BOSI, A. Narrativa e Resistência
BOSI, A. Narrativa e Resistência
BOSI, A. Narrativa e Resistência
At aqui a relao entre narrativa e resistncia tica foi descrita no interior de uma
esfera de significados datada, historicamente enraizada, no caso dentro de uma cultura
de resistncia poltica. As opes de cada escritor, por diferenciadas que fossem, se
destacavam todas de um mesmo fundo axiolgico, que se pode qualificar de
mentalidade antiburguesa gerada dialeticamente como um no lanado ideologia
dominante.
Deve-se, porm, aprofundar o campo de viso. E detectar em certas obras,
escritas independentemente de qualquer cultura poltica militante, uma tenso interna
que as faz resistentes, enquanto escrita, e no s, ou no principalmente, enquanto tema.
Quem diz escrita fala em categorias formadoras do texto narrativo, como o ponto de
vista e a estilizao da linguagem. Vejo nesses dois processos uma interiorizao do
trabalho do narrador. A escrita resistente (aquela opo que escolher afinal temas,
situaes, personagens) decorre de um a priori tico, um sentimento do bem e do mal,
uma intuio do verdadeiro e do falso, que j se ps em tenso com o estilo e a
mentalidade dominantes.
Recorro a um conceito que subjaz prpria idia de resistncia, o conceito de
tenso. J o utilizei para caracterizar algumas formas do romance | brasileiro moderno.
A matriz a teoria de Lukcs sobre o heri problemtico. As suas ramificaes se
encontram principalmente nos estudos de Lucien Goldmann sobre as origens da tragdia
jansenista de Racine (em Le dieucach) e sobre as relaes entre romance e classe em
Pour une sociologie du roman .
Chega um momento em que a tenso eu/mundo se exprime mediante uma
perspectiva crtica, imanente escrita, o que torna o romance no mais uma variante
literria da rotina social, mas o seu avesso; logo, o oposto do discurso ideolgico do
homem mdio. O romancista "imitaria" a vida, sim, mas qual vida? Aquela cujo sentido
dramtico escapa a homens e mulheres entorpecidos ou automatizados por seus hbitos
cotidianos. A vida como objeto de busca e construo, e no a vida como encadeamento
de tempos vazios e inertes. Caso essa pobre vida-morte deva ser tematizada, ela
aparecer como tal, degradada, sem a aura positiva com que as palavras "realismo" e
"realidade" so usadas nos discursos que fazem a apologia conformista da "vida como
ela "... A escrita de resistncia, a narrativa atravessada pela tenso crtica, mostra,
sem retrica nem alarde ideolgico, que essa "vida como ela " . Quase sempre, o
ramerro de um mecanismo alienante, precisamente o contrrio da vida plena e
digna de ser vivida.
Anos depois, pensando na interseco de poesia e resistncia, procurei explorar a
fenomenologia das relaes entre os dois campos de significado. Ganharam relevo as
seguintes modalidades: a resistncia da stira e da pardia, sem dvida as suas formas
mais ostensivas; a resistncia profunda, s vezes difcil de sondar, da poesia mtica; a
resistncia interiorizada da lrica, que entrana os fios da memria com os das
imaginao; enfim, a resistncia que se faz projeto ou utopia no poema voltado para a
dimenso do futuro.
Essa gama de possibilidades poder tambm ser testada nas relaes que
aproximam narrativa e resistncia, mesmo quando a interseco se d fora de um
contexto de militncia poltica.
Raul Pompeia, em O Ateneu, fez ora stira direta, ora pardia, da linguagem
pedaggica e da retrica cientfica e literria predominante nas escolas para a elite de
nosso Segundo Imprio. |
Em outro extremo, foi pela revivescncia dos mitos dionisacos e apolneos que
Thomas Mann comps, em registro moderno, a tenso entre romantismo e classicismo,
irracionalismo e racionalismo, constitutiva da cultura alem da primeira metade do
sculo XX .
Marcel Proust fez o passado resistir em filigrana mediante a escrita infinitesimal
da memria. A anamnese o salva do tdio do presente.
Em A paixo segundo G. H. de Clarice Lispector a narrativa oscila entre o
confidencial e o metafsico. O tempo do relgio suspenso e a imaginao se projeta e
se desdobra em um espao fluido e sem margens.
Pedindo vnia para fazer minha prpria anamnese crtica: se, a uma certa altura,
eu me orientei por uma concepo estritamente poltica ("positiva", prtica e militante)
de cultura, bebida em Lukcs, em um segundo momento foram Benjamin e Adorno com
a dialtica negativa que me fizeram reencontrar as fontes hegelianas da primeira
juventude, a dialtica dos distintos de Croce. Esta filosofia traava com nitidez a
diferena entre a intuio, que pura impresso e imagem, e o momento da reflexo. E
distinguia, com a mesma clareza, sentimento e praxis coerente.
A poesia, forma aurorai da cultura, est aqum da teoria e da ao tica, o que
no significa, porm, que no possa conter em si a sua verdade, a sua moral; e
sobretudo, o seu modo, figurai e expressivo, de revelar a mentira da ideologia, a trampa
do preconceito, as tentaes do esteretipo.
Haveria, portanto, a possibilidade de o ato intuitivo do conhecimento resistir
m generalidade do pseudoconceito aprofundando a verdade imanente no momento da
singularidade.
E se o termo correto anamnese, cabe memria descer mais fundo e perseguir,
para alm das teorias estticas laboriosamente edificadas, as motivaes primeiras que
me levaram (e ainda me levam) a tomar sempre um grande texto narrativo como uma
formao simblica grvida de sentimentos e valores de resistncia. E o que me traz
essa descida memria de leitor? Meu contacto juvenil, fortemente emocional, com as
novelas e os contos de Pirandello.
Luigi Pirandello viveu uma situao cultural fecunda: a da crise ou "converso
do naturalismo" (a expresso de Otto Maria Carpeaux) nos fins do | XIX. Uma
situao matricial cujos desdobramentos ainda no se esgotaram cem anos depois. Dela
participaram no s Pirandello como tambm os mestres da nossa modernidade: Marcel
Proust, em relao ao naturalismo do romance francs; James Joyce, em relao ao
realismo do romance ingls; Franz Kafka, em relao ao realismo do romance alemo e
centro-europeu.
Proust, Pirandello, Joyce e Kafka so os grandes superadores da tese oitocentista
segundo a qual a literatura o "espelho" da vida social, logo, o discurso da conveno
realista.
A mim atraiu-se, particularmente o olhar abissal que Pirandello lanou
complexidade da persona social.
medida que o realismo, aliado ao cientificismo, ia construindo as peas dos
tipos sociais como formas de descrio e entendimento das personagens da fico,
tornava-se problemtico desvendar, ao mesmo tempo, o que pulsava dentro do tipo e por
trs da mscara. A persona s existia e ganhava substncia e identidade medida que
era descrita por meio dos seus caracteres ostensivos e classificveis: a raa, a
nacionalidade, a procedncia regional, a profisso, o lugar social (classe), em suma, o
geral e comum que aproximava o indivduo de outros indivduos e recebia um rtulo. A
personagem era a somatria de atributos: o homem mais francs mais normando, mais
trabalhador nas minas de carvo, a que se acrescentavam s vezes traos pertinentes
carga gentica, em particular taras ou tiques herdados de pais e avs. O naturalismo,
endossando teorias fatalistas, carregava as tintas dessa reificao do ser humano
procurando mostrar a fora dos condicionamentos como causa primeira das suas
atitudes. Em uma palavra, fechava-se o horizonte de sentido do romance performando-
se os gestos, as aes, as palavras das personagens. Dava-se azo automatizao das
expectativas do leitor.
Mas havia, j no Pirandello jovem, em pleno ocaso do sculo XIX, e na esteira
do regionalismo siciliano, uma reao contra a literatura forjadora de esteretipos. Os
seus primeiros "tipos" so e no so naturalistas. Trata-se de homens e de mulheres que
a sociedade provinciana marginalizou; mas, se ainda prevalece nessas tentativas juvenis
uma certa psicologia convencional, pois o eu dos sujeitos discriminados dispe de uma
unidade, de uma identidade slida que lhes d um carter, aquela mesma situao de
marginalidade faz deles seres
atpicos, excepcionais, surpreendentes, paradoxais. Aparentemente, loucos... | Com o
tempo e, principalmente, a partir de / / fu Mattia Pascal, romance publicado em 1904,
Pirandello vai descendo ao corao da matria. O protagonista, Mattia Pascal,
desgostoso com o seu meio familiar e provinciano onde se sente cada vez mais um
estranho, decide evadir-se de modo drstico: desaparece da sua cidadezinha natal; pouco
depois, aproveitando-se de um acaso propcio (o achado de um cadver de suicida difcil
de identificar), consegue passar por morto. Uma identidade se esvai, outra surge. Novo
acaso: ganha uma fortuna na roleta em Montecarlo e vai para Roma liberto de todas as
amarras do passado. O romance mostra, nesse primeiro tempo, a possibilidade da morte
da mscara social. Possibilidade que se revela, do meio para o fim da narrao, como
algo precrio e afinal ilusrio: a nova personagem, nascida do nada, e que recebera o
nome fictcio de Adriano Meis, tambm comea a assumir, para os outros, uma
determinada fisionomia pela qual ser vista, julgada e cristalizada na teia social. A
frma social uma fonte de equvoco e sofrimento, um mal insupervel. Adriano Meis,
envolvido em um caso amoroso sem soluo (pois, no tendo identidade civil, ele no
existe, no podendo socializar sequer as relaes naturais), resolve "suicidar-se", ou
seja, fugir, deixando entender que se matara. O falecido Mattia Pascal tampouco
sobrevivera. Retornando sua cidadezinha, encontra a mulher casada com outro, e j
ocupado o seu modesto posto de bibliotecrio. A vida se recompusera, como sempre,
revelia dos mortos e dos ausentes. S resta ao fantasma civil levar flores prpria
tumba. A liberdade a-social um mito. A narrativa comea precisamente nesse momento
em que a conscincia tenta realizar mediante a escrita (que smbolo e fico) o que a
mquina social condena mera veleidade.
No cotidiano, cada um de ns, conclui Mattia, precisa resignar-se a afivelar a
mscara correspondente quilo que, em italiano, se diz com preciso as nossas
"generalit". Generalidades: o que consta em nossa carteira de identidade, o registro
civil sem o qual no temos nenhuma existncia idnea e confivel.
A resistncia um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o
n inextricvel que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histrico. Momento
negativo de um processo dialtico no qual o sujeito, em vez de reproduzir
mecanicamente o esquema das interaes onde se insere, d um salto para uma posio
de distncia e, deste ngulo, se v a si mesmo e reconhece e pe em crise os laos
apertados que o prendem teia das | instituies. Nos mesmos anos em que Pirandello
desnudava o conflito entre a persona e o fluxo subjetivo, Emile Durkheim e toda a
cultura positivista do Ocidente afirmavam que o Sistema Social tinha a consistncia
dura das coisas, e que esta sua objetividade era sinnimo perfeito do termo "realidade".
Caberia ao romance e ao teatro de Pirandello e narrativa de Proust, de Joyce e
de Kafka o papel revolucionrio de dizer que a escrita pode cavar um vazio nessa
espessa materialidade. O vazio, negatividade grvida de um novo estado do ser, a
conscincia jamais preenchida pelo discurso especular das convenes ditas realistas.
A escrita resistente do ps-naturalismo emprestou voz aos mltiplos fantasmas
do sujeito que estavam recobertos pela frma de gesso da mscara social.
A escrita resistente no resgata apenas o que foi dito uma s vez no passado
distante e que, no raro, foi ouvido por uma nica testemunha, como se d, por
exemplo, no primeiro captulo das Memrias do crcere.
Tambm o que calado no curso da conversao banal, por medo, angstia ou
pudor, soar no monlogo narrativo, no dilogo dramtico. E aqui so os valores mais
autnticos e mais sofridos que abrem caminho e conseguem aflorar superfcie do texto
ficcional.
Por sua vez, a narrativa lrica, quando atinge certo grau de intensidade e
profundidade, supera, a rotina da percepo cotidiana e liberta a voz de tudo quanto esta
abafou ou apartou da conversa, at mesmo do dilogo entre amantes, amigos, pais e
filhos. Dois exemplos bastam: a abertura da Crnica da casa assassinada de Lcio
Cardoso e toda A paixo segundo G. H. de Clarice Lispector.
nesse sentido que se pode dizer que a narrativa descobre a vida verdadeira, e
que esta abraa e transcende a vida real. A literatura, com ser fico, resiste mentira.
nesse horizonte que o espao da literatura, considerado em geral como o lugar da
fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente. (BOSI, A. Narrativa e resistncia.
Itinerrios, Araraquara, n. 10, p. 11-27, 1996. Disponvel em:
<http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2577/2207>. Acesso em: 21 mar.
2016, p. 22-27)