2008 - Imagens Na História
2008 - Imagens Na História
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STRIA IMAGENS NA Organizao
^A HISTRIA IMAfffi
EDITORA HUCITEC
MAGENS NA HISTRIA um livro resultante das
CAPA:Mariana Nada.
Imagem da capa:Cedn'estpasunepotnme, 1960, Ren Magritte
Linguagem e Cultura 41
direo de
Sandra Nitrini
Etienne Samain
LINGUAGEM E CULTURA
t t u l o s publicados
IMAGENS NA HISTRIA
So Paulo, 2008
2008, da organizao, de
Alcides Freire Ramos,
Rosngela Patriota,
Sandra Jatahy Pesavento.
2008, desta edio, de
Aderaldo 8c Rothschild Editores Ltda.
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ClP-Brasil. Catalogao-na-Fonte
Sindicato Nacional de Editores de Livros, RJ
129
PG.
II/Imagens da Poltica
129
A imagem do historiador, entre erudio e impostura . . . .
Sabina Loriga
111/Imagens da Cidade
235
Santos: para almdo porto do caf
Maria Izilda Santos de Matos
254
De como os mulatos entraram na histria dos musicais cariocas
Antonio Herculano Lopes
260
Mozart na pera do Carnaval: cantoe viso sem igual.
Mrcia Ramos de Oliveira
278
Acidade em textos e imagens na obrade rico Verssimo
Charles Monteiro
Ver e servisto pelo poder: quando a poltica vai s ruas na Porto Alegre dos 293
anos 1920
Ricardo de Aguiar Pacheco
IV/Imagens da Escrita
o seu valor de textos, para que falem e contem histrias sobre o passado, ajudando
a desfazer a opacidade dos valores e gostos que no so mais os nossos.
Alis, no esta a tarefa de todo seguidor de Clio? Compreender uma socie
dade de um outro tempo, juntar todos os traos deixados, materiais e objetivos,
mesmo que neles se contenha a imaterialidade da trama da vida, ou seja, as ra
zes, as emoes e os sentimentos, ou seja, a traduo sensvel do mundo, de um
outro tempo e de "outros" no tempo?
Os historiadores da cultura empenham-se, pacientemente, na recuperao
e na buscadestestraos descontnuos, tecendo laos e estabelecendo nexos, criando
histrias e inventando tramas; preenchendo as lacunas e os vazios com verses
plausveis e possveis, suprindo os silncios com palavras que conduzem a enre
dos. Nessa medida, este desempenhobuscadopelos historiadores aproxima-se da
capacidade desenvolvida pelo espectador, como fala Gombrich,' que,/Jz existir a
imagem. Por meio da percepo, o saber prvio e especfico de cada leitor vem
suprir o no representado, complementando a cena com os dados de seu conhe
cimento, leitura e experincia.
Se assumirmos que estes so recursos que tambm esto presentes na escri
ta da histria, quer parecer que vamos ao encontro de uma concepo, que hoje
j tem um certo consenso, de Stephan Bann a Paul Ricoeur, que admite a intro
duo deelementos nitidamente ficcionais nareconfigurao do tempo realizada
pelohistoriador.
Mas, sem aquelas marcas de historicidade ou aqueles "rastros" do passado
para utilizar a expresso consagrada por Paul Ricoeur^ , no h histria pos
svel a ser contada. Os historiadores falam de um acontecido, e esse acontecido
precisa deixar traos no tempo.
Ora, dentre tais rastros, cacos ou traos deixados, os historiadores hoje se
deparam com um tipo de registro muito especial: as imagens, estas tradues fi
gurativas doreal que podem apresentar-se sob um suporte fsico diverso, mas que
so, sempre, ao humana, artefatos que se oferecem vista e que pressupem
um leitor-espectador que as contemple.
As imagens so fruto deao humana, que interpreta e recria o mundo como
representao, exercendo grande fascnio. As imagens so visuais, e carregam con
sigo esta condio especial que se realiza no plano dos sentidos, ao serem captadas
e fixadas por um certo tempo na retina de quem v. Imagens so, pois, traos de
uma experincia sensorial e emotiva.
Mas, para alm da instncia das sensaes que produzem o efeito visual, as
imagens so mentais, pois so fruto de uma percepo, o quenos remete aos pro
cessos da esfera cognitiva de reconhecimento, identificao, classificao e atri
buio de significados. As imagens apreendidas pela vista so postas em relao
com nosso museu imaginrio interior, no arquivo de memria que cada um car
rega consigo. E, nesse processo, elas recebem uma carga de sentido que as permi
te perdurarna memria, podendoser recuperadas pelopensamento.
Cf. Giulio Agamben. Image et mmoire. Paris: Descle de Brouwer, 2004, p. 18.
Ibidem, p. 22.
Ibidem, p. 20.
20 Sandra jatahypesavento
de seus afetos e razes. Um lbum de fotos desse tipo permite a captura das sensi
bilidades dos indivduos deste crculo reduzido que a famlia, tecido de laos
especiais, E, do indivduo ao social, um lbum pode nos dizer, como j foi assina
lado, algo sobre a expresso humana na sua irredutvel historicidade.
Exibindo momentos variados da existncia de uma famlia, as fotos de um
lbum podem ser consideradas como uma herana vinda do passado que se conec-
tam a muitas outras imagens, herdadas e retidas na memria social de cada um.
Mergulhemos no nosso pequeno acervo, muito maltratado ao longo dos anos,
situando-o no tempo e no espao: este lbum pertenceu a uma famlia que viveu
em uma pequena cidadeda campanha gacha, na viradado sculoXIX para o XX.
Mas ento ele pertence Belle poque, diro alguns, queteria, pois, chegado
a estes lugares to distantes e esquecidos do sul do Brasil? Pois bem, se a moder
nidade e a Belle poque desembarcaram em taislugares longnquos, para essafam
lia, entre tantas outras, foi na forma de uma mquina fotogrfica, adquirida em
Porto Alegreou outras plagas mais distantes, provavelmente importada do estran
geiro. Alis, tambm da dita Belle poque era o Perfecsope patenteado nos EUA
em 1895 e apresentado na exposio universal de Paris de 1900 prosaicamente
chamado no sul do Brasilde marmota aparelho que dava a ver postais parisienses
em terceira dimenso , tal como o projetor cinematogrfico que, mandado vir
da Frana, divertia as crianas e talvez toda a famlia e vizinhana, quem sabe
com os singelos filmes curtos de situaes cmicas de Path e Gaumont.
Mas tais materiais cinematogrficos no chegaram at ns e sobre o ama-
relecido e muito desgastado lbum que nos voltamos, com fotografias muito pre
judicadas e sem maior qualidade artstica. O que este material, no caso, pode nos
dizer, como reserva de sensibilidades do passado, como arquivo de memria por
meio da imagem?
Em princpio, o autor dessas fotos o chefe dessa famlia ao comprar a
mquina tornou-se detentor do saber tcnico de oper-la. Possuidor da habilida
de de fotografar, eletinha sua disposio o cotidiano da vida,as pessoas da fam
lia tomadas em pose ou em instantneo , os fatos do imprevisto desta pe
quena cidade ou do extraordinrio de sua vida familiar. Tudo muito reduzido em
alcance, muito simples, muito ntimo, talvez mesmo sem qualidade ou interesse
para os outros. Sem interesse, sobretudo, para a grande histria, para quem este
fotgrafo amador um total desconhecido e s o chamamos de fotgrafo porque
era ele quem operava a mquina.
Masacreditamos que de posse desse aparelho fotogrfico ele buscouregistrar
tudo que esteve a seu alcance e justo o resgate desta banalidade das coisas de
cada dia que nos interessa, pois tal lbum familiar estariano corao de uma rede
de sentidos que organiza a esfera do privado e que toca s sensibilidades. Seu va
lor , pois, de marcar afetividades, e no de apreciao esttica das fotos em si
mesmas. De nossa parte, fizemostambm uma seleo, desprezando talvezas mais
perfeitas e mais bem conservadas, optando pelas que, para ns, pudessem nos di
zer mais.
Comecemos por duas fotos fundadoras da identidade desse grupo familiar.
E, no princpio deste lbum, achamos a casa, esta slida residncia assobra
dada, que aparece em uma esquina da pequena cidade, diante de um largo com
terra revolvida, que faz pensar no ajardinamento de uma futura praa. O panora
ma quase de desolao, pois ela surge como que isolada. Mas esta casa que se
exibe, a mostrar suas inmeras janelas, onde as mulheres se debruam, a posar
para a foto, ostenta certos requintes de construo nos frontes, nos vasos ou ur
nas que encimam a fachada, junto de uma srie de colunas, ou nas janelas que
apresentam vidraas em arabescos. Esta famlia exibe-se pela casa e seus signos,
tal como o faz o carro estacionado porta, puxado por cavalos, com o competente
condutor. Ladeado por duas meninas maiores, o menino postado na calada ates
ta a presena de empregadas domsticas para cuidar de crianas. A casa, tradicio
nal microcosmo do social, reduto da intimidade, mas tambm do aparecer social,
foi a imagem escolhida pelo fotgrafo, seu morador, para figurar no lbum fami
liar. Casas so razes, e se existe uma forma de inscrever no tempo e na terra uma
presena, a representao do espao construdo, de propriedade de uma famlia,
uma imagem exemplar.
Mas essa famlia precisava tambm constar do lbum, com todos os seus
membros, o que dificultava o procedimento para o fotgrafo amador. Imagine
mos sua atuao nesta empreitada, suprindo as lacunas do passado e imaginando
uma performance para este ato. O fotgrafo disps a famlia na varanda e na esca
daria dos fundos da residncia, em frente ao poo chamado de "algibe" ,
mandou a todos tomar posio, armando a cena, cada um ocupando uma posi
o determinada. Reservou para si um lugar, no alto da escada, acima da sogra.
imagens, memria, sensibilidades: territrios do historiador 23
Nos fundos da casa, o grupo familiar aberto ao p da escada por sua esposa,
filha nica do proprietrio da casae razo do seu ingresso privilegiado nesta famlia;
seu sogro, que se situa no degrau acima da filha, leva nos braos o neto; segue-se a
sogra, figurando ele, fotgrafo, no final desta seqncia, como o marido e genro
que se agregou famlia. Na varanda, debruadas, as duas velhas senhoras so,
como seria de esperar, as respectivas mes dos sogros do fotgrafo amador.
As quatro geraes representadas na foto fazem-se acompanhar dos ser\'i-
ais da casa, presentes nas trs mulheres e na menina de avental, no passadio da
varanda. Na outra extremidade, sob o caramancho, meio na sombra, est o ordc-
nana, pois nosso fotgrafo era militar e tinha sua disposio um subordinado,
com presena nesse meio familiar. O chauffeur deixa de figurar nesta foto tomada
nos fundos da residncia, talvez por ter sido j exibido na anterior, que mostrava
a fachada da casa e o carro da famlia. Sinais todos evidentes do status de uma
famlia que quer fixar sua imagem no lbum, atestando a presena de emprega
dos para o servio domstico nestestempos recm-sados da escravido.
Retratos, como se sabe, tm o valor simblico de representarem a forma pela
qual o retratado gostaria de ser visto. Dizem respeito, portanto, aos valores e auto-
conscincia dos indivduos com relao ao aparecer social, s identidades e pcifor-
mance dos retratados. No retrato de famlia, a gestualidade da pose e a conscincia
Sandra jatahy pesavento
A 'L^- <23
imagens, memria, sensibilidades:territrios do historiador 25
Mas este Joo Miranda, digno do olhar do fotgrafo, tinha uma famlia sua,
que o acompanha nesta outra foto posada. Tmidas, de diferentes idades, sem sa
berexatamente como enfrentar o fotgrafo, demonstrando gestos canhestros, um
grupo de mulheres de idades variadas cerca Joo Miranda. Seria uma delas figu
rante da foto familiar anterior, prestando servios na casa dos antigos senhores, j
com roupa adequada e modos contidos? Trata-se, sem dvida, de um retrato no
qual os retratados no possuem o domnio ou a compreenso dos cdigos ade
quados da gestualidade conveniente ao ato fotogrfico. Nesta foto, Joo Miranda
o nico que, verdadeiramente, demonstra que sabe como se portar diante do en
genhoso emoderno aparelho
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Apresentada a famlia, a casa, os empregados e agregados, cabia ao fotgrafo
registrar os momentos do cotidiano, para que no fossem esquecidos. Tais mo
mentos foram fruto de escolhas pessoais do fotgrafo e o registro de tais cenas de
intimidade est ligado esfera dos sentimentos, de forma indissocivel. Estes mo
mentos poderiam ser tomados, ainda que em pose estudada, na familiar hora do
26 Sandra jatahypcsavento
ch, tomado ao ar livre nos dias de bom tempo. Momento de pausa das lides do
msticas, a congregar as mulheres da casa e outras, parentes e amigas, o ritual do
choferecia ao fotgrafo a oportunidadede registrar um hbito. Uma cena do lar,
tpicadas sociabilidades femininas, tomada na objetiva do marido-fotgrafo.
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Todas elas e mesmo a criana, na cadeirinha alta, com olhos muito arrega
lados olham a cmara, inclusive aquela a sogra que, em movimento
suspenso, serve o ch para a filha esposa do fotgrafo que estende a taa. Esta
ltima personagem merece um olhar mais atento. Ela a nica que dirige o olhar
para o bule de ch, e se apresenta aparentemente alheia mquina fotogrfica e
pequena encenao que tem lugar neste espao privado. Ela est grvida, veste uma
bata sobre a saia e nesta condio, na intimidade do lar, que o marido a retrata.
Na seqncia dos registros da vida e dos afetos, a grvida reaparece em outro
momento do cotidiano desta famlia. Desta vez o fotgrafo ousa ir alm da pose
estudada para seus registros de imagens: ensaia-se na captura do momento fugaz,
a surpreender gestos e palavras com sua cmara. Trata-se agora de registrar o ins
tantneo, de um momento feliz. Com a mquina preparada, o fotgrafo-marido
deve ter aguardado o momento engraado, a cena tocante, o explodir das emo
es. Sem a fotografia, tais cenas seriam esquecidas; com a foto incorporada no
lbum de famlia, ser sempre possvel recordar estes minsculos incidentes, es
tes pequenos "nadas" com que se faz a vida de cada dia e com o que se tecem as
reminiscncias. A grvida reaparece, a rir, tal como todos, de uma provvel "graci-
imagens, momna, sensibilidades: territrios do historiador
nha" da criana, que deve ter dito ou perguntado algo ao menino sentado no cho.
Nesse ambiente de descontrao, debaixo das rvores e prximo a um monte de
lenha que deve ter sido cortada das proximidades, a cena talvez banal, mas o
registro sensvel de um momento feliz dos membros dessa famlia.
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28 Sandra jatahy pesavcnto
'Cf. Georgc.s Didi-Huberman. Atile el tienipo. Buenos Aires; Adriana Hidalgo Editora, 2006, p. 11.
imagens, memria, sensibilidades: territrios do historiador
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Entretanto, esta to pequena cidade, esta vida prosaica de cada dia tinha seus
momentos de alterao de rotina. Por exemplo, o carnaval, quando as crianas da
casa eram fantasiadas de msicos, com roupas feitas do jornal Correio do Povo,
editado na capital do estado, desde 1895, e que chegava at aquela regioda campa
nha gacha. Ou, por outras, um terrvel vendaval, a destelhar casas, tudo registra
do por nosso fotgrafo-reporter. Ou ainda, uma caminhada, em que o mau estado
30 Sandra jatahy pesaveiito
da foto no permite ver o motivo desta marcha, que inclui crianas, adultos, gen
te aparentemente humilde. Os da frente dessa caminhada parecem carregar pa
pis ou folhas de jornal, e os do fundo, que acompanham a marcha, em meio
poeira da estrada ou rua no calada esto ocultos pelos guarda-chuvas, a se pro
teger do sol. Quem sero eles? Por vezes, bem sabemos, as lacunas do passado res-
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deste ao travesso, nosso incansvel fotgrafo amador foi alm nas suas artes de
capturar a vida. Com os recursos que tinha disposio, ousou enveredar pelo
mundo dos truques, compondo fotografias de iluso, to ao agrado da Belle poqiie
em que viveu, apesar de to distante dela no espao.
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Da cidadezinha do sul onde morava, ele sintonizava com as artimanhas das
imagens, a inventar fotos impossveis, fantasmticas. No plano do real da existn
cia,estas situaes criadas no tinham lugar, mas no plano das representaes pos
sveis de serem fabricadas por ele, um certo domnio da tcnica fotogrfica lhe
permitia criar imagens bizarras!
Assim que vemos o fotgrafo amador servir um caf a si mesmo, no duplo
papel e garoii e de fregus. como se ele, de seu pequeno mundo, conseguisse
conciliar as duas formas de conhecimento do mundo de que fala Barthes. Roland
Barthes precisa bem a distino e tambm o entrelaamento entre o que chama o
stiiciiutn e o piinctum.' O studium pertence ao campo do saber e da cultura, da tc-
Cf. Roland Barthes. La chambre claire. Note siir Ia pliotographie. Paris: Gallimard-Scuil, 1980.
imagens, memria, sensibilidades: territrios do historiador
Mas, por outro lado, a composio de tais imagens obedecia nesta poca tam
bm, por vezes, a fins sentimentais, para demonstrar que a imagem de uma pes
soa amada ocupava os pensamentos daquele que lhe devotava afeio e que se
situava, assim, no plano dos afetos, como que acima das coisas materiais deste
mundo. Preferimos, pela lgica de nossa histria e da leitura que fazemos deste
lbum de famlia, destinar a tal truque fotogrfico, este ltimo significado: era
talvez uma prova de amor. . . A tal ponto que, morto o fotgrafo, a viva a conser
vou em seu lbum, mesmo danificada, o que permitiu que ela chegasse at ns,
junto com as demais, permitindo dar a ver, nessas fotos, histrias de imagens, de
memria, de sensibilidades.
DO DOCUMENTO NATURALISTA AO DOCUMENTO SOCIAL
JEAN-BAPTISTE DEBRET E OS PINTORES VIAJANTES
Jacques Leenhardt
cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, Paris
' Jean Franois Galaup, apud Bernard Smith. European Vision and the Pacific Soi4th. 2.' ed. New
Haven/Londres: Yale University Press, 1985, p. 139.
do documento naturalista ao documento social, debret e os pintores viajantes 37
fato considervel, a lidar entre a viso tradicional do ensino acadmico, ainda sob
as regras do neoclassicismo, e a exigncia de exatido quesetinha desenvolvido por
ocasio das expedies. Essas expedies foram, na verdade, ocasio de feliz encon
tro entre artistas, formados no desenho e na pintura nas academias das belas-artes
e dos desenhistas cientficos habituados disciplina descritiva da botnica ou da
zoologia, semfalar nosdesenhistas da marinha, ligados s normasda cartografia.
As regras da arte acadmica encontraram-se, pois, confrontadas com as exi
gncias no mais da "bela natureza", como se gostava de dizer, mas simplesmente
da natureza, com suas leis prprias de organizao. A questo ultrapassava em
muito a nica exatidona relao das formas e das matrias(escamas, peles, cores,
tecidos cutneos). A nova verdadeda natureza exigia uma verdadeira especificao
da planta ou animal, um incio de restituio ecolgica, se poderia mesmo dizer,
que substituiria a "bela paisagem" por um "meio de vida".
Essasexigncias,estranhas tradio do paisagista clssico, constituam para
os pintores uma espcie de campo contraditrio. Era preciso contemplar o gosto
dos amadores, sempre influenciados pela esttica tradicional e ao mesmo tempo
desempenhar seu papel na transformao das mentalidades que se abeberavam
na fonte dossaberes e das descries empricas que tambm tinham o seu pblico.
Asgrutas pitorescas e as cascatas sublimesque invariavelmente se encontravam nos
carns dedesenho detodos osartistas queacompanhavam osricos viajantes do Grand
Tour italiano continuavam a agradar, mas elas correspondiam cada vez menos s
expectativas de um novo pblico sedento de conhecimento. Durante um longo
sculo, entre digamos 1760 e 1860, se encontram, de fato, divididas entre essas
duas exigncias e se pode dizer que a evoluo do desenho documental, e mais
ainda, etnogrfico, ser determinado pela maneira segundo a qual cada artista se
comportar com relao aoscdigos da aprendizagem acadmica da arteaosquais
se filia.
Este aspecto propriamente esttico desdobra-se de um outro, ideolgico e
moral, queconcerne mais especificamente aodesenho etnogrfico. Depois do in
cio do sculo XVllI, as idias sobre os que chamavam de "selvagens" se multipli
cam e se entrechocam. H, de um lado, os "bons s.elvagens", livres dos vcios da
sociedade tal como entendiam os que, de Fnelon a Rousseau, acreditavam nas
"virtudes primitivas", e de outro os "maus selvagens", rebeldes, canibais e pagos,
objetos, no melhor dos casos, das tentativas de evangelizao pelas igrejas mis
sionrias ou, ao contrrio, sendo vtimas de massacres brutais.
Pode-se analisar este debate esttico-tico com base em algumas imagens
de nativos da Terra do Fogo, chamados fueguinos, que Debret teve, sem dvida,
sobos olhos antes de partirparao continente americano. Esses fueguinos, ou me
lhor,patagnios, habitavam em tendas de pele, toldos. Eles surpreenderam os pri
meiros viajantes que passaram o estreito de Magalhes por seu grande talhe e sua
absoluta nudez. No foi preciso mais para que nascesse um verdadeiro mito do
"bom selvagem fueguino", que Fnelon difundir em suas Aventures de Tlmaque
(1699), onde a pobreza elevada ao plano da virtude.
38 jacques leenhardt
Cabana de Buchan
- Bernard Sniith. European Visioii and the Pacific Soiith. 2.^ ed. New Havcn/Londres: Yale
Univcrsit)' Press, 98.S.
do documento naturalista ao documento social, debrct c os pintores viajantes 39
Cabana de Parkinson
' Sydney Pirkinson. Nativos of Terra dei Fuego with their Hut, Crayon c Goiiachc 1769 liritish
Muscum. In: Bernard Smith. Eiiropenn Vision and the Pacific Soiilli. 2.'* ed. Now Havcii/Londrcs: Yalc
University Prcss. 1985, p. 37.
40 jacqucs icenharcit
Cabana de Cipriani
' Claude Gellc dit Lc Lorrain (1600-1682), pintor francs; trabalhou cssendamcnlc em Roma
e considerado, ci>m Poussin, o pai da paisagem clssica cm pintura.
~Ciiivanni Battista Cipriani. A Vicw oj lic Iiuliaiis of Terra dcI Fiicgo in thcir Hiit. (iravura a partir
de (jpriani por Bartolozzi, in: J. Hawkcsworth. An Acconnt of lhe Vcyages Undcrtakeii by lhe Order of
His Prcscnt Mnyesty for Makiny Discovcrics in lhe Soiilh Heinisphere. London 1773, reproduzido em
Smith, op. cit,, p. 39.
do documento naturalista ao documento social, debret e os pintores viajantes 41
Cabana de Read
42 jacques leenhardt
^ J. F. Read. Natives of Terna ciei Fuego, gravura, in: Captain Cook. Voyage roind the World,
publicada por W. Wright, Londres, 1843, reproduzida in: B. Smith, op. cit., p. 39.
' Jean-Baptiste Debret. Voyage pittoresque et historique au Brsil, Paris, 1834-1839. In: . Viagem
pitoresca e histrica ao Brasil. Trad. Srgio Milliet. So Paulo: Crculo do livro, [s.d.].
* Dr. Joh. Bapt. von Spix und Dr. Gari Friedr. Phil. Von Martius Reise iii Brasilien auf Bcfchl Sr.
Malestiit Maximilian Joseph /, Knig von Baiern in den Jahren 1817 bis 1820 gemacht und beschrieben. M.
Lindauer Mnchen 1823. Ver, por exemplo, a descrio dos ndios purs, coroados e corops, livro IV
captulo 2, Trad. Lcia Furquim Lahmeyer. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938, p. 341, ss.
do docuincMito naturalista ao documentosocial, dcbret e os pintores viajantes 43
estada brasileira. Se, por vezes, uma composio lembra os ensinamentos de David,
ela se torna, de ora em diante, desviada de sua seriedade, tornando-se, seguida
mente, revestida de uma carga irnica, ridicularizando o que representa, como
por exemplo, a imagem "O Retorno de um Proprietrio" (Prancha 15).
" Iciin-Baptisto Dcbict. Vtiyagc piltorcsiitie cl hitoriquc iiii Ihvfil, Paris, 18.^4-18.^9. In: . Vio^ciii
pitoresco < histrico oo lirosil. Trad. Srgio Millict. So Paulo: Crculo do livro, [s.d.|, p. 48. (Prancha 8).
jacques leenhardi
>*ai>4taiaii
r F a a
tttaaapaiS*
C - ,
. 'V. A
ta '
A idia mesmo de reunir numa nica imagem quatro tribos ndias de sur
preender, ainda mais se levarmos em conta que o artista os situa cm um quadro
paisagstico nico e verossmil. Ora, esse mesmo quadro perde toda a credibilidade
no somente porque no possvel que essas tribos to diferentes e distantes no
espao estejam sentadas juntas, mas tambm pelo falo de,que nessa imagem, cada
um possui sua prpria fogueira, o que acentua o efeito irrealista de colagem e a
vontade de articular uma montagem. Da a estranha impresso que produzem esta
e outras imagens, que parecem verossmeis, mas que no so em realidade seno
uma prancha documental agregando, por necessidade, em um s quadro icnico,
realidades bem distintas. Ao contrrio do que se passa em outras imagens compos
tas, no se trata aqui de mostrar os diferentes aspectos de uma situao, mas bem
mais da repetio dos traos codificadosdo primitivismo. Incoernciasuplementar:
se os personagens do primeiro plano simbolizam uma selvageria violenta e horri
velmente primitiva, as figuras femininas que se destacam sob o cu, estranhamente
prximas das imagens de Albcrt Eckhout, remetem, ao contrrio, imagtica do
"bom selvagem". Assim, no plano esttico como no dos valores morais engajados
na representao dos ndios do Brasil, Debret mostra-se contraditrio, incapaz de
46 jacques leenhardt
criar para si um estilo unificado que d conta de uma posio coerente. Isso no
se d seno quando em contato com a vida urbana do Rio, quando ele encontrar
sua expresso adequada. Mas para isso ser preciso uma nova ruptura.
Vindo ao Brasil em 1816 a pedido da monarquia, quando se encontra em
Paris, sem trabalho depois da queda definitiva de Napoleo, Debret se curva pri
meiro s exigncias da arte cortes. Ele est bem aparelhado para fazer isso, se
bem que a grandiosidade das composies da pintura histrica neoclssica en
contra dificilmente objetos altura de suas ambies na confuso da vida urbana
e social do Rio. O monarca no seno um fugitivo e a cidade, antigo centro
comercial da Colnia, se encontra sem maiores recursos para fazer face ao seu
novo papel de capital do imprio. O descompasso se revela em tudo, como to
bem analisou Rodrigo Naves, tornando-se a tica neoclssica inaplicvel s cir
cunstncias brasileiras.'^
Debret teria permanecido artista mdio, medocre, mal utilizado por circuns
tncias adversas, se no tivesse encontrado em sua herana tica novas razes de
se apropriar desta realidade nascente. De fato, ser preciso que ele compreenda
que o que assiste no a ecloso de uma Monarquia ou um Imprio regenerados
por seu exlio forado, aos quais ele teria sido constrangido, pelas circunstncias
daFrana, a emprestar seu talento de pintor de histria, mas que ele se confronta
ao nascimento de uma Nao Moderna, emergindo daruptura colonial edaescra
vido com uma fora singularmente viva. Desde a introduo da segunda parte
de sua obra ele anuncia claramente seu novo propsito. Trata-se de descrever "a
marcha progressiva da civilizao no Brasil", do que ele fornece claramente o prin
cpio motor; aescravido. "Tudo assenta pois, neste pas, noescravo negro; naroa,
ele rega com seu suor as plantaes do agricultor; na cidade, o comerciante f-lo
carregar pesados fardos; se pertence ao capitalista, como operrio ou na qualidade
de moo de recados que aumenta a renda do senhor"." Eis por que Debret aban
donar a pompa monrquica para a vida da rua onde se manifesta a energia viva
do Brasil na pessoa dos escravos, onipresentes no contexto urbano. Ele far desta
vida anrquica eviolenta, mas carregada de esperanas polticas, o objeto de sua
obra singular, na fronteira da documentao sociolgica eda histria social.
Poder-se-ia dizer que aperspectiva do desenhista etngrafo preservar a me
mria de uma civilizao a caminho de desaparecer quando a tarefa do desenhis
ta historiador consiste, no enquanto, em mostrar como os povos e as culturas se
articulam com para formar uma nao. Na Viagem pitoresca ehistrica ao Brasil,
a viagem pittoresca encerra o estrangeiro, que chega a aparecer extico, no seu
passado, quando a viagem histrica implica que o viajante e o objeto de sua ob
servao participassem do mesmo mundo, participassem do mesmo processo
histrico, mais que antropolgico.
' Cf. Rodrigo Naves. Aforma difcil. So Paulo: tica, 2001, p. 60 ss.
" Jean-Baptiste Debret. Op. cit., p. 121.
HISTRIA E FOTOGRAFIA. NARRATIVAS DE UM ESPAO
DECOLONIZAO: URUANGA
Chiara Vangelista
Universidade de Gnova, Itlia
' Em 1910 o estado de Santa Catarina contava com 405.800 habitantes, dos quais 182.000 eram
imigrantes ou seus descendentes: 120.000 alemes, 42.000 italianos, 20.000 russos e poloneses (Ranieri
Venerosi i Pesciolin. Le colonie italiane nel Brasile merdionale. Stati di Rio Grande do Std, Santa Catha-
rina, Paran. Turim: Fratelli Bocca, 1914. pp. 198-200).
47
48 chiara vangelista
objetos da minha anlise: o livro do Pe. Luigi Marzano, Coloni eMissionari Italiani
nelleForestedei Brasile, sado em Florena em 1904, e o amplo relatrio de Ranieri
Venerosi Pesciolini, LeColortie Italiane negli Stati Meridiomli deiBrasile, publicado
em 1913 na revista Italica Gens e logotransformado no conhecido volumedo mes
mo autor, e com o mesmo ttulo, impresso em Turim em 1914.-
Os dois volumes, muitos diferentes entre si em estilo, enfoque e pblico de
referncia, tm pelo menos dois traos comuns: os autores, quase contemporneos,
foram testemunhos do primeiro, ainda incerto, desenvolvimento econmico da
regio e ambos dedicaram especial ateno insero de imagens fotogrficas. De
fato trata-se das primeiras imagens pblicas de Uruanga, que analisarei adiante
como exemplo de distintas narraes visuais da colonizao italiana no Brasil.
Antes de entrar propriamente na anlise das imagens, me parece necessrio
propor algumas reflexes em torno da relaoentre histria e fotografia.
No amplo processo de multiplicao das fontes histricas que se deu nas
ltimas dcadas do sculo passado, a fotografia teve lugarde destaque, ainda que
a sua capacidade de ser fonte histrica tenha sido bastante controvertida. Por um
lado, parecia quea prpria natureza da fotografia criasse uma relao privilegiada
com a histria e os historiadores: a reproduo do real, a funo de perpetuar no
tempo o testemunho pormenorizado da existncia mesma de pessoas e de even
tos; a capacidade de representar tanto o extremamente particular, como os gran
des acontecimentos da histria dos Estados e das naes. Todas essas propriedades
fizeram com que da fotografia, desde seu nascimento e ao longo das muitas dca
das seguintes, fossem ressaltadas suas qualidades dedocumento.
A estreita relao entre fotografia e histria, e at a capacidade da fotografia
de fazer histria ou substitu-la estava no convencimento dos pais desta tecnologia:
o francs Gaspard-Flix Tournachon, mais conhecido como Nadar (1820-1910),
tinha concebido a formao de grandes Pantheons fotogrficos, para perpetuar no
futuro a reproduo exata do passado; Mathew B. Brady (1823-1896), norte-ame
ricano, trabalhou para a formao de uma galeria de homens ilustres (1850) e
comprometeu-se a realizar a documentao da guerra civil americana, tarefa em
que seempenhou at morrer, pobre e esquecido.
Por outro lado, a fotografia situou-se e continua situando-se nas mar
gens das pesquisas histricas. No estado atual da histria cultural, em que as ma
nifestaes e os produtos mais diversos das atividades humanas podem transfor
mar-se em fontes histricas, a fotografia ainda custa paraconquistar ateno mais
cuidadosados historiadores, os quais, apesar dasdeclaraes de princpios, a utili
zam mais como ilustrao que como objeto de estudo especfico.^
' P. Luigi Marzano. Coloni e missionari italiani nelle foreste dei Brasile. Florena: Tipografia
Barbra, 1904; e Ranieri Venerosi i Pesciolin, op. cit. Do mesmo perodo, outro livro sobre a
colonizao em Uruanga o de C. M. Delgado de Carvalho. Le Brsil Meridional (tiide cononiique).
Paris: E. Desfosss Imprimeur, 1910.
' V. a esse propsito Peppino Ortoleva. Una fonte difficile. La fotografia e Ia storia deiremigra-
zione. Altreitalie, v. Il, a. 1991, n." 5, pp. 120-31. Do mesmo autor, cfr. o importante ensaio metodo
lgico, La fotografia. 11 Mondo Contemporneo, Gli strumenti delia ricerca. Questioni di mtodo.
Floxrena: La Nuova Italia, 1983, pp. 1122-54. vol. X:
histria e fotografia, narrativasde um espao de colonizao: uruanga 49
^ Jean-Paul Sartre. Immagine e coscienza. Turim: Einaudi, 1948; Pierre Bourdieu (dir.). La
fotografia. Funzioni e usi sociali di tm'arte media. Rimini: Guaraldi, 1972; Gombrich. Vimtnagine e
l occhio, cit.; Gombrich. Arte e ilhisiotte. Studio stdla psicologia delia rappresentazione pittorica. Turim:
Einaudi, 1965; Ernst H. Gombrich; J. Hochberg 8< M. Blach. Arte, percezione e realt. Turim: Einaudi,
1978; Roland Barthes. La camera chiara. Turim: Einaudi, 1980; Rudolf Arnheim. II pensiero visivo,
Turim: Einaudi, 1974; Rudolf Arnheim. Sulla natura delia fotografia. Rivista di Storia e Critica delia
Fotografia, v. III, a. 1981, n.'' 2, pp. 6-23.
' Donato Bosca. . . . io parto per VAmerica. Storie di emigranti piemontesi. Alba: Societ Editrice
Tanaro, 1985; e Andreas Madsen. La Patagnia vieja. Pionieri ai confini dei mondo. Turim: CDA8c
Vivalda Editori, 2002, [pginas fora do texto).
" Sobre as numerosssimas significaes das fotografias dos emigrantes, e seu papel na
comunicao familial, v. Paola Corti. Vemigrazione. Roma: Riuniti, 1999 (col. Storia fotogrfica delia
societ italiana).
1p
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Figura 2.
52 chiara vangclisla
Figura 3.
Figura 4
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Figura 5.
Figura 6.
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tigura 7.
histriac fotografia, narrativas dc um espao de colonizao: iiruanga
Figura 7a.
chiara vanelista
Figura 8.
Esta fotografia foi analisada, de maneira muito diferente da que eu proponho aqui, cm Piero
Bruncllo. Pionicri. Gti italinm in Brasile e il niilo lclla froiiticra. Roma: Donzelli Editorc, 1994, p. VIII;
uma elaborao grfica dela constitui a imagem da capa do livro.
" Definidos tambm "botocudos de Santa Catarina", mas do grupo caingangue, terminologia
que indica os grupos tribais no guaranis que habitavam os estados de So Paulo, Paran, Santa Cata
rina c Rio Grande do Sul. Na verso do ctnlogo suo Kurt Nimuendaju, os "Botocudos de Santa Ca
tarina" eram chamados pelos ndios de Aweikoma. V. Robert Lowie. The Indians of Eastern Brazil: An
Introduction. In: Julian H. Steward (ed.). Handbook of South Americnn Indians. Nova York: Cooper
Square Publishers, 1963 (v. I, de 6 v.); Alfred Mtraux. Die Botocudo. Ibidem, pp. 531-40; Idem. The
Caingang. Ibidem, pp. 445-75.
histria o fotografia. narrativa.s de um espao de colonizao: uruanga
Figura 8a.
As imagens
Conforme foram tituladas pelos seus autores, as figuras que aqui estamos
denominando de paisagens so Vistas e Prospectos; compem um conjunto de 39
desenhos aquarelados realizados sobre papel em formato horizontal, que com
rarssimas excees, no excedem o tamanho de 35 x 45 cm. Nelas foram repre
sentados os dezoito sucessivos acidentes fluviis existentes no percurso: as doze
cachoeiras do Madeira, as cinco do Mamor e a do Guapor; essas folhas hoje
pertencem ao Museu Bocage, Lisboa (MB).
Este acervo contmmaterial realizado em viagem, e dasurge a sua primeira
importante singularidade: so impresses deprimeira mo quenosofreram qual
quer tratamento posterior. Uma parte desses desenhos foi elaborada quando os na
turalistas iam,em 1789, da Vila de Barcelos no rio Negro atVila Bela da Santssima
Trindade no Mato Grosso; a outra em 1791, na viagem de retorno. Durante esses
percursos foi que Freire e Codina realizaram duas e at trs tomadas de cada um
dos diferentes saltose, invariavelmente, uma no percurso de ida, na qual apresen
taram as guas em tempos de cheia e outra durantea volta, em temposde vazante.
' Simon Schama. Paisagem e memria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 17.
66 maria de ftima costa
^ David Knight. Scientific Theory and Visual Language. In: Allan Ellenius (ed.). The Natural
Sciences and the Arts: Aspects ofInteraction from the Renaissattce to the Twentieth Century. Estocolmo:
Almqvist and Wikselll International, 1985, p. 107.
68 maria de ftima costa
-v , . ^ * d.tf'
Li'
I- <, ^
K'- o.'*.-.........iitl.
Figura 1. Prospecto da Cachoeira da Misericrdia a 11." do rio da Madeira tirado do lado esquer
do de cima das mesmas lajes. Em 21 de abril de 1789. Sem identificao de autor. Museu Bocage
Ou seja, embora o rio se lhes oferece como um caminho, uma sada nes
sesentido, uma rota de fiiga , era ao mesmo tempo o lugar que guardava em si
perigosas armadilhas.
Eem muitas passagens a documentao escrita legada pela Viagem Filosfi
ca nos faz ver que Ferreira e companheiros quando estavam entre as guas da
bacia amaznica passaram porexperincias prximas s enunciadas nas pgi
nas de Schama. Um exemplo angular encontra-se no dilogo que se estabelece
entre uma anotao posta pelo riscador Codina numa legenda e um documento
escrito da expedio. Alegenda: Prospecto da cachoeira de Santo Antonio, do rio
daMadeira, tirado da margem de Nascente, pelo meado de janeiro de 1789. Veja-
se a sua explicao na Relao do rio da Madeira. Madeira Tit XI. Artigo = Ca
choeiras = pg. 44, e 45".'^ Consultando-se a referncia aludida observa-se que o
chefe da expedio narra uma situao vivida nesta cachoeira, que dialoga com a
citada reflexo de Schama.
Conta-nos Ferreira que ao passar por um canal dessa cachoeira de Santo
Antnio, a embarcao na qual viajava Freire livrou-se por pouco de grave aci-
" Simon Schama. Paisagem e memria, op. cit., p. 267.
Museu Bocage [MB]. Expedio Philosophica do Par, Rio Negro, Mato Grosso, e Cuyab.
Alexandre Rodrigues Ferreira. [Jbum com desenhos], v. 2.
paisagens narrati\'as do espao amaznico 73
dente, quando a fora da correnteza quebrou a grande vara a sirga que, eni
movimentOvS constantes no fundo do leito fluvial, guiava a embarcao. Sem apoio
desse instrumento de navegar, a canoa perdeu o controle e comeou a "rodar"
pelas guas desse rio-mar. Nas palavras do viajante:"!. . .] passando a [canoa] do
Desenhador Freire pela infelicidade de lhe arrebentar o cabo de sirgar, donde pro
cedeu, ser arrebatada pela violncia da correnteza, que alis a livrou do desastre,
de ser feita em pedaos sobre as pedras em que sempre encontrou".' '
Esta experincia vivida por Freire em janeiro de 1789 parece que o marcou
de maneira indelvel, pois transps o que sentiu a alguns prospectos c vistas que
desenhou. Em trs impressionantes registros, o riscador mostra a tenaz luta trava
da entre o homem e as volumosas guas, realmente amaznicas. O primeiro a
Vista da cadiocira do salto do Tcoinio, a 2:' do rio da Madeira (Figura 2), realizado
em 20 de janeiro, ou seja, nos dias daquele incidente.
. ^ . >.v-, r -
vemos da esquerda para a direita , mas s uma parte dele, que entre pequenos
redemoinhos se projeta, quase ao meio da folha, num rpido declive. em meio
a esta orgia fluvial que o autor constri uma cena de intenso dramatismo. Coloca
em primeiro plano um pequeno barco da expedio se debatendo, em meio s
furiosas guas. Sobre ele na proa e na popa diminutos remeiros tentam
livrar a embarcao do visvel risco. A prpria nfase descritiva desse perigoso mo
mento evidencia um trao de subjetividade do seu autor.
Freire volta ao tema da luta do homem com as guas num outro obstculo
que oferece aquela geografia fluvial. Em maro de 1789, estando ainda no rio Ma
deira, desenha a Vista da sirga que tem a mesma cachoeira da Pederneira (Fig. 3).
Uma vez mais so as guas que protagonizam o enredo. Saindo da espessa mata, o
corpo fluvial caminha. Como na representao anterior, no vemos sua outra mar
gem. As guas esto muito altas, e avanam por entre as rvores localizadas es
querda, cobrindo-as at a "cintura". E a que se desenrola a cena. Vemos uma
embarcao de meio porte sendo sirgada. So ao todo cinco ndios remeiros que
se empenham nesse trabalho. A fora da correnteza dinamizada pelas pequenas
ondas que se formam ao lado do barco, enquanto as guas passam entre rvores e
pedras. Sem dvida o desenhista consegue passar a dramaticidade da ocasio.
Figura 3. Vista da sirga que tem a mesma cachoeira da Pederneira. Em 19 de maro de 1789.
Jos Joaquim Freire. Museu Bocage
E vale lembrar aqui uma observao realizada por Jos Roberto Teixeira Leite
(1988). Ao estudar um outro conjunto de imagens desta mesma Viagem Filosfi
ca pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, este autor com
parou a obra de Freire com a do seu colega Codina, afirmando que Freire seria
mais artista, ao passo que Codina mais documentarista: as folhas de Freire "[. . .]
paisagens narrativas do espao amaznico 75
'* Jos Uohcrto Tcixciro Lcile. Dicionrio critico da pinliini o frtisil. Rio dc Janeiro: Artlivrc,
1988, p, 125.
76 maria de ftima costa
Figura 5. Prospecto da mesma cachoeira das Lajes: tirado da parle direita da margem do rio. Em
4 de novembro de 1781. Sem ideniificao de autor. Museu Bocage
Finalizando
Friedrich, apud Melmul llorsch-Supan. CJnspnr David Friedrich. Munique: Frcstcl Vcrlag,
1990, p. 10.
paisagens narrativas do espao amaznico 77
Fonte iconogrfica
Museu Bocage [MB]. Expedio philosophica do Par, Rio Negro, Mato Grosso, e
Cuyab. Alexandre Rodrigues Ferreira. [lbum com desenhos], v. 2.
IMAGOMORTIS:
O TEXTO, A IMAGEM, O RASTO DOS SUBALTERNOS
Roberto Vecchi
Universidade de Bolonha, Itlia
Talvez justamente por ter sido a Cinderela das disciplinas histricas, a his
tria cultural tenha tido sempre, visivelmente, uma inclinao por quem, de nor
ma, fica por fora das representaes hegemnicas, ou por aquilo que as ruidosas
Histrias oficiais silenciam ou omitem. O que vou propor nas notas que seguem,
dentro de uma reflexo que estou esboando h tempo, uma tentativa de
problematizar os silncios das representaes a partir de uma preocupao es
sencial: possvel pensar em uma histria cultural que consiga resgatar os rastos
mnimos ou at inexistentes dos subalternos, apagados ou transparentes nas re
presentaes dominantes? O intuito, como se pode depreender, prximo da
matriz originria dos assim chamados Subaltern Studies indo-ingleses que contri
buram para enriquecer o debate nos estudos culturais a partir da dcada de 1980
e, na Amrica Latina, na dcada seguinte. A minha referncia bsica, no entanto,
so as consideraes metodolgicas que influenciaram, ainda que s parcialmen
te, a orientao de estudo fundada por Ranajit Guha, contidas em um Caderno do
Crcere de Antnio Gramsci, o nmero 25 (XXlll) de 1934, com o impressio
nante ttulo "euclidiano" de "Ai margini delia storia (storia dei gruppi sociali
subalterni)". As notas fragmentrias do Caderno traam, na verdade, o perfil de
um grandioso projeto de resgate historiogrfico. Estas mostram como a histria
"desagregada e episdica"' dos subalternos, praticamente desprovida de rasto
histrico, pode ser recuperada por meio de um exerccio criador e metdico de
pesquisa que aproveita indcios lbeis e dispersos, escapados inteno autoral,
para construir contra-histrias do ponto de vista no dominante. Sobretudo a partir
da principal lio que se extrapola do texto gramsciano que, como a sintetiza
' Antonio Gramsci. Ai margini delia storia (storia dei gruppi sociali subalterni), Quaderno 25
(XXIIl) 1934. In: . Quademi dei Crcere, ed. critica a cura di Gerratana V. Turim: Einaudi, 1975, p.
2283, V. 111.
imngo mortis: o texto,a imagem, o rastodos subalternos 79
Edward W. Said, condensada no radicalismo de um princpio: "onde tem hist
ria, tem classe"-
Aproximando-me portanto da questo, gostaria que no fosse recebida como
uma indelicadeza ou uma violncia gratuita para com umttulo tobonito e enge
nhoso como o da mesa-redonda "Imagens noespao, narrativas do tempo"
que institui uma simetriasedutora e ressoa comouma espcie de pseudoquiasmo,
que disciplina e ordena objetos decisivos e escorregadios como imagens e
palavras, cujos usos ainda so obsessivamente terreno de discusses e de embates.
Meu intuito, no fundo, so de procurar alguns libis em relao ao tema. Para
doxos da modernidade, onde os fundamentos do racionalismo sobreespao e tem
po foram literalmente para o fundo, os libis de que falo so como se sabe
etimologicamente "outros lugares", mas que como tambm bem sabemos, justa
mente na aplicao jurdica do termo, os libis so tambm "outros tempos".
Se pudesse agora adaptaro ttulo geral sminhas consideraes, gostaria que
ele fosse entendido sem sinais de pontuao e em uma diablica circularidade
que eliminasse a seqncia aparente eafundasse aexpresso nafigura arredondada
dum outro tempo que tambm umoutro espao: imagem no espao narrativo do
tempo imaginado. . . Que poderia desenrolar-se para o infinito, quase como uma
espiral, ou uma ladainha inesgotvel. que as representaes em jogo e repre
sentao sempre bom lembrar otermo que, na Idade Mdia, moderniza apala
vra imagem da tradio aristotlica possuem um elo forte de conjugao na
que, com um tecnicismo, se poderia dizer a natureza cronotpica das representa
es, que no poracaso surge na literatura para definir ontologicamente a escrita,
isto o gnero, mas que tambm diz respeito imagem que no s uma poro
delimitada pelo ato de autor do espao, mas , sobretudo, complexamente, tempo.
Como bem aponta Georges Didi-Huberman, antes daimagem estamos sem
pre antes do tempo^ mostrando como na pintura no caso do Beato Anglico
h uma montagem de tempos heterogneos fundando anacronismos que acr
tica chamada arqueologicamente a decriptar.'' Aidia que aqui exponho que
uma abordagem combinada um libi, alis no determina uma sobrecarga
terica que acabaria prejudicando aapreenso do objeto euma epistemologia mini
mamente legitimvel. Pelo contrrio, colocar em cohtraponto imagem e palavra
pode determinar uma possibilidade amais de fora interpretativa, sobretudo quan
do os objetos sobre os quais tal fora se aplica so flbeis, quase desprovidos de
rasto histrico. Um pouco dentro dosulco daquela que Foucault chamava, repen
sando a histria como genealogia, a "histria efetiva", aquela que produz p
descontnuo, ahistria que no constri, mas que literal econcretamente "corta".^
Uma combinao que funciona tambm quando a imagem j um produto do
^ Edward Said. Introduzione. In: Sandro Mezzadra. Suhaltem Studies. Moernit e (post)cohna-
lismo. Verona: Ombre Corte, 2002, p. 20.
^Georges Didi-Huberman. AtUe el tiempo. Historia dei arte y anacronismo de Ias imgencs. Bue
nos Aires: Adriana Hidalgo, 2006, p. II.
* Ibidem, p. 19.
' Cf. Michel Foucault. Nietzsche, ia genealogia, Ia storia. In: . Microfisica dei potere. Turim:
Einaudi, 1977, p. 43.
80 roberto vecchi
grafia, uma figura gravada no no filme mas no corpo funcionando como pelcu
la.' O choque confirma assim aquela natureza de"mais do quepresente" quefavo
rece um acesso impensvel e impossvel portanto um acesso no lembrana,
mas verdade sendo esse acesso impossvel experincia viva do cotidiano mo
derno, assim como Benjamin capta na poesia de Baudelaire. O trauma, como na
leitura de Lacan de real como desencontro'" dissolve as protees naturais que se
contrapem aos estmulos perturbantes de que o poeta no se defende, mas pelo
contrrio o ato criador visto, na famosa imagemexaltada por Benjamin como
um duelo no qual o artista antes da derrota grita pelo susto; a fotografia, e no s
a um nvel de metfora, tambm assim, um grito antes da derrota que o risco
daperda do real mas que o gesto extremo contribui a (oupelo menos tenta) salvar.
Mas como pensar na assimilao da fotografia ao trauma? Antes de tudo
poderamos versancionado sempre com Lacan, mas tambm com Bataille, que o
real impossvel e se manifesta s por meio de fragmentos, ou restos, objetos de
qualquer modo parciais." Noentanto, preciso no confundir o choque quefun
da a imagem fotogrfica, pelo processo que a determina, com o choque que se
simboliza pelo mesmo mdium. Aqui surge um elemento poderamos dizer tr
gico da linguagem que repe o eixo entre imagem e palavra, ainda que em um
plano extremo.
Tal elemento condiciona a discusso sobre a indizibilidade da experincia
traumtica, portanto da sua possibilidade de ser comunicada, tornando-se, pelo
contrrio, opaca e intransitiva. De fato, no caso do trauma, temos um paradoxo
que o caracteriza: para simbolizar-se o traumanecessita das palavras, masas pala
vras no registram o trauma, elas se comportam de modo ambivalente perante a
dorda ferida. H portanto palavras benficas, estticas, poticas, mas tambm pa
lavras falsas, banalizadas que so s "o invlucro da dor" assim destinada a perpe
tuar-se.'- Os choques como os tempos funcionando como cadeia de anacro-
nismos na imagem e no texto, se dispem em conjunto. por conter essa
deriva, no fundo trgica, entre trauma e palavras que a poesia, combinando-se
em grau subjetivo absoluto com a sensao, pode simbolizar o que resiste a qual
quer simbolizao, ou seja, longe de qualquer pretenso denotativa do indizvel,
do excesso de presena. na desmesura do sublime que se pode inscrever, pela
potica, um rasto do que irrepresentvel.'^ Epara colocar mais um paradoxo,
mais um libi, o indizvel, como repara Benjamin, em um passo famoso das
Afinidades Eletivas de Goethe, o centroda verdade de cada obra de arte, remoto da
totalidade, mas vivo como fragmento um "caroo de mundo verdadeiro , como
nota Franco Rella.'-'
Picrre-Marie Beaudc; Jacqucs Fantino &Marie-Anne Vannier (eds.). Ln trncc entre nbsence et
prsence. Actes du coUoqne international de Metz. Paris: Les ditions du Cerf, 2004, p. 9.
"" Siegfried Kracauer. La fotografa. In: Siegfried Kracauer. Ld massa come ornamento, trad.
italiana. Npoles: Prismi, 1982, p. 127 (edio original Frankfurt am Main, 1963-1964 do texto de 1927).
Paolo Virno. 1rompicapo dei materialista. In: AA.W. II filosofo in borgiiese. Roma: Manifes-
tolibri, 1992, p. 26.
Cario Ginzburg. Miti emblemi spie. Morfologia e storia. Turim: Einaudi, 1992, pp. 166-7.
84 roberto vecchi
nio. Da guerra contra o arraial baiano que originou a obra de Euclides, ficaram,
pela contribuio de Flvio de Barros, setenta fotografias agrupadas em dois l
buns, cada uma das quais com seu ttulo, que mereceram recentemente algumas
reedies (a editada pelo Museu da Repiblica em 1997, a outra pelos Cadernos de
Fotografia Brasileira em 2002, esta restaurada digitalmente).
Uma das imagens mais fortes que nos ferem nas edies de OsSertes (no
as crticas) o cadver do Conselheiro encontrado enterrado, sob as runas da Igreja
Nova. O corpo morto do inimigo, a imago mortis blica, diga-se de passagem,
um arquivo particular, redundante de significados, de smbolos, emoes (e se
pense quando esse rasto a ser decifrado falta pela sua eliminao como no caso
dos desaparecidos). As fotos dos despojos docorpo morto especialmente do inimi
go,os rastosdos restos, proporcionam representaes, significantes-outros, capazes
de esboar outras memrias, que se institucionalizam em outras histrias-^
reformulandoas retricas monumentalizadoras que se acumulamsobre a guerra.
Mas voltando aos Sertes^ preciso observar que nas primeiras edies da
obra organizadas pelo prprio autor (Euclides depois da editio princeps de 1902,
cuida da reviso de mais duas edies, com uma terceira reviso no ano da mor
te) do repertrio presumivelmente global da obra de Flvio deBarros, ele selecio
na s trs fotografias alm de introduzir no texto tambm, como se sabe, ma
pas e desenhos que constituem tambm a primeira publicao das fotos, fora
da incumbncia militar que as tinha originado. As trs fotos selecionadas so res
pectivamente asque Barros tinha intitulado "Diviso Canet","7." Batalho de Infan
taria nas Trincheiras" e, a mais conhecida eimpressiva, "400 Jagunos Prisioneiros",
Euclides seleciona e renomeia as trs fotos que passam aser indicadas como "Mon
teSanto (base de operaes)", "Acampamento dentro deCanudos" e"As Prisionei
ras (Almeida, p. 286). Enoprprio texto dos Sertes^ alis, se alude, no suplemen
to dolivro (oque surge paradoxalmente noesgotamento danarrao. Fechemos
esse livro. . ."),'" fotografia do corpo morto desenterrado do Conselheiro e
lembremos que Susan Sontag, no florilgio de citaes sobre a fotografia com que
encerra On Photograpy^ reproduz justamente esse trecho (Sontag, pp. 168-9).^'
" Giovanni de Lima. II corpo de! nctuico ucciso. Violenza c morte nella guerra contemporneo.
Torino: Einaudi, 2006, pp. XVI, 7.
Euclides da Cunha. Os Sertes. Componha de Canudos. Ed. crtica de Walnice Nogueira
Gaivo. So Paulo; tica, 1998, p. 49.
Antes, no amanhecer daquele dia, comisso adrede escolhida descobrira o cadver de An
tnio Conselheiro. Jazia num dos casebres anexos latada, e foi encontrado graas indicao de um
prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudrio de um lenol imundo, em
que mos piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha,
de tbua, o corpo do "famigerado e brbaro" agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hbito azul
de brim americano, mos cruzadas ao peito, rosto tumefacto, e esqulido, olhos fundos cheios de
terra mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida. Desenterraram-
no cuidadosamente. Ddiva preciosa nico prmio, nicos despojos opimos de tal guerra!
faziam-se mister os mximos resguardos para que se no desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se
a uma massa angulhenta de tecidos decompostos. Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata
rigorosa firmando a sua identidade: importava que o pas se convencesse bem de que estava, afinal,
extinto aquele terribilssimo antagonista" (Euclides da Cunha. Os Sertes. Campanha de Canudos, cit.,
p. 498.)
86 roberto vecchi
Cf. Berthold Zilly. Flvio de Barros, o ilustre cronista annimo da guerra de Canudos. Estudos
Avanados, n. 13, v. 35, p. 106, 1999.
33 Cf. Walnice Nogueira Galvo. Os Sertes, o canto de uma clera. Nossa Amrica, n." 3, p.
101, 1990.
itttago mortis: o texto, a imagem, o rasto dos subalternos 87
trama dos eventos de todas as narraes possveis^"* por rastos imagens e pala
vras que colocam sempre a questo da tica do sujeito perante a tica: "para
saber ocorre no imaginar mas imaginar-se",^^ mediante alianas impensadas,
possvel chegar perto de uma indizibilidade que , ambiguamente, arte e silncio,
palavras e escurido, mas que s assim por um pensamento que pensa contra
si prprio, como dizia Adorno, para no setornar cmplice do horror^^ podem
reciprocamente iluminar-se, deixando um rasto de luz na noite fiinda de uma
Histria que sempre nos foge. E essaa histriados vencidos.
O ponto de vista geral que nos levou a este trabalho o das sensibilidades.
Entende-sepor sensibilidades uma redeque envolve sensaes, percepo, sentimen
tos e conceitos, operando por meio do imaginrio. Nele, interessa-nos a represen
tao, no sentido de Le Goff,' enquanto traduo criativa, potica. Alm disso, in
teressa-nos, tambm, suas implicaes,transformando-se em experincia e atividade
de memria. Como qualquer outro documento, a memria fornece no mais que
sinais, smbolos. Interessam-nos as sensaes e os sentimentos; o movimento da
memria, no encontro entre passado e presente; a formao de um outro tempo,
o da narrativa; interessa-nos, ainda, inserir documentos de ao e criatividade no
discurso historiogrfico, que alterem sua caracterstica terico-demonstrativa.
Escolhemos o teatro por sua profuso de sentidos: texto, espao, cenrio, fi
gurino; corpos que falam por si mesmos, assentindo ou fragmentando o texto;
corpos que falam em silncio. Ao sem fala, mas com um sentido a desvendar.
Alm de si mesmo, o espetculo gera documentos escritos, na imprensa e em ou
tros meios de divulgao. Selecionamos como documentos, espetculos do Curso
de Arte Dramtica (CAD) da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul: Teatro: Variaes Sobreo Tema (1967) e Homem: Variaes Sobre
o Tema (1968). Ambos fazem um percurso esttico que continuou fora do CAD.
Trabalhamos com os documentos escritos, materialmente exteriores, que
conferem relativa perenidade ao acontecimento (o espetculo). O texto do primei
ro espetculo est no Arquivo da Censura Federal, no Teatro de Arena de Porto
Alegre. O segundo espetculo apresenta apenas um roteiro de aes (no h texto)
sumariamente descrito pelo diretor. Ambos geraram material de divulgao em
que se destacam notas redigidas pelos diretores e/ou autores, de que a imprensa
se utilizou no todo ou em parte; tambm h crticas, entrevistas e fotos.
O teatro se consuma e se consome a cada espetculo, o que intensifica ne
cessariamente o carter precrio de seu registro, embora qualquer registro seja
representao precria, um indcio para a memria e a histria. Temos um regis
tro fotogrfico restrito a xrox de jornais. A questo do "direito de imagem" no
permite a liberao de fotos de arquivo dos jornais para reproduo: o acesso
limitado. Podemos v-las apenas mediante autorizao.Asadministraes do Mu
seu Universitrio e do arquivo do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas- da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul declaram no ter nenhuma documen
tao sobre os espetculos.
Outro registro, entretendo a narrativa, o da memriados participantesdes
ses espetculos, artistasou pblico. Contamos com uma rede de memria inicial,
concentrada, principalmente em Luiz Arthur Nunes (roteirista e ator em Teatro:
Variaes Sobre o Tetna^ roteirista e diretor em Homem: Variaes Sobre o Tema),
Nara Kaiserman (atriz em Homem: Variaes Sobre o Tema), Maria Luiza Martini
(atriz em Teatro: Variaes Sobre o Tema e em Homem: Variaes Sobre o Tema),
que jsealastrou incorporando mais quatro pessoas, embora ainda deforma me
nos explcita; contamos tambm com nossos "jovens outros", bolsistas de Inicia
o Cientfica, nascidos muito depois de 1967 (Fernanda Lannoy Strmer, Mar
celo Medeiros deOliveira, Valeska Maffei Barcellos), queseinteressam por Histria
Cultural e pela contracultura dos anos 1960. As tarefas que foram realizadas por
eles so: pesquisa em jornais da poca; recolhimento de textos; identificao de
revistas do perodo buscando fotos de melhor qualidade; investigao da biblio
grafia; iniciao nos estudos de memria; e dedicao anlise de objetos cultu
rais, to delicados e fugidios como esses espetculos. Trabalharam como nossos
interlocutores, fazendo a experincia daevocao, que aqui ser narrada.
Luiz Arthur doutor em Artes Cnicas, lecionou na UFRJ (Universidade
Federal do Rio de janeiro) e faz teatro no Rio de Janeiro. Vrias vezes premiado,
seus trabalhos de mais intensa recepo, recentes, e que mais o agradam, so: de
Nlson Rodrigues, Mulher sem Pecado e de Goldoni, Arlec^uim, Servidor de Dois
Patres, um clssico, guardando toda a malcia da Commedia deli Arte} Nara fez
graduao em Artes Cnicas no Departamento de rte Dramtica, graduao em
Histria (UFRGS). doutora em Artes Cnicas (UFRJ), tambm leciona e faz
teatro no Rio de Janeiro. Recentemente trabalhou o conto de Heiner Mller, His
tria de Amor com o grupo "Propositores", no qual a memria integra o espetcu
lo no jogo presente-passado-presente e uma performance sensorial, inspirada nas
cartastrocadasentre Lygia Clarke Hlio Oiticica.
^o Museu Universitrio, indicado pelo Instituto de Artes, e o arquivo do Instituto de Filosofia
e Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, lugares onde poderamos obter
informaes sobre os espetculos, desaconselharam nossa pesquisa nos seus arquivos em virtude da
"falta de organizao" deles.
' A Conwtedia delVArte era uma forma popular de improviso teatral, que comeou a existir no
sculo XVI e se manteve popular at o sculo XVIII. Arlequim, Pierr e Colombina so personagens
clssicos dessa forma de fazer teatro.
90 maria luiza filippozzi martini
Michele Perrot uma historiadora que realiza tal experincia, ade personali
zar a relao com o objeto, referindo Bergson como opensador que abriu seu olhar.
Narra como se fez historiadora e como sevinculou classe operria. Indica a distn
cia enunciando um ponto de vista que tambm leva o historiador a observar-se:
Ooperrio fora primeiro, para mim, numa busca de caridade, o subs
tituto do pobre; foi o seu desnudamento que me atraiu, ao princpio como
o prximo mais urgente; fora o meu remorso. Romper com o campo dos
exploradores, onde o nascimento me colocara, parecia-me uma obrigao
ardente.'^
Henri Bergson. Matria e memria: ensaio sobre a relao do corpo com o espirito. So Paulo:
Martins Fontes, 1990, p. 60.
" Michel de Certeau. A escrita da histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006, p. 76.
Pierre Chaunu; Georges Duby et ai. In: Pierre Nora (org.). Ettsaios de ego-histria. Lisboa: Ed.
70, 1987, p. 10.
" Michelle Perrot. In: Pierre Nora (org.). Ensaios de ego-histria. Lisboa: Ed. 70, 1987, p. 270.
92 maria luiza flippozzi martini
Teatro: Variaes Sobre o Tema uma histria curta do teatro para ser ence
nada: dramaturgia, poticas de espetculo e estratgias de interpretao. J na "di
nmica Sheherazade" daquela poca, uma vez que precisamos sempre de histrias
para nos salvar, LuizArtur Nunes e Maria Helena Lopes, protagonizando o prprio
teatro, teciam fragmentos de textos evocados em grupo, tais como: Molire, Labi-
che, Peter Weiss, Eugne lonesco, Garcia Lorca, Jean-Paul Sartre, Bertolt Brecht e
Valmir Ayala.Na introduo, contava-se o espetculo atravs do tempo, em aluses,
metforas poticas ou cmicas: o njaponSy^^ comdia romana^^^ teatro medievaly-^
commedia delVarte, teatro elisabetano^^ e teatro realista}^ Caracterstica do espet
culo a organizao em quadros intercalados por msica, ao vivo ou trilha sono
ra, anunciados e comentados pelos atores. Tal ordem a chave do espetculo e da
sua profuso de sentidos. A cena transparente, visvel ao pblico: iluminao,
acessrios de figurino e cenrio de carter evocativo. Por exemplo: um leno na
cabea, amarrado sob o pescoo, suficiente para caracterizar a me de "Dona
Rosita", no "Retbulo de D. Cristbal" de Garcia Lorca. O espetculo inscreve-se
no modelo de teatro pico.^
A imprensa acolheu Teatro: Variaes Sobre o Tema desde o perodo de pro
paganda, antes da estria. Vrias notas como a que segueforam distribudas e pu
blicadas. O espetculo
o N japons, tambm chamado "Teatro Noh", uma das formas mais refinadas do drama
musical clssico no Japo, e tem sido executado desde o sculo XIV. Caracteriza-se por um estilo
lento, rgido e pelo uso de mscaras tpicas.
" A comdia romana no deixa de ser um prolongamento da comdia teatral grega, com temas
aplicados ao cotidiano dos habitantes do Imprio. As principais mudanas foram mais na estrutura fsi
ca do teatro (palcos planos, uso de plataforma, melhorias na acstica) do que nos mtodos de inter
pretao.
O teatro na Idade Mdia era a representao da moralidade crist como forma de apresentar
a prpria doutrina aos fiis.
O Teatro Elisabetano era normalmente encenado num teatro londrino chamado "The Globe
Theatre", onde WUliam Shakespeare e outros encenavam suas obras.
" O realismo no teatro foi um movimento que comeou em fins do sculo XIX propondo que
textos e interpretaes apresentassem fidelidade vida real. Exemplos de dramaturgos realistas so o
noruegus Henrik Ibsen e os russos Anton Chekhov e Maksim Grky.
^ Modelo de teatro teorizado e executado pelo dramaturgo alemo Bertolt Brccht. Tal modelo
prega a concepo marxista do homem, o distanciamento crtico dos atores e um chamado "sistema-
coringa", em que os mesmos atores interpretam vrios papis diferentes.
Correio do Povo, 27 de maio de 1967.
os espetculos Teatro: Variaes Sobre o Tema e Homem: Variaes Sobre o Tema 97
SGANARELLO: "sou Omaior, o mais hbil, o mais douto medico que existe
na face mineral, vegetal e sensitiva." {Sabine volta com a urina.)
GORGIBUS: Estou encantado!
SGANARELLO: Aqui est uma urina que indica muito calor e uma grande
inflamao intestinal. {Bebe a urina.) Emtodo caso no to ruim.
GORGlBUS:0 qu? Vs a engolis?
SGANARELLO: No VOS espanteis! Os mdicos, em geral, se contentam em
olh-la, mas eu, que sou um mdico fora do comum, eu a bebo, porque
pelo gosto identifico bem melhor as causas e as conseqncias da doena.
Mas para dizer a verdade, havia muito pouca urina para dar um bom diag
nstico. preciso, pois, que vossa filha mije mais!
do CAD, Gerd Bornheim, estava l. Acho que coube a ele negociar com a censura,
explicar que no se pode cortar e substituir palavras de um autor. Mesmo que no
fosse um Molire. Aldo Obino,^^ quenoperdia umespetculo, j estava ali.Aos pou
cos chegavam osamigos. No melembro doqueeudisse ou disseram, nem do "ensaio
tcnico.
CRISTBAL: Quero tambm uma mula, para iraLisboa quando sai alua.
[.]
CRISTBAL: D-me seu retrato.
ME: Mas firmaremos antes o contrato.
os DOIS: {cantando)
Tedar o p.
Estando contigo,
Se me deres dinheiro,
Far o que digo.
[...]
ROSITA: Ai, Cristbal, tenho medo! Que vais me fazer?
CRISTBAL: Vou te fazer muuuuuuuuu!
[...]
ROSITA: Bebeste muito? Tira uma sestinha.
Rememorao: e o esquecimento?
Histria e Memria
Como a censura que colocou meses de trabalho sob ameaa foi esquecida?
Segundo Izquierdo,^' temos a tendncia de suprimirfatos desagradveis median
te dois mecanismos diferentes: o primeiro o da extino por aprendizados no
vos, isto , novos grupos, percursos, interesses e atividades; o segundo a repres
so, mecanismo tambm ativo para reduzir memrias como a dor, a vergonha e a
humilhao. A memria pode manter-se no acessvel, mas no se perde em ne
nhuma das duas formas.
A censura foi de costumes. Se fosse poltica, teria atingido fragmentos de
Sartre, Brecht e lonesco. Mas existe censura que no seja poltica? Em 1967, ain
da haveria compromissos com as senhoras de vu e missal, as que obtiveram ade
ses Marcha da Famlia com Deus pela Propriedade. Afinal teriam reunido um
nmero maior de pessoas do que o comcio pelas Reformas de Base, pouco antes
do golpe. Seria um risco perder esse apoio por no fazer a lio da moralidade.
" Ronaldo Vainfas, Ronaldo. Trpico dos pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
Guignol o nome de um marionete, personagem do teatro de fantoches, criado no sculo
XIX, em Lio, na Frana.
" Ivan Izquierdo, op. cit.
os espetculos Teatro: Variaes Sobre o Tema e Homem: Variaes Sobre o Tema 101
Por outro lado, a censura tambm era uma propaganda para quem acompanhava
programao cultural e tambm para um pblico avulso, curioso sobre os pala
vres, quem sabe mulheres com pouca roupa, etc.
Rememorar a censura sentir novamente a "mo" de um poder descaracte
rizado como relao. O que se torna a sentir a impossibilidade de relao com o
poder que ali chegou exibindo revlver, metralhadora e tanques na rua.
Olhando para os espetculos em memria vai se revelando um fato acima
de qualquer outro: eles faziam parte de uma concepo de espetculo, da pesquisa
demodos inusitados de usaro corpo, queiasedesenhando como resposta ao poder,
atingir e explorar uma linguagem infraverbal, alm do texto. No se caminhava,
mesmo quando no se utilizasse a dana: no Pequeno Retbulo de D. Cristbal o
movimento era de gente meio gente, meio boneco. Alem do minueto que marca
va a ao dos personagens em Molire e Lorca, havia o batuque em Chico Rei" de
Walmir Ayala. Eo texto no foi censurado, justoo que seria maiscensurvel. . .
Rememorao
Eles tinham a majestade! Eles eram rei e rainha, Damasceno e Vani. Ela ves
tia uma grande saia balo, de algodo cru, colares, uma peruca barroca, de palha e
uma bandeira. A rainha era porta-bandeira; ele, Chico Rei, mestre-sala. Mas a viso
aparecida na memria no me mostrava ofigurino todo: a cabea do reidesaparecia.
Ali estava o movimento da imagem: ela sonora, percussoquase meldica, as evolu
es da porta-bandeiraedo mestre-sala. Ento houve umapreosaconversa com Maria
Helena Lopesque restaurou tal viso. Era uma mscara depalha, de origem africana:
uma desgarrada cabeleira, smbolo deselvageriapara o trato ocidental. Assim restau
rada, a viso de Chico Rei, o mestre-sala, no mais a de 1967; a de 2006, outra.
Aquele que rememora, se atento ao que v no seu rememorar, sujeito
freqentemente, ao lado de compensaes, a decepes. Decepo sobre um efei
to de verdade enraizado na emoo que grava e produz a evocao da memria.
Isto s se relativiza conhecendo rememoradores. Halbwachs (1990),''' em seu traba
lho mais conhecido nos apresenta vrios outros. Stendhal um deles. Em suas
memrias, Stendhal mostra-se fino observador de seu prprio rememorar:
En crivant ma vie en 1835, j'y fais bien des dcouvertes, ces dcou-
vertes sont de deux espces: d'abord 1". ce sont de grands morceaux de
ffesques sur un mur qui depuis longtemps oublis apparaissent tout coup."*^
Conta Zumbi, Arena Conta Tiradentes, ofilme Quilombo). Neste caso, teria oupode
riaterpassado por Chico Rei, a pea deWalmir Ayala. Ao incorpor-lo emseuroteiro
Teatro: Variaes Sobre oTema seria parte daquele "eco", daquela referncia coletiva.
Homem: Variaes Sobreo Tema
Roteiro e direo de LuizArtur Nunes (1968).
Antonin Artaud. O teatro c seu duplo. So Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 37-9. Antonin
Artaud (1896-1948), poeta, ator, roteirista e diretor de teatro francs, desenvolveu uma linguagem
teatral prpria, na qual o teatro deve ultrapassar o texto, base do teatro moderno. Essa linguagem
comportaria tudo que pode ser feito dentro do espao teatral, ou seja, uma linguagem fsica que
preencha o espao fsico e concreto da cena e que se dirija, em primeiro lugar, aos sentidos, mais do
que ao pensamento e ao raciocnio.
Correio do Povo, 18 de novembro de 1968.
Folha da Tarde, 22 de novembro de 1968.
104 maria luiza filippozzi martini
ML: "Olhem aqui, no jornal, dizem do roteiro: bem bom: nascimento, desco
berta de seu corpo, do espao (aqui era a massa), do outro, da palavra, da frase
e do texto; depois vem a deturpao das descobertas do homem (crtica da mdia,
publicidade, TV, as gincanas, dolosdo disco). O minueto com as pessoas, aut
matos, vestidos de plstico de banheiro, que terminam sacrificando o maestro. .
ML: "Encontramo-nos na Palavraria. Ela, nossa clio, recm-vinda, cujo nome
no posso chamar, ainda, e seu olhar intenso, porque ela assim sempre; me
disse do sentimento reconfortante que se produzia no movimento de massa
(exerccio corporal). Ser forte muito bom! No ter medo muito melhor. Tecni
camente, so corposque sejuntam sem se confundir porque precisam se deslocar.
Um ou outro cuidavam disso, do espao, alternadamente. O objetivo era quase
deslizar, juntos. Um tropeo seria ridculo efatal para nossa emoo e concen
trao."
NK: "O espao. . . era de uma juta que nos cortava a pele era em andares.
Ns atuvamos no espao central, ovalado, e a platia ficava em arquibanca
das em dois nveis, ao redor. Mas usvamos tambm estes andares."
ML: "No me lembro da juta cortante. . . vai ver que de to ruim esqueci! A
viso que eu tenho do todo e do tnel, por onde se entrava, coberto de almofa-
das em algodo cru. As pessoas estranhavam; no sabiam se tiravam ou no os
sapatos. Nascer de dentro daquelessacos plsticos, na primeira cena que no
era fcil. Tinha medo de que aquele plsticogrudasse no meu nariz. Acho que o
saco estava amarrado. . ."
NK: "Sei que eu nascia do mesmosaco que voc. ramosgmeas. O carrinho. . .
No sei. Talvez seja curioso ser eu quem o diga, que dediquei tantos
anos ao estudo das bases moleculares da formao ou evocao e extino
da memria em suas diversas formas. [. ..] Conhecemos apenas dez ou vin
te genes que so ativados no processo de formao da memria de longa
durao e nenhum dos que se ativam na evocao e muito menos na
extino. No possvel localizar um registro especfico, um rosto sob uma
determinada luz, isto , localizar em que lugar ou lugares, em que sinapses
especficas do crebro est determinada a imagem. Mesmo que esta lem
brana seja localizada, no ser aquela de tal dia e hora. S uma vaga lem
brana.^'
Surgia a guerrilha junto com o amor a arte. Amor ao teatro professado pela
linguagem infraverbal, pelo corpo em movimento, desestabilizador do unidimen-
sional. Oimportante que havia aenergia de uma arte libertadora, levando adiante
a proposta do teatro aberto de Brecht, em sintonia com a que circulava no mun
do, no Teatro Odon, em Paris, nas ruas do Bronx, em Nova York, associada a
memria de heris. Equivocados, ingnuos e contraditrios que fossem, todos, o
que seria da Histria e da Memria se no existissem rastros, sinais inegveis de
utopia,de energia, ligando uma e outra?...
O anncio da criao e o protagonismo das utopias nos trazem de volta
"dinmica Sheherazade", onde a vida se salva a cada histria, na antinomia hist-
ria-memria.
Referncias
Fernando Gabeira, O que isso, companheiro? So Paulo: Companhia das Letras, 1979.
Fernando Gabeira escritor, poltico e jornalista brasileiro. Militou na luta armada do pe-rodo
militar, fazendo parte do seqestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. Atualmente
deputado federal, filiou-se ao Partido Verde e defende a causa da tica na poltica brasileira.
IMAGEM E MEMRIA
AS MUSAS INQUIETANTES
' Rgs Debray. Vida e morte da imagem. Uma histria do olhar tio Ocidente. Trad. Guilherme
Teixeira. Petrpolis: Vozes, 1993, p. 19.
^ Kenneth Clark. O tiu. Um estudo sobre o ideal em arte. Trad. Ernesto de Souza. Lisboa; Ulisseia,
s.d., p. 76.
' Cf. Lynda Nead. El desnudo feminino. Arte, obscenidad y sexualidad. Trad. Carmen Gonzlez
Marn. Madri: Tecnos, 1998, p. 27. Lorde Clark ostentou quase todas as posies pblicas de influn-
imagem e memria: as musasinquietantes 109
Aqui, vamos discorrer sobre os meios que Ciark enfatiza para representar o
corpo da mulher, a simetria, a proporo e o princpio da subordinao das dife
rentes partes ao todo,^ enfim, os que configuram os atributos do eterno feminino:
a luta entre esprito e natureza, maternidadee luxria, atributos, segundo ele,con
cebidos j na pr-histria e na Antigidade. Clark busca referncia no Symposium,
de Plato: um dos convidados sustenta a opinio de que existem Vnus, s quais
chama Celestial e Vulgar ou, para lhes atribuir uma designao posterior, Venus
Coelestis (Celestial) e Venus Natiiralis (Vulgar), aluso que nunca foi esquecida,
esclarece Clark. Tornou-se um axioma das filosofias medieval e renascentista. "
a justificao do nu feminino. Desde os tempos primitivos, a naturezaobsessiva e
irracional do desejo fsico buscou alvio nas imagens uma forma pela qual Vnus
possa deixar de servulgar e setornar celestial."^ Isto tem constitudo diz o au
tor um dos repetidos objetivos da arte europia: dominara naturezapara atin
gir a beleza celestial. Em O Nu, Clark luta comasexigncias de competncia m
tua dos prazeres sensoriais e contemplativos, e trata de mant-los juntos em uma
combinao equilibrada, sem permitir a nenhum dos impulsos dominar o juzo.
Mas a purificao da Vnus teria contado, ainda, com os elementos damen
talidade mediterrnica: uma certa noo abstrata do corpo feminino. Ao se perse
guir o cnone da antiga nudez feminina na escultura, v-se, informa Clark, que
algumas das suas concepes bsicas vo estar presentes jna Pr-Histria tanto
nas protuberantes estatuetas das cavernas paleolticas que evidenciavam atributos
femininos como smbolos de fertilidade quanto nas bonecas de mrmore das
Cidades, onde o corpo humano j seria sujeito disciplina geomtrica. Essas
concepes bsicas nunca chegaro a desaparecer por completo na escultura dos
corpos femininos."^
Apartir desses primeiros pressupostos da arquitetura da representao do corpo
feminino, Kenneth Clark vai discorrendo sobre sua evoluo tcnica, at atingir o
que ele considera a perfeio da arte ocidental. AVnus Esquilino (Policleto, scio
V a.C.) orientar as tcnicas artsticas, at o fim do sculo XIX. Seus princpios
plsticos essenciais seios cheios, cintura delgada, ancas com arco generoso
do ao corpo feminino aarquitetura de sua representao: slida, compacta, equi
librada, calculada segundo uma simples escala rritemtica onde aunidade de me
dida a cabea, embora, essa ainda no represente toda a perfeio da beleza fe
minina, informa Clark. " baixa e de proporo quadrada, com a plvis alta e os
seios pequenos muito afastados, uma rstica e robusta alde [...]. ^Abeleza fe
minina triunfara com a Vnus de Cnido (Praxteles, cerca de 350 a.C.). Uma be
leza que exercia uma atrao "suave ecomedida", derivada das divindades assrias.
influncia na cultura britnica (diretor da National Gallery, supervisor da Royal Collection, presiden
te de Arts Council, presidente da Independem Television Authority, e assim sucessivamente), o que d
ao O Nu o carter de um "monumento da cultura oficial .
Kenneth Clark, op. cit., p. 76.
Ibidem, p. 76.
' Ibidem.
^ Ibidem, p. 79.
* Ibidem, p. 83.
0Osgregoscmnigum,terias maria bernardete ramos flores
invlucro e por meio de seu movimento ajudama realar o ritmo bsico. A cabe
a, o brao esquerdo e a perna em que se apia o corpo formam uma linha to
firme como uma haste que sustenta a coluna de um templo".'^ (destaque nosso)
Essas caractersticas para configurar o nu feminino levaram Lynd Nead a
design-las como formadoras de um paradigma formal: uma "moldura" que
enfatiza o corpo num ato de circunscrio, com uma postura que se compara a
uma capa, umacoberta do corpo to regular e estruturada como a coluna de um
templo, e concluir que a transformao do corpo feminino em nu feminino
um ato de regulao: do corpo feminino e do espectador, cujo olhar errante, dis
ciplina-se pormeio das convenes e protocolos da arte. Arepresentao do cor
po feminino, dentro das formas equadros dagrande arte , de maneira geral, urna
metfora do valor edo significado da arte. "Simboliza atransformao da matria
de base natural em forma elevada de cultura eesprito eesprito."'^ ^
Clark chama ateno para o fato de que o padro de perfeio encontrada
na forma visvel da geometria, com expresso na escultura e na pintura, propor
cionado ao esprito do homem ocidental desde o Renascimento at o sculo pre
sente sculo XX a memria do tipo fsico peculiar que se cultivou na
Grcia, entre os anos 480 e 350 a.C.'"' A sobrevivncia do modelo da Vnus
Capitolina eseus desdobramentos na quantidade de cpias na verso da Vnus de
MdiciSy passando pelo Nascimento de Vnus de Botticcelli, recebendo urn novo
impulso com apintura de Renoir, tem sido oncleo da histria da arte ocidental
e da transformao damatria natural em formas elevadas de cultura.
Imagem e memria
esses limites que o texto de Ulpiano Bezerra de Meneses levanta uma densidade
de questes. Para esse autor, trabalhar historicamente com imagens obriga a per
correr o ciclo de sua produo, circulao e consumo e mais a ao, ou seja, o
enunciado, que s se apreende na fala, no ato de pr uma obra, uma imagem, em
comunicao.-"'
Contribuio instigante para ns pode vir das leituras contemporneas da
obra de Aby Warbug e do conceito de imagem dialtica de Walter Benjamin.Am
bospostulam, por meio do trabalho das imagens, uma concepo de histria que
tem muito que ver com a sobrevivncia de certas formas expressivas. Trata-se de
um modelo que se afasta da cronologia linear e se descubra no anacronismo, as
tessituras da histria. As experincias advindas dessas reflexes nos levam a con
ceber a imagem no mais apenas como ilustrativas de nossos textos, mas como
acontecimento retrico incrustado numa ordem discursiva, como texto possvel
deserpensado por umainstncia interpretativa cujo territrio tambm criao.
O projeto de toda a vida de Aby Warburg foi compreender o problema da
sobrevivncia das imagens, ou seja, a reutilizao histria de figuras antigas e a
imitao deantigos modelos culturais. Diante dos relevos deAdolfvon Hildebrand,
Warburg viu, respectivamente, a sobrevivncia daAntigidade nas suas duas acen
tuaes de movimento: atendncia dionisaca na exagerao eatendncia apolnea
no autocontrole. As representaes de figuras com formas de ninfa na pintura do
Renascimento, inspiradas no s na poesia, mas tambm na arte figurativa, susci
taram-lhe a tese da constante irrupo de imagens que sobrevivem ao longo do
tempo." Para Warburg, a razo pelo qual a ninfa estava to intensamente carrega
da de significado, na sua inesperada re-apario precisamente em meio ao mun
do florentino burgus, encontra-se no fato de que esta figura tinha j um posto
no imaginrio dos pintores contemporneos. Os cabelos ondulados e os vestidos
levantados pelo vento recordam os detalhes que conferem nfase dramtica aos
gestos de seus prottipos antigos: as mnades, representadas sobre os sarcfagos e
urnas funerrias." A ninfa um sinal que se mostra, se esconde, se mascara, se
metamorfoseia, que o olho do historiador vai descobrindo nas imagens atravs do
tempo. O modo de proceder assemelha-se a um rastreamento dos sinais, diz o
argentino, historiador da arte, Jos Emilio Buruca.
Buruca nos chama a ateno para no cairmos na tentao de achar que,
diante da persistncia da imagem, no caso da ninfa, nos achemos ante uma regu
laridade, a uma constante da histria cultural do Ocidente, a qual derivaria de
uma espcie de lei geral de encadeamento e de reproduo mecnica de proces
sos psquicos causados por viso regular da jovem em movimento. Se Warburg,
no seu projeto denominado Mnemosyne, comps o Atlas Iconogrfico das
Ulpiano T. Bezerra Meneses. Fontes visuais, cultura visual, histria visual. Balano provis
rio, propostas cautelares. ievisn Brasileira de Histria O ofcio do historiador, So Paulo, v. 23, n."
45, pp. 11-36, 2003.
Aby Warburg. El retiacimiento dei paganismo. Aportacioiies a Ia historia cultural dei Rettacittiieiito
europeo. Tradu. Felipe Pereda et al. Madri: Alianza, 2005, p. 23.
Ibidem, p. 23.
114 maria bernardete ramos flores
" Jos Emilio Buruca. Histria, arte, cultura De Aby Warburg a Cario Ginzburg. Mxico:
Fondo de Cultura, 2002, p. 131.
" Georges Didi-Huberman, op. cit., p. 48.
" Giorgio Agamben, op. cit., pp. 41-2.
Ibidem, p. 47.
imagem e memria: as musas inquietantes 115
De fait, Ia survivance des images n est pas une donne, mais reclame
une opration, dont Taccomplissement est Ia tche du sujet historique [. . .]
travers cetteopration,le pass les images trasmises par lesgnrations
qui nous prcds , qui semblait referm sur soi et inaccessible, se remet,
pour nous, en mouvement, redevient possible.^'
Ibidem, p. 49.
" Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra. Trad. Alex Marins. So Paulo: Martin Claret,
2004, p. 172.
" Idem. Consideraes extemporneas (1874). In: Friedrich Nietzsche. Os Pensadores. Obras
Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. 3." ed. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 62.
Cf. Scarlet Marton. Extravagncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. So Paulo/Iju:
Discurso/Uniju, 2000, p. 78.
116 maria bernardete ramos flores
As musas inquietantes
&
Benjamin diz que a cidade ainda mais surrealista que qualquer quadro de De Chirico.
Giorgio De Chirico. Memrias de mi vida. Trad. Sofia Calvo. Madri: Sntesis, 2004, p. 26.
De Chirico pinta o Inslito do cotidiano. Disponvel em: <\vwv.fitxer/chirico.jpg&
imgrefurl=http>. Acesso: 13/1/2006. Lembramos os sonhos de Freud sobre Roma ou sobre Pompia,
associando imagens de vrias camadas temporais. Acidade, como palco do inconsciente, no mais
o lugar regrado e seguro das certezas racionais, mas sim a paisagem esburacada e fugidia do desejo:
runas a serem descobertas e interpretadas como na arqueologia, rastros a serem decifrados. Cf.
Sigmund Freud. O mal-estar na civilizao. Trad. Jos Octvio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro:
Imago, 1997, pp. 16-18.
De Chirico, op. cit.
^ Cf. Andr Breton. Nadja. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Imago, 1999, p. 119. Claro est
que depois de 1930, quando De Chirico, nas suas investigaes sobre arte, envereda pelo Barroco, os
surrealistas dele se afastam.
Apollinaire assegurava que os primeiros quadros de De Chirico haviam sido pintados sob a
influncia de alteraes cenestsicas (dores de cabea, elicas, etc.) Cf. Andr Breton. Manifesto do
Surrealismo (1924). In: Gilberto Mendona Telles (org.). Vanguarda europia e modernismo brasileiro.
2.' ed. Petrpolis: Vozes, 1973, p. 141.
" Briony Fer; David Batchelt 8c Paul Wood. Realismo, racionalismo, surrealismo. A arte no entre-
guerras. Traduo de Cristina Fino. So Paulo: Cosac 8c Naify, 1998, pp. 191-3.
120 maria bernardete ramos flores
De Chirico, apud: Marco Valsecchi (dir.). Galeria Delta da pintura universal, cit., p. 731.
fParateridasorginas,extrodi
imagem e memria; as musas inquietantes
Uma arte da apario "uma obra de arte realmente imortal s pode nascer
pela revelao" , inspirado em Schopenhaur, que foi quem, declara De Chirico,
melhor definiu a idias de apario, em Parcrgi c Pamlipomena, quando diz:
Nietzsche"." Pintava assuntos sobre os quais tentava expressar aquele forte emiste
rioso sentimento que havia descoberto nos livros de Nietzsche: a melancolia dos
belos dias de outono, a primeira hora da tarde, nas cidades italianas. De Chirico
afirma que oobjetivo da pintura futura devia ser ode criar sensaes antes desconhe
cidas; eliminar tudo o que rotina aceita; suprimir totalmente o homem como gma
ou como meio de expressar smbolo, sensao ou pensamento; liberar-se de todo
antropomorfismo que aguilhoa a escultura; ver tudo, at mesmo o homem, em sua
qualidade de coisa. "Este o mtodo nietzschiano" diz ele. Aplicado pintura,
poderia produzir resultados extraordinrios. "Eis o que procuro demonstrar nos
meus quadros."*^^
Ao explicar o momento em que concebeu Enigma de Uma Tarde de Outono^
diz o seguinte:
A revelao de uma obra de arte (pintura ou escultura) pode nascer
subitamente, quando menos esperamos, e pode tambm serestimulada pela
viso de alguma coisa. No primeiro caso elapertencea uma classe de sensa
es raras e estranhas que eu s vi num homem moderno: Nietzsche.Quando
Nietsche fala do modo como seu Zaratustra foi concebido e diz: "Eu fui sur
preendido por Zaratustra", nesse princpio surpreendido est encer
rado todo o enigma da revelao sbita (...) na forma e na maneira pela
qualalguma coisa provoca em ns a imagem de uma obra de arte, uma ima
gem que desperta em nossa alma a surpresa por vezes, a meditao >
comfreqncia, e sempre, a alegria da criao.^
Concluindo, pode-se dizer que As Musas Inquietantes^ figura ambgua
coluna, esttua, manequim , se oferece a ns como imagem dialtica, no sen
tido benjaminiano. Seu carter de reminiscncia serve a uma crtica do presente
ao instaurar um lugar onde o passado sabe tornar-se anacrnico, presente en
quanto se apresenta como reminiscentc. A referncia s musas antigas, enquanto
trabalho de memria, como diria Didi-Huberman, no como "uma instncia que
retm que sabe o que acumula , mas uma instncia que perde: ela
porque sabe, em primeiro lugar, que jamais saber por inteiro oque acumula",'^
Giorgio Dc Chirico. Memrias de mi vida, cit., p. 24.
" Citado por H. B. Chipp. Teorias da arte mo^nin, cit., p. 402. . .
Marco Valsecchi (dir.). Galena Delta da pintura universal, cit., p. 731. Em Hutttatw, Dettiasia
mente Humano, podem ser identificadas algumas passagens que, por certo, marcaram o pensaniento
artstico de De Chirico: "... o que se entende por arte, praticada dentro da conveno artstica,
somente um apndice" (F. Nietzsche Humano, demasiadamente humano. Um livro para espritos livres
(1878) In: Nietzsche. Os pensadores. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. So Paulo: Nova Cultural,
2000, p. 115.) "Aquilo que o artista inventa alm da conveno, acrescenta a ela espontaneamente . -J
De hbito, o que original olhado com espanto, e s vezes at mesmo adorado, mas raramen e
entendido: desviar-se teimosamente da conveno significa: no querer ser entendido (ibidem, p. )
"A arte uma espcie de proposio de enigmas" (ibidem, p. 113.) "O mais refinado quan o
ela estimula a uma espcie de deciframento de enigmas" (ibidem, p. 114). "A mais dificil ^
artista a representao do que permanece igual, do que repousa em si [. . .]" (ibidem, p. 113)-
Georges Didi-Huberman. Oque vemos, oque nos olha. Trad. Paulo Neves. So Paulo. itora
34, 1998, p. 115.
maria bernardete ramos flores
Sabina Loriga
EHESS/Frana
Em seu belo livro Beatiis ///e, o escritor espanhol Antonio Munoz Molina
conta a histria de Minaya, um estudante de vinte e cinco anos, que descobre o
manuscrito pstumo de lacino Solana, escritor mito, abatido pela polcia
franquista. Desejoso de pesquisar avida e a morte do poeta, dirige-se aldeia na
qual o escritor havia composto sua obra. Ao inquirir os raros sobreviventes da
guerra civil, Minaya procura descobrir as circunstncias que provocaram amorte
do escritor. Quem o matou? Por qu? Ao contrrio dos outros personagens o
livro, Minaya no ligado ao passado por sua memria pessoal e ntima.
tanto, deseja descobrir e compreender a verdade de outrora. Por isso
como o mistrio mais profundo do romance. Como lhe dizem no final do ivro,
por que uma pessoa como ele, que no possui nenhuma razo pessoal ou ligaao
com esse passado, que nasceu aps aguerra, por que procura pessoas que viveram
naquele perodo e astratacomo sefossem criaturas ainda vivas?
Gostaria de aproveitar a oportunidade apresentada por esse colquio e,
nesse sentido, desejo agradecer a Sandra Jatahy Pesavento pelo convite para
tentar chegar mais perto desse mistrio. No tenho ambio de responder aques ao
* Trad. Mariana Joffily. , uprlcer
' Johann Wolfgang Goethe. Maximen uttd Reflexionen. Herausgegeben von
Freibure im Breisgau: Zhringer 1949.
129
130 sabina longa
formulada por Munoz Molina: o que leva um ser humano a procurar desvendar
o passado? Mais exatae modestamente, gostaria de abordar a maneira pela qual a
literatura do ltimo sculo imaginou esse mistrio. De fato, Minaya no o nico
exemplo de historiador presente na paisagem literria. Ao contrrio, a figura do
historiador ressurge de forma assdua. Aparece nos seguintes textos: Middlemarch
de George Eliott (1872), Hedda Gabler de Hendrick Ibsen (1890), O Imoralista de
Andr Gide (1902), O Sentido do Passado de Henry James (1917), A Nusea de
Jean-Paul Sartre (1938), O Jogo das Contas de Vidro de Hermann Hesse (1943),
1984 de George Orwell (1949), Heimatmuseum de Siegfried Lenz (1978), Der
chinese des Schmerzes de Peter Handke (1983), Beatus Ille de Antonio Munoz Molina
(1986), O Palcio dos Sonhos d'Ismail Kadar (1990), Dbout les Morts de Fred
Vargas (1995), Todos os Nomes de Jos Saramago (1997), Dia de Finados de Cees
Noteboom (1998), o nico texto em que o historiador uma mulher, The Ar-
chiviste de Martha Cooley (1998), e, claro, O Cdigo Da Vincide Dan Brown (2003).
Sem dvida nenhuma, essa lista no exaustiva e cada um de vocs ter
outros ttulos a acrescentar e espero a me sugerir. Mas, embora incompleta,
ela nos permite comear a formular uma questo: como os outros nos vem? Em
outros termos: qual a impresso que os romancistas tm de ns, historiadores?
Qual a nossa imagem social e poltica? Talvez esse exerccio simples procu
rar nos verpelos olhos de um outro nospermita tambm desenvolver algumas
reflexes sobre a relao do historiador com o seu presente.
II
III
IV
Alm das manipulaes realizadas por razes polticas, evocadas por Lenz e
Kadar, h os pequenos enganos, as distraes ordinrias, os abusos fortuitos, mas
que podem destruir para sempre apossibilidade de desvendar opassado. oter
ceiro caso, que apareceu nas ltimas dcadas: o historiador deve enfrentar uma
sriede manipulaes quotidianas, acidentais, absurdas.
Milan Kundera o relata em O Livro do Riso e do Esquecimento (1978). No
incio, ele evoca as manipulaes efetuadas pelo poder poltico, que se apraz em
apagar as fotografias oficiais dos antigos companheiros dos tempos da Revoluo,
em seguida condenados como contra-revolucionrios. Mas, nas pginas seguin
tes, sugere-nos que o desejo de manipular o passado universal. Mirek, o prota
gonista da primeira narrativa, quer de qualquer modo destruir as cartas que havia
escrito a sua ex-namorada, apenas porque era feia e, todo o mundo sabe, as mu
lheres no se interessam por homens bonitos, mas por homens que conquista
ram mulheres belas! Em suma, Mirek reescreve a histria exatamente como o faz
134 sabinaloriga
VI
VII
VIII
Assim, cada vez mais difcil encontrar algum que ainda confie no traba
lho do historiador: quantas pessoas acreditam mais num livro de histria do que
num romance ou num filme? Alis, ns historiadores tambm temos dificuldade
em ter confiana em ns mesmos. Poderia ser diferente?
Um dos temas que dominaram o sculo XX diz respeito justamente infi
nita fragilidade da memria, sua propenso a esquecer ou pelo menos amodifi
car a hierarquia das lembranas. A memria infiel: amanh ela apagar o que
hoje nos parece fundamental e exaltar um detalhe intil. tambm incoerente
econtraditria, como o mostra a exploso extraordinria de memrias biogrfi
cas e locais, que ocorreu nas ltimas dcadas.
Outro ponto crtico diz respeito ligao do historiador com o seu presente.
De fato esse tema, longe de ser novo, tornou-se mais imperativo. J em 1897, Henri
Pirenne escrevia "a maneira de encarar a histria imposta ao historiador pelo
seu tempo. [. . .] Cada poca refaz a sua histria, a transpe de certa forma num
tom que lhe seja apropriado. Ohistoriador dominado, contra asua vontade, pe
las idias religiosas, filosficas, polticas que circulam em torno dele". Trinta anos
mais tarde, o historiador americano Charles Geard declarava no congresso da
American Historical Association: "cada historiador produto de sua poca, e sua
obra reflete oesprito do tempo, de sua nao, de sua raa, de seu grupo ede sua
classe. [. . .] Cada historiador sabe que seus colegas foram influenciados na sele
o ena ordenao da documentao por suas inclinaes, preconceitos, crenas,
sentimentos, educao e experincia, sobretudo social e econmica .
Talvez estejamos presos num impasse. Se a memria to infiel ese somos
inevitavelmente escravos do nosso presente, como podemos prometer reencon
trar"o passado, ou pelo menosalguns pedaos?
IX
um livro com um ttulo chamativo, Dead Certainties, que explica que a verdade,
longe de poder ser descoberta, pode apenas ser construda. A saber: para alm da
narrativa, no h nenhuma realidade, todas as reconstrues se valem e o conheci
mento histrico escapa a toda verificao. Franklin R. Ankersmit tambm afirmou
que os critrios de verdade e falsidade no podem ser aplicados s representaes
do passado: "Para o ps-moderno, as certezas cientficas sobre as quais os moder
nos sempre construram [suas interpretaes] so apenas variaes do paradoxo
do mentiroso. A saber, do paradoxo do cretense, que diz que todos os cretenses
mentem". Nessa perspectiva, o historiador no est diante do passado, mas de suas
interpretaes: "a distino usual entre a linguagem e a realidade perde sua razo
de ser\ A discusso historiogrfica pode referir-se apenas ao estilo da narrao,
pois o contedo no mais do que um derivado do estilo.
A partir da, h toda uma srie de comparaes ou contaminaes discut
veis entre a narrativa literria e a narrativa histrica, entre ofato e afico, entre o
conhecimento e ojogo. O resultado dessas diversas contaminaes sempre o mes
mo. Em todo caso, afirma-se que, longe de remeter ao passado, a verdade histri
ca fruto do presente do historiador, de sua condio atual.
pior que um impasse. Estamos diante de um precipcio. Se a narrativa
histrica possui o mesmo estatuto que o romance, se se trata apenas de um jogo,
se a realidade se reduz a uma questo de palavras, como levantar a guarda contra
osgrandes mentirosos, osassassinos da memria (a comear pelos negacionistas)?
No tratarei desse ponto, j aprofundado vrias vezes por Arnaldo Momigliano,
PierreVidal-Naquet e Cario Ginzburg. Tambm no me alongarei sobre o fato de
que a notciada opacidade do passado no realmente um furo jornalstico: nos
sos predecessores no eram to ingnuos quanto s vezes pensamos. Masgostaria
de ressaltar a maneira pela qual essa notcia foi acolhida, porque tenho a impres
so de que, mais do que raiva e desespero, ela suscita entusiasmo, euforia, alvio.
Como se se pensasse: enfim livres! Livres do passado? Como se o historiador pu
desse agora dizer o que bem entende: de todo o modo o passado no pode opor
nenhuma resistncia a seus desejos interpretativos.
massacres cometidos pelo Estado francs durante a guerra da Arglia. Por isso o
historiador, se valoriza sua integridade, deve cultivar a dvida e recusar a aceita
o de toda idia fundada na crena.
XI
XII
Rosngela Patriota
Universidade Federal de Uberlndia
Ressuscite-me,
ainda que apenas,
porque fui um poeta.
VladImir Maiakvski
" Franois Furct. O passado de uma iluso: ensaios sobre a idia comunista no sculo XX. So
Paulo: Siciliano, 1995, p. 10.
^Sobre este texto, consultar: Reni Chaves Cardoso S. Zacchi. Os Banhos: uma potica em cena.
Doutorado em Teoria Literria e Literatura Comparada. So Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas, Universidade de So Paulo. 1990.
146 rosangela patriota
PRLOGO
DOS SETE PARES IMPUROS
' Bblia sagrada. So Paulo: Ave Maria, 1959, p. 62. Traduo dos originais hebraico, aramaico
e grego, mediante verso francesa dos monges beneditinos de Maredsous (Blgica) pelo Centro
Bblico Catlico de So Paulo.
148 rosangela patriota
e outros
e outros
inmeros contos de fada.
Todos prometem a alegria do alm, inteligentes, espertos.
Aqui,
na terra queremos
viver nem acima,
nem abaixo
de todos estes pinheiros, casas, estradas, cavalos e ervas.
Enjoaram-nos as paixes de papel
deixem-nos comer o po vontade!
Enjoaram-nos as paixes de papel
deixem-nos nos viver com mulher de verdade!
L,
nos vestirios dos teatros
lantejoulas, a roupa fulgura
e capas mefstoflicas,
tudo que se pode achar!
Empenhava-se o alfaiate velho: no para nossas cinturas.
Ento,
que seja desajeitada
as roupas
mas nossa.
VIadimir Maiakvski. Mistrio-Bufo: um retrato herico, pico e satrico de nossa poca. Trad.
Dniitri Beliaev. So Paulo: Musa Editora, 1998, pp. 19-21.
mistrio-bufo, de maiakvski, e a recriao da histria 149
ATUAM
1. Sete pares puros. Negus, abissnio, raj indiano, pax turco, merca
dor valento russo, chins, persa bem-nutrido, francs gordo, aus
traliano com esposa, pope, oficial alemo, oficial italiano, america
no, estudante.
2. Sete pares impuros. Limpa-chamins, lanterneiro, chofer, costurei
ra, mineiro, carpinteiro, peo, criado, sapateiro, ferreiro, padeiro, la-
vadeira e esquims: pescador e caador."
IMPUROS (juntos):
A errar pelo mundo
nosso povo acostumou-se
No somos de nao nenhuma
Trabalho nosso ptria nossa
O Dilvio
IMPUROS:
No temos nada a perder! Mesmo se o dilvio nos levar ao fiindo.''
fome e sem saber se teriam foras para resistir. Diante de tal situao, os habitan
tes da proa refletem sobre as circunstncias:
ALEMO:
Senhores!
(fazendo discurso)Ns todos somos to puros.
Ser que para ns o suor derramar?
Vamos obrigar os impuros a para ns trabalhar.
ESTUDANTE:
Eu os obrigaria!
Mas isso no para mim
sou frgil, sombra!
E qualquer um deles medem sua altura ombro a ombro.
ITALIANO:
Deus nos livre de brigar!
No brigar,
mas enquanto aboletados eles
vo devorar o menu daqueles,
berrar e berrar,
ns vamos pegar e uma pra elesaprontar.
ALEMO:
Vamos eleger pra eles um tzar!
TODOS:
Para que um tzar?
(comsurpresa)
ALEMO:
Porque o tzar promulgar um manifesto-
todos os manjares pra mim, como se diz,
devemser entreguescom rapidez;
O tzar come,
e ns comemos
seus sditos fiis.
MERCADOR:
Cidados, faam favor,para a assemblia!
MINEIRO:
Camaradas!
Que que isso!
Antes tudo devorava uma s boca e agora o nosso um batalho em
borca
Aconteceu que a repblica, horra o mesmo tzar, s que de cem bo
cas.
FRANCS:
{esgravatandoosdentes)
Vocs esto esquentando demais.
Prometemos e dividimos em partes iguais:
para um a rosca, para outro o buraco dela.
A repblica democrtica por a que se revela.
MERCADOR:
Ento precisa algum ficar com as sementes
no a melancia para todos os dentes.
Vladimir Maiakvski, op. cit., pp. 119, 121, 123, 125, 127.
154 rosangela patriota
IMPUROS:
Ns vamos mostrar a voc a luta de classes! Em frente!'
E os puros foram atirados ao mar. Famintos e sem saber para onde deveriam
seguir, os impuros anseiam pelo monte Ararat.
cheguei
para me vestir.
Preparem suas colunas-corpos.
At mim
quem cravou tranqilamente o faco
e deixou o corpo do inimigo com uma cano!
[...]
EM CORO:
Mesmo pra l ns iremos
E no recuaremos.
Conduza-nos!
O caminho, onde acharemos?
HOMEM:
Onde?
De profetas o olho despreguem,
explodam tudo o que veneravam e veneram,
E ela, a prometida, estar bem perto
bem aqui!
A palavra de vocs. Eu silencio.
Sim.
DESAPARECE. PERPLEXIDADE NO CONVS.^
IMPUROS:
Esperamos por vocs, malditos.
Morrendo resignadamente.
Se as pessoassoubessemque era issoque teriam pela frente!
L ns mesmos temos,
destes parasos,
em pencas.
[...]
IMPUROS:
Vladimir Maiakvski, op. cit., pp. 159, 161, 163, 165, 167, 169.
mistrio-bufo, de maiakvski, e a recriao da histria 157
O Arco-ris
8 Disse tambm Deus a No e a seus filhos: 9 "Eu vou fazer uma ali
ana convosco e com vossa posteridade, 10assim como com todos os
seres vivos que esto convosco: as aves, os animais domsticos, todos
os animais selvagens que esto convosco, desde todos aqueles que sa
ram da arca at todo o animal da terra. 11 Eu fao esta aliana convos
co: nenhuma criatura ser mais destruda pelas guas do dilvio, e no
haver mais dilvio paradevastar a terra. 12 Deus disse: "Eis o sinal da
aliana que eu fao convosco e com todos os seres vivos que vos cer
cam, por todas as geraes futuras: 13 Ponho o meu arco nas nuvens,
para que ele seja o sinal da aliana entre mim e a terra. 14 Quando eu
tiver coberto o cu de nuvens, o meu arco aparecer nas nuvens. 15 e
Eu me lembrarei da aliana que fiz convosco e com todo o ser vivo de
todas a espcie, e as guas no causaro mais dilvio que extermine
toda a criatura. 16 Quando eu vir o arco nas nuvens, eu me lembrarei
da alianaeterna estabelecida entre Deus e todos os seresvivosde toda
a espcie que esto sobre a terra." 17 Dirigindo-se a No, Deus acres
centou: "Este o sinal da aliana que fao entre mim e todas as cria
turas que esto sobre a terra".^^
O arco-ris, smbolo de uma nova era, marca o renascer que, para os impu
ros, assim se manifesta;
Jacqucs Le Gof. Escatologia. Enciclopdia Einaudi. 3." ed. Porto; Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1984, p. 452, v. 1 (Memria-Histria).
162 rosangela patriota
" Roman Jakobson. A gerao que esbanjou seuspoetas. So Paulo: Cosac Naify, 2006 (contracapa).
IMAGENS DA SENSIBILIDADE REVOLUCIONRIA
NO CINEMA BRASILEIRO DOS ANOS 1960
' Este foi o tema central de uma das mesas-redondas que integraram a programao do 3.
Simpsio de Histria Cultural, ocorrido em Florianpolis (SC), no perodo de 18 a 22 de setembro de
2006, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
164 alcides freire ramos
^Sandra Pesavento. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo, Mun
dos Nuevos, Paris, n. 4, p. 1, 2004. Disponvel em: <http://nuevomundo.revues.org/document229.html>.
Acesso em 17 de setembro de 2006.
^ Ibidem.
* Ibidem.
5 Ibidem.
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 165
Franois Furet. O passado dc uma iluso: ensaios sobre a idia comunista no sculo XX. So
Paulo: Siciliano, 1995.
" Ibidem, p. 15.
* Ibidem.
' Ibidem, p. 25.
Ibidem.
" Ibidem.
Ibidem. Ibidem, p. 22.
166 alcides freire ramos
Ibidem, p. 17.
'' Ibidem, p. 18.
168 alcides freire ramos
Esse movimento cinematogrfico teve sua primeira fase entre 1960 e 1964.
As obras mais representativas desse perodo foram Os Fuzis (1963) de Rui Guerra,
Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos e Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964) de Gluber Rocha. Esses filmes foram fortemente marcados pelas propostas
de superao do subdesenvolvimento brasileiro. Era um cinema, pois, de interven
o poltica, que esteticamente dialogou com o chamado neo-realismo italiano'*'
Maria Rita Gaivo. Cinema brasileiro; 1930-1964. In: Boris Fausto (org.). O Brasil Republica
no. So Paulo: DifeI, 1984, pp. 497-8 (HGCB, t. III, v. 4).
" Sobre o dilogo com o neo-relismo, consultar: Randal Johnson. Literatura c cinema: Macu-
nama do modernismo na literatura ao cinema novo. So Paulo: T.A.Queiroz, 1982, p. 83. Ao lado
disso, cabe sugerir a consulta da importante investigao de Mariarosaria Fabris, intitulada Nelson
Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? (So Paulo: Edusp, 1994). Lanada recentemente, h uma
importante reflexo sobre esse assunto que ser vale ser consultada. Trata-se do seguinte ensaio: Ris
Carlos Avellar. O paraso do espectador. In: Angela Prudenzi & Elisa Resegotti (org.). Cinema poltico
italiano: anos 60 e 70. So Paulo: Cosac Naif, 2006, pp. 169-99.
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 169
Segundo Ismail Xavier, "caminhando num terreno de impasses, enquanto viso da hist
ria, Deus e o diabo totaliza, reafirma a certeza da salvao com base numa teleologia que d sentido
a toda a experincia passada como fases de um processo" (Serto Mar: Glauber Rocha e a esttica da
fome. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 119).
"|. . -1 a presena de Villa-lobos citao, transporte em estado bruto de elementos de um
projeto cultural inserido no Brasil urbano. O papel da questo nacional na elaborao de suas formas
traz ntida sintonia com o prprio intuito do filme, tambm envolvido na reelaborao erudita de um
repertrio popular regional. Dada essa sintonia, a incorporao de Villa-Lobos ao filme de Glauber
Rocha um gesto que a reafirma, ligando de modo mais explcito projetos de natureza semelhante,
pertencentes a uma tradio comum no processo cultural brasileiro" (XAVIER, Ismail Xavier, op. cit.,
pp. 92-3).
Roberto Schwarz. Cultura e poltica, 1964-1969. In: O pai defamlia e outros estudos. 2.' ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 62.
170 alcides freire ramos
" FICHA TCNICA - TTULO: O Desafio; ANO DE PRODUO: 1964; ANO DE LANA
MENTO: 1965; ARGUMENTO, DIREO E ROTEIRO: Paulo Csar Saraceni; DURAO: 93 min; P
& B; Rio de Janeiro; ELENCO: Oduvaldo Vianna Filho, Isabella, Srgio Britto, Luiz Linhares, Joel
Barcelos, Hugo Carvana; PRODUO: Srgio Saraceni; Produes Cincmalogrficas Imago e Mapa
Filmes; FOTOGRAFIA: Guido Cosulich; MONTAGEM: Ismar Porto; CMERA: Dib Lufti; SOM:
Alusio Viana; TRILHA SONORA: Trechos de composies de Amadeus Wolfgang Mozart, Heitor
Villa-Lobos, Edu Lobo, Vincius de Moraes, Caetano Veloso e Carlos Lira; DISTRIBUIO DO
FILME EM VDEO (VHS/NTSC): Difilm, Sagres Filmes. Cabe destacar que o filme traz um trecho do
espetculo Opinio, com participao de Joo do Vale e de Maria Bethnia, interpretando a cano
Carcar.
Para que se tenha idia mais precisa a respeito do ineditismo das discusses presentes em O
Desafio, cabe lembrar: Francisco Weffort, que um dos principais estudiosos do assunto, publicou em
1967, isto , dois anos depois da exibio do filme de Saraceni, um artigo na revista Tempos Modernos
intitulado "O Populismo na Poltica Brasileira", em que essa temtica, crise do pacto policlassista, foi
enunciada de maneira mais sistemtica. Vejamos uma passagem representativa: "(...] se se tem em
conta a natureza da participao poltica popular que existia no Pas, percebem-se as graves limitaes
que se apresentavam poltica de reformas que constitua uma das orientaes bsicas do Governo
Goulart. Com efeito, a importncia poltica das massas dependera sempre da existncia de uma tran
sao entre os grupos dominantes, e esta transao agora se encontrava em crise. Se as massas serviram
como fonte de legitimidade para o Estado, isto s foi possvel enquanto estiveram contidas dentro de um
esquema de alianas policlassista, que as privava de autonomia. Desta forma, ao pretender entrar pelo
caminho das reformas de estrutura, Goulart provocou a crise do regime populista" (O populismo na
poltica brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, pp. 77-8.)
Jean-Claude Bernardet. Cinema Brasileiro: propostas para uma histria. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979, pp. 47-8 e 49.
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 171
Ibidcm, p. 48.
" Jcan-Claudc Bcrnardet. lirusil cm tempo de cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 122.
Segundo a aludida historiadora, Vianinha assim se manifestou a respeito da conjuntura bra
sileira no imediato ps-golpe: "o teatro brasileiro de 1965 ou se empenha na sua libertao, partici
pando do processo de redemocratizao da vida nacional, na consagrao dos sentimentos de sobe
rania e vigor do povo brasileiro, ou, ento alheio a um dos momentos capitais de nossa histria ,
poder ficar includo entre os que tiveram a responsabilidade de descer sobre o Brasil a mais triste e
estpida de suas noites. (...]. No h que desanimar. A democracia foi destruda enquanto organi
zao, mas no enquanto absoluta aspirao do povo e do artista brasileiro. A destruio dos valores
democrticos custou tambm a destruio de vrios mitos que enredavam a conscincia social. No
teatro, !965 comea para frente. V ver Opinio" (Rosngela Patriota. Vianinha: tttn dratnatnrgo no
corao de sen tempo. So Paulo: Hucitec, 1999, p. 116). Ainda segundo a autora, "este apelo vai ao
encontro das tarefas formuladas pelo PCB" (ibidem).
Maria Rita Kehl. Ressentimento. So Paulo: Ca.sa do Psiclogo, 2004, p. 17.
172 alcides freire ramos
k
Ele jornalista de esquerda. Ela, casada com um industrial, tinha encontra
\
do em Marcelo, seu amante, uma via de escape da crueza de seu meio social de
origem. Condensando metaforicamente os sentimentos de pessimismo dissemi
nados nos momentos imediatamente posteriores ao golpe, a relao entra em crise.
Por outro lado, o marido de Ada (Srgio Britto), em diversas oportunidades
ao longo da narrativa, reafirma suas convices polticas, desdenha dos "esquer
distas" com os quais Ada convive. Demonstra segurana emocional, visto que tem
certeza de que o processo histrico, depois do golpe, caminha de acordo com seus
interesses e na direo correta. Dirige uma fbrica de 2.500 operrios e tem orgu
lho de sua condio de classe e de seu papel social.
O dio burguesia no est ausente de O Desafio e acaba por expressar-se
pelas reaes de Ada, que no aceita a viso de mundo do marido e discute
longamente com ele. Em cena emblemtica, rejeita o universo fabril e seu maqui-
nrio. Encontra-se, portanto, infeliz e sem condies de encontrar um salda. Ti
nha sido abandonada pelo amante e, ao mesmo tempo, no capaz de separar-se
do marido. Portanto, visto que incapaz de arrepender-se, vingar-se, esquecer ou
perdoar, sua condio leva-aao ressentimento.
30 Mariii Rita Kfhl. Rcsseiitiiiiciio. Sao Paulo: Casa do Psiclogo, 2004, p. 27,
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 173
" FICHA TCNICA TTULO: So Paulo S/A; ANO DE PRODUO: 1964; ANO DE
LANAMENTO: 1965; ARGUMENTO, DIREO E ROTEIRO: Luiz Srgio Person; DURAO: III
minutos (longa-metrageni); 35mm; Preto e Branco; So Paulo; PRODUO: Socine Produes
Cinematogrficas; FOTOGRAFIA: Ricardo Aronovich; MONTAGEM: Glauco Mirko Laurelli; MSI
CA: Cludio Petraglia; ELENCO: Walmor Chagas, Eva Wilma, Otello Zelloni, Ana Esmeralda, Darlene
Glria, Lenoir Bittencourt; DISTRIBUIO DO FILME EM DVD: Videofilmes.
" Encarna o to odiado perfil descrito por F. Furet: "o burgus s tem uma obsesso, os seus
interesses, e um smbolo, o dinheiro. (. . .). O dinheiro veio-lhe, na melhor das hipteses, por sorte,
e nesse caso pode perd-lo amanh por azar; na pior das hipteses, foi adquirido s custas do trabalho
dos outros, por ladroagem ou por cupidez, ou pelas duas coisas ao mesmo tempo" (Franois Furet,
op. cit., p. 20.)
alcides freire ramos
Ao tornar-se gerente da fbrica, percebe que no tem aptido para essa ativi
dade, tampouco aprecia os mtodos inescrupulosos do patro. um exemplo t
pico dos segmentos sociais paulistas que, aps obter um diploma de curso tcni
co e formao bsica num curso de ingls, consegue uma posio confortvel no
mercado de trabalho e aumenta, cada vez mais, seus rendimentos, na esteira do
crescimento do setor industrial. Entretanto, no sabe ao certo aonde chegar. Deixa-
se levar pelo curso dos acontecimentos. Com sua vida afetiva ocorre o mesmo:
casou-se com Luciana por presso familiar, no porque quisesse de fato. Como se
no bastasse, a convivncia com a esposa lhe traz aborrecimentos dirios. Para
ela, o ideal que deve ser atingido por Carlos ser como Arluro, um homem de
sucesso. Ele, porm, a pouco e pouco, vai se desinteressando por sua vida profissio
nal e familiar. Tenta romper com todas as suas relaes e amarras, mas no con
segue e engolido pela engrenagem.
Ao analisar essa obra de Person, Jean-Claude Bernardet afirma:
" Jean-Cliiudc Bernardet. Hrasil cm tempo de cinema. Rio de Janeiro: Pa/ c lerra, 1978, p. 128.
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 175
Paulo, ele significa a autoridade da figura paterna. ele quem prepara e define o
caminho para o jovem poeta e serve-lhe de exemplo. Apesar disso, rejeitado por
Paulo em sua luta pessoal para mudar a vida deles e o destino de Eldorado. Nesse
sentido, percebe-se uma inequvoca mudana de postura quando comparamos
essa personagem a Marcelo de O Desafio e a Carlos de So Paulo S/A. Apesar das
vacilaes, das idas e vindas, Paulo no se deixa envolver por ressentimentos,
visceral em suas tomadas de posio, sobretudo na disposio em romper com
sua condio de classe e aderir a projetos polticos mais radicais.
Fuentes encarna a burguesia progressista. Ele proprietrio das mais im
portantes fbricas e minas de Eldorado, controla a indstria cultural e anima as
festas da alta sociedade. Numa clara assimilao da sensibilidade revolucionria,
particularmente do dio burguesia, o filme associa sua imagem ao descompro-
misso. Apesar de sua elevada posio social, Fuentes no lder poltico e retira
seu prestgio exclusivamente da fora da fortuna que possui. Politicamente, seu
comportamento a materializao da total falta de projeto coletivo e perspectivas
futuras. Por fim, de maneira cnica e oportunista, para defender seus interesses
particulares, alia-se ao capital estrangeiro.
Vieira a personificao do clssico lder populista de origem rural. Refor
mista em suas propostas iniciais, rapidamente adere a posturas autoritrias. Na
vida de Paulo, acaba funcionando como uma frustrante figura paterna, j que,
diferentementede Diaz, Vieira demonstrafraqueza no momento decisivo da luta
poltica. No contexto das foras polticas de Eldorado, ele representa o pacto
policlassista que atenua as possibilidades revolucionrias. Para os setores de esquer
da um lder que, num futuro prximo, poderia cumprir um papel revolucion
rio, mas, ao longo do processo,no consegue atingir esses objetivos.
Sara dedica-se ao ativismo poltico. Participa dos projetos dos grupos de es
querda majoritrios. Lutapeloapoio ao lder populista, buscando viabiliz-lo como
o instrumento fundamental para as inadiveis, radicais e necessrias mudanas
polticas, econmicas e sociais. Conquanto se mostre envolvida emocionalmen-
te, ela constante e muito racional. Ao lado de Paulo, funciona quase todo o tempo
como uma conselheira, um porto-seguro e, ainda que tmida, uma amante. Em
diversas ocasies, ela capaz de entender suas vacilaes e, ao mesmo tempo, con
segue lev-lo a romper com o imobilismo ou com os possveis ressentimentos.
lvaro o melhor amigo de Paulo. um personagem que, semelhana de
Sara, incentiva o seu envolvimento poltico mais conseqente. Diferentemente
de Sara, no bem-sucedido em sua tarefa, j que se apresentapor demais fragili
zado diante da dureza dos embates. Ao final, diante dos acontecimentos sombrios
que se anunciam com a vitriade Diaz, levado a cometersuicdio.
A EXPLINT (Explorao Internacional) uma personagem sempre nomea
da, mas cuja presena o filme sonega. a representao do capital estrangeiro.
Tem papel relevante nos destinos de Eldorado, dando suporte s foras mais con
servadoras, no momento do golpe.
Paulo, o personagem central, obviamente o mais complexo. De origem
abastada, tinha a possibilidade de dedicar-se confortavelmente poesia e seguir
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 179
uma promissora carreira poltica ao lado de Diaz, mas opta por romper com sua
condio de classe e acaba por aproximar-se dos mais radicais segmentos de es
querda. Ao longo de toda a trama, enfatiza-seo radicalismo de suas escolhas. Est
sempre disposto a correr riscos e ir at o fim. Quando no consegue realizar seus
projetos reage por meio da autopunio, mas jamais se deixa tomar pelo ressenti
mento. a personificao da nova sensibilidade revolucionria que daria origem
aos grupos de esquerda voltados para a luta armada.
A trama vivida pelas referidas personagens/foras sociais, caracterizadas aci
ma, ocorre em Eldorado, seguindo a seqncia tpica dos golpes de estado na Am
rica Latina naquele perodo.Segundo Ismail Xavier, o esquema geral que o filme
procurar elucidar e denunciar pode ser expresso da seguinte maneira:
Mario Rosa Magalhes & Robcrt Slam. Dois encontros do lidcr com o povo: uma
dcsconstruo do populismo. In: Paulo Emlio Salles Gomes ct a). G/<n//'fr lioclui. Itio de laneiro: Pa/
e Terra, 1977, p. 156.
Para mais informaes, consultar: Alcides Freire Ramos. Temi cin 7>i/jsf (1967, Glaubcr
Rocha): esttica da recepo e novas perspectivas de interpretao. Fiix, Itevist.i de liisttkia c Es
tudos Culturais. Ubcilndia/MG, v. 3, ano 111, n." 2, abr./mai./jun. de 201)6, pp. 1-11. Disponvel cm:
<htlp;//\ww.rcvistarenix.pro.br/>. Acesso em 15 de novembro de 2006.
MEMRIA E HISTRIA NOS ESCRITOS AUTOBIOGRFICOS
DE SAN TIAGO DANTAS
' CarI E. Schorske. L'histoirc et Ftude de Ia culture. Gendscs: sdenccs sodnlcs et hisloire. Paris,
n." I. sept., p. 7, 1990. isi
182 angela de castro gomes
Com tal viso do trabalho do historiador, tambm se pode dizer que a acei
tao da presena da subjetividade na Histria (da inexistncia da objetividade
"positivista"), abriu as portas de uma acurada reflexo sobre as relaes entre his
tria e memria. Sobre suas aproximaes o presentismo, a seletividade,o traba
lho com re-presentaes, etc. , e seus distanciamentos. Como se reconhece, cabe
memria sacralizar o passado, tornando-o monumento, ao passo que cumpre
histria produzir conhecimentos por meio de um exerccio crtico capaz de com
preender as interpretaes dadas a esse passado pelo presente, que busca sempre
divisar um futuro. Mas possvel dizer, com muitos outros historiadores, que se a
histria tem, fundamentalmente, esse compromisso crtico, no deixa de atuar
na construo de memrias e de integrar sua fabricao. Os historiadores podem
consagrar interpretaes de personagens, acontecimentos e perodos e, em o fazen
do, participar ativamente como profissionais especializados , da produo
de memrias nacionais e de grupos. No sem razo que se fala cada vez mais
dessa "relao indecisa" entre memria e histria, uma vez que, se certamente elas
no se confundem, com certeza implicam-se mutuamente.^ Ou seja, se a histria
faz uso da memria tornando-a, inclusive, um objeto de estudo , a mem
ria tambm faz uso da histria, incorporando-a como um de seus materiais.
Em grande parte devido a essa tomada de conscincia, os historiadores pas
saram a se interessar crescentemente pela dimenso subjetiva existente em "seus"
documentos. Sabedores de que a nica e precria garantia do exerccio da cienti-
ficidade a aceitao e o trabalho com tal subjetividade, trataram de no mais
escamote-la ou consider-la um obstculo anlise, mas sim de destac-la, tiran
do proveito das orientaes que ela pode apontar. Dessa forma, os historiadores
que utilizam como fonte privilegiada de suas pesquisas, os chamados documen
tos auto-referenciais acabam sendo forados a refletir mais intensamente sobre
tal questo. Isso porque tais documentos,por integraremprticasculturais de pro
duo do "eu" por serem uma escrita de si , evidenciariam, de forma clara, a
dimenso subjetiva presente na narrativa dos atores histricos. No caso da do
cumentao textual,por exemplo, o uso da primeira pessoa do singular, o carter
coloquial da linguagem, o cotidiano ou mesmo o confessional da escrita, expon
do desejos, dvidas e realizando balanos de vida, ilustrariam tal operao, imagi
nada e tambm esperada pelo pesquisador.
Contudo, e esse o ponto desteartigo,nem sempre o que ocorre. Documen
tos auto-referenciais podem ter, com freqncia, caractersticas de uma escrita de
si que busca, explicitamente,dissolver a subjetividade do "eu"narrador, construin-
do-se com a inteno de, sem abrir mo de seu carter testemunhai, alcanar um
"mximo de objetividade". Trata-se,digamos, de uma estratgia narrativa inversa
que os historiadores esperariam e desejariam encontrar emtais documentos. Nesse
caso, de um lado, eles poderiam ser pensados no tanto como uma escrita autobio-
^ Sobre tais relaes ver, em especial: Fernando Catroga. Memria, histria e historiografia.
Coimbra: Quarteto, 2001, pp. 40-51; Henri Rousso. A memria no mais o que era. In: Marieta M.
Ferreira & Janana Amado (org.). Usos e abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996; Robert
Frank. La mmoire et Thistoire. Les cahiers de L'IHTP, n." 21, nov. 1992.
memria e histria nos escritos autobiogrficosde san tiago dantas 183
grfica stricto semu, mas sim como uma escrita contendo, de forma forte, "marcas
autobiogrficas", indicando, assim, a relao estreita entre histria e memria pessoal.
Deoutro lado,poderiamserentendidoscomoexemplos mais radicais de uma carac
terstica prpria escrita de si,j apontada por muitos estudiosos: o distanciamento
entre o narrador e seu personagem, que se manifesta quando o "eu" que narra se
representa como "um outro" (assumindo inclusive a terceira pessoa do singular para
falar/escrever). Umaconstruo produzida nosomente pelotrabalho comos vrios
tempos da narrativa (o momento da narrao e os diversos momentos narrados),
como igualmente pelo trabalho do autor, que tem um projeto evidente de realizar
um diagnstico "objetivo"e fundamentado do contexto em que atuou. Em outras
palavras, um projetoque engloba a narrao da histriade vidado narrador e tam
bma histria da qualelafaz parte.Naspalavras de Fernando Catroga:
* Para uma biografia densa e no muito longa sobre San Tiago, consultar o verbete de autoria
de Vilma Keller em Alzira A. Abreu; Israel Beloch; F. Lattman-Weltman & Srgio Lamaro (coord.).
Dicionrio histrico biogrfico brasileiro, v. 11. 2." ed. (ver. e ampl.) Rio de Janeiro: Fundao Getlio
Vargas, pp. 1792-1797.
memria e histria nos escritosautobiogrficosde san tiago dantas 185
ternacionais, uma vez que a poltica de e para San Tiago Dantas era indissolu-
velmente interna e externa.
Seu incio de vida adulta pode ser datado da entrada na Faculdade Nacional
de Direito do Rio de Janeiro, no fim dos anos 1920, quando tem contato com os
acirrados debates que precederam e sucederam a Revoluo de 1930. O "proble
ma da formao da nacionalidade", frmula que enunciava e sintetizava as preo
cupaes que agitavam os meios polticos e intelectuais dessa poca, tambm cap
turou San Tiago, particularmente atrado pelas idias nacionalistas e autoritrias
do escritor Plnio Salgado. Inicia entosuacarreira de poltico e de escritor, atuando
nos meios jornalsticos e escrevendo em revistas como Hierarquia, dedicada pro
paganda dos ideais integralistas e A Ordem, do Centro D.Vital,dirigido por Alceu
Amoroso Lima. Nessa atividade, logo se destaca, pois convidado para ser asses
sor de gabinete do ento ministro da Educao e Sade, Francisco Campos.
Em 1932, j formado em Direito, ftmdada a Ao Integralista Brasileira
(AIB), e ele dos primeiros a aderir,tornando-se defensor de um Estado corporativo
no Brasil. Uma posio que iria sustentar at a implantao do Estado Novo, quan
do, devido proibio dos partidos polticos e conspirao integralista contra
Vargas, afasta-se da AIB,do autoritarismo, do corporativismo, mas no do nacio
nalismo. Abandona a militncia poltica e se dedica prtica da advocacia e ao
magistrio, chegando a ocupar duas ctedras: na Faculdade de Arquitetura e na
Faculdade de Direito, ambas da Universidade do Brasil. Paralelamente, a partir de
1945, passa a desempenhar uma srie de fmes de assessoramento ao governo
federal, o que culmina com sua ao como assessor pessoal do Presidente Vargas,
no momento da preparao do anteprojeto de criao da Petrobrs,em 1953.
O segundo Governo Vargas traz, sem dvida, uma nova insero de San Tiago
no campo da poltica, ao possibilitarsua participao em vrias reunies de organis
mos internacionais como representante do Brasil. Mas s aps o suicdio do
presidente, que ele toma a deciso de se filiar ao Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), inaugurando sua carreira poltico-partidria: deputado federal por Minas
Gerais, em 1958 e 1962,e tambm o pr-candidato a vice-governador do estado,
em 1958, numa chapacomTancredo Neves, do Partido Social Democrtico (PSD).
No PTB, desde 1955, aproxima-se muito de JooGoulart, tornando-se,rapidamen
te, um dos mais importantes lderes do partido e um de seus quatro vice-presi-
dentes, alm de um dos expoentesdo bloco parlamentar formado pelo PSD-PTB,
durante o Governo de Juscelino Kubitschek. Quando da renncia de Jnio Qua
dros, integra a comisso interpartidria que elabora a Emenda Constitucional que
institui o Parlamentarismo, permitindo a sada da crisee a posse de Jango na Pre
sidncia da Repblica, em setembro de 1961.
No perodo parlamentarista, no gabinete ministerial de TancredoNeves, San
Tiago assumiu a pasta das Relaes Exteriores. No governo presidencialista de
Jango, foi seu ministro da Fazenda, de janeiro a junho de 1963, quando renuncia
e reassume sua cadeira na Cmara Federal. Em meio ao intenso processo de
radicalizao da poltica brasileira, San Tiago uma figura polmica e muito
criticada, a despeito de muito respeitada, particularmente por sua imagem de
186 angela de castro gomes
intelectual brilhante, especialmente por seu saber jurdico. O ltimo ano de vida
desse jurista, que morre em setembro de 1964, vitimado por um cncer, de in
tensa atividade poltica. Inicialmente, na tentativa de montagem do que se tor
nou conhecido como Frente de Apoio s Reformas de Base, uma frente interpar-
tidria que lutaria por reformas econmico-sociais, dentro do quadro da legalidade
institucional, dentro da democracia representativa. Depois do movimento civil e
militar de maro de 1964, marginalizado e muito doente, marca sua presena es
crevendo um manifesto Nota Prvia Sobre o Reagrupamento das Foras Polti
cas Brasileiras, em 1964, no qual prope medidas para o fortalecimento da le
galidade democrtica, a fim de evitar que a futura sucesso presidencial (prevista
para 1965), produzisse o recrudescimento do poder dos militares.^ Vencido em
suas propostas polticas, ele uma das poucas lideranas petebistas a no ser cas
sado. Remotamente, por algum tipo de respeito e, muito certamente, pela total
inutilidade do ato h muito todos sabiam que ele ia morrer , o Presidente
Castelo Branco recusa seu pedido de cassao.
Como fcil perceber por essas resumidas notas biogrficas, estamos tra
tando de um poltico que tem na atuao e reconhecimento intelectuais um imen
so recurso de poder. Contudo, esse um intelectual que, embora tenha escrito
bastante, no autor de muitos livros. Seupensamento est nos inmeros textos,^
de vrios tipos e tamanhos, com vrias destinaes e para vrios pblicos, que es
creveu ao longo da vida. Literalmente, pois morreu atuando politicamente como
escritor; fazendo da reflexo e da anlise uma forma de interveno poltica. Por
tanto, lcito considerar que sua produo intelectual se fez sempre referenciada
aos acontecimentos do cenrio poltico, nacional e internacional, e possuindo for
tes objetivospragmticos, o que no a destituide sofisticao intelectual.
O conjunto de papis doadosao Arquivo Nacional por sua mulher, em 1974
ano do incio da "abertura lenta e gradual" do Presidente/General Geisel ,
so fonte e objeto de estudo preciosos para o historiador. Um arquivo que rene
cerca de 6.500 documentos, abrangendo um perodo que vai de 1929 a 1964, ou
seja, do ano da entrada no curso de Direito at a morte, aos 53 anos de idade.^
Quando consultado, o arquivo estava organizado a partir de um arranjo que pri-
' O texto foi publicado por Carlos Castelo Branco, na sua coluna do Jornal do Brasil, trs dias
aps a morte de San Tiago, ocorrida em 6 de setembro de 1964.
Entre os livros de autoria de San Tiago Dantas, destacam-se os programas e aulas de Direito
Civil na Faculdade Nacional de Direito, publicados e reeditados desde os anos 1970. Nessa rea, vale
ainda destacar os livros. Palavras de um professor (Rio de Janeiro: Forense, 2001 [1975]) e Problemas de
Direito Positivo (Rio de Janeiro: Forense, 2004), que rene seus pareceres jurdicos. Em outra linha
escreveu: Dom Quixote: uma apologia da alma ocidental. Braslia: UnB, 1979 [1964]; Poltica externa
independente, Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1962; Produtividade: aspecto institucional. Rio de
Janeiro: Universidade do Brasil/Instituto de Cincias Sociais, 1962 (Cadernos de Cincias Sociais, 6);
e, com outros autores. Educao no Brasil: Anais do Conselho Tcnico da Confederao Nacional do
Comrcio. Rio de Janeiro: CNC, 1995. Sua atuao parlamentar tem registro em Discursos parlamenta
res, com seleo e introduo de Marclio Marques Moreira. (Braslia: Cmara dos Deputados, 1983)
(Perfis Parlamentares, 21).
' Este arquivo pessoal foi consultado por mim em pesquisa desenvolvida entre 1992 e 1994, que
resultou, entre outros produtos, no artigo Trabalhismo e democracia: o PTB sem Vargas. In: Angela
de Castro Gomes (org.). Vargas e a crise dos anos 1950. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994.
memria e histria nos escritos autobiogrficos de san tiago dantas 187
' Como exemplos podem ser citados dois textos. O discurso datilografado e corrigido de
prprio punho por San Tiago, para ser lido por Jango na 12.* Conveno Nacional do PTB, que
sanciona a chapa para a sucesso presidencial de JK Lott e Jango (Ap 47 (37), pacotilha 2) e um
texto datilografado, datado de 29/12/1963, reafirmando a defesa das reformas de base (Ap 47 (43)
pacotilha 3).
* Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (30), pacotilha 2, doe. 16. Arquivo Nacional.
188 angela de castro gomes
Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (30), pacotiiha 2, doe. 16, Arquivo Nacional, p. 1.
memria e histria nos escritosautobiogrficos de san tiago dantas 189
Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (43), pacotilha 2, doe. 43. Arquivo Nacional.
Unio Democrtica Nacional, partido antigetulista e de oposio aliana PSD-PTB que
sustentava o Governo JK.
memria e histria nos escritos autobiogrficos de san tiago dantas 191
Tendo ingressado no PTB em 1955, San Tiago torna-se, em maio de 1956, no incio do
Governo JK, assessor do ministro da Justia, Nereu Ramos. Nessa condio sondado para assumir
a pasta da Agricultura, mas declina, alegando desejar candidatar-se nas eleies de 1958.
Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (43), pacotilha 2, doe. 43, p. 1, grifos do autor. Arquivo
Nacional.
192 angela de castro gomes
" Entre as leis mencionadas esto a que regula a remessa de lucros para o exterior, a que criou
a Companhia Urbanizadora da Nova Capital e a que transformou o antigo Distrito Federal em estado
da Guanabara.
Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (16), pacotilha 3, doe. 9. Arquivo Nacional.
194 angela de castro gomes
imprensa que San Tiago estava muito doente, o que certamente tornava sua esco
lha ainda mais significativae dava a suas palavras um tom muito especial.
Em outubro de 1963, o Governo Jango entrava em escalada de radicalizao
para a esquerda, sendotambm bastante visveis as articulaes, no menos radi
cais, das foras de direita, dentro e fora do Parlamento. San Tiago j havia deixado
o Ministrio da Fazenda (desde junho),'' quando seu Plano Trienal, elaborado
sob os auspcios do economista Celso Furtado, fracassara por falta de condies
polticas de realizao. Elereassumirasua cadeirade deputado federal e, a pedido
do prprio Jango, estava iniciando um delicado trabalho de negociaes, visando
evitar "a quebra da legalidade democrtica".
Assim, diante de uma platia seleta e se dirigindo especialmente pessoa do
diretor da revista, Jorge Leo Teixeira, e a seu corpo de jurados, San Tiago inicia
sua fala com uma observao destinada a situar a complexidade desses meses fi
nais do ano de 1963.
" San Tiago deixa o Ministrio da Fazenda em 20 de junho de 1963, sendo substitudo por
Carlos Alberto Carvalho Pinto, lder da ala progressista do Partido Democrata Cristo (PDC). Na
mesma ocasio. Celso Furtado deixa o Ministrio do Planejamento, que substitudo pela Coordena
o do Planejamento Nacional, p. 4.
Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (16), pacotilha 3, doe. 9. Arquivo Nacional, p. 3.
memria e histrianosescritosautobiogrficos de san tiago dantas 195
vos do Pas, para fazer de pblico o que nunca fiz: um ensaio de justificati
va. Essa justificativa pode dar ensejo a que saiamos um pouco do mbito
sempre limitadode uma personalidade, para irmos ao encontro dos proble
mas e, sobretudo, das opes,que se abrem ao povo nesta poca.^'
Ibidem, p. 4.
196 angela de castro gomes
" Vrios documentos do Arquivo San Tiago Dantas atestam sua movimentao, valendo-se
citar o que intitulado "Bases para formao de uma Frente Popular ou Progressista", datado de 26 de
dezembro de 1963. Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (43), pacotilha 3, doe. 4.
FOTO-CONES, A HISTRIA POR DETRS DAS IMAGENS?
CONSIDERAES SOBRE A NARRATIVIDADE
DAS IMAGENS TCNICAS
' Inspirando-me na feliz expresso de Nicoiau Sevcenko, no seu A corrida para o sculo XXI: o
looping da montanha russa. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
197
198 ana maria mauad
' Alfredo Itosi. O tempo c os tempos. In; Alfredo hosi. Tempo e histria. So Paulo: Companhia
das Lelra.s, lyyz, p. 19,
' lintrevistas com o fotgrafo ri.vio Damm, primeira entrevista: 24/4/20(I.C segunda entrevista:
13/5/200."^. total de horas: 3 horas e 55 minutos; lntrevisla com F.rno Schncider, 8/5/2003, 2 horas de
duraijMo; Milton Ciuran, 9/5/2006. uma hora ile iluraao, "Memrias do contemporneo: narrativas e
imagens do folojornalismo no hrasil do Sculo XX", projeto de produtivitlade lnanciado pelo LiNPq,
2005-2008. As entrevistas esto depositadas no Lalioratrit de Histria Oral e Imagem da Universidade
I-cdcra! J'luinincnsc, em fase dc tratamento para a sua futura publicao no site.
Juscelin, O Presidente Voiuior, Flvio Damm, 1958 (cortesia do autor).
Fvio Damm: Muito bem, resolveram, para facilitar a vida do presidente, para
ele no ter de pegar carro no Palcio para ir para o aeroporto, criar no teto do palcio
do Catete, um heliporto. [. . .] Criaram ali um heliporto, com sinalizao e tal. Ai O
Cruzeiro me chamou, uma tarde, c me pautou para ir para o Palcio do Catete. Ai eu
fui pra l. Cheguei l, era para esperar o Juscelino chegar porque ele ia fazer o pri
meiro vo de helicptero do Catete para Laranjeiras. E eu ia voar com ele. Como voei.
E o helicptero, dali pra l. Inaugurando o primeiro vo. Chegada do helicpteroc tal
aquela coisa. J conhecia o Juscelino. Ele semprefoi uma pessoa extremamente cordial
e, tratava pelo nome. Enfnn. . . Ai eu me apresentei: Presidente, estou aqui pra lhe
acompanhar. Etiquanto se preparava o helicptero, me deu um estalo. O Presidente
Voador. Aquelas guias todas. . . Tem l em cirna aquelas guias. Gigantescas. So
imensas. Daqui de baixo, logicamente. . . Mas elas tm uma envergadura de mais ou
menos uns trs menos. Ponta a ponta da guia. E so, eu acho que so doze. Enfim,
tem as guias plantadas l em cima, de cauda para dentro, de bico pra fora, n? Ai
eupeguei opresidente, queera muito malandro. Ele pegou logo a idia. Ento eu disse,
vamos fazer uma foto sua aqui e tal. Aqui aonde?Aqui, o sol, aqui est melhor, o sol,
tem sombra e tal. Empurrei o Juscelino e o coloquei confundindo o seu corpo e a sua
cabea com as costas e a cabea da guia. O quefotograficamente muito fcil de
jazer. [. . .] Esta Joto indita. (. . .) . Porque O Cruzeiro era um tigre de papel. O
Cruzeiro no quis publicar estaJoto. [...] Eu me desgostei, tivemintas contrariedades
com O Cruzeiro por causa disso. Voc tinha essafotografia que daria uma pgina
sobre a narratividade das imagens tcnicas 201
mquina de hoje tinha feito o filme todo. O Jnio foi andando. .. T do lado dele,
sempre, de olho, sempre de olho no Dines. Naquele tempo era engraado, no sei, eu
acho que eu tava do lado dele. . . De Rolleiflex. . . Eu tava bem ao lado dele, acompa
nhando. De repente deu uma confuso, estourou um. . . Um barulho deu uma. . . Todo
mundo olhou pra trs. Ele virou e eu clack, pi, s deu aquela, sfiz uma. Sfiz aque
la. Ganhou Prmio Esso.
Olha s, essa imagem, assim, numa sucesso defelizes acasos, ela emblemtica
de vrias situaes da poca. Veja bem: ela foi publicada em 84, mas ela foi efetiva
mente feita antes, acredito eu que no comecinho da dcada de 80, 81, 82 no mximo,
numa reunio do comit pela anistia, [. . .] Mas se no me falha a memria, essa
reunio se deu, na poca, na Associao Comercial, cujo presidente era um sujeito de
nome rabe, que chegou a ser suplente de senador e senador pelo PMDB do Distrito
Federai. [. . .] Esse comit era no setor comercial de Braslia. [. . .] houveessa reunio
do comit pela anistia, e o doutor Ulisses estavafalando, e viroupro lado c disse assim:
"No mesmo, Tancredo?" Efez aquele gesto caracterstico dele, e o Tancredo fez o
gesto caracterstico dele. Ou seja: podia ser sim, podia ser no, podia ser talvez, podia
ser qualquer coisa, porque ele ficava com aquela cara. Ento essa a fotografia em
questo. Essa fotograjla tem vrias caractersticas tcnicas e decontexto, que eu acho
que so interessantes para marcar um tipo defotojornalismo feito naquela poca. A
primeira delas que ela nofoifeita no evento em quefoi publicada, e elafoi arqui-
sobre a narratividade das imagens tcnicas 203
Vinte anos depois, outro ano e tanto! 1984, ano ttulo da clebre fico de
George Orwell, prenunciando um big brother^ que de forma mais prosaica, mas
no menos maligna estaria sendo encenado no milnio.^ Para alm da fico real
ou imaginria 1984 foi o ano da campanha das Diretas J e do renascer da espe
rana da democracia no Brasil.
O calendrio de comcios fornece o ritmo crescente das manifestaes: 25/
1/1984: primeirocomcio-gigante (300.000 pessoas) da Campanha Diretas-J, na
Praa da S, So Paulo. A emissora de televiso. Rede Globo no cobre o evento;
24/2/1984: Comcio pr-Diretas de 250.000 em Belo Horizonte; 21/3/1984: Pas
seata de 300.000 pelas Diretas, no Rio de Janeiro; 10/4/1984: Comcio de 1,2 mi
lho de pessoas pelas Diretas-J, na Candelria, centro do Rio de Janeiro; 12/4/
1984: Comcio pr-Diretas rene 250.000 pessoas em Goinia; 16/4/1984: Com
cio de 1,7 milho de pessoas pelas Diretas-J, no Anhangaba, So Paulo. em
nmeros absolutos a maior manifestao de massas em cinco sculos de histria
do Brasil."
Como revela o fotgrafo na sua entrevista, a foto do incio dos anos 1980,
associada organizao dos comits de anistia. Ainda assim, essa fotografia foi
utilizada pela editoria da revistaSenhor,como parte do artigo de abertura da revis
ta. Esteartigo fazia o papel de editorial, realizando um balano da situao polti
ca da semana. No dia nove de maio publicada com o seguinte ttulo: Negociao
ou mobilizao? S fala em nome dopovo quem no negocia as diretas-j, e legenda:
Figueiredo gostaria dedesfazer esta velha afetuosa unio.
Neste caso, a apropriao da foto de um tempo por outro, implica o esgar-
amento da durao do acontecimento, atribuindo conjuntura de abertura po
ltica um sentido visual compartilhado. A afetuosa unio entre o Dr. Ulisses Gui
mares e Tancredo Neves, originada na tradio social democrata de ambos, se
consolidaria nas campanhas pela anistia ampla geral e irrestrita e pelo apoio
campanha das Diretas-J. De acordo com leitura feita por Guran, em seu livro
Linguagem Fotogrfica e Informao:
Fao uma analogia ao reality show transmitido pela Rede Globo de Televiso, desde 2001, na
sua sexta verso nt> ano de 2006.
' Disponvel em: <http://\v\v\v.vcrmelho.org.br/linhadotempo/1950.asp>. Acesso em 13/9/2006.
206 ana maria mauad
Guran Cunha, seguindo essa linha de leitura visual, o conceito de "foto efi
ciente", segundo o qual capacidade de articulao dos elementos da linguagem
fotogrfica cria uma mensagem de impacto. Tal impacto, nesse caso especfico,
transcendeu o tempo exato da sua produo, sendo to eficiente a ponto de ser
polissmica, permitindo a sua apropriao em outro contexto. Retoma-se a per
gunta, ser que h uma histria por detrs da foto, ou mltiplashistrias?
* Milton Guran. Linguagem fotogrfica e informao. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 1999,
p. 69.
' Ulpiano T. Bezerra de Meneses. Rumo a uma "Histria Visual". In: Jos de Souza Martins;
Cornlia Eckert & Sylvia Caiuby Novaes (org.). O imaginrio e o potico nas cincias sociais. Bauru:
Edusc, 2005, cap. 2.
Photograma^ Rio de Janeiro, ano IV, n. 33, p. 6, agosto de 1930.
sobre a narratividade das imagens tcnicas 207
" Ttulo cio curso de especializao coordenado por elo, na Universidade Cndido Mendes,
entre 2002 e 2005.
210 ana mana mauad
Concluso
" Hans-Michael Koetzle. Photo Icotis: the Story Behind the Picturcs (1827-1991). Colnia/
I.ondres/Los Angelcs/Madri/Paris/Tquio, 2005.
212 ana maria mauad
^ Luiz Maklouf Carvalho. Cobras criadas. David Nasser e O Cruzeiro. 2.' ed. So Paulo: Senac,
2001, pp. 522-3.
independncia: estticapara a na.1o. memria, poder e tecnologia
Hino do Sesquicentenrio
' o Ato Inslitiicionil n." y, dc 5 do lovoroiro do 196S, ostabciccia cloivos indiroias para os go
vernos dos oslados.
" Nas cloi(,os para o I.ogislaiivo, oin novoniliro do 1970, a Arena saiu vencedora. (.amps um
a>ngros.so do 22(1 deputados o noaronta senadores cntra noventa dcputadi>s o seis .senadores do MHH.
Nessa eIeio .IO'!!, dos votos foram branc>s e nulos.
216 lio cantalcio serpa
' Essas so somente algumas atividades realizadas durante as comemoraes. O programa ofi
cial das comemoraes arrola uma srie de eventos: Exposio fotogrfica de indstria, comrcio tu
rismo e cultura realizada em Braslia; Abertura do ano camoniano, no Rio de Janeiro; lanamento do
Concurso Nacional de Monografias sobre a Independncia, institudo pela Cmara dos Deputados de
Braslia; documentrios audiovisuais sobre a Independncia, cidades fronteirias e rodovia transama-
znica; prova turstica; VII Congresso Nacional de Engenheiros; entre muitas outras atividades.
Fernando Catroga. O culto cvico de D. Pedro IV e a construo da memria liberal. Revista
de Histria das Idias, v. 12, pp. 452-3, 1990.
" Catroga registrou o seguinte: "Assim, quando em 1972, na conjuntura dos 150 anos de inde
pendncia do Brasil, o Governo Marcelo Caetano aceitou entregar, com pompa e na presena dos
presidentes das repblicas de ambos os pases, o cadver de D. Pedro nao brasileira tomou uma
opo lgica. E, conquanto o gesto fosse motivado por interesses polticos (comunidade luso-brasi-
leira, depreciao das guerras de independncia das colnias africanas) (. . .] acaba por revelar uma
atitude de desafectao alicerada na certeza de que o ato no iria suscitar grande polmica na opinio
pblica portuguesa" (Fernando Catroga, op. cit., p. 470).
" Art. 2." do Decreto n. 69.344 de 8 de outubro de 1971. A comisso ser integrada pelos mi
nistros de Estado de Justia, da Marinha, do Exrcito, das Relaes Exteriores, da Educao e Cultura
e da Aeronutica, pelos chefes dos Gabinetes Militar e Civil da Presidncia da Repblica e pelos
presidentes das seguintes entidades: Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Conselho Federal de
Cultura, Liga de Defesa Nacional, Associao Brasileira de Emissoras de Rdio e Televiso (Abert) e
Associao Brasileira de Rdio e Televiso (Abrate) (Antonio Jorge Corra. As comemoraes do ses-
quicentenrio. Braslia: Biblioteca do Exrcito/Comisso Executiva do Sesquicentenrio da Indepen
dncia do Brasil, 1972, p. 13.)
Ibidem.
independncia: estticapara a nao, memria, poder e tecnologia 217
Ibidem, p. 7.
Editorial. O Cruzeiro, n. 1, 1928.
218 lio cantalcio serpa
" Reprteres: Indolcio Wanderlei, Ubiratan de Lemos, Mrio de Moraes, Jorge Audi, Elias
Nasser, Luiz Alfredo, Geraldo Viollo, Glauco Carneiro, Jos Franco, Jos Nicolau, Afrnio Brasil
Soares, Hlio Passos, Walter Luiz, Tobias Granja, Joarez Ferreira, Fernando Richard, Miguel ngelo
M. Gonalves, Fernando Seixas, Nilton Caparelli, Geraldo Romualdo, Robson de Freitas, Aldyr Ta
vares, Rubens Borges, Hlio Mota, Wanderlei Lopes, Antnio Carlos Piccino, Eduardo Riberto, Jorge
Segundo, Fernando Brant, Luiz Antnio Luz, Izaias Monteiro, Rubens Amrico, Antnio Teixeira
Jnior, Cludio Kuck, Francisco Vargas, Jos Carlos Vieira, Ayton Quaresma, Massonni Mochizuki,
Rodney Neves de Mello, Vieira de Queiroz, Gilberto do Vale, Mary Dubugras, Antnio Lcio,
Antnio Gladis, Iber Brasil Pereira, Clvis Teixeira, Juvenal Eustquio e Jankiel Gonczarowska.
Departamento de Texto: Antnio Nogueira Machado, Ary Vasconcelos, Bertholdo de Castro e Humber
to Serqueira. Pesquisa: Manoel Aristarcho (chefe), Damio Gaspar e Maurcio Schleder. Arte: Paulo
Tavares, Jesus Jos da Costa, Jos da Rocha Pereira, Jorge Albino, Euclides Galdino, Manoel Tenreiro
e Fritz Granado. Reviso: Joo Octvio Facundo (chefe). Documentao e Arquivo:Lus Henriques
(chefe). Colaboradores: Rachel de Queiroz, Thereza de Paula Penna, Amilde Pedrosa, Carlos Estevo,
Alceu Penna, Nehemia Gueiros, Sylvio Alves, Pedro Calmon, Gilberto Freyre, Pedro Lima, Edith
Pinheiro Guimares, Odorico Tavares e Omar Cardoso.
Nosso Portugal. O Cruzeiro, n. 37, ano XLIV, 13 de setembro de 1972.
220 lio cantalcio serpa
com Portugal, pas visto como progressista, somada "idia de ptria me", nos
atou a um passado longnquo, que no poderia ser olvidado. Teceram uma leitura
positiva da relao de Portugal com o passado colonial brasileiro, ao registrar:
maior
ppjiezar
iUDUT
A'-
Vamos falar
desse carreiro
. ^1A 'Jo itopciunto
I t IJriii.CJ Vita U-di:. <jo NClT> um
o.-,-. < 1J ' rv.f-u'- O
' t r rj' r I ,v:'.r<r: (y'.') 'rtjva. k ' u f n t.Jitoc boi,
<.T. Tr.,1 'i> i.T.-i u cu(''L'<t Seji/ij vu i.orTi'lo mjt
w ^ ic.M ccnj jh. quu HkIs .iqijold cj^nr? riany vivAs ^
ii:i3 t^ou LjOffihs. pjra t*s s^^ntiotDv ftdolgoi
^ ^ \ a ia'ta 0a% 'ovi du coto b tremendo, so
tfqycla ccha Qudoto irur*, otixo drsianciAv^. mnis prrio c'*s csuva
U.iaodo gntv
o ccu tiajlho, y sw cafru, a loica dos siis o 'inhxiAa
y &<javu/ r csO^/a ^/)n&(ruinck> a U^Ovprtxlnct.
Ho;v, o g'itc o aqueJo cairuieo %9 Ancootarr' d novo
Nc scKiho de Mmai. na ccuagam dBquf;tp
P<irK'.ipo rn>CHri'>ndn!e
A cubutania dn go&o foi tendo cunsukia na Nisgt uxri o biblhg
cio todii cs correios da lr$;6r^a
I<DiO.r. f.'SU* h na n 11 c)nat. rias Hvdshras, rio
^ conircio.riA cooquiMade meiraoe. nd Arnaanra,
k nu Nmd'>ste v^rniet t.feiCT>enteo
claciuie hopei df elr4
(Sso. hunta um catrnito edlevc tnogiandc
^ ni S humildade
Pnr fmnr.ii.m pcv". Huji* i^Tcvo tftO
no veiihn>>i>tu de
^ Utjco . .limo p.ve
fe VOLKSWAGEN
^^00 Sn&SIL S.A.
Quem assustou
os filhos dos trevas ?
V!
S que, hoje em dia, saci est em falta. No apenas o saci, mas tambm
mula-sem-cabea, caipora, curupira, lobisomem e todas as outras crendices
que nasceram no interior e foram transmitidas de gerao em gerao atravs
de histria contadas luz dos lampies de querosene. Filhos do medo, nascidos
na escurido e alimentados pela ignorncia, nenhum resistiu era da eletricida
de. A eletricidade mudou o interior. . . O progresso assustou as assombraes.
SEIKO
Os blindados
Fara pegar um Saci, use uma peneira, daquelas de cruzeta. Espere um dia de vento forte e
jogue a peneira em cima de um redemoinho. Todo redemoinho tem saci dentro. Depois, enfie uma
garrafa escura debaixo da peneira e, ein seguida, tampe a garrafa com uma rolha que icniia uma cru/
riscada em cima. O que prende o Saci a Cruz c no a rolha.
independncia: esttica para a nao,memria,poder e tecnologia 225
que orienta para uma nova estetizao da vida. Nesse contexto a forma adquire
posio de primeira grandeza, e a imagem produzida pelo olho informado do fo
tgrafo,associado tecnologia fotogrfica, cria e recria espaoscom adereos que
encantam e apontam para um futuro no qual se poderia ficar ou no a favor do
objetivoa ser alcanado.
Segundo Raymond Williams, embora haja uma tendncia generalizada para
empregar os termos inventos tcnicos e tecnologia como se fossem equivalentes,
a distino entre tcnicas e tecnologia fundamental. Uma tcnica, segundo o
autor, uma habilidade particular, ou aplicao de uma habilidade. Um invento
tcnico , por conseguinte, o desenvolvimento de umahabilidade, ou o desenvol
vimento de uma mquina. Entretanto, a tecnologia ,em primeiro lugar, o marco
de conhecimentos necessrios para o desenvolvimento de habilidadese aplicaes
e, em segundo lugar, um marco de conhecimentos e condies para a utilizao
prtica de uma srie de inventos. Essasconcepes acerca da tecnologia esto subs
tancialmente ligadas entre si. So nveis superpostos: marco de conhecimentos,
tanto tericos comoprticos, queprovm dashabilidades e dosinventos tcnicos;
e marco de conhecimentos e condies a partir do qual se desenvolvem, combi
nam e preparam parao uso.^ Nadireo da criao e incentivo ssensibilidades
tecnolgicas houve, na dcada de 1970, grande investimento no setorde comuni
cao coma expanso de emissoras associadas Rede Globo por todo pas, alm
de outras. A revista O Cruzeiro^ juntamente com outros meios de comunicao,
produziram discursos e imagens apologticos sobre a materialidade dos novos tem
pos, apontando paraum futuro calcado na idia largamente difundida da consti
tuio da sociedade da informao.
A revista O Cruzeiro de 13 de setembro de 1972 d enorme visibilidade
questo da tcnica e da tecnologia, utilizando as imagens que enfocam, com des
taque, o uso de instrumentos tcnicos na forma de mquinas e, ao mesmo tem
po, mostrando homens e mulheres operando esses instrumentos. Na mquina
subsumem e se mesclama materialidadedo objeto com a destreza e a habilidade
nasua operao. Lembremos que nos anos 1970 foi feita uma reforma educacio
nal ampla que teve porobjetivo preparar o setor educacional, em todos osnveis,
paraessa novademanda, criando formas de identificao da populao com a lin
guagem tecnolgica. Nas escolas aprendia-se a teoria dos conjuntos, surgiam os
primeiros cursos de informtica, implantava-se o estudo dirigido, o ensino pro
gramado e havia toda uma racionalidade na estruturao dasprticas pedaggicas
queseexpressava na organizao do plano de curso, do plano de aulas e tambm
em outras atividades, at mesmo na criao de salas laboratrios.
faz uso da inteligncia e que a aplica exausto no setor produtivo. Est em curso
o processo em que o novo sujeito se transforma em potncia e se secundariza na
relao homem/conhecimento. As fotografias criam uma narrativa por meio de
uma imagem ixa, num processo em que o leitor no tem a possibilidade de esta
belecer um contato visual com um "antes e um depois" do tempo oferecido pela
foto. O ato de fotografar para comemorar no teve preocupaes com narrativas
prvias que situassem o leitor, ou seja, que mostrassem as condies de emergn
cia das formas de imposio das desclassificaes e das dificuldades da experin
cia vivida. Imagens mostram mos que escrevem, que aplicam injeo, jogam bas-
quetebol, carpcm, colocam parafusos e fincam pregos. Remetem o leitor para a
idia de que o homem, na sua individualidade, portador de potncia. Isso define
a competncia desejada para fazer parte do comum na perspectiva poltica dos
novos tempos. Antigos modos de vida, alimentados ou no, imaginariamente pela
lenda, pela fbula, no entram na partilha daquilo que se quer que seja comum
na nao. Em se aceitando a reflexo de Pelbart parece que a intricada relao
entre poltica, cultura, subjetividade e vida deve ser repensada, nas ltimas dca
das, da forma mais concreta possvel, isto , no interior da revoluo tecnolgica
do to^snos os
e produtiva que engendra cotidianamente efeitos afetivos e sociais de toda ordem
sem, contudo, perder de vista a emergncia de novas reconfiguraes.-^
SeouicBrildnano da Intfe&ervtfoncto ^
Voc canatro O raftil
Cf. Peter Pl Pelbart. Viifn capitnl ensaios de biopollica. So Paulo; llumimiras, 2003. p. 131.
ni / Imagens da Cidade
SANTOS: PARA ALM DO PORTO DO CAF
llliiS ^
No Brasil, nos finais do sculo XIX e incios dos XX, a cidade foi apresenta
da enquanto uma questo. O olhar mdico conjugado a ao/observao/trans
formao do engenheiro e poltica de interveno de um Estado planejador/
reformador, constrem um campo de interfernciasobre a cidade, que foi deli
neada enquanto questo a chamada questo urbana encontrando-se atra
vessada pelospressupostos da disciplina e da cidadania, passandoa ser reconheci
da como palco de tenses."*
EmSantos, velhos problemas foram ampliados como crescimento demogr
fico e a expanso desordenada do porto. O trnsitode centenasde carroascarre
gadas de caf, precria vigilncia sobreos navios vindos de portos infectados, so
mam-se ao agravamento dascondies urbanas, ruasestreitas, porto desarranjado,
a populao amontoada em moradiasprecrias, praticamente sem gua, esgoto e
iluminao, enfimsem condies sanitrias, vulnervel para contaminaoe pos
sibilitando a expanso dasepidemias. Acidade era constantemente assolada por
surtos deepidemias como clera, febre amarela, varola, impaludismo e peste bu
bnica, atingindo particularmente a populao pobre e imigrante.
Apontava-se como umdosprincipais fatores das epidemias a grande quanti
dade decortios nas reas mais centrais dacidade, erguidos nos ptios e nos quin
tais de qualquer jeito, tamanho e em estado deplorvel; esses "cubculos" eram
baixos, abafados e insalubres, feitos de tbuas, cobertoscom zinco, de um s c
modo, construdos s pressas, sem gua, nem esgoto. Havia tambm o problema
das cocheiras-cortios, que em sua maioria eram habitaes coletivas, onde viviam
cochcirosc suas famlias em palanques construdos sobre as baas. As numerosas
cocheiras facilitavam a difuso de ratos e pulgas, transmissores da peste bubnica.'*
O porto aparecia como lugar de contgio, passando a ser considerado um
organismo doente, vulnervel s febres, epidemias, contaminaes, disseminan
do o medo. Tornava-se urgente controlar as epidemias, as doenas e sua difuso
(regras de entrada, inspeo econtrole, quarentenas), buscavam-se "aes de cura",
para sanear o porto e a cidade.
Asituao preocupava atodos, autoridades, mdicos, comerciantes eexporta
dores de caf, aCompanhia Docas de Santos, que percebiam anecessidade deuma
remodelao urbana, com ateno especial aos assuntos dasade pblico-sanitria.
Essas medidas encontravam-se vinculadas aosnovos pressupostos de higienizao
e somavam-se ao desejo da Belle poque de tornar o porto moderno e planejado,
procurando eficincia e rapidez e pautada no binmiocivilizao-progresso.
* Ibdem.
' Os obiturios de Santos entre 1876-1897 indicam que dos mortosde febre amarela 78,7% eram
estrangeiros, dos quais 83,5% portugueses (carroceiros, ensacadores, carregadores, estivadores).
*As guas paradas nos seus ptios difundiam o mosquito transmissor da febre amarela, de 1890
a 1900 faleceram 22.588 pessoas atingidas por vrias molstias, desde 6.688 de febre amarela. Betralda
Lopes. O porto de Santos e a febre amarela. Mestrado em Histria. So Paulo: FFLCH/Universidade de
So Paulo. 1974.
maria izilda santos de matos
,Li!Ei:jD^LJLiDGyDDnDEamnnD
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U-G^yy;c3ejE:naami nhbrTiDancii
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.-V", -ry-r- II '1 "---Jl .
HIP / / Jrf r f.
Canal 1. Santos
" Saliiniino lic Itrilo incorporou a concepo de Osvaldo Cruz e Ciiiilherme lvaro, inovadora
na poca, dc que a lebre aniai'ela era transmitida pelo mosquito.
Cif. Wilma 'I'. r. de Andrade. Santos, canais traam a histria urbana. In: Maria Izilda Maios
& Maria Anglica Sollcr (org.). (jiliidc cin Dcluilc. So Paulo: Olho irAgiia, 1999.
242 mana izilda santos de matos
.K"
" Zandra Pedra/a Cioniez. Corpo, pessoa o ordem social. Projeto Histria, So Paulo, n." 25,
I-duc, 2002, p. 87.
244 maria izilda santos de matos
cidade, uma recordao, uma lembrana que se enviava para algum com quem
se mantinha um lao afetivo. Cartes que num certo momento privilegiavamporto,
para depois se voltarem para a praia.
O espao no s caracterizado e identificado pelas imagens, mas tambm
pelos sons, e da rua vinham os sons desdeas primeiras horas da manh at que a
ltima janela se fechasse noite: cantilenas e serenatas, musicalidades presentes de
forma nostlgicanas lembranas.No porto eram miiltiplosos sons, diferentesvozes,
idiomas, sotaques, sonoridades do trabalho, preges, apitos dos navios e dos trens,
campainhas dos bondes, gritos de fora e de apoio nos momentos de trabalho.
Cabe atentar para outras experincias sensoriais, os odores: os cheiros das
mars, do caf torrado, da chuva e dos corpos suados. Para as experincias
gustativas, os sabores do mar, dos peixes e outros frutos do mar, as receitas portu
guesas e espanholas reelaboradas nos restaurantes e nos botequins; rememorar as
habilidades femininas de fazer cocada, bananada, tambm boa pinga do morro
do So Bento. No menosprezando as experincias tteis, a fora necessria para
carregar sacos, a rusticidade do trabalho com as sacanas, o vento do mar no rosto,
a areia nos ps, o calor incessante, entre outras.
Delineando cenrios em constante movimento, Santos foi se constituindo
como um lugar para se viver, trabalhar, rezar, observar, divertir e sonhar. Os so
nhos com os lucros nos negcios cafeeiros, nos jogos na Bolsa do Caf, que se
somaram aos sonhos de turista e banhistas sonhos de vero , de um roman
ce datado e curto, do prazer das frias, do lazer e do banho de mar.
Misturando laos comunitrios e tnicos, criando-se espaos de sociabili-
dade e reciprocidade, estabelecendo solidariedades, conflitos e tenses urbanas,
que se constituem entre o aumento de mobilidade e os desejos de enraizamento,
oposies entre planificao, programao, ordenamento num confronto infin
dvel com a criao, identidade, movimentos que redimensionam o pulsar urba
no num fluxo contnuo de tenses.
O porto-cidade se torna um territrio frtil para a anlise das sensibilidades,
afinal o locus das partidas, das despedidas fazendo brotar a saudades, a dor da
espera e das perdas, do finalizar algo com um adeus ou buscar iniciar uma nova
vida, uma vida melhor. s imagens do porto emergem lembranas dos beijos e
sinais de despedida, tambm dos abraos de boas-vindas, mltiplas referncias de
sensibilidades tornando o porto uma ncora de emoes.
O porto-cidade tornou-se palco de memrias contrastadas, mltiplas, con
vergentes ou no, mas plenas de emoes. Caberia enfatizar que para alm da re
ferncia do porto-cidade enquanto uma unidade, a trama urbana constitui-se por
meio de mltiplas aes de liberdade, reivindicaes de autonomia, construes
coletivas, num processo em que os diferentes sujeitos histricos produzem ml
tiplas cidades.
Dessa forma, o porto-cidade vai se impondo como construo problemtica
de algo a ser decifrado, suas mltiplas sensoriedades, sensibilidades e memrias.
Questionando-se sobre qual porto-cidade? o dos antepassados? o dos heris e/ou
dos viles? dos donos do poder, de ontem e de hoje? Da Companhia Docas? Ou
santos: para alm do porto do caf 245
Memrias Urbanas:
I Centenrio da Independncia1922
Cf. Antonio Celso Ferreira. Modernos mamclucos. In: Ana Maria de Almeida Camargo
(org.). So Paulo: uma viagem iio tempo, v. 1. So Paulo: CIEE, 2005, pp. 171-84.
maria izilda santos de matos
istfi
lPiP;=p
A Bolsa do Caf
?h--:
-Vi;l
" Cf. lacqiics Lc Goff. Histrio c memria. 2.' ed. Campinas: Unicamp, UJ96, p. 431.
248 maria izilda santos de matos
1 Ml
r
I
" J. Muni/ Ir. Mi.sKniii.s e lendas de Santos: um palcio para rei caf. Novo MCmio. Disponvel
em <w\%'\v.novomilcnio.inf.br/santos/h0n84.htm>.
santos: para alm do porto do caf 249
Merece maior destaque para o grande salo da Bolsa de Caf, onde ocorriam
os preges, com a mesa do presidente e seus secretrios ao centro, um crculo de
cadeiras dos corretores e a galeria. No cho mosaico de mrmores e o vitral do
teto "A Viso de Anhangera", desenhado por Benedito Calixto.'^
- *2 m'
" Dois anos aps a morte de Calixto, seu amigo e colega do IHGSP, Jlio Conceio, realizou
um levantamento de suas telas, das quais 28 quadros identificados como "desdobramentos da tela
Santos de 1822". Jlio Conceio. Benedito Calixto traos biographiccs. Revista dos Tributtaes,
1929.
'' CalLxto foi membro do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo e tambm membro
fundador do Instituto Histrico e Geogrfico de Santos, centrou seus estudos sobre cidades litorneas
e sua colonizao.
Lilia K. Moritz Schwarcz. Os guardies da tiossa histria ofial. So Paulo: Idesp, 1989, p. 45
(Srie Histria das Cincias Sociais, n." 9).
santos: para alm do porto do caf 251
Santos 1822
4^ -
Cale Alves Faria. A fundao de Santos na tica de Benedito Calixto. Revista C/SP, So Paulo,
n." 41, mar./mai. de 1999, pp. 123-33.
252 maria izilda santos de matos
Santos 1922
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santos: para alm do porto do caf 253
Em 1919, numa curiosa parceria com Lus Edmundo, Lus Peixoto fez su
bir cena no Teatro So Jos, templo dos musicais ligeiros nacionais, uma burleta
explicitamente centrada nas relaes entre negros (ou mulatos, como os perso
nagens so chamados) e portugueses, num ambiente de classes populares cario
cas. Era uma estratgia de representao dos costumes da cidade que Lus Peixoto
j vinha aplicando desde pelo menos 1912, quando teve encenado seu grande su
cesso, Forrobod, em parceria com Carlos Bittencourt.' Em Repblica do Itapiru,
os dois grupos se confrontam, num interessanteduelo de anti-heris, que replica
os esteretipos de sempre: mulatos malandros e preguiosos e portugueses bron
cos, emotivos e trabalhadores. Mas Lus Peixoto e Lus Edmundo lograram trans
formar, por meio do humor, defeitos em qualidades, ridculo em celebrao.
A burleta comea com um grupo de mulatos e mulatas reunidos na galon-
nire de Marcolino, em clima ldico, com danas e brincadeiras picantes. A mu
lata Guiomar lembra aos demais que se aproxima o carnaval e que necessrio
reorganizar o seu grmio carnavalesco. Marcolino tem uma idia, que chama de
"maximalista": tratariam de convencer o comerciante portugus Sopas, dono de
uma carvoaria, que a situao poltica est se deteriorando, que o Distrito Federal
est se esfacelando e em todos os bairros esto sendo proclamadas repblicas.
Sopas de fato se impressiona com a histria, adere ao movimento, mais por
temor das conseqncias de no aderir do que por convices revolucionrias, e o
grupo o aclama presidente da Repblica do Itapiru, bairro pobre, com grande popu-
' Ver, a respeito de Forrobod, meu artigo Um forrobod da raa e da cultura, ou como a
identidade nacional reinterpretada pelo teatro de revista. Anais do 29. Encontro Anual da Anpocs.
CD-ROM, 2005. 254
de como os mulatos entraram na histria dos musicais cariocas 255
que os autores vinculam aos mulatos. Mas no era nenhuma novidade no pano
rama dos musicais ligeiros. Essa idia pode mesmo ser tida como a idia-fora
fundamental do gnero, desde seus princpios. O carnaval era a sua expresso
maior e uma intelligentsia carnavalesca se apresentava como uma alternativa aos
que tinham a pretenso da seriedade. Aos crticos que clamavam contra a degra
dao moral, muitas vezes a associando influncia dos negros ou ao processo de
mestiagem, alguns daqueles intelectuais carnavalescos respondiam apontando
para a capital cultural do mundo ocidental. Paris, para defender que uma atitude
moderna, cosmopolita, estava na raiz dessa intensa busca do prazer.
Para Lus Peixoto e seus parceiros, no entanto, a inspirao vinha de uma
fonte muito mais prxima. A celebrao pag vinda da Europa recebera nas lti
mas dcadas importantes contribuies affo-cariocas na forma de a cidade feste
jar. Lus Edmundo e Joo do Rio, entre outros, vinham registrando no carnaval
do Rio uma exploso de primitivismo desconhecida na Europa. Lus Peixoto atri
bua sem hesitar o esprito "o-que-eu-quero--goz" carioca especificamente in
fluncia africana, em oposio ao portugus laborioso. Nisso, alis, se aproximava
dos crticos africanofbicos, mas com sinais trocados, isto , com uma interpreta
o positiva da influncia.
No mbito da linguagem,o duelo entre mulatos e portugueses na Repblica
do Itapiru notvel. As falas so todas escritas num patois pesado caracterizando
cada grupo com erros e desvios exagerados e criando humor mediante as cons
trues lingsticas.Ambos os grupos so igualmentesujeitos ao ridculo em seus
falares distintos, mas saborosos. O personagem Florncio assim se apresenta:
FLORNCIO
O que eu quero goz
Goz bem minha vida,
Que eu no sou anim
Das oreia cumprida
SOPAS
O Sopas! craboeiro e monarquista.
Assim primeira bista
FLORNCIO
Seu Sopa. Pela madrugada de hoje os passarinho batendo as asas
multicores entraro no ninho do seu corao de pai. Encontraro, l dentro,
um anjo que tinha as falce de carmim, os lbios de cor, io de esmeralda,
asasas de escama cordebrisa e um arfange na modireita. Uma fr na mo
esquerda, pelfiimada. Esse anjo era o am paterno. Os passarinho cercaro
ele, treparo em cima dele, cuspiro na cabea dele, pinicaro ele evestiro ele
do manto difanoda alegria.'
Ofloreado da linguagem tem alvo certo, numa sociedade que preza os dis
cursos laudatrios e vazios.
O modo pardico no se limita linguagem. Os mulatos sempre replicam
as imagens, os desejos e os costumes da classe dominante. Absorvem, por exem
plo, seu rancesismo e Unha se vangloria de fazer "com peripcia" um pratinho
francs, a"omilette").' Florncio explica aos demais que "galonnire" chat em
francs.' Em outro momento, lembra-se de"quando euera dolescente, cabelo lou
ro, os inho azu, azu", ao que Guiomar responde: "No tempo que tu comeava a
* Ibidem, p. 21.
' Ibidem, p. 37.
" Ibidem, p. 6.
' Ibidem, p. 4.
258 antonio herculano lopes
Antonio Herculano Lopes. Do pesadelo negro ao sonho da perda da cor; relaes intertni-
cas no leatro de revista. ArtCultura, v. 7, n." II, Uberlndia/MG: Universidade Federal de Uberlndia
2006, pp. 37-50.
MOZART NA PERA DO CARNAVAL:
CANTO E VISO SEM IGUAL
Foi assim que a Escola de Samba Unidos da Tijuca abriu seu desfile no car
naval carioca de 2006.
Mediante este tema, o enredo desenvolvido pelo carnavalesco Paulo Barros
vinha ainda acompanhado da sugestiva figura de Mozart, que emergia do clssico
para assumir explicitamente a contempornea figura de um D/, regendo/coreo-
grafando a atuao das passistas.'
j j,- O inusitado desta proposta,"ouvindo tudo
K .. ' -V A" ** que vejo, vou vendo tudo que ouo", quase um
^ ' enunciado, implicava umaaparente oposio dos
H ^.Vf' sentidos, na qual se invertia a audio pela vl-
so, ou a viso pela audio.
^ ^^ i Mozart emergia tambm cm meio aofeste-
rMitrrArf*
jado aniversrio de 250 anos, numa caracterstica
situao de inverso provocada pelo carnaval. O
clebre compositor transmutava-se ao fazer uso
da mijsica sampkada, da justaposio de elemen-
tos e tendncias, da criao e recriao surgida do
icmulode manifestaes do passado e o presen-
- te, do erudito e popular, da indefinio cm sobre-
^i posio de diferentes mensagens, sons erudos.
'Esta informao c parte das imagens e fotografias apresentadas aqui foram retiradas do site
oficial da G.R.E.S. Unidos da Tijuca, especialmente destacando o banncr, obtidos por meio da sinopse
do enredo do carnaval. Em setembro de 2006, ainda podia ser acessada no endereo <http: //
v\'-ww.Lindosdalijiica.com.br/sinop,se20Q6.htm>.
mozart na pera do carnaval: canto e viso sem igual 261
^Fernando Barros. Sinopse para o carnaval de 2006. "Ouvindo tudo que veja, vou vendo tudo
que ouo". Disponvel em <http://vww.unidosdatijuca.com.br/sinopse2006.htm>. Acesso em 3/3/2006.
* Ibidem.
*Paulo Barros apresentou esta afirmao na sinopse j mencionada. Reafirmou a mesma idia
em diferentes momentos, entre os quais destaco a entrevista apresentada em 28 de novembro de 2005,
no Portal Viva Miisica! O Roteiro dos Clssicos do Brasil. Disponvel em <http://www.vivamusica.com.
br/-noticia.php_id=52>. Acesso em 19/9/2006.
Em resposta ao entrevistador declarava acerca de sua escolha sobre Mozart: "(...) Cheguei a
pensar em Villa-Lobos que tambm adoro e brasileiro. Mas Mozart foi contestador. Foi o prmeiro
a quebrar as regras da msica clssica trazendo temas populares para dentro da pera. Ele debca de
fazer a pera em italiano para fazer em alemo. Foi a representao dessa quebra de paradigmas.
Alm de ser uma figura totalmente extrovertida, engraada, genial, bem avante de seu prprio tempo.
No h ningum melhor do que Mozart para mostrar essa pera de rua. Quando, nos anos 70,
Joozinho Trinta chega ao Carnaval, descreve o desfile das escolas de samba como uma grande pera
de rua. Se o carnaval considerado uma grande pera porque tem msica, dana, cenografia,
figurino, o que a gente faz? Vamos at a ustria, convidamos Mozart para vir ao Brasil passar o
carnaval e o levamos a lugares onde se toca msica". Ibidem.
Fernando Barros. Sinopse para o carnaval de 2006, cit.
262 mrcia ramos de oliveira
Ele (Mozart) passa quatro dias no Rio de Janeiro para ouvir msica.
Vaiser um grande DJ. Elevai escolheras msicas. Nas camisetas para divul
gao do enredo, Mozart est usando um headphone e discotecando, usando
um toca-discos. No desfile, elevem no incio da escola e vai regere apresentar
esse pot-pourri ao pblico. Na verdade, o desfile da Unidos da Tijuca em
2006 ser uma pera em sete atos, apresentando o que Mozart conheceu
nesse passeio imaginrio pelo Brasil. Vamos ter temas e msicas internacio
nais tambm. O stimo ato, o ltimo, a pera de rua. Trazemos algumas
grandes peras e o carro final o palco da pera brasileira o carnaval, mais
em especial a Marqus de Sapuca. Nsvamos levar Mozart para um roda
de samba onde elevai ouvir o pagode. Depois,vamos a um baile de carnaval
onde conhece as marchinhas. No cinema vai conhecer as trilhas sonoras, vai
a um programa de auditrio, um festival de msica e por fim Marqus de
Sapuca. Depois, ele pega todo esse pot-pourri de msica que escutou aqui
no Brasil, e montaisso emsete atos e cria a pera da Unidos da Tijuca.^
Diante dessa declarao possvel perceber como foi estruturado o espet
culo que seria apresentado na Marques do Sapuca, constatando no desenrolar da
apresentao as vriasfaces assumidas pelo compositor na avenida.
Lestava o compositor clssico, no teclado do cravo e piano.
* As figuras de Einstein e Dom Quixote foram protagonizadas em dois desfiles sucessivos, rea
lizados em 2004 e 2005, que garantiram Escola de Samba Unidos da Tijuca o segundo lugar no Grupo
Especial, com dois enredos "O sonho da criao e a criao do sonho: a arte da cincia no tempo
do impossvel" e "Entrou por um lado, saiu pelo outro... quem quiser que invente outro", respec
tivamente.
' Entrevista apresentada em 28 de novembro de 2005, no Portal Viva Msica! O Roteiro dos
Clssicos do Brasil, que pde ser acessado no site http://www.vivamusica.com.br/noticia.php_id=52
(ltimo acesso desta pesquisa realizado em 19/9/2006).
mozart na pera do carnaval: canto e viso sem igual
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Lj Mik ^ 6
Fotografia obtida no site dc divulgao da cidade do Rio de Janeiro/RI, intitulado Rio Carnaval
2006, endereo: <IUtp://wwv21.rio.rj.gov.br/fototeca-pcrj/pub/> (ltimo acesso em 9/2006)
WM
" Outras imagens, tambm cm movimento, envolvendo a exibio da Bateria da bscola podem .ser
obtidas no site do You Tubc. Vdeo com durao de 32 segundos, trazendo o inicio do desfile tendo
frente o casal Porta-Bandeira e Mestre-Salas; no endereo: bttp://mv\v,youtube.com (acesso em y/2()O.
mozart na pera do carnaval: canto e viso sem igual
Os sete atos referidos pelo carnavalesco, podem tambm facilmente ser per
cebidos nas imagens do desfile numa clara associao ao compositor austraco
representado como um quase sinnimo do gnero pera.
O elemento popular vem destacado, quando o pblico assiste ao desfile e
torna-se parte dele. Ele o personagem principal, a razo de toda a exuberncia
ali descrita. apresentado em cada um dos sete atos em que tal pera/desfile foi
construda.
w*- a--.
" Hstc foi um dt)s mais destacados momentos do dcslllc, pois envolvia uma perfoniuiiur dos
integrantes do carro que, vestidos dc branco, em clara aluso paz entre as torcidas, apresentavam as
diversas bandeiras representativas das grandes escolas de samba Beija-l-ior, Mangueira, Portela,
Unidos da Tijuca, Mocidade Independente, Unidos da Viradouro, etc. , alternando-as.
A imagem pode ser vista tambm em movimento, em dois vidcos, que tm ()2':36" e Q:3fi" de
liurao; e podem se acessados no endereo dos sites You Tube (http;//w\v\v.youtube.com) o Vaga-
l.ume (bup://vagalume.uol.com.bi7niozart/videos)
mrcia ramos de oliveira
Ganharia espao j
no palco, atravs dos pa
Fotografia obtida no s/>e oficial da G.R.E.S. Unidos da Tijuca; Galeria, Cobertura Fotogrfica
2006; Fotos: Agncia FotoBR. Endereo: <http://www.unidosdatijiica.com.br/>.
Fotografia obtida a partir do siteda UOL envolvendo material de divulgao sobre o
carnaval do Rio de )aneiro /RJ, endereo: http://noticias.uol.com.br/carnaval/2006
/aIbum/rj_12_unidosdatijuca_album.jhtni (acesso em 7/2006).
O pblico surge mais uma vez no sexto ato, como audincia, "no escurinho
do cinema", atravs de um destacado exemplo de fenmeno de bilheteria no fil
me E. T.y misto de sucesso empresarial e sinnimo de apelo a iluso, ao sonho.
Fotografia obtida no site oficial da G.R.E.S. Unidos da Tijuca; Galeria,
Cobertura Fotogrfica 2006; Fotos: Agencia FotoBR. Endereo:
<http:www.unidosdatijuca.com.br/>
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Fotografia obtida a partir do s/tc
da UOL envolvendo material de
' I ' ^ \ divulgao sobre o carnaval do
L " "1 Rio de Janeiro /RJ, endereo:
''^tp-//ooticias.uol.com.br/car-
naval/2006/album/rj_12_
unidosdatijuca_album.jhtni
^ . .. (acesso em 07/2006).
E, finalmente, encerrando o espetculo no stimo ato, entronizando a "pas
sarela do samba" como a pera que ganha a avenida, ou vice-versa.
mi
a pura cadnciabrasileira
Esse requebrado que fascina
Do boteco gafieira
O samba ecoa em cada esquina
Suspense eternizado
Na tela, um beijo apaixonado
O filme que passa em minha mente
Com a msica, ganha o corao
Sobre a evidente relao entre o cinema e a literatura, como forma narrativa, especialmente
associada s artes plsticas e pintura, a exemplo do que a pera j evidenciava, apresento a citao
de Jacques Aumont, que se vale das palavras do cineasta Godard para afirmar:
"Convidado, em janeiro de 1966, justamente na inaugurao da retrospectiva Lumire organi
zada por Henri Langlois, a dizer as palavras de costume, Jean-Luc Godard (...) lana algumas frases
inspiradas: O que interessava a Miis era o ordinrio no extraordinrio, e a Lumire o extraordin
rio no ordinrio. Louis Lumire, via impressionistas, era, portanto, bem o descendente de Flaubcrt,
e tambm de Stendhal, cujo espelho ele levou ao longo dos caminhos. Um ano mais tarde, cm A
Chinesa, e por intermdio, dessa vez, da personagem interpretada por Jean-Pierrc Laud, ele reincide,
de modo ainda mais claro: Lumire era um pintor, o ltimo pintor impressionista, um
contemporneo de Proust". Jacques Aumont. O olho interminvel (cinema e pintura). So Paulo:
Cosac & Naify, 2004, p. 27.
mozart na pera do carnaval: canto e viso sem igual
Chega a emocionar
Ver a platia delirar
Vibra o maestro
Vendo o artista na consagrao
Piscam luzes coloridas
A noite, pra danar convida
Se a msica tocou a alma um dia
Sempre traz uma imagem
Que hoje fao fantasia
I
A .
I Apresenta o interprete
I Wantuir Oliveira, ento-
' I ando o samba-cnredo da
I Escola no desfile de
' 2006. Fotografia obtida
no sie oficial da G.R.E.S.
yL Unidos da Tijuca; Gale-
'||u ria, Cobertura Fotogrfi-
A )tSn 2006; Fotos: Agncia
. ^A' I FotoBR. Endereo:
<hltp://vvww.unidosda
VjLH tijuca. com.br/>
SAlmirFrut os ,diretor-
geral de Harmonia da
Unidos da Tijuca, no
carnaval de 2006. Foto
grafia obtida no site ofi
cial da G.R.E.S. Unidos
da Tijuca; Galeria, Co
bertura Fotogrfica 2006;
Fotos: Agncia FotoBR.
Endereo: <hltp://ww\v.
unido.sda tijuca.com.br/>
mozart na pera do carnaval, canto e viso sem igual
.Sobrt a atuao di: Mozart com relao ao pblico/audit-ncia, considero importante apre
sentar a afirmao dc Hemy Raynor, ao demonstrar que essa preocupao era evidente de parte do
grande compositor, aproximando-se da perspectiva que abordamos com relao ao cinema e outras
expresses no sculo XX. Afirma Raynor:
"Mozart, que no teve empregador real nos ltimos dez anos de sua intensa atividade, a no ser
o pblico, teve perfeita noo da necessidade de surpreender e encantar os seus ouvintes. Nada in
sinua que ele produzisse em solitria abstrao. As suas cartas sugerem que, entre o sem-nmero de
clculos que integravam a composio de suas obras, contava-se uma cuidadosa avaliao do gosto
do destinatrio e do auditrio em vista.
"A julgar por suas cartas, a base esttica de Mozart era a eficcia, noo complexa etn que
estavam subsumidas a qualidade das idias musicais, a percia com que eram tratadas para explorar
tanto as qualidades intrnsecas como a habilidade dos executaiites, e o impacto de tudo isso sobre o
pblico. A satisfao pessoal do criador e sua mais mais alta recompensa era conseguir esse complexo,
e o fato de que uma obra no atrasse ateno do pblico era um das muitas coisas sobre o que ele es
creveu furiosamente. Ao ver de Mo7.art, um compositor escrevia para uma audincia a quem in
cumbia agradar; a idia de retirar-se numa torre de marfim nunca passou pela sua cabea, mesmo
na situao mais desesperada, quando podia considerar-se rejeitado por aqueles a quem oferecera
deleite". Menry Raynor. Histria Social dn Msica: da Idade Media a Bectiwvcii. Rio de Janeiro: Guana
bara, 1986, pp, 17-8.
276 mrcia ramos de oliveira
Charles Monteiro
Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
' Roger Chartier (org.). Prticas da leitura. So Paulo: Estao Liberdade, 2001; Idem. A
aventura do livro do leitor ao navegador. So Paulo: Unesp/lmprensa Oficial do Estado, 1999; Idem.
Cultura escrita. Literatura e Histria. Porto Alegre: Artmed, 2001; Idem. Os desafios da escrita. So Paulo:
Unesp, 2002.
^ Peter Burke. As fronteiras instveis entre histria e fico. In: Jos Carlos Sebe Bom Meihy et
al. Gneros de Fronteira: cruzamento entre o histrico e o literrio. So Paulo: Xam, 1997, pp. 106-15.
^ Roger Chartier. A Histria Cultural: entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Bertrand,
1990, p. 34.
' Cf. Sandra J. Pesavento & J. Leenhardt. Imaginrio da cidade: representaes do urbano (Paris,
Rio de Janeiro e Porto Alegre), v. 1. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1999; Sandra J. Pesavento (org.).
Discurso histrico e narrativa literria, v. 1. Campinas: Unicamp, 1998.
27R
a cidade em textos e imagens na obra de rico verssimo 279
' Cf. Charles Monteiro. Porto Alegre e suas escritas: histrias e tnemriasda cidade. Porto Alegre:
Edipucrs, 2006, pp. 35-135.
' Esses esboos podem ser consultados no Arquivo Literrio rico Verssimo (Alev) na Fale/
Pucrs.
' rico Verssimo gostava de fotografia, de ser fotografado e de fotografar. Tanto as fotos posa
das tiradas para a imprensa quanto as tiradas em famlia apontam para como ele construa de forma
consciente uma representao social de seu papel de escritor. Provavelmente a experincia de traba
lhar na Revista do Globo em contato com muitos pintores, artistas grficos, diagramadores e fotgrafos
ampliou a sua cultura visual e o colocou em contato com a arte moderna.
Cf. Pierre Francastel. A realidade figurativa. So Paulo: Perspectiva, 1982.
' Cf. Ulpiano B Meneses. Fontes visuais, cultura visual, histria visual: balano provisrio,
propostas cautelares. In: O ofcio do historiador. Revista Brasileira de Histria, v. 23, n." 45, jul. 2003,
pp. 11-36; Cf. tambm Ricardo Mendes. So Paulo e suas imagens. In: Cadernos de Fotografia
Brasileira, n. 2 So Patdo 450 anos. So Paulo: Instituto Moreira Salles, 2004, pp. 381-487.
Cf. Annateresa Fabris. Fragmentos urbanos: representaes cidturais. So Paulo: Nobel, 2000.
280 charles monteiro
O romance urbano, a partir dos anos 1930 ajudou a elaborar essa modernidade
urbana vivida de maneira conflitual pelos contemporneos como conquista de
novaspossibilidades e, ao mesmo tempo, perda dos referenciais seguros do passado.
Nos romances de rico Verssimo as personagens so confrontadas com um
dilema tico. Por um lado, a necessidade de lutar para ascender socialmente, por
outro, os problemas de conscincia ante a desigualdade social, a guerra, a violn
cia e a reificao do indivduo na sociedade capitalista. Esse contexto de mudan
as e contradies levava a intelectualidade a questionar a herana cultural, bem
como os valores e as prticas sociais ligadas ao passado rural marcado por prticas
oligrquicas. Aafirmao de novosvalores sociais ligadosao dinheiro numa socie
dade de consumo ameaa corroer o carter desses personagens que se confron
tam com grandes dilemas.
A galeria de personagens criada pelo escritor permitiu-lhe trabalhar as gra-
daes e as formas como eram experienciadas essas contradies pelas diferentes
classes e grupos da sociedade local. rico trabalhou e re-trabalhou em suas obras
os temas ligados modernizao da cidade e aos dilemas da sociedade urbana em
processo acelerado de transformao.
Em um primeiro momento, a cidade e seus dilemas so indiretamente abor
dados em Clarissa (1933), no qual a personagem principal, de mesmo nome, vive
em uma penso e observa de longe o drama da famlia pobre com um filho doen
te que mora na casaao lado. O narrador acompanha Clarissaem um breve passeio
pelas ruas do centro da cidade. A trama est centrada no espaoprivado da penso
onde ela mora com a famlia e onde repercutem os acontecimentos do mundo
exterior.
Depois, em Caminhos Cruzados (1935), o escritor trabalha fundamentalmente
com a oposio entre dois espaos-sntese, o bairro Moinhos de Vento, onde mo
ram as elites tradicionais e os novos-ricos vindos do interior, e a Travessa das
Accias, que um espao criado ficcionalmente e que sintetiza a zonas suburba
nas da cidade onde morariam as camadas populares e camadas mdias baixas.'"*
Nesse romance, Noel a personagem que permite discutir os problemas coloca
dos pelolugarsocial do escritorem relao produo de sua escritanuma socie
dade atravessada pela desigualdade social e a ditadura estadonovista. A persona
gem se debate com a imensa dificuldade de textualizar os dilemas reais da vida
cotidiana em seus textos.
Em Olhaios Lrios do Campo (1938), rico trabalha a questo da memria e
como a nova tica do dinheiro se superpe aos sentimentos e aos afetos da perso
nagem principal (Eugnio abandona Olvia paracasar-se com Eunice visando as
segurar uma vida mais confortvel e obter reconhecimento social, que lhe fizes
sem esquecer da infncia cheia de humilhaes causadas pela pobreza dos pais).
A especulao imobiliria, a construo de grandes edifcios e os problemas da
sade pblica, entre outros, so temas abordados nessa obra.
Sobre a relao entre literatura, cidade e modernidade no romance de Caminhos Cruzados, cf.
Cludio Cruz. Literatura e cidade moderna. Porto Alegre 1935. Porto Alegre: Edipucrs/IEL, 1994. pp. 57-88.
282 charles monteiro
Maria da Glria Bordini. Criao literria em rico Verssimo. Porto Alegre: LPM/Edipucrs,
1995, pp. 119-23.
Essa que bem poderia ser uma metfora para uma "greve" dos historiadores no contexto da
ditadura, visto que a obra de rico conscientemente pretende transfigurar ficcionalmente a histria
local e regional no contexto da histria nacional.
" Cf. Luciana Boose Pinheiro. A recepo crtica de O Resto silncio de rico Verssimo. Mestrado
em Letras. Porto Alegre: Faculdade de Letras Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do
Sul, 2002.
a cidade em textos e imagens na obra de rico verssimo 283
Barreiro, e Nora que se apaixona por Roberto jornalista pobre e idealista. A oposi
o entre Tnio Santiago, escritor consagrado, eRoberto, jornalista que nutre dio
contra a burguesia e pretende tornar-se escritor, ficionaliza possivelmente os di
lemas do jovemrico e do rico escritor conhecido.
Vrios so os tipos de comprometimento das personagens com a velhaordem,
desde os seus herdeiros diretos, como os Barreiro, at os que querem fervorosa
mente transform-la, como o jovem Roberto. Outros personagens parecem alheios
a esta tenso entre o passado em runas e o presente em transformao com a
guerra na Europa e a ditadura no Brasil, envolvidos que esto em seus prprios
dramas individuais: Marina, Tilda, Norival Petra.
Pode-se vincular cada personagem a uma determinada forma de focalizar o
espao urbano na trama:
A famlia Barreiro vive no Solar do Montanha, na Rua Duque de Caxias, no
centro da cidade, sua ambientao representa o passado da cidade:
moralidade. Outro personagem que representa o luto pela perda da velha cidade e
de sua memria que estaria desaparecendo tipgrafo aposentado (Chicharro),
que uma espcie de fantasma que habita a praa central da cidade:
Logo depois que o sol desapareceu, aquela praa ali no centro teve um
minuto de esquisita beleza. Aslmpadas estavam ainda apagadas. Os ann
ciosde gsnenio riscavam de coriscoscoloridos as capotas dos automveis
parados junto da calada. Quem olhasse para o lado do poente veria si
lhuetas casas, torrees, cpulas, postes, cabos e amarraes de ao uma
escura massa arroxeada de contra o gelo verde do horizonte.^^
Tnio deixou o carro numa travessa e saiu a caminhar pela Rua dos
Andradas. Gostava do espetculo do quotidiano. s vezes ia ao Mercado P
blico s para contemplar as exposies de frutas - em que via coloridas na
turezas mortas [. . .] Descobria naquelas cenas citadinas um encanto no s
humano como tambm romanesco. Para ele, chegavam a ter beleza pictri-
ca e sentidosimblico at os sangrentos quartos de rsque pendiam de escu
ros ganchos nos aougues. Os cafs do Mercado tambm o seduziam, com a
sua freguesia misturada e turbulenta, descerimoniosa e numerosa. Ali se
discutia, negociava, flanava, brigava, comia, bebia. . . Na Praa Parob ven
dedores ambulantes faziam discursos, mesclando literatura proftica com
pomadas milagrosas, alternando atos de prestidigitao com alocuesesp
ritas. [. . .] Grandes caminhes de carga passavam, pesados barulhentos, en
chendo o ar de fumaa de gasolina queimada. Num abrigo de bondes, um
Ibidem, p. 20.
Ibidem, p. 6.
286 charles monteiro
" rico Verissimo. O Resto silncio. Porto Alegre: Globo, 1966, p. 333.
" Ibidem, p. 106.
a cidade em textos e imagens na obra de rico verssimo 287
a Rua Duque de Caxias (tambm aparece como Rua da Igreja), a Rua da Ladeira
(que j aparece com antiga denominao), bem como os espaos fechados como
bares, confeitarias, cinemas e restaurantes.
O centro tanto o espao de representao da modernidade quanto o lugar
de memria do passado da cidade, que serve para articular a ao entre os vrios
personagens. Os lugares esquecidos so os lugares onde mora a populao negra
como a Ilhota (no antigo Areai da Baronesa) ou a Colnia Africana. Estes territ
rios incrustados nas bordas do centro e entre os bairros que tambm so repre
sentados como vazios nos mapas oficiaisda cidade. H a presena pontual no ro
mance das malocas a beira do Guaba, os banhados de Navegantes.
importante salientar que no centro moram tanto as personagens da elite
tradicional o solar dos Barreiros na Rua Duque de Caxias, o Desembargador
Ximeno Lustosa que mora sozinho em seu apartamento do 12 andar do Edifcio
Continental quanto personagens pertencentes s camadas mdias, como o jo
vemjornalista Roberto,e at das classes populares como o ex-tipgrafo Chicharro.
J nos bairros mais distantes observa-se uma gradao social: se a famlia Santia
go mora no alto, em Petrpolis, a famlia do jornaleiro Sete beira do Guaba
num rancho situado no banhado entre So Joo e Navegantes.No tradicional bairro
do Menino Deus, mora a cafetina que apresenta a morena da Glria ao Norival
Petra. Os sujeitos esquecidos so os desviantes, os marginais que mereceriam es
paona narrativa sobrea cidade uma dcadadepois em Noite(1954).
Poder-se-ia dizer em sntese que na narrativa de rico, sobretudo em O Res
toSilncio, a cidade transformada em cenrio. A imagem da cidadecorresponde
experincia dascamadas mdias urbanas em ascenso, que seriam intermedirias
culturais nesse processo de modernizao. Engajadas e maravilhadas com as novi
dades e mltiplas possibilidades, mas percebendo que seu antigo mundo estvel e
seguro estava mudando numa velocidade que no permitia prever e nem controlar
os desdobramentos. Contra essa tempestade avassaladora que ameaava desman
char"tudo que slido no ar", os indivduosse protegem no espaoprivado e vo
buscar observar erefletir sobre essas mudanas de um lugar pri\^egiado eprotegi
do, como Antnio Santiago e sua casa no escritrio no alto da torre. Embora, como
o incio do livro se previna, de l tambm se possa cair ou ser atirado ao solo.
interessante observar que a organizao estelar do romance, que parte do
episdio da queda de Joana Karewska para contar vrias outras histrias em ou
tros lugares da cidade,encontra paralelo no processode expanso da malha urba
na seguindo as novas avenidas radiais que estavam sendo alargadas e pavimenta
das em direo periferia no momento em que est sendo escrito o romance.
A cidade est se transformando apresentando novos espaos modernos (ave
nidas, viadutos, novos bairros), sobretudo, no centro pelo processo de verticalizao
que se iniciava lentamente. Mas tambm, era provinciana, pois conservavaaspec
tos tradicionais da velha cidade nos bairros Cidade Baixa e no Menino Deus. Ob
serva-se tambm uma gradual especializao e segregao dos espaos urbanos a
partir da expanso de novas reas residenciais (como Petrpolis) e industriais
(como Navegantes).
288 charles monteiro
da avenida principal da cidade: oito da noite ele era apenas uma das muitas
centenas de criaturas humanas que se moviam nas caladas".-^
Poder-se-iadizer que sua experinciaesta relacionada s mudanas provoca
das pelo processo de modernizao, que transformaram os espaos urbanos e as
relaes entre os sujeitos, cortando seus laos com o passado e provocando a perda
de referncias para a construo da memria e a identidade coletiva. Em meio
aos rudos, s luzes, ao trafego e multido da cidade moderna o Desconhecido
sente-se acuado como um animal. Afinal, ele perdera um dos atributos fundamen
tais da condio humana e social: lembrar. Pois, a memria condio para a cons
truo da identidade do indivduo no quadro de um grupo social (famlia, profis
so,sindicato, partido, igreja, nao).' Esse dilema fica claro nas palavrasdo narrador
onisciente em terceira pessoa:"Essas urgentes indagaes em torno da identidade,
tempo e espao estavam subterraneamente contidas naquela nsia aturdida".''
A noite da cidade reveste-se de significados ora modernos ora assustadores:
"A cidade parecia um ser vivo, monstro de corpo escaldante a arquejar e transpi
rar na noite abafada".'" Como afirma Raymond Willians, as metforas da nature
za foram amplamente utilizadas desde o sculo XIX para narrar a nova condio
social e a nova cultura urbana nas metrpoles europias caracterizadas pelo medo
da diluio do indivduo na multido.^'
A noite inverte os significados do regime diurno ligados ao trabalho e ao
discurso da modernidade presentes nos romances anteriores. Ainverso dalgica
do trabalho, das regras legais e interditos morais impostos pela sociedade luz do
dia, confronta o desconhecido com os prazeres ilcitos gozados no anonimato da
noite, com as contradies sociais (a vida dos marginalizados, dos desviantes, dos
foras-da-lei) e o que reprimido pela sociedade.
Anoite representada como caose desordem no percurso aleatrio e angus
tiante do Desconhecido procura de si mesmo. Ele vaga sem saber para onde ir
conduzido pelos seus guias no submundo: Nanico e Mestre. A cidade transfor
ma-se em um labirinto. A carteira cheia de notas e um leno com sangue o fa
zem pensar que cometeu um crime, sobretudo ao ouvir no rdio e no jornal que
a polciaestava perseguindoo assassino de uma mulher.
O Desconhecido foge para o submundo, para a zona porturia, no outro lado
da cidade oficial, onde busca anonimato e proteo entre os que vivem entre o
mundo da ordem e da desordem. Ai comea sua peregrinao, preso s duas per
sonagens que se valem de sua condio de desmemoriado para tomarem-lhe o
dinheiro e divertirem-se sua custa. A personagem principal o Desconhecido
faz uma peregrinao profana pelas ruas e becos da cidade, deffontando-se com
" Ibdem, p. 1.
" Cf. Maurice Halbwachs. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990; Fernando Catroga.
Memria, Histria e Historiografia. Lisboa: Quarteto, 2001.
' Vrissimo, 1954, op. cit., p. 2.
Ibidem, p, 3.
Cf. Raymond Willians. O campo e a cidade tia literatura e na histria. So Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
290 charles monteiro
Ou seja, pela imagem ele possui o desconhecido, pela imagem ele se sente
preso quela aberrao humana. Que tipo de metforapoderia ser essa? Dequem?
Do homem moderno entre os valores do autor preso imagem que seus leitores
construram dele e de suas obras, necessitando de libertar da expectativa criada
pelos romances anteriores? Ou mesmo do escritor sobre sua experincia como
editor da Revista do Globoy onde eventualmente tinha de compor versos e legen
das para fotos na coluna social?
J o personagem Mestre puro clculo. Ele o mediador entre as elites,
com suas demandas por prazeres ilcitos, e os populares, que se vendem para so
breviver. Ele o cafeto, o sedutor, que vive de golpes e trapaas. Nas palavras do
Nanico:
Com roupas finas, linguagem mais refinada e irnica, ele cria a representa
o do homem educado de classe mdia (o Nanico o chama de poeta, logo, tam
bm um escritor), mas suas maneiras e fala fina no conseguem esconder seu
^ Ibidem, p. 125.
292 charles monteiro
^Sobre as festas populares em Porto Alegre, ver: Walter Spalding. Pequena histria de Porto
Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967, pp. 235-8.
^ Sandra Jatahy Pesavento. O espetculo da rua. Porto Alegre: UFRGS/Prefeitura Municipal,
1992, p. 81.
' Cf. Pierre Bourdieu. O poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1998.
ver e ser visto pelo poder: a poltica vai s ruas de porto alegre 295
Em 1928, a mesma data foi lembrada com uma atividade promovida pelo
Grmio Republicano 14 de Julho. Sobre ela o jornal republicano publicava:
* A Federao, 15/7/1924, p. 1.
" Ibidem, 16/7/1928, p. 1.
Ibidem, 17/12/1923, p. 2.
ver e ser visto pelo poder: a poltica vai s ruas de porto alegre 297
Numa sociedade em que ainda se publicavam nos jornais os nomes das pes
soasque chegavam e partiam pelo caisdo porto ou pela estao ferroviria, o cum
primento a familiares, amigos e colegas era um momento importante da sociabi-
lidade urbana. Os relatos dos jornais permitem perceber que essa prtica social
denotava no apenas carinho, mas respeito e apreo pelo viajante. Significava o
reconhecimento do prestgio social dos personagens sociais. Assim entendemos
que receberas lideranaspartidrias na estao ferroviria ou no porto como uma
prtica social que tambm transitou do contexto das relaes privadas para o cam
po poltico, carregando, do primeiro, suasestratgias e potencializando, no segun
do, seus significados.
Em setembro de 1920 o jornal Correio do Povo comunicava a chegada do
lder oposicionista Assis Brasil a Porto Alegre em uma breve nota, em que dizia
que "Procedente de Pedras Altas dever chegar, hoje, a esta capital o Dr. Assis Bra
sil"." Em janeiro de 1921 foi publicada a nota na qual se dizia que "[. . .1 o Cen
tro Republicano Jlio de Castilhos convida os nossos correligionrios para a re
cepo que se far amanh, s 10horas, na estao frrea, ao nosso ilustre amigo e
correligionrio SenadorJooVespcio de Abreu e Silva".'- Divulgara chegadades
sas e de outras lideranas no era apenas dar boas-vindas. Ao divulgar a chegada
ou partida se possibilitava que correligionrios fizessem um ato de apreo a essa
personalidade, de apoio s suas palavras. Uma demonstrao pblica de compro
metimento com suas idias e propostas polticas.
Um momento emblemtico dessa prtica social foi a chegada de Flores da
Cunha a Porto Alegre, em 15 de agosto de 1923. Em meio Revoluo de 1923 o
comandante das tropas da Brigada Provisria que combatia os revoltosos na re
gio oeste do estado foi chamado capital. Para receb-lo, foi organizada pelo PRR
umagrande recepo pblica na estao ferroviria.
Um outro tipo de atividade que utilizava a rua como espao para manifesta
o poltica eram os "prstitos"e as"marchas", ou seja, as passeatas que percorriam
as ruas da cidade. Sua ocorrncia em diferentes momentos da dcada de 1920 nos
permite pensar que essas atividades tambm eram manifestaes legtimas nesse
Ibidem, 14/8/1924, p. 1.
Correio do Povo, 26/3/1924, p. 1.
300 ricardo de aguiar pacheco
Uma primeira leitura desse relato nos obriga a lembrar da Liga dos Operrios
Republicanos como clube poltico ligado ao Partido Republicano. Podemos pen
sar que ela estava sendo manipulada para realizar uma atividade dirigida pelas
instnciassuperiores para demonstrar o apoio do operariado urbano ao governo.
Mas essa viso nos impede o entendimento das motivaes que levaram os cita-
dinos a participar dessaatividade de homenagem ao governador do estado, prestes
a deixar o cargo. Enquanto A Federao divulgava que a atividade ocorreria na
Praa Senador Florncio, o relato publicado na edio do dia seguinte descrevia
que a concentrao se dera no Largo da Intendncia, e nem mesmo no trajeto at
o Palcio do Governo ela passou pela Praa Senador Florncio. Essa divergncia
entre o local divulgado para o encontro e o local onde ele efetivamente ocorreu
evidencia que a estrutura partidria no tinha total controle das atividades da Liga
dos Operrios Republicanos. Se assim fosse o chamado do jornal partidrio teria
sido seguido. Se considerarmos que a nota se tenha equivocado na informao da
mesma forma temos de reconhecer o distanciamento entre a redao do jornal e
a diretoria da Liga. Num e noutro caso,ficapatente que os membros dessaassocia
o no seinformaram da atividade pela imprensa partidria, pois a concentrao
no se deu no local divulgado pelo jornal.
Freqentar determinados lugares da cidade moderna no era um ato ino
cente. O Largo da Intendnciaera tido como espaopara a concentraopara pas
seatas, pelo menos, desde a Proclamao da Repblica.^" Junto do largo ficavam
os terminais das linhas de bonde que chegavam dos arrabaldes. A era o local do
comrcio popular e por onde circulava um sem-nmero de pessoas que iam e
vinham de diversos pontos dacidade. APraa Senador Florncio, por outro lado,
ficava em um ponto nobre do centro da cidade. Fronteirias a ela seencontravam
A Federao, 14/11/1927, p. 4.
" Ibidem.
Cf. Ricardo de Aguiar Pacheco. A recm-nascida Repblica: a cidadania festiva no 30." dia da
Repblica. Estudos Ibero-Amertcatios, Porto Alegre, v. XXV, n." 1, jun. 1999, pp. 171-92.
302 ricardo de aguiar pacheco
diversas reparties pblicas. Suascaladas era o espao para ofooting das moas
que freqentavam os melhores cinemas. A tambm se localizavam os cafs mais
elegantes da cidade, onde ocorriam debates acalorados sobre a situao poltica.
Em seu entorno ainda se encontravam as sedes dos partidos e de algumas associa
es importantes. Convocar os participantes de uma passeata para se concentrar
em um ou outro desses dois pontos da cidade, mais que uma questo de trajeto,
implicava definir o pblico que se desejava reunir.
Da Intendncia ao Palcio do Governo, essa passeata passou pela Rua dos
Andradas, cruzando o centro comercial da cidade. Os relatos mencionavam a pre
sena de uma "banda de msica" e o uso da "bandeira nacional e rio-grandense".
Ou seja, falava-se de algo que produziabarulhopelas ruascentrais da cidade. Con
tudo, no se fez meno a nenhum incomodo causado pela atividade, deixando
implcita a legitimidade social dessa mobilizao coletiva. Por seu turno, quando
Borges de Medeiros "apareceu em uma janela", estava se dirigindo aos presentes.
Neste ato tanto o lder poltico como o chefe de Estado reconheciam a legitimida
de da passeata como estratgia para os grupos sociais manifestarem sua opinio.
Os comcios pblicos
Outro tipo de atividade que utilizava ruas e praas como palco para a poltica
na Porto Alegre da dcada de 1920eram os comcios.Na campanha eleitoral para a
Presidncia da Repblica de 1922 quando Artur Bernardes e Nilo Peanha dispu
tavam a presidncia o PRR organizava um comcio de apoio candidatura de
Nilo Peanha no dia 25 de janeiro, aniversrio do Governo Borges de Medeiros.
ao dizer que "ontem de noite, um grupo de adeptos do Sr. Assis Brasil estavapostado
em frente do Centro Cvico, Rua dos Andradas, a ouvir alguns oradores.""
Em julho de 1928, vemos novamente a sede do Centro Republicano Jlio de
Castilhos sendo utilizadacomo palco para um comcio.No momento em que ocorria
o encerramento de mais um ano de trabalhos da Assemblia de Representantes:
A Federao, p. 1, 29/11/1922, p. 1.
Ibidem, 5/7/1928, p. 1.
ver e ser visto pelo poder: a poltica vai s ruas de porto alegre 305
da intiMldflo dcXroutd
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A Federao, 14/8/1923, p. 2.
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#*) N!
A FecieuiOy 5/7/1928, p. 1,
A Federao, 21/2/1927, p. 2.
LEALDADES COMPARTILHADAS: FAMLIAS NEGRAS E
ETNICIDADES NO ESPAO URBANO (PORTO ALEGRE, SCULO XIX)
' Cario Ginzburg. Provas e possibilidades margem de "II ritorno de Martin Guerre", de Na-
talie Davis. In: Cario Ginzburg. A Micro-Histria e outros ensaios. Lisboa/Rio de Janeiro: DifeI/
Bertrand Brasil, 1991, p. 183; Alm de: Cario Ginzburg. O inquisidor como antroplogo: uma analogia
e as suas implicaes. In: Ibidem; Michel Foucault assumiu ter-se deixado seduzir por alguns casos de
"homens infames", cujas existncias apenas podemos ter alguma informao graas aos seus fugidios
contatos com o poder (repressor). Ele escreveu a lenda sobre estes seres quase fictcios e obscuros:
"Hablo de leyenda, porque aqui se produce como en todas Ias leyendas un cierto equvoco entre Io
fictcio y Io real, aunque en este caso Ias razones se invierten. Lo Legendrio, cualquiera que sea su
ncleo de realidad, no es nada ms, em ltimo trmino, que Ia suma de Io que se dice. (...) En los
textos que siguen Ia existncia de estos hombres y de estas mujeres se reduce exatamente a Io que de
ellos se dice; nada sabemos de Io que fueron o de Io que hicieron salvo Io que vehiculan estas frases.
En este caso es Ia escasez, y no Ia prolijidad, Io que hace que se entremezcien Ia ficcin y Io real".
Michel Foucault. La vida de los hombres infames. Buenos Aires/Montevidu: Editorial Altamira/Nor-
dan-Comunidad, 1992, p. 183.
Ao longo do artigo usaremos as seguintes abreviaturas: AHRS Arquivo Histrico do Rio
Grande do Sul; AHCMPA Arquivo Histrico da Cria Metropolitana de Porto Alegre; e Apers
Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul.
' Apers. Cartrio Jri, mao 41, processo 1193, Porto Alegre, 1870.
^ Jos dos Passos Filho: filho de Benedito de Assuno, 36 anos, solteiro, sapateiro e "que agora
tem trabalhado como boleeiro da cocheira do Dr. Heinzelmann", nascido em So Paulo, analfabeto,
morador na praia do Riacho.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 311
' Matias Guathnauer (?]: filho de Matias, trinta e trs anos, casado, caixeiro, do Reino da
Prssia, sabia ler e escrever, morador na Rua do Arvoredo h dois meses.
" O Dr. Heinzelmann, no ano da agresso a Joana, tinha cerca de cinqenta anos e morava na
Rua da Igreja (atual Duque de Caxias). Nasceu na Prssia (Havelberg) e veio para o Brasil em 1846
com sua primeira mulher, Amanda Juliana Elisabeth Koethcke, com quem casou pelo rito protestante
em Hamburgo, em 28 de fevereiro daquele ano. Abandonado pela primeira esposa, Heinzelmann rece
beu autorizao para casar novamente na Igreja, com Francisca Bezerra Heinzelmann, em 14/5/1853.
Ele faleceu cm 2/7/1890, deixando a viva e quatro filhos (Alfredo, Ricardo, Oscar e Paulina Hein
zelmann de Moura, casada com o Dr. Afonso Henrique de Moura). Heinzelmann libertou em 1867,
por cem mil ris, a escrava Nag Ludovina e possua pelo menos mais uma cativa crioula, nascida
nesta provncia, de nome Florisbela, que teve duas filhas ingnuas: 1.*) 29/9/1973, Luza; 2.') 2/8/1975,
Capitulina. AHCMPOA, Livro de Batismo de Libertos, Igreja do Rosrio (folha 53v) e da Catedral
(folha 7). Apers. Registros Diversos n. 19, 1.Tabelionato de Porto Alegre, 12/10/1967, folha 55. Apers.
Cartrio da Provedoria e Ausentes, 1890, inv. 715, mao 42.
312 paulo roberto staudt moreira
Bem merecia este nome, porque at certo tempo s havia nela rvores
e casas de capim, contando-se as de telhas por unidade [. . .) Entre as casas
de capim distinguia-se pela sua humildade a em que morava o preto velho
Jos Cabelos, andador da Irmandade do Rosrio,que nos dias festivos se apre
sentava de casaca, colete bordado, cales, meias e botas, no dispensando a
competente touca que o fazia dormir por casas dos compadres.'
No ano de 1869, Joana residia na Rua do Arvoredo n. 261 com seu amsio
Marcelo Henrique da Silva.' Uma das testemunhas indicadas por ela, Antnio
Andr Henrique de Carvalho," informou que ouviu uma "gritaria muito grande"
e saiu porta de sua venda e vendo o preto Jos dos Passos agredir Joana gritou
"que no desse na preta que era forra". Esta frase de Antnio Andr aponta para a
considerao da alforria como uma espcie de carta de recomendaes por bons
servios (fidelidade, etc.) dos ex-senhores.'^
Carta registrada em cartrio em 19 de fevereiro de 1862. Apers.- Registros Diversos n." 4, 1."
Tabelionato de Porto Alegre, folha 115. A carta foi passada na Costa da Charqueada, 3."distrito de So
Jernimo.
" Stuart Schwartz. Segredos httenws. Engetdios e escravos na sociedade colonial. So Paulo: Com
panhia das Letras, 1988, p. 327. a idia do "voc sabe com quem est falando?", com o liberto usando
o nome (a "projeo social") de seu antigo senhor em momentos de necessria afirmao perante
outros de igual ou maior status socioeconmico. Roberto Da Matta. Voc sabe com quem est
falando? um ensaio sobre a distino entre indivduo e pessoa no Brasil. In: Roberto da Mata.
Cfjrflvi/s, malandros e heris. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1983.
" Cf. Paulo Roberto Staudt Moreira. Os cativos e os homens de bem. Experincias negras no espao
urbano. Porto Alegre 1858/1888. Porto Alegre: EST, 2003.
314 paulo roberto staudt moreira
N.o % N." %
N. % N. % N." % N. %
Lembremos que Cristo relacionado no candombl figura de Oxal, a quem talvez Joana se
tenha dirigido em busca de sade (Norton Figueiredo Corra. Panorama das religies afro-brasileiras do
Rio Grande do Sul. In: Ari Pedro Oro. As religies afro-brasileiras do Rio Grande do Sul Porto Alegre:
UFRGS, 1994, p. 27). Infelizmente, em nossas pesquisas nos livros de pacientes internados na Santa Casa
de Misericrdia de Porto Alegre, de janeiro de 1858 a dezembro de 1864, Joana no foi encontrada.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 315
Como percebemos nesta tabela, a alforria gratuita obtida por Joana enqua
dra-se na porcentagem do grupo de mulheres minas ao qual pertencia. As breves
referncias que fazemos s naesafricanas que foram trazidas para o Brasil Meri
dional servem, em parte pelo menos, para dissipar o miasma que encobre a pre
sena negra no Rio Grande do Sul. A riqueza (e diversidade) cultural fica eviden
te na pluralidade das mesmo imprecisas classificaes. Minas e nags juntos
configuravam 763 alforrias ou 82% do total das libertaes de africanos da Costa
Ocidental.
Voltando para as alforrias concedidas a escravos africanos e pensando nos
procedentes da frica Central Atlntica, regio do angolano Marcelo, temos
39,76% do total. Subdividindo esta rea pelas regies apontadas pela historiadora
Mary Karasch,'' temos:
Tipos frica Central Atlntica frica Central Atlntica frica Central Atlntica
(Angola Norte) Angola Sul Congo Norte
N." % N. % N." % N. % N. % N. %
Por uma dessas vicissitudes biogrficas de que nos fala Giovanni Levi, con
seguimos algumas informaes preciosas sobre Joana. Sua ex-senhora Maria
Guedes de Meneses passou por problemas judicirios, pois seu falecido marido
Bernardino Martins de Meneses, morto em 1838 , deixou dvidas oriundas
de uma sociedade que tinha com Francisco de Lemos Pinto.^
No sabemos desde quando a famlia Meneses possua estabelecimento
charqueador na Costa das Charqueadas, distrito de So Jernimo. Mas em 1826,
quando se processava o inventrio da falecida Simiana Joaquina de Meneses,
" Mary Karasch. A vida dos escravos tio Rio deJaneiro 1808/1850. So Paulo: Companhia das
Letras, 2000. Os africanos vindos da frica Central Atlntica compunham uma diversidade de grupos
culturais e tnicos, destacando-se numericamente os benguelas, seguidos pelos congos, angolas, ca-
bindas, rebolos, monjolos e caanjes.
Maria Guedes de Meneses faleceu em agosto de 1881. Pelo inventrio de Bernardino Martins
de Meneses, iniciado em 1844, sabemos que o casal tinha os seguintes filhos: Bernardino Martins de
Meneses, oito anos, senhorinha Guedes de Meneses, solteira, quinze anos, Maria Bernardinha
Guedes de Meneses, seis anos, Dionsio, doze anos, Deolinda, onze anos e Ubaldina, dez anos. Apers.
1." Cartrio do Cvel de Porto Alegre, 1881, inventrio 444, mao 20. Apers. Cartrio de rfos e Au
sentes, inventrio, auto 10, mao 1, 1844. A herana de Bernardino foi processada por outros credores:
ver a ao movida por Mariano los Coelho da Costa. Apers. Cartrio do Cvel, ao ordinria, auto
421, mao 15, 1847.
316 paulo roberto staudt moreira
Apers. Cartrio Cvel, So Jernimo, liquidao, mao 17, auto 689, 1852. Autor: Francisco
de Lemos Pinto e sua mulher; ru: Maria Guedes de Meneses e filhos.
" Apers. Cartrio Cvel, ordinrias. Triunfo, mao 15, auto 414, 1846. Autor: Francisco de
Lemos Pinto e sua mulher; r: Maria Guedes de Meneses e filhos.
Complementar charqueada existia a estncia Itacorubi, do tupi-guarani "rio das pedras
esparsas". Os scios tambm adquiriram oito lguas e meia de campo em Bela Unio, no Estado
Oriental, local que foi acampamento do caudilho Fructuoso Rivera.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 317
existe para esta indisposio, o qual realmente sem fundamento, e por isso
tenho respondido que assim como no influi a favor de um partido, to bem
no fiz oposio ao outro.
Apers. Cartrio do Cvel, mao 9, auto 287, Triunfo (So Jernimo), 1852.
" Cf. Ktia de Queirs Mattoso. Ser escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1982.
318 paulo roberto staudt moreira
uma fase intermediria em que aos moleques e s negrinhas eram ensinados ofcios,
ao mesmo tempo que trabalhavam efetivamente em ocupaes de adultos.
O processo de desvanecimento da invisibilidade dos cativos no RS gra
dual; em um primeiro momento a historiografia aceitou a existncia de escravos,
mas em pequeno nmero. Depois, o uso das estatsticas provou que sempre exis
tiram amplos contingentes demogrficos de cativos, mas a historiografia defen
deu que existiam, mas estavam concentrados em pequenas propriedades e nas
cidades, e eram mais bem tratados do que no restante do pas. Finalmente, nos
ltimos anos, a historiografia regional tem aceitado o fato da abundante presena
de escravos no RS e do seu uso em praticamente todos os ofcios, incluindo os
rurais, como campeiros, pees, etc.
O caso de Joana e Marcelo mostra como mesmo em um "estabelecimento
penitencirio" como a charqueada, a famlia escrava esteve presente e que impos
svel compreender a sociedade escravista sem uma compreenso clara de seu papel.
Cristiany Miranda Rocha. Histrias de famlias escravas: Campinas, sculo XIX. Campinas:
Unicamp, 2004, p. 51. Ver tambm: Maneio Florentino & Jos Roberto Ges. A paz das senzalas. Rio
de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997; Robert W. Slenes. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999.
Sheila de Castro Faria. A Colnia em movimento. Fortuna e famlia no cotidiano colonial. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 327.
famliasnegrase etnicidades em porto alegre 319
corubi (Joaquim pardo, Sirino, Francisco crioulo e Antnio). Assim, talvez as tare
fas de Marcelo integrassem idasseguidas at a sededa estncia, de onde conduzia
tropasde gadopara a charqueada, e arranjava tempo para seduzir (ou ser seduzido)
por sua parceira Joana.
Voltemos para os acirrados entreveros]\xn\cos do incio da dcada de 1850.
O que ocorre a seguir provocou um enorme atropelo senhora Maria Guedes de
Meneses, mas uma srie de fontes documentais preciosas para os historiadores.
Apesar da afirmao de Maria Guedes de que Joana era de sua propriedade par
ticular e no da sociedade de seu finado marido, Joana acabou sendo depositada
juntamente com outros escravos para o pagamento dos bens e enviada para Porto
Alegre.
Maria Guedes de Meneses apresentou documentos provando que em 1834
foram enviados para a charqueada, pelo scio Lemos Pinto, dezesseis escravos
pertencentes sociedade e mais duas escravas (Joana e Antnia), de propriedade
particular de seu finado marido. Assim, com aproximadamente doze anos, Joana
chegou nesta charqueada, no sabemos se vinda diretamente da frica ou de ou
tro ponto do territrio brasileiro, talvez do Rio de Janeiro.^ Segundo Maria
Guedes:
Junto com Joana e Antnia foi uma carta de Lemos Pinto, datada de 7/5/1834, que dizia:
"Pelo Vitorino vo duas negras de sua conta oitocentos mil ris".
" AHRS. Requerimento, Justia, 1860.
^ Em setembro de 1860, Maria Guedes pediu o fim do depsito de Joana ao juiz municipal de
Triunfo, informando que a ao civil movida por Cndido Alvim havia recebido sentena contrria,
confirmada por acrdo da relao de 26/9/1856 e 2/10/1857 e despacho deste juzo de 3/9/1857.
Segundo requerimento de Francisco de Lemos Pinto, Joana estava em 1860 depositada em Porto
Alegre, na casa de Joo Estcio de Lima Brando. Pinto pede quantias que a viva lhe deveria de sua
sociedade com Bernardino e diz que Maria Guedes teria conscientemente "esbanjado" bens para
prejudicar o suplicante. Requerimento, Justia, mao 97, 1860.
320 paulo roberto staudt moreira
Livres Escravos
35.678" 8.070"
assim designados.^^
Devemos ainda chamar a ateno que Laura, apesar de ser citada como filha
por Marcelo em seu testamento, ostentava como seu nome de liberta apenas o
sobrenome da me Joana. Seu nome de papel, ou seja, o que ela usava nos regis
tros, era Laura Guedes de Jesus. Seria respeito a uma tradio matrilinear africa
na ou indicativo de que ela no era filha biolgica de Marcelo? Talvez nunca ve
nhamos a saber, mas ao casar pela segunda vez Laura escolheu Emlio, um africano
da Costa da frica, mais prximo cultural ou etnicamente de sua me mina do
que de seu pai angola.
("meu bom amigo") e em terceiro Frutuoso Vicente Vaz ("meu particular amigo").
Marcelo era irmo da Irmandade do Rosrio, de onde provavelmente co
nhecia o sacristo da Igreja, Frutuoso Vicente Vaz, seu "particular amigo" Frutuoso,
que supomos fosse negro (mas no temos certeza), casou em I. de fevereiro de
1858 com Maria Joaquina da Conceio (natural de Porto Alegre, filha de Ana
Maria da Conceio, s 18 horas na Igreja do Rosrio)."'^ Vaz era sacristo da igre
ja que congregava boa parte da populao negra de Porto Alegre."*
O congo Raimundo Incio de Azevedo, quando tinha cerca de quarenta e
quatro anos, em 13 de dezembro de 1858, conseguiu que sua senhora Teresa
Antnia de Azevedo lhe concedesse carta de alforria em troca de um conto e tre
zentos mil ris."*' To logo liberto, Raimundo tratou de agenciar recursos acumu
lando peclio para libertar sua famlia ainda em cativeiro: em 1, de novembro
do ano prximo (1859) ele entregou para sua ex-senhora uma quantia suficiente
para que ela comprasse a crioula Maria Rosa, e assim libertasse sua filha Maria
Bernardina, de quinze anos." As afetividades e identidades de Joana, Marcelo e
Raimundo foram consagradas mediante o estabelecimento de um parentesco sim
blico. Em 6 de outubro de 1877, Joana e Marcelo batizaram o ingnuo Marcelino
(nascido em 8 de setembro daquele ano), filho da crioula Maria (escrava de
Alexandrina Bernardes da Silva).' O nome de Raimundo no aparece no registro
desse batismo, feito pelo Reverendo Padre Leonardo Filipe Fortunato, provavel
mente porque sua relao com a me do inocente era meramente consensual. De
qualquer maneira, esse apadrinhamento demarcou e fortaleceu simbolicamente
os laos entre estes africanos, ficando o padrinho homenageado no nome do bati
zando. Assim, o batismo estabelece parentescos fictcios e mapeia aliados,^
Como dissemos quando tratamos da relao consensual entretida pelos es-
AHCMPA. Livro 2 de casamentos, Igreja do Rosrio, fl. 76. Testemunhas: Antnio Jos de
Azevedo e Joo Manuel Pereira Maciel. No registro de votantes da Parquia do Rosrio, de 1880,
constava com o nmero 605, quarenta e oito anos, casado, alfabetizado, filho de Antnio Fernandes
Vieira, morador na Rua Vigrio Jos Incio, renda de 350$. AHRS. EL 01.
Sobre a Irmandade do Rosrio em Porto Alegre, ver: Mara Regina do Nascimento. Ir-
mandades leigas em Porto Alegre: Prticas funerrias e experincia urbana (sculos XVIII-XIX). Doutora
do em Histria. Porto Alegre: LFniversidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006.
Provavelmente o pagamento foi feito em prestaes, pois a carta s foi registrada em 2/3/1864.
Apers. 1." Tabelionato de POA, Registros Diversos, 1. 17, fl. 206. Teresa Antnia de Azevedo, ex-
senhora de Raimundo, morreu em 17/10/1884 sem testamento, deixando os seguintes filhos: Lus
Antnio de Azevedo (inventariante por ser o "nico irmo homem"), Maria Jos de Azevedo e Teresa
Antnia de Azevedo Silveira. Teresa tinha considervel patrimnio, assim avaliado: bens de raiz
(101:000$000), aplices {46:000$000), aes (8:800$000), animais (820$000) e mveis e utenslios
(271$000). Apers. 1." Cartrio do Civil e Crime, mao 21, auto 481.
^ Apers. I."Tabelionato de POA, Registros diversos, 1. 27, fl. 5Iv. Carta registrada em 4/11/1859.
A escrava Maria, me de Marcelino, obteve liberdade em 21 de fevereiro de 1883, aps pagar
seiscentos mil ris a sua senhora, talvez auxiliada por seu amsio liberto. AHCMPA. Livro de Batismo de
Libertos, Igreja Madre de Deus, fl. 25. Apers. I. Tabelionato de POA, Registros diversos, 1. 16, fl. 117v.
" Idntico caso ocorreu em 18 de agosto de 1873, quando o casal Laura Luza Guedes de Jesus
e Pedro Lus Bernardo batizaram uma ingnua de seis meses, filha da escrava parda Clarinda
(propriedade de Brisida Calderon Vieira), a qual foi nomeada de Laura. AHCMPA. Igreja das Dores,
Livro de Batismo de Livres, n." 3.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 325
" Sobre apadrinhamento e compadrio, ver: Schvvarlz, 1988; Schwartz. Abrindo a roda da
famlia: Compadrio e escravido em Curitiba e na Bahia. In: Schwartz. Escravos, roceiros e rebeldes.
Bauru/SP: Edusc, 2001.
^ Cf. Carlos Eugnio Lbano Soares; Flavio Gomes; Juliana Barreto Farias Gomes, op. cit., p.
227.
" Apers. 2." Cartrio do Cvel, POA, mao 16, n." 508, 1884.
^ O mina Narciso alforriou-se atravs de carta gratuita emitida e registrada em 8 de julho de
1869, pelo senhor Porto Irmos 8c Companhia. Apers. 1." Tabelionato de POA, 1. 1, fl. 20.
326 paulo roberto staudt moreira
"Ns temos que dar ao Brasil o que ele no tem e que por isso at agora no
viveu, tts temos que dar uma almaao Brasil e para isso todo o sacrifcio grandio
so e sublime". Esse apelo, feito em tom apaixonado, endereado a Carlos Dru-
mond de Andrade, em carta escrita por Mrio de Andrade, a 10 de novembro de
1924. Ficava claroo anseio de transmitirao amigo pensamentosque, embargados
pelaemoo, buscavam, sobretudo, motiv-lo ao.
Cartaspodem funcionarcomo verdadeira rede de interaessociais, desenca
deando trocas de experincias, adeses e sociabilidades. A correspondncia moder
nista brasileira, ao longo da dcada de 1920, se inscreve nesse espao de recriao
e reconfigurao da realidade. Mrio de Andrade dizia que sofria de "gigantismo
epistolar" e, certamente, por isso, conseguiuorganizar uma ampla rede social, for-
talecendo-a pelas afinidades eletivas. Dizia que, nas cartas, falava com os amigos
como se estivesse de"pijamas e chinelos".' nesse espao da intimidade, em tom
de conversa, que se vivenciam afetos, se constrem e desconstroem imagens de si
e do outro e, tambm, se formulam idias que tiveram papel fundamental na ar
ticulao do pensamento modernista brasileiro.^
Para o historiador das sensibilidades interessa perceber como os indivduos
expressaram, diante dos acontecimentos, as mais diversas sensaes e emoes.
Por outro lado, tambm, importa acompanhar como tais sentimentos e emoes
foram por eles interpretados, elaborados, compartilhados e transformados em
' Inspirando-se em Manuel Bandeira, Mrio refora essa imagem da amizade em carta
endereada a Carlos Drumond de Andrade. Carlos Drumond de Andrade. Lio cio amigo, cartas de
Mrio de Andrade a Carlos Drumond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 60.
2 O tema da amizade, articulado ao debate modernista da dcada de 1920 foi objeto de discus
so no artigo: Razo e sensibilidade, o tema da amizade na escrita modernista brasileira Nuevo Mundo
Mundos nuevos, n." 6, 2006, mis en ligne le 16 mars 2006. Disponvel em: http://\vww.nuevomundo.
revues.org/documentl919.html. 329
330 mnica pimenta velloso
' Uma sntese sobre os fundamentos da Histria das sensibilidades pode ser encontrada em
Frederique Langue. O sussurro do tempo; ensaios sobre uma histria cruzada das sensibilidades
Brasil-Frana. In: Marina Haizenreder Ertzogue & Temis Gomes Parente. Histria e sensibilidade.
Braslia: Paralelo 15, 2006.
*Cf. Arlette Farge. Qu'est-ce qu*un venement? Terrain, Paris, n." 38, 3/2002 (Revue d'Ethonologie
de TEurope).
^Carta a Carlos Drumond de Andrade (Carlos Drumond de Andrade. Lio do amigo, cartas de
Mrio de Andrade a Carlos Drumond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 22).
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 331
' Carta de 15 de novembro de 1923. In: Marcos Antonio de Moraes (org.). A correspondncia
Mrio de Andrade e Manuel Bandeira. So Paulo: Edusp, 2001, p. 78.
A imagem sugerida por Aracy Amaral na cronologia sobre a trajetria de Tarsila Amaral
" Essas idias que relacionam a busca ontolgica com a busca da nacionalidade esto expressas
na carta endereada a Carlos Drumond de Andrade. Lio do amigo, cit.
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 333
" Silviano Santiago inclui o ato de sentir, observar e conversar ao domnio da hermenutica.
(Cf. Silviano Santiago. Suas cartas, nossas cartas. In: Frota Llia Coelho Frota (org.). Carlos & Mrio.
Rio de Janeiro: Bem te vi, 2002).
" Carta de 16/6/1923. In: Aracy Amaral (org.). Correspondncia Mrio de Andrade e Tarsila do
Amaral. So Paulo: Edusp/IEB, 2001, p. 75.
Carta de 10/11/1924. In: Lio do amigo, cit., p. 23.
'* Carta sem data. In: Ibidem, p. 43.
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 335
" Cf. Sandra Jatahy Pesavento. Histria e histria cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2003.
Cf. Lucien Boia. Por une histoire u imaginaire. Paris: Belles Lettres, 1998.
Essas idias esto discutidas em Alain Corbain. Histoiren ciu sensible; entretiens avec Gilles
Heur. Paris: La Dcouverte, 2000, pp. 68-71 e em Sandra Jatahy Pesavento. Palavras para crer,
imaginrios de sentido que falam do passado. Nuevo Mundo Mundos Niievos, n." 6, ano 2006.
Disponvel em: <http://vvww.nuevomundo.revues.org/document99html>).
336 mnica pimenta velloso
O sentimento de religiosidade
Ibid.
Ibid., p. 3.
Cf. Ariette Farge, op. cit.
Cf. Eduardo Jardim de Moraes. Mrio de Andrade, a morte do poeta. Rio de Janeiro: [s.n.],
2005, pp. 82-3.
338 mnica pimenta velloso
Fique sabendo duma coisa, se no sabe ainda: com essa gente que se
aprende a sentir e no com a inteligncia e a erudio livresca. Eles que
conservam o esprito religioso da vida e fazem tudo sublimemente num ri
tual esclarecido da religio.^'
Mrio conta ao amigo uma cena de rua, no Rio de Janeiro, que muito o
impressionara, inspirando-o a escrever um poema: "Carnaval Carioca". Teria sido,
a partir desse fato, que conseguira perceber e entender o sentimento religioso.Conta
ele a experincia:
Foi [. . .] um fato que assisti em plena Rio Branco. Uns negros dan
ando samba. Mas havia uma negra moa que danava melhor que os ou
tros. Os jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade mas
ela era melhor. S porque os outros faziam aquilo um pouco decorado,
maquinizado, olhando o povo em volta deles, um automvel que passava.
Ela, no. Danava com religio. No olhava pra lado nenhum. Vivia a dan
a. E era sublime.^"
Da mesma forma que a mulher vive o samba, no seu corpo, Mrio vivncia
a cena, tentando traduzi-la na escrita, endereada ao amigo. Num lance de intui
o, percebera a uma idia da brasilidade. O ritual da dana consegue ensinar o
que os livros jamais lhe haviam ensinado: a felicidade.^'
Para Mrio, os intelectuais, alm de exercerem a funo crtica, deveriam,
tambm, viver as sensaes. No ser apenas "inteligente de cabea", tendo a inteli
gncia mobiliada francesa, como alertava Drumond. Era necessrio viver e
evocar as sensaes vividas na escrita.
Os paradigmas epistemolgicos do sculo XIX, baseados no ceticismo, teriam
ocasionado a fadiga e o cansao intelectual. Da o apelo, que faz ao seu amigo
Carlos Drumond, para que no veja mais o Brasil pelos olhos pessimistas de
Anatole France. Recomenda: " Seja ingnuo, seja bobo, mas acredite que um
sacrifcio lindo".^^
Retomando a metfora da rvore h, ainda, uma outra questo que gostaria
de abordar. O simbolismo cclico e sazonal do tempo, a, subtendido: tempo de
Carta de 10/11/1922. In: Lio do amigo, p. 22.
Ibidem
" Ibidem, p. 24.
Ibidem.
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 339
Essa seria uma outra idia, da imago mundi, representada pela verticalidade:
orienta, de maneira irreversvel, em direo a um devenir, humanizando-o. H
todo um messiansimo subjacente ramagem e folhagem; toda rvore que frutifica
e floresce uma rvore de Jess. H uma promessa de redeno, triunfo e otimis
mo. Mas, h, tambm, uma ambivalncia que percorre essa imagem. Freqente
mente, a redeno messinica e a ascenso se fazem acompanhar de um movi
mento descendente e de luta csmica.^
Se o projeto esttico de Mrio apontava na direo de um sentido ascensional,
devenir cheio de otimismo, ao mesmo tempo, mostrava o seu amargo ceticismo e
sentimento de descrena em relao ao pas. Na realidade, esse sentimento de
ambivalncia atravessa toda a sua obra, fazendo-se presente, muitas vezes, na es
crita cotidiana das cartas. O seu pensamento repousava sobre uma base filosfica
dualista: a oposio de impulsos formais e sensveis.^^
Nas cartas essa ambivalncia transparece, mais claramente, quando Mrio
discute a questo da amizade. Esse ponto ser discutido mais adiante.
Nas narrativas mtico-simblicas sobre a rvore, h uma questo de funda
mental importncia: o envolvimento visceral entre a rvore e os seres humanos.
Ambos possuiriam uma natureza vertical, ascensional. em funo dessa per
cepo que se verifica a antropomorfizao da rvore. Essa configurada como
totalidade psicofisiolgica da individualidade humana. O tronco representa a in
teligncia, as cavidades interiores os nervos sensitivos, os galhos as impresses e
as folhas e frutos as boas e ms aes.^^
Por meio dessa imagem potica, podemos configurar uma dinmica na es
crita de Mrio de Andrade em que se interligam e interatuam os aspectos inte-
lectivos, sensitivos, perceptivos e as prticassociais, expressa pelasaes.
" Ibidem.
" Carta de 16/10/1925. In: Ibidem, pp. 59-60.
Cf. Gilbert Durand, op. cit., p. 398.
"" Eduardo Jardim de Moraes, baseado na doutrina filosfica de Schiller, sobre a constituio
humana, observa que essa tenso atravessa a vida e obra do autor (Cf. Eduardo Jardim de Moraes, op.
cit.
340 mnica pimenta velloso
Para um "sonhador de palavras",^ como era Mrio, essa poderia ser uma
imagem metafrica e tradutorada brasilidade.
O seu projeto de"arte ao" inclua os intelectuais comoa basesustentadora
e tradutora (tronco) assegurando a comunicao com o conjunto, composto pe
las camadas populares, desempenhando essas o papel de essncia, percepo sen
svel da brasilidade (interiores). As aes (frutos e flores) seriam efetivadas pelos
intelectuais a partir da sintonia vital com o popular.
Mas vamos, agora, retomar a metfora da rvore, desdobrando-a em uma
outra direo: o fenmeno da amizade.
das palavras sobre a pgina. Inclui a capacidade de visualizar as palavras, por meio
de imagens, assim, tambm, como escut-las. Nas cartas de Mrio de Andrade
ntida essasensibilidadepara percebera interveno dos sentidos, moldando e orga
nizando a escrita. Ao comentar as poesias de Carlos Drumond e de Manuel Bandei
ra, escuta, com ateno, a expresso rtmica e a vibrao de cada palavra no texto.
Observa a importncia do toque nas teclas, criando palavras. De uma m
quina, "bem limpinha e azeitada", sai, quase sempre, uma escrita que uma
boniteza, observa."*- Sente, tambm, o "[.. .] reflexo mecnico / dos sentimentos
torturados / Pressa, muita pressa / 200palavras por minuto"."*^
Mas recorrendo visualidade, seguramente, por meio das palavras-ima-
gens, que Mrio ir compor a arquitetura potica do seu texto.
Essa antropologia dos sentidos, que conjuga audio, tato e viso, apresen
ta-se como uma das bases inspiradoras da histria das sensibilidades.'*'' Sensibili
dades podem ser afetadas pela mudana dos cdigos estticos de uma poca. Mas
vamos por partes.
Mediante o seu projetode"arte-ao", Mrio tentavajustamente isso: mudar
osvalores do cdigo cultural vigente, criando asbases de uma esttica brasileira. J
vimos que esse projeto, estruturado emtornodeumarazo organizadora, demanda
va, tambm, sentimentos religiosos, tais como a valorao do sublime e a devoo.
Nas cartas, freqentemente, Mrio se queixa das disperses da vida cotidia
na, que acabavam o levando disperso: "[. . .] quero arranjar um pouco de lar-
gueza pra viver mais interiormente"."*
Asua prpria sensibilidade afetada pelos valores do cdigo esttico, que
demandam ao intelectual disciplina e concentrao de esforos."***
com os amigos que Mrio compartilha essa luta interna de sentimentos:
A poesia "Mquina de escrever" est na carta de Mrio, enviada a Anitta Malfatti. In; Batista,
1989, p. 53.
Ibidem.
Cf. Alain Corbin, op. cit.
Carta de 8/5/1926. In: Lio do amigo, cit., p. 78.
Cf. Alain Corbin, op. cit.
Carlos Drumond de Andrade. Lio do amigo, cit., p. 78.
342 mnica pimenta veiloso
Mrcia Abreu
Universidade Estadual de Campinas
Esse trabalho parte do projeto temtico "Caminhos do Romance no Brasil: sculos XVIII e
XIX", que conta com apoio da Fapesp e do CNPq. Resultados das pesquisas realizadas no projeto
esto disponveis no site <wvm.caminhosdoromance.iel.unicamp.br>, onde se encontram tambm
romances raros dos sculos XVIII e XIX em verso digital.
' Nicolas Edme Rtif de La Bretonne. nti-Justine. Trad. Marina Appenzeller. Porto Alegre:
L&PM, 2005, p. 16.
^ Martha Woodmansee. The Author, Art, and the Markct Rcreading the History of Aesthctics.
Nova York: Columbia University Press, 1994, p. 24.
narrativas e imagens em romances licenciosos 345
girava com minha leitura, eu no fazia nada alm de ler. Meu mestre me
observava, me surpreendia, me batia, tomava meus livros. Quantos volu
mes foram rasgados, queimados, atirados pelas janelas! Quantas obras fica
ram incompletas na Tribu!^ Quando eu j no tinha mais com que lhe pa
gar, eu dava a ela as minhas camisas, minhas gravatas, meus andrajos; meus
3 sois de gratificao todos os domingos lhe eram entregues regularmente.
[. . .) A leitura me afastava de qualqueroutra atividade. Inteiramente aban
donado ao meu novo gosto, eu no fazia nada alm de ler [. . .] Meu cora
o batia na impacincia de folhear o novo livro que eu tinha no bolso; eu o
tomava assim que me via s [. . .] fora de brigas, de golpes, de leituras
furtivas e mal escolhidas, meu humor se tornou taciturno, selvagem; minha
cabea comeou a se alterar, e eu me tornara uma pessoa verdadeiramente
intratvel.^
A relao com a leitura mantida tanto pelo jovem quando por seu mestre
parece semelhante que se manteria hoje com uma droga poderosa. Para afast-lo
doslivros, o mestre o espionava, o surrava, tomava-lhe oslivros para rasg-los, quei
m-los, atir-los longe. Para obt-los, o rapaz era capaz de qualquer sacrifcio, des
pendendo com issotodo o seu dinheiro e parte de seus bens.A leitura, uma "paixo"
que em breve se tornou um "fiiror", mobilizava seu corpo, fazendo com que seu
corao batesse acelerado, sua cabea girasse e todo seu modo de ser se alterasse.
Uma atividade com to extraordinrio impacto individual e social no po
deria deixar de mobilizar a ateno de alguns dos mais importantes letrados eu
ropeus, que produziram dezenas de livros e milhares de pginas buscando com
preender os sentidos e os efeitos do contato com os livros. Ler e no sofrer
nenhuma alterao era uma idia inconcebvel, j que se tinha certeza de que a
experincia da leitura jamais seria incua.
Um tipo particular de livro parecia causar maior inquietao: os livros de
prosa fccional que, poca, eram denominados como novelas, histrias, contos,
narrativas picas em prosa ou, simplesmente, romances. Sua extraordinria difu
so no sculo XVIII causou grande agitao no mundo das Letras. Concebidos ao
arrepio dos preceitos retrico-poticos que regulavam a produo das Belas-Le-
tras e destinados a leitores pouco instrudos, eram vistos como um divertimento
' Para uma discusso a respeito da reao aos romances nos sculos XVIII e princpio do XIX
ver: Mrcia Abreu. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras/ALB/Fapesp, 2003; e Sandra
G. T. Vasconcelos. A formao do romance ingls: ensaios tericos. Livre-Docncia. So Paulo:
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, 2000.
Jean-Baptiste Massillon era professor oratoriano e foi um clebre orador. Era membro da
Academia Francesa de Letras e bispo de Clermont. Era admirado por Voltaire pela elegncia de seu
estilo ("Catalogue de Ia plupart des crivains franais qui ont paru dans le Sicle de Louis XIV, pour
servir Thistoire littraire de ce temps". In: Le sicle de Louis XIV, 1751). D'Alembert escreveu um
"loge de Jean-Baptiste Massillon, vque de Clermont", o qual foi publicado como prefcio pri
meira edio de seus Sermes feita em 1745 {Oeuvres Compltes de Massillon, vque de Clermont. A
Paris, chez Raymond Libraire, 1821). Massillon nasceu em 1663 e faleceu 1742.
' Massillon. Discours indit de Massillon, stir le danger des mauvaises lectures, suivi de plusieurs
pices intressantes. Paris: Beauc, 1817.
narrativas e imagens em romances licenciosos 347
" "Sans doute que les effets de ces livres ne se font pas sentir rheure mme; mais pour tre
tardifs, ils n*en sont que plus terribles: c'est un poison lent qui coule dans les veines, ronge in-
sensiblement les entrailles, et finit par les dvorer entirement; c'est un feu qui couve sous Ia cendre,
et qui ne tarde pas se transformer en un vaste incendie dont rien ne pourra arrter Ia fureur",
Massillon, op. cit. Traduo minha.
* Robert Darnton. Sexo d o que pensar. In: Adauto Novaes (org.). Libertinos e libertrios, s.l.:
MinC/Funarte, p. 25.
348 mrcia abreu
" "pourrions-nous esprer de conserver notre coeur pur et intact, en lisant ces livres o tout r-
veille et inspire ia volupt, o des peintures impures, des images iubriques enflamment les dsirs, ex-
citent les sens, rvoltent Ia chair; o rinfamie des actions rpond Tinfamie des paroles; o souvent
Tart des gravures ajoute au scandale des aventures? (. ..] A force d'arrter vos regards sur des images
obsc-nes, le coeur finit par se gter. Ia pudeur ne combat plus, et cesse de s'effaroucher. Enhardis
(sic) vous-mmes par les maximes infames de vos livres, vous secouez le joug, vous vous abandonez
Tempire des sens; rien ne vous arrte, vous n'avez plus d'autre frein qu'un instinct brutal, dautre
rgle que vos dsirs, d'autre occupation que d'assouvir (sic) vos passions. Que devient Thomme alors,
mon Dieu! livr toute Ia fureur de ses penchans, tous les dsordres de son imagination Massillon,
op. cit., p. 8.
" Nicolas Edme Rtif de Ia Bretonne era filho de uma famlia de camponeses relativamente
prsperos. Na juventude, mudou-se para Paris, onde trabalhou como tipgrafo e, em seguida, como
autor de romances. Juntando-se s centenas de "proletrios da literatura" que existiam s vsperas da
Revoluo, passou a publicar praticamente um romance por ano, a partir de sua primeira experincia
La Famille Vertuese (1767). Desde 1775, tornou-se capaz de ganhar a vida escrevendo, rpida e co-
piosamente. Seu gosto declarado pelos bas-fonds parisiense se conjugava com convices virtuosas,
como se v em VAnti-Justine (1798), em que a tematizao da libertinagem se apresenta com uma fina
lidade moral. O livro Monsieur Nicolas, publicado entre 1794 e 1797, se pretende autobiogrfico, mas
mistura a experincia vivida com a fantasia. Rtif de Ia Bretonne nasceu em 1734 e morreu em 1806.
A relao de Rtif de Ia Bretonne com Zefire transcorre entre 1757 e 1758.
narrativas e imagens em romances licenciosos 349
"Mais ce qui va montrer le danger des Livres tels que le Porter-des-Chartreux, Terse-Filosofe,
La Religieuse en-chemise etirst: c*est Trotisme subit et terrible qu'ils exciterent en moi, aprs une
longue abstinence. Un grand Libertin, ce Moiet dont j ai deja parl [. . .] tait venu me voir un
Dimanche matin, que j'tais encore au lit, et m avait aporte le ler de ces Livres, que je n'avais
qu'entrevu chez Ia Masse. Vif, ardent, curieux, je le pris avec transport, et me mis a ie lire dans mon
lit: J'oubliait tout, jusqu'a Zefire. Aprs une vingtaine de pages, j'tais en feu. Manon Lavergne, petite
couturire de Ia rue Notre Datne [.. ] vint [...) m aporter mon linge (. . .] je me jetai sur elle. La
JeunefiUe (sic) ne fit pas une grande resistance [sic] Je repris ma lecture, aprs son depart
Une demi heure aprs, parut CecUe-Decoussi (...) Sans gard pour Ia posicion de cette Jeune-blonde
(elle alait se marier), [.. .] je mis tant de fureur dans mon ataque, qu'effraye autant que surprise, elle
me crut fou, enrag... Elle ceda, aprs s'tre mise mes genoux, pour me flchir. Je repris ma funeste
lecture. . ." Nicolas Edme Rtif de La Bretonne. Monsieur Nicolas ou le coeur humain dvoil. Publi
par lui-mme. Avec figures. Imprime Ia Maison; et se trouve Paris, chs (sic) le Libraire indique au
Frontispice de Ia Derniere Partie. MDCCXCIV. Edio fac-similar publicada por Slatkine Reprints,
Genve-Paris, 1988, pp. 2.167-9. 5.' parte. Traduo minha.
Robert Darnton. Os best-sellers proibidos da Frana pr-revolucionria. So Paulo: Companhia
das Letras, 1998, p. 103.
350 mrcia abreu
" Parecer elaborado por Fr. Jos Malachias a pedido do Conselho-Geral do Santo Ofcio,
mao 41, doe. 22. ANTT. Este e outros pareceres de censores a respeito de livros licenciosos apre
endidos em Portugal e no Brasil foram analisados por mim em "'As mais infames e abominveis'"
obras livros licenciosos dos dois lados do Atlntico. In: Eduardo Frana Paiva (org.). Brasil-
Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no mundo portugus (sculos XVI-XVIII). So Paulo:
Annablume, 2006, pp. 181-200.
Inquisio de Lisboa, Processo n." 14.102, ANTT.
Sobre a circulao de livros licenciosos no mundo luso, ver: Maria Adelaide Salvador
Marques. A Real Mesa Censria e a cultura nacional aspectos da geografia cultural portuguesa no sculo
XVIII. Coimbra: Coimbra Editora, 1963. Maria Teresa Esteves Payan Martins. A censura literria em
Portugal nos sculos XVII e XVIIL Doutorado em Literatura e Cultura Portuguesas especialidade
Histria do Livro. Lisboa: Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, Departamento de Estudos
Portugueses, Universidade Nova de Lisboa, 2001 e Daniel Pires. Introduo. In: Bocage. Obra
Completa - poesias erticas, burlescas e satricas. Porto: Edies Caixotim, 2004, pp. 1-55.
' O autor desse romance parece ser Jean-Charles Gervaise de La Touche, advogado no
Parlamento de Paris, desde 1744, falecido em 1782. A histria de Saturnino, personagem principal da
narrativa, gerou diversos ttulos diferentes e mltiplas edies. Impresso, pela primeira vez, sob o
ttulo de Histoire de Dom B. . ., portier des Chartreux (1748, deux parties in-8."), foi reimpresso diversas
vezes, tanto sob o ttulo de Histoire de Gouberdom (anagrama de Dom Bougre], Portier des Chartreux
(1772, in-8.", 1790, deux parties) quanto como Mmoires de Satumin (1787, deux parties in-18.. 1803,
deux volumes in-18.). Dados sobre edies podem ser encontrados em Jean-Marie Goulemot. Esses
livros quese lem com uma s mo leitura e leitores de livros pornogrficos no sculo XV///. So Paulo:
Discurso Editorial, 2000; em Robert Darnton. Os best-sellers proibidos da Frana pr-revolucionria. So
Paulo: Companhia das Letras, 1998; e em Pascal Pia. Histoire d'un livre traqu, LePortier des chartreux,
augmente de nombreuses pices indites extraites des archives de Ia Bastille. In: Pascal Pia. Histoire
de Dom B., portier des chartreux, crite par lui-mme. Fac-smile da edio de "Paris: La Bibliothque
prive, Le premier Janvier, 1771. Paris: TOr du Temps, 1969.
" Thrse Philosophe, supostamente escrito por Aries de Montigny (ou pelo Marquis d'Argens),
teve uma primeira edio em 1748 e foi fortemente perseguido pela polcia. Os Archives de Ia Bastille
mencionam, a todo instante, interrogatrios e perseguies originadas pelo livro. Aries de Montigny,
comissrio de guerra, foi tido como seu autor e por isso passou oito meses na Bastilha. A parte inicial
do livro refere-se ao caso havido, em 1731, entre o Padre Gerard, jesuta e pregador francs, e Ca-
therine Cadire, bela jovem de dezoito anos originando os episdios que narram a relao entre o
Padre Dirrag e a penitente Eradice, nomes anagramticos. O caso, encaixado nas supostas memrias
de Teresa, deu origem a um dos mais apreciados livros licenciosos do XVllI, diversas vezes publicado
em vrios pases. Ver: Robert Darnton. Os best-sellers proibidos da Frana pr-revolucionria, cit.; Jean-
Marie Goulemot, op. cit.; De Boyer D'Argens. Thrse Philosophe ou mmoires pour servir a rhistoire
du P. Dirrag et de Mlle Erradice avec Vhistoire de Mme. Bois-Laurier. La Haye (a La Sphre) 1748-1910.
Renato Janine Ribeiro. Literatura e erotismo no sculo XVIII francs o caso de "Teresa filsofa".
narrativas e imagens em romances licenciosos 351
In: Adauto Novaes (org.). Libertinos libertrios. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 219-29;
Luiz Carlos Villalta. Tereza Filsofa e o frei censor: notas sobre a circulao cultural e as prticas de
leitura em Portugal (1748-1802). In: Eduardo Frana Paiva (org.), op. cit.
A leitura como forma de "mise en jambes" foi analisada por Goulemot, que observa o fato
de haver cenas de leitura em casas de prostituio referidas em diversos livros, alm de Monsieur
Nicolas, como Margot, a Remendeira, Teresa Filsofa e O Levantar da Cortina ou a Educao de Laura
(Goulemot, op. cit. p. 65).
" Nicolas Edme Rtif de La Bretonne. Monsieur Nicolas ou le coeur humain dvoil. Publi par
lui-mme. Avec figures. Imprime Ia Maison; et se trouve Paris, chs [sic] le Libraire indique au
Frontispice de Ia Derniere Partie. MDCCXCIV. Edio fac-similar publicada por Slatkine Reprints,
Genve-Paris, 1988. Em todas as outras citaes, eu apresentei o original na nota de rodap. Nessa
ficou faltando, por isso acrescento agora:
"Je me mis auprs d'un grand feu, sur une sorte de sofa, et je pris le livre avec figures. Ctait
D.B., que je ne connaissais encore que de nom. Je le lus avec rapidit. J*en tais Saturnin regardant
par une fente de Ia cloison, avec Ia petite Suzette, ce qui se passait dans Ia chambre de Toinette,
lorsque Ia porte s'ouvrit" (5. poca, p. 2007 traduo minha).
mrcia abreu
Histoire de Dom Bougre, portier des chartreux nouvelle ditiou rcvue siir le texte original
augmente de tons lespassages snpprimcs dans loutes les ditiom modcnies. Et precede d'une prface par
Helpey, bibliographe poitevin. Cluny: chez le sacristains des carmes, s.d. Essa e as demais edies
analisadas aqui pertencem ao acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal.
narrativas e imagens em romances licenciosos
mente teria deler mais para entender por que motivo a me tinha os seios expos
tos, e por que a cama havia se quebrado. Para tanto, ele teria de retroceder umas
poucas pginas, chegandoJustamente ao ponto em que Monsieur Nicolas aban
donou a leitura: "no trecho em que Saturnino e a pequena Suzette olhavam por
uma fenda no tabique o que se passava no quarto de Toinette" O que eles viam
pela fenda no tabique era justamente sua me tendo relaes com o Frade. Aob
servao da cena os excitou de tal maneira que os irmos tambm decidiram ter
relaes sexuais. Como se tratava da primeira experincia de Saturnino, houve
alguma dificuldade, o que fez com que a"violncia dos movimentos" fizesse par
tir um parafuso da cama, derrubando os jovens no cho. A me, que estava no
aposento ao lado, ao ouvir o barulho, correu para o quarto do rapaz. Assim como
seus filhos excitaram-se ao v-la com o Frade, ela tambm se excitou ao v-los,
ou, como narrou Saturnino: "[. . .] olhava-nos com olhos animados mais de
lubricidade que de furor"." Desse modo, nosso curioso leitor ficaria sabendo por
que havia uma cama quebrada atrs do Frade. Bastaria ler mais uns tantos par
grafos para saber que a lasciva me seduziu e teve relaes com o filho, divertin-
do-se bastante at que, ouvindo "um estrondo surdo" no quarto ao lado, vestiu-se
apressadamente, mal cobrindo os seios, e foi ver do que se tratava. Nesse momen
to, encontrou seu amante e sua filha na situao que j conhecemos.
A partir da nosso suposto leitor no teria mais dvidas sobre os elementos
presentes na estampa e, se tivessepreocupaes semelhantes s nossas, j teria per
cebido que as imagens podem ser pontos de sntese do enredo. Se ele tivesse to
mado para ler uma edio ilustrada de Teresa Filsofa, o efeito de sntese do enre
do obtido pelas figuras seria ainda mais evidente, pois, em muitas delas se inseriam
pequenas legendas sob as estampas, resumindo o contedo da cena, como por
exemplo: "Teresa, com 9 anos, brinca em um celeiro com meninos e meninas da
sua idade: efeito de um temperamento prematuro", "O voluptuoso padre Dirrag
castiga sua penitente", "Ele sente prazer com isso: propriedade do cordo de So
Francisco" e assim por diante.^"* Mesmo nas edies em que no h legendas, as
" As citaes procedem de uma edio em portugus, a qual segue bastante de perto a francesa,
embora opere algumas alteraes. Intitulada Saturnino, Porteiro dos Frades Bentos, teria sido composta
"na Impresso do Anonimo Brazileiro", em 1842. O Brasil toma parte na obra no apenas na indicao
bibliogrfica com freqncia falsa , mas tambm no enredo, uma vez que Saturnino apresenta-se
como sendo "fructo da incontinncia dos Reverendos Padres Bentos da Cidade do Rio de Janeiro!..."
Na edio firancesa, o narrador afirma ser "le fruit de Tincontinence des Reverends Peres Clestins de
Ia Ville de R". A coincidncia na letra com que principia o nome da cidade e o fato de o romance
estar sendo vertido ao portugus pode ter estimulado o tradutor a definir o nome da localidade como
sendo o Rio de Janeiro. No final do livro, a edio francesa declara que Saturnino tomou o caminho
de Paris, o que, na edio em portugus substitudo por "caminho da cidade do Rio de Janeiro".
Devido s referncias cidade presentes no incio e no desfecho da narrativa, o leitor levado a crer que
as aventuras de Saturnino teriam como cenrio a cidade do Rio de Janeiro e seus arredores e, como
protagonistas, seus religiosos. No obstante, essas referncias nem sequer garantem que se trate de
uma edio feita no Brasil, tendo em vista a prtica de se criar falsas tipografias e editoras assim como
falsos locais de edio na tentativa de burlar a censura e as perseguies policiais. So feitas tambm
pequenas modificaes nos nomes de algumas personagens (Madame Dinville torna-se Hermogenia;
Toinette torna-se Catarina, enquanto Ambroise permanece Ambrsio e Suzon, Suzana). [Annimo].
Saturnino, porteiro dos frades bentos, [s.l.]: Na Impresso do Anonimo Brazileiro, 1842, p. 55.
" Ver Jean-Marie Goulemot, op. cit., p. 168.
narrativas e imagens em romances licenciosos 355
imagens, juntamente com os longos ttulos apostos aos curtos captulos de Teresa
Filsofa, podem produzir resultado semelhante, permitindo que se acompanhe a
narrativa, mesmo sem l-la.-'
Essa caracterstica permite diversos usos do livro e diferentes formas de lei
tura. Mesmo uma pessoa iletrada, ou incapaz de ler em lngua estrangeira, pode
ter interesse em um livro desse tipo, visando observar suas imagens.-^ Um leitor
pouco proficiente pode socorrer-se do auxlio das figuras para melhor compreen
der o enredo; um leitor desatento pode valer-se delas para recuperar informaes
nas quais no prestou ateno (e, no caso de um livro como esses, os motivos de
desateno podem ser bastante bvios) e qualquer um deles, mesmo o leitor mais
instrudo, pode lanar mo das imagens para relembrar o enredo j conhecido
ou, simplesmente, para excitar-se.
Objetos para ler e ver, os livros licenciosos tomam essas duas atividades como
prticas centrais em sua composio. Pode-se dizer que o ato de ver constitutivo
dos romances licenciosos, mesmo quando no h imagens. Eles estimulam e agu
am o voyeurismo que, de uma forma ou de outra, sempre est presente quando
algum toma um romance para ler, uma vez que parte de seu interesse observar
a vida, a intimidade e os pensamentos dos que se movimentam a sua frente. No
caso dos romances licenciosos, trata-se de observar momentos muito especficos
da vida, da intimidade e dos pensamentos de personagens que tm como objetivo
central excitar-se e ter prazer.
Assim, no se trata de um voyeurismo tomado em sentido lato, como gosto
pela observao.Trata-se sim de voyeurismo em sua acepo mais literal, ou seja,
da representao de um "indivduo que experimenta prazer sexual ao ver objetos
associados sexualidade ou o prprio ato sexualpraticado por outros",como ensina
o Dicionrio Houaiss. Criando uma interessante situaode mise-en-abyme, em que
um acontecimento se repeteno interior de outro, os romances licenciosos no ape
nas estimulam o voyeurismo leitor, mas encenam constantemente o das persona
gens: elas espreitam umas s outras, seja por buracos nas paredes e nas fechaduras,
seja escondidas atrsde mveis e cortinados ou de rvores e plantas.^^ Acentuando
" Os captulos recebem ttulos como "Efeito do temperamento de Teresa com a idade de nove
anos. Sua me a surpreende"; "Continuao do efeito do temperamento de Teresa aos nove anos nas
suas brincadeiras com outras meninas e meninos da mesma idade"; "Aos onze anos Teresa posta no
convento e ali faz a sua primeira confisso". (Annimo). Teresa filsofa. Trad. Maria Carlota Carvalho
Gomes. Porto Alegre: L&PM, 1999.
A forte represso circulao desses livros fez que edies em portugus surgissem
tardiamente, no sculo XIX, o que os tornava objetos destinados, sobretudo, a uma elite intelectual,
capaz de ler francs. No obstante, registram-se diversos casos de tradues manuscritas de obras
proibidas, o que revela um interesse mais amplo por esses textos e a relativa ineficcia da censura. A
circulao de manuscritos est atestada, por exemplo, no processo de Jos Anastcio da Cunha, preso
pela Inquisio de Coimbra, em 1778. Ver: Joo Pedro Ferro. O processo de Jos Anastcio da Cunha na
Inquisio de Coimbra (1778). Lisboa: Palas Editores, 1987.
" Para Robert Darnton, o voyeurismo um recurso constante nos romances libertinos: "se
alguma tendncia distinguia essa categoria como um todo, era o voyeurismo. Em todas as histrias de
deboche, as personagens se observavam umas s outras pelo buraco da fechadura, atrs de cortinas ou
de arbustos, enquanto o leitor espiava por cima de seus ombros. As ilustraes completavam o efeito.
Em geral mostravam casais copulando ante o olhar secreto de um narrador ou, mais comumente.
356 mrcia abreu
de uma narradora , que podia estar entregue masturbao, como se convidasse o leitor a fazer o
mesmo. Anjinhos lascivos, postados no alto da ilustrao, com freqncia observavam a cena. A
interao entre imagem e texto multiplicava o efeito de espelhos dentro de espelhos, conlerindc ao
conjunto um ar teatral. O sexo nos livres pltilosophiqiics era rococ e tambm filosfico" Robert
Darnton, op. cit., p. 88-89.
narrativiis e imagensem romances licenciosos 357
Hisioirc le Goiibcrdom, portier des ehiirlretix. CcUc hdition a ctc re\'ue, corrigee & augmcntc
sous Ics yeux du Saint Fere, s.d. Fremiere partie.
358 mrcia abreu
a.if
Embora menos cuidadosa que as demais, a imagem se vale dos mesmos ele
mentos: uma cama, dojs amantes, (fazendo todo o contorcionismo necessrio para
que seus corpos se tornem o mais visveis possvel) e um rapaz que observa. Aqui
tambm o ilustrador deixou sua marca. Talvez mais anticlerical que os outros, o
autor dessa imagem fez questo de deixar claro que o homem um religioso, ao
apresenta-lo ainda vestido com parte do hbito monacal e, principalmente, por
destacar o fato de ele ter seu cabelo tonsurado. Se, nas outras cenas, a proximida
de entre os amantes e o jovem voycur parecia excessiva, aqui se torna quase im
possvel supor que os amantes no se apercebessem da presena do rapaz. Mas,
estando absortos em seus prazeres, talvez eles no o vissem realmente. Entretanto
o leitor dificilmente deixaria de perccb-lo, pois, ao contrrio das outras imagens
no h apenas uma pequena abertura na parede, mas sim uma grande porta, pela
qual se pode ver o moo de corpo inteiro. O ilustrador optou tambm por deixar
muito claro que o prazer do rapaz no se limita a olhar, criando um quadro em
que h no apenas uma, mas duas cenas de sexo.
Nessa mesma edio, a ilustrao correspondente ao momento em que os
irmos observam a me inusitada em relao s demais. Nos livros licenciosos,
em geral, embora as posies dos corpos permitam pensar que os amantes se exi
bem para o leitor, eles se mostram inteiramente absorvidos pelo que fazem e por
seus parceiros, parecendo ignorar o mundo exterior ao quadro. Isso ocorre em
Histoire cie Goubedron e em Histoire de Dom Bougrc.
Saturnino, porteiro cios frades bentos. Pgina 53
narrativas e imagens em romances licenciosos 361
Assim, o jogo dos olhares se torna mais complexo, pois Suzana observa os
amantes enquanto Saturnino, segundo indica o texto, deveria estar examinando
a moa minuciosamente "desejoso ento de experimentar se o exemplo ope
rava, principiei a levantar-lhe as saias, e no achei mais que uma leve resistn-
cia".^ A ilustrao deixa claro, entretanto, que, embora o jovem estivesse debaixo
de suas saias e se masturbasse, ele no olhava para Suzana, mas, talvez, para aque
le que olhava para ele. O jogo do texto e da imagem parece indicar a possibilidade
de que o leitor faa como o rapaz e passeda obser\'aoao ato.^'
Esse jogo de olhares pode ser tambm encenado no interior das imagens
pelo recurso a esttuas voltadas em direo dos amantes com ar malicioso, como
se v nessa cena em que at mesmo Cupido parece um pouco espantado com o
entusiasmo dos amantes.
li
mm
" lAnnimo]. Teresa filsofa. Trad. Maria Carlota Carvalho Gomes. Porto Alegre: L&PM, 1999,
pp. 25-6.
" Ibidem, p. 155.
''' Ibidem, p. 156.
Thomas W. Laqueur. Solitary sex: a cultural history of masturbatiou. Nova York: Zone Books. 2004
364 mrcia abreu
im-v
ti!; -;^V.. 1
A expresso "Aspicit et fulgent. Volt", que encima a imagem significa "(Priapo) olha e (os
casais) brilham".
368 mrcia abreu
^0 H polmica sobre a origem de Priapo. Certas fontes o apresentam como filho de Vnus e
Baco, justificando o tamanho de seu pnis como uma punio da promiscuidade da me, por )uno,
protetora do matrimnio. Outras verses o do como filho de Vnus e Jpiter e explicam o tamanho
de seu falo tambm como punio de Juno, que temia uma criatura que tivesse a beleza da me e o
poder do pai. Ao observar o filho, no momento do nascimento, Vnus teve vergonha de ter concebido
um ser disforme e abandonou-o nas montanhas. Ele foi recolhido e criado por pastores, o que explica
seu carter rstico e humilde. H, ainda, os que o supem filho do mortal Adnis, protetor das plan
taes, assim como Priapo. Joo ngelo Oliva Neto. Falo no jardim priapia grega, priapia latina.
Cotia/Campinas: Ateli/Unicamp, 2006.
" Carlos de Miguel Mora. Os trs castigos de Priapo: o sexo como arma no Corpus Priapeo-
rum. In: A. M. Ferreira (coord.). Percursos de Eros: representaes do erotismo. Aveiro: Associao Labor
de Estudos Portugueses/Universidade de Aveiro, 2003.
As literaturas grega e latina contam com diversos poemas que simulam a fala ameaadora de
Priapo, em tom ertico e bem-humorado. A coleo de poemas pripicos latinos mais extensa o
Corpus Priapeorum, composto por oitenta epigramas em que, em tom brincalho, se toma o deus
como temtica principal. Os poemas simulam terem sido retirados de escritos autnticos encontrados
em jardins ou no pedestal de esttuas do deus. Ver Carlos de Miguel Mora, op. cit. e Joo ngelo Oliva
Neto, op. cit.
narrativas e imagens em romances licenciosos
Fronstispcia dc Lcs phiisirs de rAiuieii Regime, el de tons lcs ages. A Londres, Imprime par
ordre dos Paillards. MDCCXCA'.
" O cavalo alado era um dos smbolos da inspiraijo potica por sua participaro no certarne que
envolveu as Musas e as Piridas, divindades com especial talento musical. Durante o concurso, que de
veria celebrar a que se destacasse por suas habilidades, o monte Melico inchou-se de prazer, amea
ando atingir os cus. Por ordem de Neluno, Pgaso fendeu a montanha com seu casco, devolvendo-a
a seu tamanho normal e fazendo jorrar a fonte Hipocrene, que, desde ento, tambm se tornou smbolo
da inspirao potica.
mrcia abreu
T HKRKSi:
I^IIJJ.OSOJPIJE
r:" PARTiK
av-cc jE^ures
dem ser lidos se no com uma s mo".^^ Mal sabia a senhora que esses so livros
que se lem, e se escrevem, com uma s mo.
Ao levar ao extremo os procedimentos romanescos e ao suscitar efeitos de
leitura bastante concretos, como os experimentados por Monsieur Nicolas ou por
Teresa, os romances licenciosos fornecem um bom ponto de observao, pois ne
les tudo amplificado. Eles so um caso-limite que pode tornar mais fcil perce
ber como se compreendia a leitura e a escrita de romances, bem como observar o
papel desempenhado pela fico no sculo XVIII.
"ccs dangereux livres qu'une belle dame de par le monde trouve incommodes, en ce qu'on
ne peut, dit-elle, les lire que d'une main". Jean-Jacques Rousseau. Confessions, Livre Premier (1712-
1728), Librairie Gnrale Franaise, 1963, pp. 72, 73, 74. 1 edio 1782 (primeira parte) e 1789
(segunda parte).
MALDITOS TIPGRAFOS'^
Nelson Schapochnik
Universidade de So Paulo
" Apud Da imprensa iiteraria no Brasil. Carta a Francisco Ferreira Soares. O Futuro, n " 7 15/
12/1862, p. 218.
378 nelson schapochnik
Ele deve evitar de ter um tom de superioridade para com aqueles que
fazem trabalhar em sua casa.
de seu deverde poder falar com todos,e deve dar a mesma ateno e
amenidade em suas relaes com os oficiais.
Como uma tipografia um lugar digno de curiosidade, digno de ser
visto, as oficinas devem conservar-sesempre limpas.
Como tambm um lugar onde se trata muitas vezes trabalhos im
portantes, que reclamam discrio e assiduidade, o diretor d ordens a fim
que ningum possa entrar na tipografia para visitar as oficinas ou os oficiais
sem sua permisso; de resto, o diretor tem o direito de estabelecer qualquer
regulamento de ordem que ele julga conveniente de ser bem desempenhado.
Ele no pode contudo, constranger os oficiais seno a coisas legtimas
e racionais. Ele no pode torn-los responsveis seno naquilo que especial
mente lhes diz respeito.
Os interesses gerais e particulares, e tudo aquilo que convm pros
peridade da tipografia so de sua competncia.
' Ren Ogier. Manual da Tipographia Brasiliense. Rio de Janeiro: Typ. e Ed. R. Ogier, 1832, p.
214.
malditos tipgrafos 379
Ele o rbitro nato das contestaes que podem ter lugar entre os oficiais
relativamente obra. Ele deve ter a mo a que os trabalhoscomecem, sejam
suspensos, tornam a comear, e cessem todos a uma hora fixa, igual para
todos os empregados da casa, sem distino de grau, de oficiais por obra, de
oficiais por jornal,e a que cadaum semantenhaassiduamente em seu posto.
Por sua vez, aos aprendizes era solicitado um grau de instruo elementar,
condizentecom funes que este trabalhador poderia exercer na oficina.
O descompasso entre aquilo que era prescrito como a meta de uma "tipo
grafia brasiliense" e a realidade precria da sociedade carioca no deixavam de
indicar uma soluo estratgica de Ogier e dos demais livreiros-impressores para
ocupar o "lugar de uma tradio tipogrfica ausente". Conforme apontou Jussara
Menezes Quadros, diante de "concorrentes entregues ao amadorismo de prticas
improvisadas e irregulares, eles souberam antecipadamente impor regras hierarqui-
zadas para o exerccio das funes de uma arte, inspiradas num corporativismo
ainda presente mas em declnio no mercado do livro europeu", mas que lhes con
feriu uma posio de destaque e, no menos importante, nobilitao. Ao mesmo
tempo, "na ambivalncia de situarem-se entre o favor e a ousadia empresarial,
desorganizao do campo do impresso reagiram com a adoo de modelos pro
dutivos modernos, introduzindo novas mquinas e tcnicas e procurando apro
ximar as oficinas de um funcionamento administrado"."
Senhor doutor, disse o mecenas, eu nesta casa sigo um dos trs siste
mas com os manuscritos que me apresentam; ou compro-os por preo que
parece razovel, ou imprimo-os por conta de ambos, isto , para dividirmos
os lucros, deduzidas as despesas. O terceiro sistema, mais usual e prprio
desta casa, publicar as obras por conta e risco dos seus autores; e quando
me encarregam da venda, levo uma pequena comisso pelo meu trabalho.
Agora, senhor doutor, no posso comprar nem publicar de sociedade o seu
romance, porque me acho j no desembolso de no pequenas quantias; s
me resta o papel de mero impressor, e nesta qualidade ponho-me s suas
ordens."
Quintino Bocayuva. Estudos criticas e litterarios. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1858, p. I.
Ibidem, pp. X-XI.
malditos tipgrafos 385
1844 10 15 13
1845 10 -
18 17
1846 11
20 16
1849 14
22 23
1850 15
21 26
1852 14
21 22
1853 14
19 26
1855 12 -
19 25
1857 13 3 23 26
1858 14 5 25 26
Pode parecer coincidncia, e talvez o seja, mas o fato que, neste mesmo
momento de organizao dos tipgrafos, Manuel Antnio de Almeida, um "de
serdado da fortuna" como o seu amigo Bocaiva, dirigia a Tipografia Nacional.
Segundo o seu bigrafo, ele recebia um salrio de 800 mil ris e mais outros 400
de gratificao,importncia essaque "daria apenas para no morrer de fome". Em
funo do cargo de que estava investido, ele"recebia quase que queixas dirias do
chefe das oficinas sobre um rapaz aprendiz de tipgrafo cujo trabalho no ren
dia, pois largava constantemente a ocupao, para ir ler nos cantos pouco fre
qentados da oficina. O rapazola foi afinal chamado ao gabinete. M. A. Almeida
simpatizou-se com ele e informou-se da sua vida. Soube que tinha um salrio
nfimo, comia mal, morava mal, dormindo no raro nos bancos duros da oficina.
Viu que se tratava de "algum" que precisava ser protegido e protegeu-o, no s
usando da sua posio de administrador, como honrando-o com sua amizade.
Apresentou-o a Pedro Lus Pereira de Sousa, a Francisco Otaviano e Quintino
Bocaiva".^'
O tal rapazola no era ningum mais, ningum menos que o jovem Ma
chado de Assis, que no perodo de 1856-1958 foi iniciado nas artes tipogrficas.
Decerto, esses anos de formao no foram totalmente desprezveis e podem ter
contribudo para uma percepo mais aguda das intervenes de compositores,
impressores, revisores, encadernadorese editoresno impressoe, no limite, na pr
pria operao da leitura e da escritura. Nesse sentido, no parece equivocado afir
mar que, em algumas crnicas. Machado de Assis encena de forma metalingstica
transposies do fazer tipogrfico no fazerliterrio.
Na condio de operador da linguagem, ele tinha muita clareza de que, en
tre a intencionalidade do escritor e a recepo do pblico-leitor, postavam-se os
mediadores que transmutavam as tiras de papel almao caligrafadas em colunas
diagramadas e impressas nos jornais e revistas. Por isso, ele advertia para os peri
gos dos erros tipogrficos:
Machado de Assis. Dirio do Rio de Janeiro (17/7/1864). In: Idem. Chronicas, v. 2. Rio de
Janeiro: W. M. Jackson, 1938, p. 50.
" Machado de Assis. Dirio do Rio de Janeiro (20/6/1864). In: Ibidem, pp. 27-8.
388 nelson schapochnik
Pelo menos em parte, as razes para os elogios aos editores podem ser en
contradas no texto que marca a sua interveno como crtico na seo "Semana
Literria" do Dirio do Rio de Janeiro^ em 1866. A passagem longa, mas vale
acompanhar o raciocnio que legitima e justifica os bons olhos do crtico para
com os editores.
Cf. afirma Jean-Marie Goulemot: "O gnero do livro, o lugar da edio, as crticas, o saber
erudito, nos colocam em posio de escuta, em estado de recepo. Lemos Gailimard, ditions de
Minuit, diferentemente: o que significa que a reputao pblica dessas casas prepara uma escuta: do
severo ao razovel, do srio ao enfadonho, o sentido j est dado". Jean Marie Goulemot. Da leitura
como produo do sentido. In: Roger Chartier (org.). Prticas da leitura. So Paulo: Estao
Liberdade, 1996, p. 113.
" Machado de Assis. Dirio do Rio de Janeiro (3/1/1865). In: Idem. Chronicas, v. 2. Rio de
Janeiro: W. M. Jackson, 1938, pp. 282-3.
malditos tipgrafos 389
^ Faustino Xavier de Novaes. Cartas de um roceiro. Rio de Janeiro: Typ. Perseverana, 1867, p. 3.
Ibidem, p. 276.
malditos tipgrafos 391
Queira voc recomendar aos seus tipgrafos que tenham muito cui
dado na composio da palavra busto: a troca de uma letra e uma ligeira
transposio podem, sem tirar a semelhana ao retrato, dar-lhe feies di
versas das que tm. . .
(...]
No sou de tmpera rija, no acamei, e desta intrepidez (no vo tais
amigos escrever estupidez) resultou o aumento do mal.
[...]
Eu tive a cndida inocncia (assim necessrio o maior escrpulo, se
me escreverem estas duas palavras com iniciais maisculas, ficar o pbli
co sabendo que tive em casa duas mulheres).
[...]
Na manh do dia seguinte, depois que me benzi, entreguei-me lei
tura (cuidadinho, no escrevam tortura) dos jornais.^
de l para c, vai fugindo o tempo, que necessrio espaar para trs, visto
queo programa no consente que se espace para diante.^^
Em se tratando de um autor que j gozava de alguma reputao quando
aportou no Brasil e que aqui continuou a trilhar pelos caminhos das letras e do
jornalismo, sua indignao com o estado da arte eventualmente se exacerbava e
logo era incorporada ao texto. O recurso ao exagero era uma bvia estratgia que
contribua ainda mais para o clima de zombaria empregado na correspondncia,
" Faustino Xavier de Novaes. Chronica. O Futuro, n." 2, 1/10/1862, pp. 71-2.
Idem, 1867, op. cit., p. 75.
Cartas de um roceiro, cit., p. 76.
malditos tipgrafos 393
* Jos de Alencar. Como e porque sou romancista. In: Idem. Obras completas, v. 1. Rio de
Janeiro: Aguilar, 1959, pp. 120-1.
Ibidem, pp. 117-8.
394 nelson schapochnik
De acordo com Alencar, essa nova edio foi beneficiada pelas intervenes
do autor que retificou passagens, corrigiu o texto, tudo isso de uma perspectiva
Ibidem.
Ibidem.
396 nelson schapochnik
que, em ltima instncia, deveria zelar pela coerncia dosistema de notao elei
to pelo escritor.
Machado de Assis. Ilustrao Brasileira (15/5/1877). In: Idem. Chronicas, v. 3. Rio de Janeiro:
W. M. Jackson, 1938, pp. 220-21.
TENHA MODOS! A CORRESPONDNCIA EM MANUAIS
DE CIVILIDADE E ETIQUETA (ANOS 1920-1960)*
prprio texto dos manuais, o objeto que comunica o texto e o ato que o apreende.
Em outras palavras, o estudo da relao prtica que liga quem escreve, os supos
tos leitores a quem escreve e os leitores efetivos, que no ato da leitura produzem
as significaes do texto, de tal monta que pode ser at mesmo inatingiveL'"* H
uma significao mvel das noes expressas pelos manuais, variando segundo o
estado social dos leitores, seus repertrios de leitura, suas relaes com outros tex
tos, seus lugares de utilizao, os gestos e usos sociais que lhes so possveis.
Os manuais de civilidade eram considerados, portanto, vetores de sistemas
de valores, erramentas para a consolidao das formas e dos cdigos morais e
sociais. Eles compunham-se de inmeros conselhos, regras precisas e orientaes
de conduta pessoal, moral e social cujo objetivo era transmitir e ensinar atenes e
cuidados que cada indivduo deveria dirigir a si mesmo, no espao pblico e priva
do. A civilidade , ainda hoje, distintiva e fonte para se compreender uma gramtica
que ordena a vida em sociedade em um conjunto de conselhos de como portar-se
"[. . .1 sempre enunciada como modo de dever ser, a civilidade visa transformar
em esquemas incorporados, reguladores, automticos e no expressos das condu
tas, as disciplinas e censuras que ela enumera e unifica numa mesma categoria".'"
No Brasil, numerosos manuais de civilidade
e etiqueta j no final do sculo XIX, foram edita
dos e divulgados, principalmente quando a elite
agrria brasileira se mudava para as cidades e uma
nova burguesia ocupava espaos. O mais famoso (e
W? I I. Ki^iuriir
provavelmente
, T
mais antigo)
1
manual chamava-se
Cdigo do Bom Tom-, de autoria do cnego portu-
*?OM-TOM^ gus identificado apenas como J. I. Roquette, pu
blicado em 1845 (j em sexta edio em 1900).
Relanado em 1998, este manual introduziu regras
de como se comportar em festas, eventos da socie
dade, artes de bem viver, inspirado em manuais
franceses. Sendo assim, as prescries contidas nes
ses livros e supostamente postas em prtica por ca
madas mais amplas da populao urbana, j esta
riam suficientemente interiorizadas no primeiro
quarto do sculo XX.
Para fins dessa pesquisa, montamos um acer\'o desses materiais comprados
em sebes, outros doados por amigos e conhecidos, que totaliza at o momento
cerca de cinqenta exemplares."'
Cf. Rogcr Charticr. Leituras e leitores na Frana ilo Antigo Reginw, cit., p. 48.
M. Stophanoii. Sade, higiene e civilidade em manuais. In: /// Congresso lirasilciro de Histria
da ldiieao, 2004, Curiliba/PR. A Educao Escolar em Perspectiva Mistrica. Curitiba/PR: Universi
tria Champagnal, 2004.
Roger Cluirtier. Leituras e leitores na Frana do Antigo Regime, cit., p. 48.
' Dispt>nveis no NEH {Ncleo de Estudos Hislricos)/Udcsc, adquiridos com apoio das bol
sistas Cristiane Cecchin e Daniela Queiroz Campos. Outra parte encontra-se na UFRGS sob guarda da
Prol." Dr/ Maria Stephanou, integrante do Projeto.
402 maria teresa santos cunha
A Proposta Curricular da Escola Normal Catharinense, desde 1892 continha aulas de Deveres
Cvicos e Deveres Morais (ver M. A. S. Schaffrath. A proposta curricular da Escola Normal Ca
tharinense de 1892. In: L. Scheibe & M. D. Daros (org.). Formao dos professores em Santa Catarina,
Florianpolis: NUP/CED/UFSC, 2002, pp. 93-111.
" M. M. C. Carvalho. Quando a histria da educao a histria da disciplina e da higie-
nizao das pessoas. In: M. C de Freitas. Histria Social da Infncia no Brasil. So Paulo: Cortez, 1997,
p. 291.
a correspondncia em manuais de civilidade e etiqueta 403
Pequeno Manual de Civilidade. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1932, pp. 13-5 (obras
raras do acervo do Museu da Escola Catarinense/Udesc/SC).
A. C. Gomes (org.). Escrita de si, escrita da histria. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 11.
" A. Vechia & K. M. Lorenz (org.). Programa de Ensino da Escola Secundria Brasileira (JS50-
1951). Curitiba: Editora do Autor, 1998, p. 358.
404 maria teresa santos cunha
" V. S. Blas. Aprender a escribir cartas. Los manueles epistohres enIa Espana contempornea (1927-
1945). Gijn (Asturias): Trea, 2003.
R. Chartier. La Correspondance. Les nsages de Ia lettreati XIX sicle. Paris: Fayard, 1991, p. 33.
Agradeo a gentileza do Prof. Dr. Karl M. Lorenz, da Sacred Heart University, em Fairfield,
Connecticut (EUA) pela ajuda inestimvel na coleta de dados sobre a autora desse manual de
civilidade.
a correspondncia em manuais de civilidade e etiqueta 405
nacionalidade francesa. H uma breve referncia que indica o ano de 1872 como
o de seu nascimento no havendo qualquer indicao sobre seu falecimento.
A primeira edio desse manual de civilidade foi publicada na Frana em
1895 e, em 1909, apareceu a primeira traduo em portugus que foi publicada
pela Livraria Editora Guimares 8c Cia.,de Lisboa.-^ Com esse pseudnimo a Con-
dessa publicou outros trabalhos, tais como: Le Cabinet de Toilette d\me Honnte
FemmCy em 1909, sem traduo conhecida para o portugus e o Guia Mundano
das Meninas Casadorasy em 1910, pela mesma editora, em Lisboa. Sua presena
nas bibliotecas escolares catarinenses^' data do incio dos anos de 1930.
Pesquisas indicam queparece mais comum do quese imagina o uso de pseu
dnimo na autoria dos manuais de civilidade. Muito poucos apresentam o nome
completo dos seus autores, preferindo referenci-los com ttulos nobilirquicos
ou eclesisticos, portadores de certa distino e legitimidade em funo do lugar
social de onde escrevem (no caso, aqui, da nobreza). O mais antigo manual em
circulao no Brasil tambm conhecido como sendo aquele escrito pelo cnego
portugus conhecido por Roquette;- e, ainda, a mesma situao se repete no Pe
queno Manual de Civilidade para Uso da Mocidade^ de 1932, editado pela Livraria
Francisco Alves, cujo autor no aparece.
Os estudos de Dauphin^' autorizam a pensar que os autores dos manuais
nobres, clrigos encontram-se, oportunamente, em posio de mediadores para
ajustar as regras de distino social a novas configuraes e a novos receptores.
Num sculo marcado pelos novos usos do escrito, o papel das obras normativas
o de participarda construo de um repertrio que postula uma esttica de com
portamento social. O manual, assim, no somente fruto de iniciativas individuais;
resultado de uma ao coletiva de pessoas que se apresentam como qualificadas
(pelaorigemsocial ou por cargos) para avaliaras necessidades dos outros.
Os autores, em geral, formam um conjunto de pessoas diligentes que se dis
pem a produzir e socializar um saber mais restrito e a prescrever regras, condu
tas e valores que circulam em meios ditos mais civilizados. Um livro como este
em pauta cuja autoria de algum portador de um ttulo de nobreza; cujo tema
versa sobre etiqueta e civilidade e destinado a uma elite desejosa de aparentar
boas maneiras, refora a idia de um engajamento maior dos leitores pela possvel
legitimidade de seu lugar de produo. Acresce-se a isto o fato de que no mundo
aristocrtico, a sociabilidade epistolar um elemento tradicional da vida munda
na e que a nobreza feminina que sabia escrever pretendia oferecer a garantia de
Em livrarias portuguesas foi possvel encontrar a dcima stima edio desta obra, datada de
1968.
" Dados recentes colhidos pela Prof." Dr." Maria Stephanou evidenciam a circulao desse
material em bibliotecas escolares do Rio Grande do Sul, a partir da dcada de 1930.
* Gilberto Freire, em Casa-Grande & Senzala, faz referncias explcitas a este manual: "O autor
de um certo Cdigo do Bom Tom (o cnego Roquette) alcanou grande voga entre os bares e
viscondes do Imprio, os quais passaram a adotar regras de bom tom na criao dos filhos". G. Freire.
Casa-grande & senzala: formao da famlia brasileira sob regime da economia patriarcal. 23.' ed. Rio de
Janeiro: Jos Olympio, 1984, p. 420.
C. Dauphin. Prte-moi ia plume. . . Les manuels pistolaires an XIX sicle. Paris: Kim, 2000.
406 maria teresa santos cunha
sua experincia. Entre as marcas do verdadeiro aristocrata est o manejo gil das
normas do comportamento: um nobre diz o que apropriado, mas tambm anun
cia o verdadeiro para ser seguido.
A contribuio da bibliografia material^ e da histria da leitura^' mostra que
a materialidade de um impresso, o suporte onde ele dado a ler, cria condiciona
mentos sobre os sentidos que ele pode liberar. Assim, as formas do texto dado
pelos editores, o nmero de pginas, o tamanho das letras, moldam possibilida
des de compreenso e recepo.
O Tratado de Civilidade e Etiqueta^ por exemplo, apresenta-se ao leitor sem
ilustraes, em capa simples, com o ttulo escrito em letras maiores de cor preta e
se assemelha aos demais livros, produzidos na mesma poca.^^ Apresenta-se como
um dispositivo textual bastante comum poca da edio, organizado em quatro
partes, a saber: Preliminares Cortesia; Em casa (apresentado em quatro captu
los); Acontecimentos que modificam a famlia (quatro captulos) e Na sociedade
(apresentado em oito captulos), o que permite concluir que o objetivo maior o
de postular e instaurar regras e normas para a vida polida e civilizada que se alme
java na sociedade e que deveriam ser lidas como finas especiarias, em uma rela
o entre a alma, o olho e a mo.
A ausncia de imagens na capa funciona como um protocolo de leitura,
pode-se inferir que a significao passa da capa para o tema, o ttulo centralizado
em letras negras e grandes direciona o olhar e no est ali de maneira inerte: cons
tri tambm o que descreve e o que conta; divulga contedos, produz imagens
retricas e inscreve na sua escrita os efeitosde sua ao.
Cf. J. Hebrard. Por uma bibliografia material das escrituras ordinrias: a escritura pessoal e
seus suportes. In: A. C. V. Mignot; M. H. C. Bastos & M. T. S. Cunha. Refgios do eu. Educao, histria,
escrita autobiogrfica. Florianpolis: Mulheres, 2000, pp. 29-61.
R. Chartier. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. So Paulo: Unesp, 1998.
32 Livros da coleo de romances intitulada "Biblioteca das Moas", editada em Lisboa, na
mesma poca, e que circulavam na Escola Normal apresentavam capas e diagramao bastante
semelhantes. Estudos sobre esta questo foram realizados por M. T. S. Cunha. Armadilhas da seduo.
Os romattces de M. Delly. Belo Horizonte: Autntica, 1999.
a correspondncia em manuais de ci\nlidade e etiqueta 407
Uma carta pode servir para fazer um pedido ou substituir uma visita.
Pode escrever-se n'uma carta tudo o que se no tem ocasio de dizer de Viva
voz. A correspondncia tem um lugarimportante nas relaes sociais e, por
conseqncia, "o saber escrever" faz parte do saber viver.^'*
Uma carta deve ser redigida num papel decente. Quer seja a pequena
folha de papel azulou cor de rosa que a mundana emprega [. . .] ou o papel
reclame adotado pelo fornecedor ou mesmo o bilhete do caseiro/feitor (. . .]
o asseio do papel a primeira qualidade que se exige d\ima carta.
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no exigiam maiores gastos por fazerem parte do material escolar, almde permi
tirem maior conservao. Vrias vezes referiram-se a esse suporte de escrita como
o ideal: "A idia das folhas de arquivo foi tima, poderei escrever at durante a
aula".^^ O asseio, o papel limpo como qualidade principal de uma carta assegura
uma ordem, um trabalho civilizatrioafinando sensibilidades para a ordem, o limpo
e buscando um resultado moralmente eficaz. Ordem, asseio, maneira de usar eram
assim regulamentadas para todos e foram difundidas por textos de vrios matizes,
principalmente nas Escolas Normais que preparavam professores(as) e onde se
ensinava, a partir das civilidades, a leitura, a escrita, a decncia. A noo de decn
cia resumia "o essencial de uma atitude e a expresso das disposies da alma".^^
Escrever uma carta envolvia/envolve um ritual de cerimnias e os atos que
demarcam este ritual expressavam/expressam normas que apontam para o acesso
ao universo escrito. Parece importante registrar que nos comeos do sculo XX,
manter correspondncia era um hbito bem mais regrado, portador de um estilo.
Assim, o estilo tambm recomenda:
^ O feminismo, como movimento social visvel, tem vivido algumas "ondas". O feminismo de
"primeira onda" teria se desenvolvido no final do sculo XIX e centrado na reivindicao dos direitos
polticos como o de votar e ser eleita , nos direitos sociais e econmicos como o de trabalho
remunerado, estudo, propriedade, herana. O feminismo chamado de "segunda onda" surgiu depois
da Segunda Guerra Mundial, e deu prioridade s lutas pelo direito ao corpo, ao prazer, e contra o pa-
triarcado entendido como o poder dos homens na subordinao das mulheres. Naquele momento,
uma das palavras de ordem era: "o privado poltico". Convm lembrar que h discusses sobre a
quantidade de perodos em que se dividiria a trajetria do feminismo. Enquanto algumas autoras, e
entre elas eu me incluo, definem a existncia de duas "ondas", outras autoras, como Ana de Miguel
lvares relacionam trs grandes "blocos" da trajetria do feminismo. Ver: Ana de Miguel Alvares.
Histria do feminismo. Disponvel em: <www.creatividadfeminista.org>. Ver, tambm, Christine
Dephy. Patriarcat (thories du). In: Helena Hirata et al (org.). Dictiommire critique du fminisme. Paris:
PUF, 2000.
* Estas mulheres buscavam rever imagens, mitos e preconceitos, vigentes na sociedade oci
dental que atribuem s mulheres inmeras desqualificaes como de possurem pouca inteligncia,
fragilidade fsica e diversas incapacidades, definindo o lar como seu espao "natural".
^ Cf. Yasmine Ergas. O sujeito mulher. O feminismo dos anos 1960-1980. In: Georges Duby &
Michelle Errot. Histria das mulheres no Ocidente. Porto/So Paulo: Afrontamento/Ebradil, 1995, pp.
583-611.
' tambm desta poca a publicao de pesquisas sobre prticas sexuais. Relatrios destas
pesquisas tornaram-se livros e foram traduzidos para vrias lnguas. A este respeito ver Roselane
Neckel. Pblica vida intima: a sexualidade nas revistas femininas e mascidinas (1969-1979). Doutorado
em Histria. So Paulo: Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. 2004.
uma nova imagem de si: identidades em construo 417
Nenhum aspecto da existncia das mulheres era deixado sem discusso. O pres
suposto era de que o pessoal poltico. Ou seja,"a vida pessoal de cada um poli
ticamente estruturada com lutas viscerais de poder'7
Esta, de acordo com Juliet Mitchell,foi uma prtica "copiada" dos grupos de
"criao de conscincia" realizados entre os camponeses da China pr-revolucio-
nria. Esses grupos realizavam o que se chamava de "expressando amarguras". Os
camponeses da China, "subjugados por mtodos violentos de coero e por uma
misria abjeta, deram um passo adiante ao deixar de pensar que seu destino era
algo natural, pelo nico fato de falar disto em voz alta". Tambm, nos"grupos de
conscincia" realizados pelas mulheres, tomar a palavra e expor suas queixas era
considerado uma forma de criar para si uma nova imagem, exorcizando a "baixa
auto-estima" que costumava vigorar entreelas.
Adaptando o mtodo dos camponeses da China, mulheres urbanas de ca
madas mdias criaram grupos de conscincia que se reproduziram em diferentes
pases e formaram um movimento internacional, expresso em manifestaes, lu
tas por mudanas legislativas, publicao de peridicos que,coincidentemente ou
no, tinham geralmente um ttulo semelhante como: Ns Mulheres (no Brasil)'
Nosotras (no Chile e no Mxico), Nos/Otras (na Espanha), NoiDonne (na Itlia).
Muitos desses peridicos, diziam, eram produzidos por um "Coletivo de Mulhe
res", ou representava um "Crculo de Mulheres". O que se observa, aqui, a refe
rncia a coletivos, crculos, enfim, que lembram a forma como se organizavam
estes "grupos deconscincia".
A organizao dos grupos tinha, como objetivo, "unir as mulheres, para es
tabelecer estreitos laos de amizade e solidariedade entre elas mesmas". Assim, o
objetivo final seria,para esses pequenos grupos, formar "coletividades revolucion
rias". Neste caso, tais pessoas deveriam perceber que, "assim como os problemas
da mulher no so de ndole privada e pessoal, tampouco seria a sua soluo".
Deveriam, ento, passar de uma "autoconscincia pessoal para uma conscincia
degrupo, fazendo a transio do pessoal para o poltico".'
Convm lembrar quegrande partedessas mulheres quetomaram a iniciati
va de se reunir em "grupos de conscincia" tinha participado, juntamente com os
homens, dediversos movimentos sociais que lutavam contra o racismo, pelos direi
tos civis, contra a guerra do Vietn, contra a corrida armamentista. Elas relatam
que, nasreunies desses movimentos sociais, a sua palavra eradesqualificada. Suas
opinies eram desconsideradas. Tornou-se famosa a resposta deum destes lderes
de movimentos sociais que, quando indagado qual era a posio das mulheres no
movimento, respondeu: "A posio das mulheres de bruos"." Era justamente
' Amy Erdman Farrell. A Ms. Magazine e a promessa do feminismo popular. So Paulo: Barra-
cuda, 2004, pp. 37-8.
" Juliet Mitchell. La condicin de Ia mujer. Barcelona: Anagrama, 1977, p. 66.
' Peridico surgido em So Paulo, que circulou entre 1976 e 1978.
Mitchell, op. cit., pp. 63-4.
" Essa infame declarao foi feita por Stokely Carmichael, quando perguntado sobre o papel
das mulheres no SNCC Comit de Coordenao Estudantil Anti-Violncia. Amy Erdman Farrell,
op. cit., p. 36.
418 joana mana pedro
para fugir destas desqualificaes que as mulheres passaram aintegrar grupos nos
quais a fala de cada uma era estimulada equalificada.
Creio que fica evidente, aqui, a constituio de uma identidade, ou seja, a
identidade de "Mulher". E o objetivo era fugir da identidade de "outro", como j
havia denunciado, em 1949, Simone de Beauvoir, ao lembrar que, na sociedade
ocidental capitalista, "O homem o sujeito, o absoluto, ela [a mulher] o ou
tro".'^ Ou, ainda, fazer desaparecer aquilo que Betty Friedan tinha denunciado,
em seu livro publicado em 1963, nos Estados Unidos, como Mstica Feminina}^
Ora, o que esses grupos estavam fazendo, aotomar conscincia dequeo quevivi
am era coletivo, era criar uma nova "imagem de si", diferente da que a cultura,
que ashavia transformado em"outro", havia constitudo.
Nesses grupos, as mulheres puderam reformular a imagem que tinham de
si mesmas, em sua maior parte depreciativa. Reviram preconceitos, esteretipos,
criaram uma identidade da qual queriam orgulhar-se. Criaram "o orgulho de ser
mulher". Entendiam que estavam descobrindo sua "verdadeira identidade".
No Brasil, obtivemos notcias da existncia desses grupos somente a partir
de 1972. Adaptaram a metodologia que haviam aprendido, muitas destas mulhe
res, em viagens aos Estados Unidos e a pases da Europa Ocidental. Nestes grupos,
discutiram vrias etapas da vida, a sexualidade, o casamento, a relao com os
homens. Liam uma literatura que estava sendo publicada no exterior, com pouca
traduo no Brasil. Na poca, no Brasil,a ditadura militar, iniciada em 1964, tor
nava difcil, quando no impossvel, fazer outro tipo de militncia, como o que se
via nos Estados Unidos e em pases da Europa no final dos anos 1960 e nos anos
1970, em grandes manifestaes pblicas.
Assim, foi nesse contexto que em So Paulo, em 1972, Clia Sampaio e
Walnice Nogueira Galvo, de regresso de viagens aos Estados Unidos e Europa,
chamaram algumas pessoas para conversar sobre o novo movimento feminista
com o qual haviam tido contato no exterior. O grupo foi formado por professoras
universitrias ligadas militncia poltica de esquerda, cujasidades variavam en
tre trinta e trinta e oito anos. A maioria delas tinha militado em partidos polti
cos, ou ento, era parenta, filha ou esposa de gente envolvida com a luta de resis
tncia ditadura.'"
Na memria de MariaOdilaLeite da Silva Dias, que fez parte do grupo,cha
mado, de acordo com ela, de "grupo de conscientizao feminista", as reunies
eram feitas todas as semanas na casa de uma pessoa, em rodzio. Nessas reunies,
faziam leituras feministas.' Os livrosque liam tinham vindo na bagagem de vrias
delas que haviam estado, especialmente, na Frana e nos Estados Unidos. Eram,
assim, resultado do movimento feminista, que estava ganhando espao nas ruas e
Simone de Beauvoir. O segundo sexo, v. 1. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1968, p. 10.
" Betty Friedan. A mstica feminina. Petrpolis: Vozes, 1971.
Yasmine Ergas, op. cit., p. 65.
" Maria Odila Leite da Silva Dias nasceu em So Paulo, em 1940. Hoje professora da PUC/SP
e reside em So Paulo. Entrevista realizada em 24/6/2005, em So Paulo, por Roselane Neckel
(transcrita por Veridiana Oliveira).
uma nova imagem de si: identidades em construo 419
Ibidem. . r , . ,
Annete Goldberg. Femintsmo e aiitontansmo: a metamorfose de uma utopia de liberao em
ideologia liberalizante. Mestrado. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 1987, fls. 108-09. Apud
Rachel Sohiet. Defrontando-se com os preconceitos: mulheres ea luta pelo controle do corpo, p. 3. Indito.
.1
Cf Cli Regina Jardim Pinto. Uma histria do feminismo no Brasil. So Paulo: Fundao
cn_i
Perseu Abramo, 2003, pp. 50-1.
Goldberg. Apud Sohiet, op. cit., p. 101
Ibidem.
420 joana mariapedro
[. . .] nos grupos de reflexo voc se mostrava: "eu sou Santinha, eu
sou Jaqueline, eu sou fulana, [...]" Ea gente ia sentindo quais eram as di
ficuldades das outras, quais eram as preocupaes; o qu que voc queria
resolver nesse mundo, qual era a tua busca, qual era o teu sonho. Entende?
Em termos de "voc mulher" O que que tu querias para melhorar a tua
situao no mundo. Foi muito interessante esse perodo e lindo [. . .] Por
que, eu falava pra ti e a tu j trazia uma colega. A no outro sbado tinha
mais quatro mulheres. vidas para falar, paraouvir.^'
Nesse depoimento, convm destacar a forma como Suely pensava estes gru
pos de reflexo. Suas palavras refletem o que grande parteda esquerda brasileira e
internacional pensava desses grupos. E ela justifica a avaliao ao lembrar que
naquele momento, ela estava "mais ligada s lutas da esquerda". E,apesar de Suely
dizer que a princpio no viu utilidade nesses grupos, mais tarde veio a compre
ender a importncia deles, quando viveu um problema no casamento. Ela narra
que, no incio dos anos 1980, seu casamento estava em crise; ela estava, pela pri
meira vez, desempregada e decidiu estudar, fazer o mestrado em histria. O fato
Entrevista com Maria do Esprito Santo Tavares dos Santos. Maria do Esprito Santo Tavares
dos Santos, conhecida como "Santinha", nasceu em Bacabal, Maranho, atua no Conselho Estadual
de Sade do Rio de Janeiro. Foi militante do Partido Comunista Brasileiro e designada por este partido
para participar do movimento feminista no Rio de Janeiro. residente no Rio de Janeiro e foi
entrevistada por Roselane Neckel em 14/2/2005.
22 Entrevista com Suely Gomes Costa. Suely Gomes Costa, nasceu no Rio de Janeiro em 1938,
professora aposentada do Servio Social da Universidade Federal Fluminense, identificou-se com o
feminismo na dcada de 1970, por influncia de Maria do Esprito Santo. residente no Rio de Janeiro
e foi entrevistada por Joana Maria Pedro, em Florianpolis, em 17/2/2004. Entrevista transcrita por
Maise Zucco.
uma nova imagem de si: identidades em construo 421
de estar desempregada f-la perceber o quanto sua relao com o marido era desi
gual. Ela explica melhor:
Ela narra que trabalhava desde dezessete anos, e que tinha independncia
financeira desde muito cedo em relao aos pais, e que, quando casou, manteve
essa relao como marido, a qualfoi quebrada quando perdeu o emprego.
[. . .] eram sucessivas cobranas a ponto por exemplo, de eu ficar to
constrangida quando eu tinha que pedir um dinheiro pra passagem, [. . .]
quando, eu sentia que eu recebia aquele dinheiro, at no gesto, no modo de
dar o dinheiro, eu sentia um gesto de cima pra baixo. No sei se era para
nia minha [. . .]. Mas foi irreversvel, quer dizer, a todo [aquele] papo da
Santinha passou a ter sentido. O choror, que eu achei na reunio, eu disse
no tem choror nenhum, a regra essa mesmo, quer dizer h uma relao
. . . que a gente no percebe se a gente est forte na relao, se a gente est
igual, a gente no percebe, mas se a gente est em situao de desigualdade,
isso aparece.^"*
" Entrevista com Suely Gomes Costa realizada por Joana Maria Pedro, em Florianpolis, em
17/2/2004, transcrita por Maise Zucco.
" Ibidem. .. . - ^ *
Albertina Costa. vivel o feminismo nos trpicos? Resduos de insatisfao So Paulo,
1970. Cadernos de Pesquisa, So Paulo, Fundao Carlos Chagas, n." 66, ago. 1988. Apud Cli Regina
Jardim Pinto. Uma histria do feminismo no Brasil. So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2003, p. 50.
422 joana maria pedro
Branca Moreira Alves & Jacqueline Pitanguy. O que feminismo. So Paulo: Brasiliense, 1982,
pp. 66-7.
Moema Toscano & Miriam Goldenberg. A revoluo das mulheres: um balano do feminismo
no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1992, p. 55. Apud Maria Cristina Athayde. Prazer em conhecer:
Feminismo e sexualidade nas obras de Marta Suplicy. Monografia. Graduao em Histria, UFSC, 2005,
fl. 14.
uma nova imagem de si: identidades em construo 423
na Sua.^ Ainda de acordo com Maria Luiza Heilborn, foi Mariska, a cunhada
de Marhel, quem conseguiu o patrocnio da ONU para realizar o encontro que
ocorreu, em 1975, na sede da ABI, considerado marco "fundador" do feminismo
de "Segunda Onda" no Brasil.-'
O que quero chamar a ateno, aqui, para a reproduo desses grupos, a
partir de pessoas que dele participavam. FlixGuattari, visitando o Brasilem 1982,
chamou este tipo de prtica de organizao em rede, de rizoma.^' E, certamente,
era isto que formavam. Nas entrevistas que fizemos, possvel acompanhar a re
produo desses grupos e os contatos que proporcionavam, em mbito local, na
cional e internacional. Assim, em Santa Catarina, por exemplo, Janine Petersen
identificou, no na dcada de 1970, mas nos anos 1980, dois grupos feministas:
"Amlgama" e"Vivncias", e o primeiro deles funcionava como"grupo de conscin
cia". Este grupo foi formado dentro dos prprios ideais dos grupos de origem nor
te-americana. Foiuma professora que participou de um grupo assim, em Campi
nas, que trouxe para Florianpolis a idia, e formou aqui este grupo.^- Por sua
vez, o grupo de Campinas foi formado por mulheres que tinham participado de
grupos como estes nos Estados Unidos.^- Ouseja: eram a reproduo do quealgu
mas mulheres tinham vivido em outros pases.
Ainda em pesquisa na cidade de Rio Branco, estado do Acre, entrevistei duas
mulheres reconhecidas como feministas, que tambm relataram sua identificao
com o feminismo apartir do que elas chamaram de participao em "grupo decons
cincia" na modalidade de "Linha da Vida".^^ Essas entrevistadas atribuem a Teresa
Mansur, que hoje vive em Vitria, noEsprito Santo, a organizao desses grupos.
O que se pode, ainda, observar, alm da narrativa de identificao com o
feminismo ocorrida com a participao nestes grupos presente em vrias en
trevistas , a apropriao da prticade grupos de conscincia, sua transforma
o e adaptao. Em So Paulo, por exemplo, Maria Amlia de Almeida Teles nar
ra que coordenou grupos de reflexo em dezoito clubes de mes. Ela ia para os
bairros levando exemplares do peridico Brasil Mulher^^^ e os discutia comas mu
lheres. "Eu era amiga do padre. O padre deixava, e ia l, porque [eu] tinha muito
controle. Ele dizia vai l, Amelinha, discutir com as mulheres, elas gostam".^^
Entrevista com Maria Luiza Heilborn citada por Annete Goldberg, op. cit., fl. 101.
Annete Goldberg, op. cit., fl. 104.
Cf. Flix Guattari & Suely Rolnik. Micropoltica. Cartografias cio desejo. 4.' ed. Petrpolis:
Vozes, 1996.
" Trata-se de Julia Givan, professora do Doutorado Interdisciplinar em Cincias Humanas e
do Departamento de Cincias Sociais da UPSC.
" Esse grupo foi organizado por Marisa Corra.
" Essas entrevistadas so Julia Maria Matias de Oliveira e Mara Vidal. Entrevistas realizadas em
5 de maio de 2006, por Joana Maria Pedro, em Rio Branco, estado do Acre.
^ Este peridico circulou entre 1975 e 1980.
" Entrevista com Maria Amlia de Almeida Teles, que nasceu em 6/10/1944, em Contagem,
Minas Gerais. Foi militante do PC do B Partido Comunista do Brasil, presa duas vezes entrou em
contato com o feminismo na cadeia. Participou do movimento de mulheres e divulgou o jornal Brasil
Mulher. Reside atualmente em So Paulo, coordena uma ONG. Entrevista realizada em So Paulo/SP,
em 24/8/2005 e foi transcrita por Veridiana Oliveira, Soraia Mello e Maria Cristina Athayde.
424 joana maria pedro
mundo. Lembra, ento, que a presena dos homens, nas reunies, freava as pala
vras e as iniciativas das mulheres; por isso, era para escapar a esses freios que os
movimentos feministas no aceitavam reunies mistas.^
Uma outra questo importante a ser assinalada que as participantes desses
grupos de conscincia afirmavam que essa forma de discusso inventava uma nova
forma de relacionamento entre as pessoas e o trabalho coletivo. Assim, a poltica
do Movimento de Libertao das Mulheres se baseava no desenvolvimento coleti
vo do trabalho e em evitar o surgimento de "dirigentes", de "porta-vozes". Diziam
que, em vez de uma direo vertical, teriam uma direo horizontal, na qual nin
gum seria a dona da verdade, em que ningum chegaria a "dominar ou a no
participar do tempo permitido para discusses". Nas reunies, no havia lideran
a e, quando havia, era sempre rotativa e apregoada como uma nova forma de
"fazer feminista". Assim, ao trabalhar de forma coletiva e no aceitar dirigentes,
elas recusavam uma "relao competitiva"entre mulheres, diziam, tal como exis
tia na sociedade em que viviam e que repudiavam.^'
Surgiram tambm, na poca, muitas crticas a esses grupos. Eram conside
rados incuos. Diziam que sua falta de hierarquia era, ao final das contas, uma
espcie de autoritarismo sem regras. Dizia-se, ainda, que a autoconscincia orga
nizava muitas mulheres, mas que elas eram organizadas"para nada". Algumas das
que assim criticavam defendiam um ativismo que se configurava em manifesta
es e marchas de mulheres, queima de sutis, criao de centros de ajuda, cuida
dos com a sade."*" Alm de outras, que entendiam que a transformao somente
seria concreta com mudanas legislativas.
Outra crtica sempre presente, como j assinalei, era de que se tratava de
uma espcie de "ch das cinco" de mulheres ricas e ociosas. No mnimo, um des
perdcio de tempo, que poderia sermais bemempregado se destinado para a luta
"maior" e"geral", como, por exemplo, fazer a revoluo socialista. Era esta a prin
cipal crtica da esquerda. No caso do Brasil, alguns grupos envolvidos com a luta
pela anistia e contra a ditadura consideravam tais grupos divisionistas, que, em
vez de somar esforos, estariam promovendo a discrdia nas famlias e no campo
da esquerda.
Uma das histrias de disputas entre a esquerda brasileira e os grupos de cons
cincia foi narrada por Danda Prado."*' Danda diz que organizou em Paris, no
incio da dcada de 1970, um grupo de conscincia com mulheres brasileiras e de
'8 Cf. Franoise CoUin. Nuevo feminismo. Nueva sociedad o el advenimiento de otra. Boletim
Nosotras. Grupo Latinoamericano de Mujeres, a. II, n. 21-22, sept./oct., pp. 9-12,
8' Cf. Juliet Mitchell. La condin de Ia mujer. Barcelona: Anagrama, 1977, pp. 62-3.
O feminismo radical dizia ser o patriarcado o "centro da dominao" na "esfera privada".
Ver, a este respeito: Ana de Miguel. Neofeminismo: los anos sesenta y setenta. Disponvel em <www.
nodo50.org/mujeresred/historia-feminismo3.html>. Acesso em 25/7/2006.
Danda Prado. Yolanda Cerquinha da Silva Prado nasceu em So Paulo, em 24/10/1929. Filha
de Caio Prado Jnior, envolveu-se, por causa do pai, nas lutas contra a ditadura militar. Foi para a
Frana em 1970, com quarenta e um anos e divorciada. L, teve contato com o movimento feminista
francs, formou um grupo de mulheres latino-americanas do feminismo radical, que passou a pu
blicar o jornal Nosotras. Hoje, presidente da Editora Brasiliense.
426 joana maria pedro
outros pases da Amrica Latina, exiladas na Frana. E, entre as mulheres que com
pareceram s reunies do grupo estavam Norma Benguel e Gilda Grilo que, por
causa de uma pea de teatro que fazia crticas ditadura, tinham ido refugiar-se
na Frana. As reunies quinzenais com as mulheres, em formato de grupo de
conscincia, eram realizadas no subsolo de um caf, em Paris.
Os maridos dessas mulheres, ela informa, ficavam muito curiosos sobre o
que estava acontecendo e, principalmente, com a presena de Norma Benguelen
tre elas. Por isso, desciam para o banheiro, que ficava prximo do lugar onde se
reuniam, vrias vezes. Entretanto, o grupo organizado por Danda encontrou srias
dificuldades com os homens que lideravam o grupo de exiladosbrasileiros na Fran
a. Ela foi pressionada por elesa transformar o grupo de mulheres em instrumento
para a realizao de tarefas propostas e controladas pelos homens, lderes dos exi
lados. Como ela se negou a colaborar, eles passaram a exigir que as mulheres se
afastassem do grupo. Chegaram, diz ela, at a ameaar de retirar o apoio financei
ro que forneciam s famlias, se as mulheres continuassem a participar daquelas
reunies."*^ Esta ameaa surtiu efeito, e, assim, muitas das mulheres brasileiras
abandonaram o grupo."*^ Alm disso, diz Danda, eles criaram um outro grupo de
mulheres brasileiras, estas comandadas por Zuleika Alambert.
Evidentemente, este no foi o nico conflito entre os grupos de esquerda e
os grupos de conscincia, ou mesmo entre outros grupos feministas. Destaquei-o
pelo fato de ter uma narrativa maisdetalhada. De maneirageral, estes grupos eram
acusados de elitistas, compostos por pequeno-burguesas, divisionistas e, princi
palmente, antimacho. Ou seja, diziam que no aceitavam homens em suas reu
nies porque eram contra eles, sendo acusadas, em sua maioria, de "lsbicas". Es
sas acusaes remontavam s que perseguiam o feminismo desde o sculo XIX, e
contribuam para reforar o esteretipo de que as feministas eram feias, "mal-
amadas" e que odiavam os homens.
Convm destacar que o "feminismoradical"oriundo desses grupos de cons
cincia afirmava que o principal agente da opresso das mulheres era o homem,
no todos, mas os que se identificavam comos "privilgios da supremacia do pa
pel masculino". E ainda afirmavam "[...] o feminismo radical poltico, porque
reconhece que um grupo de indivduos (os homens) tem organizado as institui
es da sociedade com o objetivo de manter este poder".'*'' Ou seja, a avaliao de
que esses grupos eram contra os homens tinha grande parte do fundamento nos
discursos do feminismo radical.
Lembramos, novamente, que o que essas mulheres estavam constituindo
era a identidade de mulher. Esta era constituda pelo reconhecimento de traos
comuns entre as mulheres, que extrapolavam o corpo, mas que eram apoiados
nele. Tambm se definia em contraposio a um novo "outro", o homem. Este,
como o sentido de "mulher", era pensado de maneira universal. O que elas consi-
Perder o apoio significava, para essas famlias, perder a ajuda financeira e o emprego. Isso
inviabilizaria sua manuteno na Frana.
Cf. Annete Goldberg, op. cit fl. 72.
Manifesto Radical Feminista de Nova York, 1970. Apud Juliet Mitchell, op. cit., pp. 53-4.
uma nova imagem de si: identidades em construo 427
deravam era que no corpo, no genital, estava o que consideravam como "femini
lidade",e que as definia. Entendiam que, por serem mulheres, poderiam fazer atuar
uma "sororidade", uma unio, pois afinal, diziam, tinham independentemen
te de classe, gerao, raa/etnia uma mesma subordinao. Afirmavam, ento,
que o que tinha acontecido com elas, individualmente, era comum a todas as de
mais e concluam que como tinha dito Simone de Beauvoir era a cultura,
dominada pelos homens, que as tinha tornado submissas e com to baixa auto-
estima. Estaera, realmente, uma perspectiva "separatista".'*^
A maneira como expressaram este "separatismo" e esta identidade fez com
que fossem consideradas "diferencialistas", notadamente as que seguiam o grupo
ligado a Luce lrigara)d^ e Helne Cixous,"*' na Frana, em comparao com as se-
guidoras de Simone de Beauvoir, considerada"igualitarista".**
O prprio uso da categoria "Mulher", por sua vez, sofria interpretaes das
mais diversas, dependendo da maneira como entendiam as relaes. Foi, ainda,
no contexto norte-americano que essa categoria foi criticada com mais eficcia.
Mulheres negras, ndias, mestias, pobres, trabalhadoras, muitas delas femi
nistas, reivindicaram uma "diferena" dentro da diferena. Ou seja,a categoria
"mulher" que constitua uma identidade diferenciada da de "homem", no era
suficiente para explic-las. Elas no consideravam que as reivindicaes as in
clussem. No consideravam, como fez Betty Friedan na Mstica Feminina^ que o
trabalho fora do lar, a carreira, seria uma "libertao". Essas mulheres h muito
trabalhavam dentro e fora do lar.O trabalho fora do lar era para elas,apenas, uma
fadiga a mais."*' Alm disso, argumentavam, o trabalho "mal-remunerado" que
muitas mulheres brancas de camadas mdias reivindicavam como forma de sa
tisfao pessoal, poderia sero emprego quefaltava paraseus filhos, maridos e pais.
Todo esse debate fez muitas pessoas perceberem que no havia a "mulher",
mas simasmais diversas "mulheres", e queo queformava a pautade reivindicaes
de umas, no necessariamente formaria a pauta de outras. Afinal, as sociedades
possuem as mais diversas formas de opresso, e o fato de ser uma mulher no a
torna igual a todas asdemais. Assim, a identidade de sexo no erasuficiente para
juntar as mulheres em torno de uma mesma luta. Isso fez com que a categoria
"Mulher" passasse a ser substituda, em vrias reivindicaes, pela categoria
"Mulheres", respeitando, assim, o pressuposto das mltiplas diferenas que se ob
servavam dentro da diferena. Emais: que a explicao para a subordinao no
era a mesma para todas as mulheres, e nem aceita por todas. Mesmo assim, era
preciso no esquecer que, mesmo prestando ateno nas diferenas entre asmulhe
res, no era possvel esquecer as desigualdades e as relaes de poder entre os
Este perodo chamado de "separatista" devido aesta prtica de grupos de reflexo, do qual
os homens estavam proibidos de participar.
Luce Irigaray. Ce Sexe qui nen est pas un. Paris: Minuit, 1977.
Helne Cixous. Contes de Ia diffrence sexuelie. In: Mara Negron (org.). Lectures de Ia
diffrence sexuelie. Paris: Des Femmes, 1990.
Lia Zanotta Machado. Gnero, um novo paradigma? Cadernos Pagu, n, 1993 pp io7-25
Verena Stolcke. La mujer es puro cuento: Ia cultura dei gnero. Estudos Feministas v 12 n"
2, 2004, p. 92. , . , .
428 joana maria pedro
Franoise Thbaud. Genre et histoire. In: Christine Bard; Christian Baudelot & Janine Mos-
suz-Lavau. Quand lesfemmes s'en mlent genre et ponvoir. Paris: La Martinire, 2004, pp. 44-63.
" Cf. Gabriel Felipe Jacomel. Apropriaes feministas no teatro brasileiro (1964-1985). Relatrio
de Iniciao Cientfica, Graduao em Histria da UFSC, 2006.
" Cf. Maria Cristina de Oliveira Athayde. Prazer em conhecer: feminismo e sexualidade nas obras
de Marta Suplicy. Trabalho de Concluso de Curso de Graduao em Histria, Florianpolis, UFSC,
2005, pp. 17-8.
" Cf. Rose Marie Muraro. Memrias de uma mulher impossvel. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1999.
uma nova imagem de si: identidades em construo 429
Lahic) escreveu: "Inventer un muse de INoutre est une ide gnreuse, celle de Jacques Chirac et de
Jacques Kerchache, grands amateurs des arts que Ton disait premiers, mais c'est une affaire com-
plique, parce qu'on ne sait pas toujours qui est Tautre et parce que Tautre est toujours Tautre de
quelqu'un d'autre. Ensuite, accorder le statut dart aux oeuvres de Tautre est une affaire ambigu qui
nous concerne nous, plus que Tautre. Mais enfin, cela permettrait, nous dit-on, de ngocier le virage
postcolonial" (Patrick Prado- O sont, Quai-Branly, les traces des enfants de ces maitres que nous
nommons aujourd'hui "artistes"? Leurs descendants meurent sur nos barbels, Paris, Lihration, Jeudi
20juillet 2006, p. 31).
- Em 1603, provavelmente, William Shakespeare escreveu Otelo, o Mouro de Veneza, pea
encenada no ano seguinte. possvel que Shakespeare tenha se inspirado na novela IIMoro di Venezia,
de Giraldo Cinthi, publicada em 1584 (Disponvel em: <http://\wv\v.mundocultural.com.br/analise/
otelo-_shake.pdf#search='giraldo%20cinthi'>. Acesso em: 10/10/2006), poucos anos aps a Batalha
de Lepanto. Isso demonstra como o "moro" passa rapidamente a incorporar o imaginrio e o gosto
da poca.
' Ver Antonio Houaiss. Mouro; Moeno. In: . Dicionrio Houaiss de Lngua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, (http://houaiss.uol.com.br/busca). J no Vocabulrio Portuguez e Latino, D.
Raphael Bluteau esclarece: "Morno. Cousa de cor escura, mas no totalmente negra". Nesse antigo
dicionrio. Moro refere-se ilha do Mora, localizada no Oriente, onde habitava gente "selvagem",
"muito brbara" e antropfaga. Ver D. Raphael Bluteau. Vocabulrio Portuguez e Latino ulico,
Anatmico, Architectonico, Bellico, Botnico, Brasilico, Comico, Crtico, Chimico, Dogtnatico, Dialectico,
Dendrologico, Ecclesiastico, Etymologico, Economico, Florifero, Forense, Fructifero, Geographico, Geom
trico, Gttomonico, Hydrograpbico, Homonyrnico, Hierologico, Ichtyologico, Indico, Isagogico, Laconico,
Liturgico, Lithologico, Medico, Musico, Meteorolgica, Nutico, Numrico, Neoterico, Ortographico,
ptico, rnithologico, Potico, Philologico, Pharmaceutico, Quidditativo, Qualitativo, Quantitutvo{sic),
Rethorico, Rstico, Romano, Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapteutico, Technologico,
Uranologico, Xenophonico, Zoologico, AUTORIZADO COM EXEMPLOS DOS MELHORES ESCRITO
RES PORTUGUEZES, E LATINOS; E OFFERECIDO A EL REY DE PORTUGUAL, D. JOO V, PELO
PADRE D. RAPHAEL BLUTEAU CLRIGO REGULAR, DOUTOR NA SAGRADA Theologia, Pregador
da Raynha de Inglaterra, Henriqueta Maria de Frana, &Calificador no sagrado Tribunal da Inquisio de
Lisboa. Coimbra: No Collegio das Artes da Companhia de JESU Anno de 1712. Com todas as licenas
necessrias.
eduardo frana pai%'a
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Moretti veneziani expostos em vitrine de joalheria de Veneza, 2006
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V ' ^ iUtU-frUincietotuftMW, ^
'r . ' AuccPluilrt' ( t.
ALMANACH, pour lan 1560. Compos par Maistre Michel Nostradamus Musce de
1'Imprimerie de Nantes / Association ProArte Graphica (fotografado etn 20/7/2006)
*Discuti a questo em Eduardo Frana Paiva. Histria &Imagens. Belo Horizonte, Autntica, 2002.
Ver Jorge Fonseca. Escravos no sul de Portugal, sculos XVI-XVII. Lisboa: Vulgata, 2002;
Didier Lahon. Black African Slaves and Freedmen in Portugal during the Renaissance: Creating a New
Pattern of Realy. In: T. F. Earle (org.). Black Africains in Renaissance Europe. Cambridge University
Press, 2005, pp. 261-79; Didier Lahon. Esclavage et confrries noires au Portugal durant VAncien Rgitne
(1441-1830). Thse de Doctorat prsente EHESS, 2001; Didier Lahon. Noirs et multres dans les
corps d'arme au Portugal. In: Carmen Bernand &Alessandro Stella (coord.). D'esclaves solats; mi-
liciens et soldats d'origine servile Xllle-XXle sicles. Paris: L'Harmattan, 2006, pp. 133-48; Franoise
Massa. Colloque international organis para Vquipe de rechercbe Erilar. Le Portugal et VEspagne dans
leurs rapports avec les Afriques continentale et insulaire. Rennes: Universit Rennes 2 Haute Bretagne,
2005; Antnio Almeida Mendes. Portugal e o trfico de escravos na primeira metade do sculo XVI.
Africana Studia, Porto, n. 7, 2004, pp. 13-30; Antnio de Almeida Mendes. Traites ibriques entre
Mditerrane et Atlantique: l noir au coeur des empires modernes et de Ia premire mondialisation
(ca. 1435-1550). Anais de Histria de Alm-Mar. Lisboa, v. VI, 2005, pp. 51-387.
I
n Jf
1
Chafariz cl'El Rey no sc. XVI. Mestre desct)nhccido, c. de 1570-1580, Pases Baixos.
leo sobre madeira de castanho. Lisboa, C)leo Particular"
" Imagem retirada de Ana Maria Rodriguc.s (coord.). Os negros ein Portugal scs. XV a XIX.
Lisboa: ('omisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 104.
Large Caivary, ca. 1415-1420 - Westfalian Master in Cologne (active in Cologne 1415-1435) -
Coleo do Waliraf-Richartz-Museum - Fondation Corboud
Sobre esse quadro ver Adam Szszdi. El transfondo de un cuadro; Los Mulatos de Es
meraldas de Andrs Snchez Gualque. Cuadernos Prehispanicos, v. 12, 1986-1987, pp. 93-142. Ver,
ainda, Joanne Rappaport & Tom Cummins, op. cit.
a presena invisvel,o etnocentrismo e a construo de imagens
Sobre a diferenciao entre essas categorias na Amrica espanliola ver Carmen Bernand.
Negros csclnvos y libres en !ns ciiulades hispnnodnwricanas. Madri: Fiindacin Histrica Tavera, 2001;
Berta Ares Qiieija. Las categorias de! mestizaje: desafios a los constreniniientos de un modelo social en
el Per colonial temprano. Hislricn, Lima, Pontifcia Univesidad Catlica dei Per, n." 1, v. XXVIII,
pp. 193-218, 2004; Berta Ares Queija. "Un borracho de chicha y vino". La construccin social dei
mestizo (Per, siglo XVI). In: Gregorio Salinero (ed.). Mczcltido y sospechoso; niovilidad e identidades,
Espana y Amrica (siglos XVI-XVIII). Madri: Collection de Ia Casa de Velzquez, 2005, pp- 121-44.
Ver Rolena Adorno. A Witness unto Itself: The Integrity of the Autograph Maniiscnpt of
Felipe Guaman Poma de Ayala s El primor itticon cornica y buen gobienio (I615/I616). New Haven
(Connecticiit): Yale Universily, 2002 (Disponvel em: <http://w\vw.kb.dk/elib/mss/poma/>). O mes
mo site permite acesso ao texto e aos 398 desenhos de Aiala. Ver, tambm: Eliane Garcindo de S.
Escravido o mestiagem na Crnica colonial entre Amrica e frica. Texto apresentado no I!
Simpsio Escravido c Mestiagem: Elistrias Comparadas. Belo Horizonte; Anpiih, 2006 (disponvel cm:
<vvww.cscravidao.cjb.net>).
442 eduardo frana paiva
I IHROS F METROS 1
CORE&IMIBMTO
QlfflffiCRlLOS
f.
rv
/ 'y ' , l
?^Hv
/- ? A
Ver, entre outros, Albert Hckhout. Volui no lirnsil 1644-2002. Copenhague: Nationalmuseel,
2002; Quentin Buvelot (ed.). Albert Eckhout n Dutch Artist iu Brazil. Tlie Hague/Zwolle: Royal Cabinet
of IViinlings Maurilshuis/VVaancicrs 1'iiblishers, 20()-l; Cristina Ferro & los Paulo Monteiro Soares
(cd.). lirnsil Ilolniidcs o "Tliicrbhcli" e a "Aiitohiogrnfur de Znchnriiis VVoeuer, v, 11. Rio de Janeiro:
Inde.x, 1997; Paulo Merkenhoff (org.). O lirnsil e os Holandeses 1630-1654. Rio de janeiro: Sextante
Artes, 1999. Sobre a paisagem nas obras produzidas sob os auspicios de Nassau ver Sandra lataliy
Pesavenl. A inveno do Brasil o nascimento da paisagem brasileira sob o olhar do outro. Fnix
Revista de Histria e Estudos Culturais, v. I, a. I, n." 1. out./nov./dez. de 2004, pp. 1-34. Disponvel
em: <vv\vnv.revistafenix.pro.br>.
a presena invisvel, o etnocentrismo e a construo de imagens 445
Carl Friedrich Phillipp von Martius. Como se deve escrever a histria do Brasil. Revista
trimestral de Histria e Geografia ou Jornal do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, n." 24, pp. 31-2,
1845. O naturalista alemo recebeu o prmio criado em 1840, pelo Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro, por essa monografia sobre a histria do Brasil, baseada na mistura das trs raas, o branco,
o negro e o ndio, e do branqueamento natural baseado na superioridade gentica do europeu.
eduardo frana paiva
Al^ordei esse tema em F.diiardo I-rana Paiva. Mandioca, pimenta, aljfares: trnsito cultural
no imprio portugus Naturalia, inirabiia. In: Jolian Verberckmoes; Werner Tomas & Eddy Stols
(org.), op. cit., pp. 107-22, Ver tambm Luiz Felipe de Alencastro. O inito dos vivenics: foniuio do
a presena invisvel, o etnocentrismo e a construo de imagens 447
tria Natural de Piso e Marcgraf.-^ Desse conjunto, emerge a idia de lun mundo
impuro, selvagem e, por vezes, ingnuo e, at mesmo, jovem, em formao, como
se fosse uma criana ainda,-'' idia j formulada antes por religiosos, principal
mente os jesutas, que atuavam no Brasil desde o sculo anterior.
A Amrica, certo, no foi o palco no qual se inventou o mulato, mas ele
foi naturalizado americano (assim como ocorreu com africanos e europeus). Sua
origem americana, sua importncia demogrfica e cultural e sua atuao poltica
e econmica, assim como seu vnculo familiar estreito com parte das elites foram
fatores que contriburam nesse sentido. Mamelucos, cabras, zambos, cuarterones
e uma infinidade de termos que identificaram os mestios americanos, desde o
sculo XVI, conheceram processos semelhantes ao dos mulatos." No Brasil, no
Peru, no Mxico, em Cuba, em Porto Rico, na Argentina, na Colmbia, na
Venezuela, essas histrias se aproximam, por vezes de maneira surpreendente. At
o incio do sculo XX, intelectuais, polticos e cientistas latino-americanos e eu
ropeus, de maneira geral, agora tomados pelo paradigma da raa e do meio, viram
essas jovens naes e suas populaes mestias, negras e ndias como a anttese
da civilizao, malgrado as teorias e as polticas embranquecedoras colocadas em
prtica desde o sculo XIX. Novamente com semelhanas notveis e com cone
xes ainda pouco estudadas, soaram vozes quase coevas, como as de Fernando
Ortiz, Gilberto Freire e JosVasconcelos, que transformaram o destino condena
do pela mestiagem justamente no seu oposto. Eles a apresentaram, em perspec
tivas distintas, claro, como civilizaes mestias, modelos para o mundo, ainda
que guardando essa idia j muito antiga, etnocntrica, sempre superlativa do"eu"
e redutora do"outro": a de civilizao."
Brasil no Atlntico sul sculos XVI e XVII. So Paulo: Companhia das Letras, 2000; e Paulo de
Assuno. A terra dos brasis: a natureza da Amrica portuguesa vista pelos primeiros jesutas (1549-1596).
So Paulo: Annablume, 2000. Um texto fascinante sobre essa temtica o do franciscano Frei Antonio
do Rosrio. Frutas do Brasil numa nova, e assetica Monarchia, consagrada Santssima Senhora do
Rosrio, o menor dos Menores da Serfica Famlia de S. Antonio do Brasil, & Missionrio do dito
Estado; mandando-a imprimir o Comissrio Geral da Cavallaria de Pernambuco Simam Ribeyro
Riba. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Caram, 1702.
" Willem Piso & Georg Marcgraf. Historia Naturalis Brasiliae. Amsterdam: Joharmes de Laet, 1648.
Ver sobre o tema ris Kantor. Esquecidos e Renascidos: Historiografia Acadmica Luso-
Americana (1724-1759). So Paulo: Hucitec, 2005.
" Os famosos quadros de castas produzidos na Nova Espanha e no Peru so testemunhas dessa
complexidade identitria e da necessidade de retratar e de classificar o "outro", isto , os mestios. So
vrias dezenas de designaes de tipos de mestios, associadas s suas imagens, a atividades econ
micas e a prticas culturais e, por vezes, a formas de ser de cada um. Nem todas as designaes foram
usadas no dia-a-dia, mas muitas delas foram freqentemente empregadas, tanto pelas elites, quanto
pelos populares. Sobre os quadros de castas ver E. Garcia Barragn. Jos Augustn Arrieta, lumbres de
Io cotidiano. Mxico, 1998; I. Katzew. Casta Painting, Images ofRace in Eighteenth-Century Mxico. New
Haven: Yale, 2004; Natalia Majluf (ed.). Los cuadros de mestizaje el Virrey Amat; Ia representacin
etnogrfica en el Per colonial. Lima: Museo de Arte de Lima, 1999; Maria Concepcin Garcia Saz. Las
castas mexicanas; un gnero pictrico americano. Mxico: Olivetti, 1989; Alberto Ruy Snchez (ed.).
Artes de Mxico La pintura de Castas. 2.' ed. Mxico: Artes de Mxico y dei Mundo, 1998, n. 8.
Ver Jos Vasconcelos. La raza csmica: misin de Ia raza iberoamericana. 5.' ed. Mxico:
Espasa Calpe, 1977 [1925]; Gilberto Freyre. Casa-grande &senzala: formao da famlia brasileira sob o
regime da economia patriarcal. 27." ed. Rio de Janeiro: Record, 1990 [1933]; e Fernando Ortiz.
Contrapunteo cubano dei tabaco y el azcar. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1978 [1940].
MENSAGENS DO ALM, IMAGENS DO AQUM:
O ESPIRITISMO NO DISCURSO DA FACULDADE DE MEDICINA
DO RIO DE JANEIRO NAS PRIMEIRAS DCADAS DO SCULO XX
religioso e entre os atores polticos. Neste trabalho, vamos ater-nos ao outro parcei
ro, o discurso mdico-psiquitrico, capazde habitar a mesmalgica da excluso da
diferena e da denegao da realidade sociocultural brasileira.
Para Giumbeli' o discurso mdico brasileiro tendeu a uma condenao fron
tal ao espiritismo. Ao contrrio do discurso jurdico, capaz de endossar a clivagem
entre "alto" e "baixo" espiritismo, tolerando o primeiro e penalizando completa
mente o segundo, o discurso mdico brasileiro da primeira metade do sculo XX
tendeu para uma condenao substantiva do espiritismo. As atividades medinicas
eram vistas como momentos completamente negadores da coerncia do eu, do
agir racionalmente orientado e remetidas ao repertrio das aes que exigiam a
represso do estado e a interveno combativa da cincia. Em se tratando do dis
curso mdico-psiquitrico da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, o com
bate ao espiritismo acontecia em um lugar institucional marcado pela influncia
da psiquiatria organicista, trazida da Alemanha pelo baiano Juliano Moreira. Em
bora no fosse professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e sim, diretor
do Hospcio Nacional dos Alienados, a influncia de Juliano Moreira imps-se
sobre professores e estudantes. Em torno de Juliano Moreira, em breve formou-
se um grupo de mdicos bastante significativo, entre os quais aparecia o catedr-
tico de medicina psiquitrica, Henrique Belford Roxo. Neste trabalho, vamos
enfocar a produo de alguns desses mdicos, formados nessa tradio, e a sua
apreenso do espiritismo. Juliano Moreira trouxe da Alemanha e legou a esse gru
po o modelo psiquitrico de Emil Kraeplin (1856-1926). Ainfluncia da psiquiatria
alem aparecia em Juliano Moreira, sobretudo na nfase pela objetividade, pro
curando, por meio da observao, a etiologia orgnica das doenas men
tais." Era um modelo no qual se buscava a relao entre a doena mental e leses
corporais especficas. Da o interesse em estudar as relaes entre a loucura e doen
as como a sfilis, a epilepsia, a tuberculose, a lepra. Da, igualmente, o interesse
em credenciar os conhecimentos mdicos s polticas pblicas de interveno so
cial e equacionamento do espao urbano. E da, obviamente, o interesse em remeter
o espiritismo convivncia patolgica, capaz de reclamar a mesma interveno
mdica na esfera pblica suscitada pela presena da sfilis ou do alcoolismo. A
interveno mdica assentava-se no reconhecimento, pelos profissionais da po
ca, de que, tanto a predisposio hereditria, quanto as leses neurolgicas e as
condies socioambientais, representavam ordens de causalidade dos distrbios
mentais. O discurso mdico credenciava-se no Estado, como capaz de prever a
emergncia da loucura entre a populao, diagnosticar as diversas infeces, into
xicaes ou traumatismos que determinavam as leses neurolgicas e propor me
didas profilticas, capazes de higieniz-la.^ Higienizaro espaourbano passava por
medidas conducentes a dot-lo de um planejamento racional, a remover os focos
das doenas, a excluir a visibilidade da mendicncia, da prostituio, da vadia-
gem, propondo atitudes normativas e coercitivas. dentro desse esforo clas-
' Emerson Giumbelli. O cuidado dos mortos. Uma histria da condenao e legitimao do
espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
^ Ruth Mylius Rocha et al. Juliano Moreira: o aprisionamento da loucura no discurso
cientfico. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 4(9), p. 451.
' Carlos Fidelis da Ponte. Mdicos, psicanalistas e loucos: uma contribuio histria da
psicanlise no Brasil. Mestrado em Sade Pblica. Rio de Janeiro: Fundao Oswaldo Cruz, 1999.
450 artur csar isaia
da licena, o meio urbano era encarado, igualmente, como o lugar do perigo. Dia
logando com o discurso mdico, Joo do Rio mostrava, no incio do sculo XX, a
cidade que encobria as prticas horripilantes de"Salptrire africana", pordetrs
da inofensiva fachada de casinhas de subrbio.'" A percepo higienizadora dos
mdicos sobre o espiritismo, compunha-se com o processo de "normatizao das
prticas sociais", detectado por Pesavento na capital federal dos incios da Rep
blica."^ O inaceitvel para os mdicos era quando a licena urbana contava com a
conivncia do poder pblico. Nesse sentido, elucidativo o teor da ata de 19 de
abril de 1927, da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, na qual o mdico
Bonifcio Costa, inspetor da Fiscalizao do Exerccio de Medicina do Departa
mento Nacional de Sade Pblica, reclamava da presena policial, ajudando a
organizar a fila dos que buscavam receitas homeopticas na sede da Federao
Esprita Brasileira.'" Como um caso de sade pblica, como indcio de anormali
dade, era intolervel, para os mdicos, qualquer tipo de omisso ou, na pior das
hipteses, conivncia do Estado como espiritismo. O espiritismo eraassociado ao
comportamento imprevisvel das multides, objetos da ateno e do esforo de
diferentes discursos que visavam disciplinarizao da vida urbana. A idia de
multido, tal qual aparecia em Gustave Le Bon e outros autores lidos pelos psiquia
tras brasileiros da poca, remetia a uma associao essencialmente psicolgica,
na qual desaparecia a racionalidade e o discernimento, instaurando-se o domnio
do comportamento impulsivo, primitivo e contagioso. Ora, o transe medinico
no era visto pelo discurso mdico da poca como o imprio do automatismo, do
psiquismo inferior, de um mundo subliminal que aflorava? O prprio Le Bon
interessou-se pelo estudo dos fenmenos espritas. Estes eram vistos como de-
nunciadores de um estgio inferior do pensamento humano, baseado na crena,
quedeveria sersubstitudo, em um estgio superior, pelo conhecimento.'" Acrena
acontecia para Le Bon a partir de uma "intuio inconsciente", ao passo que o
conhecimento era edificado por mtodos exclusivamente racionais. Opondo Le
Bon crena a conhecimento, o espiritismo era enquadrado na primeira categoria.
Como catalisador de energias desconhecidas e primitivas, o espiritismo aparecia
como um perigo, capaz de provocar crises de histeria coletiva, transformar ho
mens e mulheres pacatos em feras humanas. Nesse sentido, tanto Leondio Ribei
ro e Murilo de Campos, quanto Xavier de Oliveira, recorrem a uma observao
de Franco da Rocha,diretor do Juqueri em So Paulo e egresso da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, para ilustrar um caso de "epidemia psquica" ocorri
do em "contexto esprita". Trata-se de um caso, ocorrido em Taubat, So Paulo,
por volta de 1885. Nessa ocasio, "escravos, crianas seminuas e outros sectrios
do espiritismo" seguiam cegamente um advogado, "chefe da seita", que, em nome
Joo do Rio. >\s religies do Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976 11904).
" Ver Sandra Pesavento. O imaginrio da cidade. Vises literrias do urbano. Paris/Rio de Janeiro/
Porto Alegre-. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999.
' Apud Leondio Ribeiro & Murilo de Campos, op. cit., p. 183.
Gustave Le Bon. Les opinions et les croyances: gense, volulion. Paris: Flammarion, 1911.
O relato transcrito em um artigo de Nina Rodrigues, publicado sob o ttulo "La folie des
foules", publicado nos Annales Mdico-Psychologiques, jan./ago. de 1901 e reproduzido no livro
Coletividades Anormais, fruto de um trabalho de compilao de Artur Ramos (ver Raimundo Nina
Rodrigues. A loucura epidmica de Canudos. In: Idem. As coletividades anormais. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1939).
o espiritismo no discurso da faculdade de medicina do rio de janeiro 453
Leondio Ribeiro & Murilo de Campos. O espiritismo no Brasil. Contribuio ao seu estudo
clinico e mdico-legal. So Paulo: Nacional, 1931, pp. 59-60. Xavier de Oliveira. Espiritismo e loucura.
[s.l.]: Geem, 1930, p. 261s.
Ao destacar o papel do espiritismo na provocao dessas "epidemias psquicas" e das mulheres
na sua difuso. Franco da Rocha reproduzia uma postura peculiar a vrios observadores do perodo.
Estes, lendo os fenmenos espritas como tpicos comportamentos histricos, destacavam a mulher
como locus principiai dos fenmenos medinicos. Essa postura acontecia, mesmo quando a histeria j
no era mais reconhecida como uma doena do tero (desde a dcada de 1880, Charcot relatava casos
de histeria masculina, chamada por ele de "traumtica"). Por outro lado, esse era mais um ponto em
comum entre discurso catlico e mdico. Ambos construam uma "feminizao" do transe medinico
(ver Artur Csar Isaia. Catolicismo pr-conciliar e religies medinicas no Brasil: da demonizao ao
saber mdico-psiquitrico. In: Ivan Aparecido Manuel & Naimora M. B. Freitas. Histria das religies.
Desafios, problemas e avanos tericos, metodolgicos e historiogrdficos. So Paulo: Paulinas, 2006).
Franco da Rocha. Esboo de psiquiatria forense. So Paulo: Tipografia Laemmert, 1904, p. 182.
" Leondio Ribeiro 8< Murilo de Campos, op. cit., p. 60.; Xavier de Oliveira, op. cit., p. 264.
'* Tecendo um paralelo entre o comportamento de sertanejos e negros na esfera pblica,
escreve Nina Rodrigues:
454 artur csar isaia
Idem. Molstias mentais e nervosas. Aulas professadas durante o ano letivo de 1905 pelo Dr.
Henrique de Brito Belford Roxo. Rio de Janeiro: [s.n.], 1906, p. 32.
" Ibidem, p. 160.
Henrique de Brito Belford Roxo. Molstias mentais e nervosas, cit., p. 190. '"Ibidem.
456 artur csar isaia
Ibidem, p. 468.
Anteriormente, Henrique Roxo, em conferncia realizada na Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, em 1918, afirmara a inexistncia de um "espiritismo cientfico" no Rio de Janeiro: "o
espiritismo que aqui se pratica e que leva comumente ao hospcio no tem o menor cunho cientfico"
(apud Ribeiro & Campos, op. cit., p. 195).
" Apud Joo Coelho Marques, op. cit., pp. 34-5.
Xavier de Oliveira, op. cit., p. 21.
o espiritismo no discurso da faculdade de medicina do rio de janeiro 457
Xavierde Oliveira inicia sua obra, onde apresenta sua leitura sobreo espiri
tismo no Brasil, citando Nina Rodrigues e o seu diagnstico a respeito de Ant
nio Conselheiro. Ligado a um grupo de mdicos formados por Juliano Moreira,
esse diagnstico foi contestado no concernente raa como elemento explicativo
dasua "patologia". Para Xavier deOliveira, Antnio Conselheiro tratava-se de mais
um tpico reivindicador mstico, no qual o que chamava de"mal constitucional"
achava no serto inculto o terreno frtil, tanto para crescer como patologia, quan
to para transformar-se em uma "epidemia de loucura religiosa".'^ Afrnio Peixoto
tinha a mesma opinio. Na introduo do seu romance Maria Bonita, refere-se a
um personagem, um velho de longas barbas brancas, um "santo" do serto, nas
suas palavras, que, como Antnio Conselheiro e Padre Ccero, contagiava as mul
tides de todo o Brasil, levando-as ao fanatismo coletivo. Ao contestar o diagns
tico de Nina Rodrigues sobre o Conselheiro, Afrnio Peixoto reafirmava a neces
sidade de combater essas manifestaes, no pela represso, mas pela educao e
conduo das populaes incultas. Nesse trabalho educador e condutor, logica
mente, a medicina credenciava-se como elemento de proa:
igual a tantas outras que a tem castigado em pocas diversas de sua evoluo, e no
s domnio do sentimento religioso". O sucesso do espiritismo no sculo XX visto
como prova da sobrevivncia, da "mesma mentalidade do totem e do tabu".''^
O espiritismo como evidncia do mesmo comportamento contrrio ordei
republicana, aparecia, igualmente, na literatura. Essa representao do espiritismo
como avesso da vivncia civilizada, republicana aparece em Coelho Neto, por exem
plo. Este autor, antes de sua converso ao espiritismo, constri uma personager
altamente emblemtica desse jogo interdiscursivo. a negra Felcia de Turbilho.^"
Publicado no incio do perodo republicano, o livro conta a histria de uma ex-
escrava, que perde o filho na Revolta da Armada e passa a freqentar sesses espri
tas, como lenitivo para sua dor. A ex-escrava, aparece na obra como indcio da so
brevivncia de um Brasilmcomodamente pr-repubcano, no absorvidototalmente
s normas da cidadania (Felcia chama sua patroa de "minh'ama"). O autor mostra
a personagem sucumbindo ao espiritismo e tentando disseminar essavivncia pato
lgica e inculta no seio de uma famia"honesta". Sobra para a ex-escrava a loucura,
que vaiseafirmando e tem como eplogo a sua retirada do convvio social. bastante
sintomtica a construo de uma personagem negra, adepta do espiritismo, doente
mental e com um comportamento duvidoso para os quadros morais da poca (a
ex-escrava acusadapor um dos personagens de favorecer o relaxamento doscostu
45
mes no seioda famlia, levando "perdio"a filha de sua patroa,que foge decasa).
Na tentativa de associaro espiritismoa uma constelao imagtica devalores
claramente anti-republicanos, os mdicos viravam as costas, tanto para a obra de
codificao esprita, quanto para a postura da Federao EspritaBrasileira. No pri
meiro caso, o que se depreende justamente o oposto. O espiritismo tentou, na
Frana de meados do sculo XIX, credenciar-se como um valor novo na sociedade,
assumindo a herana revolucionria. Nesse sentido, procurou associar-se, idia
de repblica, defendendo a laicizao do Estado, a igualdade civil entre homens e
mulheres e a universalizao do ensino.''^ Conforme nos referimos em outro traba
lho, o discurso esprita tendeu para a consolidao dos valoresliberais burgueses:
" Bernardo Lewgoy. Os espritas e as letras: um estudo antropolgico sobre cultura escrita e
oralidade no espiritismo kardecista. Doutorado em Antropologia Social. So Paulo: USP, 2000, p, 10.
Michel de Certeau. A inveno do cotidiano. Artes de fazer. Petrpolis: Vozes, 1994, p. 99.
Ibidem. " Ibidem, p. 224.
Xavier de Oliveira. Espiritismo e louatra, cit., p. 211. . Ibidem.
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Alcides Freire Ramos
Professor Associado 2 da Uni
versidade Federal de Uberln
dia. autor, entre outros, dos se
guintes livros: Canibalismo dos
Fracos (Ed. Edusc) e Cinema e
Histria do Brasil (Ed. Contexto,
em colaborao com Jean-
Claude Bernardet). pesqui-
f sador CNPq e integra o Ndeo
1^9 de Estudos em Histria Social da
Arte e da Cultura (Nehac). um
dos editores do peridico Fnix
Revista de histria e estudos culturais.
Rosngela Patriota
Professora Associada 2 da Uni
versidade Federal de Uberln
dia. autora dos livros Vtani-
nha: um dramaturgo no corao
de seu tempo (Ed. Hucitec) e A
crtica de um teatro crtico (Ed.
Perspectiva), entre outros.
pesquisadora CNPq e coordena
o Ncleo de Estudos em Hist
ria Social da Arte e da Cultura
(Nehac). uma das editoras do
peridico cientfico Fnix Revista de histria e estudos
culturais.
T T T T >
I / IMAGENS DA MEMRIA E DO SENSiVEL
* Imagem, memria, sensibilidades: territrios do historiador
f Do documento naturalista ao documento social: Jean-BaptisteDebret e os pintores
viajantes
* Histria e Fotografia. Narrativas de um espao de colonizao: Uruanga
Paisagens narrativas do espao amaznico
Imago mortis: o texto, a imagem, o rastro dos subalternos
* Rememorar o espetculo e observar-se rememorando
Imagem e memria: As musas inquietantes
II / IMAGENS DA POLTICA
A imagem do historiador, entre erudio e impostura
* A transfigurao da f religiosana crena revolucionria: Mistrio-Bufoy de Vladimir
Maiakvski, e a recriao da histria
* Imagens da sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro dos anos 1960
Memria e histria nos escritos autobiogrficos de San Tiago Dantas
* Foto-cones, a histria por detrs das imagens? Consideraessobre a narratividade
das imagens tcnicas
* 1972:Sesquicentenrio da Independncia uma esttica para a nao
III / IMAGENS DA CIDADE
9 Santos: para alm do porto do caf
* De como os mulatos entraram na histria dos musicais cariocas
Mozart na pera do Carnaval: canto e viso sem igual
A cidade em textos e imagens na obra de rico Verssimo
Ver e ser visto pelo poder: quando a poltica vai s ruas na Porto Alegre dos anos
1920
Lealdades compartilhadas: famlias negras e etnicidades no espao urbano (Porto
Alegre, sculo XIX)
IV / IMAGENS DA ESCRITA
* "Sob a copa das rvores",imagens de sensibilidade na correspondncia modernista
* Sob o olhar de Prapo narrativas e imagens em romances licenciosos setecentistas
MMalditos tipgrafos
Tenha modos! a correspondncia em manuais de civilidade e etiqueta (anos 1920-
1960)
\ SK'!
ISaN:978.85-60-438-79-2
9 788560 438792