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Carlos Ziller Camenietzki Gianriccardo Grassia Pastore. "1625, o Fogo e A Tinta: A Batalha de Salvador Nos Relatos de Guerra"

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1625, o Fogo e a Tinta: a batalha de

Salvador nos relatos de guerra


1625, Fire and Ink: Salvador
battle in the war reports
Carlos Ziller Camenietzki
Gianriccardo Grassia Pastore
Conforme debatido h tempos, e tambm verificado diretamente em
inmeras experincias coletivas, todo conflito vive sua verso res gesta e sua
verso rerum gestarum.1 Uma discusso, um debate, um conflito, batalha
ou guerra sempre se realiza em dois momentos. O primeiro aquele em
que os contendores agem presentemente uns contra os outros, se enfrentam
materialmente com falas, escritos ou armas. O segundo aquele em que,
terminadas as hostilidades, dirimidas, superadas, eliminadas ou sufocadas as
diferenas, discute-se sobre o ocorrido. Nem sempre os agentes em lia so
os mesmos nestes dois momentos e nem sempre o que est em jogo da
mesma natureza.
Um feito blico de grande retumbncia, por exemplo, costuma dar
lugar a feitos literrios de sucesso. Assim foi com a perda e a retomada da
Bahia em 1624 e 1625.
A cidade de Salvador era parte integrante das estratgias de grandes
beligerantes na Guerra dos Trinta Anos basicamente, para efeitos do que
interessa neste trabalho, os Pases Baixos e a Espanha e, como no poderia
deixar de ser, sua ocupao e retomada foi acompanhada de numerosas publicaes relatando e interpretando o acontecido desde a chegada Europa
das primeiras notcias relativas ao sucesso batavo at quase 1630. Tratava-se,
por um lado, no apenas de tomar a cidade, apropriando-se das riquezas
locais, mas tambm de anunciar a proeza e a conseqente quebra do domnio exclusivo da Monarquia Catlica no Atlntico Sul. A expulso dos
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holandeses, por outro lado, tambm foi ocasio para Castela alardear sua superioridade blica e mostrar a inutilidade da rebeldia das Provncias Unidas.2
O problema que nos ocupa no presente est ligado a esta ltima parte
da guerra, disputa pelo acontecido que se seguiu logo aps a dissipao do
fumo dos canhes em 30 de abril de 1625. Essa segunda batalha, o objeto
deste trabalho, no envolveu as foras catlicas contra os herticos de Holanda;
isso fora resolvido no terreno dos fatos, em Salvador. O conflito de que se
trata neste texto ops combatentes que estavam do mesmo lado do campo
quente da guerra e foi travado na pennsula, no corao mesmo dos domnios de Castela: ele ops portugueses a castelhanos. Suas armas foram relaes, crnicas, poemas e o teatro.
O tema j foi matria de um estudo recente de Fernando Cristvo
que bem soube identificar as linhas mestras desta tenso.3 Contudo, o trabalho por demais resumido e concentra o melhor de suas energias nos
arqutipos narrativos, sem muita preocupao com o sentido das controvrsias na situao histrica dada. Por outro lado, um trabalho mais antigo
de Stuart Schwartz busca fazer uma anlise mais abrangente do acontecido,
analisando o feito de Salvador como expresso das tenses entre diversos
grupos sociais e a coroa.4
O assunto ganha importncia, uma vez que as foras da Monarquia
eram originrias, todas elas, de domnios de Felipe IV; eram tropas de Castela,
de Npoles, de Portugal. Os autores das relaes e das crnicas eram todos
sditos, ou vassalos, do mesmo monarca, contudo, foi acirrada a disputa
pela vitria j obtida, ou seja, a disputa pelo papel de cada qual no grande
feito. certo que, tomada isoladamente, essa questo teria importncia
limitada; seria uma passagem curiosa acerca das tenses entre aliados numa
guerra antiga, porm, diversos daqueles que, nos anos 20 do sculo XVII, se
uniram para expulsar o holands de Salvador, nos anos 40 iro se levantar
contra a Monarquia, acelerando sua decadncia na poltica europia.5 Talvez,
coincidentemente, no momento das rebelies, apenas o reino mais diretamente comprometido com a retomada da Bahia Portugal conseguiu
assegurar sua independncia, com isso, o problema desta guerra de tintas
ganha uma projeo para muito alm da curiosidade.
Afinal, haveria j em 1625 um mal-estar significativo entre portugueses com relao ao domnio castelhano? Qual sua extenso real? Qual seu
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significado? Seria possvel detect-lo entre relatos e crnicas de uma batalha


vencida pela Monarquia Catlica, na qual alguns destes mesmos portugueses tomaram parte? A prpria apresentao destas questes j envolve problemas relevantes acerca da poltica lusitana da primeira metade do sculo
XVII. As tentativas de soluo, por outro lado, envolvem bem mais que
uma constatao direta em fontes documentais.
Em 1625, a Europa vivia as primeiras dcadas da poca Barroca e no
seria espervel encontrar abundantes manifestaes claras e distintas de descontentamento entre religiosos, letrados e fidalgos portugueses com relao
a seu Rei.6 Os alinhamentos polticos evidentemente existiram, as tenses
entre grupos em disputa pelo poder certamente foram agudas, mas nem
sempre as dissenses se manifestavam abertamente; seus modos de expresso usavam e abusavam da dissimulao, do duplo sentido, das metforas e
das elipses. O apelo a este gnero de recurso foi abundante na diplomacia e
na poltica do perodo, encontrando inclusive quem lhe desse expresso
literria e filosfica: Torquato Acetto, por exemplo, escrevendo em Npoles sob o domnio espanhol, publicou o livro Della Dissimulazione Onesta,
onde defende a dissimulao contra o poder tirnico como forma de sobrevivncia na arena poltica.7
Levando em considerao essa caracterstica, um exame da documentao de poca disponvel, principalmente o material impresso (relaes da
batalha, crnicas, teatro), pode revelar um estado de nimo entre portugueses e castelhanos que o regozijo da vitria costuma abafar ou que o desprezo
pelo assunto costuma esconder.
Sem pretender encontrar respostas unvocas s questes postas mais
acima, trata-se aqui de identificar manifestaes, ainda que dissimuladas,
do mal-estar portugus (ou de alguns portugueses) diante dos castelhanos
(mas tambm destes com relao queles) e de buscar alternativas para a sua
interpretao.
***
Em 1623, no dia de So Tom, o padre Bartolomeu Guerreiro, jesuta, proferiu um sermo exaltado na Capela Real em Lisboa. O habilidoso
inaciano associava o santo padroeiro da ndia s proezas lusitanas do sculo
anterior e protestava veementemente pelo estado de abandono em que se
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encontravam as conquistas do reino. Guerreiro se serviu habilmente dos


poderosos recursos da oratria fazendo o santo falar por sua boca aos seus
prprios ouvintes. Disse S. Tom corte de Lisboa:
E que viva eu hoje vendo senhoras de todos estes meus mares as bandeiras de Mauricio de Nassau herege, apostata maldito, & filho do outro,
em lugar das Chagas do Redemptor, & das armas dos netos del Rey D.
Manoel, meu senhor, que tanto me honrou com ellas.8

Para o jesuta, o problema no se limitava ao assdio hertico s conquistas da verdadeira religio. A decadncia em que caram estes domnios
do Oriente devia-se cobia dos Vice-Reis, dos capites e dos comerciantes
mais preocupados em colher riquezas que em proteg-los. O tema abordado por Guerreiro que mais interessa no presente o descaso da Monarquia
com os domnios de Portugal e os excessos dos ministros na tributao.9 O
abandono do reino expresso no tema recorrente da ausncia da Corte Real
de Lisboa. Diz o padre, apelando a S. Tom: No vos posso negar a divida
...rezam de sentimento, & dor de nam achardes em Lisboa aquelles passados Reys que vos fizeram poderoso, a vs, & vos ricos a elles10. O sermo
carrega um inegvel sentido de protesto. Entre relatos variados dos desacertos dos ministros castelhanos, Guerreiro lembrou ainda a doura de D.
Joo II para com seus vassalos e o quanto disso o monarca se valeu em seus
conflitos com Castela.
O protesto oratrio deste religioso no foi feito isolado num reino
melanclico e entristecido pelas agruras de um presente menos luzido que o
passado. De fato, como assinalou Joo Francisco Marques em seus estudos
sobre a parentica portuguesa do sculo XVII, o plpito fora importantssimo meio de protesto e de agitao poltica contra a degradao de Portugal sob o domnio filipino, e particularmente contra o abandono das conquistas ultramarinas nas dcadas de 1620-40.11 E, neste espao privilegiado
e protegido, jesutas, dominicanos e diversos outros religiosos exerceram
sua liberdade de crtica. Marques lembra que Gregrio Taveira pregara em
termos muito assemelhados a Guerreiro no mesmo ano de 1623. Tambm
Antnio de Oliveira ressaltou o papel do plpito na oposio poltica portuguesa durante o domnio castelhano.12 Estes protestos oratrios exprimiam vivos descontentamentos com reais perdas portuguesas no Oriente. Em
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meados de 1622 cerca de um ano antes do sermo do padre Guerreiro


Macau havia sido assediada pelos holandeses da Companhia do Oriente e
Ormutz cara nas mos dos ingleses e de seus aliados persas. Como sabemos,
o predomnio portugus naquela regio do mundo vai sendo obrigado a ceder espao fsico e comrcio a seus concorrentes ocidentais at meados do
sculo XVII. No comeo da dcada de 1620, os lusos tinham mais a chorar
alm do desaparecimento de seu rei.13
Segundo atesta um importante memorialista, a notcia da perda de
Salvador chegou a Lisboa em julho de 1624 e causou grande impacto. Rapidamente, o governo de Portugal organizou coleta de fundos, recrutamento e armamento de uma frota para a retomada da cidade. Ao que diz o
cronista, o esforo do reino contou com slida colaborao dos trs estados. A cmara de Lisboa forneceu quase a metade do arrecadado; o Duque
de Bragana, quase um dcimo; o arcebispo de Braga, cerca de cinco por
cento. No que diz respeito ao engajamento, o memorialista registra do
seguinte modo o empenho dos portugueses:
Aos 22 doutubro da dita era se mandou botar prego que todo omiziado
de qualquer calidade que fosse que quisesse ir narmada se viesse asentar:
viero muitos mas acodio tanta gente que se tornou a mandar que os
homiziados se fossem embora para donde andavo.14

A armada portuguesa saiu de Lisboa em 22 de novembro carregando


diversos dos mais graduados fidalgos de espada e de vela. O plano da viagem previa uma espera em Cabo Verde at a chegada da armada de Castela,
trazendo o comandante-mor da operao, D. Fadrique de Toledo
Osrio.15 Entre os clrigos embarcados estavam o padre Bartolomeu Guerreiro e o padre Antnio de Sousa, ambos da Companhia de Jesus. Este
segundo jesuta, conforme nos assegura Joo Francisco Marques, foi o autor
da tragicomdia encenada no Colgio de Santo Anto, em Lisboa, diante de
D. Felipe III e da Corte, quando de sua visita capital lusa em 1619.16
O cronista tambm conta que as primeiras novas da batalha de Salvador chegaram a Portugal em 23 de junho de 1625 e as informaes da
retomada da cidade vieram duas semanas aps, em 6 de julho.
Nos meses que se seguiram, a pennsula comemorou o feito blico
com as formas de expresso de contentamento mais vigorosas daquele temTOPOI, v. 6, n. 11, jul.-dez. 2005, pp. 261-288.

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po: festas, procisses, luminrias, missas etc. Junto com as primeiras notcias tambm vieram as relaes de guerra, as cartas oficiais e, depois, os
homens que participaram dos combates. No segundo semestre de 1625,
parte desse material foi impresso e vendido pelas ruas de Lisboa, Madri,
Sevilha, Cdiz. A Corte festejou intensamente, afinal, no se tratava apenas
da retomada de um porto importante para a economia do Imprio. Conforme j foi dito, a restaurao da Bahia reafirmava o enorme poderio da
Monarquia, num momento em que as foras catlicas retomavam terreno
perdido aos protestantes nos primeiros tempos da Guerra dos Trinta Anos.
Alm destas comemoraes, Madri, a capital, contou ainda com duas peas
de teatro: uma, do renomado Lope de Vega, castelhano, e outra de Joo
Antnio Correia,17 portugus.
Contudo, o feito e o desfeito no interessavam apenas aos peninsulares. Tambm entre os inimigos da Monarquia Catlica a proeza foi relatada
e divulgada em textos impressos, particularmente nos Pases Baixos, por
razes bvias. Talvez a relao mais conhecida entre ns seja aquela de Johann
Gregor Aldenburgk (soldado engajado nas tropas que ocuparam Salvador),
traduzida ao portugus havia uns quarenta anos18. Embora trate de um
feito de guerra, esta relao busca aproximar o sucesso dos relatos de viajantes ao Novo Mundo de finais do sculo XV e do incio do XVII, descrevendo peixes, frutos, tubrculos e ressaltando a antropofagia dos ndios e sua
ao selvagem nos combates. O texto muito detalhado e se revelou bastante til na exposio do problema que interessa ao presente trabalho.
Entre essas relaes publicadas nos Pases Baixos, e com interesse adicional por se tratar de relato dirigido ao pblico da Inglaterra, em 1626
apareceu em Roterdam a Plaine and True Relation, de autor ingls que teria
feito parte das tropas a servio dos holandeses,19 texto curioso que denuncia
os erros dos oficiais e critica seu comportamento durante a ocupao (bebiam e desfrutavam das prostitutas de Salvador). Nesta publicao, o problema das tenses que opunham portugueses e castelhanos aparece logo no
incio com a expressiva passagem: The people that are the naturall inhabitants
thereof are the Brasillians, they which are now the chiefest are the Portugals.
The Spanish King clames soveraigne, though by some denyed, and by the rest
unwillingly acceped of.20 De certa forma, a relao reproduzia um modo de
ver comum diplomacia das monarquias rivais Espanha havia muito.21
***

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As relaes do grande feito, publicadas na pennsula, so numerosas.


Encontram-se relatos brevssimos, escritos por soldados, composies mais
detalhadas e at mesmo volumes relativamente longos sobre a empreitada.
Entre estes ltimos, conta-se o conhecido livro do padre Bartolomeu Guerreiro, de quem j se tratou mais acima: Jornada dos Vassalos da Coroa de
Portugal.22 Ainda no prlogo, quando o livro vem sendo apresentado e justificado, o jesuta afirma querer contar o que na verdade passou na Bahia
pela coroa de Portugal, pois foram sucessos muito dignos de memria.23 Essa preocupao em estabelecer a verdade expressiva de um modo
um tanto convencional de apresentar as motivaes que animam os cronistas de praticamente todas as pocas, contudo, h que se levar em conta as
circunstncias em que ela se expressa. Dado o forte engajamento de Guerreiro na crtica ao abandono do Ultramar, assinalada mais acima, e lembrada tambm sua proximidade casa de Bragana,24 no se pode deixar de
considerar que talvez a preocupao com a verdade dissimule um conflito
ou uma condenao efetiva a outras relaes em circulao no perodo,
afinal, no faz muito sentido pensar em estabelecer a verdade sem que a
falsidade esteja de algum modo presente.
Conforme Stuart Schwartz intuiu, o prprio uso do termo vassalo
significativo.25 Na realidade, essa palavra no se sobrepunha a sdito que
viria a substitu-la no uso corrente. Vassalo remete o leitor a uma faixa
estreita dos sditos, a nobreza, e ainda carrega um apelo com um ligeiro
tom arcaico, ao menos aos olhos do presente. certo que essa tonalidade
no teria, em 1625, o mesmo impacto que possui atualmente, mas sem
dvida ela remete o leitor nobreza, mais que a qualquer outro segmento
da sociedade. E foi disso mesmo que Guerreiro tratou na sua Jornada; l
esto indicados os esforos de inmeras casas nobres, nomeados diversos
fidalgos de alta titulao, muito mais do que qualquer outro agrupamento
social. A participao de gente das cidades mercadores, financistas,
corporaes ou de religiosos regulares reduzida na narrativa, embora as
contribuies financeiras do Conselho de Lisboa tenham sido destacadas e
o nome de alguns grandes comerciantes tambm. Guerreiro parece querer
mostrar que os trs estados envidaram esforos para a empreitada, embora a
jornada efetiva fosse realizada pelos fidalgos, afinal, a guerra sempre foi
assunto prprio desse grupo.
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Chama a ateno nesse texto o fato de se tratar apenas de uma crnica


das foras portuguesas enviadas Bahia para recuperar Salvador, coisa
identificada at mesmo pelo ttulo da publicao, mas a expedio, no conjunto de sua organizao, buscou refletir o que de mais slido possua a
Monarquia Catlica naquele momento: tropas de Portugal, de Npoles e
da Espanha sob o comando de um dos mais renomados chefes militares
da poca, D. Fadrique de Toledo.
Uma substantiva carga simblica pesava sobre esse arranjo, quase que
uma alegoria dos domnios da Monarquia. Pode-se dizer que simplesmente
no houve nenhuma expedio portuguesa Bahia, apesar de ainda encontrarmos esse tipo de referncia em manuais relativamente recentes.26 O padre Guerreiro tinha clara essa evidncia e, ao escrever apenas sobre os portugueses, justificou-se do seguinte modo:
De sorte que tudo o que nesta relao se vir disposto em distino, e
captulos, he tirado com muy ex acto, e rigoroso cuidado, e juzo, de
verdadeiros, e autnticos papeis das secretarias reais da Coroa de Portugal.
Que foi a causa porque esta relao se no estendeo ao que da Coroa de
Castella entrou na empreza; que ainda que foy muyto no gasto de to
grande armada, no numero de capites, e soldados de varias naoens, e
Reynos de sua Magestade, que nella foro: no valor, e prudncia do general, faltarome as particulares noticias, e relaoens, sem que no pode aver
historia verdadeira.27

Fixar a verdade de modo claro no foi preocupao exclusiva deste


jesuta. Tambm o cronista de D. Felipe, Toms Tamayo de Vargas, na sua
histria (Restauracion dela Ciudad Del Salvador, I Baia de Todos Sanctos),
encomendada pelo prprio rei, reclama o estabelecimento da verdade. Anteposto a seu texto, Tamayo apresenta uma dedicatria em que explica sua
obra. O cronista no deixa de aproveitar o fato de haver composto sua
histria por fora de encomenda real, reforando sua verso dos fatos pelo
acesso a documentos dos conselhos de Estado e da Guerra:
que en el sagrado de las secretarias de aquellos consejos en las coronas de
Castilla i Portugal solo estan patentes, a quien escribe por orden de su
Rei, i cuia f no puede padecer nota de sospecha, aun com los mismos
emulos de sus glorias.28

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Tendo publicado seu relato mais de trs anos depois dos acontecimentos, Tamayo buscou explorar o que sobre o grande feito se havia escrito
anteriormente. Ele afirma ter se baseado em trs relaes mais detalhadas,
entre elas a do padre Guerreiro, sem perder a ocasio de comentar que o
texto do jesuta solamente trata de lo que a Portugal se debio en esta empressa,
com algumas particularidades dignas de su diligencia.29 As particularidades
dignas da diligncia do jesuta portugus provavelmente so os elementos
da Jornada dos Vassalos, e ainda de outros relatos contemporneos, que se
contrapem s narrativas castelhanas, em geral, e quela sua maior sntese
o livro de Tamayo de Vargas. A crtica dissimulada ao escrito de Guerreiro
vem tona no fechamento da dedicatria:
... no admite la historia las singularidades qui aqui se dilatan, confiessolo;
pero esta es mas relacion historial de un sucesso particular, que historia
perfecta, en cuio decoro no caben tales menudencias; aqui son forosas.
Ninguna he dexado por negligencia, o malicia. En todas han estado
lexos de mi animo el odio i la afficion, siendo solo mi cuidado la verdad
de las acciones de cada uno, sin distinccion de naciones. [...] esta vencedora nacion [Castela] solamente jacta por suias las que conservan en las
memorias de los doctos que las aciertan, i de los nobles que las califican; lo
demas es passatienpo de gente ociosa que se dissimula porque no se
puede remediar.30

Parece no ser excessivo identificar nesta passagem uma condenao ao


escrito do jesuta portugus, seguida de uma sria reprimenda pela incapacidade de Guerreiro em fazer evoluir favoravelmente sua prpria situao. Ele
dissimularia o que no tem condies de consertar.
Na realidade, fixar a verdade tambm preocupao de diversos outros escritos mais ou menos tardios sobre a perda e a retomada de Salvador.
Aquele que talvez o mais famoso dos autores desses escritos, o padre Antnio Vieira, deixou seu testemunho na carta nua da Companhia de Jesus,
enviada a Roma em 1626 e correspondendo aos dois anos anteriores. Vieira,
ento jovem e promissor jesuta, participara dos acontecimentos primeiro
como vtima da invaso herege e depois como observador privilegiado. O
religioso e a maior parte dos seus pares estiveram na aldeia do Rio Vermelho, de onde se organizara a resistncia dos moradores do Brasil.31 Este jesuta escrevera para dizer tambm a certeza do que se passou na realidade,
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para que a verdade tenha lugar e se no creiam algumas falsidades que do


caso se contem.32
Tambm para quem esteve em Salvador durante os acontecimentos de
1624-25, declarar a verdade algo que s faz sentido para se opor a uma
inverdade, uma falsidade, uma mentira que, por alguma razo, incomoda.
Aquilo que estava incomodando Antnio Vieira, Bartolomeu Guerreiro e
Tamayo de Vargas certamente no eram as mesmas coisas. Alis, conforme
espera-se ver confirmado nas pginas que seguem, o incmodo de um seria,
antes de tudo, o escrito do outro, a verdade defendida pelo outro.
Essas verdades, que tanto incomodaram os mais importantes autores
das crnicas, encontram-se principalmente nas descries de momentos
particulares do acontecido. Um exame detido de uma amostra suficientemente grande dos textos evidencia que desde as motivaes dos invasores
at a retirada da armada da cidade j recuperada, o desacordo quanto a alguns temas bastante grande. Diante da pouca utilidade e da inconvenincia de uma exposio exaustiva desses contrastes, ser mais adequado restringir a anlise a temas de maior poder de sntese, como o so a perda da
cidade e a avaliao da ausncia de resistncia ao ataque holands; a reunio
e a viagem da armada at a Bahia; e finalmente a rendio dos invasores e a
entrada na cidade das foras catlicas. Ao examinar as diversas exposies
desses elementos das narrativas, tem papel decisivo o tratamento dado aos
circunstantes: portugueses da armada, portugueses da Bahia (ou luso-brasileiros), castelhanos, ndios e negros e cristos-novos.
***
Pelo que contam todas as relaes da guerra, a tomada de Salvador
pelos holandeses foi operao fcil: a cidade foi ocupada pelos invasores
sem maiores resistncias. Porm, se h slida concordncia quanto a isto,
existe grande diversidade quanto a outros elementos, francamente secundrios, que evidenciam condenaes maiores ou menores ao governo do Brasil, exercido sempre por gente portuguesa, conforme um item importante
das cortes de Tomar.33 Por exemplo, comum entre os autores apontar a
covardia dos portugueses da Bahia, que teriam entregue a cidade sem combate, desamparando aquilo que tinham a responsabilidade de defender, aban-

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donando pertences e riquezas, fugindo aceleradamente to logo a iminncia


do assalto ficaram patente.
Mas se a referncia imprevidncia e incompetncia do governador
Diogo de Mendona Furtado assinalada pelo padre Guerreiro, por exemplo, lembrando tambm do medo que tomou conta dos moradores de
Salvador, entre autores castelhanos o problema da tomada da cidade ganha
outras propores. Para estes, os temas passam muito alm da incapacidade,
eles so covardia e traio.
A idia de que moradores da Bahia acolheriam a invaso com bons
olhos foi argumento aventado pouco antes da investida, num escrito de
propaganda da Companhia Holandesa, o livreto de Jan Andries Moerbeeck,
Motivos porque a Companhia das ndias Ocidentais deve tentar tirar ao Rei
de Espanha a terra do Brasil.34 Este texto foi lido na Pennsula e referido por
diversos cronistas da batalha de Salvador, tanto por escritores de Castela
quanto por portugueses, embora os jesutas Vieira e Guerreiro no o mencionem. Eugenio de Narbona y Zuinga, por exemplo, refere-se explicitamente a um concerto de gente da cidade com os invasores:
... al amanecer entr el enemigo sin resistencia, avisado, y llamado (segn
se dixo) de uno de los vecinos, que se acomodaron con la fortuna del
vencedor; entraron en fin, y no hallando en la ciudad sino algunos negros, y portugueses, hebreos de nacin, apostatas del Evangelio, que
esperaban el suceso, y havian parte en el trato, con otros que de su
nacin fugitivos esperaban en Olanda...35

Quando se trata de traio, evoca-se com freqncia aqueles a quem o


cristianismo j personificou, em diversos momentos, prpria traio: judeus, hebreus e cristos-novos. A referncia a esse grupo dentre os moradores de Salvador bastante valorizada por escritores de Castela, embora no
tanto entre os portugueses, sobretudo pelos cronistas da Companhia de
Jesus.
O padre Guerreiro, sugerindo que uma hipottica traio de portugueses do Brasil no era necessria para facilitar a invaso, assinala que havia
entre os inimigos ao menos dois holandeses que j estiveram presos no
Brasil anos antes: um que fora aprisionado no Rio e fugiu da cadeia e o
outro, estando preso e condenado morte, se sobresteve na execuo por
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ordem de Sua Magestade, em tempo do governador D. Lus de Sousa36.


Ou seja, havia quem conhecesse bem o lugar nas naus de Holanda.
Porm, a valorizao do papel dos cristos-novos pelos cronistas de
Espanha e seu desprezo por parte dos escritores portugueses fica melhor
exemplificada pela comparao entre as duas conhecidas peas de teatro
compostas sobre o feito. Felix Lope de Vega, na sua comdia El Brasil
Restituido, atribui imenso papel suposta entrega de informaes e colaborao dos cristo-novos de Salvador com os holandeses. A pea tem incio
com um dilogo entre D. Guiomar, crist-nova, e D. Diego, fidalgo portugus. A passagem curiosa, pois Diego est abandonando sua amante grvida (sem o saber) por conta de sua origem. A trama se desenvolve com
referncias explcitas colaborao dos pais de Guiomar e seus prximos
com os invasores. Esse personagem acaba por se casar com Leonardo, militar holands intermedirio na traio, que no sabia do estado de sua noiva, e termina entregue a Machado, o gracioso37. Por outro lado, Joo
Antnio Correia, natural de Lisboa, na sua comdia La Perdida y
Restauracion de la Bahia de Todos los Santos, sequer fala de cristos-novos.
Isso nem mesmo teve a honra de uma rpida meno.
Por outro lado, se existe um referente comum no que toca ao interesse
holands na ocupao de Salvador tomar postos comerciais , o peso
desse argumento apresenta-se um tanto esmaecido no cronista de D. Felipe.
De fato, Tamayo de Vargas homem que v os acontecimentos a partir da
corte de Madri: ele no poderia deixar de iniciar sua histria considerando o
andamento dos conflitos entre os Estados europeus. Por este tempo, as
foras catlicas se encontravam em forte retomada territorial diante da aliana protestante no Leste do Velho Mundo. O registro da iniciativa da
Companhia Holandesa das ndias Ocidentais vem fortemente associado
evoluo da guerra na Europa, contudo, os demais autores de relaes da
batalha de Salvador costumam circunscrever a ao holandesa aos marcos
do interesse comercial, boa parte deles usando como referncia o folheto de
Moerbeeck.
A discrepncia entre as narrativas castelhanas e textos de portugueses
tambm significativa no que toca ao segundo problema assinalado mais
acima: a partida das armadas em socorro Bahia. Bartolomeu Guerreiro, o
jesuta portugus, indica que Felipe IV teria enviado comunicados aos goTOPOI, v. 6, n. 11, jul.-dez. 2005, pp. 261-288.

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vernadores de Portugal pedindo para ultimar os preparativos da expedio


at final de agosto de 1624; o monarca teria ainda avisado que a armada
sairia de Lisboa. Mais tarde, em 27 de outubro, ele teria mandado a armada
portuguesa reunir-se s demais em Cdiz. Por fim teria ordenado que a
esquadra lusa deveria aguardar em Cabo Verde pela chegada dos navios de
Castela. Todas as relaes que tocaram no assunto so concordes em assegurar que os portugueses levantaram ncora de Lisboa em finais de novembro
de 1624 e que os castelhanos, de Cdiz, em 14 de janeiro de 1625. Nenhuma das crnicas examinadas deixa de assinalar que os vassalos portugueses
aguardaram por mais de quarenta dias a chegada da Almirante e dos demais
componentes da expedio.
Manuel de Faria e Sousa, humanista e historiador do reino de Portugal, trata do problema no seu livro publicado em 1628, Eptome de las
Historias Portuguesas. importante reter que o autor esteve entre os entusiastas da Unio Ibrica, defendendo neste seu tratado o domnio filipino e os
valores da nobreza lusitana mais tradicional, sempre responsabilizando o
envolvimento comercial dos fidalgos pela decadncia em que o reino cara
desde D. Manuel, o Venturoso38. Faria e Sousa expe o episdio da partida
e reunio das armadas do seguinte modo:
A um mismo tiempo se empezaron a aprestar, mas com desigual
diligencia se aprestaron; la portuguesa aguardo um ms em el puerto de
Lisboa por la Castellana, y saliendo em noviembre sin ella, aguardola
em la isl de Santiago (principal de ls de Cabo Verde) hasta el ms de
febrero, em que se vieron juntas: tardana considerable, y que se hizo
provechosa al enemigo: no fue sin causa la desigualdad porque el um
apresto se hizo com amor, y com hazienda de vassallos, y el outro com
hazienda Del Rey, y com tibieza de ministros.39

Para alguns escritores castelhanos, o retardo da armada real compensou-se numa mal dissimulada crtica navegao da frota que partira de
Lisboa. Juan de Valencia y Guzmn, por exemplo, trata do seguinte modo
o naufrgio de uma embarcao portuguesa:
uma dellas [embarcaes] se le perdio el galeon la conepcion em que
hiba embarcado el maestro de campo Antnio Muiz Bareto ahogaronse
iento y quarenta hombres (...) salbose la Artilleria y perdiose todo ho
demas en que abia muchas cosas de balor...40
TOPOI, v. 6, n. 11, jul.-dez. 2005, pp. 261-288.

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Reunidas as armadas, tomou-se o rumo do Brasil. A viagem, que nunca era tranqila naqueles tempos, tambm se transformou em cenrio de
conflito entre as narrativas. D. Tamayo de Vargas no deixa de assinalar a
pouca destreza dos portugueses na navegao em alto mar: repetem-se as
ponderaes de que a armada reunida avanava com galhardia aunque los
baxeles de Portugal parecian menos veleros por darse siempre atras, ou de
que o comando castelhano procurava no perder la Armada de Portugal,
que seguia con difficuldad la de Castilla. Associado a isso, no faltam consideraes sobre a fidelidade lusitana, sobretudo no que diz respeito ao reconhecimento do comando e da superioridade castelhana. Valencia y Guzmn
descreve do seguinte modo a reunio em Cabo-Verde da armada do Brasil,
depois de registrar o desacerto da frota portuguesa:
... el regocijo y contento que huvo generalmente fue superior y
estraordinario fue nuestra armada siguiendo su capitana general y entrando con el orden y concierto que se acostumbra abatieron la capitania y almiranta de Portugal sus estandartes en conocimiento de
imferiores...41

Curiosamente, na maior parte das crnicas, os feitos dos luso-brasileiros entre a invaso e a chegada dos socorros quando so apresentados o so
antes como vilezas do que como atos de guerra, ou de bravura. Uma proeza
sem dvida significativa, a morte do comandante inimigo, coisa que sempre foi considerada importante nas batalhas, apresentada como feito desfavorvel, por quase todos os escritores, expressivo mais da indignidade que
das virtudes dos combatentes. A queda de Van Dort, o general holands,
por exemplo, referida como evento sanguinrio, injustificado e quase brbaro por Narbona y Zuiga:
... con gran presteza el Portugues le puso el pie sobre el pecho haviendole
herido de una cuchillada y aunque el coronel le pedi que no le matasse
diciendo que era el General no quiso perdonarle la vida, matole al fin y
quitole la espada, y cortole un dedo en que se trahia una sortija para que
fuesen testigos de la victoria, y los demas soldados triumpharon della,
aunque sangrientamente, porque demas de despoxalle le cortaron partes
de su cuerpo, cosa que los Holandeses tuvieron por denuestro afrentoso,
y se quexaron dello con razon...42

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Vieira, que descreve os acontecimentos a partir do Rio Vermelho, e


que no cansa de dar relevo ao de seus pares e dos indgenas que com eles
combatiam, trata da morte de Van Dort em termos muito diferentes, afinal, nas condies em que se encontravam os portugueses da Bahia, no
havia muito lugar para rituais de guerra e para privilgios de comandantes.
Diz este jesuta:
Repartidos os capites e soldados pela dita ordem, o primeiro encontro,
em que deram a conhecer sua apostada determinao ao inimigo, foi
que, vindo do porto de S. Filipe, vizinho a Nossa Senhora do Monserrate,
o seu coronel ou governador, homem intrpido e afamado em uma e
outra guerra, naval e campal, assim em Flandres como nas armadas,
acompanhado de cem soldados de guarda, rebentaram os nossos de uma
emboscada contra eles, e um remeteu com o governador, que vinha a
cavalo, e o derrubou. Tanto que este caiu, caiu com ele o nimo aos ps
dos soldados que o acompanhavam, como bem se viu no efeito, porque,
faltando-lhe s mos para resistirem, s nos ps lhe sobejou para fugirem. 43

O comandante geral das foras portuguesas, D. Manuel de Menezes,


em sua relao que no foi publicada, tambm se refere morte do chefe
inimigo. Para o comandante das foras portuguesas, o episdio ganhou o
seguinte teor:
Sayo a 15 de junho o coronel Joo Doart a cavallo acompanhado de
alguns soldados tocando trombetinha diante; acudio este capito [Francisco de Padilha] com a gente de sua bandeira, e do primeiro arcabusao
matou o cavallo do coronel, e arremetendo sem escutar rases, ou promesas
lhe cortou a cabea, e invistindo a companhia os poz em fugida, e lhes
foy no alcance hum gran pedao.44

Na verdade, o juzo sobre o fato dos luso-brasileiros terem matado o


comandante holands bom indicador dos valores dos envolvidos e do
problema que se busca caracterizar desde o incio deste texto. Guzmn,
Tamayo, Menezes demonstraram, em graus diversos, espanto com a brutalidade do acontecimento, afinal tratava-se de um fidalgo e comandante das
foras inimigas e no seria digno de sua condio mat-lo daquela maneira.
Alm disso, a forma com que os luso-brasileiros agiram colaborou com a
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idia de vileza atribuda a eles desde a exposio da perda da cidade para as


foras inimigas. Por outro lado, seria perfeitamente espervel que Vieira
expusesse o feito de outro modo, desalojado que foi do Colgio da Bahia,
empurrado para a aldeia do Rio Vermelho e testemunha do estado em que
ficaram os soteropolitanos e os do Brasil durante a invaso holandesa. Este
jesuta tambm d destaque ao empenho dos luso-brasileiros de Pernambuco
e do Rio de Janeiro em enviar reforos e comandantes militares para organizar e fortalecer a resistncia, que acabou por se mostrar bastante eficaz.
Mas o fato de os invasores terem perdido seu comandante foi assinalado de modo muito diferente pelos que estavam ocupando a cidade. O
annimo autor da Plaine and True Relation, citada acima, trata da morte de
Van Dort como algo que teve impacto decisivo no rumo dos acontecimentos. Ele identificara no desregramento dos oficiais a grande causa da perda,
e a morte do comandante das operaes no poderia ser tomada como fato
menor, no que respeita a evoluo da combatividade dos holandeses. Ele
exps o episdio nos seguintes termos:
The same morning the Colonell with some twelve horsemen went out
of the Towne, with some twenty negars and a squadron of men, the
Colonell riding before some twenty yeards in a narrow path, and woods
on both sides, the portugals lying in ambush got about Colonell, a
negar shot him in the brest, and the portugals puld him of his horse,
who kild him and cut of his head and other parts, the most of the
horsemen & souldiers retired to the towne, yet an english-man brought
in his head, upon which there was a great alarme, but but nothing wort
the writing.45

Aldenburgk fala em diversas passagens do medo que atingiu os ocupantes da cidade to logo ficou claro que as expectativas alimentadas por
Moerbeeck no correspondiam aos fatos. Para este autor, a associao entre
os portugueses da Bahia e os ndios era coisa constante que influenciou
decisivamente no desgaste das foras ocupantes. O general Van Dort, por
exemplo, foi surpreendido pelos ndios selvagens, portugueses e pretos, e
ferido, bem como seu cavalo, de muitas flechas ervadas46, antes de ter sua
cabea cortada barbaramente.
Para este militar, os invasores estavam literalmente cercados, sofrendo
com a falta de vveres, impossibilitados de tratar com os sitiantes e temeroTOPOI, v. 6, n. 11, jul.-dez. 2005, pp. 261-288.

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sos de suas pouco galantes formas de combate. Justificando com a barbaridade dos inimigos seus atos de guerra bem pouco aristocrticos, Aldenburgk
sintetiza esta situao na seguinte passagem:
Uma vez que no se podia esperar clemncia dos portugueses, brasilienses,
ou negros, pegamos do resto considervel de prisioneiros que possuamos, levamo-los para fora da cidade, colocamo-los amarrados uns aos
outros, prximo porta do capito Isenach (S. Bento), junto ao convento, e ali os arcabuzamos.47

Alis, a indignidade dos combatentes da terra, daqueles luso-brasileiros que resistiram a partir do Rio Vermelho, tambm ressaltada em
outro momento importante dos acontecimentos. Rendidos os holandeses,
ocupada a cidade pelas foras catlicas, reportam diversos cronistas que os
portugueses desejavam reunir os prisioneiros em suas embarcaes e incendilas. A idia no foi acolhida por D. Fadrique, mas a sua presena nas narrativas castelhanas e nas crnicas dos invasores ressalta aos olhos dos leitores o
barbarismo portugus, j apresentado na proximidade entre os lusos e os
indgenas.
***
As tenses indicadas at o momento entre as variadas interpretaes
do feito de Salvador ganham contornos bem mais ntidos quando as crnicas e relaes referem-se aos momentos finais da empreitada. Para os cronistas de Castela, os rituais dos vencedores coroam as sugestes indicadas ao
longo dos textos: os louros da vitria caberiam aos castelhanos vencedores.
Os escritores de Portugal acusaram o golpe e, em seus textos, demonstraram claro descontentamento com relao ao rumo impresso aos acontecimentos, pelos castelhanos da armada e pelos escritores de Castela.
O cronista-mor, D. Tamayo de Vargas, refere-se entrada catlica na
cidade com muita naturalidade, como se o fato de entrarem primeiro apenas soldados castelhanos fosse algo associado s funes exercidas por eles.
Entraram aqueles que poderiam assegurar a segurana do lugar e controlar
os bens da fazenda real associados retomada de Salvador.48 Se houve algum saque, e D. Tamayo o reconhece, foi apenas o resultado de uma perda
de controle passageira e logo punida exemplarmente:
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Algunos offiales i soldados de los reales, a quien la codicia avia sacado de


sus puestos, tomando occasion de los grandes aguazeros que sobrevenian,
se aprovecharon de las casas que desamparaban los que se retiraban, tan
sin orden, que aunque el maestro de campo general corria la ciudad para
su remedio, quedo poca gente con las banderas, cebandose los mas en el
saco de algunas casas, en particular en las que entendieron que avia mercancias... remediose con la venida presta del general, que mando que
pena de la vida todos los soldados se retirassen a sus bandieras...49

Embora a condio de cronista de D. Felipe colocasse D. Tamayo em


posio de autoridade sobre a matria, a expectativa entre os soldados de
saquear a cidade se apresentava desde o desembarque na Bahia. Conforme
um depoimento de soldado portugus, publicado apenas uma semana aps
a chegada em Lisboa das notcias da retomada de Salvador, os homens da
armada sabiam que os holandeses no haviam despachado as riquezas obtidas na invaso; e isso os excitava: & assi dizem que tem aqui tudo, do que
no folgaro pouco os soldados pera dia do saco50. Mesmo que fosse inteno do comando militar castelhano evitar os excessos da tropa sobre os
bens locais, os relatos coincidem sobre o fato de cidade ter sido efetivamente saqueada. Mas os cronistas de Castela parecem evitar chamar a ateno
sobre isso, e os de Portugal parecem andar na direo oposta.
O padre Guerreiro, narrando a entrada das foras catlicas em Salvador, demonstra um profundo mal-estar com o fato de a cidade ter sido
ocupada em primeiro lugar exclusivamente por fidalgos de Castela, sem a
participao de oficiais portugueses,51 afinal, a precedncia neste gnero de
coisa, para essa gente, no era algo do que se podia abrir mo com facilidade. Os motivos de queixa no se encontram apenas neste tema; aos olhos de
Guerreiro, o problema se estende aos afazeres dos soldados catlicos na
cidade luso-brasileira devolvida pelos invasores s foras de D. Felipe, rei de
Portugal:
No fique por dizer neste lugar, pois he tanto seu quem no trabalho, &
perigo do cerco da Bahya, & nos mais perigos tivero os portugueses a
vanguarda, & a retaguarda, & guarda das portas na entrada da cidade. E
se esta confiana dos capites da coroa de Castela, foy fundada em desejo
de proveito, rezo era que se alcanasse este, a quem tanto alcanou o
trabalho. Mas o certo foi que a milcia portuguesa, se no deu por achaTOPOI, v. 6, n. 11, jul.-dez. 2005, pp. 261-288.

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da de outros interesses, mais que a servio de sua Majestade, honra e


reputao da Coroa de Portugal.52

Tendo recuperado a cidade aos domnios do rei, os heris do feito


no deixaram de tratar Salvador como posto de saque, como stio inimigo.
A queixa de Guerreiro, neste particular, no prezou o fato de se tratar da
cabea dos domnios da coroa de Portugal no Novo Mundo. Nem mesmo chamou a ateno do jesuta as evidncias de que os soldados saquearam
os pertences dos luso-brasileiros que j haviam sido pegos pelos herticos.
O problema que lhe interessava se restringia exclusivamente tenso peninsular: os despojos que vieram a dois portugueses, foi a um, um quadro de
Nossa Senhora, a outro uma sela holandesa, em contraste com abundantes
despojos atribudos aos espanhis53. O quadro da Virgem certamente no
fora trazido de Amsterdam, terra de calvinistas...
D. Manuel de Menezes, preocupado que estava com o rebaixamento
dos fidalgos portugueses, apresenta a retomada da cidade com conotaes
bastante prprias. Tambm para ele, o saque (ou o re-saque) da cidade no
representava em si mesmo nenhum problema; a questo estava no lugar
reservado aos portugueses na aventura, se assertava hum soldado portuguez
tomar hum ferro velho, ou outra coisa vil logo lhe era arrebatada, e as vezes
com soberba54. D. Manuel sintetiza suas queixas quanto ao lugar dos soldados lusitanos no simbolismo da bandeira alada na cidade depois de arriado o estandarte holands:
Quinta feira primeiro de maio as dez da manh tirada a bandeira de Maurcio se plantou em seu lugar sobre a see a das armas reais de S. M. com
castellos e lees. Matria de notveis descontentamentos entre os
portuguezes, chamando aquillo, se foi enavertencia, odio nos castelhanos
a nao portugueza que em tudo se mostrava, e nunca em to pblica
aparncia.55

Ainda que D. Fadrique, comandante geral das operaes, tivesse remediado o mal-estar portugus ao levantar outra bandeira ao lado da real de
Castela, D. Manuel no se satisfez. Disse ele em sua crnica, com um
indisfarvel descontentamento:
A queixa das armas acudia em parte D. Fadrique mandando pintar huma
bandeira ordinaria as armas de Portugal no lugar acostumado, e no
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havia satisfazer aos mal contentes; porque passado o primeiro impeto


sendo admetidas algumas companhias italianas e portuguezas tomando
toda a queixa a sua conta, como soem acontecer nos iguais de fortuna
inferior, diziam que bem viam qual era a inteno de enriquecer a huns,
impedir o proveito aos outros pois j naquele dia no avia cousa de
sustancia, ou se alguma measse, to escondida, que os da vanguardia na
pilhage curiosos no revolver o no achariam.56

Antnio Vieira, parecendo no reconhecer os problemas indicados por


seu confrade ou mesmo aqueles explicitados pelo comandante da armada
de Portugal, apresenta do seguinte modo a entrada das foras catlicas em
Salvador: Determinadas as coisas nesta forma, dia de S. Filipe e SantIago,
que foi o primeiro de maio de 1625, entraram os nossos a tomar posse da
cidade, e, abatida a bandeira holandesa, se arvorou a de Portugal e Castela.57
Manuel de Faria e Sousa, o historiador do reino de Portugal, referiu-se
ao saque da cidade em termos mais alarmados que os cronistas anteriores.
Para ele: hallose dentro um despojo grande, sobre el qual huvo soldados
espaoles que parecieron olandeses: la ciudad em ser saqueada no hallo outra
diferencia sino que lo fue de aquellos, y no destos.58
Por outro lado, os homens que participaram dos acontecimentos no
interior das linhas holandesas pouco se importaram com bandeiras sobre a
S ou com a nao dos primeiros a entrar na cidade recuperada, contudo,
eles registraram de modo particularmente interessante a entrada das foras
catlicas na cidade e o problema da pilhagem castelhana sobre os bens locais. Tanto Aldenburgk quanto o autor annimo da relao inglesa registraram, em termos bastante semelhantes, a revenda aos moradores de Salvador
de suas prprias casas recuperadas pelas foras catlicas. Mais que isso, eles
registram o saque da cidade:
But let mee note one thing here which is worth the observation,
concerning the Portugals. The prince Don Frederico a little before his
goeing away sold to the portugals their houses, which before were their
owne, and at his goeing away did not onely take away all goods till it
came to old stooles and dores, but also stript then naked of all armes
and munition, and did take away all their ordnance that was planted to
sea or land-ward. So that the towne in now more weake then it was when
the hollander tooke it in. More may be said of this but I will not.59

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A considerar o que afirmaram estes dois soldados de Holanda, a vitria da expedio catlica contra os herticos foi tambm uma vitria sobre
os portugueses! Principalmente sobre os portugueses do Brasil!
***
Conforme ficou exposto no incio deste trabalho, ao disputar pela
verdade, os cronistas disputavam bem mais do que a espessura de uma fatia
do mercado de livros. Tratou-se da supremacia de uma verso. O objeto da
guerra de tintas que seguiu o feito blico de Salvador foi o lugar da nobreza e da fidalguia de Portugal nos domnios da coroa, ocupada por cabea
castelhana; e isso era problema de primeira grandeza.
Seria certamente ingenuidade crer que, de algum modo, os escritores
envolvidos anteciparam, nas letras, os sentimentos e interesses que moveram os atos perpetrados em primeiro de dezembro de 1640: a retomada da
independncia. A guerra de tintas no expressava um sentimento nacional
adormecido ou esmagado; ao contrrio, expressou um mal-estar de fidalgos, e to somente dos membros da nobreza latu sensu. O objeto desse
desconforto, conforme foi exposto mais acima, era o lugar ocupado pelos
vassalos portugueses no exerccio de seu natural e antigo papel na sociedade portuguesa: governar, defender o reino e suas conquistas. A significativa
ausncia de contedo autonomista pode ser ainda intuda do fato de que
um dos registros mais significativos desse desacerto saiu da pena de escritor
famoso e entusiasta do domnio filipino: Manuel de Faria e Sousa. Ainda
mais, ao que se pde constatar, o incmodo tambm foi recproco: os hidalgos
da armada no estiveram satisfeitos com seus pares lusitanos.
Aps a Restaurao, a batalha de Salvador perdeu importncia e a guerra
de tinta que lhe estava associada simplesmente acabou. O que no impediu
uma manifestao, um tanto tardia, mas bastante curiosa de Diogo Gomes
Carneiro, brasiliense e natural do Rio de Janeiro, interessado em conclamar
a nobreza de Portugal causa da independncia. Este autor refere-se bravura lusitana em defesa das conquistas do reino ainda sob o domnio castelhano,
citando o feito da Bahia como exemplo significativo. Diz ele:
... quando na Bahia do Salvador metropoli do estado do Brazil, resistiro
ao Holandes os portugueses, moradores, & filhos daquella dilatada
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provincia, aonde com fineza ha tantos annos observo as leis da nova


guerra que ensinaro ao mundo, em que reduziro a temeridade a obrigaes do valor.60

Por fim, cabe considerar que a tenso entre os escritores do feito de


Salvador certamente no poderia passar notada apenas pelos seus prprios
autores. Seria muito estranho supor que uma disputa dessa envergadura,
envolvendo escritores ilustres de dois reinos governados pela mesma coroa,
no fosse percebida. Pelo que foi exposto mais acima, pode-se imaginar que
a guerra de tintas no apresentava aos olhos de seus leitores o carter de
uma disputa literria strictu sensu, estava diretamente em jogo a proeminncia da fidalguia de Portugal. No difcil supor que uma controvrsia envolvendo o valor e as capacidades dos vassalos lusitanos de D. Felipe IV apresentava um potencial desagregador no que toca s pretenses unificadoras das
armas ibricas: se, no episdio de Salvador, boa parte dos cronistas expressaram um desacerto entre castelhanos e portugueses, o que no aconteceria
numa ao conjunta das armas em qualquer outro ponto do dilatado Imprio, ou mesmo na Catalunha? O risco de arrefecimento dos nimos da
fidalguia portuguesa no exerccio de suas funes tradicionais a servio de
seu rei poderia ser elevado.61
Ao que assegura o estudo de Stuart Shwartz, j citado algumas vezes
no presente trabalho, o governo da Monarquia Catlica percebeu o problema. Diante do andamento da guerra de tintas, o Conselho de Estado de D.
Felipe IV no se furtou a tomar medidas voltadas conteno dos nimos:
a multiplicao de relaes, crnicas e histrias do feito de Salvador foi
proibida.62
Conforme j foi lembrado no incio do presente texto, o fato de Portugal se rebelar cerca de quinze anos aps a batalha de Salvador permite pensar
que os problemas descritos so reveladores de um quadro poltico que acabou
por evoluir num sentido inesperado. Mas no deixa de ser expressivo de uma
dinmica da fidalguia nem sempre reconhecida e valorizada.

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Notas
1

Os autores agradecem ao apoio fornecido pelo CNPq realizao deste trabalho.


Pela quantidade de publicaes j repertoriadas, em diversas ocasies, fcil verificar a
extenso do problema. Jos Honrio Rodrigues, no seu livro Bibliografia do Domnio Holands no Brasil, Rio de Janeiro: INL, 1949, p. 190-209, arrola mais de quarenta ttulos de
relaes e de crnicas sobre a batalha de Salvador. curioso lembrar que o metdico pesquisador tenha deixado de lado exatamente o texto do mais conhecido escritor da lngua portuguesa do sculo XVII, o Padre Antnio Vieira.
3
CRISTVO, Fernando. A luta de libertao da Bahia em 1625 e a batalha dos seus
textos narrativos e picos. Quinto Imprio, Salvador, v. 1, n. 16, 2002, p. 79-103. O trabalho
busca integrar, com sucesso, contribuies extrapeninsulares anlise. Sua caracterizao do
conflito de textos contribuiu de forma singular para o presente estudo.
4
SCHWARTZ, Stuart B. The Voyage of the vassals: royal power, nobles obligations and
merchant capital before the portuguese restoration of independence 1624-1640. The
American Historical Review, 96, 3, 1991, p. 735-62.
5
A Catalunha rebelou-se em junho de 1640, seis meses antes do levante portugus de
primeiro de dezembro. Npoles revoltou-se em julho de 1647.
6
As mais variadas manifestaes escritas de descontentamento com relao ao domnio
castelhano ficaram conhecidas com o curioso nome de Literatura Autonomista. Alguns
estudos j antigos buscaram dar conta deste material, sendo o mais notvel deles a obra
CIDADE, Hernni. A Literatura Autonomista sob os Felipes. Lisboa: S da Costa, sd.
7
O texto de Acetto conheceu traduo brasileira recente pela editora Martins Fontes. O
estudo mais importante sobre este tema o trabalho VILLARI, Rosario, Elogio della
Dissimulazione, la lotta politica nel seicento. Bari: Laterza, 1987.
8
GUERREIRO, Bartolomeu. Sermo que fez o Padre Bertolameu Guerreiro da Companhia de
Jesus, na cidade de Lisboa na Capella Real, dia de So Thome, anno de 1623, cuja festa como de
Padroeiro da India celebra, por ordem dos Reys o Tribunal daquelle Estado com offertas publicas das
drogas delle. Lisboa: Pedro Craesbeeck, impressor del Rey, 1624, p. 7r. A ltima frase deste
trecho citado no destituda de significado poltico. H uma ambigidade expressa na
referncia aos descendentes de D. Manuel. Entre seus netos havia certamente Felipe II, mas
tambm aqueles outros pretendentes coroa de Portugal que perderam a disputa em 1580,
entre eles D. Catarina de Bragana, av de D. Joo, o monarca da Restaurao do reino.
9
Mas neste favor com que os menores tem obrigao de acodir necessidade do Rey, h de
entrar a fidelidade dos ministros: a no tomarem mais dos vassalos, que pede a necessidade do
Rey. GUERREIRO, Op. Cit. p. 10v.
10
Idem, p. 8v.
11
MARQUES, Joo Francisco. A Parentica Portuguesa e a Dominao Filipina. Porto: INIC,
1986.
2

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12

OLIVEIRA, Antnio de. Poder e oposio poltica em Portugal no perodo Filipino (15801640). Lisboa: Difel, 1991;
_____. Movimentos Sociais e Poder em Portugal no sculo XVII. Coimbra: IHES/FL, 2002.
13
Cf a esse respeito, o texto clssico BOXER, Charles R. O Imprio Martimo Portugus. So
Paulo: Companhia das Letras, 2002, especialmente p. 120-163.
14
SOARES, Pero Roiz. Memorial. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1953, p. 466.
15
Idem, p. 465-75.
16
Note-se que a pea do padre Antnio de Sousa, encenada nesta ocasio, versava sobre as
conquistas de Portugal no Oriente e exaltava D. Manuel I e os grandes portugueses do sculo
XVI ligados a esta proeza. Cf. MIMOSO, Joo Sardinha SJ. Relacion de la Real Tragicomdia com
que los padres de la Compaia de Jesus em su Colgio de S. Anton de Lisboa recibieron a la Magetad
Catlica de Felipe II de Portugal. Lisboa: Jorge Rodriguez, 1620.
17
LISBOA, J. Carlos. Uma pea desconhecida sobre os holandeses na Bahia. Rio de Janeiro: INL,
1961. A pea foi editada no sculo XVII, no volume: Comedias Novas e Escogidas, vol. XXXIII.
Madri, 1670, p. 201-33. El Brasil Restituido de Lope de Vega foi editada diversas vezes em
coletneas do teatro espanhol. A licena de encenao foi emitida em 29 de outubro de 1625,
conforme pode ser visto no estudo BARREIRO, Jos Maria Viqueira. El lusitanismo de Lope
de Vega y su Comedia El Brasil Restituido. Coimbra: FLUC/Coimbra Editora, 1950, p. 217-8.
18
ALDENBURGK, Johann Gregor. Relao da Conquista e perda da cidade do Salvador pelos
holandeses em 1624-5. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1961.
19
A plaine and true relation of the going forth of a Holland fleete the eleventh of november 1623, to
the coast of Brasil with the taking of Salvador, and the chief occurrences falling out there, in the time
of the hollanders continuance therein. As also the coming of the sapnhish armado to Salvadoe, with
the beleaguering of it, the accedints falling in the towne the time of beleaguering... Roterdam, 1626.
20
A plaine and true relation, cit. p. 3.
21
Poucos anos antes dos acontecimentos de Salvador, um impresso circulou em Paris dando
novas da passagem de Felipe III por Lisboa, do juramento das cortes a seu sucessor e da atitude
dissimulada dos lusitanos com relao aos seus verdadeiros sentimentos para com o seu rei
castelhano. Cf. Le serment de fidelit faict au prince dEspagne, louverture des Estats du Royaume
de Portugal. Paris: Nicolas Alexandre, 1619, p. 7.
22
GUERREIRO, Bartolomeu SJ. Jornada dos vassalos da coroa de Portugal, pera se recuperar a
Cidade do Salvador, na Bahia de todos os Santos, tomada pollos Olandezes, a oito de mayo de
1624, & recuperada ao primeiro de mayo de 1625. Feita pollo padre Bertolameu Guerreiro da
Companhia de Jesus. Lisboa: Mattheus Pinheiro, 1625. O jesuta, que esteve embarcado na
frota portuguesa, tinha seu volume pronto em outubro desse mesmo ano, conforme atestam
as primeiras licenas para publicao, datadas de 7 de novembro.
23
Idem, pginas no numeradas.
24
Guerreiro viveu sete anos na corte dos Duques de Bragana, foi confessor de D. Theodsio
e pregou nas exquias celebradas em 1630 em sua memria. O sermo foi publicado dois anos

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1625,

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depois: cf. GUERREIRO, Bartolomeu. Sermam que fez o R. P. Bertolameu Guerreiro da Companhia de Jesus nas exequias do anno que se fizero ao serenissimo Principe D. Theodosio segundo
Duque de Bragana em Villaviosa na Igreja dos religiosos de S. Paulo primeiro hermito onde o
dito senhor est depositado em 29 de novembro de 1630. Lisboa: Mathias Rodrigues, 1632. O
sermo faz um elogio exaltado da Casa de Bragana declarando em uma passagem o seu
expressivo posto no reino: Tres grandezas tem o Reyno de Portugal, com ser to pequeno, &
limitado pera quem fora pequena a Monarchia Romana. Primeira a famosa cidade de Lisboa,
cabea do Reyno enchendo todas as partes do mundo com a opulencia de seus comercios,
como se fora senhora do Oceano, como em outros tempos foy [...] A segunda, as conquistas do
Reyno. Senhoreando a monarchia portuguesa os beros donde o sol nos nasce, & as sepulturas onde se nos esconde: dando principio ao seu senhorio, onde a Monarchia Romana pos fim
a seu imperio [...] A terceira, a magnificencia real da casa de Bragana, que a pos os Reys se
segue, & declara por teno sua Depois de vos, nos 26v-27r.
25
Cf. SCHWARTZ Cit. p. 744-5.
26
Joaquim Verssimo Serro, por exemplo, tratando das expedies holandesas sobre as conquistas de Portugal, refere-se perda e recuperao da Bahia nos seguintes termos: Um
ataque de surpresa, em 1624, levou conquista de Salvador, notcia que ao chegar ao Reino
causou a maior emoo. No ano seguinte, uma frota enviada de Lisboa pde reconquistar a
capital do Brasil. SERRO, Joaquim Verssimo. O tempo dos filipes em Portugal e no Brasil
(1580-1668). Lisboa: Colibri, 1994. Este texto foi publicado em 1982, num extenso
manual de Histria de Portugal.
27
GUERREIRO, Bartolomeu. Jornada dos Vassalos, Cit. p. no numerada.
28
VARGAS, Toms Tamayo de. Restauracion d la ciudad Del Salvador, I Baia de Todos-Sanctos,
em la provncia del Brasil por ls armas de Dom Philippe IV, el grande, Rei Catholico de ls Espanas,
ndias etc. Madri: viva de Alonso Martin, 1628, p. no numerada. Este livro foi traduzido ao
portugus e dedicado a D. Pedro II por Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva em 1847.
29
Ibidem, p. no numerada.
30
Ibidem, p. no numerada.
31
A carta no saiu impressa na poca. VIEIRA, Antnio. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional,
1997, vol. I, p. 3-70.
32
VIEIRA, Op. Cit. p. 11.
33
Felipe II, aps a invaso de Portugal pelas foras castelhanas, fez reunir as cortes do reino em
1580. Na ocasio fez-se o acordo que, entre diversos outros itens, estatua o princpio da
nomeao de portugueses para as funes de governo no reino (exceo aberta apenas para o
Vice-Rei, se membro da famlia real) e do ultramar.
34
MOERBEECK, Jan Andries. Redenen Weromme de West-Indisch Compagnie dient te trachten
het Landt van Brasilia den Connick van Spangie te ontmachtigen en data ten eersten. Amsterdam:
Cornelius Lodewycksz, 1624. H traduo brasileira publicada com o ttulo: Os holandeses no
Brasil. Rio de Janeiro, 1942.

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35

NARBONA Y ZUIGA, Eugenio de. Historia de la Recuperacion del Brasil. Anais da


Biblioteca Nacional. Vol. 69, 1950, p. 170.
36
GUERREIRO, p. 5.
37
Dentre as inmeras edies desse texto, destaca-se a j citada de Jos Maria Viqueira
Barreiro. O original de Lope de Vega acompanhado de longa introduo e de comentrios
nem sempre dignos de considerao.
38
Entre as causas do descuido de Diogo de Mendona Furtado estaria o fato de los governadores del siglo antes passan a ser mercadores que capitanes, FARIA E SOUSA, Manuel de.
Epitome de las Historias Portuguesas. Bruxelas: Foppens, 1677, p. 332.
39
Epitome, p. 333.
40
VALENCIA Y GUZMN, Juan de. Compendio historial de la jornada del Brasil ao 1625.
Recife: Pool, 1984, p.247.
41
Compendio, p. 251.
42
NARBONA Y ZUIGA, Eugenio de. Historia, p.191.
43
VIEIRA, Cartas, p. 27.
44
MENEZES, Manuel de. Recuperao da cidade do Salvador, Revista do IHGB, 1850, p.
400.
45
Plaine and True Relation, p. 9.
46
ALDENBURGK, Johann Gregor. Relao da Conquista, p. 178.
47
ALDENBURGK. Relao, p. 187.
48
... se tomo possession de la ciudad en nombre de Don Philipe el Quarto Rei de las Espanas,
entrando en ella el maestro de campo general, su teniente; i el maestro de campo Don Juan de
Orellana con algunas compaias para su guarda; como para la prevencion de lo que conveniesse,
assi en el modo de proceder de los soldados, como en el cobro de la hazienda real... VARGAS, Tomas
Tamayo de. Recuperacion, p. 134r-v.
49
VARGAS. Recuperacion, p. 134v-5r.
50
Relaam verdadeira de tudo o succedido na restaurao da Bahia de todos os Santos desde o dia,
em que partiro as armadas de sua Magestade, t o em que em a dita Cidade foro arvorados seus
estandartes com grande gloria de Deos, exaltao do Rey, & Reyno, nome de seus vassallos, que nesta
empresa se acharo, anihilao, & perda dos Olandezes ali domados. Mandada pellos officiaes de
sua Magestade a estes Reynos. Porto: Joo Rodriguez, 1625, p. no numerada. A data da taxao
12 de julho de 1625 e, conforme assegurou Pero Ris Soares, a notcia do sucesso chegou a
6 de julho na capital. O documento foi reeditado depois em Lisboa. Mais recentemente o
IHBG publicou a relao no volume 5 de sua revista.
51
Resolutas estas capitulaes; deram os olandeses a entrada na cidade, foram os primeiros
que entraram, o Marqus de Coprani e D. Joo de Orelhana, a quem no tocava a entrada, &
tocava a Antnio Moniz Barreto, Mestre de Campo de um tero portugus. GUERREIRO,
Jornada, p. 58v.

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52

GUERREIRO. Jornada, p. 59r.


GUERREIRO. p. 58/59.
54
MENEZES. Recuperao, p. 592.
55
MENEZES. Recuperao, p. 591.
56
MENEZES. Recuperao, p. 592-3.
57
VIEIRA. Cartas, p. 44.
58
FARIA E SOUSA. Epitome, p. 335.
59
Plaine end True Relation, p. 20. ALDENBURGK. Relao: Igualmente, tiveram que os
portugueses de resgatar de novo a cidade de S. Salvador e pagar dobrado tributo anual ao
tesouro espanhol... Alm do mais, tiveram os portugueses de resgatar os seus velhos canhes
em poder dos espanhis, que muito espoliaram a cidade, carregando os navios da frota com
pau-brasil, fumo, acar, especiarias e tudo quanto puderam arrebanhar de mesas, cadeiras,
tapearias e mveis, 218.
60
CARNEIRO, Diogo Gomes. Orao Apodixica aos scismaticos da patria. Lisboa: Loureno
de Anvers, 1641, f. 8r.
61
Sete anos aps os acontecimentos de Salvador, Joo Pinto Ribeiro publicou um livreto cujo
ttulo j expunha a resistncia idia do empenho dos fidalgos portugueses nas guerras da
Monarquia: Discurso sobre os fidalgos e soldados portugueses no militarem em conquistas alheias
desta coroa. Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1632.
62
The council of State acted to prevent the publication before Menezes could publish his. See
Consulta, Council of State, April 1623 [sic], British Library, London, Egerton 324, fol. 18.
SCHWARTZ. p. 740n.
53

RESUMO
A reconquista da cidade de Salvador pelas foras da Monarquia Catlica em
1625 foi um grande feito blico. A abundncia de testemunhos, relatos e histrias
da batalha so tantos elementos que certificam a importncia do acontecido para
seus contemporneos. Um exame detido dessa literatura capaz de mostrar uma
oposio, ainda que dissimulada, entre fidalgos portugueses e castelhanos: eles disputavam a proeminncia nos feitos blicos e a honra do desempenho vitorioso.
Festejada, narrada e comemorada, a Batalha da Bahia acabou por se transformar
num acontecimento revelador de tenses entre fidalgos de Portugal e de Castela, que
iria alimentar uma dissenso mais que secular e que viria a tomar corpo em dezembro de 1640.
Palavras-chave: salvador, sculo XVII, narrativas histricas.

TOPOI, v. 6, n. 11, jul.-dez. 2005, pp. 261-288.

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ABSTRACT
The reconquering of the city of Salvador by the Catholic Monarquic Forces was a
belic enterprise of great impact. The abundance of narrations, stories and live
accounts of the battle testify to its importance for their contemporaries. A detailed
exam of this literature shows the opposition, even if veiled, between the Fidalgos
from Portugal and from Castela: they both claimed proeminence of belic achievements
and the merit of victorious deeds. The Battle of Bahia, narrated and celebrated to
great extent, turned out to be revealing of the tensions between the fidalgos of
Portugal and Castela, which in turn would give rise to a discution more than
secular eventually embodying itself in December 1640.
Keywords: Salvador, XVIIth Century, historical narratives.

(recebido em julho de 2004 e aprovado em novembro do mesmo ano)

TOPOI, v. 6, n. 11, jul.-dez. 2005, pp. 261-288.

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