As Cores de Ercília
As Cores de Ercília
As Cores de Ercília
Esfera pblica,
democracia, configuraes ps-nacionais. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2002. 221 p.
Kelly Prudencio*
Resenhas
Movimentos da esfera
pblica contempornea
N 03 outubro de 2003
seja absolvido da culpa exclusiva na imposio de certos interesses na esfera pblica e tratado como espao ambivalente, ele ainda concebido como o imprio que compromete a consolidao da democracia.
Esse conflito se desdobra nos dois modelos de esfera pblica apresentados por Costa. O primeiro d nfase na impossibilidade de entendimento comunicacional na esfera pblica, concebida como espao de encenao poltica. Governo, partidos polticos, grupos organizados e meios de comunicao so os atores
privilegiados, detentores do poder de tematizao pblica de
problemas. O resto da populao a platia, no incorporada
aos processos de formao de opinio pblica. Os movimentos
sociais atuam no hiato entre a esfera pblica e o pblico e lutam
para arregimentar ateno para outros problemas. Seu sucesso,
segundo essa perspectiva, depende da habilidade para manipular recursos comunicativos, o que acaba por esvaziar sua estratgia persuasiva. como se o imperativo do espetculo sacrificasse o debate substantivo. Costa observa que esse diagnstico
pessimista (e apocalptico, para usar um termo de Umberto Eco)
compartilhado pelos pesquisadores da comunicao na Amrica Latina, segundo o qual forma e contedo, estetizao e argumentao so variveis opostas e excludentes. A concluso
(questionvel) desses autores que no h debate racional num
espao pblico capitaneado pela mdia.
A outra perspectiva com a qual o autor dialoga d mais
ateno ao conjunto de instituies e possibilidade de formas
discursivas de comunicao pblica que relativizam a ao
manipulatria dos meios de comunicao. Considera ele que h
processos de reelaborao das mensagens transmitidas pelos
meios de comunicao, porque simultaneamente ocorre um processo de modernizao do mundo da vida com o surgimento de
novos locais de realizao de formas crticas de comunicao. Aqui
j se percebe uma ambivalncia da esfera pblica: nela desembocam tanto os fluxos comunicativos do mundo da vida como os
esforos de uso dos meios de comunicao com interesses polticos. Mas quando Costa diz que essas formas comunicativas desenvolvidas no mundo da vida resguardam a crtica, ele parece
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Essas crticas no significam que a categoria deva ser descartada, mas revista. Costa prope pensar a sociedade civil como
um contexto de ao no qual atores que no querem ser assimilados nem por partidos nem pelo Estado apresentam formas sempre renovadas de manifestao. As associaes da sociedade civil
constituem apenas uma das foras de transformao nas instituies democrticas. As possibilidades de influncia dos atores
da sociedade civil baseiam-se na capacidade de canalizar atenes e sua identidade constituda no contexto das prprias aes.
Essa cautela metodolgica importante para compreender
a construo do espao pblico no Brasil. A sociedade civil , a
partir dessa percepo, uma das esferas sociais que participam desse
processo. nela que ocorre a ampliao do espectro de problemas
que saem da esfera privada para serem tematizados na esfera pblica. Refere-se o autor aos atores coletivos que oferecem novas
formas de percepo sobre questes de gnero, raciais, ecolgicas
e de distribuio material. Temas que sero captados por uma outra esfera, a dos meios de comunicao. E nesse processo que
Costa percebe uma mediao, ou, como prefere, uma interessante
constelao de interesses, que faz com que as mensagens dos
meios de comunicao sejam ideologicamente ambivalentes, ou
seja, no mero instrumento de difuso ideolgica, apesar da concentrao da propriedade dos meios de comunicao no Brasil.
Quando destaca, porm, a partir dessa ambivalncia, a importncia da mdia na construo de um espao pblico democrtico no Brasil, Costa confunde o que ficou conhecido como
imprensa alternativa com a emergncia de um novo conceito de
jornalismo. Na verdade, no consenso que aquela experincia
dos anos setenta caracterizada um outro jornalismo ou se na verdade tratava-se apenas de um jornalismo de oposio. No havia
uma outra forma de falar sobre os fatos, ou seja, no era como se
falava da situao, mas o qu. Porque o jornalismo convencional
tambm fazia (e faz) denncia. Talvez por isso Costa ache curiosa
a uniformizao do tratamento das informaes que se processa
com o avano da democratizao.
Na outra ponta, est o que o autor chama de espaos comunicativos primrios, esfera na qual ocorrem processos de for152
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A essas dinmicas, contudo, subjazem questes que se situam na interface entre democracia e globalizao. Em primeiro
lugar, no empiricamente evidente que os novos contextos comunicativos transnacionais constituem de fato uma esfera pblica mundial. Em segundo lugar, o esforo de transnacionalizao
dos movimentos sociais provoca uma tenso entre cultura e poltica, uma vez que aspiraes universais podem chocar-se com
realidades particulares.
Costa prefere sustentar que as formas de sociabilidade
transnacional no assumem contornos de uma sociedade civil
global e de uma esfera pblica nacional. O que ele verifica so
redes de atores sociais que se desprenderam, em parte, de suas
referncias nacionais, e o estabelecimento de fruns transnacionais diversos e segmentados. Mas nas esferas pblicas nacionais que as questes tratadas nesses contextos comunicativos ganham repercusso.
Desse modo, as referncias a uma sociedade civil mundial,
a uma esfera pblica global e a uma cidadania cosmopolita indicam mais um desejo poltico de estender s demais regies do
mundo um conjunto de direitos e instituies que se tornaram
uma espcie de padro de democracia. Essas expresses so, portanto, equvocas, porque tal espao no existe e nem se encontra
em formao. Costa argumenta que preciso observar onde se
funda a legitimidade das aes transnacionais dos atores coletivos, sem recorrer idia de uma sociedade civil global.
Essa recusa importante para entender como a leitura da
globalizao como irradiao de uma dinmica social de um centro para o resto do mundo incompatvel com alguns desenvolvimentos observados no Brasil. Seja como diferenciao funcional
(Luhmann) ou expanso da reflexividade (Beck e Giddens) duas
correntes da teoria sobre a globalizao elencadas pelo autor as
generalizaes no do conta das formas sociais no consideradas
modernas ou das mistas, que se desenvolvem nas sociedades perifricas, e de dinmicas que influenciam processos na Europa e Estados Unidos, bem como no problematizam as formas distintas
de percepo dos problemas que afetam a humanidade. O que Costa
quer mostrar que as categorias sociolgicas desenvolvidas por
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Dessa forma, cabe aos cientistas sociais brasileiros a construo de categorias analticas que permitam pensar as dinmicas sociais contemporneas, sem cair na tentao de transpor
imediatamente conceitos desenvolvidos em outros contextos sociais e acadmicos. Esse o convite de As cores de Erclia, um
esforo do autor para ajudar a revelar as cores das cidades reais,
carreg-las de tinta e definir seus traos que, embora muito pintados, andavam um pouco borrados.
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