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O Quilombo Do Catuca. Marcus Carvalho

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ARTIGOS

O QUILOMBO DO CATUC EM PERNAMBUCO


Marcus Joaquim M. de Carvalho*
Esta uma pequena Histria do quilombo do
Catuc. Ele foi um resultado da luta dos escravos pela
liberdade e um subproduto do caos poltico em
Pernambuco, entre 1817 e o final da dcada
de 1830. Morando muito perto do Recife, os
quilombolas se tratavam mutuamente por malungos (companheiros da viagem da frica) e
elaboraram uma srie de estratgias de
sobrevivncia, que incluam a cooperaao da
populao negra livre e dos escravos dos engenhos prximos.

A historiografia sobre a resistncia escrava no Brasil teve um grande


avano nos ltimos anos, quando os historiadores se debruaram sobre
diferentes aspectos da protesto escravo no pas.
Nesse artigo examinaremos um quilombo que j foi mencionado aqui
e ali nos trabalhos clssicos de Gilberto Freyre, Roger Bastide, Richard
Price e mais recentemente Stuart Schwartz. Embora essas referncias
sejam indicadores da importncia do estudo do quilombo do Catuc,
ainda h muito o que se fazer para conhecer melhor o assunto, uma vez
que esses autores basearam-se no trabalho do historiador oitocentista
Pereira de Costa para fazerem suas ilaes sobre o Catuc. Nas pginas
seguintes buscaremos cobrir essa enorme lacuna no estudo da
resistncia do negro no Brasil, buscando levantar a vida e morte do
quilombo pernambucano mais importante do sculo passado.
Como fenmeno histrico, os quilombos so parte de um conjunto
mais largo de estratgias de sobrevivncia e resistncia escrava. Por
essa razo eles so fenmenos dinmicos que mudam com o tempo.
No alvorecer do sculo dezenove, a provncia do quilombo do Catuc
era bem diferente da antiga capitania do quilombo dos Palmares. Os
*

Professor do Departamento de Histria da Universidade Federal de Pemambuco.

Caderno CRH, n. 15, p. 5-28, jul./dez., 1991

6 Marcus Joaquim M. de Carvalho


mais de cem anos que separam aqueles dois momentos viram a consolidao da ocupao do serto, o nascimento da cultura algodoeira,
a quase total ocupao da costa por engenhos de acar, bem como o
surgimento de uma populao livre bastante diferenciada de quase meio
milho de habitantes. A sociedade tomara-se mais fechada, a represso
aos escravos mais eficiente, a fuga para o mato mais difcil medida que
a agricultura comercial ocupava os nichos ecolgicos mais apropriados
para esconderijo. O quilombo dos Palmares localizava-se numa rea
bem alm da fronteira canavieira. O quilombo do Catuc margeava a
fronteira agrcola da zona da mata norte, comeava quase que num
subrbio do Recife.
A floresta do Catuc1 serpenteava a rea mais populosa da provncia,
a zona da mata seca, ao norte do Recife. Cortada por muitas estradas e
picadas, ela comeava nos limites de Beberibe, antigo subrbio do
Recife, passava pelo stio dos Macacos e por So Loureno, mais a oeste
da capital, lanando-se entre os engenhos costeiros e a serra a oeste do
Recife em direo ao norte. Passava pelos mangues e rios da regio,
chegando no muito longe da costa em Paratibe e da a Pasmado, perto
da ilha de Itamarac, at o povoado de Tejucupapo, prximo vila de
Goiana, j quase na fronteira com a provncia da Paraba. O centro do
quilombo estava num pedao dessa floresta, situada entre as matas dos
engenhos Timb e Monjope, entre as freguesias de Paratibe, Paulista e
Recife, um local de terreno acidentado, cortado por riachos e brejos,
conhecido como Cova da Ona.
A floresta do Catuc era cortada pelas estradas que levavam gado e
algodo dos distritos de Bom Jardim, Limoeiro e Nazar para o Recife,
ou para Goiana, importante entreposto comercial na Zona da Mata. Os
caminhos do gado abriam grandes clareiras nas florestas e com o tempo
transformaram-se em largas estradas de terra batida. Da rea canavieira,
circundando Goiana, Igarass e Itamarac, seguia acar para o Recife,
principalmente pelo mar. Mas muitas estradas menores ligavam a capital e os povoados da rea de maior densidade populacional da provncia,
onde transitava uma populao livre bastante diferenciada. As comunicaes entre o porto do Recife e o hinterland da Zona da Mata seca
passavam, portanto, perto do quilombo. A situao era ideal para os ataques dos quilombolas. Por outro lado, essa proximidade das estradas
tambm facilitaria as manobras das tropas senhoriais e a posterior
destruio do Catuc.

Gilberto Freyre incluiu esse nome entre aqueles de origem africana na toponmia
pernambucana (Freyre, 1980: 452, nota 103).

O Quilombo do Catuc em Pernambuco 7


Pode-se acreditar que aquela floresta foi esconderijo de escravos
fugidos desde tempos imemoriais. Contudo, as fontes s tardiamente se
referem especificamente a existncia de um quilombo no Catuc. Koster,
durante uma viagem ao engenho Timb, mencionou o fato de a floresta
do engenho servir de esconderijo para bandidos e escravos. Contudo,
ele viajou de Recife a Goiana, descrevendo minuciosamente o percurso,
e morou algum tempo em Itamarac, mas no mencionou quilombolas
na rea (Koster, 1978: 66-68). Parece portanto que, mesmo assumindo
que florestas sempre foram lugar de esconderijo de fugitivos, o quilombo do Catuc s veio a existir como tal s vsperas da independncia.
Talvez seja impossvel datar precisamente o nascimento do quilombo.
Mas pode-se assumir que muitos escravos devem ter procurado as
matas durante a revolta de 1817, cujos participantes foram principalmente plantadores de algodo e cana que circundavam o Catuc.
Posteriormente, foi entre Goiana e Beberibe que se mobilizaram as
tropas senhoriais para expulsar o governador portugus Lus do Rego
em outubro de 1821. Ali tambm viviam muitos dos plantadores da Confederao do Equador, em 1824. A histria do quilombo do Catuc, portanto, est intimamente ligada a histria poltica e social da provncia
como um todo.
No que a populao negra tivesse ganho alguma coisa naquelas disputas. Mas a diviso das elites levou a uma desorganizao dos aparelhos repressivos que facilitou a fuga dos escravos e a formao de
quilombos na provncia. As fugas individuais eram combatidas como
parte do exerccio da justia privada dos senhores. Bem mais difcil era
combater fugas em massa, ou grupos de escravos reunidos. Os custos
tambm pesavam a. As diligncias contra quilombolas freqentemente
envolviam esforos que nem sempre um ou poucos senhores de engenho poderiam garantir. Por essa razo, a unio das elites era um pressuposto importante para as diligncias maiores. S quando liberado de
seu papel de regulador dos conflitos intra-elites, o Estado podia apoiar
mais efetivamente as tropas senhoriais. Por essa razo o quilombo renascia sempre que as elites se dividiam, e sofreu seus maiores revezes quando a classe senhorial estava unida. Ele cresceu com as disputas pela
independncia e a Confederao do Equador, mas foi duramente combatido na segunda metade da dcada de 1820. Voltou a crescer no final
da dcada, e na primeira metade dos anos 30, quando vrias convulses
agitaram o Recife e o interior, principalmente a Cabanada (1832-1835),
no outro lado da provncia. Terminada a guerra dos cabanos, a represso
voltou-se novamente para a zona da mata seca. O Catuc continuaria
existindo como asilo de fugitivos da justia estatal e senhorial, mas o

8 Marcus Joaquim M. de Carvalho


quilombo, como tentativa de construo de uma sociedade alternativa,
foi destrudo no final da dcada de 1830.
A primeira diligncia de maiores propores contra os quilombolas
deu-se em 1823. Um grupo de 24 ou 25 escravos fugiu do engenho
Abreos em Tracunham e foi se alojar na floresta. Senhores de engenho da rea juntaram-se no engenho Mussupinho em Igarass e dali partiram para as matas. Bateram a Cova da Ona com suas tropas durante
6 dias. Segundo uma autoridade, os fugitivos no tiveram tempo de se
juntarem aos quilombolas, que abandonaram as matas quando a
diligncia iniciou. Mesmo assim s conseguiram aprisionar 13 dos
fugitivos que estavam escondidos perto do engenho Monjope, e gastaram nada menos do que 352$925 ris em requisies para a operao
(APEPE, 1823).
Conforme observou Pereira da Costa, por volta de 1824 o quilombo do
Catuc j era bastante conhecido, tanto que Frei Caneca chamou
pejorativamente de Catuc s tropas realistas estacionadas na fronteira
entre Pernambuco e Alagoas, bem longe do quilombo portanto (Costa,
1985:9:47,286; Thypis, 1824). Ironicamente, parece que os quilombolas
se beneficiaram muito da guerra intra-elite de 1824. Em abril de 1824, o
porto do Recife j estava bloqueado pelo Comandante Taylor por ordem
de Pedro I. No sul de Pernambuco as tropas aliadas ao Rio de Janeiro
se organizavam para retomar o Recife. O Presidente confederado necessitava de todas as tropas disponveis para tentar parar o exrcito imperial
na costa sul de Pernambuco. Os quilombolas apareceram ento com
mais fora, roubando e matando gente "diariamente", segundo uma
autoridade. As estradas na zona da mata norte estavam por essa razo
intransitveis, os engenhos ameaados. Nem a proteo senhorial impedia o ataque dos quilombolas, tal como o ocorrido a um morador do
engenho Guruguza que foi roubado em sua casa (APEPE, 1824).
S depois da Confederao do Equador, em abril de 1825 foi que a
classe senhorial conseguiu comear uma represso mais eficaz sobre o
quilombo. O General Lima e Silva, Presidente da provncia, mandado por
Pedro para debelar a Confederao do Equador, utilizou a mesma tropa
que derrotou o governo confederado para combater os quilombolas
(Correspondncia, 1825; Dirio, 1825).
Apesar dessa operao, o quilombo continuou vivo. Em janeiro de
1826, o comandante das milcias de Igarass, senhor de engenho
prximo ao Catuc, atacou os quilombolas e para tanto requisitou
munio e vveres do governo (APEPE, 1826a).
A proximidade do Recife preocupava as autoridades. A prpria polcia
da capital vez por outra prendia quilombolas nas freguesias prximas as
matas (APEPE, 1826b). Em maio de 1826, o assunto entrou pela primeira

O Quilombo do Catuc em Pernambuco 9


vez na pauta da reunio do Conselho de Governo por causa de uma representao de vrios senhores de engenho. O Conselho de Governo
reconheceu a necessidade de combater os "negros fugidos amucambados nas matas prximas a essa cidade" e para tanto se disps a
colaborar com os senhores da rea na extino do quilombo (APEPE,
1826c). S com recursos do Estado, representados principalmente por
armas do exrcito e pagamento de soldo aos ordenanas (posteriormente guardas-nacionais) e milicianos, e s vezes at tropas de primeira
linha, seriam possveis as diligncias de maior envergadura entre 1826 e
1837.
Um grande problema para as tropas senhoriais era o nvel de organizao atingido pelos quilombolas. De acordo com a documentao
do Conselho de Governo, os quilombolas estariam ento se preparando para um ataque ao Recife. Estavam tramando o que um oficial
chamou ser uma "resistncia formal", inspirada na rebelio em Salvador
em agosto de 1826 (APEPE, 1827)2. Essa conscincia da luta antiescravagista em outras provncias sem dvida era perigosa para a classe
senhorial.
A ameaa ao Recife levou as autoridades a conduzirem outra diligncia
de porte, com a ajuda dos senhores de engenho e seus corpos de ordenanas. A operao seguiu o padro das anteriores. Enquanto as
tropas batiam as matas, piquetes foram espalhados nos pontos de
possvel fuga dos quilombolas, caso resolvessem deixar a floresta. Os
quilombolas lutaram bravamente. Um nmero no sabido morreu em
combate e foram feitos 63 prisioneiros. Mesmo assim o comandante da
operao reconheceu que a "maior parte fugiu" e que portanto voltariam
assim que a tropa deixasse a floresta. O oficial que comandou a operao
encontrou muitos "mucambos", e mesmo "casas" alm de "muitas
lavouras", que tratou de destruir e queimar antes de se retirar das matas
(APEPE, 1827).
Essa meno explcita existncia de casas nas florestas mostra que
houve portanto oportunidade para que alguns rebeldes construssem um
vida semi-sedentria, com a formao de famlias, unidade bsica para
a construo da noo de liberdade do escravo. A constante represso
a partir de 1826 tornou mais difcil essa sedentarizao e a prtica de
uma agricultura mais variada que a onipresente mandioca. Os quilombolas tornaram-se cada vez mais mveis, andando em grupos menores,
em que as mulheres participavam de todas as operaes. Uma "quadrilha" de quilombolas que atacou o baro de Cimbres em 1830 inclua 4
mulheres. Quando o quilombo foi arrasado em 1835, as autoridades
2

Certamente referiam-se ao levante de agosto de 1826. Vide Reis (1986:73-74).

10 Marcus Joaquim M. de Carvalho


acreditaram que apenas 4 homens e 6 mulheres teriam conseguido escapar das tropas (Lisboa, 1835; A Quotidiana, 1835).
Apesar daqueles ataques, foi possvel aos quilombolas construir uma
hierarquia mais ou menos slida em vrias pocas, outro indcio da complexidade atingida pela comunidade do Catuc. Em algumas diligncias
menciona-se a captura de uma ou outra pessoa tida como chefe dos
demais. Era comum tambm compar-lo (com algum exagero, claro)
com o quilombo dos Palmares, "repblica ainda que rstica (...) a cujo
exemplo pretendem imitar os do Catuc, elegendo Chefes..."
(APEPE, 1829). O documento mais revelador a respeito da tentativa de
formao de uma hierarquia estvel, contudo, o que trata da
diligncia mais destrutiva contra o quilombo, datada de 1835. Dois
dos lderes foram capturados, um deles filho do chefe anterior, morto
em combate. A autoridade havia portanto passado de pai para filho, o
que confirma a relativa estabilidade do quilombo, em que pese os
constantes ataques das tropas senhoriais (APEPE, 1835; Lisboa, 1835;
A Quotidiana 1835).
O mais famoso lder quilombola ficou conhecido como Malunguinho,
famoso a tal ponto que o espao da resistncia negra tambm costuma
ser referido pelas fontes como quilombo de Malunguinho. No comeo
de 1827, o governo provincial oferecia o prmio de 100 mil ris pela sua
cabea. Outros lderes, como Valentim e Manuel Gabo, valiam o prmio
de 50 mil ris cada um, e a captura de qualquer outro quilombola, 20 mil
ris (APEPE, 1827).
A anlise do nome Malunguinho traz alguns subsdios para o entendimento do Catuc. Por Malungos, ou companheiros, se tratavam
mutuamente aquelas pessoas que vieram ao Brasil no mesmo navio
negreiro. Os dois viajantes - Koster e Tollenare - indicaram, em meados
da dcada de 1810, que este era um liame informal muito significativo
entre os escravos de origem africana no Brasil3. Pereira da Costa, seguindo a documentao sobre o quilombo, chamou de Malunguinho um lder
rebelde, mas lembrou tambm que os prprios quilombolas eram co3

Tollenare (1956:143). Koster (1978:413). A respeito ver tambm o comentrio de


Lus da Cmara Cascudo (Koster, 1978: 417, nota 18). Bastide (1978: 85).

O Quilombo do Catuc em Pernambuco 11


nhecidos por malunguinhos4. Ocorre que, apesar das inmeras
diligncias contra o quilombo, no h informaes concretas da fuga,
captura ou morte de algum lder por nome Malunguinho. Tudo o que
sabemos foi que sua cabea foi colocada a prmio em janeiro de 1827.
Os documentos de uma expedio punitiva em 1829, mencionam explicitamente o nome de 5 supostos lderes do Catuc. Todos tinham
nomes prprios, e entre eles no se mencionou nenhum com o apelido
de Malunguinho (Silva, 1988: 76-91 )5 O nome de Malunguinho permaneceu, contudo, como um importante referencial do quilombo. Essa
forma diminutiva do termo malungo, pode talvez no se referir a uma
pessoa, mas a forma como a classe senhorial chamava qualquer chefe
do quilombo.
Sendo Malunguinho o chefe e Manuel Gabo um dos seus principais
subordinados em 1827, pode-se inferir tambm que haveria uma
predominncia de africanos no Catuc, at essa data ao menos, o que
historicamente tem sido a regra na maioria dos quilombos6. Mas o
emprego da forma diminutiva do termo malungo indica um estgio de
aculturao bastante avanado. Se Malunguinho no foi uma nica pessoa, mas qualquer chefe na viso daqueles que escreveram os documentos, o ltimo Malunguinho foi Joo Batista, morto em combate em 1835
(APEPE, 1835). As fontes no dizem se era africano ou crioulo (e o seu
nome cristo pode ter sido dado pelo senhor), mas podemos inferir que
seu filho e sucessor provavelmente deve ter nascido no Brasil.
Apesar do prmio por suas cabeas, os negros do Catuc no se
limitaram a tentar construir uma sociedade alternativa na floresta. Enquanto existiu o quilombo, houve ataques aos engenhos da regio, bem
como s casas dos moradores prximos das matas, comerciantes e
4
5

Esse dado permite-nos especular que talvez o quilombo tenha se originado de


uma fuga de escravos vindos no mesmo navio negreiro. Posteriormente, todos os
novos membros do quilombo tornavam-se tambm malunguinhos.
Esse importante trabalho traz alguns documentos sobre o quilombo do Catuc,
publicados originalmente em 1947-48, os quais contm algumas palavras e
nomes truncados. A maior parte desses originais se perderam, mas possvel
corrigir alguns desses defeitos comparando-se com os documentos ainda
existentes nos arquivos pernambucanos e aqui utilizados. Por essa razo vlido
considerar que "Matunguinho", ou "Mabenguinho", so frutos de uma leitura
errnea do nome Malunguinho nos manuscritos (Silva, 1988: 88-90).
Na diligncia, j mencionada, de 1829, pelo menos trs escravos boais foram
capturados no quilombo. Dois no sabiam dizer o senhor ou o local de morada
(Silva (org.), 1988: 79). Um outro, capturado depois, no sabia absolutamente
nada de portugus ou de qualquer outra lngua africana conhecida pelas
autoridades (APEPE, 1829a).

12 Marcus Joaquim M. de Carvalho


boiadas que transitavam nas estradas que ligavam o Recife a Zona da
Mata norte, e da seguiam para as fazendas de algodo e gado no agreste
e serto. Algumas das operaes dos quilombolas atingiram dimenses
considerveis. Em 1828 eles no s atacaram o engenho Guruguza
como chegaram a queimar o engenho Utinga, o que levou as autoridades
a organizarem mais uma expedio punitiva. Muitos foram ento mortos
e capturados. No foi possvel saber quantos, mas do lado da lei os
dados so precisos: pelo menos cinco soldados foram mortos, e uns
cinqenta feridos em combate ou em estrepes e armadilhas colocadas
pelos rebeldes nos caminhos que cortavam as matas. Muitos deles
ficaram aleijados, de acordo com o comandante da operao, que
acreditava ter eliminado os quilombolas mais prximos da vila de Goiana,
mas lamentava que no fora possvel fazer o mesmo com aqueles das
matas mais prximas do Recife7.
As fontes indicam que os quilombolas no estavam isolados. A bem da
verdade fica difcil entender a sua existncia assim to perto do Recife,
numa rea cortada por vrias estradas sem o apoio de uma rede de contatos fora da floresta que os informasse sobre as manobras das tropas
senhoriais. Esse problema era mencionado freqentemente pelos senhores de engenho da rea, que pediam "segredo" nas diligncias pois
a populao local sempre informava os quilombolas dos movimentos do
inimigo (APEPE, 1829c). Na zona rural mais populosa da provncia, o
contato entre rebeldes e libertos, e mesmo escravos dos engenhos da
regio, era fundamental para a existncia do quilombo. Essa cooperao
ocorreu inclusive nos ataques dos quilombolas. O Catuc, portanto, est
entre os quilombos do Brasil oitocentista, que tinham por base essa
cumplicidade entre escravos de engenho, quilombolas e a populao
livre e liberta local, mormente os no proprietrios dos meios de
produo. Tal como lembrou Suely Robles, nessa poca a tentativa de
reconstruo das tradies africanas num quilombo no era suficiente
para segregar os quilombolas da populao livre pobre da rea. O
Catuc era um quilombo mvel, dividido em vrios grupos no meio da
floresta, tendo por meio de vida no s a agricultura de subsistncia mas
tambm furtos nos engenhos e assaltos nas estradas, alm da prtica
de algum comrcio e contrabando. Conforme estudos anteriores
demonstram, estas atividades tinham por pressuposto a cooperao de
pessoas de fora do quilombo8.
7
8

"Correspondncia Oficial" 08/11/1828 in Costa (1985: 284-286). Dirio de


Pernambuco (1828). APEPE (1828).
Schwartz (1979:219); Price (1979:13); Bastide (1978: 90-96); Queiroz (1977:144).

O Quilombo do Catuc em Pernambuco 13


As autoridades explicavam essa situao dado a solidariedade racial.
Consideravam que toda a populao entre Paratibe e Cruz de Rebouas
era constituda de "negros" e "cabras", "scios" dos quilombolas, que
compravam plvora para eles e davam "asilo" aos fugitivos9. Vale
tambm observar que, mesmo os cativos que permaneciam nas senzalas nem por isso deixaram de contribuir para a resistncia do quilombo. Os escravos do engenho Monjope, por exemplo, ao menos uma vez
forneceram farinha aos quilombolas (APEPE, 1830).
Os libertos da rea iam at mais longe nessa aliana. A prpria
fragilidade da sua condio explica o pouco distanciamento entre eles
e os quilombolas10. Em 1829, uma expedio militar de 100 homens
enfrentou perto do engenho Monjope uma guerrilha do Catuc de pelo
menos 20 pessoas. Segundo as fontes os lderes da guerrilha eram dois
homens livres, Cosme da Ora e Manoel da Ora. O pai deles e pelo menos
mais um irmo j haviam inclusive sido presos por ajudarem "Malunguinho"11.
Mas havia tambm homens brancos cooperando com os quilombolas.
Desde os tempos coloniais sabido que plantadores prximos aos
quilombos tinham que negociar com os seus inimigos de raa e classe
(Schwartz, 1979:219; Mattoso, 1982:161-162). O medo dos ataques dos
rebeldes era a principal razo dessas alianas contraditrias e contingenciais, embora o contrabando de armas no deva ser esquecido como
fonte de renda. O Oficial que comandou a j mencionada diligncia de
fevereiro de 1828 estava ento muito decepcionado com os homens
brancos da regio. No s os moradores dos engenhos, mas mesmo os
senhores recusavam-se a ajudar as tropas do Estado por temerem a vingana dos quilombolas. De acordo com aquela autoridade, eles
preferiam manter os seus negcios com os rebeldes, a quem vendiam
plvora e cartuchame12.
Esse medo ficou mais evidente quando da priso dos irmos libertos
Manoel e Cosme da Ora, aliados de Malunguinho. Para surpresa do co-

9
10

11
12

"Correspondncia Oficial," 24/02/1829 in Dirio de Pernambuco, 1829.


Essa fragilidade foi percebida pela populao de Pernambuco em 1828 e em 1851.
Em ambas as ocasies vrias igrejas e prdios governamentais foram invadidos
pela populao rural por causa de boatos de que o governo pretendia escravizar
os "homens de cor". Foi essa a forma como os grupos subordinados interpretaram
o anncio, em 1828, dos tratados para o fim do trfico em trs anos, e a lei Euzbio
Queiroz de 1850. Carvalho (1989:111-113).
"Correspondncia Oficial," 24/02/1829 in Dirio de Pernambuco (1829).
General Antero Jos Ferreira de Brito ao Presidente da Provncia, 08/11/1828, in
Costa (1985: 284-286).

14 Marcus Joaquim M. de Carvalho


mandante da expedio militar, eles foram soltos pelas autoridades
locais que temiam a reao dos quilombolas13.
Da mesma forma, mesmo os senhores mais abastados temiam a
coragem dos negros do catuc. Em 1828, sabia-se que muitos se escondiam nas margens das matas circundando o engenho Monjope e Saquin. O senhor do engenho Saquin, em resposta a uma denncia,
escreveu numa folha local negando que jamais teria cooperado com os
quilombolas. Lembrava aos leitores que eles eram seus "inimigos" tanto
que haviam queimado um engenho de sua famlia, o Utinga, algum tempo
antes (Dirio de Pernambuco, 1828). No h porque no considerar o
senhor do engenho Saquin um "inimigo" dos quilombolas. Essa parte do
argumento do senhor bem clara. Contudo, parece tambm evidente
que a ameaa de um ataque, como o ocorrido no Utinga, forava os "inimigos" do quilombo a vez por outra cederem e assim no atrarem sobre
si a fora dos rebeldes.
Em alguns casos a amizade com os quilombolas poderia at salvar a
vida e bens de um proprietrio. H pelo menos um caso razoavelmente
bem documentado. Em 1829, havia pelo menos duas "quadrilhas" de
quilombolas nas matas. A que era comandada por Joo Pataca passou
a noite da vspera do dia de Santo Antnio batucando na senzala do engenho Macaco, sem ser importunada. Algum tempo depois um grupo
de quilombolas atacou aquele engenho. O senhor estava ausente, mas
l estava sua esposa, Dona Helena, de quem tentaram arrancar alguns
anis que trazia nos dedos. Uma mucama ento aproveitou um descuido
dos assaltantes e procurou Joo Pataca que marchou com alguns
homens para o engenho. Os dois assaltantes foram capturados castigando exemplarmente, um dos quais morreu na "roda de pau" que lhe foi
imposta (APEPE, 1829c).
A pobreza era o lao mais significativo entre homens de diferentes
nuanas raciais. Em 1830, um grupo j mencionado acima atacou um
proprietrio local. As fontes indicam que alm de 4 mulheres e 12 negros,
havia dois pardos e pelo menos um homem branco no grupo (APEPE,
1830a). Por definio um homem branco no podia ser quilombola. Esse
caso, portanto, indicativo de uma transio de rebeldia escrava para o
banditismo. Transio que parece ter sido comum, pois era tnue a linha
que separava o crime do escravo fugitivo dos demais crimes definidos
por lei. At mesmo porque no havia como um quilombola no ser
tambm um expropriador dos bens da classe senhorial. As linhas de
cooperao de classe numa sociedade baseada na escravido
poderiam ento cruzar categorias scio-polticas, tal como a de escravo.
13

"Correspondncia Oficial," 24/02/1829, Dirio de Pernambuco (1829).

O Quilombo do Catuc em Pernambuco 15


O banditismo era a situao ideal nesse cruzamento: bandos de
criminosos que incluam gente "de todas as cores" agiam por todo o interior de Pernambuco14. Alm disso, desertores e criminosos freqentemente encontravam suas companheiras entre escravas foragidas
(APEPE, 1830d).
0 uso do termo "branco" nas fontes tambm deve ser tomado em seu
sentido mais amplo. Afinal muitos senhores mestios preferiam se considerar brancos. Assim a referncia a presena de "brancos" junto a
quilombolas pode ser indicativo da participao de mulatos brasileiros,
escravos ou no, na resistncia armada. Essa presena de "brancos"
entre os quilombolas parece ter sido cada vez maior na medida em que
o tempo passava, trazendo a miscigenao em larga escala entre os
grupos subordinados, tornando os sonhos de reconstruo de uma
sociedade africana na selva mais difceis de serem realizados, e confirmando que a vida do homem livre pobre oferecia poucas chances de ascenso social. Numa diligncia ao "palmar" encontrado no Catuc em
1835, o comandante das tropas senhoriais afirmou haver gente de todas
as cores por l, chegando a dizer que viu poucos negros entre os quilombolas (APEPE, 1835a). Alguns meses e expedies punitivas depois,
uma autoridade continuava afirmando que o quilombo "no s composto de pretos" (APEPE, 1835a).
O final dos anos vinte seria terrvel para os quilombolas. Em 1829, eles
estavam suficientemente fortes para tomarem a iniciativa na guerra de
guerrilhas. Por duas vezes foram eles que atacaram de surpresa as
tropas mandadas para as matas. Por essa razo, o governo resolveu
deixar um corpo permanente de 80 homens nas vizinhanas da floresta
do Catuc15. Isso no foi o bastante para conter os malunguinhos. Continuaram os assaltos aos engenhos e estradas, freqentemente com a
ajuda de homens livres. Em maro de 1829, pelo menos 3 soldados morreram num desses ataques e trs ficaram feridos. De acordo com o Comandante das Armas da Provncia, os juizes de paz locais eram
Impotentes contra os quilombolas e seus aliados libertos. Por essa razo,
quatro batalhes de aproximadamente 60 homens cada foram enviados
para as matas. Eles incluam 45 soldados de primeira linha, 84 milicianos
e 114 ordenanas. Alm dessa tropa, um outro grupo de 237 milicianos
e ordenanas entrou na mata, dividido em pequenas patrulhas16.
Em que pese o significativo nmero de tropas j empregadas desde
maro, em julho o Comandante das Armas da Provncia ainda acreditava
14
15
16

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Ministrio da Justia, IJ1 820, 26/07/1830.


Dirio de Pernambuco (1829). APEPE (1830b).
"Correspondncia Oficial," 24/02/1829 in Dirio de Pernambuco (1829).
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Ministrio do Exrcito, IG1 64,27/03/1829.

16 Marcus Joaquim M. de Carvalho


que haveria de 200 a 300 pessoas escondidas nas matas, divididas em
4 quilombos principais. A soluo parecia portanto ser uma mudana de
estratgia. Os guerrilheiros negros conheciam perfeitamente a floresta
em que operavam, e com freqncia sabiam com antecedncia das
manobras das tropas. Nos momentos das diligncias eles se escondiam
no s na mata fechada, mas tambm nas grotas, nos mangues
prximos costa e nas ilhotas dos rios da rea. Em alguns casos
chegavam mesmo a sarem das matas por algum tempo, o que justificava
a preocupao, nas maiores diligncias, em cerc-las. Na estao
chuvosa, de maio a agosto, contudo, os quilombolas tornavam-se mais
confiantes e se estabeleciam em "palmares limpos", como asseverou
uma autoridade (Silva, 1988: 88-89).
Dentre os lderes quilombolas nas matas do Catuc, em 1829, chamava
ateno especial das autoridades as atividades de Joo Pataca, o
homem que puniu os assaltantes do engenho Macaco. Segundo as
autoridades, havia uma outra "quadrilha" de quilombolas por l, comandada por Joo Bamba, a qual era "ladrona e atacante". No entanto Joo
Bamba sempre agia em acordo com Pataca, cuja "quadrilha" era "mais
mansa". Pataca e seus homens apareciam nos vilarejos da rea onde
faziam compras e vendiam peixes. O lder andava com "negras e guarda de honra", fazia batuques nas matas, em alguns engenhos da rea, e
at mesmo dentro de casas no vilarejo de Tejucupapo (APEPE, 1829c).
De acordo com uma autoridade, antes eles iam a Tejucupapo "de salto",
mas "hoje [julho de 1829] so pacficos moradores nela, comendo,
batucando, passeando armados e obrigando que se lhes vendam armas
e plvora" (APEPE, 1829c). Pela mesma poca, os comandados de
Pataca se alojaram pacificamente na povoao de Ponta de Pedras e
ficaram l batucando entre os dias 24 e 28 de junho de 1829 (APEPE,
1829c)17.
Essa atitude reveladora da tentativa dos quilombolas, no s combaterem a escravido, mas tambm de se integrarem sociedade, mas
como homens livres. A aliana com a populao pobre do lugar, e at
com alguns senhores, como Dona Helena, do engenho Macaco, era
parte dessa estratgia mais ampla de sobrevivncia. Pataca sabia do
respeito que lhe era tributado pela populao local. Ao prender os dois
quilombolas que assaltaram o engenho Macacos, Pataca os levou para
a casa do comandante da milcia local para que fossem presos. A
autoridade alegou que no tinha cadeia e que Pataca os deveria remeter
ao juiz de paz. Contam as fontes deixadas pelos homens brancos, que
17 As fontes no se importam com os aspectos culturais do quilombo. Mas talvez
Pataca tenha sido um babalorix na rea, e como tal um importante contato entre
os guerrilheiros das matas e a populao de origem africana livre ou escrava.

O Quilombo do Catuc em Pernambuco 17


Pataca teria retrucado que tambm era Juiz de paz, e tratou ele mesmo
de punir os dois assaltantes (APEPE, 1829c).
Essa desenvoltura dos quilombolas levou o governo a mais uma vez,
tomar as rdeas da represso. Resolveram ento cercar a floresta, alm
de utilizar embarcaes para varejarem os pontos prximos costa, bem
como os mangues e os rios da regio. Nos seus planos, o comandante
da expedio tencionava contar com 500 homens, espalhados em vrios
pontos da rea, incluindo-se canoas com 8 homens cada para caarem
os fugitivos nos mangues e rios, bem como diversos piquetes de 20 soldados em vrios pontos nas margens da floresta, para evitar que abandonassem a sua proteo natural enquanto durasse a diligncia (Silva,
1988: 73-75).
Pataca foi um dos primeiros a serem presos. Sob promessas de alforria, e certamente depois de muitos castigos, as autoridades conseguiram
que ele e mais um outro quilombola se tornassem batedores, o que em
muito facilitou suas manobras. Muitos rebeldes foram mortos, inclusive
o lder guerreiro Joo Bamba e um outro importante chefe, Jos Brabo.
Mas Manoel Galo, outro, dos principais lideres, teria escapado (Silva,
1988: 76, 83).
A devastao foi grande. Cercados por vrios piquetes, ficou mais difcil
a mobilidade dos quilombolas. Resistiram bravamente, contudo. Ao final
da diligncia, afirmava uma autoridade que, embora o Catuc tivesse
sido "reduzido a um pequeno nmero de negros", era ainda 'temvel por
serem bons conhecedores destas matas, bem exercitados no fogo e
esto fugidos h muitos anos" (Silva, 1988: 88).
O quilombo sofreu muitas perdas nessas expedies da segunda
metade dos anos vinte e talvez tivesse sido extinto naquela poca no
fosse, mais uma vez, a ajuda indireta da conjuntura poltica do final dos
anos vinte e incio da dcada de 1830. Mais uma vez as elites estavam
divididas. O corpo de tropas do exrcito e os recursos estatais se voltariam para a regulamentao dos conflitos intra-elite. Parecia mais inteligente para o governo provincial manter o grosso dos seus
contingentes no Recife, numa poca em que tanto a sociedade dos Carpinteiros de So Jos ou Jardineira, de credo liberal, como a Coluna do
Trono e do Altar, absolutista, agitavam intensamente no Recife e no interior. Um dos objetivos dessa agitao era justamente mobilizar parte
do exrcito estacionado no Recife, o qual, tal como no resto do pas,
dividia-se entre soldados brasileiros e portugueses. Por conta dessa
diviso, o Comandante das Armas da Provncia sofreu uma ameaa de
morte em outubro de 1829, o que o obrigou a colocar uma tropa de 30
homens em frente sua casa. Essa situao agravou-se com a ecloso
da revolta de Pinto Madeira no serto, em novembro de 1829, a qual

18 Marcus Joaquim M. de Carvalho


pregava o absolutismo. A nomeao de um novo Presidente da Provncia
e outro Comandante das Armas no resolveu a situao catica dos
aparelhos repressivos estacionados na capital. Muito pelo contrrio, em
julho de 1830, reconhecia o novo Comandante que havia em Pernambuco oficiais absolutistas, liberais constitucionais e at republicanos. A
agitao permanecia num momento em que se iniciava a desmobilizao
da tropa que lutou na Cisplatina, colocando nas ruas do Recife um
grande contingente de ex-soldados desempregados. No interior, as
elites cindidas novamente, desde as eleies de fevereiro de 1829,
reiniciaram a velha prtica dos assassinatos como estratgia poltica.
Para agravar a situao, os documentos das autoridades do interior
esto cheios de casos de conflitos de jurisdio entre juizes de paz
recm eleitos, antigos capites mores e comandantes de milcias locais.
Em janeiro de 1830, Arajo Lima, o futuro marqus de Olinda, visitou o
engenho de sua famlia em Pernambuco e lamentou o estado de anarquia e agitao na zona da mata. Nada menos que 13 assassinatos de
cunho poltico haviam sido cometidos num curto espao de tempo (Carvalho, 1989).
O quilombo voltou ento a engrossar. Em 1830 os quilombolas j estavam fortes novamente e atacaram trs homens armados que caavam
nas florestas do engenho Monjope, um dos quais foi morto. Por essa
razo, um importante proprietrio da regio escreveu ao governo
solicitando ajuda para o pagamento do soldo da tropa que mobilizou
para bater as matas. Em suas investigaes descobriu um importante
contato dos quilombolas, o cigano Genono Dantas.
Dantas fora acusado de contrabandear armas do exrcito para os
quilombolas, e a acusao foi confirmada quando um juiz de paz apreendeu uma daquelas armas com um outro cigano. Posteriormente esse
indivduo escreveu para o mesmo juiz de paz solicitando a devoluo da
arma. Em sua carta alegava que a havia comprado a Genono Dantas,
que teria outras a venda pelo preo de 5 "pesetas". Dantas tambm foi
acusado de no devolver os escravos fugidos que capturava, e de ter
vendido ao menos dez deles18.
Nos meses que se seguiram, as diligncias contra os quilombolas
limitaram-se quelas executadas pelo senhor do engenho Timb, um
dos juizes de paz da regio. Essas excurses nem sempre foram bem
sucedidas. Era comum as tropas voltarem das matas sem terem encontrado ningum. Outras vezes os quilombolas atacaram em pequenos
grupos com armas de fogo, fugindo logo em seguida. Um desses grupos
foi encontrado por 6 vaqueiros que procuravam por uma vaca
18

APEPE (1830a). s.d.: Amador Queiroz para Francisco Antnio de Souza Leo.

O Quilombo do Catuc em Pernambuco 19


desaparecida do curral do engenho Monjope. Os quilombolas
retriburam os tiros e fugiram, deixando farinha de mandioca que, como
j foi dito, o juiz de paz acreditava ter sido dada pelos prprios escravos
daquele engenho. Por essa razo mais uma patrulha de 20 homens
entrou na mata. S que para surpresa das autoridades, os quilombolas
enganaram essa patrulha e aproveitaram-se da situao para roubar
mais farinha ainda do engenho Monjope (APEPE, 1830a).
Trs meses depois, um "criolo" contou para as autoridades que encontrou 17 escravos na estrada que lhe perguntaram onde ficava o
Catuc. Essa passagem ilustra a naturalidade com que se repassavam
informaes de fuga. Mas as autoridades tambm souberam do ocorrido e mandaram uma tropa de 20 homens para peg-los antes que
alcanassem o Catuc. Os fugitivos no se renderam. No combate 4
deles foram mortos, 8 recapturados, e 5 ganharam a liberdade das matas
(APEPE, 1830a).
Dois meses depois os quilombolas voltaram a atacar engenhos. Tambm no respeitaram a riqueza e poder de homens como Domingos de
Aguiar Malaquias Pires Ferreira, Baro de Cimbres, que, como foi dito
acima, foi assaltado por um grupo de quilombolas que incluia mulheres
e pelo menos um "branco" (APEPE, 1830a).
A difcil conjuntura do comeo dos anos trinta dificultava o apareIhamento de mais uma diligncia como a de meados de 1829. E a bravura
dos quilombolas era tal que mesmo os recapturados por vezes negavamse a dizer os nomes dos seus proprietrios legais, apesar dos castigos
infligidos (APEPE, 1829d; 1830a). O constante renascimento do quilombo demonstrava que s a fora no seria suficiente para destru-lo. Isso
levou o governo a mudar de estratgia. Ao menos desde 1826, sabia a
classe senhorial que era preciso abrir as matas para que elas no mais
servissem de esconderijo (APEPE, 1826c). No final da dcada de 1820
vrias sugestes foram feitas nesse sentido. Uma delas previa a criao
de quatro povoaes nos arredores das matas e a abertura de mais
estradas atravs da floresta19. Um grande passo nesse sentido foi dado
com a criao da colnia Amlia entre o final de 1829 e meados de 1831.
A colnia Amlia comeou com um grupo de 103 imigrantes de origem
germnica que pretendiam ir para o sul, mas que tiveram que fazer uma
arribada forada na costa nordestina e terminaram tendo que se instalar
em Recife. O governo pernambucano ento ofereceu para eles terras na
floresta do quilombo. A esse grupo juntaram-se mais 54 mercenrios
19

APEPE (1826c) Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico Pernambucano,


1829.

20 Marcus Joaquim M. de Carvalho


alemes, que foram desmobilizados por Pedro I depois do fiasco da
guerra da Cisplatina. Posteriormente, mais outros cinqenta mercenrios, tambm desmobilizados, juntaram-se colnia. Com suas
famlias, eles somavam algo em torno de 750 pessoas em fins de 183120.
Para ajudar a implantao da colnia, o governo provincial pagou por
algum tempo um subsdio de 160 ris dirios por cada adulto e 120 por
cada criana. Tambm colocaram um engenheiro militar alemo,
radicado em Pernambuco, para chefiar a colnia. As autoridades
acreditavam que os quilombolas no conseguiriam mais se firmar frente
fora dos mercenrios alemes. Em que pese alguma retrica em favor
da importao de trabalhadores livres para a agricultura, as fontes
deixam claro que o fim do quilombo era o principal objetivo da fundao
da colnia Amlia. No exagero dizer que os colonos foram ludibriados
pelo governo local, que deu a eles terras que precisavam ser arrancadas
dos quilombolas21.
Quilombolas e colonos parecem ter sofrido duramente. Em setembro
de 1830, os imigrantes requisitaram a continuao do pagamento do
subsdio ante as dificuldades encontradas (APEPE, 1830b). Ao menos
uma das famlias, os Cristiani, tiveram pessoas mortas pelos rebeldes
negros. Os colonos queimaram, contudo, grande parte da floresta para
fazer carvo, que terminou sendo o seu principal meio de vida. Grande
parte da floresta assim desapareceu, e isso em muito dificultaria a
formao de quilombos no Catuc. Apesar disso, a colnia tambm no
foi bem sucedida. O seu desaparecimento coincide com o perodo da
destruio final do quilombo22. Os colonos alemes foram fundamentais
para a represso aos quilombolas, mas sofreram tanto que terminaram
deixando Pernambuco.
A presena dos colonos alemes no Catuc em parte explica a menor
presena de quilombolas no correr da primeira metade da dcada de
1830, comparado com o quinqunio anterior. A Cabanada (1832-1835),
contudo, obrigou o Estado a concentrar todos os seus recursos em combates ao sul da provncia. E a falta de confiabilidade da tropa do Recife
levou o governo a trazer parte dos mercenrios do Catuc para
ocuparem uma importante fortaleza no Recife, durante os distrbios de

20
21
22

APEPE (1829a) "Correspondncia Oficial," 01/12/1831, in Dirio de Pernambuco


(1831). Dirio de Pernambuco (1829).
APEPE (1829a) Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico Pernambucano,
estante A, gaveta 12, 01/12/1829. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Ministrio
do Imprio, IJJ9 249,14/12/1829.
APEPE (1848). Dirio da Administrao Pblica de Pernambuco (1833). Costa
(1985: 313-316).

O Quilombo do Catuc em Pernambuco 21


1831 e 1832 (Costa, 1985:315). Embora timidamente, o quilombo ento
voltou a se reunir.
Em 1831,14 escravos do engenho de Joo Viera da Cunha (um futuro
lder praieiro) se recolheram ao Catuc. Roubos e mortes voltaram a
acontecer (APEPE, 1831). No ano seguinte, na jurisdio do juiz de paz
de Goiana, continuavam a "latrocinar, depredar e at seduzindo e desencaminhando a escravatura das fazendas desse termo" (APEPE, 1832b).
Prximo a Igarassu, os "pretos aquilombados" continuavam a furtar nas
estradas (APEPE, 1832b). O mesmo ocorria nos limites da floresta com
o Recife, na freguesia de Beberibe, onde os quilombolas atacavam at
residncias (APEPE, 1832b).
Mas a represso senhorial logo se fez presente. Se no correr da primeira
metade dos anos trinta faltaram grandes expedies punitivas como as
dos anos vinte, a ao dos senhores de engenho contra os quilombolas
foi constante. Na nova organizao judiciria do cdigo de 1830, a justia
de paz foi encarregada de reprimir os quilombos. A criao dos cargos
na guarda nacional e justia de paz foi importante na medida em que
armas foram distribudas pelo Estado para as diligncias contra o quilombo do Catuc (APEPE, 1832a; 1832b).
Mesmo com essa mais eficiente organizao da justia senhorial, em
torno de 1835, os quilombolas voltariam a ser um dos principais
problemas para a classe senhorial da provncia. No comeo daquele ano,
atacaram o engenho Mussupinho alm de fazerem vrios assaltos
(APEPE, 1835a). Um juiz de paz juntou 39 homens e bateu as matas. Encontrou muitos poos e estrepes, e depois de muito andar achou um
"palmar", "forte pela situao em que estava colocado". Quando se
preparava para atacar foi surpreendido pelo vivo fogo dos quilombolas.
O juiz de paz teve 5 de seus homens feridos e "muitos estrepados". Os
quilombolas novamente tinham um lder reconhecido como tal, o j mencionado Joo Batista, o "famoso Batista", que fora ferido durante um dos
combates de que participara (APEPE, 1835a).
Pelo menos mais trs diligncias de pequena escala foram feitas contra os malunguinhos na primeira metade de 1835 (APEPE, 1835a). Essas
operaes no foram suficientes para debelar o quilombo. Logo os senhores da regio comearam a aumentar o nmero de requisies de
ajuda do governo provincial. Em maio, por pouco os rebeldes no
apreenderam um dos carregamentos de armas enviado pelo governo
provincial para ajudar na destruio do quilombo (APEPE, 1835a). Uma
tropa de 100 homens entrou na mata para capturar Batista e seus
seguidores. De acordo com o depoimento de um forro que estivera com
os quilombolas, eles no eram muitos mas estavam bem armados e
municiados (APEPE, 1835a).

22 Marcus Joaquim M. de Carvalho


Em julho e agosto, Batista continuava em atividade. A intensa mobilidade de seus homens os salvou em vrias ocasies. Tanto atacavam
perto do Recife como nas imediaes de Igarass e Goiana, mais ao
norte. Segundo as autoridades, a populao branca do lugar andava assustada com a crescente atividade dos quilombolas (APEPE, 1835a;
1835b).
A sorte de Joo Batista foi selada, entretanto, pelo fim da Cabanada.
Em setembro de 1835, o governo provincial contava com um grande
contingente de guardas nacionais e soldados de primeira linha treinados
em duras batalhas nas matas do sul da provncia. Contava ainda com os
ndios de Barreiros que colaboraram na represso aos cabanos. Foi
ento organizada uma grande operao. A presena dos ndios, exmios
batedores, foi fundamental para o seu sucesso. A morte de Joo Batista
e a captura de seu filho e sucessor marcou o fim do quilombo do
Catuc. De acordo com o Chefe de Polcia da Provncia, apenas 10 pessoas escaparam23. No final de 1836, e em 1837, mais duas diligncias
de menor envergadura foram feitas contra os negros do Catuc (Costa,
1985:288). Pode-se dizer que, por muitos anos, as matas ainda serviriam
de esconderijo para fugitivos da justia, ou da escravido, mas o quilombo como tal parece ter desaparecido com a morte de seu ltimo grande
lder, Joo Batista.
O que se pode dizer da estrutura interna do quilombo?
Estando muito prximos do Recife, os quilombolas no poderiam
nunca isolar-se completamente do mundo do homem branco. A bem da
verdade, fica difcil entender a sua existncia sem referncia as divises
polticas das elites em 1817,1821 -22,1824 e 1831-35, que levaram o Estado a deixar um pouco de lado a represso aos escravos. Assim, o
quilombo cresceu nos momentos de diviso das elites e foi duramente
combatido quando ela estava unida.
Por conta da tumultuada poltica senhorial entre 1817 e 1824, o quilombo atingiu em meados dos anos vinte um alto grau de complexidade.
Isso indicado no s pelo temor do Conselho de Governo de uma
invaso ao Recife, mas tambm pelo fato de terem sido encontradas
vrias casas, lavouras e choupanas no meio da mata. Um outro dado importante apontando nessa direo foi o grande nmero de soldados
feridos em estrepes e armadilhas, que exigiam muito trabalho e destreza
para serem construdas com eficincia. Nesse perodo, o prmio
oferecido pela cabea do chefe Malunguinho, e a meno explcita de

23

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Ministrio do Imprio, IJJ9 251, 12/09/1835.


APEPE (1835b) Lisboa (1835): A Quotidiana Fidedigna (1835).

O Quilombo do Catuc em Pernambuco 23


um outro lder por nome Manoel Gabo indicam uma possvel
predominncia de africanos no quilombo.
Com o aumento do nmero de diligncias, o quilombo definhou. Contudo, os quilombolas puderam se beneficiar das contradies sociais, e
do caos poltico desde 1817 at o final da Cabanada, para elaborarem
suas estratgias de sobrevivncia. Os mais fracos foram os mais atingidos pela violncia urbana e rural do comeo dos anos vinte e trinta.
Cedo, a pobreza tornou-se um lao significativo entre homens de diferentes nuanas raciais. Libertos e mesmo "brancos" (nos limites do que foi
dito acima) foram encontrados entre os rebeldes. Os roubos se
sucediam, bem como o comrcio tendo outros prias do mundo do branco como intermedirios, como foi o caso do cigano Genono Dantas.
O ltimo lder maior, Joo Batista, no tinha um nome africano. O
quilombo diversificara-se. Se fato que o Catuc pode ter-se originado
de uma fuga de malungos, posteriormente outros cativos e oprimidos
em geral se uniram aos malungos originais. Em que pese a essncia
africana do quilombo, ele ento deixou de ser puramente uma tentativa
de reproduo de sociedades africanas e tornou-se um fenmeno afroamericano, hbrido, uma linha de combate contra o status quo, que envolvia escravos e libertos, de diferentes procedncias e histrias de vida.
Se levarmos em conta tambm a mobilidade do grupo comandado por
Joo Pataca, e sua presena nas vilas e senzalas dos engenhos,
podemos fazer mais algumas inferncias. A primeira que mesmo com
o passar do tempo e a diversificao do quilombo, a religiosidade
africana continuou sendo o mais importante referencial cultural dos
quilombolas, alm de um liame fundamental entre os fugitivos aquilombados e a populao negra da rea, seja livre, liberta ou mesmo escrava.
Uma segunda inferncia a confirmao que, em alguns momentos, os
brancos no eram fortes o suficiente para destrurem os quilombo, da
ento surgia um modus vivendi que uma ocasio permitiu a Pataca exercer o ofcio de fato, seno de Direito, de juiz de paz.
Contudo as condies de possibilidade de existncia do quilombo,
como sociedade mais ou menos estvel, eram a relativa intransitabilidade das matas pelo homem branco e a desunio entre as elites.
O desmatamento feito pelos colonos alemes abriu os esconderijos para
as tropas que viriam perseguir os quilombolas no final dos anos trinta. A
Cabanada (1832-35) deu novo alento ao quilombo. Uma sedentarizao
permanente talvez no fosse mais possvel mas, conforme se viu acima,
durante a estao das chuvas, os quilombolas se estabeleciam em "palmares limpos". O fato do filho de Joo Batista ter-se tornado lder tambm
indica uma certa estabilidade na hierarquia de comando: o filho sucedendo ao pai. Mas depois da Cabanada a elite no mais brigaria entre si at

24 Marcus Joaquim M. de Carvalho


meados da dcada seguinte, estourando a Praieira em 48. A tropa que
combateu os cabanos foi colocada contra os quilombolas. A rea foi cercada mais uma vez e os rebeldes caados sem trgua.
Depois disso tudo Malunguinho entrou na memria de Pernambuco.
Zumbi, o lder dos Palmares, at hoje o nome de um local no Recife
por onde passa a avenida Caxang. No final do sculo dezenove, Pereira
da Costa notou que Malunguinho e Catuc eram os nomes de dois locais
no subrbio de Afogados, em Recife (Costa, 1985:289). Em 1849, depois
da eliminao do quilombo, os radicais liberais pernambucanos,
liderados por Borges da Fonseca, se aliaram aos praieiros numa revolta contra o governo provincial. O nome escolhido por Borges para o
pasquim da insurreio, que chamou de "revoluo de novembro", era
"O Catuc". Uma homenagem pstuma a bravura dos malunguinhos da
floresta da Cova da Ona.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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O Quilombo do Catuc em Pernambuco 25

1830b

Correspondncia da Corte 2,26.09.

1830c

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1830d

Policia Militar 1,26.07. Juizes de

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1832b

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26 Marcus Joaquim M. de Carvalho


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