Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Paulo Freire

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 17

PAULO FREIRE , “ PEDAGOGIA DA AUTONOMIA”

SABERES NECESSÁRIOS À PRÁTICA EDUCATIVA


CAPÍTULO 1 - NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA
A reflexão crítica da prática é uma exigência da relação teoria/ prática, sem a qual a teoria irá virando apenas
palavras, e a prática, ativismo.
Há um processo a ser considerado na experiência permanente do educador. No dia-a-dia ele recebe os
conhecimentos – conteúdos acumulados pelo sujeito, o aluno, que sabe e lhe transmite.
Neste sentido, ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito
criador dá forma, alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se
explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem
ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.
Ensinar é mais que verbo-transitivo relativo, pede um objeto direto: quem ensina, ensina alguma coisa; pede
um objeto indireto: à alguém, mas também ensinar inexiste sem aprender e aprender inexiste sem ensinar.
Só existe ensino quando este resulta num aprendizado em que o aprendiz se tornou capaz de recriar ou
refazer o ensinado, ou seja, em que o que foi ensinado foi realmente aprendido pelo aprendiz.
Esta é a vivência autêntica exigida pela prática de ensinar-aprender. É uma experiência total, diretiva, política,
ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética.
Nós somos “seres programados, mas, para aprender” (François Jacob). O processo de aprender pode
deflagrar no aprendiz uma curiosidade crescente que pode torná-lo mais e mais criador, ou em outras
palavras: quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve a
“curiosidade epistemológica”, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto.
1. ENSINAR EXIGE RIGOROSIDADE METODOLÓGICA

O educador democrático, crítico, em sua prática docente deve forçar a capacidade de crítica do educando, sua
curiosidade, sua insubmissão. Trabalhar com os
educandos a rigorosidade metódica com que devem se “aproximar” dos objetos cognoscíveis, é uma de suas
tarefas primordiais. Para isso, ele precisa ser um educador criador, instigador, inquieto, rigorosamente curioso,
humilde e persistente. Deve ser claro para os educandos que o educador já teve e continua tendo experiência
de produção de certos saberes e que estes não podem ser simplesmente transferidos a eles.
Educador e educandos, lado a lado, vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução
do saber. É impossível tornar-se um professor crítico, aquele que é mecanicamente um memorizador, um
repetidor de frases e idéias inertes, e não um desafiador. Pensa mecanicamente. Pensa errado. A verdadeira
leitura me compromete com o texto que a mim se dá e a que me dou e de cuja compreensão fundamental me
vou tornando também sujeito.
Só pode ensinar certo quem pensa certo, mesmo que às vezes, pense errado. E uma das condições
necessárias a pensar certo é não estarmos demasiados certos de nossas certezas. O professor que pensa
certo deixa transparecer aos educandos a beleza de estarmos no mundo e com o mundo, como seres
históricos, intervindo no mundo e conhecendo -o .Contudo, nosso conhecimento do mundo tem historicidade.
Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho, e se “dispõe” a ser
ultrapassado por outro amanhã.Ensinar, aprender e pesquisar lidam com dois momentos do ciclo gnosiológico:
o momento em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente, e o momento em que se trabalha a
produção do conhecimento ainda não existente.
É a prática da “do-discência” : docência- discência e pesquisa.
2. ENSINAR EXIGE PESQUISA Não há ensino sem pesquisa, nem pesquisa sem ensino. Enquanto ensino
continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Educo
e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e para comunicar o novo.
3. ENSINAR EXIGE RESPEITO AOS SABERES DO EDUCANDO A escola deve respeitar os saberes
socialmente construídos pelos alunos na prática comunitária. Discutir com eles a razão de ser de alguns
saberes em relação ao ensino dos conteúdos. Discutir os problemas por eles vividos. Estabelecer uma
intimidade entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como
indivíduos. Discutir as implicações políticas e ideológicas, e a ética de classe relacionada a descasos.
4. ENSINAR EXIGE CRITICIDADE Entre o saber feito de pura experiência e o resultante dos procedimentos
metodicamente rigorosos, não há uma ruptura, mas uma superação que se dá na medida em que a
curiosidade ingênua, associada ao saber do senso comum, vai sendo substituída pela curiosidade crítica ou
epistemológica que se rigoriza metodicamente.
5. ENSINAR EXIGE ESTÉTICA E ÉTICA Somos seres históricos – sociais, capazes de comparar, valorizar,
intervir, escolher, decidir, romper e por isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo.
Transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de
fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser
humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Divinizar ou
diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado.
Pensar certo demanda profundidade na compreensão e interpretação dos fatos. Não é possível mudar e fazer
de conta que não mudou. Coerência entre o pensar certo e o agir certo. Não há pensar certo à margem de
princípios éticos, se mudar é uma possibilidade e um direito, cabe a quem muda, assumir a mudança operada
6. ENSINAR EXIGE A CORPOREIFICAÇÃO DA PALAVRA PELO EXEMPLO
O professor que ensina certo não aceita o “faça o que eu mando e não o que eu faço”. Ele sabe que as
palavras às quais falta corporeidade do exemplo quase nada valem. É preciso uma prática testemunhal que
confirme o que se diz em lugar de desdizê-lo.
7. ENSINAR EXIGE RISCO, ACEITAÇÃO DO NOVO E REJEIÇÃO A QUALQUER FORMA DE
DISCRIMINAÇÃO - O novo não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, nem o velho recusado,
apenas por ser velho. O velho que preserva sua validade continua novo.
A prática preconceituosa de raça, classe, gênero ofende a substantividade do ser humano e nega
radicalmente a democracia.
Ensinar a pensar certo é algo que se faz e que se vive enquanto dele se fala com a força do testemunho; exige
entendimento co-participado. É tarefa do educador desafiar o educando com quem se comunica e a quem
comunica, produzindo nele compreensão do que vem sendo comunicado. O pensar certo é intercomunicação
dialógica e não polêmica.
8 ENSINAR EXIGE REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE A PRÁTICA - Envolve o movimento dinâmico, dialético
entre o fazer e o pensar sobre o fazer. É fundamental que o aprendiz da prática docente saiba que deve
superar o pensar ingênuo, assumindo o pensar certo produzido por ele próprio, juntamente com o professor
formador. Por outro lado, ele deve reconhecer o valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da
intuição.
Através da reflexão crítica sobre a prática de hoje ou de ontem é que se pode melhorar a próxima prática. E,
ainda, quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a razão de ser como estou sendo, mais me torno
capaz de mudar, de promover-me do estado da curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica.
Decido, rompo, opto e me assumo.
9. ENSINAR EXIGE O RECONHECIMENTO E A ASSUNÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL - Uma das
tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar condições para que os educandos em suas
relações sejam levados à experiências de assumir-se. Como ser social e histórico, ser pensante,
transformador, criador, capaz de ter raiva porque capaz de amar.
A questão da identidade cultural não pode ser desprezada. Ela está relacionada com a assunção do indivíduo
por ele mesmo e se dá, através do conflito entre forças que obstaculizam essa busca de si e as que favorecem
essa assunção.
Isto é incompatível com o treinamento pragmático, com os que se julgam donos da verdade e que se
preocupam quase exclusivamente com os conteúdos.
Um simples gesto do professor pode impulsionar o educando em sua formação e auto-formação. A
experiência informal de formação ou deformação que se vive na escola, não pode ser negligênciada e exige
reflexão. Experiências vividas nas ruas, praças, trabalho, salas de aula, pátios e recreios são cheias de
significação.
CAPÍTULO 2 - ENSINAR NÃO É TRANSFERIR CONHECIMENTO
. . . mas, criar possibilidades ao aluno para sua própria construção. Este é o primeiro saber necessário à
formação do docente, numa perspectiva progressista. É uma postura difícil a assumir diante dos outros e com
os outros, face ao mundo e aos fatos, ante nós mesmos. Fora disso, meu testemunho perde eficácia.
1. ENSINAR EXIGE CONSCIÊNCIA DO INACABAMENTO - Como professor crítico sou predisposto à
mudança, à aceitação do diferente. Nada em minha experiência docente deve necessariamente repetir-se. A
inconclusão é própria da experiência vital. Quanto mais cultural o ser, maior o suporte ou espaço ao qual o ser
se prende “afetivamente” em seu desenvolvimento. O suporte vai se ampliando, vira mundo e a vida,
existência na medida em que ele se torna consciente, apreendedor, transformador, criador de beleza e não de
“espaço” vazio a ser preenchido por conteúdos.
A existência envolve linguagem, cultura, comunicação em níveis profundos e complexos; a “espiritualização”,
possibilidade de embelezar ou enfear o mundo faz
dos homens seres éticos, portanto capazes de intervir no mundo, de comparar, ajuizar, decidir, romper,
escolher. Seres capazes de grandes ações, mas também de grandes baixezas. Não é possível existir sem
assumir o direito e o dever de optar, decidir, lutar, fazer política.
Daí a imperiosidade da prática formadora eminentemente ética. Posso ter esperança, sei que é possível
intervir para melhorar o mundo. Meu “destino” não é predeterminado, ele precisa ser feito e dessa
responsabilidade não posso me eximir. A História em que me faço com os outros e dela tomo parte é um
tempo de possibilidades, de problematização do futuro e não de inexorabilidade.
2. ENSINAR EXIGE O RECONHECIMENTO DE SER CONDICIONADO
É o saber da nossa inconclusão assumida. Sei que sou inacabado, porém consciente disto, sei que posso ir
mais além, através da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente.
Lutando deixo de ser apenas objeto, para ser também sujeito da História.
A consciência do mundo e de si como ser inacabado inscrevem o ser num permanente movimento de busca. E
nisto se fundamenta a educação como processo permanente.
Na experiência educativa aberta à procura, educador e alunos curiosos, “programados, mas para aprender”,
exercitarão tanto melhor sua capacidade de aprender e ensinar, quanto mais se façam sujeitos e não puros
objetos do processo.
3. ENSINAR EXIGE RESPEITO À AUTONOMIA DO SER DO EDUCANDO
. . . à sua dignidade e identidade. Isto é um imperativo ético e qualquer desvio nesse sentido é uma
transgressão. O professor autoritário e o licencioso são transgressores da eticidade. Ensinar, portanto, exige
respeito à curiosidade e ao gosto estético do educando, à sua inquietude, linguagem, às suas diferenças. O
professor não pode eximir-se de seu dever de propor limites à liberdade do aluno,
nem de ensiná-lo. Deve estar respeitosamente presente à sua experiência formadora.
4. ENSINAR EXIGE BOM SENSO - Quanto mais pomos em prática de forma metódica nossa capacidade de
indagar, aferir e duvidar, tanto mais crítico se faz nosso bom senso. Esse exercício vai superando o que há de
instintivo na avaliação que fazemos de fatos e acontecimentos. O bom senso tem papel importante na nossa
tomada de posição em face do que devemos ou não fazer, e a ele não pode faltar a ética.
5. ENSINAR EXIGE HUMILDADE, TOLERÂNCIA E LUTA EM DEFESA DOS DIREITOS DOS EDUCADORES
- A luta dos professores em defesa de seus direitos e dignidade, deve ser entendida como um momento
importante de sua prática docente, enquanto prática ética. Em conseqüência do desprezo a que é relegada a
prática pedagógica, não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem. Necessito cultivar a
humildade e a tolerância, afim de manter meu respeito de professor ao educando. É na competência de
profissionais idôneos que se organiza politicamente a maior força dos educadores. É preciso priorizar o
empenho de formação permanente dos quadros do magistério como tarefa altamente política, e repensar a
eficácia das greves.
Não é parar de lutar, mas reinventar a forma histórica de lutar.
6. ENSINAR EXIGE APREENSÃO DA REALIDADE - Preciso conhecer as diferentes dimensões da prática
educativa, tornando-me mais seguro em meu desempenho. O homem é um ser consciente que usa sua
capacidade de aprender não apenas para se adaptar, mas sobretudo para transformar a realidade.
A memorização mecânica não é aprendizado verdadeiro do conteúdo. Somos os únicos seres que social e
historicamente, nos tornamos capazes de apreender. Para nós, aprender é aventura criadora, é construir,
reconstruir, constatar para mudar, e isto não se faz sem abertura ao risco.
O papel fundamental do professor progressista é contribuir positivamente para que o educando seja artífice de
sua formação, e ajudá-lo nesse empenho. Deve estar atento à difícil passagem da heteronomia para a
autonomia para não perturbar a busca e investigações dos educandos
7. ENSINAR EXIGE ALEGRIA E ESPERANÇA - Esperança de que professor e alunos juntos podem aprender,
ensinar, inquietar-se, produzir e também resistir aos obstáculos à alegria. O homem é um ser naturalmente
esperançoso. A esperança crítica é indispensável à experiência histórica que só acontece onde há
problematização do futuro. Um futuro não determinado, mas que pode ser mudado.
8. ENSINAR EXIGE A COVICÇÃO DE QUE A MUDANÇA É POSSÍVEL É o saber da História como
possibilidade e não como determinação. O mundo não é, está sendo. Meu papel histórico não é só o de
constatar o que ocorre, mas também o de intervir como sujeito de ocorrências. Constato não para me adaptar,
mas para mudar a realidade.
A partir desse saber é que vamos programar nossa ação político-pedagógica, seja qual for o projeto a que
estamos comprometidos. Desafiando os grupos populares para que percebam criticamente a violência e a
injustiça de sua situação concreta; e que também percebam que essa situação, ainda que difícil, pode ser
mudada. Como educador preciso considerar o saber de “experiência feito” pelos grupos populares, sua
explicação do mundo e a compreensão de sua própria presença nele. Tudo isso vem explicitado na “leitura do
mundo” que precede a “leitura da palavra”.
Contudo, não posso impor a esses grupos meu saber como o verdadeiro. Mas, posso dialogar com eles,
desafiando-os a pensar sua história social e a perceber a necessidade de superarem certos saberes que se
revelam inconsistentes para explicar os fatos.
9. ENSINAR EXIGE CURIOSIDADE - Procedimentos autoritários ou paternalistas impedem o exercício da
curiosidade do educando e do próprio educador. O bom clima pedagógico-democrático levará o educando a
assumir eticamente limites, percebendo que sua curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do
outro, nem expô-la aos demais. Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, não
aprendo nem ensino. É fundamental que alunos e professor se assumam epistemologicamente curiosos.
Saibam que sua postura é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou ouve.
O exercício da curiosidade a faz mais criticamente curiosa, mais metodicamente “perseguidora” do seu
objetivo. Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica e se “rigoriza”, tanto mais epistemologicamente
vai se tornando. Um dos saberes fundamentais à prática educativo-crítica é o que adverte da necessária
promoção da curiosidade espontânea para curiosidade epistemológica.
CAPÍTULO 3 - ENSINAR É UMA ESPECIFICIDADE HUMANA
1. ENSINAR EXIGE SEGURANÇA, COMPETÊNCIA PROFISSIONAL E GENEROSIDADE - A Segurança é
fundamentada na competência profissional, portanto a incompetência profissional desqualifica a autoridade do
professor. A autoridade deve fazer-se generosa e não arrogante. Deve reconhecer a eticidade. O educando
que exercita sua liberdade vai se tornando tão mais livre quanto mais eticamente vá assumindo as
responsabilidades de suas ações. Testemunho da autoridade democrática deixa claro que o fundamental é a
construção, pelo indivíduo, da responsabilidade da liberdade que ele assume. É o aprendizado da autonomia.
2. ENSINAR EXIGE COMPROMETIMENTO - A maneira como os alunos me percebem tem grande
importância para o meu desempenho. Não há como sendo professor não revelar minha maneira de ser, de
pensar politicamente, diante de meus alunos. Assim, devo preocupar-me em aproximar cada vez mais o que
digo do que faço e o que pareço ser do que realmente estou sendo.
Minha presença é uma presença em si política, e assim sendo, não posso ser uma omissão, mas um sujeito
de opções. Devo revelar aos alunos, minha capacidade de analisar, comparar, avaliar; de fazer justiça, de não
falhar à verdade. Meu testemunho tem que ser ético. O espaço pedagógico neutro prepara os alunos para
práticas apolíticas. A maneira humana de se estar no mundo não é, nem pode ser neutra.
3. ENSINAR EXIGE COMPREENDER QUE A EDUCAÇÃO É UMA FORMA DE INTERVENÇÃO NO MUNDO
- Implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto seu desmascaramento. Como
professor minha prática exige de mim uma definição. Decisão. Ruptura. Como professor sou a favor da luta
contra qualquer forma de discriminação, contra a dominância econômica dos indivíduos ou das classes
sociais, etc. Sou a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Não posso reduzir minha prática docente
ao puro ensino dos conteúdos, pois meu testemunho ético ao ensiná-los é igualmente importante. É o respeito
ao saber de “experiência feito” dos alunos, o qual busco superar com eles. É coerência entre o que digo, o que
escrevo e o que faço.
4. ENSINAR EXIGE LIBERDADE E AUTORIDADE - A autonomia vai se constituindo na experiência de várias
e inúmeras decisões que vão sendo tomadas. Vamos amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto
amadurecimento do ser por si, é processo; é vir a ser. Não posso aprender a ser eu mesmo se não decido
nunca porque há sempre alguém decidindo por mim.
Quanto mais criticamente assumo a liberdade, tanto mais autoridade ela tem para continuar lutando em seu
nome.
5. ENSINAR EXIGE TOMADA CONSCIENTE DE DECISÕES - A educação, especificidade humana é um ato
de intervenção no mundo. Tanto intervenções que aspiram mudanças radicais na sociedade, no campo da
economia, das relações humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação, etc. quanto as
que pelo contrário, pretendem imobilizar a História e manter a ordem injusta.
A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política e sua raiz se
acha na própria educabilidade do ser humano, que se funde na sua natureza inacabada e da qual se tornou
consciente. O ser humano, assim se tornou um ser ético, um ser de opção, de decisão.
Diante da impossibilidade da neutralidade da educação, é importante que o educador saiba que se a
educação não pode tudo, alguma coisa fundamental ela pode. O educador crítico pode demonstrar que é
possível mudar o país. E isto reforça nele a importância de sua tarefa político-pedagógica. Ele sabe o valor
que tem para a modificação da realidade, a maneira consistente com que vive sua presença no mundo. Sabe
que sua experiência na escola é um momento importante que precisa ser autenticamente vivido.
6. ENSINAR EXIGE SABER ESCUTAR - Aprendemos a escutar escutando. Somente quem escuta paciente e
criticamente o outro, fala com ele, e sem precisar se impor. No processo da fala e escuta, a disciplina do
silêncio a ser assumido a seu tempo pelos sujeitos que falam e escutam é um “sine qua” da comunicação
dialógica. É preciso que quem tem o que dizer saiba, que sem escutar o que quem escuta tem igualmente a
dizer, termina por esgotar sua capacidade de dizer. Quem tem o que dizer deve assim, desafiar quem escuta,
no sentido de que, quem escuta diga, fale, responda. O espaço do educador democrático, que aprende a falar
escutando, é cortado pelo silêncio intermitente de quem falando, cala para escutar a quem, silencioso, e não
silenciado, fala.
Não há inteligência da realidade sem a possibilidade de ser comunicada. O professor autoritário que recusa
escutar os alunos, impede a afirmação do educando como sujeito de conhecimento. Como arquiteto de sua
própria prática cognoscitiva.
7. ENSINAR EXIGE RECONHECER QUE A EDUCAÇÃO É IDEOLÓGICA

Ideologia tem que ver diretamente com a ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para
opacizar a realidade, ao mesmo tempo que nos torna “míopes”. Sabemos que há algo no meio da penumbra,
mas não o divisamos bem. Outra possibilidade que temos é a de docilmente aceitar que o que vemos e
ouvimos é o que na verdade é, e não a verdade distorcida.
Por exemplo, o discurso da globalização que fala da ética, esconde porém, que a sua ética é a do mercado e
não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar se optamos, na verdade, por um mundo de
gente.
A teoria da transformação político-social do mundo, deve fazer parte de uma compreensão do homem
enquanto ser fazedor da História, e por ela feito, ser da decisão, da ruptura, da opção. Seres éticos.
Os avanços científicos e tecnológicos devem ser colocados a serviço dos seres humanos. Para superar a crise
em que nos achamos, impõe-se o caminho ético.
Como professor, devo estar advertido do poder do discurso ideológico. Ele nos ameaça de anestesiar a mente,
de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas. No exercício crítico de minha
resistência ao poder manhoso da ideologia, vou gerando certas qualidades que vão virando sabedoria
indispensável à minha prática docente. Me predisponho a uma atitude sempre aberta aos demais, aos dados
da realidade, por um lado; e por outro, a uma desconfiança metódica que me defende de tornar-me
absolutamente certo de certezas.
8. ENSINAR EXIGE DISPONIBILIDADE PARA O DIÁLOGO Como professor devo testemunhar aos alunos a
segurança com que me comporto ao discutir um tema, analisar um fato. Aberto ao mundo e aos outros,
estabeleço a relação dialógica em que se confirma a inconclusão no permanente movimento na História.
Postura crítica diante dos meios de comunicação não pode faltar. Impossível a neutralidade nos processos de
comunicação. Não podemos desconhecer a televisão, mas devemos usá-la, sobretudo, discuti-la.
9. ENSINAR EXIGE QUERER BEM AOS EDUCANDOS Querer bem aos educandos e à própria prática educativa de que
participo. Essa abertura significa que a afetividade não me assusta, que não tenho medo de expressá-la. Seriedade
docente e afetividade não são incompatíveis. Aberto ao querer bem significa minha disponibilidade à alegria de viver.
Quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca e minha docência, tanto mais alegre e esperançoso me
sinto.
__________________________________________________________________________________________________

Livro: O Construtivismo na Sala de Aula


Capítulo: 7 - A Avaliação da Aprendizagem no currículo escolar - Uma perspectiva construtivista
Autores: César Coll, Elena Marim
1. Nos últimos anos a avaliação e as atuações ou decisões associadas a elas se tornam um dos focos prioritários de atenção,
pois há poucas tarefas onde há tantas duvidas e contradições.
2. E desculpa dizer que faltam propostas teóricas,metodológicas ou instrumentais sobre o tema
3. Expressões e conceitos como os de avaliação inicial, formativa e somatória passam a fazer parte de nossas abordagens
profissionais.
4. Há diferentes tipos de avaliação que podem e devem desempenhar funções diferentes, portanto e necessário utilizar
procedimentos e técnicas de avaliação diferenciadas.
5. Não basta avaliar as aprendizagens dos alunos, mas tb. nossa própria atuação como professores e as atividades que
planejamos e desenvolvemos com eles.
6. As dificuldades são maiores quando nos assumimos construtivistas por quê
a) Nessa ótica o aluno só aprende quando constrói significados atribuindo sentido ao conteúdo e a pratica de avaliação que
não nivele e nem uniformize
b) Equilibrar respeito ao processo de construção de conhecimento pelo aluno com os critérios de avaliação de caráter geral
previamente estabelecidos.
c) Harmonizar o ponto em que se encontra cada aluno (a) com o maior nível possível de desenvolvimento da
aprendizagem com uma avaliação que independemente da nossa vontade ter um certo caráter sancionado.
Observação – o autor comparar a questão da avaliação com a mitogia grega.
MITOLOGIA – OS 12 TRABALHOS DE HERCULES
 HERCULES - quando enfrentou a hidra de sete cabeças teve que cortar as sete cabeças com um só golpe para evitar
que as cabeças renascessem.
 AVALIACAO - Nossa hidra tem mais cabeças que a de Hércules. Ao avaliar, quando achamos ter resolvido um
problema ou dúvida surge outro que ao resolve-lo, o primeiro ressurge com igual ou maior intensidade. Como fez Hercules
com a Hidra, precisamos ver a avaliação de forma global identificando e abordando distintos aspectos, facetas e
componentes , considerando as inter-relações entre as diferentes vertentes e planos da problemática de avaliação, sem
conflitos, colocando cada ingrediente em seu lugar e distinguindo entre os problemas e contradições de fundo e àqueles
que são apenas de uma confusão de níveis de analise de reflexão de ou de praticas.
Obs: Ainda estamos longe de atingir essas potencialidades e na avaliação nem mesmo sabemos se todas as cabeças
pertencem a mesma criatura mas devemos direcionar nossas reflexões e atuações nessa direção.
7. Nossos enfrentamentos cotidianos: a avaliação das aprendizagens dos alunos e seu papel e tratamento no processo de
elaboração e concretização do currículo escolar com 3 âmbitos de referência para compreender a avaliação da
aprendizagem escolar com ênfase maior nos dois primeiros:
a) Práticas de avaliação em uso
b) Referencial psicopedagógico e curricular
c) Referencial normativo
Para indicar diretrizes para guiar uma prática construtivista do ensino e da aprendizagem e as funções da avaliação
da aprendizagem dos alunos na concretização do currículo escolar, com objetivo de rever ou pelo menos
reconsiderar determinados aspectos das práticas de avaliação em uso.
Fichamento elaborado por Luiz Carlos de Freitas, professor de História da Rede Municipal – setembro de 2008
__________________________________________________________________________________________________

Dez competências para ensinar


Philippe Perrenoud
A especialização, o pensamento e as competências dos professores são objetos de inúmeros trabalhos, inspirados na
ergonomia e na antropologia cognitiva, na psicologia e na sociologia do trabalho, bem como na análise das práticas.
A obra de Perrenoud pretende ser um convite para uma viagem, e para debate, a partir de uma grande constatação: os
programas de formação e as estratégias de inovação fundamentam-se, com demasiada freqüência, em representações pouco
explícitas e, insuficientemente, negociadas do ofício e das competências subjacentes, ou, então, em referenciais técnicos e
áridos, cujos fundamentos os leitores normalmente não assimilam.
O ofício de professor não é imutável e por isso suas transformações passam, principalmente, pela emergência de novas
competências reconhecidas, por exemplo, para enfrentar a crescente heterogeneidade dos efetivos escolares e a evolução dos
programas.
Para Perrenoud, todo referencial tende a se desatualizar pela mudança das práticas e, também, porque a maneira de concebê-
las se transforma. Ele escolhe como referencial aquele que acentua as competências julgadas prioritárias por serem coerentes
com o novo papel dos professores, com a evolução da formação contínua, com as reformas da formação inicial, com as
ambições das políticas educativas. Enfim, um referencial compatível com os eixos de renovação da escola; individualizar e
diversificar os percursos de formação, introduzir ciclos de aprendizagem, diferenciar a pedagogia, direcionar-se para uma
avaliação mais formativa do que normativa, conduzir projetos de estabelecimento, desenvolver o trabalho em equipe docente e
responsabilizar-se coletivamente pelos alunos, colocar as crianças no centro da ação pedagógica, recorrer aos métodos ativos,
aos procedimentos de projeto, ao trabalho por problemas abertos e por situações-problema, desenvolver as competências e a
transferência de conhecimentos, educar para a cidadania. Em um inventário não definitivo, nem exaustivo, são tratadas dez
grandes famílias de competências. O autor nos alerta para o fato de nenhum referencial poder garantir uma representação
consensual, completa e estável de um ofício das competências que ele operacionaliza.
O referencial escolhido associa a cada competência principal algumas competências mais específicas, que são, de certa forma,
seus componentes principais. Seguem-se abaixo as dez famílias propostas pelo autor com um referencial que servirá para seu
melhor entendimento e para a formação de representações cada vez mais precisas de competências em questão.
A noção de competência é designada pelo autor como uma capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para
enfrentar um tipo de situação, baseando-se em quatro aspectos:
1. as competências não são saberes ou atitudes, mas os esquemas de percepção, de avaliação, de antecipação
mobilizam, integram e orquestram tais recursos; e de decisão;
2. essa mobilização só é pertinente em situação, sendo 3. A natureza dos esquemas de pensamento que permitem
cada situação singular, ainda que se possa tratá-la em a solicitação, a mobilização e a orquestração dos recursos
analogia com outras, já encontradas; pertinentes em situação complexa e em tempo real.
3. o exercício da competência passa por operações PHILIPPE PERRENOUD
mentais complexas subentendidas por esquemas de 10 NOVAS COMPETÊNCIAS PARA ENSINAR
pensamento que permitem determinar (mais ou menos 1. organizar e dirigir situações de Aprendizagem
conscientemente e rapidamente) e realizar (de modo mais · conhecer, para determinada disciplina, os conteúdos
ou menos eficaz) uma ação relativamente adaptada à a serem ensinados e sua tradução em objetivos
situação; de aprendizagem;
4. as competências profissionais constróem-se, em · construir e planejar dispositivos e seqüências didáticas
formação, mas também ao sabor da navegação diária de 2. administrar a progressão das aprendizagens:
um professor, de uma situação de trabalho à outra. · adquirir uma visão longitudinal dos objetivos do ensino;
Administrar a progressão das aprendizagens mobiliza cinco · observar e avaliar os alunos em situações de
competências mais específicas: aprendizagem, de acordo com uma abordagem formativa.
1. conceber e administrar situações-problema ajustadas ao 3. Conceber e fazer evoluir os dispositivos de
nível e às possibilidades dos alunos; diferenciação:
2. adquirir visão longitudinal dos objetivos de ensino; · fornecer apoio integrado, trabalhar com alunos
3. estabelecer laços com as teorias subjacentes às portadores de grandes dificuldades;
atividades de aprendizagem; · desenvolver a cooperação entre os alunos e certas
4. observar e avaliar os alunos em situações de formas simples de ensino mútuo.
aprendizagem, de acordo com uma abordagem formativa; 4. envolver os alunos em sua aprendizagem e
5. fazer balanços periódicos de competências e tomar em seu trabalho:
decisões de progressão. · suscitar o desejo de aprender, explicitar a relação
Na maioria das vezes, descrever uma competência com o saber, o sentido do trabalho escolar e
equivale a evocar três elementos complementares: desenvolver na criança a capacidade de auto-avaliação;
1. os tipos de situações nas quais há um certo domínio; · favorecer a definição de um projeto pessoal do aluno.
2. os recursos que mobiliza, os conhecimentos teóricos ou 5. Trabalhar em equipe:
metodológicos, as atitudes, o “saber fazer” (savoir-faire) e · enfrentar e analisar em conjunto situações complexas,
as competências mais específicas, os esquemas motores, práticas e problemas profissionais;
· administrar crises ou conflitos interpessoais.
6. participar da administração da escola: 9.enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão:
· organizar e fazer evoluir, no âmbito da escola, a · lutar contra os preconceitos e as discriminações
participação dos alunos; sexuais, étnicas e sociais;
· coordenar, dirigir uma escola com todos os seus · desenvolver o senso de responsabilidade, a
parceiros (serviços para escolares, bairro, associações solidariedade e o sentimento de justiça.
de pais, professores de língua e cultura de origem). 10. administrar sua própria formação contínua:
7.informar e envolver os pais: · dirigir reuniões de · saber explicitar as próprias práticas;
informação e de debate; · acolher a formação dos colegas e participar dela
· envolver os pais na construção dos saberes. · negociar um projeto de formação comum com os
8. utilizar novas tecnologias: colegas.
· utilizar as ferramentas multimídia no ensino;
· explorar as potencialidades didáticas dos
programas em relação aos objetivos do ensino.
PERRENOUD, PHILIPPE ENSINANDO AS COMPETÊNCIAS DESDE A ESCOLA PORTO ALEGRE, ART
MED, 1999 Ao desenvolverem-se competências, desiste-se de transmitir conhecimentos? Quase que a
totalidade das ações humanas exige algum tipo de conhecimento, às vezes superficial, outras vezes
aprofundado, oriundo da experiência pessoal, do senso comum, da cultura partilhada ou da pesquisa
tecnológica ou científica. São múltiplos os significados da noção de competência. Aqui ela será definida como
sendo uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos,
mas sem limitar-se a eles. Assim é, por exemplo, que conhecimentos bastante profundos são necessários
para:
 analisar um texto e reconstituir as intenções do autor;
 traduzir de uma língua para outra;
 argumentar com a finalidade de convencer alguém cético ou um oponente;
 construir uma hipótese e verificá-la;
 identificar, enunciar e resolver um problema científico;
 detectar uma falha no raciocínio de um interlocutor;
 negociar e conduzir projeto coletivo.

Existe um grande dilema com relação à função da Escola, questiona-se se os alunos freqüentam a escola para
adquirir conhecimentos ou para desenvolver competências. A competência pode ser definida como eficácia
para resolver um certo tipo de situação, alicerçando-se em conhecimentos. As ciências cognitivas têm
conseguido, progressivamente, distinguir três tipos de conhecimentos:
- Conhecimentos Declarativos: descrevem a realidade sob a forma de fatos, leis constantes ou regularidades;
- Conhecimentos Procedimentais: descrevem o procedimento a ser aplicado para obter-se algum tipo de
resultado.(Conhecimentos metodológicos);
- Conhecimentos Condicionais: determinam as condições de validade dos conhecimentos procedimentais.

NOÇÃO DE COMPETÊNCIA São três as pistas falsas de noção de competência, que não acrescentam muito
para a compreensão dos problemas: 1. competência apenas para insistir na necessidade de expressar os
objetivos de um ensino em termos de condutas ou práticas observáveis (tradição pedagógica); 2. oposição
entre competência e desempenho, sendo o segundo o indicador mais confiável do que o primeiro; 3.
concepção clássica que considera a competência uma faculdade genérica de qualquer mente humana.
ESQUEMAS E COMPETÊNCIAS Só haverá competência estabilizada quando a mobilização dos
conhecimentos superar a reflexão ao alcance de cada um e acionar esquemas constituídos. Ocorre que,
ocasionalmente, relacionam-se os esquemas com simples hábitos. Podemos, sim, considerar que os hábitos
são esquemas simples e rígidos, porém, nem todo esquema é um hábito. Existe a mobilização instantânea,
onde a competência assume a aparência de um complexo esquema estabilizado. Por outro lado, situações
onde essa mobilização não é tão evidente, necessitam de uma maior reflexão, de uma consulta de referências
ou até de pessoas-recursos. Existe ainda a situação intermediária, cuja deliberação rápida e segura
permanece perceptível tanto pelo ator como pelo observador. Um especialista é competente porque ao mesmo
tempo:
- domina com rapidez e segurança as situações mais comuns, por ter à sua disposição esquemas complexos
que entram imediata e automaticamente em ação, sem vacilar e sem reflexão real;

- com um esforço razoável de reflexão, é capaz de coordenar e diferenciar rapidamente seus esquemas de
ação e seus conhecimentos para enfrentar situações inéditas.
- Segundo Boterf (1994, 1997), que desenvolveu a idéia fundamental de "mobilização", competência é um
"saber-mobilizar".

O QUE ESTÁ EM JOGO NA FORMAÇÃO As competências são importantes metas da formação, podendo
responder a uma demanda social dirigida para a adaptação ao mercado e às mudanças, além de fornecer os
meios para apreender a realidade e não ficar indefeso nas relações sociais. Dois princípios, um otimista e um
pessimista, baseados neste assunto, podem ser citados:
- a evolução do sistema educacional rumo ao desenvolvimento de competências talvez seja a única maneira
de "dar sentido à escola", para salvar uma forma escolar que está se esgotando sem que seja percebida, de
imediato, alguma alternativa visível;
- esta evolução é difícil, pois exige importantes transformações dos programas, da didática, da avaliação,
funcionamento de classes e dos estabelecimentos, ofício de professor e aluno. Essas transformações sugerem
a resistência passiva ou ativa por parte dos interessados que preferem a continuidade das práticas adquiridas
à eficácia da formação.

PROGRAMAS ESCOLARES E COMPETÊNCIAS Toda competência está ligada a uma prática social de certa
complexidade. Está ligada a um conjunto de gestos, posturas e palavras inscritas na prática que lhes confere
sentido e continuidade. Uma competência, não necessariamente, está ligada a uma prática profissional. No
ambiente das formações escolares gerais, a questão é muito diferente, pois elas não levam a nenhuma
profissão em particular, nem a um conjunto de profissões. A partir desse problema, o princípio de identificação
das situações a partir das quais poderiam ser detectadas competências, podemos distinguir duas estratégias: -
enfatizar competências transversais; - fazer como se as disciplinas já formassem para as competências, cujo
exercício durante a aula já prefiguraria a implementação na vida profissional ou na extraprofissional. Para
escrever programas escolares que visam ao desenvolvimento de competências, pode-se tirar, de diversas
práticas sociais, situações problemáticas das quais serão extraídas competências transversais. PRÁTICAS DE
REFERÊNCIA E DE TRANSPOSIÇÃO A escola não se aventura no campo perigoso das práticas sociais e
costuma contentar-se, ao propor um referencial de práticas transversais, com fórmulas cautelosas, no melhor
dos casos acompanhadas de alguns exemplos apresentáveis. Tais programas não resolvem a questão da
transposição didática. Se as competências são formadas pela prática, isso ocorre, necessariamente, em
situações concretas, com conteúdos, contextos e riscos identificados. Quando o programa não propõe nenhum
contexto, entrega aos professores a responsabilidade, o poder e o risco de determiná-lo. Isso agrada aos que
desejam dar a eles a maior autonomia possível na escolha dos conteúdos e dos processos de formação.
COMPETÊNCIAS E DISCIPLINAS Há aqueles que temem que desenvolver competências na escola levaria a
renunciar às disciplinas de ensino e apostar tudo em competências transversais e em uma formação pluri, inter
ou transdisciplinar. Esse temor é infundado: a questão é saber qual a concepção das disciplinas escolares que
deve ser adotada. A escola não deve limitar-se a transmitir conhecimentos e a desenvolver algumas
capacidades intelectuais muito gerais fora de qualquer referência a situações e práticas sociais, e não deve
defender a construção de competências de alto nível, trabalhando-se a transferência e a mobilização dos
conhecimentos em situações complexas, muito além dos exercícios clássicos de consolidação e aplicação. A
insistência exclusiva sobre o transversal, no sentido de interdisciplinar ou de não-disciplinar, empobrece a
abordagem por competências. TUDO DISCIPLINAR X TUDO TRANSVERSAL Há situações cujo domínio
encontra seus recursos em uma única disciplina. As situações escolares são geralmente construídas para
serem "intradisciplinares", e o mesmo ocorre com as situações de trabalho, quando a tarefa profissional
coincide com uma disciplina. Em outras situações, o domínio encontra seus recursos em várias disciplinas
identificáveis. É o caso de muitas situações de vida fora da escola, no trabalho ou fora do trabalho. Existem
ainda situações cujo domínio não passa por nenhum conhecimento disciplinar, dependendo, unicamente, de
conhecimentos fundados na experiência ou na ação de conhecimentos tradicionais ou profissionais, ou ainda,
de conhecimentos locais difíceis de classificar de acordo com uma grade disciplinar. TRANSFERÊNCIA E
INTEGRAÇÃO DE CONHECIMENTOS Muitos alunos não têm recursos pessoais, nem ajuda externa
necessária para utilizar plenamente seus conhecimentos, quando essa mobilização não é objeto de nenhum
treinamento. Sabe-se, portanto, que a transferência de conhecimentos ou sua integração em competências
não são automáticas e passam por um trabalho, um acompanhamento pedagógico e didático, sem o qual nada
ocorrerá, a não ser para os alunos com grandes meios para isso. CONSEQUÊNCIAS PARA OS
PROGRAMAS Na falta de formar apenas competências, a escola poderia, além de fornecer conhecimentos,
trabalhar capacidades descontextualizadas, porém contextualizáveis, tais como saber explicar, interrogar-se
ou saber raciocinar. Deveria acentuar o treinamento de exercícios de capacidades isoladas, da ordem dos
métodos ou habilidades gerais de pensamento e expressão. BLOCO DE COMPETÊNCIAS Um Bloco de
Competências é um documento que enumera, organizadamente as competências visadas por uma formação.
No ensino obrigatório, tende a garantir para cada indivíduo um "capital mínimo" de competência (SMIC -
Estoque Mínimo Incompreensível de Competências). Um Bloco de Competências não é um programa clássico
e não diz o que deve ser ensinado, mas sim, na linguagem das competências, o que os alunos devem
dominar. As competências transversais estão intimamente ligadas às competências disciplinares, pois se
encontram na intersecção de diferentes disciplinas. Englobam todas as interações sociais, cognitivas, afetivas,
culturais e psicomotoras entre o aluno e a realidade em seu meio-ambiente. Entre as competências
disciplinares, há distinção para competências globais (de integração, que reúnem e organizam um conjunto de
conhecimentos, saber-fazer e saber-ser em suas dimensões transversais e disciplinares) e competências
específicas (a serem desenvolvidas em situações de aprendizado para com o tempo, chegar a um domínio
maior das competências de integração). Na concepção Belga, os Blocos não substituem nem os programas,
nem os documentos pedagógicos. A escola balançará entre duas tentações: por um lado, desigualdades; por
outro, controlar tudo, sob risco de encorajar uma transposição didática burocrática. Concluindo, o sistema
educacional só pode formar competências em escolas se a maioria dos professores aderir livremente a essa
concepção de sua tarefa. IMPLICAÇÕES DO OFÍCIO DE DOCENTE A verdadeira formação de competências
supõe uma transformação da relação dos professores com o saber, de sua maneira de "dar a aula", de sua
identidade e de suas próprias competências profissionais. Com isso, estamos a caminho de um ofício novo
que tem como objetivo fazer aprender mais do que ensinar. Dessa forma, os professores são convidados a: -
considerar os conhecimentos como recursos a serem articulados; - trabalhar regularmente por problemas; -
criar ou utilizar meios de ensino alternativos; - negociar e conduzir projetos com seus alunos; - adotar e
improvisar planejamento flexível e indicativo; - implementar e explicitar um novo contrato de trabalho; - praticar
avaliação formadora em situação de trabalho; - dirigir-se para uma menor compartimentação disciplinar.
PLANEJAMENTO FLEXÍVEL E IMPROVISO Seria ideal que os professores dedicassem mais tempo para um
pequeno número de situações complexas do que abordar grande número de assuntos que podem ser
percorridos rapidamente, para que dê tempo de terminar os materiais junto com o ano letivo. Para que isso
possa acontecer, o docente deve: - ter tranqüilidade e controle das suas angústias pessoais; - instaurar vários
regimes do saber; - fazer constante balanço em relação aos objetivos do ano para se ter controle do que será
dado; - ter liberdade para com os conteúdos, extraindo apenas o essencial. MENOR COMPARTIMENTAÇÃO
DISCIPLINAR Uma compartimentação disciplinar menos rígida exige uma formação disciplinar mais afinada
dos professores. Dessa forma, os professores, segundo uma visão de competências, deveriam: - sentirem-se,
primeiramente, responsáveis pela formação global dos alunos; - sempre que tivessem uma oportunidade, sair
de seu campo de especialização para discutir com seus colegas outros assuntos e problemas envolvidos com
a formação dos alunos; - perceber e valorizar as transversalidades potenciais nos programas e nas atividades
didáticas; - não recuar diante de projetos ou de situações-problema; - trabalhar com balanços de
conhecimentos e competências; - aceitar funções menos centradas em uma disciplina do que nos alunos.
TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA É definida como a sucessão de transformações que fazem passar da cultura
vigente em uma sociedade (conhecimentos, práticas, valores) ao que dela se conserva nos objetivos e
programas da escola e, a seguir, ao que dela resta nos conteúdos efetivos do ensino e do trabalho escolar e,
finalmente, ao que se constrói na mente de parte dos alunos. Componentes do Sistema Educacional que
devem ser analisados: 1. reconstrução da Transposição Didática Para fazer dos conhecimentos sobre
práticas e culturas fontes de transposição didática, é preciso que se tenha em mente duas idéias principais: -
os alunos não devem ser preparados em função de visões precisas do que está para acontecer, mesmo
porque, neste caso, nenhuma seria confiável; - não se deve limitar a formação de um pequeno número de
competências transversais e muito gerais, pois é a partir destas que decorrem todas as ações eficazes, por
diferenciação e generalização. Dessa forma, para enfrentar situações diversas, há a necessidade de
competências também diversas, e essas não serão constituídas pela simples transferência de esquemas
gerais de raciocínio, análise, argumentação, decisão. A escola só poderá preparar-se para a diversidade do
mundo aliando conhecimentos e “savoir-faire” (saber-fazer) a propósito de muitas situações de vida de todos
os dias; 2. Atenuação das Divisões Disciplinares Certas competências situam-se no cruzamento de pelo
menos duas ou três disciplinas. Dessa forma, é possível casar disciplinas, onde uma fornecerá o domínio de
ferramentas dos conteúdos da outra. 3. Rompimento do Círculo Fechado A escola deve evitar trabalhar em
círculo fechado e não se interessar tanto pelo sucesso nos exames ou pela admissão no ciclo de estudos
seguintes. Deveria sim, se interessar mais pelo uso dos conhecimentos escolares na vida. 4. Criar novas
formas de Avaliação É impossível avaliar competências de maneira padronizada, portanto deve ser revisado
o processo de avaliação e deve-se desistir da prova escolar clássica como paradigma avaliatório e renunciar à
organização de um "exame de competências" , colocando-se todos os "concorrentes" na mesma linha de
largada. As competências devem ser avaliadas segundo situações que fazem com que, conforme os casos,
alguns estejam mais ativos do que outros, pois nem todos têm capacidade de fazer a mesma coisa ao mesmo
tempo. 5. Reconhecer o fracasso, não construir nada sobre a areia A escola escolhe e proporciona seu
próprio fracasso. Portanto, desenvolver uma competência não é contentar-se em seguir um programa, mas
sim, não parar com sua construção e testagem. Deve-se sempre enfrentar um problema, pois este sim mostra
que a ação pedagógica não alcançou sua meta. Deve-se, então, procurar novas estratégias, pois as bases
fundamentais têm que ser realmente dominadas. 6. Diferenciar o Ensino Quando o ensino não é
diferenciado, permite-se que os alunos mais favorecidos aprendam mais rápido e mais do que os outros. A
diferenciação do ensino ataca esse mecanismo e procura neutralizá-lo com uma forma de "discriminação
positiva". O desafio está em reunir, frente a uma mesma situação de aprendizado, alunos de diferentes níveis,
sem que isso favoreça, sistematicamente, os favorecidos. 7. Transformar a ação dos docentes Enquanto os
docentes não souberem realmente organizar e avaliar processos de projeto e situações-problema, os
ministérios irão propor-lhes textos inteligentes que permanecerão sem eco. Portanto, a "revolução de
competências" só acontecerá se, durante sua formação profissional, os futuros docentes experimentarem-se,
pessoalmente. ESTRATÉGIAS DE MUDANÇAS A abordagem por competências na reformulação dos
programas escolares talvez seja uma metamorfose de uma utopia muito antiga, que consiste em fazer da
escola um lugar onde cada um aprenderia livre, e inteligentemente, coisas úteis da vida. Esta utopia na
verdade, seria sociológica, na medida em que esse desenvolvimento supõe condições favoráveis em todas as
classes, ou seja, a adesão de todos, a começar pelos docentes, para uma nova concepção de cultura, do
saber, da ação, passando por uma mudança de identidade, por novas representações e novas qualificações
profissionais. Não se pode desenvolver simplesmente uma estratégia de mudança que convenha, mas apenas
lembrar algumas idéias que, apesar de simples, são difíceis de se implementar:
- práticas e sistemas não evoluem rapidamente, deve-se portanto, buscar o tempo necessário;
- nada muda sozinho, é necessário um processo coletivo;
- nada se muda com medo ou sofrimento, muito menos indiferença, deve-se acreditar acima de tudo;
- deve haver um processo de profissionalização do ofício de docente e a atitude dos formadores pode
contribuir, positiva ou negativamente.
______________________________________________________________________________________________________
1
Os sete saberes necessários à educação do da retina. As pessoas que estão próximas parecem muito
futuro. maiores do que aquelas que estão
Edgar Morin. mais distantes, pois à distância, o cérebro não realiza o
Os sete saberes necessários à educação do futuro não têm registro e termina por atribuir uma
nenhum programa dimensão idêntica para todas as pessoas. Assim como os
educativo, escolar ou universitário. Aliás, não estão raios ultravioletas e
concentrados no primário, nem no 2
secundário, nem no ensino universitário, mas abordam infravermelhos que nós não vemos, mas sabemos que
problemas específicos para cada um estão aí e nos impõem uma visão
desses níveis. Eles dizem respeito aos setes buracos segundo as suas incidências. Portanto, temos percepções,
negros da educação, completamente ou seja, reconstruções, traduções
ignorados, subestimados ou fragmentados nos programas da realidade. E toda tradução comporta o risco de erro.
educativos. Programas esses que, Como dizem os italianos
na minha opinião, devem ser colocados no centro das “tradotore/traditore”.
preocupações sobre a formação dos Também sabemos que não há nenhuma diferença
jovens, futuros cidadãos. intrínseca entre uma percepção e
O Conhecimento. uma alucinação. Por exemplo: se tenho uma alucinação e
O primeiro buraco negro diz respeito ao conhecimento. vejo Napoleão ou Júlio César,
Naturalmente, o ensino não há nada que me diga que estou enganado, exceto o
fornece conhecimento, fornece saberes. Porém, apesar de fato de saber que eles estão mortos.
sua fundamental importância, São os outros que vão me dizer se o que vejo é verdade ou
nunca se ensina o que é, de fato, o conhecimento. E não. Quero dizer com isso que
sabemos que os maiores problemas estamos sempre ameaçados pela alucinação. Até nos
neste caso são o erro e a ilusão. processos de leitura isto acontece.
Ao examinarmos as crenças do passado, concluímos que a Nós sabemos que não seguimos a linha do que está
maioria contém erros e escrito, pois, às vezes, nossos olhos
ilusões. Mesmo quando pensamos em vinte anos atrás, saltam de uma palavra para outra e reconstrói o conjunto
podemos constatar como erramos e de uma maneira quase
nos iludimos sobre o mundo e a realidade. E por que isso alucinatória. Neste momento, é o nosso espírito que
é tão importante? Porque o colabora com o que nós lemos. E não
conhecimento nunca é um reflexo ou espelho da realidade. reconhecemos os erros porque deslizamos neles. O mesmo
O conhecimento é sempre uma acontece, por exemplo, quando
tradução, seguida de uma reconstrução. Mesmo no há um acidente de carro. As versões e as visões do
fenômeno da percepção, através do qual acidente são completamente diferentes,
os olhos recebem estímulos luminosos que são principalmente pela emoção e pelo fato das pessoas
transformados, decodificados, transportados estarem em ângulos diferentes.
a um outro código, que transita pelo nervo ótico, atravessa No plano histórico há erros, se me permitem o jogo de
várias partes do cérebro para, palavras, histéricos.
enfim, transformar aquela informação primeira em Tomemos um exemplo um pouco distante de nós: os
percepção. A partir deste exemplo, debates sobre a Primeira Guerra
podemos concluir que a percepção é uma reconstrução. Mundial. Uma época em que a França e a Alemanha
Tomemos um outro exemplo de percepção constante: a tinham partidos socialistas fortes,
imagem do ponto de vista potentes e muito pacifistas, e que, evidentemente, eram
contrários à guerra que se
anunciava. Mas, a partir do momento em que se entre as disciplinas é invisível e as conexões entre elas
desencadeou a guerra, os dois partidos se também são invisíveis. Mas isto não
lançaram, massivamente a uma campanha de propaganda, significa que seja necessário conhecer somente uma parte
cada um imputando ao outro os da realidade. É preciso ter uma
atos mais ignóbeis. Isto durou até o fim da guerra. Hoje, visão capaz de situar o conjunto. É necessário dizer que
podemos constatar com os eventos não é a quantidade de
trágicos do Oriente Médio a mesma maneira de tratar a informações, nem a sofisticação em Matemática que
informação. Cada um prefere podem dar sozinhas um conhecimento
camuflar a parte que lhe é desvantajosa para colocar em pertinente, mas sim a capacidade de colocar o
relevo a parte criminosa do outro. conhecimento no contexto.
Este problema se apresenta de uma maneira perceptível e A economia, que é das ciências humanas, a mais
muito evidente, porque as avançada, a mais sofisticada, tem
traduções e as reconstruções são também um risco de erro um poder muito fraco e erra muitas vezes nas suas
e muitas vezes o maior erro é previsões, porque está ensinando de
pensar que a idéia é a realidade. E tomar a idéia como modo a privilegiar o cálculo. Com isso, acaba esquecendo
algo real é confundir o mapa com o os aspectos humanos, como o
terreno. sentimento, a paixão, o desejo, o temor, o medo. Quando
Outras causas de erro são as diferenças culturais, sociais e há um problema na bolsa, quando
de origem. Cada um as ações despencam, aparece um fator totalmente
pensa que suas idéias são as mais evidentes e esse irracional que é o pânico, e que,
pensamento leva a idéias normativas. freqüentemente, faz com que o fator econômico tenha a
Aquelas que não estão dentro desta norma, que não são ver com o humano, ligando-se,
consideradas normais, são julgadas assim, à sociedade, à psicologia, à mitologia. Essa
3 realidade social é multidimensional e o
como um desvio patológico e são taxadas como ridículas. 4
Isso não ocorre somente no econômico é apenas uma dimensão dessa sociedade. Por
domínio das grandes religiões ou das ideologias políticas, isso, é necessário contextualizar
mas também das ciências. todos os dados.
Quando Watson e Crick decodificaram a estrutura do Se não houver, por exemplo, a contextualização dos
código genético, o DNA (ácido conhecimentos históricos e
desoxirribonucléico), surpreenderam e escandalizaram a geográficos, cada vez que aparecer um acontecimento
maioria dos biólogos, que jamais novo que nos fizer descobrir uma
imaginavam que isto poderia ser transcrito em moléculas região desconhecida, como o Kosovo, o Timor ou Serra
químicas. Foi preciso muito Leoa, não entenderemos nada.
tempo para que essas idéias pudessem ser aceitas. Portanto, o ensino por disciplina, fragmentado e dividido,
Na realidade, as idéias adquirem consistência como os impede a capacidade natural que
deuses nas religiões. É algo o espírito tem de contextualizar. E é essa capacidade que
que nos envolve e nos domina a ponto de nos levar a deve ser estimulada e
matar ou morrer. Lenin dizia: “Os desenvolvida pelo ensino, a de ligar as partes ao todo e o
fatos são teimosos, mas, na realidade, as idéias são ainda todo às partes. Pascal dizia, já no
mais teimosas do que os fatos e século XVII: “Não se pode conhecer as partes sem
resistem aos fatos durante muito tempo”. Portanto, o conhecer o todo, nem conhecer o todo
problema do conhecimento não deve sem conhecer as partes”.
ser um problema restrito aos filósofos. É um problema de O contexto tem necessidade, ele mesmo, de seu próprio
todos e cada um deve levá-lo em contexto. E o
conta desde muito cedo e explorar as possibilidades de conhecimento, atualmente, deve se referir ao global. Os
erro para ter condições de ver a acidentes locais têm repercussão
realidade, porque não existe receita milagrosa. sobre o conjunto e as ações do conjunto sobre os acidentes
O Conhecimento Pertinente. locais. Isso foi comprovado
O segundo buraco negro é que não ensinamos as depois da guerra do Iraque, da guerra da Iugoslávia e,
condições de um conhecimento atualmente, pode ser verificado com
pertinente, isto é, de um conhecimento que não mutila o o conflito do Oriente Médio.
seu objeto. Nós seguimos, em A Identidade Humana.
primeiro lugar, um mundo formado pelo ensino O terceiro aspecto é a identidade humana. É curioso que
disciplinar. É evidente que as disciplinas nossa identidade seja
de toda ordem ajudaram o avanço do conhecimento e são completamente ignorada pelos programas de instrução.
insubstituíveis. O que existe Podemos perceber alguns aspectos
do homem biológico em Biologia, alguns aspectos Quando sonhamos com nossa identidade, devemos pensar
psicológicos em Psicologia, mas a que temos partículas que
realidade humana é indecifrável. Somos indivíduos de nasceram no despertar do universo. Temos átomos de
uma sociedade e fazemos parte de carbono que se formaram em sóis
uma espécie. Mas, ao mesmo tempo em que fazemos parte anteriores ao nosso, pelo encontro de três núcleos de hélio
de uma sociedade, temos a que se constituíram em
sociedade como parte de nós, pois desde o nosso moléculas e neuromoléculas na terra. Somos todos filhos
nascimento a cultura se nos imprime. Nós do cosmos, mas nos
somos de uma espécie, mas ao mesmo tempo a espécie é transformamos em estranhos através de nosso
em nós e depende de nós. Se nos conhecimento e de nossa cultura.
recusamos a nos relacionar sexualmente com um parceiro Portanto, é preciso ensinar a unidade dos três destinos,
de outro sexo, acabamos com a porque somos indivíduos,
espécie. Portanto, o relacionamento entre indivíduo- mas como indivíduos somos, cada um, um fragmento da
sociedade-espécie é como a trindade sociedade e da espécie Homo
divina, um dos termos gera o outro e um se encontra no sapiens, à qual pertencemos. E o importante é que somos
outro. A realidade humana é uma parte da sociedade, uma
trinitária. parte da espécie, seres desenvolvidos sem os quais a
Eu acredito possível a convergência entre todas as sociedade não existe. A sociedade só
ciências e a identidade humana. vive com essas interações.
Um certo número de agrupamentos disciplinares vai È importante, também, mostrar que, ao mesmo tempo em
favorecer esta convergência. É que o ser humano é
necessário reconhecer que na segunda metade do século múltiplo, ele é parte de uma unidade. Sua estrutura mental
XX, houve uma revolução faz parte da complexidade
5 humana. Portanto, ou vemos a unidade do gênero e
científica, reagrupando as disciplinas em ciências esquecemos a diversidade das culturas
pluridisciplinares. Assim, há a 6
cosmologia, as ciências da terra, a ecologia e a pré- e dos indivíduos, ou vemos a diversidade das culturas e
história. não vemos a unidade do ser
Tome-se como exemplo a cosmologia, que, efetivamente, humano.
utiliza a microfísica, os Esse problema vem causando polêmicas desde o século
aceleradores de partículas para imaginar os primeiros XVIII, quando Voltaire
segundos do universo. Ela utiliza a disse: “Os chineses são iguais a nós, têm paixões,
observação e pratica uma reflexão filosófica sobre o choram”. E Herbart, o pensador alemão,
mundo, assim como fizeram Hubert afirmou: “Entre uma cultura e outra não há comunicação,
Reeves, Hawkins, Michel Cassé e tantos outros. Eles os seres são diferentes”. Os dois
refletem sobre o universo incrível no tinham razão, mas na realidade essas duas verdades têm
qual vivemos. Mas o que é importante para a identidade que ser articuladas. Nós temos os
humana é saber que estamos neste elementos genéticos da nossa diversidade e, é claro, os
minúsculo planeta perdidos no cosmos. Nossa missão não elementos culturais da nossa
é mais a de conquistar o mundo diversidade.
como acreditava Descartes, Bacon e Marx. Nossa missão È preciso lembrar que rir, chorar, sorrir, não são atos
se transformou em civilizar o aprendidos ao longo da
pequeno planeta em que vivemos. educação, são inatos, mas modulados de acordo com a
Por outro lado, as ciências da terra nos inscrevem neste educação. Heigerfeld fez uma
planeta formado por observação sobre uma jovem surda-muda de nascença que
fragmentos cósmicos, resultados de uma explosão de sóis ria, chorava e sorria.
anteriores. Resta saber como Atualmente, estudos demonstram que o feto começa a
estes fragmentos reunidos e aglomerados puderam criar sorrir no ventre da mãe. Talvez
uma tal organização, uma autoorganização, porque não saiba o que o espera depois... Mas isso nos
para nos dar este planeta. É necessário mostrar que ele permite entender a nossa realidade,
gerou a vida, e a nós nossa diversidade e singularidade.
somos, filhos da vida. Chegamos, então, ao ensino da literatura e da poesia. Elas
A biologia, com a teoria da evolução, nos prova como não devem ser
trazemos dentro de nós, consideradas como secundárias e não essenciais. A
efetivamente, o processo de desenvolvimento da primeira literatura é para os adolescentes uma
célula vivente, que se escola de vida e um meio para se adquirir conhecimentos.
multiplicou e se diversificou. As ciências sociais vêem
categorias e não indivíduos sujeitos a emoções, paixões e crianças, como também os adultos gostam de jogar. Por
desejos. A literatura, ao isso vemos partidas de futebol.
contrário, como nos grandes romances de Tolstoi, aborda Nós somos Homo ludens, além de Homo economicus. Não
o meio social, o familiar, o vivemos só em função do
histórico e o concreto das relações humanas com uma interesse econômico. Há, também, o homo mitologicus,
força extraordinária. isto é, vivemos em função de mitos
Podemos dizer que as telenovelas também nos falam sobre e crenças.
problemas fundamentais Enfim o homem é prosaico e poético. Como dizia
do homem; o amor, a morte, a doença, o ciúme, a Hölderling: “O homem habita
ambição, o dinheiro. Temos que entender poeticamente na terra, mas também prosaicamente e se a
que todos esses elementos são necessários para entender prosa não existisse, não
que a vida não é aprendida poderíamos desfrutar da poesia”.
somente nas ciências formais. E a literatura tem a A Compreensão Humana.
vantagem de refletir sobre a O quarto aspecto é sobre a compreensão humana. Nunca
complexidade do ser humano e sobre a quantidade incrível se ensina sobre como
de seus sonhos. Como James compreender uns aos outros, como compreender nossos
Joyce, por exemplo, que, ao criar um personagem, vizinhos, nossos parentes, nossos
mostrava que uma pessoa pode ter pais. O que significa compreender?
sentimentos totalmente diversos. Ou como o herói de A palavra compreender vem do latim, compreendere, que
Dostoievski, em O Idiota que não quer dizer: colocar junto
sabe se a jovem está apaixonada por ele e ao fim da trama, todos os elementos de explicação, ou seja, não ter somente
depois de ter sofrido muito, um elemento de explicação,
encontra um amigo que lhe diz: “mas que imbecil você é, mas diversos. Mas a compreensão humana vai além disso,
não entendeu que ela o ama”. porque, na realidade, ela
Isto pode acontecer com qualquer pessoa, é a dificuldade 8
de saber o que o outro pensa e comporta uma parte de empatia e identificação. O que faz
sente. com que se compreenda alguém
7 que chora, por exemplo, não é analisar as lágrimas no
Marcel Proust mostrou, em Um amor de Swan, o que ele microscópio, mas saber o significado
chamava de intermitências da dor, da emoção. Por isso, é preciso compreender a
do coração, ou seja, que uma pessoa pode se apaixonar, compaixão, que significa sofrer
esquecer-se da pessoa desejada e junto. É isto que permite a verdadeira comunicação
voltar a amá-la. Neste romance o herói sofre durante anos humana.
de ciúmes por causa de uma A grande inimiga da compreensão é a falta de
mulher e quando ele já não está mais apaixonado, diz: preocupação em ensiná-la. Na
“mas eu sofri tanto por uma mulher realidade, isto está se agravando, já que o individualismo
que não me amava e que nem era meu tipo”. ganha um espaço cada vez maior.
Podemos, então, compreender a complexidade humana Estamos vivendo numa sociedade individualista, que
através da literatura. A favorece o sentido de
poesia nos ensina a qualidade poética da vida, essa responsabilidade individual, que desenvolve o
qualidade que nós sentimos diante de egocentrismo, o egoísmo e que,
fatos da realidade. Como, por exemplo, os espetáculos da consequentemente, alimenta a autojustificação e a rejeição
natureza: o céu de Brasília que é ao próximo.
tão bonito. A vida não deve ser uma prosa que se faça por A raiva leva à vontade de eliminar o outro e tudo aquilo
obrigação. A vida é viver que possa aborrecer. De
poeticamente na paixão, no entusiasmo. certa maneira, isto favorece ao que os ingleses chamam de
Para que isso aconteça, devemos fazer convergir todas as self-deception, isto é, mentir a si
disciplinas conhecidas mesmo, pois o egocentrismo vai tramando sempre o
para a identidade e para a condição humana, ressaltando a negativo e esquecendo dos outros
noção de homo sapiens; o elementos.
homem racional e fazedor de ferramentas, que é, ao A redução do outro, a visão unilateral e a falta de
mesmo tempo, louco e está entre o percepção sobre a complexidade
delírio e o equilíbrio, nesse mundo de paixões em que o humana são os grandes empecilhos da compreensão.
amor é o cúmulo da loucura e da Outro aspecto da incompreensão é a
sabedoria. indiferença. E, por este lado, é interessante abordar o
O homem não se define somente pelo trabalho, mas cinema, que os intelectuais tanto
também pelo jogo. Não só as acusam de alienante. Na verdade, o cinema é uma arte que
nos ensina a superar a
indiferença, pois transforma em heróis os invisíveis No fim da era secundária, a queda do asteróide que matou
sociais, ensinando-nos a vê-los por um os dinossauros e
outro prisma. Charlie Chaplin, por exemplo, sensibilizou ressecou a vegetação desses animais enormes, matando-os
platéias inteiras com o de fome deu oportunidade à
personagem do vagabundo. Outro exemplo é Coppola, proliferação dos mamíferos. Assim também ocorreu com
que popularizou os chefes da Máfia as sociedades humanas. Todas
com “O Chefão”. No teatro, temos a complexidade dos sofreram o colapso por uma razão ou outra. Nem mesmo o
personagens de Shakspeare: reis, império romano, que parecia
gangsters, assassinos e ditadores. No cinema, como na eterno, conseguiu sobreviver. As sociedades andinas, que
filosofia de Heráclito: eram mais potentes que seus
“Despertados, eles dormem”. Estamos adormecidos, colonizadores espanhóis e cujas capitais eram muita mais
apesar de despertos, pois diante da ricas que Paris, Madri ou Lisboa,
realidade tão complexa, mal percebemos o que se passa ao foram destruídas por espanhóis que chegaram com
nosso redor. cavalos e armas desconhecidas.
Por isso, é importante este quarto ponto: compreender não As duas guerras mundiais destruíram muito na metade do
só os outros como a si século XX, depois da
mesmo, a necessidade de se auto-examinar, de analisar a Primeira Guerra Mundial. Três grandes impérios da
autojustificação, pois o mundo época, por exemplo, o romanootomano,
está cada vez mais devastado pela incompreensão, que é o o austro-húngaro e o soviético, desapareceram.
câncer do relacionamento entre Isto nos demonstra a necessidade de ensinar o que
os seres humanos. chamamos de ecologia da ação: a
9 atitude que se toma quando uma ação é desencadeada e
A Incerteza. escapa ao desejo e às intenções
O quinto aspecto é a incerteza. Apesar de, nas escolas, 10
ensinar-se somente as daquele que a provocou, desencadeando influências
certezas, como a gravitação de Newton e o múltiplas que podem desviá-la até para
eletromagnetismo, atualmente a ciência tem o sentido oposto ao intencionado.
abandonado determinados elementos mecânicos para A história humana está repleta de exemplos dessa
assimilar o jogo entre certeza e natureza. O mais evidente no
incerteza, da micro-física às ciências humanas. É final do século XX foi o projeto político de Gorbatchev,
necessário mostrar em todos os domínios, que pretendeu reformar o sistema
sobretudo na história, o surgimento do inesperado. político da União Soviética, mas acabou provocando o
Eurípides dizia no fim de três de suas começo de sua própria
tragédias que: “os deuses nos causam grandes surpresas, desagregação e implosão.
não é o esperado que chega e sim Assim tem acontecido em todas as etapas da história. O
o inesperado que nos acontece”. É a velha idéia de 2.500 inesperado aconteceu e
anos, que nós esquecemos acontecerá, porque não temos futuro e não temos certeza
sempre. nenhuma do futuro. As previsões
As ciências mantêm diálogos entre dados hipotéticos e não foram concretizadas, não existe determinismo do
outros dados que parecem progresso. Os espíritos, portanto, têm
mais prováveis. Os processos físicos, assim como outros que ser fortes e armados para enfrentarem essa incerteza e
também, pressupõem variações não se desencorajarem.
que nos levam à desordem caótica ou à criação de uma Essa incerteza é uma incitação à coragem. A aventura
nova organização, como nas teorias humana não é previsível, mas
sobre a incerteza de Prigogine, baseadas nos exemplos dos o imprevisto não é totalmente desconhecido. Somente
turbilhões de Born. Analisando agora se admite que não se conhece
retroativamente a história da vida, constata-se que ela não o destino da aventura humana. É necessário tomar
foi linear, que não teve uma consciência de que as futuras decisões
evolução de baixo para cima. A evolução segundo Darwin devem ser tomadas contando com o risco do erro e
foi uma evolução composta de estabelecer estratégias que possam ser
ramificações, a exemplo do mundo vegetal e o mundo corrigidas no processo da ação, a partir dos imprevistos e
animal. das informações que se tem.
O homem vem de uma dessas ramificações e conseguiu A Condição Planetária.
chegar à consciência e à O sexto aspecto é a condição planetária, sobretudo na era
inteligência, mas não somos a meta da evolução, fazemos da globalização no
parte desse processo. A história século XX – que começou, na verdade no século XVI com
da vida foi, na verdade, marcada por catástrofes. a colonização da América e a
interligação de toda a humanidade. Esse fenômeno que participação no gênero humano, pois compartilhamos um
estamos vivendo hoje, em que tudo destino comum.
está conectado, é um outro aspecto que o ensino ainda não A antropo-ética tem um lado social que não tem sentido se
tocou, assim como o planeta e não for na democracia,
seus problemas, a aceleração histórica, a quantidade de porque a democracia permite uma relação indivíduo-
informação que não conseguimos sociedade e nela o cidadão deve se
processar e organizar. sentir solidário e responsável. A democracia permite aos
Este ponto é importante porque existe, neste momento, um cidadãos exercerem suas
destino comum para responsabilidades através do voto. Somente assim é
todos os seres humanos. O crescimento da ameaça letal se possível fazer com que o poder
expande em vez de diminuir: a circule, de forma que aquele que foi uma vez controlado,
ameaça nuclear, a ameaça ecológica, a degradação da vida terá a chance de controlar.
planetária. Ainda que haja uma Porque a democracia é, por princípio, um exercício de
tomada de consciência de todos esses problemas, ela é controle.
tímida e não conduziu ainda a Não existe, evidentemente, democracia absoluta. Ela é
nenhuma decisão efetiva. Por isso, faz-se urgente a sempre incompleta. Mas
construção de uma consciência sabemos que vivemos em uma época de regressão
planetária. democrática, pois o poder tecnológico
Conhecer o nosso planeta é difícil: os processos de todas agrava cada vez mais os problemas econômicos. Na
as ordens – econômicos, verdade, o é importante orientar e
ideológicos e sociais – estão de tal maneira imbricados e 12
são tão complexos, que guiar essa tomada de consciência social que leva à
11 cidadania, para que o indivíduo possa
compreendê-los é um verdadeiro desafio para o exercer sua responsabilidade.
conhecimento. Ortega y Gasset dizia: “não Por outro lado, a ética do ser humano está se
sabemos o que acontece, isto é o que acontece”. desenvolvendo através das associações
É necessária uma certa distância em relação ao imediato não-governamentais, como os Médicos Sem Fronteiras, o
para podermos Greenpeace, a Aliança pelo
compreendê-lo. E, atualmente, dada a aceleração e a Mundo Solidário e tantas outras que trabalham acima de
complexidade do mundo, é quase entidades religiosas, políticas ou
impossível. Mas, faz-se necessário ressaltar, é esta a de Estados nacionais, assistindo aos países ou às nações
dificuldade. É necessário ensinar que que estão sendo ameaçadas ou em
não é suficiente reduzir a um só a complexidade dos graves conflitos. Devemos conscientizar a todos sobre
problemas importantes do planeta, essas causas tão importantes, pois
como a demografia, ou a escassez de alimentos, ou a estamos falando do destino da humanidade.
bomba atômica, ou a ecologia. Os Seremos capazes de civilizar a terra e fazer com que ela se
problemas estão todos amarrados uns aos outros. torne uma verdadeira
Daqui para frente, existem, sobretudo, os perigos de vida e pátria? Estes são os sete saberes necessários ao ensino. E
morte para a não digo isso para modificar
humanidade, como a ameaça da arma nuclear, como a programas. Na minha opinião, não temos que destruir
ameaça ecológica, como o disciplinas, mas sim integrá-las,
desencadeamento dos nacionalismos acentuados pelas reuni-las em uma ciência como, por exemplo, as ciências
religiões. É preciso mostrar que a da terra (a sismologia, a
humanidade vive agora uma comunidade de destino vulcanologia, a meteorologia), todas elas articuladas em
comum. uma concepção sistêmica da terra.
A Antropo-ética. Penso que tudo deva estar integrado para permitir uma
O último aspecto é o que vou chamar de antropo-ético, mudança de pensamento;
porque os problemas da para que se transforme a concepção fragmentada e
moral e da ética diferem a depender da cultura e da dividida do mundo, que impede a visão
natureza humana. Existe um aspecto total da realidade. Essa visão fragmentada faz com que os
individual, outro social e outro genético, diria de espécie. problemas permaneçam
Algo como uma trindade em que invisíveis para muitos, principalmente para muitos
as terminações são ligadas: a antropo-ética. Cabe ao ser governantes.
humano desenvolver, ao mesmo E hoje que o planeta já está, ao mesmo tempo, unido e
tempo, a ética e a autonomia pessoal (as nossas fragmentado, começa a se
responsabilidades pessoais), além de desenvolver uma ética do gênero humano, para que
desenvolver a participação social (as responsabilidades possamos superar esse estado de caos e
sociais), ou seja, a nossa começar, talvez, a civilizar a terra.
educação, a fim de mostrar a necessidade
imperativa da transformação no modo de ensinar,
a partir do entendimento da forma lógica de
aprender dos alunos. Em seguida; ele propõe uma
prospectiva na questão de como ensinar ciências,
demostrando como ponto crucial as diferenças
individuais de aptidão do aluno para determinados
saberes, dependendo da adaptação ao tipo de
ensino que lhe é oferecido, demonstrando que o
fracasso escolar está muito mais ligado à rápida
passagem que os professores fazem do aspecto
qualitativo (lógico) para o quantitativo
(numérico). Segundo o autor, a prática do ensino
deveria utilizar o método ativo, por meio do qual a
criança vai reconstruir e reinventar, não somente
transmitir informações ao aluno. Para ele, o
professor não deve se limitar ao conteúdo
específico de sua disciplina, mas deve conhecer
como ocorre o desenvolvimento psicológico da
inteligência humana. Todo o processo de ensino
deve estar alicerçado na experimentação por
parte do aluno.
Todo o processo de ensino deve estar alicerçado
na experimentação por parte do aluno. O
problema geral da Educação está centrado na
preparação dos professores, que é o aspecto de
real mudança em qualquer reforma pedagógica.
Na segunda parte, ele aborda a questão dos
direitos expressos na Declaração Universal dos
Direitos do Homem, em que lhe é assegurado o
pleno direito à educação e na qual os pais podem
escolher o tipo de educação que desejam para
seus filhos. Piaget advoga que esse direito não se
restringe ao "pleno direito à educação" mas que
esta seja uma educação de qualidade e voltada
para o pleno desenvolvimento da personalidade
humana, levando em consideração a paz entre as
várias nações. Para o desenvolvimento do ser
humano é preciso atentar para os dois fatores que
Para onde vai a educação? o condicionam: os fatores da hereditariedade e
Jean Piaget
adaptação biológicas, e os fatores de transmissão
Tradução de Ivette Braga, 14ª ed. Rio de Janeiro:
ou de interação sociais. O autor ressalta a
José Olympio, 1998. Palavras-chaves:
diferença entre as sociedades humanas e as
educação; direito à educação; ensino-
sociedades animais, cujas principais condições
aprendizagem; conhecimento escolar. O livro aqui
sociais humanas são as técnicas de produção e a
resenhado é obra de Jean Piaget, (1896-1980),
linguagem, que possibilita gerar os costumes e as
que trata de compreender a forma como a criança
regras. A concepção de que a lógica do
adquire o conhecimento lógico-matemático. Como
conhecimento seria inata no indivíduo foi
pesquisador, seus estudos têm como modelo as
quebrada com as pesquisas piagetianas, cujos
áreas da Matemática e da Física. Piaget lecionou
resultados apontaram que essa lógica se constrói
nas Universidades de Genebra e de Paris. Este
na interação do sujeito com o meio, como um
livro exprime o que o autor pensa a respeito do
processo de desenvolvimento natural. Assim, a
Ensino das Ciências, dos Direitos Humanos,
educação passa a ser vista como fundamental
inclusive o da gratuidade do ensino e de uma
para a formação do desenvolvimento natural do
educação voltada para o pleno desenvolvimento
indivíduo. O autor reflete sobre como a criança,
da personalidade humana levando em
até seus sete anos e conforme sua nacionalidade,
consideração a diversidade dos povos. A obra, ao
tem como responsável pela sua educação a família
longo de suas 80 páginas, está dividida em duas
e não na escola. Com isso, o autor quer nos
partes, sendo a primeira subdividida em dois
lembrar que a família não deve ter somente o
tópicos, a segunda em cinco tópicos. Jean Piaget
papel formador e a escola o papel de informar o
inicia a primeira parte com uma retrospectiva da
aluno, mas que a escola, que também é alunos se ele mesmo não sabe como acontece a
responsável em educar, não fosse separada da passagem do processo quantitativo para o
vida. qualitativo? Esta obra é indicada para todos os
Discutindo o direito à educação, de acordo com o profissionais da educação que buscam entender
autor, na página 36, "... é preciso não se um pouco mais sobre como se desenvolve o
deixar iludir: tal situação de direito não pensamento humano e refletir sobre como se
poderia ainda corresponder a uma aplicação poderia estar agindo dentro de um processo
universal da lei, já que o número de escolas educacional voltado ao desenvolvimento pleno da
e de professores permanece insuficiente pessoa e da sociedade.
relativamente à população em idade
escolar...". Piaget vem mostrar que o direito por
si só não é o bastante, e que a gratuidade
somente do ensino de primeiro grau, com um
olhar de justiça social, não passa de uma mera
afirmação social. Entretanto, para ele, não basta
ampliar o ensino de primeiro grau e implantar o
segundo com caráter gratuito, mas é preciso
também implementar uma relação
aluno/escola/aprendizagem, em que haja tarefas
que levem o aluno a compreender e participar
ativamente da vida social. Com relação aos pais, o
autor reflete sobre como a família vem perdendo
seu poder de escolha e controle para o estado; há
famílias constituídas por bons pais e outros nem
tanto. Ao lidar com os pais, principalmente
quando da aplicação dos métodos ativos, deve-se
levar em consideração que é mais fácil a estes
compreenderem os métodos antigos do que uma
nova proposta. A educação não deve se prestar a
moldar o aluno de acordo com um modelo
condizente com as gerações anteriores, mas em
formar-lhe a personalidade.
A respeito da educação moral, unicamente a vida
social entre os próprios alunos, isto é, um
autogoverno levado tão longe quanto possível e
paralelo ao trabalho intelectual em comum,
poderá conduzir a esse duplo desenvolvimento de
personalidades, donas de si mesmas e de respeito
mútuo. Mostra ainda que a questão da educação
internacional é muito delicada, pois, deve levar
em consideração as variadas culturas. O
intercâmbio intercultural entre as sociedades faz-
se principalmente
pelo respeito aos diferentes grupos étnicos que a
formam, de forma a conduzir a humanidade a
uma paz mundial. Para isso é preciso levar em
conta qual método deve ser aplicado para fazer de
um indivíduo um bom cidadão. As ciências
mostram o quão profundamente está enraizada a
atitude egocêntrica no ser humano, e o quanto é
difícil dela se desfazer, tanto pelo cérebro quanto
pelo coração. O pensamento de Piaget, expresso
nesse livro, leva-nos a refletir sobre a forma como
a escola e a sociedade vêm lidando com a
educação dos indivíduos, na qual, muitas vezes,
não se leva em consideração a forma como estes
desenvolvem sua inteligência. Mais grave ainda é
a formação dos professores, que não foram
desenvolvidos dentro de um processo ativo. Como
este docente, assim formado, poderá ensinar seus

Você também pode gostar