Sociabilida Do Homem Simples
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Sociabilida Do Homem Simples
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apresenta discusses sobre modernidade, cotidiano e histria e seus entrecruzamentos; enquanto a segunda parte articula histria e memria, tanto conceitualmente
quanto na forma, uma vez que esta articulao se constri por meio de duas entrevistas realizadas com o autor sobre os temas anteriormente discutidos no livro,
mas sob o enfoque da sua prpria experincia. Para fins didticos, apresentaremos
a obra pelas partes e pelos captulos que a compem.
1 parte
O primeiro captulo apresenta e discute as contradies da modernidade
no Brasil, no sem antes evidenciar a concepo de modernidade do autor.
Para Martins, pensar a modernidade implica questionar se a idia de progresso
teria levado ao entendimento do processo histrico como um acelerado escalonamento, relegando ao passado e ao residual (e marginal) todo o universo
de prticas e expresses culturais anteriores ou diferentes das idias de civilizao correspondentes s ideologias positivistas e suas lgicas. No imaginrio
moderno no sobrava espao e nem tempo para a vida rural e seus costumes,
pois a cidade se sobreps ao campo; a construo da concepo de civilizao descartou as manifestaes da cultura popular. Nesse contexto capitalista
industrial em vias de se mundializar, a prpria pobreza ficou sem lugar na
sociedade moderna. Foi, ento, renegada e depositada no residual urbano: nas
periferias e nas favelas.
Segundo o autor, no Brasil as construes positivistas republicanas tentaram
sempre civilizar a nova nao capitalista, tentando renegar o passado escravista.
Por essa razo, a realidade complexa da escravido, suas expresses scio-culturais
e sua memria foram colocadas margem da sociedade que se buscava imaginar e
edificar. Ao invs de tentar solucionar o dficit social criado pela colonizao escravista com relao populao afro-brasileira, os polticos nacionais, em nome do
progresso e do lucro capitalista, relegaram para a marginalidade a cultura popular
e a pobreza, bem como as suas memrias.
No entanto, apesar dessas tentativas civilizatrias, as desigualdades se expressam na dialtica da historicidade e no cotidiano do homem moderno. Desse
modo, as tradies e os costumes populares, bem como as histricas questes
sociais, persistiram, sempre incomodando os planos dos diversos Liberalismos.
Dialeticamente, as expresses da pobreza se acentuaram a cada dia nos novos tempos. As manifestaes do capital foram se revelando mais globalizadas
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O autor prope a dialtica como mtodo de pesquisa social para pensar a modernidade. Para ele, justamente quando a realidade se apresenta complexa e diversa que a justaposio das diferenas do mtodo dialtico ganha importncia.
A partir desse ponto do livro (o segundo captulo, que se inicia p. 51) Martins
retoma Karl Marx, inserindo-o no centro das discusses e conceituaes, e tambm no mago de sua concepo de histria e de pesquisa social. Marx ganha coloridos diferentes com o autor, a partir da sua opo por fazer ressurgir o residual
da e na Histria. O Marx retomado tambm um socilogo do cotidiano, menos
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No captulo seguinte, Martins confessa a sua retomada de Marx e a via escolhida para a releitura do socilogo clssico. O caminho percorrido pelo autor e
pelo leitor ao longo desse momento do livro aquele mesmo que o intitula: As
temporalidades da histria e a dialtica de Henri Lefebvre (p. 97). No centro dessa
retomada est o mtodo dialtico, como j mencionamos. Est tambm a noo de
formao econmico-social (p. 99).
Trata-se de uma idia que aparece ocasionalmente na obra marxiana, apenas indicada, para dar conta da sedimentao dos momentos da histria humana (...).
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A pobreza, nessa reinterpretao de Lefebvre, ganha um significado diverso daquele do tempo de Marx porque a modernidade atual optou e expressou o avano
econmico em detrimento do social, gerando um fosso entre o Ccapital e o trabalho.
A pobreza hoje a pobreza de realizao das possibilidades criadas pelo prprio homem para a sua libertao das carncias que o colocam aqum do possvel (p. 103).
Nesse sentido, a Questo Social aqui sugerida pela idia de uma pobreza tambm virtual, alm de material, da qual no se consegue sair a no ser pela humanizao e pela emancipao do homem.
2 parte
Ao passo que o captulo anterior terminou de forma algo melanclica, a segunda parte do livro se abre com uma epgrafe bastante combativa. Um verso de Pedro
Tierra convida o leitor para a discusso sobre histria e memria:
Intil fechar os olhos,
H um espinho cravado
na conscincia da tarde (p. 111)
In Poemas do Povo da Noite.
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O autor diz, (p. 130), que a memria nos fala justamente de relaes e concepes sociais antigas, que perduram no tempo de hoje. A cultura no desaparece
facilmente, sobretudo quando orgnica numa determinada realidade. A memria
das experincias passadas e dos antepassados se inscreve nos gestos, nos ritos, nos
gostos, nos ritmos, no espiritual... E isso nem sempre registrado na documentao escrita. Sobretudo quando a populao considerada marginal ao sistema, o
que ocorre com os pobres e oprimidos histricos.
A memria, segue Martins, no um substituto do documento escrito, mas
reveladora de realidades que no esto registradas nos documentos oficiais (p.
127). Portanto, trabalhar a memria como documento implica repensar o que
Histria: Para eles, o sujeito da Histria no era o indivduo do contrato social.
Mas, o sujeito imortal que perdura ao longo das geraes no trabalho e na coscincia de filhos e netos (p. 121).
Aqui, acompanhando a lgica e a concepo sociolgica do autor, podemos
afirmar que at mesmo o sujeito histrico sai do residual (alienao) onde estava
inscrito na historiografia tradicional e se torna memorvel pela memria social.
Torna-se, no cotidiano e na sua localidade, um protagonista de seus processos
histricos, podendo, assim, exercer a sua emancipao social, seja essa emancipao uma construo presente ou posterior (reconstruda a partir da memria
de geraes vindouras).
Numa perspectiva verdadeiramente dialtica necessrio antes de tudo ter em conta
que a chave explicativa que d sentido ao curso da Histria est na contradio entre
o homem e sua obra, na relao alienada entre aquilo que ele quer ser e aquilo que ele
faz; no desencontro que cria necessidades radicais, isto , necessidades que s podem
ser satisfeitas mediante profundas transformaes sociais (p. 131-132).
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Nesse marco sensvel, a pesquisa tem que ser emprica e orientada de maneira
inteligente pois no basta ser uma mera e prosaica coleta de dados (p. 139). H
de se saber interpretar, independente do tipo da documentao utilizada, pois a
verdadeira dialtica no impugna nada, ela investiga e explica (p. 143).
Desse modo, ao socilogo cabe apenas desvendar a circunstncia historicamente precisa de falas e atos, para captar-lhes o verdadeiro sentido, referi-los s
ocultaes do processo social (p. 140).
Podemos, enfim, dizer que o livro A Sociabilidade do Homem Simples nos oferece
duplamente o caminho de uma concepo dialtica de histria e uma metodologia
de pesquisa social. A sociologia sensvel de Jos de Souza Martins est imbricada
com a Histria (enquanto passado e como devir) e visa emancipao dos homens
e humanizao da sociedade.
A Histria, isto , a criao social, se cumpre na prxis que emancipa o homem dessas
limitaes e dessa pobreza (...) A criao social depende de que o homem se aproprie de seu destino, de algum modo, ainda que limitado, segundo as possibilidades
do momento histrico. O homem se produz na Histria, produzindo sua sociedade,
suas relaes sociais, insurgindo-se contra os poderes que o subjugam: a dominao
e os cerceamentos polticos, a pobreza, os bloqueios nos acessos s grandes inovaes
culturais referidas universalidade do gnero humano (p. 147-148).
Notas
1 Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Servio Social da PUC-Rio. Historiadora, mestre em Histria Social da Cultura pela PUC-Rio. laura@unito.com.br.
2 Antes desse trecho que reproduzimos, Martins dissera que Lefebvre descobriu que a tese de A
Ideologia Alem ganha consistncia numa noo mal formulada, na obra de Marx: a de formao
econmico-social (p. 99).
3 Martins dedica o livro Ecla e Alfredo Bosi.
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