Trabalhadores Sexuais
Trabalhadores Sexuais
Trabalhadores Sexuais
Resumo
Embasado em pesquisa etnogrfica, o artigo reflete sobre posies identitrias de homens que comercializam
prazeres sexuais nas ruas do centro do Recife. O nus surge como smbolo maior da masculinidade dos vares
do mercado do sexo. A partir de seu uso como mercadoria, diversificam-se as posies identitrias: boys ativos
(nunca disponibilizam), boys bicha (facilmente disponibilizam) e boys flex (negociam seu preo). Bem raro, pois
seu uso como fonte de prazer desonra o homem, ele se torna smbolo de poder e subjugao nas relaes que se
estabelecem no mercado do sexo; sinalizador de virilidade e de mais-valia.
Palavras-chaves: masculinidade; profissionais do sexo; mercado sexual; prticas sexuais.
Resumen
Basadoen una investigacin etnogrfica, el artculo reflexiona sobre las posiciones de identidad de los hombres
que comercializan placeres sexuales en las calles del centro de Recife. El ano aparece como un smbolo
importante para la masculinidad de los varones enelmercado sexual. Existe una clasificacin que toma como
criterio el uso del ano como mercadera sexual: boys ativos (nunca ofertan), boys pasivos (siempre ofertan)
y boys flex (negocian su precio). Aunque parezca paradjico, pues su uso como fuente de placer deshonra
alhombre, mas elanose convierte en un smbolo de poder y sometimiento en las relaciones que se establecen
en el comercio sexual; marcador de virilidad yde mayor valor.
Palabras clave: masculinidad; trabajadores sexuales; comercio sexual; prcticas sexuales.
Abstract
Grounded in ethnographic research, the paper reflects on identity positions of men who sell sexual pleasures in
the streets of downtown Recife. The anus appears as the major symbol of masculinity of men on the sex market.
They are classified by the availability of their anus on the sex market: boys ativos (not available), boys bicha
(easily available) and boys flex (price negotiable). Rare commodity, because of its use as source of pleasure to
dishonor man, it becomes a symbol of power and subjugation in the relations established on the sex market; a
marker of manliness and more value.
Keywords: masculinity; sex workers; sex market; sexual practices.
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Souza Neto, E. N. & Rios, L. F. (2015). Apontamentos para uma economia poltica do cu entre trabalhadores sexuais.
Introduo
Este trabalho se prope refletir sobre as
construes de posies identitrias de homens que
comercializam prazeres sexuais nas ruas do centro
do Recife. Est embasado em pesquisa com enfoque
etnogrfico, realizada entre 2007 e 2008, viabilizada
por meio de observaes, conversas informais e
entrevistas com os participantes do negcio do
sexo. Vale, desde o incio, esclarecer que a cena da
prostituio homoertica das ruas do centro da capital
pernambucana bem mais diversificada do que a
explorada neste artigo.
No caso das personagens que a protagonizam,
dialeto, formas corporais, adereos e gestualidades se
organizam para o aperfeioamento dos corpos dos homens, de modo que atendam aos gostos dos fregueses.
So reconstrues que acenam para a hipermasculinizao/boys e a hiperfeminilizao/travestis. Claro que,
entre uns e outros, uma gama de possibilidades de estilos de ser homem se realiza nos sujeitos individuais.
Neste ensaio, trataremos apenas dos comerciantes que
usam os atributos normalmente concebidos comomasculinos na sociedade mais ampla, considerando tambm seus clientes.
No que se refere ao cenrio, h os que se
prostituem sob a proteo e a logstica de certos
estabelecimentos comerciais (saunas, cinemas, bares e
boates) e h os que entabulam negcio ali mesmo, na
rua. Estes ltimos se situam mais ou menos prximos
de outros comerciantes ambulantes1, os quais tambm,
por vezes, se engajam no suporte ao comrcio do sexo
e/ou s formas de lazer que se constituram, tendo
como referncia o desejo e as prticas sexuais de
pessoas de mesmo sexo. Um contexto que tem como
corao a praa Marechal Oliveira Lima, conhecida
como pracinha do Riachuelo, estrategicamente situada
a meio caminho entre saunas, cinemas de filme porn
e bares e boates mais populares da regio, e das ruas
onde ocorre o programa.
Tal apreenso, que reedita o sistema de sexognero mais amplo e inscreve a quebra do tabu da
homossexualidade na inteligibilidade heteronormativa
(Rubin, 1993), se atualiza e organiza o comrcio sexual
entre homens do Recife. Esse sistema ou matriz opera
na confluncia de trs dimenses corpreas (Rios,
2004), pautadas pelos valores conferidos a atributos
humanos, apreendidos em classificaes hierrquicas
sociossexuais (Rubin, 1999): (a) o agenciamento
de sotaque, gestuais e adereos nas performances
pblicas; (b) fontes privilegiadas de prazer corporal
(pnis/anus/boca); e (c) posies sexuais (insertivo/
receptivo). Essas trs dimenses so articuladas caso
a caso pelos homens e servem de elementos diacrticos
para a realizao de leituras de gnero: masculino e
feminino. No contexto estudado, mudam-se nomes,
mas a ideia permanece: o boy/masculino oferece seus
servios/penetrao ao frango/feminino/penetrado.
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descrevem os boys para um observador pouco entendido. Fbio, 26 anos, h 10 nessa vida, profundo
conhecedor dos tipos de trabalhadores do sexo, nos
explica as diferentes categorias de boys com as quais
tivemos contato ao longo de nossa estada nas ruas
do centro do Recife: O ativo o boy, e o que faz as
duas coisas gilete Ele s gilete. E o boy que
s d bicha. Seguindo a classificao traada por
Fbio, e quando nos aproximamos do cotidiano do
negcio do boy, um novo panorama de possibilidades se apresenta.
J podemos notar que o sistema classificatrio
que surge est focado no no tamanho do pau, como
se poderia esperar, mas em quem se deixa penetrar
por quem, portanto no cu. Foi esse sistema classificatrio que buscamos esquematizar na Figura 1:
BOY FLEX
O PENETRADOR
GILETE
O PENETRADO
BOY BICHA
S COME
COME E D
S D
CLIENTE
Incrementado o esquema com base nas conversas que tivemos com os boys, podemos dizer que
o boy ativo come o cu do cliente; ele jamais poder
deixar-se penetrar. Marcos (18 anos, boy de programa,
branco) reitera que dar o cu, sei l... isso no digno de um homem, no. O boy ativo, por no abdicar
das prerrogativas sociais de masculinidade tanto no
espao pblico quanto no privado, no corre o risco
de se tornar indigno, mesmo comendo o cu do frango.
Por no ser penetrado, ele garante, simbolicamente, a
maior virilidade, posicionando-se como espcie distinta e superior, situando-se em uma margem oposta
aos boys bichas, aqueles que do o cu. Em adio, o
boy ativo, ainda que reconhea e utilize a classificao das cincias mdicas sobre as sexualidades para
falar sobre os outros homens do negcio do sexo, por
apreend-la de forma generizada (Rios, 2004), nunca
se dir homossexual. O termo guardado para seus
clientes e os boys bichas.
O que distinguir um boyativo de um boyflex7
ser o fato de um ser comido, e o outro, no. Contudo,
o ltimo no necessariamente se reconhecer ou ser
reconhecido como gay ou homossexual, mas ser per-
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A chave do negcio
Antes de seguirmos adiante na anlise, devemos
esclarecer que no comrcio do sexo as transaes, que
em geral se concretizam nos motis do centro da cidade, comumente chegam ao pblico. Se no para todos
os clientes e boys, ao menos para, e por intermdio de,
os clientes habituais. Aqueles que sentam para tomar
cerveja na pracinha do Riachuelo. Entre um gole e outro, os clientes vo revelando o que se passou com tal
ou tal boy. Notcias que acabam se espalhando para colegas clientes e para os boys comerciantes, oferecendo
dados para a realizao da classificao descrita.
Em uma dessas conversas, em que clientes, boys
e pesquisadores comentavam sobre o cotidiano da michetagem, Roberto, que se diz heterossexual e boy ativo, negro de 35 anos e 20 de carreira, se vangloriava
mostrando o tamanho do pau para os que quisessem
ver. Entre uma brincadeira e outra, um colega questiona se ele se deixa ser enrabado8 pelos clientes. Sem
pestanejar, diz: Pagando, ele pode bombar9 o meu cu
a noite toda. E complementa: Mas garanto que meu
pau no sobe Porque sou macho!
Imediatamente, um dos pesquisadores se adianta
e, seguindo o tom de brincadeira, questiona se, caso o
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No entanto, ainda considerando o jogo que se estabelece a partir do lugar do boy, esse sistema tende a
se superpor a uma economia de trocas monetrias, em
que a transgresso (comer um homem) da transgresso
(que come frango) parece eroticamente converter em
positivo, porque rentvel, o valor negativo de ter o cu
penetrado. Por isso mesmo, e como buscamos apresentar ao longo do trabalho, para o boy a chave para a
prosperidade no negcio parece encontrar-se no cu, e
no propriamente no pau. Sob o peso simblico do cu
como zona proibida, este deve ser resguardado pelo
trabalhador do sexo a fim de garantir o reconhecimento pblico de masculinidade, mas no s por isso.
Em um contexto em que h clientes que sentem
prazer sendo ativos, os embates entre os prprios boys
e a tentativa de destituir os que facilmente vendem o
prazer proibido podem ser entendidos como estratgia coletiva para manter o cu, ao menos supostamente,
como bem escasso, capaz de fazer o boy alcanar
em conjunto com os outros atributos de masculinidade
melhores preos no mercado. De todo modo, diferentemente dos boys bicha, que do por quase nada,
e dos ativos, que (quase) nunca do, de se ressaltar
que so os flex os boys que mais se beneficiam da(dita)
raridade do prazer que se dispem a oferecer, e de seu
valor no mercado.
Em poucas palavras: nesse cadinho sexual que
so as noites ferventes das ruas do centro do Recife, a
capitalizao dos corpos d caldo ao que se pode fazer
em termos erticos. Ali, a impresso que tivemos de
que os homens envolvidos no negcio do sexo, boys
e clientes, interagem com base e numa gramtica na
qual os sentidos se configuram a partir de uma intrincada rede de significao, em que poderes, prazeres e
valores convergem para o fato de algum do sexo masculino se dispor a colocar seu cu no mercado do sexo.
Notas
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