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2 Referencial Teórico

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2 REFERENCIAL TERICO

2.1

O HOMEM, A SOCIEDADE E A SOLIDARIEDADE


Filsofos como Hobbes, Malthus e Maquiavel definiram o homem como um

ser essencialmente egosta e individualista, exceto quando domesticado pela


cultura. Thomas Huxley acrescenta ser a natureza uma arena onde se d a luta pela
existncia ou, segundo Thomas Hobbes, uma guerra de cada um contra todos. 1
Outras correntes de pensamento discordam, afirmando que a vida se
caracteriza tanto pela cooperao quanto pela competio. Peter Kropotkin
refutou a idia de que o egosmo seja uma herana animal e a moralidade uma
conseqncia da civilizao, afirma, ao contrrio, que a cooperao uma antiga

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tradio animal, um dom que os homens compartilham com os animais. Para ele,
a evoluo promove a competio entre os seres, mas tambm os condiciona a
buscar a ajuda mtua.

Kropotkin questiona por que, em sendo a vida uma

competio, existe tanta cooperao. O homem seria, por instinto, um animal antisocial ou pr-social? 2
Segundo Moraes (2001), o conceito sociolgico preponderante antigamente
vislumbrava o homem como um ser hermeticamente fechado ao mundo exterior,
isolado, semelhante a uma ilha: era o chamado homo clausus. O homem seria uma
espcie de micro-clula autnoma e auto-suficiente.
A concepo da moderna sociologia - o homo non clausus - oposta ao
conceito acima citado. Os indivduos s podem ser compreendidos pela sua
interdependncia, como parte de redes de relacionamentos sociais. Ao invs de
definir o indivduo como possuidor de uma identidade autnoma com a qual ele
interage com os demais e se relaciona com o que chamamos de sociedade,
socilogos como Norbert Elias argumentam que somos essencialmente sociais e

RIDLEY, Matt. As origens da virtude um estudo biolgico da solidariedade. Rio de Janeiro:


Record, 2000. p. 12
2
RIDLEY, Matt. Op.cit. p. 13

24

existimos pelas nossas relaes com os demais (Elias in Van Krieken,1998)3. A


relao dos indivduos com seus semelhantes passou a ser vista como constitutiva
de sua existncia, uma condio fundadora. Logo, o indivduo no pode mais ser
classificado de acordo com a concepo do pensamento liberal-individualista que
o v como uma pequena totalidade. Entretanto cabe considerar que cada ser
humano nico: nico e plural a um s tempo, parte da comunidade humana,
mas possuidor de um destino singular, esta a lei da pluralidade humana4.
As razes da sociedade esto na natureza humana, ela no existe porque o
homem a inventou. Logo, pensa-se o indivduo como inserido na sociedade, como
parte de um tecido social no qual a interdependncia a regra, e a abertura em
relao aos outros, uma verdadeira necessidade. Seguindo esse raciocnio, ser

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solidrio pertencer a um mesmo conjunto e compartilhar uma mesma histria5

2.2

A SOLIDARIEDADE
Qual o significado da palavra solidariedade? Qual a sua origem? Ela vem do

latim sldre e deriva da palavra solidez, que quer dizer qualquer corpo que tem
consistncia, que no oco, que no se deixa destruir facilmente.6 De acordo
com o

dicionrio

Houaiss,

vocbulo solidariedade possui diversas

interpretaes, dentre elas: lao ou ligao mtua entre duas ou muitas coisas ou
pessoas, dependentes umas das outras e mutualidade de interesses e deveres.
Na Sociologia, o conceito definido como a condio do grupo que resulta
da comunho de atitudes e de sentimentos, de modo a constituir o grupo uma
unidade slida, capaz de resistir s foras exteriores e mesmo de tornar-se ainda
mais firme em face de oposio vinda de fora.7
3

VAN KRIEKEN, Robert. 1998. Disponvel em:


<http://www.usyd.edu.au/su/social/elias/book/ch1.htm>.Acesso em: 02 nov.2002.
4
MORAES, M. C. B. O princpio da solidariedade. in PEIXINHO, M.M.; GUERRA, I. F.;
NASCIMENTO FILHO, F. (Orgs.), Os princpios da Constituio Federal de 1988. Rio de
Janeiro: Lumen Iuris, 2001. p. 4
5
MORAES, M. C. B. Op. Cit. p. 6
6
CUNHA, A. G. Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.p. 2.602
7
Disponvel em:< http://www.terravista.pt/Bilene/2458/dic-soc/soc_s.html#sociologia>. Acesso
em: 02 nov. 2002.

25

O socilogo francs Emile Durkheim denominou solidariedade social


ligao existente entre todos os indivduos em uma sociedade.8 Para Durkheim, a
solidariedade pode ser mecnica ou orgnica. A solidariedade mecnica tpica
da fase primitiva da organizao social (como em sociedades pr-agrcolas) e se
origina das semelhanas psquicas e sociais entre os membros individuais. Todos
os membros da sociedade desempenham tarefas idnticas ou parecidas. A ligao
entre os componentes da sociedade advm da dependncia de todos no sistema
social geral, e no em alguns indivduos. O progresso da diviso do trabalho faz
com que a solidariedade mecnica se transforme em orgnica. Esta no se baseia
na semelhana entre os componentes, como a mecnica, mas sim na juno das
partes diversificadas. O encontro de interesses complementares desenvolve um
novo lao social. Como nos rgos de um ser vivo, os indivduos exercem funes
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especficas e contam com o bom desempenho dos demais indivduos para que o
sistema continue a funcionar bem. Se um rgo apresenta problemas, o seu malfuncionamento prejudica os demais.
A solidariedade orgnica aporta uma maior autonomia e uma conscincia
individual mais livre, ao mesmo tempo em que a interdependncia entre os seres
o seu pilar de sustentao.
Sobrinho de Durkheim, o pesquisador francs Marcel Mauss realizou
diversos estudos em sociedades primitivas nas quais avaliou a questo da
interdependncia entre os indivduos.
Pela lgica da diviso social do trabalho, as trocas entre pessoas, famlias e
grupos so necessrias e ultrapassam o ambiente econmico. Mauss9(1974)
analisou o conceito de economia natural, segundo o qual as necessidades dos
indivduos geram a demanda por bens e sua conseqente troca, e concluiu pela sua
inaplicabilidade, tanto em sociedades primitivas, quanto em modernas. Tal
8

Disponvel em: <http://www.terravista.pt/Bilene/2458/dic-soc/soc_s.html#sociologia>. Acesso


em: 03 nov. 2002.
9
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, com uma introduo obra de Marcel Mauss, de
Claude Lvi-Strauss. 1. ed. So Paulo: Pedaggica e Universitria, 1974. 2 v.

26

concluso se baseia no fato de que as coletividades se sobrepem aos indivduos


na questo das trocas. Elas so os sujeitos ativo e passivo que se obrigam
mutuamente, trocam e contratam. Em suas relaes, o intercmbio extrapola a
circulao de riquezas, o mercado somente um dos momentos da vida de relao
estabelecida entre os grupos de pessoas. O pesquisador ressalta em seus estudos
os chamados Sistemas de Prestaes Totais, nos quais os intercmbios atingem
diversas esferas da sociedade, tais como a cultural, a social, a poltica e a
econmica. Em tais sistemas, o pesquisador constatou a prtica das trocas como
formadoras de um ciclo composto de trs movimentos: dar, receber e retribuir.
Estabelece-se assim o ciclo ou circuito da ddiva 10.
Mais adiante, neste captulo, aprofundaremos os diferentes aspectos dos
estudos sobre a ddiva e os relacionaremos solidariedade e responsabilidade
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social corporativa.
A solidariedade pode ser pensada tambm como uma virtude de origem
histrico-religiosa condizente com o princpio cristo que prega que todos os
homens so irmos, pois foram criados por Deus. A fraternidade seria ento uma
conseqncia natural da prpria origem do homem. Essa linha de pensamento se
materializava em costumes exigidos dos cidados, atravs de prticas
assistencialistas e filantrpicas, em pocas de menor integrao mundial e de
predomnio das idias catlicas. Com o passar dos tempos e o aumento da riqueza
mundial, a noo obrigacional de fraternidade perdeu importncia e passou a ser
vista como uma escolha do indivduo, que pratica a caridade se a sua conscincia
assim o desejar.11
No entendimento jurdico, em sentido estrito, a solidariedade envolve
devedores que devem responder pelo valor global do que pegaram emprestado
coletivamente. Caso algum devedor seja inadimplente, os outros tm a obrigao
de responder por ele. Em sentido lato, a solidariedade jurdica um dever da
sociedade, citado na Constituio do Brasil, que diz ser um objetivo fundamental
10
11

MAUSS, Marcel. Op.cit. p.41


FARIAS, J. F. C. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

27

instituir uma sociedade justa e solidria, da qual a pobreza e a marginalizao


devem ser erradicadas e as desigualdades sociais e regionais reduzidas.12
Em outra acepo, denomina-se solidariedade subjetiva reunio em torno
de interesses comuns, criando uma espcie de comunidade aglutinada em torno
dos mesmos objetivos. Os propsitos defendidos pela comunidade podem ser
considerados politicamente corretos ou no. Assim, ao defender os interesses do
outro, o indivduo est defendendo a si mesmo, uma vez que possui os mesmos
interesses. O aspecto moral ento destitudo, passa-se da concepo crist
virtuosa para o que se classifica como egosmo utilitrio garantir o cumprimento
dos seus prprios interesses.
J a solidariedade objetiva o pertencer a um mesmo conjunto e partilhar,
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consequentemente quer se queira, quer no, quer se saiba, quer no - uma


mesma histria... o que diferencia uma sociedade de uma multido13.
Cabe ainda analisar a solidariedade sob a vertente de Carl Sagan (1998),
relacionada discusso histrica acerca da aplicabilidade das chamadas Regras de
Ouro, de Prata, de Bronze e de Ferro ao comportamento de pessoas, de empresas e
de naes.
A Regra de Ouro, atribuda a Jesus de Nazar, pode ser encontrada no
Evangelho de So Mateus, VII:12 : Fazei aos homens tudo o que desejais que
eles vos faam, pois esta a Lei e os profetas. No Evangelho de So Lucas,
VI:31, temos: Tratai todos os homens da mesma maneira que quereis que eles
vos tratem. Segundo esta regra, deve-se tomar como medida do que se deve fazer
aos outros, o mesmo que se deseja seja feito para si mesmo. H a aplicao do
respeito aos direitos de cada um, como cada um deseja que sejam respeitados os
seus direitos. Tal princpio se estende ao cumprimento dos deveres para com o
outro, famlia, coletividade e a todos os seus componentes. Assim, a
12

13

BRASIL. Constituio (1988). Art. 3. So Paulo: Saraiva, 2001.

COMTE-SPONVILLE, Andr. Pequeno tratado das grandes virtudes. So Paulo: Martins


Fontes, 1995. p. 98.

28

cooperao e a justia prevaleceriam entre os homens, dirigindo o seu


comportamento e o modus operandi das instituies sociais.
J a Regra de Prata prega que no devemos fazer aos outros o que no
desejamos que nos faam. Alguns dos exemplos mais inspiradores desta regra no
sculo XX foram Mohandas Ghandi e Martin Luther King Junior. Eles
aconselharam povos oprimidos a no responderem violncia com violncia, mas
tambm a no serem submissos e obedientes. Eles pregavam a desobedincia civil
pacfica, utilizando-se de coragem, de fidelidade s suas propostas e de uma
postura pacifista para demonstrar aos seus opressores e ao mundo a justia de suas
causas.
A Regra de Bronze diz: Faz aos outros o que te fazem. a lex talionis, ou
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a Lei de Talio: Olho por olho, dente por dente. Segundo Carl Sagan, tal
comportamento freqente na humanidade. Um exemplo citado pelo autor o
conselho dado pelo ento presidente americano Bill Clinton no auxlio que
prestou s negociaes do acordo de paz entre os israelenses e os palestinos,
citando o Alcoro: Se o inimigo se inclina para a paz, incline-se tambm para a
paz.14
A Regra de Ferro Faz aos outros o que quiseres, antes que te faam o
mesmo, apresenta um aparente carter prtico, porm traz em si mesmo o risco
de dano a quem a pratica, pois consolida a hostilidade entre as partes envolvidas e
aumenta o risco de conflito.
De posse de tantas regras, como age a sociedade? Existe alguma regra mais
apropriada que a outra? Como saber qual regra ir funcionar, qual promover o
efeito desejado e a ajudar a progredir?
Com o intuito de descobrir o que de fato funciona, Sagan (1998) prope que
se amplie o paradigma histrico que vislumbra interaes humanas e sociais

14

SAGAN, C. As regras do jogo - in Bilhes e bilhes. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.
p. 202.

29

baseadas no conceito de ganhar-perder, no qual as perdas equilibram os ganhos e


a soma final zero. Segundo o citado autor, nem toda interao deve ser uma
competio ou um conflito. A busca pelo conhecimento, a construo da paz
mundial, a divulgao das artes e da cultura so proposies de ganhar-ganhar.
Por outro lado, a depresso econmica, a recesso, os ataques ao meio-ambiente
so propostas de perder-perder.
preciso ampliar o escopo de viso e analisar a questo da funcionalidade
das regras com o auxlio de instrumentos cientficos. Para tal, usaremos a Teoria
dos Jogos, presente em Moraes (2001) e Sagan (1998), que busca avaliar qual o
valor prtico da solidariedade atravs da apreciao cientfica de questes dos
tipos: ganhar-ganhar, ganhar-perder e perder-perder. Cooperar com o outro vale

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pena?
Aborda-se tal questo pelo uso de um jogo denominado O Dilema do
Prisioneiro. O jogo busca demonstrar, atravs de simulaes lgico-realistas, a
dificuldade de uma ao solidria, quando existem recompensas em disputa. O
ponto central explorado pelo jogo a melhor ao do ponto de vista lgico, no se
levando em conta nenhum tipo de padro moral.
A situao apresentada a seguinte: dois cmplices em um crime so presos
no em flagrante e separados imediatamente, sem que tenham tempo hbil para
formularem uma estratgia comum de defesa. Para que confessem, a polcia diz, a
cada um, que o outro j confessou e o incriminou. Trs possibilidades se seguem:
A e B no confessam; A e B confessam; A alega inocncia e incrimina B ou viceversa (B incrimina A e se diz inocente). A e B sabem que: se ambos alegarem
inocncia, suas penas sero leves; se ambos confessarem, suas penas sero
mdias; se um trair o outro, alegando sua prpria inocncia, no ser punido,
enquanto a pena do outro ser rigorosa. O dilema justamente a indeciso quanto
a que atitude adotar, pois se ambos no confessarem ou confessarem, suas penas
sero relativamente leves, porm se um trair o outro, o traidor no ser punido e o
trado ter que cumprir uma pena severa. Deste modo, a atitude de defeco
(traio) aparenta ser a mais indicada para cada participante, todavia, se ambos
traem, a situao torna-se prejudicial para os dois.

30

O Dilema do Prisioneiro parece comprovar cientificamente a atitude


egosta do ser humano em relao ao outro, entretanto o cientista poltico
americano Robert Axelrod alterou as condies do experimento e obteve novos
resultados: em uma simulao realizada em um torneio interativo de programas de
computador em rodzio contnuo, diversos padres de comportamento so
confrontados e, no final, aquele que obtm a pena cumulativa mais leve
considerado o vencedor (Ridley, 2000). O resultado da pesquisa demonstrou que a
estratgia mais eficaz a chamada tit-for-tat, anloga Regra de Bronze Faz
aos outros o que te fazem - combinada atitude inicial de cooperar na primeira
rodada. Ou seja, quando a situao de repetio e se joga com o mesmo grupo
de jogadores, os participantes acumulam experincias sobre o comportamento uns
dos outros. Ao adotar uma estratgia de mdio ou longo prazo, baseada em uma
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jogada inicial cooperativa e, depois, em cada rodada subseqente, fazer aos outros
exatamente o que eles lhe fizeram, os jogadores garantem uma melhora conjunta
de situao. Para terem sucesso, os estrategistas Tit-for-Tat devem encontrar
outros que estejam dispostos a retribuir suas jogadas, com quem possam
cooperar.15 Axelrod observou que, ao longo do tempo, as estratgias diferentes
da acima descrita se autodestroem, por generosidade ou crueldade exageradas.
Segundo Carl Sagan, as lies que o Dilema do Prisioneiro deixa para a
sociedade, entre outras, so: as vantagens da clareza estratgica e as desvantagens
da ambigidade estratgica; a importncia das metas de longo prazo em
detrimento das de curto prazo; os perigos da ingenuidade e da tirania.
Analisando tais lies do ponto de vista da interdependncia generalizada
presente nas interaes entre os diversos atores da sociedade, notamos que as
relaes sociais so, em grande parte, de longo-prazo. Todos os atores sociais
desejam extrair benefcios do convvio em grupos, enquanto continuarmos a viver
juntos. Da nasce o entendimento sobre a lgica da convivncia em harmonia,
necessria evoluo humana.

15

SAGAN, C. Op.cit. p.208.

31

2.3

A SOLIDARIEDADE E A COMPETITIVIDADE EMPRESARIAL


So inmeras as contradies do mundo moderno, no qual a fome, o

desemprego e a incerteza convivem com a crescente demanda da sociedade por


transparncia na esfera pblica, por posturas ticas, pelo desenvolvimento
sustentvel e pela justia social.
O cenrio mundial de desigualdade evidencia a necessidade de aes que
revertam esse quadro. Se no por altrusmo ou algum tipo de virtude tico-moral,
pela importncia de manter a ordem social e garantir que o progresso alcanado
nas ltimas dcadas possa continuar.
A violncia crescente nos centros urbanos evidencia que o momento
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especialmente delicado. Como garantir que a situao no fuja ao controle do


poder pblico? Existe algo que impede a falncia dos meios de manuteno da
civilidade?
O paradoxo da dxa16 fala sobre a manuteno da ordem social apesar da
existncia de situaes deplorveis e desumanas de vida. Dados do Banco
Interamericano de Desenvolvimento mostram que 1,3 bilho de pessoas
sobrevive, no planeta, com menos de um dlar por dia; 3 bilhes vivem com
menos de dois dlares; 1,3 bilho no tem acesso gua potvel; 3 bilhes no
tm acesso a saneamento bsico e 2 bilhes no usufruem a energia eltrica
(Relatrio Social Petrobras 2001). A populao parece ter a capacidade de
absorver tais situaes e t-las como admissveis, naturais. Tal aceitao parece
ser o freio que impede o desenvolvimento de uma violncia mais ostensiva, de
transgresses e revoltas que ameacem a manuteno da chamada paz social.
Entretanto no avanar no presente pode impedir o desenvolvimento no
futuro. Mltiplas reas da sociedade, como a tecnologia, a cultura e a cincia,
necessitam de uma base humana capacitada - bem alimentada, saudvel, educada para que possam se perpetuar e promover ondas de avano contnuo ao longo do
tempo. Os benefcios do progresso so sentidos por todos, assim como as lacunas
16

BOURDIEU, Pierre. A Dominao Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p.7.

32

deixadas por um crescimento de bases frgeis, que se fundamenta somente em


questes econmicas e deixa como saldo aspectos sociais mal resolvidos.
A sociedade organizada est consciente do quadro, ela tem sido defrontada
pela dureza da realidade e no mais discute quem seria o responsvel por corrigir
esse quadro catico. Ela comeou a agir e a buscar instrumentos de mudana
social. Um agente importante deste processo so as empresas.
As empresas, ocupando posio de destaque no processo scio-econmico
de gerao de riquezas, passaram a atuar de forma socialmente responsvel. Ao
aspecto j discutido da solidariedade como uma interdependncia, uma
comunidade de interesses ou de destinos, acopla-se a questo da competitividade.

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(Melo Neto e Froes, 1999)


O direcionamento empresarial para uma atuao socialmente responsvel
hoje considerado um investimento que contribui para a competitividade
empresarial. O ento Diretor da empresa Xerox do Brasil e atual Gerente
Executivo de Recursos Humanos da Petrobras, Heitor Chagas de Oliveira,
defende que alm da solidariedade humana, essa uma condio que poder
determinar a prpria sobrevivncia de suas organizaes. (Melo Neto e Froes,
1999, p. 98). Na medida em que a globalizao intensificou a competio entre as
empresas, preciso que as organizaes busquem diferenciais competitivos.
A empresa que investe em programas sociais de modo consistente observa o
surgimento de uma maior simpatia pela imagem da organizao. A corporao
deixa de ser vista somente como uma instituio geradora de grandes lucros parcamente distribudos a seus empregados e sociedade, como a causadora de
degradao ambiental e de demisses e passa a ser vista tambm como uma
empresa-cidad. Com a imagem fortalecida pelo seu comportamento participativo,
contribuindo para a reduo das mazelas sociais, a empresa ganha espao entre os
consumidores.17

17

Instituto Ethos. Home Page. Disponvel em:<http://www.ethos.org.br>. Acesso em: 24 jun.2003.

33

A ao social inteligente e de amplo alcance. A imagem corporativa


associada a uma postura defensora de uma causa, considerada justa pela
sociedade, estabelece uma relao de empatia entre a organizao e seus
consumidores. Simultaneamente, a organizao atua, tanto em uma perspectiva de
curto-mdio prazo, vislumbrando um possvel aumento de vendas, como em
termos de longo prazo, fidelizando os clientes sua marca. Assim, a empresa
socialmente responsvel tende a alcanar uma posio de destaque no meio onde
atua. Fatores como liderana, inovao e qualidade no so suficientes para
garantir a permanncia da empresa no mercado. Uma imagem consistente da
marca , sem dvida, um diferencial competitivo. (Pringle e Thompson, 2000)

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Alm disso, os produtos e servios da empresa adquirem maior visibilidade,


potencialidade e aceitao. Os stakeholders envolvidos so atingidos diretamente:
os fornecedores tendem a reforar os laos de parceria, pois entendem que a
atuao da empresa extrapola o mbito econmico; os clientes se identificam com
a marca, e, de certa forma, participam das aes sociais da organizao ao
comprar os seus produtos; a sociedade civil e o governo estreitam sua relao com
a organizao e podem mesmo desenvolver aes conjuntas com a corporao em
seus projetos sociais; os concorrentes observam os ganhos de valor da empresa e,
no raro, decidem adotar linhas de ao semelhantes; os funcionrios da empresa
se identificam com a sua atuao e fortalecem seu sentimento de pertencimento
e sua motivao no trabalho. (Melo Neto e Froes, 1998, p. 96)

Um outro aspecto mencionado por Peliano (2001, p. 51) o


desenvolvimento, em

os empregados que atuam em projetos sociais, de

competncias teis vida profissional: a criatividade, a capacidade de lidar com


situaes adversas (pobreza, baixa qualificao, escassez de recursos), o
aprofundamento do conhecimento sobre a realidade social do pas, o incremento
da sua sociabilidade, a maior sensibilidade nas relaes interpessoais e o aumento
da satisfao, da produtividade e da auto-estima, pois tais funcionrios se sentem
capazes de dar a sua contribuio, de fazer a diferena na vida de outras pessoas.

34

Enfim, como resultante da atuao socialmente responsvel, a empresa


fortalece a sua imagem corporativa, aumenta as competncias, a produtividade e a
motivao de seus empregados, divulga melhor a sua marca, os seus produtos e
servios, aumenta potencialmente suas vendas e melhora o seu relacionamento
com o governo e com a sociedade civil.

2.4

SOLIDARIEDADE X FILANTROPIA EMPRESARIAL


Segundo uma pesquisa recente desenvolvida pelo IPEA sobre os

investimentos em projetos sociais, feitos pelas empresas privadas, observa-se que


98% das companhias pesquisadas que se declararam atuantes no campo social
afirmaram nunca ter interrompido suas aes sociais. Em 60% dos casos, o nvel

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dos investimentos no se alterou, mesmo em tempos de crise. (Peliano, 2001,


p.38)
Esse quadro demonstra que as companhias privadas, cada vez mais, esto
atuando na rea social. Entretanto, importante analisar como e porque as
empresas investem no social. Seria por um sentimento filantrpico? Que fatores
diferenciam uma ao social baseada em altrusmo de uma ao pautada em um
compromisso social associado estratgia corporativa?
Tradicionalmente, o conceito de filantropia est relacionado a sentimento
humanitrio e motivaes altrustas. Segundo o estudo do IPEA, o envolvimento
pessoal dos dirigentes das empresas presidentes, donos, diretores ou scios o
principal responsvel pela atuao social das empresas. Em 50% dos casos, a
iniciativa dos dirigentes empresariais movida por fatores como: a histria de
vida dos empresrios, seus sentimentos de religiosidade, sua filosofia de vida, sua
formao pessoal, a necessidade de se sentirem teis e de atender as demandas das
comunidades.
A concentrao da atuao social em seus dirigentes caracterizada como
filantropia, quando no se estende cultura da empresa. Segundo Peliano (2001,
p. 102), A ao social decorre de uma opo pessoal dos dirigentes. Este perfil

35

de atuao gera a incerteza sobre a continuidade dos projetos sociais. Como a


filantropia no costuma trabalhar com metas pr-estabelecidas, no existe um
planejamento da atuao social. As aes filantrpicas, apesar de constantes,
costumam ser iniciativas isoladas, fruto de atitudes reativas s demandas da
comunidade. A prpria relao com o pblico-alvo beneficiado pelos projetos
restringe-se forma demandante-doador, ou seja, no se estabelece uma relao
de parceria entre as partes. H tambm a ausncia da associao da imagem
corporativa s suas aes sociais, fazendo com que a empresa no usufrua os
benefcios decorrentes de uma atuao cidad. O relacionamento com o Estado
no se estreita, no se forma um dilogo para debater as necessidades da
comunidade e o que est sendo feito pelo poder pblico, pelo setor privado e pelas
organizaes no-governamentais para atend-las.

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Conclui-se que os benefcios potenciais da interao entre empresascomunidade-governo-sociedade organizada so minimizados, quando pautados
pela lgica assistencialista. No existe uma preocupao da organizao em se
relacionar formalmente com o Estado e em buscar apoio s suas iniciativas.
De acordo com Rohden, entretanto, esse quadro est sofrendo alteraes. O
termo filantropia empresarial vem-se tornando ultrapassado, pois sugere uma
conotao negativa e visto pelo mercado como paternalista18. Pode-se observar a
tendncia profissionalizao da atuao social das corporaes. A base das
aes empresariais no social passa a ser a conscientizao das empresas de que
elas so co-responsveis pela resoluo dos problemas do pas. A lgica que
comea a vigorar a do compromisso social. A interdependncia entre os atores
que compartilham uma mesma realidade torna-se a chave da solidariedade que
mobiliza as empresas para uma atuao socialmente responsvel.
Sob este novo parmetro, a responsabilidade social passa a fazer parte da
cultura corporativa. As empresas participam pr-ativamente, suas aes sociais
so integradas e esto de acordo com os valores, a filosofia e a estratgia da
18

ASHLEY, P. A.; COUTINHO, R.B.G.; TOMEI, P. A.; Responsabilidade social corporativa e


cidadania empresarial: uma anlise conceitual comparativa. Anais do Enanpad 2000.
Florianpolis, set. 2000. 1 CD-ROM. p..8.

36

empresa. Conseqentemente, existe um planejamento das aes e dos objetivos a


serem alcanados, que so divulgados para a sociedade. H o maior envolvimento
dos empregados, que se propem a trabalhar nos projetos e se comprometem com
o atingimento dos resultados. A relao com as comunidades beneficiadas
calcada no sentimento de partilha e compromisso mtuo, cria-se um vnculo entre
as partes que d origem a uma parceria. Aumenta a interao com o poder
pblico, visando ampliao das aes e ao compartilhamento de determinadas
responsabilidades sociais.

2.5

OUTROS CONCEITOS DE ATUAO SOCIAL DAS EMPRESAS


As aes sociais das empresas tm sido tema de estudo recorrente na

literatura acadmica. Observa-se que existem abordagens conflitantes acerca do


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tema, classificando-o como responsabilidade social, cidadania empresarial e


marketing social. A partir das pesquisas realizadas, destacaremos o que essas
definies tm em comum e no que elas divergem.
Inicialmente, conceituaremos responsabilidade social corporativa; em
seguida, falaremos sobre marketing social e, ento, discutiremos o que a literatura
classifica como cidadania empresarial. No item seguinte, aprofundaremos a
concepo de solidariedade, comparando-o com os demais conceitos, utilizandonos para isso do modelo de Mauss e de estudos recentes, realizados a partir da
escola francesa que estuda o chamado paradigma da ddiva.

37

2.5.1 RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA


Em 1899, Andrew Carnegie, fundador do conglomerado U.S. Steel
Corporation, estabeleceu a abordagem clssica de responsabilidade social e a
publicou em seu livro O Evangelho da Riqueza. A viso desse autor era
paternalista e baseava-se nos princpios da caridade e da custdia. O princpio da
caridade apregoava que os membros mais afortunados da sociedade deveriam
ajudar os menos favorecidos; o princpio da custdia, derivado da Bblia, dizia
que as empresas e os ricos eram guardies que deveriam manter sob sua proteo
as suas propriedades, para benefcio da sociedade como um todo. O papel de
zeladores do bem-estar era concebido como uma conseqncia natural das

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responsabilidades advindas do poder19.


O conceito de responsabilidade social nos negcios, com uma concepo
prxima atualmente discutida, tomou corpo a partir do sculo XX: j em 1913, a
crena de alguns em que os negcios e a sociedade se relacionavam de maneira
orgnica, ainda que no bem compreendida, levaria as empresas obrigao de
fornecer outros tipos de servios sociedade, alm da gerao de lucros e da
produo de riqueza.(Heald, 1970, in Frederick, 1994)
Segundo Loureno e Schroder (2002), nas dcadas de 1950 e 1960, a viso
dominante nas empresas americanas sobre o tema era a paternalista, nos moldes
do auto-interesse esclarecido, pois, no campo social, as empresas atuavam
guiadas pelos princpios da caridade e da custdia. A ao social era uma espcie
de apndice caritativo praticado por algumas organizaes.
Ashley, Coutinho e Tomei (2000) observam que, aps a Grande Depresso e
a Segunda Guerra Mundial, a academia passou a questionar a noo de que as
empresas deveriam responder apenas aos seus acionistas. Da segunda metade do
sculo XX em diante, nos Estados Unidos, na Frana, na Alemanha e na
Inglaterra, a sociedade passou a adotar uma postura de maior cobrana das
empresas no tocante sua atuao social.
19

LOURENO, A. G.; SCHRODER, D. S. Op.Cit. Acesso em: 12 fev.2003.

38

A idia de responsabilidade social ganhou vulto na dcada de 1970. Em


1971, o Comit para o Desenvolvimento Econmico do governo norte-americano
divulgou o documento Responsabilidades Sociais das Empresas Corporativas,
defendendo a formao de uma parceria entre o governo e as corporaes para
estimular o progresso social ( Frederick, 1994).
Em 1972, na Frana, a empresa SINGER fez o primeiro Balano Social da
histria das empresas. Neste mesmo pas, em 12 de julho de 1977, foi aprovada a
Lei 77.769, que tornou uma obrigao legal a publicao de balanos sociais
peridicos para todas as empresas com mais de 700 funcionrios em seus quadros.
Tal nmero foi posteriormente reduzido para 300 funcionrios. (Torres, 1999)

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2.6

RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA NO BRASIL


No Brasil, a responsabilidade social corporativa comeou a ser pensada nos

anos 60, com a fundao, por empresrios, da Associao dos Dirigentes Cristos
de Empresa de So Paulo (ADCE). A ADCE expandiu suas atividades e
atualmente est presente no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, em Minas
Gerais, na Bahia e no Paran. Tal associao defende a perspectiva de que as
empresas, alm de produzirem bens e servios, tm uma funo social que se
corporifica em nome dos empregados e do bem-estar da comunidade.
A misso da ADCE "mobilizar os dirigentes de empresa, para que as luzes do
pensamento social cristo se comprometam com sua melhoria pessoal, e no
trabalho coletivo a transformao de sua empresa e do mdio empresarial como
um todo, contribuindo para uma sociedade solidria, justa, livre e humana"20.
Em 1977, a idia de responsabilidade social corporativa ganhou destaque no
pas, sendo tema central do 2 Encontro Nacional de Dirigentes de Empresas.
Porm, somente em 1984, publicou-se o primeiro balano social21 de uma
20

ADCE. Home Page. Disponvel em:< http://www.adce.org.br>. Acesso em: 22 jun.2003.


Segundo Supira (1999), o balano social de uma empresa (...) um documento publicado
anualmente reunindo um conjunto de informaes sobre as atividades desenvolvidas por uma
empresa, em promoo humana e social, dirigidas a seus empregados e comunidade onde est
inserida. Atravs dele a empresa mostra o que faz pelos seus empregados, dependentes e pela
populao que recebe sua influncia direta.

21

39

empresa nacional a Nitrofrtil. Em 1992, o Banco do Estado de So Paulo


(Banespa) divulgou um amplo relatrio de todas as suas aes sociais e, a partir de
1993, empresas de vrios setores passaram a divulgar o balano social
anualmente22. Tal movimento pode ser explicado pelo forte impulso dado ao tema
atravs das aes de entidades no governamentais, institutos de pesquisa e
empresas atentas questo social. Merece ateno o trabalho feito pelo Instituto
Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas (IBASE), que atuou fortemente na
divulgao do modelo de balano social, e que, em 1993, lanou a Campanha
Nacional da Ao da Cidadania contra a Fome, a Misria e pela Vida, com o
apoio do Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE). O lanamento
dessa campanha aproximou os empresrios do pas das aes sociais 23.
Outra iniciativa que contribuiu para ampliar a discusso sobre
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responsabilidade social no Brasil foi a criao, em 1995, do Grupo de Institutos,


Fundaes e Empresas - o GIFE - uma associao que rene organizaes de
origem privada que executam ou financiam projetos sociais, culturais e ambientais
de interesse pblico. O GIFE busca solues para que as desigualdades sociais
brasileiras sejam superadas, sendo seu objetivo estratgico influenciar as
polticas pblicas por meio de parcerias e do compartilhamento de idias, aes e
aprendizados com o Estado e outras organizaes da sociedade civil. Para atingir
tal meta, o GIFE24 busca o fortalecimento poltico-institucional de seus
associados, direcionando seu trabalho para a capacitao e o apoio atuao
estratgica de seus membros e de institutos e fundaes, especialmente de origem
empresarial.
Em 1997, utilizando a figura do socilogo Herbert de Souza, o IBASE
lanou o Selo do Balano Social, oferecido a todas as empresas que divulgarem o
balano social no modelo proposto pelo IBASE.
Em 1998, foi fundado o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade
22

SUCUPIRA, Joo. A responsabilidade social das empresas. Disponvel


<http://www.balancosocial.org.br/bib05.html>. Acesso em: 23 jun.2003.
23
LOURENO, A. G.; SCHRODER, D. S. Op.cit. Acesso em: 12 fev.2003.
24
Grupo de Institutos, Fundaes e Empresas - GIFE. Disponvel
<http//www.uol.com.br/gife>.

em:
em:

40

Social, uma associao sem fins lucrativos de empresas, de qualquer porte ou


setor, que buscam desempenhar suas atividades de forma socialmente responsvel,
em um processo de melhoria contnua. O Instituto tem como objetivo disseminar
as prticas de responsabilidade social corporativa, utilizando publicaes,
programas e eventos, cursos e experincias bem-sucedidas de empresas. Assim, o
Ethos25 busca auxiliar as organizaes a prosperar, contribuindo para um
desenvolvimento social, econmico e ambientalmente sustentvel.
Com destacada atuao no cenrio nacional, o Instituto Ethos considera as
empresas agentes importantes na promoo do desenvolvimento econmico e do
avano tecnolgico que est transformando rapidamente o nosso planeta numa

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aldeia global.26

No ano de 2000, o Instituto Ethos elaborou os Indicadores Ethos como um


sistema de avaliao do estgio em que se encontram as empresas em suas aes
sociais. O Ethos tambm promove, anualmente, a Conferncia Nacional de
Empresas e Responsabilidade Social. O trabalho desempenhado pelo Instituto
Ethos conta atualmente com a associao de 768 empresas.

Alm do GIFE, da ADCE e do Instituto Ethos, h outras instituies que


tm contribudo para desenvolver o conceito de responsabilidade social
corporativa no Brasil, tais como: a Fundao Abrinq pelos Direitos da Criana e
do Adolescente; a CIVES Associao Brasileira dos Empresrios pela
Cidadania; a GSET Gesto Social, Estudos e Tecnologia; a FIDES - Fundao
Instituto de Desenvolvimento Empresarial e Social, e a ONG RITS Rede de
Informaes para o Terceiro Setor.

25
26

Instituto Ethos. Home Page. Disponvel em:<http://www.ethos.org.br>. Acesso em: 24 jun.2003.


Instituto Ethos. op. cit. pgina inicial.

41

2.6.1 RESPONSABILIDADE SOCIAL NA VISO ACADMICA


Cada vez mais freqente no discurso do meio acadmico e na prtica
empresarial, o conceito de responsabilidade social combatido por alguns tericos
que se baseiam na viso dos direitos de propriedade de Friedman e na funo
institucional elaborada por Leavitt.
Segundo Friedman e Liedtka (1991), as empresas tm uma funo
essencialmente econmica, e os dirigentes empresariais so agentes dos
acionistas, devendo atuar somente para maximizar os lucros das corporaes.
Qualquer ao em sentido contrrio violaria as obrigaes institucionais, legais e
morais que os dirigentes assumiram perante os acionistas. O governo seria o nico

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ente devidamente legitimado para lidar com questes sociais.


Leavitt (1996, Jones apud Ashley, 2002, p. 3) defende que os gerentes das
empresas no possuem o tempo, a competncia tcnica e a representatividade
popular para desempenhar atividades sociais. Segundo o autor, as instituies que
devem atuar na rea social so: o governo, as organizaes sem fins lucrativos, os
sindicatos e as igrejas.
Os defensores do comportamento empresarial socialmente responsvel o
defendem baseados em duas vertentes, s quais Jones classifica como linhas tica
e instrumental
A abordagem tica est relacionada a princpios religiosos e a normas
sociais prevalecentes. De acordo com essa viso, os atores sociais devem agir de
modo socialmente responsvel, porque esta a ao moralmente correta, mesmo
que envolva despesas improdutivas para a empresa ( Ashley, 2002, p. 5).
A viso instrumental defende que h um impacto favorvel no desempenho
econmico da empresa, se ela atua de modo socialmente responsvel. As razes
para isso seriam as aes pr-ativas da organizao, ao buscar oportunidades
geradas pela diferenciao de seus produtos, a maior conscincia sobre as
questes culturais, ambientais e de gnero e a antecipao das empresas, que as

42

beneficia, na medida em que evita regulaes restritivas ao empresarial pelo


governo (Ashley, 2002, p. 21-22).
Carroll (1991), em seu modelo piramidal de responsabilidade social
corporativa, divide a atuao social em quatro tipos: econmico, legal, tico e
discricionrio (ou filantrpico). A autora destaca que todos os tipos de
responsabilidade social sempre estiveram presentes, de algum modo, no dia a dia
das organizaes, mas s recentemente a atuao tica e a discricionria
assumiram uma posio de destaque no ambiente empresarial. Abaixo
relacionamos as caractersticas relacionadas a cada uma destas responsabilidades:
Responsabilidade econmica: est na base da pirmide, pois,
historicamente, as empresas foram criadas como entidades econmicas,
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cujo principal objetivo produzir bens e servios necessrios e


desejados pelos consumidores, para obteno de lucros no processo de
comercializao. Carroll destaca que, em determinado momento
histrico, a noo de lucro transformou-se na de lucro mximo, o que se
tornou um valor da sociedade desde ento. Os demais tipos de
responsabilidade social dependem da realizao da responsabilidade
econmica, sem a qual a existncia da empresa fica ameaada.
Responsabilidade legal: como parte do contrato social firmado entre as
empresas e a sociedade, espera-se das organizaes que elas atuem de
acordo com os parmetros legais estabelecidos pelas cmaras de
vereadores municipais, assemblias legislativas estaduais e agncias
reguladoras do governo federal na busca de um resultado econmico
favorvel.
Responsabilidade tica: as responsabilidades ticas abrangem as
atividades que no so mandatrias em termos legais, mas que so
esperadas das organizaes, podendo mesmo no ser a melhor opo em
termos econmicos. Para atuarem de forma tica, as empresas devem
agir com justia, equidade e imparcialidade, alm de respeitarem e
protegerem os direitos dos stakeholders.

43

Responsabilidade discricionria (ou filantrpica): apesar de haver uma


expectativa da sociedade de que as empresas atuem de modo tico, a
responsabilidade discricionria sempre voluntria e direcionada pelo
desejo da empresa de contribuir para a sociedade, mesmo que no seja
impulsionada a tal por razes econmicas, ticas ou legais.
Uma observao importante acerca do modelo piramidal que os
diferentes tipos de responsabilidade apresentados no so mutuamente exclusivos.
A abordagem em separado dos componentes feita pela autora pode auxiliar os
gestores a administrarem a complexidade advinda da interao dinmica existente
entre os componentes da pirmide.

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Segundo Frederick (1994), o conceito de responsabilidade social vem se


desenvolvendo ao longo dos anos, assumindo uma face mais concreta e
pragmtica. A abordagem por ele denominada Responsabilidade Social
Corporativa - CSR1 - defende a obrigao da corporao de trabalhar para
produzir a melhoria social, atuando como uma filosofia balizadora que deve
permear todas as fases da operao da empresa. Essa obrigao poderia ser
realizada de maneira pr-ativa, por aes de iniciativa da organizao, ou reativa,
respondendo a obrigaes legais impostas pelo governo. O conceito de CSR1 foi
criticado como sendo vago, predominantemente filosfico. Na tentativa de tornar
o tema mais pragmtico, a partir da dcada de 1970, introduziu-se o conceito de
Responsividade Social Corporativa - CSR2 - definido como a capacidade da
corporao de responder s presses sociais. Com o advento do CSR2, fica claro
que a gesto da organizao e a maneira como ela conduz as relaes com a
sociedade so determinantes da sua capacidade de Responsividade Social. As
aes sociais so consideradas uma obrigao da empresa.
O conceito de CSR 2 foi criticado pelo seu prprio autor. Dentre outras
ressalvas, Frederick (1998) destacou que a responsividade social no explicitava
uma teoria de valores segundo a qual as corporaes deveriam atuar. Como
diferenciar o que seria benfico do que traria danos sociedade? Neste vazio,
entra em cena o conceito de Rectitude Social Corporativa - CSR 3 que defende a

44

necessidade de a corporao aderir a valores que nortearo suas aes, formando


uma espcie de tica normativa a ser traduzida na prtica em comportamentos
socialmente responsveis (Frederick , 1986, apud Mitnick,1995).
Posteriormente, Frederick (1998) questiona o modelo tradicional de gesto
que coloca a corporao como o centro do sistema social, o sol em torno do qual
a sociedade gravita - a estrela central do sistema social e o princpio vital cujos
raios produtivos ora enriquecem, ora empobrecem e, s vezes, devastam os
planetas sociais que giram em torno dele em rbitas irregulares.

27

O terico

destaca a necessidade de ampliar as consideraes tradicionalmente feitas pela


rea de estudos sociais em gesto, de modo que ela se baseie nas cincias naturais,
j que a natureza o princpio de toda a vida e, por isso mesmo, gera uma
influncia constante sobre ela. Assim, os horizontes de pesquisa seriam
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ampliados, incluindo perspectivas cosmolgicas, biolgicas, genticas, ecolgicas,


teolgico-naturalistas e neurocientficas. As corporaes se situariam como uma
parte integrada de um sistema cosmolgico de enorme complexidade, mais uma
pea do intrincado quebra-cabeas social, influenciando e sendo influenciadas
pelos demais atores sociais. Esse novo paradigma foi denominado pelo autor de
CSR 4 - Cosmos, cincia e religio. No tocante religio, o autor destaca que a
cincia j comprovou o determinante neurolgico que impulsiona o homem
religio. Logo, no cabe mais excluir o aspecto moral da discusso acerca do
compromisso social das empresas. O debate ser improfcuo, se se continuar a
pensar o desempenho corporativo dissociado do aspecto da eficincia social e
moral. A incorporao da dimenso cosmolgica atravs do CSR 4 complementa
a referncia normativa previamente elaborada pelos modelos de responsabilidade,
responsividade e rectitude social corporativa.
Segundo

Freeman

Liedtka

(1991),

discurso

tradicional

de

responsabilidade social das empresas separa o mundo corporativo do social, o que


no reflete a realidade: as empresas pertencem rede de relaes estabelecida
entre os diversos stakeholders da sociedade. Como parte de um sistema mais
amplo, as empresas formam comunidades de indivduos que conjugam os
27

FREDERICK, W. C. traduo livre. Op. cit. p.4.

45

interesses da coletividade com seus interesses pessoais. Sob o espectro do


feminismo liberal, os autores propem uma nova leitura das relaes
interpessoais na corporao e fora dela, uma abordagem que considere o fato de
que da natureza humana ligar-se, importar-se com o outro, bem como se
preocupar em manter e cultivar as relaes interpessoais. Considerar a
responsabilidade social como uma obrigao causada pelos direitos individuais
ignora a dimenso natural da troca entre os seres humanos e configura um jogo de
soma-zero: uma empresa age no campo social porque seu dever, algum recebe
os benefcios dessa ao e o assunto dado como encerrado. O potencial de
vnculo se torna estril.
Nos negcios, um campo fortemente ligado s relaes entre os indivduos e
os grupos e interdependncia que permeia o contato humano, os jogos de somaPUC-Rio - Certificao Digital N 0116831/CB

zero so posturas autodestrutivas.


A viso do indivduo como um ser interdependente e em constante relao
com os demais elimina o falso dualismo que separa o ser humano no trabalho do
ser humano social e integra o homem como um ser nico. Freeman e Liedtka
(1991) sugerem ainda a adoo de uma postura pragmtica, na qual as empresas
so vistas como meios de criao e recriao da percepo individual de
comunidade e de self como dois lados complementares, no antagnicos, da
mesma moeda.
Outro autor que questiona o modelo tradicional de gesto predominante
atualmente Shrivastava (1995). O pesquisador destaca que o modelo de gerao
de riquezas das sociedades industriais tem como foco criar riquezas pela expanso
tecnolgica, para ento distribui-las. Nas sociedades ps-industriais, ao contrrio,
o ponto central so os riscos que acompanham a criao e a distribuio das
riquezas - por risco entendam-se as perdas potenciais advindas da industrializao.
O autor faz referncia ao conceito de modernizao reflexiva, segundo o qual a
modernizao ps-industrial vista como uma srie de processos de avaliao e
de gesto dos riscos, principalmente os tecnolgicos e os ambientais.
De acordo com o paradigma tradicional de gesto, a ecologia vista como

46

mais um problema com o qual as empresas tm que lidar, alm de se preocuparem


- principalmente - em como aumentar a produtividade, a eficincia, os lucros e
qual a melhor forma de lidar com os riscos financeiros e de mercado. Tal enfoque
marginaliza os aspectos destrutivos da produo, coloca os riscos ambientais e
tecnolgicos em um plano secundrio. At mesmo os tericos de responsabilidade
social corporativa tratam o meio-ambiente como mais uma dentre as muitas
questes que merecem ateno especial das organizaes. Outro conceito central
nesta viso clssica o antropocentrismo, que prega que o homem, como espcie
superior s outras, domina o meio-ambiente e tem a natureza como uma
fornecedora de recursos para satisfazer s suas necessidades. Analogamente, a
corporao o plo principal em torno do qual giram os recursos humanos,
materiais e naturais - todos a servio da gerao de riquezas para os acionistas. A

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explorao dos recursos legitimada e deve ser realizada.


A nova concepo proposta por Shrivastava (1995) trata os riscos de
degradao tecnolgica e ambiental como bases da gesto empresarial, e no
como externalidades inevitveis do processo. Considerando que a natureza
fundamental e se confunde com a prpria vida, ela deixa de ser coadjuvante e
torna-se o ator principal do novo paradigma. Entra em cena a gesto ecocntrica,
na qual as corporaes no devem ser vistas como figuras principais, mas como
parte de ecossistemas industriais. Estes se assemelham aos ecossistemas naturais,
entendidos como redes de interdependncia entre os organismos e seu habitat, que
sobrevivem graas s trocas recprocas que realizam. O objetivo das corporaes
passa a ser a sustentabilidade e a qualidade de vida de todos os atores sociais
envolvidos, mesmo que isso gere desvantagens financeiras. Os recursos naturais
so usados de modo mais consciente, pois so considerados finitos; o consumo
baseado nas reais necessidades dos indivduos e no no estmulo desenfreado que
tem na compra um fim em si mesmo; o crescimento sustentado de longo prazo
supera a maximizao de lucros no curto prazo; a eficincia ambiental predomina
sobre a eficincia tcnica. A sociedade d um grande passo em direo
transformao social que garantir a minimizao dos riscos e a maximizao do
bem-estar dos diversos atores sociais.

47

2.6.2 MARKETING SOCIAL


Outra abordagem possvel para as aes sociais corporativas chamada por
alguns autores de marketing social. Kotler (1992) se refere ao termo marketing
social como um instrumento de planejamento que visa ampliar a eficcia dos
agentes sociais de mudana. O marketing social utiliza recursos de segmentao
de mercado, pesquisa dos consumidores, definio de metas e teoria da troca para
maximizar a reao favorvel do pblico-alvo em relao ao objetivo desejado.
Ao analisar o conceito sob o enfoque sociolgico, ele pode ser entendido como
uma tcnica que objetiva influenciar a ordem social para reafirm-la ou para
transform-la. Pringle e Thompson (2000) consideram que o marketing social
pode ser entendido como parte do ferramental estratgico de marketing, uma vez
que auxilia a empresa no seu posicionamento de mercado, ao associ-la a uma
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causa ou a uma questo social relevante, em benefcio mtuo para os parceiros


envolvidos. Segundo esses autores, o marketing social uma maneira de melhorar
a imagem corporativa, uma vez que ajuda a diferenciar os produtos e tende a
aumentar, tanto as vendas, quanto a fidelidade dos clientes empresa e a suas
marcas.

2.6.3 CIDADANIA EMPRESARIAL


Segundo Ashley, Coutinho e Tomei (2000), o conceito de cidadania
empresarial confundido com o de responsabilidade social e utilizado por alguns
autores como sinnimos. Popularmente, cidadania empresarial tem boa
receptividade por parte das empresas, que lhe conferem a conotao de gesto das
relaes comunitrias. Tal abordagem confere um carter instrumental cidadania
empresarial, na medida em que traz para a organizao vantagens competitivas
frente concorrncia. Sua principal caracterstica so os investimentos das
empresas nas comunidades por aes ou projetos sociais patrocinados pelas
organizaes.
Ostergard

(1999)

destaca

que

as

empresas

deveriam

tratar

responsabilidade social de forma estratgica, concentrando seus esforos em reas


que possam alavancar a concretizao de seus objetivos estratgicos.

48

Segundo Rodhen (1996, apud Ashley, Coutinho e Tomei, 2000), o conceito


de cidadania empresarial traz a noo de que a empresa co-responsvel pelos
problemas da sociedade, sendo uma empresa-cidad a que assume o papel de
agente ativo no desempenho de aes que melhorem a qualidade de vida da
sociedade como um todo.
Para Altman (1998, in Ashley, Coutinho e Tomei, 2000), cidadania
empresarial o meio atravs do qual a empresa, de modo intencional, interage
com os diferentes stakeholders que compem a comunidade.
Para Martinelli (1997, apud Ashley, Coutinho e Tomei, 2000), a empresacidad possui objetivos e instrumentos sociais e atua na transformao do
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ambiente social, no se restringindo a atuar no campo social para obter vantagens


econmicas. Assim, para o autor, alm de ser um agente econmico, a empresacidad um agente social que utiliza seus recursos em favor da promoo da
melhoria social.

2.6.4 A DDIVA
Neste item, abordaremos o arcabouo terico que nos servir de principal
modelo para o estudo de caso, utilizando-nos da viso da escola francesa que
estuda as pesquisas de Mauss, inicialmente reveladas quando da publicao de
Ensaio sobre a ddiva no volume 1923-4 da Ann Sociologique.
Vale destacar que essa escola foi fundada em 1981 por um conjunto de
acadmicos franceses das reas de Sociologia, Antropologia e Economia, que
discordavam da viso instrumental da democracia, baseada exclusivamente no
modelo econmico, que dominava as cincias sociais. Assim, tomando por base a
obra de Marcel Mauss, fundaram um movimento entitulado M.A.U.S.S.
Mouvement Anti-Utilitariste dans le Science Sociale (Movimento AntiUtilitarista nas Cincias Sociais). Seus artigos, inicialmente publicados no Le
Bulettin du Mauss (1982-1988), atraram pesquisadores, leitores e escritores de

49

vrios pases, que se identificaram com a postura crtica do M.A.U.S.S. e com as


reflexes em torno do que se convencionou chamar o Paradigma da Ddiva ou o
Paradigma do Dom. Atualmente o grupo composto por pensadores de diferentes
partes do mundo, inclusive do Brasil, que renem, em a La Revue du M.A.U.S.S.
semestrielle, artigos e teorias sobre uma nova linha de pensamento para as
cincias sociais e polticas, baseada na ddiva28.
No presente captulo, aps expormos as idias centrais relacionadas
ddiva, analisaremos o que a solidariedade, a responsabilidade social corporativa
e a ddiva tm em comum.
2.6.4.1 POR QUE ESTUDAR A DDIVA

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Segundo Caill (2001), as cincias sociais tentam classificar os fundamentos


da sociedade por meio de uma concepo utilitarista, segundo a qual seus
membros interagem movidos por interesses pessoais, no raro egostas. Tais
cincias divergem sobre como se deve pensar a sociedade: a partir do ponto de
vista dos prprios indivduos, ou tomando por referencial a totalidade que eles
formam, que, por sua vez, constitui a prpria sociedade. Sob a tica do
utilitarismo, segundo o autor, ou os indivduos so meros produtos mecnicos da
totalidade, ou, ao contrrio, a totalidade um simples produto, direto ou indireto,
dos clculos individuais. Assim, o utilitarismo est dividido em um momento
individualista e outro holstico, aparentemente inconciliveis.
O autor defende que existe uma terceira via possvel, designada por ele
como interacionista. Tal viso constitui uma nova abordagem possvel que explica
o relacionamento dos indivduos em sociedade: o paradigma da ddiva.
Para compreendermos o paradigma da ddiva, bem como seus impactos
sobre a atuao social das empresas, importante definirmos o que ddiva.

28

LA REVUE DU MAUSS. Disponvel em:>http://www.revuedumauss.com.fr>. Acesso em: 07


jun.2003;09 jun.2003;10 jun.2003;01nov.2003.

50

2.6.4.2 O QUE A DDIVA


O conceito de ddiva surgiu a partir de estudos etnogrficos de Marcel
Mauss, que vieram a pblico em 1923. Mauss realizou diversas pesquisas em
sociedades primitivas e constatou que a forma de relacionamento entre as tribos,
bem como entre os indivduos, baseava-se numa trplice obrigao: dar, receber e
retribuir. Essa seqncia de aes interligadas, operaes discretas nas quais a
vida social se decompe, definida por Mauss como ddiva. Segundo Mauss, a
ddiva a base da vida social e no constitui uma mera troca de bens devido s
complexas e diferentes formas de comportamento praticadas em seu rastro.
Os movimentos de dar, receber e retribuir so classificados por Mauss como
fenmenos sociais totais por animarem inteiramente a estrutura social e tocarem
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cada faceta da vida social dos povos estudados: ... o que trocam no so
exclusivamente bens e riquezas, mveis e imveis, coisas economicamente teis.
Trata-se, antes de tudo, de gentilezas, banquetes, ritos, servios militares,
mulheres, crianas, danas, festas, feiras em que o mercado apenas um dos
momentos e onde a circulao de riquezas constitui apenas um termo de um
contrato muito mais geral e muito mais permanente29 .
A ddiva, ento, no pode ser definida como uma simples troca de bens,
mas como um meio atravs do qual se estabelecem os vnculos sociais. Ela um
modo de transmisso, uma espcie de canal pelo qual circulam as relaes que
ligam os diversos atores sociais.
Segundo Caill (2001), o movimento de dar, receber e retribuir o ciclo da
ddiva - apresenta algumas singularidades: ao mesmo tempo em que um indivduo
d sem esperar receber nada em troca, natural que aquele que recebeu venha, por
sua vez, a retribuir o favor, estabelecendo assim um ciclo que se renova a cada
movimento. Esta constante troca institui o circuito da ddiva, que , por natureza,
temporal, e que se fortalece medida que as aes so renovadas. interessante

29

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, com uma introduo obra de Marcel Mauss, de
Claude Lvi-Strauss. 1. ed. So Paulo: Pedaggica e Universitria, 1974. 2 v. p.45.

51

destacar que Mauss diz que estas trocas no so ingnuas e desinteressadas, mas
antes buscam a manuteno de uma aliana proveitosa. Ou seja, o mais importante
o liame estabelecido entre os envolvidos, e no mais o objeto da troca em si.
Em seus estudos, Mauss observou algumas formas bsicas de ddiva, dentre
as quais falaremos sobre o potlatch.
O potlatch, encontrado por Mauss na Amrica do Norte e na Polinsia, tem
como essncia a obrigao de dar. Nas sociedades arcaicas estudadas, medida
que um componente da tribo gastava sua riqueza para oferecer presentes a outros
indivduos, adquiria prestgio e honra mediante os demais e fortalecia a sua autoestima. O potlatch representa um dom - ou modo de compartilhar o que se tem de carter sagrado, que desafia o recebedor do presente a retribui-lo com algo
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equivalente. Este sistema promove a circulao obrigatria de riquezas, tributos e


ddivas e explicita a fora que h na coisa dada que faz com que o donatrio a
retribua 30. Por isso, Mauss o classifica de Sistemas de Prestaes Totais.
Os componentes fundamentais do potlatch so o hau, a taonga e o mana.
Tais elementos so inseparveis: o hau o esprito que h nas taongas, ou coisas
dadas, e o mana o esprito do doador. O hau carrega em si a honra, o prestgio, a
riqueza e legitima as autoridades. Para manter o hau, preciso dar, receber e
retribuir as taongas, do contrrio surgem conflitos entre os integrantes das cls
que, dependendo da gravidade, podem se tornar guerras. Na medida em que as
taongas so trocadas, uma parte do mana do doador vai junto com os objetos, ou
seja, a essncia espiritual do doador cria um vnculo espiritual entre as partes que
obrigar aquele que recebe a retribuir e, posteriormente, a dar algo de si, uma
parte de sua essncia, de sua alma. Assim, para Mauss, as taongas so portadoras
do hau e servem de veculo para que a fora espiritual do hau ligue a pessoa ao
seu solo de origem e ao seu cl. Cada cl se liga a outros cls e assim
sucessivamente, formando tribos e sociedades.
Mauss destaca que em tudo isso, h uma srie de direitos e deveres de

30

MAUSS, Marcel. Op.cit. p.42.

52

consumir e retribuir, correspondendo a direitos e deveres de presentear e receber.


Contudo, essa estreita mistura de direitos e deveres simtricos e contrrios deixa
de parecer contraditria, se pensamos que, antes de tudo, h uma mistura de
vnculos espirituais entre as coisas, que so em certa medida alma, e os
indivduos e os grupos, que se tratam em certa medida como coisas

31

. Logo,

para Mauss, mesmo quando a troca tem a ver exclusivamente com objetos de
algum tipo, devemos recordar que objetos no so simplesmente coisas mortas e
inanimadas, como so considerados em sociedades altamente diferenciadas,
capitalistas. Objetos possuem uma alma, uma espiritualidade, de modo que um
objeto no simplesmente um objeto; da mesma forma, embora seres humanos
tenham uma espiritualidade, - muito freqentemente chamada de mana tambm
so objetos que podem, portanto, fazer parte do sistema de trocas. 32

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As reflexes de Mauss em sua obra buscam as razes que levam os homens


s trocas necessrias entre si e nos remetem a anlises acerca da permanncia
dessas prticas na sociedade moderna. Para Mauss, falecido em 1950, a ddiva
permeia de forma reduzida a sociedade ocidental contempornea. Os estudiosos
que formam a REVUE DU M.A.U.S.S. discordam desta considerao de Mauss
sobre o carter limitado de atuao da ddiva na modernidade. Formada por
pesquisadores como Alain Caill, Jacques Godbout e Guy Nicolas, entre outros, a
produo acadmica moderna pesquisa a aplicabilidade do paradigma da ddiva
modernidade. No prximo tpico examinaremos as consideraes que sustentam
tal discordncia.
2.6.4.3 A DDIVA NAS SOCIEDADES MODERNAS: SOCIALIZAO
PRIMRIA E SECUNDRIA
Goudbout (1999) formula a hiptese de que a ddiva no diz respeito
somente s sociedades primitivas, constituindo um elemento essencial a toda a
sociedade, alm de poder servir como instrumento auxiliar no entendimento do
futuro. Tomando como base esta proposio, vamos analisar as dimenses da
31

MAUSS, Marcel. Op.cit. p.59.(grifo da pesquisadora)


LECHTE, John. Cinqenta pensadores contemporneos essenciais: do estruturalismo psmodernidade. Traduo de Fbio Fernandes. 2. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2002. p. 39.

32

53

ddiva na sociedade contempornea, suas relaes com o mercado e com o Estado


e como ela pode influenciar os atores sociais, especificamente no que toca s
aes sociais das empresas, seus funcionrios e as comunidades envolvidas.
Segundo Godbout (1999), a ddiva est presente na totalidade da existncia
social, ela no est limitada a momentos de generosidade, advindos de
sentimentos altrustas, reservados ao terceiro setor ou beneficncia praticada por
alguns indivduos.

Pode-se compreender essa afirmativa, analisando-a sob o

enfoque das relaes sociais primrias e secundrias, ou, como denomina Galliano
(1986), a socializao primria e a secundria. Para desenvolver esta linha de
pensamento, inicialmente discorreremos sobre a socializao.
A socializao pode ser entendida como a introduo, ampla e consistente,
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de um indivduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela.

33

Ou seja, a socializao a maneira pela qual o indivduo aprende as normas da


coletividade, assimila-as e as adota como diretrizes em sua vida pessoal.
A socializao primria a que o indivduo inicia na infncia e a que o torna
membro da sociedade. Nela as pessoas criam e afirmam a sua unicidade. Ela se
inicia com o processo de interiorizao, que provoca a interpretao imediata de
um acontecimento objetivo de acordo com o sentido particular, subjetivo, que
adquire um carter significativo, subjetivamente, para o indivduo que se
socializa. ela que representa o lugar real, imaginrio ou simblico, onde as
pessoas entram em interao direta. Este lugar de interconhecimento direto pode
ser efetivo ou virtual. Como exemplos das relaes sociais primrias, podem-se
citar as relaes entre pais e filhos, a interao com os parentes e a amizade de
uma forma geral.
J a socializao secundria pode ser classificada como qualquer processo
posterior s relaes primrias que introduz o indivduo socializado em outros
setores do mundo objetivo da sociedade. 34

33
34

GALLIANO, A. G. Introduo sociologia. So Paulo: Harbra,1986.p.316.


GALLIANO, A. G. Op.cit.p.318

54

A diferena essencial entre os dois tipos de relao que o vnculo primrio


desejado por si mesmo, enquanto que a relao secundria considerada um
meio para atingir um fim. Ou seja, na socializao secundria os indivduos no se
inter-relacionam na qualidade de pessoas globais, mas como suportes de funes
ou instrumentos parciais em um processo de intermediao.
Godbout (1999, p. 163) destaca que a ddiva o veculo tpico da
socializao primria: Numa perspectiva fenomenolgica, pode-se dizer que a
socialidade primria constitui o espao concreto da intersubjetividade, e, portanto,
a ddiva a modalidade concreta e especfica desta.
Entretanto, para o autor, a ddiva no se limita socialidade primria, ela
pode permear outras esferas sociais. Analisaremos adiante como a ddiva atua em
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outras dimenses, tais como o mercado e o Estado. Para isso, abordaremos o


modo de funcionamento dos modelos mercantil e estatal e os relacionaremos com
a ddiva.
2.6.4.4 A DDIVA E O MERCADO
Pensando no modelo mercantil de atuao, vemos que ele se enquadra no
mbito da socializao secundria, onde, teoricamente, a ddiva no atua.
Entretanto, cada vez mais, observamos a tendncia empresarial de buscar
desenvolver relacionamentos de longo prazo com seus stakeholders. O marketing
de relacionamento, a busca da fidelizao de clientes, o desenvolvimento de
parcerias e a atuao social corporativa so exemplos dessa tendncia.
Avaliando sob a perspectiva da ddiva, cabe o questionamento a cerca das
semelhanas e diferenas do modus operandi do mercado em relao ddiva.
Segundo Goudbout (1999), uma caracterstica marcante da modernidade a
entrada do mercado no cerne das relaes entre os membros da sociedade. A
lgica mercantil utilitarista: cada agente orientado a entrar em contato com os
demais com o propsito de maximizar os seus interesses materiais. Paga-se um
preo por determinado bem ou servio e espera-se receber algo de valor idntico

55

em troca a regra da equivalncia mercantil.


Nesse espao, as relaes sociais so relegadas ao segundo plano e as coisas
que circulam assumem o papel principal. Os membros da sociedade so liberados
dos vnculos sociais, que, por sua vez, devem refugiar-se em outras esferas, mas
no no ambiente mercadolgico, onde o que vale so os interesses objetivos. O
mercado assume o papel de organizador racional das utilidades, disponibilizando
os bens e servios desejados pelo indivduo. Este fica livre de qualquer obrigao
relacionada s relaes sociais, a partir do pressuposto de que todo o vnculo
obrigatrio substituvel por um bem. Simmel (Simmel, 1987, apud Goudbout,
1999, p. 178) ilustra esta liberao dos vnculos ao dizer: O dinheiro (ou o
mercado) cria relaes entre os seres humanos, mas isso deixando-os fora delas.

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Outro aspecto do mercado a chamada liberdade mercantil. Hirschman


(Hirschman 1970, apud Goudbout,1999, p. 65) classifica como aspecto
fundamental da liberdade mercantil o exit. Traduzido em portugus como
defeco ou sada silenciosa, o exit a possibilidade de sair de uma relao
subitamente.
No mundo empresarial, o rompimento ocorre quando um cliente passa a
considerar um bem adquirido de uma empresa como insatisfatrio, deixando,
conseqentemente, de compr-lo. O problema que se apresenta que, em muitas
ocasies, o consumidor no sinaliza a sua insatisfao para a empresa fornecedora
ou produtora do referido bem, ele simplesmente encerra unilateralmente a relao
cliente-empresa. De acordo com uma sondagem feita pelo US Education
Foundation (Le Devoir,1991 apud Godbout,1999, p. 65), 96% dos clientes
insatisfeitos no manifestam a sua opinio e 90% dos clientes insatisfeitos optam
pela defeco. O rompimento da relao entre empresa e cliente insatisfeito
ocasiona tambm a dissoluo do vnculo, o que prejudicial empresa, pois ela
no recebe do cliente a informao sobre os aspectos de seu produto que o
desagradaram e motivaram a sua defeco. A empresa perde em vrios aspectos:
diminuem as suas vendas, sua imagem pode ser afetada e ela corre o risco de
perder aquele cliente indefinidamente.

56

Fazendo uma anlise comparativa entre o mercado e a ddiva, vemos que a


principal finalidade do primeiro o consumo, aps o qual a relao empresacliente tende a se esvair; em contrapartida, no sistema da ddiva, as coisas tendem
a circular eternamente, reforando, a cada interao, os elos da cadeia que une os
indivduos, ou seja, a ddiva estabelece uma cadeia temporal de relacionamento
interpessoal que tende a se perenizar, enquanto que o mercado forma uma cadeia
espacial limitada a fatores circunstanciais que finita.
Pode-se questionar se a prpria ddiva no poderia ser tratada como um
objeto e ser includa no mbito da circulao mercantil, como mais uma forma de
intercmbio. Como j abordado no presente trabalho, Mauss considera que a
ddiva um fenmeno social total que foge lgica da equivalncia mercantil e
anterior a ela. Assim, no cabe trat-la somente sob o enfoque mercadolgico,
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mas sim abord-la como base na qual se desenvolve a socialidade primria e, em


seguida, a secundria, dos indivduos.(Goudbout, 1999)
Na ddiva, a inteno do agente que deve ser levada em considerao,
bem como a maneira atravs da qual se estabelecem os caminhos para a criao
dos vnculos. No mercado, o resultado que importa.
Goudbout (1999) observa que a ddiva no tem preo, pois no pode ser
avaliada pela regra da equivalncia mercantil. A noo de preo no se aplica
ddiva, na medida em que ela se baseia, em parte, na gratuidade, e, em parte, na
expectativa de uma contraddiva. A aparente ambigidade faz parte das sutilezas
intrnsecas ao modelo da ddiva. A gratuidade e o retorno da ddiva existem e no
so contraditrios: a gratuidade se explica pelo prazer da ddiva, pelo fato das
pessoas afirmarem receber mais do que do no prprio gesto de dar; j a
contraddiva (ou retribuio) depende da relao que as duas pessoas desejam
estabelecer entre si. Muitas vezes a retribuio mais importante do que a ddiva
inicial, entretanto a retribuio no o fim almejado. Sobre este aspecto, diz o
autor:
Aplicamos ao dom, por engano, o modelo linear fim-meio,
procedendo ao seguinte raciocnio: ele recebeu depois de ter feito uma

57

ddiva; portanto, deu para ser retribudo. A finalidade era receber; neste
caso, a ddiva era um meio. Mas, o dom no funciona desta maneira.
Fazemos ddivas e, muitas vezes, recebemos mais do que damos; no
entanto, a relao entre essas duas atitudes muito mais complexa, de
modo que o modelo linear da racionalidade instrumental incapaz de
explic-la. 35
A ddiva funciona com uma lgica particular e no deve ser interpretada
segundo o modelo tradicional, ela no busca a igualdade ou a equivalncia. Podese mesmo dizer que tal busca prejudicial ddiva e a ameaa de extino. A
ddiva justamente baseada na dvida, e, por isso, abomina o modelo de
equivalncia mercantil.(Godbout, 1998)

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A dvida, quando voluntariamente mantida, est no cerne da natureza da


ddiva. Os agentes sociais envolvidos na ddiva encontram-se sempre em uma
relao de dvida. Assim, o dom legtimo aquele cujo sentido no se restringe s
convenes sociais e se traduz na expresso do vnculo entre os agentes.
Cabe agora analisar o que os modernos tericos da chamada REVUE DU
M.A.U.S.S falam sobre as semelhanas e as diferenas entre a ddiva e o Estado.
2.6.4.5 A DDIVA E O ESTADO
Para Goudbout (1999), o Estado, diferentemente do mercado, atua como um
mecanismo de redistribuio da riqueza, tendo, em alguns casos, a solidariedade e
a diminuio das desigualdades como seus pilares. o que ocorre com o Estado
brasileiro, que, na Constituio Federal de 1988, em o Ttulo I, chamado Dos
Princpios Fundamentais, estabeleceu como objetivos da Repblica Federativa do
Brasil, entre outros: a construo de uma sociedade livre, justa e solidria (artigo
3, inciso I), a erradicao da pobreza e da marginalizao e a reduo das

35

GOUDBOUT, Jacques T. Homo Donator versus Homo Oeconomicus,1998 in MARTINS, Paulo


Henrique (Org.). A ddiva entre os modernos: discusso sobre os fundamentos e as regras do
social. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.p.73.

58

desigualdades sociais e regionais36.


Na sociedade moderna, na qual a presena do Estado marcante, uma
parcela significativa das coisas que circulam passa pelo circuito da esfera pblica.
Iremos agora analisar como funciona essa forma de circulao pblica com
relao ao circuito da ddiva.
Titmuss (Titmuss, 1972, apud Goudbout, 1999, p. 66) defende que o Estado
tem a propriedade de difundir na sociedade o esprito da ddiva, pois a
solidariedade governamental e a ddiva se ampliam e se alimentam mutuamente.
Ao apelar para a solidariedade entre desconhecidos como nas campanhas de
doao de sangue, consideradas pelo autor uma das formas mais marcantes de
ddiva - o Estado estimula o sistema da ddiva. A redistribuio de recursos
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promovida pelo Estado representa, para o citado estudioso, a forma especfica que
a ddiva assume na sociedade ocidental moderna, e seria tambm o seu futuro. O
imposto seria o substituto da ddiva.
Goudbout (1999) discorda de Titmuss ao afirmar que o Estado, apesar de
estar freqentemente relacionado ddiva, no pertence ao seu universo, mas sim
a uma esfera que se baseia em princpios diferentes. Goudbout defende que o
Estado pode, por vezes, exercer efeitos negativos sobre a ddiva. Como exemplo,
o autor cita a responsabilidade assumida pelo Estado pelos programas sociais, que
atuariam como inibidores das iniciativas altrustas dos cidados. Logo, o sistema
governamental no seria um sistema de ddiva. Segundo Gury (Gury, apud
Goudbout, 1999, p. 75), a gnese do Estado moderno est em passar da ddiva ao
imposto. E uma ddiva imposta torna-se obrigatria, deixando, portanto, de ser
uma ddiva.
Outro fator diferenciador da ddiva em relao ao Estado o fato de o setor
pblico ter como princpio a igualdade, ou seja, todos os administrados so iguais
e devem ser tratados da mesma maneira, de acordo com as leis, as normas e os
regulamentos pr-existentes. O Estado repudia os tratamentos diferenciados por
36

BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil (1988). So Paulo: Saraiva, 2001.

59

representarem fonte potencial de privilgios, originando desigualdades e


injustias. Em contrapartida, a ddiva vive de diferenas, de afinidades, de
ligaes privilegiadas, personalizadas, que so a base dos relacionamentos
pessoais e dos vnculos sociais.
Uma outra contradio que torna a ddiva peculiar o fato de ela escapar ao
clculo, o que a ope ao princpio pblico da igualdade e ao princpio mercantil da
equivalncia.
Ao analisarmos as relaes entre o setor pblico e as redes primrias
(famlias, vizinhos, amigos, associaes), notamos que, em certas ocasies, o
Estado previdencirio atua, substituindo o que antes era feito por tais redes.
Podemos mencionar o seguro-desemprego dado a cidados fora do mercado de
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trabalho, bem como a proteo aos idosos, ambos concedidos pelo sistema de
seguridade social.
A ddiva pode estar presente nesses servios prestados aos cidados pelo
Estado, atuando por meio dos indivduos que compem o sistema de circulao de
bens e servios pblicos, ou seja, os funcionrios pblicos, devidamente
remunerados para isso, acrescentariam a ddiva prestao do servio.
Para analisar a hiptese acima, recorremos a Kurtz e Clow (1998), que
pregam que um servio, para ser bem prestado, deve demonstrar possuir atributos
especiais, diferentes de um produto. O servio, via de regra, intangvel,
inseparvel, varivel e no poder ser estocado. Ele quase que demanda uma
adio de ddiva, que pode ser espontnea, e ento classificada como tal, ou
ensaiada, inserida nos scripts de venda do servio, e da no percebida como tal.
Godbout (1999) defende que Mauss e Titmuss confundiram o sistema da
ddiva com o sistema governamental. Este pode, por vezes, desempenhar funes
assumidas pela ddiva em outras sociedades, mas no se pode deduzir da que os
dois sistemas se baseiem nos mesmos princpios.

60

2.6.5 A DDIVA, A RESPONSABILIDADE SOCIAL E A


SOLIDARIEDADE
Para os fins da presente pesquisa, h outros aspectos relevantes sobre a
ddiva que devem ser levados em considerao e que sero abordados neste item.
Aps relacionarmos esses aspectos, traaremos algumas consideraes sobre
como a ddiva, a responsabilidade social e a solidariedade esto relacionadas e
como realizaremos a anlise dos dados obtidos no estudo de caso.
De acordo com Caill (2001), a ddiva de Mauss regida por uma dupla
oposio paradoxal. O primeiro paradoxo o fato de que a ddiva s ddiva se
for espontnea, mas esta espontaneidade est condicionada obrigao do
indivduo ser dadivoso. O segundo paradoxo a necessria negao do interesse,

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sempre presente em uma relao social, como condio fundamental para a


satisfao entre as partes envolvidas na ddiva. Para o autor, o engano do
utilitarismo seria o de pretender limitar a ddiva, assim como todos os tipos de
ao, somente ao momento do interesse. Desconsiderar os trs demais plos
presentes na ddiva o da espontaneidade, o da obrigao e o do prazer
reduzir a complexidade das relaes sociais. A dinmica das interaes humanas
na vida em sociedade rica em nuances e no deve ser analisada sob uma tica
linear, pela qual as definies seguem um padro simplista do tipo ou branco ou
preto, sim ou no. Segundo o paradigma do dom, as relaes so complexas e
podem ter componentes de sim e de no simultaneamente, uma vez que os
diferentes aspectos da ddiva, em geral, no atuam de maneira isolada, cada um
de uma vez, mas, antes, se interpenetram continuamente.
A figura 1 ilustra tal complexidade. As relaes sociais so a base do
catavento e, sob maior ou menor influncia, so movidas pelos quatro plos da
ddiva, aparentemente opostos, mas no excludentes ou contraditrios entre si, e,
sim, complementares: a obrigao, a a espontaneidade, o interesse e o prazer.

61

FIGURA 1: OS QUATRO PLOS DA DDIVA E A COMPLEXIDADE

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DAS RELAES SOCIAIS

Para melhor compreender o aspecto acima mencionado, observamos que a


ddiva tem em si a capacidade de vencer a oposio entre o individual e o
coletivo, tornando os indivduos membros de um conjunto social amplo. A ddiva
uma espcie de catalisador das relaes de pessoa a pessoa, marcadora de
afinidades, no sendo necessariamente boa ou ruim. A obrigao de dar, receber e
retribuir que a caracteriza ...est, ao mesmo tempo, do lado do interesse e do
desinteresse, utilitarista e antiutilitarista, individualista e holista37, no se
concentrando nem de um lado nem de outro, seguindo uma via alternativa que
interacionista.
Isso pode ser devido ao fato de que, muitas vezes, os trs momentos do ciclo
da ddiva se confudem: no enfoque do ator, dar retribuir, e assim
sucessivamente. Quem retribui est dando tambm. Peliano (2001) observou em
sua pesquisa que muitos dirigentes de empresas se motivam a patrocinar projetos
sociais, porque crem que a vida lhes deu muito. Mesmo na caridade, a ddiva

37

CAILL, Alain. O princpio de razo, o utilitarismo e o antiutilitarismo in Ddiva e


solidariedades urbanas. Braslia: UNB, 2001.v. XVI, n.1/ 2. p. 47.

62

classificada por Goudbout (1999) como essencialmente gratuita, quem est dando,
est retribuindo tambm, porque considera que recebeu muito.
Assim, a ddiva se torna fundadora das alianas entre os indivduos, Por ela
ocorre a influncia de um nos demais, formam-se as identidades pessoais e se
constituem as comunidades.
Godbout (1999) destaca que, assim como o mercado e o Estado, a ddiva
tambm forma um sistema, no condicionado ao mercantil, que, aparentemente,
o modelo dominante na sociedade moderna. Para o autor, deve-se contestar a
pretenso da lgica mercantil de ser a matriz de todo o vnculo social e pensar que
uma outra ordem possvel. Em vez de atuarem como sistemas isolados e
excludentes, o autor prope que o Estado, o mercado e a ddiva atuem como
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dimenses que se nutrem e se interpenetram em um metasistema integrado. Tal


metasistema seria dominado pela lgica da ddiva, no pensaria o indivduo sob o
enfoque restrito de consumidor, mas pelo que est alm da relao empresacliente. Veria, enfim, o indivduo como cidado e agente constitutivo das redes
sociais.
As redes sociais, por sua vez, basear-se-iam em afinidades eletivas, em
ddivas e contraddivas, em vnculos sociais e comunitrios que tenderiam a se
perpetuar ao longo do tempo e iriam alm da relao binria utilitarista produtorusurio. Dessa sorte, estimular-se-ia a criao de um modelo de organizao
social que submeteria a circulao das coisas aos vnculos sociais, e no o inverso.
(Goudbout et Caill, 1999)
Comparando a proposio do paradigma da ddiva solidariedade, vemos
que o liame existente entre os atores sociais passa pela co-dependncia
generalizada entre as partes de um mesmo todo. Nesta linha de pensamento, uma
atuao social responsvel por parte de qualquer um dos agentes sociais, sob a
tica do paradigma ecocntrico, est afinada ddiva e solidariedade, que se
mostram assim, nestes aspectos, como concepes intrinsicamente relacionadas.
Sob este enfoque, a probabilidade do jogo social estar inserido no modelo

63

ganha-ganha maior do que no tradicional modelo utilitarista. Os atores sociais


participam das redes, munidos de todas as suas peculiaridades e com todo o seu
potencial criativo de perpetuar as alianas e torn-las proveitosas para todos os
envolvidos.
No estudo de caso da Petrobras S.A., analisaremos os dados obtidos luz do
paradigma da ddiva e de alguns conceitos de solidariedade. Faremos isso,
pautando-nos por caractersticas peculiares s duas concepes, abaixo
relacionadas:
A viso da moderna sociologia sobre o indivduo, visto como o homo non
clausus: o indivduo que, como partcipe da sociedade, agente
constitudo por ela e tambm o construtor da mesma, em um ciclo
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contnuo de mtua influenciao.


A solidariedade objetiva, segundo a qual ser solidrio pertencer a um
mesmo conjunto e compartilhar uma mesma histria. Sob este enfoque, o
tecido social composto pela teia da interdependncia entre os atores
sociais. A partir da, analisaremos como se do as trocas e o que as
motiva.
A ddiva como a fundadora das alianas entre os atores sociais e o canal
atravs do qual um influencia o outro.
A presena dos quatro plos da ddiva em diferentes nveis e formas
nas relaes sociais: o interesse, a espontaneidade, a obrigatoriedade e o
prazer.
A dvida entre os agentes sociais como caracterstica fundamental para a
existncia da ddiva.
A proposio de investigar a existncia de um metasistema integrado,
formado pelas dimenses do Estado, do Mercado e da Ddiva, que se

64

interpenetram mutuamente. Tal metasistema seria dominado pela lgica


da ddiva, que enxerga o indivduo como cidado e agente formador das
redes sociais, nas quais a circulao das coisas est a servio dos

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vnculos.

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