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O Testamento de Salomão

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Um templo de demnios?

a rejeio do
templo no judasmo do I sc. e no cristianismo
das origens
Luigi Schiavo
Professor no Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio e Coordenador do Curso de Teologia na
Universidade Catlica de Gois, Brasil. E-mail: schiavo.luigi@gmail.com

Resumo
No mundo judaico, o templo de Jerusalm no foi sempre unanimidade. Pelo contrrio, a
partir da poca asmonea, o grande poder adquirido pelos sacerdotes gerou conflitos e
rivalidades entre grupos sociais. Neste estudo apresentaremos a imagem do templo como
lugar de demnios, desenvolvida pelo Testamento de Salomo, um pseudepgrafo do I sc.
d.C., e retomada pelo nascente movimento de Jesus.
Palavras-chave: Teologia. Templo. Judasmo. Demnios.

A temple of demons? rejection of the temple in the first century Judaism. and
the origins of Christianity
Abstract
In the Jewish world, the temple of Jerusalem was not always unanimity. On the contrary, from
the time asmonea, the power acquired by priests has generated conflicts and rivalries among
social groups. In this study we will present the image of the temple as a place of demons,
developed by the Testament of Solomon, the one I pseudepgrafo century. AD, and resumed
the source movement of Jesus.
Keywords: Theology. Temple. Judaism. Demons.

SIMBOLISMO DO TEMPLO
O templo, como espao fsico, a referncia sagrada mais importante de uma religio.
Geralmente, ele construdo num lugar simblico, relacionado com a epifania do divino. O
templo de Jerusalm, por exemplo, estava localizado sobre um grande rochedo que marcava o
encontro entre o mundo inferior, onde se encontravam as guas do caos anterior criao, e a
realidade terrena: de certa forma esta grande rocha funcionava como uma tampa que fechava
o acesso ao mundo inferior, protegendo a terra do caos originrio (ELIADE, 1996, p. 38).
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Alm disso, o templo era e , sobretudo, o lugar do encontro com os deuses, a porta dos
cus, pela qual os seres divinos desciam terra. Para ficar mais prximos do cu, geralmente
os templos eram construdos no topo das montanhas: simbolicamente eram considerados o
umbigo da terra, o ponto onde teria comeado a criao do universo e do homem, o lugar do
paraso terrestre e onde a cruz de Cristo foi erguida (ELIADE, 1996, p. 39-40). O templo,
nesta cosmoviso, o centro do universo, ligando a terra com o mundo inferior e o mundo
superior. As cidades, que eram construdas ao redor dos templos, tambm se tornavam lugares
sagrados, cujos muros preservavam a ordem e protegiam contra a desordem, o caos, o
desconhecido e, os estrangeiros que se encontravam fora da cidade.

Pelo fato de atacarem e colocarem em perigo o equilbrio e a prpria vida da


cidade (ou de qualquer outro territrio habitado e organizado), os inimigos
eram identificados s foras demonacas, pois tentavam reintegrar esse
microcosmo ao estado catico, ou seja, suprimi-lo. (ELIADE, 1996, p. 34).

Em poca medieval, as cidades tinham no seu meio a praa central, com no centro a
catedral, cercada pelo cemitrio, smbolo do mundo inferior, e torres, possivelmente muito
elevadas, que apontavam para o cu, smbolo do mundo superior.
A religio, atravs da representao at arquitetnica de seus templos, afirmava assim
sua centralidade na vida individual e coletiva. O sagrado, do seu centro, do templo, se
expandia para a vida social da cidade.

A TRADIO DO TEMPLO JUDAICO

O templo de Jerusalm, pela tradio, fora construdo por Salomo no X sc. a.C.
Segundo o padro dos templos siro-palestinense da poca, ele devia ser uma espcie de
anexo ao palcio real, sendo sua funo reduzida, por enquanto, s atividades litrgicas, e
sua estrutura fsica muito simplificada: um vestbulo, uma sala e um sacrrio. Entre suas
atribuies estava a de organizar festas, administrar o sacrifcio e as respectivas contribuies
em dinheiro [o templo era, de certa forma, o banco do rei], dividir as carnes sacrificadas, etc.
A participao popular podia ser muito grande, mas externa, pois o templo no tinha lugares
adequados para o pblico dos fiis. Os sacerdotes eram funcionrios reais, sustentados,
economicamente, pela corte (LIVERANI, 2005, p. 358s). provvel que este tipo de templo
tenha continuado at a reforma de Josias [VI sc.]. As descries bblicas sobre a construo e
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as dimenses do templo salomnico (1Rs 6-7), que, com os mais ou menos 1000 m2
construdos, os amplos espaos de circulao e os vrios ptios devia ocupar quase a metade
da cidade de Davi, refletem, com toda probabilidade, os grandes templos babilnicos e
egpcios, que eram as referncias econmicas e polticas daqueles estados. Tais templos
tinham estruturas muito complexas: alm do lugar sagrado, onde estava colocada a esttua do
deus, havia armazens para as colheitas, laboratrios artesanais, escola de escribas, lojas,
arquivos, habitaes do clero e ptios enormes para o acesso dos fieis. Eram verdadeiras
cidades-templo, que tinham sua origem no imprio sumrico do III milnio. Em poca
babilnica e persiana, chegaram a possuir enormes propriedades agrcolas, recebiam os
impostos [o dzimo] e gozavam de isenes e privilgios prprios (LIVERANI, 2005, p. 360).
Este foi o templo que os judeus conheceram no cativeiro babilnico. Este provavelmente era o
modelo de templo que eles queriam implantar em Jerusalm, na sua volta Judia. Tal
projeto, fortemente diferente e novo em relao ao anterior, devia ter sido apresentado como
uma volta s origens: isso justificaria as descries fantsticas do templo de Salomo como
construes posteriores que remanejavam as velhas tradies relativas centralidade,
importncia ideolgica e histrica do templo antigo, acrescida pelos novos dados relativos aos
templos mesopotmicos. Tal projeto veio consolidar a hegemonia dos sacerdotes que, na volta
do exlio, aproveitaram a oportunidade para se afirmar como os nicos e legtimos lderes
religiosos e polticos do povo judaico. reconstruo de Jerusalm, por obra de Neemias
(445), e reorganizao da comunidade, seguiu a nova fundao do templo, destrudo pela
invaso Babilnica, em 587, pea fundamental deste projeto e descrito em tons visionrios e
utpicos na profecia de Ezequiel (40-44). A reconstruo do novo templo, relatada pelos
profetas Ageu e Zacarias, foi terminada em 515, sendo inaugurado com a solene celebrao
da pscoa. A partir deste momento, a casa de Davi, ainda presente na figura histrica de
Zorobabel, desapareceu politicamente e fisicamente; de agora em diante, o sacerdcio
assumiu a liderana, tambm poltica da comunidade judaica. A tomada de poder dos
sacerdotes se realizou, definitivamente, com o trabalho de Ezdras [incio do IV sc.], cuja
misso, aos olhos dos Persas, devia ter finalidades legislativas. Com ele, a lei escrita,
promulgada e aplicada, com o apoio total do imperador.

Esdras iniciou uma nova fase da histria hebraica. A cidade-templo,


fechada aos vizinhos e aberta aos correligionrios da dispora, e governada
pelo sacerdcio, nico legtimo intrprete da lei. Com Esdras se conclui a
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elaborao da lei, fecha-se tambm a elaborao historiogrfica, cessam de


agir tambm os profetas. O sacerdcio de Jerusalm est com poder total.
(LIVERANI, 2005, p. 368).

A redao escrita do livro sagrado, com a definio das normas que regulam a nova
sociedade judaica, a reorganizao da religio e do culto ao deus padroeiro, so os trs
elementos decisivos para a formulao da identidade nacional ou racial do povo de Deus
(GOODY, 1986, p. 45). Mas o projeto da cidade-templo encontrou logo a oposio dos
vizinhos samaritanos, que aps perder a hegemonia poltica corriam o perigo de perder
tambm a religiosa. A resposta foi elevao do templo de Siqum, no monte Garizim, a
santurio central dos samaritanos, no final do sc. V, confiado a um grupo de sacerdotes
sadoquitas expulsos de Jerusalm, provavelmente por causa da lei dos matrimnios mistos
(Ne 13, 28; JOSEFO, 1998, v. 11, p. 304-312). A partir deste cisma, uma nova tradio
historiogrfica vai se formando na Samaria, alternativa de Jerusalm.
O projeto do templo de Jerusalm vai at a grande guerra do ano 70 d.C. O templo
continua sendo o lugar central do judasmo: de se pensar que as construes, com o passar
do tempo, aumentaram, e cresceu a sua riqueza. Ele foi saqueado e profanado no tempo dos
Antocos, fato que deu origem guerra macabica [meados do II sc. a.C.]. Mas, a partir de
ento, comea a perder sua influncia poltica e econmica: para os gregos o centro da
economia era a praa da cidade, onde se encontrava o mercado e no mais o templo-armazm
tpico do mundo oriental. Uma nova classe social vai surgindo em Jerusalm, cuja fora
poltica se expressa na gerusia, o senado da cidade (SCHIAVO, 1997, p. 67). Os sacerdotes
continuam mantendo seus privilgios e influncias, mesmo que seu poder fique reduzido
sempre mais para dentro dos muros do templo. O cargo de sumo sacerdote, que adquiriu sua
fisionomia, justamente no perodo ps-exlico, na poca asmonia, foi objeto de ambies
vindas de vrios lugares. Para se consegui-lo, recorria-se corrupo e eliminao direta
dos adversrios (2 Mac 4), o que pode estar na origem dos essnios, uma comunidade
litrgica ligada provavelmente ao sacerdcio sadoquita e ao templo (Documento de Damasco
I,1-20).

A CONTAMINAO DO TEMPLO
No tempo de Jesus, o templo de Jerusalm no era unanimidade; pelo contrrio, era
centro de conflitos. Provavelmente, a grande acusao contra ele tinha a ver com o sacerdcio

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ilegtimo que, desde a poca asmonea, o dominava. Tambm, por ter sido reconstrudo por
Herodes, monarca certamente no amado pelo povo. Segundo o relato de Josefo (1998, v. 2,
p. 380-425), nos anos de 19-11 a.C. Herodes empreendeu uma grande obra de reforma do
templo, reconstruindo-o desde suas fundaes atravs de trabalho forado e pagando de seu
prprio bolso. A construo, ampliada respeito a anterior e aumentada em altura, ficou
verdadeiramente imponente.
Havia vrios grupos sociais, dentro do judasmo, que rejeitavam este templo como
impuro. o caso de um antigo texto do Livro dos Sonhos de Enoque [metade do II sc. a.C.]
que narra, na segunda viso, a histria da humanidade, da criao at a chegada do reino de
Deus, onde cada povo representado por um animal. Descrevendo a reconstruo do templo
na volta do exlio, assim fala:

Ento trs daquelas ovelha voltaram; chegaram, entraram e comearam a


reconstruir os destroos da casa (templo). Mas os porcos selvagens
(samaritanos, ndr.) as mantinham afastadas e elas no conseguiram. Depois
comearam de novo a construir, como antes, e ergueram aquela torre e ela
chamava-se torre alta, e puseram na frente uma mesa, mas todo o po
posto sobre ela era contaminado e impuro. (1En 89,72-73).

As oferendas impuras podem estar relacionadas a Ml 1,7, que acusa os sacerdotes de


oferecer vtimas impuras para economizar dinheiro. Os essnios, tambm consideravam o
templo impuro e contaminado. Este grupo judico pode ter tido sua origem com a entrada de
um sacerdcio ilegtimo no templo de Jerusalm, no tempo de Jnatas Macabeu, na metade do
II sc. a.C. (JOSEFO, 1998, p. 171ls; 1Mac 14). O Mestre da Justia que fugiu para Damasco
e fundou a nova comunidade em oposio ao templo de Jerusalm (Documento de Damasco,
v. 1-2), pode ter sido um dos sacerdotes legtimos expulsos do templo, nesta poca. Nada mais
fcil pensar que, a partir deste momento, o templo fosse considerado impuro e morada de
demnios. De fato, para os essnios, o templo era contaminado pelos sacerdotes que se deitam
com mulheres impuras e menstruadas (Documento de Damasco, v. 6). Eles chegavam a
proibir os fiis de ficar na cidade de Jerusalm, tambm contaminada por causa do templo:
Que nenhum homem durma com sua mulher na cidade do templo contaminado, a cidade do
templo com as suas impurezas (Documento de Damasco, v. 12, p. 1-2). [...] provavelmente
as impurezas do templo eram comparadas s impurezas das mulheres menstruadas. Os
essnios consideravam que Deus ocultou seu rosto de Israel e do seu santurio.
(Documento de Damasco, v. 1, 3).
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O mesmo tema da impureza do templo e da condenao do sacerdcio jerosolimitano,


aparece no Testamento de Levi, num texto que provavelmente do sc. II a.C. e, portanto,
paralelo ao Documento de Damasco: O vosso templo ser deserto at os alicerces. No
existir para vs lugar puro, mas no meio dos povos sereis maldio e disperso, at que Ele
no vire de novo seu olhar para vs, tenha misericrdia e os acolha. (16, 4-5).
No Testamento de J, um escrito judaico de consolao na perseguio proveniente da
dispora egpcia e escrito provavelmente entre 75 e 100 d.C., antes de se tornar servidor do
Deus verdadeiro, J vivia ao redor do templo de um dolo muito venerado, e ele se perguntava
se era este o Deus que tinha feito o cu e a terra. Numa noite, uma voz potente lhe revelou a
verdade que ele procurava: Este, ao qual oferecem holocaustos e em cuja honra fazem
libaes, no Deus, mas a potncia do Diabo, pela qual caiu enganada a natureza humana.
(3,3). Ento J, foi e purificou o lugar de Satans, que se vingou fazendo guerra contra ele. O
templo, no s contaminado, como habitado por Satans!

SALOMO, O MESTRE DOS DEMNIOS

Quem mais relaciona templo a demnios, o Testamento de Salomo, um


pseudepgrafo famoso cuja redao final geralmente colocada em torno de 300-400 d.C.,
mas deve ser o resultado de vrias tradies, tendo sua origem no mundo judaico. Com toda
certeza, j existia e era conhecido no tempo de Jesus, mesmo que posteriormente tenha
sofrido acrscimos cristos. Este texto pretende oferecer um conhecimento bastante completo
sobre os demnios e a maneira de domin-los. Trata-se, na realidade, de uma parbola ou
novela, que tem como personagem central Salomo. O rei, no fim de sua vida, arrependido
por seus pecados [idolatria e as muitas mulheres] e diante de seu fracasso poltico [diviso do
reino], escreveu seu testamento. Famoso, na tradio, por sua sabedoria, ele foi considerado
Mestre dos demnios. Assim o descreve Josefo (1998):

Salomo comps cinco mil livros de hinos e cnticos e outros trs mil de
parbolas e comparaes. Redigiu um escrito sobre cada classe de rvore,
desde o hissopo at o cedro, e igualmente sobre os pssaros e toda sorte de
criatura terrestre, marinha e area. No havia na natureza humana nenhuma
espcie que no lhe fosse familiar, ou que ele descartasse sem examin-la;
mas ele as encarava todas do ponto de vista filosfico e revelava o mais
completo conhecimento de suas propriedades. E Deus lhe concedeu o
conhecimento da arte que se pratica contra os demnios, em benefcio e
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para a cura dos homens. Ele comps, igualmente, enfeitiamentos, graas


aos quais as doenas so aliviadas, e deixou escritas frmulas de exorcismo
que serviam para expulsar definitivamente os demnios dos possudos.
(JOSEFO, 1998, v. I, VIII, p. 44-45).

A trama do Testamento de Salomo muito simples: Salomo estava construindo o


templo de Jerusalm. Um jovem capataz era continuamente atormentado por um demnio que
lhe tomava metade do seu salrio. O Rei pediu a Deus por ele, e recebeu de Deus, por
intermdio de Miguel, um anel mgico, com o qual dominou o demnio. Depois, convoca
Beelzebul, prncipe dos demnios, pede-lhe para se sentar junto dele, obrigando-o a trazerlhe, atados, todos os demnios, que ele subjuga, constrangendo-os a revelar-lhe como cada
um pode ser dominado e, enfim, mandando-os todos a trabalhar para ele na construo do
templo. Assim, o Testamento de Salomo faz uma importante afirmao: o templo de
Jerusalm foi construdo pelos demnios!
Os demnios eram vencidos por dois gestos mgicos: um anel mgico, colocado no
peito do endemoninhado, e um conjuro.
Quanto ao anel mgico, (DIEZ MACHO, 1987, p. 336)1 ele tinha uma pedra preciosa
com, gravada nela, uma frmula mgica, diferente segundo os vrios manuscritos:
- AAAAA, 5 alfas, maisculas e entrelaadas entre elas formando um crculo. 2
- as seguintes letras: k o th r s b i o n k a o a o e l i g o i s s g o a a e s r o u r .3
- uma inscrio, que dizia assim: Senhor Deus nosso, leo, leo; sabaoth; bionik; ao,
elo; ioas, sugeo; ai; aenio; ou; ounio; er.4
- Toma cera virgem, constre um anel e coloca-o no dedo anular de tua mo. Cerca-o
de pergaminho virgem e escreve, com todo estremo cuidado estes doze nomes: leo, sabaoth,
bioni, elo, ao, ia, ias, sueio, aeni, u, unou; i; iro5
- Do grande rei Salomo: lthlthi, 40.000, Senhor Deus nosso: lio, sabaot, aia,
bionik, oaleo; ioas, suge; aai; ae; niufiune, iaeso.6
Aps o anel ser colocado no peito da pessoa endemoninhada, o exorcista conjurava o
demnio com estas palavras: Vai, Salomo te chama!. E o demnio vinha correndo a
Salomo e se submetia ao poder do rei.
Josefo (1998) relata tambm o rito do exorcista judeu Eleazar na presena de
Vespasiano. O demnio foi extrado atravs do nariz do possudo, mediante o uso de uma das
razes prescritas por Salomo. Josefo observa que este resultado confirmava a reputao de

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Salomo, famoso como homem favorecido por Deus e de virtude extraordinria (JOSEFO,
1998, v. 1, 8, p. 46-49).

UM MANUAL DO EXORCISTA

O testamento de Salomo , na realidade, um verdadeiro manual de demonologia,


provavelmente usado pelos exorcistas da poca. Os demnios conhecidos desfilavam diante
de Salomo, impotentes, submetidos e obrigados a revelar como seu poder podia ser anulado.
E eram todos condenados a trabalhar na construo do templo. Moral da histria: o templo de
Jerusalm, fora construdo pelos demnios!
Mas vamos conhecer de perto os demnios dominados por Salomo, assim como so
descritos no Testamento de Salomo:
- Ornas: o demnio que molestava o jovem capataz, roubando a metade do seu salrio.
Salomo o faz trabalhar na construo do templo. anulado pelo arcanjo Uriel (1-2);
- Beelzebul: prncipe dos demnios, que se comprometeu em trazer a Salomo os
demais demnios (3);
- Onoscelis: esprito feminino que pode unir-se aos homens: condenada a tranar as
cordas que servem para a construo do templo (4);
- Asmodeo: procura fazer o mal aos homens, sobretudo os recm-casados: dever
carregar ferro e fazer massa (5). O anjo contrrio Rafael. O poder dele se anula queimando
fgado de peixe com fel e um ramo de blsamo (cf. Tb 6-8);
- Lix Tetrax: este demnio rompe muros, queima tudo o que pode, provoca febres. O
anjo que o anula Azael. condenado a carregar pedras (7);
- Sete demnios femininos: Engano, Disputa, Clot, Zale, Delrio, Fora, Pssima: so
prncipes das trevas, cada um provocando os homens diviso, conflitos, mentiras, mortes.
Foram mandados a cavar os alicerces do templo (8);
- Assassinato: demnio sem cabea, que no desejo de ter uma, corta as dos homens, as
coloca em si, mas acaba consumindo-as pelo fogo que h nele, e que produz lceras. O anjo
do relmpago o anula (9);
- Bastn: o diabo com aspecto de cachorro: domina os homen pela garganta e os reduz
a estupidez. Ele condenado a cortar mrmore para o templo e traz a Salomo uma pedra
verde para adornar o altar. O anjo contrrio o Grande Briateo (10);
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- O Portador de Lies: comanda uma legio de demnios, e provoca enfermidades nos


homens. anulado pelo Paciente, cujo nome Emanuel. Foi condenado a trazer lenha, cortla e jog-lo no forno sempre ardente (11);
- O Drago Tricfalo: esprito trplice que faz cegos e mudos os fetos das mulheres e
derruba os homens fazendo-os espumar e ranger os dentes. Seu anjo contrrio o anjo do
Gro Conselho. Tambm vai trabalhar no templo (12);
- Obizut: esprito feminino que mata os fetos. Seu anjo contrrio Rafael. Foi amarrada
pelos cabelos diante do templo e condenada a louvar a Deus (14);
- O Drago Alado: engravida as mulheres e joga fogo. Seu anjo contrrio Bezazat. Vai
serrar mrmore para o templo (14);
- Enpsigos: demnio das artes mgicas, seu anjo contrrio Ratanael. Ele profetiza o
futuro de Salomo (15);
- Cinpego: esprito marino que inferniza os barcos, provocando nusea e morte. Anjo
contrrio Lamet. Foi fechado numa caarola (16);
- O Esprito do Gigante: fica nos cemitrios e impede a passagem dos homens pelo
lugar. exorcizado pelo Salvador que vai vir ao mundo, e pelo sinal da cruz na testa (17);
- os 36 Decanos: so espritos astrais, das trevas do mundo. Influem na vida e nas
enfermidades dos homens. Sua condenao ser transportar gua para o templo (18);
- Efippas: demnio do vento da Arbia, que sopra de manh at o meio-dia, e cuja fora
enorme. Ser anulado pelo Anjo que vai nascer da Virgem, adorado pelos anjos e
crucificado pelos judeus (22, 20). Colocou a pedra angular at o topo do ngulo do templo;
- Abezetib: o demnio do Mar Vermelho que combateu contra Moiss no Egito e
endureceu o corao do Fara. Tambm ficou submergido pelas guas do mar. condenado a
embelezar o templo (25).

Toda esta lista de demnios para mostrar, s geraes futuras, como neutralizar o
poder dos maus espritos nas pessoas humanas. um verdadeiro tratado de demonologia
prtica, com evidentes influncias da mitologia grega (cap. 4, 15, 16), da tradio judaica, que
por sua vez se refaz a fontes babilnicas e persas (cap. 5), tradio egpcia (cap. 18), e da
tradio crist (cap. 3, 6,11).
A fama de Salomo exorcista se estendeu nos sculos. Orgenes em seu Comentrio a
Mateus, 110 (tratado 33: PG 13, col. 1757 C), assim afirma:
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[...] o exorcismo contra os demnios mais prprio dos judeus,


porm ele ocorre, s vezes, tambm entre os cristos, que utilizam
exorcismos escritos por Salomo, com os quais conjuram os
demnios. Mas os que praticam tais exorcismos usam s vezes livros
no permitidos, que vem do hebraico [...]. (DIEZ MACHO, 1987,
p. 326).
A REJEIO DO TEMPLO NA TRADIO CRIST

O Testamento de Salomo era um texto contracorrente, contundente, pois apresentava


uma feroz crtica ao sacerdcio jerosolimitano e instituio do templo em geral. Devia
encontrar o apoio de muitos, como tambm ser execrado pela classe dirigente da Judia. Com
certeza, influenciou a muitos, inclusive o movimento cristo das origens, que se apoiou a este
importante documento para descrever o conflito entre Jesus e os chefes dos Judeus.
A rejeio do templo, por parte de Jesus, parece ser bastante consolidada na tradio
crist. A renovao religiosa, proposta por Jesus, mais prxima dos grupos farisaicos que
enfatizavam a centralidade da observncia da Lei, que dos saduceus e dos sacrifcios no
templo. Pela viso escatolgica, Jesus parece depender muito dos essnios, mas se distancia
deles quando se trata do templo: para ele, no h nenhuma espera de um templo escatolgico
no futuro. Se colocarmos a origem do movimento de Jesus na Galilia, bastante plausvel
aceitar o sentimento contrrio ao templo: Galilia e Judia, alm de ser distantes
geograficamente, o eram, sobretudo, ideologicamente. de se hipotizar certa influncia dos
fariseus na Galilia no sc. I a.C, onde eles poderiam ter migrado no tempo da ruptura com
Joo Hircano (134-104) (JOSEFO, 1998, v. 2, p. 293-300) ou no tempo da volta ao poder com
Alexandra (76-67) (JOSEFO, 1998, v. 2, p. 410-418). Isso justifica a tendncia pr-fariseus
dos movimentos sociais da Galilia, que, se somando antiga memria que do Reino do norte
como lugar da origem da tradio mosaica ligada lei, pode ter alimentado o sentimento de
resistncia do povo galilico frente atitude nacionalstica e colonialstica judaica.
Vrios textos do NovoTestamento testemunham a rejeio do templo de Jerusalm por
parte do movimento de Jesus, fato que, com toda certeza, podemos atribuir ao mesmo Jesus
histrico.
O texto de entrada da Fonte Q (Lc 4,1-13), o primeiro escrito cristo, cuja redao final
de se colocar entre os anos 40-50, na Galilia, traz o relato tradicionalmente conhecido
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como tentaes de Jesus. J demonstramos que o texto no pode ser interpretado na linha da
biografia de Jesus, como tentaes ou provas que antecedem e preparam seu ministrio
pblico, mas que este breve relato, em trs cenas, a representao da batalha escatolgica
entre o Messias e seu opositor escatolgico (SCHIAVO, 2003). Na terceira cena, o Diabo leva
Jesus no pinculo do templo de Jerusalm (4, 9), o que d a impresso do Diabo estar muito
vontade neste lugar. Se colocando no ponto mais alto do templo, ele pode estar afirmando,
diante de Jesus, sua identidade messinica, segundo a crena judaica que [...] quando o Rei, o
Messias, se manifestar, aparecer de p no telhado do templo [...] (FITZMEYR, 1987, p. 409). Mas
nesta imagem, o Diabo parece ser dono do templo!
Outro texto, cuja redao posterior, mas pode se referir ao Jesus histrico, Marcos
11,15-19. Segundo o relato, Jesus entra no templo e comea a [...] expulsar os vendedores e
os compradores que l estavam: virou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam
pombas [...] (11,15). Trata-se de um verdadeiro ataque de Jesus ao templo, uma afronta
terrvel, muito mais grave se considerarmos que o verbo grego expulsar (ek-ball, Mc 7,26)
o verbo tpico do exorcismo: realmente Jesus, que acabava de ser aclamado Messias (11,1-11)
entrou no templo para purific-lo, e sua primeira ao um exorcismo de expulso dos
demnios que ali, segundo quantos alguns acreditavam, se instalaram. normal que tal
iniciativa lhe cause a declarao de morte pelos chefes dos sacerdotes (11,18). De fato, para
justificar sua condenao morte diante de Pilatos, os sacerdotes citaram sua profecia
relacionada destruio do templo (14, 53-59). O ataque ao templo foi a causa da condenao
morte de Jesus.
A profecia da destruio do templo de Jerusalm (Mc 13,1-2; // Mt 24,1-3; // Lc 21,5-7)
provvelmente uma profecias ps-eventu, quer dizer atribuda a Jesus aps o fato ter
realmente acontecido, portanto, depois do ano 70. Mesmo assim, ela pode refletir uma atitude
histrica de Jesus, assumida posteriormente pelo movimento que dele se originou. A tradio
joanina, que se caracteriza pela densa Teologia, vai mais longe, chegando a afirmar que o
verdadeiro santurio, a partir do fim do templo judico, ser a prpria pessoa de Jesus, morto
e ressuscitado. Questionado pelos judeus, Jesus afirma: Destru este templo, e em trs dias eu
o levantarei, e Joo comenta: Ele, porm, falava do templo do seu corpo. (Jo, 2,19-20). O
fim do templo predito tambm por Estevo, personagem de ponta do grupo dos helenistas,
no nascente movimento de Jesus. Tal grupo se caracterizava por uma relao ligth com as
instituies judaicas, como a circunciso e o templo. A origem dos helenistas na dispora
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judaica, so formados na cultura helenstica, por isso so mais abertos ao dilogo cultural e
menos fechados que os judeus (grupo de Jerusalm). Para os que viviam fora da Palestina, o
templo menos importante que a lei. Estvo, no seu discurso na sinagoga dos Libertos, em
Jerusalm, comentando a histria de Israel, faz justamente referncia Tenda do
Testemunho, lugar mvel da presena de Deus com seu povo no deserto (At 7,44) e,
chegando Salomo, o construtor do templo, afirma abertamente que [...]o Altssimo no
habita em obra de mos humanas (47-50). Como aconteceu com Jesus, tambm Estevo foi
morto [por apedrejamento] por sua rejeio do templo de Jerusalm. esta uma das
caractersticas do nascente movimento de Jesus, que comprova sua origem galilica e na
dispora judaica, mais do que jerosolimitana. A rejeio do templo como lugar de culto de
Deus atestada na tradio joanina, do final do I sc. No discurso, com a mulher samaritana,
sobre qual o verdadeiro templo de Deus: o dos samaritanos no monte Garizim ou o dos judeus
no monte de Sio, Jesus afirma que nem em Jerusalm, nem no Garizim se adorar a Deus,
mas [...] vem a hora e agora em que os verdadeiros adoradores adoraro o Pai em
esprito e verdade. (4,23). A superao do templo, que comeou com a imagem dos
demnios nele, est agora completada: para os cristos, no haver templo de pedras, pois
entendem que o lugar da presena de Deus nas pessoas humanas, com os pequeninos (Mt.
18,10; 11,25) e com o prprio Jesus (J, 1).
Em textos posteriores, ao templo se associa o culto ao Anticristo: [...] o Adversrio,
que se levanta contra tudo que se chama Deus, ou recebe um culto, chegando a sentar-se
pessoalmente no templo de Deus, e querendo passar por Deus. (2Ts 2,4). Est aqui evocada a
figura do Anticristo, em sua pretenso de se proclamar deus. A figura mtica do Anticristo se
refere, na histria bblica, a vrios modelos, como Lcifer (Is 14,12-15), o rei de Tiro (Ez 28),
Antioco IV Epfanes (Dn 11,36-37) e o imperador Nero (Orac. Sib. V,29-34). A um
imperador romano [Nero ou Diocleciano] se dirigem tambm as afirmaes da 2 Ts 2,4, que
acabamos de ver, e Ap. 13,3-6 e 15, onde se fala abertamente de um culto imagem da Besta,
aluso ao culto dos imperadores romanos que comeou provavelmente com Cludio em 41.
Na Ascenso de Isaas (TRICCA, 1995, p. 65-100), pseudepgrafo com interferncias crists,
aparece o mito do Nero Redivivus, nos mesmos termos de Ap 13:
Belial descer do seu firmamento sob a forma de um homem, de um rei
mpio, assassino de sua prpria me, de um rei deste mundo. (...) A seu
comando, o sol brilhar no meio das trevas da noite e a lua aparecer na
dcima primeira hora. E ele, neste mundo, ter o que quiser, e insultar o
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Bem-Amado e lhe dir: Eu sou Deus, e no houve outro antes de mim. E


todo homem neste mundo acreditar nele. Oferecer-lhe-o sacrifcios e
dirigir-lhe-o um culto de adorao, dizendo: Ele o Deus nico, e no h
nenhum outro. E a maioria dos que se reuniram para receber o Bem-Amado
se voltaro para Belial, cujo poder ser exercido atravs de prodgios nas
cidades e nos campos. E em todo lugar ser-lhe- posta uma mesa. (4, 2-10).

A literatura crist do final do I sc. interpretava a figura dos imperadores que


perseguiam os cristos, como agentes humanos de Satans. Nas pretenses divinas dos
imperadores romanos e nas exigncias de um culto prprio, podemos encontrar a evoluo
posterior da idia dos demnios presentes no templo de Jerusalm. O inimigo um agente
diablico e sua tendncia divinizar-se.
Por isso, talvez, o julgamento final comear a partir do templo celeste e se estender ao
templo terrestre, totalmente contaminado por tais presenas (Ap 14,14-20).
A tradio do templo no desaparece, pelo contrrio, ela volta com fora nos sculos
posteriores e est relacionada volta, no contexto cristo, do esquema sacerdotal que gera um
processo de sacerdotalizao do ministrio. J, no II sc., a Carta aos Hebreus descreve Jesus
com traos sacerdotais, fato que se reprope, em seguida, para os que sero considerados
sucessores de Jesus, os papas, os bispos e os presbteros. Aos poucos, eles vo se tornando
hier-archia, poder sagrado, exercido a partir de um lugar sagrado: o templo, reconstrudo nos
moldes dos antigos (PARRA, 1991, p. 139-175).
Mesmo assim, a tradio da resistncia e rejeio do templo no mundo judaico,
assumida pelo movimento originrio de Jesus, continua fascinante e desafiadora: pois ela
remete para uma religio voltada mais para as pessoas que para o ritualismo.

NOTAS
1

A apndice III traz os signos gravados no anel, segundo os vrios manuscritos. p.


387 .
2

Bibliotheque. Nacionale du Paris. Anciens fonds grecs, N 38: s. XVI, e Mosteiro


de S. Andr, Monte Athos, n. 73, ff 11-15: s. XV. apud DIEZ MACHO, A.
Apocrifos del Antiguo Testamento. Madri: Cristandad, 1987. Tomo 5., p. 387.

British Museusm, Mss. Harleian, n. 5596: s. XV. Apud DIEZ MACHO, A.


Apocrifos del Antiguo Testamento. Madri: Cristandad, 1987. Tomo 5. p. 387.

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Bib. Particular Conde de Leicester, Holkham Hall, Norfolk (Ingl.), n. 99: ss. XVXVI. Apud DIEZ MACHO, A. Apocrifos del Antiguo Testamento. Madri:
Cristandad, 1987. Tomo 5. p. 387. Deste manuscrito no encontrei a referncia.
5

Deste manuscrito no encontrei a referncia. apud DIEZ MACHO, A. Apocrifos


del Antiguo Testamento. Madri: Cristandad, 1987. Tomo 5.

Bibl. Universitaria, Bologna, n. 3632, ff 436v-441v: s. XV. apud DIEZ MACHO,


A. Apocrifos del Antiguo Testamento. Madri: Cristandad, 1987. Tomo 5.

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Artigo recebido em 22/08/2007 e aceito para publicao em 06/03/2008.

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