BAINES - Variações Interetnicas
BAINES - Variações Interetnicas
BAINES - Variações Interetnicas
Organizadores
Braslia, 2012
EDIO
Universidade de Braslia UnB
Instituto Internacional de Educao do Brasil IEB
Centro de Pesquisa e Ps-Graduao Sobre as Amricas CEPPAC
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renovveis Ibama
Produo Editorial
Centro Nacional de Informao Ambiental Cnia
SCEN - Trecho 2 - Bloco C - Edifcio-Sede do Ibama
CEP 70818-900, Braslia, DF - Brasil
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Equipe Tcnica
Capa e diagramao
Paulo Luna
Nornalizao bibliogrfica
Helionidia C. Oliveira
Reviso
Maria Jos Teixeira
Enrique Calaf
Vitria Adail Brito
Catalogao na Fonte
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis
v299 Variaes intertnicas: etnicidade, conflitos e transformaes Stephen Grant
Baines... [et al.]. organizadores. Braslia: Ibama; UnB/Ceppac; IEB, 2012.
560 p. : il, color. ; 21 cm
ISBN 978-85-7300-362-8
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Agradecemos
Jorditnea Souto,
ao Paulo Luna e equipe
do setor de editorao do Ibama,
ao Programa de Ps-Graduao em
Estudos Comparados sobre as Amricas
do CEPPAC/UnB
e Maria Jos Gontijo
do Instituto Internacional de
Educao do Brasil.
Sumrio
Apresentao ..................................................................................11
Introduo ....................................................................................... 13
O
Grupo de Estudos em Relaes Intertnicas consolidou um es-
pao reflexivo para temas relacionados interao intertnica
e seus desdobramentos em meio urbano ou nas novas frontei-
ras da antropologia. Apesar de a Revista de Estudos em Relaes Intertnicas
(Interethic@) ser um espao de publicao onde muitos autores vm apresen-
tando suas pesquisas, havia a necessidade de experimentar outros formatos
que pudessem dar maior visibilidade aos trabalhos desse grupo. Este livro traz,
assim, um conjunto de trabalhos, muitos ainda inditos, realizados pelo Geri
em seus 10 anos de existncia.
O universo abordado pelo Geri est marcado pela diversidade terica,
metodolgica e pelos campos investigados, bem como, pela autonomia e
independncia que seus participantes imprimem em seus estudos. Partindo
do respeito a essa diversidade e alteridade, este livro busca atender esse
universo de olhares em cinco partes. Na primeira, Identidade, movimento
e territorializao, a busca de reconhecimento tnico e de direitos a um
territrio imprescindvel a sua sobrevivncia fsica e cultural parece mobilizar
os grupos em confrontos que, apesar da concretude alcanada por alguns
atores em oposio, demonstram ser uma reviso da histria de dominao
recente por meio do resgate de sua etnicidade imemorial. Dessa forma, em
Contatos intertnicos em regies de fronteiras: a viso dos ticuna e
dos galibi do Oiapoque, Claudia Lpez Garcs busca um dilogo com os
ticuna na trplice fronteira entre o Brasil, Peru e Colmbia, e com os galibi
em outra singular fronteira entre o Brasil e a Guiana. Em outro extremo
amaznico, no texto Memria, identidade e territrio dos arara: uma
anlise a partir do contexto de identificao da Terra Indgena Arara
do Igarap Humait/AC, Brasil, Cloude de Souza Correia resgata a luta
dos Arara por seu reconhecimento tnico, retratando episdios marcados pela
subjugao, dominao e resistncia. Em Os lakln na regio do Alto Vale
do Itaja, Estado de Santa Catarina, Brasil, Alexandro Machado Namem
recupera perspectivas nativas do grupo, em que a intimidade do pesquisador
transcende as limitaes da cincia para revelar com preciso as regras sociais
que as permeiam. Em Wyty-Cat: cultura e poltica de um movimento pan-
timbira, Jaime Garcia Siqueira mostra a perspectiva do movimento indgena
na atualidade, anunciando os contornos criados pelo grupo para garantir seus
direitos. Por fim, essa parte do livro assume o extremo da alteridade, quando,
Contatos intertnicos em regies de fronteiras:
a viso dos ticuna e dos galibi do Oiapoque 17
Introduo
Este artigo faz uma anlise comparada das interpretaes indgenas
sobre os processos de contato intertnico em regies de fronteiras polticas. As
reas etnogrficas onde se efetuou a pesquisa correspondem a dois extremos
da fronteira norte da chamada Amaznia Legal brasileira: (1) a regio do Alto
Rio Amazonas/Solimes, fronteira Brasil, Colmbia e Peru, rea onde vivem
os Ticuna h pelo menos dois mil anos; (2) a regio do Baixo Rio Oiapoque, na
fronteira Brasil/Guiana Francesa, onde vivem Galibi Kalina, de lngua karib,
tambm conhecidos como Galibi do Oiapoque, que ali chegaram em 1950,
procedentes da fronteira Guiana Francesa/Suriname.
Para a anlise tomam-se como referncia as narrativas orais desses
povos, que refletem as suas interpretaes da diversidade tnica e dos processos
de contato intertnico em diferentes situaes histricas: o encontro colonial,
os processos de formao dos Estados nacionais e os processos sociais
contemporneos. Como estratgia metodolgica de comparao utiliza-se o
contraste de contextos, lgica baseada na exaltao das caractersticas nicas
de cada caso para ressaltar a visibilidade de um fenmeno ou estrutura por
contraste com outro (SKOCPOL; SOMERS, 1980, apud LITTLE et al., 1993,
p. 7-8).
as interpretaes Ticuna foram priorizadas devido ao fato de ter sido
realizado com esse grupo um trabalho de campo mais extenso e aprofundado
do que com os Galibi do Oiapoque. No obstante, o exerccio de comparar as
vises indgenas sobre o contato intertnico em regies de fronteiras polticas
pode contribuir para a anlise e a compreenso de como os processos de
colonizao europeia e de formao de estados nacionais diferenciados tm
incidido no estilo de vida desses povos.
Contatos intertnicos em regies de fronteiras:
a viso dos ticuna e dos galibi do Oiapoque 23
Narrativas identitrias:
a autodefinio e a definio dos outros
A alteridade constitui fator primordial nos processos de formao de
identidades. Nos diversos grupos humanos, as definies dos diferentes outros
estruturam-se com base no contraste com a percepo e a definio que se tem
de si mesmo, geralmente, expressa em narrativas de carter mtico e por meio
de termos especficos existentes na lngua nativa.
Entre os ticunas, o povo magta, que na sua lngua significa gente
pintada de negro, a autodefinio como grupo est associada s atividades de Yo e
Ipi, os gmeos mticos que deram origem a esse povo. A seguinte narrativa foi coletada
na aldeia Porto Cordeirinho (Brasil), por um ticuna de origem peruana que se
transladou para o Brasil.
Variaes intertnicas:
26 etnicidade, conflito e transformaes
Ipi viva con su cuada [mujer de Yo]... Ah que la mujer qued preada... Cuando
lleg [Yo] y encontr a su mujer preada del hermano. Ah dizque Yo siente rabia
del hermano. Y en el tiempo cuando ha nacido el hijo del Ipi, era tiempo de huito
(jenipapo).
Ipi, ya naci tu hijo, vaya a buscar huito para que pintes a tu hijo!
Ipi se fue al monte a buscar el huito.
Ahora t tienes que raspar el huito!
No s cuanto huito que Ipi ha raspado, y dele y dele...
Hermano, hasta donde tengo que raspar?
Ms por all... ms por all.
Hasta que Ipi comenz a rayar sus manos, sus brazos... No qued nada, se ray el
tambin! l se fue con todo el huito.
Entonces ah que Yo ha llamado a su mujer.
Oye, venga a pintar a tu hijo, venga a pintarlo con tu marido. Aqu est tu marido
en el huito!
Ella ha pintado a su hijo, lo ha pintado con la carne de Ipi.
- Ahora t tienes que juntar bien el afrecho de tu marido y t tienes que botarlo
por la quebrada, por Eware.
Ella junt bien la carne de Ipi y la bot en Eware. Ah que se corri hasta el ro-mar
[Amazonas]. Esa carne del Ipi se convirti en pescado. El Ipi que choc su nariz
encima de oro. Por eso es que ahora hay pescadito que tiene su nariz brillosa.
Ah dizque Yo comenz a pescar. Primero quiso probar con [carnada de] acero,
pero todava estaban maosos. No pesc nada. Despus quiso probar con guaruma.
Nada. Ahora vamos a probar con yuca [mandioca]. Ah ya jal bastante pescado.
Que salan ya con su machete, su hacha, ya trabajando, rozando. Eran hombres!
El [Yo] anzueliaba, anzueliaba...
- Gente, sepan como cortar, como rozar...
Todos se han transformado en gente ya. Eran ticunas.
Yo dele a anzueliar, dale, dale. Ya sala la gente rozando, tumbando...
Entre os ticunas, as narrativas mticas constituem elementos cognoscitivos
que explicam os fenmenos naturais e sociais. O mito explica a origem do povo
ticuna, dos brancos ou koris, entre os quais fazem distines baseadas em
rasgos fenotpicos (cor da pele), procedncia regional e nacional. As verses
coletadas na Colmbia confirmam que os racionales ou civilizados, isto
Contatos intertnicos em regies de fronteiras:
a viso dos ticuna e dos galibi do Oiapoque 27
Ngutapa, el padre de Yo e Ipi, fue devorado por un tigre. Los dos hermanos fueron en su
bsqueda para vengarse de l. Comienzan a buscar a su padre entre los tigres que encontraban,
les abran la boca para ver si entre sus dientes se encontraba restos de la carne de su padre.
Hasta que vieron que vena un tigre barrign y se le acercaron para preguntarle dnde estaba
su padre. El tigre dijo que l no se lo haba comido, pero los dos hermanos lo obligaron a
abrir la boca y encontraron entre sus dientes restos de la piel y del cabello de su padre. Yo e
Ipi mataron al tigre, le abrieron el estmago y de sus entraas sacaron los restos de su padre.
Los echaron en un, se los llevaron a su casa y los colocaron en la cumbrera. Yo advirti a
Ipi que no deba destapar el hasta cuando l le ordenara. Pero Ipi, siempre contradiciendo a
su hermano, no resisti la tentacin y un da destap el con los restos de su padre. De all
surgieron los distintos pueblos del planeta. Del corazn de Ngutapa surgieron los japoneses,
por eso ellos son muy inteligentes. De cada pedazo del cuerpo de Ngutapa salieron diferentes
grupos humanos. Los Ticuna surgieron de la piel de Ngutapa: es por esto que nosotros no
tenemos mucho entendimiento, porque la piel est ms lejos del corazn. Y todo por culpa
de ese pendejo de Ipi, afirma Sergio (risas). (Notas de campo. Aldeia Nazareth, Colmbia,
10 de julho de 1998).
As narrativas mticas Ticuna proporcionam a base cognoscitiva de
entendimento e a compreenso do mundo. Essas narrativas apresentam uma
estrutura de significados que define e explica, dentro das suas prprias categorias
cognoscitivas, a diversidade sociocultural e os processos de contato intertnico
dentro de uma ordem social estruturada segundo seus prprios critrios.
Variaes intertnicas:
28 etnicidade, conflito e transformaes
era mais bravo que tinha, ltima raa. A Frana no conseguiu dominar eles.
Depois se renderam para o governo do Suriname, e acabou, no tem mais.
O rapaz estava contando que a encontraram outro ndio no mato que estava
andando por a. Cuidado, ele estava andando e j estava jogando feitio em
cima dele. Ele [o rapaz] tinha uma espingarda e atirou nele. Cad ele? Caiu atrs
do pau. Cad ele? T s o lugar! O p dele era um p muito grande. Embora,
embora, embora, rapidinho vamos voltar! Parece que vamos ser matados!
Porque aqueles de l de Roraima, antigamente todo mundo que vivia aqui na
Guiana Francesa, na Guiana Inglesa, se comunicavam com eles, andando em
Roraima e andando em caminho do mato. Meu av contava que um irmo dele
tinha ido l. Trabalhavam artesanato l, trabalhavam bem mesmo. (Entrevista
com Geraldo Lod, 24 de junho de 2001).
ah, hasta hoy da. As he sabido tiempos que mi abuelo me cont. Entonces as
al poco tiempo, dizque vino la guerra de Leticia, cuando que esto ya lo quitaron
[al Per]. (Leonardo Huahuari Del guila. Aldeia Porto Cordeirinho -
Brasil, maro de 1999).
Essas narrativas constituem referncias cognitivas por meio das quais os
Ticuna se relacionam com o mundo atribuindo-lhe significados. De toda sua
riqueza simblica, interessa destacar a concepo que eles tm do territrio e
como se posicionam diante do momento histrico de formao de fronteiras e
consolidao dos Estados nacionais.
Os diferentes lugares aos que se refere narrativa, tais como Eware,
a embocadura do Rio I/Putumayo, o Rio Loretuyaco e o Rio Amazonas/
Solimes, constituem marcos significativos que delimitam o territrio ticuna
no contexto mtico, geogrfico e social. Estes se localizam em ampla extenso
territorial que vai alm da atual regio fronteiria, entre o Rio Loretuyaco
(atual divisa entre Peru e Colmbia) e as bocas do Rio I (Brasil), extenso
que, em boa medida, corresponde ao territrio que hoje ocupam nos trs
pases. Dessa maneira, tanto nas representaes mticas como nas prticas
sociais, expressa e legitima a ideia de unidade territorial. Eware o lugar mais
significativo para os ticunas, pois ali Yo pescou seu povo, designou-lhes cls
e partilhou ensinamentos bsicos para a vida cotidiana tais como o trabalho e
a festa de moa nova. Para o povo ticuna, Eware est localizado em territrio
brasileiro, sobre a margem esquerda do Alto Solimes. preciso destacar que
as narrativas tambm fazem referncia a um lugar localizado no Peru, o qual
est associado a Ipi.
Segundo a narrativa anterior, depois da criao dos ticunas, os gmeos
Yo e Ipi pensam na repartio do territrio entre os dois. quando Ipi
expressa seu desejo de ficar com os territrios localizados a este de Eware, por
ter encontrado muita riqueza (ouro) nesse lugar e que conheceu quando ainda
era um peixe do nariz dourado que nadou guas abaixo pelo Rio Solimes, at
as bocas do Rio I. Mas graas aos poderes de Yo, sobrevm a inverso do
mundo e com ele a inverso da ordem territorial: Yo se apropria do territrio
ao este de Eware, rio abaixo, no Brasil, e a seu irmo Ipi corresponde o
territrio ao leste, rio acima, no Peru. Nas narrativas Ticuna se reflete uma
ordem associada dualidade dos gmeos. Essa dualidade est associada a uma
diviso estabelecida para proporcionar ordem ao territrio, dada em termos
das aposies este/leste; abaixo/acima; Brasil/Peru.
O pensamento mtico ticuna, sem dvida, tem se modificado de acordo
com os processos histricos vivenciados pelo grupo, de tal modo que chega
Variaes intertnicas:
34 etnicidade, conflito e transformaes
Ah si prob del lado de arriba. Jal peruano, jal peruano... Ipi con pltano ha
pescado. El peruano es jalado con pltano. En Brasil ha jalado con yuca, es decir con
faria. Los colombianos no estaban all solamente dos no ms.
Esos peruanos y brasileros que pescaban eras Ticunas? [pregunta ma]
Ticuna mismo. Eso es ley de Ticunas!
(Nestor Andrs, aldeia Arara Colmbia, maio de 1998).
As verses dessa mesma passagem do mito recopiladas no Brasil por
Oliveira Filho (1988, p. 103) e Gruber (1997, p.18) assinalam tambm que
foi Ipi quem pescou os peruanos. A verso apresentada por Joo Pacheco
de Oliveira especifica que Ipi pescou os peruanos (populao nacional no
ticuna, civilizados), vez que Yo pescou os prprios ticunas, povo magta,
e tambm os negros, que foram pescados com os restos do jenipapo. Na
verso apresentada por Goulard (1998, p. 59), Ipi quem pesca os negros, os
quais falam a lngua dos brancos.
As diferentes nacionalidades, como identidades surgidas raiz dos
processos de consolidao dos Estados nacionais, constituem fatores culturais
sobre os quais os Galibi tm uma percepo particular que obviamente est
permeada pelos processos histricos e culturais vivenciados por esse povo.
Assim, a colonizao por parte de diferentes povos europeus (franceses,
holandeses, portugueses) que os povos indgenas da regio das Guianas
enfrentaram um fato histrico que permanece na memria e se atualiza na
contemporaneidade das narrativas, as quais tambm surgem em relao s
diferentes nacionalidades com as que, nesse caso, os Galibi tm contato.
Da sua viso sobre o processo de colonizao da regio das Guianas
pelos diferentes povos europeus, Julien Lod afirma que foram os portugueses
que mataram mais ndios do que os franceses, frase que deixa entrever que, na
memria dos Galibi, est presente a histria colonial da disputa tricentenria
entre franceses e portugueses pela posse do territrio contestado ou Cabo
Norte, processo que terminaria na formao da atual fronteira poltica entre o
Brasil e a Guiana Francesa.
A percepo sobre as nacionalidades francesa e brasileira, nas quais
os Galibi esto inseridos pela sua histria de migrao e pelo fato de estar
morando na regio de fronteiras polticas entre os dois pases, est determinada
pelos processos socioculturais vividos pelo grupo. Existe uma posio
de distanciamento que, em alguns casos, pode chegar a ser de rejeio
nacionalidade e cultura francesas, especificamente entre os pioneiros, a qual
se exprime nas suas constantes manifestaes de que o governo francs no
Contatos intertnicos em regies de fronteiras:
a viso dos ticuna e dos galibi do Oiapoque 37
cuida dos povos indgenas e que, pelo contrrio, o governo francs pretendia
acabar com eles; assim como tambm na sua negativa de retornar Guiana
Francesa para se integrar novamente a seu povo, incluso, na atualidade, quando
as condies socioeconmicas dos povos indgenas da Guiana Francesa
melhoraram a partir das polticas de francisation, fato que motivou o retorno
Guiana Francesa de outros membros da famlia migrante.
Os pioneiros que ficaram na aldeia So Jos dos Galibi reconhecem sua
nacionalidade francesa, mas declaram sua preferncia pelo Brasil como pas
que optaram para morar. J na segunda gerao, entre os filhos dos pioneiros,
h maior predisposio para aceitar tanto a cultura francesa como a brasileira,
culturas nacionais com as quais se sentem ligados pelo fato de provir da Guiana
Francesa e de estar morando em territrio brasileiro. Na terceira gerao, os
netos dos pioneiros, a compenetrao com a cultura e a nacionalidade brasileira
muito maior do que com a francesa, devido terem nascido no Brasil e ter
sido socializados e educados de acordo com os parmetros da cultura brasileira.
Desse modo, a relao dos Galibi do Oiapoque com as nacionalidades brasileira
e francesa no uniforme entre todos os membros do grupo, pois depende de
diferentes fatores socioculturais, principalmente os que tm a ver com o grau
de permanncia e socializao dos indivduos dentro das culturas nacionais,
fator que est diretamente relacionado com as geraes de indivduos dentro
do grupo. Mas de outro lado, evidente que a adscrio e assuno de uma
nacionalidade especfica depende tanto de critrios situacionalistas, quer
dizer, ter acesso a melhores condies de vida, como de fatores emocionais
relacionados com as histrias de vida, as posies ideolgicas e os valores de
cada um dos indivduos com respeito s diferentes nacionalidades com as quais
esto em contato nessa regio de fronteiras.
Consideraes finais
O exerccio de comparar narrativas cosmo-histricas sobre o contato
intertnico de dois povos indgenas, cujos territrios localizam-se em dois
pontos extremos da Amaznia e os quais tm vivenciado histrias de contato
diferenciadas, uma ferramenta metodolgica que ajuda a compreender as
especificidades cognitivas de como esses povos apreendem e interpretam os
contatos intertnicos em diversas situaes histricas. Essa ferramenta permite
ao mesmo tempo compreender como as especificidades scio-histricas de
contato intertnico tm influenciado na maneira de como os povos indgenas
se situam no mundo e interpretam sua prpria histria.
Contatos intertnicos em regies de fronteiras:
a viso dos ticuna e dos galibi do Oiapoque 43
Introduo
Os Arara (Shawdawa) constituem uma sociedade indgena da famlia
lingustica pano, cujos falantes podem ser encontrados no Peru, na Bolvia e
no Brasil. Nesse ltimo pas as sociedades indgenas Pano esto situadas no sul
e no oeste do estado do Acre, estendendo-se para leste at a parte ocidental
de Rondnia e em direo ao norte embrenhando o estado do Amazonas
entre os rios Juru e Javari (RODRIGUES, 1994). Quanto aos Arara, residem
atualmente na Terra Indgena Arara do Igarap Humait, situada no municpio
de Porto Valter/AC. Os cursos fluviais definidores dos limites dessa terra so
o riozinho Cruzeiro do Vale, afluente da margem direita do Alto Juru, o
Igarap Nilo, afluente do Cruzeiro do Vale, e o Igarap Grande, formador do
Rio Valparaso. Os limites homologados, em 2006, dessa terra indgena so
de 87.571 ha, ocupados por uma populao aproximada de 319 indivduos
(CORREIA, 2005).
Sendo a histria da ocupao espacial dos Arara no Alto Juru marcada
por diversos conflitos intertnicos e intertribais, pretendo abordar o vnculo
entre a identidade e o territrio Arara, mostrando como a memria oral do
grupo e a escrita por terceiros sobre eles possuem interseces que evidenciam
a unidade sociocultural dos Arara e sua ocupao espacial. Dessa forma, ser
evidenciada a importncia da memria oral e da escrita na construo da
identidade e do territrio indgena.
Para o proposto, utilizarei informaes bibliogrficas e documentais,
alm de dados produzidos em entrevistas com o grupo, quando fui designado
pela Fundao Nacional do ndio (Funai) para identificar e delimitar a
Terra Indgena Arara do Igarap Humait, durante um perodo de 40 dias.
Memria, identidade e territrio dos arara: uma anlise a partir
do contexto de identificao da terra indgena Arara do Igarap Humait/AC, Brasil 47
Tempo da seringa
Neste perodo, poucas so as informaes sobre os Arara constantes na
historiografia, todavia o de maior opresso da sociedade nacional sobre os
Arara, quando passam por diversas mudanas culturais, sociais e econmicas.
Incorporados ao sistema de barraco, a organizao dos Arara em aldeias
rompida e eles passam a viver em famlias nucleares espalhadas pelas diversas
colocaes existentes em distintos seringais. As atividades de caa, pesca,
agricultura e coleta so sensivelmente reduzidas por causa da grande dedicao
ao trabalho de extrao da seringa. A dependncia do grupo por produtos
industrializados aumenta consideravelmente e a aquisio destes ocorre
apenas por meio da troca da borracha produzida com os patres, ou com os
regates, ambos detentores do comrcio desses produtos. ainda no tempo
da seringa que os Arara comeam a abandonar a lngua indgena e a ensinar aos
filhos apenas o portugus, um dos vrios reflexos da poltica de destribalizar e
integrar o ndio sociedade nacional.
No tempo da seringa, possvel constatar uma memria subterrnea
entre os Arara, como definida por Pollak. Para esse autor, ao privilegiar a anlise
dos excludos, dos marginalizados e das minorias, a histria oral ressaltou a
importncia de memrias subterrneas que, como parte integrante das culturas
minoritrias e dominadas, opem-se memria oficial, no caso, a memria
nacional (POLLAK, 1989, p. 4). Sob a opresso da sociedade nacional, os
grupos dominados vivem um longo silncio sobre o passado como uma forma
de resistncia, e no de esquecimento, diante da impotncia de combater os
discursos oficiais (id. ibid, p. 5).
Entre os Arara, neste perodo, predomina o discurso dos patres e de
agentes do extinto Servio de Proteo aos ndios (SPI), passando a memria
do grupo a viver um perodo de silncio, mas resistindo s imposies locais.
Aos jovens Arara deste perodo no foi ensinado a falar a lngua indgena, por
ser motivo de zombaria entre os seringueiros, mas os jovens aprenderam a
compreender o que era falado na Lngua Arara. Aos jovens, foi transmitida
a histria dos antigos, das guerras intertribais e das correrias, informaes
importantes para a manuteno da identidade do grupo e para o conhecimento
do territrio indgena.
A estratgia dos patres para introduzir os ndios no sistema de produo
do seringal seguiu diversas formas. Alguns patres procuram evitar confrontos
diretos com os ndios para posterior escravizao. No seringal Humait, de
propriedade de Absolon de Souza Moreira, no incio do sculo XX, hoje dentro
Variaes intertnicas:
54 etnicidade, conflito e transformaes
Tempo da demarcao
Aps um perodo de opresso na histria dos Arara, com poucas
informaes historiogrficas e com uma memria coletiva calcada princi
palmente nas lembranas das famlias nucleares, o tempo da demarcao inicia-
se e, com ele, novo impulso ao fortalecimento da identidade do grupo.
Variaes intertnicas:
56 etnicidade, conflito e transformaes
Consideraes finais
Este texto foi organizado com uma estrutura diacrnica tempo
dos antigos, tempo da seringa e tempo da demarcao , mas no teve a
preocupao de ficar restrito a uma cronologia histrica. Trabalhando com
trs tempos distintos presentes na histria dos Arara, procurou-se de forma
sincrnica destacar os principais pontos que evidenciam o vnculo existente
entre a identidade e o territrio do grupo, a partir do constante na memria
oral dos Arara e na escrita. Entretanto, como colocado por Connerton:
A histria oral segue princpios distintos da histria escrita, por ter uma forma
narrativa prpria com diversos pormenores diferentes daqueles das instituies
de governo e por no atuar com um tempo linear com essas instituies e, sim,
Memria, identidade e territrio dos arara: uma anlise a partir
do contexto de identificao da terra indgena Arara do Igarap Humait/AC, Brasil 59
com uma percepo cclica do tempo que engloba o dia, a semana, o ms, a
estao, o ano, a gerao (CONNERTON, 1999, p. 21-23).
Introduo
Ao longo deste texto, o leitor encontrar uma contribuio etnografia
dos Lakln atuais que enfoca aspectos polticos de suas vidas e a identidade
tnica na Terra Indgena Ibirama Lakln (TI Ibirama Lakln) e na regio do
Alto Vale do Itaja, em Santa Catarina, onde a TI est situada. No elaboro uma
discusso detalhada e sistemtica das relaes que eles estabelecem com outros
habitantes da terra indgena e regio, como polticos e empresrios regionais
e servidores da Fundao Nacional do ndio (Funai), nem as relaes entre a
poltica e a religio na terra indgena, que so indispensveis ao entendimento
da poltica dos Lakln, o que farei somente em outros escritos. No texto no
h comparaes com a histria passada e com estudiosos dos Lakln, nem
com outros amerndios das terras baixas da Amrica do Sul e seus estudiosos.
O texto fruto de duas palestras que proferi na Universidade de Braslia (UnB)
em agosto de 2007.
Os Lakln so amerndios que vivem em cinco das sete aldeias existentes
na TI Ibirama Lakln e que somam pouco mais de uma centena conforme
censo a seguir , mais conhecidos na literatura como Xokleng ou Shokleng,
mas tambm como Botocudo e Aweikoma (URBAN, 1996, p. 28-65). Famlias
nucleares Lakln moram em residncias ao longo das estradas existentes na
terra indgena. Lakln o termo que valorizam, sendo tambm a forma como
escrevem. Tanto assim que, depois do processo de re-identificao da terra
indgena, iniciado em 1996 e concludo em 1998, como ser mostrado a seguir,
o termo passou a figurar na sua denominao (SILVA PEREIRA, 1998). Junto
com os Kaingng eles integram os js do Sul, que pertencem famlia lingustica
j, do tronco lingustico macro-j, composta ainda pelos js centrais xavante,
xerente e xakriab e js do Norte kayap setentrionais ou mebengokre,
gorotire, xicrin etc., panar ou kayap do Sul, apinay ou timbira ocidentais,
timbira orientais ou krah, kanela, gavio, krikati, suy e tapayuna.
Os lakln na regio do Alto Vale do Itaja, estado de Santa Catarina, Brasil 63
A terra indgena est situada nos municpios de Jos Boiteux, Vitor Meireles,
Doutor Pedrinho e Itaipolis e abriga cerca de 1.700 pessoas. Na regio do
Alto Vale do Itaja existem 28 municpios nos quais residem 250 mil habitantes,
conforme dados de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
(IBGE), descendentes principalmente de alemes, italianos, havendo ainda
muitos descendentes de poloneses e suos.
Urban (1978, p. 339-354; ver tambm NAMEM, 1994b) argumentou
que os Lakln contatados em Santa Catarina em 1914 fariam parte de uma
das faces que teriam surgido a partir da fisso da estrutura de metades que
outrora caracterizariam a sociedade a que pertenceriam, processo iniciado
por volta dos anos de 1850. No incio do sculo XIX, segundo o autor, a
tal sociedade estaria vivendo no centro-leste do estado do Paran e seria
formada por dois grupos de perambulao, os waikmangs e os kares que
representariam patrimetades , os quais teriam entrado em competio por
mulheres. Na ocasio, todos os homens da metade Kare teriam sido mortos
pelos homens da metade Waikmang, que teriam incorporado as mulheres
e crianas Kare. Assim, a estrutura das patrimetades teriam deixado de
existir. Ao longo da segunda metade do sculo XIX, perodo em que teriam
se deslocado para Santa Catarina, trs faces foram constitudas: a Lakran
(leia-se Lakln), a Angyidn e a Ngrokthi-t-pry. Hoje, a faco Angyidn
dada como extinta na Serra do Tabuleiro/SC. A faco Ngrokthi-t-pry
foi contatada em 1912, na regio do planalto norte catarinense, prxima ao
municpio de Porto Unio. Para essa faco existe delimitada a terra indgena
Rio dos Pardos, que se encontra completamente intrusada e no abriga mais
nenhum amerndio. Segundo alguns habitantes da TI Ibirama Lakln, os
poucos integrantes daquela faco esto dispersos em cidades prximas quela
terra indgena e em paradeiros desconhecidos.
Em 1914, quando do contato com os Lakln, Eduardo Hoerhann con
tava com a colaborao de um pequeno grupo de Kaingng vindo do Paran
(NAMEM, 1994a, p. 25-26; para os Kaingng de outras terras indgenas,
ver CREPEAU, 1994, 1997; VEIGA, 1994, 2000; TOMMASINO, 1995;
FERNANDES, 2003), cujos integrantes, ao longo do tempo, foram mantendo
relaes sexuais e estabelecendo casamentos com os Lakln e, principalmente,
com pessoas vindas de cidades diversas, inclusive de outros estados da Federao,
pessoas essas que na Antropologia denominamos de brancas, com as quais
os Lakln tambm passaram a manter relaes sexuais e estabelecer casa
mentos. Assim, so muitos os descendentes desses relacionamentos que vivem
Variaes intertnicas:
66 etnicidade, conflito e transformaes
dcadas, que esto se acabando, que iro acabar. Assim, no caso em tela,
fazer uso dos censos oficiais sem perspectivas crticas obscurece quase que
por completo a diversidade tnica existente na TI Ibirama Lakln, chegando
mesmo a escamotear aspectos importantes de demografia.
Todos esses contingentes populacionais residentes na terra indgena
compram mercadorias e servios nos municpios da regio, tais como carnes,
farinhas, banha de porco, fraldas descartveis, roupas, creme hidratante,
consertos em geral e comida em restaurantes. Os recursos so provenientes,
sobretudo, de salrios de motorista, professor, auxiliar de enfermagem,
agente sanitrio, merendeira etc., nos sistemas diferenciados de educao e
sade, assim como de aposentadorias por idade e por invalidez, penses para
rfos e vivos e, mais recentemente, bolsa-famlia do governo Federal para
crianas no ensino fundamental. Outros recursos so obtidos por meio da
venda de artesanatos e de pssaros silvestres trinca-ferro e bico-de-pimenta
e da explorao florestal na forma de lenha, moires e toras. Desde 2006,
a cada quatro meses, mais ou menos, as famlias nucleares vm recebendo
alimentos do Programa Fome Zero como arroz, trigo, acar, feijo, farinha
de mandioca e de milho, macarro, leo de soja, sal, caf e leite em p. Exceto
os guaranis, eles contratam pessoas vindas de cidades diversas para trabalhar,
temporariamente, na explorao florestal ou nas roas, onde plantam para
consumo, principalmente, feijo, aipim, milho e batata-doce. Na terra indgena,
todos os contingentes populacionais pescam mandim, car e outros , caam
tatu, veado, porco-do-mato, jacu, rola-preta etc. e coletam mel e frutas
principalmente laranjas e goiabas, tambm para consumo.
A TI Ibirama Lakln foi criada em 1926, com aproximadamente 20
mil hectares, para confinar os Lakln contatados em 1914. Em 26 de outubro
de 1965, o Governo do Estado de Santa Catarina titulou a terra indgena em
favor deles e o registro da gleba foi feito no Cartrio de Registro de Imveis da
Comarca de Ibirama, por meio do SPI, num total de 14.156,58 hectares. Em 15
de fevereiro de 1996, a Presidncia da Repblica homologou a terra indgena
com 14.084,8 hectares, o que possibilitou o registro em nome da Unio Federal
no referido cartrio e na Delegacia do Patrimnio da Unio, em Santa Catarina,
respectivamente, em 28 de fevereiro e 3 de julho de 1996.
Com o passar do tempo, por meio de aes envolvendo o SPI, o
governo Estadual e a Sociedade Colonizadora Hansetica, a terra indgena foi
sendo invadida por colonos e madeireiras inescrupulosas (para a colonizao
da regio, ver, por exemplo, RICHTER, 1986). A partir de 1975, o governo
Federal, com a anuncia da Funai e sem consultar os habitantes da terra indgena,
Os lakln na regio do Alto Vale do Itaja, estado de Santa Catarina, Brasil 69
brancos, que so tidos por eles como individualistas. Tal tica vem acompanhada
pela ausncia de orientao para a expanso de qualquer produo e acumulao
de riquezas. Mas o contato com os brancos, os relacionamentos e casamentos
intertnicos, e a presena de escolas na terra indgena, segundo os Lakln, tm
alterado tudo isso, pois, s vezes, a comida separada e as pessoas evitam doar
as coisas, o que visto por eles como individualismo.
A escola parece ser vista como a instituio fundamental que leva
mudana e ao abandono, por assim dizer, da viso de mundo amerndia. Como
nos anos recentes o ensino tem sido bilngue, quase que contraditoriamente
a escola acaba sendo vista por alguns como uma estratgia de resgate da
cultura, como eles dizem. Ora, aparentemente, h contradio entre a viso
amerndia e a vida do dia a dia. Entretanto, o que se observa a nfase nessa
viso como forma de estabelecimento de identidade e a sua persistncia em
certas interaes, embora possa haver alguma atitude individualista da parte
de uma pessoa ou de outra em determinadas situaes. Todos esses aspectos
sangue, lngua, viso de mundo fazem com que os Lakln sintam-se como
integrando uma comunidade de substncia, aqui sim, com atributos imateriais,
e fazendo parte da comunidade da terra indgena, bem como das comunidades
as quais uma pessoa pode pertencer, num determinado momento, em virtude
de certas lealdades, por exemplo, polticas ou religiosas como a comunidade de
tal cacique, a comunidade de tal igreja etc.
Outro aspecto bastante importante que caracteriza os Lakln, segundo
eles prprios, o amor que sentem uns pelos outros, sentimento que se expressa
tambm nas prticas de adoo de crianas, como ser visto a seguir. Embora
alguns afirmem que homens e mulheres entre eles geralmente no amam seus
cnjuges e s querem fazer baguna, isto , relacionar-se sexualmente com
outras pessoas, a maioria diz que existe amor em certos relacionamentos, que
eles conseguem amar mais do que os brancos e que no conseguem viver
ou passar muito tempo longe uns dos outros. Alegam que o amor vem do
carinho, que o beijo, o abrao, o relacionamento, incluindo o sexual, e tudo
comea com o interesse de uma pessoa pela outra. Alm disso, afirmam que
no guardam mgoa por muito tempo, pois brigam hoje, mas amanh esto
unidos. A relao de casamento no precisa ser necessariamente formalizada
e geralmente duradoura, enquanto os brancos, segundo eles, assinam o papel,
mas desfazem os relacionamentos com facilidade. De qualquer forma, para
eles importante que o homem sustente a mulher e os filhos e que no fique
parado em casa sem trabalhar ou andando na estrada atrs de mulheres. J a
mulher deve ser responsvel, cuidar bem dos filhos e apoiar o marido.
Memria, identidade e territrio dos arara: uma anlise a partir
do contexto de identificao da terra indgena Arara do Igarap Humait/AC, Brasil 77
alianas polticas que estabelecem, num sentido mais amplo, como afirmei
parece incluir muitas circunstncias e algumas poucas de longa durao
(WERNER, 1985). Nessa terra indgena, o apoio que uma pessoa pode ter
depende da habilidade de estabelecer relaes amigveis com outras pessoas e
de apoi-las e ser por elas apoiada em certas ocasies. Parentesco consanguneo
ou por afinidade no significa necessariamente apoio. Boa conduta e retrica
no parecem ser obrigatoriamente caractersticas dos lderes, tornando-se
difcil, at o momento, dizer do que depende o xito de uma pessoa na poltica.
Nesta terra indgena, os motivos dos desentendimentos entre as pesso
as so os mais variados: fofocas, roubos, posicionamentos pessoais e polti
cos, adultrios, rixas pessoais, acusaes de feitiaria, usufruto das frentes
para explorao madeireira e dos locais nos quais residem as famlias,
tambm chamados de frentes, entre outros. Pegar animais de criao e bens
manufaturados, por exemplo, mesmo que sejam de parentes, so consideradas
atitudes ilcitas, roubos, e so moralmente condenveis. Os Lakln e outros
habitantes da terra indgena classificam como roubo as incurses que alguns
deles fazem s propriedades de brancos, que residem prximo terra indgena,
para obter palmito, gado, porcos e galinhas. No passado recente, algo incomum
aconteceu com o Lakln Viji Cmlen e a irm dele, Ptei Ndili. Eles e
tambm os seus cnjuges e filhos envolveram-se num conflito pela disputa da
frente para a moradia deixada pelo pai, Uvnhec Kopacan Txucambang, que
resultou numa briga violenta na qual ocorreram pauladas e golpes de faco,
de foice e de machado, no tendo havido ferimentos graves ou mortes. Como
foi dito anteriormente, nem sempre consanguneos e/ou afins apoiam-se em
disputas, ao contrrio, eles podem at oporem-se uns aos outros.
Acusaes de feitiaria ocorrem em virtude de brigas pessoais, relacio
namentos e disputas polticas mais amplas, contudo, preciso entender melhor
essas coisas. Perguntados sobre o assunto, os Lakln e outras pessoas que
vivem na terra indgena costumam responder que a feitiaria, a macumbaria
e o trabalho das sortistas so encomendados em cidades do Vale do Itaja e
que, por isso, no sabem coisa alguma a esse respeito. O que fazem na terra
indgena, segundo eles, rogar pragas para pessoas das quais no gostam e, ao
contrrio, desejar o bem quelas que estimam.
Nos ltimos 50 anos, trs Lakln teriam falecido por feitiarias, alm
de outros casos envolvendo pessoas de outras ascendncias: duas mulheres
e um homem, supostamente trabalho encomendado por mulheres de outras
ascendncias que residem na terra indgena. De acordo com os Lakln
e outros habitantes da terra indgena, aqueles que no so convertidos ao
Os lakln na regio do Alto Vale do Itaja, estado de Santa Catarina, Brasil 83
Santa Catarina. As picadas esto abertas para uma reflexo ampla no horizonte
da etnologia americanista das terras baixas da Amrica do Sul, na qual tentarei
abordar de forma mais sistemtica as relaes que os Lakln estabelecem com
polticos e empresrios regionais, servidores da Funai e demais habitantes da
terra indgena e regio, bem como as relaes entre a religio e a poltica, tais
como se desenrolam na terra indgena.
Referncias
Introduo
O problema abordado neste artigo refere-se ao olhar, reflexo e
agncia dos ndios dentro do movimento Pan-Timbira, a partir do qual eles
buscam a construo de uma unidade poltica diante do Estado e da traduo
para a forma timbira dos processos de modernizao que esto enfrentando.
So discutidos aspectos da cultura e da poltica de um movimento Pan-Timbira
na perspectiva de contribuir para o entendimento das organizaes indgenas
e de novas expresses da sua poltica. Ao analisar essas novas formas de
aglutinao entre os Timbira, evidencio a construo de uma timbiridade e
de unidade tanto no plano discursivo como no das prticas.
Se no plano intratribal a busca da unidade constante e instvel,
no plano das relaes com os cupens (no ndios) seja diante do Estado,
seja diante de outros agentes a Associao Wyty-Cat tem construdo e
explicitado uma unidade Pan-Timbira. Essa unidade manifesta-se igualmente
no prprio movimento indgena, nas entidades indigenistas e nas agncias de
financiamento.
as representaes dos Timbira em torno da Associao Wyty-Cat das
Comunidades Timbira do Maranho e Tocantins articulam 17 aldeias de seis
povos indgenas diferentes desses estados da Amaznia Oriental brasileira: os
krahs e os apinajs, no estado do Tocantins; e os krikatis, gavio-pykobjs,
canela-ramkokamekras e canela-apnjekras no estado do Maranho. Pode-se
observar de que maneira os Timbira vm para usar uma noo cujo emprego
tem-se ampliado indigenizando a modernidade, que instrumentos tm
utilizado para isso, como os tm colocado a servio de sua reproduo cultural
e de que forma esto lidando com as inevitveis inovaes e mudanas
impostas pelo mundo dos cupens, o que implica, tambm, inevitvel processo
de modernizao da indianidade.
A compreenso das sociedades amerndias requer investigao sobre
os modos pelos quais so estruturadas e conceitualizadas, em diversos nveis
Wyty-Cat: cultura e poltica de um movimento Pan-Timbira 101
das dificuldades que surgem nessas interaes (...) derivam de diferenas reais
que acabam obscurecidas por tradues apressadas que dificultam, afinal, a
negociao implcita em todo intercmbio cultural.
Muitos insistem em desconsiderar a capacidade de os povos indgenas
transformarem e ressignificarem os fatos do mundo global capitalista, como
Sahlins (1997) demonstra: o desenvolvimento refere-se a um processo (...)
no qual os impulsos comerciais suscitados por um capitalismo invasivo so
revertidos [pelos ndios] para o fortalecimento das [suas] noes de boa vida.
No por a que iriam os projetos dos Timbira?
Os Timbira tendem a valorizar os mecanismos internos de reproduo
da forma Timbira, em que os mims reafirmam o seu jeito, expandindo-se,
cindindo-se e tambm fundindo-se em novos krins (aldeias). Mais do que
isso, reafirmam sua humanidade e seu pertencimento a essa forma, fazendo
os amjikins usando o ptio, cortando o cabelo, correndo de toras ,
provavelmente, o maior projeto de desenvolvimento.
Os Timbira tm demonstrado e exemplificado como as sociedades e
as culturas indgenas defendem-se, isto , como produzem mecanismos de
resistncia ao assdio do capitalismo pela via da indigenizao da modernidade,
lembrando ainda que essa possibilidade nos dada (...) menos pela (bastante
relativa) globalizao objetiva dos mundos primitivos locais, ou pelo (algo
duvidoso) progresso das luzes antropolgicas, do que pela falncia da noo
de sociedade moderna que lhes serviu de contra-modelo (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002).
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Captulo 5
Uma aventura entre a cruz e a espada que mudou
a histria: 20 anos de luta indgena no Rio Negro
Introduo
Para quem mora ou conhece o Alto Rio Negro pode imaginar uma regio
diferente do que atualmente, com militares dando ordens e impondo regras
sociais, polticas e econmicas, e empresas mineradoras executando polticas
assistenciais para uma minoria indgena superada por migrantes de todo o
Brasil. Pode-se imaginar todo o trecho do Rio Negro, entre a cidade de Santa
Izabel do Rio Negro e So Gabriel da Cachoeira, com enormes barrancos e
o leito do rio assoreado, alterando ou impossibilitando a navegao. Mais do
que isso, pode-se imaginar 20% a 50% de toda a regio devastada e as terras
indgenas totalizando menos de 10% dos mais de 10 milhes de hectares hoje
demarcados, homologados e totalmente preservados. Poderia ser exatamente
assim, conforme o projeto do Governo brasileiro no perodo da ditadura
militar nos anos de 1970 e 1980, no fosse uma bem-sucedida aventura de
lideranas indgenas da regio e de alguns poucos aliados.
Ao contrrio do cenrio exposto, o que se v hoje uma regio
eminentemente indgena e efervescente de mobilizao sociopoltica pela
defesa territorial, ambiental e pelos direitos bsicos dos cidados, tendo como
protagonistas principais os 35.000 ndios de 23 povos distintos que ali vivem
e que representam mais de 90% da populao, articulados por uma federao
indgena, a Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro (Foirn), que
congrega mais de 50 associaes indgenas. Os mais de 110.000 quilmetros
de terras indgenas demarcadas e homologadas esto totalmente preservados,
com inmeras experincias de projetos alternativos que visam continuidade
da preservao ambiental e cultural, aliados busca da sustentabilidade
econmica das comunidades, com projetos de manejo e de uso sustentvel
de recursos naturais. Alm disso, h uma multiplicao de escolas indgenas
autnomas do ponto de vista poltico-pedaggico, gesto e material didtico,
Uma aventura entre a cruz e a espada que mudou a histria:
20 anos de luta indgena no Rio Negro 133
Histria de vida
Experincias de internato
Os anos de internato foram os mais difceis, embora, com certeza,
decisivos para a trajetria de vida militante, acadmica e profissional. Foram
muito difceis porque o afastamento dos parentes foi uma experincia de muita
dor e sofrimento. Os maus-tratos sofridos no internato, os castigos fsicos,
a represso cultural e moral e as violncias de todas as ordens nunca sero
esquecidas. Relato como exemplo uma experincia nas dcadas de 1970 e 1980,
em que ramos, rigidamente, proibidos de falar nossas lnguas maternas. Quem
descumprisse era severamente punido e castigado. Os castigos iam desde
ficar um dia sem comer, ficar em p horas e horas no sol quente, trabalhar
foradamente ou ser castigado psicologicamente. Fomos obrigados a negar e a
combater nossas tradies e conhecimentos tradicionais. Para mim, os maiores
sofrimentos e dor foram gerados pelos castigos de efeitos morais e psicolgicos
dos quais fui vrias vezes vtima. Tratava-se de um pedao de madeira com
uma corda que continha uma escrita em Portugus: eu no sei falar Portugus.
Quando um aluno era flagrado pelo missionrio ou seu assistente falando uma
lngua indgena era pendurado no seu peito ou nas costas a referida placa e ele
ficava com ela at que descobrissem um novo violador da regra, para quem era
passada a placa, que provocava pavor e constrangimento, uma vez que admitir
no falar Portugus ou falar s a lngua indgena era ser identificado como um
animal sem alma, sem educao, pago e antipatritico.
Outro exemplo emblemtico foi um castigo de trabalho forado durante
um dia inteiro, sem comer, por ter (eu e mais trs colegas baniwas) dormido em
um quarto ao lado do dormitrio (com medo do enorme dormitrio vazio),
pois havamos chegado 2 dias antes do incio das aulas e da chegada dos alunos
internos. poca, no conseguamos entender tamanha violncia na reao
do padre, que resultou no duro castigo. S muito tempo depois entendi que o
padre estava temendo ou suspeitando prtica de homossexualismo, que existia
s na mente poluda dele, uma vez que para os baniwas isso impensvel. Vi
muitos jovens e adultos indgenas apanhando fisicamente do padre em plena
sala de aula, com o couro cabeludo todo ensanguentado. Certa vez houve uma
cena chocante em que um aluno adulto, ao responder o padre, levou um golpe
no rosto de um molho de chave jogado pelo padre, que espirrou sangue para
todo lado. Naqueles momentos, o silncio era total entre os alunos e todos
ficavam numa atitude de completa imobilidade provocada pelo pavor e medo.
Hoje, pergunto de onde originava tanto medo e passividade, uma vez que
no se tratavam de crianas ndias, mas de jovens e rapazes, com mdia de 17
anos. E no se tratava de ndios recm-contatados, mas de jovens, rapazes e
Variaes intertnicas:
138 etnicidade, conflito e transformaes
casos dos pais que moram distantes e que apresentem dificuldades de enviar
os objetos pessoais. bom destacar que as escolas-internato eram mantidas
com recursos dos governos federal e estadual, por meio de convnios com
as misses, alm de doaes da cooperao e solidariedade internacional, que
realizavam campanhas de recolhimento de roupas usadas na Europa e nos
Estados Unidos, conhecidas poca na regio como roupas amricas, que,
ao chegarem s escolas-internato, eram comercializadas em troca de produtos
ou de mo de obra indgena oferecidos por meio de uma cantina mantida
e administrada pelos padres, onde era encontrado de tudo como roupas,
calados, objetos de higiene pessoal, materiais de limpeza, gneros alimentcios
e materiais de caa e pesca. Com isso, o aluno interno tinha de ter dinheiro
para comprar as necessidades dirias e isso resultava em presso aos pais
para conseguir dinheiro. Minhas duas irms mais velhas (Kunha e Tapa), por
exemplo, tiveram de trabalhar anos e anos com as freiras para me ajudar na
compra de alguns objetos bsicos.
A rotina diria de internato era pesada para os alunos indgenas,
principalmente os mais novos, que dormiam em dormitrios coletivos que
cabiam de 100 a 200 alunos, todos em redes penduradas umas ao lado das
outras e, por vezes, uma em cima da outra, dependendo da lotao. Todos
acordavam s 5h da manh com a batida forte de um sino. Cada um tinha
5 minutos para desarmar as redes, pegar as roupas e os materiais de banho,
posicionar-se em fila e descer ao rio para o banho, que no podia demorar mais
do que 10 minutos, rigorosamente cronometrados. Qualquer atraso era motivo
para castigo. Aps o banho, todos seguiam para a sala de estudo onde ficavam
at a hora da missa que, geralmente, era por volta das 7 horas. Em seguida,
seguiam para o mingau da manh (mingau de farinha de mandioca com sal)
servido em copo individual. s 8h comeavam as aulas que iam at o meio-
dia, com rpido intervalo s 10h, quando era servido um copo de mingau de
fub. Das 12:15h s 13h era a hora do almoo, geralmente composto de uma
farofa de qualquer coisa (enlatado) e um pouco de feijo. s 13:30h todos j
estavam com suas ferramentas prontos para ir ao trabalho. Uns iam roar o
campo ao redor da misso, outros cuidar dos bois, dos porcos e das aves dos
padres, outros fazer roa (derrubar, limpar ou plantar), cortar e carregar lenha
para a cozinha, e outros designados para limpar as dependncias da escola
(dormitrios, sanitrios, salas de estudo etc.). Cada grupo possua um lder ou
um assistente de confiana do padre-diretor encarregado de vigiar. Os trabalhos
de campo aconteciam independentemente de fazer sol ou chuva, das 13:30h s
17:30h, quando retornavam e seguiam para uma rpida partida de futebol, de
30 minutos, e, logo em seguida, para o banho da tarde no rio. Aps o banho,
Variaes intertnicas:
140 etnicidade, conflito e transformaes
era servido o jantar que consistia de uma sopa de arroz ou mingau de fub. Em
seguida, subamos para a sala de estudo onde ficvamos em absoluto silncio
e concentrao at s 10h, quando aconteciam as ltimas rezas noturnas antes
de dormir. As manhs de sbados eram dedicadas aos trabalhos de campo e
s tardes aos estudos. Aos domingos, as manhs eram destinadas lavagem de
roupas e aos eventos religiosos e as tardes aos eventos esportivos e aos estudos.
Os impactos do regime de internato na vida dos alunos indgenas e
das comunidades indgenas so complexos, mas importantes para o quadro
sociopoltico atual da regio do Alto Rio Negro. Talvez o impacto mais
importante e desestruturante tenha sido no campo dos valores norteadores da
vida indgena, prpria das culturas daqueles povos, como o esprito comunitrio,
a solidariedade, a hospitalidade, a reciprocidade e o censo de igualdade e de
humanidade. Outro efeito desestruturante da vida tradicional, sem dvida, foi na
noo e na prtica de autoridade, poder e hierarquia. O regime de internato educou
jovens indgenas (hoje adultos e lderes das aldeias e das organizaes indgenas)
para o individualismo, o egosmo, o materialismo e o capitalismo, e formou
novas lideranas indgenas com ambio ao poder prepotente e hierarquizado.
Um poder para dominar, mandar e, sobretudo, tornar os semelhantes clientes
ou fregueses, como acontecia nas relaes entre os missionrios e os jovens
indgenas na poca do internato. Parece ironia, mas acho que isso o que faz com
que as experincias com organizaes indgenas de modelo ocidental deem certo
na mo dessa gerao de lideranas indgenas forjadas na lgica do internato,
como no se v em nenhuma outra regio do Pas.
Adolescentes indgenas preparados para uma vida comunitria entram
no internato para desaprender e esquecer todos os valores subjacentes vida
tradicional e mergulhar numa profunda lavagem cerebral que os tornaro
indivduos incapazes de lutar por seus interesses, tendo como principal
ensinamento o poder de serem superiores e hierarquicamente diferentes
e poderosos do ponto de vista econmico e poltico, conquistado com a
escolarizao de autoridades religiosas. Grandes cuias ou panelas de chib ou de
quinhapira, socializadas por todos que participam da hora sagrada e ritualstica
das refeies comunitrias, em formas de rodzios que acontecem todo dia
nas grandes casas comunitrias das aldeias, no importando que sejam 100,
200 ou 500 pessoas, do lugar a corpos (individualizados e rigorosamente
personalizados no regime de internato. Crianas e adolescentes que foram
cuidados, preferencialmente, por famlias indgenas em aldeias, tendo suas
refeies servidas antes dos adultos e, portanto, comendo a melhor parte da
comida, agora so tratados como seres inferiores, indignos da boa comida,
Uma aventura entre a cruz e a espada que mudou a histria:
20 anos de luta indgena no Rio Negro 141
mesmo que esta seja produto do seu trabalho e do seu esforo dirio. Essa
a parte mais desumana na vida do internato: os jovens serem tratados como
inferiores em relao aos professores (mesmo sendo ndios), aos padres, aos
visitantes militares e aos missionrios.
Os alunos indgenas eram os responsveis pela boa comida dos padres,
cuidavam dos bois, dos porcos e das galinhas. Eles faziam o abate dos animais
e tratavam-nos e as alunas cortavam lenha e cozinhavam na cozinha das freiras.
O que era servido para os ndios nas refeies era apenas uma farofa com
algum cheiro dos midos do animal morto, que simplesmente desaparecia
na enorme panela de farinha, enquanto para os padres e para as freiras era
servida e guardada toda a carne, por semanas, at o prximo abate. A cena
repetia-se quando os superiores religiosos ou militares dos padres chegavam
para fazer visita. um adolescente indgena que se educa nesse ambiente passa
a dedicar-se aos estudos com obsesso para um dia chegar a ser padre, militar,
professor, poltico ou comerciante, para ter privilgios como a discriminao, a
dominao e a imposio de sua autoridade ou seu autoritarismo hierrquico.
Sabemos que as autoridades tradicionais dos povos indgenas nunca tiveram
poder autoritrio, mas autoridade de servidor, de mediador, de equilbrio e, na
maioria das vezes, de sacrifcio, razo pela qual Pierre Clastres denomina esse
tipo de sociedade de sociedades sem Estado ou contra o Estado (CLASTRES,
2003).
Os padres ensinaram, com mau exemplo, a prtica de egosmo e da
hipocrisia, pois quando comiam, fechavam as portas dos seus fartos refeitrios
para no partilhar sua comida com as pessoas e com o povo, exatamente ao
contrrio do que pregavam durante a missa: o dom da partilha e da fraternidade.
Para os povos indgenas do Rio Negro no h coisa pior em um ser humano
do que no saber partilhar da produo alimentar, uma vez que nem os animais
so assim. Partilhar comida com seus parentes, amigos e as pessoas em geral a
primeira lio que uma criana indgena aprende no convvio da famlia, testada
no ritual de iniciao com absoluto jejum de 3 a 7 dias, para que o iniciante
nunca esquea que a fome di, que a fome maltrata, que a fome desumaniza o
homem, razo pela qual ele ter que procurar ser o melhor caador ou pescador,
e jamais negar comida s pessoas.
Com os exemplos citados, podemos dizer que o regime de internato
desestruturou profundamente as bases tico-morais, socioculturais, religiosas,
polticas e econmicas dos povos indgenas do Rio Negro, alterando os seus
princpios e valores sociais. A condenao e a perseguio das grandes tradies
cerimoniosas e ritualsticas, como os rituais de iniciao em Nhhegatu Cariam
Variaes intertnicas:
142 etnicidade, conflito e transformaes
Experincia acadmica
fsica e cultural do meu povo Baniwa e dos povos indgenas do Alto Rio Negro
em geral. Esse compromisso permitiu que eu continuasse contribuindo para
o fortalecimento dos modos de vida daqueles povos e apropriando-me de
novos instrumentos para a melhoria das condies de vida ps-contato com
sociedades no indgenas.
A filiao acadmica foi uma maneira de apropriar-me de outros
conhecimentos (cientficos) que poderiam ajudar no processo de estabe
lecimento de dilogos interculturais social e sociologicamente mais consistentes
e politicamente mais estratgicos entre os povos indgenas e a sociedade nacional.
Esse fato levou-me ao mestrado em Antropologia Social na Universidade de
Braslia entre os anos de 2004 e 2005 e a partir de 2007 no doutorado. O domnio
dos instrumentos tericos e metodolgicos da Antropologia pode contribuir
tanto para uma compreenso do processo histrico vivido pelo povo Baniwa
quanto para pensar novas abordagens tericas e metodolgicas no campo
das Cincias Sociais, particularmente nos estudos das relaes intertnicas
relevantes para o mundo contemporneo e, em particular, para os povos
indgenas que, a exemplo de outros segmentos sociais considerados e tratados
como marginais, teimam em resistir s fronteiras dos processos de globalizao
econmica, ideolgica e cultural. Fica claro, portanto, que meu interesse pela
Academia no apenas pela titularidade formal nem pelo conhecimento em si,
que julgo ser relevante, mas, principalmente, por consider-la um instrumento
empoderador na luta poltica pelos direitos indgenas, razo pela qual at
hoje sempre busquei aliar a trajetria acadmica militncia poltica da causa
indgena.
A escolha da Antropologia origina-se de trs elementos significativos:
o primeiro refere-se aos horizontes de conhecimento que o curso de Filosofia
abriu para novas descobertas sobre o mundo do branco com o qual me
relacionava no dia a dia. Alm disso, um acontecimento lamentvel na minha
turma de Filosofia marcou minha curiosidade sobre a Academia, pois minha
turma era a primeira do projeto pioneiro de interiorizao da Universidade
Federal do Amazonas, no municpio de So Gabriel da Cachoeira. O episdio a
que me refiro envolveu uma professora de Filosofia que, poca, publicou em
um jornal de Manaus um artigo sobre sua experincia de docncia com alunos
indgenas, no qual afirmou que o problema dos ndios era a incapacidade de
abstrao, caracterstica do pensamento ocidental. A afirmao deixou os alunos,
na sua maioria indgena, furiosos e exigiram uma retratao da professora e
da Universidade. Esse incidente despertou-me a curiosidade de procurar
compreender o que havia motivado tal afirmao, que, de repente, poderia ter
Uma aventura entre a cruz e a espada que mudou a histria:
20 anos de luta indgena no Rio Negro 153
alguma razo, uma vez que a Academia parecia uma caixa-preta aos olhos dos
ndios e de muitos brancos. A curiosidade levou-me ao desafio de procurar
alguma resposta. De fato, aps contato com parte significativa da literatura
antropolgica e sociolgica, finalmente encontrei parte da resposta procurada,
quando descobri que importantes antroplogos abriram precedentes tericos
para tal modo de conceber os denominados povos nativos. Apenas a ttulo
de exemplo, cito uma passagem de Malinowski (1978), considerado um dos
fundadores da Antropologia moderna:
Mas nem mesmo na mente ou na memria do nativo se podem encontrar essas
leis definitivamente formuladas. Os nativos obedecem s ordens e fora do
cdigo tribal, mas no as entendem, do mesmo modo como obedecem a seus
prprios instintos e impulsos, embora sejam incapazes de formular qualquer lei
da Psicologia (MALINOWSKI, 1978, p. 24).
Outro elemento como referncia foram as experincias vividas
dentro do movimento indgena e nos espaos de polticas pblicas, onde os
antroplogos sempre ocuparam papel de destaque ora como os mais sensveis,
os mais corretos e os mais confiveis, para tratar das questes indgenas, ora
como os chatos, os manipuladores e os que ameaam os projetos destinados
aos povos indgenas. No Alto Rio Negro, percebi que os povos indgenas
tinham preferncia por missionrios e por antroplogos como potenciais
aliados e defensores, mesmo que no soubessem o que ser um antroplogo,
diferentemente do missionrio. Aps algumas aulas de Antropologia, foi
possvel entender maior sensibilidade dos antroplogos pelas questes
indgenas. A Antropologia uma espcie de instituio dentro da Academia
que acumulou quantidade enorme de conhecimentos sobre os povos indgenas
no mundo. Infelizmente, esse conhecimento produzido, reproduzido e
difundido apenas na prpria Antropologia, uma vez que nem a Academia
domina esse patrimnio, muito menos os povos indgenas, que sequer tm ideia
dessa riqueza de conhecimento e de poder. Talvez essa seja a razo principal
da distncia entre a Academia e o povo, pois a apropriao dos conhecimentos
to bem guardados e vigiados entre os muros e os processos seletivos pode
significar uma ameaa hegemonia de poder e de conhecimento. Em minhas
palestras, tenho insistido que a Antropologia deveria buscar mecanismos de
facilitar ou patrocinar o acesso dos povos indgenas ao patrimnio cultural
de que dispem, principalmente os conhecimentos produzidos na atualidade,
teis no apenas para subsidiar suas lutas, mas, tambm, para fortalecer suas
identidades e projetos socioculturais do presente e do futuro, uma vez que,
aps mais de meio sculo de represso e de dominao, os povos indgenas
Variaes intertnicas:
154 etnicidade, conflito e transformaes
pouco sabem do seu passado, de suas histrias e at do seu presente, por ser
complexo no contexto do mundo moderno.
O terceiro elemento tem a ver com uma necessidade pessoal surgida
das experincias especficas com projetos de desenvolvimento. As limitaes
sentidas nas diversas funes assumidas suscitaram a necessidade de maior
instrumentalizao tcnica e capacidade analtica voltada para a compreenso
dos complexos campos em que os projetos transitam e operam, estimulando-
me a procurar oportunidades para dar continuidade a mais uma etapa
do empreendimento acadmico. Imaginei que a Antropologia poderia
proporcionar o que estava desejando ampliar minha capacidade de anlise e de
compreenso sobre o contexto em que vivo, em relao direta com o contexto
maior do mundo global, ou seja, o campo em que os projetos inevitavelmente
gravitam. Foi assim que escolhi, no mestrado, aprofundar o campo emprico
e analtico dos projetos de desenvolvimento por meio da Antropologia. A
longa experincia de trabalho com inmeros povos indgenas na Amaznia,
em diferentes espaos institucionais, motivou meu interesse pelo tema, que
considero de alta relevncia na atualidade, para os povos indgenas em geral,
mas muito particularmente para os do Alto Rio Negro, ou seja, as alternativas
econmicas. Com o avano significativo nos processos de regularizao de
terras, os povos indgenas elegeram como prioridade de suas lutas e aes a
questo da sustentabilidade econmica de seus territrios e comunidades. A
noo de sustentabilidade manuseada pelas lideranas indgenas abrangente
e complexa, uma vez que envolve desde as economias indgenas at o
desenvolvimento econmico de escala. As economias indgenas a que me refiro
so as prticas produtivas tradicionais baseadas na concepo cosmolgica,
integrada e holstica dos povos indgenas. A priorizao do desafio econmico
est expressa em um programa mais ambicioso em vias de ser formulado pelo
Programa Regional de Desenvolvimento Indgena Sustentvel do Rio Negro
(PRDIS-RN) que objetiva articular, coordenar, qualificar, diversificar e ampliar
escalas de atuao e de resultados das inmeras iniciativas econmicas, polticas
e socioculturais em curso desde o final da dcada passada. Essas iniciativas esto
sendo geridas pelas prprias comunidades com o apoio tcnico de assessorias
externas, predominantemente de organizaes no governamentais como o
Instituto Socioambiental (ISA) e diversas agncias de desenvolvimento como
o Projeto Demonstrativo dos Povos Indgenas (PDPI) do Ministrio do Meio
Ambiente e da Unio Europeia.
Na atual etapa do doutoramento, estou interessado em entender um
pouco mais a atual dinmica de demandas dos povos indgenas pelo ensino
Uma aventura entre a cruz e a espada que mudou a histria:
20 anos de luta indgena no Rio Negro 155
superior, por entender que relevante no contexto atual da luta dos povos
indgenas, pois h um aparente espao e momento poltico favorvel ao avano
de direitos e de cidadania, alm da luta estrita pela sobrevivncia fsica, pelo
reconhecimento tnico, pelo cidado e pela terra, que marcou as ltimas dcadas
do sculo passado. Com o avano das conquistas territoriais e da cidadania
que recuperou o direito de fala e de participao nas tomadas de decises em
questes, que lhes dizem respeito, os povos indgenas ganham certo flego
para pensar e investir em projetos no mdio e longo prazos como os projetos
de autonomia sociopoltica e de gesto territorial, que, necessariamente,
passam pela formao escolar, principalmente a tcnica, a profissional e a
cientfica. Os discursos de lideranas indgenas do conta de que a demanda
pela formao escolar universitria atende a uma necessidade tanto poltica
quanto tcnica dos povos indgenas. A demanda poltica est relacionada com
a necessidade de estabelecimento de novo patamar de relacionamento com
o Estado e com a sociedade nacional e global e isso requer capacidade de
dilogo, de participao poltica qualificada, de presso e de formulao de
polticas e de estratgias convincentes e consistentes, capazes de sensibilizar e
convencer os tomadores de decises nas esferas federal, estadual e municipal,
uma vez que os povos indgenas no dispem de seus direitos legtimos nas
instncias formais (Executivo, Legislativo e Judicirio). A demanda tcnica
est relacionada com a necessidade de os povos indgenas reconstrurem
suas autonomias socioculturais, polticas, econmicas e territoriais, a partir de
respostas s necessidades atuais de condies dignas de vida, que no significam
apenas condies bsicas ou mnimas de sobrevivncia, mas de qualidade
de vida que atenda s formas de vida desejadas, tradicionais ou no, com a
incorporao, o domnio e a aplicao de tecnologias modernas no manejo
de seus recursos naturais e na produo econmica sustentvel, tendo como
base os conhecimentos tradicionais, fortalecidos e enriquecidos tecnolgica e
cientificamente.
Se a Filosofia abriu possibilidades para aventuras epistemolgicas pa
ra alm do meu universo Baniwa, a Antropologia abriu novos horizontes
analticos e polticos na busca por respostas a perguntas ou dvidas que eu
carregava sobre meu prprio mundo Baniwa e o meu redor. Diferentemente da
Filosofia, que havia sido o nico curso disponvel, a Antropologia foi resultado
de livre escolha, uma vez que a bolsa de estudo permitia escolher qualquer
curso de ps-graduao em qualquer instituio pblica ou privada do mundo.
O empreendimento de mestrado foi possvel graas conquista de uma bolsa
da Fundao Ford, por meio do International Fellowship Program (IFP),
em 2003, aps longo e rigoroso processo de seleo. O IFP um Programa
Variaes intertnicas:
156 etnicidade, conflito e transformaes
Introduo
Introduo
1
Essa perspectiva replica, em outro nvel, a oposio natureza/cultura que funda a ontologia ocidental
e, por isso mesmo, explica a contradio de tais vises antropolgicas.
Trocando vitalidade: um exemplo de manejo ecolgico no noroeste amaznico 181
2
Contra esse argumento determinista vale a pena mencionar a releitura que fao do trabalho de
Jara (1996) sobre os subgrupos turaekares e akuriekares, pertencentes aos akuriys (trio) do
Suriname que, devido a causas histricas, abandonaram a agricultura para serem caadores-
coletores. A autora ressalta que a relao ipawana entre ambos os subgrupos formulada a partir
das relaes ecolgicas de simbiose e coabitao entre os macacos-prego e as cutias, dos quais
os dois subgrupos pegam o nome respectivamente. Do meu ponto de vista, a relao ipawana
j fazia parte da estrutura sociolgica do grupo antes de iniciar a vida itinerante e foi projetada
para a relao entre ambos os animais durante a reacomodao das relaes de parentesco, pois
esta denota a relao de scios comerciais, caracterstica e fundamental na reproduo social dos
grupos do Macio das Guianas.
Variaes intertnicas:
182 etnicidade, conflito e transformaes
10
Hnirise significa forte, bravo, que causa dor. Ope-se a sahari que significa doce, calmo, bom.
Ambas as categorias formam um continuum no pensamento makuna e fazem referncia
composio de seres e lugares. As duas dependem de quem fala, porque, por exemplo, uma
coisa que hnirise para os humanos pode ser sahari para outros seres.
Trocando vitalidade: um exemplo de manejo ecolgico no noroeste amaznico 187
11
O caminho do pensamento conecta todos os lugares do cosmos considerados como malocas dos
diferentes seres, no contexto de uma geografia xamnica que liga os diferentes nveis do universo
(CAYN, 2005a).
12
Ao usar o termo lugar sagrado, estou fazendo uma traduo inexata do que os makunas querem
dizer. Para eles, todos os lugares sagrados so malocas espirituais que esto sob a autoridade
de um esprito, e muitos desses lugares so concebidos como casas de peixes e de animais. A
existncia desses lugares tem implicaes importantes para as prticas de caa, pesca e coleta,
porque neles est proibida a extrao de recursos. Em muitos lugares sagrados, a extrao s
possvel s vezes e graas negociao xamnica; se no for assim, os infratores ou suas famlias
podem sofrer doenas e mortes enviadas como punies pelos espritos donos desses lugares.
De acordo com a classificao nativa, os lugares da selva e do rio so wme ktori (lugares com
nome), dos quais uns so sahari e chamam-se badori (onde pode-se comer), e outros so hnirise
e denominam-se keabado (onde pode-se curar a comida) e bado mehe (proibido comer). Os
lugares calmos (sahari) no so malocas, enquanto os lugares fortes (hnirise) so malocas.
13
Mambear a palavra em espanhol regional para referir-se a comer coca (kahi bare).
Variaes intertnicas:
188 etnicidade, conflito e transformaes
mais difcil proteg-las. Por esse motivo, a cura da dana s feita uma vez,
na poca das danas. No entanto, h danas especiais em outras pocas e s
podem ser realizadas em tais momentos. o caso de gaweta (dana de gavio) e
boho basa (dana de cacho de coco silvestre), que se realizam durante a poca de
guerra; a dana do boneco, que se realiza na poca de abundncia da pupunha;
e he basa (dana de jurupari), que prpria da poca de jurupari.
As temticas de cada dana so diferentes, mas so orientadas para dar
vida seja para os cultivos, seja para um pedao especfico da floresta ou para
alguns animais em particular. Tambm so realizadas para afastar os males do
mundo como a guerra e os boatos. Os temas referem-se a acontecimentos
mticos que, em alguns casos, esto relacionados com a origem de algum cl
e com a forma especfica em que se deve conduzir algum ser ou fora do
universo. Na dana recriam-se os tempos mticos, os participantes representam
os espritos, utiliza-se a linguagem dos ancestrais (bk oka) e come-se a comida
dos antepassados (RHEM, 1981). Tambm ressaltada a utilidade de certas
espcies, por exemplo, se uma dana sobre uma rvore comea-se a cantar
sobre a maneira como nasce, cresce, de que substncias compe-se, alimenta-
se, como vive, qual sua utilidade, como usada pelos humanos e que animais
relacionam-se com ela para construir seus ninhos e comer os frutos.
Os sinais que indicam as diferentes fases de crescimento da dana tm
a ver com os momentos marcados pelo xam oficiante, denominado nesse
contexto basa gu (o que d vida dana), nos quais os participantes devem
cobrir suas mos e ps com tinta preta we, inalar rap, comer coca curada,
consumir alimentos ou pimenta curada e tomar kashiri de fruto silvestre ou de
cana. Isso considerado defesa e proteo para as pessoas e reproduo das
espcies que participam, em forma de alimento ou bebida, do ritual.
A dana feita com movimentos circulares ao redor do centro da
maloca, fazendo um caminho chamado basa ma (caminho da dana). Isso pode
ter dois significados importantes: por um lado, as repeties e a complexidade
das danas que se realizam em uma casa esto relacionadas com o processo de
amadurecimento da maloca (considerada completamente formada depois de
realizar quatro vezes alguma dana grande e, alm disso, estar preparada para
organizar uma dana de jurupari), pois a casa depende das curas e das atividades
xamnicas que se desenvolvem em seu centro; por outro, as danas buscam
fertilizar o territrio, assim, o xam est curando na parte masculina do espao
central (mais prxima porta do oriente da maloca), que representa, em termos
csmicos, a maloca de jurupari em yirura, isto , o centro da maloca-territrio,
pois os makunas concebem seu territrio como uma maloca. Desse territrio
Variaes intertnicas:
190 etnicidade, conflito e transformaes
emana a vitalidade apoiada na fora vital contida nos cantos, expressada pelo
grupo de danarinos de tal forma que, ao rodear o centro, fertiliza-se todo o
territrio.
14
Para anlise detalhada do ritual, ver S. Hugh-Jones (1979).
15
Para a descrio dessa cura, ver rhem et al. (2004).
Trocando vitalidade: um exemplo de manejo ecolgico no noroeste amaznico 191
universo no Rio Apapris) para brotar nessa terra e continuar viajando pelo
macroterritrio at manaitara, a casa de nascimento ou despertar (mas yuhiri
wi) do grupo. Uma vez ali, o curador escolhe para o beb o nome de cura (keti
wame) que o vincula a seus ancestrais, designa-lhe uma especialidade social,
depositando o ketioka desta dentro de seu corpo, e constri seu corpo-alma.
No ritual de jurupari recria-se, arruma-se e acomoda-se o ketioka
dado pelo r gu no nascimento. Por meio do jurupari, as crianas voltam a
nascer e o processo de cura similar ao que se faz durante o nascimento;
o he gu segue a mesma ordem de cura e comea a percorrer o caminho do
pensamento desde o comeo do mundo no oriente, na porta das guas (ide
sohe). O jurupari como uma segunda me e curado como uma pessoa, por
isso a transformao das crianas implica trazer para a maloca o pensamento
de kirkhino e cur-las desde o nascimento de jurupari, seguindo suas etapas
de crescimento, at o momento de sua morte, quando brota como as palmeiras
com as quais construram os instrumentos sagrados depois que o queimaram.
Isso significa que os iniciados so vinculados e consubstancializados com o
mundo, replicando em si mesmos a histria do jurupari primordial e ligando-os
ao ciclo anual e a todos os seres que nasceram de he, como frutas silvestres e
animais, para depois continuar a cura de acordo com os movimentos de criao
da maloca-cosmo e dos lugares sagrados no macroterritrio. O ritual tambm
consegue que os iniciados consubstancializem-se com sua anaconda ancestral
(S. HUGH-JONES, 1979).
No entanto, o ritual de jurupari vai alm da iniciao masculina, j que o
he gu deve fertilizar o cosmos por meio da cura do mundo (mari wanore). Essa
cura originou-se em tempos mticos quando rmikumu (mulher-xam, criadora
do universo) e as mulheres manejavam o jurupari para, logo depois, ficar nas
mos dos homens, quando os ayawas roubaram os instrumentos sagrados. No
obstante, o conhecimento absoluto de tal cura era possudo por rmikumu, que
maldisse o mundo pelo roubo; os ayawas sentiram o efeito da maldio at o final
da criao quando, fartos dos boatos, da guerra e das doenas, distanciaram-
se desse nvel csmico. Para os makunas, acontea o que acontecer, o mundo
ter sempre muitos problemas porque o mesmo ocorreu aos deuses durante a
criao. Assim, a cura do mundo tem como uma de suas finalidades afastar as
calamidades da sociedade humana at onde for possvel.
Em oposio calamidade est o bem-estar que entendido pelos
makunas como a possibilidade de viver bem, com os alimentos necessrios
para subsistir dentro de um mundo organizado onde cada ser deve ocupar a
maloca que lhe corresponde e reproduzir-se, j que existe uma interdependncia
Variaes intertnicas:
192 etnicidade, conflito e transformaes
entre cada forma de vida. Desse modo, a cura do mundo pode ser definida
como um procedimento xamnico que repete os eventos da criao do mundo
para reconstruir a maloca-cosmo e o territrio prprio, garantindo a sucesso
ordenada das pocas do ciclo anual, a reproduo de todos os seres do universo
e a sobrevivncia dos seres humanos, eliminando o hnirise de todas as coisas
que existem no mundo, transformando o universo em sahari e protegendo o
territrio e sua gente a partir da ideia de que cada grupo recebeu das mos dos
deuses o ketioka e o alimento para manejar a terra, a cultura e viver bem.
Nesse sentido, o he gu chama-se mari gu (que d vida ao mundo), o curador
do mundo.
Para curar o mundo, o he gu deve sentar-se, em pensamento, no centro
da maloca de jurupari em yirura, enquanto na maloca ele est fechado em um
pequeno quarto construdo para a ocasio, protegido pelos objetos de jurupari
e rodeado dos espritos-ona e de seus aprendizes yaias, que vigiam os pontos
cardeais para que no chegue nenhuma doena ou haja algum ataque de
xams inimigos. Entre outras coisas, o he gu comea a percorrer o caminho
do pensamento a partir da porta das guas, detm-se em cada lugar sagrado e
oferece coca e tabaco aos espritos donos de cada um. Dessa maneira, elimina
os efeitos hnirises do sol, da gua, do vento, da terra, dos animais da mata, das
aves, dos peixes, das frutas cultivadas e dos frutos silvestres, arruma o tempo,
permitindo a queda de raios fecundadores correspondentes a cada poca do
ano, no momento em que acontece a transio de uma para outra. Pede e recebe
de idehino (anaconda de gua) o poder para proteger as pessoas de acordo com
suas especialidades xams, donos de maloca, cantores, mulheres, crianas e
homens, respectivamente.
Coca e tabaco tambm so oferecidos aos espritos de jurupari e
curadores de outros grupos que podem estar supervisionando e coordenando o
trabalho mancomunado no caminho do pensamento. fundamental entender
que, com exceo dos dias do ritual, os instrumentos sagrados permanecem
submergidos na gua durante todo o ano e s entram na maloca nos trs dias
de celebrao. Isso quer dizer que est-se levando a casa os elementos que
tm maior contedo de hnirise no universo para transform-los em sahari e
com isso purificar o mundo. Adicionalmente, como o ritual celebrado em
momento especfico do ciclo anual, todos os grupos que compartilham o
macroterritrio xamnico realizam-no durante um mesmo perodo de tempo
e quase de maneira simultnea, sem a necessidade de enviar mensagens, pois o
prprio mundo oferece os sinais propcios que podem ser a apario de alguma
constelao ou a frutificao de frutos silvestres. Isso significa que todos os
grupos da regio esto curando o mundo ao mesmo tempo. Na realidade, cada
Trocando vitalidade: um exemplo de manejo ecolgico no noroeste amaznico 193
16
Os makunas enquadram-se dentro do esquema animista proposto por Descola (1996) e possuem
qualidades perspectivistas (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, 2002). Para os fins deste ensaio no
entrarei nessa discusso; para isso, ver Cayn (2006).
Variaes intertnicas:
194 etnicidade, conflito e transformaes
17
Ver Cayn (2000, p. 23-24).
Variaes intertnicas:
196 etnicidade, conflito e transformaes
fato fundamental para todo tipo de negociao com os demais seres vivos
porque ambas as dimenses da reproduo esto vigentes os no humanos
identificam-se com o fsico-feminino e os humanos com o espiritual-masculino.
A caa e a pesca tm interessantes elaboraes simblicas concebidas
como metforas da sexualidade, pois o caador percebe sua presa como uma
mulher matrimonivel, o que tem a ver com o fato de rastrear, atrair (imitando
os sons dos animais) e esperar com pacincia a presa para mat-la. As normas
dessa troca so iguais s do matrimnio entre grupos exogmicos. Nesse
contexto, rastrear igual seduo e a morte igual cpula, que dar origem
a um novo animal.
Ao considerar as armas de caa, a simbologia torna-se muito mais
complexa. O caador humano imperceptvel aos olhos dos animais, que
veem a zarabatana e o arco como uma cobra, as flechas como os caninos e o
curare como o veneno da cobra. A presa sente que foi atacada por uma cobra
caadora e fica adormecida pelo efeito do veneno. Assim, sua alma regressa
com tranquilidade maloca de nascimento para regenerar em outro corpo. O
fato mais interessante que, alm da alma, o animal leva as armas com as quais
foi caado. Quando o animal chega sua maloca, entrega as armas e destas
e de sua alma surgem novos animais que so cozidos dentro de uma grande
panela. No caso das armas, so assim empregadas: a zarabatana utilizada para
construir ossos, as flechas para fazer a coluna vertebral e o veneno para obter
as manchas e as cores do pelo, isto , seu ketioka. Acontece da mesma forma
na pesca: o nilon serve para fazer as veias e o anzol para fazer as espinhas
de um novo peixe. Isso significa que, por cada animal morto, nascem dois:
um da devoluo da alma e o outro das armas usadas. Ademais, nas tarefas
seguintes, os animais e os peixes devolvem aos humanos as armas com as quais
os mataram, estabelecendo uma troca eterna de armas que pode ter relao
com as antigas guerras intertnicas e com os acordos de paz. Diante desse
intercmbio, conserva e aumenta o nmero de seres.
O oposto acontece quando a caa feita com espingarda ou a pesca com
zagaia ou rede, pois os animais percebem como se de repente casse um raio
em cima deles e aniquilasse-os. Isso impede que a alma regresse sua maloca
para regenerar-se. Por isso, as tcnicas tradicionais de caa e de pesca podem
manter a quantidade de espcies sem temer o extermnio. Por culpa das armas
introduzidas, os animais entram em guerra com os humanos, pois ao ver que
seus parentes esto sendo assassinados, devem cobrar vidas para saldar contas
com as pessoas, da mesma forma das guerras entre diferentes grupos tnicos.
Trocando vitalidade: um exemplo de manejo ecolgico no noroeste amaznico 201
Por esse motivo, afirmo que o conflito potencial uma das caractersticas
das relaes com os no humanos. A percepo da guerra muito evidente na
relao com as rvores, pois quando derrubado um pedao de floresta para
fazer um cultivo, acredita-se que as pessoas vo brigar com elas, por isso as
rvores enviam guerreiros, especialmente mulheres, e a seiva que salpicam, o
cheiro que emanam, os ramos que caem ou as resinas que desprendem, que so
conceitualizados como as armas que podem fazer dano aos homens. Quando o
homem regressa para casa deve banhar-se e vomitar gua para desfazer o efeito
dessas armas. Uma vez pronto o terreno, realiza-se uma dana (yuk basa) para
restituir a fertilidade das rvores. No obstante, eles sentem-se incomodados
e ressentidos e deixam seu hnirise, por isso, os pequenos troncos ou as pontas
sadas ou amorfas que ficam na roa so sempre perigosas para as pessoas, pois
as feridas que ocasionam podem infeccionar e causar febre e mal-estar, uma
vingana que em certas ocasies termina com a morte.
Em relao coleta de elementos dos lugares sagrados, que idealmente
devem permanecer intactos, necessita-se algo deles em alguns momentos como
caar em um terreno salitroso para uma festa ou coletar folhas de palmeiras
para os tetos das malocas. Isso requer uma negociao com o esprito dono
do lugar e um pagamento com coca porque, se no for assim, vem um castigo
sobrenatural para quem extrair algo dali. Contudo, o mais significativo que
alguns xams entram sem autorizao nessas casas espirituais e pegam alguma
coisa, como um banco ou uma tapioca, para obter mais poder. Diante da
reclamao do esprito-dono, o xam envia um objeto de alguma pessoa para
compensar o furto, o que significa que o proprietrio de tal objeto morre e
serve como pagamento a essa maloca.
Essas mortes por pagamento (waha bosare) apresentam-se pelas
brincadeiras dos pajs, ou seja, pelo desejo expresso de fazer maldade, ou
pelo tempo de aprendizagem quando estes abrem seus olhos e veem a
outra dimenso do mundo. Em certas ocasies, os pajs procuram aumentar
seu poder ou satisfazer seu prazer esttico pegando os objetos das casas dos
lugares sagrados, considerados mais bonitos do que os que as pessoas tm
neste mundo. No entanto, tudo o que se tira delas deve ser restitudo. Aos
olhos do yai, as casas dos lugares sagrados so como malocas normais e os
animais so pessoas, mas todas as mulheres e as coisas so mais bonitas, e se o
paj gosta delas pode lev-las, por exemplo, uma cuia, um banco, um balaio ou
um pedao de tapioca. Quando o dono do lugar sagrado regressa, percebe que
falta algo e adivinha quem foi que pegou as coisas. Ento, aparece diante do yai
durante o sonho e diz que tem de pagar o que roubou. O paj enxerga, com
seu pensamento, as malocas das pessoas e leva qualquer coisa que gostar como
Variaes intertnicas:
202 etnicidade, conflito e transformaes
uma cesta, um banco, um remo ou uma cuia. O proprietrio desse objeto seja
homem, mulher ou criana, adoece e morre, pois a vida das pessoas tambm
est associada aos objetos materiais que possuem.
Um yai experimentado pode visitar os lugares sagrados com a nica
finalidade de fazer maldades. Em geral, quando algum morre, culpa-se
determinado paj e costuma-se dizer abertamente que foram os xams de
outras etnias, embora circulem verses de que o paj da comunidade ou de
uma comunidade vizinha o culpado. Quando a doena por um malefcio
dessa espcie, a vtima comea a comer terra, a ver pessoas que querem lev-
la e a falar em lnguas incompreensveis. Com a vista real (kahea makri) v
uma ona que est comendo e levando uma vida ao lugar sagrado. Essa doena
curvel, caso seja oferecida coca ou tabaco aos donos do lugar sagrado em
troca da recuperao de uma pessoa. A alma dos humanos vai casa do lugar
sagrado para repor o roubo do paj.
Por fim, manejar o mundo antes de tudo levar as relaes sociais da
maneira adequada por meio de trocas recprocas entre humanos e no humanos,
o que assinala que as prticas produtivas obedecem a essa lgica. Isso quer
dizer que o manejo do mundo no se limita a caar ou pescar em determinados
lugares permitidos nem a derrubar um pedao de floresta para fazer novos
cultivos, nem cura do mundo por si s. O manejo do mundo tudo isso e
muito mais como fazer dietas, amamentar, atender aos visitantes, manter limpa
a maloca e o porto, tratar bem os filhos e os cunhados, sentar para falar e
comer coca ao entardecer, a mulher no tocar nas coisas dos homens quando
estiver menstruada, vingar-se quando a ocasio merecer, divertir-se nas festas,
cumprir com a especialidade social, fazer cestas e cermica, cantar, banhar-se,
no preparar alimentos defumados dentro da casa, lavar as mos antes de pegar
um pedao de beiju etc. Com a cura do mundo constroem-se e marcam-se
os ritmos e as dinmicas da vida social, cujo ponto culminante a celebrao
das festas durante o ciclo anual, embora seja necessria trocar vitalidade com
os no humanos na vida cotidiana. Assim, encontra-se a chave para viver em
harmonia.
Dedicatria
Dedico este texto Lasa Tossin por sua doura contagiante e carinhosa,
sua generosidade autntica e desprendida, pelo amor e pela luz com que carrega
nosso filho no seu ventre.
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Trocando vitalidade: um exemplo de manejo ecolgico no noroeste amaznico 207
Introduo
tem como objetivo analisar a relao entre cientistas, que so em sua totalidade
provenientes de grandes centros urbanos brasileiros e que desenvolvem
iniciativas de conservao local, e a comunidade, que formada pelos primeiros
moradores e que, em sua maioria, no possui treinamento para a conservao,
mas forte conhecimento tradicional sobre o meio fsico local e os recursos
naturais. Existe interao entre os cientistas e a comunidade local, principalmente
os moradores mais antigos, que possuem conhecimento tradicional de rica
contribuio para o desenvolvimento das atividades desses projetos. Apesar
dessa interao e da troca de saberes, muitas vezes, os interesses dos dois
grupos no so comuns, o que gera conflitos. O artigo utiliza dados de pesquisa
de campo realizada em 2007, quando foram entrevistados bilogos, eclogos,
ambientalistas, pescadores, donos de pousadas, comerciantes, funcionrios de
hotis e de pousadas, empresrios donos de agncias de turismo e profissionais
liberais que trabalham direta ou indiretamente para o setor de turismo local.
O objetivo maior da pesquisa foi entender como iniciativas de conservao
relacionam-se com iniciativas de desenvolvimento, mais especificamente como
os setores de ecoturismo e meio ambiente vm dialogando em relao aos
destinos tursticos que apresentam quadro de desenvolvimento especfico.
Diferentemente dos locais com atividades de ecoturismo, a Praia do Forte
um local que possui plano ecoturstico prprio, criado por uma Organizao
da Sociedade Civil de Interesse Pblico (Oscip) local, e objetivos claros quanto
promoo de prticas de ecoturismo sustentveis e ao cerceamento de aes
desenvolvimentistas que no se enquadram nas diretrizes do plano ou no so
compatveis com a vocao da comunidade.
A regio difere de outras localidades por sua forte tradio catlica, que
marcou a identidade de seus moradores. Em parte, isso se deve ao fato de ter
sido uma fazenda controlada por um coronel que impunha o catolicismo como
nica crena religiosa aceitvel. A comunidade no praticava nenhuma religio
afro-brasileira, apesar de a maioria dos moradores locais ter ascendncia
africana. Todas as crianas da comunidade tinham educao formal religiosa.
Os festejos e os eventos sociais eram todos religiosos, vinculados devoo de
santos, como as duas festas mais importantes da comunidade e que mobilizam
grande contingente para sua organizao: a de So Pedro, padroeiro dos
pescadores, e a de So Francisco, padroeiro da igreja local. Essas festas tm o
lado religioso, organizado pela Igreja, e o profano, organizado pelos pescadores.
Outras festas que foram incorporadas ao calendrio local (tambm de cunho
religioso) so as de Santo Antnio e de So Joo, celebradas em todo o estado
e estimuladas pela Secretaria Municipal de Turismo.
Diferentes interesses
Os interesses polticos do Tamar nem sempre esto em consonncia com
os da comunidade. O discurso dominante entre os moradores mais antigos,
que conviveram com o Tamar desde o incio, o de que esse projeto deixou
de ser um aliado e que se distanciou da comunidade, deixando de atender s
demandas locais. Esses moradores contam que, antigamente, o Tamar oferecia
mais ajuda s famlias, levando os enfermos para hospitais regionais, doando
material de construo e escolar e ajudando na compra de remdios para alguns
moradores. Porm, para eles, o Tamar virou uma empresa que utiliza os lucros
para seu prprio benefcio.
O que ocorreu foi que a Praia do Forte tomou propores no imaginadas.
A vila cresceu, foi urbanizada e recebeu novos moradores. Os nativos melhoraram
de vida e agora possuem empregos melhores do que antes. O Tamar no deixou
de atender s demandas da comunidade, mas a assistncia hoje menos sentida
porque o universo tanto do projeto quanto da comunidade aumentou. A vila
hoje tem cinco vezes mais habitantes do que quando iniciou o trabalho de
conservao em 1980. Alm disso, a comunidade conta hoje com novos atores
sociais e novos agentes governamentais inexistentes em 1980. O Poder Pblico
no se fazia presente no Distrito de Praia do Forte porque era uma fazenda de
propriedade particular. Quando passou condio de Distrito, o municpio de
Mata de So Joo teve de incluir a comunidade em sua agenda pblica.
Quando a Praia do Forte tornou-se o principal destino de ecoturismo
do litoral norte da Bahia, a prefeitura de Mata de So Joo passou a ter maior
Variaes intertnicas:
222 etnicidade, conflito e transformaes
nas agncias de turismo, nos mapas tursticos locais e por toda a comunidade.
O centro de visitantes um dos principais cartes-postais da vila e o atrativo
turstico mais visitado e contribui diretamente para o comrcio local. Os
moradores, nativos ou no, sabem que o Tamar tem esse poder de atrair
visitantes e sabem que vo lucrar indiretamente com o projeto. Os visitantes
do Tamar compram produtos nas lojas da vila, frequentam restaurantes e boa
parte hospeda-se na vila. A comunidade tambm promove o projeto usando
imagens das tartarugas estampadas em camisetas, colchas, sacolas, toalhas e
vrios outros assessrios. A tartaruga um smbolo que vende, atrai turistas e
traz recursos para a comunidade. Nesse aspecto, os objetivos do Tamar e da
comunidade convergem.
Consideraes finais
Este artigo buscou explicitar as formas de interao sociais entre conser
vacionistas e a comunidade local em relao ao ecoturismo na Praia do Forte.
A consolidao dessa localidade como polo de turismo ecolgico significou a
chegada de projetos de conservao ambiental para promover a conservao
de espcies em extino. Os trabalhos tanto do Tamar quanto do IBJ sustentam
um trip composto de educao ambiental, pesquisa cientfica e visitantes.
O processo de dilogo entre a comunidade e os projetos de conservao
dificultado pela incompatibilidade dos discursos e a falta de interesse em
organizar parcerias que atendam aos objetivos de ambos. As prioridades so
diferentes para cada agente social. A comunidade tem interesses econmicos
na conservao e os projetos tm interesses cientficos. Ambos tm interesses
polticos na conservao e no desenvolvimento do ecoturismo. A comunidade
quer ser empoderada e o projeto quer ter suas aes divulgadas e disseminadas.
A organizao de parcerias na rea ambiental muito difcil e exige de cada
agente social um nvel de concesso para com as demandas do outro, ao mesmo
tempo que exige argumentos fortes de cada agente para defender seu ponto de
vista (PONCELET, 2001)
Os projetos de conservao e a comunidade so beneficiados pelo
ecoturismo. Existe, entretanto, uma mudana no paradigma e nos discursos
do ecoturismo e dos projetos de conservao. De acordo com Honey (1999),
para existir uma iniciativa de conservao efetiva necessrio o envolvimento
da comunidade para que ambos o projeto de conservao e a comunidade
tenham benefcios.
A retrica da conservao, s vezes, segue a mesma retrica do desen
volvimento. Solues polticas e programas de ao geralmente tentam mudar
Variaes intertnicas:
228 etnicidade, conflito e transformaes
Introduo
Este artigo versa sobre povos indgenas e o turismo. Pretende-se
apresentar, por meio de uma abordagem na interface da Antropologia e da
Geografia Humana, reflexes baseadas em depoimentos de membros do
povo indgena Trememb das comunidades Buriti e Stio So Jos, distrito
de Marinheiros, municpio de Itapipoca, estado do Cear. Tais reflexes
abordam os impactos do projeto desenvolvimentista Nova Atlntida
Cidade Turstica e Residencial1. Esse empreendimento turstico internacional
invade suas terras tradicionais e ameaa expropri-las. As comunidades
Trememb de Buriti e do Stio So Jos esto divididas entre os que dizem
querer ser ndios, e assim reivindicar suas terras perante o Estado, e aqueles
cooptados pelo empreendimento Nova Atlntida. Os que esto cooptados
por salrios proferem que no h ndios na regio e querem a construo do
empreendimento turstico. Antes de discutir sobre os Trememb de Buriti e
do Stio So Jos, cabe elucidar sobre as pesquisas dos povos indgenas e o
turismo, e mencionar alguns casos em que se efetivaram projetos tursticos
com comunidades indgenas.
Desenvolver pesquisas no Brasil referentes ao assunto povos indgenas
e o turismo partir para um campo pouco explorado tanto na Antropologia
quanto na Geografia Humana. Nesta discusso apresentam-se reflexes iniciais
sobre as propostas e/ou implementaes de projetos de turismo para povos
indgenas. Pressupe-se que esses projetos no interesse de um espao criado
para o turismo impactam alguns dos povos indgenas do Brasil. Entende-se que
o espao produzido pelo turismo em terras indgenas beneficia, sobretudo, os
financiadores e atende s expectativas dos turistas, mediante as materializaes
de projetos elaborados por sujeitos histricos e sociais [...] atores movidos [...]
1
Disponvel em: <http://www.gruponovaatlantida.com/english/index.ht>. Acesso em: 21 jul. 2007.
Os trememb do litoral nordestino
e um empreendimento turstico internacional
233
2
No acesso Funai: <http://www.funai.gov.br/quem/endereco/fone/cgep2.htm>, acesso em: 20
out. 2006, identificou-se que h uma Coordenao-Geral de Estudos e Pesquisas e entre seus
objetivos existe um item sobre Promoo de Eventos e Estudos, em que aparece Promoo de
Seminrio sobre Ecoturismo em Terras Indgenas.
3
O Ministrio do Meio Ambiente (MMA), por meio do Programa-Piloto para Proteo das Florestas
Tropicais do Brasil, implementa o Subprograma Projetos Demonstrativos (PDA) desde 1995. Seu
principal interesse promover aprendizagens sobre a viabilidade de novos modelos de preservao,
conservao e utilizao racional dos recursos naturais [...] visando melhoria da qualidade de vida
das populaes locais [...]. Os recursos para implementao deste [subprograma] so oriundos da
Cooperao Financeira da Repblica Federal da Alemanha por meio do Banco de Desenvolvimento
da Alemanha (KfW), com contrapartida do Ministrio do Meio Ambiente e apoio da Agncia de
Cooperao Tcnica Alem(GTZ) (MMA, 2006, p. 7).
4
Em 1999, as bases conceituais, diretrizes, regras e orientaes gerais do PDPI foram discutidas e de-
finidas num seminrio realizado em Tef (AM), que reuniu representantes indgenas, de organizaes
parceiras, do governo brasileiro e dos doadores. Entre 2000 e 2001, a equipe do PDPI foi estruturada,
sob o comando de um gerente tcnico indgena, indicado pela Coiab. A partir do final de 2001, o
PDPI passa a receber propostas de povos indgenas, iniciando seu financiamento a partir de 2003
(ALMEIDA, F.; SOUZA, 2006, p. 189).
Os trememb do litoral nordestino
e um empreendimento turstico internacional
237
5
Enviada pela Associao Misso Trememb. Datada de 20 de setembro de 2004.
Os trememb do litoral nordestino
e um empreendimento turstico internacional
239
Figura 1 -
Placa do Nova Atlntida
- Cidade Turstica e
Residencial, no acesso para
a praia da Baleia, Itapipoca,
Cear (Foto: Stephen G.
Baines, julho, 2007).
6
http://www.gruponovoatlantida.com/english/index.htm>. Acesso em 21/07/2007.
7
Essa e outras notcias, bem como os documentos judiciais referentes aos apelos das comunidades
Buriti e Stio So Jos e as lideranas locais foram gentilmente cedidos pela Missionria Maria
Amlia, Secretria-Geral da Associao Misso Trememb no Cear em janeiro de 2007.
Variaes intertnicas:
240 etnicidade, conflito e transformaes
8
Realizadas em janeiro e julho de 2007 e 2008, e em janeiro de 2009.
9
Quando Valle realizou suas pesquisas com os Trememb, estes se concentraram em trs
situaes distintas: a regio litornea da Almofala [...]; a regio da Varjota e Tapera [...]; e as
localidades vizinhas de So Jos e Capim-au, tambm conhecida como Crrego Joo Pereira
(VALLE, 2004, p. 282, destaques do autor).
Os trememb do litoral nordestino
e um empreendimento turstico internacional
243
Figura 3 - rea de cultivo da comunidade Stio So Jos apropriada como rea privada do Nova
Atlntida (Foto: Isis Maria Cunha Lustosa, janeiro, 2007).
viveiros de camaro. Eles ocupam mais gente como vigia (Luzia de Souza
Carneiro, janeiro, 2007).
Outro morador de Buriti assinalou: Aqui o seguinte, a gente sabia
sempre que o povo era ndio, mas no podia falar. O pessoal chegava, matava.
Botavam a gente para correr. Meus avs, meus bisavs eram todos daqui.
No falava que era ndio porque tinha medo (Raimundo Carneiro de Souza,
janeiro 2007). Esse depoente acrescentou que, aps o falecimento de Euclides
Carneiro, que se dizia dono das terras, sua viva
arrumou documento falso e vendeu a um coronel de Trairi que vendeu para os
espanhis, h mais de 20 anos. Eles querem tomar tudo e ns ficamos onde? A
luta difcil. Aqui est lutando ndio contra ndio. Sua esposa afirmou: pai
contra filho e irmo contra irmo. Eles no param, no (Maria Mrio Virgnia,
janeiro, 2007).
A liderana de Buriti (Figura 4) esclareceu que a empresa contratou um
morador do Stio So Jos para pagar os vigias que estavam trabalhando para
a empresa e serviram de intermedirios. Em outro depoimento, em julho de
2007, essa mesma liderana afirmou: Tive informao de que estavam fazendo
reunio com os vigias. Eles dizem no ser funcionrio do Nova Atlntida, mas
de uma empresa que deu o curso (oferecido para treinamento de vigias) para
eles. O Nova Atlntida j tem processo contra ele, mas est colocando outras
empresas, mas so parceiras (Erbene Rosa Verssimo, julho, 2007).
Figura 4 - A lder Trememb de Buriti, Erbene Rosa Verssimo (no centro da imagem), em
reunio com membros da comunidade e representantes da Funasa (Foto: Isis
Maria Cunha Lustosa, julho, 2007).
Os trememb do litoral nordestino
e um empreendimento turstico internacional
245
Consideraes finais
O turismo em terras indgenas abrange grande variedade de fenmenos,
desde iniciativas de povos indgenas de desenvolver projetos tursticos em suas
terras, para complementar a renda, a projetos impostos por grandes empresas,
sem, anteriormente, consultar as populaes atingidas. Nas comunidades
Trememb de Buriti e do Stio So Jos, o empreendimento Nova Atlntida
Cidade Turstica e Residencial configura-se como uma forma de turismo
empresarial predatrio que desconsidera os direitos constitucionais dos
povos tradicionais da regio. Em lugar de respeitar as terras indgenas, que
representam seus modos de vida, suas cosmologias e sua fonte de sobrevivncia,
os representantes do empreendimento procuram estabelecer relaes sociais
altamente assimtricas com os Trememb, aliciando alguns com salrios para
negar a identidade indgena e, dessa maneira, provocar conflitos internos. O
Nova Atlntida representa a atuao de grandes empresas altamente nocivas
para esses povos tradicionais do litoral do Cear, com aval do Governo federal,
estadual e municipal.
Referncias
Introduo
Este trabalho resultado de uma dissertao de mestrado (defendida
no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade de
Braslia (PPGAS/UnB)) e de uma monografia de especializao (apresentada
no Ncleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade de Campinas
(Nepam/Unicamp)). Na primeira, David Ivan Fleischer realizou estudo
no municpio de So Thom das Letras, em Minas Gerais, sobre conflitos
sociais que existiam entre nativos e forasteiros, a partir da anlise de situaes
especficas como minerao, turismo, festas locais, religio e patrimnio
histrico. Na segunda, trabalho multidisciplinar de vrios autores, Rodrigo
Paranhos Faleiro dedica-se a analisar o povoado de So Jorge, no municpio de
Alto Paraso, em Gois, para subsidiar a discusso central sobre a viabilidade
ou no do turismo ecolgico.
A partir desse dilogo, propomo-nos a discutir os conflitos socioculturais
entre as populaes tradicionais, ou nativos, e os grupos estrangeiros que vo
chegando regio ou de fora, que culminam em reelaboraes simblicas
e concretas do espao e da economia local. Nessa dinmica, as populaes
autctones dos povoados diversificam-se com o estabelecimento de outros
grupos sociais, que, por sua vez, ao serem incorporados comunidade, cada
vez mais heterognea, enfrentam problemas com outros grupos que continuam
a chegar.
A dinmica com a qual nos deparamos ofertou-nos a possibilidade de
refletir a respeito dos seguintes assuntos: a) a relao entre as pequenas comu
nidades e os centros urbanos prximos; b) a heterogeneidade, homogeneidade
e hegemonia de diferentes grupos sociais inseridos em uma comunidade; c)
as relaes entre os grupos diante de situaes de conflito; d) a percepo
que esses grupos tm do espao simblico e concreto no qual convivem; e)
a constituio do mercado turstico nessas comunidades; f) a relao entre os
So Thom das Letras e So Jorge:
gnese, conflito e identidade na constituio dos atrativos para um mercado turstico 251
Figura 3 - Casa tpica construda toda em pedra, bem como as ruas e caladas. As telhas so
artesanais, confeccionadas na cidade.
maioria dos moradores opta por construir em alvenaria. Mesmo assim, a rea
urbana ainda fortemente marcada pelas construes de pedra, que so mais
durveis e no exigem manuteno, mantendo-se originais por perodo muito
mais longo do que uma edificao de alvenaria. Alm das casas de pedra, todas
as ruas e caladas da vila so pavimentadas com as pedras locais.
O misticismo e o esoterismo transformaram-se, ao longo dos anos de
intenso influxo de turistas e migrantes (dcadas de 1980 e 1990), em elementos
constituintes da identidade local e tornaram-se importantes atrativos para os
turistas. Parte considervel dos visitantes que desembarcam em So Thom
das Letras vem em busca de experincias extrassensoriais, esotricas e msticas.
Muitos dos migrantes das grandes cidades trouxeram prticas msticas e
esotricas para a regio, fortalecendo e tornando uma marca registrada de
So Thom das Letras, transformando a cidade em ponto de convergncia
de vrias crenas. No municpio, alm da Igreja Catlica e da Assembleia de
Deus, esto presentes tambm o Santo Daime, a Umbanda, o Candombl, a
Sociedade Eubiose e a Comunidade Esprita.
Uflogos tambm procuram So Thom das Letras em busca de
pistas de aliengenas e de Objetos Voadores No Identificados (Ovnis). Eles
defendem a tese de que a pedra de So Thom emite energia especfica que
atrai os Ovnis para a regio. Os msticos acreditam que essa mesma energia
das pedras purificadora e faz da cidade um local privilegiado para a ascenso
espiritual e o autoconhecimento. Verdades ou no, essas teorias tm tido
valor simblico significativo e atrado um nmero cada vez maior de curiosos.
Muitos turistas visitam So Thom das Letras para conhecer, experimentar
e, possivelmente, confirmar essas teorias. Se, por um lado, esse conjunto de
atributos naturais (formao, revelo, cursos dgua e localizao) e esotricos
(crenas religiosas e ufolgicas) agrega diferentes significados a So Thom
das Letras, por outro, consolida-se como forte atrativo turstico local, que j
importante fonte geradora de renda e de desenvolvimento para o municpio.
O poder pblico vem anunciando formas de apoio atividade turstica.
Os sucessivos governos municipais da ltima dcada (2000-2009) empenharam-
se em prol de um turismo sustentvel, porm ainda falta uma Secretaria de
Turismo que consolide as aes necessrias para que o turismo seja mais
incrementado. Nesse mesmo perodo, o governo do estado incentivou os
municpios com potencial turstico a traarem um plano de explorao turstica
e a desenvolverem programas que visem um turismo mais sustentvel. Em
1999, o governo estadual mapeou toda a regio e classificou-as com potencial
turstico. So Thom das Letras, por exemplo, est no circuito Vale Verde e
Quedas Dgua, que inclui outros cinco municpios do sul de Minas Gerais
com potencial para o ecoturismo.
So Thom das Letras e So Jorge:
gnese, conflito e identidade na constituio dos atrativos para um mercado turstico 255
Figura 4 -
Vista do
povoado de
So Jorge
no limite
do Parque
Nacional da
Chapada dos
Veadeiros
(PNCV).
Variaes intertnicas:
256 etnicidade, conflito e transformaes
A cidade, por muitos anos, parecia uma grande rea de garimpo com
dejetos espalhados por todos os cantos, caminhes carregados de pedras,
transitando pela cidade, e exploses constantes e ininterruptas. Na dcada de
1990, com o incremento do turismo e a demanda organizada dos moradores que
atuam na rea, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renovveis (Ibama) e a Fundao Estadual do Meio Ambiente (Feam) foram
chamados para impor algumas restries e normas a serem observadas pelos
donos das pedreiras. Assim, os pedreiros passaram a ter horrio de descanso
entre as jornadas de trabalho, banheiro dentro da pedreira, local coberto para
as refeies, botas, luvas, culos especiais e mscaras. Normatizaram tambm a
deposio dos entulhos das pedreiras. Em relao ao controle fiscal, passou-se
a um maior controle do Imposto sobre Circulao de Mercadorias e Prestao
de Servios (ICMS) e da Contribuio para o Financiamento da Seguridade
Social (Cofins), tributvel sobre os carregamentos de pedra.
Na dcada de 1970, a vila foi descoberta por visitantes de So Paulo e
de Belo Horizonte interessados nas belezas naturais e lendas da regio. A partir
de ento, muitos outros visitantes chegam a So Thom das Letras. Alguns
desses primeiros visitantes, posteriormente, tornaram-se moradores e um dos
motivos a tranquilidade do local, a hospitalidade da populao, a topografia
inusitada, alm da possibilidade de viver de forma alternativa, trabalhando
com artesanato, agricultura e, eventualmente, com o turismo. Os que vieram
primeiro, ainda na dcada de 1970, s encontravam emprego nas pedreiras,
pois era a nica atividade que tinha potencial de absoro dessa nova mo de
obra. Poucos vieram com capital para manter-se sem trabalhar. Posteriormente,
no incio da dcada de 1980, quando a vila cresceu, esses novos moradores
chamados pelos nativos de forasteiros estabeleceram o comrcio local. Isso
s aconteceu quando So Thom das Letras passou a ser opo para turistas
de fim de semana. Aos poucos, o turismo passou a ter importncia para a
economia local. A partir da dcada de 2000, o turismo passou a ser considerado
como a principal atividade econmica urbana do municpio (minerao e
agricultura so consideradas atividades rurais).
Desde 2000, o turismo cresceu muito e vrios moradores abriram
pousadas, restaurantes e bares visando essa nova clientela. Alguns organizaram
passeios e servio de guias para levar os visitantes s cachoeiras e grutas,
que ficam ao redor da cidade. Nos finais de semana prolongados e feriados
nacionais como Natal, Ano Novo e carnaval, a cidade fica cheia de turistas que
ocupam todas as pousadas. Em festividades locais, como a Festa de Agosto,
tanto as pousadas da cidade quanto os campings e pousadas da zona rural ficam
lotados. A cidade lucra muito com essa injeo de capital externo. Muitos
So Thom das Letras e So Jorge:
gnese, conflito e identidade na constituio dos atrativos para um mercado turstico 261
1
Segundo a lenda, Cantagalo um animal mtico que habita as matas ao redor de So Thom das
Letras e que costuma aparecer no meio da estrada ou em trilhas durante a noite. Segundo relatos
dos moradores, trata-se de um bicho com cabea de galo e corpo de cobra. Dizem que sua cabea
aparece num lado e o rabo, que uma mistura do rabo do galo com o de uma cobra cascavel, do
outro, e no possvel ver o corpo. como uma iluso de tica. Alguns dizem que ele aparece em
locais onde outros animais correm perigo e tem a funo de afugentar as pessoas.
Variaes intertnicas:
262 etnicidade, conflito e transformaes
2
Termo nativo que designa pessoa que incomoda ao exigir o cumprimento de alguma obrigao
legal, tica ou tradicional.
Variaes intertnicas:
264 etnicidade, conflito e transformaes
desde roupas at comida. Todo ano, a prefeitura traz um cantor de renome para
fazer um grande show ao pblico, que somado populao local fica entre
vinte e trinta mil. A maioria dos participantes da festa turista e comerciante
que vm das cidades vizinhas, de Belo Horizonte e dos estados de So Paulo e
Rio de Janeiro.
A halloween acontece no final de outubro e coincide com o dia das
bruxas, celebrao tradicional nos Estados Unidos, importada para So Thom
no comeo da dcada de 1990. A halloween uma festa menos divulgada pela
prefeitura, mas que recebe um nmero expressivo de visitantes. O pblico
que a frequenta especfico, sendo composto por pessoas que participam ou
simpatizam com bruxaria ou tm curiosidade pelo tema. A festa de halloween
bem descontrada e a cidade toda enfeitada com abboras iluminadas. Todos
que participam vestem-se com fantasias.
Os forasteiros e turistas fantasiam-se para a Noite das Bruxas enquanto
os nativos apenas observam. Alguns nativos, sentados nos bares, fazem chacota
dos que passam fantasiados, gerando mais controvrsias. Os forasteiros no
respeitam a religio dos nativos ao promoverem um evento que exalta cones
considerados por muitos como religiosos demais no caso da Pscoa. Os
nativos tambm no respeitam a liberdade dos forasteiros que querem, durante
a halloween, festejar fantasiados, pois a consideram profana demais. A prefeitura
no intervm nesses casos, pois acredita ser mais um evento para atrair turistas.
Existem outros conflitos em So Thom das Letras relacionados
com a minerao e com a preservao do patrimnio histrico, pois esse
um tema polmico que tem gerado algumas brigas dentro da prefeitura e
entre os moradores. A prefeitura sempre apoia a minerao, j que a maioria
dos prefeitos eleitos nos ltimos 20 anos so donos de pedreiras. Assim, a
prefeitura tornou-se o piv da discusso entre nativos e forasteiros a respeito
do patrimnio histrico. Novas casas esto sendo construdas prximo do
topo da montanha (que um parque municipal) e ameaando o patrimnio
natural da rea. Segundo a vereadora Ana (mandato de 2000-2004), se isso no
for contido, em pouco tempo a rea ser totalmente tomada pelas casas. O
prefeito no tem interesse pela preservao e est em constante conflito com
os vereadores. Apesar de saber que a preservao importante para o turismo,
ele prioriza a extrao mineral.
Como em toda cidade de Minas Gerais que tem atividade de extrao
mineral, a preservao do patrimnio histrico, arqueolgico, artstico, cultural
e natural fica em segundo plano em relao ao desenvolvimento econmico
da regio. A minerao causa conflitos entre nativos, forasteiros e turistas. Os
Variaes intertnicas:
266 etnicidade, conflito e transformaes
3
Ampliao da construo original sem projeto arquitetnico, seguindo as necessidades imediatas.
Variaes intertnicas:
272 etnicidade, conflito e transformaes
4
Mucuna-preta a designao comum s plantas do gnero Mucuna, da famlia das leguminosas,
subfamlia papilionodea que rene 100 subespcies de lianas, a maioria com pelos urticantes
nos frutos. Tambm so conhecidas como mucun e mucun e so nativas de regies tropicais.
Algumas so cultivadas como ornamentais, outras como forrageiras e poucas medicinais
(HOUAISS, 2001).
Variaes intertnicas:
274 etnicidade, conflito e transformaes
com a Prefeitura, que lhes concedeu o material necessrio para a obra, e com a
prpria comunidade que realizou um mutiro para trazer a gua at o povoado.
No incio deste milnio, diante da magnitude dos empreendimentos
feitos no povoado (pousadas com banheiros privados e piscinas), do aumento
do nmero de casas e de turistas houve divergncias quanto destinao da
gua que a comunidade fez chegar ao povoado. Para os nativos e os alternativos,
a gua deveria ser utilizada racionalmente, enquanto alguns empresrios
ignoraram a questo. Outrora, as associaes faziam valer a voz da comunidade,
mas por estarem em declnio no possvel prognosticar cenrios futuros.
Apresentao
Durante a realizao de pesquisa doutoral em Roraima, assisti a diversas
assembleias e reunies indgenas. Nessas ocasies, chamou minha ateno o
emprego polissmico, por vezes contraditrio, de dois conceitos em torno dos
quais, segundo me parece, giram discursos variados e definies estratgicas
tanto das polticas indigenistas quanto das polticas indgenas: os conceitos de
projeto e de desenvolvimento.
Comecei a prestar ateno a esses conceitos no pela utilizao
corriqueira que os indgenas fazem deles, mas pela cacofonia produzida na
enunciao dessas palavras quando inseridas em discursos pblicos produzidos
em lnguas indgenas.
Desenvolvo esta anlise utilizando procedimento anlogo ao que foi
realizado por John Comerford (1999), que estudou os diferentes usos da
palavra luta entre trabalhadores rurais de organizaes camponesas dos estados
da Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. O autor afirma que o termo luta era
utilizado para referir diferentes situaes como a luta cotidiana pela sobrevivncia,
marcada pelo sofrimento, mas tambm conflitos concretos e episdicos entre
trabalhadores rurais e grandes proprietrios, mas o termo luta era utilizado
tambm com o sentido de mobilizaes coletivas e de construo de comunidades,
que ganha profunda conotao tica e pica para legitimar a participao
daqueles que esto na luta. Assim, o termo era utilizado de diferentes maneiras
e em contextos variados, por diversos atores sociais.
1
Este texto foi apresentado nas reunies do Geri em 2000 e corresponde a uma reviso e atualizao
das ideias expostas no Captulo 4 da tese de doutorado em Antropologia Social na UnB, intitulada
Roteiro de uma etnografia colaborativa: as organizaes indgenas e a construo de uma educao
diferenciada em Roraima, Brasil. Braslia, 2002.
Dois conceitos articuladores no contexto
indigenista de Roraima: Projeto e Desenvolvimento 287
2
As citaes que aparecem neste texto, quando no foram originadas na lngua portuguesa foram
traduzidas livremente pelo autor.
3
Entre 1998 e 2009 tenho colaborado em diferentes perodos, atividades e intensidade com as
seguintes organizaes: Conselho Indgena de Roraima (CIR); Organizao dos Professores
Indgenas de Roraima (Opir); Associao dos Povos Indgenas do Estado de Roraima (Apirr);
Organizao dos Indgenas da Cidade de Boa Vista (Odic) e mais indiretamente com a Organizao
das Mulheres Indgenas de Roraima (Omir).
Variaes intertnicas:
288 etnicidade, conflito e transformaes
Ano Projeto
1972 Miniposto de sade
1978 Encanao de gua
1980 Gado, cantina e depsito
1983 Carros (jipe e C-10)
1985 Ferramentas
1986 Gado
1986 Mquinas de costura e instrumentos de marcenaria
1987 Apoio da Diocese com materiais escolares
1991 Carro (Toyota)
1993 Microscpios
1994 e 1995 Materiais para celeiros
1995 Posto de sade
1995 Projeto de bicicletas
1997 Caminho
Nesse contexto, as instituies que antes ofereciam assistncia s co
munidades indgenas passaram a oferecer projetos, sendo o projeto de gado o que
teve maior impacto duradouro e o que gerou expectativa e desejo de consumo
por parte das comunidades. Atualmente, encontramos em comunidades proje
tos de gado (doaes de gado) da Diocese, da Funai, do Governo estadual e
at de prefeituras. Isso sem contar que existe gado individual nas comunidades,
devido aos trabalhos que muitos fizeram em fazendas, sendo esse um meio de
pagamento de servios. Talvez por ser essa uma atividade bastante conhecida
tornou-se uma reivindicao certa, mais do que outros projetos ou criaes.
Atualmente, o rebanho indgena em Roraima supera 30 mil rezes.
Podemos fazer uma lista com as seguintes esferas governamentais
que trabalham com os povos indgenas: Governo federal, Governo estadual,
prefeituras, parlamentares federais e estaduais, igrejas e organizaes no
governamentais. Em todas essas esferas foram criados departamentos es
pecializados ou instituies especficas para tratar de projetos para as
comunidades indgenas. O Governo estadual, por exemplo, passou a atuar por
meio da Secretaria de Agricultura, da Secretaria de Trabalho e Bem-Estar Social
(Setrabes), da Secretaria de Educao, bem como da Secretaria do ndio. O
Governo federal, por sua vez, atua por meio do rgo indigenista oficial, a
Funai, mas tambm pelo Ministrio da Sade, o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama), os ministrios da
Variaes intertnicas:
292 etnicidade, conflito e transformaes
Imposies metodolgicas
Penso que uma das principais dificuldades do sistema de projetos ora
vigente est em adequar as exigncias tcnicas s experincias e metodologias
prprias dos indgenas. No obstante, podemos observar que algumas agncias
buscam diminuir essa dificuldade, simplificando os formulrios e exigncias
para concorrer s verbas dos fundos de projetos. Mas, de modo geral, a
metodologia ocidental predominante e impositiva, sem falar no contexto de
poder no qual se legitima.
Um dos elementos metodolgicos que evidenciam a imposio a an
lise da situao-problema. Os indgenas enfrentam conflitos ao definir os seus
problemas conjunturais e as problemticas prprias do dilogo intercultural,
uma vez que o que pode ser entendido como problema para os indgenas
pode no ser do ponto de vista dos no indgenas, em especial dos tcnicos
que trabalham para essas instituies de cooperao. O mesmo acontece no
momento de definir objetivos e classific-los em principais ou secundrios
ou ao definir alternativas para superar os problemas e definir as atividades a
realizar. H uma compreenso diferenciada desses elementos, o que dificulta
a compreenso e a execuo desses projetos. Cabe ressaltar que os estudantes
universitrios em nvel de doutorado confundem o que sejam objetivos de
justificativa, assim como atividades de metodologia, bem como as pessoas
que no passaram por um processo sistemtico de treinamento para elaborar
projetos. Isso no menos relevante, j que um erro de foco nos problemas
e/ou objetivos pode acarretar o fracasso da ao. Ento, para dominar a
dinmica dos projetos, as comunidades devem entender a lgica implcita neles,
abandonando sua prpria lgica, sem que o sistema de projetos se esforce em
entender as lgicas indgenas.
Mas essa diferena no s metodolgica, j que o fato de dar prioridade
a tal ou qual estrutura de conhecimento tambm envolve, no seu bojo, um
fator poltico e, em ltimo caso, epistemolgico. Aqui se manifesta o choque
cultural e poltico no processo de dominao que impe aos indgenas formas
de organizar e apresentar trabalhos, e propostas usando a metodologia de
projetos. Embora os editais sejam abertos para a participao de qualquer um,
camuflando uma pseudodemocracia, a verdade que resulta numa imposio,
pois a nica forma de buscar recursos para enfrentar problemas srios como
saneamento bsico, atendimento sade ou valorizao cultural.
Ainda podemos perceber discursos variados entre as agncias finan
ciadoras, desde os que alegam exigir apenas critrios tcnicos, queles que
Variaes intertnicas:
302 etnicidade, conflito e transformaes
vrios setores sociais, de modo geral, utilizam esse conceito como forma direta
de apelo discursivo na construo das vrias realidades. O mesmo acontece em
mbito nacional e internacional. Sua abrangncia to grande que envolve projetos
econmicos, sociais, educacionais, de sade e de assistncia, mas tambm utiliza
recursos financeiros e naturais, bem como a geopoltica da fronteira internacional
e a explorao dos recursos naturais na Amaznia.
Na prtica, o conceito de desenvolvimento est longe de referir-se
ideia evolucionista de superao, implcita na concepo histrica ocidental
de progresso. O desenvolvimento, coisificado e transformado em fetiche,
transformou a si mesmo num elemento de consumo.
Como as demais ideias de consumismo impostas pela propaganda,
o desenvolvimento uma til ferramenta de alienao. Desse modo, o
desenvolvimento, para os grupos de poder no indgenas em Roraima, tem o
sentido de uma promessa de melhorias e progresso, que, embora esteja no lema
da bandeira nacional, ainda de difcil concretizao. Assim como a utilizao
pobre da ideia de projetos, o desenvolvimento serve para iludir e manter as
dinmicas de dominao tanto sobre a populao indgena quanto sobre o
resto da sociedade.
Ao estabelecer uma relao entre os discursos sobre o desenvolvimento
e a inveno do chamado Terceiro Mundo, Arturo Escobar (1992) faz meno
ao seguinte conceito de desenvolvimento: Como Edward Said sinalava nos
discursos do orientalismo, os discursos do desenvolvimento veem funcionando
como instrumentos poderosos para modelar e dirigir o Terceiro Mundo
(1992, p. 65)4.
Para Escobar, os discursos sobre desenvolvimento falam de uma nova
hegemonia, transformando o sistema que define as identidades. Dessa
perspectiva, o impacto dos discursos sobre desenvolvimento no se manifesta
apenas no campo da economia e do capital, mas tambm nos campos poltico
e cultural.
Na anlise de Escobar, h dois elementos fundamentais no funcionamento
dos discursos sobre desenvolvimento: a) o primeiro implica uma produo
sistemtica de conhecimentos sobre aspectos diferentes econmico, cultural
e social; b) o segundo, o estabelecimento de amplas redes institucionais em
todos os nveis. Desenvolvimento e modernidade cresceram marginalizando os
conhecimentos que no eram de sua orientao. Para Escobar (1992), o impacto
4
Esta e as tradues que se seguem so livres e feitas pelo autor.
Variaes intertnicas:
304 etnicidade, conflito e transformaes
5
Isso foi o que efetivamente ocorreu com os conhecimentos Wapichana, na Guiana Inglesa,
sobre duas plantas medicinais, o cunani e o biri-biri. O primeiro, um tipo de timb utilizado para
pescar, que tem efeitos sobre o sistema nervoso; o segundo utilizado como ch medicinal. O
povo Wapichana est tentando anular o patenteamento, mas esbarra nos interesses de grandes
laboratrios internacionais (VILA, 2004).
Dois conceitos articuladores no contexto
indigenista de Roraima: Projeto e Desenvolvimento 305
6
ISA 1996/2000 Povos Indgenas no Brasil (315).
Dois conceitos articuladores no contexto
indigenista de Roraima: Projeto e Desenvolvimento 307
7
O projeto original Calha Norte inclua cinco barragens no Rio Cotingo.
Variaes intertnicas:
308 etnicidade, conflito e transformaes
Essa fala marca uma posio que chama a ateno para os problemas produtivos
e para outro aspecto mais amplo, relativo definio de uma poltica indgena.
Variaes intertnicas:
312 etnicidade, conflito e transformaes
Consideraes finais
nesse cenrio poltico que se discutem e criam conflitos em torno
do conceito de desenvolvimento, em que este ltimo acompanhado da
promessa de implementao de projetos econmicos ou de infraestrutura.
Esse sensacionalismo utilizado para atemorizar as pessoas, obrigando-as a
aceitarem o desenvolvimento. Nessa tica sensacionalista, os conflitos entre
indgenas assumem forma grotesca e isso est relacionado questo das terras
e da cultura indgena. So conflitos que parecem no ter fim e que se mantm
latentes por aflorar violentamente em certos perodos.
Segundo Rist (1997), na Amrica Latina, onde o desenvolvimento
coloca-se como uma soluo, cria-se o paradoxo de o conceito ser apresentado
como uma categoria universal e no transcultural (RIST, 1997, p. 44). O
desenvolvimento, ao ser apresentado como natural e necessrio, produz uma
confuso na aplicao metafrica entre natureza e natural, confundindo a
imagem e a realidade. Creio que isso tambm aplicvel ao caso de Roraima.
Desse modo, o desenvolvimento utilizado, conforme Rist, como
uma ferramenta de dominao e imposio, por meio do qual o ocidente
colonizador, civilizado e desenvolvido, rotula as regies que alimentam sua
opulncia como reas subdesenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. Isso
no passa de outra iluso ps-moderna, em que a globalizao apresenta-se
como um simulacro de desenvolvimento (RIST, 1997, p. 211).
Assim, creio ser pertinente perguntar: como as organizaes indgenas
entendem e aplicam a ideia de desenvolvimento? Acredito sinceramente que as
organizaes empregam esse termo para dar uma fora poltica a suas ideias, na
lngua utilizada pela sociedade brasileira. Ora, talvez fosse mais claro se falassem
do desejo de melhorar de vida, de ampliar seus cultivos e de produzir alimentos,
de suas intenes de lucrar nos mercados com seus produtos, de assegurar
suas terras e de evitar novas invases, de ampliar os servios sanitrios, de
asfaltar as estradas e ter transporte prprio, de ter acesso sade e educao
de qualidade. Se no for assim, resulta falar em desenvolvimento como um
termo da onda que significa falar o que parece ser o mais conveniente, ou
seja, o que precisa ser falado.
Variaes intertnicas:
314 etnicidade, conflito e transformaes
de foras sociais, uma mudana poltica para fazer pender a balana hoje
favorvel aos interesses que impulsionam processos de imposio e alienao
cultural em favor dos grupos sociais que lutam pelo desenvolvimento de
sua prpria cultura (grupos tnicos, regies, localidades) (BATALLA, 1995,
p. 473).
A esse respeito, Stavenhagen (1991) explora os aspectos polticos e
sociais que os povos indgenas devem enfrentar, especialmente em relao ao
Estado Moderno e sociedade em geral.
Como uma reao contra as polticas que causam etnocdio ou mantm
o colonialismo interno [os indgenas], defendem a autodeterminao, a
autonomia e o etnodesenvolvimento e, se no entendi mal, significa que os
povos indgenas e os outros grupos tnicos reivindicam o direito de gerir seus
prprios assuntos, de participar em organismos e processos de tomada de
deciso que comprometam seu futuro; o direito representao e participao
poltica; o direito ao respeito de suas tradies e sua cultura; o direito de
decidir livremente, conforme o caso, e o tipo de desenvolvimento que lhes
convier. O etnodesenvolvimento significa que uma etnia autctone, tribo ou
outra qualquer tenha o controle sobre seu prprio territrio, seus recursos,
sua organizao social e sua cultura, e tenha liberdade para negociar com o
Estado para determinar o tipo de relao que eles queiram manter com ele
(STAVENHAGEN, 1991, p. 57).
Essa viso sobre os direitos dos povos autctones foi fortalecida a
partir da prpria articulao deles, da abertura de espaos internacionais onde
eles so respeitados e onde questionam os abusos que os Estados Nacionais
impem-lhes.
Em oposio ideia de que o desenvolvimento autocentrado, o etnode
senvolvimento significa olhar para o interior para encontrar em sua prpria
cultura os recursos e as foras criativas necessrias para enfrentar os desafios do
mundo moderno em transformao. Isso no significa autarquia ou isolamento
imposto, muito menos o encapsulamento num museu de tradies (1991, p.
57).
O reconhecimento no s legal, mas, sobretudo, prtico dos direitos
indgenas e em especial da participao nos processos de crescimento econmico
e social, assim como na prpria criao e atualizao da cultura, requer esforo
enorme, que no possvel apenas pela fora do movimento indgena, e uma
transformao social ainda maior, que, na verdade, modifique o significado e
a prtica histrica da sociedade envolvente, e que reconhea em plenitude as
particularidades histricas dos povos indgenas e dos outros grupos sociais
submetidos pelo Estado Nacional e pelo desenvolvimento capitalista.
Nwa, ndios ou ribeirinhos?
Quando os rgos pblicos entram em conflito 317
Introduo
1
Quando tratar-se de aes de competncia do ICMBio, independentemente da data, citarei ICMBio.
Adoto essa opo por considerar serem os mesmos setores do Ibama que formaram o ICMBio.
Nwa, ndios ou ribeirinhos?
Quando os rgos pblicos entram em conflito 325
2
Ao usar o termo concreto ao invs de ndio ou de natureza, e temas correlatos, no pretendo entrar
no campo da hermenutica e menos ainda nas discusses do pensamento hegeliano, mas apenas
dizer ndios, natureza e temas correlatos.
Variaes intertnicas:
326 etnicidade, conflito e transformaes
3
A grafia das famlias lingusticas Pano e Quchua so utilizadas por Melatti (1992), enquanto Arawak
empregada por Pimenta (2002).
4
At a primeira metade do sculo XIX, o Acre no pertencia ao Brasil, tendo sido adquirido durante
as negociaes diplomticas conhecidas por Questo do Acre e conduzidas pelo Baro do Rio
Branco.
5
Para Pereira Neto, a violncia da ocupao causou a atual falta de informaes sobre aqueles ndios,
bem como sua dizimao por doenas e combates armados (PEREIRA NETO, 2000).
Nwa, ndios ou ribeirinhos?
Quando os rgos pblicos entram em conflito 327
O sucesso alcanado pela Reaj, entre outras reservas criadas nos anos
seguintes, e a situao dos seringueiros que vivem no PNSD levou o Ministrio
Pblico (MP) a realizar em 1993 uma Percia Antropolgica no PNSD (rios
Moa e Azul) para avaliar sua converso em reserva extrativista. Embora os
ex-seringueiros demonstrassem interesse pela proposta, os fazendeiros
aparentavam insatisfao tanto com o parque quanto com a reserva, j que
ambos culminariam na desapropriao de suas terras por baixos valores, ou
nenhum, como o caso da TI Nukini6 (LIMA, 1993; MONTAGNER, 2002).
Na ltima dcada, o Instituto Nacional de Colonizao e Reforma
Agrria (Incra) implantou dois Projetos de Assentamento (PA) na regio: PA
do Rio Azul e PA Amnea. Esses projetos criaram uma imagem negativa em
torno dos PAs, j que o modelo do Incra no era apropriado para a regio.
Contudo, nos ltimos anos, uma parceria do Incra, Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuria (Embrapa), Ibama, SOS Amaznia (SOS), Grupo de
Pesquisa e Extenso em Sistemas Agroflorestais do Acre (Pesacre), entre outros,
tm buscado inverter a imagem por meio do Projeto Modelo de Assentamento
Rural Sustentvel para a Amaznia Ocidental, So Salvador (IBAMA, 1998).
Entre 1995 e 1998, durante a elaborao do Plano de Manejo do PNSD
pela SOS e o ICMBio, foram discutidos com as comunidades o potencial
turstico do Moa e o assentamento das comunidades em outra rea. Coincide,
tambm, a morte da equipe do Conselho Indigenista Missionrio (Cimi), que
atua na regio, em um acidente, o que traz a Cruzeiro do Sul/AC7 outra equipe
da instituio que j atuava no Par.
Em 1999, aconteceram diversas atividades na Serra do Moa. Enquanto
o ICMBio e a SOS iniciavam o levantamento dos moradores das margens dos
rios Moa e Azul, passveis de serem reassentados no So Salvador, os nukinis
reivindicavam o monoplio sobre a atividade turstica a ser desenvolvida no
PNSD e a ampliao de sua TI rumo ao estado do Amazonas (rea fora do
PNSD). Porm, as demandas de famlias pelo reconhecimento indgena que
datavam da poca da identificao dos nukinis, aparentemente, ressurgiram
quando o Cimi anunciou ter encontrado remanescentes da etnia Nwa, durante
sua visita Serra do Moa, em companhia do cacique Nukini. As presses em
6
Aps a realizao da percia antropolgica no PNSD, em 1993, os fazendeiros criticaram a criao
da reserva extrativista e propuseram a diminuio do parque para os limites da Serra do Divisor,
deixando as demais reas livres para a pecuria (LIMA, 1993).
7
Cruzeiro do Sul e Mncio Lima so os ncleos urbanos prximos Serra do Moa.
Nwa, ndios ou ribeirinhos?
Quando os rgos pblicos entram em conflito 329
prol de uma agenda propositiva para os ndios fizeram com que a SOS e os
nukinis elaborassem um projeto de manejo para a TI Nukini8.
Naquela mesma poca, os ndios pataxs ocuparam a sede do Parque
Nacional Monte Pascoal no sul da Bahia. Diante de possveis conflitos no cenrio
da comemorao do Descobrimento, diversas instituies governamentais e
internacionais tentaram contornar a situao. O Ministrio do Meio Ambiente
(MMA) e o Ministrio da Justia (MJ), e este com a Funai, articulavam uma
agenda para resolver a questo.
No ano seguinte, diante da possibilidade do reconhecimento da etnia
Nwa, a Gerncia Executiva do Ibama no Acre (Ibama/AC) e a SOS acionaram
a Administrao Executiva Regional da Funai em Rio Branco (Funai/AC) para
avaliar se eram ou no ndios Nwa as famlias que at pouco apresentavam-se
como ribeirinhas. O administrador disse que estava ciente da situao, pois o
Cimi j tinha o fato comunicado a ele, e que dependia de recursos para avaliar
o caso em campo. Diante da situao, a Funai/AC, com apoio do Ibama, SOS e
Cimi, visitou a rea e apresentou o Relatrio Preliminar a Respeito de Populao
que se Afirma Pertencer Etnia Naua, Habitantes do Parque Nacional da Serra
do Divisor Municpio de Mancio Lima/AC, no qual afirma serem eles os
ndios Nwa e propondo o reconhecimento de suas terras. Contudo, aps
a Inspeo Judicial da Ao Civil Pblica (Processo n 1998.30.00.002586-
0) realizada no mesmo ano, o juiz determinou a elaborao de um laudo
conclusivo para esclarecer a condio tnica dos moradores da comunidade
localizada ao longo do Igarap Novo Recreio, que se autodenominavam Nwa
(JUSTIA FEDERAL, 2000), uma vez que o documento apresentado pela
Funai/AC no era conclusivo.
Em julho, a Lei n 9.985, de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema
Nacional de Unidades de Conservao da Natureza, foi sancionada com um
artigo que obrigava o Ibama e a Funai a proporem solues para os casos de
sobreposio de TI e UC. Porm, apenas com a ocupao da sede do Parque
Nacional do Araguaia na Ilha do Bananal, pelos Carajs, o Ibama acionou o
MMA e este o MJ, que, alm de ter pedido providncias Funai, constituiu
a comisso que tratou da referida lei. Essa comisso manteve-se inativa,
quando, diante da ameaa de novas ocupaes, o MMA convocou uma reunio
extraordinria do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), na qual
8
Segundo informaes colhidas com a SOS, o projeto foi fruto do esforo coletivo da comunidade,
contudo, aps ser aprovado pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA), o cacique expressou
que os nukinis no tinham interesse pelo projeto e o abandonaram.
9
Apesar das inmeras reunies, pouco se avanou at 2002.
Variaes intertnicas:
330 etnicidade, conflito e transformaes
constituiu nova comisso, cuja finalidade era acompanhar a anterior, sendo esta
integrada por organizaes no governamentais que representassem regional
ou nacionalmente os interesses dos ndios e das unidades de conservao9.
Durante as Comemoraes dos 500 Anos do Descobrimento do Brasil, a
imprensa explorou as superposies. Na ocasio, o Cimi divulgou sua descoberta
da etnia extinta. Com isso, as famlias participaram das comemoraes em
Cruzeiro do Sul apresentando-se como Nwa os verdadeiros donos das terras.
No ano seguinte, a SOS e o ICMBio realizaram seminrios para a
formao do Conselho Consultivo do PNSD, durante os quais a proposta
de reconhecimento da TI Nwa foi posta em pauta, sem avanar muito
nesse tema, j que o frum no era apropriado. Naquele perodo, ocorreram
desentendimentos entre os lderes nukinis e Nwa, o que pareceu influenciar
a reivindicao dos primeiros para que suas TIs fossem ampliadas sobre o
PNSD, coincidindo com o pleito dos segundos.
O MMA anunciou em uma reunio que est aberto a discutir formas
de gesto integrada das reas sobrepostas, entretanto, questes de domnio
s seriam tratadas na comisso que a Presidncia da Repblica estaria criando.
Segundo informaes, essa comisso deveria substituir as anteriores.
Apenas em 2002, foi realizada a Percia Antropolgica sobre a Condio
tnica dos Moradores do Igarap Novo Recreio, Rio Moa/AC, que se
autodenominam Nwa, na qual Montagner confirma que o grupo construiu a etnia
a partir de fragmentos da memria, de objetos e de outros elementos simblicos,
que, articulados, apoiam a reivindicao do grupo (MONTAGNER, 2002). Na
ocasio, a JF solicitou a avaliao do documento pelo Ibama/AC, ao mesmo tempo
em que a Funai realizava discusso sobre a ampliao da TI Nukini.
A partir da percia, o juiz decidiu pela criao da Terra Indgena Nwa,
do Parque Nacional Serra do Divisor, e determinou a elaborao do plano de
gesto da rea, onde estaria identificada a rea e a forma de manejo. Segundo
Correa (2007), a deciso do juiz partiu da lgica ambientalista e no indigenista.
Seu argumento estava pautado na prpria criao da Terra Indgena Nwa,
do PNSD, considerado como fato indito. Contudo, segundo ele, apenas com
a deciso do juiz foi possvel reconhecer a existncia da etnia Nwa pelas
instituies pblicas ICMBio, Funai e MPF.
10
Grupo que pode ser entendido como equipe ou rede, neste ensaio.
Variaes intertnicas:
332 etnicidade, conflito e transformaes
uniam sees tercirias com uma secundria e esta com outra secundria diante
de uma primria e assim por diante.
Entretanto, esses grupos tambm articulam-se em rede, solicitando apoio
a pessoas acessveis (por algum lao real ou fictcio, inclusive de parentesco)
para superar os obstculos da hierarquia institucional recordando novamente
os Nuers (EVANS-PRITCHARD, 1978). Por sua vez, a hierarquia pode ser
entendida pelos nveis de integrao sociocultural (famlia, aldeia, nao etc.),
descrito por Steward como crculos concntricos, que, neste ensaio, seriam: em
nvel local (os atores concretos); em Rio Branco (Funai/AC, Ibama/AC, JF,
MP, SOS e Cimi); em Braslia (Funai ou Ibama); em Ministrio (MJ ou MMA);
na Presidncia da Repblica (Casa Civil e AGU).
A partir desta construo terica pode-se ver a sociedade mais prxima
de um precipitado fluido e instvel de redes sociais do que de armaduras rgidas,
estanquizadas e em equilbrio (LIMA, 1995, p. 42), onde o conflito Funai-Ibama
comea em escala local, quando os atores concretos sentem-se ameaados pelo
levantamento de moradores realizado pelo Ibama e a SOS, e usufruem tanto
das relaes de parentesco com os nukinis (somos parentes, mas no somos o
mesmo povo) quanto do resgate da identidade tnica Nwa (MONTAGNER,
2002; PIMENTA, 2002; CAMPOS, 2000; BARTH, 1998), para buscar apoio
do Cimi. Nesse momento, as redes existentes so ativadas, pois o Cimi trabalha
com ndios e passa a exercer presso sobre a Funai/AC, e a SOS sobre o Ibama.
Estes, por pertencerem ao Estado articulam-se com a Funai/AC, oferecendo
os meios necessrios avaliao da etnicidade do grupo que afirma ser Nwa.
Porm, quando a Funai/AC aponta para um reconhecimento, as instituies
polarizam-se em Ibama/AC e SOS de um lado e Funai/AC e Cimi do outro,
debatendo entre si, segundo seus universos simblicos, pautados na noo de
bom selvagem e de paraso intocado. Se o argumento institucional a resposta
que o PNSD est sob a administrao do Ibama e que a TI Nwa ser
administrada pela Funai, mas se tcnico preciso observar a importncia
do resgate de uma cultura perdida e da regio, por concentrar alto ndice de
endemismo. Quando apelam ao argumento jurdico tanto o Ibama resgata o art.
225 da Constituio quanto a Funai vale-se do art. 23112.
No sistema de linhagem, Nuer o parentesco resgatado para resolver uma vendeta (EVANS-
11
PRITCHARD, 1978).
12
Godelier, nos seus estudos na frica, diz que o mesmo ambiente interpretado culturalmente de
diferentes formas, quando o olhar de grupos diferentes (GODELIER, 1986).
Nwa, ndios ou ribeirinhos?
Quando os rgos pblicos entram em conflito 333
dentro ou fora do Estado. Esse, sim, seria o grande debate sobre a instituio
pblica dos prximos anos.
Referncias
Introduo
Neste ensaio, gostaria de introduzir o leitor a um conflito socioambiental
especfico marcado pela disputa por legitimidade sobre a gesto dos recursos
naturais e simblicos do territrio Monte Pascoal e seu entorno. Ao longo
da histria, a rea foi pensada e territorializada com noes de Parque
Monumental, Parque Nacional, Aldeamento, Reserva Indgena, rea Indgena
e, finalmente, Terra Indgena como parte de um complexo de relaes sociais
e econmicas das quais o povo Patax, tradicionais habitantes, ficou alheio
como protagonista, pelo menos at os anos de 1990. Tento resumir a dinmica
de ressignificaes do espao no tempo, a partir dessas relaes entre agentes
do Estado e da comunidade local, atentando para os reflexos objetivos na
organizao poltica dos pataxs. Para tanto, apoio-me em certas diretrizes
tericas que contribuem para a elucidao e a complexificao do conflito que
dura aproximadamente 60 anos.
Arranjo conceitual
Conforme Groenewold (apud CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996,
p. 23), as aes humanas ocorrem em trs dimenses polticas possveis,
1
Este texto foi escrito em 2004 para a seleo de mestrado em Antropologia Social da Universidade
de Braslia e posterior apresentao em reunies do Geri. o resultado e resumo da monografia de
graduao intitulada A produo de instrumentos de mediao de conflitos socioambientais: o caso
da sobreposio entre o territrio tradicionalmente ocupado pelos pataxs do Monte Pascoal e do
Parque Nacional do Monte Pascoal (RESENDE DE ASSIS, 2004). O texto foi sutilmente modificado
para esta obra. Foram mantidas as estruturas textual, argumentativa e bibliogrfica originais, para
que se resguardasse a perspectiva terica e etnogrfica experimentadas na poca.
Conflito socioambiental sobre a gesto dos
recursos naturais e simblicos do territrio do Monte Pascoal e seu entorno 343
2
Obviamente, os valores universalistas so formulados em lugares especficos, o que implica, em
consequncia, geopolticas do conhecimento (MIGNOLO, 2001) entremeadas com valores, prticas
e discursos cosmopolitas. Estes esto imersos em relaes de poder de toda a ordem, inclusive
cosmolgica e epistemolgica, em que o humano, o poltico e o social esto em franca competio
(muitas vezes, desiguais). Este trabalho no aprofunda tais questes. Cabe aqui apenas situar que a
macroesfera refere-se ao espao de operao de valores cosmopolitas, isto , aqueles que incidem
sobre uma humanidade pensada como unidade, bem como aos princpios morais tomados como
universais. Sobre cosmopolitismo e cosmopolticas, ver Robbins (1998) e Ribeiro (2005 e 2001).
3
Sobre a ideia do Estado como malha imaginria, ver Souza e Lima (1995).
Variaes intertnicas:
344 etnicidade, conflito e transformaes
4
Paraso informa que com o deslocamento da guarda da Bahia para Prado os bandos pataxs
dividiram-se etnicamente no que hoje conhecemos como Patax e Patax H H He (PARASO,
1971).
Conflito socioambiental sobre a gesto dos
recursos naturais e simblicos do territrio do Monte Pascoal e seu entorno 345
por recursos naturais, comeariam na primeira metade dos anos de 1940 quando
chega Barra Velha um ilustre desconhecido: o dr. Barros5 (CARVALHO, 1977).
5
No foi possvel identificar quem exatamente era o dr. Barros. Suspeita-se que possa ser um
dos primeiros demarcadores de reas para a preservao no Brasil, como o Parque da Tijuca, por
exemplo. Manoel Santana, liderana Patax, refere-se a ele como Aurelino Costa Barros ou Barreiro
ou somente Aurelino Barreiro. O filho da Sra. Josefa, outra figura importante na histria Patax,
afirma que ele era estrangeiro assim como toda a comitiva, o que improvvel, segundo Carvalho
e outros velhos da aldeia.
Variaes intertnicas:
346 etnicidade, conflito e transformaes
7
Muito similar anlise e ao grfico de L. Cardoso de Oliveira sobre as relaes intertnicas contidas
no caso do Velho Cego Krah, uma adaptao da estria de Joo e Maria dos irmos Grimm. (L.
CARDOSO DE OLIVEIRA, 1999, p. 84).
8
Boca da Mata foi criada em 1981, aps um acordo entre a Funai e o IBDF, que destinou aos pataxs
uma faixa exclusiva no Parque de Monte Pascoal. Situa-se na margem direita do Crrego Cemitrio,
pouco acima de sua confluncia com o Carava (SAMPAIO, 2000).
9
Sim, pois tratavam-se de consensos sobre a resignificao do espao para os pataxs, j que
teriam a garantia da terra que estava sendo invadida por grileiros inescrupulosos que avanavam
sobre a Mata Atlntica e sobre seu territrio.
Conflito socioambiental sobre a gesto dos
recursos naturais e simblicos do territrio do Monte Pascoal e seu entorno 347
10
Realizao da pesquisa etnogrfica em 2003-2004.
11
Ver Decreto n 242, de 29 de novembro de 1961.
12
No havia ainda a conscincia do grupo para a denominao oficialesca, como afirma Sampaio, de
ndios, pois apenas sabiam que eram discriminados em funo da Guerra de 51 e dos perodos
posteriores.
Variaes intertnicas:
348 etnicidade, conflito e transformaes
13
Segundo Carvalho, o SPI at tentou enviar um agente entre a guerra e a criao do parque, mas ele
no conseguiu chegar aldeia Bom Jardim como era conhecida Barra Velha em funo da chuva.
14
Conforme Oliveira: a partir de fatos de natureza poltica que os atuais povos indgenas do
Nordeste so colocados como objeto de ateno para os antroplogos sediados nas universidades
da regio. (...) Organizados e mobilizados mais tarde pela criao da Anai e Pineb, os antroplogos
produzem uma quantidade expressiva de artigos, relatrios e laudos que ampliam o conhecimento
emprico sobre as condies de existncia da populao indgena do estado, gerando dados e
argumentos que fortalecem suas demandas (OLIVEIRA, 1999, p. 16).
Conflito socioambiental sobre a gesto dos
recursos naturais e simblicos do territrio do Monte Pascoal e seu entorno 349
que novos atores, agora em defesa dos pataxs, entraram na arena. H uma
mudana estrutural no conflito, pois o relatrio apresentado Funai caracteriza-
os como populao indgena (AGOSTINHO, 1971).
Em meio s lutas polticas dos indigenistas contra o projeto de eman
cipao, a Associao Nacional de Ao Indigenista (Anai) emergiu como um
brao poltico do Pineb, formando novos intermedirios em favor do direito
dos povos indgenas. Pouco antes, Agostinho e Carvalho foram solicitados
a escrever um plano para a demarcao da rea, rapidamente negado pelos
intermedirios pataxs, pois deixava de fora da demarcao o Monte Pascoal.
O resultado foi o refluxo do conflito com os guardas do parque e uma retomada
em 1980 da rea onde atualmente esto as aldeias Boca da Mata e Meio da
Mata. Soma-se a essa questo a criao da BR-101 e o crescimento da atividade
madeireira na rea, com o incentivo da produo de gamelas de madeira para
comercializao, o que acirra as acusaes dos ambientalistas de que os pataxs
seriam destruidores da Mata Atlntica.
Com a Constituio de 1988, a principal bandeira dos intermedirios
indigenistas da sociedade civil passou a ser a demarcao da terra indgena. O
Conselho Indigenista Missionrio (Cimi) chegou regio no incio dos anos de
1990, quando a atual rea da Terra Indgena Barra Velha foi homologada sem o
consentimento de um laudo antropolgico como determina a legislao. Anai,
Pineb e Cimi configuram atualmente o bloco de intermedirios contrrios
permanncia da categoria parque nacional na regio, tradicionalmente ocupada
pelos pataxs, e com ela toda a mquina administrativa do Ibama.
Nesse nterim, os ambientalistas conquistaram algumas vitrias, como a
proibio de corte de madeira na Mata Atlntica em 199015. H, tambm, no
incio dos anos de 1990, a consolidao da Rede ONG da Mata Atlntica, que
possibilitou diversos lobbies ambientalistas quanto produo de leis de proteo
Mata Atlntica. importante salientar que ambientalistas e indigenistas
constituam intermedirios que procuravam dialogar diretamente com os
pataxs e essas intermediaes refletiam diretamente nos rumos polticos e no
aumento de intermedirios na comunidade.
O Cimi organizou com algumas lideranas um histrico de perdas do
territrio ao longo dos anos. Esse instrumento, consolidado consensualmente,
foi fundamental para o fortalecimento da conscincia e da vontade dos pataxs
em retomar seu territrio.
15
Decreto Federal n 99.547/90; ver tambm Projeto de Lei n 3.285/92 e Decreto n 750/93.
Variaes intertnicas:
350 etnicidade, conflito e transformaes
16
A demarcao foi concluda.
Referncias
Introduo
1
O Projeto de Minerao So Francisco (PSF), poca dos levantamentos (2005-2006) encontrava-
se sob a gesto do Grupo Yamana Desenvolvimento Mineral S/A, tambm citado em diversos
documentos consultados como Sta. Elina Desenvolvimento Mineral S/A e/ou Serra da Borda
Minerao e Metalurgia S/A.
2
As TIs constituem o territrio tradicional dos nambikuras, na regio noroeste do estado do Mato
Grosso.
Projeto de Minerao do So Francisco e da Terra
Indgena Sarar/MT: um caso de negao ao exerccio da governana local 355
3
Tanto o traado da nova estrada de acesso ao empreendimento quanto a linha de transmisso, de
138 KV, informados Funai no incio do processo foram modificados pelo empreendedor, e, ainda,
houve o acrscimo posterior da construo da Barragem do Longa Vida.
4
Seu traado incidiria sobre reas da TI Paukalirajausu, alm de distar apenas 158 m do seu ponto
mais prximo da Terra Indgena Sarar.
Variaes intertnicas:
356 etnicidade, conflito e transformaes
5
Constatou-se que essa definio foi elaborada com base em consensos internacionais, que, em
sua maioria, so expressos nas declaraes e em princpios acordados nas Naes Unidas e em
diversos documentos do PNUD.
Projeto de Minerao do So Francisco e da Terra
Indgena Sarar/MT: um caso de negao ao exerccio da governana local 357
6
Esse fracasso deve-se s diferenas de adaptao dos subgrupos removidos, s diferenas de
ordem cultural, que no foram devidamente consideradas, e, principalmente, ao faccionalismo
existente entre os nambikuras, que generalizado, tornando os subgrupos hostis em relao uns
aos outros. Os aspectos religiosos tambm foram fatores impeditivos no processo de adaptao,
pois cada subgrupo possui locais especficos onde acreditam morar os espritos de seus ancestrais
e para onde so encaminhados os espritos dos mortos. Essas transferncias contrariaram ainda
as disposies contidas no art. 20 da Lei n 6.001/73 e no art. 12 do Decreto n 58.824, de 14
de julho de 1966, que promulga a Conveno 107 sobre populaes indgenas, uma vez que o
desenvolvimento e a segurana nacional no estavam comprometidos.
7
Cabe destacar que essas medidas no foram adotadas pela Funai.
Projeto de Minerao do So Francisco e da Terra
Indgena Sarar/MT: um caso de negao ao exerccio da governana local 359
8
O Processo n 3.170/81 est arquivado no Centro de Documentao da Diretoria de Assuntos
Fundirios da Funai.
Variaes intertnicas:
360 etnicidade, conflito e transformaes
9
Vdeo Boca Livre no Sarar (CTI, 1992).
10
A presena dessa empresa na regio anterior criao da TI Sarar em 1982. Por visar
permisso de lavra de rea maior, mantinha anualmente o pagamento dos devidos alvars.
Portaria de Lavra registrada no DNPM sob o n 8.609.938/82.
11
Considera-se impacto ambiental toda e qualquer alterao das propriedades fsicas, qumicas e
biolgicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matria ou energia resultante de
atividades antrpicas que afetem direta ou indiretamente a sade; segurana e bem-estar da
populao; atividades sociais e econmicas; a biota; as condies estticas ou sanitrias do meio
ambiente e a qualidade dos recursos ambientais (Resoluo n 001 do Conama/86).
Projeto de Minerao do So Francisco e da Terra
Indgena Sarar/MT: um caso de negao ao exerccio da governana local 361
13
O termo de compromisso assinado entre a empresa Santa Elina Desenvolvimento Mineral S/A e
a Funai apresenta-se frgil, pois nele os indgenas esto cedendo uma rea da qual no se sabe
ao certo suas dimenses. Ademais, uma TI, mesmo que ainda no tenha sido homologada pelo
Presidente da Repblica, constitui-se em Patrimnio da Unio e como tal no pode ser negociada.
Assim, o encaminhamento proposto para esse caso seria submeter o termo de compromisso, j
elaborado, reviso das partes competentes, alm do Ministrio Pblico Federal, garantindo a
lisura no processo. Isso posto, ao contrrio de ceder uma rea aleatoriamente, como fizeram, o
novo TC dever permitir o uso desta desde que definida por coordenadas geogrficas e qualificado
seu uso e temporalidade. A partir dessas informaes, ser possvel avaliar os reais impactos
existentes e provveis e, consequentemente, dimensionar as reais medidas compensatrias e/
ou mitigadoras. A construo de uma barragem na cabeceira do Longa Vida, rea em estudo da
TI Paukalirajasu, no pode ser objeto de cesso e sim de permisso, caso tenha anuncia dos
ndios. Anuncia no para concesso, pois no se concede e/ou vende uma terra indgena.
Ao concordarem com as clusulas do TC existente, os ndios pouco ou nada sabiam sobre os
provveis impactos do PSF, ou, ainda, do significado jurdico de uma concesso, cesso e/ou
permisso. Os indgenas no podem conceder uma rea nem mesmo diante de programas
compensatrios. No se deve tentar descaracterizar uma TI, pois os direitos dos ndios so
originrios e ela inalienvel.
Projeto de Minerao do So Francisco e da Terra
Indgena Sarar/MT: um caso de negao ao exerccio da governana local 363
14
Os trabalhos de demarcao foram concludos pela Diretoria do Servio Geogrfico do Exrcito,
em dezembro de 1983, e a planta elaborada pelo Departamento de Demarcao da Funai em
30/12/1983.
15
Esse decreto homologa, para efeitos legais, a demarcao administrativa promovida pela Fundao
Nacional do ndio (Funai), da rea de posse imemorial dos grupos indgenas nambikuras,
katitaurlus ou sarars, localizada no municpio de Pontes e Lacerda, Mato Grosso.
Variaes intertnicas:
364 etnicidade, conflito e transformaes
16
Em 1962, Rachel Carson publicou o livro Silent spring, impulsionando o movimento ambientalista
na dcada de 1960.
Projeto de Minerao do So Francisco e da Terra
Indgena Sarar/MT: um caso de negao ao exerccio da governana local 365
Consideraes finais
Os problemas identificados pelo estudo justificam a necessidade de
elaborao de um Programa de Compensao Ambiental (PCA) com carter
multidisciplinar e interinstitucional que, contando com a efetiva participao
da comunidade indgena Nambikura, venha dirimir os danos decorrentes do
empreendimento em questo. Sugeriu-se Funai que esse PCA Nambikura
fosse elaborado levando-se em considerao a necessidade de programar aes
que viabilizem o enfrentamento dos nambikuras aos problemas que iro
ocorrer, mas no cabe estabelecer no PCA Nambikura programas em curto
e mdio prazo apenas para mitigar e compensar os nambikuras quanto aos
impactos decorrentes do PSF, contemplando aes que forneam alternativas
econmicas sustentveis e de baixo impacto ambiental.
O detalhamento das diretrizes bsicas do PCA Nambikura deve ser um
processo dinmico na busca da constituio dos instrumentos de governana,
sob a responsabilidade da Funai e do Ministrio Pblico Federal, com
participao ativa dos indgenas. Alm disso, todos os subprogramas a serem
propostos devem considerar a demanda dos prprios nambikuras. Observa-se
que as lacunas desse processo esto pautadas na ausncia de governana, sem
a qual dificilmente conseguir serem definidas as competncias dos diferentes
rgos responsveis pela fiscalizao e implementao de polticas pblicas
em terras indgenas. Todas essas questes esto relacionadas aos conflitos de
competncia, bem como s diferentes vises sobre projetos de desenvolvimento
para os povos indgenas.
Por fim, ao considerar que as TIs so bens da Unio destinados ao
usufruto exclusivo dos ndios que tradicionalmente a ocupam, e sendo esse
usufruto estendido as riquezas naturais do solo, rios e lagos existentes em
suas terras, assim como as jazidas minerais, cujo aproveitamento autorizado
Variaes intertnicas:
366 etnicidade, conflito e transformaes
ARQUIVOS digitais Cedidos pela Santa Elina Desenvolvimento Mineral S/A. Projeto
de Controle Ambiental do Ramal de Distribuio Rural de 34,5 kv/ mina So
Francisco- Valdir Akihiko Nakazawa; Relatrio de Monitoramento da Ictiofauna de
cursos de gua na rea de influncia do Projeto So Francisco, Minerao Santa Elina
- Francisco de Arruda Machado.
Captulo 15
A identificao de terras indgenas como objeto de
investigao antropolgica
Rodrigo Pdua Rodrigues Chaves
Introduo
Abordo de forma sinttica neste captulo trs artigos com os quais julgo
importante dialogar, todos publicados na coletnea Indigenismo e Territorializao
e que detalharei a seguir. A relevncia deles reside na forma como analisam
diversas instncias de poder, o cotidiano da ao administrativa e as estru
turas de conhecimento que suportam a prtica indigenista em processos
de territorializao. feita a comparao entre a produo de relatrios
de identificao nos ltimos anos e o contexto no qual eram produzidos
anteriormente, que foi descrito de forma seminal no trabalho de Oliveira e
Almeida, baseado em uma etnografia conduzida pelos dois pesquisadores nos
arquivos e no cotidiano da Fundao Nacional do ndio (Funai), em Braslia,
durante aproximadamente 60 dias, de novembro de 1984 a janeiro de 1985
(OLIVEIRA; ALMEIDA, 1998, p. 69). Passados 20 anos de sua pesquisa,
cabe averiguar se e em que medida ocorreram mudanas no procedimento de
regularizao fundiria, que foi analisado tambm por Lima (1998).
Estudos precedentes
Oliveira e Almeida (1998, p. 70) apontam a heterogeneidade dos
documentos que, na poca de sua pesquisa, provocaram a abertura dos processos
de identificao de reas indgenas1 e ressaltaram o carter emergencial das
aes empreendidas pela Funai, pois, segundo eles, as iniciativas do rgo
sempre se configuravam como uma resposta a uma situao de emergncia,
caracterizando uma lei de funcionamento da Funai, resumida na mxima a
Funai s atua sob presso.
1
Conforme j colocado anteriormente, o Decreto n 22/1991 determinou a substituio da deno
minao rea indgena por terra indgena.
A identificao de terras indgenas
como objeto de investigao antropolgica 371
Em parte, devido aos ecos da crtica dos autores, ao longo dos anos,
alguns setores da Funai procuraram estabelecer regras de ordenamento das
demandas fundirias como o Departamento de Identificao e Delimitao
(Deid), que na esteira do Projeto Integrado de Proteo s Populaes e Terras
Indgenas da Amaznia Legal (PPTAL), estabeleceu critrios de prioridade, de
forma a ordenar as terras indgenas a serem identificadas, pois o oramento
da Funai insuficiente para dar conta de toda demanda fundiria existente.
Dessa forma, as terras indgenas eram classificadas segundo a pontuao que
alcanassem a partir de dois eixos bsicos: existncia de ameaas integridade
territorial e integridade fsica e cultural do grupo. No documento que trata dos
resultados do grupo executivo criado2 com o objetivo de estabelecer critrios
que permitam classificar as terras indgenas (TI) a identificar segundo seu grau
de prioridade, afirma-se que um esforo desse tipo j havia sido desenvolvido
na formulao do PPTAL no incio dos anos de 1990. Durante as negociaes
entre o Governo brasileiro e os doadores internacionais, aps a apresentao
de uma listagem de terras a serem identificadas e demarcadas, foi exigido
o estabelecimento de critrios que permitissem planejar as aes visando
definio de metas e ao seu cumprimento.
Um grupo de tcnicos da Funai, composto pelo ento chefe do
Departamento de Identificao e Delimitao (Deid), pela coordenadora
da Coordenao-Geral de Projetos Especiais (CGPE), pelo coordenador
da Coordenao-Geral de Estudos e Pesquisas (CGEP), acrescido de dois
consultores externos, definiu os critrios de classificao que passaram a vigorar
para as TIs situadas na Amaznia Legal. O estabelecimento desses critrios pautou-se
pela opo de intervir prioritariamente em reas de conflito, em que as terras e as populaes
indgenas estivessem francamente ameaadas por alguma forma de expanso da sociedade
nacional fixao de ncleos urbanos, projetos de desenvolvimento, abertura
de estradas, explorao madeireira ou garimpeira e projetos de colonizao
agrcola.
O trecho em destaque aponta para uma formalizao do critrio informal
do administrar por crises, na medida que a interveno da Funai for realizada
prioritariamente em reas de conflito.
2
O Grupo Executivo foi criado em janeiro de 2001 pelo, ento, chefe do Departamento de
Identificao e Delimitao (Deid), Marco Paulo Fros Schettino, e era composto por: Eduardo
Barnes, Juliana Gonalves Melo, Kelerson S. Costa, Leila Sotto Maior, Luiz Fernando Souza,
Rodrigo Pdua Rodrigues Chaves e pela estagiria Graziela Rodrigues de Almeida. O grupo analisou
51 TIs que foram distribudas em oito nveis de prioridades. O relatrio do GE aponta que 27 TIs
situaram-se no nvel de prioridade 1, o que superava o nmero de TIs a serem identificadas pelo
Deid em 2001, ou seja, 25 TIs.
Variaes intertnicas:
372 etnicidade, conflito e transformaes
O terceiro fator parece ainda atual, uma vez que, mesmo com o incre
mento do perodo de permanncia em campo e do prazo para a entrega do
relatrio pelo antroplogo, algumas das normas de funcionamento da equipe
efetivamente afetam as condies de realizao do trabalho do antroplogo.
Algumas tentativas foram realizadas no sentido de mandar o antroplogo a
campo antes dos demais membros da equipe, conforme sugerido pelo Manual
do Antroplogo, inclusive preservando, em tese, as caractersticas do trabalho
antropolgico. Mas na maioria dos casos no isso que acontece.
Ainda segundo Oliveira e Almeida, a demarcao seria percebida como uma
ao neutra, no comprometida com as partes, e executada friamente por rgos
governamentais que visam acabar com os litgios. Tal aspecto pretensamente neutro
sustentaria a nfase em uma representao tcnica e objetiva da demarcao,
restringindo a participao mais ativa dos ndios, que seria tida como acessria,
servil e remunerada (OLIVEIRA; ALMEIDA, 1998, p. 107).
O artigo de Oliveira e Almeida constitui, assim, uma tentativa de reflexo
sobre certo conjunto de atos administrativos, considerados como fenmenos
sociais e polticos, na expectativa de ajudar os membros da instituio a en
xergar novas articulaes entre eventos, cargos, rotinas, tradies e valores, a
partir da perspectiva analtica dos autores, que pretendem influenciar a prtica
administrativa.
O interesse de Lima pelo estudo da identificao surgiu a partir da
leitura do artigo de Oliveira Filho e Almeida, supracitados, e da escolha das
portarias de designao de GT da Funai para o trabalho de arquivamento inicial
do Projeto de Estudos sobre Terras Indgenas (Peti). A partir de um quadro
analtico, afirma o autor, pretendia-se realizar uma sociologia das identificaes,
procurando mapear uma srie de questes (LIMA, 1998, p. 172)3.
No artigo que trata da identificao como categoria histrica, Lima
procura reconstituir como se configura o processo pelo qual um GT realiza
uma investigao in loco sobre o espao que ocupa um contingente indgena
especfico (LIMA, 1998, p. 171). Lima delineia as principais suposies do
trabalho de identificao, com destaque especial para a configurao da ideia
de consenso histrico e para as diversas concepes sobre a relao entre os
ndios e a terra, vigentes em diferentes perodos histricos.
3
Lima afirma que a partir de um quadro concebido por Oliveira Filho e Almeida (Captulo 3),
pretendia-se realizar uma sociologia das identificaes, procurando mapear os atores envolvidos,
as reas identificadas segundo a regio e o ano, as fontes de financiamento, as normas gerais
vigentes para cada perodo, as regies privilegiadas etc. (LIMA, 1998, p. 172).
A identificao de terras indgenas
como objeto de investigao antropolgica 375
4
De fato, Lima afirma que ir tratar da descrio desse gnero de documento, isto , de sua dimenso
textual em que (...) muitas das limitaes e inconsistncias de um dado tipo de atividade exercida
(tambm) por antroplogos assoma e equaciona-se. Sugiro que tais problemas simultaneamente
virtudes especficas do gnero so reveladores de alguns aspectos do desenvolvimento tanto da
disciplina Antropologia no Brasil como da histria do indigenismo (LIMA, 1998, p. 223).
A identificao de terras indgenas
como objeto de investigao antropolgica 377
A cooperao internacional
O Projeto Integrado de Proteo s Populaes e Terras Indgenas
da Amaznia Legal (PPTAL) um subprograma do Programa-Piloto para a
Proteo das Florestas Tropicais do Brasil (PPG-7). Ludmila Moreira Lima
(2000) historia o PPG-7 desde 1990, quando por ocasio da Reunio de Cpula
de Houston, chefes de estado e o Grupo dos Sete (G-7), por meio do chanceler
alemo Helmut Kohl, declararam inteno em apoiar um programa voltado
para a reduo da taxa de desmatamento das florestas tropicais brasileiras
(LIMA, 2000, p. 103). A partir de ento, iniciaram-se as discusses entre
representantes do Governo brasileiro, do Banco Mundial (Bird) e da Comisso
Europeia, com o objetivo de delinear o desenho inicial do programa. Dessa
forma, constituiu-se o Programa-Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais
do Brasil: um conjunto integrado de projetos voltados fundamentalmente para
a Regio Amaznica, como tambm para a proteo das florestas do Sudeste
A identificao de terras indgenas
como objeto de investigao antropolgica 379
5
Posteriormente, o projeto foi prorrogado por 2 anos e depois por mais 2 anos.
Variaes intertnicas:
380 etnicidade, conflito e transformaes
6
No edital n 1 Funai-Cespe, de 10 de maro de 1997, a Funai divulgou a realizao de processo
seletivo simplificado para a contratao de profissionais em regime de contratao temporria por
12 meses (que acabaram sendo prorrogados por mais 12 meses, posteriormente). As vagas a
serem preenchidas (nem todas foram) se encontravam assim distribudas: Nvel superior 53 vagas
- administrador: 1 (DF); analista de sistemas: 3 (DF); antroplogo: 17 8 (DF), 2 (PA), 2 (RS), 5 (AM);
arquivista: 2 (DF); economista: 1 (DF); engenheiro agrimensor: 5 3 (DF), 1 (PA), 1 (AM); engenheiro
agrnomo: 7 3 (DF), 1 (PA), 1 (MT), 1 (RS), 1 (AM); engenheiro florestal: 6 (DF); gegrafo: 3 (DF);
gelogo: 1 (DF); historiador: 3 (DF); socilogo: 2 (DF); advogado: 2 (DF). Nvel mdio 31 vagas -
desenhista: 3 (DF); operador de computador: 5 (DF); programador de computador: 3 (DF); tcnico
agrimensor: 6 2 (PA), 1 (MT), 3 (AM); tcnico agrcola: 10 3 (DF), 2 (PA), 1 (MT), 1 (RS), 3 (AM);
tcnico de arquivo: 4 (DF). Eram, portanto, 84 vagas a serem preenchidas.
Variaes intertnicas:
382 etnicidade, conflito e transformaes
A questo ambiental
A preocupao com a caracterizao e a gesto ambiental das terras
indgenas ganhou espao na dcada de 1990 que no existia no perodo
analisado por Lima. Os relatrios de identificao aps o Decreto n 1.775
de 1996 e a Portaria n 14 de 1996 devem obrigatoriamente caracterizar as
reas imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios ao
bem-estar da comunidade indgena, e trazer o relatrio ambiental como pea
anexa imprescindvel. Apesar de o referido decreto tambm determinar, alm
dos estudos ambientais, cartogrficos e o levantamento fundirio, outros de
natureza etno-histrica, sociolgica e jurdica, tais estudos no so viabilizados
por meio da contratao, salvo em honrosas excees, de historiadores, soci
logos ou profissionais da rea jurdica, o que demonstra a relevncia crescente
das questes ambientais no perodo enfocado.
As discusses sobre a elaborao de relatrios de identificao ganha
ram maior flego aps a publicao do Decreto n 1.775, de 8 de janeiro
de 1996, quando, ento, a Funai abriu a possibilidade aos no ndios de
contestar administrativamente os trabalhos de identificao, aumentando a
preocupao com a qualidade tcnica dos relatrios de identificao. Na esteira
dessas discusses, em 1997, o PPTAL elaborou um Manual do antroplogo e,
posteriormente, um Manual do ambientalista7, nos quais so descritos vrios
procedimentos a serem observados pelo antroplogo e demais integrantes de
um GT, ao identificarem uma terra indgena.
7
Na verdade, das diversas verses desses documentos, a denominao variou: Roteiro Metodolgico
expedito para o atendimento das necessidades imediatas de caracterizao ambiental de terras
indgenas como subsdio ao processo de sua demarcao, verso preliminar de Lucio C. Bed,
da Fundao Alexander Brandt, foi uma das primeiras, de junho de 1996, tendo sido apresentado
como Manual de orientao para o levantamento, anlise e apresentao dos dados sobre meio
ambiente, pelo Departamento de Identificao e Delimitao (Deid). Em setembro de 1997, aps
o seminrio supramencionado, o documento reaparece totalmente modificado como Reviso da
proposta preliminar de estudos de levantamento ambiental, apresentado pelo PPTAL. Com relao
ao manual do antroplogo, surge inicialmente como Procedimentos para a identificao de terras
indgenas Manual do antroplogo-coordenador (proposta 1 verso 10/10/1997).
A identificao de terras indgenas
como objeto de investigao antropolgica 383
refere-se aos relatrios de identificao, forma e clareza que ele deve ter,
necessidade de traduzir o discurso antropolgico para os termos do discurso
jurdico e demais resultados da identificao o resumo, o memorial descritivo
e o mapa de delimitao.
Ao confrontar os dois documentos, percebe-se que a importncia do
relatrio de identificao ressaltada, visto que os estudos ambientais so
tratados como estudos complementares, que devem servir de subsdio ao
trabalho do antroplogo-coordenador do GT.
Em relao ao Manual do Antroplogo, outro entrevistado afirma que
ele de grande utilidade, pois existe deficincia na formao acadmica dos
antroplogos que seria em parte sanada pela aplicao do manual:
Figura 1 - GTs constitudos - 1988-2003.
o que de fato ocorreu do que aqueles sobre o prazo para a entrega do relatrio,
pois, em geral, os prazos para a permanncia em campo so cumpridos pelos
GTs, com as seguintes excees: GTs que apesar de constitudos no foram
a campo; GTs que tiveram problemas em campo e tiveram de abandonar os
trabalhos antes da concluso; ou GTs que concluram os trabalhos antes do
prazo estabelecido. As prorrogaes de prazo para a realizao dos trabalhos
em campo constam de portarias do presidente da Funai e foram somadas ao
prazo determinado originalmente.
Oliveira e Almeida apontaram algumas condies desfavorveis ao
exerccio da prtica antropolgica, mas importante lembrar como os autores
ressaltam o limitado perodo de campo como um dos principais, o que indicaria
uma concepo de trabalho de campo distinta daquela das Cincias Sociais.
Na verdade, tal atividade mais se aproxima da concepo que gegrafos,
agrimensores e topgrafos tm sobre trabalhos de campo do que com o seu
significado nas Cincias Sociais e, mais particularmente, em Antropologia. A
curta durao do contato com o grupo indgena, juntamente com as praxes
j estabelecidas dos GTs, fazem com que o antroplogo no disponha das
condies mnimas de controle sobre a coleta de dados, nem possa ajustar os
seus meios de observao s caractersticas culturais e ao contexto histrico.
Nesse quadro, o trabalho de campo antropolgico parece inteiramente invivel,
as tentativas de execut-lo dificilmente ultrapassam as boas intenes e, de fato,
mais se aproximam da ideia de uma visita de rea, expresso que surge algumas
vezes na documentao, enfatizando pesquisa direcionada com a finalidade
definida por portaria e com previso de prazo bastante limitado (OLIVEIRA;
ALMEIDA, 1998, p. 85).
Reforando essa afirmao, importante ter em mente a ressalva feita
por Silva de que, em relao aos estudos de identificao e delimitao:
Falar em trabalho de campo ou levantamento de campo, nesse caso, um
eufemismo, pois a ideia antropolgica de campo enquanto campo de pesquisa
ou etnografia se encontra aqui reelaborada e ajustada aos termos e demandas
do rgo indigenista (SILVA, 2002, p. 3).
8
Traduo livre, no original: Rarely has a Brazilian ethnographer spent a whole continuous year in
the field. The reasons for this are various, but we can mention three: limited funds, restrictions
regarding absence from jobs, and the field-in-our-backyard syndrome. Ela continua: We might
say that doctoral candidates are nowadays the only ones with the time, disposition, and possibility
(even the obligation) to spend about a year doing fieldwork. But this is of recent date, since the
creation of doctoral programs in anthropology, especially at the National Museum in Rio de Janeiro,
and at the University of Braslia.
Variaes intertnicas:
392 etnicidade, conflito e transformaes
9
Traduo livre, no original: It is astonishing, but true, that most leading departments of anthropology
in the United States provide no formal (and very little informal) training in fieldwork methods as
few as 20 percent of departments, according to one survey. It is also true that most anthropological
training programs provide little guidance, and almost no critical reflection on, the selectionof
fieldwork sites and the considerations that deem some places but not others as suitable for the
role of the field.
A identificao de terras indgenas
como objeto de investigao antropolgica 393
se dedica, o relatrio no sai. Eu acho que tem uns defeitos que precisam ser
corrigidos, eu acho um tempo muito longo, muito ruim, porque voc deixa
passar a questo da observao e ela determinante em vrios casos, pelo
menos comigo tem sido (entrevista 1).
Consideraes finais
Das motivaes bsicas para o exerccio analtico desenvolvido na minha
dissertao de mestrado, aponto duas em particular. A primeira diz respeito
importncia dos trabalhos de identificao de TI para as sociedades indgenas
presentes no territrio brasileiro, com implicaes diretas sobre sua vida,
organizao social e subsistncia fsica e cultural, o que indica a relevncia desse
tipo de estudo para a Antropologia. A segunda motivao refere-se ao meu
interesse particular em estudar e refletir sobre um tipo de atividade na qual eu
tive a oportunidade de iniciar minha trajetria profissional como antroplogo
e por meio da qual acompanhei direta e indiretamente uma srie de trabalhos
de colegas, ao longo dos ltimos 10 anos, e os resultados e repercusses que
vrios desses trabalhos tiveram. Dessa forma, a anlise aqui desenvolvida difere
do modo como autores como Lima, Oliveira e Almeida (1998) abordaram a
questo, pois ao contrrio desses autores, pude confrontar minha experincia
com trabalhos de identificao de TI, o acompanhamento de outros trabalhos
e do cotidiano institucional, de forma a refletir sobre uma prtica especfica
requerida de profissionais com formao em Antropologia.
Talvez ainda seja cedo para afirmar que um novo perodo esteja se
delineando, mas atualmente vem ganhando fora algumas articulaes de
setores da sociedade contrrios regularizao fundiria das TIs, tal como vem
se processando atualmente. Nesse sentido, por mais nababescos que paream, os
posicionamentos de figuras como os senadores Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR)
e Delcdio Amaral (PT-MS) indicam que certos setores sociais vm unindo-se
para combater o procedimento administrativo de regularizao fundiria de TI
atualmente vigente, inclusive com a proposio de um projeto de lei por parte
de Cavalcanti o PL n 003 de 2004 e a aprovao de relatrio de Amaral
na Comisso Temporria Externa das Questes Fundirias do Senado Federal.
Ambas as iniciativas visam alterar dispositivos dos arts. 231 e 232 da CF.
As notcias veiculadas pelo senador Delcdio Amaral no site do Senado
Federal so suficientemente claras sobre seu posicionamento em relao
demarcao de terras indgenas, pois visa, entre outras coisas, retirar do
antroplogo a responsabilidade pela elaborao do relatrio que dever, in
clusive, ser submetido aprovao dos demais integrantes dos GTs, que sero:
Variaes intertnicas:
396 etnicidade, conflito e transformaes
10
Conforme colocado anteriormente, a contratao de pessoal por meio de organismos internacionais
foi uma forma encontrada pelo Governo brasileiro para contratar mo de obra sem a necessidade
de realizao de concurso pblico, como determina a CF. O nmero de antroplogos contratados
por essa modalidade corresponde apenas a uma pequena frao do nmero total dos mais diversos
profissionais contratados pelo Governo federal, que se concentram, sobretudo, nos Ministrios da
Sade e do Meio Ambiente.
A identificao de terras indgenas
como objeto de investigao antropolgica 397
Foi uma poca [incio dos anos de 1980] em que o presidente da Funai tinha
ainda a prerrogativa de declarar terra indgena, assinar portaria declarando,
mandando demarcar para no amontoar. A gente mandava para o presidente
[os relatrios de identificao], via malote, ele baixava a portaria e mandava
demarcar. Mudou isso quando na poca criaram o grupo, instncia de deciso
acima da Funai. O decreto que criou o grupo, no sei se foi em 1983 ou 1984,
mas at ento a Funai tinha todo o poder para declarar a terra indgena, para
mandar demarcar (entrevista 2).
Introduo
A experincia de pesquisa que propiciou este trabalho partiu de entrevistas
com antroplogos, lideranas indgenas e artistas indgenas urbanos. Resulta
de uma viagem de campo em Downtown Eastside Vancouver e visa reproduzir
aspectos intersubjetivos de um novo campo de observao etnogrfica, ex
pondo dados preliminares e imagens que permitiram vislumbrar temas e
problemas para pesquisas futuras. Os dilogos com os interlocutores men
cionados possibilitaram reunir informaes sobre como polticas pblicas
na rea de sade, educao, moradia, reconhecimento territorial e tnico so
interpretadas e experimentadas individualmente por uma liderana e um artista
indgena na cidade de Vancouver. As fotografias, por sua vez, revelam outro
discurso, talvez o mais imediato, de expresso da situao histrica vivida pelos
povos indgenas no Canad multicultural.
Este ensaio ser concludo com a formulao de um tema clssico na
Antropologia Social: os emprstimos ou apropriaes culturais e seus modos
de efetivao, tal como ocorre entre indivduos e grupos sociais distintos que
partilham eventualmente de um mesmo espao. Ainda que seja um tema
clssico, esse problema de pesquisa para interpretar as relaes intertnicas
1
As primeiras impresses que subsidiam este ensaio foram obtidas em um estudo de 4 semanas,
de setembro a outubro de 2004, em Vancouver e Montreal e contou com recursos concedidos
pelo Faculty Research Program da Embaixada do Canad no Brasil. Agradeo a Melvin Henry,
pela receptividade nas ruas de Vancouver, e a Don Bain (Ubic) pela apresentao generosa dos
problemas sociais vividos pelos ndios no Canad e suas respectivas estratgias de confronto
poltico e de resistncia. Agradeo ao Dr. Stephen Grant Baines (UnB) pela oportunidade de
apresentar uma primeira verso deste ensaio no Geri. Finalmente, agradeo Dra. Patrcia
Trindade Maranho Costa por suas sugestes de apresentao deste artigo.
Por uma antropologia visual das relaes intertnicas: impresses
sobre a excluso social e a incluso da arte indgena em Vancouver, Canad 403
Don Bain
Figura 4 -Artista indgena, de Vitria, nas ruas de Vancouver. Foto: CTS, 2004.
Figura 7 - Escultura do artista Haida, Bill Reid, exposto no Museu Antropolgico da Universidade
da Columbia Britnica. Foto: CTS, 2004.
Por uma antropologia visual das relaes intertnicas: impresses
sobre a excluso social e a incluso da arte indgena em Vancouver, Canad 411
Figura 9 - Melvin Henry desenhando e recebendo donations em Vancouver. Foto: CTS, 2004.
pobre. Disse que as pessoas so ruins e tratam mal os pobres por no saberem
como so as coisas below here.
Essa rpida troca de informaes e de impresses sugere outro jogo
de linguagem intertnico que no se confunde com o dilogo estabelecido
a partir do campo das organizaes indgenas e da poltica intertnica
do Brasil e do Canad. A definio da situao (GOFFMAN, 1996) se
constri intersubjetivamente pelo controle de informaes e da identidade
pessoal (GOFFMAN, 1988) que Melvin Henry e eu apresentamos na rua,
compreendida como espao pblico, aberto e livre para interaes impessoais
e passageiras. O dilogo intertnico, nesse caso, d-se pela encenao de
papis prescritos e estereotipados para ndios e brancos na cena multicultural
canadense, isto , Melvin Henry atua como First Nation, vinculando a sua
autorrepresentao imagens de exotismo, resistncia, liberdade, opresso,
pobreza, desprendimento, espiritualidade etc. Eu atuo como antroplogo,
vinculando minha autorrepresentao imagens de benevolncia, tolerncia,
superioridade, abertura etc. Dramatizamos, em pequena escala, o jogo
assimtrico das relaes intertnicas da sociedade canadense que pode ser
percebido em larga escala quando contraposto ao discurso imagtico em torno
da arte indgena interpretada pelas crticas mencionadas por Don Bain acerca
da poltica oficial para ndios no Canad.
Figura 11 - Painel indgena na recepo do Royal Bank of Canada, em Vancouver. Foto: CTS,
2004.
Variaes intertnicas:
416 etnicidade, conflito e transformaes
Figura 14 - Em primeiro plano, velhos totens. Em segundo, novos totens. Foto; CTS, 2004.
Referncias
Se as pessoas fossem aos museus e apenas olhassem os objetos indgenas, por exemplo, os produtos
macuxis, ou comprassem e fossem embora, as pessoas iam saber que os macuxis existem, mas no
iam saber como a nossa cultura, como que ns falamos, como ns pensamos, como ns vemos o
futuro do nosso povo, ento, tem que explicar como as coisas funcionam (Sobral Andr).
1
Capacidade que tem o ser humano de colocar em prtica uma ideia, valendo-se da faculdade de
dominar a matria. Utilizao de tal capacidade, com vistas a um resultado que pode ser obtido por
meios diferentes. Atividade que supe criao de sensaes ou de estado de esprito de carter
esttico carregados de vivncia pessoal e profunda, podendo suscitar em outrem o desejo de
prolongamento ou renovao.
2
Pessoa que dedica s belas-artes e/ou que delas faz profisso. Pessoa que revela sentimento
artstico.
3
A tcnica, o tirocnio ou a arte do arteso.
4
Artista que exerce atividade produtiva de carter individual. Indivduo que exerce por conta prpria
uma arte, um ofcio manual.
Alm da tcnica
o simblico nas artes indgenas 423
5
Ver especialmente Coli (1995), Bosi (1985), Duarte Jnior (s.d.), Van
Velthem (2003), Formaggio (1985) e Eco (1986).
Variaes intertnicas:
424 etnicidade, conflito e transformaes
6
Ver tambm Laraia (1986) sobre a discusso do conceito de cultura.
Variaes intertnicas:
426 etnicidade, conflito e transformaes
7
Ischnosiphon sp. O arum uma espcie de canio, ou seja, cana delgada.
Variaes intertnicas:
430 etnicidade, conflito e transformaes
8
Barth (2000), ao focalizar as fronteiras entre os grupos tnicos, afirma que estes podem ser vistos
como forma de organizao social e sua caracterstica a autoatribuio e atribuio por outros. Na
medida que os agentes valem-se da identidade tnica para classificar a si prprios e os outros para
propsitos de interao, eles formam grupos tnicos em seu sentido de organizao.
9
Termo bastante utilizado no discurso do movimento indgena para definir os no ndios.
Variaes intertnicas:
432 etnicidade, conflito e transformaes
10
Arte e artefato so, neste texto, referidos como a mesma coisa.
11
Ver tambm Howard (2002) e Van Velthem (2000, 2002, 2003).
Alm da tcnica
o simblico nas artes indgenas 433
12
Para ir alm de uma monografia, este trabalho teve como objetivo maior dar apoio continuidade
das formas de expresso artsticas por meio de aes como, por exemplo, a elaborao de uma
exposio para sensibilizar e informar (com a elaborao de material didtico de interesse da
comunidade). Esse material foi feito com documentao iconogrfica e contextualizao dos
objetos artsticos, o que, quem sabe, poderia proporcionar aos ndios a oportunidade de um
renascimento de suas artes milenares. A exposio ocorreu na Casa da Cultura da Amrica Latina
(CAL), rgo vinculado ao Decanato de Extenso da Universidade de Braslia, Braslia, de 8 de
junho a 2 de julho de 2006.
Variaes intertnicas:
434 etnicidade, conflito e transformaes
abrigar-se, para poder lutar contra os inimigos e para traficar, fazer msica
e ter divertimentos, em resumo, todos os dados concretos de uma cultura.
No trabalho de campo, realizado em Braslia, obteve-se algumas informaes
sobre peas indgenas dos colaboradores dos seguintes grupos tnicos: Macuxi,
Pankararu e Kalapalo. Essas informaes sero utilizadas como instrumentos
de contextualizao do patrimnio material resguardado e conservado pela
Casa da Cultura da Amrica Latina.
Neste tpico sero apresentadas fotos das peas do acervo com as
explicaes tcnicas e simblicas dadas pelos colaboradores da pesquisa, com
posterior levantamento de comentrios a partir disso.
As referncias sobre as culturas dos grupos tnicos, aqui colocadas, no
tm o interesse em compar-las, pois esses grupos tm culturas totalmente
diferentes. Esto juntos apenas para comparar a participao de seus artefatos
em museus.
Figura 1 -
Tutumai vassoura.
Etnia: kalapalo
Acervo: Casa da Cultura
da Amrica Latina UnB
Foto: Katianne Almeida,
2006.
Essa vassoura feita com cip-titica tanto pelos homens quanto pelas
mulheres, contudo as mulheres se encarregam mais dessa tarefa. As mulheres
tiram o cip na mata, preparam-no e depois fazem a vassoura que, para ns,
tem o nome de tutumai (Figura 1). A trana da vassoura pode ser feita com o
cip seco, mas deve ser molhada na gua para no quebrar (SOBRAL ANDR,
Braslia, 3/12/2004).
Nessa parte do depoimento observa-se que por meio da descrio da
pea se tem informaes sobre a diviso do trabalho no grupo Macuxi, sendo
preferencialmente reservada s mulheres a confeco da vassoura.
Alm da tcnica
o simblico nas artes indgenas 435
Existe uma poca de tirar o cip da mata. A gente tira na noite escura,
porque se a gente tira na noite clara ela fica muito fraca, e a, no serve pra
tranar, ela quebra muito fcil (SOBRAL ANDR, Braslia, 3/12/2004).
A lua aqui exerce papel crucial na fabricao da vassoura, tendo o astro
como referncia para saber se a pea ser utilizada ou perdida. O simbolismo da
noite clara ou da noite escura, ento, funciona como organizador do trabalho.
Os mitos e smbolos so aspectos que fundamentam a cosmologia dos povos
indgenas e seus comportamentos so mediados por esses princpios. Conforme
Ribeiro (1983), o artesanato indgena tem contedos de ordem ecolgica,
tecnoeconmica, esttica e estilstica, ritual-religiosa, educativa-socializadora
(p.12).
Sobral Andr descreve a confeco da vassoura e as crenas associadas
a ela:
A vassoura feita assim: amarra-se o meio e deve ter o mesmo tamanho pra
cima quanto para baixo. Na parte de cima tambm se amarra e a vai dobrando,
quando chega ao meio, separa-se a parte que dobrou para fazer a trana. A
trana em cima dessa vassoura chama-se couro de jacar e a trana do meio
chamada couro de cobra. Para buscar o cip na mata (em Macuxi o cip
chamado pun) necessrio estar preparado. Essa preparao pode ser
feita pelo maruai (processo de defumao). No maruai tem oraes e canto,
ou, ento, a preparao feita com as pinturas corporais, com urucum, por
exemplo, preparado e benzido pelos mais velhos os xams. A pessoa que vai
buscar o cip pinta-se e a j est pronta para ir. Essa preparao serve para no
se perder, para encontrar o cip, para proteger de cobra, para o cip ser bom
para tranar e no quebrar fcil. A preparao tambm importante para que
o protetor dono da mata e do cip te reconhecer ou no fazer nada contra
voc, que vai retirar o cip, ou at para evitar que o dono da mata estrague sua
trana (SOBRAL ANDR, Braslia, 3/12/2004).
relao dos macuxis com o seu espao e com os seres mgicos. Lopes (2003, p.
1) afirma que os artefatos so produtos de uma histria que refletem valores,
costumes e tradies reconhecidos pelo grupo, imprimindo as marcas tnicas
a cada objeto produzido.
Acrescentando argumentos ao que est sendo dito, Marcos Terena
afirma que algumas lideranas indgenas e outros articuladores que lutam em
prol da melhora da qualidade de vida dos povos indgenas desenvolvem um
trabalho de demonstrao das artes indgenas em alguns museus no como um
artigo extico, mas como um saber. Esse saber privilgio de poucos, pois no
todo ndio que sabe fazer flecha, por exemplo, e no todo ndio que sabe
fazer coc. Sendo assim, o trabalho dessas lideranas, e que deveria ser tambm
dos museus, mostrar que a arte indgena no s para enfeitar um cenrio, ela
tem que ser respeitada como uma simbologia, porque para o povo indgena a
pea representa uma arte, representa uma identidade, ela tem algo a comunicar.
Figura 2 -
Prai roupa de ritual.
Etnia: Pankararu
Acervo: Casa da Cultura
da Amrica Latina UnB
Foto: Katianne Almeida,
2006.
Essa uma roupa sagrada o prai (Figura 2). Essa roupa feita com
cro e essa fibra s tem l no Nordeste. Ela tecida, ou encontrada desse jeito,
preparada para ritual de sacramento. Tem toda uma preparao, desde tirar o
material da planta, lavar, bater, secar pra poder chegar nesse efeito que est aqui
(DIMAS DO NASCIMENTO, Braslia, 12/11/2004).
Alm da tcnica
o simblico nas artes indgenas 437
Figura 3 -
Kwamb mscara.
Etnia: Kalapalo
Acervo: Casa da Cultura da
Amrica Latina UnB
- No faa isso! Eu sei que seu nome Irito. Eu sei que sua esposa no
quer voc.
Variaes intertnicas:
440 etnicidade, conflito e transformaes
Figura 4 -
ri (banco kalapalo).
Etnia: Kalapalo
Acervo: Casa da Cultura
da Amrica Latina
UnB
Foto: Katianne Almeida,
2006
os kalapalos fazem esse banco em lembrana do urubu gigante que foi visto
(MILTON KALAPALO, Braslia, 30/1/2006).
Nesse contexto, podemos entender o que Jeudy (1990) quis dizer ao
afirmar que o objeto, a imagem e o relato so os meios essenciais de investimento
e tratamento da memria. Uma vez que o patrimnio tradicional assegura a
reproduo da ordem simblica das sociedades, as relaes entre o objeto, a imagem
e o relato encontram sua harmonia e finalidade na manuteno dos smbolos.
Figura 5 -
Reflexes finais
A discusso sobre a arte indgena, sua utilidade e o que est alm disso,
com certeza no se encerra aqui. Este trabalho, assim como outras etnografias,
prope mostrar que existe uma articulao entre a ordem social, a ordem
Variaes intertnicas:
444 etnicidade, conflito e transformaes
VAN VELTHEM, L. H. Feito por inimigos. Os brancos e seus bens nas representaes
Wayana do contato. In: ALBERT, B.; RAMOS, A. R. Pacificando o branco:
cosmologias do contato no norte-amaznico. So Paulo: Unesp, Imprensa Oficial do
Estado, 2002.
VAN VELTHEM, L. H. O belo a fera: a esttica da produo e da predao entre os
Wayana. Lisboa: Assrio & Alvim, 2003.
VIVES, V. de. A beleza do cotidiano. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. (Org.). Memria
e patrimnio: ensaios contemporneos. Rio de Janeiro: DP&A, 1983.
Entrevistas
ANDR, Sobral. Entrevista concedida a Katianne de Sousa Almeida. Braslia, 03 de
dezembro de 2004.
Introduo
Os gneros musicais
Estudar os gneros ou estilos musicais no significa estudar apenas a
msica em si. Um gnero musical, como os praticados pelos Kalunga, est
envolvido com uma srie de valores sociais, parmetros musicais, estticos,
religiosos e culturais, contextos locais, familiares e geracionais. So para esses
contextos que circundam a msica, e o fazer musical, que minha ateno vai
se dirigir.
A noo de gnero musical usada frequentemente em estudos
etnomusicolgicos como uma forma de classificao dos estilos musicais, de
modo a organiz-los e esquematiz-los para fins de anlise. Essa classificao,
no entanto, sempre determinada a partir de uma definio nativa de gnero
musical. Ana Maria Ochoa considera que a prpria classificao em gneros
musicais pode ser problemtica. A autora d o exemplo da salsa, que um
termo que designa, na verdade, vrios subgneros musicais e, portanto, a
prpria definio em um gnero musical pode ser conflitiva (OCHOA, 2003,
p. 85).
A nfase para a classificao dada na construo histrica das categorias
e no pertencimento cultural. A aceitao e os padres de definio de um
estilo so construdos cultural e ideologicamente. O que ocorre, na verdade,
um processo em que os estilos musicais (cultural e historicamente aceitos)
adquirem novos significados, de acordo com novos processos histricos e
culturais, ou at novos estilos passam a ocupar um espao que pertencia a
Um estudo das transformaes musicais
e festivas entre os kalunga de Teresina de Gois, Brasil 455
outros estilos. Esse processo tambm ocorre na rea Kalunga, onde existem
at estilos musicais que entram em conflito entre si, como no caso da sussa e
do forr entre os Kalunga.
Os gneros musicais no so estticos, pois eles vo adquirindo
caractersticas e at normas rigidamente estabelecidas. Ochoa considera que
um gnero musical aceitvel est relacionado em parte com a maneira com
que se constituiu historicamente e determina no s um marco esttico de
definio sonora como tambm um marco de valores do prprio gnero
(OCHOA, 2003, p. 86).
A sussa exemplifica de forma bem clara essa caracterizao de Ochoa, pois
est passando por uma crise de transmisso em termos de gerao. H valores
fortemente associados com sua prtica e inter-relacionados com outros valores da
comunidade, porm, esses valores so aceitos e praticados principalmente pelas
pessoas mais velhas do grupo. Essas pessoas mais velhas denunciam que os jovens
tm comportamentos inadequados para seus parmetros, em termos sociais e
musicais. Ao invs da sussa, o interesse dos jovens para o forr, portador de
uma esttica bem diferente que est relacionada a padres de comportamento
tambm bastante diversos dos da poca da sussa.
Os gneros musicais consolidam-se apenas quando so aceitos por uma
comunidade e quando so definidos os limites de um comportamento musical
apropriado, portanto, na arena musical podem ser registradas transgresses e
oposies. Essas oposies e transgresses podem ser verificadas em alguns
aspectos da sussa e em outras manifestaes musicais e religiosas, porm esses
conflitos indicam que est havendo mudanas de valores e de padres, que, por
sua vez, criam novos limites de comportamentos musicais apropriados, como
nos mostra Ochoa:
La construccin de una categora genrica se d a travs de un proceso de eliminacin de la
diferencia a favor de la semejanza y dicho proceso es siempre esttico e ideolgico. La historia
del surgimiento de la idea de gnero como concepto unitario est en parte ligada a la historia de
homogeneizacin cultural emprendida a travs del estado-nacin. Por tanto, en la descripcin
genrica van a intervenir no slo elementos de orden esttico sino tambin elementos de orden
ideolgico que frecuentemente determinan los modos de cmo se habla de los mismos gneros
musicales (OCHOA, 2003, p. 87).
O que ocorre, segundo a autora, uma tendncia a arraigamento em
certo lugar concreto e a busca por uma suposta continuidade com o passado.
Essas tendncias so tidas por algumas comunidades como elementos que
definem o valor do gnero musical: Esto quiere decir que el estudio de asuntos
Variaes intertnicas:
456 etnicidade, conflito e transformaes
A sussa
A sussa mencionada de forma muito carinhosa pelas pessoas mais
velhas da comunidade, principalmente pelas mulheres. H uma referncia
muito forte memria afetiva dessas mulheres, j que a transmisso cultural da
sussa (ou era) familiar. Elas geralmente aprendiam a sussa com a me, a av
ou a tia: aprendi a danar sussa com minha v, pois aquele tempo tinha mais
era sussa, mas o povo danava sussa da boca da noite at o sol raiar, mas era
sussa mesmo, era sussa mesmo e at hoje tenho saudade da minha sussinha
(D. Sinsia).
A sussa tocada geralmente pelos mesmos msicos da folia. Os
instrumentos usados so o violo, a caixa e a buraca (ou bruaca). A buraca
um caixote de couro, semelhante a um ba ou uma mala, com duas alas na
parte superior. Ela usada tradicionalmente e ainda hoje, em vrias localidades
Kalunga, para transporte nos cargueiros. colocada em cima do burro ou
cavalo uma cangaia (espcie de arreio de madeira, revestido com panos) com
duas extremidades salientes, nas quais foram penduradas as buracas, uma de
cada lado do animal. Para ser tocada, vira-se a buraca ao contrrio, com a
abertura para baixo. Uma mulher agacha-se e bate a buraca em ritmo de sussa.
A dana da sussa, da forma como descrita pelas mulheres mais velhas,
o maior demonstrativo da antiga complementaridade entre os sexos. A sussa
o nico gnero musical em que a presena da mulher como instrumentista
prevista, pois bater a buraca uma tarefa feminina. O homem batia a caixa e a
mulher batia a buraca e ambos danavam a sussa at recentemente. Tanto os
homens como as mulheres cantam a sussa, mas h um repertrio mais masculino
Um estudo das transformaes musicais
e festivas entre os kalunga de Teresina de Gois, Brasil 459
das novas e duas das velhas, assim no, ns no danamos sussa assim no.
As mulheres daqui no gostam de danar, aprenderam sussa agora, de pouco
tempo para c (D. Sinsia).
O Vo de Almas sempre mencionado como o lugar em que se sabe
danar a sussa, onde at as jovens sabem danar a sussa:
Eu cantava e danava, agora a sussa acabou. Mas era bom demais. Eu sei contar
o que a sussa, mas hoje no. Hoje at a dana da sussa eles mudaram porque
a sussa feita rodando que nem engenho, hoje no, hoje assim: (comea a
pular). No tinha isso, se voc observar as mulheres do Vo de Almas para
danar uma sussa para voc ver, voc fica besta (D. Sinsia).
No olhar dessas mulheres, o Vo de Almas contrasta com Diadema (e as
outras localidades prximas ao municpio de Teresina de Gois), assim como a
sussa contrasta com o forr. O Vo de Almas invocado como o lugar em que
as coisas ainda so como eram, a sussa usada como um termmetro para toda
a situao social atual. Quando D. Sinsia diz: Hoje at a dana da sussa eles
mudaram. Ela est referindo-se para uma srie de mudanas que chegaram a
afetar at o que era mais singular para eles: a sussa.
O forr
Se as pessoas mais velhas tm uma relao prxima com a sussa, o
interesse dos jovens com relao ao forr. O forr danado pelos Kalunga
trazido da cidade, tocado no som mecnico ou por msicos de fora. Enquanto a
sussa feita por eles e de conhecimento deles, o forr vem pronto, assim como
muitos produtos industriais com os quais os Kalunga tm contato atualmente.
O forr que tocado nas festas dos Kalunga, pelo menos nas que
presenciei, no o forr nordestino que as pessoas identificam nas grandes
cidades como sendo forr. O que eles reconhecem como forr um ritmo
brega, tambm tocado em algumas regies do Nordeste do Pas, onde so
ouvidas tambm algumas msicas sertanejas de ritmo mais acelerado, que so
tocadas pela grande mdia.
Durante toda a festa, antes de comear o forr no rancho, muitos jovens
vinham perguntar se eu sabia danar forr, se eu gostava de forr, mostrando
que a expectativa deles em relao ao momento dessa dana era grande (ao
contrrio da minha prpria expectativa, voltada para a sussa).
O forr tocado no rancho, depois que se acabam todas as cerimnias
da festa e comea j em noite avanada (em torno de meia-noite ou uma hora
Variaes intertnicas:
464 etnicidade, conflito e transformaes
Notas conclusivas
Se, de um lado, o tempo da sussa representa o tempo das terras soltas,
da autossustentabilidade e da produo artesanal, da complementaridade entre
os gneros, do controle dos contatos e da produo simblica, de outro, o
tempo do forr representa o tempo das grilagens, da produo insuficiente
de alimentos e da entrada desordenada de produtos industriais (entre eles
a msica, que passa a ser mais um dos produtos que eles tm acesso), da
perda do equilbrio na relao entre os gneros, da crise de transmisso dos
conhecimentos tradicionais.
Fazendo uso da dicotomia artesanal/industrial, que serve para marcar
dois momentos distintos da comunidade, pode-se dizer que a sussa artesanal
e o forr industrial. Os jovens de hoje usam roupas apertadas, de acordo com
a moda da cidade, e as moas usam cala jeans justa e blusas de lycra de cores
fortes, ao invs da saia, blusa e leno usados por todas as mulheres mais velhas.
Os Kalunga tm vocabulrio muito prprio e uma forma de falar
muito singular. Muitas palavras usadas por eles no so encontradas em
nenhum dicionrio. Esse mais um dos fatores que comprova a forma como
se dava o controle dos contatos. Eles iam ao mundo da cidade, buscavam
e incorporavam diversos elementos culturais dentro de sua lgica prpria.
Mas o mundo da cidade no ia at eles, eles no difundiam os seus elementos
singulares e nem mesmo a sociedade envolvente tinha noo do tamanho da
comunidade.
Agora, a presena de estranhos j to comum que muitos vo s suas
festas: polticos, antroplogos, turistas e pessoas das cidades vizinhas. Suas
msicas, danas e festas passam a ter valor para os de fora, alm do valor que
j tinham para os de dentro. O que antes era s deles e para eles passa a ser
difundido. As festas comeam a adquirir uma estrutura comercial e a ter o
objetivo de represent-los perante os de fora. Muitos, entretanto, no se do
Um estudo das transformaes musicais
e festivas entre os kalunga de Teresina de Gois, Brasil 465
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Variaes intertnicas:
468 etnicidade, conflito e transformaes
Introduccin
El proyecto de Creacin e Investigacin, denominado Aportes a la
Divulgacin y Proteccin del Arte Rupestre Suramericano, que he venido
desarrollando desde hace 5 aos, a travs del Estudio de Campo, en locales
previamente establecidos, realizado hasta el momento en Colombia, Ecuador,
Per, Bolivia, Chile, Argentina, Uruguay, Paraguay, Brasil y posteriormente las
Guyanas y Venezuela, pretende contribuir, desde la ptica esttica y subjetiva
de las Bellas Artes, no solo hacer conocer, algunas transcripciones petroglficas,
en dimensiones reales, de las esculturas lticas en bajo relieve (Petroglifos),
de nuestro Continente, elaboradas por los pueblos pe-colombinos, utilizando
tcnicas artsticas sencillas (Frottages) sino tambin a travs del inventario
iconogrfico, buscando imaginarios identitarios, y contribuir en la sensibilizacin
humana para la preservacin de este legado cultural, mediante conferencias-
conversatorios talleres y coyunturalmente exaltar a los primeros artistas que
tuvo nuestro continente, al lograr exponer sus obras escultricas en Centros
Culturales, Galeras de Arte, Casas de la Cultura, Centros Docentes, a travs de
este mensajero, que sigue las huellas de sus ancestros.
El mencionado proyecto, avalado por la Universidad Nacional de Co
lombia, abarca solamente el Estudio de la vertiente ms numerosa del Arte
rupestre: Los Petroglifos. No pretende suplantar o desconocer el extenso tra
bajo investigativo de las Ciencias mas correlacionadas con este tema, como
son la Antropologa, la Arqueologa y la Historia, soportes fundamentales en el
desarrollo de este macro proyecto.
1
Uma verso desse texto foi apresentada na mesa-redonda Timothy Asch entre os Yanomami no
Forumdoc.BH.2006: 10 Festival do Filme Documentrio e Etnogrfico. Agradeo aos organizadores
do Forumdoc, especialmente ao Paulo Maia, pelo convite para participar dessa mesa, e ao Stephen
Baines pelo convite para expor este trabalho nos seminrios do Geri-UnB.
2
Atkins e Asch (1993, p. 34).
3
Chagnon (1974, p. 261).
Comentrios sobre a Yanomamo Series 483
Naro, as told by Kaobawa; New Tribes Mission; Ocamo is My Town; Tapir Distribution;
Tug-of-War; Yanomamo; Weeding the Garden; Yanomamo: A Multidisciplinary Study
foram montados entre os anos de 1968 e 1976. Yanomamo of the Orinoco veio a
pblico em 1987, constituindo o ltimo filme da srie4.
impossvel refletirmos sobre esses documentrios sem considerarmos
a estreita relao existente entre eles e a obra de Napoleon Chagnon. Essa
srie documental foi idealizada por Chagnon depois da tentativa frustrada de
registrar o cotidiano Yanomami durante sua primeira viagem ao campo, em
19645, e tanto Chagnon como Asch consideram que esses filmes possuem
carter didtico, devendo ser utilizados como material complementar The Fierce
People nas salas de aula6. Na primeira edio de seu livro, em 1968, Chagnon
anuncia para breve o lanamento de um filme etnogrfico que ilustrar o quarto
captulo de seu livro. A segunda, terceira, quarta e quinta edies publicadas,
respectivamente, em 1977, 1983, 1992 e 1997 so acompanhadas das
sinopses de 21 dos filmes de Yanomamo Series e dos endereos do Documentary
Educational Resources e do CPR: Films and Video in the Behavioral Sciences,
responsveis pela distribuio desses documentrios7.
4
Timothy Asch lista mais 11 filmes produzidos por ele e Chagnon, entre os Yanomami, que no
foram includos na srie: Morning Flowers, A Woman Spin Cotton, Hunting Cricket, Children
Making a Toy Hammock, Children Grooming for Lice in front of Dedeheiwas House, Childrens
Evening Play at Patanowa-teri, Children Play in the Rain, Sand Play, Dedeheiwa rests in his Garden,
Kaobawa Trades with the Reyabobowei-teri, Moawa Burns Felled Timber, Young Shaman (ASCH,
1993, p. 8-12).
5
Chagnon (1974, p. 260).
6
Sobre esse assunto, ver Chagnon (1974, p. 260); Asch e Seaman (1993, p. 7).
7
Chagnon exclui desse conjunto Yanomamo of the Orinoco, editado em 1987.
8
Asch (1993, p. 1-2).
Variaes intertnicas:
484 etnicidade, conflito e transformaes
9
Para uma anlise mais detalhada das contradies etnogrficas e tericas da obra de Chagnon, ver
Albert (1985, p. 111-127) e Smiljanic (1995, p. 26-47).
10
Asch (1993, p. 1-2).
Comentrios sobre a Yanomamo Series 485
Yanomamo Series11
A publicao de The fierce people fomentou inmeras controvrsias. As
afirmaes de Chagnon sobre a situao da mulher na sociedade Yanomami
desencadearam vrios protestos entre feministas. Marvin Harris, por sua vez,
criticando o argumento de que os Yanomami viveriam num estado crnico
de guerra pela disputa por mulheres, prope que haveria causas materiais que
limitariam a expanso das comunidades Yanomami e que fomentariam a guerra,
como a exigncia de manter os territrios de caa para garantir a satisfao
das necessidades proteicas do organismo humano. Os Yanomami tornam-
se protagonistas de um debate que polarizou, de um lado, os defensores dos
argumentos de Chagnon e, de outro, os defensores dos argumentos de Harris.
Foi no calor desse debate que grande parte dos documentrios que compem
Yanomamo Series foi montada e apresentada ao grande pblico como uma prova
emprica dos argumentos de Chagnon em Yanomam: the fierce people.
Man called bee remete-nos ao primeiro captulo de The fierce people,
retratando o dia a dia de um antroplogo em trabalho de campo. Seu carter
introdutrio marcado no apenas pela apresentao detalhada das tcnicas
de pesquisa de campo, adotadas por Chagnon para coletar dados genealgicos,
mas tambm pela exposio gradual de pequenas cenas de outros filmes que
11
A transcrio do contedo de alguns desses documentrios pode ser encontrada em Asch e
Seaman, 1993.
Comentrios sobre a Yanomamo Series 487
12
Greg Urban (1991) prope o uso dos termos microparalelismo e macroparalelismo para diferenciar
o paralelismo, segundo as instncias discursivas, nos quais ele se manifesta. Preferi manter aqui
o uso do termo tal como definido por Jakobson (1991), embora reconhea que utilizo a noo de
paralelismo num sentido mais lato que o desse autor.
Comentrios sobre a Yanomamo Series 489
The ax fight
The ax fight inicia com as vozes dos Yanomami e do antroplogo
[A], e so utilizados mapas para situar geograficamente os Yanomami e as
comunidades estudadas por Chagnon e, por fim, um texto [B] que apresenta
uma primeira verso do evento a partir do qual o documentrio constitudo:
a briga iniciou-se porque uma mulher apanhou quando estava na roa e seu
irmo desafiou o agressor para uma luta [C].
So apresentadas as primeiras imagens do conflito com as vozes dos
envolvidos [D]. Ouvimos Chagnon pedindo para o cineasta ligar sua cmera
e, mais adiante, as vozes dele e do cineasta [A]. As ltimas imagens do conflito
so legendadas [B].
Surge uma tela negra [B]. Podemos ouvir as vozes de Chagnon, de Asch
e de um Yanomami [A]. Asch pergunta o que aconteceu. Chagnon esclarece
que a briga iniciou-se depois de duas mulheres desentenderam-se na roa
porque uma delas havia sido seduzida por um jovem, que chamava de filho, e
cometido incesto [C].
Logo depois, surge um texto no qual Chagnon apresenta uma nova verso
para o conflito [B4]. Um grupo de dissidentes da maloca Miximiximapweiteri foi
convidado a retornar. Essas pessoas recusavam-se a trabalhar na roa e, por isso,
uma mulher negou alimento a um deles. A mulher foi agredida pelo visitante,
dando origem ao conflito [C].
Somos ento, mais uma vez, absorvidos pelas cenas do conflito [D2].
So utilizadas setas para identificar os principais protagonistas do conflito [B5].
A voz do narrador se sobrepe s dos Yanomami [A4] e apresenta uma nova
verso para o evento, que destaca os laos de afinidade e consanguinidade entre
os envolvidos [C4].
Variaes intertnicas:
490 etnicidade, conflito e transformaes
13
Ver Good e Chanoff, 1991.
14
Sobre essa questo, ver Viveiros de Castro (2002, p. 324-325).
Comentrios sobre a Yanomamo Series 493
18
Disponvel em: <www.der.org>.
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INCONSTNCIA da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. Rio de
Janeiro: Cosac & Naify, 2002. p. 317-344.
Filmes
Arrows
EUA/Venezuela/Brasil, 16mm, cor, 10 min., 1974.
Realizao: Timothy Asch e Napoleon Chagnon.
The Ax Fight
EUA/Venezuela/Brasil, 16mm, cor, 30 min., 1975.
Realizao: Timothy Asch e Napoleon Chagnon.
Bride Service
EUA/Venezuela/Brasil, 16mm, cor, 10 min., 1975.
Realizao: Timothy Asch e Napoleon Chagnon.
The Feast
EUA/Venezuela/Brasil, 16mm, cor, 29 min., 1970.
Realizao: Timothy Asch e Napoleon Chagnon.
Firewood
EUA/Venezuela/Brasil, 16mm, cor, 10 min,1974.
Realizao: Timothy Asch e Napoleon Chagnon.
Magical Death/Yanomamo.
EUA/Venezuela/Brasil, 16mm, cor, 29 min., 1973.
Realizao: Timothy Asch e Napoleon Chagnon.
Ocamo is My Town
EUA/Venezuela/Brasil, 16mm, cor, 23 min., 1974.
Realizao: Timothy Asch e Napoleon Chagnon.
Tapir Distribution
EUA/Venezuela/Brasil, 16mm, cor, 15 min., 1975.
Realizao: Timothy Asch e Napoleon Chagnon.
Tug-of-war, Yanomamo
EUA/Venezuela/Brasil, 16mm, cor, 9 min., 1975.
Realizao: Timothy Asch e Napoleon Chagnon.
1
Sai tp a denominao de criaturas da floresta que podem ser aliadas ou inimigas dos Sanum.
Metamorfoses sanum e a subjetivao dos objetos 501
2
Sai de o singular de sai tp.
Variaes intertnicas:
502 etnicidade, conflito e transformaes
como seres nticos, mas so constitudos por seus atos de apropriao das
coisas no mundo, baseados na sua capacidade de refletir e pensar. Assim, at
mesmo os animais so categorias ontolgicas que se originaram dos Sanum
e experimentam o mundo de maneira refletida. Assim, a humanidade engloba
um amplo espectro e refere-se tanto aos Sanum quanto aos animais e demais
criaturas da floresta.
Essa diversidade de seres no cosmos necessitou da criao de regras ou
modos de interao para com as novas entidades, pois, por exemplo, uma vez
que comer animais comer humanos, era preciso fazer outra transformao,
estabelecer a construo da alteridade e da diferenciao entre humanos e
animais. Desse modo, no caso dos animais de caa, surgiu um grande impasse,
pois se tratava de um alimento que provinha dos Sanum e estes temiam comer
substncias que compartilhassem com eles uma mesma essncia. Omaw um
dos dois irmos e heris criadores e civilizadores do cosmos teve que retirar
a substncia letal, ou melhor, a essncia que havia nesses animais e que os
aproximava dos Sanum. Assim, quando os Sanum comessem um animal no
estariam agindo como o inimigo, que fica com a barriga cheia de sua vtima, que
lhe letal, e no precisariam seguir o ritual de recluso do matador. Contudo,
mesmo aps essa manipulao de Omaw, restaram ainda restries alimentares
a alguns animais, de acordo com a faixa etria da pessoa e do tipo de caa
(TAYLOR, 1974), outra fora para construir essa diferena entre animal e
humano. Omaw, dizem os Sanum, alertou-os a respeito dessas restries.
Por exemplo, avisou que um rapaz jovem no poderia comer mutum, tatu,
tamandu, entre outros animais, caso contrrio, sofreria o ataque do uku dubu,
duplo ou rplica do animal que liberado no momento da morte. Um ancio
exemplificou essa situao com o seu filho, um hixa de (jovem recm-sado
da puberdade). Esse rapaz comeu o tatupeba, animal proibido para sua faixa
etria, e sofreu o ataque do uku dubu, que lhe lanou um veneno. O jovem ficou
muito doente. Seus parentes chamaram um xam para cur-lo.
Portanto, a quebra do sistema Sanum de proibies alimentares de
presas animais capaz de fazer da pessoa alvo de agresses que podem mat-
la (TAYLOR, 1972, 1974). Alm disso, transgredir interdies alimentares
relacionadas aos animais de caa durante a recluso, na puberdade, quando
se deve seguir um regime alimentar rigoroso, pode provocar a metamorfose
do jovem. O caso do menino-morcego exemplo dessa situao, conforme
relatou um jovem Sanum:
O filho estava em casa passando pelo ritual de puberdade enquanto o pai caava.
Este matou um morcego e levou-o para casa. O pai avisou que o filho no
poderia comer o morcego, pois lhe faria mal. No entanto, o filho, quebrando
Metamorfoses sanum e a subjetivao dos objetos 503
Objetos corporificados
As metamorfoses que moldaram a populao do cosmos criaram
tambm os objetos. O caso especfico da origem dos gavies relaciona-se
com a origem de determinadas ferramentas, pois das penas desses exmios
caadores surgiram ferramentas para caar, as zarabatanas. Esses objetos no
foram inventados pelos heris criadores, pelos Sanum, ou por outros povos,
mas surgiram a partir de uma transfigurao de pores do corpo de uma ave
de rapina, conforme relato de um velho xam:
Antigamente, os gavies eram Sanum, mas, um dia, estes comearam a voar
e transfiguraram-se (ixiwanihiolima) em gavies. Quando um deles estava no
alto, voando, uma pena caiu, quando chegou ao cho, transformou-se em uma
zarabatana. Depois, uma segunda pena caiu e, no cho, transfigurou-se em
outra zarabatana. Esses gavies moram numa serra que se chama matawaka.
L, h materiais para fazer uma zarabatana muito boa, capaz de matar qualquer
caa, acertar qualquer alvo. As zarabatanas que vieram das penas que caram
no cho so chamadas maxiuari e as que esto no alto da serra so as melhores,
denominadas matawaka sola. A zarabatana da serra s existe na Venezuela e os
yecuanas trazem muitas quando voltam de l. A outra zarabatana, os Sanum
conseguem faz-la. Com a zarabatana da serra na Venezuela, os Sanum matam
muitos passarinhos.
Objetos trocados
As trocas pacficas, especialmente de objetos, so um caso particular
na cosmologia Sanum. Intercmbios firmados com outros grupos indgenas
introduziram importantes objetos em seu universo, especialmente os
manufaturados dos brancos. A importncia de outro com quem se possa
trocar est na origem de alguns objetos, como veremos adiante. Os objetos
materiais relacionados aos brancos, especialmente os faces e os machados de
ferro, que os precederam no territrio Sanum, no so associados diretamente
queles, mas vieram das trocas, pois, de acordo com os Sanum, nem mesmo
os brancos eram capazes de faz-los. Os primeiros terados ou os ancestrais
dos terados de metal que existem hoje circulavam entre os Sanum antes da
chegada dos brancos.
Ao contrrio de outros grupos indgenas, por exemplo, os Timbira
(DAMATTA, 1970), que associam claramente os bens manufaturados aos
brancos e assinalam o momento quando os povos tiveram que fazer uma
escolha entre o arco e flecha e a espingarda, os Sanum enfatizam as trocas
em si, mantidas entre grupos, como a origem de bens diversos. Assim, os bens
manufaturados dos brancos, e outros objetos, surgiram ou vieram da troca.
como se esses objetos tivessem se inserido em uma rede sem fim de trocas e,
nesse circuito, tivessem perdido a memria de como e quando foram feitos.
Ao mesmo tempo que as trocas contnuas anulam o evento que originou os
bens, marcam um povo, definem grupos onde se sabe que h determinados
objetos que acabaro fazendo parte de suas novas corporalidades, caso sofram
metamorfoses. Nesse sentido, por exemplo, determinado tipo de terado, til
na coleta de mel, era de domnio de antigos que se transformaram em pica-
pau e trocaram com outros seres. Cabe enfatizar que a origem dos bens est
nas prprias trocas com os outros. Kopytoff (1988), ao tratar da biografia
cultural das coisas, enfatiza que h analogias na maneira como uma sociedade
concebe os seres e as coisas. Se observarmos a biografia dos objetos e dos
seres no universo Sanum, perceberemos que eles tiveram uma mesma origem,
da matria primeira, dos Sanum feitos pelo heri criador Soaw. Essa matria
se metamorfoseou tantas vezes, inserida em um processo sem-fim, que o
movimento transformacional passou a ser o fator determinante na histria da
construo de seres e das coisas. Por exemplo, sabemos que as zarabatanas,
obtidas por meio de trocas com os yecuanas, surgiram das penas do gavio,
que surgiu de um Sanum, que surgiu de outro e assim por diante. Desse
modo, alguns objetos circulam tanto, outros participam nas transfiguraes
das pessoas que os detm, outros, ainda, so metamorfoses de metamorfoses,
Variaes intertnicas:
508 etnicidade, conflito e transformaes
a morte da pessoa, os bens que estavam com ela tambm morrem, no podem
ser tomados, no so de seus parentes. Agora, eles so um problema, lembram
o morto e, assim, devem ser obrigatoriamente destrudos.
Bruce Albert (2002, p. 253-254) observou que no caso dos yanomaes o
termo matihip, que significa tradicionalmente os ornamentos de plumas e ossos
dos mortos ou cabaas contendo as cinzas dos mortos, hoje denota objetos
dos brancos. Esses bens devem ser, necessariamente, destrudos durante o
funeral. Isso tambm deve acontecer na cerimnia funerria Sanum, ocasio
em que destruir os pertences do morto significa pr fim a tudo o que o morto
tocou ou manipulou. Os objetos do morto esto contaminados por ele, o que
traz lembranas e, por isso, faz mal aos Sanum. Utiliz-los significa manter
um vnculo com o morto, uma ligao com uma criatura que passa a ser uma
alteridade radical.
Alguns dias aps o falecimento de um rapaz vi o seu irmo usar a
espingarda dele, o que fez com que ele se manifestasse por meio de um pssaro
que cantou nas proximidades da aldeia, demonstrando sua raiva. No foi uma
coincidncia para os Sanum esse pssaro ter transmitido um canto de protesto
minutos depois que o irmo do morto pegou a espingarda e correu com outros
homens em busca de um bando de queixadas que estavam em roas prximas.
O morto no gostou de ver seu antigo objeto na mo do irmo, pois a arma
ainda guarda suas marcas, sinais de seu corpo. A atitude do irmo chamou a
ateno do morto que, enfurecido, podia desferir ataques contra os Sanum.
Essa situao mostra por que no se deve guardar as coisas de algum que
j morreu, mesmo bens valiosos e desejados como espingardas. Os objetos
compem a corporalidade em um processo de subjetivao.
Ainda assim, com as implicaes de, momentaneamente, terem as marcas
dos brancos, o que pode, em alguns casos ser letal, os Sanum querem as coisas
dos brancos e inclu-las nas suas redes de troca. Ao dispor esses objetos no
circuito de troca, os Sanum catalisam o processo de transformao desses
objetos e de outros seres. Quando trocados, os objetos entram no movimento
transformacional do cosmos Sanum.
Por meio desse movimento, passou-se diferenciao total no cosmos.
Os seres tornaram-se vrios e diversos e surgiu a classificao. Enfim, o contnuo
processo de transfigurao diversifica os seres, os objetos e os prprios Sanum,
aprimorando as condies de ser ou as fixaes momentneas de formas.
Na sociocosmologia Sanum, processos de classificao e de diversificao
acontecem, impossibilitando tanto uma configurao csmica amorfa quanto
uma realidade ntica indiferenciada.
Referncias
Leonardo Schiocchet
Foi assim antes e sempre ser assim. Ningum vai fazer nada pela gente,
se a gente no fizer (...) Se a gente no sorrir como estamos fazendo agora, que
vida a gente vai levar? Eles destroem, a gente reconstri. Eles destroem de
novo, a gente reconstri mais uma vez (libans morador de Hadath, Beirute,
em conversa com o autor).
De metfora popular para fragmentao e de conflito social a tipo ideal
acadmico de fracasso da ideia de estado-nao e democracia, o atrito social
libans fato amplamente reconhecido. Enquanto a tese mais popular aquela
perpetuada pela mdia, em que a convivncia pacfica entre diversos grupos
religiosos quase apenas utopia do passado, bem mais de perto, para o libans
a questo toma dimenses muito mais profundas.
O termo em rabe para tais grupos religiosos de quem a mdia tanto
fala taif, e significa hoje no Lbano mais do que qualquer coisa a diviso
da sociedade em termos de sua pertena a uma comunidade definida por
sua crena religiosa. Em ingls, o termo traduzido tanto pela mdia quanto
por acadmicos como sect; literalmente, seita ou faco em portugus, mas
significando, ao menos no caso libans, algo mais prximo ideia de faco
ou ordem religiosa. Tanto a mdia como grande parte dos acadmicos tende
a definir cada taif no Lbano como irreconciliavelmente distante umas s
outras tanto no tempo quanto no espao. Como consequncia, a tendncia
hegemnica tem sido a de caracterizar o cisma religioso em termos tnicos.
(SCHIOCCHET, p. 2010).
Entretanto, originalmente, o termo rabe taif era muito mais amplo e,
ainda hoje, localmente, sente-se a reverberao do sentido mais ligado sua raiz
etimolgica em paralelo conotao legitimizada pelo sistema poltico atual.
Quais as principais foras (atores e variveis identitrias) envolvidas no processo
de formao de identidade sociais no Lbano, como funciona a dinmica social
Identidades sociais no Lbano:
sectarismo, etnicidade e outras variveis 515
O Monte Lbano
A histria do Lbano uma histria de invases, dominaes imperiais,
disputas internas de tempos imemoriais, guerras civis e, mais recentemente,
intolerncia religiosa como poucas no mundo. Foram ambas as foras internas
e externas que moldaram a estrutura social do pas.
Proxmao a 1200 a.C., ao norte de Cana, localizava-se o Imprio
Fencio. Constitudo pelas cidades de Jbail (Byblos), Sur (Tiro), Saida (Sidon),
Beirut (Beirute), Trablus (Trpoli) e Baalbak (Balbek) hoje os maiores centros
urbanos libaneses em 875 a.C. o Imprio Fencio foi invadido pelos assrios,
que ocuparam a regio que hoje corresponde ao Lbano, at o ano 608 a.C.
Depois, foram invadidos pelos babilnicos que ocuparam o territrio at 529
a.C., quando foram seguidos pelos persas. Foi ento a vez dos gregos, liderados
por Alexandre, o Grande, derrotarem o Imprio Persa em 333 a.C. Com a
queda do Imprio Grego em 64 a.C., tambm os romanos ocuparam a rea (at
395 d.C., antes da separao entre o Imprio Romano Ocidental e o Oriental)
at 632-640, quando o territrio for perdido pelo Imprio Bizantino para os
rabes muulmanos. Aps algumas sucessivas dinastias muulmanas (Umada
[Umayad], Abbasyd [Abasida], Fatimid [Fatimida], Mamluk [Mameluco]), o
sculo XV trouxe o poderio do Imprio Otomano (Dawlat Aliyah Uthmaniyah)
que, formalmente, dominou a regio at o final da Primeira Guerra Mundial
em 1918 (HOURANI, 1992).
Ainda que alguns historiadores tracem a origem da acepo atual do
termo taif de volta a um ciclo de reformas do Imprio Otomano, que comeou
no final do sculo XVIII, ainda durante a histria antiga da regio (para
alm de interpretaes mais recentes dessas histrias) que se encontra parte da
origem do pluralismo social atual.
Variaes intertnicas:
516 etnicidade, conflito e transformaes
Foi durante a era do Imprio Bizantino que a Igreja Oriental foi dividida
entre vrias ordens distintas, entre elas a greco-catlica, a greco-ortodoxa, a
armeno-gregoriana, a armeno-catlica etc. Enquanto data j desde o perodo
Fatimida que os melchitas (malky em rabe, hoje conhecidos em portugus
tambm como greco-catlicos) se estabeleceram na regio, armnios encon
travam-se espalhados pela atual Sria j desde 190 a.C. A ocupao do Monte
Lbano (Jbail Lubnan) pelos cristos marony (maronitas) data j dos sculos
X e XI, quando estes buscavam refgio dos bizantinos, pelos quais foram
inicialmente considerados hereges. Sobretudo durante os tempos da guerra civil
libanesa (1975-1990) mas tambm em muito menor escala at os dias de hoje
alguns maronitas reconstituam a histria do pas por meio de um passado
fencio e, portanto, no rabe e no muulmano, que permitia a justificao
de um nacionalismo equivalente voltado ao oeste e desconectado do resto do
Oriente Mdio.
Os xiitas ithna ashariyah (chamados simplesmente de xiitas no Lbano ou
no Ir) j habitavam o Monte Lbano e os arredores ainda antes dos maronitas
e suas principais vilas estavam localizadas no Jabal Amil, Kisrawan e Vale do
Beqa, enquanto a presena druzy (druzos) data de 1020. Tambm por conta da
ocupao druza e maronita na regio do Monte Lbano, entre outros fatores, a
maioria dos muulmanos sunitas ocupou as cidadelas localizadas nas pores
mais costeiras do territrio atual libans.
A regio que hoje chamada de Lbano, entretanto, no foi assim
reconhecida como cultural ou politicamente distinta de seu entorno at pelo
menos o final do sculo XVII. Toda a regio hoje composta pelo Lbano, Sria,
Palestina, Israel e Jordnia tambm conhecida no ocidente como o Levante
j desde os tempos da expanso inicial do Isl era reconhecida como uma
nica unidade, intitulada mais tarde, durante a dinastia dos mamelucos, de Bilad
Al-Sham (as terras localizadas ao norte de quem desde Meca encara o leste).
Com a tomada da regio pelo imprio criado pela conquista de
Istambul pelos turcomanos sunitas Seljuk, vindos da sia Central chamado
aps o primeiro sulto (Osman) de seu imprio Otomano , as minorias
no muulmanas foram organizadas como blocos representacionais e
administrativos, de forma a facilitar o domnio do sulto sobre seu vasto
imprio. Com um sistema de parentesco e alianas muito mais hierrquicas,
todos aqueles que no eram ulema (plural de alim, lder religioso; lit. sbio)
eram considerados escravos do sulto (LINDHOLM, 1996).
O governo Otomano era tambm calado muito mais em uma dominao
militar do que religiosa, que tendeu a ser progressivamente mais e mais
Identidades sociais no Lbano:
sectarismo, etnicidade e outras variveis 517
os amma maronitas eram seus patres (incluindo o maior deles, a sua prpria
igreja).
O ano da principal reforma modernizadora do Imprio Otomano foi
1839 tanzimat e as presses e demandas europeias (sobretudo no Monte
Lbano), a invaso de Muhammad Ali e as insurreies populares na palestina,
Sria (Alepo e Damasco) e Monte Lbano esto entre suas principais causas. O
conceito de dhimmi (minoria no muulmana) que regulamentava o estatuto dos
maronitas no Monte Lbano foi com a reforma abolida e o sistema de millet foi
transformado em uma forma mais integradora de governo. Com a mudana, as
taxas extras pagas pelos no muulmanos foram finalmente abolidas em prol
de direitos e deveres mais igualitrios (HOURANI, 1992).
Mas a reforma no teve a reao esperada, j que era ainda um instrumento
de domnio Otomano, ou seja, era uma tentativa desesperada de lidar com
as presses externas que, apesar do discurso integrativo, acirrava o controle
do sultanato. Por isso, apenas um ano depois, em 1940, outra insurreio
popular aliando grande parte da amma maronita, druzos em geral, e apoiada
tanto por europeus (ingleses e austracos, mas no pelos franceses) quanto
por otomanos derrotou o regime de Muhammad Ali. Aqueles shuyukh (plural
para shaikh) que se encontravam em exlio retornaram, enquanto os otomanos
redefiniam a administrao do Monte Lbano, acabando definitivamente com
a dinastia Shihab. Foi ento que as primeiras revoltas sectrias emergiram, j
que enquanto os senhores druzos, retornando do exlio, retomavam suas terras,
o ahali maronita se recusava a aceitar passivamente a retomada de poder pelos
senhores druzos.
Como resultado, em 1941, o patriarca maronita Hubaysh convocou
todos os maronitas notveis e, clamando por um amor cristo, renovou sua
aliana com o sulto. Seu programa, baseado na ideia de uma maioria crist,
previa a educao do povo como responsabilidade da igreja maronita no
Monte Lbano (TRABOULSI, 2007). Um conselho misto formado por lderes
religiosos foi ento eleito por cada comunidade (druza e maronita), mas ainda
que a igreja maronita clamasse representar todos os maronitas, sua noo de
comunidade continuou firmemente ligada s concepes do antigo regime e
suas fronteiras sociais (MAKDISI, 2000).
O conflito obrigou as elites de ambas as ordens religiosas a repensar
e retradicionalizar sua histria (SCHIOCCHET, no prelo), quer dizer, um
conflito foi estabelecido entre essas ordens que acabaram por polarizar-se
seguindo as bases ideolgicas dos significados respectivos, atribudos ideia
de tradio local.
Variaes intertnicas:
522 etnicidade, conflito e transformaes
primeira que faz possvel compreender a gnese de uma classe mdia urbana
libanesa; a segunda a que permite compreender o importante papel das
mulheres em tal processo. importante notar o peso de tal processo, j que
cerca de um tero de todos os habitantes do Monte Lbano emigraram para o
Novo Mundo entre 1890 e o incio da Primeira Guerra Mundial, sendo que a
grande maioria era fellahin (plural para fellah, significando pequenos agricultores
que, em geral, no possuem terra). Colmbia, Argentina e sobretudo Brasil e
Estados Unidos foram alguns dos principais destinos desses emigrantes.
Enquanto alguns historiadores tendem a defender a hiptese de que essa
migrao em massa ocorreu sobretudo por conta dos conflitos das dcadas
precedentes, para Khater tal fenmeno encontra sua raiz com base sobretudo
em um esprito empreendedor libans, motivado, dessa vez, pelo contato com
o Ocidente moderno que, cada vez mais, firmava suas bases nos arredores do
Monte Lbano. Sua justificativa para tanto so tradues de cartas enviadas
pelos migrantes aos parentes e esposos (as) cujo objetivo principal parece ser
a acumulao de capital. Segundo Khater, a maioria retornou enquanto outra
parte ficou sem condies (mas no sem desejo) para tanto.
Uma das consequncias mais importantes da emigrao foi a
intensificao da formao de uma classe mdia no Monte Lbano e nas
imediaes de Beirute, processo iniciado com o estabelecimento de fbricas de
seda (empreendimentos inicialmente sobretudo franceses e depois, em menor
escala, locais) algumas dcadas antes. Aquelas fbricas que foram criadas pelos
locais funcionavam quase sempre em um esquema familiar: enquanto os homens
administravam o negcio, eram as mulheres quem dominavam o trabalho
produtivo. Aquelas a grande maioria, de incio , que eram administradas
por franceses ou ingleses empregavam apenas mulheres. Por causa da difcil
situao para a agricultura, a renda das mulheres criou um desequilbrio na
estrutura familiar tradicional e a renda extrarreferente ao trabalho nas fbricas
passou a gerar uma nova classe social produtiva urbana, dissociada da terra e
do comrcio.
Depois de 1890, sobretudo pelo baixo preo da seda produzida, muitos
dos habitantes locais viram-se atrados pelas oportunidades que pareciam
existir no majhar (literalmente terra de imigrao, mas entendido aqui enquanto
um lugar mitolgico de oportunidade social e financeira, atribudo ao Novo
Mundo [Amricas ou Amirka]). O estudo de Khater concentra-se sobretudo
nos casos dos imigrantes que aportaram nos Estados Unidos e aponta para o
fato de que ao menos ali a vida revelou-se muito difcil, sobretudo devido ao
baixssimo status social que o grupo adquiriu localmente (KHATER, 2001).
Variaes intertnicas:
524 etnicidade, conflito e transformaes
assinado em 28 de junho de 1919. No entanto, foi outro tratado que marcou mais
diretamente a histria do Bilad Al-Sham.
Durante a guerra, foi ideia de Sir Mark Sykes criar o Arab Bureau, que
ficaria responsvel pelas relaes entre os ingleses e os rabes. poca da
guerra, os ingleses j possuam o controle efetivo do Egito, mas para alm
disso, estavam interessados nos rabes tambm como potenciais aliados contra
os otomanos.
Em um dado momento da guerra, um jovem tenente rabe desertou do
exrcito Otomano estacionado em Galpoli e cruzou as linhas aliadas. O jovem
tenente, clamando ter informaes importantes sobre sociedades secretas
localizadas sobretudo em Damasco e dispostas a comear uma insurreio
contra os otomanos, foi levado s pressas para ser interrogado no Cairo.
Afirmava o tenente Al-Faruqi que representava Hussein o Emir de Mecca
que tais sociedades secretas operavam tambm sob seu controle. Como Al-
Faruqi morreu pouco depois e como (soube-se depois) nem Hussein nem seu
filho Faysal conheciam ou sequer tinham ouvido falar de Al-Faruqi, no se sabe
ao certo as intenes do jovem desertor poca do evento. Ainda que Lord
Kitchener entendesse que a liderana de Hussein era mais espiritual do que
poltica, a atitude de Al-Faruqi fez os ingleses apostarem definitivamente na
liderana de Hussein (FROMKIN, 1989).
A razo pela qual Hussein resolveu apoiar os aliados j cedo na guerra
j que dentro do Imprio otomano a viso era de que os alemes sairiam
vencedores foi sua descoberta de que os otomanos pretendiam dep-
lo. Hussein chegou at mesmo a enviar Faysal Istambul para lidar com os
otomanos, mas as negociaes no tiveram sucesso. Assim era, sem nada a
oferecer, pois no possua a aliana de muitos lderes rabes consigo e no
tinha escolha a no ser apoiar os aliados na esperana de qualquer esplio que
Hussein negociasse com os ingleses. A interveno de Al-Faruqi fez com que
os ingleses prometessem concesses no apenas para os rabes, mas tambm
para a Rssia e a Frana (FROMKIN, 1989).
Como a Frana j h muito tempo tinha seus negcios e interesses na
regio do Monte Lbano e adjacncias, e Beirute oferecia um importante porto-
atalho para o Ocidente e para os ingleses uma buffer zone entre seus domnios
no Egito e Palestina e aqueles dos russos (a quem mais temiam) serviria bem
aos seus propsitos. Os aliados chegaram a um acordo conhecido como sykes-
picot e foi firmado com base nas informaes obtidas com Al-Faruqi. O acordo
estipulava que a Frana teria total controle de um grande Monte Lbano,
bem como controle sobre a Sria por meio de um governo-fantoche rabe
Identidades sociais no Lbano:
sectarismo, etnicidade e outras variveis 527
(a tentativa fracassada foi justamente com Faysal, que teve que mudar seus
domnios para o Iraque, aps negociaes com os ingleses). Os ingleses, por
seu lado, teriam controle mais direto sobre a Palestina, bem como governos-
fantoche em outros estados (confederados ou no) (FROMKIN, 1989).
O resultado da aliana poltica completamente arbitrria dos aliados com
Hussein, seguido da diviso tambm completamente arbitrria dos esplios de
guerra (nesse caso os restos do esfalecido Imprio Otomano) foram revoltas
populares na Sria (que inclua o Monte Lbano), Iraque, Afeganisto, Egito,
Arbia Saudita, entre outros. No apenas a construo de estados-nacionais
(na forma de protetorados ou domnio direto) no obedecia s percepes
tnicas, polticas, econmicas, sociais e/ou religiosas locais, mas j que em
pouqussimas instncias as populaes locais (nem mesmo as elites na maioria
dos casos) foram consultadas, os governantes desses novos estados no
gozavam de grande legitimidade local.
O fim da Primeira Guerra Mundial marca um perodo distinto da
histria do Lbano: o incio da histria do pas enquanto um estado-nao. O
mandato francs aproveitou a organizao poltica do antigo sistema de millet
e criou um sistema poltico quase que nico no Lbano. Esse novo pas, aps
uma ampliao fronteiria em 1921 e agora incluindo o Monte Lbano, as
cidades litorneas desde Trablus (Trpoli) at Sur (Tiro), o vale do Beqa e o Jabal
Amil foi por eles chamado de Grand Liban e em 1926 teve sua constituio
modelada. Em 1941, o Lbano foi tornado finalmente independente, mas
apenas em uma operao conjunta de muulmanos e cristos, em 1943, deixou
de vez o mandato francs por um governo local democrtico.
O pacto nacional de 1943 previa ento uma democracia confessional
com base na ideia de taif, em seu sentido puramente sectrio, e que garantiu
atemporalmente a presidncia da repblica a um maronita, o cargo de Primeiro
Ministro aos sunitas e o de Porta Voz do parlamento aos xiitas, ao mesmo
tempo em que dividia o nmero de assentos parlamentares em uma razo de seis
cristos para cada cinco muulmanos de todas as confisses. Para que o sistema
funcionasse, organizaes religiosas foram aproveitadas (quando existentes e
criadas quando no) para a formao de coordenaes representacionais de
diferentes grupos de sujeitos agrupados de acordo com sua f. O sistema
criado foi chamado de confessional.
O mandato francs no Lbano seguiu um modelo parecido com aquele
j imposto por dcadas na Arglia, isto , com um ideal de expanso da cultura
francesa (o que inclua lngua, costumes e comportamento). As reaes contra
a criao do estado libans com as fronteiras de 1921 foram muitas poca,
Variaes intertnicas:
528 etnicidade, conflito e transformaes
interao social entre os mais variados grupos do pas foi que mudana
dramtica de contexto por vezes muda tambm drasticamente papis sociais
e o tecido das redes sociais. Eu presenciava um evento crtico, segundo os
termos de Vena Das (DAS, 1995).
Depois dos primeiros dias da guerra passei a trabalhar como voluntrio
em uma escola crist para onde refugiados vindos de todo o pas sobretudo
do sul (de maioria xiita) foram trazidos. Meu papel era o de trazer gua e
comida, quando pudesse, e de permanecer ali oferecendo os ouvidos e os
ombros como companhia. A situao era extrema, j que o governo no
tinha tido condies de organizar esse tipo de atividades ainda e muitos,
alm de outras privaes, chegavam a passar fome e sede. Os organizadores
eram cristos da vizinhana de Ashrafyeh, onde o QG do partido extremista
cristo falangista estava localizado. Ainda assim, o evento me propiciou uma
experincia bem diferente daquela que eu teria se as tawaif libanesas fossem
mesmo to impenetravelmente isoladas e em conflito grupos de todas as fs
convivendo em paz e sentindo-se identificados uns aos outros, diante de uma
ameaa que entendiam emanar de fora do pas.
O capital social no sectrio levantado por tal movimento, alavancado por
conta da guerra, seja talvez de mais difcil gerao em tempos no to crticos
quanto aquele. Talvez, como sugerido no caso de alguns rituais, como Gregory
Bateson sobre o naven (BATESON, 1968), Roberto da Matta (DAMATTA,
1978) sobre o carnaval, Victor Turner sobre a hajj (TURNER, 1974) e Arnold
VanGenep de forma mais terica (VANGENEP, 1972), seja justamente por que
tais rituais so eventos crticos (ainda que peridicos) para que a ordem social
fique momentaneamente suspensa. Minha experincia com os voluntrios no
Lbano inclina a ressaltar um momento anterior ao surgimento de qualquer
ordem social que, afinal de contas, nunca esttica em parte alguma, muito
menos no Lbano. No apenas aprendi que o potencial para tal inverso da
lgica sectria estava incorporado no ethos daqueles libaneses, mas reforou
ainda mais meu entendimento sobre o peso da dinmica entre algumas das
principais variveis identitrias no Lbano, compreendendo que pode haver
tambm um lugar bastante comum entre as vrias noes libanesas de nao.
Variaes intertnicas:
538 etnicidade, conflito e transformaes
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Identidades sociais no Lbano:
sectarismo, etnicidade e outras variveis 539
Introduo
No devemos pressupor que os contatos intertnicos tenham sido
vivenciados sem nenhum tipo de racionalizao ou tentativas de entender o que
para ambos os lados era desconhecido. Os atores envolvidos nesses processos
procuravam traduzir os processos que se desenrolavam. Essas tradues
e entendimentos eram, no mais das vezes, seguidos por uma conscincia
prtica, ou seja, expressos para e/no mundo que se formava. Nas etnografias
africanas conseguimos perceber tais discursos mesmo que contrariando os
pressupostos de alguns autores (de que na verdade tais discursos representavam
certo tribalismo e no o contato entre europeus e africanos) como sendo
representados em determinadas expresses artsticas (MITCHELL, 1956;
RANGER, 1975; FABIAN, 1990), em movimentos religiosos (BALANDIER,
[1955]; COMAROFF, 1985) ou em outras expresses da modernidade ditas
hbridas (SAHLINS, 1997; CLIFFORD, 1999). Alguns desses autores percebiam
naquelas representaes o desejo africano pela civilizao (Mitchell), outros
apontavam a criatividade de tais discursos (Ranger, Fabian) e h ainda aqueles
que viam aquela mesma criatividade, mas como instrumento de protesto contra
o colonialismo europeu (Balandier).
Tais perspectivas poderiam ser entendidas em termos do desenvolvimento
analtico da prpria antropologia africanista que, de incio, estaria preocupada
em estudar apenas unidades sociais menos tocadas pelas influncias modernas, ignorando
o quadro no qual tais influncias modernas se fazem sentir (BROWN, 1973, p. 174).
Em seguida, aps a Primeira Guerra Mundial, a tradio britnica do Rhodes-
Livingstone Institute e a Escola de Manchester direcionam-se para as anlises
funcionalistas do contato e dos processos de desenvolvimento, expondo
as rupturas entre campo e cidade, tribo e nao. Por fim, desde o incio da
dcada de 1970, novas perspectivas foram traadas, que destacavam e no
De anedotas antropolgicas a
perspectivas do contato em frica: reflexes Herero 543
Primeira Anedota
Passados os primeiros dias de desmistificao (afinal, era a primeira vez
que ia frica e, alm disso, embarcava em um trabalho de campo), comecei,
nos meus percursos dirios por Okondjatu, a me aproximar mais das pessoas,
fazer amigos e criar redes para informaes futuras. Primeiro passo: deixar
claro a todos que apesar de estar na casa de um pastor (Matuzee, Herero como
todos os outros, mas convertido a um cristianismo que se diferenciava dos
outros do vilarejo, de tipo tradicional e antissincrtico), eu no estava ali com
um intuito proselitista o que foi aceito pela maioria aps minha presena nas
outras comunidades religiosas do vilarejo e em minhas constantes tentativas de
absorver um conhecimento geral da histria e cultura Herero.
Fui bem recebido e informado de muitas pequenas coisas sobre dife
rentes aspectos da vida social diria daquelas pessoas. Minhas intenes iniciais
De anedotas antropolgicas a
perspectivas do contato em frica: reflexes Herero 545
de trabalhar com religio foram inclusive deixadas de lado por um tempo, pois
a quantidade de experincias que despertavam meu interesse e a curiosidade (e
eu deveria convencionalmente qualific-la como uma curiosidade acadmica)
partia-me em diferentes direes. Em um momento eu conversava com
o representante do comit de desenvolvimento local sobre os problemas
econmicos e sociais do vilarejo; em outro, com os jovens sobre suas relaes
com a capital do pas (fixada a pouco menos de 300 km do vilarejo e a mais
de 6 horas pelas desajeitadas estradas de cho) e a falta de empregos; mais
tarde, ainda encontraria um grupo de pessoas de meia-idade, j casadas e com
filhos, rememorando as histrias de seus pais sobre os dias da colonizao e
do apartheid.
Em uma dessas tardes, distante 6 dias de minha chegada, eu caminhava
com Clement, irmo do Pastor Matuzee, at um dos pequenos bares de
Okondjatu para comprar gua e po para uma viagem que faramos no dia
seguinte at a pequena fazenda onde morava a famlia de sua irm e sua av
(no fim, como era comum, s conseguimos o po, nada de gua). No caminho,
passamos em frente a outro bar onde um grupo de homens bebia cerveja
aparentemente j h algum tempo. Um deles, menos constrangido que os
demais, ao ver-me passando no hesitou e discursou: esse homem branco, cuidado,
todos vocs. Ele est ficando na igreja missionria. Ns deveramos mand-lo embora. Ele
far o mesmo que aqueles missionrios alemes. Ele nos queimar na igreja assim como eles
fizeram no passado.
O discurso-narrativo daquele homem, engraado, foi feito em ingls e
no em otjiherero, como era normal quando as pessoas comunicavam entre
si. Era bvio, era eu que deveria ouvir aquilo, eu que deveria saber o que ele
achava de mim. Clement ficou incomodado com as palavras daquele homem
e foi em direo a ele para dizer, agora em otjiherero, que eles deveriam me
receber bem j que eu estava ali para ficar um bom tempo e estava gastando
his white money em Okondjatu. Eu fiquei espantado, o homem estava bbado, eu
apenas fiquei calado, sem saber se eu deveria me preocupar ou no. Uma coisa
era certa, eu havia esquecido de passar na casa dele.
Eu e clement seguimos nossa caminhada e, na volta, o mesmo homem
estava sentado com alguns de seus amigos. Ao me ver, mais uma vez, ps-se de
p e discursou: Ns devemos cuidar do homem branco, ele est colocando seu dinheiro aqui.
Ns deveramos construir uma pousada para ele ficar confortvel. Todos riram. Mas a voz
daquele homem era mais do que drunk talk, ela estava em conformidade com
uma viso-padro de diferentes momentos histricos do contato nativo com
os brancos no passado e tambm com as expectativas financeiras do presente.
Variaes intertnicas:
546 etnicidade, conflito e transformaes
Segunda Anedota
Terceira Anedota
responde novamente: Ele disse que acredita que alguns ingleses estiveram aqui antes dos
primeiros missionrios chegarem e observaram os costumes de nosso povo. Depois, voltaram
Inglaterra e escreveram a Bblia para que pudessem nos dominar.
Para Denzel, isso ficava muito claro diante das constantes acusaes
que aqueles missionrios faziam ao Fogo Sagrado (local onde a comunidade
dos vivos encontra seus mortos). Mais tarde, como que tentando provar seu
argumento, ele pede para que sua mulher traga uma pasta onde ele guardava
alguns folhetos cristos e exemplares de um Novo Testamento ilustrado. J
com a pasta em mos e um pouco empolgado com nossa conversa ele toma um
dos exemplares do Novo Testamento e aponta para a figura da capa diga-me,
Castro. Diga-me por que Jesus e os discpulos so brancos? Denzel, ento, conclui com
uma clara conscincia da colonizao no h outra explicao!
Da mesma forma que um homem poderia ser esperto o suficiente para
enganar algum de outro pas e usufruir certos benefcios, algum tambm
pode ter criado a Bblia para poder, a partir dela, atingir certos objetivos, tal
como colonizar a alma para melhor atingir o corpo. Para Denzel, aquelas
pinturas que geralmente so colocadas ao lado das passagens bblicas so uma
grande prova de que ela foi e ainda um instrumento para diabolizar e acusar
a cultura Herero: Todas as figuras que ilustram a Bblia so de pessoas brancas. Por que
assim? No havia negros naquela poca? Perguntava, ainda, finalizando: por que eu
deveria acreditar na Bblia se ela no acredita no meu povo?
Concluso
Procurei, durante este trabalho, destacar trs pequenas anedotas
antropolgicas que pudessem, a meu ver, lanar luz sobre a percepo nativa
das relaes de contato com o branco. Nas descries, tentei contextualizar
o momento no qual tais narrativas foram transmitidas para que, assim,
pudssemos refletir no apenas sobre a perspectiva Herero sobre o contato
com os missionrios europeus, mas, tambm, sobre a relao daquelas pessoas
com este branco que vos fala. Assim, penso que ao mesmo tempo que trazia ao
texto as reflexes Herero sobre um certo contato colonial, pude, eu mesmo,
refletir sobre os contornos do meu contato com eles.
No primeiro caso, por exemplo, ao mesmo tempo que minha imagem
transmitia quele homem lembranas de fatos ocorridos durante os conflitos
entre hereros e alemes, no incio do sculo passado, quando a histria conta
que em certa ocasio um grupo Herero foi chamado para rendio dentro de
uma igreja e depois de terem entregado sua armas foram todos queimados
Variaes intertnicas:
550 etnicidade, conflito e transformaes
BROWN, R. Anthropology and Colonial Rule: Godfrey Wilson and the Rhodes-
Livingstone Institute, Northern Rhodesia. In: ASAD, T. (Ed.). Anthropology and the
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and the Colonial Encounter. London: Ithaca Press, 1973.
Sobre os autores
Leonardo Schiocchet
Ph.D. em Antropologia Social, Boston University (depois de 1 de maio de 2010).
Junior Visiting Fellow do Institut fr die Wissenschaften vom Menschen, Viena (IWM)
(at 30 de junho de 2010).
Luis Cayn
Antroplogo pela Universidad de Los Andes, Bogot, Colmbia, (1998), Mestre
em Antropologia Social pela Universidade de Braslia (2005) e Doutorando em
Antropologia Social pela mesma instituio. Bolsista do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq). autor do livro En las guas de
yurupar. Cosmologa y chamanismo Makuna (2002) e coautor do livro Etnografa
Makuna. Tradiciones, relatos y saberes de la Gente de Agua (2004). autor de vrios
Instituto Brasileiro do Meio
558 Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis
Maxim Repetto
Bacharel em Humanidades com meno em Histria - Universidade do Chile (1994),
Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Braslia (1997) e Doutor em
Antropologia Social pela Universidade de Braslia (2002). Atualmente professor
Adjunto III na Universidade Federal de Roraima/UFRR, atuando como professor
no Curso de Licenciatura Intercultural do Instituto Insikiran de Formao Superior
Indgena. Realiza Ps-Doutorado no Centro de Investigaciones y Estudios Superiores
en Antropologia Social (CIESAS, DF- Mxico), com Bolsa Capes/MEC/Brasil (2009-
2010). Tem experincia na rea de Antropologia Poltica, Antropologia da Educao,
Polticas Indigenistas e Indgenas, Movimentos e Organizaes Indgenas, Etnologia
Indgena e Povos Indgenas em Roraima, educao escolar indgena, com nfase na
Formao de Professores Indgenas, plano de manejo ambiental e etnomapeamento de
terra indgena e assessoria em projetos sociais a organizaes indgenas.
Frente de Atrao Waimiri Atroari, publicada em forma de livro, em 1991, pelo Museu
Paraense Emlio Goeldi/CNPq. Possui diversas publicaes em peridicos nacionais
e internacionais na rea de Etnologia Indgena, Identidade e Relaes Intertnicas,
Antropologia Poltica, Povos Indgenas e os Impactos de Grandes Projetos de
Desenvolvimento Regional, e Etnicidade e Nacionalidade em Fronteiras. Projeto de
Pesquisa atual: Etnologia Indgena Comparada: Brasil Austrlia Canad (com
pesquisas etnolgicas com povos indgenas), pesquisa junto aos povos makuxis e
wapichanas sobre etnicidade e nacionalidade na fronteira Brasil/Guiana desde 2000; e
acompanhamento da situao dos Trememb do litoral do Cear desde 2000. Desde
janeiro de 2008 atua sobre a situao de indgenas no sistema penitencirio de Boa
Vista/Roraima. Coordenador fundador do Geri em 1997.
O IEB
O Instituto Internacional de Educao do Brasil (IEB) uma associao civil brasileira
sem fins lucrativos, voltada para a capacitao e formao de pessoas ligadas
conservao ambiental, tendo como eixos a capacitao tcnica, institucional e poltica.
Criada em 1998 e sediada em Braslia-DF, a entidade se destaca por uma atuao que
considera e estabelece pontes entre a conservao dos recursos naturais e as dimenses
econmicas, sociais e culturais da sustentabilidade, buscando fortalecer as comunidades
locais.
Promovendo autonomia na gesto dos seus territrios e dos recursos naturais com
participao, dilogo permanente, valorizao das diferenas e incentivo atuao
das populaes locais, o IEB desenvolveu uma reconhecida expertise em processos de
articulao entre setores que, historicamente, tm tido dificuldade de aproximao e
dilogo.
Os programas e projetos da instituio atendem indivduos que atuam com a
conservao ambiental e o desenvolvimento sustentvel, em suas diversas interfaces,
com foco no bioma amaznico. Desse pblico destacam-se: comunidades extrativistas,
assentados, populaes indgenas, profissionais e estudantes da rea ambiental.
Misso
Capacitar, incentivar a formao, gerar e disseminar conhecimentos e fortalecer a arti-
culao de atores sociais para construir uma sociedade sustentvel.