sentido, sua grande questo era como se posicionar diante da influncia dos grandes
centros sem, contudo, perder a liberdade, inclusive a liberdade, de aproveitar um modelo
interessante e mais adiantado32, segundo a circunstncia. No bojo desse raciocnio Veloso
postulava a incorporao da coisa estrangeira em benefcio do foco nacional, tornando esse
modelo externo fator de autoconhecimento e no de alienao - apontada na juventude de seu
tempo de Santo Amaro da Purificao, no Recncavo Baiano, e exemplificada pelo desejo de
participar de concursos de rock e assumir a esttica dos estudantes americanos do high school.
Veloso procurou pontuar as diferentes atitudes que se podia ter diante da influncia da cultura
universal no seu caso, a americanizao (Cf. ZINCONE, 2013).
Segundo Coutinho, essa dialtica entre adequao e inadequao de cultura estrangeira
e realidade brasileira se transforma medida que o Brasil deixa, nos termos de Marx, sua
condio de subordinao formal direcionando-se para a condio de subordinao real.33
Em outras palavras, quer dizer que as ideias importadas tornam-se mais aderentes s
realidades e aos interesses de classe que buscam expressar. Defende, pois, que as contradies
ideolgicas da vida cultural brasileira do sculo 20 aproximam-se cada vez mais das
contradies prprias do modo de produo capitalista. Partindo desse vnculo, entre cultura
universal e cultura brasileira, estabelecido por um mesmo sistema econmico o capitalismo
-, Coutinho diz poder avaliar o problema da cultura nacional-popular no Brasil na segunda
metade do sculo 20.
O golpe militar de 1964 configurou, para o autor, o aprofundamento do processo de
desenvolvimento capitalista no Brasil por uma via prussiana conforme Lnin - ou revoluo
passiva nas palavras de Antonio Gramsci. Coutinho assim explica:
SCHWARZ, R. Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo. In: SCHWARZ, Martinha versus Lucrcia.
So Paulo: Companhia das Letras. 2012.
33
A economia brasileira passa a se constituir nos marcos do modo de produo capitalista em lugar de uma
economia antes baseada essencialmente no trabalho escravo. (Cf. COUTINHO, ([1990]2011, p.39)
49
Na msica popular essa conscincia ganhou hoje corpo, o que antes parecia de
artistas plsticos e poetas, de cineastas e teatrlogos, tomou corpo de modo firme na
msica popular com o privilgio do grupo baiano de Caetano e Gil, Torquato e
Capinam, Tom Z, que se aliaram a Rogrio Duprat, msico ligado ao grupo
concreto de So Paulo, e ao conjunto Os Mutantes, e hoje assume uma
dramaticidade incrvel a luta desses artistas contra a represso geral brasileira, to
conhecida minha h dez anos (represso no s da censura ditatorial, mas tambm
da intelligentia bordejante). Aqui tudo se torna mais dramtico, pois est
diretamente ligado ao consumo de massa ou cultura de massa etc., e sujeito
portanto a maior represso. (OITICICA, Hlio apud COHN & COELHO, 2008,
p.154)
Assim, quanto mais um artista se vincular totalidade das contradies de seu povo
e de sua nao, quanto mais se tornar (como diria Machado) homem de seu tempo e
de seu pas, tanto mais lhe ser possvel elevar-se quele nvel de particularidade
de universalidade concreta sem a qual no existe grande arte. (COUTINHO, 2011,
p.59)
Segundo Coutinho, ela estaria em distinguir, no bojo do patrimnio cultural tornado universal,
aquilo que poderia se tornar elemento organicamente nacional popular de nossa cultura. A
arte, antes de tudo, organiza elementos dispostos em sua realidade objetiva. Com base nesse
princpio, a guitarra eltrica compreendida no recorte espao-temporal em anlise no era
uma abstrao e sim um dado concreto inscrito na universalidade concreta de seu tempo.
Pens-la como aliengena e no admitir sua concretude no amlgama cultural brasileiro seria
o mesmo que releg-la de forma racionalmente absurda ao plano das ideias.
Em outro sentido, as expresses daquilo que chamou de doena infantil do nacionalpopular cujas ligaes com o povo era apenas retrica - alm de forjarem uma idealizao
simptica e fantasiosa da nao, demonstraram-se altamente autoritrias. Exemplos destas
manifestaes so encontrados, segundo Coutinho, em msicas de protesto de meados da
dcada de 1960 em grande parte produzidas por artistas que compuseram a controvertida
passeata contra a guitarra eltrica de 1967, em destaque: Geraldo Vandr, Elis Regina, Edu
Lobo e Jair Rodrigues.
A propsito da relao entre msica nacional e as inovaes vindas de fora e
posicionamento dos crticos em grande parte tomados pelo nacionalismo infantil - Caetano
tece o seguinte defesa:
52
A vaia que recebi foi dada por um grupo que quis repudiar o que consideravam uma
agresso msica popular brasileira. Infelizmente, foi uma atitude bastante
reacionria. [...] Entrei no festival para destruir a ideia que o publico universitrio
soi disant de esquerda faz dele. Eles pensam que o festival uma arma defensiva da
tradio da msica popular brasileira. Mas a verdade que o festival um meio
lucrativo que as televises descobriram. [...] Muita gente vem dizendo que se deve
fazer msica pensando nas nossas tradies, no folclore. Eu s entendo que se faa
alguma coisa que diga o que est acontecendo agora, no Rio, em So Paulo, no
Brasil. O meu dilogo o de agora, a pergunta: o que est acontecendo.
(VELOSO, Caetano apud FAVARETTO, C., [1979] 2007).
Sob muitos e fundamentais aspectos, o golpe de 1964 e a nova situao que ele
instaurou no pas marcou um divisor de guas tambm na vida cultural. O ingresso
do Brasil na poca do capitalismo monopolista de Estado (CME) ingresso
facilitado e impulsionado pelo regime militar trouxe alteraes importantes na
esfera da superestrutura, tanto no estado em sentido restrito quanto no conjunto dos
organismos da sociedade civil; e isso no poderia deixar de ter consequncias no
terreno da produo cultural. [...] A prtica sistemtica da censura, aliada a um claro
terrorismo ideolgico, pode ser considerada como a face aberta da poltica cultural
vigente aps 1964 e, em particular, o perodo posterior a 1968, ou seja, a decretao
do AI-5. Seria simplista reduzir a isso o quadro das relaes entre cultura e
sociedade nos ltimos anos; mas seria ainda mais perigoso dizer que tal face
condicionou, atravs certamente de mltiplas mediaes, a totalidade da produo
cultural sob a vigncia do regime militar. (COUTINHO, [1990] 2011, p.61-62)
53
Para alm da poltica cultural de censura exercida pelo Estado, Coutinho defende a
ideia de que o novo regime reforou o papel das tendncias culturais intimistas descritas,
por ele, como uma cultura neutralizadora e socialmente assptica. Isto equivale a dizer que,
durante a ditadura brasileira, ganharam espao os produtos culturais cujas ideologias
sinalizavam para a manuteno do status-quo do sistema poltico e sobretudo do sistema
econmico. COUTINHO ([1990] 2011, p.63) assim apontou o perodo entre 1969 e 1973
como o momento pice da organizao e expanso da indstria cultural no Brasil. Em suas
palavras:
A poca do chamado vazio cultural, que seria melhor designar como poca da
cultura esvaziada e que domina, no perodo entre 1969 e 1973 -, representou o
momento em que a confluncia da censura/represso com as tradies
intimistas/neutralizadoras atingiu aquilo que um tecnocrata poderia chamar de
ponto timo na tentativa de marginalizao das correntes nacional-populares e,
consequentemente, de remoo do pluralismo como trao dominante de nossa vida
cultural.
Quando aludi a novas determinaes, pensei essencialmente no grande estmulo
emprestado pelo CME expanso e consolidao de uma poderosa indstria cultural
em bases no s capitalistas (o que j vinha ocorrendo antes de 1964), mas tambm
cada vez mais monopolistas. O processo atinge mais duramente, decerto, os grandes
meios de comunicao de massa, como a televiso, a grande imprensa, a produo
de discos, o cinema etc. Mas os efeitos da monopolizao se fazem igualmente
sentir sobre a indstria editorial e a produo teatral, embora aqui a presena de
empresas mdias e at mesmo de pequeno porte assegure um maior pluralismo de
orientaes e, por conseguinte, uma faixa de autonomia bem mais consistente
(COUTINHO, [1990] 2011, p.63)
Partindo desta defesa, Coutinho conclui que essa generalizao da lgica capitalista e
monopolista no plano da cultura privilegiou, de forma imediata, o valor de troca dos objetos
culturais em detrimento de seus valores de uso. De acordo com as ideias do autor, esse
fenmeno de monopolizao comercial da cultura abriu caminho para uma pseudocultura de
massa (Cf. COUTINHO, [1990] 2011) , que assim como a indstria cultural de Adorno e
Horkheimer - manipula conscincias a servio da reproduo do status-quo.
Como consequncia desse processo, Coutinho aponta para a importao em srie de
produtos pseudoculturais o que para o autor quer dizer produtos culturais alienados. Para
ele, a imitao e importao de um produto cultural alienado seria um agravante maior no
empobrecimento cultural brasileiro em comparao difuso da doena senil do nacionalpopular. Argumenta que o poder econmico dos monoplios culturais em funcionamento no
Brasil (nacionais e transnacionais) determinou, em grande medida, a substncia do produto
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Apesar da forte oposio a uma produo cultural livre e crtica, presente naquele
momento com base em trs fatores principais: (i) censura e represso, (ii) herana elitista da
intelectualidade, (iii) expanso monopolista da indstria cultural; Coutinho diz no poder
ignorar a presena da corrente nacional-popular nos anos do regime militar.
De acordo com a classificao proposta por Coutinho dos produtos culturais
brasileiros divididos entre tendncias culturais intimistas e cultura nacional-popular - onde
se encaixaria o Tropicalismo? Cito o autor:
Vejamos um exemplo concreto: sob muitos aspectos, o movimento tropicalista em
seus incios na medida em que tendia desistoricizar as contradies concretas da
realidade brasileira e a eterniz-las numa abstrao alegrica e irracionalista (o
Brasil como absurdo etc.) pode ser considerado expresso do intimismo. Mas
no se deve deixar de registrar a presena, na evoluo do tropicalismo, de um
saudvel esforo no sentido de conquistar para a arte brasileira novos meios
expressivos e sobretudo, de figurar uma nova temtica, resultante do modo
prussiano de implementao do CME entre ns (coexistncia de um sofisticado
capitalismo de consumo com a conservao do atraso nos meios rurais e nas
periferias urbanas). Malgrado um elemento de unilateralidade, a produo
tropicalista como podemos avaliar hoje, muitos anos aps seu aparecimento
contribuiu para superar os evidentes limites de um populismo que se comprazia
em cantar um otimismo ingnuo e, em ltima anlise, desmobilizador, na esperana
vazia de que esse canto exorcizasse o escuro dominante. Na verdade, o
tropicalismo no se opunha ao nacional-popular, mas quilo que antes chamamos de
sua doena infantil. Essa dialtica interna do movimento tropicalista a
contradio dinmica entre a conquista de uma nova temtica e seu tratamento ainda
tendencialmente alegrico levaria os seus melhores representantes a abandonar
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_CONSIDERAES FINAIS_
Tomando como base a controvrsia existente entre os trabalhos de Roberto Schwarz,
Carlos Nelson Coutinho, Helosa Buarque de Hollanda e Mrcio Gonalves, procurei discutir
ao longo deste trabalho o Tropicalismo na Msica Popular Brasileira de acordo com o seu
recorte espao-temporal: o Brasil nos anos de endurecimento na ditadura civil-militar e
insurgncia do bastante alardeado milagre econmico. Busquei assim demonstrar que o
produto musical da Tropiclia os LPs produzidos por Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Z,
Mutantes e outros assim como a produo da M.P.B tradicional eram frutos de um padro
de desenvolvimento econmico baseado na indstria de bens de consumo durveis para um
mercado consumidor restrito ainda no massificado e reprodutor da cultura mercadolgica
dos grandes centros capitalistas. Nesse sentido, a Tropiclia se materializou em acordo com a
modernizao conceituada por Celso Furtado: a promoo da moderna indstria - sustentada
pela reproduo do padro de consumo do mercado de massa das potncias capitalistas pelas
elites locais coexistente manuteno do arcasmo brasileiro.
Para alm da sua direta insero na indstria, apontei a questo nacional como uma
contradio intrnseca da msica tropicalista que bastante se assemelha ao paradoxo ento
existente no desenvolvimentismo brasileiro: desenvolvimento em bases nacionais ou
dependente da transnacionalizao, por conseguinte, o imperialismo. Procurei, com isto,
evidenciar a problemtica do elemento nacional como uma questo central tanto no campo
econmico como no campo cultural. A questo nacional foi o eixo central dos debates
travados pela intelectualidade brasileira em ambas as esferas: de um lado, o pertencimento da
Tropiclia Msica Popular Brasileira (M.P.B) e de outro a autenticidade de um
desenvolvimento econmico nacional na periferia e nos marcos do capitalismo.
Em concordncia com as viso de Coutinho e o trabalho conjunto de Helosa Buarque
de Hollanda e Marcos Gonalves, identifico na msica tropicalista uma crtica contundente e
irnica em relao momento poltico e social de seu tempo que no pode ser menosprezada
pelo simples fato de se constituir como um produto da grande indstria fonogrfica e por
incorporar o elemento estrangeiro em sua esttica. Conforme argumentado por Favaretto, a
M.P.B tradicional operou nos mesmos meios da Tropiclia: ambos os lados imprimiam seus
discos na Phillips-Phonogram e se dirigiam a um mesmo segmento de mercado, um mercado
consumidor muitas vezes crtico, porm burgus.
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Schwarz escreve seu Cultura e Poltica: 1964-1969 no calor dos acontecimentos: AI5, exlio, cinema-novo, Tropiclia etc., diferentemente de Buarque e Gonalves, e Coutinho,
cujas anlises apresentam maior distanciamento histrico do objeto por eles estudado.
Schwarz, assim, apontou na construo tropicalista de arcaico e moderno uma sntese
naturalizadora e conformista do Brasil. Ao contrrio, Hollanda e Gonalves em Cultura e
Participao nos Anos 60 (1982) e Coutinho no seu Cultura e Sociedade no Brasil (1990)
identificaram na Tropiclia uma arte crtica e criativa vis--vis o contexto scio-poltico de
sua manifestao. Hollanda e Gonalves creditaram ao movimento um deslocamento do eixo
crtico comum esquerda da poca: do objeto da revoluo social passam a criticar a
alienao cultural da classe mdia brasileira pela rebeldia e o desbunde (e pelas brechas da
indstria cultural). Coutinho, por sua vez, identificou o movimento musical como um
amadurecimento da cultura nacional-popular, diferentemente daquilo que denominou como
doena infantil do nacional-popular e o produto padro da indstria cultural, uma cultura
assptica e neutralizadora.
Concluo essa anlise retomando, antes de mais nada, a ideia de que a arte
necessariamente organiza os elementos que esto dispostos em sua realidade objetiva e de
diferentes formas. A manifestao musical tropicalista, inserida no contexto de endurecimento
do regime militar e nas proximidades do amadurecimento do modelo de desenvolvimento
brasileiro abordado nesta anlise, constituiu em sua metfora a representao do Brasil de seu
contexto: o arcaico de mos dadas com o moderno, questionando o papel de satlite cultural
de um Brasil cujas classes mdia e alta reproduziam, atravs de um consumo chapado e
alienante, os comportamentos ditados pelos centros hegemnicos. O elemento estrangeiro em
meio ao amlgama cultural brasileiro foi assumido pelos tropicalistas de forma original, isso
sem que eles deixassem de dizer onde estavam e em que contexto viviam.
Eu quero dizer ao jri: me desclassifique. Eu no tenho
nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil est comigo, para ns
acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no
Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Ns s entramos no
festival pra isso, no Gil? No fingimos. No fingimos aqui que
desconhecemos o que seja festival, no. Ningum nunca me ouviu
falar assim. Entendeu? Eu s queria dizer isso, baby. Sabe como ?
Ns, eu e ele, tivemos a coragem de entrar em todas as estruturas e
sair de todas. E vocs? Se vocs forem ... Se vocs, em poltica,
forem como so em esttica, estamos feitos! Me desclassifiquem
junto com o Gil! Junto com ele, t entendendo? E quanto a vocs...
O jri muito simptico, mas incompetente. Deus est solto!
Fora do tom, sem melodia. Como jri? No acertaram?
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