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2008 - Imagens Na História

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STRIA IMAGENS NA Organizao
^A HISTRIA IMAfffi
EDITORA HUCITEC
MAGENS NA HISTRIA um livro resultante das

I discusses ocorridas em Florianpolis, durante o


III Simpsio Nacional de Histria Cultural.
Fundamentalmente, esta publicao tem como
objetivo suscitar debates e reflexes que estimulem
e dinamizem ainda mais o campo da Histria Cul
tural no Brasil. Para tanto, apresenta aos leitores
ensaios de autoria de Sandra Jatahy Pesavento,
Jacques Lenhardt, Chiara Vangelista, Maria de F
tima Costa, Roberto Vecchi, Maria Luiza Martini,
Maria Bernardete Ramos Flores, Sabina Loriga, Ro
sngela Patriota, Alcides Freire Ramos, ngela de
Castro Gomes, Ana Maria Mauad, lio Cantalcio
Serpa, Maria Izilda Santos de Matos, Antonio
Herculano Lopes, Mrcia Ramos de Oliveira, Char
les Monteiro, Ricardo Aguiar Pacheco, Paulo Ro
berto Staudt Moreira, Mnica Pimenta Velloso,
Mrcia Abreu, Nelson Schapochnik, Maria Teresa
Santos Cunha, Joana Maria Pedro, Eduardo Frana
Paiva e Artur Csar Isaia.

O GT Nacional de Histria Cultural da Anpuh, cria


do em 2001, ao longo de seus sete anos de existncia
tem dado mostras de grande vigor, seja com sua
presena atuante nos encontros regionais e nacio
nais da Associao Nacional de Histria (Anpuh),
sejaem suas reunies nacionais.
Fruto da iniciativa do GT de Histria Cultural da
Anpuh-RS e do GT de Histria e Linguagens da
Anpuh-MG, com o apoio de colegas filiados
Anpuh-SP, este Grupo de Trabalho com o objetivo
de reunir seus integrantes, no apenas para apresen
tao de suas pesquisas, mas, especialmente para
estimul-los a novos desafios intelectuais levou a
termo a realizao de seus Simpsios Nacionais que,
com o apoio de agncias de fomento como CNPq e
Capes, se consolidaram junto comunidade acad
mica, sob a coordenao da Professora Sandra Ja
tahy Pesavento.

CAPA:Mariana Nada.
Imagem da capa:Cedn'estpasunepotnme, 1960, Ren Magritte
Linguagem e Cultura 41
direo de
Sandra Nitrini
Etienne Samain
LINGUAGEM E CULTURA
t t u l o s publicados

Os Mortos e os 0ro5, Manuela Carneiro da Cunha


Cavalaria em Cordel, Jerusa Pires Ferreira
Marxismo eFilosofia da Lingtiagem, MikhailBakhtn
Linguagem, Pragmticae Ideologia, Carlos Vogt
Critica e Tempo,O. C. Louzada Filho
Prosa de Ficoem SoPaulo:Produoe Cotisumo,1900-1920,TeresinhaAparecida Dei Fiorentino
DoVampiro ao Cafajeste: UmaLeitura da ObradeDaltonTrevisan, Berta Waldman
ParetiteArlequinada: UmaLeiturada ObraPotica deMriodeAndrade,Vitor Knoll
Esttica e Modernismo, Maria Clia de Moraes Leonel
PrimeirasJornadasImpertinentes: o Obsceno, JerusaPiresFerreira &Lus Milanesi (orgs.)
Na Ilha deMarapat: Mrio deAndrade LosHispano-Americanos, RaulAntelo
A Cultura Popular na IdadeMdia e noRenascimento: o ContextodeFranoisRabelais, Mikhail Bakhtin
Videografia em Videotexto, JlioPlaza
A VertenteGregada Gramtica Tradicional, Maria Helena de Moura Neves
Poticas emConfronto: Nove Novena eo NovoRomance, Sandra Nitrini
Psicologia e Literatura,Dante Moreira Leite
Osman Lins:Criticae Criao,Ana LuizaAndrade
Questes de Literatura ede Esttica:a Teoria do Romance, M ikhail Bakhtin
Man 'yshu: Vereda doPoemaClssicoJapons, GenyWakisaka
Fazer Dizer, QuererDizer,Claudine Haroche
EncontroentreLiteraturas: Frana,Portugal,Brasil,Pierre Rivas
TheSpectator, o Teatro dasLuzes: Dilogo eImprensanoSadoXVIII,Maria LciaPallares-Burke
Fausto no Horizonte:RazesMticas, TextoOral, EdiesPoptdares,Jerusa Pires Ferreira
Literatura Europia e Idade Mdia Latina, Emst Robert Curtius
Cultura Brasileira: Figuras daAlteridade, ElianaMariade MeloSouza(org.)
NsiaFloresta, O Carapuceiro eOutrosEnsaios deTraduo Ctdtural, MariaLcia Burke
Puras Misturas: Estrias em Guimares Rosa, Sandra Guardini T.Vasconcelos
Introduo Poesia Oral, Paul Zumthor
O Fotogrfico, EtienneSamain
Processos Criativos comosMeios Eletrnicos: Poticas Digitais, JlioPlaza&MonicaTavares
Vidas Compartilhadas: CidturaeCo-Educao deGeraes na VidaCotidiana, PaulodeSalles Oliveira
Conversas dosBebs, Geraldo A.Fiamenghi
Aqum eAlm Mar,SandraNitrini(org.)
A Viso doAmerndiona ObradeSousndrade, Cludio Cuccagna
Runasda Memria: UmaArqueologia daNarrativa. OJardimsemLimites, Therezinha Zilli
ANaturezana Literatura Brasileira. Regionalismo Pr-Modentista, Flvia PaulaCarvalho
DilogosInteradturais, PierreRivas
ConeSul:Fluxos, Representaes ePercepes, Ligia Chiappini&MariaHelenaMartins(orgs.)
A Formao do RomanceIngls: EnsaiosTericos, Sandra Guardini TeixeiraVasconcelos
AIntertextualidade, TiphaineSamoyault
Imagens na Histria, Alcides Freire Ramos, Rosngela Patriota&SandraJatahy Pesavento
IMAGENS NA HISTRIA
DE Alcides Freire ramos na Editora Hucitec

A Histria Invade a Cena (co-organizador)


Imagens na Histria (co-organizador)

DE Rosngela Patriota na Editora Hucitec

Vianinha: um Dramaturgo no Corao no Corao de seu Tempo


A Histria Invade a Cena (co-organizadora)
Imagens na Histria (co-organizadora)

DE Sandra Jatahy Pesavento na Editora Hucitec


Exposies Universais: Espetculos da Modernidade do Sculo XIX
Os Sete Pecados da Capital
A Histria Invade a Cena (co-organizadora)
Imagens na Histria (co-organizadora)
A Construo Francesado Brasil (co-organizadora)
ALCIDES FREIRE RAMOS
ROSNGELA PATRIOTA
SANDRA JATAHY PESAVENTO
organizadores

IMAGENS NA HISTRIA

ADERALDO & ROTHSCHILD

So Paulo, 2008
2008, da organizao, de
Alcides Freire Ramos,
Rosngela Patriota,
Sandra Jatahy Pesavento.
2008, desta edio, de
Aderaldo 8c Rothschild Editores Ltda.
Rua Joo Moura, 433
05412-001 So Paulo, Brasil
Tel./Fax: (55 11)3083-7419
(55 11)3060-9273 (atendimento ao Leitor)
lerereler@hucitec.com.br
w\v\v.hucitec.com.br
Depsito Legal efetuado.
Coordenao editorial
Mariana Nada
Assessoria editorial
Mariangela Giannella

ClP-Brasil. Catalogao-na-Fonte
Sindicato Nacional de Editores de Livros, RJ

129

Imagens na Histria / Alcides Freire Ramos, Rosngela


Patriota, Sandra Jatahy Pesavento, organizadores. - So
Paulo : Aderaldo 8c Rothschild, 2008.
461p. -(Linguagem e cultura ; n.41)
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-60438-79-2

1. Histria. 2. Cultura. 3. Fotografia. I. Ramos, Alcides


Freire. II. Patriota, Rosngela. III. Pesavento, Sandra Ja
tahy. IV. Srie.
08-4096 CDD 306
CDU 316.7
No se deve imaginar o domnio da cultura como uma entidade especialqualquer,
que possui limites, mas que possui tambm um territrio interior. No h territrio
interior no domnio cultural: ele est inteiramente situado sobre fronteiras, fronteiras que
passampor todo lugar, atravs de cada momento seu,e a unidadesistemtica da cultura
se estende aos tomos da vida cultural, como o sol se reflete em cada gota. Todo ato
cultural vivepor essncia sobre fronteiras: nisso est sua seriedadee importncia; abs
tradoda fronteira, eleperdeterreno, torna-se vazio, pretensioso, degenera e morre. [.. .]
somente nessa sua sistematizao concreta, ouseja, no relacionamento e na orientao
direta para a unidade dacultura queo fenmeno deixa deserum mero fato, simplesmen
te existente, adquire significao^ sentido,transforma-se como que numa mnada que
reflete tudo em si e que estrefletida em tudo.
MlKHAlL BaKHTIN
SUMRIO

PG.

Sobre imagens, histria e cultura . . . . . .11


Alcides Freire Ramos, Rosngela Patriota & Sandra JatahyPesavento

1/Imagens da Memria e do Sensvel

Imagem, memria, sensibilidades: territrios do historiador . . .17


Sandra Jatahy Pesavento

Do documento naturalista ao documento social: Jean-Baptiste Debret e os


pintores viajantes . . . . . . . . .35
Jacques Leenhardt

Histria e Fotografia. Narrativasde um espaode colonizao: Uruanga . 47


Chiara Vangelista

Paisagens narrativas do espao amaznico . . .64


Maria de Ftima Costa

/mago mort/s: o texto,a imagem, o rastrodos subalternos . . .78


Roberto Vecchi

Rememorar o espetculo e observar-se rememorando: em estudo acerca do


imaginrio dos espetculos. Teatro: Variaes sobre oTema eHomem: Variaes
sobre o Tema . . . . . . . . . . 88
Maria Luiza Filippozzi Martini

Imagem e memria: As musas inquietantes . . . . .108


Maria Bernardete Ramos Flores
sumano

II/Imagens da Poltica
129
A imagem do historiador, entre erudio e impostura . . . .
Sabina Loriga

A transfigurao da f religiosa na crena revolucionria: Mistrio-Bufoy de 142


Vladimir Maiakvski, e a recriao da histria . . . . .
Rosngela Patriota
163
Imagens da sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro dos anos 1960
Alcides Freire Ramos
181
Memria e histria nos escritos autobiogrficos de SanTiago Dantas
Angela de Castro Gomes

Foto-cones, a histriapor detrsdasimagens? Consideraes sobrea narrati- 197


vidade das imagens tcnicas . . . . . . .
Ana Maria Mauad
213
1972: Sesquicentenrio da Independncia uma esttica para a nao
lio Cantalcio Serpa

111/Imagens da Cidade
235
Santos: para almdo porto do caf
Maria Izilda Santos de Matos
254
De como os mulatos entraram na histria dos musicais cariocas
Antonio Herculano Lopes
260
Mozart na pera do Carnaval: cantoe viso sem igual.
Mrcia Ramos de Oliveira
278
Acidade em textos e imagens na obrade rico Verssimo
Charles Monteiro

Ver e servisto pelo poder: quando a poltica vai s ruas na Porto Alegre dos 293
anos 1920
Ricardo de Aguiar Pacheco

Lealdades compartilhadas: famlias negras e etnicidades no espao urbano 309


(Porto Alegre, sculo XIX) . . . . . . . .
Paulo Roberto Staudt Moreira
sumano

IV/Imagens da Escrita

"Sob a copa das rvores", imagens desensibilidade na correspondncia mo- 329


dernista . . . . . . . . . .
Mnica Pimenta Velloso
344
Sob o olhar de Priapo narrativas e imagens em romances licenciosos
setecentistas . . . . . . . . . .
Mrcia Abreu
374
Malditos tipgrafos . . . . . . . . .
Nelson Schapochnik

Tenha modos! a correspondncia em manuais de civilidade e etiqueta (anos 398


1920-1960)
Maria Teresa Santos Cunha

V/Imagens de si, imagens do outro


415
Uma nova imagem de si: identidades em construo . . . .
Joana Maria Pedro

Onde est o outro? A presena invisvel, o etnocentrismo e a construo de 430


imagens
Eduardo Frana Paiva

Mensagens doalm, imagens doaqum: o Espiritismo nodiscurso da Facul- 448


dade deMedicina do Rio deJaneiro nas primeiras dcadas do sculo XX
Artur Csar Isaia
SOBRE IMAGENS, HISTRIA E CULTURA

Alcides Freire Ramos


Rosngela Patriota
Sandra Jatahy Pesavento

A escolha comea por um apelo visual. No intervm o olfato, o ritmo ou a pele.


errado crer que o olhar pode acariciar uma mulher. Uma mulher feita de luz ou
feita de pele? A imagem dela nunca se torna real no olho, sim gravada nas pontas
dos dedos.
Jim Morrison

O GT Nacional de Histria Cultural da Associao Nacional de Hist


ria (Anpuh), criado em 2001, ao longo de seus sete anos de existncia tem
dado mostras de grande vigor, seja comsua presena atuante nos encontros
regionais e nacionais da Anpuh), sejaem suas reunies nacionais.
Fruto da iniciativa do GT de Histria Cultural da Anpuh-RS e do GT
de Histria e Linguagens da Anpuh-MG, com o apoio de colegas filiados
Anpuh-SP, este Grupo de Trabalho com o objetivo de reunir seus inte
grantes, no apenas para apresentao de suas pesquisas, mas, especialmen
te para estimul-los a novos desafios intelectuais , levou a termo a reali
zao de seusSimpsios Nacionais que,como apoiode agncias de fomento
como CNPq e Capes, se consolidaram na comunidade acadmica, sob a co
ordenao da Professora Sandra Jatahy Pesavento.
A conquista desse reconhecimento no foi fcil. Envolveu muito tra
balho. No obstante, tmsidoimensas assatisfaes resultantes dosdilogos
e dastrocas acadmicas quecontaram com a participao dediversos convi
dados estrangeiros. Em 2002, por ocasio do 1Simpsio Nacional de Hist
ria Cultural, ocorrido na PUC-RS, a conferncia de abertura ficou a cargo
12 maria de ftima costa

do historiador italiano Cario Ginzburge das mesas-redondas participaram o


historiador francs Jacques Lenhardt e a pesquisadora argentina Sandra Gayol.
Em 2004, foi a vez do Rio de Janeiro especificamente da Fundao
Casa de Rui Barbosa (FCRB), com o apoio do CPDOC/FGV e da UFRJ
sediaro II Simpsio Nacional de Histria Cultural. Alm de expressivos pes
quisadores brasileiros, que participaram de sessescoordenadas e mesas-re
dondas. Nesta oportunidade, o evento contou com as presenas de Serge
Gruzinski (EHESS/Paris), Roger Chartier (EHESS/Paris), JacquesLeenhardt
(EHESS/Paris), Chiara Vangelista (Universit degli Studi di Torino), Sandra
Gayol (UNGS-Conicet) e Frdrique Langue (EHESS/Paris).
J em 2006 o III Simpsio Nacional de Histria Cultural teve lugar na
Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianpolis. Pela primeira vez,
o Simpsio adotou a sistemtica de minissimpsios, ao invs de sesses de
comunicaes, ao lado das conferncias e das mesas-redondas. Mais uma
vez, o evento recebeu calorosa acolhida de pesquisadores brasileiros e con
tou em sua programao com as seguintes participaes internacionais:
Sabina Loriga (EHESS/Paris), Jacques Leenhardt (EHESS/Paris), Fernando
Catroga (Universidade de Coimbra), Chiara Vangelista (Universidadede G
nova) e Roberto Vecchi (Universidade de Bologna).
Em razo do carter vigoroso e estimulante desses encontros, o GT Na
cional de Histria Cultural registrou o resultado das comunicaes apre
sentadas em Anais Eletrnicos, e as mesas-redondas e as conferncias deram
origem a livros que hoje integram a bibliografia acerca do debate contempo
rneo atinente Histria Cultural. So eles: Histria Cultural Experin
cias de Pesquisa (organizao: Sandra Pesavento, Porto Alegre: EDUFRGS,
2003); Escrita Linguagens Objetos (organizao: Sandra Pesavento,
Bauru: EDUSC, 2004) e Histria e Linguagens Texto, Imagem, Oralidade e
Representao (organizao: Sandra Pesavento, Mnica Pimenta Velloso &
Antnio Herculano Lopes, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006).
Assim, com esse esprito de investigao e ousadia que trazemos a
pblico este Imagens na Histria Objetos de Histria Cultural. Como os
anteriores, esta publicao acolhe as reflexes apresentadas nasconferncias
e nas mesas-redondas do III Simpsio Nacional de Histria Cultural
Mundos da Imagem: do Texto ao Visual.
Nessesentido, norteados pelo tema geral do Encontro, os autores atri
buram ao mundo das imagens diversos significados e apropriaes e a par
tir deles recriaram e interpretaram temas relacionados Histria Cultural e
Cultura Poltica. Dada a abrangncia das discusses, para a confeco do
apresentao 13

livro, optamos por organiz-lo em sesses temticas a fim de que o leitor


possa apreender por prismas diversificados determinadas perspectivas em re
lao aos sentidos das imagens.
Para tanto, este volume inicia-se com o tema "Imagens da Memria e
do Sensvel", espao no qual se encontram os ensaios de Sandra Jatahy
Pesavento (Imagem, memria, sensibilidades: territrios do historiador),
Jacques Leenhardt (Do documento naturalista ao documento social: Jean-
Baptiste Debret e os pintores viajantes). Chiara Vangelista (Histria e Foto
grafia. Narrativas de um espao de colonizao: Urussanga), Maria de Fti
ma Costa (Paisagens narrativasdo espaoamaznico), RobertoVecchi {Imago
mortis: o texto, a imagem, o rastro dos subalternos), Maria Luiza Martini
(Rememorar o espetculo e observar-se rememorando) e Maria Bernardete
Ramos Flores (Imagem e memria: As musas inquietantes).
Neste primeiro conjunto de ensaios, os leitores tero disposio
interlocues estabelecidas entre a Imagem e o campo da Memria, assim
como observar distintas abordagens envolvendo as Artes Plsticas e a Foto
grafia, alm das Imagens evocadas pela Palavra Escrita. Sob diferentes for
mas, emergem temas e abordagens metodolgicas que, sem dvida, so de
grande importncia para o debate histricocontemporneo.
Por sua vez, na seco "Imagens da Poltica", os interessados entraro
em contato com as reflexes de Sabina Loriga (A imagem do historiador,
entre a erudio e impostura), Rosngela Patriota (A transfigurao da f
religiosa na crena revolucionria: Mistrio-Bufo, de Vladimir Maiakvski, e
a recriao da histria), Alcides Freire Ramos (Imagens da sensibilidade re
volucionria no cinema brasileiro dos anos 1960), ngela de Castro Gomes
(Memria e histria nos escritos autobiogrficos de San Tiago Dantas), Ana
Maria Mauad (Foto-Icones, a histria por detrs das imagens? Considera
es sobre a narratividade das imagens tcnicas) elio Cantalcio Serpa (1972:
sesquicentenrio da independncia uma esttica para a nao).
A partir de diversificados suportes documentais como o Texto Liter
rio, a Escrita Biogrfica, a Literatura Dramtica, as Imagens Cinematogrfi
case a Fotografia, os historiadores destacados acima, por intermdiode dilo
gos mantidos com as Linguagens, realizam reflexes com vistas a apreender,
seja em uma dimenso abrangente da Histria Contempornea, seja em re
lao Histria do Brasil Repblica, Imagens construdas nos embates com
as questes Polticas.
J em "Imagens da Cidade" pelos textos de Maria Izilda Santos de Matos
(Santos: para alm do porto do caf), Antonio Herculano Lopes (De como
14 maria de ftima costa

OS mulatos entraram na histria dos musicais cariocas), Mrcia Ramos de


Oliveira (Mozart na pera do Carnaval: canto e viso sem igual). Charles
Monteiro (Acidade em textos e imagens na obra de ricoVerssimo), Ricardo
Aguiar Pacheco (Ver e ser visto pelo poder: quando a poltica vai s ruas na
Porto Alegre dos anos 1920) e Paulo Roberto Staudt Moreira (Lealdades
compartilhadas: famlias negras e etnicidades no espao urbano (Porto Ale
gre, sculo XIX) encontramos instigantes anlises que recriam as cidades de
Santos, do Rio de Janeiro e de Porto Alegre pelo estudo de Fotografias, de
Textos Teatrais e de Desfiles de Escolas de Samba.
Com o mesmo universo de preocupaes, as "Imagens da Escritas" so
recriadas a partir da palavra pelos textos de Mnica Pimenta Velloso ("Sob a
copadas rvores", imagens de sensibilidade na correspondncia modernista).
Mrcia Abreu (Sob o olhar de Priapo narrativas e imagens em romances
licenciosos setecentistas), Nelson Schapochnik (Malditos tipgrafos) e Maria
Teresa Santos Cunha (Tenha modos! A correspondncia em manuais de civi
lidade e etiqueta [anos 1920-1960]). Mais uma vez, a Literatura utilizada
tendoem vista evidenciar tanto asImagens queemergem das missivas, quan
to as narrativas de peripcias que foram registradas imageticamente, assim
como as letras registram o desempenho de um ofcio e as formas de
comportamentos sociais.
Finalmente, encerrando o leque de tratamentos recebidos pelas Ima
gens no decorrer do 111 Simpsio Nacional de Histria Cultural, encontra-
seo tpico "Imagens de Si, Imagens do Outro",no qualo temada alteridade
seapresenta sobdiferenciados caminhos de investigao na escrita de Joana
Maria Pedro (Uma nova imagem de si: identidades em construo), Eduar
do Frana Paiva (Onde est o outro? A presena invisvel, o etnocentrismo e
a construo de imagens) e Artur Csar Isaia (Mensagens do alm, imagens
do aqum: o Espiritismo no discurso da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro nas primeiras dcadas do sculo XX).
A luz dessa multiplicidade temtica e terica, convidamos o leitor a
mergulhar neste debate tenso, mas cheio devigor e entusiasmo que a His
tria Cultural. Esperamos que aprecie cada texto desta coletnea com todas
assuas nuanas, inquietaes e dvidas. Mais ainda, desejamos sinceramente
que ele seja tocado por nossas discusses e que se assim desejar sinta-
seconvidado a participar do GT Nacional de HistriaCultural.
Excelente leitura a todos!
1/Imagens da Memria e do Sensvel
IMAGEM, MEMRIA, SENSIBILIDADES:
territrios do historiador

Sandra Jatahy Pesavento


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Para discutir as novas relaes entre a histria e a imagem, cabe comear


por alguns lugares-comuns, tais como o fato incontestvel de que vivemos em
um mundo perpassado por imagens, cercados e dominados por elas. Imagens nos
fascinam, imagens povoam nossa memria que rememora o passado, imagens se
oferecem a nossos olhos na cotidianidade da vida, imagens embalam os nossos
sonhos e avatares do futuro, imagens ocupam nosso universo mental quando ati
vamos nossa capacidade de criar, transformar e pensar um mundo diferente da
quele em que vivemos.
Outro dado assente, para ns, historiadores da cultura, o de que a histria
nasceu associada ao texto, fazendo que a tradicional representao de Clio d a
ver nossa musa tanto com a trombeta da fama quanto com o estileteda escrita. A
ambio de assegurar uma perenidade no tempo anima a atividade de Clio desde
o seu surgimento, a instaurar a proeminncia deuma narrativa quefixa pela escrita
aquilo que se passou e que no deve ser esquecido. Dessa forma, a escrita da his
tria pressupe guardar a memria do acontecido, tal como pressupe que a lei
tura da narrativa realize uma operao mental, que presentifique uma ausncia.
Assim, a afirmao da histria como fala autorizada sobre o passado permi
tiu que o texto avanasse sobre a oralidade, agarantir a permanncia de um acon
tecimento no tempo. Neste mundo dominado pelo texto, at bem recentemente,
para os historiadores a imagem correspondia a um uso meramente ilustrativo dos
fatos, personagens ou espaos mencionados pela narrativa.
O que ns, historiadores de hoje, buscamos neste maravilhoso mundo das
imagens, territrio de nossa apropriao recente de campo de investigao, tema
de pesquisa e objeto de reflexo? Talvez, insistindo a partir de nosso territrio
preferencial de ao, queiramos todos, to simplesmente, encontrar nas imagens
18 Sandra jatahypesavento

o seu valor de textos, para que falem e contem histrias sobre o passado, ajudando
a desfazer a opacidade dos valores e gostos que no so mais os nossos.
Alis, no esta a tarefa de todo seguidor de Clio? Compreender uma socie
dade de um outro tempo, juntar todos os traos deixados, materiais e objetivos,
mesmo que neles se contenha a imaterialidade da trama da vida, ou seja, as ra
zes, as emoes e os sentimentos, ou seja, a traduo sensvel do mundo, de um
outro tempo e de "outros" no tempo?
Os historiadores da cultura empenham-se, pacientemente, na recuperao
e na buscadestestraos descontnuos, tecendo laos e estabelecendo nexos, criando
histrias e inventando tramas; preenchendo as lacunas e os vazios com verses
plausveis e possveis, suprindo os silncios com palavras que conduzem a enre
dos. Nessa medida, este desempenhobuscadopelos historiadores aproxima-se da
capacidade desenvolvida pelo espectador, como fala Gombrich,' que,/Jz existir a
imagem. Por meio da percepo, o saber prvio e especfico de cada leitor vem
suprir o no representado, complementando a cena com os dados de seu conhe
cimento, leitura e experincia.
Se assumirmos que estes so recursos que tambm esto presentes na escri
ta da histria, quer parecer que vamos ao encontro de uma concepo, que hoje
j tem um certo consenso, de Stephan Bann a Paul Ricoeur, que admite a intro
duo deelementos nitidamente ficcionais nareconfigurao do tempo realizada
pelohistoriador.
Mas, sem aquelas marcas de historicidade ou aqueles "rastros" do passado
para utilizar a expresso consagrada por Paul Ricoeur^ , no h histria pos
svel a ser contada. Os historiadores falam de um acontecido, e esse acontecido
precisa deixar traos no tempo.
Ora, dentre tais rastros, cacos ou traos deixados, os historiadores hoje se
deparam com um tipo de registro muito especial: as imagens, estas tradues fi
gurativas doreal que podem apresentar-se sob um suporte fsico diverso, mas que
so, sempre, ao humana, artefatos que se oferecem vista e que pressupem
um leitor-espectador que as contemple.
As imagens so fruto deao humana, que interpreta e recria o mundo como
representao, exercendo grande fascnio. As imagens so visuais, e carregam con
sigo esta condio especial que se realiza no plano dos sentidos, ao serem captadas
e fixadas por um certo tempo na retina de quem v. Imagens so, pois, traos de
uma experincia sensorial e emotiva.
Mas, para alm da instncia das sensaes que produzem o efeito visual, as
imagens so mentais, pois so fruto de uma percepo, o quenos remete aos pro
cessos da esfera cognitiva de reconhecimento, identificao, classificao e atri
buio de significados. As imagens apreendidas pela vista so postas em relao
com nosso museu imaginrio interior, no arquivo de memria que cada um car
rega consigo. E, nesse processo, elas recebem uma carga de sentido que as permi
te perdurarna memria, podendoser recuperadas pelopensamento.

' Cf. E. H. Gombrich. L'art et Villusion. Paris: Gallimard, 1996.


^ Cf. Paul Ricoeur. Temps et rcit. Paris: Seuil, 1983-1985.
imagens, memria, sensibilidades: territrios do historiador 19

Assim, como assinala Aby Warburg,^ h uma memria de imagens, consti


tuda pelas representaes visuais e mentais do mundo, que todos carregamos,
transmitida como que em herana, social e individual. Para Warburg, a imagem
um rgo de memria social,"' a transmitir as tenses espirituais de uma cultura,
os conflitos, os desejos e os fantasmas que assombravam a alma e que estavam na
base dos comportamentos sociais.
possvel falar da existncia de uma memria ou seja, da capacidade de
visualizar, mentalmente, uma imagem de algo ou algum, mesmo na ausncia
do representado , porque h o registro e a percepo de uma passagem do tem
po. A reminiscncia, operao imaginria de sentido que visualiza a imagem do
ausente, mostra que a memria no possvel sem imagens.
As imagens se situariam, assim, nesta espcie de intervalo ou no mans land
do centro do humano, entre o intelecto e a sensao, entre a razo e o mito, entre
as reaes sensoriais e a capacidade de formar conceitos.
Quanto ao uso da imagem pelo historiador, tomado no seu valor de trao,
dele se espera que transmita uma espcie de testemunho sobre o passado. Afinal,
os historiadores tm expectativas deverdade para com as imagens dopassado. His
toriadores querem ver na imagem traos visveis daquilo que teve lugar um dia,
como marcas que restaram de um outro tempo e que podem dizer algo sobre o
presente de sua elaborao e de sua leitura pelos homens daquela poca jdistan
te. A"verdade" buscada, contida na imagem antiga, no se aproxima do conceito
de veracidade, mas sim do sintoma ou rastro, constituindo como que uma pega
da ou impresso de vida e energia deixada pelo passado, a atestar a presena do
humano, de uma experincia e de uma sensibilidade.
Gostaramos deenfocar um tipo muito especial de imagens antigas ou, me
lhor dizendo, de um conjunto delas, que nos permitiria atingir certos redutos sen
sveis da vida privada: os lbuns de famlia.
Mas o que , enfim, uma famlia? Para alm dos conceitos da sociologia ou
das leis biolgicas da hereditariedade, uma histria de laos, fios e ns que se
fazem entre indivduos, ao longo do tempo, como que formando um tecido ou
malha. uma histria de encontrose desencontros, de lembranas e esquecimen
tos. Uma extensa rede se tece ao longo dos anos, criando proximidade e distncia.
Famlias possuem "histrias", porque nesta ampla teia que se estende pelo passa
do, as razes so muitas eas trajetrias cruzam-se no somente pelos caprichos da
Histria com H maisculo. Histrias, portanto, o que pode ser dado aver como
herana e que, relembrado, d margem existncia de uma memria, se trans
mitida e partilhada. Memrias do privado, por certo, mas que, lidas na sua his-
toricidade, podem dar a ver o social. Memrias culturais, pois pensam o indiv
duo integrado socialmente a um contexto.
Nesse sentido, lbuns de famlia so como que uma arca de memrias, um
ba delembranas, uma caixa deguardados onde as velhas fotografias setornam

Cf. Giulio Agamben. Image et mmoire. Paris: Descle de Brouwer, 2004, p. 18.
Ibidem, p. 22.
Ibidem, p. 20.
20 Sandra jatahypesavento

antigas, ou seja, comparecem como um conjunto de imagens portadoras de um


tempo acumulado. Como afirmava Aby Warburg, a anlise das imagens e, por
suposto, destas imagens em especial permite o estudo de uma "psicologia da
expresso humana", pois contm e transmite energias de um outro tempo, que
dado a ver e que preciso decifrar.
Quer chamemoseste reduto de sensibilidade dos "outros" do passadode "es
prito de uma poca" o zeitgeist de Burkhardt , quer busquemos nas imagens
seu potencial de signo, como aponta Pierce; quer tentemos atingir o significado
intrnseco de um perodo histrico buscado por Panofsky; ou que ainda procure
mos esta espcie de prova do sensvel, esta etmrgheia, esta energia vital de que fala
Ginzburg , independente das diferenas tericas ou de mtodo que distingam
estes autores, eles todos apontam, a seu modo, para uma condio: a de que as
imagens se prestam a um processo hermenutico de interpretao, para alm do
figurativo ou do nominativo, uma vez que comportam a dimenso simblica.
Para Aby Warburg, as imagens fazem lembrar, desencadeando uma experin
cia emotiva; elas so portadoras das tenses e das sensibilidades que, desde o pas
sado, podem ser captadas no presente, por um leitor atento que pode, com elas,
compor histrias, vendo mais alm do que mostrado. nessa perspectiva que o
pensamento de Warburg se aproxima do de Walter Benjamin, quando este fala do
momento privilegiado em que o presente e o passado se encontram, em conjun
tura mpar,a permitir a decifrao do passado pelo presente.
H um percurso visual que, no caso da leitura de imagens, pressupe o
"olhar". Esta ltima operao, distinta do "ver" implica decifrar a imagem, bus
cando cdigos, detalhes que operam como sintomas e mensagens que remetem
s sensibilidades de uma poca. Olhar sempre uma escolha, tanto a partir de um
ato de vontade vemos o que queremos quanto de uma capacitao ve
mos o que podemos, com baseem nossa experincia, nossa insero espao-tem-
poral, conhecimento e sensibilidade.
Todo lbum familiar de fotos exibe situaes tomadas em um outro tempo.
O fato de estarem reunidas em lbum faz dessas fotos um tipo de coleo: um
conjunto que se articula em funo de um sentido, que pressupomos, de ante
mo, ser o registro de momentos da vida.
Um lbum de famlia foi resultado de uma criao a do fotgrafo, profis
sional ou amador, como, por exemplo, um membro da famlia que realizou as
fotos , ato que pressupunha sensibilidade, tomada de ngulos, escolha e seleo
de cenas e personagens, alm da inteno de registrar no tempo momentos e es
paos. Dispor tais fotos em lbum, organiz-las e, sobretudo, guard-las, pressupe
leitores-espectadores. Um lbum familiar aposta na memria, em permanncia
no tempo, em recordaes sempre possveis pela contemplao de imagens, em
emoes revividas toda vez que algum, em um momento dado, olhar uma foto.
Ora, uma foto de famlia no obedece, necessariamente aos critrios da es
ttica visual. Podemos encontrar belssimas fotos, mas a incluso de uma ima
gem em um lbum familiar parece atender a outros critrios, o que tambm nos
conduz a outras pistas de um universo sensvel ntimo, nos domnios do privado.
imagens, memria, sensibilidades: territrios do historiador 21

de seus afetos e razes. Um lbum de fotos desse tipo permite a captura das sensi
bilidades dos indivduos deste crculo reduzido que a famlia, tecido de laos
especiais, E, do indivduo ao social, um lbum pode nos dizer, como j foi assina
lado, algo sobre a expresso humana na sua irredutvel historicidade.
Exibindo momentos variados da existncia de uma famlia, as fotos de um
lbum podem ser consideradas como uma herana vinda do passado que se conec-
tam a muitas outras imagens, herdadas e retidas na memria social de cada um.
Mergulhemos no nosso pequeno acervo, muito maltratado ao longo dos anos,
situando-o no tempo e no espao: este lbum pertenceu a uma famlia que viveu
em uma pequena cidadeda campanha gacha, na viradado sculoXIX para o XX.
Mas ento ele pertence Belle poque, diro alguns, queteria, pois, chegado
a estes lugares to distantes e esquecidos do sul do Brasil? Pois bem, se a moder
nidade e a Belle poque desembarcaram em taislugares longnquos, para essafam
lia, entre tantas outras, foi na forma de uma mquina fotogrfica, adquirida em
Porto Alegreou outras plagas mais distantes, provavelmente importada do estran
geiro. Alis, tambm da dita Belle poque era o Perfecsope patenteado nos EUA
em 1895 e apresentado na exposio universal de Paris de 1900 prosaicamente
chamado no sul do Brasilde marmota aparelho que dava a ver postais parisienses
em terceira dimenso , tal como o projetor cinematogrfico que, mandado vir
da Frana, divertia as crianas e talvez toda a famlia e vizinhana, quem sabe
com os singelos filmes curtos de situaes cmicas de Path e Gaumont.
Mas tais materiais cinematogrficos no chegaram at ns e sobre o ama-
relecido e muito desgastado lbum que nos voltamos, com fotografias muito pre
judicadas e sem maior qualidade artstica. O que este material, no caso, pode nos
dizer, como reserva de sensibilidades do passado, como arquivo de memria por
meio da imagem?
Em princpio, o autor dessas fotos o chefe dessa famlia ao comprar a
mquina tornou-se detentor do saber tcnico de oper-la. Possuidor da habilida
de de fotografar, eletinha sua disposio o cotidiano da vida,as pessoas da fam
lia tomadas em pose ou em instantneo , os fatos do imprevisto desta pe
quena cidade ou do extraordinrio de sua vida familiar. Tudo muito reduzido em
alcance, muito simples, muito ntimo, talvez mesmo sem qualidade ou interesse
para os outros. Sem interesse, sobretudo, para a grande histria, para quem este
fotgrafo amador um total desconhecido e s o chamamos de fotgrafo porque
era ele quem operava a mquina.
Masacreditamos que de posse desse aparelho fotogrfico ele buscouregistrar
tudo que esteve a seu alcance e justo o resgate desta banalidade das coisas de
cada dia que nos interessa, pois tal lbum familiar estariano corao de uma rede
de sentidos que organiza a esfera do privado e que toca s sensibilidades. Seu va
lor , pois, de marcar afetividades, e no de apreciao esttica das fotos em si
mesmas. De nossa parte, fizemostambm uma seleo, desprezando talvezas mais
perfeitas e mais bem conservadas, optando pelas que, para ns, pudessem nos di
zer mais.
Comecemos por duas fotos fundadoras da identidade desse grupo familiar.
E, no princpio deste lbum, achamos a casa, esta slida residncia assobra
dada, que aparece em uma esquina da pequena cidade, diante de um largo com
terra revolvida, que faz pensar no ajardinamento de uma futura praa. O panora
ma quase de desolao, pois ela surge como que isolada. Mas esta casa que se
exibe, a mostrar suas inmeras janelas, onde as mulheres se debruam, a posar
para a foto, ostenta certos requintes de construo nos frontes, nos vasos ou ur
nas que encimam a fachada, junto de uma srie de colunas, ou nas janelas que
apresentam vidraas em arabescos. Esta famlia exibe-se pela casa e seus signos,
tal como o faz o carro estacionado porta, puxado por cavalos, com o competente
condutor. Ladeado por duas meninas maiores, o menino postado na calada ates
ta a presena de empregadas domsticas para cuidar de crianas. A casa, tradicio
nal microcosmo do social, reduto da intimidade, mas tambm do aparecer social,
foi a imagem escolhida pelo fotgrafo, seu morador, para figurar no lbum fami
liar. Casas so razes, e se existe uma forma de inscrever no tempo e na terra uma
presena, a representao do espao construdo, de propriedade de uma famlia,
uma imagem exemplar.
Mas essa famlia precisava tambm constar do lbum, com todos os seus
membros, o que dificultava o procedimento para o fotgrafo amador. Imagine
mos sua atuao nesta empreitada, suprindo as lacunas do passado e imaginando
uma performance para este ato. O fotgrafo disps a famlia na varanda e na esca
daria dos fundos da residncia, em frente ao poo chamado de "algibe" ,
mandou a todos tomar posio, armando a cena, cada um ocupando uma posi
o determinada. Reservou para si um lugar, no alto da escada, acima da sogra.
imagens, memria, sensibilidades: territrios do historiador 23

Preparou tudo, ensaiou a tomada, coma famlia em frente, posando e esperando.


A chamou algum, amigo ou vizinho, por certo, pois todos os familiares deviam
constar da foto, inclusive ele, fotgrafo. E correu a ocupar seu lugar na foto, onde
figuram todos, dispostos, no por acaso, em planos e disposies diversas.

Nos fundos da casa, o grupo familiar aberto ao p da escada por sua esposa,
filha nica do proprietrio da casae razo do seu ingresso privilegiado nesta famlia;
seu sogro, que se situa no degrau acima da filha, leva nos braos o neto; segue-se a
sogra, figurando ele, fotgrafo, no final desta seqncia, como o marido e genro
que se agregou famlia. Na varanda, debruadas, as duas velhas senhoras so,
como seria de esperar, as respectivas mes dos sogros do fotgrafo amador.
As quatro geraes representadas na foto fazem-se acompanhar dos ser\'i-
ais da casa, presentes nas trs mulheres e na menina de avental, no passadio da
varanda. Na outra extremidade, sob o caramancho, meio na sombra, est o ordc-
nana, pois nosso fotgrafo era militar e tinha sua disposio um subordinado,
com presena nesse meio familiar. O chauffeur deixa de figurar nesta foto tomada
nos fundos da residncia, talvez por ter sido j exibido na anterior, que mostrava
a fachada da casa e o carro da famlia. Sinais todos evidentes do status de uma
famlia que quer fixar sua imagem no lbum, atestando a presena de emprega
dos para o servio domstico nestestempos recm-sados da escravido.
Retratos, como se sabe, tm o valor simblico de representarem a forma pela
qual o retratado gostaria de ser visto. Dizem respeito, portanto, aos valores e auto-
conscincia dos indivduos com relao ao aparecer social, s identidades e pcifor-
mance dos retratados. No retrato de famlia, a gestualidade da pose e a conscincia
Sandra jatahy pesavento

do valor da perenidade no tempo que desta imagem resultar demarcam a sole


nidade da foto.
Ora, os escravos. . . Essa famlia possura escravos, que com eles permane
ceram depois da Abolio, no servio domstico ou como agregados, vivendo nas
cercanias do casaro. Nosso fotgrafo tambm os retratou, por que no? Nas cons
cincias da poca, ter os ex-escravos na continuidade do servio da casa atestava a
bondade e correo dos senhores. Eles, no caso, haviam "optado" por permanecer
junto da famlia, na continuidade dos servios.
Do negrinho Vicente, comprado menino por um saco de erva-mate e mais
tarde libertado por ocasio o aniversrio da filha de seu senhor, no restou ne
nhuma foto, embora tenha permanecido com a famlia at adulto. Mas o africano
Joo Miranda figura entre os fotografados. Dele, se dizia que nunca havia usado
sapatos e seus ps tinham gretas por onde dava para enfiar um prego sem machu
car, para divertimento da meninada da casa. Terno branco, chapu no colo, ele
tem os disformes ps descalos agora enfiados em chinelos ou sandlias, a mos
trar que era livre. Sentado teso em uma cadeira em frente casa modesta, o velho
Joo Miranda posa para a foto tirada pelo fotgrafo-genro de seu antigo senhor.

A 'L^- <23
imagens, memria, sensibilidades:territrios do historiador 25

Mas este Joo Miranda, digno do olhar do fotgrafo, tinha uma famlia sua,
que o acompanha nesta outra foto posada. Tmidas, de diferentes idades, sem sa
berexatamente como enfrentar o fotgrafo, demonstrando gestos canhestros, um
grupo de mulheres de idades variadas cerca Joo Miranda. Seria uma delas figu
rante da foto familiar anterior, prestando servios na casa dos antigos senhores, j
com roupa adequada e modos contidos? Trata-se, sem dvida, de um retrato no
qual os retratados no possuem o domnio ou a compreenso dos cdigos ade
quados da gestualidade conveniente ao ato fotogrfico. Nesta foto, Joo Miranda
o nico que, verdadeiramente, demonstra que sabe como se portar diante do en
genhoso emoderno aparelho

s
Apresentada a famlia, a casa, os empregados e agregados, cabia ao fotgrafo
registrar os momentos do cotidiano, para que no fossem esquecidos. Tais mo
mentos foram fruto de escolhas pessoais do fotgrafo e o registro de tais cenas de
intimidade est ligado esfera dos sentimentos, de forma indissocivel. Estes mo
mentos poderiam ser tomados, ainda que em pose estudada, na familiar hora do
26 Sandra jatahypcsavento

ch, tomado ao ar livre nos dias de bom tempo. Momento de pausa das lides do
msticas, a congregar as mulheres da casa e outras, parentes e amigas, o ritual do
choferecia ao fotgrafo a oportunidadede registrar um hbito. Uma cena do lar,
tpicadas sociabilidades femininas, tomada na objetiva do marido-fotgrafo.

i
Todas elas e mesmo a criana, na cadeirinha alta, com olhos muito arrega
lados olham a cmara, inclusive aquela a sogra que, em movimento
suspenso, serve o ch para a filha esposa do fotgrafo que estende a taa. Esta
ltima personagem merece um olhar mais atento. Ela a nica que dirige o olhar
para o bule de ch, e se apresenta aparentemente alheia mquina fotogrfica e
pequena encenao que tem lugar neste espao privado. Ela est grvida, veste uma
bata sobre a saia e nesta condio, na intimidade do lar, que o marido a retrata.
Na seqncia dos registros da vida e dos afetos, a grvida reaparece em outro
momento do cotidiano desta famlia. Desta vez o fotgrafo ousa ir alm da pose
estudada para seus registros de imagens: ensaia-se na captura do momento fugaz,
a surpreender gestos e palavras com sua cmara. Trata-se agora de registrar o ins
tantneo, de um momento feliz. Com a mquina preparada, o fotgrafo-marido
deve ter aguardado o momento engraado, a cena tocante, o explodir das emo
es. Sem a fotografia, tais cenas seriam esquecidas; com a foto incorporada no
lbum de famlia, ser sempre possvel recordar estes minsculos incidentes, es
tes pequenos "nadas" com que se faz a vida de cada dia e com o que se tecem as
reminiscncias. A grvida reaparece, a rir, tal como todos, de uma provvel "graci-
imagens, momna, sensibilidades: territrios do historiador

nha" da criana, que deve ter dito ou perguntado algo ao menino sentado no cho.
Nesse ambiente de descontrao, debaixo das rvores e prximo a um monte de
lenha que deve ter sido cortada das proximidades, a cena talvez banal, mas o
registro sensvel de um momento feliz dos membros dessa famlia.

'I.
^*1

T/.

Em outro instantneo realizado pelo fotgrafo-pai, tomado em outro canto


do mesmo quintal, o filho pequeno diverte-se espantando as aves domsticas: gaios,
galinhas e perus. Trata-se, pois, de outra situao fugaz, na qual a fotografia foi ca
paz de captar o rpido incidente, da criana a enxotar os animais. Mais um momento
para recordar deste mundo infantil, onde no falta mesmo a ternura. O beb no
colo do av est a mostrar que a grvida deu a luz e h mais uma criana na casa.

i
28 Sandra jatahy pesavcnto

Caberia notar a importncia do instantneo das fotos. A pose implica controle


dos gestos, em artifcialidade do corpo, em manifesta inteno de assumir um
aparecer social. O retrato fotogrfico, a rigor, vem a substituir-se pintura retra
tista, socializando a oportunidade de cada um ter a imagem "desejada" de si, ima
gem para ficar e para preservar uma determinada identidade do sujeito. A rigor, se
foi o cinema, ao empreender a exibio da imagem em movimento, a inovao
tecnolgica que pareceu ter captado, finalmente, a vida, a apreenso fugaz do ges
to, mesmo que em suspenso, em "parada" surpreendida pela cmara, veio a repre
sentar um avano e uma etapa neste caminho da fabricao de imagens. H algo
de livre, de solto, de surpresa e de descontrole, de vida em ao a imaginar o antes
e o depois da captura do instantneo. Esse tipo de foto nos faz pensar em ausncia
de cena armada, de pose ou artificialidade, mesmo que possamos imaginar clara
mente que o fotgrafo estivesse ali parado, com sua cmara, por longos momen
tos, a esperar a ocorrncia de uma situao fotografvel. Como assinala Georges
Didi-Huberman, diante de uma imagem, estamos sempre diante do tempo,'' e este
registro do flagrante nos parece ser bem um feliz exemplo desta situao.
Pois bem, nosso fotgrafo amador parecia mesmo empenhado em lanar-se
nesta aventura de registrar as emoes fugidias do cotidiano. Em suma, buscava
capturar as emoes passageiras, como o choro da criana, descontente mesmo
com o chapu de papel de soldado. . . que lhe puseram na cabea, em um
tipo de fotografia que, bem sabemos, passou a comparecer em todos os lbuns de
famlia, a mostrar como os pais querem guardar as emoes dos filhos, para depois,
olhando as fotos, "lembrar comoera", achando graa e seenternecendo com aquele
sofrimento momentneo. A curiosidade infantil, flagrada no olhar do menino que
espia pelas colunas do balco, ou a muda indagao do outro que olha o gesto do
pai a fotografar, em ato j familiar nesta casa, dizem algo sobre as intenes do
autor. O trivial da vida assunto e matria para este olhar fotogrfico que passeia
pelo cotidiano, traduzindo, talvez, um ideal de "lar", mas certamente empenhado
em transmitir a memria de uma famlia, em herana sensvel para ser guardada.

'Cf. Georgc.s Didi-Huberman. Atile el tienipo. Buenos Aires; Adriana Hidalgo Editora, 2006, p. 11.
imagens, memria, sensibilidades: territrios do historiador

: L

- .-^1.

Entretanto, esta to pequena cidade, esta vida prosaica de cada dia tinha seus
momentos de alterao de rotina. Por exemplo, o carnaval, quando as crianas da
casa eram fantasiadas de msicos, com roupas feitas do jornal Correio do Povo,
editado na capital do estado, desde 1895, e que chegava at aquela regioda campa
nha gacha. Ou, por outras, um terrvel vendaval, a destelhar casas, tudo registra
do por nosso fotgrafo-reporter. Ou ainda, uma caminhada, em que o mau estado
30 Sandra jatahy pesaveiito

da foto no permite ver o motivo desta marcha, que inclui crianas, adultos, gen
te aparentemente humilde. Os da frente dessa caminhada parecem carregar pa
pis ou folhas de jornal, e os do fundo, que acompanham a marcha, em meio
poeira da estrada ou rua no calada esto ocultos pelos guarda-chuvas, a se pro
teger do sol. Quem sero eles? Por vezes, bem sabemos, as lacunas do passado res-

11

iiKf I il

incompreensveis para o leitor do presente, que no consegue preencher os vazios


deixados. Outra foto desta quebra de rotina do cotidiano apresenta estes tais "vigi-
Iheiros", a passar pela cidade, tal como consta indicado no lbum de famlia. Pelo
uniforme, a tropa a cavalo do exrcito, instituio a qual pertencia nosso atento
fotgrafo. Que "viglia", que caravana militar foi esta, a alterar a placidez da vida e
a merecer o registro de uma fotografia, como um acontecimento fora do normal?
Nesta pequena cidade, toda alterao da normalidade da vida devia ser motivo de
comentrio e de alvoroo, digno de ser registrado na memria visual e fotogrfica
da famlia.

Momentos muitos especiais para a vida do casal se deram quando eles em


preenderam uma "grande viagem", at o Rio de Janeiro. . . O fotgrafo-viajante
no deixariade registrareste fato excepcional, deixando fotos desse percurso. Desde
a partida da pequena cidade, de trem tomada na retaguarda do vago, at o trajeto
do navio ao longo da costa, passando por Itaja, em Santa Catarina, at a chegada
l do fo tgraf, o a muiner, de chapu
erto, t;ra jar-se e ap ar-se na C ral , aponta
oi obj et(5 de fc itogi
O
Lembran iTi, momentos
to. Lu ga res pa ra k lostrar aos fi-

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r.'-4. *

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Mas, as aventuras deste nosso fotgrafo pelo mundo das imagens no se li


mitaram a estes registros at aqui apresentados: as fotos posadas, de tipo documen
tal, para a afirmao de uma famlia, os momentos de intimidade da vida privada,
captando instantneos carregados de afetividade, as tomadas de momentos espe
ciais, a fugirem da rotina da vida diria. Do terno ao pcaro, do banal ao formal e
32 Sandra jatahypcsavento

deste ao travesso, nosso incansvel fotgrafo amador foi alm nas suas artes de
capturar a vida. Com os recursos que tinha disposio, ousou enveredar pelo
mundo dos truques, compondo fotografias de iluso, to ao agrado da Belle poqiie
em que viveu, apesar de to distante dela no espao.

, //r

- flSai
Da cidadezinha do sul onde morava, ele sintonizava com as artimanhas das
imagens, a inventar fotos impossveis, fantasmticas. No plano do real da existn
cia,estas situaes criadas no tinham lugar, mas no plano das representaes pos
sveis de serem fabricadas por ele, um certo domnio da tcnica fotogrfica lhe
permitia criar imagens bizarras!
Assim que vemos o fotgrafo amador servir um caf a si mesmo, no duplo
papel e garoii e de fregus. como se ele, de seu pequeno mundo, conseguisse
conciliar as duas formas de conhecimento do mundo de que fala Barthes. Roland
Barthes precisa bem a distino e tambm o entrelaamento entre o que chama o
stiiciiutn e o piinctum.' O studium pertence ao campo do saber e da cultura, da tc-

Cf. Roland Barthes. La chambre claire. Note siir Ia pliotographie. Paris: Gallimard-Scuil, 1980.
imagens, memria, sensibilidades: territrios do historiador

nica que resulta de um processo de aprendizagem e reenvia ao conjunto de infor


maes e de referncias que constitui nossa bagagem de conhecimentos adquiri
dos. J o pinictiim incide sobre as emoes, sobre aquilo que nos toca na relao
sensvel do eu com o mundo, refere-se ao que emociona, ao que passa pela expe
rincia, pelas sensaes. O piiuctuw opera como uma ferida, algoque nos atinge
profundamente e diante do qual no ficamos indiferentes. Mas studium e pimctutn
convivem, bem certo, so mesmo indissociveis, uma vez que tudo o que toca o
sensvel por sua vez, remetido e inserido cultura e esfera de conhecimento
cientfico que cada um porta em si. Talvez essas fotos possam ser um exemplo de
um conhecimento adquirido, de um saber fazer incorporado, mas que no se se
para da esfera do sensvel.
No prosseguimento destes ensaios de produo de fotos, nosso autor com
parece na dupla performance que o faz ler jornal e tambm ter no colo seu filho
beb, cada um de um lado da mesma mesinha. Estas so blagiies fotogrficas a
divertir a famlia e os amigos, por certo, mas so tambm aventuras no mundo da
fabricao de imagens por parte deste bem-humorado fotgrafo, dando a ver um
impossvel, mas com ares de verdade!
34 Sandra jatahypesavento

A ltima foto desta srie de truques fotogrficos, to ao agrado do sculo


XIX, a mais prejudicada, tal o seu mau estado de conservao. Entretanto, uma
imagem que se realiza para alm daquilo que visto, dotada, portanto, de um
valor simblico especial. Trata-se do truque de representar a imagem de algum,
de forma fantasmagrica, em um crculo, no cu, acima das casas. Esta fisionomia
- que no mais podemos identificar- figura como que sendo uma viso, um so
nho, uma apario, muito usada para tentar provar a existncia da aura, de espri
tos ou do ectoplasma, com largo emprego entre charlates fin de sicle. Sabe
mos que nosso fotgrafo era esprita, e devia ter conhecimento destes usos.

Mas, por outro lado, a composio de tais imagens obedecia nesta poca tam
bm, por vezes, a fins sentimentais, para demonstrar que a imagem de uma pes
soa amada ocupava os pensamentos daquele que lhe devotava afeio e que se
situava, assim, no plano dos afetos, como que acima das coisas materiais deste
mundo. Preferimos, pela lgica de nossa histria e da leitura que fazemos deste
lbum de famlia, destinar a tal truque fotogrfico, este ltimo significado: era
talvez uma prova de amor. . . A tal ponto que, morto o fotgrafo, a viva a conser
vou em seu lbum, mesmo danificada, o que permitiu que ela chegasse at ns,
junto com as demais, permitindo dar a ver, nessas fotos, histrias de imagens, de
memria, de sensibilidades.
DO DOCUMENTO NATURALISTA AO DOCUMENTO SOCIAL
JEAN-BAPTISTE DEBRET E OS PINTORES VIAJANTES

Jacques Leenhardt
cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, Paris

A histria do olhar sobre as populaes e as culturas extra-europias come


a no continente sul-americano. Desse ponto de vista, a obra de Frans Post cons
titui, sem dvida, a contribuio mais marcante do perodo colonial para o co
nhecimento por imagens da realidade brasileira. Mas preciso reconhecer que,
apesar de Post, durante os primeiros sculos desta explorao os preconceitos re
ligiosos e culturais dominantes no deixaram muito lugar investigao precisa,
ou seja, a um olhar cientfico. Quando o ilustrado sculo XVIII se abriu, verda
deiramente, ao conhecimento do outro, quando os a priori religiosos e antropo
lgicos deram uma chatice a um olhar curioso para com as diferenas, foram os
viajantes do oceano Pacfico os que abriram as brechas mais notveis no discurso
que se estabeleceu sobre os que se chamava ento ainda "selvagens".
JJma (^s razes desse avano reside na relativa facilidade que houve de en
trar em contato, por barco, com vrias populaes desconhecidas, desde quando
foram controladas as devastaes causadas pelo escorbuto e pelos principais ma
les advindos da navegao. Osarquiplagos do Pacfico ofereceram aos navegado
res amplo material etnogrfico em condies mais convenientes do que no con
tinente americano, onde era preciso afastar-se da base naval e percorrer imensos
territrios perigosos e longnquos parapoder encontrar os"selvagens".
Alm disso, com a multiplicao das viagens de explorao havia-se difun
dido a tradio prpria aos marinheiros de longo curso de escrever um dirio,
exato e circunstanciado dos lugares, populaes, flora e fauna das terras desco
bertas. Desde a segunda metade do sculo XVlll, as cincias naturais, entre as
quais j se podiam contar as primeiras formas de antropologia, desenvolveram
um olhar emprico e sistemtico, cujas colees de minerais e vegetais vieram a
constituir o corpus principal. So chamados a bordo dos navios que partem em
explorao desenhistas profissionais cujos esboos servirode documentos, para-
36 jacques leenhardt

lelamente aos dos topgrafos e s descries escritas redigidas pelos botanistas e


zologos, igualmente embarcados.
Charles de Brosses insistira, particularmente em sua Histoire cies Navigations
aux TerresAustrales (1756), sobre a necessidade de ter a colaborao dos profissio
nais do desenho por ocasio destas viagens. Mais exigente ainda, La Prouse dar,
por seu lado, instrues extremamente precisas, a respeito do trabalho requisita
do pelo desenhista especializado.

[. . .] ele observara o gnio, o carter, as maneiras, os costumes, a cons


tituio fsica, a linguagem, o governo e o nmero de habitantes [. . .] Ele
coletar as curiosidades naturais, da terra e do mar, as por em ordem, esta
belecer o catlogo para cada espcieque deve ser desenhada, onde ser men
cionado o lugar em que elas foram encontradas, o uso que delas fazem os
habitantes do lugar e, em se tratando de plantas, as virtudes que lhe so atri
budas. [. . .] Da mesma maneira eleordenar as insgnias, armas, ornamen
tos, utenslios, instrumentos de msica e todos os objetos em uso junto aos
povos visitados. Cada objeto dever ser etiquetado e numerado com um n
mero correspondente sdescries do catlogo.'

A preciso dessas descries d idia do esprito de curiosidade intelectual


difundido na poca das grandes viagens exploratrias da segunda metade do S
culo das Luzes, entre as quais as realizadas pelo Capito Cook desempenharam
um papel to importante junto ao pblico.
A parte que toma o desenho neste surto de conhecimento essencial. O
esprito de investigao iria culminar com a criao da Socit des Observateurs
de THomme, fundada em Paris em 1799, onde se encontravam as figuras j cle
bres de Cuvier e Jussieu. Joseph Marie Degrando, filsofo e pioneiro da antro
pologia social, que redigir para ela a memria preparatria para a expedio de
Nicolas Baudin (1754-1803) sobre as costas da Nova Holanda (Austrlia). Envia
do pelo Diretrio no comando de duas corvetas, das quais, somente o nome j
contm todo um programa O Gegrafo e O Naturalista , Baudin tinha a bordo
diversos cientistas, entre os quais Franois Pron e Henri de Saulses de Freycinet
e seu irmo Claude, que publicaram em 1807 sua narrativa de viagem,obra exem
plar da nova funo cognitiva adquirida pelo desenho. Essas diferentes publica
es deram um enquadramento intelectual novo s empresas da descoberta que
iam ter, igualmente, influncia decisiva no campo das artes, umavez que se colo
cavam em face das exigncias de preciso documental ainda inditas na poca.
Ainda quevoltado sobretudo paraa pintura histrica, Jean-Baptiste Debret
tinha, sem dvida, conhecimento desses processos em voga antes de partir para o
Brasil em 1816, a convite da monarquia portuguesa. A empreitada esttica era de

' Jean Franois Galaup, apud Bernard Smith. European Vision and the Pacific Soi4th. 2.' ed. New
Haven/Londres: Yale University Press, 1985, p. 139.
do documento naturalista ao documento social, debret e os pintores viajantes 37
fato considervel, a lidar entre a viso tradicional do ensino acadmico, ainda sob
as regras do neoclassicismo, e a exigncia de exatido quesetinha desenvolvido por
ocasio das expedies. Essas expedies foram, na verdade, ocasio de feliz encon
tro entre artistas, formados no desenho e na pintura nas academias das belas-artes
e dos desenhistas cientficos habituados disciplina descritiva da botnica ou da
zoologia, semfalar nosdesenhistas da marinha, ligados s normasda cartografia.
As regras da arte acadmica encontraram-se, pois, confrontadas com as exi
gncias no mais da "bela natureza", como se gostava de dizer, mas simplesmente
da natureza, com suas leis prprias de organizao. A questo ultrapassava em
muito a nica exatidona relao das formas e das matrias(escamas, peles, cores,
tecidos cutneos). A nova verdadeda natureza exigia uma verdadeira especificao
da planta ou animal, um incio de restituio ecolgica, se poderia mesmo dizer,
que substituiria a "bela paisagem" por um "meio de vida".
Essasexigncias,estranhas tradio do paisagista clssico, constituam para
os pintores uma espcie de campo contraditrio. Era preciso contemplar o gosto
dos amadores, sempre influenciados pela esttica tradicional e ao mesmo tempo
desempenhar seu papel na transformao das mentalidades que se abeberavam
na fonte dossaberes e das descries empricas que tambm tinham o seu pblico.
Asgrutas pitorescas e as cascatas sublimesque invariavelmente se encontravam nos
carns dedesenho detodos osartistas queacompanhavam osricos viajantes do Grand
Tour italiano continuavam a agradar, mas elas correspondiam cada vez menos s
expectativas de um novo pblico sedento de conhecimento. Durante um longo
sculo, entre digamos 1760 e 1860, se encontram, de fato, divididas entre essas
duas exigncias e se pode dizer que a evoluo do desenho documental, e mais
ainda, etnogrfico, ser determinado pela maneira segundo a qual cada artista se
comportar com relao aoscdigos da aprendizagem acadmica da arteaosquais
se filia.
Este aspecto propriamente esttico desdobra-se de um outro, ideolgico e
moral, queconcerne mais especificamente aodesenho etnogrfico. Depois do in
cio do sculo XVllI, as idias sobre os que chamavam de "selvagens" se multipli
cam e se entrechocam. H, de um lado, os "bons s.elvagens", livres dos vcios da
sociedade tal como entendiam os que, de Fnelon a Rousseau, acreditavam nas
"virtudes primitivas", e de outro os "maus selvagens", rebeldes, canibais e pagos,
objetos, no melhor dos casos, das tentativas de evangelizao pelas igrejas mis
sionrias ou, ao contrrio, sendo vtimas de massacres brutais.
Pode-se analisar este debate esttico-tico com base em algumas imagens
de nativos da Terra do Fogo, chamados fueguinos, que Debret teve, sem dvida,
sobos olhos antes de partirparao continente americano. Esses fueguinos, ou me
lhor,patagnios, habitavam em tendas de pele, toldos. Eles surpreenderam os pri
meiros viajantes que passaram o estreito de Magalhes por seu grande talhe e sua
absoluta nudez. No foi preciso mais para que nascesse um verdadeiro mito do
"bom selvagem fueguino", que Fnelon difundir em suas Aventures de Tlmaque
(1699), onde a pobreza elevada ao plano da virtude.
38 jacques leenhardt

Quatro imagens a respeito das quais Bernard Smith chama a ateno em


sua obra European Visioi and the Padfic Soiith- ilustram bem a tenso, para no
dizer as contradies, que existem no fim do XVIII entre um olhar "etnogrfico",
representado aqui pela aquarela de Alexander Buchan: Habitantes da Ilha da Ter
ra do Fogo e Sua Cabana (1769) e o estilo "pitoresco", adotado pelos artistas como
J. B. Cipriani ou Sydney Parkinson, ou mesmo o exotismo manifesto na inter
pretao de J. F. Read.
Estes trs ltimos desenhistas no pertencem ao mundo da viagem, mas ao
da edio. Eles ilustram narrativas de viagem, sem preocupao etnogrfica, mas
com um sentido acertado ao gosto do pblico amador.

As cabanas dos habitantes da Terra do Fogo

Cabana de Buchan

O desenho de orientao etnogrfica de Buchan, que sei-ve de referncia aos


trs ilustradores, apresenta a particularidade de se restringir ao seu objeto e de
reduzir a cenografia aos elementos indispensveis ao conhecimento do meio e

- Bernard Sniith. European Visioii and the Pacific Soiith. 2.^ ed. New Havcn/Londres: Yale
Univcrsit)' Press, 98.S.
do documento naturalista ao documento social, debrct c os pintores viajantes 39

das tcnicas. Pode-se a reconhecer as rvores torcidas e ressecadas da Terra do


Fogo, varrida pelos ventos. O desenhista coloca, alm disto, direita da imagem,
um tabique de madeira constitudo de uma estrutura sobre a qual est estendida
uma pele. Este detalhe tem uma funo claramente explicativa no que diz respei
to tcnica de fabricao da cabana. Contudo, ele desaparecer no seguimento.
Os cinco fueguinos de Buchan esto reunidos em torno do fogo, a ateno
presa por um deles, representado de costas. Uma boneca (aparentemente, e no
uma criana) c um cachorro se encontram esquerda da cena, sem que os perso
nagens paream tomar conhecimento dessa presena. Os penteados so idnticos,
assim como as vestimentas que cobrem apenas parcialmente os corpos, apesar do
frio reinante nestas plagas, como assinalaram os viajantes.
O desenho apresenta ento um momento de vida, bem preciso em suas ca
ractersticas. Os nicos elementos que permanecero intocados ao longo da srie
das re-interpretaes desta imagem so as calabaas que pendem do teto da caba
na e o fogo!

Cabana de Parkinson

A representao da casa e do fogo toma, por exemplo, significaes bem dife


rentes seguindo as imagens. Reduzido a brasas esquentando os habitantes em Bu
chan, ele se torna em Sydney Parkinson^ uma fumaa espessa ocultando parcial
mente os habitantes, o que desvia o olhar do espectador em proveito da paisagem

' Sydney Pirkinson. Nativos of Terra dei Fuego with their Hut, Crayon c Goiiachc 1769 liritish
Muscum. In: Bernard Smith. Eiiropenn Vision and the Pacific Soiilli. 2.'* ed. Now Havcii/Londrcs: Yalc
University Prcss. 1985, p. 37.
40 jacqucs icenharcit

e do visitante que se aproxima. este ltimo que ocupa de agora em diante o


centro da imagem, figura de viajante levando sobre os ombros, qual um So Cris
tvo da tradio crist, uma criana que acolhe de braos abertos uma outra crian
a postada no centro. O nmero de personagens, dos quais a singularidade das
vestimentas foi copiada, aumentou, acrescentando uma certa confuso nesta par
te da cena. O desenho no descreve ento mais um hbitat e seus habitantes, mas
um encontro que transcorre sob os nossos olhos. A cabana passada ao segundo
plano, o espectador se encontra em face de um quadro de paisagem com persona
gens, bem dentro da tradio do pittoresco que se refere a Claude Lorrain."*
Nota-se que o primitivismo no aqui nem valorizado como simplicidade
bem-aventurada, nem denunciado como brutalidade: a cena poderia quase se pas
sar em um contexto rural europeu, pois Parkinson no vestiu suas figuras grega
ou romana como o far Giovanni Battista Cipriani.^ Foi suficiente lanar algu
mas vestes sobre um monte de corpos parcialmente velado pela fumaa para atingir
o seu objetivo, que o de lanar ao centro a ateno do espectador.

Cabana de Cipriani

' Claude Gellc dit Lc Lorrain (1600-1682), pintor francs; trabalhou cssendamcnlc em Roma
e considerado, ci>m Poussin, o pai da paisagem clssica cm pintura.
~Ciiivanni Battista Cipriani. A Vicw oj lic Iiuliaiis of Terra dcI Fiicgo in thcir Hiit. (iravura a partir
de (jpriani por Bartolozzi, in: J. Hawkcsworth. An Acconnt of lhe Vcyages Undcrtakeii by lhe Order of
His Prcscnt Mnyesty for Makiny Discovcrics in lhe Soiilh Heinisphere. London 1773, reproduzido em
Smith, op. cit,, p. 39.
do documento naturalista ao documento social, debret e os pintores viajantes 41

As transformaes sofridas pela cena de Buchan na gravura feita segundo


Cipriani so diferentes. O artista no tenta, corno Parkinson, mergulhar o tema
primitivista em um quadro de paisagem. Ao contrrio, a cabana permanece o tema
central, com seus habitantes. Mas, por questes de convenincia neoclssica, o
desenhista cobriu os fueguinos com uma espcie de togas ou vestes romanas. Com
relao Buchan, ele igualmente os multiplicou, acrescentando dois personagens
para ele voltados e acolhendo o espectador, assim como duas crianas que do
um toque familiar cena, lembrando em tudo, esteticamente, as figuras dosputti
Ia italiana.
Mesmo que a forma tradicional da paisagem clssica esteja aqui restringida
ao extremo, a apresentao dos fueguinos que caracterizada, em Buchan, pelo
estreito enquadramento do grupo abrigado sob a cabana, se encontra aqui inseri
do numa narrativa onde, tal como em Parkinson, o movimento de chegada de
um personagem, situado direita, d margem a uma pequena encenao: um
membro da famlia retorna trazendo o fruto de sua coleta, um peixe e, sem dvi
da, frutas na cesta que leva sob o brao. O que aparentemente uma "boneca" na
ltima imagem torna-se aqui, de forma clara, uma criana, fazendo parte do ale
gre bando dos putti c reforando o clima familiar. O fogo crepitando d uma to
nalidade festiva cena, onde todo o carter "primitivo" apagado pela esttica
rococ do conjunto, notvel pelo rol de penteados e pela gestualidade acolhedora
que contrasta ortcmente com a imagem de Buchan. Tem-se a impresso de estar
diante de uma pastoral, em um boiuioir decorado por Boucher.

Cabana de Read
42 jacques leenhardt

Com J. R Read enfim, a preocupao descritiva cede espao definitivamente


imagtica extica.^ Nota-se a presena da palmeira, impossvel nessas latitudes,
motivo de exotismo que o gravurista repete nessa paisagem longnqua. V-se tam
bm que os ramos tranados sobre os quais esto estendidas as peles perderam
sua funo e no constituem aqui seno um motivo arquitetural, uma abbada
acolhedora. O fogo tambm perdeu toda a sua funo e no representa seno um
dos temas estereotipados da vida dos povos primitivos. A cena faz-se didtica, com
este personagem chegandopelaesquerda, trazendo,como em Cipriani e Parkinson,
a cesta e o peixe, tal como convm a uma populao que vive da colheita e da
pesca. A estrutura familiar parece, por seu lado, reforada com a figura imponen
te do pai dominando uma esposa apagada e crianas colocadas em plano inferior,
a menina modestamente reclusa na casa!
A diferena de tratamento dos personagens do ponto de vista da vestimenta
permanece, em compensao, uma questo aberta: progresso civilizatrio? Con
tribuio da cultura europia integrada pelasgeraes ascendentes? A cena pode
ria indicar a perspectiva de uma evoluo, de um processo civilizatrio, tema que
se encontra desde Condillac e quese reencontrar tambmem Debret. Dumont
d'Urville quem dar a esta corrente da sociologia evolucionista sua expresso mais
claracomparandoa organizao social dos maoris da plis grega.
Alm disso, encontramos em Debret muitas imagens que remetem a estes
debates estticos. Particularmente quando se examinam as pranchas da primeira
parte de sua obra Voyage Pittoresque etHistorique au BrsiW consagrada spopula
esautctones. Sabe-se que Debretdeclarainteressar-se principalmente pela po
pulao do Rio de Janeiro, onde morava. Ele no teve, ento, muitas ocasies de
viajar nas zonas habitadas pelosndios, pouco numerosos na capital.Tratando-se
da representao destes "primitivos", Debret se encontrava de fato, por falta de
informaes de primeira mo, condenado a se valer de fontes livrescas a sua dis
posio, como, por exemplo, a obra Le Voyage au Brsil, extremamente precisa
nas suas descries mas pouco ilustrada de von Spix e von Martius.
Sente-se a hesitao de Debret. Trs vias lhe so, em princpio, abertas: o
neoclassicismo de Jean-Louis David, que pe o destaque sobre a nobreza e a
grandiosidade das posturase dassituaes, o romantismo amigodos"bons selva
gens" e do pitoresco, enfim, a preciso etnogrfica dos desenhistas profissionais
tendo acompanhado os viajantes.
Em Voyage Pittoresque et Historique au BrsiU parece que Debret sentiu a
inadequao e as contradies que engendrava a idia de grandiosidade que ele
havia ensaiado aplicar na sua pintura destinada Corte nos primeiros anos de sua

^ J. F. Read. Natives of Terna ciei Fuego, gravura, in: Captain Cook. Voyage roind the World,
publicada por W. Wright, Londres, 1843, reproduzida in: B. Smith, op. cit., p. 39.
' Jean-Baptiste Debret. Voyage pittoresque et historique au Brsil, Paris, 1834-1839. In: . Viagem
pitoresca e histrica ao Brasil. Trad. Srgio Milliet. So Paulo: Crculo do livro, [s.d.].
* Dr. Joh. Bapt. von Spix und Dr. Gari Friedr. Phil. Von Martius Reise iii Brasilien auf Bcfchl Sr.
Malestiit Maximilian Joseph /, Knig von Baiern in den Jahren 1817 bis 1820 gemacht und beschrieben. M.
Lindauer Mnchen 1823. Ver, por exemplo, a descrio dos ndios purs, coroados e corops, livro IV
captulo 2, Trad. Lcia Furquim Lahmeyer. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938, p. 341, ss.
do docuincMito naturalista ao documentosocial, dcbret e os pintores viajantes 43

estada brasileira. Se, por vezes, uma composio lembra os ensinamentos de David,
ela se torna, de ora em diante, desviada de sua seriedade, tornando-se, seguida
mente, revestida de uma carga irnica, ridicularizando o que representa, como
por exemplo, a imagem "O Retorno de um Proprietrio" (Prancha 15).

Bugres, Provincio de Santa Catarina

Com mais freqncia do que quando representa os ndios, Debret desliza


para o romantismo. Assim, nesta representao dos "Bugres, Provncia de Santa
Catarina",'' que se faz valer da imagem do "bom selvagem" e nos mostra moas
vestidas moda romntica, agarradas s rvores graas s fortes coxas, e que reco
lhem, delicadamente, os frutos. E, por final, ser, pelo contrrio, a maior exatido
documental que dominar nas pranchas consagradas s "Formas de Habitao
dos ndios" (Prancha 26) ou em "Potes, Cestas e Armas Ofensivas" (Prancha 34).
As imagens que Debret consagra aos ndios manifestam, de mltiplas ma
neiras a contradio diante da qual se encontra o artista. E esta contradio se
exerce tanto no plano esttico, como se viu, quanto no tico e poltico. Aquilo
que lhe interessa a populao das cidades, uma vez que a sua experincia revo
lucionria em Paris lhe fez compreender que elas so os motores da histria.
ento entre os portugueses vindos na Corte do rei no exlio, entre os colonos mais
ou menos fiis Metrpole e, paradoxalmente, entre os escravos em semiliberdade
do Rio tambm que ele procura a matria de suas composies, mais do que na
vida primitiva dos ndios das florestas. Herdeiro da Revoluo Francesa, ele se cen
traliza no processo de civilizao, uma vez que ele no sensvel poesia de
Rousseaii do "bom selvagem". Seu olhar poltico, e nessa perspectiva, ele nada

" Iciin-Baptisto Dcbict. Vtiyagc piltorcsiitie cl hitoriquc iiii Ihvfil, Paris, 18.^4-18.^9. In: . Vio^ciii
pitoresco < histrico oo lirosil. Trad. Srgio Millict. So Paulo: Crculo do livro, [s.d.|, p. 48. (Prancha 8).
jacques leenhardi

>*ai>4taiaii
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tttaaapaiS*

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Formas de Habitao dos ndios


do documento n;Uurilistaao documento social, debret e os pintores viaiantes 45

espera das populaes autctones. S a cidade o torna livre e constitui o meio


suscetvel de dar nascimento Nao no decorrer do processo em curso e que ele
tem o pressentimento de estar a assistir, este Brasil daqui por diante independente
da antiga metrpole colonial.
Seusquadros da vida dos ndios, como, por exemplo, o que se apresenta em
unia nica imagem "Botocudos, Puris, Pataxs et Maxacalis", obedecem a uma
espcie de dever de exaustividade prprio ao gnero da Voya^c., mas no perten
cem ao corao ideolgico de sua empresa.

Botocudos, Puris, Pataxs et Maxacalis

A idia mesmo de reunir numa nica imagem quatro tribos ndias de sur
preender, ainda mais se levarmos em conta que o artista os situa cm um quadro
paisagstico nico e verossmil. Ora, esse mesmo quadro perde toda a credibilidade
no somente porque no possvel que essas tribos to diferentes e distantes no
espao estejam sentadas juntas, mas tambm pelo falo de,que nessa imagem, cada
um possui sua prpria fogueira, o que acentua o efeito irrealista de colagem e a
vontade de articular uma montagem. Da a estranha impresso que produzem esta
e outras imagens, que parecem verossmeis, mas que no so em realidade seno
uma prancha documental agregando, por necessidade, em um s quadro icnico,
realidades bem distintas. Ao contrrio do que se passa em outras imagens compos
tas, no se trata aqui de mostrar os diferentes aspectos de uma situao, mas bem
mais da repetio dos traos codificadosdo primitivismo. Incoernciasuplementar:
se os personagens do primeiro plano simbolizam uma selvageria violenta e horri
velmente primitiva, as figuras femininas que se destacam sob o cu, estranhamente
prximas das imagens de Albcrt Eckhout, remetem, ao contrrio, imagtica do
"bom selvagem". Assim, no plano esttico como no dos valores morais engajados
na representao dos ndios do Brasil, Debret mostra-se contraditrio, incapaz de
46 jacques leenhardt

criar para si um estilo unificado que d conta de uma posio coerente. Isso no
se d seno quando em contato com a vida urbana do Rio, quando ele encontrar
sua expresso adequada. Mas para isso ser preciso uma nova ruptura.
Vindo ao Brasil em 1816 a pedido da monarquia, quando se encontra em
Paris, sem trabalho depois da queda definitiva de Napoleo, Debret se curva pri
meiro s exigncias da arte cortes. Ele est bem aparelhado para fazer isso, se
bem que a grandiosidade das composies da pintura histrica neoclssica en
contra dificilmente objetos altura de suas ambies na confuso da vida urbana
e social do Rio. O monarca no seno um fugitivo e a cidade, antigo centro
comercial da Colnia, se encontra sem maiores recursos para fazer face ao seu
novo papel de capital do imprio. O descompasso se revela em tudo, como to
bem analisou Rodrigo Naves, tornando-se a tica neoclssica inaplicvel s cir
cunstncias brasileiras.'^
Debret teria permanecido artista mdio, medocre, mal utilizado por circuns
tncias adversas, se no tivesse encontrado em sua herana tica novas razes de
se apropriar desta realidade nascente. De fato, ser preciso que ele compreenda
que o que assiste no a ecloso de uma Monarquia ou um Imprio regenerados
por seu exlio forado, aos quais ele teria sido constrangido, pelas circunstncias
daFrana, a emprestar seu talento de pintor de histria, mas que ele se confronta
ao nascimento de uma Nao Moderna, emergindo daruptura colonial edaescra
vido com uma fora singularmente viva. Desde a introduo da segunda parte
de sua obra ele anuncia claramente seu novo propsito. Trata-se de descrever "a
marcha progressiva da civilizao no Brasil", do que ele fornece claramente o prin
cpio motor; aescravido. "Tudo assenta pois, neste pas, noescravo negro; naroa,
ele rega com seu suor as plantaes do agricultor; na cidade, o comerciante f-lo
carregar pesados fardos; se pertence ao capitalista, como operrio ou na qualidade
de moo de recados que aumenta a renda do senhor"." Eis por que Debret aban
donar a pompa monrquica para a vida da rua onde se manifesta a energia viva
do Brasil na pessoa dos escravos, onipresentes no contexto urbano. Ele far desta
vida anrquica eviolenta, mas carregada de esperanas polticas, o objeto de sua
obra singular, na fronteira da documentao sociolgica eda histria social.
Poder-se-ia dizer que aperspectiva do desenhista etngrafo preservar a me
mria de uma civilizao a caminho de desaparecer quando a tarefa do desenhis
ta historiador consiste, no enquanto, em mostrar como os povos e as culturas se
articulam com para formar uma nao. Na Viagem pitoresca ehistrica ao Brasil,
a viagem pittoresca encerra o estrangeiro, que chega a aparecer extico, no seu
passado, quando a viagem histrica implica que o viajante e o objeto de sua ob
servao participassem do mesmo mundo, participassem do mesmo processo
histrico, mais que antropolgico.

' Cf. Rodrigo Naves. Aforma difcil. So Paulo: tica, 2001, p. 60 ss.
" Jean-Baptiste Debret. Op. cit., p. 121.
HISTRIA E FOTOGRAFIA. NARRATIVAS DE UM ESPAO
DECOLONIZAO: URUANGA

Chiara Vangelista
Universidade de Gnova, Itlia

O tema de minha interveno a relao entre histria e fotografia, ou, me


lhordizendo, da fotografia como fonte histrica. Em homenagem sede deste novo
encontro do Grupo de Trabalho em Histria Cultural, escolhi analisisar compa
rativamente duas distintas narrativas visuais da colonizao italianaem Uruanga.
A imigrao italiana nessa regio comeou em 1878, um ano depois da fun
dao das novas colnias de povoamento ao sul de Florianpolis (ento denomi
nada Desterro) e a poucos quilmetros da costaatlntica. Os lugareseram pareci
dos com tantas reas de fronteira que no Brasil eram destinadas colonizao
europia: cobertos de mata, ricos de guas e de relevos, que faziam com que as
comunicaes fossem bastante difceis. Em Santa Catarina, como no Rio Grande
do Sul, os colonos italianos chegaram tarde, aps que os imigrantes alemes que
tinham recebido as terras relativamente melhores.'
Assim, no comeo do sculo XX, enquanto que as colnias alems cujos
centros principais eram Blumenau e Joinville prosperavam, os assentamentos
mais para o sul, ocupados pelos italianos, russos e poloneses, viviam num regime
de subsistncia. S mesmo nesses anos a colnia italiana de Uruanga estava vi
vendo algumas transformaes econmicas e institucionais importantes: a fun
dao do municpio, no ano de 1900, e a integrao nas atividades de extraodo
carvo mineral em Cricima, a poucos quilmetros de Uruanga. Assim, no al
vorecer do sculo, esta colnia, formada por camponeses procedentes do antigo
Reino Lombardo-Vneto, recm-integrado no Reino de Itlia, comeou a ser alvo
de ateno pela antiga me-ptria, onde se publicaram os dois volumes que so

' Em 1910 o estado de Santa Catarina contava com 405.800 habitantes, dos quais 182.000 eram
imigrantes ou seus descendentes: 120.000 alemes, 42.000 italianos, 20.000 russos e poloneses (Ranieri
Venerosi i Pesciolin. Le colonie italiane nel Brasile merdionale. Stati di Rio Grande do Std, Santa Catha-
rina, Paran. Turim: Fratelli Bocca, 1914. pp. 198-200).
47
48 chiara vangelista

objetos da minha anlise: o livro do Pe. Luigi Marzano, Coloni eMissionari Italiani
nelleForestedei Brasile, sado em Florena em 1904, e o amplo relatrio de Ranieri
Venerosi Pesciolini, LeColortie Italiane negli Stati Meridiomli deiBrasile, publicado
em 1913 na revista Italica Gens e logotransformado no conhecido volumedo mes
mo autor, e com o mesmo ttulo, impresso em Turim em 1914.-
Os dois volumes, muitos diferentes entre si em estilo, enfoque e pblico de
referncia, tm pelo menos dois traos comuns: os autores, quase contemporneos,
foram testemunhos do primeiro, ainda incerto, desenvolvimento econmico da
regio e ambos dedicaram especial ateno insero de imagens fotogrficas. De
fato trata-se das primeiras imagens pblicas de Uruanga, que analisarei adiante
como exemplo de distintas narraes visuais da colonizao italiana no Brasil.
Antes de entrar propriamente na anlise das imagens, me parece necessrio
propor algumas reflexes em torno da relaoentre histria e fotografia.
No amplo processo de multiplicao das fontes histricas que se deu nas
ltimas dcadas do sculo passado, a fotografia teve lugarde destaque, ainda que
a sua capacidade de ser fonte histrica tenha sido bastante controvertida. Por um
lado, parecia quea prpria natureza da fotografia criasse uma relao privilegiada
com a histria e os historiadores: a reproduo do real, a funo de perpetuar no
tempo o testemunho pormenorizado da existncia mesma de pessoas e de even
tos; a capacidade de representar tanto o extremamente particular, como os gran
des acontecimentos da histria dos Estados e das naes. Todas essas propriedades
fizeram com que da fotografia, desde seu nascimento e ao longo das muitas dca
das seguintes, fossem ressaltadas suas qualidades dedocumento.
A estreita relao entre fotografia e histria, e at a capacidade da fotografia
de fazer histria ou substitu-la estava no convencimento dos pais desta tecnologia:
o francs Gaspard-Flix Tournachon, mais conhecido como Nadar (1820-1910),
tinha concebido a formao de grandes Pantheons fotogrficos, para perpetuar no
futuro a reproduo exata do passado; Mathew B. Brady (1823-1896), norte-ame
ricano, trabalhou para a formao de uma galeria de homens ilustres (1850) e
comprometeu-se a realizar a documentao da guerra civil americana, tarefa em
que seempenhou at morrer, pobre e esquecido.
Por outro lado, a fotografia situou-se e continua situando-se nas mar
gens das pesquisas histricas. No estado atual da histria cultural, em que as ma
nifestaes e os produtos mais diversos das atividades humanas podem transfor
mar-se em fontes histricas, a fotografia ainda custa paraconquistar ateno mais
cuidadosados historiadores, os quais, apesar dasdeclaraes de princpios, a utili
zam mais como ilustrao que como objeto de estudo especfico.^
' P. Luigi Marzano. Coloni e missionari italiani nelle foreste dei Brasile. Florena: Tipografia
Barbra, 1904; e Ranieri Venerosi i Pesciolin, op. cit. Do mesmo perodo, outro livro sobre a
colonizao em Uruanga o de C. M. Delgado de Carvalho. Le Brsil Meridional (tiide cononiique).
Paris: E. Desfosss Imprimeur, 1910.
' V. a esse propsito Peppino Ortoleva. Una fonte difficile. La fotografia e Ia storia deiremigra-
zione. Altreitalie, v. Il, a. 1991, n." 5, pp. 120-31. Do mesmo autor, cfr. o importante ensaio metodo
lgico, La fotografia. 11 Mondo Contemporneo, Gli strumenti delia ricerca. Questioni di mtodo.
Floxrena: La Nuova Italia, 1983, pp. 1122-54. vol. X:
histria e fotografia, narrativasde um espao de colonizao: uruanga 49

O fato que as questes metodolgicas relativas fotografia como fonte his


trica so muitas, demais para ser aqui elencadas. Vou citar apenas duas, funcio
nais ao meu discurso sobre a representao da emigrao e da colonizao.
A primeira questo est no fato de que praticamente impossvel a no
ser em casos muito especficos encontrar um verdadeiro corpus documental
fotogrfico, sobretudo em relao a fenmenosde massa. O historiador geralmente
no conhece os autores das fotografias; ele tem dificuldade de localizar a maioria
dos eventos documentados, e, ainda mais, dispe de um material imenso: mi
lhes de fotografias, recolhidas nos arquivos do territrio,ou reproduzidasem jor
nais e livros. So milhes de caras, de roupas, de habitaes, de objetos, de paisa
gens que olham para ele, que oferecem uma aparente objetividade documental,
diante da qual o historiador manifesta uma compreensvel perplexidade.
No meio das muitas fotografias soltas, o historiador pode encontrar s raras
vezes conjuntos de imagens ligadas, desde o momento de sua produo, por uma
unidade lgica, como os lbuns, seja de famlias, seja os publicados em ocasies
oficiais especficas (comemoraes, festas nacionais e locais, exposies). Em ou
tros casos um possvel roteiro analtico que, alis, o mais utilizado deli
mitar o corpus documental por meio da palavra escrita o que vou propor aqui
ou da palavra falada, quando as fotografias esto includas nas dinmicas de
relao daentrevista, para a produo dafonte oral.
Arelao entre imagem fotogrfica e palavra escrita (em lbuns fotogrficos,
ou em livros e revistas ilustradas) constitui para o historiador a primeira e mais
bvia maneira de individualizar ou construir um corpus documental fotogrfico.
De fato, na linha de uma longa tradio, que nasce com a Encyclopdie de
Diderot & D'Alembert e continua at nossos dias (aludimos aos trabalhos de Ernst
Gombrich e de RudolfArnheim), o texto que atribui um significado especfico
imagem.
Na segunda metade do sculo XVIII, Diderot, no vocbulo Peinture da En
cyclopdie, afirmava que sa histria podia tirar a equivocao gerada pelas repre
sentaes pictricas,^ e doissculos depois Ernst H. Gombrich considerava que:

As imagens no podem fazer asseres. Ao passo que um relato verbal


precisa assegurar-nos que pretende observar um estado do mundo existen
te, a representao figurativa sem ttulo pode referir-se facilmente tanto a
uma construo existente, como a uma imagem da memria, a um projeto
ou a uma fantasia.^

Mas, acrescentaramos ns, importante, nesta interconexo entre texto e


imagem que se pode evidenciar em muitos casos refletir tambm sobre a
natureza da fotografia como fonte histrica.
' Encyxlopdic, ou Dictiontunre raisonn des scienccs, des arts et des mtiers, par une sodtde gens
de lettrcs. Diderot D'Alembert, Livourne, MDCCLXXIII, letra P.
'' Ernst H. Gombrich. Vimmagme e Vocchio. Altri studi sidla psicologia delia rappresentazione
pittorica. Turim: Einaiuii, 1985, p. 205.
50 chiara vangelista

Bourdieu, Barthes, Gombrich, Arnheim esto entre os protagonistas do de


bate, desenvolvido entre os anos 1960 e 1980, sobre a percepo da imagem e da
imagem fotogrfica, debate esse que teve a importanteantecedncia, na dcada de
1940, no ensaio de Jean-Paul Sartre sobre imagem e conscincia:^ todos estes estu
dos so, para o historiador,a ferramenta bsica para a anlise da fotografia.
Com efeito, o conhecimento dos mecanismos de percepo da imagem
fundamental para o historiador analisar a fotografia como fonte histrica. Eleno
pode prescindir das consideraesem torno da natureza da fotografia como meio
de expresso. Para especificar mais: no mbito da pesquisa histrica, a fotografia
, sem sombra de dvida, o documento de um acontecimento ou de um ambiente,
mas, sobretudo, a expresso de uma forma de representao, social e cultural.
As imagens procedentes do passado tornam-se fontes histricas como do
cumentos de uma construo narrativa visual, que fornece indcios de um con
texto social e cultural.
Para dar um exemplo, leiamos as fotografias reproduzidas nas (Figs. 1 e 2),
relativas emigrao europia na Argentina, no comeo do sculo XX e forman
do parte de dois textos de lembranas da colonizao.^ Trata-se das fotografias de
dois grupos familiais de emigrantes: uma famlia italiana (Fig.l), originria da
regio do Piemonte, retratada provavelmente no quintalda casa: todos esto sen
tados e com roupas de festa. Asegunda fotografia (Fig. 2) representa a famlia de
um colono dinamarqus, procedente da regio da Jutlndia, todosde p no meio
de um campo cultivado.
Lidas na chave das relaes de gnero, a primeira mostra um contexto repe
tido no caso da emigrao italiana: se trata de uma representao ritual, destinada
aos descendentes e aos parentes que esto em Itlia. Homens e mulheres ocu
pam asduas distintas metades dafotografia; no centro da imagem esto os velhos
da famlia e asduas moas, as mais jovens do grupo. Aconstruo da fotografia j
faz perceber as relaes familiais (avs, netas, filhos ou filhas, gneros ou noras);
o homem idoso o chefe da famlia, mirando dentro do aparelho fotogrfico; a
mulher de olhos baixos e de roupa escura. O papel subalterno das mulheres,
suasfunes de trabalhadoras e reprodutoras da famlia so to evidentes em tan
tas fotografias da poca que estamos acostumados a pensar que esta seja a nica
imagem codificada da mulher europia camponesa imigrada na Amrica Latina.

^ Jean-Paul Sartre. Immagine e coscienza. Turim: Einaudi, 1948; Pierre Bourdieu (dir.). La
fotografia. Funzioni e usi sociali di tm'arte media. Rimini: Guaraldi, 1972; Gombrich. Vimtnagine e
l occhio, cit.; Gombrich. Arte e ilhisiotte. Studio stdla psicologia delia rappresentazione pittorica. Turim:
Einaudi, 1965; Ernst H. Gombrich; J. Hochberg 8< M. Blach. Arte, percezione e realt. Turim: Einaudi,
1978; Roland Barthes. La camera chiara. Turim: Einaudi, 1980; Rudolf Arnheim. II pensiero visivo,
Turim: Einaudi, 1974; Rudolf Arnheim. Sulla natura delia fotografia. Rivista di Storia e Critica delia
Fotografia, v. III, a. 1981, n.'' 2, pp. 6-23.
' Donato Bosca. . . . io parto per VAmerica. Storie di emigranti piemontesi. Alba: Societ Editrice
Tanaro, 1985; e Andreas Madsen. La Patagnia vieja. Pionieri ai confini dei mondo. Turim: CDA8c
Vivalda Editori, 2002, [pginas fora do texto).
" Sobre as numerosssimas significaes das fotografias dos emigrantes, e seu papel na
comunicao familial, v. Paola Corti. Vemigrazione. Roma: Riuniti, 1999 (col. Storia fotogrfica delia
societ italiana).
1p

(ii.

?'
'- -v.

e'v-t tr^Vfiy

Figura 2.
52 chiara vangclisla

Porm, lendo as fotografias que se encontram em um livro de memrias de


um imigrado dinamarqus na Patagnia, nosso imaginrio entra em discusso.
Na Figura 2 representado um ncleo familial, este tambm vestido para festa; o
orgulho pela propriedade'^ e pelo trabalho aqui ainda mais evidente, porm as
relaes entre os retratados so mais afetivas, e o pai acaricia o ainda pequeno
filho maior. Outras fotografias presentes no livro (uma espcie de lbum familiar
apresentado ao pblico dos leitores) mostram imagens nas quais as mulheres so
as nicas protagonistas; por exemplo (Fig. 3), as camponesas pobres, moradoras
da extrema fronteira argentina, esto a cavalo e de bonibachas; em outras, elas so
representadas lendo na grama florida.

Figura 3.

A leitura comparativa destas fotografias mostra dois contextos sociais dis


tintos, duas culturas diferentes, no obstante a pertinncia social seja em subs
tncia a mesma e a Argentina seja para as duas famlias o pas acolhedor. Igual
mente podemos afirmar que os destinatrios das fotografias fossem socialmente
os mesmos: os parentes do alm do oceano, a prpria famlia emigrante, os des
cendentes. A comunicao, porm, totalmente distinta. Talvez as relaes de g-

' Sobre a reprcsciilao da propriedade nas fotografias da emigrai;o italiana, v. o meu Da un


lbum fotogrfico dei 1911: immigra/.ione e propriet nello Sialo di So 1'aulo. Vi'nlc.<into Sccolo. a. I,
n.'" 2-3, 1991, pp. 459-I7.V
histria e fotografia, narrativas de um espao de colonizao: uruanga 53

nero fossem distintas, entre emigrados dinamarqueses da Jutlndia e italianos do


Piemonte, mas os textos nos quais se situam as fotografias mostram uma situa
o parecida. O que distinto a maneira e a vontade de se auto-apresentar, e
esse um indcio social e cultural importante.
O que distinto, provavelmente, o ritual da tomada da fotografia: de algu
ma maneira oficial e extraordinria, no caso dos italianos; ntimo e cotidiano, no
caso do dinamarqus. Simplesmente, talvez, o dinamarqus possua um aparelho
fotogrfico, o italiano, no. Esse fato, porm, um elemento no negligencivel
para tecer nossa histria a partir dessas duas narraes fotogrficas. A famlia ita
liana talvez no tivesse aparelho fotogrfico e confiava no instrumento e na capa
cidade tcnica de um profissional, para representar um evento importante: s este
teria merecido ser perpetuado em uma imagem, fixando para sempre o papel so
cial e econmico da famlia e, no seu interior, das relaes de gnero.
Afamlia dinamarquesa, pelo contrrio, provavelmente no achava um gas
to suprfluo ou intil a compra de um aparelho fotogrfico, para evidenciar no
s as celebraes oficiais da unidade e da prosperidade da famlia, mas tambm
os aspectos mais ntimos e afetivos dessas relaes familiares, sugerindo-nos que
estes tambm formavam parte da comunicao e que sua representao fosse le
gitimada social e culturalmente.
Podemos enfrentar agora a segunda questo metodolgica sobre a qual que
ro chamar a ateno: a construo daimagem fotogrfica.
Os historiadores esto bem pouco atrados e convencidos pelo discurso da
objetividade documental e da fotografia como "prova de verdade"'" e, nesse senti
do, osestudos sobre a percepo das imagens e a sua construo so instrumen
tos fundamentais para a anlise da fotografia como fonte histrica. No preciso
assinalar que os dois processos construo e percepo so estreitamente
integrados, pois oautor constri a fotografia em funo da percepo final daima
gem e geralmente se referindo mesma rede decdigos deinterpretao de seus
futuros leitores.
Alm disso, a experincia do colonialismo e das duas guerras mundiais do
sculo passado, e dos atuais momentos deguerra, nos faz refletir sobre como, no
nosso cotidiano, as imagens fotogrficas e as fotografias em movimento osfil
mes , sejam construdas artificialmente para comunicar demaneira impactante
um discurso polticoe ideolgico.
Podemos ir mais alm, afirmando que so as fotografias falsas as que se per
manecem mais fortes no imaginrio coletivo. Falsas em dois diferentes sentidos,
amide convergentes na mesma imagem: primeiro, construdas para representar
e comunicar algo que nunca aconteceu e que no corresponde s dinmicas efe
tivas dos acontecimentos, e,segundo,/a/sas porque construdas artificialmente para
condensar numa nica mensagem o que o Autor considera o sentido ltimo,
emblemtico de um acontecimento ou de uma situao.

Peppino Ortoleva. Una fonte difficile. La fotografia e Ia .storia deiremigrazione. Altreitalie, v.


III, a. 1991. n." 5.
54 chiara vangelista

O estudo dos dois conjuntos de textos e imagens de Venerosi Pesciolini e de


Marzano esto na base das reflexes feitas at agora. Ambos os textos tratam em
parte (Venerosi Pesciolini) ou por inteiro (Marzano) da colonizao italiana em
Uruanga, no estado de Santa Catarina. Para ambos, no sabemos quem tomou
as fotografias, mas elas revelam uma perfeita coernciacom o texto; podemos en
to supor que foram feitas, ou escolhidas, ou encomendadas pelos dois autores
dos textos, e modificadas obedecendo s suas indicaes.
Os historiadores da comunicao visual colocam nos anos situados entre os
sculos XIX e XX a poca na qual a fotografia considerada como representao
do real mais do que objeto de fruio esttica; o cuidadoso trabalho de modifica
o das imagens do livro de Padre Marzano , porm, um exemplo importante
do fato de que a fotografia, para atingir sua qualidade de documento, sujeita a
uma srie de modificaes, capazes de atribuir imagem a funo de narrao e
interpretao dos acontecimentos.
Asfotografias, que por brevidade chamaremos"de"Venerosi Pesciolini e "de"
Marzano, representam, com distncia de dez anos, os mesmos lugares e talvez as
mesmas pessoas. Mostram por si ss, mas ainda mais se postas em conexo com
ostextos, a construo deduas distintas narrativas do espao decolonizao italiana
em Uruanga. Com efeito, com exceo dos dois panoramas da colnia (um por
cada texto), impossvel colher traos da Uruanga de Marzano na Uruanga de
Venerosi Pesciolini e vice-versa: tratam-se de dois espaos distintos, no comunic
veis, porque individualizados e desenhados por duas distintas narrativas visuais.
Comecemos pelas fotografias "de" Venerosi Pesciolini, aqui representadas
pelas Figuras 4 e 5. evidente a inteno documental, e em duplo sentido: como
documento do roteiro deviagem do autor, do portodeDesterro, atUruanga em
panorama, at as atividades dos colonos; e como documento da colonizao que,
pelo texto, sabemos ser compartida na regio com a colonizao alem, a russa e
a polonesa.
Venerosi Pesciolini fornece ao leitor um roteiro de aproximao colnia e
de visita a ela. A sensibilidade do fotgrafo pela composio da paisagem e seu
desejo de construir imagens agradveis evidente. Poucos anos antes, em 1910, a
fotografia de paisagem tinha sido aceita como gnero especfico na Exposio In
ternacional da Fotografia em Dresda, e um crtico italiano notava como este g
nero fotografia era uma forma de expresso muito difcil, porque"[. . .] a paisa
gem no mais um documento geogrfico, mas um conjunto de luzes e sombras,
de linhas e de planos, que [. . .] devem comunicar-nos o som misterioso da sinfo
nia das foras da natureza"."
O fotgrafo que ilustrouo livro de Venerosi Pesciolini mostra estasensibilida
de, proporcionando uma profundidade de viso, construda na base de planos dis
tintos, no usual para a poca (Fig. 4); tambm a representao das atividades eco
nmicas da colnia (um exemplo representado pela Figura 5) construda para

" Cesare Schiapparelli. farte fotogrfico alVEsposizione internazionale di fotografia di Dresda


1909. Turim: G. Momo, 1910, p. 46.
%

Figura 4

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Figura 5.

satisfazer a sensibilidade esttica do fotgrafo e do leitor. , porm, evidente a in


teno documental das fotografias, pela leitura das quais podemos ver que os co
lonos chegaram a um porto amplo e com bastante movimentao, instalaram-se
num vale aberto, dedicaram-se a atividades agrcolas e artesanais.
56 chiara vangelista

A narrao de Padre Marzano, dez anos anterior de Pesciolini, totalmente


distinta. O texto do missionrio salesiano constri um espao italiano em terra
estrangeira; h poucas referncias ao governo brasileiro e pouqussimas aos brasi
leiros habitantes da regio; nenhuma presena de colonos de outros pases euro
peus. No relato de Marzano os italianos esto sozinhos numa terra selvagem, con
quistando espaos de civilizao mata e a seus habitantes i.e., ndios e animais.
Os colonos descritos por Marzano conquistam a floresta e constrem um
espao marcadamente italiano com trabalho e fuzis. Com efeito, o livro termina
com um apelo "s almas gentis" de Turim, na Itlia, para arrecadar armas de qual
quer tipo, a serem utilizadas na luta contra os ndios.
O texto de Marzano acompanhado pontualmente pelas imagens, formando
uma galeria de retratos de autoridades religiosas brasileiras e salesianas,e represen
tando uma natureza selvagem, vencida ou domesticada por ao dos missionrios.
A imagem reproduzida na Figura 6 um exemplo desse gnero de narrao visual.
Numa clssica fotografia de grupo (aqui tambm frente de uma habitao, como
no caso, mais modesto, da Figura 1), nove religiosos, todos homens e postos numa
ordem simtrica que representa a importncia hierrquica de cada um, so insertados
em um tringulo, cujos vrtices so, em baixo, duas plantas em vaso aluso
floresta virgem de Uruanga e, em cima, uma ave morta, pendurada na passa
gem da porta (ento, como as plantas, posta de propsito para a fotografia). A ave
no est exatamente no centro da fotografia, provavelmente para que sua presena
no tenha significao blasfema, mas de toda forma chama ateno para a mais co
nhecida representao popular de um dos componentes da divina trindade. Embai
xo, os ps do bispo de Curitiba, que evidencia com a mo a cruz pendurada no
peito, pisam firmemente numa pele de ona, que forma a base do tringulo visual.

Figura 6.

P. Luigi Marzano, op. cit., p. 305.


histria e fotografia, narrativas de um espaode colonizao: uruanga 57

Nessa fotografia, como em outras do livro de Marzano,'-^ a composio da


imagem que constri a narrao. O fotgrafo, de acordo com os temas propostos
e a partir de um lugar que, por ser escolhido, torna-se simblico a gruta artifi
cial com a imagem sagrada, a sede da misso, a floresta , compe a imagem, tal
como ser fixada na fotografia. Trata-se do tipo de fotografia-espelho, um espelho
dotado de memria,'^ que, no caso especfico, quer sublinhar a ao civilizadora
da religio catlica. Os elementos naturaisesto presentes e domesticados; as plan
tasnos vasos, as pedras que formam uma gruta artificial (numa fotografia no re
produzida aqui), osanimais, mortos. Os ps dos missionrios pisando as peles de
ona retomam, em verso prosaicae tropical, um motivo freqente na iconografia
crist (veja-se, p.ex., a mede Jesus Cristopisando a cobra).
Estas so imagens bastante comuns na iconografia missionria, que se po
dem confundir em nossa memria com outras, ao lado das de Venerosi Pesciolini,
que so parecidas a tantas fotografias representando a colonizao italiana no Brasil.
Seu aspecto documental reside na concentrao, mediante a montagem ou a to
mada daimagem, de todos oselementos que podem informar o leitor, propondo-
Ihe aomesmo tempo uma interpretao do contexto retratado.
So outras, porm, as fotografias que no livro de Marzano chamam ateno
do leitor e que ficaro na memria. Podemos aindadizer quesetrata de fotografias
que, tiradas do contexto do livro, continuam produzindo autonomamente signi
ficado.
Refiro-me fundamentalmente a duas imagens: a primeira a capa do livro
(Fig. 7); a segunda intitulada "Volta da Floresta com Trs Pequenos Selvagens"
(Fig. 8).'^ Tiradas dolivro deMarzano, reproduzidas eelaboradas eletronicamente,
encontradas em outros contextos, essas duas fotografias no representam mais a
colonizao italiana em Uruanga, nem a colonizao italiana no Brasil. Elas, com
efeito, podem ser utilizadas para representar a vida da fronteira, ao limite damata
virgem, onde os colonizadores entram com fiizil, para caa de animais endios.
Aprimeira imagem (ver pgina seguinte) que, em forma muito atual, coin
cide com todo o espao da capa do livro, incluindo o nome do autor e o ttulo,
uma fotografia inteiramente aquarelada, nos tons doverde (rvores) edo rosa (fun
do, calas dos dois "colonos"). Duas figuras um homem e um rapaz esto
beira duma floresta, os ps escondidos porplantas baixas, com fuzis namo e um
cachorro no meio. Os homens miram para oleitor, ocachorro d as costas, o olhar
para ointerior do mato. Afotografia representa bem parte do ttulo edo contedo
do livro: os missionrios no esto a, ao limiar do mundo desconhecido, mas
sim os colonos, com a ajuda dos fiizis. Apresena do cachorro proporciona um
sentido menos violento imagem, como se setratasse duma caa aos animais da
floresta, propondo assim uma situao conhecida pelos leitores, porm colocada
em um ambiente desconhecido.

" Ibid., pp. 179; 265.


Sobre a fotografia como espelho, v. Gus MacDonald. Vocchio delVOttocento. Milo: Amoldo
Mondadori, 1981, pp. 24-36.
P. Luigi Marzano, op. cit., p. 119.
w
%

l
K
L

tigura 7.
histriac fotografia, narrativas dc um espao de colonizao: iiruanga

Figura 7a.
chiara vanelista

Figura 8.

A segunda imagem (Fig. 8) consiste numa fotografia de grupo, sem uma


particular ordem simtrica, que retrata homens armados, de botas e chapus, mos
trando nas mos armas indgenas (arcos, flechas, lanchas) e uns fuzis. Em pri
meiro plano, no nvel do solo, outras presas de guerra: amostras de artesanato in
dgena, esquerda, e, a direita, duas crianas nuas, de cabelo cortado. Outra
criana, menor, est atrs, no colo de um dos caadores.'^
As duas fotografias so de notvel impacto visual e conceituai, destacando-
se do panorama bastante uniforme das imagens, na poca, do interior brasileiro.
Elas representam, por um lado, a cotidianidade da vida de fronteira (Fig. 7); por
outro, um acontecimento especfico, pontualmente relatado no texto de Marzano:
a volta de uma expedio organizada para defender a colnia dos freqentes ata
ques dos ndios chamados botocudos.''
Essas fotografias, to representativas de uma sociedade em formao, so falsas,
num sentido mais complexo dos que os dois que mencionei antes. Aqui as ima
gens no representam o que sempre fascinou os historiadores, isto , o momento

Esta fotografia foi analisada, de maneira muito diferente da que eu proponho aqui, cm Piero
Bruncllo. Pionicri. Gti italinm in Brasile e il niilo lclla froiiticra. Roma: Donzelli Editorc, 1994, p. VIII;
uma elaborao grfica dela constitui a imagem da capa do livro.
" Definidos tambm "botocudos de Santa Catarina", mas do grupo caingangue, terminologia
que indica os grupos tribais no guaranis que habitavam os estados de So Paulo, Paran, Santa Cata
rina c Rio Grande do Sul. Na verso do ctnlogo suo Kurt Nimuendaju, os "Botocudos de Santa Ca
tarina" eram chamados pelos ndios de Aweikoma. V. Robert Lowie. The Indians of Eastern Brazil: An
Introduction. In: Julian H. Steward (ed.). Handbook of South Americnn Indians. Nova York: Cooper
Square Publishers, 1963 (v. I, de 6 v.); Alfred Mtraux. Die Botocudo. Ibidem, pp. 531-40; Idem. The
Caingang. Ibidem, pp. 445-75.
histria o fotografia. narrativa.s de um espao de colonizao: uruanga

Figura 8a.

que no se repetir, o instante congelado no tempo e no espao, testemunho intacto


de algo realmente acontecido no passado.
Uma anlise at pouco aprofundada das duas imagens mostra como elas so
o resultado de pesada manipulao, por meio de fotomontagem e desenho.
A imagem fotogrfica colorida posta na capa do livro no representa o mato
virgem, nem provavelmente Uruanga; parece mais uma fotografia de jardim bo
tnico, talvez o do Rio de Janeiro, de que temos descrio no incio do livro de
Marzano. Os trs protagonistas da imagem homem, cachorro, rapaz esto
sobrepostos fotografia da "floresta" e desenhados em muitas partes (vejam-se as
camisavS, a mo do homem, partes do cachorro, etc. e o pormenor da Figura 7a).
O mesmo se passa com a fotografia titulada "Volta da Floresta com Trs Pe
quenos Selvagens". Aqui tambm as manipulaes so de dois tipos: a primeira
manipulao, comum a toda fotografia da poca (e ainda mais quando se trata de
fotografias missionrias), consiste no desenho: os homens tm botas e camisas
62 chiara vangelista

desenhadas. Na mensagem produzida pelaimagem, as botasso importantes, por


que marcam simbolicamente o limite entre a civilizao e a barbrie. Os homens
de botas contrapem-se s crianas nuas. Este um pormenor no habitual, pois
geralmente, nas fotografias missionrias, as crianas nuas so cobertas com cami-
solas ou lenos, desenhados na manipulao posterior da foto.' O pormenor das
botas ainda mais importante porque, neste caso, texto e imagem no concor
dam; em vrios trechos do livro, o Pe. Marzano sublinha que, por causa da pobre
za, os colonos italianos tm de entrar na floresta descalos e por isso com
grave perigo.
Asegunda manipulao presente na fotografia reproduzida na Figura 8 con
siste na fotomontagem: as crianas, redesenhadas de maneira aproximativa (ver os
braos da que seencontra direita), socolocadas na imagem por fotomontagem.
A anlise comparativa desta fotografia e do texto abre uma hiptese razo
vel: a fotografia de grupo, que apresenta tambm uma coleo de artesanato ind
gena, foi tomada na poca da vinda do Pe. Marzano a Uruanga, anos depois dos
fatos narrados pela imagem.
As duas fotografias citadas no representam o que se passou em um instan
te colocado no tempo real. Nunca foi assim: homem, cachorro e rapaz nunca en
traram naquela floresta; as duas crianas nunca estiveram no meio daquele gru
po de homens, no momento em que a fotografia foi tomada.
Podemos ento afirmar que,sendo fotografias/a/sas, elas perdem sua quali
dade de documento? Acho que no. Pelo contrrio, elas contm uma concentra
o de signos e de significados que, justamente mediante a manipulao da foto
grafia como objeto, lhes proporciona um especial valor documental. E este se d,
pelo menos, em trs sentidos.
No livro de Marzano como conjunto de texto e imagens h um tema
recorrente, como um fio condutor da histria narrada: trata-se do fuzil como um
instrumento de colonizao, desdea descobertado Brasil at a contemporaneidade.
um fio da trama que proporciona coerncia ao apelo final do contedo no li
vro: o pedido aos leitores de Turim para envio urgente de armas aos colonos. A
capa do livro prope de imediato esse tema, retratando os dois homens, de dife
rentes idades, com o fuzil na mo.
Em segundo lugar, as imagens analisadas concentram em si o significado
complexo do discurso do missionrio. O livro um produto editorialbem escrito
e bem organizado na relao entre textos e imagens e at caprichado, com
litografias que embelezam o incio de cada captulo. Tem-se mesmo um cuidado,
dedicado ao pblico de leitores privilegiado pelo projeto da Congregao: os jo
vens dos colgios salesianos e suas famlias. Nesse sentido, importante ressaltar
o tema da aventura. O autor imagina o pblico juvenil, interessado no romanes
co, no perigo, no contato com os selvagens; um pblico animado pela imagem da
Amrica como terra de fronteira, tal como podemos considerar, lembrando o im
pacto na Itlia da ento recente tourne de Buffalo Bill.

V. a fotografia reproduzida em P. Luigi Marzano, op. cit., p. 134.


histria e fotografia, narrativas de um espao de colonizao: uruanga 63

Em terceiro lugar, a Itlia tinha de elaborar a pesadssima derrota de Adua


(1896) e a conseqente queda do projeto colonial na frica. Ao mesmo tempo,
aqueles migrantes-colonos, procedentes do antigo Reino Lombardo-Vneto, no
momento da fundao de Uruanga, em 1878, tinham adquirido s recentemen
te a cidadania italiana, que devia ser reforada, no Brasil e na Itlia, com a difuso
de forte sentimento de ptria e de solidariedade, desenhando um espao italiano
no mais na frica, mas no Brasil.
As pistas de leitura dessas fotografias so mais numerosas, dependendo do
roteiro especfico da anlise. Por exemplo, por seus silncios: no h nenhuma
imagem de mulher (a no ser as esttuas de Bernadette e da Nossa Senhora de
Lurdes) e nenhuma imagem que possa indicar a existncia do Estado e da socie
dade brasileiros. Podemos tambm assinalar uma linha de leitura para aprofundar
a imagem do povo indgena, cuja terra os colonos europeus invadiram, dada por
aquelas pequenas e infelizes presas da guerra tnica, queseacompanha, por meio
das imagens do livro, no seu roteiro de assimilao: crianas nuas, crianas vesti
das e com o missionrio e, por fim, um adolescente numacomposio musal.'*^
Para ficar nas imagens aqui analisadas, podemos concluir que essas fotogra
fias falsas tm valor documental fundamental no mbito de uma pesquisahistrica,
ainda que no representem "o que efetivamente aconteceu naquele momento".
Nenhuma imagem inocente. Ao historiador a tarefa profissional e social
de evidenciar mensagens,atores histricos, contextos.

" P. Luigi Marzano, op. cit., pp.lll; 134; 126.


PAISAGENS NARRATIVAS DO ESPAO AMAZNICO

Maria de Ftima Costa


Universidade Federal do Mato Grosso

H lugares nos quais a natureza parece querer esconder a sua complexida


deeseapresenta como sucinta, objetiva, mas, talvez porisso, muito intensa. Con
centra-se em resumir suas metamorfoses num arranjo aparentemente simples,
alternando-se dualmente em fisionomias distintas. Porm, suas mudanas so
bruscas e acentuam contrastes, dispensam sutilezas. Nesses lugares, Antnio
Vivaldi teria de recriar seus concertos, e os violinos traduziriam apenas as rique
zas sonoras das guas e das secas, do vero e do inverno. Assim a Amaznia. Ali
so as guas que comandam e cadenciam a vida, marcando o encolher e espraiar
dos riose o dia-a-dia dos distintos habitantes, sejam homens, animais ou plantas.
Seus contrastes so to intensos que algumas vezes inspiram adjetivaes, met
foras para o enorme, o incontido, o indomvel. Entretanto, com af de conquista
e controle, o homem procura desafiar tal ordem e desvelar os mistrios. Muitas
vezes, porm, ocorre o oposto. Diante de tal complexidade o espao que o do
mina, amedronta-o; e ele quem se desnuda, quem se revela.
sobre isso que falaremos aqui, tendo como suporte um conjunto de ima
gens realizadas por dois ilustradores cientficos do final do sculo XVIII. Eles per
correram os caudalosos cursos do Madeira, do Mamor e do Guapor, rios que
de dentro do nosso subcontinente fluem desesperadamente, na nsia de se tribu
tarem ao seu grande senhor, o Amazonas. Eno percurso nada os detm; tal uma
criana quando desembesta ladeira abaixo, correm sem freio epelo caminho vo
saltando obstculos e acidentando-se em dezenas de cachoeiras e corredeiras. No
importa! Oque mais querem encontrar maneiras de fugir do interior para en
contrar o corpo seguro que os levar ao mar-oceano.
Ahistria que aqui ser narrada tem como enredo os cursos desses rios, no
tempo em que se procurava desvelar seus segredos com ofim de garantir suas guas
como seguros caminhos fluviais. Os principais personagens so dois desenhistas.
paisagens narrativas do espao amaznico 65

Jos Joaquim Freire e Joaquim Jos Codina, os riscadoresque acompanharam Ale


xandre Rodrigues Ferreira e Agostinho Joaquim do Cabo na expedio cientfica
lusitana que entre 1783 e 1792 percorreu grande parte das atuais regies brasilei
ra do Norte e Centro-Oeste, oficialmente denominada Viagem Filosfica s Capi
tanias do Rio Negro, Gro Par, Mato Grosso e Cuiab.
No nos interessa, contudo, a histria desta fantstica Viagem que, alis,
pode ser lida em muitos livros e artigos, mesmo em alguns nossos. A narrativa se
prender a um belo conjunto de aquarelas que faz parte do acervo iconogrfico
dessa expedio. So representaes realizadas por Freire e Codina entre 1789 e
1791, quando, por expressas ordens metropolitanas, visitaram os territrios
limtrofes entre as possesses coloniais lusase castelhanas, reconhecendo frontei
ras e registrando em desenhos a principal rota de comunicao entre as terras in
teriores e o atlntico porto de Belm do Par. Essas aquarelas mostram rios no
apenas como um acidente geogrfico, mas tambm como artria de poder e, mais
genericamente, como um instrumento da modernidade.
Porm, mesmo reconhecendo os fins estratgicos que nortearam a feitura
dessas imagens, na nossa narrativa o enfoque ser outro. Queremos indagar sobre
os seus atributos estticos e culturais, pois as reconhecemos como vistas de paisa
gens, concretamente, vistas da paisagem fluvial amaznica, s quais aplicamos a
sentena de Simon Schama: "Antes de poder ser um repouso para os sentidos, a
paisagem obra da mente. Compe-se tanto de camadas de lembranas quanto
de estratos de rochas".' Ao estudar essas imagens queremos reconhecer no s os
estratos de rios, pedras ou mata, mas, e principalmente, as camadas de memria
que seus autores embutiram no interior.

As imagens

Conforme foram tituladas pelos seus autores, as figuras que aqui estamos
denominando de paisagens so Vistas e Prospectos; compem um conjunto de 39
desenhos aquarelados realizados sobre papel em formato horizontal, que com
rarssimas excees, no excedem o tamanho de 35 x 45 cm. Nelas foram repre
sentados os dezoito sucessivos acidentes fluviis existentes no percurso: as doze
cachoeiras do Madeira, as cinco do Mamor e a do Guapor; essas folhas hoje
pertencem ao Museu Bocage, Lisboa (MB).
Este acervo contmmaterial realizado em viagem, e dasurge a sua primeira
importante singularidade: so impresses deprimeira mo quenosofreram qual
quer tratamento posterior. Uma parte desses desenhos foi elaborada quando os na
turalistas iam,em 1789, da Vila de Barcelos no rio Negro atVila Bela da Santssima
Trindade no Mato Grosso; a outra em 1791, na viagem de retorno. Durante esses
percursos foi que Freire e Codina realizaram duas e at trs tomadas de cada um
dos diferentes saltose, invariavelmente, uma no percurso de ida, na qual apresen
taram as guas em tempos de cheia e outra durantea volta, em temposde vazante.

' Simon Schama. Paisagem e memria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 17.
66 maria de ftima costa

E uma caracterstica relevante de quase todas as folhas o fato de apresenta


rem motivos inacabados; esse dado espelha as condies de um trabalho realizado
em viagem. Os deslocamentos dirios, ordinariamente em pequenas canoas e por
diferentes lugares, faziam com que o tema fosse apenas esboado, mas com todos
os elementos que permitissem o seu posterioracabamento ou reelaborao e, prin
cipalmente, que proporcionassem o reconhecimento do lugar. A finalizao de
uma obra exigia um tempo mais dilatado, luxo do qual poucas vezes Freire e
Codina puderam usufruir.
Ao buscar critrios conceituais para essas paisagens notamos que elas so
alheias s duas formas habituais de representao do espao americano: nem apa
recem como uma evocao romntica do paraso nem como espaos infernais.
A relao do homem com a natureza, tal como se manifesta no campo das
artes no Ocidente, tem profundas razes nas construes iconogrficas da Idade
Mdia. da que procede um dos elos de comunicao com o mundo natural
expressado na imagem do jardim, vale dizer, da natureza dominada e organizada,
seja no Jardim do den ou do espao seguro, protegido do hortus conclusus. Esses
modelos nos remetem idlica frmula do locus amoenus, que nas suas diversas
manifestaes conservar validez at osTempos Modernos. Aapreenso do natu
ral na sua forma primria, por sua vez, se apresenta geralmente associada a emo
es de temor. De acordo com Klaus Brner (1984), foi a partir do pensamento
de Jean-Jacques Rousseau e do seu Discours sur les Sciences etles Arts (1750) que
emergiu uma valorao positiva no s do homem natural, mas tambm da pai
sagem natural. Esse pensamento materializou-se particularmente nas obras rea
lizadas durante a segunda viagem de James Cook aos Mares do Sul (1772-1775),
quando o pintor William Hodges eo naturalista Georg Forster perceberam as be
lezas naturais durante suas "excurses botnicas, abrindo caminho para a cria
o de imagens idlicas, como se fossem entornos pastorais. Anatureza das ilhas
do Pacfico se transformou, ento, num locus amoenus, e logo essa mesma idia
foi transportada para as distantes terras americanas.
Uma verso dessa linguagem aparece na obra de Alexander von Humboldt,
principalmente nos sugestivos captulos "As Cascatas do Orenoco e 'Vida Notur
na dos Animais na Selva Virgem", do seu livro Quadros da Natureza.
Todavia, no conjunto iconogrfico que estamos analisando, j uma primei
ra observao deixa transparecer que as vistas de paisagem realizadas por Freire e
Codina, mesmo que temporalmente localizadas entre Cook eHumboldt, no com
partilham desse tipo de experincia. Nelas, oretrato do motivo imediato. Estan
do na Amaznia um dos lugares de maior concentrao fluvial do planeta
esses riscadores, efetivamente, destacaram a fisionomia aqutica, transformando-
a em paisagem.
Enquanto classificao, essas aquarelas pertencem ao grupo que se tem de
finido como "ilustrao cientfica", um gnero que se difundiu no sculo XVlll
com o advento das grandes viagens naturalistas, principalmente as de circunave-
gao. Nele dificilmente omotivo representado traduz aescolha do seu autor, mas
sim responde designao feita por outros membros do grupo seja o chefe, o
paisagens narrativas do espao amaznico 67

botnico, o zologo ou o astrnomo , de acordo com os objetivos que norteavam


a viagem. O trabalho do ilustrador constitua-se numa tarefa auxiliar e inteira
mente subordinada aos fins da expedio. J a qualidade da execuo respondia
ao domnio que o documentador detinha sobre a linguagem visual que utilizava
e sua sensibilidade artstica. E, embora esse tipo de imagem tenha alcanado seu
desenvolvimento no Sculo das Luzes, ela possua uma tradio, cuja verso mo
derna tem incio no sculo XVI, com a introduo de figuras nos textos cientfi
cos. Mas, j desde a Antigidade e ao longo da Idade Mdia se conhece uma for
ma de manifestao bastante afim, que podemos caracterizar como uma fase
pr-histrica da ilustrao cientfica.
Erwin Panofsky fornece algumas das primeiras aproximaes paraa avaliao
da criao artstica relacionada com o desenvolvimento das cincias. Num artigo
publicado em 1962, sustenta que as contribuies da arte foram vitais para o pro
gresso do saber, sobretudo nas reas das cincias naturais que possuem um marca
do carter descritivo, como a botnica, azoologia oua anatomia, que evidentemen
te receberam forte impulso com o aperfeioamento das tcnicas de representao
visual no Renascimento. Mas quem ps mais empenho no estudo desse gnero
foi o historiador da arte Samuel Y. Edgerton Jr. (1991). Discutindo as aproxima
es imprecisas que tratavam da ilustrao cientfica como uma manifestao arts
tica de carter marginal, este estudioso formulou uma definio no mbito das
cincias, analisando os registros visuais como uma modalidade detransmitir infor
mao, ou seja, com um contedo epistemolgico paralelo ao que tradicionalmen
te se tem atribudo muitas vezes com carter excludente palavra escrita.
Os estudos de Edgerton Jr. encontram bom apoio terico no conceito de
"pensamento visual" {visual thinking) de Rudolf Arnheim (1969) e nos escritos
de teoria da arte de Ernst Gombrich (1972; 1990), dos quais toma os modelos
para o processo da "leitura" de imagens.
Ao formular seus princpios, Edgerton estabeleceu um dilogo com outros
autores, particularmente com David Knight (1985), chamando a ateno para o
fato de que a ilustrao cientfica compe-se de imagens que esto destinadas a
conviver com um texto. Ela representa uma categoria singular da linguagem pic-
trica, concisa e concebida a partir de convenes prprias. E um material que
pertence a um conjunto maior e os seus significados tm de ser buscados com
apoio nos demais materiais que compem o acervo do qual forma parte, nota-
damente em textos escritos. Numa formulao engenhosa, Knight pontua: Nas
ilustraes cientficas as intenes do artista podem ser iluminadas pelo texto;
[pois] so quadros que possuem um claro contexto".^
Com base nessas reflexes temos que o conjunto iconogrfico, com dezoito
cachoeiras amaznicas registradas por Codina e Freire, nos permitir desvelar o
seu contedo epistemolgico desde que possamos reconstruir o dilogo com as

^ David Knight. Scientific Theory and Visual Language. In: Allan Ellenius (ed.). The Natural
Sciences and the Arts: Aspects ofInteraction from the Renaissattce to the Twentieth Century. Estocolmo:
Almqvist and Wikselll International, 1985, p. 107.
68 maria de ftima costa

informaes manuscritas, isto , com o mbito textual, observando sempre o in


tricado mundo de uma viagem cientfica.
de primordial importncia ter em conta, por exemplo, as singularssimas
condies de trabalho sob as quais este pequeno grupo de ilustraes foi criado.
Os escritos de Alexandre Rodrigues Ferreira, o chefe dessa expedio, do conta
de como foi difcil manter-se ativo durante os trajetos percorridos. Todos os mem
bros, at mesmo ele, passaram maus pedaos, debilitados pelas terrveis febres tro
picais, tanto na regio norte (Rio Negro e Gro Par) como, e principalmente, no
deslocamento e estada em Mato Grosso. Sobre isso o naturalista deixou alguns
testemunhos. Em certo momento escreve:"[. . .] eu, e os dois desenhadores [. . .]
temos padecido muito depois da viagem ao Rio Branco [. . .]. Codina desde que
chegou, tem custado a restabelecer das febres, dores doestomago e do ventre, que
ali adquiriu".^ Em outra passagem, conta dos sofrimentos que viveram, precisa
mente, entre as guas do Mamor:

[. . .] o primeiro que logo entrada do rio Mamor enfermou grave


mente de sezes foi o desenhador Joaquim Jos Codina. Segui-me eu do
Forte do Prncipe para cima, que juntamente com o outro desenhador, Jos
Joaquim Freire, chegamos aos termos de ficarmos ambos sepultados no
Barreiro do Stio de Guarajs [. . .].'

Durante essa ocasio, as enfermidades ganharam tal vulto que os desenha


dores no mais puderam documentar a viagem: "Freire foi o que mais sofreu, no
houvemolstia que no sobreviesse, foramsezes, corruo, sarna,disenteria, etc.",^
anotou o naturalista. E entre tantas febres, Agostinho Joaquim do Cabo, o jardi-
neiro botnico que parecia ser o mais forte dentre eles, faleceu ao chegar em Vila
Bela, no resistindo terrvel febre conhecida como corruo.
Vemos assim que a construo do acervo iconogrfico dessa expedio tem
estreitos vnculos com as dificuldades enfrentadas durante a viagem, circunstn
cias que ajudam a entender, por exemplo, a existncia de lacunas nas sries de
imagens, quando se compara a seqncia com o roteiro realizado.
Alm disso, cabem ainda alguns comentrios sobre os autores das imagens.
O desenhista da expedio, o riscador segundo a designao genrica que rece
bia em Portugal , era um funcionrio de Estado, cuja carreira profissional no
se situa no contexto de um exerccio artstico de tradio acadmica. aquilo
que o pintor ingls e importante terico da Academia Joshua Reynolds qualifi
cou no final do sculo XVIII de atividade mecnica {mechanical trade)y em oposi
o arte liberal {liberal art). O ofcio do riscador lusitano est resumido no
Compndio de Observaes, que Formam oPlano da Viagem Politica ePhilosophica
' Ferreira, apud Amrico Pires de Lima. O Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira. Documentos
coligidos e prefaciados por Amrico Pires de Lima. Lisboa: Agncia Central de Uitramar, 1953, p. 192.
'* Ferreira, apud D. A. Tavares da Silva. O cientista luso-brasileiro Dr. Alexandre Rodrigues
Ferreira notas'para oseu estudo. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, mai./jun. 1947, p. 339.
Ibidem.
paisagens narrativas do espao amaznico 69

que seDeveFazer Dentro da Ptria., um manual de instruo utilizado pelos corres


pondentes da Academia das Cincias de Lisboa ao realizarem viagens cientficas
no Setecentos. Ali se ensinam os procedimentos a serem adotados tanto para se fa
zer uma adequada descrio escrita como para o registro xdsual. Explica o manual:

Entre a descrio das coisas entra tambm o Risco, e Pintura, a qual


se aplicar aqueles objetos, que a narrao no for capaz de descrever per
feitamente, e com clareza. Por tanto se desenharo alguns Campos, Montes,
Animais, Plantas, e outros produtos, que nem se podem descrever, nem
fcil a sua remessa.''

Definio que abarca, portanto, as vistas de paisagem.


Quanto formao e carreira profissional. Freire e Codina tinham ntima
relao com reparties militares. De Jos Joaquim Freire temos conhecimento
documental de que sempre trabalhou nessas instituies e sabemos que tambm
Joaquim Jos Codina esteve ligado ao desenho militar. Analisando-se o estilo usado
por eles e a documentao da expedio, torna-se evidente que ambos tinham
completo domnio do risco militar de carter cartogrfico e faziam uso de apara
tos tecnolgicos modernos para a captao de imagens como a cmara obscura
da qual h referncias explcitas ou mesmo o to em uso Espelho Claude.
Narrao: paisagem cartogrfica

Essa conjugao entre cartografia earte um trao bastante significativo no


momento de interpretar esse acervo iconogrfico, pois representa um dos seus
contedos epistemolgicos mais notveis. Nessa perspectiva, no primoroso livro
AArte de Descrever, Svetlana Alpers analisa com profundidade aescola de pintura
holandesa e traz uma srie de elementos que ajuda a refletir sobre as vistas e pros-
pectos pertencentes ao acervo da nossa Viagem Filosfica. Lembra-nos, por exem
plo, que no sculo XVII os autores e os editores de mapas eram referidos como
descritores do mundo, chamando ateno para o fato de a pintura holandesa ter
como objetivo captar, sobre uma superfcie, uma grande quantidade de conheci
mentos e informaes e que a captao esteve, quase sempre, auxiliada por ins
trumentos como a cmara escura.
Analisando a paradigmtica obra AArte de Pintar de Jan Vermeer, essa au
tora aponta e discute uma srie de elementos que aproximam a cartografia da
pintura. Para Alpers, "[. . .] os mapas fornecem-nos a medida de urn lugar e a
relao entre lugares, dados quantificveis, enquanto as pinturas de paisagem so
evocativas e visam a dar-nos qualidades de um lugar ou da percepo que o ob
servador tem deles'7 E mais, registra:

^ Jos Antonio de S. Compndio de observaes que formam o plano de Viagem Poltica, e


Filosfica, que se deve fazer dentro da Ptria. Dedicado a sua Alteza Real o serenssimo Prncipe do
Brasil. Lisboa: [s.n.], 1783, pp. 209-10.
' Svetlana Alpers. A arte de descrever. So Paulo: Edusp, 1999, p. 249.
70 maria de ftima costa

[. . .] as imagens paisagsticas cartografadas e o impulso de produzi-


las foram fundadas significativamente, por artistas que estavam em viagem
observando, artistas que no ficavam em casa ouvindo relatos de viajantes/

Medidas as devidas distncias entre a pintura holandesa do sculo XVII e os


desenhos e as aquarelas realizados por nossos riscadores no final do XVllI, tanto
no que diz respeito magnitude da obra como ao espao temporal, nos riscos de
Freire e Codina possvel perceber muitos dos postulados referentes conjuga
o de cartografia com as pinturas, analisados por Alpers. Esses dados abrem por
tas para se compreender a construo das nossasvistas de paisagens, muito prxi
mas das paisagens cartogrficas.
Seguindo as pegadas de Alpers pensamos que at plausvel interpretar as
folhas desses riscadores como uma categoria singular, a de paisagens paracartogr-
fcas, na medida em que, tanto na sua funo como j na sua gestao, estas ima
gens aparecem intimamente associadas ao registro cartogrfico do espao.
Todos esses Prospectos e Vistas nos mostram os lugares apreendidos de uma
perspectiva area de escassaaltura. As folhas, ademais, trazem legendas manuscritas
que guiam o observador, identificando nominalmente a geografia e representan
do em detalhes o motivo apreendido. Ao lado do aspecto visual h a preocupao
taxionmica da identificao cientfica correta, por exemplo, nos casos das folhas
que levam meticulosas inscries, tais como Prospecto da Cachoeira da Misericr
dia a 11." do rio da Madeira tirado do lado esquerdo de cima das mesmas lajes. Em
21 de abril de 1789 (Fig. 1) ou Vista da mesma cachoeira das Araras, tirada de uma
praia da parte superior da ilha Grande (MB).
Vemos, pois, que a obra aqui analisada foi concebida como instrumento au
xiliar para domnioe compreenso do espao percorrido pela Viagem Filosfica.

-v , . ^ * d.tf'

Li'
I- <, ^

K'- o.'*.-.........iitl.

Figura 1. Prospecto da Cachoeira da Misericrdia a 11." do rio da Madeira tirado do lado esquer
do de cima das mesmas lajes. Em 21 de abril de 1789. Sem identificao de autor. Museu Bocage

8 Svetlana Alpers, op. cit., p. 285.


paisagens narrativasdo espaoamaznico 71

Entretanto, alm do meticuloso registro paracartogrfico e do af taxion-


mico, nessas obras tambm est embutida uma linguagem descritiva prpria do
olhar de quem a representou.
Tratando de imagens cientficas, o historiador das cincias mexicano Elias
Trabulse lembra que o aspecto subjetivo ou pessoal fundamental na compreen
so da iconografia cientfica considerada como uma arte, e que isso se configura
um elemento decisivo para seu estudo. Nesse particular chama a ateno para o
fato de o artista, e tambm o cientista, privilegiar uns aspectos em detrimento de
outros, mesmo que no fosse esse seu propsito explcito. Ediz mais:
[. . .] mesmo uma fotografia, quepode chegar a tergrande valor como
prova cientfica uma vez que pretende eliminar o erro humano provoca
do pela observao decertos detalhes e a omisso deoutros , ,em ltima
instncia, um instrumento dirigido pelas intenes do fotgrafo, atravs do
qual um elemento subjetivo se introduz no processo.^
Temos ento, por um lado, que as vistas aqui estudadas pertencem ao gne
ro das ilustraes cientficas realizadas por profissionais formados no risco mili
tar e, por outro, que mesmo esse tipo de imagem traz em si aspectos que denun
ciam a subjetividade do seu autor. Cabe-nos, portanto, investigar essas paisagens
em busca de conhecer aspectos subjetivos no seu interior.

A paisagem como registro do sentir

Aprimeira questo aconsiderar, nesse conjunto iconogrfico, hora de des


velar subjetividades que a travessia do Madeira, do Mamor e do Guapor era
uma das mais difceis e perigosas viagens coloniais; haviam-se de vencer as deze
nas de cachoeiras e corredeiras desses rios, conviver com os possveis ataques de
ndios, com constantes febres de todas as gamas (ters, quarts, catarrais, corru
es, entre outras) ecom a falta de braos para os remos. Por seu turno, o cami
nho era praticamente desprovido depovoaes, o reabastecimento tornava-se tra
balhoso; faltavam alimentos, remdios e todos os demais gneros.
Tudo isso se fazia muito acentuado durante a subida dos rios, navegando
contra as espetaculares correntezas da bacia amaznica, ainda mais para uma ex
pedio cientfica que, alm de deslocar-se, deveria recolher, catalogar, estudar,
medir, desenhar, herborizar, empalhar, escrever. Navegando rio acima, de Barcelos
a Mato Grosso - a nossa Viagem Filosfica gastou nada menos que treze meses e
dezoito dias, e destes, como nos informa o chefe da expedio, sete meses e r>^cio
"[. . .] foram aplicados aexames, ecolees eos demais se empregou em viajar
Os perigos enfrentados foram de toda ordem: faltou comida, remeiros deserta
ram, ndios atacaram, os viajantes sofreram com as febres, que tambm ceifaram
' Elias Trabulse. Arte y Cincia en Ia historia de Mxico. Cidade do Mxico: Fomento Cultural
Banamex, 1995, pp. 23-4.
Ferreira, apud Amrico Pires de Lima. O Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira, op. cit., p. 295.
72 maria de ftima costa

a vida de muitos remeiros da expedio e do prprio jardineiro-botnico. Mas,


para usar uma expresso muito comum nos escritos de Ferreira, "esse era o p
desta estrada". J a viagem de volta navegando rio abaixo, realizada no perodo da
vazante, com os rios mais baixos e em situao bem mais controlvel, essa expe
dio gastou apenas trs meses. Essas diferenas foram embutidas nos traos aqua-
relados das imagens!
Nas folhas realizadas durante o trajeto de ida, quando o ambiente era des
conhecido, portanto mais intimidante e o perigo mais evidente, a paisagem foi
apresentada de forma maisameaadora, comcenas prenhes de dramaticidade. Ne
las o riscador destaca a violncia das correntezas, marca com acento o trajeto das
guas e os caminhos, que geralmente levam s perigosas pedras que afloram no
leito do rio.
Levando em considerao essas caractersticas, encontramos tambm em
Simon Schama elementos que ajudam a entender essas imagens. Atenta o autor
para que na Antigidade, j em Roma, os rios eram vistos como caminhos quese
ansiava dominar, um elo que perdurar atravs dossculos, e observa:

Paralelamente, todavia, observa, osautores ocidentais muitas vezes per


cebiam nesses bulevares fluviais um paradoxo perturbador. Se o fato de di
visar as margens parecia proporcionar uma certa segurana, [. . .] os explo
radores que subiam o rioconstatavam que, at mapear o curso de uma ponta
a outra, tinham pouco controle sobre o prprio destino. Podiam ser levados
a lugares onde, ao invs de senhores, acabariam se tornando cativos das
guas."

Ou seja, embora o rio se lhes oferece como um caminho, uma sada nes
sesentido, uma rota de fiiga , era ao mesmo tempo o lugar que guardava em si
perigosas armadilhas.
Eem muitas passagens a documentao escrita legada pela Viagem Filosfi
ca nos faz ver que Ferreira e companheiros quando estavam entre as guas da
bacia amaznica passaram porexperincias prximas s enunciadas nas pgi
nas de Schama. Um exemplo angular encontra-se no dilogo que se estabelece
entre uma anotao posta pelo riscador Codina numa legenda e um documento
escrito da expedio. Alegenda: Prospecto da cachoeira de Santo Antonio, do rio
daMadeira, tirado da margem de Nascente, pelo meado de janeiro de 1789. Veja-
se a sua explicao na Relao do rio da Madeira. Madeira Tit XI. Artigo = Ca
choeiras = pg. 44, e 45".'^ Consultando-se a referncia aludida observa-se que o
chefe da expedio narra uma situao vivida nesta cachoeira, que dialoga com a
citada reflexo de Schama.
Conta-nos Ferreira que ao passar por um canal dessa cachoeira de Santo
Antnio, a embarcao na qual viajava Freire livrou-se por pouco de grave aci-
" Simon Schama. Paisagem e memria, op. cit., p. 267.
Museu Bocage [MB]. Expedio Philosophica do Par, Rio Negro, Mato Grosso, e Cuyab.
Alexandre Rodrigues Ferreira. [Jbum com desenhos], v. 2.
paisagens narrati\'as do espao amaznico 73

dente, quando a fora da correnteza quebrou a grande vara a sirga que, eni
movimentOvS constantes no fundo do leito fluvial, guiava a embarcao. Sem apoio
desse instrumento de navegar, a canoa perdeu o controle e comeou a "rodar"
pelas guas desse rio-mar. Nas palavras do viajante:"!. . .] passando a [canoa] do
Desenhador Freire pela infelicidade de lhe arrebentar o cabo de sirgar, donde pro
cedeu, ser arrebatada pela violncia da correnteza, que alis a livrou do desastre,
de ser feita em pedaos sobre as pedras em que sempre encontrou".' '
Esta experincia vivida por Freire em janeiro de 1789 parece que o marcou
de maneira indelvel, pois transps o que sentiu a alguns prospectos c vistas que
desenhou. Em trs impressionantes registros, o riscador mostra a tenaz luta trava
da entre o homem e as volumosas guas, realmente amaznicas. O primeiro a
Vista da cadiocira do salto do Tcoinio, a 2:' do rio da Madeira (Figura 2), realizado
em 20 de janeiro, ou seja, nos dias daquele incidente.

. ^ . >.v-, r -

Figura 2. Vista da cachoeira do salto do Teotnio, a 2:' do rio da Madeira. Em 20 de janeiro de


1789. Jos Joaquim Freire. Museu Bocage

Ao construir esta representao, o desenhista escolhe um ngulo pelo qual


permite que a gua do Madeira seja o grande personagem. ela que domina o
cenrio. Soguas abundantes, largas, desordenadas e violentas. No limite do ho
rizonte, ao fundo, num verde muito claro, possvel ver a mata-fechada; junto a
ela o rio j se precipita. A queda de pouca altura mais que uma cachoeira,
vemos uma corredeira. Contudo a fora com que cai tanta que faz o corpo do
rio se encher de flocos de espuma. esquerda, numa vegetao mais prxima,
talvez por isso num verde mais intenso, vemos a fria fluvial romper uma intil
barreira de pedra ali construda, fazendo rodar at um tronco de uma grande r
vore. sada aparecem pequenos pedaos de madeira, destroos que servem de
vestgios de embarcaes que no tiveram a mesma sorte que a do desenhista e
foram "feitas em pedaos sobre as pedras". E o rio passa num movimento que
" I-crrt-ira, apiid Joo Ribeiro Mendes. Dr. Ale.xaiidrc Rodrigues Fcrreini fe/i.dici de
stn-lesc). Tese apresentada ao X Congresso Brasileiro de Geografia em 1944. Rio de Janeiro: Is.n.],
1945, p. 45.
74 maria de ftima costa

vemos da esquerda para a direita , mas s uma parte dele, que entre pequenos
redemoinhos se projeta, quase ao meio da folha, num rpido declive. em meio
a esta orgia fluvial que o autor constri uma cena de intenso dramatismo. Coloca
em primeiro plano um pequeno barco da expedio se debatendo, em meio s
furiosas guas. Sobre ele na proa e na popa diminutos remeiros tentam
livrar a embarcao do visvel risco. A prpria nfase descritiva desse perigoso mo
mento evidencia um trao de subjetividade do seu autor.
Freire volta ao tema da luta do homem com as guas num outro obstculo
que oferece aquela geografia fluvial. Em maro de 1789, estando ainda no rio Ma
deira, desenha a Vista da sirga que tem a mesma cachoeira da Pederneira (Fig. 3).
Uma vez mais so as guas que protagonizam o enredo. Saindo da espessa mata, o
corpo fluvial caminha. Como na representao anterior, no vemos sua outra mar
gem. As guas esto muito altas, e avanam por entre as rvores localizadas es
querda, cobrindo-as at a "cintura". E a que se desenrola a cena. Vemos uma
embarcao de meio porte sendo sirgada. So ao todo cinco ndios remeiros que
se empenham nesse trabalho. A fora da correnteza dinamizada pelas pequenas
ondas que se formam ao lado do barco, enquanto as guas passam entre rvores e
pedras. Sem dvida o desenhista consegue passar a dramaticidade da ocasio.

Figura 3. Vista da sirga que tem a mesma cachoeira da Pederneira. Em 19 de maro de 1789.
Jos Joaquim Freire. Museu Bocage

E vale lembrar aqui uma observao realizada por Jos Roberto Teixeira Leite
(1988). Ao estudar um outro conjunto de imagens desta mesma Viagem Filosfi
ca pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, este autor com
parou a obra de Freire com a do seu colega Codina, afirmando que Freire seria
mais artista, ao passo que Codina mais documentarista: as folhas de Freire "[. . .]
paisagens narrativas do espao amaznico 75

revelariam um desenho mais sensvel de algum dotado de certa emoo, embora


se expressando em tcnica incipiente, quase amadoristica"' ' (grifos nossos).
Com base nas vistas aqui estudadas temos de reverenciar a arguta observa
o de Texeira Leite. Entretanto, reconhecemos nas aquarelas de Freire no ape
nas algum dotado de certa emoo. Seu trabalho extrapola o mero afazer cientfi
co e deixa que se desnudem algumas impresses que aquele ambiente lhe causou.
Isto mais espetacular na folha que denominou Prospecto da cachoeira do Giiajar-
Grande, a 4." do rio Manior: tirado da margem oriental (Fig. 4), produzida em
maio daquele mesmo ano de 1789,enquanto subia o Mamor.
Ali o desenhista volta a exercitar sua veia teatral realizando ao nosso juzo
uma das mais belas e significativas composies no conjunto de vistas da Via
gem Filosfica.

Figura 4. Prospecto da cachoeira do Gtajar-Grande, a 4.'' do rio Mainor: tirado da margem


oriental. Em 15 de maio de I7S9. |osc Joaquim Freire. Museu Bocage

Mudando um pouco sua estratgia de representao, faz com que vegetao


e guas se dividam na paisagem. Uma mata-fechada domina todo o cenrio; no
mais, um mundo de guas cm redemoinho. neste palco que coloca dramatica
mente em primeiro plano c ao centro da folha um pequeno bote da expedi
o. Nele um grupo de remeiros e um passageiro tentam transpor este universo
de gua. Enquanto os ndios esforam-se por levaro barco entre as correntezas, o
passageiro (um homem branco) de polha emsuavolta e parece perplexo.
Diante desta folha, somos levados a sentir a doda sensao de solido que
ainda mais acentuada pela ausncia de qualquer aluso por tnue que seja
outra margem do rio. como se o barco e seus ocupantes estivessem deriva
em meio de um deserto de gua e mata!
Adramaticidade com que Freire impregnou essas trs cenas demonstra como
o duro ilustrador cientfico, educado na tradio do desenho militar, se deixou

'* Jos Uohcrto Tcixciro Lcile. Dicionrio critico da pinliini o frtisil. Rio dc Janeiro: Artlivrc,
1988, p, 125.
76 maria de ftima costa

possuir pelo imenso mundo aqutico da Amaznia e representou uma paisagem


emotiva. A complexidade do espao o domina e desnuda-o, anunciando seu sentir.
Portanto, mesmo que os registros visuais respondam a uma lgica derivada
de motivaes estratgicas, ao viajar pelas guas do Madeira, do Mamor e do
Guapor nas suas distintas e marcadas estaes, a construo das imagens reflete
a viso do seu autor.
Isso se torna mais visvel quando essas representaes so comparadas s
que foram realizadas durante a viagem de retorno, de Mato Grosso ao Par, em
outra estao. Agora os lugares so mostrados de forma mais amvel, a tnica
dada placidez e tranqilidade das guas. Os rios parecem mais planos, as pe
dras esto quase sempre em tons de cinzas ou em marrons suaves, a mata num
verde ameno e, s vezes, tambme o cenrio recebe certa moldura vegetal no pri
meiro plano (Fig. 5). Alm disso, os riscadores introduzam elementos que aju
dam a dimensionar visualmente as distintas margens dos rios, o que transmite
uma certa sensao de segurana.

Figura 5. Prospecto da mesma cachoeira das Lajes: tirado da parle direita da margem do rio. Em
4 de novembro de 1781. Sem ideniificao de autor. Museu Bocage

Finalizando

Vemos ento como essas representaes desenvolvem uma linguagem de tipo


bipolar que, de forma rudimentar, evoca o princpio da pintura de paisagens da
tradio romntica, particularmente de escola alem. Guardando as devidas dis
tncias, pensamos nas palavras de Gaspar David Friedrich, escritas alguns anos
mais tarde, nas quais, de maneira .sentenciosa, exige: "O pintor no s deve pintar
o que tem na sua frente, mas sim tambm o que v no seu interior. E se no v
nada dentro de si, ser melhor que desista de pintar aquilo que v na sua frente".'^

Friedrich, apud Melmul llorsch-Supan. CJnspnr David Friedrich. Munique: Frcstcl Vcrlag,
1990, p. 10.
paisagens narrativas do espao amaznico 77

Sabemos que a tradio idealista e romntica alem daquelas dcadas e o


pensamento do poeta August Wilhelm Schlegel e do filsofo Friedrich W, J. von
Schelling, que sustentam o mundo conceituai de Gaspar David Friedrich, esto
longe do mundo referencialde nossos riscadores. Porm,aquele esprito nos induz
a olhar estas Vistase Prospectos de forma contemplativa e valor-las no s como
registros documentais, mas tambm como motivos artsticos com contedos ti
cos e estticos. Algumas folhas, nomeadamente as que comentamos, da mo de
Freire e que delatam uma apreenso do lugar a partir de uma sensao vivida,
abrem uma brecha parao dilogo coma concepo romntica da paisagem.
Muito mais evidente se nos apresenta a possibilidade, quase a necessidade,
de uma avaliao deste tipo na obra de outros artistas viajantes que acompanha
ram expedies cientficas. Ao observar, por exemplo, os trabalhos dos dois mais
destacados ilustradores da viagem de Alessandro Malaspina, referimo-nos aos ita
lianos Juan Ravenet e Fernando Brambila, salta aos olhos que seus magistrais re
gistros da paisagem foram concebidos tendo como pano de fundo uma tradio
artstica acadmica. Conseqentemente, ao apreender a baa de Acapulco ou as
guas austrais do cabo de Horn, percebemos que o tratamento dos motivos leva
impresso o cunho de um rico repertrio conceituai forjado no mbito acadmico
da poca. Ou, se pensarmos na obra deWilliam Hodges o mais notvel artista
da expedio de James Cook , constatamos que, nas mos do pintor ingls, os
Mares do Sul ganham um componente romntico de dramatismo culto, estabe
lecendo pontes com a tradio de paisagem herica, que nos remete obra barro
ca de Nicolas Poussin.
Combase nessas observaes verificamos que a subjetividade deFreire mais
primria, no est ligada a modelos acadmicos nem resultado decultas associa
es com atradio europia da pintura de paisagem. Porm, aausncia de tradi
o culta no implica a carncia de sensibilidade nem a falta de camadas de me
mria, eno lhe impediu de criar uma das primeiras vistas da paisagem amaznica,
na qual o espao apreendido narrando o tempo emotivamente.

Fonte iconogrfica

Museu Bocage [MB]. Expedio philosophica do Par, Rio Negro, Mato Grosso, e
Cuyab. Alexandre Rodrigues Ferreira. [lbum com desenhos], v. 2.
IMAGOMORTIS:
O TEXTO, A IMAGEM, O RASTO DOS SUBALTERNOS

Roberto Vecchi
Universidade de Bolonha, Itlia

Talvez justamente por ter sido a Cinderela das disciplinas histricas, a his
tria cultural tenha tido sempre, visivelmente, uma inclinao por quem, de nor
ma, fica por fora das representaes hegemnicas, ou por aquilo que as ruidosas
Histrias oficiais silenciam ou omitem. O que vou propor nas notas que seguem,
dentro de uma reflexo que estou esboando h tempo, uma tentativa de
problematizar os silncios das representaes a partir de uma preocupao es
sencial: possvel pensar em uma histria cultural que consiga resgatar os rastos
mnimos ou at inexistentes dos subalternos, apagados ou transparentes nas re
presentaes dominantes? O intuito, como se pode depreender, prximo da
matriz originria dos assim chamados Subaltern Studies indo-ingleses que contri
buram para enriquecer o debate nos estudos culturais a partir da dcada de 1980
e, na Amrica Latina, na dcada seguinte. A minha referncia bsica, no entanto,
so as consideraes metodolgicas que influenciaram, ainda que s parcialmen
te, a orientao de estudo fundada por Ranajit Guha, contidas em um Caderno do
Crcere de Antnio Gramsci, o nmero 25 (XXlll) de 1934, com o impressio
nante ttulo "euclidiano" de "Ai margini delia storia (storia dei gruppi sociali
subalterni)". As notas fragmentrias do Caderno traam, na verdade, o perfil de
um grandioso projeto de resgate historiogrfico. Estas mostram como a histria
"desagregada e episdica"' dos subalternos, praticamente desprovida de rasto
histrico, pode ser recuperada por meio de um exerccio criador e metdico de
pesquisa que aproveita indcios lbeis e dispersos, escapados inteno autoral,
para construir contra-histrias do ponto de vista no dominante. Sobretudo a partir
da principal lio que se extrapola do texto gramsciano que, como a sintetiza

' Antonio Gramsci. Ai margini delia storia (storia dei gruppi sociali subalterni), Quaderno 25
(XXIIl) 1934. In: . Quademi dei Crcere, ed. critica a cura di Gerratana V. Turim: Einaudi, 1975, p.
2283, V. 111.
imngo mortis: o texto,a imagem, o rastodos subalternos 79
Edward W. Said, condensada no radicalismo de um princpio: "onde tem hist
ria, tem classe"-
Aproximando-me portanto da questo, gostaria que no fosse recebida como
uma indelicadeza ou uma violncia gratuita para com umttulo tobonito e enge
nhoso como o da mesa-redonda "Imagens noespao, narrativas do tempo"
que institui uma simetriasedutora e ressoa comouma espcie de pseudoquiasmo,
que disciplina e ordena objetos decisivos e escorregadios como imagens e
palavras, cujos usos ainda so obsessivamente terreno de discusses e de embates.
Meu intuito, no fundo, so de procurar alguns libis em relao ao tema. Para
doxos da modernidade, onde os fundamentos do racionalismo sobreespao e tem
po foram literalmente para o fundo, os libis de que falo so como se sabe
etimologicamente "outros lugares", mas que como tambm bem sabemos, justa
mente na aplicao jurdica do termo, os libis so tambm "outros tempos".
Se pudesse agora adaptaro ttulo geral sminhas consideraes, gostaria que
ele fosse entendido sem sinais de pontuao e em uma diablica circularidade
que eliminasse a seqncia aparente eafundasse aexpresso nafigura arredondada
dum outro tempo que tambm umoutro espao: imagem no espao narrativo do
tempo imaginado. . . Que poderia desenrolar-se para o infinito, quase como uma
espiral, ou uma ladainha inesgotvel. que as representaes em jogo e repre
sentao sempre bom lembrar otermo que, na Idade Mdia, moderniza apala
vra imagem da tradio aristotlica possuem um elo forte de conjugao na
que, com um tecnicismo, se poderia dizer a natureza cronotpica das representa
es, que no poracaso surge na literatura para definir ontologicamente a escrita,
isto o gnero, mas que tambm diz respeito imagem que no s uma poro
delimitada pelo ato de autor do espao, mas , sobretudo, complexamente, tempo.
Como bem aponta Georges Didi-Huberman, antes daimagem estamos sem
pre antes do tempo^ mostrando como na pintura no caso do Beato Anglico
h uma montagem de tempos heterogneos fundando anacronismos que acr
tica chamada arqueologicamente a decriptar.'' Aidia que aqui exponho que
uma abordagem combinada um libi, alis no determina uma sobrecarga
terica que acabaria prejudicando aapreenso do objeto euma epistemologia mini
mamente legitimvel. Pelo contrrio, colocar em cohtraponto imagem e palavra
pode determinar uma possibilidade amais de fora interpretativa, sobretudo quan
do os objetos sobre os quais tal fora se aplica so flbeis, quase desprovidos de
rasto histrico. Um pouco dentro dosulco daquela que Foucault chamava, repen
sando a histria como genealogia, a "histria efetiva", aquela que produz p
descontnuo, ahistria que no constri, mas que literal econcretamente "corta".^
Uma combinao que funciona tambm quando a imagem j um produto do
^ Edward Said. Introduzione. In: Sandro Mezzadra. Suhaltem Studies. Moernit e (post)cohna-
lismo. Verona: Ombre Corte, 2002, p. 20.
^Georges Didi-Huberman. AtUe el tiempo. Historia dei arte y anacronismo de Ias imgencs. Bue
nos Aires: Adriana Hidalgo, 2006, p. II.
* Ibidem, p. 19.
' Cf. Michel Foucault. Nietzsche, ia genealogia, Ia storia. In: . Microfisica dei potere. Turim:
Einaudi, 1977, p. 43.
80 roberto vecchi

mundo e do tempo da tcnica, um objeto complexo para se manusear com cui


dado, como a fotografia.
Formulo essas consideraes sob a sugesto de dois livros recentes que me
aproximaram muito mais de uma idia de fotografia como um campo de investi
gao potencialmente enorme tambm quando combinado quase necessaria
mente, diria com narrativas: refiro-me recente traduo italiana do livro sem
pre de GeorgesDidi-Huberman,^ cujo ensaio introdutrio j fazia parte do catlogo
da mostra impressionante Memoires du Camps e dedicado s famosas quatro fotos
tiradas clandestinamente por um annimo Sonderkommando com o apoio da
resistncia polonesa no campo de Auschwitz documentando o indocumentvel
do extermnio e o recente ensaio de Giovanni De Luna, II Corpo dei Nemico Ucciso
que esboa uma histria do sculo trgico, o sculo XX,pela anlise das fotografias
dos cadveres dos inimigos mortos em guerra que funcionam como fontes repre
sentativas proporcionando um outro, inesperado, ponto de vista histrico.
No se trata do at bvio analogon da escrita, pela luz e pelas palavras (embo
ra essa abordagem tenha condicionado profundamente a perspectiva ontolgica
da fotografia). Trata-se de algo mais fundo e ntimo, diria. Diz respeito qualidade
da memria e do trauma. E mostra tambm a descontinuidade fundamental, anti-
historicista, que a fotografia implica, de acordocom uma famosa leituraque reconecta
fotografia e figurao do tempo de Siegffied Kracauer. Perante a questo relevante
da existncia ou no da memria coletiva (pense-se nas restries de Sontag e de
Kosellek sobre a irredutibilidade da recordao individual) o que releva Aleida
Assmann, pelo contrrio, que a inscrio fsica, corprea da memria, feita por
feridas e cicatrizes muito mais fiel do que a memria mental.^ O que permite,
depois, a fundao de uma memria compartilhvel a partir da impresso indivi
dual da dor uma passagem relevante, "do fsico ao metafsico" que corresponde
a uma metaforizao conferindoum valorparadigmtico experincia individual.
So de fato, como bem mostra Paolo Virno refletindo a partir de Adorno sobre a
instncia profunda dos materialistas, as impresses do prazer e da dor que trivial
mas materialmente recolocam de modo constante e de certaforma polmica a ima
gem do corpo que sente sofrimento ou prazer, em relao lgica ou metafsica,
privilegiando de certo modo a aisthesis sobre o logos, a sensaosobre o discurso.
, nessa perspectiva, onde o choque, o trauma, a ferida, fundam a memria
mais resistente, indelvel, que se pode conjugar ento fotografia e corpo. Do modo
como Proust captava o excesso luminoso do relmpago do flash que produzia um
cunho, um sulco de morte no eu {Sodoma e Gomorra) de um real que permanece
como rasto impresso, assim Ernst Simmel recorre similitude entre fotografia e
trauma para mostrar como o terror deixa uma impresso precisa como uma foto-

Georges Didi-Huberman. Immagim malgrado tutto. Milo: Raffaello Cortina, 2005.


' Aleida Assmann. Ricordare. Forme e mutamenti delia memria cidturale. Bolonha: II Mulino,
2002, p. 275.
* Barnaba Maj. Lendas, lembranas e memria. In: Roberto Vecchi & Sara Rojo. Transilterando
o real. Dilogos sobre as representaes cidturais entre pesquisadores de Belo Horizonte e Bologna. Belo
Horizonte: Fale, 2004, p. 29.
iniagomortis: o texto, a imagem,o rasto dos subalternos 81

grafia, uma figura gravada no no filme mas no corpo funcionando como pelcu
la.' O choque confirma assim aquela natureza de"mais do quepresente" quefavo
rece um acesso impensvel e impossvel portanto um acesso no lembrana,
mas verdade sendo esse acesso impossvel experincia viva do cotidiano mo
derno, assim como Benjamin capta na poesia de Baudelaire. O trauma, como na
leitura de Lacan de real como desencontro'" dissolve as protees naturais que se
contrapem aos estmulos perturbantes de que o poeta no se defende, mas pelo
contrrio o ato criador visto, na famosa imagemexaltada por Benjamin como
um duelo no qual o artista antes da derrota grita pelo susto; a fotografia, e no s
a um nvel de metfora, tambm assim, um grito antes da derrota que o risco
daperda do real mas que o gesto extremo contribui a (oupelo menos tenta) salvar.
Mas como pensar na assimilao da fotografia ao trauma? Antes de tudo
poderamos versancionado sempre com Lacan, mas tambm com Bataille, que o
real impossvel e se manifesta s por meio de fragmentos, ou restos, objetos de
qualquer modo parciais." Noentanto, preciso no confundir o choque quefun
da a imagem fotogrfica, pelo processo que a determina, com o choque que se
simboliza pelo mesmo mdium. Aqui surge um elemento poderamos dizer tr
gico da linguagem que repe o eixo entre imagem e palavra, ainda que em um
plano extremo.
Tal elemento condiciona a discusso sobre a indizibilidade da experincia
traumtica, portanto da sua possibilidade de ser comunicada, tornando-se, pelo
contrrio, opaca e intransitiva. De fato, no caso do trauma, temos um paradoxo
que o caracteriza: para simbolizar-se o traumanecessita das palavras, masas pala
vras no registram o trauma, elas se comportam de modo ambivalente perante a
dorda ferida. H portanto palavras benficas, estticas, poticas, mas tambm pa
lavras falsas, banalizadas que so s "o invlucro da dor" assim destinada a perpe
tuar-se.'- Os choques como os tempos funcionando como cadeia de anacro-
nismos na imagem e no texto, se dispem em conjunto. por conter essa
deriva, no fundo trgica, entre trauma e palavras que a poesia, combinando-se
em grau subjetivo absoluto com a sensao, pode simbolizar o que resiste a qual
quer simbolizao, ou seja, longe de qualquer pretenso denotativa do indizvel,
do excesso de presena. na desmesura do sublime que se pode inscrever, pela
potica, um rasto do que irrepresentvel.'^ Epara colocar mais um paradoxo,
mais um libi, o indizvel, como repara Benjamin, em um passo famoso das
Afinidades Eletivas de Goethe, o centroda verdade de cada obra de arte, remoto da
totalidade, mas vivo como fragmento um "caroo de mundo verdadeiro , como
nota Franco Rella.'-'

" Assmann, op. cit., pp. 275-6.


Mrcio Seligmann-Silva. Literatura e trauma: um novo paradigma. Rivista di Studi Portoghesi
e Brasiliani, n." III, p. m, 2001.
" Georgcs Didi-Huberman. Iinwagini malgrado ttitto, cit., p. 82.
Assmann, op. cit., p. 289.
" Jacques Rancire. S'il y a de Tirrepresentable. Le Geme Humaiii, n." 36, p. 82, 2001.
Franco Rella. Dairesilio. La creazioneartstica come testimonianza. Milo: Feltrinelli, 2004, p. 97.
82 roberto vecchi

sempre duplo o regime que caracteriza certas imagens, certas palavras, um


excesso ou um defeito, uma distncia ou uma proximidade, um sentido imediato
e outro cifrado, complexo, inapreensvel. com essaoscilao nem precisamente
dialtica, bem mais um "palpite", que remete para a definio das assim chamadas
imagens-arranco que se opem idia platnica da imagem-vu, mas que so
prximas no entanto das imagens dialticas. Como com os signos, as imagens
produzem um efeito atravs da sua negao:'^ so as imagens "apesar de tudo" de
George Didi-Huberman. A imagem assim recuperando um pensamento erran
te que de Bataille chega a Lacan que se detm sobre a formao da imagem terrifi-
cante surgiria do silncio e da falncia de pensamento, "onde todas as palavras
se calam e todas as categorias fracassam",'^ imagens-arranco no sentido que o real
encontra no arranco a possibilidade de passagem, de representao pela obstruo.
Estamos mais uma vez prximos de um pensamento importante que con
dicionou quase como um impasse intransponvel a reflexo sobre a fotografia, a
imagem do visvel. o elemento que mostra como o significado da imagem ultra
passa o intuito do seu prprio autor, coincidindo com uma ferida um trauma,
justamente algo que fiira como a ponta de uma flecha. Trata-se de um elemento
do famoso par, studium e punctum de Roland Barthes na Cmara Clara^ onde justa
mente o segundo efeito, o punctum^ na estratigrafia da sua reflexo crtica, sobre o
campo fotogrfico, representa seu patamar mais elevado. Afastando-se das preocu
paes anteriores sobre a linguagem da escrita visual, Barthes localiza no corpo o
lugar proeminente do conhecimento. E o Spectator^ perante a fotografia, reagecom
um "afeito mdio", uma expectativa satisfeita, aplicada o Studium^ justamente
mas que um detalhe, um pormenor de certas imagens um furo minsculo,
provocado pelo punctum pode logo deflagrar'^ mostrando um potencial de peri
go, fora de controle, da fotografia. A proximidade entre imagem e poesia modernos
considervel. Essareformulao pelo vis traumtico da imagem"violenta" por
que carrega com enorme fora a vista ou de modo geral a imaginao,
recoloca de imediato a questo da relao entre o objeto e o tempo, funcionando
como uma espciede bloqueio do tempo cujo tempo gramaticalno o pretrito
mas o aoristo (um passado sem aspecto, absoluto),' uma contralembrana no
morta do passado prevaricando as lembranas individuais que exibe um outro
aspecto do punctum relacionado com a sua intensidade: o tempo. o tempo, a
sua figurao pura, que no fundo, para Barthes, o noema da fotografia banal,
mas compsito, um "foi", um "a a et" colocando a questo do tempo como fluir,
transformando-a em uma espcie de "alucinao velada pelo real", o que a torna
obviamente ambgua e escorregadia, caracterizadapor uma dupla via.'' E o outro
Barthes mais semilogo da dcada de 1960de qualquer modo tinha tambm evi
denciado um outro paradoxo da fotografia, a de ser uma mensagem sem cdigo.^"

Georges Didi-Huberman. Immagitti malgrado tutto, cit., p. 106.


Ibidem, p. 107.
Roland Barthes. La camera chiara. Nota sulla fotografia. Turim; Einaudi, 1980, pp. 27-8.
Ibidem, p. 92.
" Ibidem, pp. 95, 115.
Idem. L'owio e Vottuso. Saggi critici 111. Turim: Einaudi, 1985, p. 7.
inmgo mortis: o texto, a imagem, o rasto dos subalternos 83

O que se configura aqui e nas outras consideraes como a imagem, a


fotografia, mas, por analogia peloelo traumtico, tambm certas tipologias textuais,
coincidam quase por definio com o conceito de rasto, algo que se estrutura a
partir de um outro paradoxo extremo: o rasto para ser interpretado deve ser assi
milado a um signo, ainda que desprovido de cdigo.
No o caso de relembrar o debate entre a ausncia e presena do rasto que
enorme e sobre ele se funda uma contribuio fundamental de crtica da metafsica
da presena de Derrida (que inscreve nelao conceito basede diffrence como "jogo
do rasto", justamente). Mas na "representao na ausncia",^' na dialtica impura
entre presena e ausncia do rasto que se coloca a fluncia da histria. O excesso
o irrepresentvele o impossvel assim a dimenso prpria do real e o rasto
o resduo que no escoa mas o objeto parcial e sobrevivido caucionando a
perda total (lembremos que para Kracauer a fotografia , paraa conscincia, o refle
xo da realidade que lhe fiigiu).-- Isso induz a repensar produtivamente o conceito
de rasto. Sua condio em absoluto ancpite, dual, como correlato da representa
o no homognea mas fragmentria, o transcreve constantemente num hori
zonte que o torna, assim, como a lembrana para a memria, intransitivo. O rasto
ento tem um duplo modo: ou em contato com um real despedaado que porm
no se simboliza e perdeu a referncia ao todo de que fazia parte, ou, no outro caso,
pode manter uma conexo que pode ser, como vimos pelo elo fsico, originria
da dor, do evento corpreo comumamemria intersubjetiva, com umasua for
aparadigmtica, de metfora viva da experincia quesepodeassim transmitir.
Mas, para viabilizar essa potncia que instaura uma temporalizao na sua
traduo em ato por um anacronismo, diria Paolo Virno, "formal" e no*real
queenerva "a recordao do presente" necessria umaoperao digamos ma
terialista, desmetaforizada e desmitologizadora, sobre o rasto. Essa nos possibilita
uma reflexo sobre o eixo palavra-imagem que desde o ttulo perseguimos. Cario
Ginzburg, reconstruindo desde as razes oparadigma indicirio, mostra como pela
prtica antiga da caa, na sociedade primitiva, as primeiras narraes devem ter
surgido pela experincia de decifrao dos rastos-"* colocado no eixo, no metaf
rico mas metonmico, da concretude do contato com o real. De fato, a narrao
que confere sentido aos rastos, que os insere em uma srie coerente de eventos.
Se o rasto ento poderia ser um comum denominador da imaginao que
se constri por imagens e palavras que podem nem sempre simbolizar uma
experincia coletiva, julgo que temos elementos para repensar oportunamente na
relao entre texto e imagem e no s em uma lgica de presena mas tambm
porque os rastos podem remeter no para a emerso do referente mas pela sua
negao quando os rastos reenviam para asua irredutvel alteridade referencial.

Picrre-Marie Beaudc; Jacqucs Fantino &Marie-Anne Vannier (eds.). Ln trncc entre nbsence et
prsence. Actes du coUoqne international de Metz. Paris: Les ditions du Cerf, 2004, p. 9.
"" Siegfried Kracauer. La fotografa. In: Siegfried Kracauer. Ld massa come ornamento, trad.
italiana. Npoles: Prismi, 1982, p. 127 (edio original Frankfurt am Main, 1963-1964 do texto de 1927).
Paolo Virno. 1rompicapo dei materialista. In: AA.W. II filosofo in borgiiese. Roma: Manifes-
tolibri, 1992, p. 26.
Cario Ginzburg. Miti emblemi spie. Morfologia e storia. Turim: Einaudi, 1992, pp. 166-7.
84 roberto vecchi

Alis, bom relembrar que a fotografia assumida como correlativo do rasto


exibe de fato sempre um lado obscuro, seja ele o retorno espectral do passado
(Barthes), ou uma atrao mgica que decorre de um irracionalismo primitivo e
que resiste secularizao (Sontag), ou tambm um trao irracional que revitaliza
a "textolatria" em finais do sculo XIX (Flusser).
No quiasmo dos rastos que fundam a narrao mas que por sua vez so sig
nificados por essa, muito alm da superfcie retrica, talvez possamos encontrar
um eixo profundo que combina narrao e imagem. A impresso de partida-^
que, nos textos ilustrados, a "Escassez" de imagem da leitura corresponde "Tota
lidade" da imagem da fotografia, embora tambm se possa conjeturar que a crise
do texto no sculo XIX encontre nas imagens tcnicas^^ a possibilidade de os tex
tos tornarem a ser imaginveis novamente, superando assim a crise da histria.
possvel pensar, justamente pela valorizao do rasto e da dialtica que ele
implica, de presena-ausncia, que texto e imagem, narrao e fotografia encon
trem novas possibilidades quando colocadas dentro de um enredo que ressignifique
os rastos, assim como justamente acontecia nas mitopoeses primordiais. Alis, a
imagem nunca duplica a palavra porque no h coincidncia ou at tautologia,
pelo fato que se libertam da conjugao significados novos e impensados^^ cap
tando assim pores mais amplas de experincia e de significao de outro modo
condenadas extino.
essa aliana entre texto e imagem que abre o terreno para uma reformu
lao da idia de Emplotment o enredamento elaborado por Hayden White
(uma reformulao antagonista porm e no relativista) em que a articulao a
partir de uma "divinao"^ de rastos do passado projetados no futuro pode abrir
brechas nos silncios e nas trevas de histrias que no se deixam ou no se po
dem contar.
O que ocorre, no entanto, na rearticulao do novo enredo que no h
um retorno puro ou holstico para a imagem avulsa, depois da sua combinao
com o texto, assim como o texto fica definitivamente contagiado pelo contato com
a imagem: como se uma ptina residuria se depositasse para sempre sobre os
objetos alterando definitivamente sua significao.
Ocorrem-me dois exemplos imediatos que talvez nos ajudem a pensar me
lhor o problema. O primeiro um caso a partir de um esvaziamento, de uma
subtrao, que porm acaba funcionando como o rasto de um ato significativo.
Penso na edio de Os Sertes^ a obra que de fato contribui para fundar o subalter
no na cultura brasileira, a partir de um oco, de um silncio que ontologicamente
o constitui.
O evento trgico, como se sabe, teve uma cobertura fotogrfica, alis trata-se
de fato do momento lustrai da fotografiade guerra no Brasil. Flvio de Barros acom
panhou as ltimas operaes de guerra sob o comando do General Carlos Eug-

" Roland Barthes. La camera chiara. Nota suUafotografia, cit., p. 90.


Vilm Flusser. Per una filosofia delia fotografia. Turim: Agor, 1987, p. 15.
" Roland Barthes. Vowio e Vottuso. Saggi critici III, cit., p. 17.
Cario Ginzburg. Miti emblemi spie. Morfologia e storia, cit., p. 167.
imago mortis: o texto, a imagem,o rasto dos subalternos 85

nio. Da guerra contra o arraial baiano que originou a obra de Euclides, ficaram,
pela contribuio de Flvio de Barros, setenta fotografias agrupadas em dois l
buns, cada uma das quais com seu ttulo, que mereceram recentemente algumas
reedies (a editada pelo Museu da Repiblica em 1997, a outra pelos Cadernos de
Fotografia Brasileira em 2002, esta restaurada digitalmente).
Uma das imagens mais fortes que nos ferem nas edies de OsSertes (no
as crticas) o cadver do Conselheiro encontrado enterrado, sob as runas da Igreja
Nova. O corpo morto do inimigo, a imago mortis blica, diga-se de passagem,
um arquivo particular, redundante de significados, de smbolos, emoes (e se
pense quando esse rasto a ser decifrado falta pela sua eliminao como no caso
dos desaparecidos). As fotos dos despojos docorpo morto especialmente do inimi
go,os rastosdos restos, proporcionam representaes, significantes-outros, capazes
de esboar outras memrias, que se institucionalizam em outras histrias-^
reformulandoas retricas monumentalizadoras que se acumulamsobre a guerra.
Mas voltando aos Sertes^ preciso observar que nas primeiras edies da
obra organizadas pelo prprio autor (Euclides depois da editio princeps de 1902,
cuida da reviso de mais duas edies, com uma terceira reviso no ano da mor
te) do repertrio presumivelmente global da obra de Flvio deBarros, ele selecio
na s trs fotografias alm de introduzir no texto tambm, como se sabe, ma
pas e desenhos que constituem tambm a primeira publicao das fotos, fora
da incumbncia militar que as tinha originado. As trs fotos selecionadas so res
pectivamente asque Barros tinha intitulado "Diviso Canet","7." Batalho de Infan
taria nas Trincheiras" e, a mais conhecida eimpressiva, "400 Jagunos Prisioneiros",
Euclides seleciona e renomeia as trs fotos que passam aser indicadas como "Mon
teSanto (base de operaes)", "Acampamento dentro deCanudos" e"As Prisionei
ras (Almeida, p. 286). Enoprprio texto dos Sertes^ alis, se alude, no suplemen
to dolivro (oque surge paradoxalmente noesgotamento danarrao. Fechemos
esse livro. . ."),'" fotografia do corpo morto desenterrado do Conselheiro e
lembremos que Susan Sontag, no florilgio de citaes sobre a fotografia com que
encerra On Photograpy^ reproduz justamente esse trecho (Sontag, pp. 168-9).^'
" Giovanni de Lima. II corpo de! nctuico ucciso. Violenza c morte nella guerra contemporneo.
Torino: Einaudi, 2006, pp. XVI, 7.
Euclides da Cunha. Os Sertes. Componha de Canudos. Ed. crtica de Walnice Nogueira
Gaivo. So Paulo; tica, 1998, p. 49.
Antes, no amanhecer daquele dia, comisso adrede escolhida descobrira o cadver de An
tnio Conselheiro. Jazia num dos casebres anexos latada, e foi encontrado graas indicao de um
prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudrio de um lenol imundo, em
que mos piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha,
de tbua, o corpo do "famigerado e brbaro" agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hbito azul
de brim americano, mos cruzadas ao peito, rosto tumefacto, e esqulido, olhos fundos cheios de
terra mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida. Desenterraram-
no cuidadosamente. Ddiva preciosa nico prmio, nicos despojos opimos de tal guerra!
faziam-se mister os mximos resguardos para que se no desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se
a uma massa angulhenta de tecidos decompostos. Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata
rigorosa firmando a sua identidade: importava que o pas se convencesse bem de que estava, afinal,
extinto aquele terribilssimo antagonista" (Euclides da Cunha. Os Sertes. Campanha de Canudos, cit.,
p. 498.)
86 roberto vecchi

Agora a opo pela ekfrasisy a deciso de privilegiar o texto, a descrio do


corpo morto sobre a fotografia (em um autor particularmentesensvel tcnica
fotogrfica)^^ oferece um rasto interessante. Euclides corrige as legendas, preci-
sando-as. Assim, na foto mais conhecida, "os conselheristas" so redefinidos como
"as prisioneiras", mostrando o produto biopoltico da guerra moderna que Canu
dos representa essa a grande intuio sobre a qual se baseiam Os Sertes e
sua escolha se reduz a trs rastos fotogrficos apoiados porm em uma escrita mo
numental: a tcnica (os canhes que alis representam como sabemos uma foto
falsa, no sentido que no se encontravam no teatro de guerra, mas funcionam
aqui como smbolo) e a oposio "ns" (o acampamento dos soldados republica
nos) e "os outros" ("as prisioneiras", a massa annima e macilenta dos vencidos)
que redobra o eco da "menis", da clera das linhas finais do livro.^^ Ou seja, a
combinao entre texto e imagem produz um outro "enredamento" que excede,
como puncturriy a prpria obra e contracena a uma outra possvel histria: um
contracanto que impe uma releitura do ponto de vista no hegemnico.
Algo de certo modo prximo acontece tambm no segundo exemplo breve
que gostaria de alegar. Um outro grande livro, um romance, bastante marginali
zado pelo cnone da literatura brasileira, que a meu ver se torna muito produtivo
reler em combinao justamente com Os Sertes euclidianos, A Menina Morta de
Cornlio Pena, o grande romance sobre o silncio da casa-grande e do regime
escravocrata, no passa do intuito de dar uma terceira dimenso a um quadro de
famlia (alis visvel na edio da obra completa pela Aguilar de 1958, XXXVIl)
O quadro epnimo da Menina mortas imago mortiscolocado acima de um piano
ao lado de um candeeiro com que Pena retratado (e repare-se como o quadro
uma mise-en-abime da fotografia). O quadro, a imagem da menina morta den
tro e fora da escrita. O romance que a histria de um luto e da violncia que
domina as relaes silenciosas e silenciadas entre a Casa-Grande e a Senzala (em
uma leitura total e polemicamente antiffeiriana), romance enigmtico sobre atos
violentos inconfessveis e encobertos, desde o comeo at ao desfecho, glosa a ima
gem do quadro da menina morta (cuja deslocao e recolocao no lugar proe
minente da casa proporciona rastos ou indcios para uma contraleitura de toda a
matria). O quadro, enfim, funda o romance que se fiinda sobre o silncio dos
subalternos, mas ao mesmo tempo a imagem modificada pela prpria narrativa.
Isto proporciona um outro modo de reler a histria, uma deslocao da leitura
que configura outras narrativas onde os silncios e os vcuos se ressignificam e
preenchem, deixando entrever, ainda que s em um relmpago, os perfis no re
presentados dos subalternos.
E para este fim, preciso aplicar sempre outras e no convencionais ferra
mentas crticas, no momento em que assumimos no a obra, mas a imaginao
que se forma na combinao interesttica de textos e imagens. Mas assim, na

Cf. Berthold Zilly. Flvio de Barros, o ilustre cronista annimo da guerra de Canudos. Estudos
Avanados, n. 13, v. 35, p. 106, 1999.
33 Cf. Walnice Nogueira Galvo. Os Sertes, o canto de uma clera. Nossa Amrica, n." 3, p.
101, 1990.
itttago mortis: o texto, a imagem, o rasto dos subalternos 87

trama dos eventos de todas as narraes possveis^"* por rastos imagens e pala
vras que colocam sempre a questo da tica do sujeito perante a tica: "para
saber ocorre no imaginar mas imaginar-se",^^ mediante alianas impensadas,
possvel chegar perto de uma indizibilidade que , ambiguamente, arte e silncio,
palavras e escurido, mas que s assim por um pensamento que pensa contra
si prprio, como dizia Adorno, para no setornar cmplice do horror^^ podem
reciprocamente iluminar-se, deixando um rasto de luz na noite fiinda de uma
Histria que sempre nos foge. E essaa histriados vencidos.

Franco Rella, op. cit., p. 21.


" Georges Didi-Huberman. Immagini malgrado tntto, cit., pp. 198-9.
^ Franco Rclla, op. cit., p. 96.
REMEMORAR O ESPETCULO E OBSERVAR-SE REMEMORANDO:
UM ESTUDO ACERCA DO IMAGINRIO DOS ESPETCULOS
Teatro: Variaes Sobre o Tema e Homem: VariaesSobre o Tema

Maria Luiza Filippozzi Martini


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O ponto de vista geral que nos levou a este trabalho o das sensibilidades.
Entende-sepor sensibilidades uma redeque envolve sensaes, percepo, sentimen
tos e conceitos, operando por meio do imaginrio. Nele, interessa-nos a represen
tao, no sentido de Le Goff,' enquanto traduo criativa, potica. Alm disso, in
teressa-nos, tambm, suas implicaes,transformando-se em experincia e atividade
de memria. Como qualquer outro documento, a memria fornece no mais que
sinais, smbolos. Interessam-nos as sensaes e os sentimentos; o movimento da
memria, no encontro entre passado e presente; a formao de um outro tempo,
o da narrativa; interessa-nos, ainda, inserir documentos de ao e criatividade no
discurso historiogrfico, que alterem sua caracterstica terico-demonstrativa.
Escolhemos o teatro por sua profuso de sentidos: texto, espao, cenrio, fi
gurino; corpos que falam por si mesmos, assentindo ou fragmentando o texto;
corpos que falam em silncio. Ao sem fala, mas com um sentido a desvendar.
Alm de si mesmo, o espetculo gera documentos escritos, na imprensa e em ou
tros meios de divulgao. Selecionamos como documentos, espetculos do Curso
de Arte Dramtica (CAD) da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul: Teatro: Variaes Sobreo Tema (1967) e Homem: Variaes Sobre
o Tema (1968). Ambos fazem um percurso esttico que continuou fora do CAD.
Trabalhamos com os documentos escritos, materialmente exteriores, que
conferem relativa perenidade ao acontecimento (o espetculo). O texto do primei
ro espetculo est no Arquivo da Censura Federal, no Teatro de Arena de Porto
Alegre. O segundo espetculo apresenta apenas um roteiro de aes (no h texto)
sumariamente descrito pelo diretor. Ambos geraram material de divulgao em

' Jacques Le Goff. Histria e memria. Campinas: Unicamp, 1992.


os espetculos Teatro: VariaesSobre o Tema e Homem: VariaesSobre o Tema 89

que se destacam notas redigidas pelos diretores e/ou autores, de que a imprensa
se utilizou no todo ou em parte; tambm h crticas, entrevistas e fotos.
O teatro se consuma e se consome a cada espetculo, o que intensifica ne
cessariamente o carter precrio de seu registro, embora qualquer registro seja
representao precria, um indcio para a memria e a histria. Temos um regis
tro fotogrfico restrito a xrox de jornais. A questo do "direito de imagem" no
permite a liberao de fotos de arquivo dos jornais para reproduo: o acesso
limitado. Podemos v-las apenas mediante autorizao.Asadministraes do Mu
seu Universitrio e do arquivo do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas- da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul declaram no ter nenhuma documen
tao sobre os espetculos.
Outro registro, entretendo a narrativa, o da memriados participantesdes
ses espetculos, artistasou pblico. Contamos com uma rede de memria inicial,
concentrada, principalmente em Luiz Arthur Nunes (roteirista e ator em Teatro:
Variaes Sobre o Tetna^ roteirista e diretor em Homem: Variaes Sobre o Tema),
Nara Kaiserman (atriz em Homem: Variaes Sobre o Tema), Maria Luiza Martini
(atriz em Teatro: Variaes Sobre o Tema e em Homem: Variaes Sobre o Tema),
que jsealastrou incorporando mais quatro pessoas, embora ainda deforma me
nos explcita; contamos tambm com nossos "jovens outros", bolsistas de Inicia
o Cientfica, nascidos muito depois de 1967 (Fernanda Lannoy Strmer, Mar
celo Medeiros deOliveira, Valeska Maffei Barcellos), queseinteressam por Histria
Cultural e pela contracultura dos anos 1960. As tarefas que foram realizadas por
eles so: pesquisa em jornais da poca; recolhimento de textos; identificao de
revistas do perodo buscando fotos de melhor qualidade; investigao da biblio
grafia; iniciao nos estudos de memria; e dedicao anlise de objetos cultu
rais, to delicados e fugidios como esses espetculos. Trabalharam como nossos
interlocutores, fazendo a experincia daevocao, que aqui ser narrada.
Luiz Arthur doutor em Artes Cnicas, lecionou na UFRJ (Universidade
Federal do Rio de janeiro) e faz teatro no Rio de Janeiro. Vrias vezes premiado,
seus trabalhos de mais intensa recepo, recentes, e que mais o agradam, so: de
Nlson Rodrigues, Mulher sem Pecado e de Goldoni, Arlec^uim, Servidor de Dois
Patres, um clssico, guardando toda a malcia da Commedia deli Arte} Nara fez
graduao em Artes Cnicas no Departamento de rte Dramtica, graduao em
Histria (UFRGS). doutora em Artes Cnicas (UFRJ), tambm leciona e faz
teatro no Rio de Janeiro. Recentemente trabalhou o conto de Heiner Mller, His
tria de Amor com o grupo "Propositores", no qual a memria integra o espetcu
lo no jogo presente-passado-presente e uma performance sensorial, inspirada nas
cartastrocadasentre Lygia Clarke Hlio Oiticica.
^o Museu Universitrio, indicado pelo Instituto de Artes, e o arquivo do Instituto de Filosofia
e Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, lugares onde poderamos obter
informaes sobre os espetculos, desaconselharam nossa pesquisa nos seus arquivos em virtude da
"falta de organizao" deles.
' A Conwtedia delVArte era uma forma popular de improviso teatral, que comeou a existir no
sculo XVI e se manteve popular at o sculo XVIII. Arlequim, Pierr e Colombina so personagens
clssicos dessa forma de fazer teatro.
90 maria luiza filippozzi martini

Maria Helena Lopes, especializada na Escola de Le Coq (Paris) professora


do DAD (UFRGS), diretora vrias vezes premiada por seus trabalhos com o grupo
TEAR foi uma preciosa rememoradora eventual, nesta fase de trabalho. Maria Luiza
no completou a formao no DAD (UFRGS), fez graduao em Histria, mestrado
em Sociologia e doutorado em Histria. Freqentemente trabalha a narrativa tea-
trd como forma de acesso ao discurso historiogrfico.'' Assumiu a rememorao
dos espetculos em questo.
Nosso tnue e flexvel grupo de rememoradores comunica-se de todos os
modos possveis: correio eletrnico, telefone, encontros pessoais face a face ou
mesmo em grupo quando andamos pelo Rio de Janeiro ou So Paulo ou Porto
Alegre. Conversando ao sabor da evocao vo se juntando fragmentos dos espe
tculos. O narrador, tambm ele rememorador, zela pela narrativa. Recolhe-se toda
a diferena de verses e tramas da narrao usando ou no gravador conforme as
circunstncias. Todas as verses do texto obtido so devolvidas aos rememoradores.^
Nossa expectativa que se v criando uma "dinmica Sheherazade",^ me
dida que as pessoas, por um momento que seja, desejem assim salvar suas vidas, a
partir de suas memrias. No h maiores formalizaes metodolgicas que so
brecarreguem nossos parceiros com rituais de conscincia, peso de testemunhar
para a histria ou o de especializar-se em memria, a menos que o desejem, ao
longo do trabalho.
Entretanto, o narrador que rememora e zela pela memria uma constru
o complexa. Que se expe no item a seguir.

O Narrador-Rememorador: como rememorar observando-se rememorar

No contaremos dele uma longa histria, mesmo sabendo que poderamos


encontr-lo desde o coro da tragdia grega. Mas podemos restringir-nos ao sculo
XIX, quando o estudo das sensibilidades (inconsciente e memria) esteve ligado
auto-observao. O exemplo clssico o de Sigmund Freud. Iniciou-se em Psi
canlise, sofrendo muita estranheza em seu meio, com a interpretao dos pr
prios sonhos.^ Maurice Halbwachs, socilogo francs, em sua rememorao do
velrio de Vtor Hugo, por exemplo, experimenta em sua prpria histria o que
ele conceitua como "quadrossociais da memria".' Vale a pena citar Bergson, dada
a mincia de sua auto-observao no ato de rememorar:
" Maria Luiza Martini (org.). Assim nasceu a rua da Praia. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2001.
Cartas de confirmao de 14 e 26/10/2006.
Sheherazade salva a sua vida distraindo o sulto que adia a sentena de cortar-lhe a cabea em
troca de estrias. Ver Jeanne Marie Gagnebin. Prefcio. In: Walter Benjamin. Magia e tcnica, arte e
poltica: ensaios sobre a literatura e histria da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1994. Da decorre o que
chamamos de "dinmica Sheherazade", que se trata da pessoa que salva sua vida ao contar histrias
e/ou memrias.
^ Sigmund Freud. A interpretao dos sonhos. So Paulo: Crculo do Livro, 1992.
Maurice Halbwachs. Memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990.
' O conceito de "quadros sociais da memria", refere-se aos campos de significados inseridos
na memria coletiva. Ver tambm Maurice Halbwachs. Los marcos sociales de Ia memria. Barcelona:
Anthropos, 2005.
os espetculos Teatro: Variaes Sobreo Temae Homem: Variaes Sobre o Tema 91

Essas imagens particulares que chamo mecanismos cerebrais termi


nam a todo momento a srie de minhas representaes passadas, consistindo
no ltimo prolongamento que essas representaes passadas enviamao pre
sente, seu ponto de ligao com o real, ou seja, com a ao. Corte essa liga
o, a imagem passada talvez no se destrua, mas voc lhe tirar toda capa
cidadede agirsobreo real e,por conseguinte [.. .] de se realizar.'" (p.60)

Foi comum na dcada de 1970, no mbito especfico da histria, criticar as


condies de produo historiogrfica visando a academia e seu poder determi
nante enquanto lei e linguagem." Crtica essa que se retoma nos anos 1980 com
uma proposta prtica, ensaios de ego-histria, na verdade um conjunto de escri
tassobresi mesmo enquanto historiador.

Toda uma tradio cientfica levou os historiadores, desde h um s


culo a apagarem-se perante o seu trabalho, a dissimularem a personalidade
por detrs do conhecimento, a barricarem-se por detrs das suas fichas, a
evadirem-se paraumaoutrapoca, a no seexprimirem seno por interm
dio de outros, permitindo-sefazer, na dedicatria da tese, no prefcio do en
saio, uma confidncia furtiva. A experincia da historiografia ps em evi
dncia, h uma vintena de anos, os falsos aspectos desta impersonalidade e
o carterprecrio da sua garantia.'^

Michele Perrot uma historiadora que realiza tal experincia, ade personali
zar a relao com o objeto, referindo Bergson como opensador que abriu seu olhar.
Narra como se fez historiadora e como sevinculou classe operria. Indica a distn
cia enunciando um ponto de vista que tambm leva o historiador a observar-se:
Ooperrio fora primeiro, para mim, numa busca de caridade, o subs
tituto do pobre; foi o seu desnudamento que me atraiu, ao princpio como
o prximo mais urgente; fora o meu remorso. Romper com o campo dos
exploradores, onde o nascimento me colocara, parecia-me uma obrigao
ardente.'^

Assim, a auto-observao de si mesmo no trabalho cientfico tem alguma


genealogia desde o sculo XIX, nasCincias Humanas e tambm na Histria. No
obstante, auto-observao ea prpria memria ainda causam estranheza. Na ver
dade existe uma antinomia entre histria e memria. Do ponto de vista da
memria

Henri Bergson. Matria e memria: ensaio sobre a relao do corpo com o espirito. So Paulo:
Martins Fontes, 1990, p. 60.
" Michel de Certeau. A escrita da histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006, p. 76.
Pierre Chaunu; Georges Duby et ai. In: Pierre Nora (org.). Ettsaios de ego-histria. Lisboa: Ed.
70, 1987, p. 10.
" Michelle Perrot. In: Pierre Nora (org.). Ensaios de ego-histria. Lisboa: Ed. 70, 1987, p. 270.
92 maria luiza flippozzi martini

o reconhecimento da lembrana memorialstica atribui evocao um efeito


de verdade. A memria aparece como verdadeira, legitima-se como tal, mas
trata-se de uma representao do ocorrido. Conforta, satisfaz, aceita, pas
sando a ter foros de indiscutvel. O reconhecimento das lembranas passa a
ser a realidade transcorrida.'''

Do ponto de vista da histria, a meta de recompor a verdade de um acontecido


detm-se no horizonte do no-experimentvel, reduzindo-se o "ter sido" a um
"poderia ter sido",'^ preservando-se nessa enunciao o carter terico demons
trativo do discurso historiogrfico.
Mas, enquanto forma de narrativa e representao, histria e memria se
distinguem de outros discursos sobre a realidade pelo fato de que seu objeto refe
rente um tempo transcorrido. Ou seja, partilham desta mesma condio: aquilo
que se presentifica no discurso histrico e que se rememora no discurso memo-
rialstico pertence a um tempo fsico j escoado e irreversvel. Imagens e discur
sos aparecem sobre o ausente, fazendo-o existir em uma instncia temporal que
no nem passado nem presente, mas sim um tempo narrado, histrico ou me-
morialstico.'^
Neste trabalho, assumimos a antinomia entre histria e memria. Ela
constitutiva de uma histria de lugares e rememoraes. Tende a minimizar-se
no texto narrado, quando um ou mais rememoradores se interessem por evocar
o passado, interpretando um papel de historiador. Tambm minimiza-se pelos re
cursos transdisciplinares do narrador-rememorador em apontar o lugar de onde
lembra, observando-se no lembrar. Mostrando sua prpria tica ele representa o
historiador-memorialista e estimula seus parceiros nessa direo. Assim ele tem
a liberdade do sentido profuso, do fragmento, da incurso memoralstica, da in
curso historiogrfica e da auto-observao. Percorre o territrio da Histria Cul
tural freqentando o espao onde, em princpio, "tudo histria". Tentar alastrar
o olhar, "ver o que fazem os vizinhos":

matemticos, fsicos, bilogos se interessam mais e mais ao que eles cha


mam sistemas a-centrados, e eu penso que o historiador, de seu lado, sem
muito saber, por falta de preparo tcnico, o que faz seu vizinho matemtico
ou bilogo, est engajado na mesma via porque definitivamente o espri
to permanece em sua diversidade, ao menos no interior de uma certa cul
tura, de uma certa sociedade.'^

Um cuidadoso trabalho de divulgaode pesquisasrealizadopelo bioqumico


Ivn Izquierdo,' um dos maiores pesquisadores da memria, capaz de informar

Sandra Pesavento. Histria e literatura: uma velha-nova histria. No prelo, 2006.


'5 Ibidem.
" Ibidem.
Jacques Le Goff & Michel Cazenave. Histoire et imaginaire. Paris: Poesis, 1986, p. 19.
' Ivn Izquierdo. Questes sobre memria. So Leopoldo: Unisinos, 2004.
os espetculos Teatro: Variaes Sobre o Tema e Homem: VariaesSobre o Tema 93

um leigo interessado, permitiu-nos acessar informaes que, associadas auto-


observao, construiro o Narrador. Essa bagagem ajudar a descobrir caminho e
aproveitar atalhos teis para representar a antinomia histria-memria. H de ser
um Narrador participante de seu objeto, que conservarcom empenho acadmi
cosua caracterstica de rememorar observando-se rememorar. Tal o seu lugar.
prudente saber da memria por sua prpria memria, no exercciocom interlocu
tores, antes de intervir na memria dos outros.
Interessa destacar algumas das noes bsicas de biologia da memria que
informam o rememorar:

Ns formamos, guardamos e evocamos memrias com fortes compo


nentes emocionais e sob intensa modulao hormonal [. . .] a memria hu
mana ou animal se refere quilo que se armazena, conserva e evoca de sua
prpria experincia pessoal. [. . .] Osprocessos moleculares relacionados com
a aquisio consolidao, armazenamento e evocao de memrias so co
nhecidos em sua maioria. [. . .] Conhecemos j bastante sobre os mecanis
mos de modulao das diversas formas de memria: estes envolvem vias
nervosas e sistemas hormonais definidos, atuando emlugares especficos do
sistema nervoso por meio de sistemas bioqumicos. [. . .] As modulaes
que aqueles sistemas fazem sobreosmecanismos daformao e da evocao
da memria correspondem aos efeitos das emoes, sentimentos e estados
de nimo ou de ateno dos indivduos.

Portanto as imagens colecionadas por um rememorador so tambm cole


es de emoes:

a) Memria aquisio, conservao e evocao de informaes (ibidem,


p. 15); b) muitas vezes, fatos antigos acompanhados de forte carga emocio
nal so memrias de longa durao (ibidem, pp. 36 e 94) ec) as memrias
emocionais so gravadas juntamente com aemoo que as acompanha eda
qual em boa parte consistem, oque implica que foram guardadas num mo\d-
mento de hiperatividade dos sistemas hormonais eneuro-humorais: secreo
perifrica de adrenalina ecorticides, liberao cerebral de noradrenalina e
dopamina. Em outros momentos em que ocorram essas liberaes viremos
a nos lembrar, geralmente em detalhe, dessas memrias mais antigas.^'
Aproduo de emoo adequada para conectar memrias de longa durao
pode ser aleatria viver no presente alguma emoo de caractersticas semelhan
tes s que gravaram tais memrias ou a prpria disposio de rememorar,
recolocar-se no passado. Neste caso, o Narrador ao tomar como documentos

" Ibidem, pp. 16-8.


Ibidem, pp. 36 e 94.
Ibidem, p. 37.
94 maria luiza filippozzi martini

espetculos de h quarenta anos, mergulha num tempo de auge de projetos.^ No


s pelos projetos como tambm pela emoo, atual, de que l havia um mximo
de tempo pela frente, um auge, vivido ento como potncia. Trata-se das mesmas
razes por que as memrias antigs so as mais preservadas: concentrao de emo
o anloga a da formao de tais memrias. A esto os materiais interessantes
para um "rememorador", para um colecionador de "emoes" e tambm de acon
tecimentos ligados a elas, em vrios tipos de memrias (visual, auditiva, verbal,
imagtica, motora) combinadas.
O reconhecimento desse dilogo de emoes entre passado e presente cria
uma posio analtica de distanciamento do narrador com relao a si mesmo e
s suas memrias, o que lhe permite tambm aproximar-se de vrios matizes de
distanciamento e esquecimento. O prprio sistema de memria encarrega-se de
produzir distanciamentos e esquecimentos, atenuando estados emocionais ligados
a lembranas e emoes com as quais difcil ou impossvel conviver; h uma
modulao biolgica que atua em favor, geralmente, da reacomodao emocional.
Esse processo seletivo, no atinge esta ou aquela sinapse ou esta ou aquela mem
ria, e sim um conjunto, uma rea. Da a possibilidade de uma memria rejeitada
ativar-se junto com as desejadas. Essas memrias esto ali: " bom t-las ocultas,
mas disponveis em caso de necessidade"." Uma forma de dimensionar a
reacomodao contar a histria de nossa vida. Dificilmente isso ocupar mais
do que duas tardes. Por isso, quem trabalha com sua memria ou a de outros em
pouco tempo reconhece uma histria-padro.
Por isso, para a histria-memria, o papel fundamental do grupo de reme-
moradores ou rememoradores eventuais. So eles que, impulsionados episodica-
mente pela emoo da dinmica memria/evocao, fazem aparecer detalhes bri
lhantes, que fazem a diferena. Tambm so eles que trazem verses diversas,
abrindo a memria a outros documentos exteriores, de carter historiogrfico, cru
zando histria e memria.
O narrador busca seus parceiros daquele tempo. E eles esto a, vivos, criati
vos, estudando grego, fazendo teatro, observando o mundo. Face a face esto o
narrador-rememorador e os rememoradores. O que os diferencia?
Todas as pessoas vem imagens difusas, aparies em movimento, quando
percebem ou lembram. Mas no lhes do ateno especial. Esto empenhados em
criar ou resolver problemas, ou o que seja. Alem disso h o estranhamento. Con
tar sonhos menos estranho, mas ver imagens e movimentos acordado, aparies^
muito estranho, quando se presta ateno. Isto coisa de narrador, por gosto e
dever de ofcio, para quem faa uma coleo de emoes: tomar vagas lembran
as como marcas de historicidade; rememorar observando-se para perceber, ago
ra, algum movimento de imagens, cores, corpos, espao, luz, firases do texto em
interpretao pelos atores l, h quarenta anos.
Essa qualidade de percepo do narrador, dada pela observao de seu pro
cesso de lembrar tende a reforar-se uma vez que trabalha sua experincia pessoal

Ivn Izquierdo, op. cit., p 46.


os espetculos Teatro: Variaes Sobreo Tema e Homem: Variaes Sobre o Tema 95

especfica. Assim como os animais, os homens submetem-se a treinamentos,para


desenvolverem percepes refinadas, ligadas poesia. Oteatro, porexemplo, trei
namento. Dentro da cena povoada de acessrios de Teatro: Variaes Sobre Tema o
narrador repetiu o espetculo durante, pelo menos, dois meses de ensaio e dois
meses de apresentao, devendo ocupar determinadas posies em relao a seus
parceiros; experimentar determinadas emoes dizendo o mesmo texto ou exe
cutando o mesmo movimento, a cada espetculo; o narrador-rememorador tem
vrios tipos de memria a observar emseu prprio laboratrio.
Um ensaio uma prtica semelhante que se deve fazer para publicar o
resultado de um experimento (artificializar a natureza, criar um espetculo sub-
metendo-lhe corpo e sensibilidade); um ator sabe,a exausto,onde est, para onde
vai em seguida, onde esto e para onde vo seus parceiros em cena, o que no
quer dizer que o ator "pense nisto" a no ser pontualmente, quando acontece o
erro, a "crise", quando o diretor interrompe e critica o ensaio. O diretor v, inten
samente atento, o espetculo. O narrador-rememorador procura fazer isso agora.
Ele est interessado no espetculo apresentado, na rememorao do espetculo
em que interpretou, em descobrir na memria sinais do movimento, sentido e
emoo das aes, desta ou daquela cena, do conjunto de aes. Est claro, por
tanto, que o narrador trabalha com rememoradores, mas ele um rememorador
especialmente interessado, quer saber como funciona sua memria, quer saber
onde estava na cena xis, qual sua trajetria, o que fazia, o que dizia, com quem
fazia tais coisas; marcar as lacunas de sua memria, nas imagens e no movimen
to destas, nas coisas estranhas, no que est reprimido. Olhar-se rememorando, como
Bergson,^^ pela ao, submeter s imagens acessadas as prprias categorias
indicirias da linguagem (quem, como, onde), que so tambm de imagem em
movimento.
Esperamos, assim, sustentar o ponto de vista das sensibilidades, tentando
reconhecer as emoes que conectam a memria pelo "observar-se rememoran
do". Praticar nessa qualidade de rememorao a difcil renncia da sensao de
verdade indiscutvel do discurso memorialstico, isto , admitir o esquecimento.
Cultivar assim o espao para a histria como memria coletiva, povoada de pes
soas, acontecendo no espao eno tempo, de que fala Halbwachs,^'' densa de poder
evocativo (Quem? O qu? Quando? Como? Por que?). Cultivar objetos que
protagonizem a histria da criatividade, isto , que adquiram vida por meio da
leitura do historiador, de documentos como a literatura, a poesia e o espetculo.
Cultivar, enfim, uma historiografia mais de descoberta do que de demonstrao.
Histria-Memria

Anarrativa a seguir organizou-se a partir da imprensa sobre o espetculo, a


ao dacensura, a sinalizao dalutaarmada e o processamento da memria.

" Henri Bergson, op. cit.


''' Maurice Halbwachs. Memria coletiva, op. cit.
96 mana luiza filippozzi martini

Teatro: Variaes Sobre o Tema

Luiz Artur Nunes (roteiro) e Maria Helena Lopes (direo), CAD/UFRGS,


1967, (1.'' verso)

Teatro: Variaes Sobre o Tema uma histria curta do teatro para ser ence
nada: dramaturgia, poticas de espetculo e estratgias de interpretao. J na "di
nmica Sheherazade" daquela poca, uma vez que precisamos sempre de histrias
para nos salvar, LuizArtur Nunes e Maria Helena Lopes, protagonizando o prprio
teatro, teciam fragmentos de textos evocados em grupo, tais como: Molire, Labi-
che, Peter Weiss, Eugne lonesco, Garcia Lorca, Jean-Paul Sartre, Bertolt Brecht e
Valmir Ayala.Na introduo, contava-se o espetculo atravs do tempo, em aluses,
metforas poticas ou cmicas: o njaponSy^^ comdia romana^^^ teatro medievaly-^
commedia delVarte, teatro elisabetano^^ e teatro realista}^ Caracterstica do espet
culo a organizao em quadros intercalados por msica, ao vivo ou trilha sono
ra, anunciados e comentados pelos atores. Tal ordem a chave do espetculo e da
sua profuso de sentidos. A cena transparente, visvel ao pblico: iluminao,
acessrios de figurino e cenrio de carter evocativo. Por exemplo: um leno na
cabea, amarrado sob o pescoo, suficiente para caracterizar a me de "Dona
Rosita", no "Retbulo de D. Cristbal" de Garcia Lorca. O espetculo inscreve-se
no modelo de teatro pico.^
A imprensa acolheu Teatro: Variaes Sobre o Tema desde o perodo de pro
paganda, antes da estria. Vrias notas como a que segueforam distribudas e pu
blicadas. O espetculo

no uma conferncia ilustrada sobre teatro, mas a captao de diversos


momentos da existncia: momentos poticos, momentos dramticos, mo
mentos de absurdo, momentos de humor, etc. [. . .] No se trata, porm, de

o N japons, tambm chamado "Teatro Noh", uma das formas mais refinadas do drama
musical clssico no Japo, e tem sido executado desde o sculo XIV. Caracteriza-se por um estilo
lento, rgido e pelo uso de mscaras tpicas.
" A comdia romana no deixa de ser um prolongamento da comdia teatral grega, com temas
aplicados ao cotidiano dos habitantes do Imprio. As principais mudanas foram mais na estrutura fsi
ca do teatro (palcos planos, uso de plataforma, melhorias na acstica) do que nos mtodos de inter
pretao.
O teatro na Idade Mdia era a representao da moralidade crist como forma de apresentar
a prpria doutrina aos fiis.
O Teatro Elisabetano era normalmente encenado num teatro londrino chamado "The Globe
Theatre", onde WUliam Shakespeare e outros encenavam suas obras.
" O realismo no teatro foi um movimento que comeou em fins do sculo XIX propondo que
textos e interpretaes apresentassem fidelidade vida real. Exemplos de dramaturgos realistas so o
noruegus Henrik Ibsen e os russos Anton Chekhov e Maksim Grky.
^ Modelo de teatro teorizado e executado pelo dramaturgo alemo Bertolt Brccht. Tal modelo
prega a concepo marxista do homem, o distanciamento crtico dos atores e um chamado "sistema-
coringa", em que os mesmos atores interpretam vrios papis diferentes.
Correio do Povo, 27 de maio de 1967.
os espetculos Teatro: Variaes Sobre o Tema e Homem: Variaes Sobre o Tema 97

teatro declamado: o teatro apenas um suporte para fazer explodir o espe


tculo de um modo total, com a mxima utilizao do corpo do ator, da
msica e da luz que delimita o espao cnico.^'

O espetculo, entretanto, acabou por sercensurado:

Com um incrvel quiproc com a censuralocal, o Centro de Arte Dra


mtica da FF da UFRGS, s conseguiu fazer um ensaio interno, pois o espe
tculo foi interditado. Aincriminao serefere a Molire e Garcia Lorca, os
quaisso gnios consagrados.^-

Revertida a situao de censura, a imprensa, que se servia das notas envia


das por Luiz Arthur para comentar caractersticas do espetculo, continuou fa
zendo boa divulgao:

cenrio, como concebido tradicionalmente, no existe. Os objetos utiliza


dos esto todos vista do espectador. Desta maneira, o palco nu e com
rotundas pretas escapa limitao deumespao fsico e transforma-se num
mundo em que tudo est mo,de onde tudo pode acontecer.^^

Acontinuidade da temporada, que estava sendo feita no teatro lvaro


Moreyra, divulgada com ampla reportagem e fotos. Em 15 de junho, divulga-se
que os espetculosde 27 e 28 de maio tiverama lotao esgotada. Portanto, temos
indcios de um objeto cultural polmico, mas bem recebido pelo pblico.
Aqui vai um fragmento de texto censurado: o Mdico Volante, de Molire
(Molire) para que o leitor tambm o rememore:

O mdico Volante. Molire^"*

SGANARELLO: "sou Omaior, o mais hbil, o mais douto medico que existe
na face mineral, vegetal e sensitiva." {Sabine volta com a urina.)
GORGIBUS: Estou encantado!
SGANARELLO: Aqui est uma urina que indica muito calor e uma grande
inflamao intestinal. {Bebe a urina.) Emtodo caso no to ruim.
GORGlBUS:0 qu? Vs a engolis?
SGANARELLO: No VOS espanteis! Os mdicos, em geral, se contentam em
olh-la, mas eu, que sou um mdico fora do comum, eu a bebo, porque
pelo gosto identifico bem melhor as causas e as conseqncias da doena.
Mas para dizer a verdade, havia muito pouca urina para dar um bom diag
nstico. preciso, pois, que vossa filha mije mais!

" Ibidem, 28 de maio de 1967.


" Ibidem, 11 de junho de 1967.
^ Excerto referenciado no roteiro de Teatro: Variaes Sobre o Tema.
98 mana luiza filippozzi martini

SABINE: Oh, mas eu j tive tanta dificuldade em faz-la mijar!


SGANARELLO: Ora, vejam s! Que impertinncia! Fazei-a mijar copiosa-
mente. {Sabine sai.) Se todos os doentes mijassem assim, eu estaria bem ar
ranjado!
SABINE (voltando com o urinol): Eis tudo o que pude obter. Ela no conse
guiu mijar mais!
SGANARELLO: O qu? Senhor Gorgibus, vossa filha s mija por gotas?
sem dvida uma pssima mijona! Estou vendo que ser preciso lhe receitar
uma poo mijatria. Podemos ver a paciente? (Saem todos.)

Rememorao da censura: lapso de memria?

Ningum do grupo tinha a menor lembrana da censura. Nada, nada. Olha o


valor do escrito! E olha s o censurado, nem Sartre, nem Brecht, olha! Molire. Mesmo
depois de saber da censura pelo jornal, no h nada. H um branco, decepo. O es
quecimento constatado uma pequena derrota, ou no?Ento eu volto ao que bom e
consistente, com imagem e ao. Procuro um atalho pelo que iluminado, visvel, d
prazer e me salva. "O Mdico Volante". . . mais bonito em francs, "Le Mdecin
Volant". Alis, eu corria o risco de ficar plantada em cena, tanto me encantava o
Sganarello criado por Damasceno. Tinha um chapu tipo de mosqueteiro, com plti-
mas, que ele "ventava", com uma sriede reverncias, j em dana, em minueto, acom
panhando a fala. Adorava a saia que simbolizava a indumentria da poca. Mas
era uma saia de baixo. Vazada, feita definas barbatanas brancas. No encontro das
verticais com as horizontais, caprichosos lacinhos. Se um deles se desfizesse. . .! A tal
saia era irreverente, como o texto de Molire. Hoje, a malha preta uma indumentria
mais do que bem comportada. H quarenta anos era diferente. Marcava o corpo, es
tava caracterizada como o corpo que aparece debaixo de uma pea intima. Estva
mos descalos. Luiz era impagvel, comseusgrandes olhosverdes e sua boca lembran
do a commedia delVarte, ao natural, tinha veia para comdiafazendo Gorgibus. Vestia
um redingote marrom, e um "chignon"que buscamos nosfigurinos do CAD. Maria
Helena nosfez repetir aquele minueto at que elefosse to corriqueiro como caminhar
ou sentar. Ai dele que nos roubasse da contracenao e da clareza do texto! O urinol
passava de mo em mo at as de Sganarello, que, ao devolv-lo a Gorgibus, insinua
va um gesto de jogar seu contedo sobre a platia, no momentoem que ele dizia, in
dignado, ser preciso "receitar uma poo mijatria".A platia reagia, recuava instin
tivamente para defender-se de um banho indesejado e ria bastante. disso que eu
lembro, porque bom de lembrar.

Depois de tomar conhecimento do esquecido procura-se o passado (Onde?


Como?) na falha da memria, correndo o risco de mais imaginar do que lembrar.

No teatrolvaro Moreyra, a luzclara, branquicenta, acesa na platia: no ha


veria espetculo. Ningum fazia nada. Estvamospreparados, com toda energia e con
centrao, para fazer estrear. Por enquanto era isso, um espanto sem grito. O diretor
os espetculos Teatro: Variaes Sobre o Tema e Homem: VariaesSobre o Tema 99

do CAD, Gerd Bornheim, estava l. Acho que coube a ele negociar com a censura,
explicar que no se pode cortar e substituir palavras de um autor. Mesmo que no
fosse um Molire. Aldo Obino,^^ quenoperdia umespetculo, j estava ali.Aos pou
cos chegavam osamigos. No melembro doqueeudisse ou disseram, nem do "ensaio
tcnico.

Isto nos levou a outra imagem constante damemria, caracterstica da po


ca, desprovida derequinte poltico: gorilas; militares assustam eafinal paraisso fo
ram inventados; eragente armada; andavam derevlver todo odia.
36
Outro texto censurado: Pequeno Retbulo de D. Cristbal, Garcia Lorca.
ME DE DONA ROSITA: Eu SOU a me de Dona Rosita
E quero que se case,
Porque j tem dois peitinhos
Como duas laranjinhas,
Uma bundinha como um queijinho,
E uma passarinha que j canta e grita.
[...]
CRISTBAL: Senhora!
ME: Cavalheiro de Pluma e tinteiro.
CRISTBAL: No tenho sombreiro.
[...]
CRISTbal:A senhora saber que quero me casar.
ME: Eu tenho uma filha. Que dinheiro me ds?
CRISTBAL: Uma moeda de ouro, das que cagou o mouro.

CRISTBAL: Quero tambm uma mula, para iraLisboa quando sai alua.
[.]
CRISTBAL: D-me seu retrato.
ME: Mas firmaremos antes o contrato.
os DOIS: {cantando)
Tedar o p.
Estando contigo,
Se me deres dinheiro,
Far o que digo.
[...]
ROSITA: Ai, Cristbal, tenho medo! Que vais me fazer?
CRISTBAL: Vou te fazer muuuuuuuuu!
[...]
ROSITA: Bebeste muito? Tira uma sestinha.

Comentarista cultural de um grande jornal porto-alegrense.


Excerto do roteiro de Teatro: Variaes Sobre o Tema.
100 maria luiza filippozzi martini

CRlSTBAL:Vou ento dormir, para ver se desperto meu passarinho.


ROSITA:Sim, sim, sim, sim, sim. {Aparece o prlogo, um elemento textual que
vira personagem; eles beijam-se; o estalo dos beijos enorme.)

Rememorao: e o esquecimento?

Lembro-me do inicio. Vani, me de Dona Rosita, contava apenas com um


lencinho triangular amarrado embaixo do queixo para caracterizar sua condio de
camponesa e me, com a cabea coberta. Bem depois, as mes da Praa de Maio usa
ram lenos comoestes para se identificar como mesdefilhos desaparecidos. Eu usava
uma camisola do enxoval de minha av. Branca, bordados singelos e uma abertura
no lugar adequado. A pea era dofim do sculoXIX, mas tambm servia para carac
terizar o interdito nudez do sculo XVIII, citado em manuais de bons costumes con
sultados por Vainfas (1989).^^ Eu, Rosita, estava sentada num banco. A me abraa
va-me por trs e punha-se a exibir as qualidades da filha. Apontava os "peitinhos" e
mostrava nela mesma as qualidades, o mesmo fazendo com a "bundinha". Ao entrar
Cristbal, retira-se Rosita. Foi um rduo trabalho dar aospersonagens um toque, mas
apenas um toque, que lembrasse bonecos deguignol,^^ escandindo levementea movi
mentao do pescooe dos braos. Damasceno compsseu Cristbal usando uma ben
gala com inspirao da commedia dlVarte: barriga para a frente, pernas abertas e
joelhos um pouco dobrados. Conforme esquentava a negociao com a me sobre o
casamento, da "moeda de ouro" at a "mula para ir a Lisboa quando sai a lua",
Cristbal e ela, tambm negociavam em jogo de corpo, num brinquedo de pegar em
que a bengala era sempre uma ameaa. Mas aqui a viso da memria desaparece.

Histria e Memria

Como a censura que colocou meses de trabalho sob ameaa foi esquecida?
Segundo Izquierdo,^' temos a tendncia de suprimirfatos desagradveis median
te dois mecanismos diferentes: o primeiro o da extino por aprendizados no
vos, isto , novos grupos, percursos, interesses e atividades; o segundo a repres
so, mecanismo tambm ativo para reduzir memrias como a dor, a vergonha e a
humilhao. A memria pode manter-se no acessvel, mas no se perde em ne
nhuma das duas formas.
A censura foi de costumes. Se fosse poltica, teria atingido fragmentos de
Sartre, Brecht e lonesco. Mas existe censura que no seja poltica? Em 1967, ain
da haveria compromissos com as senhoras de vu e missal, as que obtiveram ade
ses Marcha da Famlia com Deus pela Propriedade. Afinal teriam reunido um
nmero maior de pessoas do que o comcio pelas Reformas de Base, pouco antes
do golpe. Seria um risco perder esse apoio por no fazer a lio da moralidade.

" Ronaldo Vainfas, Ronaldo. Trpico dos pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
Guignol o nome de um marionete, personagem do teatro de fantoches, criado no sculo
XIX, em Lio, na Frana.
" Ivan Izquierdo, op. cit.
os espetculos Teatro: Variaes Sobre o Tema e Homem: Variaes Sobre o Tema 101

Por outro lado, a censura tambm era uma propaganda para quem acompanhava
programao cultural e tambm para um pblico avulso, curioso sobre os pala
vres, quem sabe mulheres com pouca roupa, etc.
Rememorar a censura sentir novamente a "mo" de um poder descaracte
rizado como relao. O que se torna a sentir a impossibilidade de relao com o
poder que ali chegou exibindo revlver, metralhadora e tanques na rua.
Olhando para os espetculos em memria vai se revelando um fato acima
de qualquer outro: eles faziam parte de uma concepo de espetculo, da pesquisa
demodos inusitados de usaro corpo, queiasedesenhando como resposta ao poder,
atingir e explorar uma linguagem infraverbal, alm do texto. No se caminhava,
mesmo quando no se utilizasse a dana: no Pequeno Retbulo de D. Cristbal o
movimento era de gente meio gente, meio boneco. Alem do minueto que marca
va a ao dos personagens em Molire e Lorca, havia o batuque em Chico Rei" de
Walmir Ayala. Eo texto no foi censurado, justoo que seria maiscensurvel. . .

Excerto deChico Reiy Walmir Ayala (metforas paradiscutir a lutaarmada)^"


CHICO REI: {fuzilante de cobia) Que as negras no poupem o ouro nas
festas do reisado, entendeu? Diga a elas. Diga! Quero as pias cheias de p
cintilante. . . Com isto compraremos novas liberdades e teremos um exr
cito. Com isto teremos ordem e deus. . . E eles nos temem, os que aqui nos
trouxeram nos temem.
RAINHA: Como te iludes, Chico Rei! Que fora significamos? Que armas
nos cabem contra os donos do mundo?
CHICO REI: Falas ainda como uma escrava.
RAINHA: Eu tenho medo. Dizem, ouve, que organizam um movimento
contra ns.
CHICO REI: Porque nos temem.
RAINHA: Que somos um Estado dentro do Estado e que El-Rei portugus
no v isso com bons olhos.
CHICO REI: Que no veja. Aqui estamos e resistiremos.
RAINHA: No temos armas o bastante.
CHICO REI: Temos o sangue e a nossa vida. o suficiente.
RAIN H A: Mas isso acaba.
CHICO REI: Tudo acaba.
RAINHA: Eu no quero morrer e no quero que tu morras, Chico.
CHICO REI: s mesquinha, mulher. Destino humano.

Rememorao
Eles tinham a majestade! Eles eram rei e rainha, Damasceno e Vani. Ela ves
tia uma grande saia balo, de algodo cru, colares, uma peruca barroca, de palha e

Excerto do roteiro de Teatro: Variaes Sobre o Tenta.


102 maria luiza filippozzi martini

uma bandeira. A rainha era porta-bandeira; ele, Chico Rei, mestre-sala. Mas a viso
aparecida na memria no me mostrava ofigurino todo: a cabea do reidesaparecia.
Ali estava o movimento da imagem: ela sonora, percussoquase meldica, as evolu
es da porta-bandeiraedo mestre-sala. Ento houve umapreosaconversa com Maria
Helena Lopesque restaurou tal viso. Era uma mscara depalha, de origem africana:
uma desgarrada cabeleira, smbolo deselvageriapara o trato ocidental. Assim restau
rada, a viso de Chico Rei, o mestre-sala, no mais a de 1967; a de 2006, outra.
Aquele que rememora, se atento ao que v no seu rememorar, sujeito
freqentemente, ao lado de compensaes, a decepes. Decepo sobre um efei
to de verdade enraizado na emoo que grava e produz a evocao da memria.
Isto s se relativiza conhecendo rememoradores. Halbwachs (1990),''' em seu traba
lho mais conhecido nos apresenta vrios outros. Stendhal um deles. Em suas
memrias, Stendhal mostra-se fino observador de seu prprio rememorar:

En crivant ma vie en 1835, j'y fais bien des dcouvertes, ces dcou-
vertes sont de deux espces: d'abord 1". ce sont de grands morceaux de
ffesques sur un mur qui depuis longtemps oublis apparaissent tout coup."*^

"Les fresques" (as imagens) aparecem de repente, de um s golpe, "tout


coup". Isto , at um certo limite de aproximao, as imagens se apresentam com
pletas, como vises, aparies.A partir da, as tentativasde aproximao revelam-
se lacunares. Ainda, Stendhal, de sua prpria experincia de evocao, diz:

et cot de ces morceaux bien conservs sont. . . plusieurs fois de grands


espaces o Ton ne voit que Ia brique du mur. . . le crpi sur lequel Ia fresque
tait peinte est tomb, et Ia fresque est a jamais perdue."*^

A descrio de Stendhal ilumina nossaexperincia de rememorao mostran


do vriasperdas, sobretudo a desapario do rosto de Chico Rei, no espetculo. En
tretanto ela remeteu-nos ao caminho de Halbwachs (2005),ao conceito de quadros
sociais da memria e ao que ele chama de ecos da sociedade. A produo cultural e
grupos sociais, que de algum modo se reconheciam entre si, nos anos entre 1965
e 1967, constituam um eco, um quadro social de memria. No obstante a diver
sidade de suas concepes, nesse limite, acontecia a discusso sobre a luta armada,
no contexto das guerras de libertao nacional. Freqentemente as metforas por
onde essa discusso passava para a sociedade tratavam de rebelies escravas {Arena

" Maurice Halbwachs. Memria coletiva, cit.


Stendhal, Vie de Henri Brulard. Paris: Galimard, 1973, p. 142. No existe traduo para o
portugus da Vie de Henry Brulard. Trata-se, aqui, de uma traduo livre: "escrevendo sobre minha
vida em 1835, fiz vrias descobertas, as quais so de duas espcies: de incio, primeiro, do grandes
pedaos de afrescos sobre uma parede que depois de longo tempo esquecidas, aparecem repentina
mente".
Ibidem. "E ao lado dos pedaos bem-conservados esto muitas vezes grandes espaos onde
no vemos mais que o tijolo do muro... a camada sobre a qual o afresco foi pintado caiu e o afresco,
perdido para sempre."
os espetculos Teatro: Variaes Sobre o Tenta e Homem: Variaes Sobre o Tema 103

Conta Zumbi, Arena Conta Tiradentes, ofilme Quilombo). Neste caso, teria oupode
riaterpassado por Chico Rei, a pea deWalmir Ayala. Ao incorpor-lo emseuroteiro
Teatro: Variaes Sobre oTema seria parte daquele "eco", daquela referncia coletiva.
Homem: Variaes Sobreo Tema
Roteiro e direo de LuizArtur Nunes (1968).

A imprensa relata o roteiro do espetculo, destacando a inspirao em An-


tonin Artaud.*" Luiz Arthur Nunes props um espetculo que

acompanha a trajetria do homem e suas descobertas. A primeira imagem


desvenda o nascimento, depois a descoberta deseu corpo, do espao, do ou
tro, da palavra, da frase e do texto, antecedendoa deturpao feita pelo siste
ma sobre as descobertas do homem. O texto uma crtica sociedade que
mergulha na publicidade, nas novelas de TV, nas gincanas, na msica dos
dolos dodisco. Acena final destaca a passividade eo abatimento das pessoas.
[. . .] Se tornaram autmatos, secaram toda a criao inicial da descoberta.
Um personagem bate um ritmo regular, pano de fundo para adornar osmor
tos-vivos com roupas deplstico. Aos poucos a batida regular deum minueto
interrompida por tambores, que vo num crescendo at caracterizar uma
missa negra. O personagem que ditava o minueto sacrificado. [. . .] Para
os atores, trata-se de descobrir em cada um aquelas foras primitivas e es
senciais de nossa condio humana, reprimidas pela estrutura social, de
domin-las e dar-lhes formas."'''

Alm disso, anula limites:

entre o espao cnico e o pblico. Ambos se confundem numa mesma rea


e num mesmo plano. . . O pblico debca de ser espectador para tornar-se
personagem, participando realmente do espetculo. . . interessante sentir
como o pblico reage s solicitaes dos atores.. . Omau uso da palavra faz
dela, no um elemento de ligao do homem, mas um cativo."*^
Houve polmica pela comparao entre a potica da sensao de Artaud,
contida neste espetculo, e o pico de Brecht, contido noespetculo anterior. Tea
tro: Variaes Sobre oTema. Ela chega, de leve, pela voz da imprensa.

Antonin Artaud. O teatro c seu duplo. So Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 37-9. Antonin
Artaud (1896-1948), poeta, ator, roteirista e diretor de teatro francs, desenvolveu uma linguagem
teatral prpria, na qual o teatro deve ultrapassar o texto, base do teatro moderno. Essa linguagem
comportaria tudo que pode ser feito dentro do espao teatral, ou seja, uma linguagem fsica que
preencha o espao fsico e concreto da cena e que se dirija, em primeiro lugar, aos sentidos, mais do
que ao pensamento e ao raciocnio.
Correio do Povo, 18 de novembro de 1968.
Folha da Tarde, 22 de novembro de 1968.
104 maria luiza filippozzi martini

O jornalista cita o programa do espetculo: "Proponho um teatro onde vio


lentas imagens fsicas hipnotizem a sensibilidade do espectador, preso no teatro
como num turbilho de foras superiores"; e intervm " uma viso irraciona-
lista [. . .] em oposio a viso crtica e lgica de Brecht". LuizArthur responde no
correr do debate: "nosso espetculo no omite a racionalizao, ela se d num se
gundo momento, a partir da emoo vivida;procuramos envolvero pblico no mo
mento histrico; nosso espetculo, a meu ver tem um sentido social profundo
Pergunta-se sobre os limites dessa polmica. possvel que estejam no pra
zer socrtico de pensar, onde Benjamin (1994)'' encontrava o perfil de Brecht.
Ningum que tenha visto uma pea ao seu estilo poderia dizer que no jogasse
com imagens sensacionais, assombrosas; que pelo assombro no desafiasse o
pragmatismo dos operrios a pensar. O limite para Brecht a fala que analisa o
assombro (o narrador, ou o coro do pico).
Para Artaud, no essencial, que na cena ou fora dela se produza uma an
lise pela fala; o importante que se produza uma alterao interna, diretamente
na sensibilidade dos espectadores.

Acerca de Homem: Variaes Sobre o Temay rememorao:

ML: "Olhem aqui, no jornal, dizem do roteiro: bem bom: nascimento, desco
berta de seu corpo, do espao (aqui era a massa), do outro, da palavra, da frase
e do texto; depois vem a deturpao das descobertas do homem (crtica da mdia,
publicidade, TV, as gincanas, dolosdo disco). O minueto com as pessoas, aut
matos, vestidos de plstico de banheiro, que terminam sacrificando o maestro. .
ML: "Encontramo-nos na Palavraria. Ela, nossa clio, recm-vinda, cujo nome
no posso chamar, ainda, e seu olhar intenso, porque ela assim sempre; me
disse do sentimento reconfortante que se produzia no movimento de massa
(exerccio corporal). Ser forte muito bom! No ter medo muito melhor. Tecni
camente, so corposque sejuntam sem se confundir porque precisam se deslocar.
Um ou outro cuidavam disso, do espao, alternadamente. O objetivo era quase
deslizar, juntos. Um tropeo seria ridculo efatal para nossa emoo e concen
trao."
NK: "O espao. . . era de uma juta que nos cortava a pele era em andares.
Ns atuvamos no espao central, ovalado, e a platia ficava em arquibanca
das em dois nveis, ao redor. Mas usvamos tambm estes andares."
ML: "No me lembro da juta cortante. . . vai ver que de to ruim esqueci! A
viso que eu tenho do todo e do tnel, por onde se entrava, coberto de almofa-
das em algodo cru. As pessoas estranhavam; no sabiam se tiravam ou no os
sapatos. Nascer de dentro daquelessacos plsticos, na primeira cena que no
era fcil. Tinha medo de que aquele plsticogrudasse no meu nariz. Acho que o
saco estava amarrado. . ."
NK: "Sei que eu nascia do mesmosaco que voc. ramosgmeas. O carrinho. . .

Correio do Povo. 21 de dezembro de 1968.


os espetculos Teatro: Variaes Sobreo Tema e Homem: Variaes Sobre o Tema 105

Eufazia o carrinho no 2." andar de arquibancadas, voltadapara a direo da


porta (que noeraporta) deentradado pblico. so quelembro."
ML: "Ento vou te contar, pedindo emprestada, a memria do Luiz.. Quando
disse a ele que no via nada da fase do roteiro dedicada deturpao da
palavra e falei da tal gincana. . . Em vez de gincana o que veio na cabea
delefoi o carrinho de beb. Maravilha! J tinhaperguntado de vriasmanei
ras e ele no viu nada. Quando faleiem deturpao da palavra, apareceu. Fa
zia parte de uma seqncia de anncios deprodutos. Olha s!Eledisse: Lem
brei, acho queficou na minha cabea no s por estar sempre, 'de olho' no
espetculo (coisa do diretor, claro, olha, escreve no caderninho) mas tambm
porque me encantava a habilidade corporal da Nara. Aquela possibilidade de
um corpo treinado pela dana, fazer movimentos com articulaes no usuais:
algum jeito com a coluna queconstrua todo o carrinho, maisa criana que ela
olhava. . . com um sorriso".
ML: "Aquele de giz. . . de vendedora, medepropaganda. . .! Cultura de so
ciedade industrial. . . com cara de vendedora e de coisa vendida, ovos,galinhas,
crianas, carrinhos. . ."

Discordaram sobre a memria da existncia do forro de juta. Uma mem


ria de sensao, na pele (sinto algo que no sentes) indica que junto com ela h
uma diferena de memria sobre o espao (espao central ovalado, atuao nos
andares), Mas o importante, em primeiro lugar, que qualquer divergncia sig
nifica diferena de verso. Para situardivergncia de rememorao, vale acompa
nhar Stendhal e seu amigo Colomb, rememorando um ataque organizado pelos
dois a um monumento dedicado Revoluo Francesa, a"rvore da Fraternidade",
em Grenoble. Discordaram praticamente em todas as lembranas, gerando uma
srie de notas em Vie de Henry Brulard. Alm da "Arvore da Fraternidade", havia
tambm outro monumento, a "Arvore da Liberdade". Os dois amigos discorda
ram sobre quase todos os incidentes do episdio, menos num: amavam a Arvore
da Liberdade" e odiavama "Arvore da Fraternidade". Ningum foi preso.
Adivergncia de memrias pode indicar o que Izquierdo"* chama de falsi
ficao . As memrias no so muito fiis. Dormem pelo crebro, misturando-se,
sofrendo, embalos da imaginao, sonhos eemoes, que recombinam fragmen
tos de memrias de um modo complexo. Isto freqente nos idosos e nas crian
as: [. . .} costumam acrescentar episdios [. ..] incluindo detalhes quegostariam: meu
paimatou um tigre, porexemplo'^
E o rosto de Damasceno, perdido em Chico Rei, desde a primeira reme
morao? ED. Cristbal que some no "brinquedo de pegar" com a me de Dona
Rosita e que exigia a mula para ir a Lisboa quando "sai a lua"?
So os afrescos a quese refere Stendhal, interrompidos por grandes espaos
em que no se v mais do que o tijolo na parede. Por exemplo, como poderia

Ivan Izquierdo, op. cit.


Ibidem, p. 67.
106 maria luiza filippozzi martini

lembrar-me de tomar ch com minha me na confeitaria Muguet, em 1950? Isto


dependeria da identificao de alteraes moleculares prprias de cada memria
em cada sinapse nela envolvida. So os limites da memria, assinalados por
Izquierdo:^"

No sei. Talvez seja curioso ser eu quem o diga, que dediquei tantos
anos ao estudo das bases moleculares da formao ou evocao e extino
da memria em suas diversas formas. [. ..] Conhecemos apenas dez ou vin
te genes que so ativados no processo de formao da memria de longa
durao e nenhum dos que se ativam na evocao e muito menos na
extino. No possvel localizar um registro especfico, um rosto sob uma
determinada luz, isto , localizar em que lugar ou lugares, em que sinapses
especficas do crebro est determinada a imagem. Mesmo que esta lem
brana seja localizada, no ser aquela de tal dia e hora. S uma vaga lem
brana.^'

Histria memria dos espetculos em estudo

Usando a expresso de Halbwachs, que "ecos" ressoam nestas memrias?


ainda de pensar, buscaruma cultura mais ampla e pertinente sobreos anos
da ditadura. Havia diferenas nos espetculos, em relao ao Teatro de Protesto,"
por exemplo. O grupo, o elenco, o autor do texto, a diretora, se constitura pelo
teatro, pelo curso de teatro. No estabelecera ligaes especficas com organiza
es estudantis ou polticas. Nossonarrador no era Zumbi ou Tiradentes.
Criando um texto de terceira temporalidade, passado e presente, vemos nes
ses espetculos construdos sobre a linguagem do corpo, infraverbal, seus movi
mentos inusitados, de espao e figurinos metafricos, uma imagem no dita, do
que havia para negar: uma cultura de alienao e um poder fardado que transfor
ma at mesmo seus comparsas civis para o golpe e seus aliados em seres exticos.
Os espetculos afirmavam: "o teatro nosso corpo contra o que seja unidimensio-
nal, tecnocrtico e militar. . . "
Havia o sentimento de que nunca se erradicariam os privilgios a no ser
fora; que talvez as vitrias contra o colonialismo na China, Vietn e Cuba indi
cassem a vitria da guerra inusitada, de movimento. Mas tambm se pensava como
Marcuse; ao unidimensional, acomodado, capitalista ou socialista opor uma nova
percepo; uma fascinante arte de ruptura pelo movimento. Heris no seriam
necessrios?

Ivan Izquierdo, op. cit., p. 119.


Ibidem, pp. 120-2.
" O Teatro de Protesto nasceu, no Brasil, durante os anos 1960, como forma de oferecer cultura
de qualidade e formao de conscincia classe operria. Iniciativas da Unio Nacional dos Estu
dantes (os Centros Populares de Cultura ou CPCs) e de grupos teatrais, como o Arena, levaram o
momento poltico ao teatro. Uma caracterstica notvel dessa "politizao" do teatro eram as discus
ses polticas que se seguiam ao espetculo.
os espetculos Teatro: Variaes Sobreo Tema e Homem: Variaes Sobreo Tema 107

Surgiam outras memrias, fora do foco dos dois espetculos Algum


lembra de "expropriaes" bem-sucedidas e vibra. Memrias de outras me
mrias: Gabeira^ tambm, aquele "feio magricela". Conta que treinavam
com calibre22.Saam com cestas de piquenique, fim-de-semana numa praia
deserta; balas, garrafas comgasolina. Praticavam tiroao alvo na praia.''

Surgia a guerrilha junto com o amor a arte. Amor ao teatro professado pela
linguagem infraverbal, pelo corpo em movimento, desestabilizador do unidimen-
sional. Oimportante que havia aenergia de uma arte libertadora, levando adiante
a proposta do teatro aberto de Brecht, em sintonia com a que circulava no mun
do, no Teatro Odon, em Paris, nas ruas do Bronx, em Nova York, associada a
memria de heris. Equivocados, ingnuos e contraditrios que fossem, todos, o
que seria da Histria e da Memria se no existissem rastros, sinais inegveis de
utopia,de energia, ligando uma e outra?...
O anncio da criao e o protagonismo das utopias nos trazem de volta
"dinmica Sheherazade", onde a vida se salva a cada histria, na antinomia hist-
ria-memria.

Referncias

Adorno, Theodor. Indstria cidtural e sociedade. So Paulo: Paz e Terra, 2002.


Benjamin, Walter. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da
cidtura. So Paulo: Brasiliense, 1994.
Marcuse, Herbert. Eros e civilizao. Rio de Janeiro: Livros Tcnicos e Cientficos, 1999.
Martini, Maria Luiza (org.); Fernanda Strmer Lannoy; Marcelo Medeiros de Oliveira
&Valeska Maffei Barcelos. Relatrios de pesquisa e iniciao cietitfica. Porto Ale
gre: 2005/2006.
Rollemberg, Denise. Esquerdas revolucionrias eluta armada. In: Jorge Ferreira &Lucilia
Almeida Neves Delgado (org.). OBrasil Republicano. Otempo da ditadura. Regi
me militar e movimentos sociais em fins do sculo XX, v. 4. Rio de Janeiro: Civiliza
o Brasileira, 2003.
Schmidt, Benito Bisso. Regimes de historicidade. Mtis. Histria e Cultura. Revista de
Histria da Universidade de Caxias do Sul, v. 2 n. 3, 2003.
Wiggershaus, Rolf. AEscola de Frankfurt. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

Fernando Gabeira, O que isso, companheiro? So Paulo: Companhia das Letras, 1979.
Fernando Gabeira escritor, poltico e jornalista brasileiro. Militou na luta armada do pe-rodo
militar, fazendo parte do seqestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. Atualmente
deputado federal, filiou-se ao Partido Verde e defende a causa da tica na poltica brasileira.
IMAGEM E MEMRIA
AS MUSAS INQUIETANTES

Maria Bernardete Ramos Flores


Universidade Federal de Santa Catarina

Mas se a imagem arcaica jorra dos tmulos por recusar o


nada e para prolongar a vida.'

Ao perseguirmos o cnone da antiga nudez feminina na


escultura veremos que algumas das suas concepes bsicas
vo estar presentes j na Pr-Histria tanto nas protube-
rantes estatuetas das cavernas paleolticas que evidencia
vamatributos femininos como smbolos de fertilidade quan
to nas bonecas de mrmore das Cidades, onde o corpo
humano j seria sujeito disciplina geomtrica. Essas con
cepes bsicas nunca chegaro a desaparecer por com
pleto na escultura dos corpos femininos.'

O Nu um estudo de arte ideal, de Kenneth Clark, traa a histria do nu


masculino e do feminino desde a Antigidade grega at o modernismo europeu.
Com vrias edies e tradues desde que foi publicado pela primeira vez, em
1956, na Inglaterra, situa-se entre as obras que garantem o discurso histrico so
brea arte. Nele, a tradio clssica e idealizadora da representao adquire a fora
de uma norma cultural geral. Outros modos de representar o nu-gtico, bar
roco, no europeu so categorizados como transgressivos, como um "outro"
cultural. Curiosamente, diz Lynda Nead, professora de Histria da Arte, na Uni
versidade de Londres, h pouco interesse em revisar ou rechaar o "ltimo clssi
co" sobre o tema do nu artstico.^

' Rgs Debray. Vida e morte da imagem. Uma histria do olhar tio Ocidente. Trad. Guilherme
Teixeira. Petrpolis: Vozes, 1993, p. 19.
^ Kenneth Clark. O tiu. Um estudo sobre o ideal em arte. Trad. Ernesto de Souza. Lisboa; Ulisseia,
s.d., p. 76.
' Cf. Lynda Nead. El desnudo feminino. Arte, obscenidad y sexualidad. Trad. Carmen Gonzlez
Marn. Madri: Tecnos, 1998, p. 27. Lorde Clark ostentou quase todas as posies pblicas de influn-
imagem e memria: as musasinquietantes 109

Aqui, vamos discorrer sobre os meios que Ciark enfatiza para representar o
corpo da mulher, a simetria, a proporo e o princpio da subordinao das dife
rentes partes ao todo,^ enfim, os que configuram os atributos do eterno feminino:
a luta entre esprito e natureza, maternidadee luxria, atributos, segundo ele,con
cebidos j na pr-histria e na Antigidade. Clark busca referncia no Symposium,
de Plato: um dos convidados sustenta a opinio de que existem Vnus, s quais
chama Celestial e Vulgar ou, para lhes atribuir uma designao posterior, Venus
Coelestis (Celestial) e Venus Natiiralis (Vulgar), aluso que nunca foi esquecida,
esclarece Clark. Tornou-se um axioma das filosofias medieval e renascentista. "
a justificao do nu feminino. Desde os tempos primitivos, a naturezaobsessiva e
irracional do desejo fsico buscou alvio nas imagens uma forma pela qual Vnus
possa deixar de servulgar e setornar celestial."^ Isto tem constitudo diz o au
tor um dos repetidos objetivos da arte europia: dominara naturezapara atin
gir a beleza celestial. Em O Nu, Clark luta comasexigncias de competncia m
tua dos prazeres sensoriais e contemplativos, e trata de mant-los juntos em uma
combinao equilibrada, sem permitir a nenhum dos impulsos dominar o juzo.
Mas a purificao da Vnus teria contado, ainda, com os elementos damen
talidade mediterrnica: uma certa noo abstrata do corpo feminino. Ao se perse
guir o cnone da antiga nudez feminina na escultura, v-se, informa Clark, que
algumas das suas concepes bsicas vo estar presentes jna Pr-Histria tanto
nas protuberantes estatuetas das cavernas paleolticas que evidenciavam atributos
femininos como smbolos de fertilidade quanto nas bonecas de mrmore das
Cidades, onde o corpo humano j seria sujeito disciplina geomtrica. Essas
concepes bsicas nunca chegaro a desaparecer por completo na escultura dos
corpos femininos."^
Apartir desses primeiros pressupostos da arquitetura da representao do corpo
feminino, Kenneth Clark vai discorrendo sobre sua evoluo tcnica, at atingir o
que ele considera a perfeio da arte ocidental. AVnus Esquilino (Policleto, scio
V a.C.) orientar as tcnicas artsticas, at o fim do sculo XIX. Seus princpios
plsticos essenciais seios cheios, cintura delgada, ancas com arco generoso
do ao corpo feminino aarquitetura de sua representao: slida, compacta, equi
librada, calculada segundo uma simples escala rritemtica onde aunidade de me
dida a cabea, embora, essa ainda no represente toda a perfeio da beleza fe
minina, informa Clark. " baixa e de proporo quadrada, com a plvis alta e os
seios pequenos muito afastados, uma rstica e robusta alde [...]. ^Abeleza fe
minina triunfara com a Vnus de Cnido (Praxteles, cerca de 350 a.C.). Uma be
leza que exercia uma atrao "suave ecomedida", derivada das divindades assrias.
influncia na cultura britnica (diretor da National Gallery, supervisor da Royal Collection, presiden
te de Arts Council, presidente da Independem Television Authority, e assim sucessivamente), o que d
ao O Nu o carter de um "monumento da cultura oficial .
Kenneth Clark, op. cit., p. 76.
Ibidem, p. 76.
' Ibidem.
^ Ibidem, p. 79.
* Ibidem, p. 83.
0Osgregoscmnigum,terias maria bernardete ramos flores

bido integrar a paixo fsica, calma,


delicada, naturalmente, de forma que
todos que olhavam a deusa compreen
diam que os instintos sentidos como
animais eram partilhados tambm pe
los deuses.^ Anos mais tarde essa sen
sualidade misturada divindade vai ser
modificada pelo "senso grego do deco
ro" de tal forma que "o gesto descrito
pela mo de Vnus, que nas religies
orientais indicava a fonte dos seus
poderes" passar a escond-la pudica-
mente.'" Temos, ento, a Vnus do Ca
pitlio e a Vnus de Mdicis, verses
"pudicas" da Vnus de Cnido praxite-
liana.Asalteraes, na leitura de Clark,
teriam sido realizadas para conferir ao
nu um "carter mais compacto e de
maior estabilidade""
Assim, o nu clssico inventado
por Praxteles transformou-se no nu
convencional, afirma Clark. As cpias
da Vnus de Capitlio e da Vnus de
Mdicis enchem os museus em suas
galerias com suas multides de mulhe
res de mrmore, em suas formas cas
tas e montonas. As diferenas so t
nues. A Vnus de Cnido pensa apenas
no banho ritual para o qual est preste
a entrar. A Vnus do Capitlio "posa"
autoconsciente. So modificaes
sutis, mas decisivas, sendo que a mo
dificao mais evidente a da posio
do brao. A ao do brao direito da
cnidiana foi transferida para o esquer
do da Capitolina. O brao do lado li
vre em vez de segurar a tnica est dobrado diante do corpo, logo abaixo dos seios.
Todas estas alteraes foram realizadas com o objetivo de conferir um carter mais
compacto e de maior estabilidade. No se encontra um plano ou um perfil por
onde o olhar divague sem direo definida. "Os braos rodeiam o corpo como um
" Kenncth Clark, op. cit., p. 83.
Ibidem.
" Ibidem.
imagem e memria: as musas inquietantes 111

invlucro e por meio de seu movimento ajudama realar o ritmo bsico. A cabe
a, o brao esquerdo e a perna em que se apia o corpo formam uma linha to
firme como uma haste que sustenta a coluna de um templo".'^ (destaque nosso)
Essas caractersticas para configurar o nu feminino levaram Lynd Nead a
design-las como formadoras de um paradigma formal: uma "moldura" que
enfatiza o corpo num ato de circunscrio, com uma postura que se compara a
uma capa, umacoberta do corpo to regular e estruturada como a coluna de um
templo, e concluir que a transformao do corpo feminino em nu feminino
um ato de regulao: do corpo feminino e do espectador, cujo olhar errante, dis
ciplina-se pormeio das convenes e protocolos da arte. Arepresentao do cor
po feminino, dentro das formas equadros dagrande arte , de maneira geral, urna
metfora do valor edo significado da arte. "Simboliza atransformao da matria
de base natural em forma elevada de cultura eesprito eesprito."'^ ^
Clark chama ateno para o fato de que o padro de perfeio encontrada
na forma visvel da geometria, com expresso na escultura e na pintura, propor
cionado ao esprito do homem ocidental desde o Renascimento at o sculo pre
sente sculo XX a memria do tipo fsico peculiar que se cultivou na
Grcia, entre os anos 480 e 350 a.C.'"' A sobrevivncia do modelo da Vnus
Capitolina eseus desdobramentos na quantidade de cpias na verso da Vnus de
MdiciSy passando pelo Nascimento de Vnus de Botticcelli, recebendo urn novo
impulso com apintura de Renoir, tem sido oncleo da histria da arte ocidental
e da transformao damatria natural em formas elevadas de cultura.

Imagem e memria

Somos histria, somos memria, somos imagem.'^


Somos bancos de imagens wos colecionadores de ima
gens e uma vez que as imagens entram em ns, elas
no param de se transformar e de crescer.'^
Molinuevo, no livro Humanismo yNuevas Tecnologias, discorre sobre dois
relatos mticos que fundaram nossa condio de humanos. Omito platnico da
caverna: prisioneiros das imagens, das vises das sombras refletidas nas paredes
da caverna, nossa histria tem sido a perseguio da verdade, a qual, apenas os
que ascendem razo se dizem capazes de alcanar; o relato bblico do Gnesis
que afirma que Deus criou o homem a sua imagem e semelhana e a mulher
imagem do homem: somos cpias, portanto, econdenados propriedade de cpias,
vivemos na busca da perfeio, sem nunca chegar ao modelo original.'^
Kenneth Clark, op. cit., p. 86.
" Ibidem, p. 13.
Ibidem, pp. 34-5.
Jos Lus Molinuevo. Ln experincia esttica moderna. Madri: Sntesis, 2002, p. 44.
Giorgio Agamben. linage et mmoire. Escrits sur Vimage, Ia danse et le cinma. Paris: Descle
de Brouwer, 2004, p. 39.
" Cf. Jos Lus Molinuevo. Humanismo y nufVtis tecuologfas. Madri: Alianza, 2004, pp. 17-24.
112 maria bernardete ramos flores

Na Modernidade, com a inveno das raas, imagens da Antigidade, de


Musas e de Apoios, retornam como fantasmas, etreos, platnicos, nunca alcan
ados, mas sempre perseguidos como imagem ideal de mulheres e homens dota
dos dos atributos da razo ocidental. O que parece em jogo, a produo de um
sujeito racional, coerente, a noo de uma forma unificada ligada construo
da identidade individual. Na Alemanha, os famosos nus de Arno Breker recriam
a beleza helnica, representativa do homem viril como smbolo da pureza racial.
No filme. Os Deuses do Estdio, 1938, Leni Riefenstahl associa esttuas da Anti
gidade Clssica ao atletamodelo. No Brasil, o mdico eugenista Renato Kehl est
convencido de que, se o homem capaz de talhar no mrmore a Vnus, capaz
tambm decriar tipos vivos com a beleza deDoryphoro, para melhorar a plstica
humana.' O mdico Artur deVasconcelos, ao prescrever a temperana da mesa,
tinhapor referncia o culto dabeleza helnica representada noApoio de Belvedere,
"marco admirvel para as fronteiras da sade"." O educador Fernando de Azeve
do defendia a prtica de exerccios para mulheres com o fim de alcanarem a"be
leza da Affodite de Milo", a "deslumbrante beleza grega", que "ressuma soberana
do vigor sem exuberncias musculares e das propores morfolgicas do corpo
humano".^" O mdico sexlogo Hernni de Iraj, artista plstico e crtico de arte,
criticava severamente os pintores que representaram o corpo humano deforma
do, afastando-se dos cnones praticados pelos grandes escultores da plstica hu
mana: Fdias e Mron, Policleto, Praxteles.^'
A sobrevivncia de imagens tem levado antroplogos, filsofos e historiado
res da arte a se interrogarem sobre o estatuto da imagem na histria e a refletir
sobre o uso da imagem para uma nova maneira de fazer histria daarte, cuja "no
vidade vem de um pensamento especfico sobre o poder daimagem".-^ Na esteira
daantropologia da imagem, tem-se mostrado que o ato de inventar uma imagem
muito mais que a formulao de um discurso; seu papel constitutivo do pro
cesso de transmisso do conhecimento; seu domnio a prtica ea tcnica liga
das a memorizao. Percebe-se que aestetica, longe de concernir asimples pro
duo de um objeto de arte, penetra nos domnios do meio social e cultural.
Entre os historiadores, com raras excees, embora cada vez mais se perce
bam interesses e tentativas inovadoras, a imagem, ou fontes visuais, prestam-se
pouco mais que a ilustrar ou a servir de documento coadjuvante. Ou, quando
nos arriscamos a trabalhar com a histria da arte, pouco mais fazemos que infor
mar o contexto social, cultural ou poltico que ilumina a obra do artista. sobre
Cf. Renato Kehl. A cura da fealdade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1932.
" Arthur Vasconcellos. Conceitos pathogenicos da obesidade (I). Arcchivos Brasileiros de
Medicina, out./1932, p. 517.
Fernando de Azevedo. Da educao fsica. So Paulo: Melhoramentos, [s.d.], p. 80. A
primeira edio de 1916 e a segunda, de 1920.
Cf. Hernani de Iraj. Sexo e beleza. 4." ed. Rio de Janeiro: Pongetti, 1958, p. 19.
Cf. Georges Didi-Huberman. Vimage survivante. Histoire de Vart et temps des fantmes selou
Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002, p. 48.
Cf. Severi Severi. Warburg anthropologue ou le dchiffrement d'une utopia. De Ia biologie
des images anthropologie de Ia mmoire. VHomme. Revue franaise d'anthropologie Image et
Anthropologie. Paris: L'cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, jan./mar., 2003, p. 77.
imagem e memria: as musas inquietantes 113

esses limites que o texto de Ulpiano Bezerra de Meneses levanta uma densidade
de questes. Para esse autor, trabalhar historicamente com imagens obriga a per
correr o ciclo de sua produo, circulao e consumo e mais a ao, ou seja, o
enunciado, que s se apreende na fala, no ato de pr uma obra, uma imagem, em
comunicao.-"'
Contribuio instigante para ns pode vir das leituras contemporneas da
obra de Aby Warbug e do conceito de imagem dialtica de Walter Benjamin.Am
bospostulam, por meio do trabalho das imagens, uma concepo de histria que
tem muito que ver com a sobrevivncia de certas formas expressivas. Trata-se de
um modelo que se afasta da cronologia linear e se descubra no anacronismo, as
tessituras da histria. As experincias advindas dessas reflexes nos levam a con
ceber a imagem no mais apenas como ilustrativas de nossos textos, mas como
acontecimento retrico incrustado numa ordem discursiva, como texto possvel
deserpensado por umainstncia interpretativa cujo territrio tambm criao.
O projeto de toda a vida de Aby Warburg foi compreender o problema da
sobrevivncia das imagens, ou seja, a reutilizao histria de figuras antigas e a
imitao deantigos modelos culturais. Diante dos relevos deAdolfvon Hildebrand,
Warburg viu, respectivamente, a sobrevivncia daAntigidade nas suas duas acen
tuaes de movimento: atendncia dionisaca na exagerao eatendncia apolnea
no autocontrole. As representaes de figuras com formas de ninfa na pintura do
Renascimento, inspiradas no s na poesia, mas tambm na arte figurativa, susci
taram-lhe a tese da constante irrupo de imagens que sobrevivem ao longo do
tempo." Para Warburg, a razo pelo qual a ninfa estava to intensamente carrega
da de significado, na sua inesperada re-apario precisamente em meio ao mun
do florentino burgus, encontra-se no fato de que esta figura tinha j um posto
no imaginrio dos pintores contemporneos. Os cabelos ondulados e os vestidos
levantados pelo vento recordam os detalhes que conferem nfase dramtica aos
gestos de seus prottipos antigos: as mnades, representadas sobre os sarcfagos e
urnas funerrias." A ninfa um sinal que se mostra, se esconde, se mascara, se
metamorfoseia, que o olho do historiador vai descobrindo nas imagens atravs do
tempo. O modo de proceder assemelha-se a um rastreamento dos sinais, diz o
argentino, historiador da arte, Jos Emilio Buruca.
Buruca nos chama a ateno para no cairmos na tentao de achar que,
diante da persistncia da imagem, no caso da ninfa, nos achemos ante uma regu
laridade, a uma constante da histria cultural do Ocidente, a qual derivaria de
uma espcie de lei geral de encadeamento e de reproduo mecnica de proces
sos psquicos causados por viso regular da jovem em movimento. Se Warburg,
no seu projeto denominado Mnemosyne, comps o Atlas Iconogrfico das

Ulpiano T. Bezerra Meneses. Fontes visuais, cultura visual, histria visual. Balano provis
rio, propostas cautelares. ievisn Brasileira de Histria O ofcio do historiador, So Paulo, v. 23, n."
45, pp. 11-36, 2003.
Aby Warburg. El retiacimiento dei paganismo. Aportacioiies a Ia historia cultural dei Rettacittiieiito
europeo. Tradu. Felipe Pereda et al. Madri: Alianza, 2005, p. 23.
Ibidem, p. 23.
114 maria bernardete ramos flores

Pathosformeln imagens sobreviventes do Ocidente, insistiu, contudo, na iden


tificao do particular e prprio que encerra cada citao da ninfa na larga srie.
Trata-se de descobrir o desvio individual de uma apario nova da ninfa com res
peito s aparies anteriores, para desmontar neles o que igual e contnuo dos
anteriores e o que diferente e instala a novidade no mundo. "Porque finalmente
Ia historia humana es esa paradojo de una vida que sentimos ininterrumpida y
hasta cclica pero, al mismo tiempo, siempre nueva, nica e irrepetible".^'
Didi-Huberman diz que para Warburg, a imagem constitui um "fenmeno
antropolgico total", uma cristalizao, uma condensao particularmente signi
ficativa do que se chama cultura em um momento de sua histria. Em resumo, a
imagem no dissociada do agir global dos membros de uma sociedade. Nem do
saber prprio de uma poca, nem da crena: ela reside em outro elemento essen
cial da inveno warburguiana, que foi o trabalho de histria da arte no continen
te negro da eficcia mgica mas tambm, litrgica, jurdicaou poltica das
imagens. "Faon d'interroger, au coeur mme de leur histoire. Ia mmoire Tceuvre
dans les images de Ia culture".^
Agamben, filsofo italiano que tambm se dedica obra de Warburg, diz
que, de fato, a memria no possvel sem uma imagem {phantasm), a qual
uma afeio, umpathos da sensao ou do pensamento. Nesse sentido, a imagem
mnmonique est sempre carregada deuma energia capaz demovimentar e deper
turbar o corpo. Warburg no escreve, como ele o poderia diz Agamben
Pathosform, mas PathosformeU "frmula do pathos", evidenciando o aspecto este
reotipado e repetitivo do assunto o qual o artista, a cada vez se media para dar
expresso "vida em movimento". Ora, isso significa que as frmulas, exatamen
te como os Pathosformeln de Warburg, so hbridos de matria e de forma, de cria
oe deperformance, desingularidade inaugural e de repetio.^'
Da, a concluso a que chega Agamben, de que nossa memria feita de
imagens, as quais tendem, sem cessar, no decorrer de sua transmisso histrica
(coletiva ou individual), a se solidificar em espectros, e ela se agita, justamente,
para voltar vida. Les imagens sont vivantes, mais comme elles sont faites de
temps e de mmoire, leur vie est toujours dj Nachleben, survivance, toujours
dj menace et em train d'assumer une forme spectrale".^ Agora, Agamben ad
verte: para Warburg, alm do Nachleben filosfico (apersistncia das imagens na
retina), existe um Nachleben histrico de imagens, ligado persistncia de sua
carga mnmonica, ou seja, as imagens, transmitidas pela memria histrica, longe
de constiturem arqutipos meta-histricos (dos quais se ocupa Jung), distante de
serem inertes e inanimadas, possuem uma vida especial, diminuda, que Warburg
chama justamente de vida pstuma, sobrevivente.

" Jos Emilio Buruca. Histria, arte, cultura De Aby Warburg a Cario Ginzburg. Mxico:
Fondo de Cultura, 2002, p. 131.
" Georges Didi-Huberman, op. cit., p. 48.
" Giorgio Agamben, op. cit., pp. 41-2.
Ibidem, p. 47.
imagem e memria: as musas inquietantes 115

De fait, Ia survivance des images n est pas une donne, mais reclame
une opration, dont Taccomplissement est Ia tche du sujet historique [. . .]
travers cetteopration,le pass les images trasmises par lesgnrations
qui nous prcds , qui semblait referm sur soi et inaccessible, se remet,
pour nous, en mouvement, redevient possible.^'

Elementos sobreviventes da Antigidade so tomados, ento, como uma


ameaa potencial dos valores humanos, mas tambm como um guia potencial
para sua prpria expresso. Warburg foi um leitor de Burckhardt, de quem
Friedrich Nietzsche foi colega na Universidade de Basilia, podendo da deduzir-
se alguma influncia do filsofo sobre o seu trabalho. Para Nietzsche, o passado
visto como propriedade dos vivos. O conhecimento do passado, dizia Nietzsche,
alarga-se com as imagens: "as coisas voltam eternamente a ns".^'

O saber histrico jorra de fontes inexaurveis; sempre de novo e cada


vez mais; o que estrangeiro e desconexo entre si se aglomera; a memria
abre todas as suas portas e no entanto ainda no est suficientemente aber
ta; a natureza se esfora ao mximo por receber estes hspedes estranhos,
por orden-los e honr-los, mas estes mesmos esto em combate entre si, e
parece necessrio dominar e vencer todos eles, para no perecer ela mesma,
nesse combate entre eles.^^

Nessa imaginao nietzschiana, os fatos histricos aparecem como hspe


des indesejveis, distantes e incoerentes, um cambiante lastro que ameaa dar a
volta vida, com seu peso morto. Nietzsche, que concebe omundo enquanto cria
o e destruio permanentes, afirma que "tudo retorna sem cessar". O filsofo
defende a tese de que se o universo tivesse algum objetivo, j o teria atingido; se
tivesse alguma finalidade, j a teria realizado.
No rastro de Nietzsche, Walter Benjamin formula uma nova concepo de
histria, cuja temporalidade, longe da cronologia usual, provm da experincia
nica entre passado epresente, num tempo saturado de "agora", apreendida pelo
trabalho do historiador que escava nas profundezas da tessitura histrica, l onde
se encontra a matria estratificada anacronicamente a qual religa o esprito hu
mano. Onde Warburg procurou identificar os phathosformeln, imagens que nao
cessam de agir no tempo, Benjamin faz desse espao de imagens antigas, que re-
lampejam num instante de iluminao, de revelao, um espao revolucionrio.
Por isso, ele ficou to fascinado com o Surrealismo, que irrompeu:

Ibidem, p. 49.
" Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra. Trad. Alex Marins. So Paulo: Martin Claret,
2004, p. 172.
" Idem. Consideraes extemporneas (1874). In: Friedrich Nietzsche. Os Pensadores. Obras
Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. 3." ed. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 62.
Cf. Scarlet Marton. Extravagncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. So Paulo/Iju:
Discurso/Uniju, 2000, p. 78.
116 maria bernardete ramos flores

[. . .] sob a forma de uma vaga inspiradora de sonhos. [. . .] A vida s


parecia ser digna de ser vivida quando se dissolvia a fronteira entre sonho e
viglia, permitindo a passagem em massa de figuras ondulantes, e a lingua
gem s parecia autntica quando o som e a imagem, a imagem e o som, se
interpenetravam, com exatido automtica, de forma to feliz que no so
brava a mnima fresta para inserir a pequena moeda a que chamamos 'sen
tido'. A imagem e a linguagem passam na ffente.^^

Assim, Benjamin no podia conceber uma linguagem que no fosse ima-


gtica, transferindo para o campo da experincia histrica o que a literatura
sobretudo em Proust j havia descrito: o fenmeno da memria involuntria
como um constructo complexo de imagens e palavras que se articulam em uma
escritura cujo suporte o nosso corpo como um todo e no uma abstrata men-
te.^^ Para Benjamin, a "histria desintegra-se em imagens", pois o que est para
sumir, transforma-se em imagens. Explodir as poderosas foras atmosfricas
ocultas nessas coisas faz imaginar "como seria organizada uma vida que se dei
xasse determinar, num momento decisivo, pela ltima e mais popular das can
es de rua".^^
Nessa relao entre passado e presente, quearranca da continuidade tempo
ral a ressurreio de um desejo, Benjamin formula o conceito de imagem dia
ltica.^^ Citando Amgaben, "L o se suspend le sens apparait une image dia-
lectique. Limage dialectique est, en d'autres termes, une oscillation errsolue entre
une extranation et un nouvel vnement de sens".^^ Ktia Muricy diz que a no
o de imagem dialtica a grande novidade epistemolgica exposta no livro das
Passagens. A imagem dialtica a projeo, na atualidade, das fantasias e desejos
da humanidade o encontro do Outrora e do Agora, do arcaico e do atual, do
sonho e do despertar, o encontro entre passado e presente. O domnio onde tal
encontro possvel o da linguagem: com palavras que se constrem as imagens
dialticas. Assim vista, a histria no compreendida como acabada, o passado
encerrado em um definitivo irrecupervel "era uma vez", mas a construo do
historiador que proporciona o encontro do passado com a atualidade.*""
Benjamin d, portanto, uma ateno especial s imagens de objetos obsole
tos que o Surrealismo evoca.

Walter Benjamin. O surrealismo. O ltimo instantneo da inteligncia europia. In: Walter


Benjamin. Obras escolhidas. Magia e tcnica, arte e politica. 3.' ed. So Paulo: Brasiliense, 1987, p- 22.
Cf. Mrcio Seligmann-Silva. O local da diferena. Ensaios sobre memria, arte, literatura e
traduo. So Paulo: Ed. 34, 2005, p. 134.
Walter Benjamin. O surrealismo. O ltimo instantneo da inteligncia europia. In: Walter
Benjamin. Obras escolhidas. Magia e tcnica, arte e poltica, cit., p. 25.
Entre os comentadores da obra de Benjamin, que se dedicam a compreenso da noo de
imagem dialtica, fazemos referncia a Georges Didi-Huberman, op. cit.; Rainer Rochlitz. O desen-
cantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin. Trad. Maria Helena Ortiz Assumpo. Bauru: Edusc,
2003; Ktia Muricy. Alegorias da dialtica. Imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de Janeiro:
Relume Dumar, 1999; Giorgio Agamben, op. cit.
" GiorgioAgamben, op. cit., p. 52.
Cf. Ktia Muricy, op. cit., pp. 219-26.
imagem e memria: as musas inquietantos 117

[. . .] O primeiro a ter pressentido as energias revolucionrias que


transparecem no "antiquado", nas primeiras construes de ferro, nas pri
meiras fbricas, nas primeiras fotografias, nos objetos que comeam a ex-
tinguir-se, nos pianos de cauda, nas roupas de mais de cinco anos, nos lo
cais mundanos, quando a moda comea a abandon-los."

Trata-se da misria humana e mesmo da tristeza dos "bairros proletrios das


cidades [. . .] no somente a misria social, mas igualmente a misria arquitetni
ca, a misria do interior, os objetos subjugados e subjugantes"."'- No poder mgico
e subversivo da imagem, no "espao de imagens que procuramos" no obsoleto,
segundo Benjamin, abre-se "o mundo em sua atualidade completa e multidimen-
sional, no qual no h lugar para qualquer sala confortvel"."'*
O Surrealismo mostrara de que maneira a imagem podia preencher uma
funo revolucionria; apresentando o envelhecimento acelerado das formas mo
dernas como uma produo incessante do arcaico que denota o verdadeiro senti
do da contemporaneidade. Por intermdio das runas da modernizao, ele faz
aparecer a urgncia de um retorno revolucionrio, inspirado em Marx mudar
o mundo e em Rimbaud mudar a vida e o amor.

As musas inquietantes

&

Giorgio cie Chirico, 1916

" VVallcr Bonjainin, op. cit., p. 23.


Ibiciem.
" Waltcr Bciijamiii. O surrealismo. O ltimo instantneo da inteligncia europia, cit, p. 34.
118 maria bernardete ramos flores

Viver no mundo como em um imenso museu de estranhe-


zas, repleto de jogos curiosos, multicoloridos, que mu
dam de aspecto que, s vezes, como (quando) crianas
ns os abordvamos para ver como eles eram feitos por
dentro e, decepcionados, vamos que estavam vazios/^

Aqui, apresentamos o quadro de De Chirico, AsMusas Inquietantes,sobre o


qual, escreveu Valsecchi:

Talvez seja o quadro mais clebre de De Chirico. [. . .] a hora do cre


psculo e sombras oblquas so projetadas pelas estranhas figuras, esttuas
decapitadas, manequins, colunas esculpidas, junto com instrumentos colo
ridos de um rito mgico e irnico. H algo de absurdo nessas aparies; as
cidades do silncio so povoadas por criaturas de pesadelo ou de memria
erudita que o sonho altera num ar de angstia e incerto escrnio. 45

Na leitura de Argan, no quadro As Musas Inquietantes:

intil procurar significados recnditos, relaes profundas: o signi


ficado, o princpio de relao a negao de qualquer significado ou rela
o, a converso consciente da realidade em no-realidade, do ser em no-
ser. A pintura especulao sobre a nulidade do ser; e, como especulao,
no pode ter qualquer funo."^

Nas obras metafsicas" de Giorgio De Chirico, cuja influncia no Surrealis


mo conhecida, a arte da montagem, tal como sugere Benjamin, uma constela
o de imagens justapostas numa dialtica entre sonho e despertar, entre arcaico
e moderno, entre o outrorae o agora, surgem personagens e objetos cuja coexis
tncia num mesmo contexto aparentemente inexplicvel: runas e monumen
tos; esttuas decapitadas, ombros sem braos, cabeas ovides sem rosto; arquite
turas antigas de arcos esquecidos e chamins modernas; manequins autmatos e
esttuas de gesso; mesas anatmicas e luvas cirrgicas; biscoitos, pies, caixas de
fsforos; quadros noscavaletes, lousas com grficos efrmulas; esquadros, rguas,
armaes geomtricas; espaos ordenados; interiores enigmticos; sombras alg-
bricas e alongadasdas tardes imveis e crepusculares. A cor tensa,luminosa,com
pacta, profunda, quente, mas dura e solidificada nos objetos e que os vivifica, d
sentido aos espaos rarefeitos e absurdos, que condensa num sentido de sonho a
espera estupefata do nada. Paisagens urbanas desertas e enigmticas, em clima
De Chirico, apud: Maurizio Fagiolo Dell'Arco. Giorgio de Chirico y Alberto Savinio de Ia
Metafsica al Surrealismo. In: Germano Celant Ida Gianelli. Memorial dei futuro. Arte italiano desde Ias
primeras vanguardias a Ia posguerra. Madri/Milo: Centro de Arte Reino Sofa/Grupo Editoriali Fabri,
1990, p. 67.
Marco Valsecchi (dir.). Galeria Delta da pintura universal. Rio de Janeiro: Ed. Delta, 1972, p.
734.
Giulio Cario Argan. A arte moderna. Trad. Denise Bottmann & Frederico Carotti. So Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
imagem e memria: as musas inquietantes 119

nostlgico e melanclico, so os cenrios da apario dos objetos antigos e mo


dernos, condensando o encontro entre transitoriedade e perenidade do tempo.
A cidade que tanto interessou a Baudelaire como lugar do ertico, do desejo
e do sonho, cujas imagens provocaram em Benjamin seu niilismo revolucion
rio, aparece na pintura de Giorgio De Chirico como cenrio da runa do tempo,
do transitrio e do j caduco, da memria e da histria, do otimismo e da melan
colia, dos rastros e dos enigmas.^" No espao misterioso da cidade, construiu De
Chirico climas onricos,jogosde sombras, perenidadesdos motivos clssicos, ima
gens da longnqua Grcia, geometrizao em nada assptica, cenrios solitrios.
Cenrios edificados em condies de sonho, como se o sonho de um mundo sur
gido dasentranhas do tempo, nostlgico, ainda pudessesersonhado ou comose o
sonho pudesse abordar o passado da humanidade de forma mais significativa que
outra maneira qualquer; como se o sonho pudesse falar do espectro interior das
coisas, do seu valor fantasmal, do eu livre dos agenciamentos exteriores ou das
reflexes tradicionais cartesianas. O sonhoconfigurado na obra de arte falaria do
psquico e do metafsico, do "que se acha para alm dos sentidos"."*
Embora De Chirico rejeite o Surrealismo, Memrias de Minha Vida*^ livro
autobiogrfico, traz vrias narrativas de sonhos, e critique veementemente o"fa
natismo" dos surrealistas por Freud, sua obrametafsica provocou influncia nos
surrealistas. Enigma da Fatalidade^ 1914, ilustra Nadja^ de Breton, que se sente
pasmado diante daquela "mo de fogo". A idia de estranhamento, a montagem
de elementos dspares, a indeterminao da imagem, a narrativa onrica da pin
tura constituram os aspectos principais daobra surrealista, junto das suas "tcni
cas automatistas".^* Por influncia de Giorgio De Chirico e luz da admirao de
Breton porseu trabalho, manequins, interiores, ruas, passagens, objetos antigos,
passaram a ocupar posio de destaque entre os surrealistas. Breton considerou
os manequins, o smbolo da sociedade capitalista, a evocao dafigura feminina
como objeto, como uma revelao da"incurvel inquietao humana".^^ Aesttica

Benjamin diz que a cidade ainda mais surrealista que qualquer quadro de De Chirico.
Giorgio De Chirico. Memrias de mi vida. Trad. Sofia Calvo. Madri: Sntesis, 2004, p. 26.
De Chirico pinta o Inslito do cotidiano. Disponvel em: <\vwv.fitxer/chirico.jpg&
imgrefurl=http>. Acesso: 13/1/2006. Lembramos os sonhos de Freud sobre Roma ou sobre Pompia,
associando imagens de vrias camadas temporais. Acidade, como palco do inconsciente, no mais
o lugar regrado e seguro das certezas racionais, mas sim a paisagem esburacada e fugidia do desejo:
runas a serem descobertas e interpretadas como na arqueologia, rastros a serem decifrados. Cf.
Sigmund Freud. O mal-estar na civilizao. Trad. Jos Octvio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro:
Imago, 1997, pp. 16-18.
De Chirico, op. cit.
^ Cf. Andr Breton. Nadja. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Imago, 1999, p. 119. Claro est
que depois de 1930, quando De Chirico, nas suas investigaes sobre arte, envereda pelo Barroco, os
surrealistas dele se afastam.
Apollinaire assegurava que os primeiros quadros de De Chirico haviam sido pintados sob a
influncia de alteraes cenestsicas (dores de cabea, elicas, etc.) Cf. Andr Breton. Manifesto do
Surrealismo (1924). In: Gilberto Mendona Telles (org.). Vanguarda europia e modernismo brasileiro.
2.' ed. Petrpolis: Vozes, 1973, p. 141.
" Briony Fer; David Batchelt 8c Paul Wood. Realismo, racionalismo, surrealismo. A arte no entre-
guerras. Traduo de Cristina Fino. So Paulo: Cosac 8c Naify, 1998, pp. 191-3.
120 maria bernardete ramos flores

do maravilhoso e do alucinatrio foi defendida no Manifesto dos Surrealistas, de


1924, em estreita interdependncia com os fenmenos de degradao e decadn
cia social ligados ao industrialismo e racionalizao de todos os aspectos da vida
humana. O Grande Autmato^ de De Chirico, a linguagem da iluso de robs na
era da mquina!
O Surrealismo, mais que um gnero formal, foi um movimento de rejeio
da realidade normatizada, de crtica do mundo moderno e de defesa do arcaico
ou "primitivo". Seus pressupostos vinham da sensao de que a histria europia
estava em runas, figurada na conhecida abordagem que faz Benjamin da ima
gem do Angelus NovuSy de Klee. O Surrealismo abandonava os velhos ideais
renascentistas da beleza como harmonia da existncia humana ou do equilbrio
csmico. Para Breton, a beleza era convulsiva ou no era beleza. A lgica mo
derna, fundada na conscincia e na personalidade identitria do indivduo, se
desintegrava de maneira tumultuada. O lugar clssico da razo era ocupado pelo
extraordinrio, pelo ilgico e at pelo sinistro, por uma experincia extrema do
irracional e do delirante, o que no significa que estivesse associado embria
guez e loucura (embora Nadya termine no hospcio). Era uma arte, submeti
da aos imperativos do desejo, do fluxo vital e da prpria experimentao com o
fazer artstico, que servia para destruir a imagem tradicional, expressar o mal-es
tar diante da moral burguesa, transmitir s telas os vcios e os horrores da condi
o humana, recusando qualquer espcie de artequefixasse passivamente o mun
do exterior.
A arte dos surrealistas e, particularmente, da pintura metafsica de De Chi
rico, no seu interesse pela imagem, devia tornar a propor o objeto, o que lhe vale
ram crticas por este "retorno do figurativo", em sua singularidade e em sua tradi
cional integridade perceptiva. Nas Memrias de Giorgio De Chirico o que mais se
destaca sua defesa das tcnicas do desenho. No se tratava, porm, de um retor
no passivo s formas do passado, ou uma continuidade da arte acadmica. ou
tra relao que se estabelece entre sujeito e objeto.
O que faz a lgica de nossos atos normais e de nossa vida normal
escreveu De Chirico uma corrente contnua de recordaes das rela
es entre as coisas e ns, e vice-versa. . . Mas admitamos que, por um mo
mento e por causas inexplicveis e independentes de minha vontade, se
irrompa a continuidade dessa corrente; quem sabe como veria o homem
sentado, a gaiola, os quadros, a biblioteca; quem sabe ento qual seria meu
aturdimento. . . A cena, porm, no teria mudado, eu a veria de outra ma
neira. Estamos diante do aspecto metafsico das coisas."

Compreende-se o fato de De Chirico voltar a objetos familiares, para que


sejam reconhecidos, na sua metamorfose, pelo espectadormergulhado na mesma
corrente histrica.

De Chirico, apud: Marco Valsecchi (dir.). Galeria Delta da pintura universal, cit., p. 731.
fParateridasorginas,extrodi
imagem e memria; as musas inquietantes

Uma arte da apario "uma obra de arte realmente imortal s pode nascer
pela revelao" , inspirado em Schopenhaur, que foi quem, declara De Chirico,
melhor definiu a idias de apario, em Parcrgi c Pamlipomena, quando diz:

nrias e talvez imortais, basta que nos iso


lemos do mundo por alguns momentos
to completamente que os fatos mais co
muns nos paream novos e desconheci
dos; assim que eles revelam a sua ver
dadeira essncia.

E conclua: "Se em vez do nascimento das


idias originais, extraordinrias c imortais, ima
ginarmos o nascimento de uma obra de arte
(pintura ou escultura) na mente do artista, te
remos o princpio da revelao na pintura De
Chirico tomava temas e figuras e especialmen
te certo verismo ilusionista na representao
dos objetos, com a funo de tornar mais efi
caz e alucinante, pelo contraste, a surpresa das
inslitas aproximaes, da disposio excn
trica.''-'^
Pela mesma razo. De Chirico organiza o
espao, paradoxalmente, realando o esquema
perspctico. Mas a perspectiva praticada poi ele
no tem a inteno de assegurar um espao
tranqilo para o espectador. Ao contrrio, dis-
torsiona a viso einquieta o olhar, opondo-se a
concepo clssica que conecta obelo harmo
nia e a uma viso organicista da representao.
Na interpretao de Valsecch, o quadro AMe
lancolia da Partida no apresenta apenas um
ponto de fuga e sim seis, e nenhum deles se
equipara s normas da perspectiva originada no
Citado por H. ii. Cliipp, Teorins da arte moderna. Trad. Wallensir Dutra et al. 2.^ ed. So Paulo:
Martins Fontes, 1996, p, 402.
Sdiopenhauer, que concebe a vida como escrava cega da vontade, v a arte como mani
festao da "vontade de viver", objetivao da vontade, suscetivel de numerosos graus, que so a
medida da clareza e da perfeio crescente. "Pois, ela arranca do curso dos acontecimentos do mundo
o objeto de sua contemplao," Artur Scliopenhauer. O imnulo como vontade e representao. Trad. W.
L. Maar; M. L. Mello & O. Cacciola. So Paulo; Nova Cultura, 1988, p. 17. No seu pessimismo ex
plicito, o (llsofo afirma: "A vida nunca bela, s os quadros da vida so belos". Artur Schopenhauer.
A arte, In: Artur Scliopenhauer. Dores do mundo. Trad. Jos Souza de Oliveira, i.' cd. So Paulo: So
Paulo: Edigraf, |s.d.|, p, 109.
122 maria bernardete ramos flores

Renascimento italiano, expresso cientfica de um olhar racional, sem possibili


dade de surpresas. Lgica e exata, a perspectiva tradicional d a cada objeto seu
lugar e seu valor exato; com base numa lei matemtica, cria um espao slido e
cheio.^^ O que no o caso da pintura de De Chirico, com seus espaos vazios e
chapados."
Sua paixo pela Grcia^ no da mesma natureza da paixo, por exemplo,
da de Maillol (1861-1944) que, junto a Charles Despiau (1874-1946) e Antoine
BourdeUe (1861-1929), formou "um trptico que assume um papel supostamen
te clssico, onde se reviu o gosto tradicionalista francs", na fase do "revivalismo
do entreguerras", quando se proclamou, por toda parte, "um novo academicismo,
um neo-humansimo, uma volta ao desenho, ao oficio consciente da tradio num
contato fervoroso com a Natureza"." O "retorno ordem", um discurso de cor
rentes artsticas "voltadas construo", movimento que aparece na Frana, em
1919,60 recolocou no quadro os elementos rejeitados pelas vanguardas, "a fim de
restabelecer a unidade incindvel entre tcnica e representao, entre forma e con
tedo; unidade que caracteriza a obra-prima de natureza.
De Chirico desenvolve uma pintura de motivos da Antigidade clssica, mas,
ao mesmo tempo, sua pintura inquietante, na maneira pictrica e na aborda
gem do tema. Osanos da infncia passados na Grcia marcaram sua memria. O
contato prolongado com os achados arqueolgicos e com intenso clima clssico
de uma cidade como Atenas, claro est que deixara marcas profundas em sua
personalidade. Porm, como bem conclui Fagiolo Dell'Arco, sua paixo pela Grcia
antiga pode estarrelacionada coma esquizofrenia convertida empossvel salvao.
Sua volta a sua Grcia e ao seu pensamento fazem suas as reflexes de Nietzsche,
que entendeu "[...Io clssico mundo presente no atual".^' De Chirico celebra
uma Grcia tanto mais misteriosa quanto mais longnqua e presente na mem
ria. Ele retoma manuais de anatomia e de arqueologia; faz uso esmerado do dese
nho. Mas no significa que fizesse cpias, e sim que busca uma dupla imagem,
com a idia perene do eterno retorno. Para uma arte que faz referncia s"musas
inquientantes", decisivo o papel de Mnemosina: deusa da memria, COnclui
Fagiolo DeirArco.
No livro autobiogrfico. Memrias de mi VidUy De Chirico faz diversas re
ferncias a Nietzsche, como inspirador de seu mtodo. Antes dos vinte anos de
idade, "[. . .] j tinha entendido o lado mais misterioso da obra de Friedrich

^ Marco Valsecchi (dir.). Galeria Delta da pintura universal, cit., p. 731.


A imagem da pgina anterior a Vnus de Maillol, 1924.
De Chirico nasceu em 1888, em Volo, na Grcia, de pais italianos. Na Grcia passou a in
fncia e a adolescncia, estudando em Atenas. Em 1906 transferiu-se para Mnaco, vindo da Baviera.
Freqenta, durante dois anos, a Academia de Belas-Artes e, em 1908, vai para a Itlia, permanecendo
em Roma. Depois, passa a morar em Florena e, no vero de 1911, vai a Paris, onde conhece Apol-
linaire, Picasso, Max Jacob e Reynal.
" Jos Augusto Frana. Histria da Arte Ocidental. 1780-1980. Lisboa: Livros Horizonte, 1987,
pp. 299-303.
Cf. Maria Ceclia Frana Loureno. Operrios da modernidade. So Paulo: Hucitec, 1995, p. 45.
Maurizio Fagiolo Dell'Arco, op. cit., p. 67.
imagem ememria: as musas inquietantes 123

Nietzsche"." Pintava assuntos sobre os quais tentava expressar aquele forte emiste
rioso sentimento que havia descoberto nos livros de Nietzsche: a melancolia dos
belos dias de outono, a primeira hora da tarde, nas cidades italianas. De Chirico
afirma que oobjetivo da pintura futura devia ser ode criar sensaes antes desconhe
cidas; eliminar tudo o que rotina aceita; suprimir totalmente o homem como gma
ou como meio de expressar smbolo, sensao ou pensamento; liberar-se de todo
antropomorfismo que aguilhoa a escultura; ver tudo, at mesmo o homem, em sua
qualidade de coisa. "Este o mtodo nietzschiano" diz ele. Aplicado pintura,
poderia produzir resultados extraordinrios. "Eis o que procuro demonstrar nos
meus quadros."*^^
Ao explicar o momento em que concebeu Enigma de Uma Tarde de Outono^
diz o seguinte:
A revelao de uma obra de arte (pintura ou escultura) pode nascer
subitamente, quando menos esperamos, e pode tambm serestimulada pela
viso de alguma coisa. No primeiro caso elapertencea uma classe de sensa
es raras e estranhas que eu s vi num homem moderno: Nietzsche.Quando
Nietsche fala do modo como seu Zaratustra foi concebido e diz: "Eu fui sur
preendido por Zaratustra", nesse princpio surpreendido est encer
rado todo o enigma da revelao sbita (...) na forma e na maneira pela
qualalguma coisa provoca em ns a imagem de uma obra de arte, uma ima
gem que desperta em nossa alma a surpresa por vezes, a meditao >
comfreqncia, e sempre, a alegria da criao.^
Concluindo, pode-se dizer que As Musas Inquietantes^ figura ambgua
coluna, esttua, manequim , se oferece a ns como imagem dialtica, no sen
tido benjaminiano. Seu carter de reminiscncia serve a uma crtica do presente
ao instaurar um lugar onde o passado sabe tornar-se anacrnico, presente en
quanto se apresenta como reminiscentc. A referncia s musas antigas, enquanto
trabalho de memria, como diria Didi-Huberman, no como "uma instncia que
retm que sabe o que acumula , mas uma instncia que perde: ela
porque sabe, em primeiro lugar, que jamais saber por inteiro oque acumula",'^
Giorgio Dc Chirico. Memrias de mi vida, cit., p. 24.
" Citado por H. B. Chipp. Teorias da arte mo^nin, cit., p. 402. . .
Marco Valsecchi (dir.). Galena Delta da pintura universal, cit., p. 731. Em Hutttatw, Dettiasia
mente Humano, podem ser identificadas algumas passagens que, por certo, marcaram o pensaniento
artstico de De Chirico: "... o que se entende por arte, praticada dentro da conveno artstica,
somente um apndice" (F. Nietzsche Humano, demasiadamente humano. Um livro para espritos livres
(1878) In: Nietzsche. Os pensadores. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. So Paulo: Nova Cultural,
2000, p. 115.) "Aquilo que o artista inventa alm da conveno, acrescenta a ela espontaneamente . -J
De hbito, o que original olhado com espanto, e s vezes at mesmo adorado, mas raramen e
entendido: desviar-se teimosamente da conveno significa: no querer ser entendido (ibidem, p. )
"A arte uma espcie de proposio de enigmas" (ibidem, p. 113.) "O mais refinado quan o
ela estimula a uma espcie de deciframento de enigmas" (ibidem, p. 114). "A mais dificil ^
artista a representao do que permanece igual, do que repousa em si [. . .]" (ibidem, p. 113)-
Georges Didi-Huberman. Oque vemos, oque nos olha. Trad. Paulo Neves. So Paulo. itora
34, 1998, p. 115.
maria bernardete ramos flores

longe est da Vnus praxiteliana na verso da


V/iKS de Mdin, escultura!, mineral, entalhada
no desenho que contorna o corpo na sua in-
tegridade, lmpida, transparente, compacta,
estvel. Num paradoxo aparente. De Chirico
^ cinzela suas musas decapitadas; as cabeas des-
locadas no tm rosto; as vestimentas helnicas
* f 'Bks encobrem todo ocorpo.
i |||un Lembramos que olivro de Kenneth Clark,
i Vmf. The Niide: A Stiidy of Ideal rty reivindica pra
^ V-V^ f Wv ' a 3funo de transformar o nu feminino,
, . ^ V objeto do desejo fsico em um paradigma
' T de excelncia espiritual"'''' A Vcinis Coclcstis
: >, V K\\ admirada pelos seus atributos celestiais ao pu-
jfl, .] rificar aVnisNnmrn/s, cujo corpo no ideal,
1 "mas simplesmente uma dama de maneiras f-
ceis, que tirou a roupa pela luxria"."' A em-
. ^ -^ patia que anudez provoca no espectador afir-
Clark o oposto da atividade criadora
^ m ' que o nu gera, ou seja, o nu artstico uma for-
m rna de arte que deve desembaraar-se da nudez
-W^ corpo.Didi-Huberman, em seu livro
Ouvr/r Vnus, ao analisar O Nascimento de
Vnus, de Botticelli, conclui que o nu esttico
I^B como ideal da arte separa forma edesejo.
"Cela signifie que Ton pourrait, devant chaque
nu, garder le jugement et oublier le dsir, garder
Ic concept et oublier le phnomne, garder le
symbole et oublier Timage, garder le dessin et
oublier Ia chair"."'^ Se isso fosse possvel, diz
a Vnus de Botticelli, a finalizao do nu
um nu desculpabilizado de sua nudez,
de seus (de nossos) desejos, do seu (de nosso)

A Vnus de Botticelli, na leitura de Didi-Hubemann, um admirvel nu


desenhado e pintado. Mas seu tamanho, assim como seu colorido (opaca e lumi
nosa, plida como uma pedra) remete o espectador a uma inevitvel invocao a
esttuas antigas. O corpo da Vnus se parece a um mrmore muito polido e mui
to frio, no qual Botticelli acrescentou apenas uma chocante cabeleira dourada, os

Kenneth Clark. O un, cit., p. 97.


''' Ibidem, p. 75.
Ibidem, pp. 26-7.
Ceorgcs Didi-Huberman. OniTir Vcniis, Paris: Gallimard, 1999. p. 16.
"" Ibidem, p. 16.
imagem e memria: as musas inquietantes 125

olhos azul-verdes envidraados, e um pouco de vermelho nas bochechas e nos


lbios. Mas o centro desse corpo nos permanecer impenetrvel, ainda que ele
seja oferecido ao nosso olhar em sua mais plena nudez. Sua espcie de solido
pensativa a afasta de ns como de sua prpria existncia sexual.^'
As Musas Decapitadas de De Chirico nos remetem s runas do tempo. "As
esttuas de De Chirico descansam, atemporais, no pedestal onde nenhum tempo
sopra, paralisados como os ponteiros dos relgios. [. . .] Praas profticas e facha
das de arcos vazios so tempo redescoberto, elegias que honram a passagem do
tempo."^- Olgria Matos v no quadro a hora do enigma, o segredo das runas, o
momento de repentina revelao, pelo qual as coisas religam de outra forma, o
mundo se transforma pelo impulso do desejo. "Runas: rudo e lembrana. Em
meio ao desaparecimento, so guardis do imperecvel. So vestgios do invis
vel."^^ E se o mais refinado da arte quando ela estimula a uma espcie de
deciframento de enigmas, como pensou Nietzsche, De Chirico praticou a arte de
produzir enigmas. "Pensemos no Enigma do Orculo e nas Praas de Itlia. . .,
nos convida Olgria Matos. "H sempre algo de helnico, enigmtico, todas as
runas: morta, Pompia oferece ao viajante algo nesse desejo impossvel de con
trariar o curso do mundo.""^
O quadro As Musas Inquietantes, como arte da memria, capaz de lembrar
sem imitar, que vai alm dos limites impostos, que indaga a linguagem, as razes
do homem e da cultura, que nasce da vontade de descobrir na imagem uma tela
para projetar uma nova vida, que das runas da modernizao faz aparecer o re
torno do desejo da revoluo, pode/deve ser pensado dialeticamente, no sentido
benjaminiano prximo nesse ponto de Aby Warburg. Mais uma vez, citando
Didi-Huberman, a:

imagem dialtica, cristaliza a existncia simultnea da modernidade e do


mito: trata(va)-se [. . .] de refutar tanto a razo "moderna" (a saber, a razao
estreita, a razo cnica do capitalismo) quanto o irracionalismo "arcaico ,
sempre nostlgico das origens mticas (a saber, apoesia estreita dos arquti
pos, essa forma de crena cuja utilizao pela ideologia nazista Benjamin
conhecia bem)."

" Cf. Ibidem, p. 12.


Olgria Matos. Vestgios. Escritos de fihsofia ecritica social. So Paulo: Palas Athenas, 1998, p. 83.
" Ibidem, p. 84.
Ibidem, p. 82.
" Georges Didi-Huberman. Ouvrir Vniis. cit., p. 113.
II / Imagens da Poltica
A IMAGEM DO HISTORIADOR,
ENTRE ERUDIO E IMPOSTURA^

Sabina Loriga
EHESS/Frana

Assim como havia em Roma, alm dos romanos, uma


populao de esttuas, da mesma maneira, neste mundo
real, h um mundo imaginrio, s vezes mais poderoso,
dentro do qual vive a maior parte dos homens.
JoHANN WoLrc.ANr. Goethe'

Em seu belo livro Beatiis ///e, o escritor espanhol Antonio Munoz Molina
conta a histria de Minaya, um estudante de vinte e cinco anos, que descobre o
manuscrito pstumo de lacino Solana, escritor mito, abatido pela polcia
franquista. Desejoso de pesquisar avida e a morte do poeta, dirige-se aldeia na
qual o escritor havia composto sua obra. Ao inquirir os raros sobreviventes da
guerra civil, Minaya procura descobrir as circunstncias que provocaram amorte
do escritor. Quem o matou? Por qu? Ao contrrio dos outros personagens o
livro, Minaya no ligado ao passado por sua memria pessoal e ntima.
tanto, deseja descobrir e compreender a verdade de outrora. Por isso
como o mistrio mais profundo do romance. Como lhe dizem no final do ivro,
por que uma pessoa como ele, que no possui nenhuma razo pessoal ou ligaao
com esse passado, que nasceu aps aguerra, por que procura pessoas que viveram
naquele perodo e astratacomo sefossem criaturas ainda vivas?
Gostaria de aproveitar a oportunidade apresentada por esse colquio e,
nesse sentido, desejo agradecer a Sandra Jatahy Pesavento pelo convite para
tentar chegar mais perto desse mistrio. No tenho ambio de responder aques ao
* Trad. Mariana Joffily. , uprlcer
' Johann Wolfgang Goethe. Maximen uttd Reflexionen. Herausgegeben von
Freibure im Breisgau: Zhringer 1949.
129
130 sabina longa

formulada por Munoz Molina: o que leva um ser humano a procurar desvendar
o passado? Mais exatae modestamente, gostaria de abordar a maneira pela qual a
literatura do ltimo sculo imaginou esse mistrio. De fato, Minaya no o nico
exemplo de historiador presente na paisagem literria. Ao contrrio, a figura do
historiador ressurge de forma assdua. Aparece nos seguintes textos: Middlemarch
de George Eliott (1872), Hedda Gabler de Hendrick Ibsen (1890), O Imoralista de
Andr Gide (1902), O Sentido do Passado de Henry James (1917), A Nusea de
Jean-Paul Sartre (1938), O Jogo das Contas de Vidro de Hermann Hesse (1943),
1984 de George Orwell (1949), Heimatmuseum de Siegfried Lenz (1978), Der
chinese des Schmerzes de Peter Handke (1983), Beatus Ille de Antonio Munoz Molina
(1986), O Palcio dos Sonhos d'Ismail Kadar (1990), Dbout les Morts de Fred
Vargas (1995), Todos os Nomes de Jos Saramago (1997), Dia de Finados de Cees
Noteboom (1998), o nico texto em que o historiador uma mulher, The Ar-
chiviste de Martha Cooley (1998), e, claro, O Cdigo Da Vincide Dan Brown (2003).
Sem dvida nenhuma, essa lista no exaustiva e cada um de vocs ter
outros ttulos a acrescentar e espero a me sugerir. Mas, embora incompleta,
ela nos permite comear a formular uma questo: como os outros nos vem? Em
outros termos: qual a impresso que os romancistas tm de ns, historiadores?
Qual a nossa imagem social e poltica? Talvez esse exerccio simples procu
rar nos verpelos olhos de um outro nospermita tambm desenvolver algumas
reflexes sobre a relao do historiador com o seu presente.

II

Para comear, uma observaogeral, um pouco desagradvel. O historiador


tem m reputao. O nico personagem positivo, at exemplar, o do padre Jaco-
bus, encarnao provvel de Jacob Burckhardt, no livro de Herman Hesse, OJogo
das Contas de Vidro. Nesse romance de formao, ou de iniciao, padre Jacobus
um homem de sessenta anos,alto e seco, com carade gavio, dotado de persona
lidade forte e resoluta. Srio,apaixonado, irnico: conhece a ambigidade mvel,
entre a gravidade e a ironia, entre a devoo e a superficialidade, entre o pattico e
a pilhria. Possuio dom da amizade e um verdadeiro mestre, pois trata a histria
como matria viva: graasa ele que o protagonista do livroaprender no apenas
os mtodos historiogrficos e os elementos gerais da histria, mas tambm a hist
ria como realidadeviva. A qualidade do ensinamentodo padre Jacobus estligada
ao fato de que ele vive conscientemente na histria, sem perder contato com o
presente. Poder-se-ia at dizer que justamente a sua conscincia histrica que
lhe permite melhor compreender o presente: grande intelectual, Jacobus faz parte
da vida, contribui sua criao, no se apraz com sua posio contemplativa, abre
uma janela para o mundo atual, acolhe em seu coraoas necessidades e as intui-
esde seu tempo, ao ponto de assumir importantes responsabilidades polticas.
Essa descrio to gratificante, do padre Jacobus, nica. Percorrendo ou
tros livros, podemos distinguir trs figuras, muito diferentes entre si, mas todas
bastante desagradveis.
aimagem do historiador, entre erudio eimpostura i31

III

Aprimeira figura ado erudito desprovido de vida. Aps Friedrich Nietzsche,


a literatura viveu a conscincia histrica como uma febre, um entrave compre
enso profunda da experincia humana. por essa razo que no final do sculo
XIX e no incio do sculo XX, diversos romancistas opem, Lei do passado, os
direitos do presente. Em Middlemarchy George Eliot zomba da histria no perso
nagem de Casaubon, um intelectual rido, frio, completamente absorto pelo pas
sado eincapaz de ouvir os sons eas cores da vida. Dez anos mais tarde, avez de
Hendrick Ibsen: em Hedda Gabler^ Jrgen Tesman um historiador da Idade M
dia que sededica, decorpo e alma, ao estudo da manufatura familiar no Brabant.
Sempre tomado por sua pesquisa, ao longo desua viagem de mpcias com Hedda,
que uma mulher muito bonita e cortejada, passa seu tempo na biblioteca a co
piar velhos cdigos em pergaminhos. Esse historiador zeloso, que aspira ocupar
um miservel cargo de professor, no compreende nada do que se passa em sua
volta, nem mesmo as infidelidades e as intrigas de sua mulher. Sua paixo hist
rica o faz soobrar no reino dos mortos; como diz Hedda, Tesman no um ho
mem, um rato de biblioteca e a casa que escolheu para o seu futuro tem odor de
lavanda e de rosa que cheira morte. Vinte anos mais tarde, Andr Gide publica
O Imoralista. O personagem principal do romance, Michel, havia amado a hist
ria: habituara-se, particularmente, a pensar os fatos da histria "como peas de
um museu, ou melhor, plantas de um herbrio". Mas aps uma doena difcil e
dolorosa, a histria do passado assume a seus olhos "essa imobilidade, essa terrvel
fixidez das sombras noturnas no pequeno ptio de Biskra, a imobilidade damorte'.
Estamos muito distantes do padre Jacobus. . .Para George Eliott, Ibsen, Gide,
o historiador um homem que se refugia no passado porque incapaz de viver
seu presente. Essa imagem imvel, quase mortfera do historiador, atinge o auge
no romance inacabado de Henry James, O Sentido do Passado. O protagonista e
Ralph Pendrel, um jovem americano de trinta anos, rico, excepcionalmente cul
to, autor de um Ensaio Subsidirio Para a Interpretao da Histria. Como Jrgen
Tesman, Prendei tambm no tem nenhuma experincia da vida real e sempre
tomado pelo passado: por temperamento estranhamente indiferente ao atual e
ao possvel, interessa-se apenas pelos mortos, pelo que jse passou e que parece
acabado. Longe de se contentar em reconstruir oquadro geral da histria, ele visa
os detalhes ntimos do passado, procura o odor, os sons, atemperatura de eventos
de outros tempos. Por isso, tendo herdado uma maravilhosa casa em Londres, que
data de 1710, Pedrel decide trocar o novo continente pelo antigo. Animado
idia de encontrar um pedao intacto do passado, ele trocar sua personali a e
pela de um jovem que vivera h cem anos, retratado em um quadro da casa. o
incio, ele confunde o seu rosto com aquele, to plido do jovem da pintura, em
seguida, incorpora aquele rosto. . .Em suma, parece que penetrar opassado
simples: Pendrel precisa apenas abrir a porta da casa (no precisa de chaves, s
bater), e eis que se encontra no ano de 1820. O difcil, realmente, retornar ao
132 sabinaloriga

presente: embora pensasse em viajar, como homem livre, no tempo, descobre-se


prisioneiro do passado.

IV

A segunda figura, que aparece aps a Primeira Guerra Mundial, a do his


toriador instrumentalizado pelo poder poltico. Sem dvida alguma, o texto de
referncia mais importante e mais clebre 1984y de George Orwell. Como vocs
se lembram, Winston Smith funcionrio dos Arquivos do Ministrio da Verda
de, onde se dedica a pequenas tarefasde falsificao do passado. Ele cria, por exem
plo, homens mortos, que no haviamjamais existido na realidade e que, doravante,
existem no passado, com o mesmo estatuto de Carlos Magno e de Csar. Um dia,
intrigado por seu passado pessoal, Winston procura lembrar-se do perodo opaco
de sua infncia, mas descobre que se trata de uma operao impossvel, pois no
possui mais objetos externos nos quais ancorar as lembranas. No se pode con
fiar nos livros de histrias: esto abarrotados de mentiras. No se pode tambm
contar com as lembranas das pessoas mais velhas, pois sua memria foi pulveri
zada por detalhes insignificantes: lembram-se de milhares de coisas inteis, uma
briga com um camarada, um acidente de bicicleta, a expresso do rosto de sua
irm, mas no tm nenhuma memria dos acontecimentos importantes. Uma
vez que a memria fracassou e que os documentos foram deliberadamente falsi
ficados, o passado foi abolido, apagado, evaporado. H apenas o presente. Como
Winston relata a Jlia, "Voc se d conta de que o passado at ontem foi abolido?
[. . .] Todos os documentos foram destrudos ou falsificados, todosos livros rees-
critos, todos os quadros repintados. Todas as esttuas, as ruas, os edifcios muda
ram de nome, todas as datas foram modificadas. E o processo continua todos os
dias, a cada minuto.A histria parou. No h nadaalm de um eterno presente".
O terrvel resultado que os acontecimentos passados no tm mais uma
existncia objetiva: "como o Partido detm o controle completo de todos os do
cumentos e do esprito de seus membros, decorre que o passado o queo Partido
quer que seja. Decorre tambm que o passado, ainda que plstico, nunca, em ne
nhuma circunstncia particular, foi modificado. Pois quando foi recriado no for
mato exigido pelo momento, essa nova verso, seja qual for, ento o passado e
nenhum passado diferente no pode jamais ter existido".
O tema da manipulao do passado pelo poder poltico retomado em ou
tros romances da segunda metade do sculo XX. H dois casos particularmente
interessantes, nos quais o historiador desempenha papel importante na manipu
lao. No primeiro, enquanto vtima. Trata-se de Heimatmuseum: nesse romance,
o escritor alemo Siegfried Lenz conta a histria de Zygmunt Rogalla que,guiado
pelas tradies familiares e pelo amor sua ptria, reuniu objetos representando
lembranas pessoais, criando assim um pequeno museu. Durante a guerra, os na-
cional-socialistas servir-se-o de sua coleo para legitimar sua poltica de germa-
nizao. Aps a guerra, apropriam-se dele por razes revanchistas. At que um
chefe de brigada declara que o museu s poder receber subvenes se assumir a
a imagem do historiador, entre erudio e impostura 133

tarefa de provar que os habitantes da regio se consideraram sempre como guar


diesdo esprito alemo no Leste. Para Rogalla, a nica maneira de escapar dessa
instrumentalizao poltica infinita queimar seu museu. . .
O outro exemplo O Palcio dos Sonhos, de Ismail Kadar. Nesse romance,
o historiador no vtima do poder poltico, mas seu cmplice. A histria desen
rola-se sob o Imprio Otomano no sculo XIX. Mark-Alem, descendente de uma
grande e poderosa famlia de grandes funcionrios do Estado, empregado por
Tabir Sarrail, conhecido tambm por Palcio dosSonhos. Trata-se de uma dasmais
importantes instituies do Estado imperial, encarregado de coletar, mesmo nas
provncias mais longnquas, os sonhos de cada um, de reuni-los, paraemseguida
tri-los, classific-los, interpret-los, a fim de conjurar o destino do Imprio. O
Tabir Sarrail trabalha de acordo com critrios histricos.Com efeito, organizado
em diferentes setores, dos quais os mais importantes so a Seleo (onde se opera
a primeira triagem dos sonhos), a Interpretao (a saber, o centro nevrlgico da
casa, seu crebro), os Arquivos (uma espcie de labirinto, no qual corre-se sem
pre o risco de perder-se) e a Verificao (em caso de reclamao).. . Teoricamen
te, o Tabir Sarrail mantm-se distanciado do tumulto humano, fora das disputas
pelo poder. Na realidade, representa um elemento importante da luta poltica, pois
um sonho capaz de suscitar mutaes importantes na vida do Estado. um so
nho que d a idia do grande massacre dos chefes albaneses em Monastir. igual
mente umsonho que conduz reviso da poltica em relao a Napoleo e a que
da do grande vizirYoussour. So inmeros os casosdesse gnero. Em suma, como
ovizir explica para Mark-Alem, noTabir fabrica-se todo o tipo de sonhos: "Mark-
Alem estava petrificado de horror. [. . .] Dizia-se, portanto, que certos Sonhos eram
falsos, que eram fabricados pelos prprios empregados, segundo os interesses dos
poderosos rivais no poder, ou de acordo com o humor do soberano; que, se no
inteiramente falsos, eram, pelo menos em parte, falsificados".

Alm das manipulaes realizadas por razes polticas, evocadas por Lenz e
Kadar, h os pequenos enganos, as distraes ordinrias, os abusos fortuitos, mas
que podem destruir para sempre apossibilidade de desvendar opassado. oter
ceiro caso, que apareceu nas ltimas dcadas: o historiador deve enfrentar uma
sriede manipulaes quotidianas, acidentais, absurdas.
Milan Kundera o relata em O Livro do Riso e do Esquecimento (1978). No
incio, ele evoca as manipulaes efetuadas pelo poder poltico, que se apraz em
apagar as fotografias oficiais dos antigos companheiros dos tempos da Revoluo,
em seguida condenados como contra-revolucionrios. Mas, nas pginas seguin
tes, sugere-nos que o desejo de manipular o passado universal. Mirek, o prota
gonista da primeira narrativa, quer de qualquer modo destruir as cartas que havia
escrito a sua ex-namorada, apenas porque era feia e, todo o mundo sabe, as mu
lheres no se interessam por homens bonitos, mas por homens que conquista
ram mulheres belas! Em suma, Mirek reescreve a histria exatamente como o faz
134 sabinaloriga

o partido comunista, como o fazem todos os partidos, todos os povos, todos os


homens: "os homens proclamam querer criar um futuro melhor, mas no ver
dade. O futuro no passa de um vazio indiferente que no interessa a ningum,
ao passo que o passado cheio de vida e sua fisionomia que nos irrita, provoca,
fere, e, por essa razo, queremos destru-lo ou retra-lo. [Os homens] brigam
para poder entrar no laboratrio onde retocam-se as fotografias, reescrevem-se as
biografias e a histria".
Por sua vez, Jos Saramago, em seu magnfico Todos os Nomes, verdadeiro en
terro da idia de verdade histrica, fala das absurdas manipulaes do passado por
homens comuns. A ao desenrola-se na Conservatria Geraldo Registro Civil, um
edifcio que a cpia exata do Cemitrio, e que contm Todos os Nomes, tanto
dos mortos como dos vivos. Seus arquivos so sombrios, caticos e perigosos: "os
vivos e os mortos partilham o mesmo espao, s vezes h que dar muitas voltas
para encontrar um deles, h que rodear montanhas de maos, colunasde processos,
pilhas de verbetes, maciosde restos antigos,avanarpor desfiladeiros tenebrosos,
entre paredes de papel sujo que se tocam l no alto". Nesse espao confinado e
sufocante, fcil perder-se. o que ocorre a um pesquisador de herldica, que
"foi descoberto, quase por milagre, ao cabo de uma semana, faminto, sedento,
exausto, delirante". O perigo to evidente que o chefe da Conservatria prescreve,
sob pena de multa,"a obrigatoriedade do uso do fio deAriadne paraquem tivesse
de ir ao arquivo dos mortos". nesse espao que trabalha o Sr. Jos, funcionrio
competente e metdico, que coleciona secretamente informaes sobre pessoas
quese tornaram famosas. Umdia, por acaso, seu olhar atrado pela ficha de uma
mulher desconhecida. Eledecide saber tudo sobre ela. Mas no simples: dirige-
se rua onde a mulher nasceu, permanece algims minutos a observar o local, entra
no prdio, sobe a escada, faz perguntas a uma mulher no trreo, procura o nome
dos pais e do ex-marido da mulher. Ao longo da pesquisa, tomado por mil inevit
veis incertezas, o Sr. Jos conduzido a cometerinfraes cada vez mais graves s
venerveis regras deontolgicas (como o furto de documentos nos arquivos). Ter
mina pordescobrir que a mulher suicidou-se. Ento, vai ao cemitrio geral e lo
caliza a sepultura na qual a mulher desconhecida deveria repousar. Mas encontra
um pastor que lhe explica que no se pode fiar nas aparncias, que nenhum dos
corpos aqui enterrados corresponde aos nomes sobre aslajes de mrmore, pois os
havia deslocado antes que as lajes com os nomes fossem entregues e instaladas.

VI

Como j o afirmei, essas trs figuras apresentam diferenas interessantes.


A primeira, j evocada por Hayden White e Stephen Bann, pressupe dois
elementos importantes. Por um lado, o presente e o passado representam duas
realidades bem distintas. Por outro, o passado facilmente acessvel. Poder-se-ia
at dizer que o perigo reside justamente nessa facilidade: viver no passado, culti
var a memria, respeitar a tradio, como faz o historiador, uma escolha doen
tia, que impede de viver plenamente seu prprio presente.
a imagemdo historiador,entre erudioe impostura 135

Vice-versa, na segunda e na terceira figuras, o passado virou poeira, evapo


rou-se, portanto afsico, impenetrvel. Como podemos ler ainda no Beatus Ille
o passado inacessvel lembrana e ao retorno, pois lembrar-se e retornar
so exerccios inteis, como o seria a idia de pedir a umespelho que reproduza a
imagem de trinta anos atrs. Por sua vez, o escritor ingls Julian Barnes compara
o passado com um porco besuntado de gordura. Pergunta-se: "Comocaptamos o
passado? Podemos faz-lo? Quando eu era estudante de medicina, para fazer uma
brincadeira em um baile de final de ano, soltaram um pequeno porco besuntado
com gordura. Ele passava por entre as pernas, escapava captura e emitia gritos
estridentes. Opassado freqentemente parece comportar-se como esse porquinho .
Nessa perspectiva, o perigo no vem do passado. Como afirma Danilo Kiis, em
sua Enciclopdia dos Mortos (1983), ele vem da histria, que contribui como vti
ma ou cmplice, a manipular o passado.
Eis que chegamos ao ponto crucial: se a histria se encarrega sempre de fal
sificar e at apagar os documentos, ento cabe literatura reconstruir urna ima
gem verdica do passado, graas sua relao privilegiada com a memria.. . O
escritor italiano Srgio Atzeni, morto precocemente em 1995, estava convencido
de que aliteratura representa averdadeira aliada do passado contra ahistria. Em
uma conferncia sobre a histria e o romance, pronunciada pouco antes de sua
morte, afirmou que os mais importantes historiadores da Grcia antiga, Herdoto
e Tucdides, assim como o grande historiador rabe do sculo IX aps Jesus,
Muhammed ben-Garir Tabari, nos contaram uma srie de falsidades, ao passo que
Antnio Digenes, considerado um contador defbulas, captava averdadeira ver
dade. Em suma, odiscurso da fico seria mais prximo do real do que odiscurso
da histria: "o romance" conclui " a narrao verdica da histria nesse
planeta, ao passo que a histria to-somente uma fantasia". Por qu? Porque tanto
no perodo antigo, quanto no moderno, amaior parte da histria teria sido escrita
pelos vencedores, como objetivo de legitimar suasguerras.

VII

Agora debcemos de lado a primeira figura, a do historiador engolido pelo


passado que, atualmente, no parece mais gozar de um grande sucesso. Reflita
mos um momento sobre a do historiador vtima ou autor de manipulaes. Evi
dentemente, a literatura apenas exalta um sentimento desuspeita que atravessa a
opinio pblica. As vezes asuspeita tem aaparncia de uma nova f, que circula
nas salas universitrias, nos trens, na televiso eque anuncia: os americanos nunca
pousaram sobre a lua. Cristo no foi crucificado, Stonehenge uma farsa monta
da, etc. Convida-nos asuspeitar tambm das imagens, at das fotografias, outrora
tidas como uma garantia absoluta de verdade: otempo no qual se podia dizer que
as fotos no mentem est, hoje, longnquo (cf. Franois Hartog).
claro que no faltam razes para suspeitar de tudo ede todos. Ao longo do
sculo XX, a manipulao intencional edeliberada de testemunhos histricos tor
nou-se prtica corrente, quotidiana da luta poltica, ao ponto de descobrirem a
136 sabina loriga

carga de seduo da mentira: o mentiroso freqentemente mais convincentedo


que quem diz a verdade. Como escreveu Hannah Arendt em seu livro sobre as
origens do totalitarismo,"na Antigidade, os manipuladores da lgica embaraa
vam o filsofo, ao passo que os manipuladores dos fatos na nossa poca, incomo
dam o historiador. Pois a histria destruda em si mesma e sua compreenso,
fundada sobre o fato de ela ser obra dos homens e portanto poder ser compreen
dida por estes, est em perigo se os fatos no so mais observados como compo
nentes e parcelas do mundo passado e presente, mas utilizados enganosamente, a
fim de provar tal ou tal opinio".
Nas ltimas dcadas, compreendemos tambm que, infelizmente, as mani
pulaes no so uma prerrogativa exclusiva dos regimestotalitrios. Basta pescar
alguns exemplos entre lembranas recentes: os dirios de Hitler publicados pelo
semanrio alemo Stern (1983), os mhares de corpos estripados das fossas de
Timisoara (1989), o cormoro coberto de piche da Guerra do Golfo (1991), a irm
Lcia violada e engravidada pelos guias Brancas srvios (1994), a captura e a
liberao da soldada Jessica Lynch no Iraque (2003), as falsas memrias do Gene
ral Carlos Prats Gonzlez no Chile (2005). . . Todas essas imposturas, uma aps a
outra, reforaram o ceticismo. O fato de que todos os episdios foram desmasca
rados, que sua falsidade tenha sido provada,poderia nos tranqilizar. No o caso.
Ao contrrio, cada denncia reacende a suspeita, a sensao de viver num mun
do de mentiras, de aparncias, de enganaes.
A propagao da incredulidade, que nos conduz a protestar imediatamente
"isso eu no posso engolir", diz particularmente respeito ao passado. Diante dos
testemunhos histricos, estamos sempre prontos a insinuar a suspeita, a reivindi
car o direito de no acreditar mais. Quem sabe se verdade? Talvez trate-se de
uma impostura, talvez o testemunho tenha sido falsificado, talvez haja um objeti
vo poltico por trs. . . E assim por diante. Estamos s voltas com um ceticismo
ordinrio, quase automtico, baseado na idia (ou talvez mais apropriadamente
no esteretipo) segundo a qual a histria sempre foi e ser escrita pelos vencedo
res. Encontram-se os vestgios dessa postura nos jornais: a histria manipulada, a
histria oculta, os tabus da histria, o que os historiadores esconderam de voc, e
assim por diante. Resta-nos uma nica atitude: a de Talleyrand, que se divertia
afirmando que "no h nada que se arranje mais facilmente do que os fatos".
Esse fenmeno ainda mais interessante porque, ao mesmo tempo, o ato
de testemunhar e de lembrar-se adquiriu um valor quasesagrado. Como o escre
veu Elie Wiesel "se os gregos inventaram a tragdia, os romanos a correspondn
cia e o Renascimento o soneto, nossa gerao inventou um novo gnero literrio,
o testemunho" (cit. por Ren Dulong). A maioria das guerras recentes (da ex-Iu-
goslvia a Ruanda) foram tambm guerras de memria, perpetradas em nome do
passado. A memria alis concebida, como o mostra o caso da frica do Sul,
como uma condio sine qua non para a paz, uma experincia catrtica indispen
svel para a reconciliao, o que uma idia recente. Embora os parlamentos rei
vindiquem cada vez mais uma funo historiogrfica: a assemblia nacional fran
cesa adotou, em 1998, uma proposta de lei sobre a memria do genocdio armnio
a imagem do historiador, entre erudioe impostura 137

e, h alguns meses, um outro sobre a memria da escravido (cf. Franois Hartog


e Jacques Revel). Quem sabe? Talvez seja justamente porque a verdade histrica
tornou-se to frgil, que temos cada vez mais necessidade de fix-la, grav-la de
maneira definitiva, como uma verdade institucional, indiscutvel e intocvel.

VIII

Assim, cada vez mais difcil encontrar algum que ainda confie no traba
lho do historiador: quantas pessoas acreditam mais num livro de histria do que
num romance ou num filme? Alis, ns historiadores tambm temos dificuldade
em ter confiana em ns mesmos. Poderia ser diferente?
Um dos temas que dominaram o sculo XX diz respeito justamente infi
nita fragilidade da memria, sua propenso a esquecer ou pelo menos amodifi
car a hierarquia das lembranas. A memria infiel: amanh ela apagar o que
hoje nos parece fundamental e exaltar um detalhe intil. tambm incoerente
econtraditria, como o mostra a exploso extraordinria de memrias biogrfi
cas e locais, que ocorreu nas ltimas dcadas.
Outro ponto crtico diz respeito ligao do historiador com o seu presente.
De fato esse tema, longe de ser novo, tornou-se mais imperativo. J em 1897, Henri
Pirenne escrevia "a maneira de encarar a histria imposta ao historiador pelo
seu tempo. [. . .] Cada poca refaz a sua histria, a transpe de certa forma num
tom que lhe seja apropriado. Ohistoriador dominado, contra asua vontade, pe
las idias religiosas, filosficas, polticas que circulam em torno dele". Trinta anos
mais tarde, o historiador americano Charles Geard declarava no congresso da
American Historical Association: "cada historiador produto de sua poca, e sua
obra reflete oesprito do tempo, de sua nao, de sua raa, de seu grupo ede sua
classe. [. . .] Cada historiador sabe que seus colegas foram influenciados na sele
o ena ordenao da documentao por suas inclinaes, preconceitos, crenas,
sentimentos, educao e experincia, sobretudo social e econmica .
Talvez estejamos presos num impasse. Se a memria to infiel ese somos
inevitavelmente escravos do nosso presente, como podemos prometer reencon
trar"o passado, ou pelo menosalguns pedaos?

IX

Alguns historiadores, sobretudo nos pases anglo-saxes, decidiram entre


gar-se onda de ceticismo. Hayden White foi um dos primeiros aindicar ocami
nho. Aps haver evocado aindiscutvel opacidade do passado, ressaltou os aspectos
retricos da escrita da histria e definiu a histria como um gnero especfico da
fico narrativa, a ser avaliada de acordo com os critrios da crtica literria. Por
sua vez, David Harlan comparou o passado aMoby Dick: a brancura da baleia
utilizada como uma metfora do cartertranscendente e incompreensvel da rea
lidade histrica. Como ocapito Achab, ohistoriador estaria diante de um animal
muito poderoso e mau: restando-lhe apenas sucumbir. Simon Schama escreveu
138 sabinaloriga

um livro com um ttulo chamativo, Dead Certainties, que explica que a verdade,
longe de poder ser descoberta, pode apenas ser construda. A saber: para alm da
narrativa, no h nenhuma realidade, todas as reconstrues se valem e o conheci
mento histrico escapa a toda verificao. Franklin R. Ankersmit tambm afirmou
que os critrios de verdade e falsidade no podem ser aplicados s representaes
do passado: "Para o ps-moderno, as certezas cientficas sobre as quais os moder
nos sempre construram [suas interpretaes] so apenas variaes do paradoxo
do mentiroso. A saber, do paradoxo do cretense, que diz que todos os cretenses
mentem". Nessa perspectiva, o historiador no est diante do passado, mas de suas
interpretaes: "a distino usual entre a linguagem e a realidade perde sua razo
de ser\ A discusso historiogrfica pode referir-se apenas ao estilo da narrao,
pois o contedo no mais do que um derivado do estilo.
A partir da, h toda uma srie de comparaes ou contaminaes discut
veis entre a narrativa literria e a narrativa histrica, entre ofato e afico, entre o
conhecimento e ojogo. O resultado dessas diversas contaminaes sempre o mes
mo. Em todo caso, afirma-se que, longe de remeter ao passado, a verdade histri
ca fruto do presente do historiador, de sua condio atual.
pior que um impasse. Estamos diante de um precipcio. Se a narrativa
histrica possui o mesmo estatuto que o romance, se se trata apenas de um jogo,
se a realidade se reduz a uma questo de palavras, como levantar a guarda contra
osgrandes mentirosos, osassassinos da memria (a comear pelos negacionistas)?
No tratarei desse ponto, j aprofundado vrias vezes por Arnaldo Momigliano,
PierreVidal-Naquet e Cario Ginzburg. Tambm no me alongarei sobre o fato de
que a notciada opacidade do passado no realmente um furo jornalstico: nos
sos predecessores no eram to ingnuos quanto s vezes pensamos. Masgostaria
de ressaltar a maneira pela qual essa notcia foi acolhida, porque tenho a impres
so de que, mais do que raiva e desespero, ela suscita entusiasmo, euforia, alvio.
Como se se pensasse: enfim livres! Livres do passado? Como se o historiador pu
desse agora dizer o que bem entende: de todo o modo o passado no pode opor
nenhuma resistncia a seus desejos interpretativos.

A esse respeito, parece-me importante ressaltar a profunda diferena que


existe entre o ceticismo comum de hoje e a grande tradio ctica, para a qual a
dvida e at a incredulidade esto na base de toda a sabedoria. Todos os textos
histricos de Voltaire nos incentivam a duvidar de tudo o que prodigioso, que
parece exagerado, do que no possui verossimilhana moral. At mesmo das tes
temunhas oculares, quando afirmam coisas que o senso comum desmente. O es
prito filosfico deve passar pelo crivo da documentao do passado, a fim de des
truir os preconceitos, calar os mexericos, as calnias e os rumores, desmentir os
erros oficiais consagrados pela tradio.
Estabelecidas essas premissas, poderamos nos perguntar quais teriam sido
as reaes de Voltaire diante dos eventos inacreditveis do sculo XX. Mas no
a imagem do historiador,entre erudioe impostura 139

me alongarei nesse ponto, pelo menos no de maneira direta. O que gostaria de


ressaltar queseobservamos bem, sua incredulidade possui limites precisos. Zom
ba de "todos esses pequenos fatos obscuros e romanescos, escritos por homens
obscuros no fundo de alguma provncia ignorante e brbara". Mas reafirma sim
ples e abertamente sua prpria confiana nos "eventos atestados pelos registros
ptblicos; pelo consentimento dos autores contemporneos, que vivem na capital,
esclarecidos uns pelos outros, e escrevendo sob osolhos dos dirigentes da nao .
Afirma duvidar dos detalhes, mas acreditar nos principais fatos. "De que fatos po
demos ser instrudos na histria desse mundo? Dos grandes acontecimentos p
blicos que ningum nunca contestou. Csar foi vencedor em Farslia e assassina
do no Senado. Maom II tomou Constantinopla. Uma parte dos cidados de Paris
massacrou a outra, na noite de So Bartolomeu. No se pode duvidar disso; mas
quempode penetrar os detalhes? Percebe-se de longe a cor dominante;as nuanas
necessariamente nos escapam".
Em suma, parece-me que, para alm de todas as suas inventivas contra a
ridcula credulidade, Voltaire nos oferece ao menos uma slida certeza: a dvida
uma arma do conhecimento, que visa estabelecer a verdade, a marcar a frontei
ra entre afbula eahistria. Consideraes semelhantes j haviam sido formula
das, ao longo do sculo passado, durante a querela dos Antigos edos Modernos, e
foram em seguida partilhados, nas dcadas seguintes, por autores muito distintos,
entre osquais alguns sentiam por Voltaire umafranca e total antipatia.
Penso, por exemplo, nos dois grandes cticos do sculo XIX, Thomas Carlyle
eLeo Tolsti que, de tanto duvidar, soobraram no desespero. "Podemos dizer
com razo que, de nossa Histria, aparte mais importante est incontornavelmen-
te perdida", escreve Carlyle. Por sua vez, Tolsti declara que os historiadores com
preendem apenas uma parte nfima dos acontecimentos do passado (por volta de
0,01%!). Com Carlyle eTolsti, a dvida muda de qualidade afetiva; torna-se rne-
nos otimista, perde amaior parte de seu acento sarcstico eganha em interioridade.
No entanto, permanece voltada verdade. ,, .
Bem menos desesperado que Carlyle eTolsti, Charles S. Peirce define advi
da como um estado de inquietude ede insatisfao, que se procura evitar, e
como um estado de calma ede satisfao que se gostaria de manter indefinida
mente. No seu caso, como no de William James, advida possui uma escai^o
temporal precisa. Longe de ser um estado definitivo do esprito, tem incio efim:
oindivduo que duvida deseja sempre sair de seu estado para retornar <^ena.
Portanto, h um combate, que comea com advida ese encerra com orestabeleci
mento da opinio bem fundada.
Esse gnero de dvida impregnou profundamente a reflexo histrica. E,
em diversas ocasies, permitiu osurgimento de verdades desconfortveis. F^i o
que ocorreu, durante osculo XV, quando Lorenzo Valia mostrou afalsidade da
doao de Constantino. Ou ainda, quatro sculos mais tarde, na Frana, com
Arthur Giry eGabriel Monod que, graas s suas dvidas, puderam provar a ino
cncia do capito do estado-maior Alfred Dreyfus. H quarenta anos, o mesmo
gnero de dvida nutriu a pesquisa de Pierre Vidal-Naquet sobre as torturas e os
140 sabinaloriga

massacres cometidos pelo Estado francs durante a guerra da Arglia. Por isso o
historiador, se valoriza sua integridade, deve cultivar a dvida e recusar a aceita
o de toda idia fundada na crena.

XI

Mas, hoje em dia, estamos diante de um outro gnero de ceticismo, ordin


rio e preguioso. E no fcil reagir corretamente a ele. Algumas vezes o debate
historiogrfico suscitado pelo lingiiistic turn foi bastante violento. Em 1990, pou
co tempo antes de sua morte, o historiador ingls GeofffeyElton pediu aos histo
riadores para "acabar com a tagarelice e voltar ao essencial": ao essencial, a saber
ad fontes, s fontes. Aps ter acusado as cincias sociais de ter corrompido a
historiografia, ressaltou a natureza objetiva da histria, pois "o momento em que
alguma coisa se passou e continua a ser totalmente independente do observa
dor". O tom da interveno de Elton sem dvida por demais peremptrio. Mas
creio que, embora poucos historiadores compartilhem de suas acusaes em rela
o s cincias sociais, suas palavras so a expresso de uma atitude nesses ter
mos: a nica coisa importante restabelecer a noo de verdade e a lgica da pro
va, reafirmar que h apenas um mtodo histrico, baseado nas fontes, que seja
capaz de atestar a verdade do passado. E isso a qualquer preo. Mesmo que para
isso seja preciso negar a natureza interpretativa da histria e se contentar com
uma imagem ingnua, em um s bloco, da objetividade histrica.
Diante dessas atitudes extremas, parece-me importante salvaguardar dois
pontos extremamente importantes.
De incio, a conscincia de que a verdade histrica algo menos unvoco e
mais ambguo do que Elton e os ps-modernos sugerem. Consiste emestabelecer
os fatos, freqentemente descontnuos e heterogneos, a torn-los inteligveis, a
integr-los em uma totalidade significante. Quero dizer que a verdade dos fatos
nem sempre coincide com o seu significado: a primeira descreve um pensamen
to, uma sensao, um gesto, um ato, ao passo que a segunda esclarece a relao
existente entre esse pensamento, sensao, gesto, ato e a vida histrica, individual
e coletiva. Ora, a histria precisa dos dois, tanto da verdade dos fatos, quanto do
seu significado pois, como Goethe o escreveu, um fato de nossa vida no vale na
medida em que verdadeiro, mas na medida em quesignifica algo.
Em segundo lugar, a convico de que a histria um discurso sobre a rea
lidade, mas tambm uma narrativa que utiliza os recursos da fico: insere o
passado em uma trama, cria continuidade entre traos descontnuos desse passa
do, s vezes pe em cena atores fictcios e no pode evitar a utilizao da metfora
(cf.Roger Chartier e Krzysztof Pomian).

XII

Nessa perspectiva, no se trata de opor o objetivo e o subjetivo. O historia


dor no deve procurar apagar o seu eu (como pretendem os partidrios da objeti-
a imagem do historiador, entre erudio e impostura 141

vidade histrica), nem gozar de seu eu (como os historiadores ps-modernos pa


recem fazer, sob o pretexto da opacidade do passado), mastentar conhec-lo. Como
dizia Johann Gustav Droysen, o historiador deve trabalhar sobre si mesmo. "So
mos to pouco livres no nossosaber: ele nos possui, mas do que ns o possumos.
apenas na reflexo que podemos nos reconhecer como mediadores e nos sepa
rar do saber [do presente] [. . .] Somenteassim podemos comear a ser livres em
ns mesmos". Reencontramos essa convico reflexiva em Paul Ricoeur. Para ele,
que define a oposio entre o objetivo e o subjetivo como uma oposio deescola,
o objetivo do historiador no deve ser constituir uma histria objetiva, mas uma
histria nutrida por uma boa subjetividade. Dessa maneira, a subjetividade no
caracterizada como um estado ao qual preciso render-se, nem como uma graa
divina, mas como um percurso da pesquisa. O que implica tambm quea tenso
rumo verdade no desmentida pelo carter temporrio e interminvel do co
nhecimento histrico.
somente por esse trabalho, esse esforo de ultrapassar a si mesmo, que o
historiador pode distanciar-se do presente, deixar de pertencer a ele. E apenas
dessa maneira, renunciando ptria do presente, quese pode chegar a encontrar
alguns pedaos do passado. Como disse Siegfried Kracauer, aidia histrica no
produto do eu do historiador, mas "o resultado de um processo de seleo, no qual
o seu eu funciona como uma vareta de feiticeiro; no se trata de uma projeo
em relao ao exterior, mas de uma descoberta". Por isso a empreitada incerta e
surpreendente, por isso, suscita maravilha mesmo no historiador que a formula.
A TRANSFIGURAO DA F RELIGIOSA NA CRENA
REVOLUCIONRIA:Mistrio-Bufo, DE VLADMIR MAIAKVSKI,
E A CRIAO DA HISTRIA'^

Rosngela Patriota
Universidade Federal de Uberlndia

Ressuscite-me,
ainda que apenas,
porque fui um poeta.
VladImir Maiakvski

Algumas notassobreVladmir Maiakvski eo Cubo-Futurismo


O Gigante de Blusa Amarela! Aquele jovem corpulento, em 1911, ingressou
na Escola de Belas Artes, momento de imensa renovao das artes plsticas na
Rssia, no qual poetas se interessavam por pintura, enquanto pintores, como
Malevitch e Rozanova, escreviam versos.

'Embora no tenha desenvolvido nenhum projeto especfico sobre a dramaturgia de Vladmir


Maiakvski, o seu trabalho sempre me interessou basicamente por dois aspectos. O primeiro, eviden
temente, de natureza artstica, tanto em relao poesia quanto a textos teatrais. O segundo, por sua
vez, decorre do fato de que em reflexes e estudos acerca da arte engajada e, em particular, do teatro
comprometido politicamente a obra e a atuao poltica de Maiakvski sempre foram centrais. No
que se refere atividade docente, ao ministrar a disciplina Histria Contempornea, o tema da Re
voluo Russa sempre me pareceu muito mais instigante quando revisitado a partir da figura do poeta
russo. Estes encontros com a potica de Maiakvski foram essenciais e esto presentes em vrios estu
dos meus que articulam o dilogo Histria e Teatro. Especificamente sobre ele, escrevi em 1994 o ar
tigo intitulado Histria e Teatro: Dilemas Estticos e Polticos de Vladimir Maiakvski (Histria, So
Paulo, 13, pp. 185-96, 1994). A interlocuo teve continuidade tambm em meu trabalho como orien
tadora de Juscelino Batista Ribeiro que, em 2001, defendeu a dissertao: Esttica e Poltica na
Dratnaturgia de Vladimir Maiakvski. Mestrado em Histria Social. Uberlndia: Instituto de Histria,
Universidade Federal de Uberlndia.
Em meio a essas referncias, o texto aqui apresentado foi confeccionado especialmente para a
mesa-redonda "Imagens e Narrativas do Sagrado: Transfiguraes do Real", que integrou a progra
mao do 3. Simpsio de Histria Cultural, ocorrido em Florianpolis (SC), no perodo de 18 a 22 de
setembro de 2006, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O estmulo a esta reflexo
deveu-se, ao lado das experincias anteriores, ousadia da Prof." Sandra Jatahy Pesavento, coordena-
142
mistrio-bufo, demaiakvski, ea recriao dahistria 143

Nessa mesma Escola, Maiakvski conheceu o poeta David Burliuk, com


quem, em 1912, escreveu o manifesto Uma Bofetada no Gosto do Pblico. Nele, o
passado da literatura russa era condenado e, ao mesmo tempo, afirmava-se o di
reito dos novos poetas emaumentar o vocabulrio com palavras arbitrrias e suas
derivaes.

A chuva lgubre olha de travs.


Atravs
da gra
de magra.
os fios eltricos da idia frrea
colcho de penas.
Apenas
as pernas
das estrelas ascendentes
apiam nele facilmente os ps.'

Este poema, que na avaliao de Boris Schnaidermann utiliza a rima em


ecosy foi editado em Uma Bofetada e tornou pblica a associao definitiva e
Vladmir Maiakvski aos cubo-futuristas.-
Foram tempos de grande agitao. Instigantes discusses ambientavam os
cafs literrios. Poemas eram lidos, manifestos acaloradamente debatidos. Os -
turistas russos, sempre duramente criticados pelos acadmicos, tinham o apoio
dos estudantes que com eles se identificavam.
Esse mpeto, voltado para a busca de novas formas e temas poticos, mar
cou tambm aatuao de Maiakvski no processo revolucionrio de 1917> prin
cipalmente com aexpectativa de que a Rssia seria libertada do academicismo e
da velha retrica.

dora do GT Nacional de Histria Cultural. Ao propor que eu integrasse a aludida


possibilitou-me retornar s peas de Maiakvski e articular o texto teatral Mistno-iSujo p
bblicas relativas ao Gnesis, no Velho Testamento. . vida e
' Fernando Peixoto. Maiakvski. 3.'' ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p-
^"Os cubo-futuristas surgiram em abril de 1910, com oalmanaque Sadk ^^p^'na'ruro^
rbitros), redigido por Vielmir Khlibnikov, David e Nicolai Burliuk, Vassli
Aprincpio, o grupo denominou-se Guilia, do antigo nome da regio em volta e ' .
viveram os irmos Burliuk. Este nome clssico, que evoca uma amplido ilimitada,
rebanhos e de tmulos, batida pelos ventos do Ponto Euxino, adequava-se perfeitamen e
picas de Khlibnikov, Assim, desde o incio, os cubo-fturistas, que Khlibnikov quis re a i
a palavra russa budietliane {de budu, futuro de bit = ser), revelaram o seu amor p
civilizaes remotas e pelos fatos mitolgicos. . rr,r,nA-iilr.
"O catlogo dos heris desse movimento abre-se com David Burliuk, enco^a jnnlQiva'
"pai do futurismo proletrio russo", como ele mesmo se definiu, ndole tumu uosa e p
organizador infatigvel, sempre procura de novos talentos, de gnios a serem descobertos,
como dizia Assiiev, "uma mistura de gosto estranho e uma espcie de magma ^
apagadas" (ngelo Maria Ripellino. Maiakvski e o Teatro de Vanguarda. . e . ao u .
Perspectiva, 1986, p. 15.
144 rosangela patriota

Para isso, desde o primeiro instante, elaborou poemas, peas e agitaes, a


fim de que um novo projeto esttico^ encontrasse espao para florescer em meio
s relaes sociais que se instituiriam com a chegada dos bolcheviques ao poder.
Maiakvski foi um dos mais inquietos representantes do denominado Outubro
Teatral, que, em linhas gerais, congregava as seguintes expectativas:
[. . .] quebrar o espao fechado da cena e do teatro tradicional para subs
tituir pelo espao aberto das praas e das ruas; o teatro no mais um mun
do separado do vivido, da histria, da poltica, a sua expresso e a sua trans
formao simblica; trata-se de criar uma arte colectiva que no seja mais
uma criao individual, mas a expresso de todos; a separao actor/espec-
tador deixa de existir. O actor no um profissional. Os actores da histria e
da cena so os soldados, operrios e os camponeses. O espectador pertence
multido, e o actor no mais do que um deles. o smbolo individualiza
do do heri coletivo: o espao teatral idntico ao espao da cidade e o tem
po da aco o da histria."*

Os cubo-fituristas acreditavam que, no campo esttico, a revoluo contri


buiria com um olhar diferenciado sobre a arte e o artista, pois o advento de uma
outra ordem social e econmica propiciaria a emergncia de distintas formas de
expressar a cultura e o universo simblico daquele mundo a construir.
Naqueles dias futurismo e revoluo pareciam identificar-se, a novi
dade das formas coincidindo com a renovao poltica. Os artistas de van
guarda, que na runa dos velhos hbitos avistavam a chegada de uma ines
perada liberdade formal, consideravam o futurismo a nica tendncia capaz
de expressar o fermento da poca. Foram os cubo-futuristas os primeiros a
inculcar nas prprias obras o ritmo, os temas, os propsitos da revoluo:
sejam vistos o projeto deTtlin para um monumento Terceira Internacio
nal, a comdia Mistria-Bufe o poema 150.000.000 de Maiakvski, o drama
Stienka Rzin de Kaminski, os espetculos de Meyerhold. Por outro lado,
por vrias ramificaes, o futurismo penetrara por toda parte, e at o teatro
de Tarov, recorrendo aos cenrios fantasiosos de lakulov, cultivava, como
disse Maiakvski,"um adocicado futurismo para senhoras".^
Todavia, passado pouco mais de setenta anos, todas as promessas anuncia
das por aqueles jovens transformaram-se em uma experincia renegada sob os
mais diferentes aspectos. Com o fim da era Mikhail Gorbachov, o projeto de res
taurao, do que fora suprimido pelos bolcheviques, fragmentou a unidade forja
da pelas anexaes territoriais e por um Estado de excessiva centralizao e alto
poder de coero. Sobre este acontecimento, Franois Furet, no prefcio de seu
livro O Passado de uma Iluso, ponderou:
* Jean Michel Palmier. Lnine, a arte e a rcvoltio: ensaio sobre a esttica marxista. Lisboa;
Moraes, 1976, pp. 197-8, 3 v.
ngelo Maria Ripellino. Maiakvski e o Teatro de Vanguarda. 2.' ed. So Paulo: Perspectiva,
1986, p. 71.
mistrio-bufo, de maiakvski, e a recriao da histria 145

O fim da Revoluo Russa, ou o desaparecimento do Imprio Soviti


co, descobre uma tbula rasa sem relao com o que haviam deixado o fim
da Revoluo Francesa ou a queda do Imprio Napolenico. Oshomens de
Termidor festejaram a igualdade e o mundo burgus. Napoleo fora real
mente, durante todo o tempo, aquele conquistador insacivel, aquele ilusio
nista davitria, at a derrota que finalmente aniquilou todos osseus ganhos
de jogador de sorte. Porm, no dia em que tudo perdeu, ele deixava, na
Europa, um longo rastro de lembranas, de idias e de instituies, de que
at mesmo os inimigos se inspiravam para venc-lo. Na Frana, ele funda
mentara o Estado para os sculos vindouros. Lnin, pelo contrrio, no dei
xa herana. ARevoluo de Outubro fecha sua trajetria sem ser vencida no
campo de batalha, mas liquidando ela mesma tudo o que fez em seu pr
prio nome. No momento em que se desagrega, o Imprio Sovitico oferece
ocarter excepcional de ter sido uma superpotncia sem ter encarnado uma
civilizao.''

Com efeito, desapareceram as realizaes patrocinadas por um Estado que


no respeitou a diversidade cultural, poltica e religiosa da populao que a ele
estava submetida. Eesse acontecimento foi saudado como uma nova oportunida
de que oprocesso histrico dava aos que, durante tanto tempo, foram impedidos
de se manifestarem. Sob este aspecto, as contundentes crticas feitas s institui
es que ruram, de certa maneira, buscaram acertos de contas com o passado.
Vrias anlises foram feitas com base em interpretaes fundadas na linearidade
do processo e na necessidade histrica, que justificou trajetrias, bem como agen
tesvitoriosos e derrotados no embate poltico.
Todavia, neste debate ficou ausente o furor diante da possibilidade do inusi
tado, do totalmente novo, do nunca antes imaginado, que permitiu a utopia da
transformao revolucionria, pois quando os bolcheviques tomaram de assalto o
Estado russo em 1917 existiam mltiplas leituras, vrios projetos esignifica os
que apontavam uma inteno inovadora. Dentre eles, esteve afigura apaixonada
e apaixonante de Vladmir Maiakvski, um dos mais importantes poetas russos,
que se tornou o dramaturgo da Revoluo.
Maiakvski entregou-se ardorosamente tarefa de construir uma nova cu -
tura, forjar o homem novo que haveria de levar adiante oprojeto acalentado por
todos os que apostaram na transformao ena ousadia da mudana. Alm de pan-
de agitador poltico epoeta, ele deu significativas contribuies ao cinema, as ar
tes plsticas e especialmente ao teatro. Neste ltimo, atuou, escreveu esquetes e
confeccionou, pelo menos, trs peas que capturaram momentos distintos do pro
cesso revolucionrio: Mistrio-Bufo, OPercevejo eOs BanhosJ

" Franois Furct. O passado de uma iluso: ensaios sobre a idia comunista no sculo XX. So
Paulo: Siciliano, 1995, p. 10.
^Sobre este texto, consultar: Reni Chaves Cardoso S. Zacchi. Os Banhos: uma potica em cena.
Doutorado em Teoria Literria e Literatura Comparada. So Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas, Universidade de So Paulo. 1990.
146 rosangela patriota

Paixo Revolucionria e a Terra Prometida

Em cada uma das peas mencionadas esto as percepes de Maiakvski


para os primeiros anos da Revoluo, que foram desde a esperana anunciada em
Mistrio-Bufo desconfiana com a burocracia, que acabou por dominar comple
tamente os caminhos que os conduziriam at o futuro.
Nesse sentido, se em O Percevejo e Os Banhos a stira foi a estratgia utiliza
da para denunciar os burocratas, em Mistrio-Bufo^ a crena no futuro e no pro
cesso histrico, que levaria os despossudos do mundo a uma existncia mais jus
ta, assumiu um carter bblico, por intermdio da parbola e da referncia direta
a uma passagem presente em diferentes narrativas religiosas, mas que no Velho
Testamento se encontra no Gnesis: Corrupo da Humanidade O Dilvio
BnoDivina O Arco-ris.
A pea Mistrio-Bufo foi idealizada por Maiakvski em agosto de 1917. A
sua concretizao, porm, ocorreu somente no vero de 1918 para o primeiro ani
versrio da Revoluo de Outubro. Escrita em versos, o que a tornou um poema
dramtico, a sua proposio era celebrar o acontecimento revolucionrio como
marco inicial de uma nova era e da qual iria emergir o homem novo.
Entretanto, como este texto, sem abrir mo de pesquisas formais decorren
tes de uma permanente busca de inovao esttica, poderia estabelecer um dilo
go com as massas a quem,em ltima instncia, o trabalho seria dirigido?
Nesse momento, surge, com grande fora criativa, a origem cubo-futurista
de Vladmir Maiakvski, na articulaoentre o carter religioso da populao rus
sa e o tema da revoluo. Partindo do pressuposto de que o ato revolucionrio,
assim como a construo de uma nova ordem social , antes de qualquer de con
siderao, um ato def, o artista em Mistrio-Bufo elaborou uma parbola do re
nascer da humanidade tendo por matriz a aludida narrativa religiosa Corrupo
da Humanidade, Gnesis em um contedo laico.
O pico do texto religioso anuncia daseguinte forma o que est porvir: Aque
le, que tudo sabe e tudo v, padeceu por haver criado o homem e em um mo
mento de ira assim apresentou o seu desgnio:
Corrupo da Humanidade
5 O Senhor viu que a corrupo dos homens era grande sobre a terra, e que
todos os pensamentos do seu corao estavam continuamentevoltados para
o mal. 6 O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem sobre a terra, e teve
o seu corao ferido de ntima dor. 7 E disse: "Euexterminarei da superfcie
da terra o homem que criei, e com ele os animais, os rpteis e as aves dos
cus, porque eu me arrependo de os haver criado". 8 No, entretanto, en
controu graa aosolhos do Senhor.
Sobre este aspecto, consultar: Maurcio Tragtenberg. A Revoluo Russo. 3.' ed., So Paulo:
Atual, 1988.
mistrio-bufo, de maiakvski, e a recriao da histria 147

[. . .] 13 Ento Deus disse a No: "Eis chegado o fim de a criatura, eu o deci


di, pois eles encheram a terra de iniqidade. Eu vou extermin-los junta
mente com a terra. 14 Faze uma arca de madeira resinosa: dividi-la- em
compartimentos e a untars de betume por dentro e por fora, [. . .] 22 No
obedeceu, e fez tudo o que o Senhor lhe tinha ordenado.'

Acorrupo e a falta def so constataes das falhas humanas porseu Cria


dor que, como tal, por um fim, pois tudo o que nasce, perece. Contudo, mesmo
em sua infinita tristeza, Deus demonstra misericrdia e, por intermdio de No,
um novo pacto anunciado.
Maiakvski, porsua vez, toma o argumento da injustia e noprlogo apre
senta as evidncias justificadoras da luta:

PRLOGO
DOS SETE PARES IMPUROS

Por ns clamava a terra com som de canho urrante.


Por ns inchavam-se os campos, embriagados de sangue.
Estamos aqui,
expulsos das entranhas da terra
pela cesariana da guerra.
Estamos glorificando
a ti,
dia
de insurreies,
de rebelies,
de revolues
a ti
que passas, esmigalhando cabeas!
Do nosso segundo nascimento, o dia.
O mundo amadurece.
Acontece
ancora um navio ao longe,
solta fumaa
e, pelo espelho d'gua, foge,
por muito tempo voc respira afumaa das lendas baas,
era assim que a vida fiigia de ns at hoje.
Para ns foi preparado
o Evangelho, o Alcoro,
"O paraso perdido e rencontrado".

' Bblia sagrada. So Paulo: Ave Maria, 1959, p. 62. Traduo dos originais hebraico, aramaico
e grego, mediante verso francesa dos monges beneditinos de Maredsous (Blgica) pelo Centro
Bblico Catlico de So Paulo.
148 rosangela patriota

e outros
e outros
inmeros contos de fada.
Todos prometem a alegria do alm, inteligentes, espertos.
Aqui,
na terra queremos
viver nem acima,
nem abaixo
de todos estes pinheiros, casas, estradas, cavalos e ervas.
Enjoaram-nos as paixes de papel
deixem-nos comer o po vontade!
Enjoaram-nos as paixes de papel
deixem-nos nos viver com mulher de verdade!
L,
nos vestirios dos teatros
lantejoulas, a roupa fulgura
e capas mefstoflicas,
tudo que se pode achar!
Empenhava-se o alfaiate velho: no para nossas cinturas.
Ento,
que seja desajeitada
as roupas
mas nossa.

Agora nosso o lugar!


Hoje,
Sobre a poeira dos teatros.
Irrompe nosso rasgo:
"Tudo de novo!"
Pare e fique pasmo!
Pano, povo!'"

No lugarda ira do Senhor, a glorificao de um novo tempo estabelecido no


pela concesso do perdo, mas naluta pela felicidade terrena. No mais osparasos
anunciados pelas Escrituras Sagradas e sim uma existncia na qual a fraternidade
e a igualdade fossem as condutoras da realizao do quefora prometido.
Em relao ao aspecto formal, apesar de se estar diante de narrativas picas,
na passagem bblica, os acontecimentos so revelados medida que a fala do
narrador avana no tempo, isto , o leitor/ouvinte conhecer o desfecho das aes
quando a narrao for encerrada. J o prlogo de Maiakvski, semelhana da
tragdia clssica, anuncia ao espectador/leitor no s os motivos do ocorrido como
tambm revela os desdobramentos do processo vivido.

VIadimir Maiakvski. Mistrio-Bufo: um retrato herico, pico e satrico de nossa poca. Trad.
Dniitri Beliaev. So Paulo: Musa Editora, 1998, pp. 19-21.
mistrio-bufo, de maiakvski, e a recriao da histria 149

Com a inteno de demonstrar que as fbulas possuem distintas possibili


dades interpretativas, o poeta russo apropria-se da idia dos animais puros e dos
impuros para estabelecer a distino entre aqueles que so definidos pela profis
so e os que so apresentados pela nacionalidade e/ou situao social. Em outros
termos, o queseverifica pela composio dos grupos a separao entre trabalho
intelectual e trabalho manuaU base da organizao social que est para serdizima
da da terra pelo dilvio revolucionrio.

ATUAM
1. Sete pares puros. Negus, abissnio, raj indiano, pax turco, merca
dor valento russo, chins, persa bem-nutrido, francs gordo, aus
traliano com esposa, pope, oficial alemo, oficial italiano, america
no, estudante.
2. Sete pares impuros. Limpa-chamins, lanterneiro, chofer, costurei
ra, mineiro, carpinteiro, peo, criado, sapateiro, ferreiro, padeiro, la-
vadeira e esquims: pescador e caador."

medida que diferentes regies do planeta vo sendo inundadas, os sobre


viventes deslocam-se para o "claro da aurora boreal". As vtimas de tal aconteci
mento so os puros que, um aum, narram adestruio de suas casas, aperda de
seusbens e pases. A essasituao, os impuros respondem:

IMPUROS (juntos):
A errar pelo mundo
nosso povo acostumou-se
No somos de nao nenhuma
Trabalho nosso ptria nossa

No caso em questo, odilvio no atinge atodas as regies epopulaes de


maneira igual. Na verdade, a ira dos deserdados em relao aos que possuem
nao, propriedades efartura, pois aos trabalhadores (impuros) s lhes foi dada a
fora de trabalho epor meio dela que eles sobrevivem, independente da ptria e
do solo que habitam, porque asituao avencer internacional. Todavia, afora
da mudana, que se materializa teatralmente em elementos da natureza, avana
para o"claro da aurora boreal". Como fugir aisso? Aresposta vem em forma da
seguinte passagem do Velho Testamento:

O Dilvio

7 O Senhor disse a No: "Entra na arca, tu e toda a tua casa, porque te


reconheci justo diante dos meus olhos, no meio dessa gerao. 2 De

" Ibidem, p. 15.


'* Ibidem, p. 53.
150 rosangela patriota

todos OS animais puros tomars sete casais, machos e fmeas, e de to


dos os animais impuros tomars um casal, macho e fmea; 3 das aves
do cu igualmente sete casais, machos e fmeas, para que se conserve
a raa sobre a face de toda a terra. 4 Dentro de sete dias eu vou fazer
chover sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites, e exter
minarei da superfcie da terra todos os seres que eu fiz". 5 No fez tudo
o que o Senhor lhe tinha ordenado.'^

O acontecimento da Sagrada Escritura, nas palavras de Maiakvski, assim


descrito:

Retrocede. S o australiano permanece perto do globo com o dedo no


buraco.
No meio do alvoroo geral empoleira-se em paus de lenha o pope.
POPE:
Irmos!
Estamos perdendo o ltimo pezinho.
A ltima polegadaj foi inundada pela gua.

VOZES DOS IMPUROS:


Quem esse?
(falando baixo) Quem esse armrio de barba?
POPE:
Por quarenta noites e quarenta dias isto. ..
MERCADOR:
O Senhor elucidou-lhe lucidamente, no ?
ESTUDANTE:
Houve um precedente antes de Cristo.
A famosa aventura de No.'"

Contudo, o que fora harmonia e equilbrio na arca de No, na embarcao


dos puros e impuros, cedeu lugar ao conflito. No incio da viagem, os lugares fo
ram demarcados: aos puros coube a proa e aos impuros o poro, que seguiram a
determinao cantando as seguintes palavras:

IMPUROS:
No temos nada a perder! Mesmo se o dilvio nos levar ao fiindo.''

A conscincia de sua condio fez que os impuros se organizassem a fim de


garantir a sobrevivncia. Enquanto isso, na proa, os puros lamuriavam-se com

" Bblia sagrada, cit., p. 63.


i'' Vladimir Maiakvsld, op. cit., p. 67.
" Ibidem, p. 85.
mistrio-bufo, de maiakvski, e a recriao da histria 151

fome e sem saber se teriam foras para resistir. Diante de tal situao, os habitan
tes da proa refletem sobre as circunstncias:

ALEMO:
Senhores!
(fazendo discurso)Ns todos somos to puros.
Ser que para ns o suor derramar?
Vamos obrigar os impuros a para ns trabalhar.
ESTUDANTE:
Eu os obrigaria!
Mas isso no para mim
sou frgil, sombra!
E qualquer um deles medem sua altura ombro a ombro.
ITALIANO:
Deus nos livre de brigar!
No brigar,
mas enquanto aboletados eles
vo devorar o menu daqueles,
berrar e berrar,
ns vamos pegar e uma pra elesaprontar.
ALEMO:
Vamos eleger pra eles um tzar!
TODOS:
Para que um tzar?
(comsurpresa)
ALEMO:
Porque o tzar promulgar um manifesto-
todos os manjares pra mim, como se diz,
devemser entreguescom rapidez;
O tzar come,
e ns comemos
seus sditos fiis.

E assim foi feito! A teocracia estabeleceu-se com a proclamao do Negus


como tzar. Em nome de sua majestade, todas as iguarias foram confiscadas por
seus sditos. No entanto, o que seria um agradvel banquete dos puros no se
efetivou, pois Negus, emsuanova condio, devorou asiguarias.
Tal atitude provocou indignao entreos puros que conclamaram os impu
ros a participarem de uma assemblia.

MERCADOR:
Cidados, faam favor,para a assemblia!

Ibidem, pp. 91, 93.


152 rosangela patriota

(Aopadeiro) Cidado, o senhor a favor da repblica?


IMPUROS:
(em coro) Assemblia? Repblica? Que repblica?
FRANCS:
Parem!
A inteligentsia vai trocar em midos para o pblico.
(Ao estudante) Ei, senhor, inteligentsia!
A "INTELIGENTSIA" E O FRANCS SOBEM NA PONTE.
FRANCS:
Declaro aberta a assemblia.
(Ao estudante) A palavra sua.
ESTUDANTE:
Cidados!
Tem uma boca insuportvel aquele tzar!
VOZES:
verdade!
verdade, cidado orador democrata!
ESTUDANTE:
Tudo, juro, o maldito vai devorar!
VOZ:
verdade!
ESTUDANTE:
E ningum jamais vai conseguir se arrastar at o Ararat.
VOZES:
verdade!
verdade!
ESTUDANTE:
Basta!
Arranquem as correntes enferrujadas do despotismo!
RUMOR GERAL:
Abaixo,
abaixo o absolutismo!
MERCADOR:
O sanguezinho sugou,
(ao negus) O povo sacaneou. . .
FRANCS:
Ei voc,
(ao negus) alon zanfan pra gua! Chegou!
COM ESFOROS CONJUNTOS BALANAM O NEGUS E O JO
GAM NA GUA. A SEGUIR, OS PUROS DO AS MOS AOS IM
PUROS E DISPERSAM-SE CANTAROLANDO.
ITALIANO:
Camaradas!
(ao mineiro) Yocs no vo acreditar.
mistrio-bufoy de maiakvski, e a recriao da histria 153

Eu estou feliz, luminares


No h mais estas barreiras seculares.
[...]
FRANCS:
Ento, cidados basta,
(na ponte) divertiram-se vontade.
Vamosorganizar o poder democrtico de verdade
Cidados,
para que tudo isso seja rpido e sem demora,
eis que ns guarde, senhor, a alma do negus
eis que ns treze seremos
ministros e auxiliares de departamentos,
e vocs cidados da repblica democrtica,
vocs iro apanhar morsas, coser botas, cozer roscas.
Vocs tm prtica.
Objees no h/ Esto aceitos os argumentos?
[...]
(Aos impuros) a vocs proponho trabalhar agora.
(Aospuros) E ns as penas.
Trabalhem, t na hora,
carreguem tudo para c, s pencas
e ns tudo dividiremosem partes iguais, de verdade
a ltima camisa ser rasgada pela metade.'^

A Repblica instaurou-se. Todavia, a injustia manteve-se inalterada.

MINEIRO:
Camaradas!
Que que isso!
Antes tudo devorava uma s boca e agora o nosso um batalho em
borca
Aconteceu que a repblica, horra o mesmo tzar, s que de cem bo
cas.

FRANCS:
{esgravatandoosdentes)
Vocs esto esquentando demais.
Prometemos e dividimos em partes iguais:
para um a rosca, para outro o buraco dela.
A repblica democrtica por a que se revela.
MERCADOR:
Ento precisa algum ficar com as sementes
no a melancia para todos os dentes.

Vladimir Maiakvski, op. cit., pp. 119, 121, 123, 125, 127.
154 rosangela patriota

IMPUROS:
Ns vamos mostrar a voc a luta de classes! Em frente!'

E os puros foram atirados ao mar. Famintos e sem saber para onde deveriam
seguir, os impuros anseiam pelo monte Ararat.

8 Ora, Deus lembrou-se de No, e de todos os animais domsticos que


estavam com ele na arca. Fez soprar um vento forte sobre a terra, e as
guas baixaram. 2 As fontes do abismo fecharam-se, assim como as
barreiras dos cus e foram retidas as chuvas. 3 As guas retiraram-se
progressivamente da terra; e comearam a baixar depois de cento e cin
qenta dias. 4 No stimo ms, no dcimo-stimo dia do ms, a arca
parou sobre as montanhas do Ararat. [. . .] 13 No ano seiscentos e um,
no primeiro ms, no primeiro dia do ms, as guas se tinham secado
sobre a terra. No descobriu o teto da arca, olhou e viu que a superf
cie do solo estava seca. 14 No segundo ms, no vigsimo-quarto dia
do ms, a terra estava seca."

Assim, em meio fome e ao inslito, os impuros almejam pelo monte, pois


a partir de uma narrativaconhecida o medoe a insegurana poderiam ser contro
lados. Nestas circunstncias, vrios impuros tm a viso de algum caminhando
sobre as guas. Sem saber como explicar, alguns chegam a dizer que o Ararat est
se aproximando. Porm, a montanha no mvel, no h nenhuma embarcao,
alm da deles,sobre as guas. Ento, o que estariaocorrendo?

O MAIS COMUM DOS HOMENS ENTRA NO CONVS IMVEL.


Quem sou eu?
Eu sou lenhador
de um bosque denso
de pensamentos,
entrelaados por lianas de livreiros
das almas humanas hbil serralheiro,
lapidrio de calhaus dos coraes.
Eu na gua no afundo
no me queimo no fogo
da rebelio eterna sou o esprito inexorvel, o existir.
Com seus msculos
eu

cheguei
para me vestir.
Preparem suas colunas-corpos.

'* Vladimir Maiakvski, op. cit., p. 135.


" Bblia sagrada, cit, p. 64.
nistrio-bufo, de maiakvski, e a recriao da histria 155

Amontoem as bancas, as mquinas e os fornos.


Nas mquinas e nos fornos vou subir.
FAZEM UM MONTO
Esta cartada
a ltima no cassino do mundo. Quem ganha?
Ouam!
O novo sermo da montanha.
Ainda os troves no se esgotaram, no pararam de retumbar.
Montesde tempestade ainda no terminaram de estrondear
Oh, coitados daqueles trouxas! os que se agarraram
no farrapo navegante dessas arcasterrenas pra se salvar!
Ararats esperam?
Ararats no h.
Nenhum.
Foram sonhados.
E, se
a montanha no vai a Maom,
ento, ao diabo com ela!
No do paraso de Cristo que eu berro
onde os jejuadores chs sem acar lamberam
dosverdadeiros cus terrestres queeuberro.
Julguem vocs mesmos: o cu de Cristo
Ou dos evangelistas o cu faminto ?
No meu paraso os mveis as salas arrebentam.
De servios eltricos o aposento luxuoso.
L o doce trabalho no caleja as mos.
O trabalho floresce como rosa
na palma da mo.

Aquia vida toda trabalha dura a experincia do hortelo -


estufa de vidro, aterro de estrume, tudo em vo
mas

nas razes de fncho, no meu pas


seis vezes por ano cresceriam abacaxis.
TODOS (em coro):
Ns todos iremos!
O que temos a perder, agora!
Masser que vo deixarentrar nossahoste pecadora?
HOMEM:
Meu paraso para todos,
exceto para os pobres de esprito
de tantas quaresmas inchados como a lua gigante.
mais fcil um camelo passar de uma agulha o buraco estreito,
Do que chegar a mim tal elefante.
156 rosangela patriota

At mim
quem cravou tranqilamente o faco
e deixou o corpo do inimigo com uma cano!
[...]
EM CORO:
Mesmo pra l ns iremos
E no recuaremos.
Conduza-nos!
O caminho, onde acharemos?
HOMEM:
Onde?
De profetas o olho despreguem,
explodam tudo o que veneravam e veneram,
E ela, a prometida, estar bem perto
bem aqui!
A palavra de vocs. Eu silencio.
Sim.
DESAPARECE. PERPLEXIDADE NO CONVS.^

Sozinhos, como barco deriva, semprofetas a guiar, os impuros continuam


a buscar a Terra Prometida. Nesta peregrinao, chegam ao Inferno e so recebi
dos por Belzebu e dois diabos jovens. Diante da calma a encontrada, os impuros
decidem seguir viagem rumo ao Paraso, mas so impedidos. Porm, com as ex
perincias de sofrimentos acumuladas naTerra, osperegrinos zombam de Belzebu
dada a ingenuidade dos martrios do Inferno, tanto que para provara sinceridade
de seus sentimentos, comeam a relatar as condies de trabalho e de vida a que
estavamsubmetidos. Os diabos, ao sentirem calafrios pelo que ouvem, convidam
os visitantes a seguirem na direo do Paraso.
No Paraso, so recebidos por Matusalm que imediatamente os acolhe, con-
vidando-os a compartilharem a mesa e a refeio, fatias de nuvenzinhas. Apesar
de toda calmaria, no h cadeiras ondepoderiam descansar seus corpos cansados,
no h alimentos que saciariam a fome. Ento, a que concluso chegaram?

IMPUROS:
Esperamos por vocs, malditos.
Morrendo resignadamente.
Se as pessoassoubessemque era issoque teriam pela frente!
L ns mesmos temos,
destes parasos,
em pencas.
[...]
IMPUROS:

Vladimir Maiakvski, op. cit., pp. 159, 161, 163, 165, 167, 169.
mistrio-bufo, de maiakvski, e a recriao da histria 157

Que chato aqui com vocs.


Ah, que chatice danada!
MATUSALM:
Fazero qu, esse o regimepor aqui.
PEO:
Vamos Prometida!
Atrs do paraso procuraremos.
Marchem!
O paraso com passes firmes revolveremos.
CORO:
Acharemos!
Mesmo que tenhamos que revolver todo o universo!^'

E na busca da Terra Prometida continuaram os impuros. Depois de tanto


andarem, chegaram novamente terra. Porm, tudo estava muito diferente da re
cordao que tinham das cidades: lugar desofrimento e penria. Como saber sea
ela haviam chegado? Como reconhecer o compromisso com um novo tempo e
novas aspiraes? Neste momento, o poeta, mais uma vez, recorda o Evangelho e
um dos smbolos do compromisso deDeus para com os homens:

O Arco-ris

8 Disse tambm Deus a No e a seus filhos: 9 "Eu vou fazer uma ali
ana convosco e com vossa posteridade, 10assim como com todos os
seres vivos que esto convosco: as aves, os animais domsticos, todos
os animais selvagens que esto convosco, desde todos aqueles que sa
ram da arca at todo o animal da terra. 11 Eu fao esta aliana convos
co: nenhuma criatura ser mais destruda pelas guas do dilvio, e no
haver mais dilvio paradevastar a terra. 12 Deus disse: "Eis o sinal da
aliana que eu fao convosco e com todos os seres vivos que vos cer
cam, por todas as geraes futuras: 13 Ponho o meu arco nas nuvens,
para que ele seja o sinal da aliana entre mim e a terra. 14 Quando eu
tiver coberto o cu de nuvens, o meu arco aparecer nas nuvens. 15 e
Eu me lembrarei da aliana que fiz convosco e com todo o ser vivo de
todas a espcie, e as guas no causaro mais dilvio que extermine
toda a criatura. 16 Quando eu vir o arco nas nuvens, eu me lembrarei
da alianaeterna estabelecida entre Deus e todos os seresvivosde toda
a espcie que esto sobre a terra." 17 Dirigindo-se a No, Deus acres
centou: "Este o sinal da aliana que fao entre mim e todas as cria
turas que esto sobre a terra".^^

Ibidem, pp. 217, 219, 223, 227.


" Bblia sagrada, cit., p. 65.
158 rosangela patriota

O arco-ris, smbolo de uma nova era, marca o renascer que, para os impu
ros, assim se manifesta;

O PORTO ABRE-SE, E REVELA-SE A CIDADE. MAS QUE CIDA


DE! EMPILHAM-SE NO CU ESCANCARADOS COLOSSOS DE
FBRICAS E APARTAMENTOS TRANSPARENTES. CINGIDOS
PELO ARCO-RIS, H TRENS, BONDES E AUTOMVEIS, E NO
MEIO UM JARDIM DE ESTRELAS E LUAS, COROADO POR UMA
RADIANTE COROA DE SOL. DAS VITRINES SAEM AS MELHO
RES COISAS CHEFIADAS PELO PO E PELO SAL SE DIRIGINDO
AO PORTO.
TODAS AS COISAS:
Perdoe, operrio!
Operrio, perdoe!
Do rublo escravas,
escravas de escravocrata
fomos.
Obrigou-nos a ficarmos acorrentadas, ces-de-guarda
Coisa cara a cara braba, eu vigiavaos balces
nas janelas arreganhava os dentes dos clares.
Os tentculos dos mercadoresdas lojasse lanavam.
Com raiva o corao dos mercados palpitava!
A revoluo,
santa lavadeira,
com sabo
toda a sujeira da face da terra tirou.
Para vocs,
enquanto vagueavam nas alturas, sumidos
o mundo abiudo
floresceu e secou!
Peguem o que seu.^'

A F como Instrumento da Luta Poltica

Viadmir Maiakvski reelaborou a parbola bblica na qual a corrupo da


humanidade foi punida por Deus com o Dilvio, tendo em vista construir uma
nova parbola que, estruturada a partir da anterior, fosse capaz de estabelecer a
mediao entre a cultura religiosa da populao russa e o processo revolucion
rio de I9I7, pois este necessitava no s de aceitao, mas de apoio entusiasmado
das massas para que elas no sucumbissem s investidas da contra-revoluo, ma
terializada nas aes do Exrcito Branco.
Para tanto, a quebra de conduta estabelecida no Evangelho degenerao
dos costumes, desrespeito s leis de Deus, inveja, cobia, orgulho, etc. foi subs-
" Vladimir Maiakvski, op. cit., pp. 245, 253.
mistrio-bufo, de maakvski, e a recriao da histria 159

tituda pela explorao do capital sobre o trabalho, smbolo maior da desumani-


dade sobre a terra. Com a inteno de expor didaticamente o que seria o processo
revolucionrio e suas motivaes, a pea coloca no centro dos embates o proble
ma da fome e o controle sobre os alimentos. Estes, embora produzidos pelos im
puros, ficaram, inicialmente, sob a responsabilidade do tzar que, por no saber
dividir os privilgios foi destitudo. Em seu lugar surgiu a Repblica que, mesmo
anunciando princpios democrticos, manteve a distino social entre trabalha
dores intelectuais e manuais. Nessadiviso,coube aos primeiros estabelecer a ma
neira pela qual a sociedade funcionaria, assim como o que deveria ser resguarda
do a cada classe.
Mais uma vez a injustia se fez presente e, com ela, um conjunto de expli
caes que justificaram tais procedimentos, at o instante em que os impuros,
que foram anteriormente chamados pelos puros para destiturem o tzar, reivindi
caram para si a tarefa de acabar com a explorao que recaia sobre eles. Dessa
maneira, ao apresentar os conflitos de interesses dentro da arca, que os livrou do
dilvio, Maiakvski exps as etapas necessrias para o desencadeamento do pro
cesso revolucionrio.
Para construir tal narrativa, o dramaturgo elaborou personagens destitudos
de individualidadese de nuanas afetivas e emocionais. Ao passo que os impuros
representavam categorias de trabalho, os puros personificavam pases, tradies e
nacionalismos. Em outros termos, optou pela coisificao do indivduo e isso, sem
dvida, em termos narrativos deu maior eficincia exposio no de dramas
individuais, mas histricos.
No que diz respeito estrutura dramtica, por intermdio do gnero pico,
no foi dada ao espectador/leitor a perspectiva de se envolver com nenhum con
flito dramtico organizado em torno de personagensantagonistas e protagonistas,
pois o conflito que estabelece as situaes no palco anterior ao prprio texto, a
saber: a contradio histrica entre capital e trabalho. Por esse motivo, as etapas,
que deveriam ser superadas, estavam solidamente definidas Absolutismo, Ca
pitalismo, Socialismo porque o passado era um processo encerrado e as justi
ficativas que explicavam comportamentos e escolhas j estavam estabelecidas.
No entanto, cumpridas as etapas necessrias, quais seriam os prximos pas
sos em direo ao futuro?
Nesse momento, por mais que Maiakvski estivesse prximo do Partido
Bolchevique e de suas lideranas, o futuro apresentava-se em aberto, isto , no
haveria profetas a guiarem, nem profecias a serem cumpridas. Pelo contrrio, ca
beria aosprotagonistas investigarem, questionarem e fazerem suasopes.
Todavia, mesmo com todas as buscas, ao futuro estava destinado uma socie
dade mais justa e, por conseqncia, mais humanizada. Esta certeza era to defi
nitivaque, por exemplo, na narrativa adotada por Maiakvski as origens das desi
gualdades estavam claramente expostas, assim como os dividendos que seriam
auferidos pela populao oprimida que se levantara na luta pelo ideal. impor
tante situar que essa organizao de idias encontrou paralelo significativo na es
crita religiosa,tanto que:
160 rosangela patriota

Nos primeiros anos do comunismo, poetas e diretores folhearam an


siosamente a Bblia e os Evangelhos, para encontrar analogias com os acon
tecimentos que haviam transcorrido na Rssia. Andriei Bili, no poema
"Khrists voskris" (Cristo ressuscitou, 1918) fala da realizao de um "mis
trio universal". No encerramento dos Doze (1918) de Blok, a imagem de
Cristo avana na tempestade pelas ruas enevoadas de Petrogrado, frente de
doze soldados vermelhos. E lessinin, num ciclo de poeminhas enfeitados
de 1918, cujas metforas so um empaste de religiosidade patriarcal e arro
gncia blasfema, encobre a revoluo como advento de um novo Nazar,
um primitivo paraso campons.^"

Especificamente, no que diz respeito a Mistrio-Bufo, alm do dilogo com


a passagem bblica j mencionada, deve-se ressaltar a maneira pela qual Maiakvski
dessacralizou a narrativa, pois, em vez de organiz-la sob o signo da tragdia^ o
fez por intermdio da comdia. De acordo com ngelo RipeUino, o poeta voltou-
se para os autos medievais, no com o intuito de externar as maravilhas celestes,
mas com o objetivo de evidenciar o carter risvel das promessas da eternidade.

Maiakvski aproxima-se, nesta comdia, dos mistrios medievais, e


no s pelo tema bblico, mas pelas intenes alegricas, os personagens e
os locais sobrenaturais, a pitoresca mistura do cmico e do solene. O cmi
co prevalece sobre o "sagrado", como naqueles textos da Idade Mdia em
que as cenas cmicas dilatam-se em prejuzo das litrgicas.^^

Diante destas aproximaes, possvel indagar: como tornar compreensvel


a articulao entre discurso religioso e processo revolucionrio? Em termos his
tricos, qual o lugar desse dilogo em trabalhos interpretativos?

O lugar que a revoluo ocupa numa histria finalizada outro pro


blema levantado pela escatologia. Parece-me um duplo problema. Por um
lado, a presena inelutvel de uma interveno transcendente nesta hist
ria, qualquer que seja o nome ou a forma que essa ruptura assume, no cur
so da histria (Dia do Senhor, Grande Dia ou qualquer outra expresso que
designe um novum extraordinrio, feliz ou desastroso), talvez traa tambm
(sob formas religiosas ou laicas) a impotncia dos homens para pensarem
uma histria, cujo fim se atingiria, sem ruptura, ou seja, a revoluo. nes
te sentido que os Cristos podem ver na encarnao um fenmeno revolu
cionrio. Por outro lado, este encontro da escatologia com a idia revolucio
nria no obrigar a prescrutar melhor,desta vez, no a teoria, mas a realidade
histrica, a maneira como, para retomar uma expresso de Mannheim, "es
tas quimeras que adoptam uma fimo revolucionria" puderam agir tam-

ngelo Maria Rlpellino, op. cit., p. 78.


" Ibidem.
mistrio-biifo, de maiakvski, e a recriao da histria 161

bm na evoluo histrica. Se rejeitarmos os credos religiosos, nem as ex


plicaes idealistas, nem o simplismo marxista das relaes entre infra e
super-estrutura, conseguem esclarecer esta desconcertante realidade.-^

A importncia da advertncia de Jacques Le GofF, acerca da rejeio dos cre


dos religiosos em processos de transformao revolucionria, talvez seja uma das
chaves para entender os motivos pelos quais "uma superpotncia no encarnou
uma civilizao". Desse ponto de vista, observar que a noo de objetividade que
norteou dirigentes bolcheviques como Lnin, Stlin, Trtzki, dentre outros, na
desagregao de uma cultura estabelecida no decorrer de vrios sculos, foi tam
bm um dos elementosque contriburam e/ou justificaramo fechamento do pro
cesso de luta que, evidentemente, impediu que se reconhecessem as potencia
lidades presentes na riqueza esttico-poltica contida no iderio daqueles jovens
cubo-futuristas, que abraaram a Revoluo como a causa justa a partir da qual
se deveria viver e tambm morrer.
O final desta narrativa de conhecimento pblico. Vrios artistas e intelec
tuais russos, participantesda Revoluo de 1917, suicidaram-se,foram assassinados,
exilaram-se em outros pases ou foram enviados para camposde concentrao.
O poeta de Blusa Amarela, Vladmir Maiakvski, suicidou-se em 14 de abril
de 1930, aps viver um conturbado perodo de crticas, perseguies a seu traba
lho e severas repreenses quanto ao seu comportamento. Em seu bilhete de des
pedida, escreveu:

"O incidente est encerrado"


A barca do amor partiu-se contra a vida corrente
Estou quite com a vida
intil passar em revista
as dores
as infelicidades
e as injustias recprocas
Sede felizes!
Vladmir Maiakvski

Em 1931, sob o impacto desta morte, o lingista Roman Jakobson escreveu


A Gerao que Esbanjou Seus PoetaSy um pungente lamento sobre sonhos e pro
messas no cumpridas que, finalmente, em 2006, ganhou uma edio brasileira.
Nela, h uma apresentao do poeta Srgio Alcides que, ao destacar o significado
histrico e a atualidade do texto, fez a lcida e sensvel advertncia:

A idiade"gerao" se imps amargamente a Jakobson,inclusivecomo


um meio de autocrtica. Ele, que saudara em 1919 a esttica do futurismo.

Jacqucs Le Gof. Escatologia. Enciclopdia Einaudi. 3." ed. Porto; Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1984, p. 452, v. 1 (Memria-Histria).
162 rosangela patriota

agora desafiavao enredo trgico que envolveraescritores e artistas revolucio


nrios: "Lanamo-nos em relao ao futuro com excessivo mpeto e avidez".
Hoje achatados no presente global e sem projetos, o desperdcio da nos
sa gerao de outra ordem. E uma pena que no possamos atender o
pedido de Maiakvski:
"Ressuscite-me
ainda que apenas
porque fii um poeta".^^

" Roman Jakobson. A gerao que esbanjou seuspoetas. So Paulo: Cosac Naify, 2006 (contracapa).
IMAGENS DA SENSIBILIDADE REVOLUCIONRIA
NO CINEMA BRASILEIRO DOS ANOS 1960

Alcides Freire Ramos


Universidade Federal de Uberlndia

O dio ao burgus to velho quanto a prpria burguesia.


[.. .) Assim, o burgus tende a concentrar sobre si o des
prezo da poca: o "novo rico" de Balzac, o "escroque"
de Stendhal, o "filisteu" de Marx. (...) Longe de encarnar
o universal, o burgus s tem uma obsesso, os seus inte
resses, e um smbolo, o dinheiro. Atravs do dinheiro ele
o mais odiado: o dinheiro rene contra ele os preconceitos
dos aristocratas, o cime dos pobres e o desprezo dos in
telectuais. |. . .]. O burgus coleciona, assim, mais ou
menos em toda parte na cultura europia, essa eleio de
desprezo misturado com dio. [. . .]. Ora, os socialistas
assinaram embaixo desse julgamento.
Franois Furet. o Passado de Uttta Iluso.

Enfrentar uma reflexo acerca do tema "Imagens de Sensibilidade: Razes


e Sentimentos"' , sem dvida alguma, colocar-se diante de uma empreitada bas
tante difcil, mas, ao mesmo tempo, muito estimulante, isto , lidar com a noo
de sensibilidades, que uma das mais complexas da chamada Histria Cultural.
Diante disso e levando em considerao nossa experincia de pesquisa, propomo-
nos um recorte, ou verticalizao do tema proposto, a saber: discutir as Imagens
da SensibilidadeRevolucionria no Cinema Brasileiro dos anos 1960. Num primei
ro esforo de aproximao, ainda tateando o terreno, entramos em contato com
as consideraes de Sandra Pesavento que, de imediato, mostraram-se muito pro
fcuas para uma delimitao terica do problema formulado acima.

' Este foi o tema central de uma das mesas-redondas que integraram a programao do 3.
Simpsio de Histria Cultural, ocorrido em Florianpolis (SC), no perodo de 18 a 22 de setembro de
2006, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
164 alcides freire ramos

Com efeito, de acordo com a autora, as sensibilidades podem ser compreen


didas como fazendo parte do "[. . .] ncleo primrio de percepo e traduo da
experincia humana no mundo que brota no do racional ou das elucubraes
mentais elaboradas, mas dos sentidos, que vm do ntimo de cada indivduo".-
Definida, inicialmente, no mbito estritamente individual, a noo de sensibilida
des carrega ainda uma segunda dimenso, mais coletiva: " a partir da experincia
histrica pessoal que se resgatam emoes, sentimentos, idias, temores ou dese
jos, o que no implica abandonar a perspectiva de que essa traduo sensvel da
realidade seja historicizada e socializada para os homens de uma determinada po
ca".^ Para a autora, portanto, as sensibilidades "so uma forma de ser no mundo e
de estar no mundo, indo da percepo individual sensibilidade partilhada. Os
homens aprendem a sentir e a pensar, ou seja, a traduzir o mundo em razes e
sentimentos".''
Trata-se de uma definio rigorosa que, por si s, j deixa entrever muitas
possibilidades de trabalho. Entretanto, para que elas possam de fato se abrir, pre
ciso, antes, levar em considerao algumas mediaes. A principal delas pode ser
enunciada a partir da seguinte pergunta: se as sensibilidades brotam do ntimo de
cada indivduo, como possvel pens-las para alm do plano puramente indivi
dual, isto , como possvel postular a existncia de sensibilidades socializadas
ou partilhadas? Nesse caso, como se passa do individual ao coletivo? Fundamen
talmente, essa passagem diz respeito delimitao (aproximaes ou afastamen
tos) dos campos abarcados pela razo e pelos sentimentos. Para dirimir algumas
dvidas ou dificuldades de entendimento, quanto a essa mediao, vale ressaltar,
como afirma a autora, que sentimentos e razo "[.. .] convivem e so indissociveis,
uma vez que tudo o que toca o sensvel , por sua vez, remetido e inserido cul
tura e esfera de conhecimento cientfico que cada um porta em si".^
Essa advertncia deve ser destacada, visto que ela torna inteligvel o proces
so de comunicao entre indivduos, um processo que racional e emotivo ao
mesmo tempo. Essa mescla de racionalidade e emotividade favorece o surgimento
de sensibilidades socializadasou partilhadas, num dado momento histrico.
A anteriormente aludida mescla de racionalidade e emotividade, por outro
lado, favorece algo muito importante, particularmente quando se pensa no trabalho
do historiador, ou seja, facilita o surgimento de registros empricos dessas sensibi
lidades socializadas ou partilhadas. Em outros termos: rancores, temores, dios,
desejos ou sonhos enfim, os vrios sentimentos s podero ser resgatados
pelo historiador se forem expressos ou exteriorizados sob a forma de cartas, di
rios, memrias, romances, poemas, peas de teatro, pinturas, canes, filmes, etc.
Em nosso entendimento, quando so postas em circulaoe, paralelamente a isso.

^Sandra Pesavento. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo, Mun
dos Nuevos, Paris, n. 4, p. 1, 2004. Disponvel em: <http://nuevomundo.revues.org/document229.html>.
Acesso em 17 de setembro de 2006.
^ Ibidem.
* Ibidem.
5 Ibidem.
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 165

quando so apropriadas por diferentes receptores, essasevidncias do sensvelpo


dem ser transformadas em foras mobilizadoras.
Seguindo essa trilha investigativa, sem perder de vista nossa proposta de es
tudo, que se concentra nas Imagem da Sensibilidade Revoluronria no Cinema Bra
sileiro dos anos 1960, fomos levados a pensar nas possveis aproximaes entre sen
sibilidades e paixes polticas. Para materializar tal intento, consultamos uma das
mais instigantes obras de Franois Furet,^ O Passado de Uma Iluso, particular
mente o captulo de abertura, intitulado "A Paixo Revolucionria". A partir da
leitura deste sugestivo ensaio, foi possvelperceber a pertinncia da aproximao
proposta entre as sensibilidades socializadas ou partilhadas, aqui encaradas como
foras mobilizadoras, e as paixes polticas.
De fato, segundo o autor, para compreender a fora das mitologias polticas
(de direita ou de esquerda) que preencheram o sculo XX,"[. . .] preciso voltar
ao momento do nascimento ou pelo menos da juventude delas'7 Em outros ter
mos: "para compreendermos a sua magia, devemos consentir no esforo indis
pensvel de nos situarmos antes das catstrofes a que presidiram as duas grandes
ideologias (fascismo e comunismo); no momento em que foram esperanas".
Neste percurso, muito mais do que analisar conceitos ou tratados filosficos,
necessrio "fazerreviveruma sensibilidade"^ (grifo nosso). De acordo com o autor,
essas ideologias polticas, fundamentais para a compreenso do sculo XX, foram
capazes de angariar um inaudito prestgio e conseguiram enraizar-se nos espri
tos milhes de homens e mulheres. Plenamente consciente das enormes dificul
dades a serem enfi-entadas, para tentar tornar inteligvel esse fenmeno, F. Furet
defende a idia segundo a qual "[...] o melhor menos inventariar esse
bricabraque de idias mortas do que repartir as paixes que lhe emprestaram sua
fora".'" Sem negar ou escamotear o carter enigmtico desse processo histrico e,
ao mesmo tempo, ressaltando a fora desses sentimentos, que foram capazes de
impulsionar fanatismos individuais, o ensasta ressalta: "dessas paixes, filhas da
democracia moderna empenhadas em devastar a sua terra nutriz, a mais antiga, a
mais constante, a mais poderosa o dio burguesia"}^ (grifo nosso)
Segundoo ensasta, a burguesia"[. . .] abstrata o bastante para abrigar sm
bolos mltiplos e concreta o bastante para oferecer um objeto de dio que esteja
prximo; a burguesia oferece [. . .] um conjunto de tradies e de sentimentos
mais antigos sobre os quais se apoiar. Pois essa uma histria to velha quanto a
prpria sociedade moderna".'- No de surpreender que os homens do sculo XIX
no tenham esperadoMarx para faz-lo:"[. . .] o dio ao burgus to velhoquan
to a prpria burguesia".'^ As manifestaes literrias, particularmente na Frana,

Franois Furet. O passado dc uma iluso: ensaios sobre a idia comunista no sculo XX. So
Paulo: Siciliano, 1995.
" Ibidem, p. 15.
* Ibidem.
' Ibidem, p. 25.
Ibidem.
" Ibidem.
Ibidem. Ibidem, p. 22.
166 alcides freire ramos

no perodo histrico posterior Revoluo de 1789, estorepletas desse sentimento,


de ira contra o burgus que se espalha por diferentes segmentos ou tendncias:

[. . .] direita e esquerda, ao conservador e ao democrata-socialista,


ao religioso e ao filsofo da Histria. [. . .]. Assim, o burgus tende a con
centrar sobre si o desprezo da poca: o "novo rico" de Balzac, o "escroque"
de Stendhal, o "filisteu" de Marx. (. ..]. Longe de encarnar o universal, o
burgus s tem uma obsesso, os seus interesses, e um smbolo, o dinheiro.
Atravs do dinheiro ele o mais odiado; o dinheiro rene contra ele os pre
conceitos dos aristocratas, o cime dos pobres e o desprezo dos intelectuais.
[. . .]. O dinheiro no prova suas virtudes nem sequer o seu trabalho. [. . .].
O dinheiro, veio-lhe, na melhor das hipteses, por sorte, e nesse caso pode
perd-lo amanh por azar; na pior das hipteses, foi adquirido s custas do
trabalho dos outros, por ladroagem ou por cupidez, ou pelas duas coisas ao
mesmo tempo. [. . .]. Desse dficit poltico e moral que aflige o burgus de
todas as partes, no h ilustrao melhor do que seu rebaixamento esttico:
o burgus comea no sculo 5GX sua grande carreira simblica como ant
tese do artista. Mesquinho, feio, ladro, limitado, caseiro, ao passo que o ar
tista grande, belo, generoso, genial, bomio. O dinheiro resseca a alma e a
avilta, o desprezo pelo dinheiroa eleva s grandes coisas da vida: convico
esta que no compartilhada apenas pelo escritor ou pelo artista "revolucio
nrio", mas tambm pelo conservador. [. . .]. O burgus coleciona, assim,
mais ou menos em toda parte na cultura europia, essa eleio de desprezo
misturado com dio. [. . .] Ora, os socialistas assinaram embaixo desse Jul
gamento.'''

Como se v, as sensibilidades, ao se alimentarem do sentimento de dio


burguesia, podem assumir um contorno revolucionrio de perfil socialista e, por
essa razo, podem funcionar como uma fora mobilizadora, com base em um
conjunto de sentimentos compartilhados ou socializados ao longo dos sculos XIX
e XX. Por esses motivos, as consideraes de Sandra Pesavento e Franois Furet,
de diferentes maneiras, nos auxiliam e tornam possvel o enfrentamento do tema
proposto: pensar as Imagens da Sensibilidade Revolucionria no Cinema Brasileiro
dos Anos 1960.
Neste ponto de nossa reflexo, fomos levados a um ltimo movimento te
rico, a saber: questionar as relaes existentes entre o cinema e as sensibilidades,
aqui entendidas como paixes polticas. Nesse contexto, entendemos que vale re
tomar as lcidas e penetrantes consideraes de Siegfried Kracauer. Trata-se de
um pensador alemo, cuja principal obra. De Caligari a Hitlery^ mostra-se til e
inspiradora para nossos propsitos.

Franois Furet, op. cit., pp. 24-6.


" SiegfVied Kracauer. De Caligari a Hitler: uma histria psicolgica do cinema alemo. Rio de
Janeiro: J. Zafiar, 1988.
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 167

Para o autor, com efeito:"[. . .] os filmes de uma nao refletem a mentali


dade desta, de uma maneira mais direta do que qualquer outro meio artstico,
por duas razes. Primeiro, os filmes nunca so produto de um indivduo [.. .].
Em segundo lugar, os filmes so destinados, e interessam, s multides anni
mas"."* Desse ponto de vista, possvel afirmar que, conquanto as obras cinema
togrficas sejam comumente analisadas e interpretadas luz das idias e propos
tas de seus autores (roteiristas e diretores), elasdizem respeito ao modo de pensar
e sentir de um nmero muito mais amplo de pessoas. E, mais adiante, o ensasta
alemo acrescenta:"[. . .] o que os filmes refletem no so credos explcitos, mas
dispositivos psicolgicos essas profundas camadas da mentalidade coletiva que
se situam mais ou menos abaixo da dimenso da conscincia".'" Em nosso enten
dimento, esses dispositivos psicolgicos podem ser compreendidos como sensibi
lidadespartilhadas, ou seja, luz das consideraesde Sandra Pesavento e Franois
Furet, como foras mobilizadoras ou paixes polticas, resultantes da mescla de
razo e emoes.
Portanto, inspirando-nos do ponto de vista terico e metodolgico nas pro
postas acima apresentadas, acreditamos que possvelenfrentar o problema pro
posto, isto , pensar as Imagens da Sensibilidade Revolucionria no Cinema Brasi
leiro dos Anos 1960. Em outros termos: com base na noo segundo a qual o
cinema pode apresentar-se como um veculo privilegiado das sensibilidades ou
das paixes polticas, torna-se vivel tentar compreender certas mudanas (te
mticas e de linguagem) observadas na passagem da primeira para a segunda fase
do Cinema Novo, quando os cinemanovistas se voltam para a compreenso do
impacto sociopoltico do golpe militar de 1964. Em nossa avaliao, h um refor
o considervel de uma sensibilidade revolucionria de tipo socialista, que se nu
tre do dio burguesia, nesta conjuntura (ps-golpe). Esse o problemaque pro
curaremos discutir a partir de agora.
Com efeito, de acordo com diversos crticos e historiadores do cinema bra
sileiro, o movimento conhecido como Cinema Novo o momento mais impor
tante na busca de uma cinematografia engajada poltica e esteticamente. O seu
surgimento reafirmou pressupostos que j se anunciavam nas artes brasileiras,
em fins da dcada de 1950, especialmente no que diz respeito busca de uma
"arte nacional", comprometida com a transformao social.
Nesse contexto, a expectativa em torno da aprovao das Reformas de Base
propostas pelo Governo Joo Goulart foi acalentada, por esse segmento artstico,
como o deslanchar de novas perspectivas sociais, polticas, econmicas e cultu
rais para o Brasil.

O processo esboado na dcada de cinqenta explode vigorosamente


nos anos 60 com os primeiros filmes do chamado movimento de Cinema
Novo. Composto notadamente por cariocas, porm com fronteiras mal

Ibidem, p. 17.
'' Ibidem, p. 18.
168 alcides freire ramos

definidas, o Cinema Novo engloba de modo mais ou menos arbitrrio tudo


quanto se fez de estimulante, em matria de cinema, em vrios pontos do
pas. A prtica cinematogrfica e/ou o processo crtico a ela ligado atingem
vrios Estados. Em So Paulo, a Cinemateca brasileira estimula o pensa
mento e a pesquisa sobre cinema e promove a discusso de filmes, sobretu
do dos que tinham como proposta bsica a procura de caminhos para o ci
nema brasileiro. Em Minas, o grupo reunido em torno da Revista de Cinema
estuda e divulga textos do novo cinema europeu, procurando refletir sobre
a adequao das suas idias realidade nacional. Em vrios Estados, jovens
isolados partem para a prtica cinematogrfica. [. . .]. No campo do longa-
metragem, so os filmes no Nordeste e no Rio que compem as obras mais
significativas do movimento. Na Bahia, tem lugar um vigoroso surto de ci
nema (entre 1958-1964), nascido da atividade cineclubista e do processo de
reflexo em torno do cinema e da cultura no Brasil. No apenas os jovens
cineastas baianos, mas tambm paulistas e cariocas que descobrem na Bahia
um fecundo manancial de temas e problemas, traam um quadro descriti
vo, analtico e interpretativo, de enorme amplitude, sobre a situao do Nor
deste, enfocando a marginalidade urbana, as aldeias de pescadores, a aridez
do serto. [. . .]. O desenvolvimento do Cinema Novo foi favorecido por uma
conjuntura histrica extremamente estimulante, em que o pensamento cr
tico e a preocupao com a cultura, nas mais diversas reas (no teatro, na
msica, na literatura, na sociologia), se aliaram animao social e espe
rana poltica que caracterizaram o intenso nacionalismo deste perodo. O
Cinema Novo se norteou basicamentepelo pensamento de esquerda, no qual se
enrazam as propostas ideolgicasda maior parte dosfilmes feitos. Nas suas ori
gens, notadamente no Rio de Janeiro, teve estreita ligao com a efervescncia
do movimento estudantil dos primeiros anos 1960; boa parte dos seus quadros
tcnicos e a quase totalidade do seu pblico se constituram de jovens universit
rios e intelectuais^^ (grifo nosso).

Esse movimento cinematogrfico teve sua primeira fase entre 1960 e 1964.
As obras mais representativas desse perodo foram Os Fuzis (1963) de Rui Guerra,
Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos e Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964) de Gluber Rocha. Esses filmes foram fortemente marcados pelas propostas
de superao do subdesenvolvimento brasileiro. Era um cinema, pois, de interven
o poltica, que esteticamente dialogou com o chamado neo-realismo italiano'*'

Maria Rita Gaivo. Cinema brasileiro; 1930-1964. In: Boris Fausto (org.). O Brasil Republica
no. So Paulo: DifeI, 1984, pp. 497-8 (HGCB, t. III, v. 4).
" Sobre o dilogo com o neo-relismo, consultar: Randal Johnson. Literatura c cinema: Macu-
nama do modernismo na literatura ao cinema novo. So Paulo: T.A.Queiroz, 1982, p. 83. Ao lado
disso, cabe sugerir a consulta da importante investigao de Mariarosaria Fabris, intitulada Nelson
Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? (So Paulo: Edusp, 1994). Lanada recentemente, h uma
importante reflexo sobre esse assunto que ser vale ser consultada. Trata-se do seguinte ensaio: Ris
Carlos Avellar. O paraso do espectador. In: Angela Prudenzi & Elisa Resegotti (org.). Cinema poltico
italiano: anos 60 e 70. So Paulo: Cosac Naif, 2006, pp. 169-99.
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 169

e que foi marcado por uma sensibilidaderevolucionriaotimista. O melhor exem


plo disso pode ser encontrado nas imagens finais de Deus e o Diabo na Terra do
Sol nas quais Manuel, depois de ser libertado dos ditames de Deus e do Diabo,
por Antnio das Mortes, corre ao lado de Rosa, sua mulher, pelo serto em dire
o ao futuro.-" Esse otimismo revolucionrio foi plasticamente condensado no
encontro do mar com o serto, ao som das Bachianas de Vila Lobos.-'
Por outro lado, a segunda fase desse movimento (1964 a 1968), alm de carac
terizar-se pela radicalizao nos experimentos com a linguagem cinematogrfica
de modo que atinja o to almejado ideal de descolonizao cultural, marcada por
uma sensibilidade revolucionria, cuja tonalidade a busca da superao do pessi
mismo.
Significativamente, mesmo com o advento da ditadura militar, em 1964, o
panorama cultural marcado por obras de oposio, como afirma Roberto Schwarz:

[. . .1 para surpresa de todos, a presena cultural da esquerda no foi li


quidada naquela data, e mais, de l para c no parou de crescer. A sua pro
duo de qualidade notvel nalgunscampos e dominante. Apesarda dita
dura da direita h relativa hegemonia cultural da esquerda no pas. Pode ser
vista nas livrarias de So Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estrias teatrais,
incrivelmente festivas e febris, s vezes ameaadas de invaso policial, na mo
vimentao estudantil ou nas proclamaes do clero avanado. Em suma, nos
santurios da cultura burguesa a esquerda d o tom. Esta anomalia que
agora periclita, quando a ditadura decretou penas pesadssimas para a propa
ganda do socialismo o trao maisvisvel do panorama cultural brasileiro
entre 1964 e 1969. Assinala, alm da luta, um compromisso" (grifo nosso).

Nessa conjuntura, os cinemanovista como que voltam as cmaras para si


mesmos, num processo de auto-anlise, procurando respostas para o fracasso das
propostas revolucionrias tendo em vista superar o generalizado clima de res
sentimento provocado pela derrota. O otimismo em relao s possibilidades de
transformao foi abruptamente deixado de lado com o golpe, medida que a
rpida reao civil-militar, marcadamente conservadora, frustrou tal conjunto de
expectativas to acalentado pelossetores "progressistas" da sociedadebrasileira.

Segundo Ismail Xavier, "caminhando num terreno de impasses, enquanto viso da hist
ria, Deus e o diabo totaliza, reafirma a certeza da salvao com base numa teleologia que d sentido
a toda a experincia passada como fases de um processo" (Serto Mar: Glauber Rocha e a esttica da
fome. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 119).
"|. . -1 a presena de Villa-lobos citao, transporte em estado bruto de elementos de um
projeto cultural inserido no Brasil urbano. O papel da questo nacional na elaborao de suas formas
traz ntida sintonia com o prprio intuito do filme, tambm envolvido na reelaborao erudita de um
repertrio popular regional. Dada essa sintonia, a incorporao de Villa-Lobos ao filme de Glauber
Rocha um gesto que a reafirma, ligando de modo mais explcito projetos de natureza semelhante,
pertencentes a uma tradio comum no processo cultural brasileiro" (XAVIER, Ismail Xavier, op. cit.,
pp. 92-3).
Roberto Schwarz. Cultura e poltica, 1964-1969. In: O pai defamlia e outros estudos. 2.' ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 62.
170 alcides freire ramos

Materializando a primeira resposta cinematogrfica ao golpe, o cineasta Pau


lo Csar Saraceni elaborou o argumento, preparou o roteiro e iniciou as filma
gens de O Desafioy^^ em abril de 1964. Depois de ser liberado pela censura, foi
exibido nos cinemas no ano seguinte e foi recebido como um marco na tomada
de posio contra as foras golpistas, lanando as bases para a crtica ao chamado
pacto policlassista^^ que sustentara o Governo Goulart e, ao mesmo tempo, repre
senta a traduo esttica da sensibilidade revolucionria nesta nova conjuntura.
Com efeito, para Bernardet:

[.. .] o Cinema Novo est ligado ao ISEB, cuja proposta desenvol-


vimentista elitizante e apoiada na industrializao [.. .]. Do ponto de vista
temtico, no filmes do Cinema Novo, percebe-se que a quase totalidade est
voltada para a crtica do sistema agrrio, a misria do campons, seu esma-
gamento, o latifndio, os vrios sistemas de opresso. E que a burguesia
industrial, at 1964, no comparece nos filmes. [. . .]. Como que confir
mando a tese, o primeiro burgus industrial que aparece no Cinema Novo
o de O Desafio, [...]. Estudando as relaes entre a burguesia industrial e
a intelectualidade, o filme denuncia a inviabilidade do pacto, isto , a inviabi
lidade dos prprios fundamentos ideolgicos do Cinema Novo anterior a
1964."

De fato, aquela unidade, pelo menos idealizada, no perodo anterior ao gol


pe de 1964, no existia mais. Os fundamentos ideolgicos do Cinema Novo aos
quais Bernardet faz referncia baseiam-se num "pacto tcito, certamente nunca

" FICHA TCNICA - TTULO: O Desafio; ANO DE PRODUO: 1964; ANO DE LANA
MENTO: 1965; ARGUMENTO, DIREO E ROTEIRO: Paulo Csar Saraceni; DURAO: 93 min; P
& B; Rio de Janeiro; ELENCO: Oduvaldo Vianna Filho, Isabella, Srgio Britto, Luiz Linhares, Joel
Barcelos, Hugo Carvana; PRODUO: Srgio Saraceni; Produes Cincmalogrficas Imago e Mapa
Filmes; FOTOGRAFIA: Guido Cosulich; MONTAGEM: Ismar Porto; CMERA: Dib Lufti; SOM:
Alusio Viana; TRILHA SONORA: Trechos de composies de Amadeus Wolfgang Mozart, Heitor
Villa-Lobos, Edu Lobo, Vincius de Moraes, Caetano Veloso e Carlos Lira; DISTRIBUIO DO
FILME EM VDEO (VHS/NTSC): Difilm, Sagres Filmes. Cabe destacar que o filme traz um trecho do
espetculo Opinio, com participao de Joo do Vale e de Maria Bethnia, interpretando a cano
Carcar.
Para que se tenha idia mais precisa a respeito do ineditismo das discusses presentes em O
Desafio, cabe lembrar: Francisco Weffort, que um dos principais estudiosos do assunto, publicou em
1967, isto , dois anos depois da exibio do filme de Saraceni, um artigo na revista Tempos Modernos
intitulado "O Populismo na Poltica Brasileira", em que essa temtica, crise do pacto policlassista, foi
enunciada de maneira mais sistemtica. Vejamos uma passagem representativa: "(...] se se tem em
conta a natureza da participao poltica popular que existia no Pas, percebem-se as graves limitaes
que se apresentavam poltica de reformas que constitua uma das orientaes bsicas do Governo
Goulart. Com efeito, a importncia poltica das massas dependera sempre da existncia de uma tran
sao entre os grupos dominantes, e esta transao agora se encontrava em crise. Se as massas serviram
como fonte de legitimidade para o Estado, isto s foi possvel enquanto estiveram contidas dentro de um
esquema de alianas policlassista, que as privava de autonomia. Desta forma, ao pretender entrar pelo
caminho das reformas de estrutura, Goulart provocou a crise do regime populista" (O populismo na
poltica brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, pp. 77-8.)
Jean-Claude Bernardet. Cinema Brasileiro: propostas para uma histria. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979, pp. 47-8 e 49.
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 171

formulado nem mesmo conscientizado, entre este movimento cinematogrfico e


a burguesia ligada industrializao, no sentido de ela no ser questionada".^^
O Desafio, de Paulo Csar Saraceni, portanto, num primeiro instante, pro
curou mostrar que a maior parcela da intelectualidade brasileira de esquerda, que
estivera cheia de esperanas, "entrou numa fase de marasmo, sem saber que rumo
tomar, e a palavra mais usada para caracterizar seu estado psicolgico e suas hesi
taes foi certamente perplexidade"-'^ A imagem que condensa esse sentimento
a apatia do personagem Marcelo (Oduvaldo Viana Filho), ao assistir ao espetcu
lo Opinio, que , de acordo com a historiadora Rosngela Patriota, a mais acaba
da manifestao artstica das propostas do PCB naquelaconjuntura, ou seja, con
tribuir com a construo da resistncia democrtica.- Entretanto, se a pelcula
tivesse se fixado apenas nessa imagem, congelando-a, teramos em O Desafio a
mais pura manifestao do ressentimento. Para compreender melhor isso, vejamos
uma breve passagem de uma obra recente da psicanalista Maria Rita Kehl:

[. ..] quando uma revolta abafada pelo poder militar, os revoltosos


se vem obrigados a recolher suas foras e esperar por condies mais favo
rveis para voltar luta. Essa "vingana adiada" no a mesma das elucu-
braes mentais a que se entrega o ressentido, psicologicamente impotente
para dar outro destino sua amargura. Mas mesmo nos casosem que a der
rota imposta fora e a reao objetivamente impedida, possvel que o
adiamento prolongado da ao ameace arrefecer a disposio luta. Nesses
casos,a manuteno ativa da memria do agravo, que em um primeiro tem
po necessria para alimentar a disposio dos revoltosos, pode degenerar
em predisposio ao ressentimento.-'

Por meio da narrativa flmica, especialmente da trajetria de Marcelo, per


sonagem central possvel perceber que aquele momento da Histria do Brasil, a
pouco e pouco, passou a exigir uma nova postura capaz de superar a inao e o
ressentimento.
Com efeito, a trama presente em O Desafio como que constataa perplexida
de decorrente da crise dopacto policlassista quesustentara o Governo Goulart. Ao

Ibidcm, p. 48.
" Jcan-Claudc Bcrnardet. lirusil cm tempo de cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 122.
Segundo a aludida historiadora, Vianinha assim se manifestou a respeito da conjuntura bra
sileira no imediato ps-golpe: "o teatro brasileiro de 1965 ou se empenha na sua libertao, partici
pando do processo de redemocratizao da vida nacional, na consagrao dos sentimentos de sobe
rania e vigor do povo brasileiro, ou, ento alheio a um dos momentos capitais de nossa histria ,
poder ficar includo entre os que tiveram a responsabilidade de descer sobre o Brasil a mais triste e
estpida de suas noites. (...]. No h que desanimar. A democracia foi destruda enquanto organi
zao, mas no enquanto absoluta aspirao do povo e do artista brasileiro. A destruio dos valores
democrticos custou tambm a destruio de vrios mitos que enredavam a conscincia social. No
teatro, !965 comea para frente. V ver Opinio" (Rosngela Patriota. Vianinha: tttn dratnatnrgo no
corao de sen tempo. So Paulo: Hucitec, 1999, p. 116). Ainda segundo a autora, "este apelo vai ao
encontro das tarefas formuladas pelo PCB" (ibidem).
Maria Rita Kehl. Ressentimento. So Paulo: Ca.sa do Psiclogo, 2004, p. 17.
172 alcides freire ramos

mesmo tempo, anuncia a possibilidade de sua superao, organizando-se a partir


do esfacelamento da relao de Marcelo e Ada (Isabella).

k
Ele jornalista de esquerda. Ela, casada com um industrial, tinha encontra
\
do em Marcelo, seu amante, uma via de escape da crueza de seu meio social de
origem. Condensando metaforicamente os sentimentos de pessimismo dissemi
nados nos momentos imediatamente posteriores ao golpe, a relao entra em crise.
Por outro lado, o marido de Ada (Srgio Britto), em diversas oportunidades
ao longo da narrativa, reafirma suas convices polticas, desdenha dos "esquer
distas" com os quais Ada convive. Demonstra segurana emocional, visto que tem
certeza de que o processo histrico, depois do golpe, caminha de acordo com seus
interesses e na direo correta. Dirige uma fbrica de 2.500 operrios e tem orgu
lho de sua condio de classe e de seu papel social.
O dio burguesia no est ausente de O Desafio e acaba por expressar-se
pelas reaes de Ada, que no aceita a viso de mundo do marido e discute
longamente com ele. Em cena emblemtica, rejeita o universo fabril e seu maqui-
nrio. Encontra-se, portanto, infeliz e sem condies de encontrar um salda. Ti
nha sido abandonada pelo amante e, ao mesmo tempo, no capaz de separar-se
do marido. Portanto, visto que incapaz de arrepender-se, vingar-se, esquecer ou
perdoar, sua condio leva-aao ressentimento.

O ressentido sofre porque se d conta de que deixou de viver o que o


momento lhe oferecia, e quer acusar os fortes, que sabem dizer "sim" vida,
do prejuzo pelo qual ele o nico responsvel."'

30 Mariii Rita Kfhl. Rcsseiitiiiiciio. Sao Paulo: Casa do Psiclogo, 2004, p. 27,
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 173

Nas imagens finais, depois deafastar-se de muitos amigos quealimentavam


esperanas de um retorno rpido ao clima de liberdade anteriormente existente
e, sobretudo, de romper com Ada, Marcelo caminha quase sem rumo, desce uma
escada cambaleando, mas, ao mesmo tempo, em total disponibilidade para novas
experincias e sentimentos. Com essa imagem e com a trilha sonora, forma-se
um quadro emblemtico com o qual o filme prepara o espectador para um "tem
po de guerra", em que certas relaes e sentimentos no so mais possveis. Uma
outra forma de sensibilidade revolucionria, talvez no ressentida, comea a se
esboar e anunciada por meio da narrativa.
Esta mesma linha de preocupaes pode ser observada em So Paulo SM^'
de Lus Srgio Person, lanado em 1965. Ambientando-se na capital paulista, en
tre 1957 e 1960, retrata o perodo de grande expectativa de crescimento econmi
co decorrente da instalao das indstrias automobilsticas estrangeiras. Mas, em
vez de tematizar a grande indstria, prefere concentrar-se nas pequenas fbricas
que surgiram, como que da noite para o dia, ao redor das multinacionais.
Por estar dependente em relao aos interesses estrangeiros, esse segmento
representativo do perfil do chamado empresariado nacional e da classe mdia
que gira sua volta. O personagem Arturo (Otello Zelloni), que edificou sua pe
quena fbrica perto da Volkswagen, no pensa em outra coisa a no ser em ascen
so social: quer ampliar cada vez mais seus negcios,adquirir um automvel nor
te-americano ltimo tipo, ter um apartamento confortvel na cidade, uma casa
de campo e como que coroando seu estilo de vida amantes bonitas. Na qua
lidade de chefe de famlia bom provedor, mas de fala curta e pouco afeto. di
nmico nos negcios e para atingir seus objetivos, capaz das atitudes mais servis
e repugnantes, sobretudo em suas transaes comerciais com a Volkswagen. Ex
plora, sem limites, todos os que esto sob seu comando.^^
O personagem principal da pelcula Carlos (WalmorChagas). Eletrabalha
num escritrio. Formado em desenho industrial, foi contratado pela Volkswagen
e desenvolve suas atividades no setor de controle de qualidade. demitido depois
de ser surpreendido, tentando vender peasfora de padro, oriundas da fbrica de
Arturo. Sem sada, pede ajuda e torna-se gerente na fbrica do imigrante italiano.
Ao lado disso, o filme nos mostra que Carlos possui vrias amantes, mas no de
seja manter relaes duradouras com nenhuma delas. Por fim, acaba se casando
com Luciana (Eva Wilma).

" FICHA TCNICA TTULO: So Paulo S/A; ANO DE PRODUO: 1964; ANO DE
LANAMENTO: 1965; ARGUMENTO, DIREO E ROTEIRO: Luiz Srgio Person; DURAO: III
minutos (longa-metrageni); 35mm; Preto e Branco; So Paulo; PRODUO: Socine Produes
Cinematogrficas; FOTOGRAFIA: Ricardo Aronovich; MONTAGEM: Glauco Mirko Laurelli; MSI
CA: Cludio Petraglia; ELENCO: Walmor Chagas, Eva Wilma, Otello Zelloni, Ana Esmeralda, Darlene
Glria, Lenoir Bittencourt; DISTRIBUIO DO FILME EM DVD: Videofilmes.
" Encarna o to odiado perfil descrito por F. Furet: "o burgus s tem uma obsesso, os seus
interesses, e um smbolo, o dinheiro. (. . .). O dinheiro veio-lhe, na melhor das hipteses, por sorte,
e nesse caso pode perd-lo amanh por azar; na pior das hipteses, foi adquirido s custas do trabalho
dos outros, por ladroagem ou por cupidez, ou pelas duas coisas ao mesmo tempo" (Franois Furet,
op. cit., p. 20.)
alcides freire ramos

Ao tornar-se gerente da fbrica, percebe que no tem aptido para essa ativi
dade, tampouco aprecia os mtodos inescrupulosos do patro. um exemplo t
pico dos segmentos sociais paulistas que, aps obter um diploma de curso tcni
co e formao bsica num curso de ingls, consegue uma posio confortvel no
mercado de trabalho e aumenta, cada vez mais, seus rendimentos, na esteira do
crescimento do setor industrial. Entretanto, no sabe ao certo aonde chegar. Deixa-
se levar pelo curso dos acontecimentos. Com sua vida afetiva ocorre o mesmo:
casou-se com Luciana por presso familiar, no porque quisesse de fato. Como se
no bastasse, a convivncia com a esposa lhe traz aborrecimentos dirios. Para
ela, o ideal que deve ser atingido por Carlos ser como Arluro, um homem de
sucesso. Ele, porm, a pouco e pouco, vai se desinteressando por sua vida profissio
nal e familiar. Tenta romper com todas as suas relaes e amarras, mas no con
segue e engolido pela engrenagem.
Ao analisar essa obra de Person, Jean-Claude Bernardet afirma:

Nesse vazio humano, nesse desenvolvimento industrial, o dinheiro tem


um papel relevante e [. . .] determina a vida das personagens: c porque Artu-
ro no quer emprestar dinheiro a Carlos que este aceita o emprego; porque
Carlos ganha razoavelmente que se casa; cobrando comisses a Arturo que
Carlos consegue p-lo momentaneamente em xeque; porque Luciana rece
be dinheiro do pai que ela tenta, ignorando a vontade do marido, associar-
se a Arturo. O dinheiro o mestre de cerimnias. [. . .] O personagem cen
tral (Carlos) no escolhe, levado no caminho aberto pela grande burguesia.''

" Jean-Cliiudc Bernardet. Hrasil cm tempo de cinema. Rio de Janeiro: Pa/ c lerra, 1978, p. 128.
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 175

Como se v, j que no consegue adaptar-se dinmica da cidade e do capi


tal, a revolta final de Carlos, ao tentar fugir, representa um passo frente em rela
o inao e ao ressentimento de Ada de O Desafio. Na verdade, embalado por
um ainda no conscientizado sentimento de dio burguesia e por uma latente
repulsa ao poder do dinheiro, Carlos enfrenta a situao-limite, isto , a do rom
pimento com sua condio de classe. Desse ponto de vista, como j tnhamos obser
vado em Marcelo de O Desafio, o personagem Carlos manifesta a mesma "dispo
sio interior" na busca de algo novo, j que a situao de dependncia em relao
ao capital multinacional e burguesia brasileira no lhe traz satisfao. Esse qua
dro de crtica aos valores burgueses, que marcaram o surgimento de uma nova
sensibilidade revolucionria no Brasil dos anos 1960, encontra em Terra em Transe
de Glauber Rocha (1967) a sua mais acabada formulao.^"*
Na realidade, trata-se de uma narrativa de alta complexidade. Inicia-se com
uma longa tomada area do mar em direo mata. Vieira (Jos Lewgoy) vai assi
nar sua renncia, pois a situao poltica de Eldorado tornara-se insustentvel.
Paulo Martins (Jardel Filho) vai ao Palcio do Governo acompanhado por Sara
(Glauce Rocha) e mostra-se contrrio atitude tomada por Vieira. Paulo e Sara
fogem dali num carro, que abordado por policiais rodovirios. Estes atiram v
rias vezes e atingem Paulo que pra seu carro beira da estrada. neste momen
to que se inicia oflash-back, que constitui a maior parte filme, narrando os acon
tecimentos que precederam o golpe por meioda memriado protagonista.
No segundo bloco, depois de romper com suas origens e com sua condio
de classe, afastando-se de Diaz (Paulo Autran), Paulo vai a Alecrim trabalhar num
jornal. Neste momento, toma contato com a explorao econmica e com a opres
so poltica de milhares de brasileiros por intermdio de Sara. Esta j se dedicava
militncia poltica. Depois de uma conversa com Sara, Paulo conclui: "precisa
mos de um lder poltico". Na cena seguinte, Paulo e Sara mostram a Vieira que
ele tem os pr-requisitos para lanar-se candidato. Na campanha. Vieira procura
mostrar-se prximo da populao, prometendo que a situao de misria e de
opressoser eliminada.Apsa eleio de Vieira, Paulo e Saravem que as dificul
dades do poder no so pequenas. A morte do lder campons, que entrara em
atritocomasforas governamentais, consolidou esta sensao de impotncia diante
da realidade. Estes fatos fazem com que Paulo entre em crise: "a poltica e a poesia

FICHA TCNICA TTULO: Terra em Transe; ANO DE PRODUO: 1966; ANO DE


LANAMENTO: 1967; ARGUMENTO. DIREO E ROTEIRO: Glauber Rocha; DURAO: 115
minutos (longa-metragem); 35mm; Preto e Branco; Rio de Janeiro; PRODUO: Mapa Filmes e
Difilm; ASSISTENTES DE DIREO: Antnio Calmom e Moiss Kendler; FOTOGRAFIA: Luiz
Carlos Barreto, Lauro Escorei Filho; MONTAGEM: Eduardo Escorei; CMERA: Dib Lufti; SOM:
Aluizio Viana; TRILHA SONORA: Trechos de composies de Carlos Gomes (O Guarani), Villa-
Lobos (Bachianas n. 3 e 6), Verdi (Abertura de Othelo), Canto para Alu do candombl da Bahia,
samba de morro do Rio de Janeiro; ELENCO: Jardel Filho, Paulo Autran, Jos Lewgoy, Glauce Rocha,
Paulo Gracindo, Hugo Carvana, Danuza Leo, Jofre Soares, Modesto de Sousa, Mrio Lago, Flvio
Migliaccio, Telma Reston, Jos Marinho, Francisco Milani, Paulo Csar Pereio, Emanuel Cavalcanti,
Zzimo Bulbul, Antnio Cmera, Echio Reis, Maurcio do Valle, Rafael de Carvalho, Ivan de Souza,
Darlene Glria, Elizabeth Gasper, Irm lvares, Snia Clara, Guide Vasconcelos e Clvis Bornay;
DISTRIBUIO DO FILME EM DVD: Rio Filme e Verstil Home Vdeo.
so demais para um s homem,'
outra alternativa, Paulo Martins
trpole e reinicia sua atividade c(
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 177

po entregue aos prazeres do sexo, da poesia e do desengajamento, Paulo recebe a


visita de Sara, que lhe prope o retorno ao trabalho poltico. E assim feito. Pau
lo, ao conversar com Fuentes, representante da burguesia nacionalista, convence-
o a alinhar-se ao lado dos que lutam contra Diaz. O plo oposto a Diaz, segundo
Paulo, Vieira. Afinal, dentro do esquema proposto pelo poeta e pela esquerda,
simbolizada por Sara, Vieira materializaria a defesa dos interesses nacionais. Nes
te contexto, a tarefa de Paulo preparar uma reportagem para a TV,de proprieda
de de Fuentes, destruindo a imagem de Diaz. A partir da, inicia-se o colapso do
populismo. Na seqncia denominada encontro do lder com o povo h discursos
polticos provenientes dos grupos que apiam Vieira. Esto presentes membros
da Igreja, dos Sindicatos, dos Estudantes e a massa popular. A ambigidade do
populismo est condensada em duas atitudes contraditrias. A primeira quando
Paulo Martins cala o sindicalista e denuncia seu compromisso com o esquema
populista. Na segunda, um homem do povo toma a palavra sem ser convidado
pelas foras polticas e logo a seguir morto pelos aliados de Vieira. Temos a a
denncia do estatuto do povo no interior da poltica populista: ser massa de ma
nobra.
No quarto bloco, Diaz encontra-se com Fuentes e mostra-lhe que a luta de
classes realmente existe. Apresentada a evidncia, o lder poltico convoca o em
presrio a aliar-se ao capital multinacional. A tarefa imediatamente aceita por
Fuentes, que rompe sua aliana com Paulo. A partir desse momento, todo o es
quema de apoio a Vieira desmorona. Paulo perde a sua posio na direo do
jornal e na TV. Em meio s capitulaes, o jornalista lvaro suicida-se. Como de
corrncia do realinhamento de foras, Diaz comea sua ascenso, ao passo que
Vieira inicia sua queda definitiva, que culminar com seu pedido de renncia.
No eplogo, a histria retorna ao prlogo. Fragmentos da renncia de Vieira
e da perseguio sofrida por Paulo e Sara, na estrada, voltam tela, assim como a
agonia de Paulo nas dunas. Essas imagens, mediante um refinado procedimento
de montagem, so intercaladas aos flashes da coroao de Diaz, na escadaria de
seu Palcio. Esta seqncia construda de modo que saliente a situao-limite
na qual est imersa a personagem. Ao fundo desta cena, ouve-se a voz de Paulo
atribuir sua morte o seguintesignificado: "o triunfo da beleza e da justia". Sozi
nho, beira da estrada, metralhadora na mo, numa clara referncia opo pela
luta armada que comeava a tomar corpo naquela conjuntura, o poeta anuncia
os tempos de intolerncia que esto por vir.
Aps essa breve exposio da estrutura narrativa, percebe-se que Terra em
Transe pode ser considerado, em termos cinematogrficos,a mais aguda avaliao
do populismo no Brasil. Apelcula traz, em cada um dos seus personagens, a snte
sedos projetosdos principaisgrupos sociais presentes naqueleprocessohistrico.^^
Porfrio Diaz representa a tradio crist em sua vertente conservadora. Para
''' Na caracterizao das personagens que faremos a seguir, nos apoiaremos nas seguintes
obras: Ismail Xavier. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal.
So Paulo: Hrasiliense, 1993, pp. 54-6; Jean-Claude Bernardet & Alcides Freire Ramos. Cinema e
Histria do Brasil. 3.'' ed. So Paulo: Contexto, 1994, pp. 65-6.
178 alcides freire ramos

Paulo, ele significa a autoridade da figura paterna. ele quem prepara e define o
caminho para o jovem poeta e serve-lhe de exemplo. Apesar disso, rejeitado por
Paulo em sua luta pessoal para mudar a vida deles e o destino de Eldorado. Nesse
sentido, percebe-se uma inequvoca mudana de postura quando comparamos
essa personagem a Marcelo de O Desafio e a Carlos de So Paulo S/A. Apesar das
vacilaes, das idas e vindas, Paulo no se deixa envolver por ressentimentos,
visceral em suas tomadas de posio, sobretudo na disposio em romper com
sua condio de classe e aderir a projetos polticos mais radicais.
Fuentes encarna a burguesia progressista. Ele proprietrio das mais im
portantes fbricas e minas de Eldorado, controla a indstria cultural e anima as
festas da alta sociedade. Numa clara assimilao da sensibilidade revolucionria,
particularmente do dio burguesia, o filme associa sua imagem ao descompro-
misso. Apesar de sua elevada posio social, Fuentes no lder poltico e retira
seu prestgio exclusivamente da fora da fortuna que possui. Politicamente, seu
comportamento a materializao da total falta de projeto coletivo e perspectivas
futuras. Por fim, de maneira cnica e oportunista, para defender seus interesses
particulares, alia-se ao capital estrangeiro.
Vieira a personificao do clssico lder populista de origem rural. Refor
mista em suas propostas iniciais, rapidamente adere a posturas autoritrias. Na
vida de Paulo, acaba funcionando como uma frustrante figura paterna, j que,
diferentementede Diaz, Vieira demonstrafraqueza no momento decisivo da luta
poltica. No contexto das foras polticas de Eldorado, ele representa o pacto
policlassista que atenua as possibilidades revolucionrias. Para os setores de esquer
da um lder que, num futuro prximo, poderia cumprir um papel revolucion
rio, mas, ao longo do processo,no consegue atingir esses objetivos.
Sara dedica-se ao ativismo poltico. Participa dos projetos dos grupos de es
querda majoritrios. Lutapeloapoio ao lder populista, buscando viabiliz-lo como
o instrumento fundamental para as inadiveis, radicais e necessrias mudanas
polticas, econmicas e sociais. Conquanto se mostre envolvida emocionalmen-
te, ela constante e muito racional. Ao lado de Paulo, funciona quase todo o tempo
como uma conselheira, um porto-seguro e, ainda que tmida, uma amante. Em
diversas ocasies, ela capaz de entender suas vacilaes e, ao mesmo tempo, con
segue lev-lo a romper com o imobilismo ou com os possveis ressentimentos.
lvaro o melhor amigo de Paulo. um personagem que, semelhana de
Sara, incentiva o seu envolvimento poltico mais conseqente. Diferentemente
de Sara, no bem-sucedido em sua tarefa, j que se apresentapor demais fragili
zado diante da dureza dos embates. Ao final, diante dos acontecimentos sombrios
que se anunciam com a vitriade Diaz, levado a cometersuicdio.
A EXPLINT (Explorao Internacional) uma personagem sempre nomea
da, mas cuja presena o filme sonega. a representao do capital estrangeiro.
Tem papel relevante nos destinos de Eldorado, dando suporte s foras mais con
servadoras, no momento do golpe.
Paulo, o personagem central, obviamente o mais complexo. De origem
abastada, tinha a possibilidade de dedicar-se confortavelmente poesia e seguir
sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro 179

uma promissora carreira poltica ao lado de Diaz, mas opta por romper com sua
condio de classe e acaba por aproximar-se dos mais radicais segmentos de es
querda. Ao longo de toda a trama, enfatiza-seo radicalismo de suas escolhas. Est
sempre disposto a correr riscos e ir at o fim. Quando no consegue realizar seus
projetos reage por meio da autopunio, mas jamais se deixa tomar pelo ressenti
mento. a personificao da nova sensibilidade revolucionria que daria origem
aos grupos de esquerda voltados para a luta armada.
A trama vivida pelas referidas personagens/foras sociais, caracterizadas aci
ma, ocorre em Eldorado, seguindo a seqncia tpica dos golpes de estado na Am
rica Latina naquele perodo.Segundo Ismail Xavier, o esquema geral que o filme
procurar elucidar e denunciar pode ser expresso da seguinte maneira:

[. . .] o desenvolvimento industrial de Eldorado, um pas ainda imerso


na estrutura colonial baseada na exportao de matrias-primas, traz novas
contradies. O crescimento da classe trabalhadora urbana cria uma nova
frente para a luta de classes. A industrializao apenas aguou as tenses
sociais no campo com a contnua frustrao da demanda dos camponeses
por terra. A velha estrutura agrria resta intacta. Dentro da oposio geral
campo/cidade, a burguesia nacional progressiva vista pela esquerda como
aliada do povo, na luta contra a aristocracia rural que luta pela preservao
da condio semifeudalno campo. Dentro da ordem capitalista internacio
nal, a anlise feita pela esquerda privilegia o conflito entre as foras nacio
nais incluindo os industriais e o imperialismo. Em sua concepo
etapista do processo histrico, a esquerda ortodoxa v o compromisso o
pacto social expresso no populismo como um avano ttico, primeiro
passo na modernizao que, pela criao de uma sociedade capitalista in
dustrializada, prepara o adventoda autntica revoluo socialista.^''

Em Terra em Transe os personagens (agentes sociais) seguem este esquema


geral: primeiramente Fuentes (burguesia nacional) faz um movimento para a es
querda, seguindo Paulo e seus aliados, no apoio a Vieira (lder populista), mas,
logo em seguida, Fuentes aceita a aliana proposta por Diaz (burguesia brasileira
aliadaao capital estrangeiro) para conter o avano dos movimentos sociais.
No esquemapopulista, operrios e camponeses cumprem o papel de massa
de manobra, j que s podem agir quando o espao poltico lhes oferecido de
maneira paternalista. O melhor exemplo disso a cena intitulada "O encontro do
ldercom o povo".Nela, observa-se a construode um espaotraioeiro, isto ,

[.. .] o espao aparentemente homogneo do terrao explodepelascon


tradies que o informam. Enquanto o povo danar o samba e esperar as
ordens do presidente ser bem-vindo ao palcio populista. Caso contrrio.

Ismail Xavier. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema novo, tropicalismo, cinema marginal,


cit., pp. 54-6.
alcides freire ramos

sofrer a sorte do homem do povo, preso na cilada. [. . .] Como Felcio (lder


campons que distanciou de sua classe e foi, por isso, derrotado), ele come
te o erro de se deixar cercar pelo popiilismo.-^'

Portanto, pelo fato de realizar radicalmente a dcsconstruo do populismo


participando dos debates e polmicas que mobilizavam a esquerda brasileira
no perodo ps 1964^** , o filme Terra em Transe pode ser considerado, sem som
bra de dvidas, a mais elevada manifestao de uma sensibilidade revolucionria

Mario Rosa Magalhes & Robcrt Slam. Dois encontros do lidcr com o povo: uma
dcsconstruo do populismo. In: Paulo Emlio Salles Gomes ct a). G/<n//'fr lioclui. Itio de laneiro: Pa/
e Terra, 1977, p. 156.
Para mais informaes, consultar: Alcides Freire Ramos. Temi cin 7>i/jsf (1967, Glaubcr
Rocha): esttica da recepo e novas perspectivas de interpretao. Fiix, Itevist.i de liisttkia c Es
tudos Culturais. Ubcilndia/MG, v. 3, ano 111, n." 2, abr./mai./jun. de 201)6, pp. 1-11. Disponvel cm:
<htlp;//\ww.rcvistarenix.pro.br/>. Acesso em 15 de novembro de 2006.
MEMRIA E HISTRIA NOS ESCRITOS AUTOBIOGRFICOS
DE SAN TIAGO DANTAS

Angela de Castro Gomes


Universidade Federal Fluminense

No h fatos, existem conseqncias de idias. (. . .] Eu


acho que se houvesse no Brasil uma pequena no era
muito ambiciosa, no uma pequena usina de idias
dentro do governo, nesse momento, a situao nacional
mudaria completamente.
Afonso Arinos de Mello Franco, Depoimento, 1982.

Pode-se dizer que a questo da subjetividade na Histria torna-se um pro


blema atraente e desafiador, a partir do momento em que os historiadores assu
miram o relativismo de seu saber. Desde ento, eles no s aceitaram que sua
prpria subjetividade constitutiva da construo do conhecimento histrico,
como igualmente se curvaram presena da subjetividade como varivel de orien
tao de condutas dos atores histricos, em quaisquer circunstncias do tempo e
do espao. Dito de outra forma, o enfrentamento da questo da subjetividade se
imps, quando o mtier do historiador exigiu que ele se tornasse um "homem de
cincia" um produtor de conhecimentos fundados na pesquisa, operando com
fatos e conceitos , e tambm um "homem de arte", sensvel e disposto a "com
preender". Na bonita imagem de Karl Schorske.
(Os historiadores] reconstituem o passado tornando relativos os fatos
e os conceitos. Os primeiros so escolhidos e interpretados graas aos se
gundos, que so utilizados to-somente para dar uma coerncia experin
cia. O historiador, portanto, no faz inteiramente justia nem a uns, nem a
outros. Ele os entrelaa e os enreda num nico tecido, que os apresenta sob
o signo da temporalidade. Na tapearia que o historiador tece, as dinmicas
diacrnicas so a urdidura, e as relaes sincrnicas so a trama.'

' CarI E. Schorske. L'histoirc et Ftude de Ia culture. Gendscs: sdenccs sodnlcs et hisloire. Paris,
n." I. sept., p. 7, 1990. isi
182 angela de castro gomes

Com tal viso do trabalho do historiador, tambm se pode dizer que a acei
tao da presena da subjetividade na Histria (da inexistncia da objetividade
"positivista"), abriu as portas de uma acurada reflexo sobre as relaes entre his
tria e memria. Sobre suas aproximaes o presentismo, a seletividade,o traba
lho com re-presentaes, etc. , e seus distanciamentos. Como se reconhece, cabe
memria sacralizar o passado, tornando-o monumento, ao passo que cumpre
histria produzir conhecimentos por meio de um exerccio crtico capaz de com
preender as interpretaes dadas a esse passado pelo presente, que busca sempre
divisar um futuro. Mas possvel dizer, com muitos outros historiadores, que se a
histria tem, fundamentalmente, esse compromisso crtico, no deixa de atuar
na construo de memrias e de integrar sua fabricao. Os historiadores podem
consagrar interpretaes de personagens, acontecimentos e perodos e, em o fazen
do, participar ativamente como profissionais especializados , da produo
de memrias nacionais e de grupos. No sem razo que se fala cada vez mais
dessa "relao indecisa" entre memria e histria, uma vez que, se certamente elas
no se confundem, com certeza implicam-se mutuamente.^ Ou seja, se a histria
faz uso da memria tornando-a, inclusive, um objeto de estudo , a mem
ria tambm faz uso da histria, incorporando-a como um de seus materiais.
Em grande parte devido a essa tomada de conscincia, os historiadores pas
saram a se interessar crescentemente pela dimenso subjetiva existente em "seus"
documentos. Sabedores de que a nica e precria garantia do exerccio da cienti-
ficidade a aceitao e o trabalho com tal subjetividade, trataram de no mais
escamote-la ou consider-la um obstculo anlise, mas sim de destac-la, tiran
do proveito das orientaes que ela pode apontar. Dessa forma, os historiadores
que utilizam como fonte privilegiada de suas pesquisas, os chamados documen
tos auto-referenciais acabam sendo forados a refletir mais intensamente sobre
tal questo. Isso porque tais documentos,por integraremprticasculturais de pro
duo do "eu" por serem uma escrita de si , evidenciariam, de forma clara, a
dimenso subjetiva presente na narrativa dos atores histricos. No caso da do
cumentao textual,por exemplo, o uso da primeira pessoa do singular, o carter
coloquial da linguagem, o cotidiano ou mesmo o confessional da escrita, expon
do desejos, dvidas e realizando balanos de vida, ilustrariam tal operao, imagi
nada e tambm esperada pelo pesquisador.
Contudo, e esse o ponto desteartigo,nem sempre o que ocorre. Documen
tos auto-referenciais podem ter, com freqncia, caractersticas de uma escrita de
si que busca, explicitamente,dissolver a subjetividade do "eu"narrador, construin-
do-se com a inteno de, sem abrir mo de seu carter testemunhai, alcanar um
"mximo de objetividade". Trata-se,digamos, de uma estratgia narrativa inversa
que os historiadores esperariam e desejariam encontrar emtais documentos. Nesse
caso, de um lado, eles poderiam ser pensados no tanto como uma escrita autobio-

^ Sobre tais relaes ver, em especial: Fernando Catroga. Memria, histria e historiografia.
Coimbra: Quarteto, 2001, pp. 40-51; Henri Rousso. A memria no mais o que era. In: Marieta M.
Ferreira & Janana Amado (org.). Usos e abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996; Robert
Frank. La mmoire et Thistoire. Les cahiers de L'IHTP, n." 21, nov. 1992.
memria e histria nos escritos autobiogrficosde san tiago dantas 183

grfica stricto semu, mas sim como uma escrita contendo, de forma forte, "marcas
autobiogrficas", indicando, assim, a relao estreita entre histria e memria pessoal.
Deoutro lado,poderiamserentendidoscomoexemplos mais radicais de uma carac
terstica prpria escrita de si,j apontada por muitos estudiosos: o distanciamento
entre o narrador e seu personagem, que se manifesta quando o "eu" que narra se
representa como "um outro" (assumindo inclusive a terceira pessoa do singular para
falar/escrever). Umaconstruo produzida nosomente pelotrabalho comos vrios
tempos da narrativa (o momento da narrao e os diversos momentos narrados),
como igualmente pelo trabalho do autor, que tem um projeto evidente de realizar
um diagnstico "objetivo"e fundamentado do contexto em que atuou. Em outras
palavras, um projetoque engloba a narrao da histriade vidado narrador e tam
bma histria da qualelafaz parte.Naspalavras de Fernando Catroga:

Com efeito, quando uma recordao tem um propsito mais cognitivo


e pretende ser testemunho (e o evocador uma testemunha), assiste-se a uma
espcie de cesura interior, a um auto-distanciamento, no qual o sujeito se
comporta, mesmo em relao aos eventos que lhe dizem diretamente res
peito, como se fosse um outro que os tivesse presenciado, isto , como se
tivesse sido uma terceira pessoa a viv-los.^

O que se gostaria de acrescentar a essa reflexo a hiptese de pens-la em


funo da documentao autobiogrfica produzida por polticos, principalmente
quando eles se percebem, desejam se representar e, obviamente, desejam ser re
conhecidos, como intelectuais. Uma categoria "especial" de polticos, que se im
poria o dever (e teria o direito) de produzir documentos autobiogrficos tambm
"especiais", pela legitimidade da condio de intelectual capaz de testemunhar e
fazer anlises histricas, ao mesmo tempo. Nesse sentido, a escrita de si do polti
co/intelectual, alm de aproximar o pesquisador de suas intenes particulares e
"profundas", oferece-lhe, de forma explcita, o traado de suas circunstncias, se
gundo sua prpria e abalizada perspectiva.Isso ocorre, como se est aqui sugerin
do, porque tais atores/autores compreendem que possuem uma capacidade
cognitiva maior que a de outros polticos, assumindo que so produtores de in
terpretaes sociais, entre as quais estaria apenas mais uma: a interpretao de
sua prpria vida. Por tal razo, o "eu" que se dispe a narrar teria um compromis
so mais que autobiogrfico, desejando, conscientemente, produzir uma justifica
tiva de sua vida/atos, por meio da reflexo sobre o contexto maior em que viveu.
S assim, o texto produzido seria capaz de alcanar o duplo e indissocivel reco
nhecimentode sua autoridade. Ele serialegtimo e "verdadeiro" porque atestaria a
vivncia e se apoiaria na sinceridade do narrador, mas mobilizaria igualmente o
conhecimento especializado e a capacidadede anlise do intelectual.
Documentos autobiogrficos de polticos/intelectuais podem, portanto, cons
truir-se nessa fronteira evidente e consciente entre subjetividade e objetividade,

Fernando Catroga, op. cit., p. 47,


184 angela de castro gomes

havendo o desejo da segunda prevalecer sobre a primeira, sem a destruir, sem a


eliminar. Para o historiador, essa condio indica, claramente, que o trabalho de
memria investiu em uma delicada e desejada operao de seleo; uma escolha
cuidadosa "do que" deveser lembrado e "de como" deve ser narrado.
Tendo tal pano de fundo, este artigo se prope a fazer uma reflexo sobre
documentos autobiogrficos, realizando um exercciocom textos auto-referenciais
de autoria de Francisco Clementino de San Tiago Dantas. Seu objetivo instigar
os historiadores a pensar como esses polticos, que reivindicam a condio de in
telectuais, podem trabalhar com a dimenso da subjetividade em seus escritos.
Isto , como podem mobilizar tal subjetividade, tendo como meta produzir uma
anlise "objetiva", cujos desdobramentos seriam, tanto orientar novas aes pol
ticas, como produzir diagnsticos da realidade social mais ampla. No caso de San
Tiago Dantas, o exerccio tambm ajudaria a entender a conformao de um pen
samento poltico democrtico e nacionalista no Brasil dos anos 1940-1960, no
qual ele representaria uma vertente sofisticada e frustrada.
O artigo, numa primeira parte, procura apresentar brevemente San Tiago
Dantas aos leitores, tratando tambm de situar o arquivo onde se encontram os
documentos escolhidos para o estudo;numa segundaparte, esses documentos so
caracterizados, procurando-se,em cadaum deles, perseguir a estratgia construda
pelo narrador para se representar como autor de um testemunho que tambm
uma reflexo intelectual; como autor de memrias e de Histria, a um s tempo.
Metodologicamente, o que se procura,quando da seleo dos documentos, tra
ar uma trajetria de vida de San Tiago, evitando um relato linear e exaustivo.
Dessa forma, o texto quer enfatizar o carter descontnuo dessa vida, unindo os
fios que os documentos apontam para, com eles, buscar alcanaro projeto de re
presentao de si e da realidade do pas,almejado pelo autor.

SanTiagoDantase seusdocumentos autobiogrficos

Francisco Clementino de San Tiago Dantas nasceu em 1911, no bairro ca


rioca de Botafogo, integrando uma famlia de militares. Seu av lutara na Guerra
do Paraguai e seu pai comandara o encouraado Minas Gerais, durante a Segun
da Guerra Mundial.'' Alm disso, ele foi chefe do Estado-Maior da Armada, entre
1951 e 1953, portanto, durante o segundo Governo Vargas. A poltica e o Direito
orientaram a trajetria de San Tiago, que talvez possa ser aproximado dos inte
lectuais polgrafos do incio do sculo XX, tantas eram as faces de seu proclama
do conhecimento: o campo jurdico, a economia, a educao, a filosofia, a so
ciologia e, naturalmente, a poltica. Apesar disso, ele no um poltico ou um
intelectual muito visitado pela pesquisa acadmica, embora seja um nome bas
tante mencionado. A exceo, que confirma a regra, est na rea das relaes in-

* Para uma biografia densa e no muito longa sobre San Tiago, consultar o verbete de autoria
de Vilma Keller em Alzira A. Abreu; Israel Beloch; F. Lattman-Weltman & Srgio Lamaro (coord.).
Dicionrio histrico biogrfico brasileiro, v. 11. 2." ed. (ver. e ampl.) Rio de Janeiro: Fundao Getlio
Vargas, pp. 1792-1797.
memria e histria nos escritosautobiogrficosde san tiago dantas 185

ternacionais, uma vez que a poltica de e para San Tiago Dantas era indissolu-
velmente interna e externa.
Seu incio de vida adulta pode ser datado da entrada na Faculdade Nacional
de Direito do Rio de Janeiro, no fim dos anos 1920, quando tem contato com os
acirrados debates que precederam e sucederam a Revoluo de 1930. O "proble
ma da formao da nacionalidade", frmula que enunciava e sintetizava as preo
cupaes que agitavam os meios polticos e intelectuais dessa poca, tambm cap
turou San Tiago, particularmente atrado pelas idias nacionalistas e autoritrias
do escritor Plnio Salgado. Inicia entosuacarreira de poltico e de escritor, atuando
nos meios jornalsticos e escrevendo em revistas como Hierarquia, dedicada pro
paganda dos ideais integralistas e A Ordem, do Centro D.Vital,dirigido por Alceu
Amoroso Lima. Nessa atividade, logo se destaca, pois convidado para ser asses
sor de gabinete do ento ministro da Educao e Sade, Francisco Campos.
Em 1932, j formado em Direito, ftmdada a Ao Integralista Brasileira
(AIB), e ele dos primeiros a aderir,tornando-se defensor de um Estado corporativo
no Brasil. Uma posio que iria sustentar at a implantao do Estado Novo, quan
do, devido proibio dos partidos polticos e conspirao integralista contra
Vargas, afasta-se da AIB,do autoritarismo, do corporativismo, mas no do nacio
nalismo. Abandona a militncia poltica e se dedica prtica da advocacia e ao
magistrio, chegando a ocupar duas ctedras: na Faculdade de Arquitetura e na
Faculdade de Direito, ambas da Universidade do Brasil. Paralelamente, a partir de
1945, passa a desempenhar uma srie de fmes de assessoramento ao governo
federal, o que culmina com sua ao como assessor pessoal do Presidente Vargas,
no momento da preparao do anteprojeto de criao da Petrobrs,em 1953.
O segundo Governo Vargas traz, sem dvida, uma nova insero de San Tiago
no campo da poltica, ao possibilitarsua participao em vrias reunies de organis
mos internacionais como representante do Brasil. Mas s aps o suicdio do
presidente, que ele toma a deciso de se filiar ao Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), inaugurando sua carreira poltico-partidria: deputado federal por Minas
Gerais, em 1958 e 1962,e tambm o pr-candidato a vice-governador do estado,
em 1958, numa chapacomTancredo Neves, do Partido Social Democrtico (PSD).
No PTB, desde 1955, aproxima-se muito de JooGoulart, tornando-se,rapidamen
te, um dos mais importantes lderes do partido e um de seus quatro vice-presi-
dentes, alm de um dos expoentesdo bloco parlamentar formado pelo PSD-PTB,
durante o Governo de Juscelino Kubitschek. Quando da renncia de Jnio Qua
dros, integra a comisso interpartidria que elabora a Emenda Constitucional que
institui o Parlamentarismo, permitindo a sada da crisee a posse de Jango na Pre
sidncia da Repblica, em setembro de 1961.
No perodo parlamentarista, no gabinete ministerial de TancredoNeves, San
Tiago assumiu a pasta das Relaes Exteriores. No governo presidencialista de
Jango, foi seu ministro da Fazenda, de janeiro a junho de 1963, quando renuncia
e reassume sua cadeira na Cmara Federal. Em meio ao intenso processo de
radicalizao da poltica brasileira, San Tiago uma figura polmica e muito
criticada, a despeito de muito respeitada, particularmente por sua imagem de
186 angela de castro gomes

intelectual brilhante, especialmente por seu saber jurdico. O ltimo ano de vida
desse jurista, que morre em setembro de 1964, vitimado por um cncer, de in
tensa atividade poltica. Inicialmente, na tentativa de montagem do que se tor
nou conhecido como Frente de Apoio s Reformas de Base, uma frente interpar-
tidria que lutaria por reformas econmico-sociais, dentro do quadro da legalidade
institucional, dentro da democracia representativa. Depois do movimento civil e
militar de maro de 1964, marginalizado e muito doente, marca sua presena es
crevendo um manifesto Nota Prvia Sobre o Reagrupamento das Foras Polti
cas Brasileiras, em 1964, no qual prope medidas para o fortalecimento da le
galidade democrtica, a fim de evitar que a futura sucesso presidencial (prevista
para 1965), produzisse o recrudescimento do poder dos militares.^ Vencido em
suas propostas polticas, ele uma das poucas lideranas petebistas a no ser cas
sado. Remotamente, por algum tipo de respeito e, muito certamente, pela total
inutilidade do ato h muito todos sabiam que ele ia morrer , o Presidente
Castelo Branco recusa seu pedido de cassao.
Como fcil perceber por essas resumidas notas biogrficas, estamos tra
tando de um poltico que tem na atuao e reconhecimento intelectuais um imen
so recurso de poder. Contudo, esse um intelectual que, embora tenha escrito
bastante, no autor de muitos livros. Seupensamento est nos inmeros textos,^
de vrios tipos e tamanhos, com vrias destinaes e para vrios pblicos, que es
creveu ao longo da vida. Literalmente, pois morreu atuando politicamente como
escritor; fazendo da reflexo e da anlise uma forma de interveno poltica. Por
tanto, lcito considerar que sua produo intelectual se fez sempre referenciada
aos acontecimentos do cenrio poltico, nacional e internacional, e possuindo for
tes objetivospragmticos, o que no a destituide sofisticao intelectual.
O conjunto de papis doadosao Arquivo Nacional por sua mulher, em 1974
ano do incio da "abertura lenta e gradual" do Presidente/General Geisel ,
so fonte e objeto de estudo preciosos para o historiador. Um arquivo que rene
cerca de 6.500 documentos, abrangendo um perodo que vai de 1929 a 1964, ou
seja, do ano da entrada no curso de Direito at a morte, aos 53 anos de idade.^
Quando consultado, o arquivo estava organizado a partir de um arranjo que pri-
' O texto foi publicado por Carlos Castelo Branco, na sua coluna do Jornal do Brasil, trs dias
aps a morte de San Tiago, ocorrida em 6 de setembro de 1964.
Entre os livros de autoria de San Tiago Dantas, destacam-se os programas e aulas de Direito
Civil na Faculdade Nacional de Direito, publicados e reeditados desde os anos 1970. Nessa rea, vale
ainda destacar os livros. Palavras de um professor (Rio de Janeiro: Forense, 2001 [1975]) e Problemas de
Direito Positivo (Rio de Janeiro: Forense, 2004), que rene seus pareceres jurdicos. Em outra linha
escreveu: Dom Quixote: uma apologia da alma ocidental. Braslia: UnB, 1979 [1964]; Poltica externa
independente, Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1962; Produtividade: aspecto institucional. Rio de
Janeiro: Universidade do Brasil/Instituto de Cincias Sociais, 1962 (Cadernos de Cincias Sociais, 6);
e, com outros autores. Educao no Brasil: Anais do Conselho Tcnico da Confederao Nacional do
Comrcio. Rio de Janeiro: CNC, 1995. Sua atuao parlamentar tem registro em Discursos parlamenta
res, com seleo e introduo de Marclio Marques Moreira. (Braslia: Cmara dos Deputados, 1983)
(Perfis Parlamentares, 21).
' Este arquivo pessoal foi consultado por mim em pesquisa desenvolvida entre 1992 e 1994, que
resultou, entre outros produtos, no artigo Trabalhismo e democracia: o PTB sem Vargas. In: Angela
de Castro Gomes (org.). Vargas e a crise dos anos 1950. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994.
memria e histria nos escritos autobiogrficos de san tiago dantas 187

vilegiava as vrias dimenses da trajetria profissional de seu titular: professor,


advogado, parlamentar, ministro das Relaes Exteriores e da Fazenda, assessor
da Presidncia da Repblica, etc. Os documentos compreendiam uma tipologia
bem variada: minutas, ofcios, pareceres, relatrios, correspondncia ativa e passi
va, estudos, discursos, conferncias, manifestos, entrevistas, programas de aula,
alm de uma coleo de recortesde jornal (LUX) e um conjunto de fotografias.
No caso dos documentos textuais, eles podiam ser encontrados manuscri
tos, datilografados ou impressos, havendo predominncia dos dois primeiros. Foi
possvel observar uma concentrao da documentao nas dcadas de 1950e 1960,
justamente aquelas em que San Tiago est no auge de sua vida intelectual e reto
ma a militncia poltica, abandonada no final dos anos 1930. Outra caracterstica
interessante a remarcar o fato de boa parte desses documentos, sobretudo os
que no foram produzidos na dinmica administrativa, terem sido escritos para
serem lidos em voz alta, guardando a retrica da forma de comunicao oral, da
oratria, caracterstica da poltica. Evidentemente h textos redigidos tendo em
vista a publicao, mas mesmo essespodem ter sido, originalmente, objeto de al
gum tipo de leitura. Alm disso, alguns deles como certas notas e discursos
foram escritos, ainda que na primeira pessoa do singular, para serem lidos por
outro, no caso,por Joo Goulart, uma vezque San Tiago foi seu ghost writer.^

San Tiago Dantas: itinerrio de vida e anlise poltica

Desseamplo e diversificado conjunto, poucos documentos podem ser con


siderados auto-referenciais, excluindo-se a correspondncia, que no est sendo
aqui considerada. A maioria absoluta acompanha a mitncia poltica do titular
e seu engajamento nas atividades de magistrio, traduzindo o binmio, poltica e
educao, marcante em sua vida. Alguns deles, porm, assumem um tom teste
munhai ou, dito de outra forma, tm fortes "marcas autobiogrficas", muito em
bora no abandonem a perspectiva da anlisehistrica, mais estritamente poltica
e "objetiva". Trs deles sero destacados neste exerccio, por assinalarem momen
tos significativos de sua trajetria e por terem sido produzidos com a inteno de
representar o autor para um certo pblico, em um dado momento e com um
dado objetivo. Em cada caso, importa registrar: quando e em que circunstncias
foram produzidos; para que pblico se destinaram; quais foram as formas de seus
suportes materiais; quaisassuasestratgias narrativas, particularmente as de apre
sentao do "eu".
O primeiro documento intitula-se Rompimento com o Integralismo e foi es
crito em 6 de outubro de 1942.' um texto datilografado, de sete pginas, que

' Como exemplos podem ser citados dois textos. O discurso datilografado e corrigido de
prprio punho por San Tiago, para ser lido por Jango na 12.* Conveno Nacional do PTB, que
sanciona a chapa para a sucesso presidencial de JK Lott e Jango (Ap 47 (37), pacotilha 2) e um
texto datilografado, datado de 29/12/1963, reafirmando a defesa das reformas de base (Ap 47 (43)
pacotilha 3).
* Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (30), pacotilha 2, doe. 16. Arquivo Nacional.
188 angela de castro gomes

tem em anexo um comentrio de duas pginas, sem autor. Em seu primeiro pa


rgrafo, fica-se sabendo em que contexto foielaborado:

No tenho palavra seno de louvor para o inqurito que o Dirio de


Notciasest promovendo, pois tempo de trazer a pblico, num amplo de
bate de boa f, o problema do Integralismo em faceda guerra declarada pelo
Brasil aos pases fascistas. Sob muitos aspectos pode e deve ser encarada essa
questo, e uma vez que me disponho a falar sobre ela, no omitirei o trata
mento de nenhum deles, falando com toda a sinceridade, sem considera
es de oportunidade e sem reticncias, pois estou certo que devemos tratar
estas grandes coisas pensando menos no dia de hoje do que no de amanh.'"

Escrito na primeira pessoa do singular e tendo como ponto de partida a de


clarada inteno de "falar com sinceridade",o texto seria publicado no jornal Dirio
de NotciaSy que realizava um inqurito sobre o "problema do Integralismo". Em
pleno Estado Novo e no momento em que o governo brasileiro acabava de decla
rar guerra ao Eixo (agosto de 1942) pressionado pela opinio pblica e tam
bm interessado em se posicionar abertamente como aliado dos EUA, o movi
mento integralista, devido a sua clara inspirao fascista, era matria de interesse
jornalstico.
Se o integralismo era ento um problema para o Brasil, tambm o era para
San Tiago, que, mesmo tendo se afastado da AIB e de Plnio Salgado alguns anos
antes, era questionado pelo jornal sobre sua adeso anterior, devendo, em suas pr
prias palavras, justificar sua nova posio poltica. Afinal, a militncia integralista
marcara sua entrada na vida pblica desde o incio da dcada de 1930, quando se
manifestara intensamente, por palavras e atos, destacando-sepor suas qualidades
intelectuais. Assim, com a finalidade explcita de produzir uma "justificativa p
blica e sincera", o texto constri uma estratgia narrativa bastante interessante.
Isso porque, aps essa declarao de princpios, o autor passa a elaborar uma cui
dadosa anlise, cujo objetivo explicar as razes do fracasso dos partidos de direi
ta como "rgo de defesado nacionalismo", no mundo. Dessaforma, o integralismo
inicialmente apresentado como a "expresso do ideal poltico da direita", tendo-
se organizado, formalmente no Brasil, em 1932, mas cessando em 1937. Isto ,
San Tiago sinaliza que o movimento j havia se esgotado, tendo durado exatos
cinco anos de profundas transformaes da ordem social brasileira e internacio
nal. No pas, institura-se o Estado Novo e, no mundo, a acirrada luta entre direi
ta e esquerda fora surpreendida por uma "evoluo imprevista", qual seja, a das
afinidades entre ambas.
Nesse sentido, as crenas e valores que orientavam tanto comunistas, como
integralistas no Brasil, particularmente aps os "surtos criminosos" de 1935 e de
1938, evidenciaram total esgotamento. Ficaram clarasas dificuldades de manuten
o de seus compromissos intelectuais e morais com tais "frmulas" que, na verda-

Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (30), pacotiiha 2, doe. 16, Arquivo Nacional, p. 1.
memria e histria nos escritosautobiogrficos de san tiago dantas 189

de> foram elaboradas em outros contextos. No caso do integralismo, o ideal era a


resistncia ao intemacionalismo e luta de classes, proclamando-se o naciona
lismo e a doutrina corporativa do equilbrio das classes, como possibilidade de
justia social. Mas ocorreram graves mutaes nessa proposta que, internacional
mente, tornou-se defensora de um "socialismo de Estado e de uma filosofia racis
ta**, orientados pelo expansionismo. Nas palavras deSan Tiago, ospartidos dedireita
tornaram-se adeptos de uma "ideologia deescravos**, transformada emmovimen
topoltico antinacionalista, o que osaproximou daproposta daesquerda, original
mente sob combate. Por isso, escreve: " necessrio que se tenha a coragem de
proclamar a falncia irremedivel dadireita nomundo moderno, porterela chega
do, em quase todos os pases, auma contradio com os seus ideais primitivos**."
Nesse ponto, ele conclama a "mocidade brasileira** a romper, corajosa e re
solutamente, com seus compromissos com a direita, quer como partido quer como
ideologia, condenando seus princpios liminarmente. , de maneira um pouco
surpreendente, pondera que integralistas e comunistas, oupoderiam pennanecer
aprisionados por idias formuladas em "outras circunstncias**, oupoderiam evo
luir**, abraando novos ideais. Contudo, reconhece que, no Brasil, entre 1935 e
1942, a "evoluo** no foi tarefa fcil, pela inexistncia de um ambiente pblico
que possibilitasse o debate e"a experincia poltica**. Houve, segundo ^eu diag
nstico, uma espcie de "pausa**, que impediu toda "circulao poltica, fazendo
com que cada homem tivesse de realizar"no seu foro ntimo as suas prprias trans
formaes**.
Aanlise destaca, dessa forma, que, desprovida de espao pblico por anos,
a sociedade brasileira, em 1942, voltava a reclamar o debate de idias sobre o Es
tado, sem conhecer, contudo, a posio ideolgica de seus homens, de seus polti
cos. Omomento era estratgico, sobretudo porque aguerra exigia^a retomada do
nacionalismo e a mobilizao do povo como "atitudes virtuosas. Por ^isso, San
Tiago no se furtara ao inqurito do jornal, explicitando seu movimento interior
esua nova posio pblica. Ou seja, ele revela sua transformao, que tem lu^r
em espao privado/subjetivo, aventando que aexistncia de tais movimentos in
teriores**, poderia estar sendo compartilhada por muitos outros polticos. Mas tais
mudanas permaneciam desconhecidas da sociedade, em funo da inexistncia
do debate poltico. Era ento fundamental reverter tal situao, j que a poltica
s existe no espao pblico, demandando explicitao de posies, que no po
dem ser apenas privadas.
O texto, por conseguinte, realiza uma operao narrativa sofisticada. Ele
explicita esocializa aexperincia individual do testemunho prestado, para ganhar
mais fora elegitimidade. Nesse sentido, seu objetivo convencer oleitor de dois
pontos: a) que o autor viveu o que muitos tambm podem ter vivido; b) que seu
posicionamento pblico um exemplo para outros homens e polticos, instados
ase situarem publicamente, como ele. S assim, pelas concluses de San Tiago, o
pas poderia retomar o caminho da poltica, sem ressentimentos pessoais e
" Ibidem, p. 3.
190 angela de castro gomes

partidrios. S assim, o pas poderia enfrentar a guerra e, principalmente, prepa


rar-se para a paz futura. Provavelmente, em funo desse futuro/presente que
San Tiago escolheu como epgrafe de seu depoimento ao jornal, um pargrafo de
Paul Valry, extrado de Regarde sur le MondeActuel: "II ne faut pas hsiter faire
ce qui dtache de vous Ia moiti de vos partisans et qui triple Tamour du reste".

O segundo documento escolhido para este exerccio um manuscrito de


cinco pginas, sem ttulo.'^ Trata-se de uma minuta que apresenta San Tiago
Dantas ao cargo de vice-governador do estado de Minas Gerais. Sem estar datado,
ele provavelmente do ano de 1958,quando seu autor pretendia lanar-se candi
dato pelo PTB, na chapa que seria encabeada por Tancredo Neves, do PSD. Na
ocasio, Tancredo era o secretrio de Finanas do governador Bias Fortes e seu
"natural" sucessor chefia do estado. Mas, em funo de um mandato de cinco
anos, no houve pleito para o governo de Minas nessa data. San Tiago, portanto,
acabou sendo eleito deputado federal pelo PTB e Tancredo, s em 1960, concor
reria s eleies ao governo do estado, sendo derrotado por Magalhes Pinto, da
Unio Democrtica Nacional (UDN).'^
Nesse documento, como a inteno era apresentar um candidato a um p
blico de eleitores, a redao assumiu a terceira pessoa do singular, escolhendo-se
a forma de um tipo de currculo que repassa, de maneira comentada, a trajetria
poltica do postulante. Por suas caractersticas, a hiptese a de que foi produzido
para ser publicado na imprensa e tambm para ser lido, por outra pessoa, que
apresentaria o nome de San Tiago. No texto, o autor fala de si mesmo como um
outro, o que lhe permite uma cmoda distncia para uma enunciao de suas
qualidades. E elas no so poucas, como se ver. Dessa forma, o que temos uma
bem-construda seleo de qualidades pessoais e acontecimentos da vida pblica,
realizada pelo prprio San Tiago, para ser amplamente divulgada. Ele permite ao
pesquisador aproximar-se das formas como esse indivduo, naquelas especficas
circunstncias, estava querendo mostrar-se aos demais e ser por eles reconhecido.
Ainda que se desconte o fato de ser um documento de campanha eleitoral, a di
nmica entre subjetividade e objetividade que se est buscando assinalar, no
perdida em momento algum.
Vale de incio relembrar que estamos situados no curso do Governo de JK,
com Braslia sendo construda e com os debates sobre essa obra/projeto, agitando
todo o campo poltico. Desde 1955,San Tiago Dantas se filiara ao PTB e se envol
vera extremamente com a seo de Minas, por indicao de Jango, que desejava
fortalecer o partido no estado, onde PSD e UDN dominavam. Sua carreira fora
meterica, no apenas em funo do vnculo que, desde o incio, estabeleceu com
o grupo janguistae com o prprio Jango, como tambm por sua capacidade inte-

Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (43), pacotilha 2, doe. 43. Arquivo Nacional.
Unio Democrtica Nacional, partido antigetulista e de oposio aliana PSD-PTB que
sustentava o Governo JK.
memria e histria nos escritos autobiogrficos de san tiago dantas 191

lectual como jurista e pensador social. Certamente devido a essa reconhecida ca


pacidade, ele era um petebista que tinha excelente trnsito no PSD em mbito
estadual e federal, tendo chegado a ser convidado por JK, no incio do mandato,
para ocupar uma pasta ministerial.'"' Pelas mesmas razes, alcanara uma das vice-
presidncias do PTB e era o secretrio-geraldo partido em Minas. Com todos es
ses ttulos, seu nome foi indicado para a vice-governadoria desse crucial lociis da
poltica brasileira.
Como ento esse poltico "mineiro" se apresenta ao eleitorado? Enfim, como
deseja servisto no campo da poltica? A primeira e praticamente grande resposta
estcondensada, por elemesmo,logono pargrafo de abertura:

O professor Francisco Clementino de San Tiago Dantas, que o Partido


Trabalhista Brasileiro apresenta como candidato vice-governadoria de Mi
nas, rene em sua personalidade as caractersticas do intelectuale do homem
de ao. O seu infatigvel dinamismo, que faz com que ele transforme, em
curto prazo, os projetos mais complexos em realidade, e permite que ele se
ocupe simultaneamente de um nmero de problemas, capaz de consumir
a energia de vrios indivduos.'^

Sem falsas modstias, o texto apresenta um homem excepcional. Ele ca


paz de fazer com rapidez e eficincia tarefas que ocupariam vrios homens "nor
mais". Uma afirmao retomada no encerramento do documento, quando o au
tor se resume como um "homem pblico, smbolo da capacidade, clarividncia,
equilbrio e esprito realizador". Adjetivos, que a memria do eleitorado mineiro,
qualificado como "culto e independente", bem podia associar aos que freqente
mente foram aplicados pessoa de Getlio Vargas, sempre lembrado como refern
cia mxima do PTB. Vargas, o homem excepcional, que foi capaz de dar a prpria
vida em defesa de sua honra e de seus projetos parao pas, e que, como escreveu
na carta-testamento, saiu da vida para entrar na histria. Uma lembrana, vale
ressaltar, muito viva na poca, alm de muito disputada quer por polticos pete-
bistas, quer pessedistas, como o prprio JK, sucessor deVargas.
Mas o que sedestaca nessa representao de San Tiago, por ele mesmo, at
pelos grifos no documento, a combinatria entre as caractersticas de intelectual
e homem de ao, que explicariam sua capacidade de"realizar", ou seja, de trans
formar idias em fatos; mais precisamente ainda, de transformar "suas" idias em
fatos. Essa dicotomia pensamento/idias x fatos/ao tem sido remarcada
emanlises sobre a auto-representao de polticos brasileiros, o que talvez possa
nos autorizar a trat-la como uma espcie de frmula compartilhada, mediante a
qual os integrantes do campo da poltica, particularmente durante a experincia

Tendo ingressado no PTB em 1955, San Tiago torna-se, em maio de 1956, no incio do
Governo JK, assessor do ministro da Justia, Nereu Ramos. Nessa condio sondado para assumir
a pasta da Agricultura, mas declina, alegando desejar candidatar-se nas eleies de 1958.
Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (43), pacotilha 2, doe. 43, p. 1, grifos do autor. Arquivo
Nacional.
192 angela de castro gomes

da Repblica de 1945-1964,interpretavam as possibilidades e os estilos de se fazer


poltica. Em uma fina anlise sobre a entrevistade Afonso Arinos de Mello Fran
co, concedida ao CPDOC em 1982/83, Verena Alberti"^ destaca esse ponto, refle
tindo sobre a percepo que Afonso Arinos tem de seu estilo poltico, bem como
da existncia, digamos, de modelos observveis de se fazer poltica nos idos de
1940 a 1960. O mesmo perodo em que San Tiago Dantas est atuando, o que
torna a utilizao das mesmas categorias de classificao,algo a ser considerado e
destacado.
Nesse sentido, retomando a reflexo de Afonso Arinos (e de Verena), have
ria os "homens de ao", entendidos como tendo capacidade de articulao, de
agremiao e de realizao, uma vez que dominavam "informaes" e produziam
"fatos". E haveria os "homens da palavra", mestres da tribuna e da oratria, que
eram reconhecidos por ter "conhecimento" e, com eles, produzir "idias/projetos".
Era nessa segunda categoria de polticos que Afonso Arinos se classificava, ao lado,
por exemplo, de Gustavo Capanema e em distino a Artur Bernardes e, certa
mente, a Getlio Vargas.
Como o artigo mencionado demonstra, essa dicotomia tem fronteiras fluidas
e permite muitos deslizamentos, havendo combinatrias e possibilidades de nfa
ses diferenciadas. De toda forma, ela permite uma aproximao da percepo que
os polticosconstrem para si mesmo, para outros polticos e para o campo poltico,
ele mesmo. Justamente por isso, interessante tentar no assimilar diretamente
o "poltico da palavra" categoria de intelectual, usada por San Tiago. Ou seja, o
que se prope aqui pensar que o intelectual no era, fundamentalmente, "ape
nas" um bom orador, embora devesse ser um "homem da palavra" (falada e escri
ta). Ele tinha de ser, alm disso e sobretudo, um homem de "idias": um produtor
de projetos polticos e um intrprete da realidade social, em sentido amplo. Dessa
forma, pode-se imaginar que a "palavra" e a "idia" podiam conviver em doses
relativamente distintas em um poltico. Isto , que Afonso Arinos e Carlos Lacerda
eram tribunos da UDN, mas que o segundo dificilmente seria entendido exata
mente da mesma forma que o primeiro por seus contemporneos ou analistas.
E era essa a condio que San Tiago reclamava para si, em primeiro lugar.
Mas, esse o ponto, no como oposta ou desvinculada da capacidade de ao. Ao
contrrio, era por meio de uma harmoniosa combinatria que se produzia sua
excepcionalidade como liderana. Ele queria se representar como um homem
capaz de ter idias e de transform-las em ao. Nessesentido, ele se tornava com
parvel, por exemplo, a Juscelino Kubitschek, um grande "realizador". Entretan
to, diferentemente dele, San Tiago transformava "suas" prprias idias em proje
tos e fatos.
Depois dessa apresentao, San Tiago organizasua trajetria, de olho no elei
tor mineiro, resumindo-a em tpicos, como os de um currculo. A enumerao
desses tpicos, sempre reunindo um conjunto de informaes muito objetivas
Refiro-me e inspiro-me ao artigo de Verena AJberti. 'Idias e fatos' na entrevista de Afonso
Arinos de Mello Franco. In: Marieta de Moraes Ferreira (org.). Eiitre-vistas: abordaj^ctis e tiso da
histria oral. Rio de Janeiro: FGV, 1994.
memria e histria nos escritos autobiogrficos de san tiago dantas 193

(assessorias, encargos no exterior, eleies, projetos de lei, etc.)> permite entender


melhor que perfil e que itinerrio esto sendo traados: o jurista professor; o
jurisconsulto; o internacionalista; o poltico; Braslia e Guanabara; nacionalismo;
vice-governador. Uma primeira observao em relao a esse ordenamento, diz
respeitoao marco inaugural escolhidopara dar partida trajetria de vida pblica
do candidato. Trata-se do ano de 1942,quando ele assume a direo da Faculdade
Nacionalde Filosofia da Universidade do Brasil, tornando-se, em suas palavras,"o
verdadeiro organizador desse novo ramo do ensino". Ou seja, sua militncia inte
gralista, registrada e justificada em seu texto de outubro de 1942, anteriormente
examinado, completamente esquecida. Sua vida, para fins eleitorais, assenta-se
no na atividade poltica desenvolvida nos anos 1930, mas na prtica docente e
jurdica. Essafora iniciada, com glria, na dcada de 1940,e se prolongara duran
te os anos 1950, quando seus contatos com a poltica retornaram de duas formas
bsicas: em cargos de assessoria jurdica no pas e em misses no exterior; e como
poltico-parlamentar, a partir de 1958.
Durante todo esse itinerrio, dois compromissos fundamentais possibilita
riam sua segura orientao. A fidelidadeaos princpios nacionalistas, mas de forma
equilibrada, e a defesa do trabalhismo, em nome do qual se prope a ser "um
advogado das causas populares junto ao governo federal e ao do estado (de Mi
nas)". Mas o nacionalismo tem destaque particular, pois o que d unidade a
toda atuao poltica de San Tiago, expressa nas funes de redator, relator e au
tor de leis, e tambm de defensor dos valores democrticos, pois, no mundo mo
derno, no deveria mais haver nacionalismo sem democracia.'^ Talvez seja por tal
diagnstico alm das razes eleitorais evidentes para um homem que se apre
senta como preocupado com as causas populares , que San Tiago ignore seu
passado integralista. Segundo elemesmo, como j se viu, a direita havia fracassa
do na defesa dos ideais nacionalistas, que deviam ser buscados em outro espectro
poltico. Assim, mesmo recusando os excessos e o radicalismo da esquerda, reco
nhecia e queria engrossar umaoutra esquerda, uma esquerda "equilibrada", como
desejava e propunha que o PTB simbolizasse e praticasse,a partir de ento.

O terceiro e ltimo documento a ser analisado um discurso, pronunciado


no Rio de Janeiro, em outubro de 1963, no qual San Tiago Dantas agradece
revista Viso sua escolha como "Homem de Viso de 1963". O ttulo do pronun
ciamento Idias e Rumos da Revoluo Brasileira^ e foi impresso pela Livraria
Jos Olympio, tendo dezesseis pginas.' Um ttulo absolutamente revelador do
momento poltico vivido pelo pase das intenesdo homenageado naquelas cir
cunstncias. At porque era do conhecimento de amplos setores polticos e da

" Entre as leis mencionadas esto a que regula a remessa de lucros para o exterior, a que criou
a Companhia Urbanizadora da Nova Capital e a que transformou o antigo Distrito Federal em estado
da Guanabara.
Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (16), pacotilha 3, doe. 9. Arquivo Nacional.
194 angela de castro gomes

imprensa que San Tiago estava muito doente, o que certamente tornava sua esco
lha ainda mais significativae dava a suas palavras um tom muito especial.
Em outubro de 1963, o Governo Jango entrava em escalada de radicalizao
para a esquerda, sendotambm bastante visveis as articulaes, no menos radi
cais, das foras de direita, dentro e fora do Parlamento. San Tiago j havia deixado
o Ministrio da Fazenda (desde junho),'' quando seu Plano Trienal, elaborado
sob os auspcios do economista Celso Furtado, fracassara por falta de condies
polticas de realizao. Elereassumirasua cadeirade deputado federal e, a pedido
do prprio Jango, estava iniciando um delicado trabalho de negociaes, visando
evitar "a quebra da legalidade democrtica".
Assim, diante de uma platia seleta e se dirigindo especialmente pessoa do
diretor da revista, Jorge Leo Teixeira, e a seu corpo de jurados, San Tiago inicia
sua fala com uma observao destinada a situar a complexidade desses meses fi
nais do ano de 1963.

Se tomarmos "viso" como atributo do escolhido, quem poder pre


tender ter sido o homem que "viu" ou mesmo um dos que algo lograram
divisar na bruma ainda persistente deste 1963? E se tomarmos "Viso"
como nome consagrado da revista que h anos repete ousadamente esta es
colha, que grande responsabilidadea deferir-lhe, principalmente quando ela
faz recair sua preferncia, no num homem cujas atitudes e opinies tm
contado com o aplauso de todos ou quase todos, mas que tm atrado, pelo
contrrio, polmicas, discusses e mesmo tempestades!^"

Dessa forma, o homenageado, de imediato, caracteriza como se sentia: um


homem polmico, criticado e aplaudido, muitas vezes pelos mesmos grupos e se
tores de opinio. Um homem que, entre outubro de 1961 e outubro de 1963 (pe
rodo em que se envolveu diretamente no Governo Jango) teve suas idias e aes
mais uma vez a combinatria explicitada taxadas com "incoerentes", pro
duzindo at "tempestades". Portanto, o discurso situa o "tempo" recortado para
suas reflexes, permitindo que se d curso ao acompanhamento de sua trajetria.
Ditas tais palavras, San Tiago Dantas situa o tom de seu pronunciamento.
Como poltico e intelectual, ele no se furtaria a realizar uma anlise "objetiva"
da situao do pas, tendo como ponto de partida sua experincia pessoal, mais
particularmente a adquirida nosdois ltimos anos, to intensos e tensos politica
mente.

Creio que no me fica mal aproveitar a expressividade da reunio de


hoje, em que observoe agradeo a presena de tantos homens representati-

" San Tiago deixa o Ministrio da Fazenda em 20 de junho de 1963, sendo substitudo por
Carlos Alberto Carvalho Pinto, lder da ala progressista do Partido Democrata Cristo (PDC). Na
mesma ocasio. Celso Furtado deixa o Ministrio do Planejamento, que substitudo pela Coordena
o do Planejamento Nacional, p. 4.
Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (16), pacotilha 3, doe. 9. Arquivo Nacional, p. 3.
memria e histrianosescritosautobiogrficos de san tiago dantas 195

vos do Pas, para fazer de pblico o que nunca fiz: um ensaio de justificati
va. Essa justificativa pode dar ensejo a que saiamos um pouco do mbito
sempre limitadode uma personalidade, para irmos ao encontro dos proble
mas e, sobretudo, das opes,que se abrem ao povo nesta poca.^'

Como esteartigo tem procurado destacar, no s no era a primeira vezque


San Tiago fazia um "ensaio de justificativa", como tampouco que aproveitava uma
reflexo sobre sua vida para relacion-la vida do pas. Seus textos autobiogrfi
cos, como o de outros polticos que reivindicam a condio de intelectual, pos
suem esse tipo de caracterstica. Eles se constrem numa estreita relao entre
memria e histria, realizando, a um s tempo, um diagnstico e um prognsti
co do contexto social em que so produzidos, sem deixar de possuir profundas
marcas autobiogrficas. No caso de San Tiago, a situao liminar em que se en
contrava e que era do conhecimento do pblico, potencializava ainda mais quer a
qualidade da anlise realizada, quer a sinceridade do testemunho. O discurso soa,
assim, como uma espciede testamento, to verdadeiro quanto desinteressado.
certamente poressa ltima razo que o homenageado irresumir suacon
duta de homem pblicoa duas"certezas", isto,a dois princpios que so igualmen
te doisvalores essenciais, que remetem claramente a seuscamposde atuao privi
legiados: a poltica externa e a polticaeconmica.No primeiro caso, ele afirma a:

[. . .] certeza de que a continuidade da civilizao, [...] depende da


nossa capacidade de preservar a paz [. . .] com a rpida eliminao dos res
duos do imperialismo e das rivalidades nacionais". No segundo, trata-se da
"certeza de que a sobrevivncia da democracia [entendida como democra
cia representativa] e da liberdade, no mundo moderno, depende de nossa
capacidade de estender a todo o povo [. . .] os benefcios hoje reservados a
uma classe dominante [. . .].^^

De forma absolutamente sinttica e correndo risco de ser simplista, pode-se


dizer que San Tiago reafirmaa necessidade de novos e mais independentes e eqi-
tativos parmetros de cooperao internacional e, de forma estratgica, a inevita-
bilidade da correlao entre democracia representativa e reforma social. Em in
cio da dcada de 1960, ele sentencia o fim da crena de que o desenvolvimento
econmico possa reverter a "m distribuio social da riqueza", advertindo para
os custos e riscos da proposital no formulao de um projeto de reforma social
pelo "pensamento democrtico" do pas. Para ele, de forma gravssima, toda a in-
sinceridade e a contemporizao nesse campo, reforavam o processo antidemo
crtico; a radicalizao via esquerda ou via direita.
Retornando sua trajetria como ministro da Fazenda, afirma que seu es
foro foi preparar uma ao mais global para o enfrentamento dessa questo, uma
vez que no existia iniciativa milagrosa. O remdio era mltiplo e no poderia

Ibidem, p. 4.
196 angela de castro gomes

ser administrado por fora da radicalizao de idias ou de "atitudes pseudo-revo-


lucionrias". Era necessrio que as classes dirigentes compreendessem que, para
crescer economicamente, o pas precisava modernizar-se, incluindo a participa
o das classes populares. O discurso delineia a articulao de uma proposta de
"revoluo democrtica", objeto central dos esforos de SanTiagoDantas nos meses
seguintes.
A tentativa de se montar uma Frente Popular ou Progressista de Apoio s
Reformas de Base, que garantisse sustentao ao Governo Goulart para o encami
nhamento de reformas com democracia, foi o empreendimento que envolveu San
Tiago no restante do ano de 1963 e incio de 1964. Um esforo que se frustrou
inteiramente com o avano do processo de radicalizao poltica." No cabe, nos
limites deste texto, uma anlisedessaproposta de San Tiago que, formulando pro
jetos, partia para a ao, articulando, negociando politicamente. Partia, no dizer
de Afonso Arinos, para a tentativa de tornar fatos conseqncias de idias. Mas o
campo poltico estava minado, e seus interlocutores petebistas, pessedistas, co
munistas, lideranas sindicais de trabalhadores, empresrios e militares , pela
diversidadee pela urgnciada hora, foram-lhe muito pouco receptivos.
O discurso do homem de VisOy de certa forma, antecipara esse resultado,
ao se referir s brumas de 1963, dissipadas pela tempestade de maro de 1964,
que elechegou a presenciar. Mas as marcas autobiogrficas do pensamento nacio
nalista e democrtico de San Tiago Dantas ficaram como estmulo reflexo histo-
riogrfica. Por isso, talvez ele seja um dos polticos mais expressivos para uma
aproximao com as intempries da trajetria da democracia no Brasil,nesse incio
dos anos 1960. Ele e ela em fase terminal; ambos no sobrevivendo ao ano de
1964.

" Vrios documentos do Arquivo San Tiago Dantas atestam sua movimentao, valendo-se
citar o que intitulado "Bases para formao de uma Frente Popular ou Progressista", datado de 26 de
dezembro de 1963. Arquivo San Tiago Dantas, Ap 47 (43), pacotilha 3, doe. 4.
FOTO-CONES, A HISTRIA POR DETRS DAS IMAGENS?
CONSIDERAES SOBRE A NARRATIVIDADE
DAS IMAGENS TCNICAS

Ana Maria Mauad


Universidade Federal Fluminense

A contemporaneidade define-se temporalmente pelo imprio do instant


neo, pela agilidade da comunicao, pela impregnao dasimultaneidade. No en
tanto, no de hoje que tais caractersticas definem a experincia social de estar
no mundo. Da virada do sculo XIX para o XX, at o looping do milnio,' a ex
panso da ordem capitalista e da culturaburguesa, e seus conseqentes processos
de mundializao e a construo do imprio doefmero, transformou a cena p
blica em espetculo, a ao social em performance e os sujeitos em executores de
um programa. Esta viso, um tanto pessimista, reclama uma crtica profunda a
respeito do processo de naturalizao das imagens tcnicas, corolrio quase im
perceptvel, das tentativas de pr fim histria.
Esse texto tem como objetivo discutir a noo defoto-cone, fotografias que
ganham expresses pblicas, associadas ao mundo da poltica e a noo de acon
tecimento histrico. O fundamental ultrapassar a idia simplista da histria por
detrs dafoto, apontando para o argumento da foto que faz a histria. Nesse senti
do escolhi trs fotografias em trs tempos distintos, 1958, 1961 e 1984, inscritos
na historicidade contempornea, que exibem imagens de polticos, em situaes
diversas. Associadas a tais imagens os depoimentos dos fotgrafos recolhidos em
entrevistas, Flvio Damm, Erno Scheneider e Milton Guran, representantes de
geraes de fotojornalistas que participaram ativamente da redefinio do uso da
imagem na imprensa brasileira.
O que tais imagens revelam da histria do seu tempo? possvel contar a
Histria por meio de suas imagens? Em sepodendo, que histria essa? O estatu
to do conhecimento histrico produzido visualmente da mesma natureza que o

' Inspirando-me na feliz expresso de Nicoiau Sevcenko, no seu A corrida para o sculo XXI: o
looping da montanha russa. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
197
198 ana maria mauad

discurso historiogrfico? Ou de outra ordem, da ordem da memria, do mito e


da imaginao?
Da rima simples da sobreposio de plano, passando pela presena no mo
mento decisivo marcado pelo aleatrio; chegando a sutileza de uma construo
que envolve uma compreenso do visvel, como do que no est visvel, ser pos
svel afirmar uma potica para a fotografia, da mesma forma que Bachelard o fez
para o espao? Independente da possibilidade de tal indagao, eu prefiro me en-
vcrcdaf pelos caminhos da histria c defender a possibilidade de que a linguagem
fotogrfica possui uma historicidade que ultrapassa a mera avaliao da evoluo
do dispositivo fotogrfico e envolve necessariamente a relao entre: narrativa e
experincia histrica de ver e fotografar.
Da foto-cone para a srie ou o corpiis fotogrfico, o que se prope analisar
a intertextualidade fotogrfica, como processo de mediao entre os meios de pro
duzir cultura e de fornecer racionalidade ao universo da experincia histrica con
creta. No caso do fotojornalismo pensar a mediao como o resultado da defini
o de um campo fotogrfico para o Novecentos que envolve uma estreita relao
com o campt) po!tict>. Ncsic ca.so, o totojoinalismo concorre om as dnilis tor-
niJS viSUis, iUrrliVtlS Hdi.SCUfiS, na elaborao da cultura poltica dc uma po
ca histrica.
Assinii discuto CSSlS llCrS nilI|^CIlS rcliciontindo os lempos. nelas inscritos, c
as narrativas por esses tramadas. Vou comear por colocar o problema da con
densao do acontecimento no tempo da foto a sntese do momento, o que
daria sentido a noo de foto-conc. fundamental aqui, pensar que o tempo his
trico se inscreve na foto como um tempo externo, como uma espessura, que o
espectador qualificado lhe concede. Essa temporalidade inscreve a foto-cone no
passado esttico e como num flasli recupera o fato sendo a ponta dc um icchcrg
a prescntilcao do vivido. O tempo atribudo.
Na seqncia abordo a relao entre fotografia e poltica, tanto do ponto de
vista da imagem representada, quanto da pragmtica que funda a prpria repre
sentao. Merecem especial ateno as trajetrias dos fotgrafos, sua relao com
a prtica profissional e com a cultura poltica, com a qual troca olhares o tem
po incorporado. Finalizo com a reflexo sobre o tempo do instante projetado na
prtica fotogrfica da imprensa do sculo XX e o seu impacto no regime dc
historicidade, que se define ao longo desse sculo. Ressaltam-se aqui as conside
raes de Maurcio Lissovsky sobre a imanncia do instante, a noo do tempo
como durao, do fotgrafo como expeclanle, da espera como o diferencial da
fotografia moderna e, por fim, da imagem comodevir o tempo vivenciado.

A foto-cone e a sntese do acontecimento

1492, 1792, 1822, 1922.


Datas. Mas o que so datas?
Datas so as pontas de iccbergs.
sobre a narratividade das imagens tcnicas 199

Mas de onde vm a fora e a resistncia dessas combinaes de alga


rismos. 1492, 1792, 1822,1922. . . Vm daquelas massas ocultas de que as
datas so ndices. Vm da relao inextricvel entre o acontecimento, que
elas fixam com a simplicidade aritmtica, e a polifonia do tempo social, do
tempo cultural, do tempo corporal, que pulsa sob a linha de superfcie dos
eventos.-

Em " tempo e os tempos", Alfredo Bosi discorre sobre o significado das


datas, a existncia dos diferentes tiposde tempo: o tempo corporal, o tempo social,
o tempo cultural, o tempo da natureza, e a impossibilidade de a cronologia dar
conta da histria; ao mesmo tempo que reconhece a importncia simblica das
datas. O sentido da histria no Ocidente marcado pela viso cronolgica do
tempo, sendo a passagem do tempo no calendrio motivo de grandes comemo
raes; o fim de uma dcada, o Jln de sicle, o fim do milnio so datas espe
cialmente importantes e aguardadas com grandes expectativas, seja na esperana
de um paraso, ou de um iuzo final, ideais prprios s civilizaes judaico-
rists.
1958, 1961, I98'l trs datas dcmarcadoras de um perodo recente da hist
ria do Brasil, no cjua! a vida polilica foi marcada por golpes, resistncias, crises,
planos, possibilidades c Irustraoes. As tlilhli CIllO pOllllS dC llil bt^lil
imagem de Bosi revelam muito mais do que a mera superfcie, da qual despon
tam. Da mesma forma que as datas, as imagens tomadas como cones, como sn
teses semelhantes ao acontecimento, presentificam-no sugerindo que o que se v
o acontecimento tal qual. No vale sugerir Lima verdade por trs da foto, con
cebida sempre como falsa conscincia, numa concepo de ideologia ultrapassa
da. 1l de SC pensar a imagem fotogrfica como uma representao, como suporte
de relaes sociais cujas narrativas definem a historicidade do prprio ato que a
funda. interessante compreender, na narrativa dos fotgrafos, a sua verso do
vivido.'

' Alfredo Itosi. O tempo c os tempos. In; Alfredo hosi. Tempo e histria. So Paulo: Companhia
das Lelra.s, lyyz, p. 19,
' lintrevistas com o fotgrafo ri.vio Damm, primeira entrevista: 24/4/20(I.C segunda entrevista:
13/5/200."^. total de horas: 3 horas e 55 minutos; lntrevisla com F.rno Schncider, 8/5/2003, 2 horas de
duraijMo; Milton Ciuran, 9/5/2006. uma hora ile iluraao, "Memrias do contemporneo: narrativas e
imagens do folojornalismo no hrasil do Sculo XX", projeto de produtivitlade lnanciado pelo LiNPq,
2005-2008. As entrevistas esto depositadas no Lalioratrit de Histria Oral e Imagem da Universidade
I-cdcra! J'luinincnsc, em fase dc tratamento para a sua futura publicao no site.
Juscelin, O Presidente Voiuior, Flvio Damm, 1958 (cortesia do autor).

Fvio Damm: Muito bem, resolveram, para facilitar a vida do presidente, para
ele no ter de pegar carro no Palcio para ir para o aeroporto, criar no teto do palcio
do Catete, um heliporto. [. . .] Criaram ali um heliporto, com sinalizao e tal. Ai O
Cruzeiro me chamou, uma tarde, c me pautou para ir para o Palcio do Catete. Ai eu
fui pra l. Cheguei l, era para esperar o Juscelino chegar porque ele ia fazer o pri
meiro vo de helicptero do Catete para Laranjeiras. E eu ia voar com ele. Como voei.
E o helicptero, dali pra l. Inaugurando o primeiro vo. Chegada do helicpteroc tal
aquela coisa. J conhecia o Juscelino. Ele semprefoi uma pessoa extremamente cordial
e, tratava pelo nome. Enfnn. . . Ai eu me apresentei: Presidente, estou aqui pra lhe
acompanhar. Etiquanto se preparava o helicptero, me deu um estalo. O Presidente
Voador. Aquelas guias todas. . . Tem l em cirna aquelas guias. Gigantescas. So
imensas. Daqui de baixo, logicamente. . . Mas elas tm uma envergadura de mais ou
menos uns trs menos. Ponta a ponta da guia. E so, eu acho que so doze. Enfim,
tem as guias plantadas l em cima, de cauda para dentro, de bico pra fora, n? Ai
eupeguei opresidente, queera muito malandro. Ele pegou logo a idia. Ento eu disse,
vamos fazer uma foto sua aqui e tal. Aqui aonde?Aqui, o sol, aqui est melhor, o sol,
tem sombra e tal. Empurrei o Juscelino e o coloquei confundindo o seu corpo e a sua
cabea com as costas e a cabea da guia. O quefotograficamente muito fcil de
jazer. [. . .] Esta Joto indita. (. . .) . Porque O Cruzeiro era um tigre de papel. O
Cruzeiro no quis publicar estaJoto. [...] Eu me desgostei, tivemintas contrariedades
com O Cruzeiro por causa disso. Voc tinha essafotografia que daria uma pgina
sobre a narratividade das imagens tcnicas 201

dupla {. . .] Numa reunio, na paginao, ficou a discusso: bota, no bota, a foto. E


Eu atrs das lgrimas. Era uma timafoto. A, o Leon Gondim veio. Tiveram que
chamar o Leo Gondim com aquela burrice toda. Veio ele arrastando aquela burrice.
No, o Juscelino pode no gostar. Chateaubriand. Isso aqui, PSD e tal. Na verdade, eu
penso, tudo que o Juscelino queria era sair essa foto no O Cruzeiro.

Qual o rumo?, publicada no Jornal o Brasil, cm agosto de 1961,


Prmio Esso, 1962.
(In: 50 anos Prmio Esso de Jornalismo, p. 29.)

Essafoto do, do. . . Afoto do Jnio do perodo do JB c eu a consegui num nico


clique. Um clique, num clique. No, houvefoto do Jnio com o Erondizi, presidente
argentino, l em Uruguaiana, l no Sul. foto era para registrar o encontro deles na
ponte. A imprensa toda foi para l, os uruguaios, argentinos, brasileiros [. . .]. O
Janinho andando e eu do lado, com Rolleiflex, lieim, essa s deu uma. Se tivesse uma
202 anamariamauad

mquina de hoje tinha feito o filme todo. O Jnio foi andando. .. T do lado dele,
sempre, de olho, sempre de olho no Dines. Naquele tempo era engraado, no sei, eu
acho que eu tava do lado dele. . . De Rolleiflex. . . Eu tava bem ao lado dele, acompa
nhando. De repente deu uma confuso, estourou um. . . Um barulho deu uma. . . Todo
mundo olhou pra trs. Ele virou e eu clack, pi, s deu aquela, sfiz uma. Sfiz aque
la. Ganhou Prmio Esso.

Tancredo Neves e Ulisses Guimares, publicada na revista Senhor, cm 9/5/1984,


Milton Guran. (Cortesia do autor.)

Olha s, essa imagem, assim, numa sucesso defelizes acasos, ela emblemtica
de vrias situaes da poca. Veja bem: ela foi publicada em 84, mas ela foi efetiva
mente feita antes, acredito eu que no comecinho da dcada de 80, 81, 82 no mximo,
numa reunio do comit pela anistia, [. . .] Mas se no me falha a memria, essa
reunio se deu, na poca, na Associao Comercial, cujo presidente era um sujeito de
nome rabe, que chegou a ser suplente de senador e senador pelo PMDB do Distrito
Federai. [. . .] Esse comit era no setor comercial de Braslia. [. . .] houveessa reunio
do comit pela anistia, e o doutor Ulisses estavafalando, e viroupro lado c disse assim:
"No mesmo, Tancredo?" Efez aquele gesto caracterstico dele, e o Tancredo fez o
gesto caracterstico dele. Ou seja: podia ser sim, podia ser no, podia ser talvez, podia
ser qualquer coisa, porque ele ficava com aquela cara. Ento essa a fotografia em
questo. Essa fotograjla tem vrias caractersticas tcnicas e decontexto, que eu acho
que so interessantes para marcar um tipo defotojornalismo feito naquela poca. A
primeira delas que ela nofoifeita no evento em quefoi publicada, e elafoi arqui-
sobre a narratividade das imagens tcnicas 203

vada eguardada durante anos, deuma maneira independente. Porque elafoiprodu


zida dentro de um contexto de um movimento independente de agncias defotgrafos,
aonde se inscrevia a "gil Fotojornalismo", que a agncia da qual eufazia parte.
Ento elafruto de umapauta independente. Ningum memandoul cobriro comi
tdeanistia. Ns constitumos um instrumento deproduo e dedifuso de informa
o visual ejornalstica, quefoi a "gil", nos moldes deoutrasagncias queseforma
vam no Brasila partir de um modelo j consagrado na Europa, que vem da Magno, e
que vem antes da Magno, da Dephot, etce tal. Ento dentro desse modelo, nsconsti
tumos a gil como instrumento que nos capacitasse de cumprir pautas no-patro-
nais. Ouseja, quenos permitisse a ns, fotgrafos independentes, fotografarmos aquilo
que a gentejulgava importantefotografar. [.. .] , uma cooperativa. Formando, pro
duzindo fotos, investindo em pautas que ns achvamos importantes, mas que no
eram encomendadas. Porexemplo, esse Comit pela Anistia, ns da "gil", ns cobra
mos todos osmovimentos populares contra. No vendia nada. [. . .] E a gentefotogra
fava tudo eguardava, porque tinha que teressa documentao. S porque opatronato
no pagava no ia ter documentao sobre a luta pela anistia? Pode uma coisa des
sas? Ento a genteinvestiu. Essa foto fruto disso, desse investimento. [. . .] Elaficou
arquivadinha na "gil" e dois anosdepois, seil quanto tempo depois, quando Mino
Carta disse assim: "Eu preciso de umafoto que defina a relao do Ulisses com o
Tancredo", eu digo "Eu tenho. Fizdois anos em tal lugar"e mandamos para "Isto ".
Nesta poca, as relaes no spessoais como trabalhistas, como profissionais e como
jornalsticas, foram amadurecendo, se aperfeioando. Novas redes foram se criando.
Em 1986, porexemplo, a "gil" tinha um contrato com a "Isto ". Ento ns mandva
mos para "Isto " nosei quantasfotos, [. . .], mas qualquer coisa em torno decento e
vinte, trinta fotospor semana. Toda semana nspegvamos aquiloque a genteacha
va que tinha de melhor na vida poltica de Braslia e mandava para So Paulo. Dos
nossos arquivos e do quea gente produzia, no do que eles encomendavam, mas do
que ns investamos. [. . .] Agente erafull time, agente vivia da "gil". Era incrvel!
Primeiro Flash: 1958

O ano de 1958, no qual a foto foi produzida, davacontinuidade ao mandato


presidencial de Juscelino Kubitschek, ento conhecido como o "Presidente Voa
dor", pelas inmeras viagens que fez durante os anos de governo. Alis, seguindo
a tradio inaugurada por Getlio Vargas, Juscelino Kubitschek soube, por meio
da imagem tcnica, construir uma imagem pblica, suas viagens eram acompa
nhadas de perto pelaimprensa ilustrada, notadamenteas revistas O Cruzeiro e Man
chete, registrando de perto o dia-a-dia do presidente.

JK em viagem divide o espao das revistas com o JK em acordos pol


ticos para a composio do ministrio. Ao presidente eleito e que vai Euro
pa e aos Estados Unidos e vemos nas pginas cumprimentando presidentes,
primeiros-ministros, reis e rainhas contrape-se o presidente eleito, de ros
to srio e tenso, conversando com polticos e provveis ministros. Manchete
204 ana maria mauad

faz uma ampla cobertura dessa viagem ao passo que em O Cruzeiro h a


preocupao com a poltica em torno da escolha de ministros e JK aparece
nesse sentido, no mbito da poltica nacional e no das relaes que come
a a estabelecer no exterior."*

A presena do presidente no mundo projetava o Brasil no mbito das rela


es intencionais do capitalismoavanado, associando-o com a modernidade e a
modernizao, cujo projeto de governo propunha. Negociava com potncias ca
pitalistas, buscando um caminho que efetivamente viabilizasse seu projeto de ace
lerao do tempo histrico: 50 anos em 5, era afinal seu slogande governo.
Internacionalmente os anos 1950 foram marcados pelo recrudescimento da
guerra fria, pelas lutas de descolonizao, pela crescente mobilizao pelos direi
tos civis, pelo surgimento da noo de Terceiro Mundo e de no-alinhamento na
Conferncia de Bandung (1955). O mundo orientava-se em blocos geopolticos,
e as relaes internacionais assumem papel fundamental na hierarquia dos con
tinentes e no alinhamento das naes. Por isso o presidente tinha asas.

Segundo Flash: 1961

1961, um ano e tanto! Os Estados Unidos rompem com Cuba revolucion


ria; luri Gagrin, da URSS, o primeiro homem a fazer uma viagem espacial;
Crise da Baa dos Porcos (Playa Girn). Mercenrios financiados pelos Estados
Unidos tentam invadir Cuba partindo de Miami. Fracassam em dois dias diante
das milcias cubanas; Brizola, governador do Rio Grande do Sul, dos mais duros
na denncia dos Estados Unidos; Nasce a OUA (Organizao de Unidade Afri
cana), combatendo o colonialismo e o racismo; Criada em Londres a Anistia In
ternacional visando defesa dos presos por motivos polticos, religiosos, tnicos,
ideolgicos ou raciais; Jango viaja China em visita oficial; Conferncia Intera-
mericana de Punta Dei Este, Uruguai. Os Estados Unidos tentam conter a influn
cia cubana (representada por Che); A Alemanha Oriental ergue o Muro de Berlim,
smbolo da Guerra Fria; Jnio Quadros condecora Che Guevara com a Ordem do
Cruzeiro e abre crise poltica: vrios militares devolvem suas condecoraes em
protesto. Conservador em todos os sentidos, o governo Jnio Quadros reserva para
a poltica externa posturas de desafio aos Estados Unidos e reao; Jnio Qua
dros renuncia na ausncia do vice, em viagem China e os ministros militares
vetam a posse de Joo Goulart, Jango; O Brasil restabelece relaes com a Unio
Sovitica, rompidas por Dutra em 1947.^
O mundo polariza-se e no clic de Erno Schneider, Jnio Quadros no sabe
qual rumo tomar, se enrola nas pernas, e num bal inusitado, renuncia, contri
buindo para o desfecho no golpe civil militar.
Maria Leandra Bizello. Entre fotografias e fotogramas: a construo da imagem pblica de
Juscelino Kubitschek 1956-1961. Comunicao apresentada no XX Encontro Nacional da Anpuh,
Londrina, 2005, p. 4.
^Disponvel em <http://www.vermeiho.org.br/linhadotempo/1950.asp>. Acesso em 13/9/2006.
sobre a narratividade das imagens tcnicas 205

Terceiro Flash: 1984

Vinte anos depois, outro ano e tanto! 1984, ano ttulo da clebre fico de
George Orwell, prenunciando um big brother^ que de forma mais prosaica, mas
no menos maligna estaria sendo encenado no milnio.^ Para alm da fico real
ou imaginria 1984 foi o ano da campanha das Diretas J e do renascer da espe
rana da democracia no Brasil.
O calendrio de comcios fornece o ritmo crescente das manifestaes: 25/
1/1984: primeirocomcio-gigante (300.000 pessoas) da Campanha Diretas-J, na
Praa da S, So Paulo. A emissora de televiso. Rede Globo no cobre o evento;
24/2/1984: Comcio pr-Diretas de 250.000 em Belo Horizonte; 21/3/1984: Pas
seata de 300.000 pelas Diretas, no Rio de Janeiro; 10/4/1984: Comcio de 1,2 mi
lho de pessoas pelas Diretas-J, na Candelria, centro do Rio de Janeiro; 12/4/
1984: Comcio pr-Diretas rene 250.000 pessoas em Goinia; 16/4/1984: Com
cio de 1,7 milho de pessoas pelas Diretas-J, no Anhangaba, So Paulo. em
nmeros absolutos a maior manifestao de massas em cinco sculos de histria
do Brasil."
Como revela o fotgrafo na sua entrevista, a foto do incio dos anos 1980,
associada organizao dos comits de anistia. Ainda assim, essa fotografia foi
utilizada pela editoria da revistaSenhor,como parte do artigo de abertura da revis
ta. Esteartigo fazia o papel de editorial, realizando um balano da situao polti
ca da semana. No dia nove de maio publicada com o seguinte ttulo: Negociao
ou mobilizao? S fala em nome dopovo quem no negocia as diretas-j, e legenda:
Figueiredo gostaria dedesfazer esta velha afetuosa unio.
Neste caso, a apropriao da foto de um tempo por outro, implica o esgar-
amento da durao do acontecimento, atribuindo conjuntura de abertura po
ltica um sentido visual compartilhado. A afetuosa unio entre o Dr. Ulisses Gui
mares e Tancredo Neves, originada na tradio social democrata de ambos, se
consolidaria nas campanhas pela anistia ampla geral e irrestrita e pelo apoio
campanha das Diretas-J. De acordo com leitura feita por Guran, em seu livro
Linguagem Fotogrfica e Informao:

Ulysses Guimares representava, na poca, a campanha pelas eleies


diretas para a Presidncia da Repblica, enquanto Tancredo Neves seria a
soluo negociada. A inclinao corporal de Ulysses, sobretudo a sua mo
esquerda, percorrendo a diagonal do quadro da esquerda para a direita (o
sentido da leitura de nossa cultura) at chegar a cabea de Tancredo, sugere,
plasticamente, o segundo como resultado do primeiro e como "ponto final"
da foto.A integrao entre os personagens como que o retrato da negociao

Fao uma analogia ao reality show transmitido pela Rede Globo de Televiso, desde 2001, na
sua sexta verso nt> ano de 2006.
' Disponvel em: <http://\v\v\v.vcrmelho.org.br/linhadotempo/1950.asp>. Acesso em 13/9/2006.
206 ana maria mauad

poltica em curso. "Tancredo, eis o homem", comea o artigo. Efetivamente


foi, quase.

Guran Cunha, seguindo essa linha de leitura visual, o conceito de "foto efi
ciente", segundo o qual capacidade de articulao dos elementos da linguagem
fotogrfica cria uma mensagem de impacto. Tal impacto, nesse caso especfico,
transcendeu o tempo exato da sua produo, sendo to eficiente a ponto de ser
polissmica, permitindo a sua apropriao em outro contexto. Retoma-se a per
gunta, ser que h uma histria por detrs da foto, ou mltiplashistrias?

Cultura fotogrfica e cultura poltica

A diferenciao do ato fotogrfico pelas categorias de fotgrafos evidenciou,


ao longo do sculo XX, uma significativa mudana no regime de visualidade, re
lacionado aos usos e funes da fotografia e ao seu circuito social, compreenden
do os processos de produo, circulao, consumo e agenciamento da imagem
fotogrfica.'
A revista Photograma, publicao mensal do foto-clube brasileiro, respon
svel pela difuso da fotografia amadora no Rio de Janeiro, na qual eram ensina
das teoria e prtica fotogrfica, dividia a fotografia em trs tipos: a fotografia
anedtica, a documentria e a artstica ou pictorial. Explicavam esta distino da
seguinte maneira:

A fotografia anedtica a que trata apenas de criar recordaes de fa


tos, pessoasou coisas (...) a mais fcil das trs divises, e a que realmente
os "amadores" praticam. Assim um grupo de amigos, um recanto de jar
dim, um folguedo de criana, etc., so fotografias anedticas de interesse es
tritamente limitado a quem conhea o fato, pessoa ou coisa. A fotografia
documentria a que visa, de modo mais aproximativo da verdade, grafar
fatos, pessoas ou coisas, como sejam a fotografia de reportagem, a topogra
fia, a microfotografia, a de identificao, etc. Fotografiaartstica ou pictorial
a que traduz a sentimentalidade ou estado de alma experimentado pelo
artista ao contemplar um motivo [. . .] na fotografia pictorial aplicam-se na
generalidade as mesmas normas de composio e perspectiva do desenho e
da pintura (...) O pictorialista dever antes de tudo ser um hbil manipula-
dor e tcnico consciente de todos os processos, sem o que no poder obter
desde a "exposio" at a impresso do fotograma, o cunho de individuali
dade que bsico e imprescindvel em qualquer obra de arte. 10

* Milton Guran. Linguagem fotogrfica e informao. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 1999,
p. 69.
' Ulpiano T. Bezerra de Meneses. Rumo a uma "Histria Visual". In: Jos de Souza Martins;
Cornlia Eckert & Sylvia Caiuby Novaes (org.). O imaginrio e o potico nas cincias sociais. Bauru:
Edusc, 2005, cap. 2.
Photograma^ Rio de Janeiro, ano IV, n. 33, p. 6, agosto de 1930.
sobre a narratividade das imagens tcnicas 207

Dentreos batedores de chapa, os amadores, e os profissionais da fotografia,


se dividiram as categorias defotgrafos, cada qual operando o dispositivo fotogr
fico, segundo as mediaes culturais que a sua condio social impunha. O pr
prio aprendizado, tambm, variava: aos batedores de chapa ficaram reservadasas
publicidades das fbricas de filmes e cmaras que, ao venderem seus produtos,
ensinavam a utiliz-lo da forma correta, desenvolvendo uma pedagogia do olhar
nos semanrios ilustrados; aos amantes da fotografia, o privilgio dos espaos ex
clusivos do foto-clubes, reservados paraosiniciados nasartes pictricas; j os pro
fissionais da fotografia categoria mais complexa, vai evidenciar as tenses entre
ver e representar prprias do circuito de informao da imprensa contempornea
e seus contatos com as experimentaes visuais das vanguardas artsticas do No
vecentos, no Brasil, notadamente, com o concretismo. De qualquer forma a lin
guagem fotojonalstica foi se definindo no regime visual contemporneo, a partir
das relaes de analogia e de experimentao formal com o referente, organizan
do em diferentes espaos de sociabilidade os locais do seu aprendizado.
Portanto, ao longo do sculoXX, a herana oitocentista se atualizou por meio
da fotografia de documentao social, a princpio associada s agncias gover
namentais e, a partir dos anos 1930 com a modernizao tcnica da imprensa, s
agncias internacionais, a ponto de podermos contar a histria do sculo XXpor
meiode suasimagens. Tais fotografias compem um catlogo, no qual surge uma
histria redefinida pelo estatuto tcnico prprioao dispositivo da representao: a
cmara fotogrfica. Nesse outro tipo de escritada histria o local de sua produo
(as agncias de produo da imagem: famlia. Estado e imprensa) e o sujeito da
narrativa (os fotgrafos), dividem com os institutoshistricos e as academias lite
rrias, a tarefa de imaginar a nao e instituir os lugares de sua memria. Para o
historiador ingls Benedict Anderson," a imprensa capitalista desempenha papel
fundamental na elaborao da nao como comunidade imaginada da moder
nidade.
Avalia-se, assim, a conformao de uma economia visual no sculo XX,cujas
instncias de produo, circulao e consumo, tm como decorrncia o agencia-
mento das imagens por diferentes formas de poder. Algumas possibilidades para
compreenso do agenciamento pblico das imagens fotogrficas da imprensa
apontam para uma anlise sobre seus usos e funes, sua relao com os poderes
constitudos e seu potencial de testemunho para a histria poltica, renovada em
seusobjetos e fontes. Os fotgrafos, por usa vez, jogam papel fundamental na me
diao entre os mundos da cultura e da poltica, atuando no espao pblico, jun
tamente com os desenhistas de caricaturas, charges e bandas, desenhados, como
importantesagentes produtores de sentido social.
A gerao de fotgrafos que se formaram a partir da dcada de 1930 atuou
num momento em que a imprensa era o meio por excelncia de acessoao mundo
e aos acontecimentos. A imagem dessagerao de fotgrafos exerceu forte influncia
na forma como a Histriapassou a ser contada. Asconcemedphotographs, fotografias.

" B. Anderson. Imagined Communities. 8.' imp. Londres: Verso, 1998.


208 ana mana mauad

de forte apelo social, produzidas a partir do estreito contato com a diversidade


social,conformaram o gnerotambm denominado"documentao social"
Para esse grupo de fotgrafos, a fotografia no era apenas um meio para ga
nhar dinheiro. Aspiravam exprimir, por intermdio da imagem, seus prprios sen
timentos e idias da poca. Rejeitavam a montagem e valorizavam o flagrante e o
efeito de realidade suscitado pelas tomadas no posadas como marca de distino
de seu estilo fotogrfico. Em geral os participantes dessa gerao eram adeptos da
Leica, cmara fotogrfica de pequeno porte, que prescindia deflash, para as toma
das, valorizando com isso o efeito de realidade.
Neste contexto, percebe-se a construo uma comunidade de imagens em
torno de determinados temas, acontecimentos, pessoas ou lugares, podendo-se at
mesmo cruzar essas categorias. Tais imagens corroboram o processo de constru
o de identidades sociais, raciais, polticas, tnicas, nacionais, etc.
O legado da gerao do fotojornalismo herico, cujo emblema Robert Capa,
fotgrafo que morreu num acidente de mina, durante a cobertura de guerra, no
Camboja, foi justamente a politizao do olhar. A perda da inocncia fez que as
fotografias de imprensa dialogassem, mais proximamente com a sntese plstica
conquistada pela charge e a caricatura, do que outras linguagens visuais. Os trs
fotgrafos, em certa medida, guardando as diferenas de gerao (1928, 1935,
1948), so tributrios desse olhar.
Flvio Damm, gacho, nascido em 1928, comea a trabalhar cedo como au
xiliar de laboratrio na Revista do Globo, aos vinte anos publica um furo de re
portagem. Na edio do dia seis de novembro de 1948, da Revista do Globo (ano
XIX, n. 470), em matria intitulada "A Longa Viagem de Volta", com texto assi
nado pelo reprter Rubens Vidal, publica as primeiras fotos de Getlio no seu
retorno ao Catete. Esta reportagem lhe rendeu bons frutos, pois em 1949 ruma
para o Rio de Janeiro e conquista um posto de fotgrafo na revista O Cruzeiro, o
principal veculo do fotojornalismo da poca no Brasil. Trabalhou na revista por
dez anos e em 1959, ruma para uma bem-sucedida carreira-solo.
Erno Schneider, tambm gacho, nascido em 1935, tambm comea a traba
lhar cedo em estdio fotogrfico, seguindo a trilha de outros da mesma gerao,
passou a trabalhar na imprensa carioca. No final dos anos 1950, ingressa para o
Jornal do Brasil, participando da importante reforma grficado jornal, onde conse
gue ganhar o Prmio Esso de fotografia em 1962. Depois ingressa,em outro impor
tante jornal do perodo, O Correio da Manh, no qual responsvel por uma verda
deira revoluo visual. Como editor de fotografia desse jornal Erno Schneider
redefine o papel da fotografia e dos fotgrafos na construo da notcia, transfor
mando o jornal num veculo de crtica visual ao regime militar.'^ Depois da inter
veno no Correioda Manh, mudou-se para o jornal O Globo, onde se aposentou.
Milton Guran, carioca da Tijuca, nascido em 1948, fotgrafo, jornalista e
antroplogo, doutor em Antropologia (cole des Hautes tudes en Sciences
'' Gil Oliveira. O Fotojornalismo do Correio da Manh (1964-1968). Mestradoem Histria. Rio de
Janeiro: Universidade Federal Fluminense, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e
Tecnolgico, 1996. Orientadora: Ana Maria Mauad.
sobrea narratividade das imagens tcnicas 209

Sociales, Frana, 1996) e mestre emComunicao Social (Universidade de Braslia,


1991). Reprter-fotogrfico atuando na grande imprensa desde 1973 foi um dos
fundadores da AGIL Fotojornalismo (Braslia, 1980) e fotgrafo do Museu do n
dio (Rio de Janeiro, 1986-1989). realizador e coordenador-geral do FotoRio,
encontro bianual de fotografia, desde 2003. Alm do registro visual da trajetria
poltica do perodo da abertura poltica, destaca-se peloseu investimento na antro
pologia visual, articulando os temas identidade e memria, no trabalho sobre os
aguds no Benim e sobre os grupos indgenas do Amazonas. Dos trs fotgrafos
em questo o nico que enveredou pelos caminhos acadmicos, e associou teo
ria e prtica trabalhando com a fotografia como instrumento de pesquisa social.'^
O breve relato da trajetria dos trs fotgrafos serve de medida para dimen
sionar a de cada um, com o ato fotogrfico e suas formas de busca e espera pelo
momento decisivo, de onde a foto-cone surgir, como feixe de temporalidades.

Tempo e narrativa no instantneo fotogrfico

Depois de ter inscrito o tempo histrico, mediante a contextualizao das


fotografias em seus respectivos anos de produo, e de, na seqncia ter dimensio
nado o tempo do olhar dos fotgrafos, por suas trajetrias e pertencimento a uma
gerao, cabe pensar como no regime do instantneo a fotografia ainda pode con
ceber uma narrativa de entrelaamento temporal.
Maurcio Lissovsky indica um possvel caminho com a seguinte ponderao:
Mergulhos sucessivos repentinos que conduziram do insuportavel
mente lento ao demorado. Deste ao breve e ao brevssimo; e, afinal, ao im
perceptvel. H um mergulho, em particular, decisivo para a experincia da
fotografia. [. . .] nas ltimas dcadas do sculo XIX, j possvel falar de
uma fotografia instantnea. Ao contrrio do que se usualmente supe, o ins
tantneo no diz respeito segmentao do movimento, mas desapario
do durante no interior do ato fbtogrfico[. . .]. Neste sentido, se nos orienta
mos pela posio bergsoniana, o tempo no poderia ser integrado como parte
acessria, fosse como sucesso infinitamente divisvel ou como afeco do
espao, mas como aquilo que a constitui desde o momento em que o fot
grafo dispe-se produzi-las: No um intervalo que se possa modificar ou
encolher sem lhe modificar o contedo. A durao de seu trabalho faz parte
integrante de seu trabalho (Bergson, A Evoluo Criadora). Tal intervalo o
da expectativa. na forma de expectarque a durao veio finalmente inte
grar-se ao instantneo. Indissocivel da viso, renem-se na expectao tanto
um simples pr-se espera, como um dar-se a ver no aspecto. Roland Barthes
resvalou na questo ao assinalar que o que constitui a natureza da fotografia
a pose. A perspectiva de Barthes fiel a sua fenomenologia, e concentra-se
no espectador da imagem. O que Bergson nos sugere, no entanto, que para

" Ttulo cio curso de especializao coordenado por elo, na Universidade Cndido Mendes,
entre 2002 e 2005.
210 ana mana mauad

surpreendero tempono seurefugio preciso deslocarmo-nos paraumafeno-


menologia cujo termo-sujeito o expectante. Se na posio do espectador,
pose e espera confinem em inteno e sentido, elas so para o expectante,
exatamente o que instala a diferena. a partir dessas diferenas na expec-
taOy como devirdo instante na durao, que a imagemganha fora.'"'

Para o autor o que diferencia as fotografias modernas o ato de espera, as


sim a questo da autoria passa a ser definida pela condio da percepo temporal
do sujeito expectante. , acrescento eu, o resultado de uma prtica social, cuja
historicidade a condio da espera.

O que a fotografia moderna nos apresenta no o instante qualquer


arrancado do movimento geral das coisasno mundo. o trao deixado pelo
ir-se do tempo que o trabalho da espera realiza. Se pode haver histria, estilos,
ou mesmo autorias na fotografia moderna, correspondem, no meu enten
der, ao durar diferenciado da espera dos fotgrafos, aos seus modos particu
lares de favorecer o devir dos instantes. [...]. Assim como aquele que en
quadra encontra um ponto de vista e no outro, aquele que espera favorece
um aspecto em detrimento de outro. No movimento que leva da expectao
ao aspectoy j o percebemos, que a fotografia inclina-se para o futuro.'

A noo de intervalo definida como a durao entre o olhar do fotgrafo e o


cUc na cmara, ou ainda, como uma forma de inscrio do vivido, como experin
cia temporal que projeta uma memria, no se confunde com a de interregno e
de tempo interrompido. Tal diferena evidencia-se nas marcas que a espera deixa
na imagem, na pregnncia da durao no aspecto da fotografia. Da a possibilida
de de definir diferentes resultados desse ato de espera, ou do prprio intervalo
a imanncia do instante.
Lissovskyestabelece uma metodologia de anlise que parte de categorias des
critivas formais qualificadas por polaridades: Pose e espera (largae estreita); atitu
de do expectante (janela do tempo larga e estreita; atitude passiva e ativa); e
chegam a um nvel sinttico, no qual se qualifica o resultado do processo e se
avalia o resultado da imagem, esse nvel denominado de advento do instantey
cujas categorias de anlise so: devir (decantao, emergncia, demolio, cons
truo); equilbrio (sedimentado, metaestvel, instvel, estvel); aspecto (essncia-
posio; forma-ritmo; qualidade-intensidade; inteno-tendncia).'^
Apesar de o autor no incorporar a noode narratividade a sua durao de
espera, creio que possvel perceber, nas marcas dessa espera, a trama de uma
histria. Dessa forma, analisar as diferenas de expectao, em cada uma das trs

Maurcio Lissovsky. O refugio do tempo no tempo do instantneo. Lugar Comum, Rio de


Janeiro (8), pp. 89-109, mai./ago. 1999, pp. 89 e 93.
Idem. A mquina de esperar. In: J Gondar St Miguel Angel Barrenechea (org.). Memria e
Espao: trilhas do contemporneo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003, pp. 15-23.
Idem. O refgio do tempo no tempo do instantneo, cit.
sobre a narratividade das imagens tcnicas 211

fotografias apresentadas, mepermite avaliar aspossibilidades de narrativa e/ou du


rao no instantneo fotogrfico, ou ainda no tempovivenciado no ato fotogrfico.
1958. Presidente voador Flvio Damm. Pose arranjada, planejada e ar
mada em parceria com o objeto do desejo fotogrfico. O tempo de espera o da
contradana da pose, no acompanhar dos corpos at a justaposio perfeita: Asa
com brao, cabea, com cabea,corpo a corpo. Asas da guia, corpo do presiden
te, na majestade do vo. O vir a ser da foto, na avaliao da equipe a demolio
da imagem do presidente, por isso a foto tem a sua publicao censurada. Na con
cepo do fotgrafo o aspecto s reafirmaria uma tendncia,tornando evidente o
que todos j sabiam.
1961. Qual o rumo? Erno Scheneider. Pose espontnea, tomada de as
salto, pelo inusitado barulho que, inesperadamente, abate o presidente em plena
performanceesquerdista ao lado do argentino Frondisi. O rudo tira o modelo do
prumo e o projeta na instabilidade da conjuntura poltica. O tempo da espera o
do corpo a corpo, com os demaisfotgrafos, e da intimidade com o presidente, do
qual o fotgrafo quase uma sombra. Tomado do mesmo susto, Erno reage como
um caador e captura a imagemcom um clic. A intensidade da crtica demolidora
e rende ao fotgrafo o prmio Esso de 1962.
1984.Afetuosa unio Milton Guran. Pose planejada, mas no arranjada,
sugere uma familiaridade com os modelos, um reconhecimento de suas poses e
trejeitos, que espera o momento certo para tomar a foto que j havia visto antes,
mas no teve tempo de tirar. Assim, o tempo da espera o da tocaia, com armadi
lhas estrategicamente lanadas no terreno visual. O equilbrio, no completa
mente estvel, orienta-se pelo movimento da mo no sentido do rosto, pela incli
nao dos corpos, pela sensao do contato. O olhar atento do fotgrafo imprime
um ritmo harmnico foto, da a sua eficincia: uma foto tirada em 1981 pode
ilustrar uma matria de 1984. O tempo da espera foi longo, as marcas da durao
na fotografia so pura memria.

Concluso

A noo de foto-cone foi tomada de emprstimo de uma publicao da


Taschen,'^ editora alem, mas com distribuio internacional (alis, o livro im
presso na Itlia!), cujo subttulo tambm "A historia por detrs da imagem", so
mente sem o ponto de interrogao.
No prefacio do livro, que engloba o perodo de 1827-1991 (h tambm uma
verso em dois volumes), Hans-Michael Koetzle, o editor, no prefcio da coleo,
discute o princpio de que vivemos na civilizao da imagem tcnica, capazes de
nos seduzir, manipular, erotizar e at mesmo informar. Segundo um senso co
mum o mundo contemporneo estaria inundado por imagens de diferentes tipos
e densidades, fotos, cinema, televiso, internet. Associao que soa no mnimo

" Hans-Michael Koetzle. Photo Icotis: the Story Behind the Picturcs (1827-1991). Colnia/
I.ondres/Los Angelcs/Madri/Paris/Tquio, 2005.
212 ana maria mauad

amedrontadora, ainda mais se nos lembrarmos das imagens de Nova Orleans de


pois do Katrina.
Ressalta-se, no entanto, a necessidade de ultrapassar o que aparentemente
se impe como indiscutvel, ou quase natural, e indagar-se: Como podemos lidar
com essas imagens? Como selecionar uma dentre muitas? O que de fato capta
mos nas imagens? Ou por outro lado, tais imagens integram a nossa memria
coletiva, ou so fugazes e momentneas?
A fotografia, ao contrrio, das imagens em movimento contnuo, ou de di
ferentes ritmos (como o caso da internetpop-ups, flashes, etc.), caracteriza-se
pela sua estabilidade, uma base para o fluxo contnuo de dados. Segundo Koetzle,
a leitura da fotografia deve romper com a tradio visual icnica, de similaridade
e analogia para com o real que na sua superfcie sensvel se vislumbra, e conside
rar segundo a histria da sua produo e recepo, o que ela de fato chegou a ser:
o parmetro visual para as categorias centrais da experincia humana.
Apesar de concordar em linhas gerais com sua argumentao, tendo em vista
principalmente as rupturas com a leitura simplesmente icnica da foto, ainda co
loco um ponto de interrogao, depois da frase: "a histria por detrs da imagem".
Por tudo o que j foi dito antes, creio que a histria, tanto como processo
social, como operao intelectual que se debrua sobre a anlise desse mesmo
processo, no se define no singular, pois o tempo material fundamental da leitura
do passado sempre plural.
Nesse sentido, por um lado, a experincia social vivida se processa numa
sincronicidade de tempos, em ritmos variados, com duraes subjetivas, mas tam
bm, objetivas,com balizascronolgicase datveis. Por outro, a operao histrica
deve levar em conta esses mltiplos tempo, no em realidades fugidias, imposs
veis de serem interpretadas, relacionadas simplesmente a sua dimenso fenom-
nica, singular e irrepetvel.
A operao histrica realiza-se sobre matria concreta, analisar imagens fo
togrficas, como snteses de experincia histrica, como potncia materializada
do acontecimento, implica deslindar a trama de tempos que tecida na representa
o visual, as mltiplas histrias que se conjugam para sua realizao. A fotogra
fia, como parte integrante do pensamento plstico contemporneo, permite
adentramos pela dialtica entre o real e o imaginrio. Por isso mesmo na era digi
tal, ela ainda continua a nos comover, nos seduzir e nos informar.
1972: SESQUICENTENRIO DA INDEPENDNCIA:
UMA ESTTICA PARA A NAO.
MEMRIA, PODER E TECNOLOGIA

lio CantalIcio Serpa


Universidade Federai de Gois

Em 1972 eu estudava na Universidade do Vale do Itaja. Nessa poca freqen


tava o curso de graduao em Histria e tambm trabalhava como professor da
rede pblica estadual. No tenho lembranas de atos comemorativos referentes
ao sesquicentenrio na universidade, mas no ensino pblico tnhamos de prepa
rar os alunos para pequenas homenagens, todos os dias, seja cantando o hino
nacional ou o hino do sesquicentenrio,seguido de recitao de poesias,seja plan
tando mudas de pau-brasil, rvore smbolo da nacionalidade. Deveramos relem
brar os nomes dos presidentes ps-revoluo de 1964 e reafirmar as motivaes
que levaram deflagrao do golpe: corrupo, inflao e subverso. Produtos de
uma cultura nacionalista, ramos enredados pelo dever e clamor das festividades,
e as reaes que surgiam no ultrapassavam o fato de considerar tais comemora
es uma chatice.
Recentemente, ao me defrontar com relatrios sobre as comemoraes do
sesquicentenrio da Independncia,' pude perceber que essas atividades assumi
ram uma dimenso poltica, merecendo uma (re)leitura. O relatrio produzido
sobre as atividades do sesquicentenrio registrou o processo de concepo e orga
nizao do evento, elencando uma srie de atividades comemorativas. Um
repositrio de memrias selecionadas que possibilitaram melhor compreenso da
que ser minha fonte principal a ser trabalhada nesse texto, ou seja, a revista O
Cruzeiro, de 13 de setembro de 1972.
A referida revistaintitulada Brasil, maisBrasilcomemorou o sesquicentenrio
da Independncia, apresentando ao pblicoum nmero especial intitulado: Edio

' Antonio Jorge Corra. As comemoraes do sesjuicenteiurio. Braslia: Biblioteca do Exrcito/


Comisso Executiva do Se.sqiiicentenrio da Independncia do Brasil, 1972.
214 lio cantalcio serpa

histrica do sesquicentenrioy dirigido e coordenado por Joaquim JosFreire Lagreca,


que, segundo Luiz Maklouf Carvalho,era muito ligado aos meios militares.-
Nesse nmero, as imagens fotogrficas baseiam-se em discursos produzidos
por uma cultura historiogrfica comprometida em amealhar homenscom suashis
trias para edificao gloriosa do Estado/nao. Outras imagens foram produzi
das para caracterizar o momento presente e estabelecer um sentido que definisse
a diviso de foras na composio da comunidade nacional. A edio de O Criizei-
rOy de 1972, pode ser interpretada como uma proposio de homens e mulheres
favorveis modernizao/desenvolvimento empreendido por meio do discurso
da superao de nossas deficincias, afirmando a permanncia de um legado pol-
tico-administrativo e tambm a superao/reformulao de tradies culturais e
modos de vida.
A edio de 1972, por meio da visualidade associada escrita, constituiu-se
em um suporte estratgico que apontou para a composio de processos de iden
tificao e de (des)identificao de sujeitos e de prticas culturais. As comemora
es do sesquicentenrio estetizaram o clima poltico, propondo uma srie de es
tratgias concretizadasnos rituais, nas escritas, nas publicidades e nas propagandas,
amplamente divulgadas em diferentes suportes de comunicao. Na tessitura dos
rituais comemorativos fizeram uso de dispositivos coercitivos associado criao
de cenrios que, esteticamente, diziam da sua maneira de ser e governar a nao.
O sujeito a ser comemorado (independncia) foi tecido por historiadores, jorna
listas e outros intelectuais, imiscuindo-se com o iderio da sonhada moderniza
o que no esteve dissociada da cultura, da tecnologia e do poder. Um turbilho
de imagens e escritas produzidas para comemorar o sesquicentenrio da inde
pendncia reforou o imaginrio de uma nova nao ou de um novo tempo, con
formaram identidades e concomitantemente (des)identificaes de modos de vida
e, acima de tudo, apontaram para a emergnciade um novo sujeito.
Para dar conta dessa problemtica, primeiramente, abordarei de forma su
cinta a produo das comemoraes do sesquicentenrio da Independncia, tra
tando de modo articulado a isso, o papel da revista O Cruzeiro, de 1972, gerando
estratgias de identificaoe (des)identificao poltico/culturale produzindo uma
estetizao poltica.

"O grito de glria que acorda a histria"

Na esfera governamental os rituais de comemorao foram cuidadosamen


te planejados no que se refere sua organizao e visualidade, com a criao de
dois smbolos para a divulgao do evento: um logotipo e um hino. Envolveram-
se nessa empreitada, Aloysio Magalhes, qualificadocomo artista de renome, pro
dutor do smbolo do sesquicentenrio em que aparecem, em forma de vinheta, as
datas 1822-1972; e Miguel Gustavo, produtor da letra e da msica do hino, evo-

^ Luiz Maklouf Carvalho. Cobras criadas. David Nasser e O Cruzeiro. 2.' ed. So Paulo: Senac,
2001, pp. 522-3.
independncia: estticapara a na.1o. memria, poder e tecnologia

cando o carter pico da Independncia e consagrando-o em uma festa de "amor


e paz" realizada num presente glorioso.

Hino do Sesquicentenrio

Figura 1. Revista O Crnzdro 13/9/1972. pp. 12-3. Marco extraordinrio


Sesquicentenrio da Independncia
Potncia de amor e paz
Esse Brasil faz coisas
Que ninguni imagina que faz
Dom Pedro
Dom Pedro do grito
^ Do grito de glria
" Que acorda a histria
E a vitria nos traz
Na mistura das raas
Na esperana que uniu
Pginas 12:13 O imenso continente
Nossa gente Brasil!
Sesquicentenrio
E vamos mais e mais
Na festa do amor e da paz.

As comemoraes iniciaram-se em 21 de abril, com a homenagem a


Tiradentes, e se estenderam por vrios meses, finalizando em 31 de outubro de
1972. As condies para que os rituais de comemorao aconiecessem da melhor
maneira estavam garantidas, pois os governadores dos estados e territrios eram
enlo nomeados pelo governo central.' Ogoverno tinha ampla base no Congresso
Nacional, desde 1970,'e a maioria dos prefeitos brasileiros havia sido eleita pela
Arena, em 1972. A.ssim, os governos locais dispunham de toda uma estruturaad
ministrativa e burocrtica que era posta a servio das comemoraes. As festivi
dades serviriam para comprovar a organicidade do regime e a capacidade decon
trole (que acabava porresultar em adeso) da populao, mas no estiveram isentas
de manifestaes contrrias ao governo por ocasio dos atos comemorativos.
Oito anos de autoritarismo no Brasil. As comemoraes foram cuidadosa
mente planejadas pelos altos escales do governo autoritrio, losse legislando sobre
procedimentos, atribuindo ao Poder Executivo o direito de veto e controle dos ri
tuais, fosse organizando uma vasta rede de difuso das programaes por meio de
livros,revistas, cartazes, rdio e TV. Muitasatividades que iam do hasteamento da

' o Ato Inslitiicionil n." y, dc 5 do lovoroiro do 196S, ostabciccia cloivos indiroias para os go
vernos dos oslados.
" Nas cloi(,os para o I.ogislaiivo, oin novoniliro do 1970, a Arena saiu vencedora. (.amps um
a>ngros.so do 22(1 deputados o noaronta senadores cntra noventa dcputadi>s o seis .senadores do MHH.
Nessa eIeio .IO'!!, dos votos foram branc>s e nulos.
216 lio cantalcio serpa

bandeira ao canto de hinos, tanto o nacional quanto o do sesquicentenrio, ocupa


ram o cotidiano das escolas. Mereceu destaque nas comemoraes a vinda de parte
dos restos mortais de D. Pedro I. Seu corao ficou na cidade do Porto. Esse ato de
translado e doao dos restos mortais de D. Pedro I ao Brasil foi recorrentemente
explorado nos meios de comunicao, em meio a vrias outras atividades.
Fernando Catroga, ao escrever sobre a inveno da memria de D. Pedro IV,
em Portugal, mostrou momentos de lutas pela defesa do culto de sua memria. O
referido autor, em certo momento, reporta-se ao relato de um estrangeiro que re
gistrou o seguinte fato: "no deixava de ser singular que o aposento no qual fale
ceu D. Pedro IV passou a se chamar sala D. Quixote e que, no momento solene da
despedida do rei, de sua esposa, ele tenha rogado, "que envie seu corao aos leais
amigos portuenses, e o mande depositar naquela cidade herica".'
Em Portugal, o aposento onde faleceu D. Pedro IV chamou-se sala D. Qui
xote; no Brasil, em 1888, a gravura de Pedro Amrico o consagra como heri e o
Museu do Ipiranga passa a abrigar seus restos mortais, em 1972. A vinda dos res
tos mortais no causou polmicas pblicas em Portugal, os liberais no realizaram
seu sonho; mas Marcello Jos das Neves Alves Caetano e Emlio Garrastazu Mdici,
cada um a seu modo, buscaram dividendos polticos no contexto das festividades.^
A organizao das festividades foi acompanhada/controlada por uma comisso
nacional que deveria avaliar a programao e coordenar as festividades. Os or
ganizadores do sesquicentenrio contaram com a adeso de Adonias Aguiar Filho,
presidente da Associao Brasileira de Imprensa,JooJorge Saade EugnioAfonso
Silva, presidentes da Associao Brasileira de Emissoras de Rdio e Televiso, alm
de Roberto Marinho, que, como assessor especial, participava da comisso executi
va central.^ Ao que tudo indica, para os organizadores da comemorao, a questo

' Essas so somente algumas atividades realizadas durante as comemoraes. O programa ofi
cial das comemoraes arrola uma srie de eventos: Exposio fotogrfica de indstria, comrcio tu
rismo e cultura realizada em Braslia; Abertura do ano camoniano, no Rio de Janeiro; lanamento do
Concurso Nacional de Monografias sobre a Independncia, institudo pela Cmara dos Deputados de
Braslia; documentrios audiovisuais sobre a Independncia, cidades fronteirias e rodovia transama-
znica; prova turstica; VII Congresso Nacional de Engenheiros; entre muitas outras atividades.
Fernando Catroga. O culto cvico de D. Pedro IV e a construo da memria liberal. Revista
de Histria das Idias, v. 12, pp. 452-3, 1990.
" Catroga registrou o seguinte: "Assim, quando em 1972, na conjuntura dos 150 anos de inde
pendncia do Brasil, o Governo Marcelo Caetano aceitou entregar, com pompa e na presena dos
presidentes das repblicas de ambos os pases, o cadver de D. Pedro nao brasileira tomou uma
opo lgica. E, conquanto o gesto fosse motivado por interesses polticos (comunidade luso-brasi-
leira, depreciao das guerras de independncia das colnias africanas) (. . .] acaba por revelar uma
atitude de desafectao alicerada na certeza de que o ato no iria suscitar grande polmica na opinio
pblica portuguesa" (Fernando Catroga, op. cit., p. 470).
" Art. 2." do Decreto n. 69.344 de 8 de outubro de 1971. A comisso ser integrada pelos mi
nistros de Estado de Justia, da Marinha, do Exrcito, das Relaes Exteriores, da Educao e Cultura
e da Aeronutica, pelos chefes dos Gabinetes Militar e Civil da Presidncia da Repblica e pelos
presidentes das seguintes entidades: Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Conselho Federal de
Cultura, Liga de Defesa Nacional, Associao Brasileira de Emissoras de Rdio e Televiso (Abert) e
Associao Brasileira de Rdio e Televiso (Abrate) (Antonio Jorge Corra. As comemoraes do ses-
quicentenrio. Braslia: Biblioteca do Exrcito/Comisso Executiva do Sesquicentenrio da Indepen
dncia do Brasil, 1972, p. 13.)
Ibidem.
independncia: estticapara a nao, memria, poder e tecnologia 217

era muito mais interna: importava a integrao e a visibilidade poltica do gover


no na populao. No havia,por exemplo, uma idia de pan-americanismo como
no Centenrio da Independncia. Antes, a aluso pretendida era a ligao com a
ptria-me que, poca, vivia seus ltimos anos sob uma ditadura. Segundo os
organizadores do relatrio das festividades, os recursos previstos para a realizao
de uma rplica da Exposio Internacional de 1922 deveriam ser canalizados para
a concluso das obras da cidade universitria do Rio de Janeiro. Essa deciso era
justificada com a afirmao de que assim se fazia "a fim de que o efmero dos
pavilhes transitrios se convertesse no eterno dos estabelecimentos teis".'"
Os rituais e as imagens utilizadas explicitavam uma esttica organizatria
parao pas, depurada de conflitos, mostrando todos unidos numas direo, ten
do comosuportea edificao de um imaginrio sobre a Independncia, lidacomo
''gritode glria queacorda a histria".

A revista O Cruzeiro: "escola do bom gosto e espelho leal"

O Cruzeiro de 13 de setembro de 1972 destacou o sujeito da comemorao


e o sentido que estava sendo proposto nao. Lembremos quea revista O Cru
zeiro foi lanada em 1928. Noseu nascedouro e durante toda suaexistncia, essa
revista apresentou-se ao pblico como um suporte de comunicao com forte
tendncia nacionalista e de defesa do uso da tcnica e da tecnologia como carac
terstica a serassumida pela modernizao brasileira.
O ttulo da revista evoca os primeiros nomes dados ao Brasil: Ilha de Vera
Cruz e Terra de Santa Cruz. Cruzeiro uma constelao que guia os navegantes,
nome da nova moeda brasileira poca e smbolo presente na bandeira nacional.
Smbolo que parte de uma longa tradio cultural o cristianismo e conver
te-se em emblema da nacionalidade, remetendo, por sua vez, idia de civismo e
patriotismo. Em todos os nmeros da revista, o apelo por uma grande profuso
de imagens busca iniciar o leitor/comprador em um novo modo de leitura: pri
meiro, ele pode olhar a revista para ver as imagens e, depois, seas imagens no o
satisfazem, ele pode voltar ao texto. H uma pedagogia em curso: imagem como
portadora desentidos e de informaes, pois,-segundo a revista,
o jornal d-nos da vida a sua verso realista, no bem e no mal. A revista
redu-la sua expresso educativa e esttica. O concurso da imagem nela
umelemento preponderante. Acooperao da gravura e do texto concede
revista o privilgio de poder tornar-se obra de arte. Apoltica partidria seria
to incongruente numa revista do modelo de O Cruzeiro como num trata
do degeometria. Uma revista deve ser como um espelho leal onde sereflete
a vida nos seus aspectos edificantes, atraentes e instrutivos. Uma revistade
ver ser,antes de tudo, uma escolade bom gosto."

Ibidem, p. 7.
Editorial. O Cruzeiro, n. 1, 1928.
218 lio cantalcio serpa

Sabe-se, porm, que as imagensveiculadas no so apenas representaes da


realidade aos olhos, so algo mais: buscam constituir-se como a nova forma de ser
do homem moderno. As imagens no so tambm apenas simulacros ou ilustrao
do pensamento, no podendo ser reduzidas a uma funo esteticista de to-so
mente mover sentimentos para adeso ou para compra e venda de tecnologias de
mercado. As imagens criam concepes de vida, logo podem ser lidas como
estratgias de enunciao de discursos, de produo e difusode saberes. Nessesen
tido, o avano tecnolgico e a aplicao de tecnologia da imagem se converteram
em conceitos fundamentais para O Cruzeiro^ visto que certamente intentavam ex
plicar o que queriam que fssemos, por seu intermdio, deslocando a centralidade
conferida experincia do homem na modernidade. No momento, o sonho do pre
domnio da razo cedia espao imaginao. Reafirma-se o princpio de que o ho
mem um animal simblico, e a mxima de que "os homens criam as ferramentas
e as ferramentas criam os homens" foi levada ao extremo. A cultuao da tcnica
como modo de vida ideal e da tecnologia como horizonte a ser alcanado tornou-se
dispositivo mximo a dar textura e plausibilidade aos "novos tempos", sem assegu
rar a perenidade dos projetos polticos,dos modos de vida e dos sujeitos que se di
zem construtores.
A poltica estetizao, produzida pelo governo autoritrio, teve como supor
te a produo de publicidade e propagandas financiadas pelo governo e por em
presas privadas. No que tange ao entendimento do que seja estetizao, reporto-
me a Jos LusMolinuevo, que, valendo-se de outros intelectuais, registrou que a
tese do fim da grande arte aceita pela maioria dos intelectuais no s por pro
blemas ou morte da grande arte, mas tambm por excesso, porque toda e qual
quer coisa ou pode ser arte. Para ele no parece que a morte da arte seja res
ponsvel pelo desenvolvimento da esttica, mas o vitalismo desta ameaa a pr
pria natureza da arte. A expanso da esttica, sua presena em todas as esferas da
vida transborda e faz crescer sua relao com a arte. A estetizao, mais que o
tradicional embelezamento do real, significa uma mudana no real. Chega-se ao
ponto de querer transpor para o real propriedades tradicionalmente reservadas
arte.
A estetizao tem a publicidade como um canal de difuso privilegiado. Ela
no somente oferece um produto, mas a ela est associado um estilo de vida. A
esttica utilizada no somente um veculo de transmisso, mas um dos lugares
onde se oferece uma essncia da vida. A reivindicao social de que a felicidade
integre ou faa parte da beleza se realiza; entretanto, obnubilada por efeitos
indesejados: no produto mercantilizado est includa a proposta da felicidade como
sua essncia. No se trata de embelezar o real para faz-lo habitvel ou suportvel,
seno de criar outra realidade virtual que o substitua. Existena atualidade uma cons
cincia de que no somente mudou o que compreendamos por realidade, mas
tambm ns mudamos. Os novos tempos, sobejamente abordados pelo governo
ps-64, alm da questo poltico-administrativa autoritria, estavam se definindo
Editorial. O Cruzeiro, n. 1, pp. 19-20, 1928.
independncia: esttica para a nao, memria, poder e tecnologia 219
pela incorporao e desenvolvimento denovas tecnologias dacomunicao, o que
exigia nova sensibilidade para alm do modelo sensitivo do saber ver.'^
No nmero comemorativo, a revista O Cruzeiro de 1972 produziu imagens
que ilustraram dois brasis: o Brasil de ontem e o Brasil dos militares. Para cada um
desses brasis, havia um tipo de evocao imagtica. No Brasil de ontem, ttulo do
artigo que acompanha as imagens, aparecem os personagens consagrados pela his-
to-riografia, na pretensode passarao leitor a idiade testemunho ou de prova do
fatoacontecido.No Brasil dos militares, as imagens aludem a um Brasil em constru
o. Na produo dessa revista, no que se refere ao Brasil de hoje, houve o envol
vimento de um nmero significativo de fotgrafos e produtores de textos." A revis
ta procura fazer um tour pelo pas, destacando o progresso em diversos setores da
sociedade, mas dando nfase ao desenvolvimento industrial e tecnolgico no pas.
No se descuida da identificaocultural e poltica do Brasilcom Portugal pelo pas
sado e pela experincia autoritria que estava esvaindo-se e por uma suposta mo
dernizao.
Assim uma reportagem sobre Portugal destacou sua grandiosidade aliada
suas colnias em frica: Guin,Angola, Diu, Moambique, Macau e Timor. Abriu
espao especial para a educao em Portugal, previdncia e sade,aviao comer
cial e finalizou com a reportagem intitulada "Organizao penitenciria em Por
tugal". Para Lagreca o objetivo dessa reportagem foi mostrar "as virtualidades de
Portugal [.. .] caleidoscpio, cristo e mouro, do aldeo ingnuo, mas tambm
do tcnico os melhores do mundo em engenharia hidrulica, em estaleiros,
em avano tecnolgico"."
A revista articula a experincia vivida no Brasil com a situao de Portugal,
destacando o desenvolvimento tecnolgico, as polticas governamentais para mo
dernizar o pas e tambm as relaes de Portugal com suas colnias,que transpa
recem como harmoniosas e prometedoras de durabilidade nas relaes colnia/
metrpole.Desse modo, quer mostrar organicidade e conferirlegitimidade poltica
ao regime, ao relacionar o Brasil a Portugal, nos desligando do contexto daAmrica
Latina, poca muito conturbada por movimentos sociais e polticos. A relao

" Reprteres: Indolcio Wanderlei, Ubiratan de Lemos, Mrio de Moraes, Jorge Audi, Elias
Nasser, Luiz Alfredo, Geraldo Viollo, Glauco Carneiro, Jos Franco, Jos Nicolau, Afrnio Brasil
Soares, Hlio Passos, Walter Luiz, Tobias Granja, Joarez Ferreira, Fernando Richard, Miguel ngelo
M. Gonalves, Fernando Seixas, Nilton Caparelli, Geraldo Romualdo, Robson de Freitas, Aldyr Ta
vares, Rubens Borges, Hlio Mota, Wanderlei Lopes, Antnio Carlos Piccino, Eduardo Riberto, Jorge
Segundo, Fernando Brant, Luiz Antnio Luz, Izaias Monteiro, Rubens Amrico, Antnio Teixeira
Jnior, Cludio Kuck, Francisco Vargas, Jos Carlos Vieira, Ayton Quaresma, Massonni Mochizuki,
Rodney Neves de Mello, Vieira de Queiroz, Gilberto do Vale, Mary Dubugras, Antnio Lcio,
Antnio Gladis, Iber Brasil Pereira, Clvis Teixeira, Juvenal Eustquio e Jankiel Gonczarowska.
Departamento de Texto: Antnio Nogueira Machado, Ary Vasconcelos, Bertholdo de Castro e Humber
to Serqueira. Pesquisa: Manoel Aristarcho (chefe), Damio Gaspar e Maurcio Schleder. Arte: Paulo
Tavares, Jesus Jos da Costa, Jos da Rocha Pereira, Jorge Albino, Euclides Galdino, Manoel Tenreiro
e Fritz Granado. Reviso: Joo Octvio Facundo (chefe). Documentao e Arquivo:Lus Henriques
(chefe). Colaboradores: Rachel de Queiroz, Thereza de Paula Penna, Amilde Pedrosa, Carlos Estevo,
Alceu Penna, Nehemia Gueiros, Sylvio Alves, Pedro Calmon, Gilberto Freyre, Pedro Lima, Edith
Pinheiro Guimares, Odorico Tavares e Omar Cardoso.
Nosso Portugal. O Cruzeiro, n. 37, ano XLIV, 13 de setembro de 1972.
220 lio cantalcio serpa

com Portugal, pas visto como progressista, somada "idia de ptria me", nos
atou a um passado longnquo, que no poderia ser olvidado. Teceram uma leitura
positiva da relao de Portugal com o passado colonial brasileiro, ao registrar:

Grande fora a tarefa realizada pelos portugueses. Plantaram uma co


lnia, fizeram-na crescer e prosperar. Deram-lhe uma imensa base fsica,
estendida at seus limites naturais. Extraram seus recursos econmicos
mais acessveis e os fizeram circular, transformados em riqueza pelos mer
cados mundiais. Defenderam-na contra a competio de potncias rivais,
mantendo-a intocada.'^

A produo de imagem positiva para Portugal relacionava-se com o desejo


de conter as lutas das colniasportuguesasna frica, que buscavam sua indepen
dncia. Brasil e Portugal articulavam-se com o propsito de produzir uma ima
gem do Brasil como "filho prspero" e de Portugal como terra construtora de na
cionalidades. Dessa forma, na relao criatura e criador mostravam a positividade
de identificao no que tange experincia poltica autoritria vivida nos dois
pases. O Brasil, como imagem e semelhana de Portugal, agradecia o legado e
referendava a sensatez do pas colonialista. Imagens que atuam para dentro e para
fora: o colonizador, ex-colonizado (Brasil) e colonizado (colnias em frica),
objetivando a constituio de efeitos de verdade para uma populao que deveria
aceitar o autoritarismo a partir de seu passado. Nas comemoraes, o passado bra
sileiro no flui como condio de libertao e expurgo dos dispositivos de domi
nao, mas como suporte em que o colonizador visto como construtor, criando
uma relao direta entre o momento em que se vive o autoritarismo e o passado
que transmutado em glria e benevolncia do outro.
Nesse jogo poltico de escritas e produo de imagens, a Independncia como
algo acabado, foi levada categoria ftmdamental, para caracterizar um pas livre
ou uma nao soberana, tornando-se um forte dispositivo imaginrio de canali
zao ufanista das vontades, expresso no "grito de glria que acorda a histria",
contrapondo-se s leituras crticas feitas no Brasil sobre a Independncia.
O sujeito a ser comemorado (Independncia) constituiu-se em dispositivo
de identificao da populao com a nao autoritria, servindo para compor pe
asde publicidade feitas por empresas privadas, mostrando o seudesenvolvimento
operacional e tambm a inseparabilidade entre nao/empresa. Capital, processo
produtivo, mercado e constituio de sujeitos so assumidos como encarnao
da nacionalidade
A idia da independncia como algo dado e acabado se materializou na pu
blicidade feita pela Sanbra, que evocou a paz e a independncia como maior bem
que uma nao deve prezar, concluindo que era "uma empresa que cresce num
pas livre".

Nosso Portugal. O Cruzeiro, n." 37, ano XLIV, 13 de setembro de 1972, p. 8.


independncia: esttica para a nao, memria, poder e tecnologia


maior

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A'-

Figura 2. Revista O Cruzeiro, 13 de setembro de 1972, p. 25.

A publicidade feita para a Volkswagen trabalhou com o mote da Indepen


dncia, inspirando-se no quadro de Pedro Amrico. Contudo, ressaltou a estrat
gia da (des)idcntificao ao apresentar uma imagem, em branco e preto, de um
carro de boi que caminha em direo ao logotipo da empresa, com o carreiro vol
tando seu olhar para trs deixando o passado no qual o povo era lembrado como
construtor da nao. No texto est registrado:
lio cantalcio serpa

O seu trabalho, o seu carro, a fora de seus bois, o toque carinhoso da


sua voz j estava construindo a Independncia. Hoje, o grito e aquele carreiro
se encontram de novo. No sonho de um alferes de Minas, na coragem da
quele prncipe emocionante. A soberania do gesto foi sendo construda na
Nao com o trabalho de todos os carreiros da Histria.

Vamos falar
desse carreiro
. ^1A 'Jo itopciunto
I t IJriii.CJ Vita U-di:. <jo NClT> um
o.-,-. < 1J ' rv.f-u'- O
' t r rj' r I ,v:'.r<r: (y'.') 'rtjva. k ' u f n t.Jitoc boi,
<.T. Tr.,1 'i> i.T.-i u cu(''L'<t Seji/ij vu i.orTi'lo mjt
w ^ ic.M ccnj jh. quu HkIs .iqijold cj^nr? riany vivAs ^
ii:i3 t^ou LjOffihs. pjra t*s s^^ntiotDv ftdolgoi
^ ^ \ a ia'ta 0a% 'ovi du coto b tremendo, so
tfqycla ccha Qudoto irur*, otixo drsianciAv^. mnis prrio c'*s csuva
U.iaodo gntv
o ccu tiajlho, y sw cafru, a loica dos siis o 'inhxiAa
y &<javu/ r csO^/a ^/)n&(ruinck> a U^Ovprtxlnct.
Ho;v, o g'itc o aqueJo cairuieo %9 Ancootarr' d novo
Nc scKiho de Mmai. na ccuagam dBquf;tp
P<irK'.ipo rn>CHri'>ndn!e
A cubutania dn go&o foi tendo cunsukia na Nisgt uxri o biblhg
cio todii cs correios da lr$;6r^a
I<DiO.r. f.'SU* h na n 11 c)nat. rias Hvdshras, rio
^ conircio.riA cooquiMade meiraoe. nd Arnaanra,
k nu Nmd'>ste v^rniet t.feiCT>enteo
claciuie hopei df elr4
(Sso. hunta um catrnito edlevc tnogiandc
^ ni S humildade
Pnr fmnr.ii.m pcv". Huji* i^Tcvo tftO
no veiihn>>i>tu de
^ Utjco . .limo p.ve

.1, f.ik*\voo'''^ de IVoMi


' h './> ,1 or de n'.ithnmj de-
f.rrjjri-': n fur.-tiorAmo*<
k n 'r ^"nOrfJifea,
ofenr<*lfi'^c de M"iS
ou n.>:^au>''irnr<
'Iriir ''.cns.tndo
Moro 00. .NMfo
E/fV.n TmCipU
'';t''AU*n5
C .irt;>n;Io O'' h'"0

fe VOLKSWAGEN
^^00 Sn&SIL S.A.

Figura 3. Revista O Cruzeiro, 13 de setembro de 1972, p. 83.

Na transposio temporal da existncia do meio de transporte carro de


boi e carreiro para o momento presente, a (des)identificao se projeta como
ideal ao propor que:
independncia; esttica para a naao. memria, poder e tecnologia 223

Hoje, eles esto nas oficinas, nas indstrias, no comrcio, na conquis


ta dos mercados, na Amaznia, no nordeste vendo claramente o signifi
cado daquele tropel de 150 anos atrs.

A Light trabalhou com as narrativas culturais existentes em diferentes regies


do pas. A publicidade intitulada "Quem assustou os filhos da treva?" foi feita com
base em caricaturas do Saci Perer, do Lobisomem, do Curupira e da mula-sem-
cabea, com notas explicativas da funo de cada um.

Quem assustou
os filhos dos trevas ?

V!

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Figura 4. Revista O Crizcnv, 13 de setembro de 1972, p. 91


224 lio cantalcio serpa

A pea publicitria no descarta o uso de texto explicativo. Inicia narrando


uma suposta estratgia para capturar um saci'^ e, a seguir, remete o leitor para os
tempos atuais, registrando:

S que, hoje em dia, saci est em falta. No apenas o saci, mas tambm
mula-sem-cabea, caipora, curupira, lobisomem e todas as outras crendices
que nasceram no interior e foram transmitidas de gerao em gerao atravs
de histria contadas luz dos lampies de querosene. Filhos do medo, nascidos
na escurido e alimentados pela ignorncia, nenhum resistiu era da eletricida
de. A eletricidade mudou o interior. . . O progresso assustou as assombraes.

Ainda no trabalho de identificao e (des)identifcao a publicidade feita pela


Seiko assume uma posio de afinidade com a nova ordem poltica estabelecida
associada tecnologia de guerra. A relao entre tecnologia e poltica adquire uma
visualidade mxima quando O Cruzeiro, de 1972, apresentou a seguinte propaganda:
poluP&lHiu Km UxtoniM
Por todos r>n Ju^^rcp.
l - Llm todOH oft [3Ul(0H. SAo <mi
' * Sotko Blindndon. Com
cnxftfldo fio. Anlichoquvs.
linpormi'VvoA. AniimagniicofL
lm]ilac6vcH nauh prr)ciiiAo
doscuti ])onlnrr>. lniKtosquo
voo nunca v cm porodax porf|uo
offUkoncmprrtcm movimento.
Coinoo DrAJril dn hoja

SEIKO

Os blindados

Figura 5. Revista O Cruzeiro, 13 de setembro de 1972, p. 79.

Fara pegar um Saci, use uma peneira, daquelas de cruzeta. Espere um dia de vento forte e
jogue a peneira em cima de um redemoinho. Todo redemoinho tem saci dentro. Depois, enfie uma
garrafa escura debaixo da peneira e, ein seguida, tampe a garrafa com uma rolha que icniia uma cru/
riscada em cima. O que prende o Saci a Cruz c no a rolha.
independncia: esttica para a nao,memria,poder e tecnologia 225

As imagens usadas no se separam da palavra escrita para facilitar sua com


preenso e reforar sua mensagem. Na publicidade da Seiko os planos so muito
expressivos; em primeiro plano esto os relgios, num segundo plano, os tanques
de guerra com soldadose num terceiro, homens e mulheres nas caladas assistin
do ao desfile. Seria no af de mostrar ao leitor a admirao e adeso ao momento
poltico? A montagem da imagemcapta um instante (o desfile das tropas milita
res com seus aparatos de guerra) e seu registro o eterniza. No tem o objetivo de
reviver um passado, mas tornar visvel o presente. O enquadramento faz que o
leitor fixe seu olhar nos carros blindados. Nesse sentido h uma estetizao do
momento em que o uso da tecnologia de guerra, armas e tanques inserem-se no
cotidiano, querendo naturalizar e reafirmara nova ordem vigente. A imagem, por
exemplo, no mostra pessoas manifestando apoio ao regime. A rua apresenta-se
como o espao de exibio da tecnologia de guerrae dos seussignatrios.
Disso resulta que a publicidade evidencia imbricaes entre a linguagem
tcnicae a poltica para demonstrar forae segurana. Com isso, metaforicamen
te apontava para a impossibilidade de defeitos nos diferentes mecanismos polti-
co-administrativos postos em prtica durante a ditadura militar brasileira, quan
do a rigidez, a preciso, a ordem e a disciplina parecem querer obliterara ao na
poltica.

O ser e o parecer do poder

Voltemos um pouco no tempo. Antecedendo o ano de 1972, Austregsilo


de Atade, em 1964, em uma crnica para O CruzeirOy tergiversava sobre o mo
mento vivido no Brasil, em decorrncia do Golpe Militar de 64. O cronista tinha
por objetivo fazer compreender "a necessidade natural de um poder calcado na
razo, quese dirige coletividade nacional, prevendo, antecipando e deduzindo,
de forma a conter e orientar as foras que desordenadamente se conjugam".'^
Exemplificava sua vontade poltica com a natureza representada como matria-
prima para a produo de energia, na qual a tcnica e a tecnologia definiam o
caminho das guas. Assim, registrou: "como a engenharia hidrulica disciplina as
grandes cachoeiras, encaminhando as guas para as turbinas que geram energia
para a aplicao til aos interesses da vida humana assim, tambm, deveriam ser
conduzidas as vontades polticas humanas".' O sentido da cachoeira como ex
presso da natureza (re)significado como fonte deenergia, e suas guas, por meio
do clculo e da engenharia, so dispostas em determinada ordem, constituindo-
seem exemplo poltico para integrar a populao ao sonho do "Brasil Grande".
No final dos anos 1960/1970, no Brasil, temos a mobilizao de alguns se
tores sociais no sentido de constituio de aparatos capazes de dar sustentao
idia da nova modernizao, calcada agora na produo de tecnologias de infor
mao. O governo militar/civil, associado a outros setores da sociedade,procurou

" A. Athayde. Aqui foi o Brasil. O Cruzeiro, abri! de 1964, p. 18.


" Ibidem.
226 lio cantalcio serpa

constituir o pas como "sociedadeda informao," adotando algumas polticas que


realizaram pequenos percursos nessa direo. Em 1972, Arnaldo Niskier, secret
rio de Cincia e Tecnologiada Guanabara, durante o Governo de Negro de Lima,
afirmava:

As sociedades que reconheceram a importncia do incentivo cincia


e tecnologia dedicam parcelas cada vez maiores ampliao das suas ati
vidades desenvolvendo a chamada indstria do conhecimento. Grandes em
presas, em lugar de bens de servios, produzem e vendem idias e informa
es, materializadas na forma de equipamentos e tcnicas de organizao.
No caso brasileiro, ainda no houve o despertar para o relevo da relao pes
quisa/desenvolvimento. Estamos agindo em termos bastante modestos, com
uma importao macia da tecnologia necessria produo."

A Enciclopdia Abrily publicada em 1972, ao justificar seu lanamento res


saltava:

Acelera-se a integrao universal, possibilitada principalmente pela ex


panso e aperfeioamento dos meios de comunicao e permitindo at que
se fale numa "civilizao planetria", na qual a conscincia individual co-
tidianamente assaltada pelas notcias de todo mundo.

Rdio, televiso e educao constituem-se em trs suportes fundamentais


para a criao dessa sensibilidade tecnolgica que atinge, cotidianamente, corpos
e mentes com a fmo de desenvolver habilidades e aplic-las no cotidiano, seja
na sua maneira de ser, seja no espao domstico ou no trabalho. Sobre isso afir
mou a revista O Cruzeiro de 13 de setembro de 1972:

A participao da televiso e do rdio na alfabetizao ser eficaz por


alcanar, de modo simultneo, um maior nmero de alunos e proporcio
nar a utilizao de modernas tcnicas audiovisuais de ensino. [. . .] Embora
d nfase especial ao esforo para erradicao do analfabetismo, nos anos
70, no se detm a. Seus objetivos so mais amplos, pois visam, ainda, a
conscientizao da opinio pblica nacional para a inadivel necessidade
de se preparar a infra-estrutura scio-econmica do pas, atravs de forma
o de know-how qualificado, para que possamos enfrentar, com xito, o
desafio tecnolgico, imposto pelo desenvolvimento.

Concomitantemente, produziam-se valores culturais com seus respectivos


suportes, estimulando sensibilidades que favorecessem seus usos no cotidiano e
no trabalho. Sabe-se, h muito tempo, que quem educa a palavra, mas a
modernidade gradativamente vai impondo o recurso da imagem comoestratgia

Arnaldo Niskier. O impacto da tecnologia. Rio de Janeiro: Bloch, 1972, p. 22.


independncia: estticapara a nao, memria, poder e tecnologia 227

que orienta para uma nova estetizao da vida. Nesse contexto a forma adquire
posio de primeira grandeza, e a imagem produzida pelo olho informado do fo
tgrafo,associado tecnologia fotogrfica, cria e recria espaoscom adereos que
encantam e apontam para um futuro no qual se poderia ficar ou no a favor do
objetivoa ser alcanado.
Segundo Raymond Williams, embora haja uma tendncia generalizada para
empregar os termos inventos tcnicos e tecnologia como se fossem equivalentes,
a distino entre tcnicas e tecnologia fundamental. Uma tcnica, segundo o
autor, uma habilidade particular, ou aplicao de uma habilidade. Um invento
tcnico , por conseguinte, o desenvolvimento de umahabilidade, ou o desenvol
vimento de uma mquina. Entretanto, a tecnologia ,em primeiro lugar, o marco
de conhecimentos necessrios para o desenvolvimento de habilidadese aplicaes
e, em segundo lugar, um marco de conhecimentos e condies para a utilizao
prtica de uma srie de inventos. Essasconcepes acerca da tecnologia esto subs
tancialmente ligadas entre si. So nveis superpostos: marco de conhecimentos,
tanto tericos comoprticos, queprovm dashabilidades e dosinventos tcnicos;
e marco de conhecimentos e condies a partir do qual se desenvolvem, combi
nam e preparam parao uso.^ Nadireo da criao e incentivo ssensibilidades
tecnolgicas houve, na dcada de 1970, grande investimento no setorde comuni
cao coma expanso de emissoras associadas Rede Globo por todo pas, alm
de outras. A revista O Cruzeiro^ juntamente com outros meios de comunicao,
produziram discursos e imagens apologticos sobre a materialidade dos novos tem
pos, apontando paraum futuro calcado na idia largamente difundida da consti
tuio da sociedade da informao.
A revista O Cruzeiro de 13 de setembro de 1972 d enorme visibilidade
questo da tcnica e da tecnologia, utilizando as imagens que enfocam, com des
taque, o uso de instrumentos tcnicos na forma de mquinas e, ao mesmo tem
po, mostrando homens e mulheres operando esses instrumentos. Na mquina
subsumem e se mesclama materialidadedo objeto com a destreza e a habilidade
nasua operao. Lembremos que nos anos 1970 foi feita uma reforma educacio
nal ampla que teve porobjetivo preparar o setor educacional, em todos osnveis,
paraessa novademanda, criando formas de identificao da populao com a lin
guagem tecnolgica. Nas escolas aprendia-se a teoria dos conjuntos, surgiam os
primeiros cursos de informtica, implantava-se o estudo dirigido, o ensino pro
gramado e havia toda uma racionalidade na estruturao dasprticas pedaggicas
queseexpressava na organizao do plano de curso, do plano de aulas e tambm
em outras atividades, at mesmo na criao de salas laboratrios.

Cf. R. Williams. Tecnologias de Ia comunicacin e instituciones sociales. In: R. Williams.


(org.). Historia de Ia comunicacin. De Ia imprenta a nuestrosdias, v. 2. Barcelona: Bosch Casa Editorial,
1992, pp. 184-5.
'A

Figura 6. Foto: Indalccio Wandcrley. O Cruzeiro, 13 de setembro de 1972, p. 52.

A sala de aula e o espao de trabalho se conjugam, expressando afinidades


pelo uso de instrumentos tcnicos. Ela se transforma em laboratrio para demons
traes experimentais. Estudantes, majoritariamente masculinos, ouvem as explica
es do professor e tm disposio equipamentos que lhes possibilitam o mapea
mento das molculas. A sntese qumica permite a visualizao da molcula na sua
forma tridimensional, indiretamente, dispensando a natureza na sua forma bruta.
certo que para esses ditos "novos tempos" o sujeito a ser constitudo ser
aquele capaz de manipular, produzir e consumir novos suportes tecnolgicos, ab
sorvendo e reelaborando informaes advindas de pases com tecnologia avana
da. Dessa forma, a inteligncia associada ao trabalho, agora mental, para produzir
e operar informaes, vai gradativamente substituindo antigas formas de traba
lho, desequilibradas com as novas idealizaes sobre trabalho e capital e com a
emergncia de outras reas do conhecimento como, por exemplo, a biotecnologia,
a ciberntica, a microeletrnica alm de novos suportes tecnolgicos. A Ennc/o-
pdia Abril, de 1972, observava ainda sobre a questo:

Pensadores, cientistas, filsofos de diversas correntes, debatem e apre


sentam as idias que possam exprimir as necessidades e a ndole do novo
esprito cientfico, bem como o novo perfil que o homem contemporneo
precisa ter de si mesmo.-'

Nisso reside a caracterizao dos novos tempos, assentados na emergncia


de aparatos tecnolgicos, na produo de informaes, na ampliao do mercado

Enciclopdia Abril. Apresentao, v. J. So Paulo; Abril Cultural, 1972, p. 8.


independncia: esttica para a nao,memria, poder c tecnologia 229

e na constituio de um outro sujeito que se identificasse com esses novos tem


pos para o qual se (re)claborava a questo do trabalho e do trabalhador. Discutia-
se com veemncia a relao entre a tecnologia e a questo nacional, advogando a
irreversibilidade do processo de internacionalizao da vida. Essa discusso tinha
como referncia a presena das niultinacionais e o desenvolvimento dos meios
de comunicao que operavam por satlites, trazendo imagens simultneas aos
acontecimentos narrados. Os"novos tempos" colocavam para o homem a sua fun
cionalidade na relao com o desenvolvimento tecnolgico, ser matria-prima,
que se materializava por meio da explorao do corpo com o uso de sofisticadas
intervenes cirrgicas que permitiram implantes de rgos, produo de drogas
e esttica corporal.

I-igiira 7 Hoto: Jos Oirlo.s Vieira. OCnrcmi, 13 dc setembro de 1972, p. 87.


OCruzeiro de 1972 traz a imagem de Dona Leonor, uma secretria que se
beneficia rapidamente dos benefcios do avano tecnolgico, ao receber um cheque
dc devoluo do imposto de renda. Otexto que acompanha as imagens registrava:
Veja, recebi um cheque do Ministrio da Fazenda exclama Leonor
Barreto, secretria de profisso. a devoluo do dinheiro a mais que ela
pagou na fonte, oano passado, como imposto de renda. Leonor custa aacre
ditar, vira e revira o cheque, mas est tudo certo: o governo devolve o que
no seu. Para atingir esse alto estgio tecnolgico, foi necessrio mudar
toda uma antiga e obsoleta estrutura administrativa. |. . .] Para tanto ele
(Serpro Servio Federal de Processamento de Dados) conta com dezenas
230 lio cantalcio serpa

de computadores eletrnicos, que cobrem todo o pas. Possui o maior par


que industrial de processamentos de dados da Amrica latina. [. . .] A ex
perincia ser difundida por publicaes tcnicas e seminrios, de forma a
exportar para a administrao pblica, nos trs nveis, o know how desen
volvido, que j se tornou ferramenta necessria para os trs nveis."

As imagens veiculadas pela revista O Cruzeiro em comemorao ao ses-


quicentenrio da Independncia enfocaram a nao, fazendo opo pela moder
nizao tecnolgica e trabalhando com o binmio tecnologia e desenvolvimento,
que aparecia mesclado com a experincia poltica autoritria brasileira. No h
na revista reportagens que dessem visibilidade s fbricas com grande quantidade
de trabalhadores. A nfase era dada a operadores de mquinas e sujeitos que des
frutavam dos prazeres existentes nesses novos tempos.
Ao atingir outros estados brasileiros, mostrando imagens de indstrias que
utilizavam novas tecnologias, o operrio j no aparece como homem que coloca
sua fora fsica na produo; ao contrrio, o uso que ele faz das mos e a fixao
dos olhos nos dispositivos maqunicos buscam evidenciar o uso da inteligncia
na esfera do trabalho.

Figura 8. Revista O Cruzeiro, 13 de setembro de 1972, p. 33.

A indstria no mais se torna visvel pelo conjunto dos trabalhadores que


outrora eram enfocados em destaque, produzindo a riqueza. No espao industrial
h mais instrumentos tcnicos que trabalhadores. um espao que expurga o
homem na forma de fora de trabalho bruta, mas o coloca no novo perfil deseja
do: homem inteligente, capaz de manipular adequadamente os aparatos tcnicos.

-- Mrio Moraes. Scrpro; tcnica a servio do progresso. O Cruzeiro, 1972, p. 87.


Figura 9. Foto: fosc Carlos Vieira. O Cruzeiro, 13de setembro de 1972, p. 86.

Essa foto acompanha a reportagem intitulada "Serpro: tcnica a servio do pro


gresso". A matria procura historiar o desempenho do governo no que se refere ao
Ministrio da Fazenda, at 1964. Segundo a reportagem, os ser\dos mecanizados
do referido ministrio eram precrios e feitos com equipamentos inadequados. Em
1970, sofreu reformulaes bsicas em sua estrutura. Possui ento um quadro de
tcnicos constitudo por 187analistas de sistemas e organizao e mtodos, 144 pro
gramadores, 140operadores de computador, 37 tcnicos de controle, 39 tcnicos de
processamento, 1058 perfuradores, 745 auxiliares de preparao de dados. Termina
a reportagem com a afirmao de que "o trabalho do Serpro sobretudo racional.
Eles sabem o que fazem".-' So definidos, para a virtualidade dos chamados "novos
tempos", aqueles que faro parte dessa partilha do mundo. Novas competncias, ou
tros espaos de trabalho e outros objetos tcnicos materializados numa outra estti
ca organizatria, tanto da experincia de trabalho quanto de sua visualidade.
O resultado de um ato de fotografar transforma-se ento em um testemu
nho. Seria, dessemodo, a fotografia usada para criar uma prova inconteste de que
um novo tempo estava se concretizando, e o governo militar/civil seria o artfice
dessa mudana? O texto que acompanha essa foto aponta para a constituio de
outras categorias profissionais: analistas de sistemas e organizadores de mtodos,
programadores, operadores de computador, tcnicos de controle, tcnicos de pro
cessamento, perfuradores e auxiliares de preparao de dados. A insero indivi
dual no trabalho parece querer solaparo trabalho cooperativo. Significa certamente
dar uma tonalidade aos novos tempos na direo do "desmanche das estruturas
rgidas, hierrquicas e autoritrias herdadas do fordismo ou do keynesiansimo".-'
A revista O Cruzeiro de 1972, bem como outros suportes de comunicao,
produziram imagens portadoras de anncios embrionrios do novo sujeito, que

Mari() Moraes. Serpro; tcnica a .servii,-o do progresso. O Cri/ccini. 1972, p. 87.


David llarve)'. Do ft)rdismo a acunuila(,o flexivel. In: David Harvey. Coiuiiio ps-niodiTun.
Trad. Adail Uliirajara Sobral Ss Maria Stela (ionvaves. So Paulo: Loyola, 1993, p. 135.
232 lio cantalcio serpa

faz uso da inteligncia e que a aplica exausto no setor produtivo. Est em curso
o processo em que o novo sujeito se transforma em potncia e se secundariza na
relao homem/conhecimento. As fotografias criam uma narrativa por meio de
uma imagem ixa, num processo em que o leitor no tem a possibilidade de esta
belecer um contato visual com um "antes e um depois" do tempo oferecido pela
foto. O ato de fotografar para comemorar no teve preocupaes com narrativas
prvias que situassem o leitor, ou seja, que mostrassem as condies de emergn
cia das formas de imposio das desclassificaes e das dificuldades da experin
cia vivida. Imagens mostram mos que escrevem, que aplicam injeo, jogam bas-
quetebol, carpcm, colocam parafusos e fincam pregos. Remetem o leitor para a
idia de que o homem, na sua individualidade, portador de potncia. Isso define
a competncia desejada para fazer parte do comum na perspectiva poltica dos
novos tempos. Antigos modos de vida, alimentados ou no, imaginariamente pela
lenda, pela fbula, no entram na partilha daquilo que se quer que seja comum
na nao. Em se aceitando a reflexo de Pelbart parece que a intricada relao
entre poltica, cultura, subjetividade e vida deve ser repensada, nas ltimas dca
das, da forma mais concreta possvel, isto , no interior da revoluo tecnolgica

do to^snos os
e produtiva que engendra cotidianamente efeitos afetivos e sociais de toda ordem
sem, contudo, perder de vista a emergncia de novas reconfiguraes.-^

SeouicBrildnano da Intfe&ervtfoncto ^
Voc canatro O raftil

Figura 10, Revista O Cruzeiro, 13 de setembro de 1972, pp. 12-3.

Cf. Peter Pl Pelbart. Viifn capitnl ensaios de biopollica. So Paulo; llumimiras, 2003. p. 131.
ni / Imagens da Cidade
SANTOS: PARA ALM DO PORTO DO CAF

Maria Izilda Santos de Matos


Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

Na segunda metade do sculo XIX, a expanso da produo cafeeira rumo


ao oeste do estado de So Paulo encontrou, entre outras dificuldades, a do escoa
mento do produto, at ento realizado em lombo de burro, enfrentando o relevo
ngreme da serra do Mar. Ainaugurao da ferrovia SantosJundia (1867) pos
sibilitou um transporte regular, com menos riscos e maior grau deeficincia, im
pulsionando ainda mais a expanso da cafeicultura e viabilizando um escoamen
to eficiente da produo. A partir de ento, o comrcio e a exportao do caf
foram sendo centralizados em Santos, em detrimento de outros portos, desenca
deando um processo de crescimento contnuo da cidade.
No sculo XIX, o processo de mundializao implicou a intensificao da
circulao de mercadoria, pessoas, idias e referncias culturais. Os portos para
alm deportas de sada dos produtos, tornaram-se portas de entrada de mercado
rias, pessoas e influncias. Daa importncia de se observar no s o que era ex
portado, mas tambm as mercadorias e referncias culturais que entravam por
estas portas. Pelo porto de Santos conexode So Paulo e do Brasilcom o mun
do , se exportavacaf, tambm se recebia todo esse amplo conjunto de influn
cias, tornando-se um territrio privilegiado de trocas culturais.
Nesse sentido, cabe destacar a ampla e variada gama de produtos e objetos
de consumo que chegavam ao porto e a eram comercializados, dinamizando o
comrcio importador. Para anunciar e vender essas mercadorias foram abertas lo
jas, criados catlogos, almanaques e peridicos quepassaram a circular. Neles im
pressos e peridicos eram oferecidos desde barbatanas para uso nos colarinhos
masculinos, espartilhos para modelar os corpos femininos dentro dos padres de
moda europeus, utenslios de uso cotidiano, como: colherinhas de caf, vasos sa
nitrios, at uma estao ferroviria, como a da Luz/SP, inteiramente importada
da Inglaterra. Trazia-se de vrias partes do mundo, particularmente da Europa,
2S
236 maria izilda santos de matos

toda uma gama de produtos e influncias, gerando e dinamizando um "vetor


civilizador".'
O desejo de modernidade se expandia e se generalizava, sob influxo do cres
cimento comercial e financeiro, novas praxes passaram a reger o comrcio im
portador e exportador, com a forte presena de comissrios e exportadores.Entra
vam pelo porto vrios modelos que passaram a ser difundidos: modas, modos,
hbitos, costumes, estilos, sensibilidades, modelos, no s de como vestir, se ali
mentar, de como se morar, mas padres de comportamento masculino e femini
no, de como receber e ser recebido, de como namorar, novas noes de higiene,
de civilidade e de modernidade.
Vivia-se a euforia, a idia da chegada de novos tempos, com as referncias
de modernidade e progresso, com novas avenidas, praas e os canais recm-
construdos e iluminados, novas residncias e prdios comerciais no estilo ecltico-
europeu. No lugar dos carros de parelha, tlburis e bondes a burro, apareceram os
bondes eltricos, juntamente com os primeiros automveis; motores, telgrafo,
telefone; mquinas fotogrficas registravam o processo, despontava o cinema re
produzindo na tela a vida em contnuo movimento.
Os ritmos e fluxos da cidade se alteravam, as ditas conquistas tecnolgicas
acenavam que o mundo nunca mais seria o mesmo. A modernidade tambm se
apresentou nas novas referncias de temporalidades, tempo efmero, mudanas
constantes e ininterruptas, os tempos dos negcios (os negcios a termo), as agili
dades possibilitadaspela expansoda tecnologia, uma segmentao cada fez maior
do campo e da cidade, ruptura com as tradies, constituio do arcaico e a busca
incessante pelo moderno.

O porto: palco de mltiplas experincias

Cabe observar no s o que se exportava por Santos o caf , mas aten


tar para o porto e a cidade, nas suas conexes com o mundo e transformaes
internas, destacando as mltiplas e variadasexperincias que passaram a se cons
tituir no cotidiano da cidade. Como porta de entrada, sada e circulaode pessoas,
o porto tornou-se palco de trocas culturais, os sujeitos histricos traziam experin
cias, hbitos, idiomas, modas, sensibilidades, ou seja, um conjunto complexo de
referncias culturais, que passavam a circular juntamente com eles pela cidade.
Alm de os portos serem um territrio de trocas de mercadoria, eles tam
bm se constituem como lociis de fluxo de corpos, pessoas, viajantes, turistas, ma
rinheiros, comerciantes, homens de negcios, tambm de migrantes e imigran
tes, mltiplas identidades em trnsito nesse e por esse territrio circulando,
entrando, saindo, atuando e trabalhando.
Cabe recuperar as formas e os fluxos de corpos, pessoas de diferentes nacio
nalidades que chegavam e saam pelo porto, alguns estavam de passagem para co
nhecer a rea, outros vinham realizar negcios ou em busca de oportunidade de

Cf. Norbert Elias. O processo civilizador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994.


siintos: para alm do porto do caf 237

trabalho nas atividades porturias e na cidade. Crescia a necessidade de hotis e


penses para hospedar as pessoas que estavam de passagem, j para as que procura
vam instalar-se, tornava-se premente implementar novas habitaes.
A expanso do porto consolidando-se como ponto de trnsito dos produtos
de exportao, importao e centro econmico e poltico , ocorreu juntamente
com transformaes sociais e demogrficas num curto espao de tempo e em rit
mo acelerado, no quadro da desintegrao da escravido, a emergncia do gover
no republicano e a grande imigrao. O "sonho americano" e a atrao exercida
pela cidadeconcentraram um significativo contingente de homens e mulheres.
O porto, centro dinmico da cidade, controlado pela Companhia Docas de
Santos, precisava ser constantemente modernizado e ampliado, a rea tornou-se
plode atrao, um m paraos imigrantes recm-chegados, particularmente por
tugueses do continente c das ilhas. O contingente imigrante, em particular de ib
ricos, foi incorporado cm servios estratgicos ao funcionamento nos armazns
de caf e docas, onde exerceram atividades de doqueiros, estivadores, ensacadores
e carroceiros.
Ao chegarem a Santos, as sacas de caf eram descarregadas dos vages dos
trens ecolocadas nos depsitos alinhados aolongo davia frrea; carroas c carretes
estacionavam junto s portas numeradas desses depsitos e retiravam a mercado
ria, iniciava-se ento o transporte pelas ruas estreitas da cidade at os armazns
particulares e o porto. No porto, o embarque era feito carregando-se os sacos de
caf nas costas, como num formigueiro humano os trabalhadores subiam e desciam
com sacos nos ombros as pranchas do cais para o convs dos navios, ou de um
navio para outro. O trabalho girava em torno da safra, quando o ritmo da ativida
de era intensificado, envolvendo trabalhadores mais regulares e outros eventuais.

llliiS ^

Transporte e carregamento no Porto de Santos


238 maria izilda santos de matos

O intenso processo de urbanizao era marcado pelas constantes demoli


es e construes, erigiam-se obras que definiam novos espaos, em geral esta
belecidos a partir do porto e de suas necessidades. Eram muitos os trabalhadores
nas obras do porto e na urbe como pedreiros, carpinteiros, marceneiros e mar-
moristas, artfices tambm se destacavam, fabricando artefatos de cimento e ges-
so, tacos de madeira para pisos, serralheiros executavam trabalhos em ferro para
portes, janelas, grades e gradis.
A atrao exercida pela cidade prosseguia, concentrando uma significativa
quantidade de trabalhadores imigrantes e nacionais, abrindo possibilidades de se
associar aos companheiros e/ou conterrneos em pequenos negcios. A crescente
urbanizao e o aumento considervel de sua populao geraram novas oportuni
dades para as atividades comerciais e de abastecimento. No setor de gneros alimen
tcios se destacaram, em estabelecimentos de pequeno e mdio porte, na maioria
unidades familiares que procurando trabalhar com custos operacionais reduzi
dos, aproveitavam o quarto da frente de suas prprias casas para estabelecer pe
quenos armazns de secos e molhados, aougues, adegas, quitanda de frutas e le
gumes, vendas, botequins e penses. A participao de mulheres nesses negcios
era determinante, em vrios estabelecimentos eram conhecidos pelos nomes de
suas proprietrias. Entrecruzando o pblico e o privado, a mulher administrava o
lar e o negcio, trabalhando duramente no balco de madrugada a madrugada.-
Enquanto uns dirigiam-se para o comrcio, outros atuavam por conta prpria
ou foram impelidos para o trabalho em vrios ramos. Contudo o nmero de traba
lhadores excedia as necessidades do mercado, aviltando os salrios, criando formas
mltiplas dc atividades icinporrias c domiciliares, .suhemprego e cmprcgO flutuailtC
e ampliando uma populao que garantia a sua sobrevivncia na base das ocupa
es casuais, custa de improvisaes dc expedientes variados, evcutuai.s c iiicci tus.
Constituindo-se cm trajetrias que englobaram privilegiamentos, participa
o c excluso num processo dc tenses c conflitos na procura do "sonho ameri
cano". Na busca dc concretizar sonhos vrias pessoas atravessaram occanos e en
frentavam todo um processo de desterritorializao e reterritorializao. Entre os
imigrantes que chegavam a Santos, tambm entraram os ditos "indesejveis", com
seus sonhos utpicos, anarquistas e socialistas que transformaram a cidade na cha
mada "Barcelona Brasileira", com forte articulao anarco-sindicalista, presente
nas numerosas greves dos finais do sculo XIX e anos iniciais do XX.
Mltiplas outras experincias que vitalizavam o cotidiano do porto prcci-
.sam ser recuperadas: a dos homens de negcios, comissrios, importadores c ex
portadores; visitantes, marinheiros, turistas, veranistas e banhistas; destacando os
trabalhadores no balco, os caixeiros e caixeirinhos (portugueses), os estivadores
e carroceiros, as costureiras de sacaria^ e as catadoras de caf e toda uma vasta
gama de outras atividades que envolviam de homens e mulheres, brancos e ne
gros, nacionais e imigrantes.

- (;f. Maria I/ilda S. dc Matos. Cotidiano e cidtiira. Bauru: Edusc, 2002.


' kicm. Trnnii c poder: Lhii estudo sohrc as indstrias de sacaria para o caf( 6 . ' cd. Uin
dc Janeiro: Settc l.clias, 2004.
santos: para alm do porto do caf 239

Saneando o porto: a cidade enquanto questo

No Brasil, nos finais do sculo XIX e incios dos XX, a cidade foi apresenta
da enquanto uma questo. O olhar mdico conjugado a ao/observao/trans
formao do engenheiro e poltica de interveno de um Estado planejador/
reformador, constrem um campo de interfernciasobre a cidade, que foi deli
neada enquanto questo a chamada questo urbana encontrando-se atra
vessada pelospressupostos da disciplina e da cidadania, passandoa ser reconheci
da como palco de tenses."*
EmSantos, velhos problemas foram ampliados como crescimento demogr
fico e a expanso desordenada do porto. O trnsitode centenasde carroascarre
gadas de caf, precria vigilncia sobreos navios vindos de portos infectados, so
mam-se ao agravamento dascondies urbanas, ruasestreitas, porto desarranjado,
a populao amontoada em moradiasprecrias, praticamente sem gua, esgoto e
iluminao, enfimsem condies sanitrias, vulnervel para contaminaoe pos
sibilitando a expanso dasepidemias. Acidade era constantemente assolada por
surtos deepidemias como clera, febre amarela, varola, impaludismo e peste bu
bnica, atingindo particularmente a populao pobre e imigrante.
Apontava-se como umdosprincipais fatores das epidemias a grande quanti
dade decortios nas reas mais centrais dacidade, erguidos nos ptios e nos quin
tais de qualquer jeito, tamanho e em estado deplorvel; esses "cubculos" eram
baixos, abafados e insalubres, feitos de tbuas, cobertoscom zinco, de um s c
modo, construdos s pressas, sem gua, nem esgoto. Havia tambm o problema
das cocheiras-cortios, que em sua maioria eram habitaes coletivas, onde viviam
cochcirosc suas famlias em palanques construdos sobre as baas. As numerosas
cocheiras facilitavam a difuso de ratos e pulgas, transmissores da peste bubnica.'*
O porto aparecia como lugar de contgio, passando a ser considerado um
organismo doente, vulnervel s febres, epidemias, contaminaes, disseminan
do o medo. Tornava-se urgente controlar as epidemias, as doenas e sua difuso
(regras de entrada, inspeo econtrole, quarentenas), buscavam-se "aes de cura",
para sanear o porto e a cidade.
Asituao preocupava atodos, autoridades, mdicos, comerciantes eexporta
dores de caf, aCompanhia Docas de Santos, que percebiam anecessidade deuma
remodelao urbana, com ateno especial aos assuntos dasade pblico-sanitria.
Essas medidas encontravam-se vinculadas aosnovos pressupostos de higienizao
e somavam-se ao desejo da Belle poque de tornar o porto moderno e planejado,
procurando eficincia e rapidez e pautada no binmiocivilizao-progresso.
* Ibdem.
' Os obiturios de Santos entre 1876-1897 indicam que dos mortosde febre amarela 78,7% eram
estrangeiros, dos quais 83,5% portugueses (carroceiros, ensacadores, carregadores, estivadores).
*As guas paradas nos seus ptios difundiam o mosquito transmissor da febre amarela, de 1890
a 1900 faleceram 22.588 pessoas atingidas por vrias molstias, desde 6.688 de febre amarela. Betralda
Lopes. O porto de Santos e a febre amarela. Mestrado em Histria. So Paulo: FFLCH/Universidade de
So Paulo. 1974.
maria izilda santos de matos

O saneamento tornava-se premente, contudo o municpio no possua re


cursos financeiros suficientes. As presses cresceram em particular do setor comer-
cial-exportador de caf, a Associao Comercial de Santos pronunciava-se: "O sa
neamento de Santos torna-se uma necessidade inadivel para garantir no s a
vida da populao, mas altos interesses de ordem econmica".' Por fim, o governo
do Estado assumiu a empreitada, era imprescindvel manter o fluxo do caf e para
tanto o bom funcionamento do porto. Vrias propostas foram encaminhadas, en
frentando a burocracia e outros obstculos, por fim, foi aceito o projeto de Satur
nino de Brito. Duas comissesforam institudas: uma sanitria, na sua maior parte
coordenada pelo mdico Guilherme lvaro e outra de saneamento sob a lideran
a de Saturnino.'*

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Plano urbanstico de Saturnino feito a partir dos canais de drenagem.

Bolcliin cia Ass<>ciai,'iH' Comercial de Santos, 1889. Representao junto ao Coverno de So


Paulo.
O projeto de Saturnino (oi executado sob sua direo e dos etiyenheiros Mi^iiel 1'resyravc.
Joac]uini T. de tlliveira Penteado e loo 1'erraz. As pontes ornamentadas sobre os canais (oram
projetadas por (Earlo.s l.ang e e.xecutadas por D. Savorelli. Saturnino Brito. Siiiu-iiiiiciilo de .Suntiis;
projetos i' rcicilrios. Obras completas, v. 7. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 19-l.V
santos: para alm do porto do caf 241

O sonho da cidade higienizada transparecia no projeto, que se propunha "re-


parador absoluto das dificuldades". Ele apresentava toda uma complexidade: um
sistema de separao do esgoto das guas pluviais; um moderno sistema de esgoto
projetava o esgotamento dos despejos pelo sistema de estaes elevatrias acresci
do da construo de uma grande ponte pnsil para levar as tubulaes de esgoto e
lan-los ao mar; o enxugamento da plancie e correo dos rios por meio da dre
nagem superficial composta de oito canais (mais um), de mar a mar, que apro
veitando a fora das mars possibilitavaa limpeza evitando as guas estagnadas'^ e
as inundaes.
Construdos de cimento armado, geralmente a cu aberto; gramados, inter
namente, na parte superior, com pontes e passadios, os canais drenam o solo e
recebem dos emissrios as guas pluviais, em tubos de cimento armado. Eles
ocupam o espao central das avenidas, facilitando a circulao e o arejamento
urbano. rvores nas caladas laterais formam uma paisagem urbana amena com
espaos de circulao para pedestres e veculos. A longa extenso dos canais e a
largueza as avenidas favorecem a penetrao das brisas martimas no interior da
ilha, refrescando-a."'
Os trabalhos da Comisso foram iniciados em 1905 e j em 1907 grandes
festividades marcaram a inaugurao do primeiro e maior dos canais, o Canal 1.
Eram vrios os motivos para se comemorar: as epidemias estavam extintas, os ca
nais garantiriam que elas no voltariam, o moderno sistema de esgoto tornou a
cidade mais saudvel e as inundaes evitadas, os negcios do caf estavam
revitalizados depois do Convnio de Taubat (1906).

HIP / / Jrf r f.

Canal 1. Santos

" Saliiniino lic Itrilo incorporou a concepo de Osvaldo Cruz e Ciiiilherme lvaro, inovadora
na poca, dc que a lebre aniai'ela era transmitida pelo mosquito.
Cif. Wilma 'I'. r. de Andrade. Santos, canais traam a histria urbana. In: Maria Izilda Maios
& Maria Anglica Sollcr (org.). (jiliidc cin Dcluilc. So Paulo: Olho irAgiia, 1999.
242 mana izilda santos de matos

A implantao da ao reformadora encaminhada atravs do projeto do en


genheiro Saturnino de Brito, marcou Santos, a ponto de se poder dividir sua his
tria em duas etapas: antes e aps o saneamento. Em 1908, j eram 45.000 metros
de canais, que por sua utilidade e beleza passaram a marcar as memrias afetivas
da cidade.
A cidade higienizada diversificava suas funes, as chcaras da praia cedem
lugar a manses da elite. J na primeira dcada do sculo foi construdo o luxuo
so Hotel Parque Balnerio, a praia passou a ser sinnimo de lazer, atraindo mora
dores e visitantes.

.K"

Hotel Parque Balnerio

O espao da praia rapidamente se distinguia de anos anteriores, um areai


procurado pelos que buscavam bons ares ou defendiam os milagres curativos do
banho de mar. Aos poucos ocorreu uma gradativa ampliao da ida praia como
forma de lazer e prtica esportiva, a freqncia s praias se generaliza, sendo elas
representadas enquanto espao de beleza, sensualidade, sociabilidade e lazer.
Em 1947, veio a se somar antiga estrada rodoviria (Caminho do Mar), a
Via Anchieta, que aproximou Santos de So Paulo e do interior. Apesar de se man
ter a importncia das atividades porturias, a partir da a funo de veraneio se
acentuou na cidade, gerando transformaes urbansticas e arquitetnicas com
um processo de verticalizao da orla da praia. O processo acelerado de transfor
mao relaciona-vSe prpria ocupao urbana primeiramente vinculada a uma
elite e posteriormente a uma expanso de imveis mais acessveis, atraindo para a
rea outros setores sociais, particularmente veranistas paulistas. A partir de ento,
a cidade volta s costas para o porto.
Praia do Gonzaga

ncoras de emoes: o Porto sensoriedades, sensibilidades e memrias


A vida uma experincia histrica que se tem com e no corpo, incluindo
etapas, marcos temporais, de identidades, de gnero e marcas tnicas, tambm ne
cessidades e funes fsicas, que no todo constitui o habitus corporal." Para alm
dessas dimenses, no e com o corpo sedesenvolvem as percepes e sensitividades
(viso, olfato, tato, audio, gustao), os canais culturaisde comunicao (movi
mentos, expresses, gestos, linguagens) seus usos e prticas, e tambm as sensibi
lidades (dor, esperana,amor, saudades, etc.), que tornam o corpo uma ancora de
emoes.
Dessa forma, cabe observar o porto-cidade atravs de experincias indivi
duais, coletivas e corpreas, ocorridas na rua, praa, praia, porto, bairro e morros,
contendo lembranas visuais, sonoras, olfativas, gustativas, tteis e envoltas em
sensibilidades.
As experincias visuais incluiriam a prpria a luminosidade do sol do vero,
acrescida das vises oficiais: os monumentos, as grandes telas pintadas por Bene
dito Calixto, as fotos urbanas, os cartes postais que no deixam de ser uma viso
da memria oficial, tambm fiizem parte da memria afetiva de quem visitou a

" Zandra Pedra/a Cioniez. Corpo, pessoa o ordem social. Projeto Histria, So Paulo, n." 25,
I-duc, 2002, p. 87.
244 maria izilda santos de matos

cidade, uma recordao, uma lembrana que se enviava para algum com quem
se mantinha um lao afetivo. Cartes que num certo momento privilegiavamporto,
para depois se voltarem para a praia.
O espao no s caracterizado e identificado pelas imagens, mas tambm
pelos sons, e da rua vinham os sons desdeas primeiras horas da manh at que a
ltima janela se fechasse noite: cantilenas e serenatas, musicalidades presentes de
forma nostlgicanas lembranas.No porto eram miiltiplosos sons, diferentesvozes,
idiomas, sotaques, sonoridades do trabalho, preges, apitos dos navios e dos trens,
campainhas dos bondes, gritos de fora e de apoio nos momentos de trabalho.
Cabe atentar para outras experincias sensoriais, os odores: os cheiros das
mars, do caf torrado, da chuva e dos corpos suados. Para as experincias
gustativas, os sabores do mar, dos peixes e outros frutos do mar, as receitas portu
guesas e espanholas reelaboradas nos restaurantes e nos botequins; rememorar as
habilidades femininas de fazer cocada, bananada, tambm boa pinga do morro
do So Bento. No menosprezando as experincias tteis, a fora necessria para
carregar sacos, a rusticidade do trabalho com as sacanas, o vento do mar no rosto,
a areia nos ps, o calor incessante, entre outras.
Delineando cenrios em constante movimento, Santos foi se constituindo
como um lugar para se viver, trabalhar, rezar, observar, divertir e sonhar. Os so
nhos com os lucros nos negcios cafeeiros, nos jogos na Bolsa do Caf, que se
somaram aos sonhos de turista e banhistas sonhos de vero , de um roman
ce datado e curto, do prazer das frias, do lazer e do banho de mar.
Misturando laos comunitrios e tnicos, criando-se espaos de sociabili-
dade e reciprocidade, estabelecendo solidariedades, conflitos e tenses urbanas,
que se constituem entre o aumento de mobilidade e os desejos de enraizamento,
oposies entre planificao, programao, ordenamento num confronto infin
dvel com a criao, identidade, movimentos que redimensionam o pulsar urba
no num fluxo contnuo de tenses.
O porto-cidade se torna um territrio frtil para a anlise das sensibilidades,
afinal o locus das partidas, das despedidas fazendo brotar a saudades, a dor da
espera e das perdas, do finalizar algo com um adeus ou buscar iniciar uma nova
vida, uma vida melhor. s imagens do porto emergem lembranas dos beijos e
sinais de despedida, tambm dos abraos de boas-vindas, mltiplas referncias de
sensibilidades tornando o porto uma ncora de emoes.
O porto-cidade tornou-se palco de memrias contrastadas, mltiplas, con
vergentes ou no, mas plenas de emoes. Caberia enfatizar que para alm da re
ferncia do porto-cidade enquanto uma unidade, a trama urbana constitui-se por
meio de mltiplas aes de liberdade, reivindicaes de autonomia, construes
coletivas, num processo em que os diferentes sujeitos histricos produzem ml
tiplas cidades.
Dessa forma, o porto-cidade vai se impondo como construo problemtica
de algo a ser decifrado, suas mltiplas sensoriedades, sensibilidades e memrias.
Questionando-se sobre qual porto-cidade? o dos antepassados? o dos heris e/ou
dos viles? dos donos do poder, de ontem e de hoje? Da Companhia Docas? Ou
santos: para alm do porto do caf 245

dependendo da fonte de informao, dos eruditos e dos historiadores, dos urba-


nistas/planejadores/tecnocratas? do homem da rua e daquele que com suas mos
o constri? Dos trabalhadores do porto? dos habitantes, dos anarquistas? Dos ba
nhistas e veranistas?

Memrias Urbanas:
I Centenrio da Independncia1922

Discutir a cidade enquanto lugar de memria permite observar seus usos e


manipulaes, ashierarquias das lembranas, ordenaes do passado, esquecimen
tos e ocultamentos, tambm as buscas de assegurar um lugar na Histria, as re
presentaesdo presente e as projeesdo futuro.
Carregado de contedos emocionaise foras simblicas,momentos estrat
gicos forjaram, exploraram, atualizaram, apropriaram e reordenaram asmemrias
da cidade, produzindo enunciados e construindo sentidos, pleno de referncias
de poder,usando do passado comoum campode disputas.
Se comemorar significa trazer memria um acontecimento e nela con
servar o passado, rememorar encontra-se carregado desentidos polticos, cabe evi
denciar como momento celebrativo da cidade de Santos: o I Centenrio da Inde
pendncia, 1922, momento que coincide com aTerceira Valorizao do Caf, com
a compra do caf excedente efetuada pelo governo.
Os significados e ressignificados dados ao passado constituram-se em ins
trumentos de construo ehierarquizao de poder, controlado por guardies da
memria" a Comisso do I Centenrio. Essa Comisso buscou edificar uma
imagem homognea dopassado dito glorioso edepujana, alicerada nabravura
e coragem, psem evidncia osAndradas seupioneirismo, tenacidade e coragem,
particularmente, Jos Bonifcio deAndrada e Silva denominado "Patriarca da
Independncia", que passou a ser visto como o heri santista que deu sentido
nacionalidade e viabilizou a grandeza da ptria.
As comemoraes do I Centenrio incluram uma ampla pauta de ativida
des: salva de morteiros no monte Serrat, missa campalcom orquestra, procisso
cvica ao tmulo deJos Bonifcio, juramento Bandeira pelo presidente da C
mara, prefeito e vereadores. Acrescidos dos desfiles de militares e escolares, inau
guraesde monumentos, concertosmusicais, banquete e baile.
As celebraes contaram com a presena do presidente do estado Washing
ton Lus, que no comeo da noite, com a Comitiva Oficial do Estado, iniciou o
retorno capital cruzando a serra pelo Caminho do Mar (percurso feito por D.
Pedro 1na ocasio da Independncia), repavimentado para a ocasio, inauguran
do no trajeto vrios ranchos-monumentos, marcos histricos e monumentos,
edificados em comemorao ao Centenrio da Independncia.'^

Cf. Antonio Celso Ferreira. Modernos mamclucos. In: Ana Maria de Almeida Camargo
(org.). So Paulo: uma viagem iio tempo, v. 1. So Paulo: CIEE, 2005, pp. 171-84.
maria izilda santos de matos

Snnios ~ Praa da ndepericienci?.

istfi
lPiP;=p

Monumento a Independncia, Praa da Independncia, Santos

Entre os marcos inaugurados em Santos merece destaque do Monumento


Independncia, do escultor Antnio Sartori. Ele foi executado em granito, com
figuras e ornamentos de bronze, em realce os elementos formadores do povo bra
sileiro e os acontecimentos da Independncia. Acima na parte frontal uma ima
gem de uma Marieiine alada (significando a Liberdade), traz nas mos uma co
roa de louros. No topo, os irmos Andradas: Jos Bonifcio, com a farda de
primeiro-ministro; Martim Francisco, de uniforme de coronel de engenheiros e
Antnio Carlos, com a toga de magistrado.
santos: para alm do porto do caf

A Bolsa do Caf

?h--:

-Vi;l

Palcio da Bolsa do Caf - Santos

As celebraes so comemoraes portadoras de sentido, permitindo perce


ber as construes do passado que materializam a memria em espaos eleitos
"lugares da memria", enraizada no concreto, quadros e objetos, buscando a perpe
tuao voluntria ou involuntria de lugares ncoras da memria coletiva.''
Dessa forma, o Palcio da Bolsa Oficial do Caf pode ser observado como
um monumento ao I Centenrio da Independncia. A sua construo, iniciada

" Cf. lacqiics Lc Goff. Histrio c memria. 2.' ed. Campinas: Unicamp, UJ96, p. 431.
248 maria izilda santos de matos

em 1920, coube Companhia Construtora de Santos (Roberto Simonsen) e foi


intensificada nos dois anos de obras para possibilitar a inaugurao em 1922.
Inspirada no estilo Renascentista Italiano, a Bolsa possui exterior suntuoso,
sbrio, com cerca de seis mil metros de rea construda e mais de duzentas portas
e janelas, tem trs fachadas: a torre na Praa Azevedo Jnior, Rua Frei Gaspar e o
prtico de entrada principal na Rua XV de novembro, que foi construdo inteira
mente em granito, ornado de oito colunas dricas e de um entablamento, encimado
por um fronto com duas esttuas deitadas, representando Mercrio (Deus do
Comrcio) e Ceres (Deusa da Agricultura).
Na Praa Azevedo Jnior, de frente para o porto, destaca-se a torre de qua
renta metros de altura. Em cima da torre um belvedere ornado de quatro esttuas
simbolizando a Indstria, o Comrcio, a Lavoura e a Navegao, em suas quatro
faces se destacam grandes mostradores, indicando a hora oficial. Sobre a cpula,
coberta de folhas de cobre, ergue-se um mastro para o hasteamento da bandeira.
J na parte central da Rua Frei Gaspar, aparecem arcadas decoradas de guirlandas
de folhas e gros de caf, a cultura, a colheita e a venda do produto.
A obra foi marcada pela diversidade de origem do material de construo,
com cimento e ferros da Inglaterra, telhas e pisos da Frana, mrmores da Itlia,
Espanha e Grcia e ladrilhos da Alemanha. O interior do prdio tambm luxuo
so e requintado: cristais belgas, bronzes franceses e mrmores italianos.
A entrada um liall de conversao que contava com um sistema de infor
maes comerciais, a Caixa de Liquidao, Cmara Sindical de Fundos Pblicos
e sede de firmas comerciais. No segundo andar a sala de classificao do caf e
sedes de firmas e exportadoras, j no terceiro andar escritrios de intermedirios,
contando com cerca de trinta compartimentos."

1 Ml
r
I

Salo de Preges da Bolsa do Caf

" J. Muni/ Ir. Mi.sKniii.s e lendas de Santos: um palcio para rei caf. Novo MCmio. Disponvel
em <w\%'\v.novomilcnio.inf.br/santos/h0n84.htm>.
santos: para alm do porto do caf 249

Merece maior destaque para o grande salo da Bolsa de Caf, onde ocorriam
os preges, com a mesa do presidente e seus secretrios ao centro, um crculo de
cadeiras dos corretores e a galeria. No cho mosaico de mrmores e o vitral do
teto "A Viso de Anhangera", desenhado por Benedito Calixto.'^

Viso de Anhangera vitral do teto da Bolsa do Caf

Observa-se de um lado a representao da Lavoura, com a Deusa da Abun


dncia e Fertilidade. Ao centro, "A Penetrao e Conquista do Serto" destaca o
encontro do bandeirante com a me-d'gua e algumas ninfas, tambm as repre
sentaes dos perigos enfrentados no desbravamento do serto (cobras e jacars).
Do outro lado indstria e o comrcio, com a presena da Deusa da Cincia, a
roda dentada como smbolo da indstria.

Painel de Benedito Calixto na Bolsa do Caf

Ao fundo da mesa do prego, um imenso painel, de Calixto, dividido em


trs partes: a maior ao centro, representa a Fundao da Vila de Santos (1545) e

Benedito Calixto de Jesus, pintor e historiador, nasceu em Itanham em 1853 e morreu cm


1927, em So Paulo. Morou a maior parte de sua vida em So Vicente e ficou conhecido como ma-
rinhista e pintor de temas histricos. Comeou a carreira como autodidata, mas conseguiu estudar na
Academia Julan, cm Paris.
250 maria izUda santos de matos

nos dois painis laterais, o artista recriou a paisagem de Santos, em 1822 e em


1922.^'
A proposta do autor foi destacar as transformaes urbanas da cidade, com
nfase para esses trs momentos eleitos, buscou uma abordagem que pudesse
reposicionar Santos e So Paulo na histria nacional.'" Baseando-se em cautelosa
pesquisa emprica, Calixto estabeleceu sentidos histricos cidade de Santos, dia
logando por meio dos seus pincis e de escritos como seus contemporneos dos
Institutos Histricos.'

A Fundao da Vila de Santos - 1545

- *2 m'

A fundao da Vila de Santos

Na tela central, Santos se apresenta como um vilarejo, mas j com vrias


construes: a Igreja da Misericrdia, a Casa do Conselho e a Capela de Santa Ca
tarina. A pintura destaca na Fundao da Vila como uma celebrao hierarquizada,
com os personagens dispostos em seqncia: vereadores, "homens bons" e fidal
gos, seguidos dos capites, juizes e os religiosos, damas e outras matriarcas, apare
cem lanceiros e alabardeiros, mais atrs os povoadores e tambm os ndios. fren-

" Dois anos aps a morte de Calixto, seu amigo e colega do IHGSP, Jlio Conceio, realizou
um levantamento de suas telas, das quais 28 quadros identificados como "desdobramentos da tela
Santos de 1822". Jlio Conceio. Benedito Calixto traos biographiccs. Revista dos Tributtaes,
1929.
'' CalLxto foi membro do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo e tambm membro
fundador do Instituto Histrico e Geogrfico de Santos, centrou seus estudos sobre cidades litorneas
e sua colonizao.
Lilia K. Moritz Schwarcz. Os guardies da tiossa histria ofial. So Paulo: Idesp, 1989, p. 45
(Srie Histria das Cincias Sociais, n." 9).
santos: para alm do porto do caf 251

te e em p sobre a pequena plataforma que sustenta o pelourinho, smbolo do


poder piblico e da justia BrsCubas.
A obra buscou destacar a comunho das raase justificar certa genealgica.
Acompanhando a proposta dos Institutos Histricos, a preocupao de Calixto
foi realar o poder poltico, religioso e administrativo, bem como a composio
social da vila e das famlias. Nesse mesmo sentido, na moldura ele colocou o nome
de quatro donatrios; Martim Afonso (So Vicente); Condessa de Vimieiro (Ita-
nham); Marqus de Cascais (Santo Amaro) e o Marqus de Aracati (So Paulo).

Santos 1822

4^ -

Cale Alves Faria. A fundao de Santos na tica de Benedito Calixto. Revista C/SP, So Paulo,
n." 41, mar./mai. de 1999, pp. 123-33.
252 maria izilda santos de matos

Os dois painis laterais tambm focalizam Santos, em contraste com a tela


central nota-se a ausncia de figuras humanas.
esquerda, Calixto recriou Santos em 1822, momento da Independncia.
A cidade aparece como um pequeno ncleo a oeste da ilha. O pintor escolheu
um ngulo superior, de onde destacou a topografia, vista ampla do canal do porto
at a Barra, os percursos das guas e dos caminhos, tendo como ponto de fuga o
horizonte, possibilitando notar a paisagem e a vegetao.

Santos 1922

/a

:.

N
santos: para alm do porto do caf 253

Para a representao 1922, Calixto escolheu um ponto de vista diferente


o morro do Pacheco, tendo a natureza como moldura. A representao, exceto
pelo porto, pouco lembra uma cidadelitornea, com destaque para o traado ur
bano planejado, quarteires simtricos, com nfase para os edifcios: da Catedral,
da Bolsa do Caf, Casares Gmeos (Prefeitura e Cmara), porto e seusarmazns;
e o ngulo privilegia o porto exportador e no importador.
Nos quatro cantos da moldura se destacam os brases alusivos ao Brasil Co
lnia, Brasil Imprio e Brasil Repblica, elementos da fauna brasileira e as refe
rncias artes e indstria, ordem e progresso, emblemas e frases de inspirao
positivista.
No conjunto, Calixto buscou reforar uma dimenso temporal, destacando
uma cidademutante no tempo.A Fundao da Cidade seriao ponto de partida de
um trajetria evolutiva de Santos e da nao, um processo histrico linear, regu
lar, constante e progressista, que se iniciou com o perodo das bandeiras, com a
busca pelos tesouros da terra, quelevou asdescobertas e ocupao de territrio e
que teve como ponto de sada Santos. Seguidode 1822 a Independncia
ocasio de destaque de Santos como cenrio nacional, com a participao dos
Andradas os heris santistas da luta pela liberdade e momento marcado pela
passagem de D. Pedro pela cidade. Uma terceira etapa (1922), a do crescimento
urbano impulsionado pelo comrcio do caf e do porto, com o surgimento de
cidade moderna, que no rompe com o seu passado, mas setorna credora dele.

Santos porto-cidade se constituiu em territrio de mltiplas experin


cias pessoais e coletivas, que se impem como um desafio a ser investigado, atra
vs da observao dos vestgios, depoimentos, sonoridades, imagens (fotografias,
cartes, iconografia) e elementos de cultura material, tambm atravs dos rastros
desensibilidades, sensoriedades e lembranas. Cabendo ao pesquisador decodificar
os significados desses emaranhados de monumentos, tempos, espaos e memrias,
buscando recuperar as vrias camadas e as relaes entre elas, decifrando seusv
rios enigmas.
DE COMO OS MULATOS ENTRARAM NA HISTRIA
DOS MUSICAIS CARIOCAS

Antonio Herculano Lopes


Fundao Casa de Rui Barbosa

Em 1919, numa curiosa parceria com Lus Edmundo, Lus Peixoto fez su
bir cena no Teatro So Jos, templo dos musicais ligeiros nacionais, uma burleta
explicitamente centrada nas relaes entre negros (ou mulatos, como os perso
nagens so chamados) e portugueses, num ambiente de classes populares cario
cas. Era uma estratgia de representao dos costumes da cidade que Lus Peixoto
j vinha aplicando desde pelo menos 1912, quando teve encenado seu grande su
cesso, Forrobod, em parceria com Carlos Bittencourt.' Em Repblica do Itapiru,
os dois grupos se confrontam, num interessanteduelo de anti-heris, que replica
os esteretipos de sempre: mulatos malandros e preguiosos e portugueses bron
cos, emotivos e trabalhadores. Mas Lus Peixoto e Lus Edmundo lograram trans
formar, por meio do humor, defeitos em qualidades, ridculo em celebrao.
A burleta comea com um grupo de mulatos e mulatas reunidos na galon-
nire de Marcolino, em clima ldico, com danas e brincadeiras picantes. A mu
lata Guiomar lembra aos demais que se aproxima o carnaval e que necessrio
reorganizar o seu grmio carnavalesco. Marcolino tem uma idia, que chama de
"maximalista": tratariam de convencer o comerciante portugus Sopas, dono de
uma carvoaria, que a situao poltica est se deteriorando, que o Distrito Federal
est se esfacelando e em todos os bairros esto sendo proclamadas repblicas.
Sopas de fato se impressiona com a histria, adere ao movimento, mais por
temor das conseqncias de no aderir do que por convices revolucionrias, e o
grupo o aclama presidente da Repblica do Itapiru, bairro pobre, com grande popu-

' Ver, a respeito de Forrobod, meu artigo Um forrobod da raa e da cultura, ou como a
identidade nacional reinterpretada pelo teatro de revista. Anais do 29. Encontro Anual da Anpocs.
CD-ROM, 2005. 254
de como os mulatos entraram na histria dos musicais cariocas 255

lao negra, na Zona Norte da cidade. Marcolino, como autoproclamado minis


tro da Fazenda, trata logode seapropriardos recursos em caixana carvoaria.
Os planos comeam a se complicar, quando Unha Encravada, mulato que
faz parte do grupo, mas estem exerccio de suasfunes de polcia, aparecepara
intimarSopas a comparecer diantedo comissrio e explicar-se por misturar casca
lho pintadode pixeno carvo quevende. O portugus, convencido de sua autori
dade, destrata o comissrio por telefone e em seguida convida seu ministrio e
sditos parajantaremsuacasa emcelebrao nova ordem. Emplena confi^temi-
zao, aparecem as foras policiais. Inquiridos sobre "que fantochada de repbli
ca essa que vocs fazem nesta casa'* (Sopas porta uma faixa presidencial com os
dizeres "R. do Itapiru"), osmulatos revelam que setrata do"Grew/s Carnavalesco
Recreio do Itapiru".^ Apea termina com Sopas enfurecido por tersido logrado,
enquanto osmulatos caem no maxixe para esquecer a"queda do ministrio'.
Ao rir da maneira como as comunidades negrae portuguesanas classes po
pulares falavam, se comportavam ese relacionavam, os autores estavam rindo do
"jeito carioca de ser", ao mesmo tempo que celebrando sua especificidade, en
quanto um hbrido dos dois maiores grupos tnicos e culturais que definiam a
prpria alma da populao do Rio de Janeiro. clara a preferncia dos autores
pelos negros, em quem percebiam aessncia deum esprito carioca. Mas o portu
gus o complemento necessrio. Afaixa presidencial que os mulatos compram
para Sopas (junto com uma sobrecasaca e uma cartola) tem as corespreto, mar
rom ebranco, que oportugus logo decifra: "Percebo, rapazes: ocreoulo, on^ore-
no eo claro"; ao que retruca um dos mulatos: "Simbro da iguardade nacion
Oambiente em que atrama se desenvolve odas classes baixas suburbanas
cariocas, que vivem na linha instvel entre a ordem e a desordem, sobrevivendo
de pequenos expedientes eincorporando no cdigo tico uma desonestidade tida
como relativamente inofensiva. Do policial Unha Encravada, que nos informa j
ter sido "lavador de necrotrio", diz Marcolino: "Ns j comemo junto trs ms
de Correo eos nossos lao inquebrantvel".^ Opolicial de hoje opresidirio
de ontem. Quando Unha percebe o golpe que os companheiros esto dando no
portugus, se integra imediatamente ao jogo.
Durante a ceia na casa de Sopas, os mulatos tratam de furtar o que podem
do anfitrio talheres, louas eat um despertador, que acaba tocando no bolso
de Florncio, o mulato intelectual, no momento em que est fazendo um discur
so solene. Alis o prprio portugus, j ovimos, tambm usa de expedientes de
sonestos para ganhar maisdinheiro na vendade seu carvo.
Mas sobretudo a busca incessante doprazer, encarnada pelos mulatos, que
representa oesprito carioca, sintetizado na frase "O que eu quero goz ,repetida
ao longo da pea. Afrase incorpora o deboche, a sensualidade ea malandragem
^Lus Peixoto e Lus Edmundo (no original identificados apenas como Luiz 8t Luiz). Repblica
do Itapiru. Manuscrito datilografado. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1919, pp. 39 e 40. Todas as
demais referncias so a este texto
' Ibidem, p. 28
* Ibidem, p. 3.
256 antonio herculano lopes

que os autores vinculam aos mulatos. Mas no era nenhuma novidade no pano
rama dos musicais ligeiros. Essa idia pode mesmo ser tida como a idia-fora
fundamental do gnero, desde seus princpios. O carnaval era a sua expresso
maior e uma intelligentsia carnavalesca se apresentava como uma alternativa aos
que tinham a pretenso da seriedade. Aos crticos que clamavam contra a degra
dao moral, muitas vezes a associando influncia dos negros ou ao processo de
mestiagem, alguns daqueles intelectuais carnavalescos respondiam apontando
para a capital cultural do mundo ocidental. Paris, para defender que uma atitude
moderna, cosmopolita, estava na raiz dessa intensa busca do prazer.
Para Lus Peixoto e seus parceiros, no entanto, a inspirao vinha de uma
fonte muito mais prxima. A celebrao pag vinda da Europa recebera nas lti
mas dcadas importantes contribuies affo-cariocas na forma de a cidade feste
jar. Lus Edmundo e Joo do Rio, entre outros, vinham registrando no carnaval
do Rio uma exploso de primitivismo desconhecida na Europa. Lus Peixoto atri
bua sem hesitar o esprito "o-que-eu-quero--goz" carioca especificamente in
fluncia africana, em oposio ao portugus laborioso. Nisso, alis, se aproximava
dos crticos africanofbicos, mas com sinais trocados, isto , com uma interpreta
o positiva da influncia.
No mbito da linguagem,o duelo entre mulatos e portugueses na Repblica
do Itapiru notvel. As falas so todas escritas num patois pesado caracterizando
cada grupo com erros e desvios exagerados e criando humor mediante as cons
trues lingsticas.Ambos os grupos so igualmentesujeitos ao ridculo em seus
falares distintos, mas saborosos. O personagem Florncio assim se apresenta:

FLORNCIO
O que eu quero goz
Goz bem minha vida,
Que eu no sou anim
Das oreia cumprida

Cavo tudo o que posso;


Tenho as minha "querida",
E sou tido por "troo"
Entre as moa perdida.^

o mulato desinteressado na tica do trabalho, que faz o seu caminho por


artimanhas e s se interessa pelo sucesso com as mulheres. J o portugus Sopas,
no entusiasmo de sua recm-adquirida autoridade, canta as seguintescopias:

SOPAS
O Sopas! craboeiro e monarquista.
Assim primeira bista

Lus Peixoto & Lus Edmundo, op. cit., p. 2.


de como os mulatos entraram na histria dos musicais cariocas 257

Nada sou na bida pblica!


Pois esto bocemecs muito enganados,
Como os tempos estomudados!
Presidente da Repblica!

Vaidoso e ingnuo, o portugus com seu dinheiro fundamental para que


o carnaval acontea.
Atroacomoserros gramaticais noimpede, ao contrrio, refora a simpa
tia pelos personagens. A verdadeira crtica dos autores no mbito lingstico se
dirige a um alvo na verdade implcito. Embora ausente na pea, a elite bem
educada e branca, com sua maneira correta de falar, faz-se presente por oposio.
Ela a referncia escondida, o padro invisvel que subjaz quele quadro social,
mas que representa por contraste a falta de graa, o desejo de seriedade vazio e
moralista. Lus Peixoto e Lus Edmundo, eles prprios membros desse grupo au
sente, esto decerta forma polemizando com seus pares e com suabusca por uma
linguagem aparentemente refinada, mas vazia, e por temas aparentemente mais
nobres, mas sem vida.
Os mulatos, em especial, representam uma verdadeira pardia da sociedade
dominante, no seu gosto por um estilo rebuscado. Florncio, o "profess", com
seu nome apropriado, encarna bem esse intelectual das aparncias. Quando So
pas aceita o pedido de seu caixeiro Cornadas para se casar com sua filha Anicas,
Florncio faz o discurso de saudao.

FLORNCIO
Seu Sopa. Pela madrugada de hoje os passarinho batendo as asas
multicores entraro no ninho do seu corao de pai. Encontraro, l dentro,
um anjo que tinha as falce de carmim, os lbios de cor, io de esmeralda,
asasas de escama cordebrisa e um arfange na modireita. Uma fr na mo
esquerda, pelfiimada. Esse anjo era o am paterno. Os passarinho cercaro
ele, treparo em cima dele, cuspiro na cabea dele, pinicaro ele evestiro ele
do manto difanoda alegria.'

Ofloreado da linguagem tem alvo certo, numa sociedade que preza os dis
cursos laudatrios e vazios.
O modo pardico no se limita linguagem. Os mulatos sempre replicam
as imagens, os desejos e os costumes da classe dominante. Absorvem, por exem
plo, seu rancesismo e Unha se vangloria de fazer "com peripcia" um pratinho
francs, a"omilette").' Florncio explica aos demais que "galonnire" chat em
francs.' Em outro momento, lembra-se de"quando euera dolescente, cabelo lou
ro, os inho azu, azu", ao que Guiomar responde: "No tempo que tu comeava a
* Ibidem, p. 21.
' Ibidem, p. 37.
" Ibidem, p. 6.
' Ibidem, p. 4.
258 antonio herculano lopes

s armofadinha".' Ter um piano na casa importante, mesmo que ele no funcio


ne, e Marcolino, que no consegue pagar a conta do gs e deve oito meses de le
nha a Sopas, arremata um em leilo por sete mil e quinhentos ris, para se trans
formar em "move de luxo", onde guarda roupas de baixo e comida.
A influncia que se fazia crescente depois da Primeira Grande Guerra da
cultura norte-americana, especialmente na msica e na dana, aparece na pea
na figura de um marinheiro norte-americano, que no passa de um pretexto para
a introduo de um fox-trot e um ragtime. O marinheiro est ligeiramente bba
do e se limita a responder "yes" s perguntas mais absurdas que os mulatos lhe
fazem. Perguntado se sabe falar portugus, responde: "Entra, simptico!" , frase
que vem da zona de meretrcio e tornou-se um dito carnavalesco popular, servin
do como um convite folia.Em seguida, todo o grupo canta e dana em honra
ao "ilustre sbito de Wirso", e a cano um charabi, num pretenso ingls.

Ai, gude bai.


Gude naite,
Guive mi
Are iu,
Faive o cloque ti
Forguete, minote, laite, puer xu
Rosbife e wiscke dubliu.'^

Os mulatos se apropriam da lngua inglesae do fox-trot (que viiafoquistrote)


e os transformam da mesma forma como se apropriam dos comportamentos e
forma de falar pedantes das altas classes e as transformam. A mesma estratgia
usada para imitar e fazer troa das elites nacionais aplicada a uma cultura estran
geira. O uso da pardia por Lus Peixoto antecipa a estratgia que, dez anos de
pois, Oswald de Andrade proporia para a arte moderna brasileira: canibalizar as
influncias culturais externas e transform-las em produtos da cultura brasileira.
Para Peixoto, no entanto, a canibalizao era tanto externa quanto interna. Como
membro da intelligentsia, ele estava se apropriando de elementos da cultura afro-
carioca e por meio deles relendo seu prprio background cultural, incluindo a as
influncias francesa e norte-americana.
O tipo do"mulato", que vigiu durante algum tempo no teatro ligeiro, desig
nava menos o mestio e mais uma forma possvel de dar visibilidade ao homem
negro. Mulato era o negro a quem os espaos simblicos da criao artstica dos
brancos tinham sido franqueados. Ao contrrio da mulata, que era um mito do
homem branco, construdo a partir de relaes sexuais desiguais vindas do es-
cravismo e continuadas peladominao socioeconmica, o capoeira e o capadcio,
originados nos ambientes afro-cariocas e em seguida resumidos na figura do ma-
Lus Peixoto e Lus Edmundo, op. cit., p. 2.
" Agradeo ao Prof. Marcos Bretas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a indicao da
origem da frase.
Lus Peixoto e Lus Edmundo, op. cit., p. 7.
de como os mulatos entraram na histria dos musicais cariocas 259

landro, oscilaram na representao artstica entre a imagem de elemento margi


nal e perigoso e de bufo inofensivo.
A medida que tais imagensganhavamcontornos de representao da cidade
e do pas, tornavam-se agressivas para uma sociedade fortemente preconceituosa,
sadahavia pouco do regime escravista. Era preciso uma noo de identidade que
fosse neutra quanto a raa e classe. A construo do "carioca" no palco teve de
lidarcom esses elementos complicados: a absoro de valores populares com for
te marca afro-brasileira, a celebrao de um corpo feminino algo negro (a
ambivalncia tnica da mulata) e a dificuldade de colocar o homem negro no
esquema. Os autores teatrais deram solues distintas para essa equao. Lus Pei
xoto, aos olhos de hoje, foi entre os intelectuais brancos talvez quem mais ousou.
Fao a ressalva tnica, porque h exemplos na populao negra de produes ain
da mais ousadas, como as de Benjamim de Oliveira, no circo-teatro, e nos anos
1920 a Companhia Negrade Revistas, comandadapor De Chocolat, com vida breve,
mas interessantssima.
Nas suas produes dos anos 1910, Lus Peixoto insistiu em seguir o cami
nho aberto por Forrobod, representando uma populao mestia, pobre, feliz,
ldica, sensual, musical, leve e espertamente desonesta, elaborando com inteli
gncia e humor o perfil carioca que iria prevalecer no imaginrio da cidade. Mas
ao insistir em seus mulatos, o seu exemplo no se tornou a tendncia prevale-
cente na produo dramatrgica paraos musicais ligeiros do perodo. Poucas pe
as, em verdade, tinhamo foco central na populao afro-carioca. Quasetodo mu
sical tinha um personagem mulato, ou mais comumente uma mulata,como parte
de um espectro social mais amplo, que inclua vrios tipos, retirados em especial
de ambientes de classe mdia ou mdia baixa, em que os valores da malandra
gem perdiam a sua filiao tnica original, processo que analisei alhures.'^ As pe
as eram menos referentes a um grupo social ou tnico especfico e mais a um
genrico carioca, que era celebrado porseu esprito folio. Tal diluio da contri
buio africana cultura carioca e brasileira parece ter sido a soluo possvel
para uma cidade j ento partida e acabou prevalecendo contra os quixotescos
esforos de um Lus Peixoto.

Antonio Herculano Lopes. Do pesadelo negro ao sonho da perda da cor; relaes intertni-
cas no leatro de revista. ArtCultura, v. 7, n." II, Uberlndia/MG: Universidade Federal de Uberlndia
2006, pp. 37-50.
MOZART NA PERA DO CARNAVAL:
CANTO E VISO SEM IGUAL

Mrcia Ramos de Oliveira


Universidade do Estado de Santa Catarina

Ouvindo tudo que vejo, vou vendo tudo que ouo. . .

Foi assim que a Escola de Samba Unidos da Tijuca abriu seu desfile no car
naval carioca de 2006.
Mediante este tema, o enredo desenvolvido pelo carnavalesco Paulo Barros
vinha ainda acompanhado da sugestiva figura de Mozart, que emergia do clssico
para assumir explicitamente a contempornea figura de um D/, regendo/coreo-
grafando a atuao das passistas.'
j j,- O inusitado desta proposta,"ouvindo tudo
K .. ' -V A" ** que vejo, vou vendo tudo que ouo", quase um
^ ' enunciado, implicava umaaparente oposio dos
H ^.Vf' sentidos, na qual se invertia a audio pela vl-
so, ou a viso pela audio.
^ ^^ i Mozart emergia tambm cm meio aofeste-
rMitrrArf*
jado aniversrio de 250 anos, numa caracterstica
situao de inverso provocada pelo carnaval. O
clebre compositor transmutava-se ao fazer uso
da mijsica sampkada, da justaposio de elemen-
tos e tendncias, da criao e recriao surgida do
icmulode manifestaes do passado e o presen-
- te, do erudito e popular, da indefinio cm sobre-
^i posio de diferentes mensagens, sons erudos.
'Esta informao c parte das imagens e fotografias apresentadas aqui foram retiradas do site
oficial da G.R.E.S. Unidos da Tijuca, especialmente destacando o banncr, obtidos por meio da sinopse
do enredo do carnaval. Em setembro de 2006, ainda podia ser acessada no endereo <http: //
v\'-ww.Lindosdalijiica.com.br/sinop,se20Q6.htm>.
mozart na pera do carnaval: canto e viso sem igual 261

A descrio da proposta deste carnavalesco,inserida no site da Escola, trazia


mais informaes sobre como o desfile foi estruturado. Paulo Barros declarou que:

'A Unidos da Tijuca prepara para o Carnaval de 2006 um desfile ca


paz de provocar, atravs de imagens, a emoo despertada pela msica". E
completava, "evocando da memria algumas cenas musicais que marcaram
poca, a Tijuca compe um delicioso pot-pourri a ser regido pela batuta de
um dos mais irreverentes mestres da msica Wolfgang Amadeus Mozart.^

Adeclarada inverso assim proposta na idia de"ver" a msica, comonfa


se a perceber a emoo que desperta, definiu a tnica da proposta carnavalesca,
enfatizada em outras afirmaes de mesma autoria. O sentido da viso acentua
va-se ainda, quando associado lembrana, medida que a recordao era apre
sentada como "[.. .] evocando da memria algumas cenas musicais".^
Somando-se a essaidia, o carnavalesco ainda justificavaa escolha de Mozart,
pautada emsua irreverncia, a partirda qual eradefinido como "[...] o primeiro
compositor a romper com o tradicionalismo da pera e criarcomdias e dramas
populares"."*
Unindo-se os trs enfoques (1) despertar a emoo pela msica e ima
gem; (2) evocar a memria por meio de cenas/imagens; e (3) introduzir o ele
mento "popular", mediante a revolucionria atuao deMozart na construo dos
personagens pela msica , delineou-se o desfile carnavalesco apresentado como
"uma pera de rua em sete atos".
E, reafirma Paulo Barros:

A msica deixa de ser apenas um dos elementos que compem a es


trutura da pera para subir ao palco e serhomenageada, pela primeira vez,
como tema. Ao invs de ser ouvida, ser vista e, a cada desfile, provocar
nossamemria a revisit-la, num movimento estimuladopela fantasia..

^Fernando Barros. Sinopse para o carnaval de 2006. "Ouvindo tudo que veja, vou vendo tudo
que ouo". Disponvel em <http://vww.unidosdatijuca.com.br/sinopse2006.htm>. Acesso em 3/3/2006.
* Ibidem.
*Paulo Barros apresentou esta afirmao na sinopse j mencionada. Reafirmou a mesma idia
em diferentes momentos, entre os quais destaco a entrevista apresentada em 28 de novembro de 2005,
no Portal Viva Miisica! O Roteiro dos Clssicos do Brasil. Disponvel em <http://www.vivamusica.com.
br/-noticia.php_id=52>. Acesso em 19/9/2006.
Em resposta ao entrevistador declarava acerca de sua escolha sobre Mozart: "(...) Cheguei a
pensar em Villa-Lobos que tambm adoro e brasileiro. Mas Mozart foi contestador. Foi o prmeiro
a quebrar as regras da msica clssica trazendo temas populares para dentro da pera. Ele debca de
fazer a pera em italiano para fazer em alemo. Foi a representao dessa quebra de paradigmas.
Alm de ser uma figura totalmente extrovertida, engraada, genial, bem avante de seu prprio tempo.
No h ningum melhor do que Mozart para mostrar essa pera de rua. Quando, nos anos 70,
Joozinho Trinta chega ao Carnaval, descreve o desfile das escolas de samba como uma grande pera
de rua. Se o carnaval considerado uma grande pera porque tem msica, dana, cenografia,
figurino, o que a gente faz? Vamos at a ustria, convidamos Mozart para vir ao Brasil passar o
carnaval e o levamos a lugares onde se toca msica". Ibidem.
Fernando Barros. Sinopse para o carnaval de 2006, cit.
262 mrcia ramos de oliveira

Sob tal perspectiva, pode-se inferir algumas consideraes. A figura de


Mozart declaradamente o "condutor" do desfile, da memria, e/ou da percepo
sobre o espetculo, teria papel semelhante a outras eminentes personalidades j
homenageadas pelo mesmo carnavalesco. Destacam-se aqui suas criaes anterio
res, ao homenagear e utilizar-se de imagens emblemticas/ alegorias como Dom
Quixote que atravessava "lugares imaginrios" , ou Einstein na contra
mo da "cincia". Mozart, ento, emblematicamente, atravessa e unifica o desfile,
como antev e projeta o carnavalesco,

Ele (Mozart) passa quatro dias no Rio de Janeiro para ouvir msica.
Vaiser um grande DJ. Elevai escolheras msicas. Nas camisetas para divul
gao do enredo, Mozart est usando um headphone e discotecando, usando
um toca-discos. No desfile, elevem no incio da escola e vai regere apresentar
esse pot-pourri ao pblico. Na verdade, o desfile da Unidos da Tijuca em
2006 ser uma pera em sete atos, apresentando o que Mozart conheceu
nesse passeio imaginrio pelo Brasil. Vamos ter temas e msicas internacio
nais tambm. O stimo ato, o ltimo, a pera de rua. Trazemos algumas
grandes peras e o carro final o palco da pera brasileira o carnaval, mais
em especial a Marqus de Sapuca. Nsvamos levar Mozart para um roda
de samba onde elevai ouvir o pagode. Depois,vamos a um baile de carnaval
onde conhece as marchinhas. No cinema vai conhecer as trilhas sonoras, vai
a um programa de auditrio, um festival de msica e por fim Marqus de
Sapuca. Depois, ele pega todo esse pot-pourri de msica que escutou aqui
no Brasil, e montaisso emsete atos e cria a pera da Unidos da Tijuca.^
Diante dessa declarao possvel perceber como foi estruturado o espet
culo que seria apresentado na Marques do Sapuca, constatando no desenrolar da
apresentao as vriasfaces assumidas pelo compositor na avenida.
Lestava o compositor clssico, no teclado do cravo e piano.

* As figuras de Einstein e Dom Quixote foram protagonizadas em dois desfiles sucessivos, rea
lizados em 2004 e 2005, que garantiram Escola de Samba Unidos da Tijuca o segundo lugar no Grupo
Especial, com dois enredos "O sonho da criao e a criao do sonho: a arte da cincia no tempo
do impossvel" e "Entrou por um lado, saiu pelo outro... quem quiser que invente outro", respec
tivamente.
' Entrevista apresentada em 28 de novembro de 2005, no Portal Viva Msica! O Roteiro dos
Clssicos do Brasil, que pde ser acessado no site http://www.vivamusica.com.br/noticia.php_id=52
(ltimo acesso desta pesquisa realizado em 19/9/2006).
mozart na pera do carnaval: canto e viso sem igual

i^ t |

Lj Mik ^ 6
Fotografia obtida no site dc divulgao da cidade do Rio de Janeiro/RI, intitulado Rio Carnaval
2006, endereo: <IUtp://wwv21.rio.rj.gov.br/fototeca-pcrj/pub/> (ltimo acesso em 9/2006)

Ou ainda, na mesma Comisso de Frente, abrindo o desfile, novamente a


referncia a inusitada personalidade do compositor, alternando-se entre o vestu
rio caracterstico, na formalidade das casacas, calas ajustadas e meias, somados
peruca branca, invertida do clssico nos cabelos arrepiados e inquietos, como Tina
Turner ao som dos anos 1980.

Fotografia obtida no site da UOL envolvendo material de divulgao sobre o carnaval do


Rio de lanciro /RJ. endereo: <http://noticias.uoI.com.br/carnaval/26/album/
rj_12_unidosdatijuca_albuin.jhtm> (acesso em 7/2006).
mrcia ramos de oliveira

Completando a (in)definiG estilstica, de novo a imagem do compositor


acompanhava a Bateria da Escola de Samba, formalmente apresentada como se Mo-
zart estivesse presente em cada msico, pelo efeito multiplicador das roupas iguais.

WM

t Fotografia obtida no site de


divulgao da cidade do Rio
de Janeiro /RI, intitulado Rio
Carnaval 2006, endereo:
<http://ww\v21. rio.rj.gov.br/
fototeca-pcrj/pub/> (Acesso
em 9/9/2006)"

Referendava-se a citao ao inclu-lo em cena, como destaque de Carro Ale


grico, quase uma idia, um conceito sobre a msica, representado fantasmago-
ricamente em tons de branco e prata, em meio ao colorido do desfile, porm in
serido na diversidade das formaes musicais.

Carro alegrico pera cie


rua. Fotografia obtida a par
tir do site da UOL envolven
do material de divulgao so-
k :^V brc o carnaval do Rio de
K Janeiro/RJ, endereo: http:/
/noticias.uol.com.br/carna-
Sp val/2006/album/rj_12_
tll unidosdatijuca_albuni.j htm
'ni (acesso em 7/2006)

" Outras imagens, tambm cm movimento, envolvendo a exibio da Bateria da bscola podem .ser
obtidas no site do You Tubc. Vdeo com durao de 32 segundos, trazendo o inicio do desfile tendo
frente o casal Porta-Bandeira e Mestre-Salas; no endereo: bttp://mv\v,youtube.com (acesso em y/2()O.
mozart na pera do carnaval: canto e viso sem igual

Reafirmando sua presena, a figura de Mozart surgia tambm destacada so


bre um grande Lp, sem o coro ou instrumentos, porm ladeada do grnmophotie.
Desdobrava-se da uma outra idia de renovao da composio musical atravs
do disco, da repetio, da obra de arte reinventada pela citaoe/ou cpia.

Carro alegrico Resumo da


pera. Fotografia obtida no
s/cda UOL envolvendo ma
terial de divulgao sobro o
carnaval do Rio de Janeiro/
RJ,endereo: http://noticias.
uol.com.br/carnaval/206/
album/rJ_12_unidosdatijuca
_album.jhtm (acesso em 7/
2006).

Os sete atos referidos pelo carnavalesco, podem tambm facilmente ser per
cebidos nas imagens do desfile numa clara associao ao compositor austraco
representado como um quase sinnimo do gnero pera.
O elemento popular vem destacado, quando o pblico assiste ao desfile e
torna-se parte dele. Ele o personagem principal, a razo de toda a exuberncia
ali descrita. apresentado em cada um dos sete atos em que tal pera/desfile foi
construda.

w*- a--.

Fotografia obtidano silcofi


cial da Cj.R.K.S. Unido.s da
Tijuca; Galeria, CobcrUira
Fotogrfica 2006; Fotos:
Agncia FotoBR. Endereo:
http://w\vw.unidosdatijuca.
com.br/."

" Hstc foi um dt)s mais destacados momentos do dcslllc, pois envolvia uma perfoniuiiur dos
integrantes do carro que, vestidos dc branco, em clara aluso paz entre as torcidas, apresentavam as
diversas bandeiras representativas das grandes escolas de samba Beija-l-ior, Mangueira, Portela,
Unidos da Tijuca, Mocidade Independente, Unidos da Viradouro, etc. , alternando-as.
A imagem pode ser vista tambm em movimento, em dois vidcos, que tm ()2':36" e Q:3fi" de
liurao; e podem se acessados no endereo dos sites You Tube (http;//w\v\v.youtube.com) o Vaga-
l.ume (bup://vagalume.uol.com.bi7niozart/videos)
mrcia ramos de oliveira

O primeiro ato, apresentaria o "pblico para o pblico" atravs das arqui


bancadas. No segundo ato, o mesmo pblico annimo estaria presente, atuando
como assistncia, em meio aos programas de auditrio.

Fotografia obtida no site de


2006-, endereo: http://w

Ganharia espao j
no palco, atravs dos pa

Fotografia obtida no s/>e oficial da G.R.E.S. Unidos da Tijuca; Galeria, Cobertura Fotogrfica
2006; Fotos: Agncia FotoBR. Endereo: <http://www.unidosdatijiica.com.br/>.
Fotografia obtida a partir do siteda UOL envolvendo material de divulgao sobre o
carnaval do Rio de )aneiro /RJ, endereo: http://noticias.uol.com.br/carnaval/2006
/aIbum/rj_12_unidosdatijuca_album.jhtni (acesso em 7/2006).

O pblico surge mais uma vez no sexto ato, como audincia, "no escurinho
do cinema", atravs de um destacado exemplo de fenmeno de bilheteria no fil
me E. T.y misto de sucesso empresarial e sinnimo de apelo a iluso, ao sonho.
Fotografia obtida no site oficial da G.R.E.S. Unidos da Tijuca; Galeria,
Cobertura Fotogrfica 2006; Fotos: Agencia FotoBR. Endereo:
<http:www.unidosdatijuca.com.br/>

Em mais de uma verso, vem multiplicando-se nos diferentes cones do ci


nema, como veculo e "produo de massa".
mozart na pera do carnaval: canto e viso sem igual

>1*^^
"%m.
^''' m'
' ! r
1-1
Fotografia obtida a partir do s/tc
da UOL envolvendo material de
' I ' ^ \ divulgao sobre o carnaval do
L " "1 Rio de Janeiro /RJ, endereo:
''^tp-//ooticias.uol.com.br/car-
naval/2006/album/rj_12_
unidosdatijuca_album.jhtni
^ . .. (acesso em 07/2006).
E, finalmente, encerrando o espetculo no stimo ato, entronizando a "pas
sarela do samba" como a pera que ganha a avenida, ou vice-versa.

mi

Fotografia obtida no site oficial da


G.R.F.S. Unidos da Tijuca; Galeria,
Cobertura Fotogrfica 2006; Fotos:
Agncia i-otoBR. Fndcrco: <littp;//
www. unidosdatijuca. com. br/>
270 mrcia ramos de oliveira

No entanto, antesquea peracomece, ou termine, evoco aindaalgumas refe


rncias sobre o cenrio e os personagens que a integram. Destacando seus elemen
tos principais, apresento: a) o Carnavalesco/Compositor, b) a Escola de Samba
cenrio/contexto, e c) Tema/Enredo/Mote: "Mozart" e/ou seu sinnimo, "a Msica".
Paulo Barros foi carnavalesco na Unidos da Tijuca, entre 2004 e 2006. Ao
longo destes trs anos "catapultou" a atuao da Escola, que chegou ao segundo
lugar no Grupo Especial por dois anosseguidos, 2004 e 2005. Sua estria na Uni
dos da Tijuca ficou registrada na memria, e no ttulo, a partir da criao do carro
alegrico "DNA", que,comuma coreografia especfica, evidenciou de maneira ori
ginal e definitiva o tema da "cincia". O enredo era, ento, O sonho da criao e a
criao do sonho: a arte da cincia no tempo do impossvel Em 2006, a Escola che
gou apenas ao sexto lugar na concorrida disputa, porm Paulo Barros manteveo
prestgio adquirido a partir dos xitosanteriores. Deixou a Escola Unidosda Tijuca
pouco tempo depois do ltimo carnaval (maro de 2006), passando a atuar na
chamada "Grupo de AcessoA", na tradicional (Escola ) Estcio de S.'
A Escola de Samba Unidos da Tijuca surgiu em 1931, no Bairro da Tijuca.
Segundo o site oficial, a terceira escolamais antiga do Rio de Janeiro.Teve como
origem em sua formao a colnia portuguesa, e ao longo dos desfiles diversas
formas de manifestaes foram reconhecidas como parte desta representao,
constando entre seus componentes um expressivo nmero de portugueses e /ou
descendentes (metade deles segundo a mesma fonte!). Em seu comeo, a escola
teria iniciado da associao de operrios de fbricas, que se localizavam nas ime
diaes do bairro, contrastando com a imagem de uma rea de moradia "antiga e
aristocrata", onde teriam residido originalmente nobres, bares e afortunados.
Sobre Mozart, multiplicam-se os relatos, e torna-se bem mais difcil descre
ver! Um sem-nmero de biografiassucederam sua morte. Destacam especialmente
sua vivacidade, e precocidade na msica. Tambm, o peso da figura paterna em
sua fiigaz existncia.'' Em 35 anos de vida escreveu mais de seiscentas composi
es. Em especfico, no que serelaciona ao enredo aqui descrito pode-se apontar
a "popularizao" da pera atravs de sua criao. Tal caracterstica podeser per-
Sobre a atuao de Paulo Barros frente da Unidos da Tijuca, e tambm sobre o resultado
do carnaval carioca de 2006, tornou-se muito significativo a consulta ao material de divulgao de
imprensa no momento em que ocorria o desfile e posteriormente, a partir do resultado e premiao.
Mediante acesso aos sites de jornais e a outros rgos de imprensa, destacando a verso on-Vmc do
jornal Folha de S.Paulo, alm de outros portais como o Terra, ficou evidente na descrio apresentada
no dia imediamente posterior ao desfile, o impacto causado pela Escola, e as referncias a uma pos
sibilidade concreta de que viesse a se tornar campe. A sexta colocao provocou entre os seus com
ponentes uma indignao geral, e no dia da entrega da premiao, apresentaram-se em grande
nmero portando um ostensivo e alegrico "nariz de palhao". A polmica no ficou por a, uma vez
que Jozinho Trinta, em declaraes de entrevista, apresentou uma srie de criticas a Paulo Barros. A
sucesso de debates que se desenvolveram posteriormente a definio das colocaes das escolas,
conhecidos por intermdio da imprensa citada, possivelmente tenham contribudo para a sada de
Paulo Barros da Unidos da Tijuca.
11 Apenas a ttulo de exemplo, e sugesto a quem possa interessar, gostaria de referir sobre este
tema as biografias citadas a seguir.
Norbert Elias. Mozart, sociologia de um gnio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995;
Peter Gay. Mozart. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999 (Coleo Breves Biografias).
mozart na pera do carnaval: canto e visosem igual 271
cebida em As Bodas de Fgaro, que teve estria em Viena, na verso apresentada
por Mozart, em 1786.'-
Sobre o libreto, combase no qual foi construda a pera,encontram-se reu
nidos aspectos como a"comdia decostumes", ou de"intrigas", a comdia "roma
nesca" com duas belas e originais histrias de amor em que o problema no
conquistar o ser amado, mas conserv-lo contra seus prprios impulsos liberti
nos, ou contra a seduo e o poder alheios ; ainda, uma "comdia psicolgica"
estudos de carter profundo e bem-delineados, percebidosnas personagens do
Conde Almaviva, da Condessa, deFgaro e Suzanne, ou ainda Cherubin e Marceli-
ne. Destaca-se especialmente o sentido que assume como uma "stira social" que
aborda grande parte das questes dodia, s vsperas daRevoluo Francesa.
No entanto, apesar de toda essaproblemticaestar presente nos dois libretos
que antecederam tal criao musical, aponto aqui o que afirma o musiclogo
Joseph Kerman, "em pera, o dramaturgo compositor"; e, sobre a atuao de
Mozart especialmente emAs Bodas deFgaro enftico quandodiz"[...] a msi
ca aqui no serve para decoraro que o teatrlogo ou o libretista determinaram; a
msica de Mozart cria um drama queeles jamais suspeitariam".'^
O Fgaro, apresentado porMozart, personagem queseria tambm imortali
zado em O Barbeiro deSevilhay no restringe-se a serapenas o "homemdo povo",
no sentido iluminista; ou o criado astucioso do gnero bufo. um ser humano
complexo, cheio de vida. Apartir de sua msica, as personagens deAs Bodas de
Fgaro ganham maior densidade humana, o que lhes garante uma outra dimen
so, exteriorizando-se em qualidades e atos.
Fgaro e Susanne, personagens no aristocrticos, emoposio ao Conde e
Condessa, tornaram-se protagonistas de sua prpria histria, edahistria contada.
No sentem, pensam ou secomportam como subalternos, revelando liberdade de
esprito. O valor dramatrgico da alternncia das vozes, construda na msica,
conduzem a uma idia deigualdade especialmente percebida nesta pera, na ver
so apresentada por Mozart. J deixaram de ser criados, tornando-se comparsas
dos amores de seus amos. Sob tal nfase,declara Antnio Monteiro Guimares:

Em sua significao maior, a msica de "Le nozze di Figaro' um hino


igualdade entre os homens, na medida em que revela, pela arte, a verdade
simples e universal, mas de contedo novo para a poca, de que todos so
iguais perante o amor.'"*

Adescrio apresentada ateste momento, no queserefere a pera, enquanto


gnero, pode e deve ser tambm relacionada ao cinema, especialmente levando
em conta a dimenso que este veculo de comunicao atinge no sculo XX.
A construo dos personagens, a adaptao do palco caixa cenogrfica
As bodas de Fgaro. Mozart. Da Ponte. Beaumarchais. O Liberto e a Pea (Coleo pera e
Literatura) (Organizao, introduo e notas: Antnio Monteiro Guimares). Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1991, Introduo, p. vii.
" Ibidem, p. xvi e xvii. Ibidem, p. xviii.
272 mrcia ramos de oliveira

(percebida no cinema!), a forma narrativa, a dramaticidade evidenciada e, especi


almente, a identificao criada com o desfecho dos personagens associados
individualizao de valores , so evidentes aproximaes e desdobramentos de
uma maneira peculiar de perceber, e se representar no mundo, que se desenvol
veu na contemporaneidade ocidental. Porm, destaco aqui especialmente a im
portncia da criao de novos significados potencializados pela imagem em mo
vimento, em consonncia com a msica.'
A forma assumida pelo cinema, como linguagem associada a uma produ
o esttica massificada (segundo a restrio imposta conforme os citados parme
tros da teoria da indstria cultural!) evidencia, sobremaneira, essa situao cria
da. Especialmente identificada pela presena de grande nmero de freqentadores,
quase culpabilizados por uma situao que determinou a caracterizao do cine
ma como "arte comercial" ou, dito de outra forma, "popular".
Apresentado o libreto, chegamos ao Teatro/Avenida. Entre a pera e o cine
ma, multiplicam-se os compositores, e sob autoria de Jorge Remdio e Jlio Alves,
entoa-se o samba-enredo da Unidos da Tjuca. Ouvindo o que vejo, vejo o que
ouo irrompe em letra, cadncia e melodia.
Minha Tijuca
Abre os olhos para a melodia
Para ouvir a genial batuta
Regendo nossa sinfonia
Seguindo caminhos do som
V a poesia brincar no salo
Joga serpentina em versos e rimas
Vivendo a magiade cada cano

a pura cadnciabrasileira
Esse requebrado que fascina
Do boteco gafieira
O samba ecoa em cada esquina
Suspense eternizado
Na tela, um beijo apaixonado
O filme que passa em minha mente
Com a msica, ganha o corao

Sobre a evidente relao entre o cinema e a literatura, como forma narrativa, especialmente
associada s artes plsticas e pintura, a exemplo do que a pera j evidenciava, apresento a citao
de Jacques Aumont, que se vale das palavras do cineasta Godard para afirmar:
"Convidado, em janeiro de 1966, justamente na inaugurao da retrospectiva Lumire organi
zada por Henri Langlois, a dizer as palavras de costume, Jean-Luc Godard (...) lana algumas frases
inspiradas: O que interessava a Miis era o ordinrio no extraordinrio, e a Lumire o extraordin
rio no ordinrio. Louis Lumire, via impressionistas, era, portanto, bem o descendente de Flaubcrt,
e tambm de Stendhal, cujo espelho ele levou ao longo dos caminhos. Um ano mais tarde, cm A
Chinesa, e por intermdio, dessa vez, da personagem interpretada por Jean-Pierrc Laud, ele reincide,
de modo ainda mais claro: Lumire era um pintor, o ltimo pintor impressionista, um
contemporneo de Proust". Jacques Aumont. O olho interminvel (cinema e pintura). So Paulo:
Cosac & Naify, 2004, p. 27.
mozart na pera do carnaval: canto e viso sem igual

Chega a emocionar
Ver a platia delirar
Vibra o maestro
Vendo o artista na consagrao
Piscam luzes coloridas
A noite, pra danar convida
Se a msica tocou a alma um dia
Sempre traz uma imagem
Que hoje fao fantasia

Ouvindo o que vejo, vendo o que ouo


Na pera do carnaval
Bravo Unidos da Tijuca!
Faz do seu canto viso sem igual

A msica, enquanto som e imagem, memria e sentimento, "tela em minha


mente" e "emoo sem igual" invade a Marques do Sapuca. Apresenta-se a "pe
ra do Carnaval", no chamado "maior espetculo da Terra", expresso associada
a difuso do fenmeno miditico , internacional e turisticamente conhecido,
que veio a tornar-se o carnaval do Rio de Janeiro. O elemento popular transfigu-
ra-se dos personagens menos aristocrticos da narrativa operstica, desdobrando-
se em muitas faces. Compreende pastorinhas, arlequins, pierrs e colombinas, pas
sistas, baianas, mestre-sala e porta-bandeira.
Abre espao para os chamados gneros musicais (populares) brasileiros, a
exemplo do samba e, da marchinha. Representados destacadamente no monu
mental beb do carro alegrico Mame eti quero, elaborado e construdo a partir
do que afirma a letra da cano de Vicente Paiva e Jararaca, que diz mame eii
quero / mame eu quero / mame eu quero mamar/ d a chiipeta, d a chupeta / d
a chupea p'ra o beb uo chorar. .
mrcia ramos de oliveira

O elemento popular emerge principalmente entre os atores/personagens/au


tores, a exemplo da emblemtica figura do Puxador de Samba.

I
A .
I Apresenta o interprete
I Wantuir Oliveira, ento-
' I ando o samba-cnredo da
I Escola no desfile de
' 2006. Fotografia obtida
no sie oficial da G.R.E.S.
yL Unidos da Tijuca; Gale-
'||u ria, Cobertura Fotogrfi-
A )tSn 2006; Fotos: Agncia
. ^A' I FotoBR. Endereo:
<hltp://vvww.unidosda
VjLH tijuca. com.br/>

Ou ainda, na regncia, na atuaao do diretor de harmonia, que mescla, em


sua imagem e expresso, a interpretao de uma herana musical.

SAlmirFrut os ,diretor-
geral de Harmonia da
Unidos da Tijuca, no
carnaval de 2006. Foto
grafia obtida no site ofi
cial da G.R.E.S. Unidos
da Tijuca; Galeria, Co
bertura Fotogrfica 2006;
Fotos: Agncia FotoBR.
Endereo: <hltp://ww\v.
unido.sda tijuca.com.br/>
mozart na pera do carnaval, canto e viso sem igual

Misturam-se as figuras do regente, do Mestre de Bateria, do maestro...

Mestre Celinho, diretor


de Bateria da Escola des
de 1999. Em atividade
no carnaval de 2006.
Fotografia obtida no site
oficial da G.R.E.S. Uni
dos da Tijuca; Galeria,
Cobertura Fotogrfica
2006; Fotos; Agncia Fo-
toBR. Endereo: <http:/
/www.unidosda tijuca.
com.br/>

Delineou-se assim a importncia do pblico, na pera, no cinema, no rdio,


na televiso.'" Identificou-se a audincia, onde o annimo contingente da recep
o, presente na arquibancada, na assistncia do teatro e do cinema, no auditrio
da rdio ou da televiso, nos ndices de audincia, na pesquisa de opinio (ou a
dita opinio pblica), assumem contornos cada vez mais expressivos e precisos de
atuao. Aparentemente distante da cena principal, o pblico tornou-se protago
nista, definindo cada vez mais as diferentes formas de expresso das imagens.
Retornando s declaraes do carnavalesco Paulo Barros, caracteriza-se o
pblico como:

O som das platias se altera [. . .] as torcidas gritam, torcem, enlou


quecem para defender a msica preferida. O aplauso ou a vaia conduz ao

.Sobrt a atuao di: Mozart com relao ao pblico/audit-ncia, considero importante apre
sentar a afirmao dc Hemy Raynor, ao demonstrar que essa preocupao era evidente de parte do
grande compositor, aproximando-se da perspectiva que abordamos com relao ao cinema e outras
expresses no sculo XX. Afirma Raynor:
"Mozart, que no teve empregador real nos ltimos dez anos de sua intensa atividade, a no ser
o pblico, teve perfeita noo da necessidade de surpreender e encantar os seus ouvintes. Nada in
sinua que ele produzisse em solitria abstrao. As suas cartas sugerem que, entre o sem-nmero de
clculos que integravam a composio de suas obras, contava-se uma cuidadosa avaliao do gosto
do destinatrio e do auditrio em vista.
"A julgar por suas cartas, a base esttica de Mozart era a eficcia, noo complexa etn que
estavam subsumidas a qualidade das idias musicais, a percia com que eram tratadas para explorar
tanto as qualidades intrnsecas como a habilidade dos executaiites, e o impacto de tudo isso sobre o
pblico. A satisfao pessoal do criador e sua mais mais alta recompensa era conseguir esse complexo,
e o fato de que uma obra no atrasse ateno do pblico era um das muitas coisas sobre o que ele es
creveu furiosamente. Ao ver de Mo7.art, um compositor escrevia para uma audincia a quem in
cumbia agradar; a idia de retirar-se numa torre de marfim nunca passou pela sua cabea, mesmo
na situao mais desesperada, quando podia considerar-se rejeitado por aqueles a quem oferecera
deleite". Menry Raynor. Histria Social dn Msica: da Idade Media a Bectiwvcii. Rio de Janeiro: Guana
bara, 1986, pp, 17-8.
276 mrcia ramos de oliveira

caminho da fama, O silncio condena ao anonimato. A disputa dos Festi


vais revela grandes intrpretes e composies, arrasta multides, divide opi
nies, seleciona aqueles que sero gravados, que sero ouvidos e eternizados.
[. . .] O espetculo invade a nossa casa, o sof vira arquibancada, a torcida se
multiplica.A audincia determina o que vai tocar no rdio, no radinho de
pilha, na telinha.Os programasde auditrio revelam grandes sucessos, levam
ao trono reis e rainhas de nossa msica que encantam, como em um movi
mento allegro cotidiano.'

A pera, reinventada pela linguagem do cinema, apresenta-se justamente


retomando a msica como tema na tela. Personagens que cantam, ou que tm
um tema musical como definio de sua presena. Sucedem-se musicais, filmes
que tematizam a msica e a dana, dolos que contagiam e provocam a criao de
novos personagens, evidenciando atitudes, moda e coreografia.
Finalizando esta comunicao, algumas consideraes finais. Procurei eviden
ciar por meio do enredo 2006 da Escola de Samba Unidos da Tijuca, algumas re
ferncias com as quais venho trabalhando ao pensar a msica, e sobretudo a cano,
como expresso da "sensibilidade" como forma de perceber e construir a histria.
O desenvolvimento do texto, incorporando em parte as imagens/fotografias
do desfile, constitui um exerccio, e talvez possa ser considerado uma prtica de
demonstrao, que visa introduzir na narrativa historiogrfica recursos possveis que
evidenciem formas de percepoe expresso voltadas a recuperar em parte o impacto
da emoo e da experincia esttica no fenmeno analisado. As imagens e fotogra
fias aqui utilizadas, justapostas s imagens que o texto escrito tambm apresenta,
deixam de ser mera ilustrao sobre o acontecido para tornar-se parte do processo
de descrio e interpretao do objeto estudado. A exemplo do que o 111 Simpsio
Nacional de Histria Cultural prope inovar, ao incluir entre os trabalhos apre
sentados nesta edio, o ciclo de vdeos produzidos voltados ao desenvolvimento
de uma linguagem flmica na narrativa historiogrfica, estetexto apresenta-se tam
bm como uma possibilidade de interao entre o discurso imagtico e escrito.'''
Nesse sentido, a temtica da "msica" escolhida como enredo pela Escola,
demonstra particularmente uma associao entre a construo de imagens pro
duzidas pelos efeitos que a msica provoca. Na tela,"o filme que passa em minha
mente, e ganha meu corao" aponta para uma inusitada forma de compreenso
da memria construda pela emoo, especialmente em decorrncia dos efeitos
inevitveis provocados pela msica a partir da mdia e dos recursos tecnolgicos,
evidenciados como registro/documento.-"

Fernando Barres, op. cit.


Referncia ao ciclo de vdeos exibidos ao longo do evento, como parte da programao, ao
meio-dia; atividade coordenada por Maria Ceclia de Miranda N. Coelho e Ftima Sebastiana Lisboa.
Em tempos de vdeos especialmente na Internet, destaco o fenmeno do site You Tube, como
exemplo do uso destes recursos quanto a constituio e reconstituio da memria, especialmente
associada ao universo mediatizado. No que concerne ao tipo de registro que veicula, percebe-se que
a internet constitui-se atualmente como acervo especfico, atingindo o que os espaos institucionais
de guarda de memria no tem conseguido.
mozart na pera do carnaval: canto e viso sem igual 277

O enredo 2006 da Escola Unidos da Tijuca enaltece a memria, associada a


"imagens mentais", estritamente vinculadas emoo que a msica provoca, pre
sente na pera, na msica do/no cinema, na cano e, no carnaval. Aponta para
uma maneira de lembrar associada ao sentimento que caracteriza o contexto
miditico do sculo XX, construdo na aproximao de tantas imagens e inter
pretaes.
O ltimo ato chega ao fim, e ainda de acordo com a percepo do Carnava
lesco/Compositor, reafirma-se a emoo como definidora de uma maneira espe
cfica de lembrar e por que no dizer? interagir na histria.

Amadeus respira. Toma flego para iniciar o ltimo ato, o "grand


finale". O audacioso regente, num movimento "andant", nos conduz a um
surpreendente encontro com a nossa capacidade de transformar imagens
em msicas e, ao ouvi-las, recri-las na memria [. . .]. Cada cena que gra
vamos toca na lembrana (...) nossas narrativas harmonizam msica, in
terpretao, dana, figurino e cenrio. Cada um capaz de compor a sua
prpria obra pera recolhendo o que de mais significativo tocou sua
alma.-'

Fernando Barres, op. cit.


A CIDADE EM TEXTOS E IMAGENS
NA OBRA DE RICO VERSSIMO

Charles Monteiro
Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

Este texto problematiza as representaes de cidade construdas em duas


obras do escritor rico Verssimo: O Resto Silncio (1943) e Noite (1954). No
mbito da Nova Histria Cultural, o historiador se defronta com novos problemas
de pesquisa, mtodos de abordagem e tipos de documentao.Ashistriasdas pr
ticas de leitura, da escrita e, sobretudo, das representaes sociais permitiram lan
ar um novo olhar sobreos textos literrios.' As fronteiras entre a histria e a lite
ratura sofreram deslocamentos ao longo do tempo.^ Nesse mbito, o conceito de
representaode Louis Marin retomado por Roger Chartiertorna-seprodutivo.^
As representaes expressamcdigos sociais que conferem sentido e signifi
cado s prticas coletivas. Discutir as formas de representao da cidade na obra
de rico Verssimo permite abordar as representaes sociais e a experincia de
cidade de seu grupo social. Ou seja, das camadas mdias urbanas brasileiras nos
anos 1930e 1940.Permite, tambm, discutir como as mudanas na paisagemurba
na e na composio da sociedade urbana localestavam sendo experienciadas por
essas camadas sociais e elaboradas pela intelectualidade.*' Mas, sobretudo, discutir
como o escritor refigurou ficcionalmente a cidade e a Histria em seus romances.

' Roger Chartier (org.). Prticas da leitura. So Paulo: Estao Liberdade, 2001; Idem. A
aventura do livro do leitor ao navegador. So Paulo: Unesp/lmprensa Oficial do Estado, 1999; Idem.
Cultura escrita. Literatura e Histria. Porto Alegre: Artmed, 2001; Idem. Os desafios da escrita. So Paulo:
Unesp, 2002.
^ Peter Burke. As fronteiras instveis entre histria e fico. In: Jos Carlos Sebe Bom Meihy et
al. Gneros de Fronteira: cruzamento entre o histrico e o literrio. So Paulo: Xam, 1997, pp. 106-15.
^ Roger Chartier. A Histria Cultural: entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Bertrand,
1990, p. 34.
' Cf. Sandra J. Pesavento & J. Leenhardt. Imaginrio da cidade: representaes do urbano (Paris,
Rio de Janeiro e Porto Alegre), v. 1. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1999; Sandra J. Pesavento (org.).
Discurso histrico e narrativa literria, v. 1. Campinas: Unicamp, 1998.
27R
a cidade em textos e imagens na obra de rico verssimo 279

Enquanto os historiadores estavam preocupados com os mitos de fundao


da cidade e celebrando rituais da memria no bicentenrio da colonizao de Porto
Alegre (1940),^ a literatura (romance e novela) abordava e transfigurava ficcional-
mente o cotidiano urbano atravessado pela experincia de ruptura com a tradio
e de luto em relao ao passado.
rico Verssimo foi um escritor visual, que deixou inmeros desenhos co
loridos com esboos de personagens que usava na composio de suas obras.^Mas,
sobretudo, pela representao de paisagens, pela construo de ambientaes e de
personagens em suas narrativasutilizando-se de um vocabulriovisualque recriava
verbalmente efeitos luminosos, cores, tonalidades e sombras, O prprio escritor
dizia-se um pintor frustrado, que contava estrias com os pincis da fico.^
Para pensar asrepresentaes decidade naobraderico Verssimo essa ques
to pode ser um como ponto de partida produtivo. Pois, a pintura, como afirma
Francastel, no mimese ou cpia da realidade, mas trabalho de recriao e de
expresso da sensibilidade do artista, a partir de cdigos e convenes reconhec
veis por certos grupos no contexto de uma determinada cultura visual e de uma
histria visual da cidade.'
Nessesentido, proponho pensar as representaes da cidade na obra de rico
Verssimo abordando os ndices de modernidade e da tradio na experincia so
cial da cidade em duas das suas obras: O Resto Silncio (1943) e Noite (1954).
A cidade contempornea atravessada por uma srie de escritas (cartazes,
nonSy tabuletas, placas, outdoors) e de imagens, que exigem ser decifradas pelos
seus habitantes tanto em suas experincias dirias quanto em suas prticas de lei
tura de romances urbanos. Como afirma Annateresa Fabris,'" as vanguardas en
contraram na cidade um espao privilegiado para a criao esttica da modernida
de, pois os artistas re-elaboraram em suas obras as novas percepes de espao e
de tempo no fluxo incessante de produo de signos de mudana. A partir do
final do sculo XIX, e, sobretudo, dos anos 1910 e 1920, nas obras dos modernis
tas, o cotidiano da cidade torna-se tema recorrente na literatura brasileira.
A cidade e a sociedade urbana porto-alegrenses tornam-se temas dos roman
ces de rico Verssimo desde Clarissa (de 1933) at Noite (de 1954). A transfigura-

' Cf. Charles Monteiro. Porto Alegre e suas escritas: histrias e tnemriasda cidade. Porto Alegre:
Edipucrs, 2006, pp. 35-135.
' Esses esboos podem ser consultados no Arquivo Literrio rico Verssimo (Alev) na Fale/
Pucrs.
' rico Verssimo gostava de fotografia, de ser fotografado e de fotografar. Tanto as fotos posa
das tiradas para a imprensa quanto as tiradas em famlia apontam para como ele construa de forma
consciente uma representao social de seu papel de escritor. Provavelmente a experincia de traba
lhar na Revista do Globo em contato com muitos pintores, artistas grficos, diagramadores e fotgrafos
ampliou a sua cultura visual e o colocou em contato com a arte moderna.
Cf. Pierre Francastel. A realidade figurativa. So Paulo: Perspectiva, 1982.
' Cf. Ulpiano B Meneses. Fontes visuais, cultura visual, histria visual: balano provisrio,
propostas cautelares. In: O ofcio do historiador. Revista Brasileira de Histria, v. 23, n." 45, jul. 2003,
pp. 11-36; Cf. tambm Ricardo Mendes. So Paulo e suas imagens. In: Cadernos de Fotografia
Brasileira, n. 2 So Patdo 450 anos. So Paulo: Instituto Moreira Salles, 2004, pp. 381-487.
Cf. Annateresa Fabris. Fragmentos urbanos: representaes cidturais. So Paulo: Nobel, 2000.
280 charles monteiro

o ficcional da cidade de Porto Alegre foi matria-prima para a construo de


suas narrativas literrias. O escritor pretendia realizar um corte transversal na so
ciedade urbana e descrever seus dramas e as misrias, retomando e atualizando o
projeto do romance social do sculo XIX influenciado pela traduo para a Edi
tora do Globo da obra Contraponto de Aldous Huxley."
rico situa-se na corrente do romance de 1930, que tem na cidade um lociis
privilegiado para a discusso das mudanas polticas, sociais,econmicas e cultu
rais na reelaborao da identidade da sociedade brasileira, Para tanto, empregou a
tcnica do contraponto de Huxley nos romances Caminhos Cruzados (1935) e O
Resto Silncio (1943).
No contexto em que rico Verssimo concebeu os seus romances, a cidade
de Porto Alegre passava por um processo de transformaes urbanas decorrentes
de mudanas na economia, na poltica e na composio da sociedade sul-rio-gran-
dense e brasileira. A expanso da economia capitalista no campo e da industriali
zao relacionada ao projeto poltico modernizador de Getulio Vargas projetou
um novo ideal de cidade no contexto mais amplo da Nao visando mobilizao
poltica das massas urbanas provenientes do campo. Porto Alegre foi administra
da nos anos 1930 e 1940 por polticos engajados nesse projeto de modernizao
conservadora.
Em 1920, a populao de Porto Alegre era de 179.000 habitantes e, em 1940,
de 275.000 habitantes.'^ Em 1942, o prefeito Loureiro da Silva criava a Seo de
Expediente Urbano e o engenheiro Ubatuba de Farias apresentava o estudo
intitulado Expediente Urbano dePortoAlegre visando planejar o rpido crescimento
populacional e espacial urbano.
Um contexto que exigia re-elaborar os laos com o passado e forjar as bases
de uma nova experincia social em um presente cambiante que busca um novo
horizonte de futuro.'^ Nos romances de rico encontram-se cenas onde autom
veis rodam velozmente em grandes avenidas, pessoas morando e trabalhando em
altos edifcios, fbricas apitando e lanando rolos de fumaa aos ares, homens e
mulheresfreqentando cafs, bares, restaurantes, cinemas, novas prticas de con
sumo construdas e difundidas atravsda publicidade em revistas ilustradas (como
a Revista do Globo e O Cruzeiro entre outras), que configuram imagens modernas
de uma nova cultura e de uma nova visualidade urbana. Mas, tambm, um enre
do onde os dilemas ticos daspersonagens e a desigualdade social seimpemcomo
ndices desses novos tempos.
Porm, se o futuro se afigurava cheio de possibilidades e desafios para as
elites e para as camadas mdias urbanas em ascenso, onde se poderia incluir o
escritor e boa parte de seus leitores, no era possvel romper totalmente com a
herana do passado. Logo, tornava-se necessrio geriressa passagem e refletir so
bre as contradies da experincia social daquele tempo presente. Nesse sentido,
" AJdous Huxley. Contraponto, trad. rico Verssimo. So Paulo: Globo, 1934.
Fundao de Economia e Estatstica. De provncia de So Pedro a estado do Rio Grande do Sid
Censos do RS, 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1981.
" Cf. Charles Monteiro, op. cit.
a cidade em textos e imagens na obra de rico verssimo 281

O romance urbano, a partir dos anos 1930 ajudou a elaborar essa modernidade
urbana vivida de maneira conflitual pelos contemporneos como conquista de
novaspossibilidades e, ao mesmo tempo, perda dos referenciais seguros do passado.
Nos romances de rico Verssimo as personagens so confrontadas com um
dilema tico. Por um lado, a necessidade de lutar para ascender socialmente, por
outro, os problemas de conscincia ante a desigualdade social, a guerra, a violn
cia e a reificao do indivduo na sociedade capitalista. Esse contexto de mudan
as e contradies levava a intelectualidade a questionar a herana cultural, bem
como os valores e as prticas sociais ligadas ao passado rural marcado por prticas
oligrquicas. Aafirmao de novosvalores sociais ligadosao dinheiro numa socie
dade de consumo ameaa corroer o carter desses personagens que se confron
tam com grandes dilemas.
A galeria de personagens criada pelo escritor permitiu-lhe trabalhar as gra-
daes e as formas como eram experienciadas essas contradies pelas diferentes
classes e grupos da sociedade local. rico trabalhou e re-trabalhou em suas obras
os temas ligados modernizao da cidade e aos dilemas da sociedade urbana em
processo acelerado de transformao.
Em um primeiro momento, a cidade e seus dilemas so indiretamente abor
dados em Clarissa (1933), no qual a personagem principal, de mesmo nome, vive
em uma penso e observa de longe o drama da famlia pobre com um filho doen
te que mora na casaao lado. O narrador acompanha Clarissaem um breve passeio
pelas ruas do centro da cidade. A trama est centrada no espaoprivado da penso
onde ela mora com a famlia e onde repercutem os acontecimentos do mundo
exterior.
Depois, em Caminhos Cruzados (1935), o escritor trabalha fundamentalmente
com a oposio entre dois espaos-sntese, o bairro Moinhos de Vento, onde mo
ram as elites tradicionais e os novos-ricos vindos do interior, e a Travessa das
Accias, que um espao criado ficcionalmente e que sintetiza a zonas suburba
nas da cidade onde morariam as camadas populares e camadas mdias baixas.'"*
Nesse romance, Noel a personagem que permite discutir os problemas coloca
dos pelolugarsocial do escritorem relao produo de sua escritanuma socie
dade atravessada pela desigualdade social e a ditadura estadonovista. A persona
gem se debate com a imensa dificuldade de textualizar os dilemas reais da vida
cotidiana em seus textos.
Em Olhaios Lrios do Campo (1938), rico trabalha a questo da memria e
como a nova tica do dinheiro se superpe aos sentimentos e aos afetos da perso
nagem principal (Eugnio abandona Olvia paracasar-se com Eunice visando as
segurar uma vida mais confortvel e obter reconhecimento social, que lhe fizes
sem esquecer da infncia cheia de humilhaes causadas pela pobreza dos pais).
A especulao imobiliria, a construo de grandes edifcios e os problemas da
sade pblica, entre outros, so temas abordados nessa obra.

Sobre a relao entre literatura, cidade e modernidade no romance de Caminhos Cruzados, cf.
Cludio Cruz. Literatura e cidade moderna. Porto Alegre 1935. Porto Alegre: Edipucrs/IEL, 1994. pp. 57-88.
282 charles monteiro

Em Saga (1940), os personagens principais vivenciam as contradies do


mundo capitalista, Vasco vailutar na GuerraCivil Espanhola, masacaba concluindo
pela insensatez da guerra para alcanar vitrias sociais e, ao voltar para o Brasil,
termina por retirar-se para o campo. Como se o campo fosse um lugar preservado
dos conflitos sociais e o homem fosse mais livre dos condicionamentos sociais e
das influncias corruptoras da cidade ao manter-se em contato com a "natureza".
Uma imagem pastoral que contrastava com os primeiros sinais de crise da econo
mia agropastoril, marcada pelo empobrecimento dos pequenos agricultores e pelo
xodo do campo para a cidade.
Em 1943, publica O Resto Silncio que, segundo Maria da Glria Bordini,'^
um romance no qualrico reflete sobre a escrita literria e os dilemas do lugar do
escritor na sociedade brasileira no contexto dos anos 1940. um romance em que
a cidade representada de maneira mais complexa e ao qual vamos nos ater mais.
Em Noite (1954), finalmente, a cidade ocuparia lugar central e apareceria
de forma dramtica no desenraizamento do protagonista da novela: o desconhe
cido. O tema da cidade moderna com suas contradies percorre toda a obra de
rico. Mesmo em sua ltima obra. Incidentes emAntares(1971),o autor problema-
tiza os lugares sociais das personagens de uma pequena cidade, onde os mortos e
o passado vm assombrar os homens do presente por causa de uma grevedos co-
veiros que se recusavam a enterr-los.'^
Em O Resto Silncio (1943), rico Verssimo dialoga atravs da obra com
seus leitores sobre a repercusso em suas vidas desse processo de modernizao so
ciale transformao da paisagem urbana. Emvrios dilogos da personagem Tnio
Santiago com sua filha e em fluxos de conscincia, manifesta-se a preocupao do
escritor com o papelpedaggico que cumprena formao de seu pblico leitor.
No contextodo Estado Novo, o livro teve grande repercusso e gerou pol
mica em razo das crticas postura poltica de intelectuais ligados Igreja Cat
lica, representada na narrativa pelo personagem Marcelo, bem como moral hi
pcrita das chamadas "classes conservadoras" representadas pelos personagens
Aristides Barreiro e Norival Petra.
O Padre Fritzen escreveu um artigo na revista O Eco do Colgio Anchieta,
onde lecionava Literatura, atacando rico e desaconselhando a leitura do livro.
rico, ento, resolveu mover um processo contra o Padre Fritzen. A intelectuali
dade local se dividiu em vozes em favor e contra rico e a liberdade de expresso
do escritor naquele contexto de censura e represso do Estado Novo. A Revista do
Globo registra a polmica e aponta que quase 30.000 exemplares do livro j ti
nham sido vendidos.'^

Maria da Glria Bordini. Criao literria em rico Verssimo. Porto Alegre: LPM/Edipucrs,
1995, pp. 119-23.
Essa que bem poderia ser uma metfora para uma "greve" dos historiadores no contexto da
ditadura, visto que a obra de rico conscientemente pretende transfigurar ficcionalmente a histria
local e regional no contexto da histria nacional.
" Cf. Luciana Boose Pinheiro. A recepo crtica de O Resto silncio de rico Verssimo. Mestrado
em Letras. Porto Alegre: Faculdade de Letras Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do
Sul, 2002.
a cidade em textos e imagens na obra de rico verssimo 283

Tanto a questo da forma de representao do espao quanto a da passagem


do tempo no romance permite uma rica e plural interpretao dos dilemas com
osquais se debatia a sociedade porto-alegrense naquele perodo. rico criou uma
oposio entre a moral pblica e a privada, pela contraposio do espao da casa,
como lugar de expresso e de liberdade do indivduo, com o espao pblico, lu
gar ameaador e onde se manifestam as contradies da sociedade urbana e in
dustrial.
As aes das personagens se passam principalmente no centro da cidade. A
narrativa comea narrando como oito pessoas viram a queda de uma mulher do
dcimo terceiro andar do Edifcio Imprio na Praa Central da cidade. Como uma
pedra jogada no lago, como nos antecipa a epigrafe do livro retirada de um poema
de Mario Quintana, a morte da jovem Joana Karewska repercute em ecos na vida
e no passado de cada um desses personagens que se encontravam na Praa Cen
tral naquele mesmo instante.
Baseada num caso real ocorrido com o escritor e refigurado fccionalmente
na obra, a morte da jovem permite interligar e sustentar uma unidade na trama
narrativa at o desfecho no teatro. O autor se serve da tcnica do contraponto para
cruzar as diferentes aes das personagens e colocar em relevo as caractersticas
sociais, polticas, ticas e psicolgicasde cada um deles como representante exem
plar de sua classe social.
O romance comea numa espcie de gora (praa pblica) no espao de
reunio e manifestao poltica da sociedade local e termina na Acrpole, onde
se localiza o Palcio do Governo, a Assemblia Legislativa e o templo das artes: o
Teatro So Pedro. A morte da jovem uma morte pblica, uma espcie de acusa
o do coletivo, cuja repercusso na vida de cada uma das personagens indica uma
estrutura complexa de emoes e sensibilidades conflitantes.
Observa-se um rol de personagens que vo criando um quadro da socieda
de local num corte de alto a baixo da hierarquia social:
As elites conservadoras^ comprometidas com o passado, esto representadas
pelo desembargador aposentado, Ximeno Lustosa; e pelo ex-chefe poltico do PRR,
o velho coronel Joaquim Barreiro; bem como por seu filho Aristides Barreiro, que
representa a adaptao daquele sistema de mandonismo ao novo contexto urba
no mediante alianas com as novas classes emergentes.
Os bons vivants, ainda ligados velha ordem, mas engajados no processo de
modernizao, so representados por Aurlio Barreiro (filho de AristidesBarreiro)
o sport men\ e por Norival Petra, quevive de investimentos em aes e golpes.
Ascamadasmdias so representadas por intelectuais: por Bernardo Resende,
Maestro hedonista e famoso nacionalmente; por Tnio Santiago, escritor humanista
tambm de renome nacional; por Roberto, jovem jornalista de tendncias socialis
tas; e por Marcelo Barreiro, jovem religioso conservador e professor de filosofia.
As classes populares so representadas por Chicharro, tipgrafo aposentado
por causada tuberculose; e por Sete (Angelrio), o vendedor de jornais.
Temos, ainda, os personagens de ligao entre as classes, como os filhos do
escritor Tnio Santiago: Gil, que se apaixona por Tilda, sobrinha de Aristides
284 charles monteiro

Barreiro, e Nora que se apaixona por Roberto jornalista pobre e idealista. A oposi
o entre Tnio Santiago, escritor consagrado, eRoberto, jornalista que nutre dio
contra a burguesia e pretende tornar-se escritor, ficionaliza possivelmente os di
lemas do jovemrico e do rico escritor conhecido.
Vrios so os tipos de comprometimento das personagens com a velhaordem,
desde os seus herdeiros diretos, como os Barreiro, at os que querem fervorosa
mente transform-la, como o jovem Roberto. Outros personagens parecem alheios
a esta tenso entre o passado em runas e o presente em transformao com a
guerra na Europa e a ditadura no Brasil, envolvidos que esto em seus prprios
dramas individuais: Marina, Tilda, Norival Petra.
Pode-se vincular cada personagem a uma determinada forma de focalizar o
espao urbano na trama:
A famlia Barreiro vive no Solar do Montanha, na Rua Duque de Caxias, no
centro da cidade, sua ambientao representa o passado da cidade:

A sala de visitas do solar era ainda toda uma reminiscncia da segunda


metade do sculo dezenove. Falavada prosperidade dos Montanhas que gra
as sua pertincia e ao negcio dos cereais por atacado, havia conseguido
subir da cidade baixa para a alta, mudando tambm de categoriasocial. O obje
to mais novo naquele compartimento tinha cinqenta anos. [. . .] havia ali
aquele silncio parado, aquele aroma antigo to peculiar aos museus [. . .].'

Mais adiante a solenidade do Solar e da rua relacionada com a herana


dos aorianos. A velha cidade aparece nas fala de Marcelo, jovem religioso con
servador que:

Gostava de caminhar sozinho noite pelas ruas desertas da parte mais


antiga da cidade. Elas ofereciam um clima propcio ao mistrio. [...] No
tinham o orgulho das ruas centrais, todas cheias de anncios luminosos,
vitrinas cintilantes e criaturas vaidosas - ruas que eram o smbolo duma
civilizao materialista e mecnica, esquecida de Deus. Jesus andava pelas
ruas pobres da cidade baixa - achava Marcelo.''
Aquela parte da cidade havia resistido modernizao; no tinha arra
nha-cus, nem postes nova lux, nem anncios de gs nenio. Conservava
um aspecto provinciano que chegava a ser enternecedor. As casas eram aca-
apadas, de fachadalisa,com janelasde guilhotina,algumasde caixilho meio
desconjuntado.^"

A narrativa ope vrios ndices arquitetnicos que representariam a tradi


o e a modernidade e expressariam significados sociais de riqueza e pobreza e

rico Verissimo. O Resto silncio. Porto Alegre: Globo, 1966, p. 83.


" Ibidem, p. 93.
Ibidem, p. 96.
a cidade em textos e imagens na obra de rico verssimo 285

moralidade. Outro personagem que representa o luto pela perda da velha cidade e
de sua memria que estaria desaparecendo tipgrafo aposentado (Chicharro),
que uma espcie de fantasma que habita a praa central da cidade:

O Chicharro esqueceu-o. Ficouolhando com uma vagahostilidade para


os altos edifcios do outro lado da rua. No gostava deles. Considerava-os
intrusos. Arrivistas. Os prdios antigos tinham mais beleza, mais dignidade,
mais histria. Elevira aquela praa crescer.E o engraado que com o passar
do tempo ela ia ficando cada vezmais nova e elecada vez mais velho. [. . .]
As luzes se ascenderam. O Chicharro lembrou-se do bom tempo dos
lampies. . . Foi nesse instante que ele viu uma coisa uma mala, mane
quim ou pessoa? caindo do alto dum dos edifcios fronteiros.-'

Tambm surgem exemplos de uma pastoral moderna urbana logo no in


cio do livro nas palavras do narrador:

Logo depois que o sol desapareceu, aquela praa ali no centro teve um
minuto de esquisita beleza. Aslmpadas estavam ainda apagadas. Os ann
ciosde gsnenio riscavam de coriscoscoloridos as capotas dos automveis
parados junto da calada. Quem olhasse para o lado do poente veria si
lhuetas casas, torrees, cpulas, postes, cabos e amarraes de ao uma
escura massa arroxeada de contra o gelo verde do horizonte.^^

Entre um e outro extremo esta o personagem Tnio Santiago que gostava


de caminhar pela Rua da Praia, de flanar pelo Mercado Pblico e na Praa Parob.
A cidade para ele enfocada como paisagem a ser ffuda, com seus aspectos ml
tiplos e polifnicos, tanto antigos quanto modernos:

Tnio deixou o carro numa travessa e saiu a caminhar pela Rua dos
Andradas. Gostava do espetculo do quotidiano. s vezes ia ao Mercado P
blico s para contemplar as exposies de frutas - em que via coloridas na
turezas mortas [. . .] Descobria naquelas cenas citadinas um encanto no s
humano como tambm romanesco. Para ele, chegavam a ter beleza pictri-
ca e sentidosimblico at os sangrentos quartos de rsque pendiam de escu
ros ganchos nos aougues. Os cafs do Mercado tambm o seduziam, com a
sua freguesia misturada e turbulenta, descerimoniosa e numerosa. Ali se
discutia, negociava, flanava, brigava, comia, bebia. . . Na Praa Parob ven
dedores ambulantes faziam discursos, mesclando literatura proftica com
pomadas milagrosas, alternando atos de prestidigitao com alocuesesp
ritas. [. . .] Grandes caminhes de carga passavam, pesados barulhentos, en
chendo o ar de fumaa de gasolina queimada. Num abrigo de bondes, um

Ibidem, p. 20.
Ibidem, p. 6.
286 charles monteiro

alto-falante berrava anncios e msicas populares. Tnio caminhava atra


vs desse mundo tumultuoso, com a impresso de que estava fazendo uma
viagem.^^

O personagem do escrito marcasua estranheza e suadistncia daquele mun


do do trabalho, do pequeno comrcio, das curas milagrosas e da vida tumultuada
do rs-do-cho da cidade. Seu olhar estetiza essas relaes, mas retira delas a ma
tria para a escrita dos seus romances.
A nova experincia proporcionada pelas reformas urbanas de Loureiro da
Silva, que abre a Farrapos e a Avenida Salgado Filho representada pelo persona
gemAurlio Barreiro, o sports metiy que permite enfocar a modernidade urbana:

Ao entrar na Avenida Farrapos, Aurlio recebera um desafio da limu-


sine cinzenta que desde a Rua Voluntrios da Ptria lhe vinha barrando o
caminho de maneira irritante. A corrida comeou e a limusine levava luz
de mais ou menos 20 metros. Aurlio decidiu que no podia perder aquela
parada, nem se tivesse que espatifar o carro recm sado da oficina de repa
ros. As mos aferradas ao volante, os olhos ora na faixa de cimento, ora no
mostrador 50..60..70..80.. Os pneumticos chiavam no cimento. O vento
zunia. . . Para o inferno a luz vermelha! Passam casas, muros, postes, pra
as, pessoas, como num cinema doido.^^

Observe-se a referncia ao cinema, ao movimento e a temporalidade em uma


escrita pictrica. Modernidade e tradio podem ser encontradas na narrativa de
rico por meio das aes e dos trajetos das personagens, mas nem s de moder
nidade nutre-se a narrativa. Ela tem o seu lado arcaico com suas casas baixas e
vetustas e ruas mal iluminadas a nos lembrarem que essa metrpole em forma
o tambm perifrica e provinciana.
Quanto percepo do tempo, ento, Chicharro olhar para trs, para o pas
sado perdido, com a nostalgia de uma cidade menor, idealmente melhor e mais
humana. Aurlio olhar para frente, com o p no fundo do acelerador em alta ve
locidade, sempre em frente. Ele s poderia terminar atropelando os indesejados
da modernidade que estivessem desavisadamente no seu caminho: no caso o jor-
naleiro Sete. A Segunda Guerra Mundial e o Estado Novo provocam reverbera
es na vida das personagens e nos seus horizontes de expectativa, que so abor
dados de maneira indireta atravs dos fluxos de conscincia das personagens. Os
grandes dilemas so os herdados do passado, os desafios so os colocados pelo de
senvolvimento do capitalismo e pela constituio de uma sociedade de consumo.
possvel realizar um mapeamento dosespaos urbanosa partir do enfoque
das personagens. H um predomnio de cenas que se passam no centro da cidade,
na Praa, na Rua dos Andradas (tambm aparece com o velho nome Rua da Praia)

" rico Verissimo. O Resto silncio. Porto Alegre: Globo, 1966, p. 333.
" Ibidem, p. 106.
a cidade em textos e imagens na obra de rico verssimo 287

a Rua Duque de Caxias (tambm aparece como Rua da Igreja), a Rua da Ladeira
(que j aparece com antiga denominao), bem como os espaos fechados como
bares, confeitarias, cinemas e restaurantes.
O centro tanto o espao de representao da modernidade quanto o lugar
de memria do passado da cidade, que serve para articular a ao entre os vrios
personagens. Os lugares esquecidos so os lugares onde mora a populao negra
como a Ilhota (no antigo Areai da Baronesa) ou a Colnia Africana. Estes territ
rios incrustados nas bordas do centro e entre os bairros que tambm so repre
sentados como vazios nos mapas oficiaisda cidade. H a presena pontual no ro
mance das malocas a beira do Guaba, os banhados de Navegantes.
importante salientar que no centro moram tanto as personagens da elite
tradicional o solar dos Barreiros na Rua Duque de Caxias, o Desembargador
Ximeno Lustosa que mora sozinho em seu apartamento do 12 andar do Edifcio
Continental quanto personagens pertencentes s camadas mdias, como o jo
vemjornalista Roberto,e at das classes populares como o ex-tipgrafo Chicharro.
J nos bairros mais distantes observa-se uma gradao social: se a famlia Santia
go mora no alto, em Petrpolis, a famlia do jornaleiro Sete beira do Guaba
num rancho situado no banhado entre So Joo e Navegantes.No tradicional bairro
do Menino Deus, mora a cafetina que apresenta a morena da Glria ao Norival
Petra. Os sujeitos esquecidos so os desviantes, os marginais que mereceriam es
paona narrativa sobrea cidade uma dcadadepois em Noite(1954).
Poder-se-ia dizer em sntese que na narrativa de rico, sobretudo em O Res
toSilncio, a cidade transformada em cenrio. A imagem da cidadecorresponde
experincia dascamadas mdias urbanas em ascenso, que seriam intermedirias
culturais nesse processo de modernizao. Engajadas e maravilhadas com as novi
dades e mltiplas possibilidades, mas percebendo que seu antigo mundo estvel e
seguro estava mudando numa velocidade que no permitia prever e nem controlar
os desdobramentos. Contra essa tempestade avassaladora que ameaava desman
char"tudo que slido no ar", os indivduosse protegem no espaoprivado e vo
buscar observar erefletir sobre essas mudanas de um lugar pri\^egiado eprotegi
do, como Antnio Santiago e sua casa no escritrio no alto da torre. Embora, como
o incio do livro se previna, de l tambm se possa cair ou ser atirado ao solo.
interessante observar que a organizao estelar do romance, que parte do
episdio da queda de Joana Karewska para contar vrias outras histrias em ou
tros lugares da cidade,encontra paralelo no processode expanso da malha urba
na seguindo as novas avenidas radiais que estavam sendo alargadas e pavimenta
das em direo periferia no momento em que est sendo escrito o romance.
A cidade est se transformando apresentando novos espaos modernos (ave
nidas, viadutos, novos bairros), sobretudo, no centro pelo processo de verticalizao
que se iniciava lentamente. Mas tambm, era provinciana, pois conservavaaspec
tos tradicionais da velha cidade nos bairros Cidade Baixa e no Menino Deus. Ob
serva-se tambm uma gradual especializao e segregao dos espaos urbanos a
partir da expanso de novas reas residenciais (como Petrpolis) e industriais
(como Navegantes).
288 charles monteiro

Asua representao da cidade em OResto Silncio no sediferencia muito


da construda nos lbuns fotogrficos editados nos anos 1930 e 1940ou das aqua
relas pintadas por Jos Lutzenberg. rico participa da reelaborao do imaginrio
e de um novo padro visual de representao da cidade.
O autor situa-se entre a pastoral da cidade moderna e o luto da velha cidade
que estava desaparecendo. Entre o provincianismo de uma moral tradicional e o
busca de um cosmopolitismo presente nos signos da modernidade no espao ur
bano e na fi-agmentao da identidade das personagens centrais envolvidos em
dilemas ticos e estticos como o escritor Antnio Santiago.
Uma dcada depois, em 1950, Porto Alegre j contava 394.151 habitantes. A
cidade passava novamente por um processo acelerado decrescimento populacional
e de seu permetro urbano com 58 bairros oficiais e mais de quarenta vilas irre
gulares, no momento da elaborao do primeiroprojetode planodiretor em 1959.
A rea central e o bairro Moinhos de Vento passavam por um processo de vertica-
lizao com a construo de edifcios de alto gabarito. O governo federal realizava
grandes obras pblicas como a Ponte Getlio Vargas, o Aeroporto Salgado Filho e
o Hospital de Clnicas. De um lado, inaugura-se a Vila lapi com residncias mo
dernas para 15.000 pessoas (com casas e edifcios que foram o embrio de um
novo bairro da cidade na zona norte) e os jornais divulgam publicidades de novos
edifcios residenciais (Esplanada), de outro, surgiam vilas populares com casas de
madeira autoconstrudas sem nenhuma infra-estrutura alm da linha do nibus
e de bicas d'gua para o uso coletivo. O perodo foi tambm marcado pela expan
so e refinamento do comrcio no centro da cidade com a inaugurao de lojas
de departamentos e magazines, bem como pelo desenvolvimento de cultura de
massa (jornais, rdios, cinemas, esportes, etc.).
Nesse contexto, rico publicou pela Editora do Globo a novela Noite (1954),
que considerada como um intervalo no processo de escrita de O Tempo e o Vento.
A obra foi malcompreendida na poca pelos leitores mais fiis do escritor e por
boa parte da crtica." A concentrao da narrativa no tempo de uma noite corres
ponde uma ampliao da rea de circulao da personagem pela cidade, suas en
tranhas, seus labirintos e seu submundo habitados por sujeitosdesviantes. A novela
aborda a experincia da alteridade por meio da narrativa das andanasdo perso
nagem principal o Desconhecido ou o homem de gris a noite pela cidade.
O homem de gris perdeu a memria e no capazde reconhecersua prpria ima
gem refletida no vidro de uma vitrine, tampouco seu lugar na sociedade e sente-
se perdido no tempo e no espao da cidade.
O desconhecido, personagem sem nome e sem memria se encontra em
meio a um nevoeiro, atordoado, sufocando: "Olhou em torno e no reconheceu
nada nem ningum. Estava perdido numa cidade que jamaisvira"." Suacondio,
porm, no era de todo estranha experinciasocialdo anonimato na metrpole:
"Ningum lhe prestou maior ateno, pois naquele local e hora uma esquina

Luciana Boose Pinheiro, op. cit.


rico Verissimo. Noite. Porto Alegre: Globo, 1954, p. 2.
a cidade em textos e imagens na obra de rico verssimo 289

da avenida principal da cidade: oito da noite ele era apenas uma das muitas
centenas de criaturas humanas que se moviam nas caladas".-^
Poder-se-iadizer que sua experinciaesta relacionada s mudanas provoca
das pelo processo de modernizao, que transformaram os espaos urbanos e as
relaes entre os sujeitos, cortando seus laos com o passado e provocando a perda
de referncias para a construo da memria e a identidade coletiva. Em meio
aos rudos, s luzes, ao trafego e multido da cidade moderna o Desconhecido
sente-se acuado como um animal. Afinal, ele perdera um dos atributos fundamen
tais da condio humana e social: lembrar. Pois, a memria condio para a cons
truo da identidade do indivduo no quadro de um grupo social (famlia, profis
so,sindicato, partido, igreja, nao).' Esse dilema fica claro nas palavrasdo narrador
onisciente em terceira pessoa:"Essas urgentes indagaes em torno da identidade,
tempo e espao estavam subterraneamente contidas naquela nsia aturdida".''
A noite da cidade reveste-se de significados ora modernos ora assustadores:
"A cidade parecia um ser vivo, monstro de corpo escaldante a arquejar e transpi
rar na noite abafada".'" Como afirma Raymond Willians, as metforas da nature
za foram amplamente utilizadas desde o sculo XIX para narrar a nova condio
social e a nova cultura urbana nas metrpoles europias caracterizadas pelo medo
da diluio do indivduo na multido.^'
A noite inverte os significados do regime diurno ligados ao trabalho e ao
discurso da modernidade presentes nos romances anteriores. Ainverso dalgica
do trabalho, das regras legais e interditos morais impostos pela sociedade luz do
dia, confronta o desconhecido com os prazeres ilcitos gozados no anonimato da
noite, com as contradies sociais (a vida dos marginalizados, dos desviantes, dos
foras-da-lei) e o que reprimido pela sociedade.
Anoite representada como caose desordem no percurso aleatrio e angus
tiante do Desconhecido procura de si mesmo. Ele vaga sem saber para onde ir
conduzido pelos seus guias no submundo: Nanico e Mestre. A cidade transfor
ma-se em um labirinto. A carteira cheia de notas e um leno com sangue o fa
zem pensar que cometeu um crime, sobretudo ao ouvir no rdio e no jornal que
a polciaestava perseguindoo assassino de uma mulher.
O Desconhecido foge para o submundo, para a zona porturia, no outro lado
da cidade oficial, onde busca anonimato e proteo entre os que vivem entre o
mundo da ordem e da desordem. Ai comea sua peregrinao, preso s duas per
sonagens que se valem de sua condio de desmemoriado para tomarem-lhe o
dinheiro e divertirem-se sua custa. A personagem principal o Desconhecido
faz uma peregrinao profana pelas ruas e becos da cidade, deffontando-se com

" Ibdem, p. 1.
" Cf. Maurice Halbwachs. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990; Fernando Catroga.
Memria, Histria e Historiografia. Lisboa: Quarteto, 2001.
' Vrissimo, 1954, op. cit., p. 2.
Ibidem, p, 3.
Cf. Raymond Willians. O campo e a cidade tia literatura e na histria. So Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
290 charles monteiro

populares e desviantes no caf-restaurante, com os amores pagos e furtivos no


beco das prostitutas, como a morte sem glria no velrio de um homem pobre,
com a explorao da pobreza no bordel sofisticado, com a doena e a morte no
Hospital de Pronto-Socorro e, novamente, com amores comprados e com drogas
no cabar do Vaga-Lume, para finalmente encontrar refgio provisrio na casas
de duas prostitutas, onde sua memria comea a voltar em flashes e revelar seu
drama ntimo e familiar.
O personagem Nanico representado como um homem de formas aber-
rantes (baixo, corcunda, rastejante, asqueroso) e governado pelos instintos. Ele
o pintor dos excludos, das criaturasda noite, que deseja a jovem prostituta e faz
ltimo retrato do morto pobre num velrio. Ele faz o retrato do coronel no bordel
fino na tentativa de chantage-lo. Ele revela o outro lado das representaes, a
bela que est escondida no feio, na dor, na morte, bem como o horror e misria
por trs da riqueza. o Nanicoque aprisiona o desconhecido ao fazer-lhe o retra
to. Ele mesmo define a sua arte:

Eu podia ganhar uma verdadeira fortuna pintando retratos am


veis e falsos de damas e cavalheiros da alta sociedade. Mas j lhe disse que
sou um artista. Detesto retratar gente feliz. S me interessam os que sofrem,
os que tm um problema, os que vivem acuados. . . Est me ouvindo?
Acuados!^^

Ou seja, pela imagem ele possui o desconhecido, pela imagem ele se sente
preso quela aberrao humana. Que tipo de metforapoderia ser essa? Dequem?
Do homem moderno entre os valores do autor preso imagem que seus leitores
construram dele e de suas obras, necessitando de libertar da expectativa criada
pelos romances anteriores? Ou mesmo do escritor sobre sua experincia como
editor da Revista do Globoy onde eventualmente tinha de compor versos e legen
das para fotos na coluna social?
J o personagem Mestre puro clculo. Ele o mediador entre as elites,
com suas demandas por prazeres ilcitos, e os populares, que se vendem para so
breviver. Ele o cafeto, o sedutor, que vive de golpes e trapaas. Nas palavras do
Nanico:

Tem a maioria desses burgueses presos pelo rabo. Conhece os po


dres de todos eles e por isso que os figures no lhe negam nada. No en
tanto um homem honesto, no se gaba do que faz.^^

Com roupas finas, linguagem mais refinada e irnica, ele cria a representa
o do homem educado de classe mdia (o Nanico o chama de poeta, logo, tam
bm um escritor), mas suas maneiras e fala fina no conseguem esconder seu

" rico Verssimo. Noite. Porto Alegre: Globo, 1954, p. 30.


" Ibidem, p. 36.
a cidade em textos e imagens na obra de rico verssimo 291

intento de lucrar com a amnsia do desconhecido e de obter vantagens de suas


ligaes privilegiadas com os dois plos antagnicos da sociedade urbana. A per
sonagem permite enxergar atravs da mscara das representaes sociais e ver as
ligaes entre os desejos dos homens da elite e a necessidade de sobrevivncia dos
que vivem no submundo.
O desconhecido peregrina pela cidade procura se si mesmo, parece reco
nhecer pessoas e ser reconhecido, mas tem medo, sente-se culpado de algo. No
no espao na memria que certos fragmentos vo ressurgindo e ajudando a re
construir a sua identidade. Ele parece no querer lembrar de algo que o assombra
desde o passado mais distante. H algo nesse passado que o condena e o impele a
fugir pela noite buscando abrigo no submundo e na companhia desses dois ho
mens (que so tambm duas outras faces do desconhecido, reprimidas, escondida
sob manto das convenes sociais).
No Hospital de Pronto-Socorro encontra o chefe do planto mdico, que
escreve poemas e afirma estar preparando um outro livro sobre suas atividades
mdicas. Segundo o mdico: "O que uma noite encerra de mistrio e misria!
[.. .] A Histria secreta da cidade devia ser escrita do ngulo do Pronto-Socor
ro".Da mesma forma que a personagem, rico est a escrever nas pginas dessa
novela o "outro" lado da histria da cidade, ocupando-se dos marginais e dos
desviantes,deixados de fora ou margem em seus outros romances.
Enquanto, em O Resto Silncio, o autor procura pensar os dilemas do escri
tor e do intelectual diante das contradies sociais e das dificuldades de textualiz-
las, em Noite, o avesso das convenes sociais e das prprias representaes so
ciais criadas pelas elites e camadas mdias que rico pretende discutir e refigurar
em sua escrita. O discurso da modernidade est mais presente no primeiro roman
ce, no qual os representantes da velha ordem ligada ao campo e aos valores tradicio
nais so criticados (o coronel Joaquim Barreiro e seu neto Marcelo, catlico con
servador), bem como os herdeiros da velha ordem (Aristides e seu filho Aurlio) e
os novos-ricos (Norival Petra). A narrativa ancora-se no ponto de vista das classes
intermedirias (do escritor Tnio Santiago e sua famlia) para fazer essa crtica.
De certa forma, na refigurao ficcional da cidade de Porto Alegre a narrativa an
tecipa-se no tempo em certas cenas modernas, tanto nas experincias das perso
nagens quanto na descrio das paisagens urbanas, que esto um pouco frente
da experincia real da cultura urbana porto-alegrense no final dos anos 1930.
Nesse sentido, a cidade representada em O Resto Silencio um espao-
sntese da modernidade brasileira, que se debatia com a tradio e sua condio
perifrica em relao s grandes metrpoles culturais e industriais geradoras dos
padres socioculturais modernos. Os espaos ficcionais que predominam no pri
meiro romance so o centro e os bairros de classe mdia (Cidade Baixa, Petrpolis,
Menino Deus), bem como o tempo diurno. O autor procura desmascarar por in
termdio de um narrador em terceira pessoa onisciente a representao social de
cada uma das personagens.

^ Ibidem, p. 125.
292 charles monteiro

Em NoitCy novela de uma dcada depois, esse projeto de modernidade en


contra-se em fase mais acelerada de implantao. Muito embora s se possa falar
de uma verdadeira cultura de massas no Brasil no final dos anos 1950 e incio
dos anos 1960. Porm, as viagens de rico aos Estados Unidos, a influncia que
sofreu da nova literatura de lngua inglesa, do cinema americano e europeu, per
mitiram-lhe antecipar nessa novela uma crtica do projeto de modernidade da
sociedade brasileira e abordar sua outra face mediante o tratamento ficcional da
peregrinao do Desconhecido pelos labirintos do submundo urbano e de seu pr
prio inconsciente. Essapersonagem representa tudo o que foi negado e reprimido
pelo projeto de modernidade e constitui seu avesso: sujeitos desviantes, prazeres
ilcitos, vcios, contradies sociais, etc. A noite desnuda o outro lado das falsas
promessas do trabalho diurno e do projeto de modernidade, da sociedade de con
sumo e de suas teias de ordenao social, provocadoras do esmagamento e do apri-
sionamento dos indivduos. Os espaos ficcionais que predominam na novela so
as margens do centro (a zona porturia, os becos) e os espaos de negociao en
tre as elites e as classes populares (o cabar, o hospital) numa grande peregrina
o do Desconhecido pela noite procura de si mesmo. O tempo noturno e as
cores so sombrias predominam tanto nos rostos quanto na ambientao dos es
paos banhados por uma meia luz e tons desmaiados ou escuros como de um
filme noir.
Em Noite, rico metaforiza os dilemas do homem comum entre um passa
do que parecia encerrado, um presente que se apresenta intransparente como um
labirinto e um horizonte de futuro marcado pela crise do paradigma moderno.
Que teria resposta para esse personagem perdido na noite do tempo e sem me
mria? O escritor por meio da fico ou o historiador por meio da investigao e
da problematizao do passado urbano? Ou ambos com base em enfoques e es
critas especficas e relacionadas s normas e lgicas de seus respectivos campos?
VER E SER VISTO PELO PODER: QUANDO A POLTICA
VAI S RUAS NA PORTO ALEGRE DOS ANOS DE 1920*

Ricardo de Aguiar Pacheco


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O regime poltico vivido no estado do Rio Grande do Sul durante a Rep


blica Velha ou Primeira Repblica identificado, de forma recorrente, como
autoritrio.' Sem discordar dessa caracterizao geral do perodo borgista deseja
mos mostrar que, ao longo da dcada de 1920, tanto o Partido Republicano Rio-
grandense PRR como os partidos de oposio promoviam diversas mobili
zaescoletivas que utilizavam a rua como cenrio para as disputas polticas. Eram
comemoraes de datas cvicas, recepes de lideranas ilustres, passeatas e com
cios que utilizavam as ruas e praas da cidade. A observao detalhada desses even
tos permite-nos perceber que, longe de atos espordicos, essas manifestaescole-
tiivas faziam parte do conjunto de estratgias de legitimao simblica do poder
poltico prprias de uma sociedade que se modernizava. Constituam-se em espa
os de sociabilidade onde os citadinos poderiam ver e serem vistos para, dessa for
ma, incorporar-se ao campo poltico local. Ou seja, as manifestaes de rua apre
sentam-se como mais uma faceta da cultura poltica prpria deste tempo-espao.-
No cabe aqui observar mais amplamente a importncia e a recorrncia das
mobilizaes populares nas ruas de Porto Alegre no inciodo sculo XX, mas lem
bremos que as ruas e praas da cidade eram palcos para manifestaes coletivas

* Este artigo uma verso modificada do captulo: Estratgias de mobilizao do eleitor: as


mobilizaes de rua. In: Ricardo de Aguiar Pacheco. A vdga sombra dopoder: vida associativa e cultura
polticas na Porto Alegre da dcada de 1920. Doutorado em Histria. Porto Alegre: PPG, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2004, pp.214-32.
' Cf. Hlgio Trindade. Aspectos do sistema partidrio republicano rio-grandense (1882-1937).
In: Jos Hildebrando Dacanal (org.). RS: economia e poltica. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989, pp.
119-92.
' Cf. PACHECO, Ricardo de Aguiar Pacheco. Sociabilidade urbana e cultura poltica. Moder-
nidades, a. II. n." 3, abr. 2006. Disponvel em: <http://wvw.ffyh.unc.edu.ar/modernidades/index.htm.>.
293
294 ricardo de aguiar pacheco

em diversos momentos da vida urbana. Apenas para ilustrar, citemos as ativida


des religiosas, como a Festa do Divino, que reunia na praa a populao da cida
de; ou ainda, na festa pag do entrudo.^ Sandra Jatahy Pesavento, quando fala da
Porto Alegre do comeo do sculo XIX, diz que:
A festa de rua podia inclusiveter um carter poltico, como aquelas rea
lizadas em Porto Alegrepor ocasio da queda de Deodoro, quando um prstito
de dez mil pessoas, luz de lanternas venezianas e ao som de bandas de m
sica, percorreu as principais ruas da capital em sinal de regozijo com a queda
do ditador {Gazetinhay 29/11/1891). Ou ainda, a festa na rua dava-se por oca
sio do 1.de Maio, quando as sociedadesoperrias locaisorganizavam-se em
um prstito, empunhando bandeiras e acompanhadas por bandas nos seus
percursos pelas principais ruas da cidade (O Independentey 4/5/1911).'

Eventos como esses exemplificam a familiaridade da sociedade porto-ale-


grense com o uso dos espaos pblicos para manifestaescoletivas, o que possibi
lita pensar na transposio de prticas dessa cultura popular para o campo polti
co estruturando um sistema simblico de legitimao do poder institucional. Ao
refletir sobre as sociedades complexas, Pierre Bourdieu entende "o sistema simb
lico (arte, religio, lngua) como uma estrutura estruturante". So estruturas por
serem cdigos coerentes de comunicao entre os indivduos; so estruturantes,
porque ao definir formas de nomear o mundo, conformam as possibilidades de
conhec-lo e interpret-lo. Nesse raciocnio, identifica a existncia de um poder
simblico que faz ver e faz crer, que delimita as possibilidades de os agentes atua
rem no campo, que configura as formas de obter coeso e mobilizao social.^
Observadas de forma isolada as manifestaes de rua pouco nos dizem, mas
ao entend-las como prticas e representaes sociais vemos esses eventos como
elementos de um sistema simblico que produzia e reproduzia a legitimidade so
cial para o exerccio do poder poltico. No seuinteriorseoperou um amplo leque
se sinais e significados que possibilitaram o dialogo entre os detentores do poder
institucional governantes e setores da sociedade governados. Ou seja,
fizeram parte das estruturas sociais que estruturaram as formas e possibilidades
dos agentes posicionar e se integrar ao campo poltico desse tempo espao.

Os festejos nas datas comemorativas

As datas cvicas sempre foram momentos privilegiados para mobilizaes


de carter poltico. Como nos alerta Lcia Lippi de Oliveira, a memria social e a
tradio so produes culturais que incidem sobre o sentimento de pertenci-

^Sobre as festas populares em Porto Alegre, ver: Walter Spalding. Pequena histria de Porto
Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967, pp. 235-8.
^ Sandra Jatahy Pesavento. O espetculo da rua. Porto Alegre: UFRGS/Prefeitura Municipal,
1992, p. 81.
' Cf. Pierre Bourdieu. O poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1998.
ver e ser visto pelo poder: a poltica vai s ruas de porto alegre 295

mento a determinada comunidade de sentidos. As diversas estratgias de preser


vao e rememorao do passado desempenham papel importante na vida das
sociedades modernas posto sua potencialidade para a afirmao das identidades
nacionais. As datas comemorativas de eventos e personalidades ligadas forma
o da nao no apenas resgatam uma viso sobre o transcorrido, mas tambm
reforam o que se deseja manter no presente e construir para o futuro. Falando
das festas cvicas do governo republicano a autora aponta que os intelectuais do
incio do sculo XX se envolveram em fortes debates pela consolidao de uma
memria socialpositivasobre o regimerepublicano.

Os republicanos instituram suas festas procurando estabelecer uma


continuidade com eventos histricos passados; valorizavam a lembrana de
feitos e heris at ento perdedores. A Repblica os resgatava em sua dignida
de e valor. A proposta da tradio republicana no destacava a singularidade
do pas e sim seu pertencimento a uma fraternidade com pasese/ou momen
tos visualizados como representantes do lema: liberdade, igualdade, frater
nidade.^

Para os republicanos do Rio Grande do Sul o 14 de julho foi data cvica


duplamente emblemtica. Data alusiva Revoluo Francesa marco inicial de
um mundo que acreditava estarse inventando a cada dia no por coincidncia
se escolheu como dia da Promulgao da Constituio Estadual. No campo do
imaginrio associava-se esse modelo institucional s idias e valores daquele mo
vimento sntese do pensamento poltico moderno. Desta feita, o 14 de julho
rememorava "um"passado como forma de afirmar, naqueletempo presente,"um"
projeto poltico para o futuro o castilhismo. Com este fim todos os anos eram
organizados, por grupos ligados ao PRR, eventos alusivos a este ato fundador da
Repblica no RS. Atividades que, no raro, ocupavam as praas da cidade. Sobre
o ano de 1921 o jornal republicano A Federao publicava:

Como nos anos anteriores, realizar-se- segunda, 14 de julho, s 15


horas, uma comemorao cvica promovida pelo Centro Republicano Jlio
de Castilhos junto do monumento do saudoso patriarca.^

Nessa data, no ano de 1924, o Partido organizava uma assemblia para o


lanamento das candidaturas republicanas ao pleito municipal que se aproxima
va. Antes, porm, promovia uma manifestao na praa ondeseencontrava o mo
numento em memria ao lder morto Jlio de Castilhos:

Revestiu-se de excepcional brilho as comemoraes ontem realizadas


nesta capital em homenagem de mais um aniversrio da promulgao da
" Lcia Lippi Oliveira. As festas que a Repblica manda guardar. Estudos Histricos, Rio de
Janeiro, v. 2, n." 4, 1989, p. 84.
' A Federao, p. 2, 19/9/1921.
296 ricardo de aguiar pacheco

Constituio de Estado que tambm consagrada comemorao da In


dependncia e Liberdade dos Povos Americanos.

Em 1928, a mesma data foi lembrada com uma atividade promovida pelo
Grmio Republicano 14 de Julho. Sobre ela o jornal republicano publicava:

A Sesso, que teve lugar em um dos sales do Clube Caixeiral, vistosamente


decorado, compareceram numerosos correligionrios, bem como delegaes de
vrios clubes republicanos e comisses distritais.'

Em dezembro de 1923 foram os festejos pela pacificao do estadoque ocupa


ram as ruas e praas da cidade. Tal foi o entusiasmo pela finalizao das negocia
es de paz que a Associao Comercial de Porto Alegre dirigiu aos comerciantes
um anncio no qual solicitou aos proprietrios de estabelecimentos dois dias de
feriado comemorativo.

Estacorporao, jubilosamente,congratula-se com todas as classes por


ela representadas, com os rio-grandenses, com os brasileiros e ainda com os
estrangeiros que, conosco, colaboraram nas dignificantes lutas do trabalho,
pelo pacto de paz recentemente assinado, permitindo-se solicitar ao comr
cio em geral que cerre as portas dos seus estabelecimentos e embandeire as
fachadas dos mesmos, no s hoje, mas tambm amanh, reabrindo-as na
prxima segunda-feira, para mais solenemente, ser festejado to fausto acon
tecimento.'10

O chamado da Associao Comercial destinava-se no apenas aos seus scios,


mas aos proprietrios em geral para que participassem das comemoraes de rua.
O comunicado pedia ainda que o comrcio "embandeire as fachadas" das lojas e
que liberasse do trabalho os empregados paraque eles tambm participassem dos
festejos. Efetivamente, o motivo a comemorar era bastante consensual. Por certo,
todos estavam felizes com o fim das hostilidades no estado. Mas destacamos que
aqui era a prpria entidade representativa dos comerciantes e no os partidos
polticos ou o poder estatal que solicitava a suspenso das atividades econmi
cas para a realizao dos festejos.
As fotos dessa comemorao [Anexo 1] mostram que o festejo teve grande
participao popular. Nelas,vemos que uma multido se deslocava pelas ruas cen
trais da cidade empunhando bandeiras e se concentrando diante do palcio do
governo estadual. Como descrevem os artigos do jornal, das janelas as lideranas
do PRR realizaram pronunciamentos para a numerosa audincia que a se con
centrou. Como vemos, os citadinos se dirigiram ao poder constitudo por meio

* A Federao, 15/7/1924, p. 1.
" Ibidem, 16/7/1928, p. 1.
Ibidem, 17/12/1923, p. 2.
ver e ser visto pelo poder: a poltica vai s ruas de porto alegre 297

de um ato ptblico. Na direo inversa, temos o chefe de Estado reconhecendo a


manifestao de rua como prtica poltica legtima dos citadinos.
Dessa feita a primeira observao que se deve fazer sobre as atividades pol
ticas que utilizavam as ruas e praas da cidade a naturalidade com que era vista
pelo poder institudo. Diferente do esperado de um governo estadual caracteriza
do pelo pensamento poltico autoritrio, o que vemos o reconhecimento do chefe
de Estado mobilizao urbana. No mais tambm os comentrios publicados nos
jornais do perodo no externavam nenhuma dvida sobre a legitimidade do uso
dos espaos pblicos para manifestaes de carter poltico.

As recepes aos viajantes

Numa sociedade em que ainda se publicavam nos jornais os nomes das pes
soasque chegavam e partiam pelo caisdo porto ou pela estao ferroviria, o cum
primento a familiares, amigos e colegas era um momento importante da sociabi-
lidade urbana. Os relatos dos jornais permitem perceber que essa prtica social
denotava no apenas carinho, mas respeito e apreo pelo viajante. Significava o
reconhecimento do prestgio social dos personagens sociais. Assim entendemos
que receberas lideranaspartidrias na estao ferroviria ou no porto como uma
prtica social que tambm transitou do contexto das relaes privadas para o cam
po poltico, carregando, do primeiro, suasestratgias e potencializando, no segun
do, seus significados.
Em setembro de 1920 o jornal Correio do Povo comunicava a chegada do
lder oposicionista Assis Brasil a Porto Alegre em uma breve nota, em que dizia
que "Procedente de Pedras Altas dever chegar, hoje, a esta capital o Dr. Assis Bra
sil"." Em janeiro de 1921 foi publicada a nota na qual se dizia que "[. . .1 o Cen
tro Republicano Jlio de Castilhos convida os nossos correligionrios para a re
cepo que se far amanh, s 10horas, na estao frrea, ao nosso ilustre amigo e
correligionrio SenadorJooVespcio de Abreu e Silva".'- Divulgara chegadades
sas e de outras lideranas no era apenas dar boas-vindas. Ao divulgar a chegada
ou partida se possibilitava que correligionrios fizessem um ato de apreo a essa
personalidade, de apoio s suas palavras. Uma demonstrao pblica de compro
metimento com suas idias e propostas polticas.
Um momento emblemtico dessa prtica social foi a chegada de Flores da
Cunha a Porto Alegre, em 15 de agosto de 1923. Em meio Revoluo de 1923 o
comandante das tropas da Brigada Provisria que combatia os revoltosos na re
gio oeste do estado foi chamado capital. Para receb-lo, foi organizada pelo PRR
umagrande recepo pblica na estao ferroviria.

Encontrando-se nesta capital o bravo republicano Coronel Dr. Jos


Antnio Flores da Cunha, valoroso comandante da Brigada Provisria do

" Correio do Povo, 19/9/1920, p. 4.


/4 Federao, 25/1/1921, p. 1.
298 ricardo de aguiar pacheco

Oeste,convida-se a populao de PortoAlegre, parademonstrarao galhardoso


soldado da legalidade a profunda admirao de que se faz credor, neste glo
rioso perodo de decisivas afirmaes cvicas em que o Rio Grande, mais
uma vez se mostra sntinela incansvel da Repblica.'^

O extenso relato dessa manifestao pblica de apreo apresenta muitos de


talhes dignos de nota. Estavam presentes a essa recepo lderes partidrios, auto
ridades civis e militares do estado. Praticamente todos os detentores de postos no
governo: do delegado de polcia aos juizes, do comandante da Brigada Militar
banda da corporao. O prprio lder do PRR e presidente do estado Borges de
Medeiros foi at a estao frrea receber o chefe militar. A presena de tantos per
sonagens da cena poltica e detentores de postos da mquina estatal evidenciavam
a importncia que essesagentes atribuam a essaatividade. O texto menciona ainda
que Flores da Cunha "foi, ao saltar do carro, afetuosamente abraado pelo Dr. Borges
de Medeiros e demais autoridades" quando ento posaram para foto conjunta
Anexo 3 tambm publicada pelo jornal. Essa atitude seguramente estava asso
ciada ao momento particular da vida poltica regional. Em meio a uma crise
institucional, era importante para o lder poltico prestigiar o chefe militar. Mas,
da mesma forma, devemos pesar os riscos inerentes a um chefe de Estado questio
nado pelas armas expor-se em local pblico e aberto.
A foto dessa manifestao, publicada com destaque no jornal A Federao
Anexo 2 , evidencia o grande nmero de citadinos que vai s ruas da cidade
manifestar publicamente seu comprometimento com essa liderana. Essa ativida
de que utilizava as ruas da cidade para manifestar apoio aos lderes republicanos
no foi uma atividade espontnea ou ingnua. Tratava-se de uma ao promovida
e coordenada pelo PRR com inteno clara de causar impacto tanto aos citadinos
como aos leitores do jornal, levando os ltimos a perceber a fora do partido e de
suas lideranas na capital do estado nesse momento de conflito armado.
A soma de tais fatores apenas reafirmava a importnciados significados atri
budos ao ato de receber na estao o ilustre que chegava cidade. Nestemomen
to, como em tantos outros, o PRR transformava uma prtica social tpica do cam
po privado receber um visitante diretamente na estao ferroviria em
atividade de carter poltico partidrio. Transformava a demonstrao de apreo
personalidade de Flores da Cunha em demonstrao de fora e apoio poltico ao
seu prprio projeto.

As passeatas pelo centro da cidade

Um outro tipo de atividade que utilizava a rua como espao para manifesta
o poltica eram os "prstitos"e as"marchas", ou seja, as passeatas que percorriam
as ruas da cidade. Sua ocorrncia em diferentes momentos da dcada de 1920 nos
permite pensar que essas atividades tambm eram manifestaes legtimas nesse

" A Federao, 14/8/1923, p. 2.


ver e ser visto pelo poder: a poltica vai s ruas de porto alegre 299

cenrio urbano. Aps a recepo a Flores da Cunha na estao ferroviria, a mul


tido que ali se reunia saiu pelas ruas da cidade em passeata puxada pelo prprio
Borges de Medeiros. Segundo a nota do jornal, "o cortejo tomou a Rua da Con
ceio,a Rua da Independncia e Andradas em direo Praa Senador Florncio
at o Grande Hotel" cruzando o centro comercial da cidade. E segue descrevendo
o episdio:

Por entre o entusiasmo popular, que vibrava nas ovaes ao valoroso


cabo de guerra e ao Dr. Borges de Medeiros, organizou-se, ento, extenso
cordo, desfilando por entre alas formadas de republicanos, o Dr. Flores da
Cunha, ao lado de S. Ex. e dos secretrios de Estado, magistrados, coman
dante geral da Brigada Militar, chefe de polcia, etc. precedidos de grande
massa popular.
Sob novos e vibrantes vitria da multido, que se sucediam de mo
mento a momento, o cortejo tomou a rua da Conceio, a rua da Indepen
dncia e Andradas em direo a Praa Senador Florncio at o Grande
Hotel.

Como vemos, trata-se de uma multido disposta que se deslocava de forma


coesa pela cidade seguindo seus lderes polticos numa clara demonstrao p
blica de lealdade. Divulgar essa manifestao no jornal partidrio tinha um im
pactona disputada legitimidade social do exerccio do poder,pois contribua para
criar a percepo da legitimidade do governo. De outro lado, para os participan
tes, fazer-se ver no prstito possibilitava acumular determinado prestgio, obter
certa projeo no interior da rede de relaes do campo poltico.
Na campanha eleitoral para deputados federais de maio de 1924 a oposio,
atravs do Centro Cvico Honrio Lemos, fez publicar no Correio do Povo um ann
cio convidandoseuspartidrios para uma passeata noturna onde dizia:

O Centro Cvico Honrio Lemos convida o povo livre desta capital e


especialmente o dos arrabaldes dos Navegantes e So Joo, a comparecer,
hoje, s 7 horas da tarde, Avenida Misses n." 26 prximo Avenida
Germnia, (Sede do Centro) a fim de receber e acompanhar em marcha ao
"flambeaux" at a Avenida Eduardo, em frente aos Gondoleiros, onde lhe
ser feita uma manifestao.'^

Nessa convocatria se repete a mesma lgica dos chamamentos feitos para


as reunies de campanha que ocorriam nas sedes dos clubes polticos. O convite
era assinado pela diretoria e nele estavam indicadas o local a data e a hora da con
centrao. Se dirigia "especialmente [ao povo] dos arrabaldes dos Navegantes e
So Joo", pois essa era a regio da cidade onde se situava a sede dessa associao

Ibidem, 14/8/1924, p. 1.
Correio do Povo, 26/3/1924, p. 1.
300 ricardo de aguiar pacheco

poltica. A inteno desse encontro era "receber e acompanhar em marcha ao


flambeaux at a Avenida Eduardo". Ou seja, tratava-se de uma passeata pelas
ruas principais do quarto distrito da cidade. Para esse ponto final da atividade es
tava prevista a realizao de uma"manifestao" na qual ocorreriam os discursos
dos oradores, os "Srs. Drs. Wenceslau Escobar e Plnio Casado".
Ao chamar a participao do "povo livre desta capital,"ativava uma imagem
mental em que os republicanos eram vistos como agentes sujeitados estrutura
partidria, como personagens presos e tutelados pelos chefes polticos. Atentemos
que o chamado era para participar de uma "marcha ao flambeaux". Ou seja,
uma marcha com tochas, uma passeata luminosa durante a noite, luzes essas que
rompiam a escurido da poltica oficial. De tal forma que se associava imagem
da liberdade contra a opresso, com a da oposio contra os republicanos.
Em meio campanha eleitoral para os cargos municipais em julho de 1928
tambm ocorreu uma passeata da oposio promovida pelo Centro dos Estudan
tes Libertadores. A nota desse evento publicado no Correio do Povo relata que:

O Centro dos Estudantes Libertadores resolveu promover, como ante


cipamos, ontem, a noite, uma manifestao de apreo ao diretrio central e
local do Partido Libertador, tendo numerosos manifestantes se reunido, no
largo fronteiro intendncia municipal.
Organizado o prstito puxado por uma banda de msica do exrcito,
entre vivas ao Dr. Assis Brasil e a outros prceres da oposio, os manifes
tantes tomaram a Rua Sete de Setembro, e contornaram a Praa Senador
Florncio indo por ltimo a frente da sede do Partido Libertador, a rua dos
Andradas, em cuja sacada se achavam os Drs. Raul Pilla e Edgar Schneider,
respectivamente, vice-presidente e secretrio do Diretrio Central; Drs.
Feliciano Falco, Arquimedes Cavalcnti e Gabriel Pedro Moacir e Srs. Ar
mando Tavares, Pio Salgado Contreiras, Israel Rangel e outros membros do
Partido Libertador.'^

Como em outros momentos, a iniciativa dessa manifestao partiu de um


clube poltico. O local para a reunio era o "largo fronteiro intendncia mu
nicipal", a Praa Montevidu. Desse ponto, "os manifestantes tomaram a Rua Sete
de Setembro, e contornaram a Praa Senador Florncio indo por ltimo frente
da sede do Partido Libertador,a Rua dos Andradas". Ou seja,da mesma forma que
faziam os republicanos, a passeata da oposio tambm cruzava pelas principais
ruas da cidade. O mesmo relato diz que, uma vez no seu ponto final, a sede do
Partido Libertador teve suas sacadas utilizadas como palanque de onde diversos
oradores se revezaram em discursos. A, segundo o texto publicado no jornal,
"[. . .] cessados os aplausos, falou em primeiro lugar, o acadmico Waldemar
Rippol".'^

Correio do Povo, 25/7/1928, p. 16.


Ibidem.
ver e ser visto pelo poder: a poltica vai s ruas de porto alegre 301

Para o dia 15 de novembro de 1927, programava-se uma srie de atividades


em comemorao a essa data cvica. Entre elas estavam includas a reunio no
Centro Republicano Jlio de Castilhos, a homenagem do magistrio ao governa
dor do estado e a passeatapromovida pela Liga dos Operrios Republicanos.'

noite, a Liga dos Operrios Republicanos realizou uma passeata c


vicaem homenagemao Dr.Borges de Medeiros, presidentedo estado.
Os manifestantes reuniram-se no largo fronteira da Intendncia Mu
nicipal, onde organizaram um prstito que, tendo frente uma banda de
msica e bandeira nacional e riograndense, se encaminhou em direo ao
palcio do Governo do Estado.
As lOl horas, os manifestantes chegaram ali, tendo prorrompido em
vivasquando S.Ex. apareceu em uma janela, acompanhado dos Drs. Protsio
Alves e Augusto Pestana."

Uma primeira leitura desse relato nos obriga a lembrar da Liga dos Operrios
Republicanos como clube poltico ligado ao Partido Republicano. Podemos pen
sar que ela estava sendo manipulada para realizar uma atividade dirigida pelas
instnciassuperiores para demonstrar o apoio do operariado urbano ao governo.
Mas essa viso nos impede o entendimento das motivaes que levaram os cita-
dinos a participar dessaatividade de homenagem ao governador do estado, prestes
a deixar o cargo. Enquanto A Federao divulgava que a atividade ocorreria na
Praa Senador Florncio, o relato publicado na edio do dia seguinte descrevia
que a concentrao se dera no Largo da Intendncia, e nem mesmo no trajeto at
o Palcio do Governo ela passou pela Praa Senador Florncio. Essa divergncia
entre o local divulgado para o encontro e o local onde ele efetivamente ocorreu
evidencia que a estrutura partidria no tinha total controle das atividades da Liga
dos Operrios Republicanos. Se assim fosse o chamado do jornal partidrio teria
sido seguido. Se considerarmos que a nota se tenha equivocado na informao da
mesma forma temos de reconhecer o distanciamento entre a redao do jornal e
a diretoria da Liga. Num e noutro caso,ficapatente que os membros dessaassocia
o no seinformaram da atividade pela imprensa partidria, pois a concentrao
no se deu no local divulgado pelo jornal.
Freqentar determinados lugares da cidade moderna no era um ato ino
cente. O Largo da Intendnciaera tido como espaopara a concentraopara pas
seatas, pelo menos, desde a Proclamao da Repblica.^" Junto do largo ficavam
os terminais das linhas de bonde que chegavam dos arrabaldes. A era o local do
comrcio popular e por onde circulava um sem-nmero de pessoas que iam e
vinham de diversos pontos dacidade. APraa Senador Florncio, por outro lado,
ficava em um ponto nobre do centro da cidade. Fronteirias a ela seencontravam
A Federao, 14/11/1927, p. 4.
" Ibidem.
Cf. Ricardo de Aguiar Pacheco. A recm-nascida Repblica: a cidadania festiva no 30." dia da
Repblica. Estudos Ibero-Amertcatios, Porto Alegre, v. XXV, n." 1, jun. 1999, pp. 171-92.
302 ricardo de aguiar pacheco

diversas reparties pblicas. Suascaladas era o espao para ofooting das moas
que freqentavam os melhores cinemas. A tambm se localizavam os cafs mais
elegantes da cidade, onde ocorriam debates acalorados sobre a situao poltica.
Em seu entorno ainda se encontravam as sedes dos partidos e de algumas associa
es importantes. Convocar os participantes de uma passeata para se concentrar
em um ou outro desses dois pontos da cidade, mais que uma questo de trajeto,
implicava definir o pblico que se desejava reunir.
Da Intendncia ao Palcio do Governo, essa passeata passou pela Rua dos
Andradas, cruzando o centro comercial da cidade. Os relatos mencionavam a pre
sena de uma "banda de msica" e o uso da "bandeira nacional e rio-grandense".
Ou seja, falava-se de algo que produziabarulhopelas ruascentrais da cidade. Con
tudo, no se fez meno a nenhum incomodo causado pela atividade, deixando
implcita a legitimidade social dessa mobilizao coletiva. Por seu turno, quando
Borges de Medeiros "apareceu em uma janela", estava se dirigindo aos presentes.
Neste ato tanto o lder poltico como o chefe de Estado reconheciam a legitimida
de da passeata como estratgia para os grupos sociais manifestarem sua opinio.

Os comcios pblicos

Outro tipo de atividade que utilizava ruas e praas como palco para a poltica
na Porto Alegre da dcada de 1920eram os comcios.Na campanha eleitoral para a
Presidncia da Repblica de 1922 quando Artur Bernardes e Nilo Peanha dispu
tavam a presidncia o PRR organizava um comcio de apoio candidatura de
Nilo Peanha no dia 25 de janeiro, aniversrio do Governo Borges de Medeiros.

Passou, ontem, mais um aniversrio da gesto governamental do Dr.


Borges de Medeiros, presidente do Estado.
Comemorando este fato, efetuou-se, na Praa Senador Florncio, o
anunciado comcio organizado por uma comisso constitudo de membros
dos comits de propaganda dos candidatos da dissidncia Presidncia da
Repblica e vice-presidncia.
s 20 horas, reunidos naquele logradouro pblicoos adeptos da cha
pa Nilo-Seabra, assomou a tribuna, que ali fora especialmente armada, o 1.
dos oradores oficiais, o deputado federal Gumercindo Ribas.^'

Segundo as notas publicadas nos jornais, o comcio era organizado pelos


"membros das comisses de propaganda" da campanha de Nilo e Seabra presi
dncia e vice-presidncia da Repblica. Sabemos que ele tinha incio s 20 horas,
sendo montada, para sua realizao, uma tribuna em meio a praa. Nela discur
saram Gumercindo Ribas, Dr. Joo Carlos Machado, o bacharel Itiber de Moura
e o Dr. Silveira Martins Leo, sendo suas palavras transcritas pelo jornal A Federa
o. O uso da data de aniversrio da administrao Borges para o comcio no era

Correio do Povo, 26/1/1922, p. 4.


ver e ser visto pelo poder: a poltica vai s ruas de porto alegre 303

coincidncia. Mais do que simplesmente expressar o apoio dos republicanos can


didatura federal de oposio, remetia a uma vinculao entre as posies adotadas
ante a poltica regional com as tomadas em relao campanha nacional. Apoiar
a candidatura de Nilo Peanha, nessa situao, significava felicitar Borges de Me
deiros pelo seu governo. Ao mesmo tempo o prestgio do governo estadual era
convertido para a disputa federal, os esforos de mobilizao para a eleio presi
dencial capitalizavam apoios para a disputa estadual que se aproximava.
No dia 15 de novembro de 1922, data comemorativa do centenrio da Procla-
mao da Repblica, o Centro Republicano Jlio de Castilhos promovia um com
cio em defesa da candidatura de Borges de Medeiros para a presidncia do estado.

Constituiu de verdadeira consagrao ao nome do Dr. Borges de Me


deiros, o impoluto chefe do nosso partido, o comcio realizado noite de
ontem, frente do "centro republicano Jlio de Castilho", em prol da reelei
o do benemrito presidente do Estado.
Muito antes da hora marcada, j aquele local regurgitava de republi
canos, que formavam compacta multido. Viam-se entre os presentes, os
membros da comisso executiva do Partido Republicano local, mdicos, ad
vogados, engenheiros, operrios, acadmicos de todas as escolas superiores,
representantes de todas as classes sociais,populares, etc.
s 19V2 precisas, apareceu janelado "centro"o Dr.Alberto Brito, que
foi recebido por entre calorosas salvas de palmas.^-

Mesmo tendo utilizado a sede do Centro Republicano Jlio de Castilhos os


organizadores dessa manifestao buscavam tornar pblica a sua atividade de cam
panha ocupando o espao da rua para sua realizao. Foi nas caladas em frente
sede que os ouvintes se concentraram para acompanhar o orador que falava da
sacada. Buscavam, com isso, evidenciar sua capacidade de mobilizao social e,
dessa forma, demonstrar sua capacidade de se fazer vitoriosos nas urnas. A esco
lha dessa efemride para a atividade no foi inocente. A realizao de um comcio
eleitoral na data alusiva Proclamao da Repblica servia para vincular a candi
datura partidria a efemride nacional. Como em diversos outros momentos se
reafirmava a vinculao entre partido e regime poltico. Criava-se uma situao
na qual a efemride se afastava de seu carterde ptrio universalizante e assumia
a dimenso de campanha eleitoral. Ou, no sentido contrrio, o projeto partidrio
eraalado condio de postulado universal.
Tambm a oposio promovia comcios a fim de mobilizar seus eleitores e
tornar pblicas as suas posies. Para comemorar o lanamento da candidatura
de Assis Brasil presidncia do estado o Centro Cvico promoveu uma reunio
em frente a sua sede em novembro de 1922. Tal como na atividade anterior nesta
tambm a sacada servia como plpito para proferir discursos ao pblico concentra
do na calada fronteiria ao prdio como reconhece o prprio jornal republicano

" A Federao, 16/11/1922, p. 4.


304 ricardo de aguiar pacheco

ao dizer que "ontem de noite, um grupo de adeptos do Sr. Assis Brasil estavapostado
em frente do Centro Cvico, Rua dos Andradas, a ouvir alguns oradores.""
Em julho de 1928, vemos novamente a sede do Centro Republicano Jlio de
Castilhos sendo utilizadacomo palco para um comcio.No momento em que ocorria
o encerramento de mais um ano de trabalhos da Assemblia de Representantes:

Terminada a visita ao Dr. Getlio Vargas, presidente do estado, dirigi


ram-se os deputados republicanosao Centro Jlio de Castilhos, local desig
nado pelo egrgio Dr. Antnio Augusto Borges de Medeiros, preclaro chefe
do Partido Republicano, em companhia do Sr. Sinval Saldanha, presidente
desta associao poltica."

Como mostra a montagemfeita comasfotos deste evento Anexo 4 gran


de nmero de citadinos se concentrava em frente sede da associao. Nessa ima
gem de novo observamos a presena de populares, o que nos aponta para a aceita
o, peloscitadinos,dessa prticasocial como formade manifestao das posies e
opes polticas. Deoutrolado, percebemos quetambm aslideranas, como Borges
de Medeiros, ao se dirigirem multido reunida em frente sededo partido, reco
nheciam essa prtica socialcomo forma legtima de manifestao poltica.
As realizaes administrativas tambm no escapavam as atividades de cam
panha do partido situacionista. Em 21 de fevereiro de 1927 a Intendncia Muni
cipal inaugurou a Praa Pinheiro Machado no arrabaldeoperrio da cidade. Como
se pode observar pela foto desse evento Anexo 5 a praa estava cheia de
homens e mulheres que acompanharam o evento. Esse momento festivo foi apro
veitado pelo Centro dos Operrios Republicanos para uma atividade de campanha
das candidaturas ao congresso federal. Nesse ato procurava-se vincular a adminis
trao municipale suasrealizaes do presente, a um passado simbolizado na mem
ria do homenageadoe um projetode futuro postopelas candidaturas republicanas.

As disputas polticas vo s ruas da cidade

O conjunto de eventos anteriormente observados nos d conta de que, ao


longo dos anos de 1920, as ruas da cidade de Porto Alegre eram utilizadas para a
realizao de comcios, recepes a lideranas, passeatas e comemoraes cvicas.
Diferente do que se poderia esperar de um contexto poltico caracterizado como
autoritrio, essas manifestaes de rua eram amplamente utilizadas pelas dife
rentes foras polticas e por diversos grupos sociais. Tanto o Partido Republicano
Riograndense como a oposio as utilizavam para evidenciar sua fora poltica e
demonstrar sua representatividade social. Tanto as entidades representativas dos
detentores do capitalcomo dos operrios se utilizavam das atividades de rua para
se fazerem perceber no campo poltico local.

A Federao, p. 1, 29/11/1922, p. 1.
Ibidem, 5/7/1928, p. 1.
ver e ser visto pelo poder: a poltica vai s ruas de porto alegre 305

As mobilizaes de rua utilizavam preferencialmente as vias centrais da ci


dade articulando seus significados e usos urbanos com os interesses polticos. A
Praa Montevidu, zona de comrcio popular, e a Praa Senador Florncio, pon
to elegante do centro, eram espaos de grande circulao oferecendo especial atra
o para os comcios. J a Rua dos Andradas, centro comercial da cidade, era pas
sagem obrigatria para quem desejasseser visto em Porto Alegre da dcada de 1920,
era caminho preferencial das passeatas.A presena de bandas de msica, recorrente
tanto nos comcios como nas passeatas, denotava certo grau de tranqilidade e
descontrao, sempre desejado para os momentos de manifestaocoletiva. A pre
sena da multido na rua tambm sinaliza a disposio dos citadinos em partici
par de tais atividades. A falta de reclamaes pelos transtornos que tais atividades
impem vida urbana, ao comrcio e circulao so indcios da aceitao, pela
comunidade urbana, das manifestaes de rua como prtica poltica.
As manifestaes de rua eram ocasies em que agentes sociais com diferen
tes papis se encontravam dividindo as responsabilidades da disputa poltica. A
estavam lideranas partidrias e citadinos, candidatos e eleitores, oradores e pla
tia. Para os dirigentes partidrioseram momentos de exibirsua representatividade
social. Neles era possvel demonstrar publicamente a fora poltica que cada
agremiao e/ou grupo social poderia dispor tanto em situaes de conflito como
em processo eleitorais. Paraos citadinos eram momentospara exporpublicamente
sua vinculao a determinado grupo e dessa forma ganhar seu reconhecimento
no campo poltico recebendo os crditos e o nus de tal envolvimento.
Em seu conjunto essas atividades permitiam s lideranas exibir prestgio e
fora poltica. Organizando e divulgando comcios, recepes e passeatas as lide
ranas republicanas e oposicionistas procuravam exibir publicamente sua repre
sentatividade social. J os citadinos, ao participarem dessas atividades, se aproxi
mavam das lideranas encontrando espao tanto para seu reconhecimento como
para a prpria incluso no campo poltico. Aprendendo os significados atribudos
aos termos do discurso, ao conjunto de prticas e representaes utilizadas peles
lideranas, incorporavam-se aos espaos de sociabilidade poltica desse tempo-es-
pao podendo, dessa forma, encaminhar suas demandas particulares. Operando
esses elementos simblicos os agentes teciam a rede de sentidos do campo polti
co local e dessa forma articulavam a cultura poltica desse tempo-espao. Desta
forma, embora com papis e responsabilidades distintas, nesses momentos de so
ciabilidade criava-se uma sensibilidade de mtuo compromisso pela vitria e/ou
pela derrotano enffentamento poltico e eleitoral. Os ganhos e as perdas objetivas
decorrentes das disputas polticas e eleitorais poderiam sersocializados e/ou capi
talizados entre os diversos agentes sociais envolvidos.
Como vemos na cidade de Porto Alegre da dcada de 1920 o campo poltico
articulava espaos de sociabilidade onde ver era to importante quanto ser visto.
O jogo e a disputa pelo poder institucional utilizavam estratgias polticas mo
dernas. Nessas se operava um jogo de compensaes simblicas onde eleitores e
candidatos; lideranas e citadinos, ainda que em posies diferentes reconheci
am-se como agentesdo campo poltico.
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A Federao, 14/8/1923, p. 2.
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#*) N!

A FecieuiOy 5/7/1928, p. 1,
A Federao, 21/2/1927, p. 2.
LEALDADES COMPARTILHADAS: FAMLIAS NEGRAS E
ETNICIDADES NO ESPAO URBANO (PORTO ALEGRE, SCULO XIX)

Paulo Roberto Staudt Moreira


Universidade do Vale do Rio dos Sinos

No sei ler nem escrever, mas caminho e pergunto e per


guntando eu me ladinizo.
Seu Manuel Francisco Antonio, quilombola do
Morro Alto.

Propomos neste artigo exercitar a possibilidade e a validade de investir em


pesquisas que tenham como fulcro principal o resgate de trajetrias individuais,
principalmente de membros de grupos subalternos, Procuraremos traar pelos
vestgios documentais encontrados as vivncias de uma africana (capturada no
continente africano, escravizada no Brasil e liberta) sem que isso signifique des
cartar o coletivo e o estrutural, valorizando apenas o individual ou microscpico.
As posturas atuais relativas formulao de biografias buscam um jogo dialtico
entre o individual e o coletivo, o micro e o macro:

Pois a escolha do individual no vista aqui como contraditria do


social: ela deve tornar possvel uma abordagem diferente deste, ao acompa
nhar o fio de um destino particular de um homem, de um grupo de ho
mens e, com ela, a multiplicidade dos espaos e dos tempos, a meada das
relaes nas quais ele seinscreve.'
Na verdade, o caso individual da africana Joana Guedes de Jesus servir de
mote para tratar das experincias compartilhadas por ela e outros indivduos, in
serindo osseus comportamentos estratgicos emcampos depossibilidades.^
' Jacques Revel. Microanlise e construo do social. In: Jacques Revel (org.). Jogos de escalas.
Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1998, p. 21.
^Sobre a interao entre normas e comportamentos individuais, ver: Giovanni Lvi. A herana
imaterial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000.
309
310 paulo roberto staudt moreira

Quando trabalhamos com trajetrias individuais de populares, certamente


a pesquisa repleta de lacunas e dvidas. Dentro dos limites do mtodo, procura
remos recorrer ao que podemos denominar de imaginao histrica, um jogo que
no estabelea uma dicotomia entre verdadeiro e inventado, mas a "integrao,
sempre assinalada pontualmente, de realidades e possibilidades".'
Durante a elaborao deste artigo, muitas horas foram gastas pensando em
como construir a narrativa dos vestgios documentais que encontramos e que fa
lavam de nossa personagem principal. Por tratar-se de uma trajetria individual
deveramos contemplar sua existncia de uma forma linear, cronolgica, seguin
do uma linha do nascimento na frica at seu enterro no cemitrio da Santa Casa
de Misericrdia de Porto Alegre? Ser que, assim tratada, ela apareceria de forma
mais clara? Pensamos que no. Resolvemos dividir com os eventuais leitores um
pouco do prazer que tivemos em tomar contato pouco a pouco com esta mulher
africana, escrav2Lada ainda criana, afastada da famlia e de sua comunidade, trans
portada em uma ftida embarcao junto com outros malungos (parceiros do mes
mo infortnio), tornada empregada domstica em uma charqueada, que pouco a
pouco reorganizou como podia sua existncia, firmou laos afetivos duradouros
com um companheiro africano como ela e viveu como liberta pelas ruas da capi
tal da provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul por 25 anos. ^
Nosso primeiro contato com Joana Guedes de Jesus ocorreu na leitura de
um processo criminal que tratava de um caso corriqueiro ocorrido em Porto Ale
gre em 1869.'Joana Guedes de Jesus (quarenta anos, solteira, filha de pais incg
nitos, naturalidade nao mina, quitandeira, analfabeta), fez uma queixa em 30
de abril de 1869 na primeira subdelegacia de polcia, com o seguinte teor:

[. . .] achando-se mansa e pacificamente em sua casa, foi espancada


dentro da mesma sua casa por Jos dos Passos,^ por mandado de Matias de

' Cario Ginzburg. Provas e possibilidades margem de "II ritorno de Martin Guerre", de Na-
talie Davis. In: Cario Ginzburg. A Micro-Histria e outros ensaios. Lisboa/Rio de Janeiro: DifeI/
Bertrand Brasil, 1991, p. 183; Alm de: Cario Ginzburg. O inquisidor como antroplogo: uma analogia
e as suas implicaes. In: Ibidem; Michel Foucault assumiu ter-se deixado seduzir por alguns casos de
"homens infames", cujas existncias apenas podemos ter alguma informao graas aos seus fugidios
contatos com o poder (repressor). Ele escreveu a lenda sobre estes seres quase fictcios e obscuros:
"Hablo de leyenda, porque aqui se produce como en todas Ias leyendas un cierto equvoco entre Io
fictcio y Io real, aunque en este caso Ias razones se invierten. Lo Legendrio, cualquiera que sea su
ncleo de realidad, no es nada ms, em ltimo trmino, que Ia suma de Io que se dice. (...) En los
textos que siguen Ia existncia de estos hombres y de estas mujeres se reduce exatamente a Io que de
ellos se dice; nada sabemos de Io que fueron o de Io que hicieron salvo Io que vehiculan estas frases.
En este caso es Ia escasez, y no Ia prolijidad, Io que hace que se entremezcien Ia ficcin y Io real".
Michel Foucault. La vida de los hombres infames. Buenos Aires/Montevidu: Editorial Altamira/Nor-
dan-Comunidad, 1992, p. 183.
Ao longo do artigo usaremos as seguintes abreviaturas: AHRS Arquivo Histrico do Rio
Grande do Sul; AHCMPA Arquivo Histrico da Cria Metropolitana de Porto Alegre; e Apers
Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul.
' Apers. Cartrio Jri, mao 41, processo 1193, Porto Alegre, 1870.
^ Jos dos Passos Filho: filho de Benedito de Assuno, 36 anos, solteiro, sapateiro e "que agora
tem trabalhado como boleeiro da cocheira do Dr. Heinzelmann", nascido em So Paulo, analfabeto,
morador na praia do Riacho.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 311

Tal,^ capataz ou encarregado da cocheira do Dr. Heinzelmann, ontem pelas


trs horas da tarde e como este procedimento criminoso, e a suplicante
queira que seu agressor e mandatrio sejam punidos, vem perante V.S." dar
sua queixa [. . .].

Em 3 de maio do mesmo ano, presente pessoalmente na casa do subdelegado,


Joana explicou o ocorrido com mais detalhes:

Respondeu que dias antes dela [. . .] ser ferida, um menino de casa do


ru Matias, queria arrebentar uma corda que ela queixosa tinha amarrado
no quintal de sua casa, e como o menino se mostrasse [insistente] ela [. . .]
dirigiu-se para dentro e queixou-se a me do menino que mulher de Matias,
e ela no lugar de atender ou providenciar ps-se de altercaes com ela
respondente, at que ela [. . .] retirou-se para dentro e continuou em boa
paz com os vizinhos, o dito Matias e outros, at que no dia 29.4, indo ela ao
quintal, principiou o preto Manuel dos Passosa provoc-la e ela [. . .] n nica
palavra que disse foi que se deixasse de valentia, que o nosso governoprecisava
muito de homens valentes para a Campanha, e nisto ela respondente retirara-
se para dentro, que o dito Matias, que ela [. . .] supe que estivesse escondi
do em casa varejou-lhe como uma tranca [pau], que se a apanha matara-a;
vista do que ela resolveu sair e convidar pessoas para testemunhar esse
atentado de Matias, quando nessa ocasio o referido Jos dos Passos, saiu
atrs dela respondente e caiu-lhe de vergalho, fazendo-lhe diversas ofensas
no pescoo [grifo nosso].

Esta altercao ocorreu na Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado, cen


tro de Porto Alegre, sendo os principais envolvidos vizinhos e moradores em tpi
cas residncias do perodo, onde habitavam setores populares e remediados em
extrema proximidade, unidos por ptios comuns ou de diviso incerta atravs de
frgeis cercas. Em residncias como essas, as privacidades eram divididas, sendo o
atrito entre vizinhos algo que precisava ser resolvido urgentemente. Segundo o
cronistaAntnio lvares Pereira Coruja,a Rua do Arvoredo:

' Matias Guathnauer (?]: filho de Matias, trinta e trs anos, casado, caixeiro, do Reino da
Prssia, sabia ler e escrever, morador na Rua do Arvoredo h dois meses.
" O Dr. Heinzelmann, no ano da agresso a Joana, tinha cerca de cinqenta anos e morava na
Rua da Igreja (atual Duque de Caxias). Nasceu na Prssia (Havelberg) e veio para o Brasil em 1846
com sua primeira mulher, Amanda Juliana Elisabeth Koethcke, com quem casou pelo rito protestante
em Hamburgo, em 28 de fevereiro daquele ano. Abandonado pela primeira esposa, Heinzelmann rece
beu autorizao para casar novamente na Igreja, com Francisca Bezerra Heinzelmann, em 14/5/1853.
Ele faleceu cm 2/7/1890, deixando a viva e quatro filhos (Alfredo, Ricardo, Oscar e Paulina Hein
zelmann de Moura, casada com o Dr. Afonso Henrique de Moura). Heinzelmann libertou em 1867,
por cem mil ris, a escrava Nag Ludovina e possua pelo menos mais uma cativa crioula, nascida
nesta provncia, de nome Florisbela, que teve duas filhas ingnuas: 1.*) 29/9/1973, Luza; 2.') 2/8/1975,
Capitulina. AHCMPOA, Livro de Batismo de Libertos, Igreja do Rosrio (folha 53v) e da Catedral
(folha 7). Apers. Registros Diversos n. 19, 1.Tabelionato de Porto Alegre, 12/10/1967, folha 55. Apers.
Cartrio da Provedoria e Ausentes, 1890, inv. 715, mao 42.
312 paulo roberto staudt moreira

Bem merecia este nome, porque at certo tempo s havia nela rvores
e casas de capim, contando-se as de telhas por unidade [. . .) Entre as casas
de capim distinguia-se pela sua humildade a em que morava o preto velho
Jos Cabelos, andador da Irmandade do Rosrio,que nos dias festivos se apre
sentava de casaca, colete bordado, cales, meias e botas, no dispensando a
competente touca que o fazia dormir por casas dos compadres.'

No ano de 1869, Joana residia na Rua do Arvoredo n. 261 com seu amsio
Marcelo Henrique da Silva.' Uma das testemunhas indicadas por ela, Antnio
Andr Henrique de Carvalho," informou que ouviu uma "gritaria muito grande"
e saiu porta de sua venda e vendo o preto Jos dos Passos agredir Joana gritou
"que no desse na preta que era forra". Esta frase de Antnio Andr aponta para a
considerao da alforria como uma espcie de carta de recomendaes por bons
servios (fidelidade, etc.) dos ex-senhores.'^

Pelos documentos coletados, Joana e Marcelo moravam em uma casa


de porta e janela na rua do Arvoredo, provavelmente entre as ruas General
Auto (na poca chamada Rua de Belas) e o Beco da Casa da Cmara (hoje
pequeno trecho fechado ao trnsito da Rua General Joo Manuel). A alcu
nha dada pela populao a este beco justificava-se pela existncia, quase na
esquina da Igreja (atual Duque de Caxias) com a Rua de Belas, do prdio da
Junta da Real Fazenda, que serviu de Casa da Cmara.'^

Joana e Marcelo eram cmplices de vrias experincias comuns eram


ambos africanos e haviam conseguido se alforriar h poucos anos. Marcelo, preto
de Angola, com cinqenta anos comprou sua carta de alforria a Antero Henrique
da Silva, por um conto de ris, em 23 de maio de 1865.J Joana (tambm preta,
nao mina), com quarenta anos conseguiu alforria sem nus ou condio de
' Antnio lvares Pereira Coruja. AntiguaUas. Reminiscndas de Porto Alegre. Porto Alegre:
Cia. Unio de Seguros Gerais, 1983, pp. 101-02.
Marcelo aparece, s vezes, referenciado nas fontes como Marcelino.
" Trinta e trs anos, comerciante, casado, morador na Rua do Arvoredo, quina do Beco da
Casa da Cmara, natural de Santo Antnio da Patrulha, alfabetizado.
Frederico Bier, acusado em 1866 de ter assassinado o seu escravo Loureno de Nao Ca-
binda, teve como principal acusadora a preta forra Romana, qual tentou desmerecer dizendo que
tudo no passava de futilidades, "de mexericos de uma preta forra, bria e miservel". Entretanto, o
promotor pblico da 2.' Vara Crime da Comarca da Capital Lus Incio de Melo Barreto, decidiu que
o homicdio estava provado e que o depoimento de Romana deveria ser considerado, pois "as boas
qualidades, a moralidade mesma desta preta, mereceram-lhe a alforria gratuita de seu ex-senhor".
Apers. Sumrios, Jri, mao 38, processo 1128.
Walter Spalding. Pequena Histria de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967, p. 54. A casa
deste casal de africanos ficava muito prxima uma quadra talvez do aougue onde em 1863 e
1864 ocorreram brutais assassinatos, e que deram Rua do Arvoredo uma lgubre imagem, pois
suspeitava-se que os cadveres haviam sido transformados em lingia e consumidos pela populao
da capital. Sobre o caso do lingiceiro e a sua hccionalizao, ver: Cludio Pereira Elmir. A histria
devorada: no rastro dos crimes da Rua do Arvoredo. Porto Alegre: Escritos, 2004.
Carta registrada em cartrio no dia 26 de maio de 1865. Apers.- Registros Diversos n." 18, 1."
Tabelionato de Porto Alegre, folha 49v.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 313

sua senhora Maria Guedes de Meneses, mediante carta passada em 10 de janeiro


de 1862. Maria Guedes justificava a liberdade que dava a sua cativa africana por
ela "ter servido durante seu cativeiro com todo o zelo e dedicao" e tambm por
que Joana estava doente.^^
Ambos assumiram como seus os sobrenomes de seus ex-senhores e exem
plificam algumas trajetrias dos escravos em busca de reaver a liberdade perdida
com o trfico transatlntico. Como diz Schwartz, muitos senhores deviam permi
tir e incentivar que seus ex-escravos portassem seus sobrenomes numa demons
trao de poder paternal e clientelstico, mas alguns no apreciavam muito tal
costume com os escravos agindo com uma forma de direito adquirido ao soma
rem ao seu nome de batismo o sobrenome do ex-senhor, para assim compartilhar
um pouco do seu capital simblico, principalmente de um notvel.'^
Diversas pistas documentais apontam, porm, que os libertos manipulavam
vrios nomes (ou identidades). Provavelmente o sobrenome do senhor servia como
uma identidade pblica usado na interao desses indivduos negros com a socie
dade branca, ao passo que entre os seus parceiros usavam indicativos nominais
diferenciados, como referenciais tnicos, de procedncia, profissional, etc.
Quanto forma pela qual Marcelo e Joana romperam os vnculos com a
escravido a obteno de carta de alforria , devemos salientar que era uma
via bastante comum no Brasil colonial e imperial, j bastante mencionada pela
historiografia nacional.
Napesquisa que realizamos nos livros de cartrio de PortoAlegre, entre 1748
e 1888, encontramos 10.055 cartas de alforria. Desse total, 60,95 % (ou 6.128 car
tas) foram concedidas no perodo em que Joana e Marcelo se alforriaram, entre
1849 e 1888. No levantamento estatstico do cmputo geral, Marcelo insere-se
entre os 3.740 cativos (cerca de 37,20%) que conseguiram de volta sua liberdade
por meio do pagamento aos seus senhores.'^ Os percalos que tinham de passar
para acumular este capital so praticamente inimaginveis trabalhos em qual
quer perodo //vre, principalmente domingos e dias santos, mas certamente o que
mais contava e que ficar demonstrado mais adiante era o auxlio solidrio
de familiares, parentes, patrcios.
J Joana fazia parte dos 19,23 % (equivalente a 1.934) de escravos que con
seguiram alforria sem nus ou condio. Parte desses cativos eram libertados, pois
no apresentavam mais condies fsicas de continuar prestando servios aos seus

Carta registrada em cartrio em 19 de fevereiro de 1862. Apers.- Registros Diversos n." 4, 1."
Tabelionato de Porto Alegre, folha 115. A carta foi passada na Costa da Charqueada, 3."distrito de So
Jernimo.
" Stuart Schwartz. Segredos httenws. Engetdios e escravos na sociedade colonial. So Paulo: Com
panhia das Letras, 1988, p. 327. a idia do "voc sabe com quem est falando?", com o liberto usando
o nome (a "projeo social") de seu antigo senhor em momentos de necessria afirmao perante
outros de igual ou maior status socioeconmico. Roberto Da Matta. Voc sabe com quem est
falando? um ensaio sobre a distino entre indivduo e pessoa no Brasil. In: Roberto da Mata.
Cfjrflvi/s, malandros e heris. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1983.
" Cf. Paulo Roberto Staudt Moreira. Os cativos e os homens de bem. Experincias negras no espao
urbano. Porto Alegre 1858/1888. Porto Alegre: EST, 2003.
314 paulo roberto staudt moreira

senhores (pela avanada idade ou enfermidade). Seus bondosos senhores, ento,


livravam-se do nus de sustent-los e concediam alforria para que fossem morrer
na misria, sustentados precariamente pela caridade pblica. Mas no caso de Joana,
cuja carta de alforria traz explicitamente no texto uma referncia a sua doena^
supomos que sua senhora tenha calculado mal sua incapacidade em continuar
prestando servios. Chamamos a ateno que alm do sobrenome Guedes, de sua
ex-senhora, Joana incorporou tambm a alcunha "de Jesus", o que pode nos fazer
pensar que talvez isso tenha ocorrido em funo de uma promessa feita por ela.
Ser que, sentindo-se gravemente doente, Joana recorreu a um poderoso orix
catlico e ao ser atendida tratou de homenage-lo carregando-o como sobrenome
indicativo de agradecimento, f e submisso?'
Seguindo o exemplo de Manolo Florentino (2005), pensamos ser interes
sante separar apenas as cartas de alforria emitidas para escravos africanos. Assim,
dos 2.764 afncanos alforriados registrados nos cartrios de Porto Alegre, temos:

Tipo Africanos Total

N.o % N." %

Pagas 1.381 49,96 3.740 37,20


Condicionais 667 24,13 3,547 35,28
Sem nus ou condio 573 20,73 1.934 19,23
Nada consta 143 5,18 834 8,29
Total 2.764 100,00 10.055 100,00

Procurando densificar ainda mais a anlise e aproxim-la dos personagens


que nos interessam, devemos considerar que, dos africanos acima, 33,8% eram da
Costa Ocidental africana, destacando-se minas e nags, grupos prximos entre si.

Tipo frica Ocidental (mina) frica Ocidental (nag)

Homens Mulheres Homens Mulheres

N. % N. % N." % N. %

Pagas 117 65,73 123 63,73 174 79,09 134 77,90


Condicionais 20 11,24 25 12,96 22 10,00 11 6,40
Sem nus ou condio 30 16,85 37 19,17 17 7,73 20 11,64
Desconhecido 11 6,18 8 4,14 7 3,18 7 4,06
Subtotal 178 193 220 172
Total 371 392

Lembremos que Cristo relacionado no candombl figura de Oxal, a quem talvez Joana se
tenha dirigido em busca de sade (Norton Figueiredo Corra. Panorama das religies afro-brasileiras do
Rio Grande do Sul. In: Ari Pedro Oro. As religies afro-brasileiras do Rio Grande do Sul Porto Alegre:
UFRGS, 1994, p. 27). Infelizmente, em nossas pesquisas nos livros de pacientes internados na Santa Casa
de Misericrdia de Porto Alegre, de janeiro de 1858 a dezembro de 1864, Joana no foi encontrada.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 315

Como percebemos nesta tabela, a alforria gratuita obtida por Joana enqua
dra-se na porcentagem do grupo de mulheres minas ao qual pertencia. As breves
referncias que fazemos s naesafricanas que foram trazidas para o Brasil Meri
dional servem, em parte pelo menos, para dissipar o miasma que encobre a pre
sena negra no Rio Grande do Sul. A riqueza (e diversidade) cultural fica eviden
te na pluralidade das mesmo imprecisas classificaes. Minas e nags juntos
configuravam 763 alforrias ou 82% do total das libertaes de africanos da Costa
Ocidental.
Voltando para as alforrias concedidas a escravos africanos e pensando nos
procedentes da frica Central Atlntica, regio do angolano Marcelo, temos
39,76% do total. Subdividindo esta rea pelas regies apontadas pela historiadora
Mary Karasch,'' temos:

Tipos frica Central Atlntica frica Central Atlntica frica Central Atlntica
(Angola Norte) Angola Sul Congo Norte

Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres

N." % N. % N." % N. % N. % N. %

Pagas 30 38,46 54 47,37 66 36,46 88 39,64 96 43,44 71 48,30


Condicionais 29 37,18 29 25,44 85 46,97 82 36,94 58 26,25 25 17,00
Sem nus ou condio 17 21,80 21 18,42 22 12,16 41 18,47 59 26,70 44 29,94
Desconhecido 2 2,56 10 8,77 8 4,41 11 4,95 8 3,61 7 4,76
Subtotal 78 114 181 222 221 147

Total 192 403 368

Por uma dessas vicissitudes biogrficas de que nos fala Giovanni Levi, con
seguimos algumas informaes preciosas sobre Joana. Sua ex-senhora Maria
Guedes de Meneses passou por problemas judicirios, pois seu falecido marido
Bernardino Martins de Meneses, morto em 1838 , deixou dvidas oriundas
de uma sociedade que tinha com Francisco de Lemos Pinto.^
No sabemos desde quando a famlia Meneses possua estabelecimento
charqueador na Costa das Charqueadas, distrito de So Jernimo. Mas em 1826,
quando se processava o inventrio da falecida Simiana Joaquina de Meneses,
" Mary Karasch. A vida dos escravos tio Rio deJaneiro 1808/1850. So Paulo: Companhia das
Letras, 2000. Os africanos vindos da frica Central Atlntica compunham uma diversidade de grupos
culturais e tnicos, destacando-se numericamente os benguelas, seguidos pelos congos, angolas, ca-
bindas, rebolos, monjolos e caanjes.
Maria Guedes de Meneses faleceu em agosto de 1881. Pelo inventrio de Bernardino Martins
de Meneses, iniciado em 1844, sabemos que o casal tinha os seguintes filhos: Bernardino Martins de
Meneses, oito anos, senhorinha Guedes de Meneses, solteira, quinze anos, Maria Bernardinha
Guedes de Meneses, seis anos, Dionsio, doze anos, Deolinda, onze anos e Ubaldina, dez anos. Apers.
1." Cartrio do Cvel de Porto Alegre, 1881, inventrio 444, mao 20. Apers. Cartrio de rfos e Au
sentes, inventrio, auto 10, mao 1, 1844. A herana de Bernardino foi processada por outros credores:
ver a ao movida por Mariano los Coelho da Costa. Apers. Cartrio do Cvel, ao ordinria, auto
421, mao 15, 1847.
316 paulo roberto staudt moreira

alguns parentes se reuniram e formaram umasociedade, arrendando alguns bens


que estavam sendoavaliados. Asociedade foi formada por Bernardino Martins de
Meneses e Camila Martins de Meneses, filhos de Simiana, acompanhados de seus
respectivos cnjuges, Maria Guedesde Meneses e Francisco de Lemos Pinto.
Os dois casais tornaram-se ento scios em uma charqueada que comeou
com uma canoa grande, um terreno de campo de 250 braas de frente e uma
lgua de fundo, uma morada de casas de vivenda, charqueada e mangueira, trs
caldeiras, um terreno na ilha da Pacincia (fronteira propriedade) e oito escra
vos.-' Gradualmente o empreendimento aumentou com a compra de mais escra
vos e terras. Pelo que conseguimos perceber nos documentos pesquisados
(notadamente nos produzidos na contenda judiciria que os scios tiveram anos
depois na liquidao da sociedade), Bernardino de Meneses tratava da adminis
trao da charqueada, ao passo que Francisco Pinto residia em Porto Alegre. Em
uma correspondncia de 1836, Bernardino Meneses escreveu a Francisco Pinto
que no momento no tinha "encomenda de negros", o que nos leva a pensar que
talvez Porto Alegre fosse o ponto fornecedor de escravos para a charqueada.
Anos aps, na luta que travaram pelo ressarcimento do dinheiro investido
na charqueada, Francisco Pinto e sua mulher Camila alegaram que, ao contrarem
esta sociedade "[. . .] no tiveram tanto em vista a percepo de lucro ou ganho
prprio, como beneficiar, pela grande amizade que lhe consagravam a seu irmo
e cunhado, cujascircunstncias eram ento bem desfavorveis"." Apesar dessa apa
rente benevolncia com os parentes, o empreendimento charqueador foi logo au
mentado com a compra de escravos e terras, mostrando real interesse dos scios
em otimiz-lo.^' Logono mesmo ano da sociedade foram comprados dezoito cati
vos, sendo o plantei engrossado em 1827com a chegada de mais dezesseis escravos.
Includos nesta segundalevade trabalhadores escravizados vieramquatro moleques,
um deles o futuro amsio e marido de Joana, Marcelo, avaliado por 224 mil ris.
Durante a guerra civilfarroupilha os nimos esquentaram e os scios troca
ram cartas nervosas sobre os acontecimentos. Em correspondncia enviada da
charqueada, em 2 de maro de 1836, Bernardinode Meneses informava:

Sobre negcios polticos, ando com os ouvidos to agitados, que teria


enlouquecido se a natureza me no dotasse de alguma prudncia para
discernir novidadesem seu devidotempo. Sei que estou comprometido por
me haver demorado no Alegrete e no ter comparecidoaqui, ainda que aban
donasse o que tinha a fazer ali, tendo decorrido para mais de 4 meses de
sossego em que eu nenhuma falta fiz. Outro motivo to bem dizem que

Apers. Cartrio Cvel, So Jernimo, liquidao, mao 17, auto 689, 1852. Autor: Francisco
de Lemos Pinto e sua mulher; ru: Maria Guedes de Meneses e filhos.
" Apers. Cartrio Cvel, ordinrias. Triunfo, mao 15, auto 414, 1846. Autor: Francisco de
Lemos Pinto e sua mulher; r: Maria Guedes de Meneses e filhos.
Complementar charqueada existia a estncia Itacorubi, do tupi-guarani "rio das pedras
esparsas". Os scios tambm adquiriram oito lguas e meia de campo em Bela Unio, no Estado
Oriental, local que foi acampamento do caudilho Fructuoso Rivera.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 317

existe para esta indisposio, o qual realmente sem fundamento, e por isso
tenho respondido que assim como no influi a favor de um partido, to bem
no fiz oposio ao outro.

Bernardino faleceu em 1838 e, apesar da revoluo da provncia, os scios


Francisco Pinto e Camila tomaram conta de todos os bens sociais e os adminis
traram at 1843,"[. . .] promovendo,apesar do estado crtico da poca, os interes
sesda sociedade,expondo-se com riscode vida a todos os perigos da Campanha, e
conseguindo pagar os credores da mesma a enorme soma de quase 80 contos de
ris, afora os suprimentos". Sem aviso, em 7 de novembro de 1843, Maria Guedes
saiu de Porto Alegre com seu cunhado Antnio Rodrigues da Fonseca Arajo e
assumiu o controle da charqueada, avisando aos capatazes que s ela tinha
doravantea posse e mando daquela sociedade.
As informaes que temos sobre Marcelo e Joana, em sua vida de cativos na
charqueada de Maria Guedesde Meneses, provm das disputas entre os ex-scios
do estabelecimentoe de algunscredores dele. Numa dessas aes, que correu pelo
frum da vila do Triunfo,^"* a autoridade judicial mandou que se procedesse ao
arrolamento dos bensda sociedade, a fim de se verificar o pagamento da dvida, o
que foi feito em 27 de outubro de 1852, na Costa da Charqueada (3. distrito de
So Jernimo), distante cerca de 70 a 80quilmetros de PortoAlegre. Naestncia
denominada Itacorubi nome do tupi-guarani que significa rio das pedras espar
sas , onde era capataz Jernimo Ferreira de Oliveira, existiam os seguintes es
cravos pertencentes sociedade: Serino (campeiro), Francisco Crioulo (campeiro),
Antnio (campeiro) e Cosme (salgador e servidor na estncia). Existiamainda as
escravas Antnia (com dois filhos) e Joana (com uma filha crioula), que Maria
Guedes afirmava enfaticamente serem "de sua legtima propriedade, e no da so
ciedade". Na charqueada existiam vrios escravos da sociedade: carneadores: Jos
Gregrio, Uno, Florncio, Valente, Manuel dos Passos, Cipriano, Agostinho e An
tnio (tambm piloto); salgadores: Jac, Martinho e Marcos; carpinteiros: Ant
nio e Miguel; pedreiro: Joo; campeiro: Marcelo; graxeiros: Jos e Janurio
Congo; Cozinheiras: Vitria e Joaquinada Costa (tambm lavadeira).
Como percebemos, Joana j aparece com uma filha, provavelmente chama
da Laura. Pelos dados que revelaremos mais adiante sabemos que o parceiro de
Joana, j naquela ocasio, era o campeiro africano Marcelo. Entre os espaos da
charqueada e da estncia, e da cozinha ao campo, estes africanos conseguiram en
treter relaes e formar um ncleo familiar que durou dcadas e que fomentou a
quebra dos laos do cativeiro.
Sabemos pelos registros da sociedade de Meneses e Pinto, que o moleque
Marcelo comeou a trabalhar na charqueada em 1827, com aproximadamente
onze anos, e queJoana foi para a cozinha da estncia em 1834, com doze anos de
idade. A infncia escrava encerrava pelos sete/oito anos^^ e da em diante iniciava

Apers. Cartrio do Cvel, mao 9, auto 287, Triunfo (So Jernimo), 1852.
" Cf. Ktia de Queirs Mattoso. Ser escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1982.
318 paulo roberto staudt moreira

uma fase intermediria em que aos moleques e s negrinhas eram ensinados ofcios,
ao mesmo tempo que trabalhavam efetivamente em ocupaes de adultos.
O processo de desvanecimento da invisibilidade dos cativos no RS gra
dual; em um primeiro momento a historiografia aceitou a existncia de escravos,
mas em pequeno nmero. Depois, o uso das estatsticas provou que sempre exis
tiram amplos contingentes demogrficos de cativos, mas a historiografia defen
deu que existiam, mas estavam concentrados em pequenas propriedades e nas
cidades, e eram mais bem tratados do que no restante do pas. Finalmente, nos
ltimos anos, a historiografia regional tem aceitado o fato da abundante presena
de escravos no RS e do seu uso em praticamente todos os ofcios, incluindo os
rurais, como campeiros, pees, etc.
O caso de Joana e Marcelo mostra como mesmo em um "estabelecimento
penitencirio" como a charqueada, a famlia escrava esteve presente e que impos
svel compreender a sociedade escravista sem uma compreenso clara de seu papel.

[. . .] acreditamos que a famlia escrava era, ao mesmo tempo, fator de


manuteno e de limitao do domnio senhorial. Se, de um lado, ela "pa
cificou" os escravos dentro das senzalas, de outro ela cobrou respeito aos
seus laos de parentesco e amizade, trazendo, muitas vezes, transtornos e
prejuzos tanto para quem os comprava como para quem os vendia.^^

A proximidade de idade e de procedncia (eram ambos africanos) fomentou


afetividades e permitiu que naquele purgatrio (onde certamente os descendentes
de C pagavam os pecados bblicos de seus antepassados), Joana e Marcelo entre-
tivessem relaes e gerassem sua filha Laura, nos ltimos anos da dcada de 1830.
O fato de Marcelo ocupar-se como campeiro, talvez tenha facilitado o esta
belecimento de laos familiares. Como exercia um ofcio que exige mobilidade,
os laos familiares serviam, na tica senhorial,como uma segurana, ou pelo me
nos como uma varivel que dificultava os planosde fuga. Segundo Faria:
Pessoas com laos familiares so mais estveis e menos propensas a
mudanas. Homens sozinhos migravam mais do que acompanhados de fa
mlia. Tecendo um paralelo, presumo que escravos com famlia tivessem
mais problemas ou menos inteno de se deslocardo que outros, solteiros e
sem filhos."

No plantei escravo da charqueada apenas Marcelo aparece como campeiro,


compartilhando o ofcio com mais quatro cativos ocupados na estncia do Ita-

Cristiany Miranda Rocha. Histrias de famlias escravas: Campinas, sculo XIX. Campinas:
Unicamp, 2004, p. 51. Ver tambm: Maneio Florentino & Jos Roberto Ges. A paz das senzalas. Rio
de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997; Robert W. Slenes. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999.
Sheila de Castro Faria. A Colnia em movimento. Fortuna e famlia no cotidiano colonial. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 327.
famliasnegrase etnicidades em porto alegre 319

corubi (Joaquim pardo, Sirino, Francisco crioulo e Antnio). Assim, talvez as tare
fas de Marcelo integrassem idasseguidas at a sededa estncia, de onde conduzia
tropasde gadopara a charqueada, e arranjava tempo para seduzir (ou ser seduzido)
por sua parceira Joana.
Voltemos para os acirrados entreveros]\xn\cos do incio da dcada de 1850.
O que ocorre a seguir provocou um enorme atropelo senhora Maria Guedes de
Meneses, mas uma srie de fontes documentais preciosas para os historiadores.
Apesar da afirmao de Maria Guedes de que Joana era de sua propriedade par
ticular e no da sociedade de seu finado marido, Joana acabou sendo depositada
juntamente com outros escravos para o pagamento dos bens e enviada para Porto
Alegre.
Maria Guedes de Meneses apresentou documentos provando que em 1834
foram enviados para a charqueada, pelo scio Lemos Pinto, dezesseis escravos
pertencentes sociedade e mais duas escravas (Joana e Antnia), de propriedade
particular de seu finado marido. Assim, com aproximadamente doze anos, Joana
chegou nesta charqueada, no sabemos se vinda diretamente da frica ou de ou
tro ponto do territrio brasileiro, talvez do Rio de Janeiro.^ Segundo Maria
Guedes:

[. . .] a embargantesempre esteve de posse dessas duas escravas e em


pregadas sempre no servio domstico, e que nunca foram vistasno empre
go dos trabalhos da charqueada, sendo a que est penhorada aquela do servi
o da qual a Embargante se privou para a ter alugada nesta Cidade [Porto
Alegre?] para com o produto de seu aluguelpoder a Embargante de alguma
maneira acorrer as grandes necessidades que est sofrendo.^'

O certo que de 1852 at pelo menos 1860, Joana esteve depositada em


Porto Alegre, enquanto seu futuro era decidido pelas salas dos tribunais em inter
minveis pilhasde requerimentos, peties e despachos.^" Ter sido esta a primei
ra vezque Joana chegou a Porto Alegre e tomou contato com a comunidade negra
local? No sabemos, mas possivelmente Joana deve ter-se sentido vontade em
um centro urbano com forte presena de elementos africanos, de diversas proce
dncias (e naes),mas que agiam em processoconstante de reinveno da identi
dade tnica e de composio de auto-representaes que possibilitassem convi
vncia comume aes solidrias. Considerando os dadosdo censo de 1872, temos:

Junto com Joana e Antnia foi uma carta de Lemos Pinto, datada de 7/5/1834, que dizia:
"Pelo Vitorino vo duas negras de sua conta oitocentos mil ris".
" AHRS. Requerimento, Justia, 1860.
^ Em setembro de 1860, Maria Guedes pediu o fim do depsito de Joana ao juiz municipal de
Triunfo, informando que a ao civil movida por Cndido Alvim havia recebido sentena contrria,
confirmada por acrdo da relao de 26/9/1856 e 2/10/1857 e despacho deste juzo de 3/9/1857.
Segundo requerimento de Francisco de Lemos Pinto, Joana estava em 1860 depositada em Porto
Alegre, na casa de Joo Estcio de Lima Brando. Pinto pede quantias que a viva lhe deveria de sua
sociedade com Bernardino e diz que Maria Guedes teria conscientemente "esbanjado" bens para
prejudicar o suplicante. Requerimento, Justia, mao 97, 1860.
320 paulo roberto staudt moreira

Livres Escravos

Brancos Pardos Pretos Caboclos Pardos Pretos

Homens 11.951 2.987 2.339 954 1.418 2.663

Mulheres 10.879 3.032 2.396 1.140 1,512 2.447

35.678" 8.070"

A tabela acima mostra que a capital da provncia de So Pedro, em 1872,


tinha uma populao total de 43.748 almas, sendo 18,45% escravos e 81,55% li
vres. Dentre os habitantes /vres, 22.830 eram efetivamente descritos como brancos.
Assim, a cidade tinha uma populao no branca de 20.918 pessoas 47,82%
do total , sendo 18.824 negros (43,03%)."
Como vimos, Joana era mina e Marcelo angola, ou seja, eram africanos, po
rm no iguais. Suas auto-representaes e vises que tinham dos demais eram
resultado de um amplo processo de reinvenotnica comeado na frica e con
tinuado persistentemente em suas experincias diaspricas. As"clebres naes
africanas do cativeiro",transformadas pelo dinamismo do trfico e da vida no Novo
Mundo, produziram "outras naes e misturas identitrias'"^
Os minas, por exemplo, eram uma referncia fortaleza de SoJorge da Mina
construda pelos portugueses em 1481 , que segundo os relatos de pocapos
suiria dois fossos cavados na rocha, 400 canhes e poderia "armazenar" at 1.000
escravos, tendo sido tomada pelos holandeses em 1637." Como minas foram de
signados, a partir do sculo XVll,"[...] todos os que provinham da Costa do Ouro,
mas tambm os da Costa dos Escravos e do golfo de Benim, ou seja, indivduos
oriundos de povosmuitasvezes diferentes, masque tinham traos culturais, crenas
e um panteo religioso muito prximo"." Sobre os minas, comenta Soares:

Ao contrrio do que tem sidoafirmado pela historiografia, os chama


dos "mina" no so um grupo tnico e simo resultado da reorganizao de
diferentes grupostnicos procedentes da Costa da Mina que, a partir do s
culo XV, em funo da reorganizao de vrios grupos tnicos, passam a ser
" Neste total no esto computados 46 homens e 13 mulheres ausentes.
" Neste total no esto computados 53 homens e 38 mulheres ausentes.
" Fonte: Recenseamento geral da provncia de So Pedro do Rio Grande do Std 1872, IBGE.
Disponvel em: <http://ich.ufpel.edu.br/economia/conteudo.php?pagina=15>. Acesso em 16/9/2006.
Carlos Eugnio Lbano Soares; Flavio Gomes & Juliana Barreto Farias Gomes. No labirinto
das naes: africanos e Identidades no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003, pp. 8; 25; 28.
" Cf. Jos Capela. Escravatura, a empresa de saque, o abolicionismo (1810-1875). Porto: Afron-
tamento, 1974, p. 98. Antnio Carreira. Trfico portugus de escravos. Lisboa: Junta de Investigaes
Cientficas do Ultramar/Centro de Estudos de Antropologia Cultural, 1979, p. 116.
^ Portugal, Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses. Os
negros em Portugal sctdos XV-XIX. Lisboa: Mosteiro dos Jernimos, 1999, p. 73. Ver tambm: F.
Mrio Maestri. Quilombos e quilombolas em terras gatchas. Porto Alegre/Caxias do Sul: EST/UCS,
1979.
" Mariza de Carvalho Soares. Os Mina em Minas: trfico atlntico, redes de comrcio e
etnicidade. Anais do XX Simpsio da Associao Nacional de Histria Histria: Fronteiras. So Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP/Anpuh, 1999, v. II.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 321

assim designados.^^

Esses personagens que estamos pesquisando, portanto, eram portadores de


"identidades atlnticas africanas reinventadas". Em uma perspectiva "transtnica",
podemos considerar naes como angola, moambique, cabinda, benguela, congo,
mina, excessivamente genricas, mas"[. . .] algumas podem ter sido consideradas
como identidades de abrangncia mais ampla nos termos do guarda-chuva
tnico proposto por Joo Jos Reis sob as quais algumas comunidades africa
nas se moveram"^"
s 9 da manh de 12 de fevereiro de 1870, os africanos Joana Guedes de
Jesus e Marcelino Henrique da Silva casaram na Catedral Metropolitana de Porto
Alegre, oficializando perante a Igreja Catlica uma relao que j durava cerca de
trinta anos. A cerimnia foi celebrada pelo Padre Hildebrando de Freitas Pedroso
e teve como padrinhos Bernardo Ferreira Gomes e o vendeiro Antnio Andr
Henrique de Carvalho, vizinho dos noivos e que serviu de testemunha no proces
so de 1869.^'
Em agosto do mesmo ano, o angolano Marcelo Henrique da Silva viajou
at a Costadas Charqueadas, segundodistrito de So Jernimo, e entregou para a
senhora Maria Guedes de Meneses a substancial quantia de um conto e cem mil
ris. Essa quantia, resultado das economias de no sabemos quanto tempo, per
mitiu que Joana e Marcelo libertassem sua filha Laura do cativeiro e a trouxes
sem para Porto Alegre. Acarta foi confeccionada em So Jernimo, mas registra
da nolivro 19 de Registros Diversos do2. Tabelionato de Porto Alegre, pelo prprio
Marcelo, certamente como uma garantia que sua filha no seria molestada pela
polcia por suspeita de escrava fugida. Laura, uma das oito cativas com este nome
cuja alforria foi registrada em Porto Alegre (das 10.055 cartas pesquisadas) tinha
ento trinta anos de idade.
As pesquisas sobre Laura, a filha da mina Joana e do angola Marcelo conti
nuam. No sabemos quando morreu e se teve filhos, mas temos conhecimento
que depois de livre casou oficialmente duas vezes. As escolhas dos dois parceiros
com quem casou mostra que ela optou por indivduos prximos de seu grupo,
composto de africanos e seus descendentes imediatos.
As 16 horas do dia 2 de setembro de 1871, pouco mais de um ano
aps ter obtido a alforria, LauraGuedes de Jesus casou, na catedral da capi
talda provncia, comPedro Lus Bernardo, em uma cerimnia realizada pelo
mesmo Padre Hildebrando que casou Marcelo e Joana. Pedro era filho de
Bernardo Gomes, de nao africana.^"

Viva. Laura voltou a casar em 7 de abril de 1880. Apesar de muito se falar


" Soares; Gomes & Gomes, op. cit., pp. 28; 50.
AHCMPA. Livro de Casamentos da Catedral, n." 7, p. 135v.
Foram padrinhos deste casamento: Gaspar Batista de Carvalho e Clara Batista de Carvalho,
provavelmente membros da famlia de Antnio Andr Henrique de Carvalho, vizinho e aliado dos
pais da noiva. AHCMPA. Catedral, Casamentos, 1. 7, fl. 157.
322 paulo roberto staudt moreira

sobre os antagonismos e diferenciaes entre crioulos e africanos, ela escolheu


como parceiro um africano como seus pais. Seu nome era Emlio Joaquim de
Morais (filho de pais incgnitos, natural da Costa da frica, maior de cinqenta
anos de idade) e o casamento ocorreu na Catedral de Porto Alegre, sendo a ceri
mnia celebrada pelo Monsenhor Joo Pedro de Miranda e Sousa."*'
Assim como a maioria de seus compatriotas conforme pode ser verifica
do em tabela mostrada anteriormente o nag Emlio, quando tinha por volta
de quarenta e cinco anos de idade, livrou-se do cativeiro ressarcindo seu senhor
pela mercadoria perdida. Corria o ano de 1865, quando o cativo Emilio e seu se
nhor Joaquim Francisco de Morais, redigiram um "papel de obrigao" estipu
lando como se daria o pagamento pelo resgate da liberdade deste nag:

[. . .1 recebendo eu nesta data somente a quantia de 1:000$, e ficando


o mesmo escravo obrigado a dar a quantia de 800$ dentro do prazo de 1 ano
a contar desta data, cuja quantia fica vencendo desde agora o prmio de 1%
ao ms e que ser pago mensalmente, e no fim do prazo de 1 ano no pagar
a dita quantia de 800$ ficar a mesma vencendo o prmio de 2% ao ms."*^

Devemos ainda chamar a ateno que Laura, apesar de ser citada como filha
por Marcelo em seu testamento, ostentava como seu nome de liberta apenas o
sobrenome da me Joana. Seu nome de papel, ou seja, o que ela usava nos regis
tros, era Laura Guedes de Jesus. Seria respeito a uma tradio matrilinear africa
na ou indicativo de que ela no era filha biolgica de Marcelo? Talvez nunca ve
nhamos a saber, mas ao casar pela segunda vez Laura escolheu Emlio, um africano
da Costa da frica, mais prximo cultural ou etnicamente de sua me mina do
que de seu pai angola.

Ainda carecemos de estudos sobre as prticas de autonomeao dos


ex-escravos no Brasil. A escolha de seus nomes quando livres um indicativo
poderoso das estratgias que pensavam usar (quando, por exemplo, incor
poravam a sua denominaoo sobrenomedos ex-senhores) e da importn
cia das relaes familiares e de parentesco, quando homenageavam ante
passados, muitas vezes referenciados pelo primeiro nome."*^

O primeiro marido de Laura, por exemplo, chamava-se Pedro Lus Bernardo,


sendo seu pai o africano Bernardo Gomes.Supomos que Pedro tenha nascido es
cravoe ao alforriar-se assumiu comosobrenome o primeiro nomedo pai. J Laura,
Foram padrinhos: Joo Lus dos Santos Cardoso de Meneses e Joo Incio Mineiro.
AHCMPA. Catedral, n. 8, p. 62.
Apers. I. Tabelionato de Porto Alegre, 1. 18, fl. 60.
Rodrigo Weimer. O nome por trs do auto: identidades e prticas de nominao na serra rio-
grandense no ps-emancipao. III Simpsio Nacional de Histria Cultural. Florianpolis: UFSC, 2006;
Daisy Macedo de Barcellos et al. Comunidade negra de Morro Alto. Historicidade, identidade e
territorialidade. Porto Alegre: UFRGS, 2004; Ana Lugo Rios 8c Hebe Mattos. Memrias do cativeiro.
Famlia, trabalho e cidadania no ps-Abolio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 323

como dissemos, incorporou ao seu nome os sobrenomes da me e, quando casou


pela segunda vez, assinou como Laura Luza Guedes de Jesus, homenageando seu
defunto marido.
Joana Guedes de Jesus morreu em 25 de junho de 1887, com sessenta e
cinco anos de idade, de "leso orgnica do corao" e foi enterrada no dia seguin
te, conduzida "a mo" para o cemitrio.**^ J Marcelo sobreviveu dois anos au
sncia de sua companheira, falecendo s 21 horas de 27 de abril de 1889, com
setenta e trs anos de idade."*' Um ano antes de falecer, em 2 de maro de 1888,
Marcelo, provavelmente sentindo que sua vida estava no fim, pediu que lhe es
crevessem o testamento.

Sou natural da frica, cuja filiao desconheo. [. . .] Declaro que mi


nha filha Laura Guedes de Jesus minha herdeira necessria, com exceo da
tera dos meus bens. Instituo herdeiro da referida minha tera ao meu afhado
Marcelino, filho de meu compadre Raimundo Incio de Azevedo. [. . .] De
sejo quemeuenterro seja feito com decncia, pormpobremente, sendoapli
cados despesas do mesmo, alguns trastesque possuo e so conhecidos.**

O texto do testamento uma prova (ouindicativo poderoso) das relaes da


comunidade negra local. Marcelo indicou trs testamenteiros, sendo o primeiro seu
compadre Raimundo Incio de Azevedo, em segundo lugar Aureliano de Oliveira

" AHCMPA. Livro de bitos n." 18, n. de ordem 31869.


Marcelo faleceu de adinamia, que na linguagem mdica da poca designava "uma srie de
fenmenos, que muitas vezes sobrevm a outras doenas, tornando-se um acidente destas, uma grave
complicao. O estado adinmico, que sempre um sintoma grave e importuno, caracteriza-se por
um abatimento profundo da fisionomia, flacidez das fibras, dificuldade ou impossibilidade de mover-
se, perturbao das sensaes, afeces morais e das funes intelectuais, fraqueza das palpitaes do
corao e das artrias, hemorragias passivas por falta de energia". Theodoro J. H. Langaard. Dicion
rio de medicina domstica c popular, v. II. 2." ed. Rio de Janeiro: Laemmert & Cia., 1872, p. 37;
AHCMPA. Livro de bitos. Igreja do Rosrio, 1. 13, fl. 91v. Apers. Cartrio da Provedoria, mao 72,
Porto Alegre, auto 2279; Cartrio da Provedoria, mao 42, Porto Alegre, auto 707. Interessante notar
que a maioria dos africanos no sabia a idade, mas os que conseguiam se alforriar e viver em liber
dade, adquirindo bens e outras formas de qualificao (como o casamento na Igreja), iam gradual
mente inventando suas faixas etrias e complementando lacunas biogrficas.
A casa da Rua do Arvoredo era assim descrita no inventrio de Marcelo: casa de porta e
janela, medindo de frente ao sul 5,25 e fundos a meia quadra, a intestar com terrenos da herana do
Dr. Lus da Silva Flores, dividindo-se pelo nascente com casa de Santiago de Tal e pelo poente com
casa de Delfina de Alencastro, com sala, quatro quartos, varanda, ptio, cozinha e quintal, avaliada em
1:5005000 ris. Tinha como mveis: um sof com assento de palhinha (10$), duas cadeiras de braos
(8$), dois consolos (4$), onze cadeiras com assento de palhinha (22$), uma mesa redonda para sala
U$), uma cama para casal (4$), uma mesinha redonda (15500), um lavatrio (1$), um guarda roupa
ordinrio (6$), um guarda louas de cedro (20$), dois oratrios ordinrios (2$), uma pequena mesa
em mau estado (1$), um ba de folha (1$), um bau de couro (155), um relgio para parede (5$), uma
mesa para varanda (3$), uma cadeira de vime (1$), dois guarda-chapus (2$), quatro quadros di-versos
(6$), um espelho redondo (1$), dois almofades para sof (2$), uma caixa velha para doce (155). Em
23.05.1889 o testamenteiro Raimundo Incio de Azevedo pediu para fazer o inventrio a fim de "dar
partilha herdeira dos dois teros Laura Guedes de Meneses, casada com Emlio Morais". Raimundo
pediu em 11/7/1889 que a casa fosse leiloada para pagar custas e despesas. Como no apareceram
interessados em pagar o preo estipulado, Raimundo solicitou nova praa com abatimento de 20%,
ocorrendo o arremate por Manuela Henriquela Figueir de Morais, por 1:275$ ris em 28/8/1889.
324 paulo roberto staudt moreira

("meu bom amigo") e em terceiro Frutuoso Vicente Vaz ("meu particular amigo").
Marcelo era irmo da Irmandade do Rosrio, de onde provavelmente co
nhecia o sacristo da Igreja, Frutuoso Vicente Vaz, seu "particular amigo" Frutuoso,
que supomos fosse negro (mas no temos certeza), casou em I. de fevereiro de
1858 com Maria Joaquina da Conceio (natural de Porto Alegre, filha de Ana
Maria da Conceio, s 18 horas na Igreja do Rosrio)."'^ Vaz era sacristo da igre
ja que congregava boa parte da populao negra de Porto Alegre."*
O congo Raimundo Incio de Azevedo, quando tinha cerca de quarenta e
quatro anos, em 13 de dezembro de 1858, conseguiu que sua senhora Teresa
Antnia de Azevedo lhe concedesse carta de alforria em troca de um conto e tre
zentos mil ris."*' To logo liberto, Raimundo tratou de agenciar recursos acumu
lando peclio para libertar sua famlia ainda em cativeiro: em 1, de novembro
do ano prximo (1859) ele entregou para sua ex-senhora uma quantia suficiente
para que ela comprasse a crioula Maria Rosa, e assim libertasse sua filha Maria
Bernardina, de quinze anos." As afetividades e identidades de Joana, Marcelo e
Raimundo foram consagradas mediante o estabelecimento de um parentesco sim
blico. Em 6 de outubro de 1877, Joana e Marcelo batizaram o ingnuo Marcelino
(nascido em 8 de setembro daquele ano), filho da crioula Maria (escrava de
Alexandrina Bernardes da Silva).' O nome de Raimundo no aparece no registro
desse batismo, feito pelo Reverendo Padre Leonardo Filipe Fortunato, provavel
mente porque sua relao com a me do inocente era meramente consensual. De
qualquer maneira, esse apadrinhamento demarcou e fortaleceu simbolicamente
os laos entre estes africanos, ficando o padrinho homenageado no nome do bati
zando. Assim, o batismo estabelece parentescos fictcios e mapeia aliados,^
Como dissemos quando tratamos da relao consensual entretida pelos es-

AHCMPA. Livro 2 de casamentos, Igreja do Rosrio, fl. 76. Testemunhas: Antnio Jos de
Azevedo e Joo Manuel Pereira Maciel. No registro de votantes da Parquia do Rosrio, de 1880,
constava com o nmero 605, quarenta e oito anos, casado, alfabetizado, filho de Antnio Fernandes
Vieira, morador na Rua Vigrio Jos Incio, renda de 350$. AHRS. EL 01.
Sobre a Irmandade do Rosrio em Porto Alegre, ver: Mara Regina do Nascimento. Ir-
mandades leigas em Porto Alegre: Prticas funerrias e experincia urbana (sculos XVIII-XIX). Doutora
do em Histria. Porto Alegre: LFniversidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006.
Provavelmente o pagamento foi feito em prestaes, pois a carta s foi registrada em 2/3/1864.
Apers. 1." Tabelionato de POA, Registros Diversos, 1. 17, fl. 206. Teresa Antnia de Azevedo, ex-
senhora de Raimundo, morreu em 17/10/1884 sem testamento, deixando os seguintes filhos: Lus
Antnio de Azevedo (inventariante por ser o "nico irmo homem"), Maria Jos de Azevedo e Teresa
Antnia de Azevedo Silveira. Teresa tinha considervel patrimnio, assim avaliado: bens de raiz
(101:000$000), aplices {46:000$000), aes (8:800$000), animais (820$000) e mveis e utenslios
(271$000). Apers. 1." Cartrio do Civil e Crime, mao 21, auto 481.
^ Apers. I."Tabelionato de POA, Registros diversos, 1. 27, fl. 5Iv. Carta registrada em 4/11/1859.
A escrava Maria, me de Marcelino, obteve liberdade em 21 de fevereiro de 1883, aps pagar
seiscentos mil ris a sua senhora, talvez auxiliada por seu amsio liberto. AHCMPA. Livro de Batismo de
Libertos, Igreja Madre de Deus, fl. 25. Apers. I. Tabelionato de POA, Registros diversos, 1. 16, fl. 117v.
" Idntico caso ocorreu em 18 de agosto de 1873, quando o casal Laura Luza Guedes de Jesus
e Pedro Lus Bernardo batizaram uma ingnua de seis meses, filha da escrava parda Clarinda
(propriedade de Brisida Calderon Vieira), a qual foi nomeada de Laura. AHCMPA. Igreja das Dores,
Livro de Batismo de Livres, n." 3.
famlias negras e etnicidades em porto alegre 325

cravos africanos Joana e Marcelo na charqueada de Maria Guedes de Meneses,


no podemosentender a sociedade escravista sem reservar um espaofundamen
tal para a questo dos laos familiares e de parentesco. Como transparece com
clareza nessa rede de parentesco que estamos apontando, foi essencial para a so
brevivncia de escravos e libertos, para a manuteno de suas identidades tnicas
(reinventadas) e, tambm, para a potencializao de variadas formas de resistn
cia (incluindo a alforria) o uso estratgico dos apadrinhamentos e dos casamen
tos (sejam consensuais ou oficializados pela Igreja)."
Na ausncia de uma rede familiar consangnea, a identificao tnica
fundamentalmente a reinventada ganha feies de uma grande famlia simb
lica, podendo mesmo ser um dos principais canais de solidariedade e organizao
social dos africanos que aqui viviam."
Afastemo-nos momentaneamente do casal de africanos Joana e Marcelo e
vejamos, rapidamente, outro caso ilustrativo deste parentesco tnico. No invent
rio do preto mina Narciso Porto, falecido em 1884, foi avaliada uma casa de duas
janelas na Rua Lima e Silva, pelo preo de 1:500$000 ris, mais os mveis que
estavam no interior dela, por vinte e nove mil ris, sendo nomeada como inven-
tariante a sua viva Maria Benvinda Vieira." Nas palavras do procurador Soter
Caio da Silva, nenhum deles tinha famlia na cidade ou fora dela, "por serem afri
canos", mas logo em seguida escreve que a viva:

[. . . ] desejando conservar e continuar a viver na casinha adquirida


por constante trabalho e esforos seu e de seu marido, conseguiu de seus
parentes o emprstimo de quantia suficiente para pagamento da taxa Fa
zenda e mais despesas do inventrio e por isso requer que desam os autos
ao Contador para se fazer o clculo necessrio e haver a devoluo da he
rana, depois de tudo liquidado (grifo nosso).

Osparentes de Narciso e Maria Benvinda, africanos que no haviam deixa


do ascendentes ou descendentes, provavelmente pertenciam a um grupo de indi
vduos com os quais partilhavam experincias de vida comuns, como a captura
na frica, o transporte transatlntico e a vidaem cativeiro."
O caso Joana Guedes de Jesus parece assim ilustrar o que podemos chamar
de "excepcional normal". Ela torna-se excepcional pela quantidade de pistas do
cumentais que falam a seu respeito e que permitem que ela surja para ns de
maneira quase palpvel, materializando/corporificando trajetrias que caracteri-

" Sobre apadrinhamento e compadrio, ver: Schvvarlz, 1988; Schwartz. Abrindo a roda da
famlia: Compadrio e escravido em Curitiba e na Bahia. In: Schwartz. Escravos, roceiros e rebeldes.
Bauru/SP: Edusc, 2001.
^ Cf. Carlos Eugnio Lbano Soares; Flavio Gomes; Juliana Barreto Farias Gomes, op. cit., p.
227.
" Apers. 2." Cartrio do Cvel, POA, mao 16, n." 508, 1884.
^ O mina Narciso alforriou-se atravs de carta gratuita emitida e registrada em 8 de julho de
1869, pelo senhor Porto Irmos 8c Companhia. Apers. 1." Tabelionato de POA, 1. 1, fl. 20.
326 paulo roberto staudt moreira

zaram indivduos como ela. Nossa sensibilidade atiada pela possibilidade de


aproximao com uma personagem to rica como ela, mas a complexidade de
sua excepcionalidade reside justamente nas luzes que ela projeta sobre as vidas
de outros de seus pares, parentes ou patrcios na maioria africanos. Assim, Joana
excepcional, pois nos leva a compreender (e visualizar) um pouco melhor a
normalidade da situao social de seus contemporneos.
IV/Imagens da Escrita
"SOB A COPA DAS RVORES" IMAGENS DE SENSIBILIDADE NA
CORRESPONDNCIA MODERNISTA

Mnica Pimenta Velloso


Fundao Casa de Rui Barbosa

"Ns temos que dar ao Brasil o que ele no tem e que por isso at agora no
viveu, tts temos que dar uma almaao Brasil e para isso todo o sacrifcio grandio
so e sublime". Esse apelo, feito em tom apaixonado, endereado a Carlos Dru-
mond de Andrade, em carta escrita por Mrio de Andrade, a 10 de novembro de
1924. Ficava claroo anseio de transmitirao amigo pensamentosque, embargados
pelaemoo, buscavam, sobretudo, motiv-lo ao.
Cartaspodem funcionarcomo verdadeira rede de interaessociais, desenca
deando trocas de experincias, adeses e sociabilidades. A correspondncia moder
nista brasileira, ao longo da dcada de 1920, se inscreve nesse espao de recriao
e reconfigurao da realidade. Mrio de Andrade dizia que sofria de "gigantismo
epistolar" e, certamente, por isso, conseguiuorganizar uma ampla rede social, for-
talecendo-a pelas afinidades eletivas. Dizia que, nas cartas, falava com os amigos
como se estivesse de"pijamas e chinelos".' nesse espao da intimidade, em tom
de conversa, que se vivenciam afetos, se constrem e desconstroem imagens de si
e do outro e, tambm, se formulam idias que tiveram papel fundamental na ar
ticulao do pensamento modernista brasileiro.^
Para o historiador das sensibilidades interessa perceber como os indivduos
expressaram, diante dos acontecimentos, as mais diversas sensaes e emoes.
Por outro lado, tambm, importa acompanhar como tais sentimentos e emoes
foram por eles interpretados, elaborados, compartilhados e transformados em

' Inspirando-se em Manuel Bandeira, Mrio refora essa imagem da amizade em carta
endereada a Carlos Drumond de Andrade. Carlos Drumond de Andrade. Lio cio amigo, cartas de
Mrio de Andrade a Carlos Drumond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 60.
2 O tema da amizade, articulado ao debate modernista da dcada de 1920 foi objeto de discus
so no artigo: Razo e sensibilidade, o tema da amizade na escrita modernista brasileira Nuevo Mundo
Mundos nuevos, n." 6, 2006, mis en ligne le 16 mars 2006. Disponvel em: http://\vww.nuevomundo.
revues.org/documentl919.html. 329
330 mnica pimenta velloso

estratgias de ao, Essa maneirade pensara histriacomouma espcie de"cmera


subjetiva" que busca captar os cdigos sensveis do passado, possibilita trazer ao
tempo presente outras representaes, que, geralmente, no se fizeram visveis.
Representaes e imaginrios resultam do turbilho incessante da vida social. Fa
zem parte dessa dinmica ajudandoa constitu-la e, sobretudo, a modific-la.^
O mesmo pode dizer-se da emoo, entendendo-a como componente social
ativo, capaz de aglutinar energias participativas em torno de idias e de projetos
coletivos. A imaginao criadora mostra-se de fundamental importncia nessa di
nmica, articulando a esfera do sonho e do desejo da ao e realizao.
As cartas de Mrio de Andrade evidenciam esses vnculos entre as emoes
e a vida social. Nelas Mrio, se sente vontade para expressar sentimentos e auto-
representaes, os mais distintos: ora o mestre, ora o discpulo; crente e ctico,
participa da "farra vital" e mergulha nas razes do silncio e da concentrao inte
rior. Ao discutir com os amigos as bases de um projeto esttico para a nacionali
dade brasileira, Mrio elege a escrita como forma de comunicao. Importa en
trar em sintonia com o seu tempo, colocando-se, simultaneamente, como
observador e arteso.
Essas questes nos ajudam a pensar os acontecimentos de uma outra ma
neira, percebendo-os na "espessura da temporalidade de um fato".'' Expectativas,
ansiedades, sonhos, desejos, enfim, emoes,as mais diversas, vo integrar a cons
tituio de um acontecimento. por meio da emoo potica, veiculada pelas
cartas de Mrio, que podemos reconstituir uma outra memria do modernismo,
no interior da qual vemos emergir representaes que entrecruzam imagens de
razes e sensibilidades, fazendo confluir as identidades pessoais e coletivas.
Vamos trabalhar a histria das representaes na sua traduo potica, bus
cando entender como os fenmenos culturais expressam as sensibilidades e
vivnciascotidianas. Uma histria cultural da potica modernista, implica pensar
as imagens na sua especificidade e historicidade. No contexto, entre 1923-1926, o
debate intelectual modernista est centrado em uma questo: a necessidade de
definir um lugar e uma identidade para o Brasil.
Resulta da o apelo de criar-se uma "alma para o Brasil". Nas cartas de M
rio, as imagens textuais so dispostas de forma que despertem emoes estticas e
tocar os sentidos, sensibilizando, poeticamente, o grupo. O intuito compartilhar
a experincia de uma construo conjunta.
Mrio tinha percepo do poder onrico das palavras, apresentando-se como
uma espcie de arteso-alquimista na sua fabricao: " Tenho muito gosto em
mexer bem o sentido das palavras pra que elas fiquem bem clarinhas".^

' Uma sntese sobre os fundamentos da Histria das sensibilidades pode ser encontrada em
Frederique Langue. O sussurro do tempo; ensaios sobre uma histria cruzada das sensibilidades
Brasil-Frana. In: Marina Haizenreder Ertzogue & Temis Gomes Parente. Histria e sensibilidade.
Braslia: Paralelo 15, 2006.
*Cf. Arlette Farge. Qu'est-ce qu*un venement? Terrain, Paris, n." 38, 3/2002 (Revue d'Ethonologie
de TEurope).
^Carta a Carlos Drumond de Andrade (Carlos Drumond de Andrade. Lio do amigo, cartas de
Mrio de Andrade a Carlos Drumond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 22).
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 331

esse "sonhador de palavras"^ que, escavando-as e burilando-as, de forma


incansvel, produz imagens tradutoras dos novos sentidos e significados da
brasilidade.
A proposta deste artigo explorar uma possibilidade de leitura, partindo de
uma representao potica, recorrente nas cartas de Mrio: a simbologia da rvore.
Vou mostrar como ela vai ser acessada, organizada e recriada, ao longo da
sua escrita. Por meio dessa simbologia, vemos esboar idias da brasilidade, que
vo fundamentar as bases conceituais do projeto esttico de Mrio de Andrade.
Vamos destacar como principais interlocutores: Carlos Drumond de Andrade e
Tarsila do Amaral, recorrendo tambm a algumas passagens endereadas a quem
consideraria o seu melhor amigo: Manuel Bandeira. Nas suas cartas, Mrio vai
partilhar idias de fundamental importncia na compreenso da brasilidade.
inspirando-se nesse imaginrio da rvore que se iluminam, mutuamen
te, as representaes sobre a amizade e a brasilidade.

Na moldura verde da mata

No conjunto do epistolrio de Mrio, referente esse perodo, destacam-se


duas cartas que gostaria de comentar: a primeira endereada a Manuel Bandeira,
a outra a Tarsila do Amaral. Ambas tm algo em comum: foram escritas no dia
15 de novembro de 1923, comeando com um mote:" Viva a Repblica".
Mas h um detalhe que merece ser comentado. Enquanto a frase, endereada
a Tarsila, finaliza com um ponto de exclamao ("Viva a Repblica!"), a
endereada a Manuel Bandeira se faz acompanhar por uma inquietante interro
gao ("Viva a Repblica?"). Essa troca do sinal ortogrfico no aleatria. Ela
est traduzindo ritmos diferentes do texto, em funo do destinatrio, conforme
nos lembra Chartier.^
De fato, Mrio entendia a pontuao como expresso rtmica, psicolgica.
Confessa que considerava uma "besteira" a pontuao gramatical sinttica anal
tica, mas, destacava, o quanto era significativa para expressar os sentimentos. A
emoo, portanto, a chave de compreenso na escrita dessas cartas.
Na carta a Tarsila, Mrio se empenha em ser convincente: quer persuadi-la
a deixar Paris pelo Brasil, aderindo ao projeto de uma esttica nacionalista. em
tom apaixonado que faz a exortao:"Viva a Repblica!"
Mas o tom outro ao dirigir-se a Bandeira. Na carta, no h nenhuma in
teno de persuadir, nem tampouco de convoc-lo para alguma causa. Ao contr
rio,Mriofaz questo de dizer:"Prego agora a filosofia do dar de ombros".
Em seguida, lhe envia um versinho que resumiria o seu atual estado de es
prito: o cinismo filosfico. Para Tarsila, um chamamento entusiasta que beira

^ A expresso utilizada por Gaston Bachelard no intuito de destacar a potencialidade potica


das palavras, o que significa perceb-las alm da sistemtica classificadora dos dicionrios (Gaston
Bachelard. A potica do devaneio. So Paulo: Martins Fontes, 1988).
' Roger Chartier. A beira da falsia, a Histria entre certezas e inquietude. Porto Alegre: UFRGS,
2002, p. 263.
" Carta a Drumond, 16/10/1925. In: Lio do antigo, cit., p. 60.
332 mnica pimenta velloso

militncia pela brasilidade, para Manuel, o ceticismo. Ao melhor amigo, Mrio


poderia, de fato, dizer o que pensava? Ou seja, expressar assuas dvidas: estara
mos, de fato, entrando, numa nova faseda histria do Brasil?
Mas no essa, exatamente, a questo. Saber as reais intenes que o leva
ram a trocar a exclamao pela interrogao, me parece complicado. Vamos nos
deter em um dado: a data, 15 de novembro, aniversrio da Repblica brasileira.
Momento oportuno, marco simblico, para se proceder s reinvenes do Brasil
ou, ao menos, para indagar, implicitamente, se isso valia a pena. Na carta a Ban
deira, Mrio no prope, naquele momento, nenhuma idia nova.
J para Tarsila,Mrio dirige um apelo (extensivo a Oswald) para que aban
done Paris e as teorias vanguardistas francesas e venha para o Brasil, ajudando-o e
a construir as bases reflexivas de uma arte brasileira:

Tarsila, Tarsila! Volta para dentro de ti mesma [. . .] abandona Paris!


Tarsila, Tarsila! Vem para a mata virgem, onde no h arte negra, onde no
h tambm arroios gentis. H MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou
matavirgista. Disso que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridssima
Tarsila precisam. Se vocs tiverem coragem venham para c, aceitem meu
desafio.
E como ser lindo ver na moldura verde da mata, a figura linda, re-
nascente de Tarsila Amaral.'

A imagem da brasilidade incorporada por Tarsila, que aparece emoldura


da pela verde mata. Trata-se de um chamamento de retorno "terra-me'V em
torno do qual comea a ser construda toda uma simbologia que, inspirada no
ciclo vegetal, produziria os necessrios vnculos de pertencimento.nica manei
ra, no entender de Mrio, de evitar o "despaisamento". A idia de ser (existencial-
mente) passa pelo reconhecimento da paisagem em torno, pela percepo sens
vel das razes. Paisagens no so, apenas, cenrios externos mas "estados de alma"
que se revelam com os olham do esprito e no com os do corpo. Tarsila e Carlos
ainda no so, no tiveram a coragem suficiente pra serem, argumenta Mrio."
Isso porque, Tarsila buscaria inspirao na pintura cubista de Lhote e Gris ao pas
so que Carlos se apegaria s idias de Anatole France. No so essas as referncias
que Mrio est apontando na elaborao do seu quadro da brasilidade, elas so
consideradas mimticas. Reiventar o pas, significa, tambm, reinventar-se. No
seria esse o procedimento de Carlos e de Tarsila, ao buscaram referncia em auto
res franceses. Mrio, freqentemente, advertiria os amigos nessesentido.
As cartas incentivam uma reinveno constante de si, possibilitando uma
verdadeira "aventura ontolgica" Cartas no so apenas vestgios do passado,

' Carta de 15 de novembro de 1923. In: Marcos Antonio de Moraes (org.). A correspondncia
Mrio de Andrade e Manuel Bandeira. So Paulo: Edusp, 2001, p. 78.
A imagem sugerida por Aracy Amaral na cronologia sobre a trajetria de Tarsila Amaral
" Essas idias que relacionam a busca ontolgica com a busca da nacionalidade esto expressas
na carta endereada a Carlos Drumond de Andrade. Lio do amigo, cit.
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 333

memorandum aguardar relmpagos devida e fragmentos deidias mas, antes, trao


vivo tendo valor de instruo dado a si mesmo.
nessa perspectiva queestou pensando a correspondncia modernista, des-
tacando-a como locus de constituio do imaginrio, despertandoenergias criati
vas e participativas em torno da idia de uma arte brasileira. pelas cartas que
Mrio vai construindo um registro imagtico da brasilidade, compartilhando-o
com os amigos. Esse aspecto da partilha importante. O matavirgismo de Mrio,
de alguma forma, influencia as concepes artsticas de Tarsila, levando-a a
ressignificar as influncias europias. Em entrevista ao Correio da Manh, em 25
de dezembro de 1923, ela vai enfatizar a importncia de pesquisar as razes da
cultura brasileira, transpondo-a a pesquisa para a sua pintura.
A rvore surge como uma imagem-guia na escrita de Mrio em carta, data
da de 15de novembro de 1923. A partir da, iria abrindo-se a mltiplos significa
dos. Pelo menos, durante uns dez anos, o autor iria inspirar-se nessa metfora,
fortemente relacionada com o messianismo. Bachelard relaciona o processo de
criao com essa imagem ao dizer que "a imaginao uma rvore".
Uma das idias recorrentes dessa escrita epistolar a de que o Brasil neces
sita de uma base fsica para o seu esprito. Pas de se encantar e de vibrar, intensa
mente, com as novidades, o Brasil carece de alicerces, de fundamentos que o po
nham em comunho com a terra. Essa imagem de uma nacionalidade inslita,
configurada de maneira quase evanescente, comparece, com certa assiduidade, na
produo intelectual ao longo da dcada de 1920.
A partir da conhecida dicotomia de Alberto Torres que opunha um Brasil
real a um legal, o primeiro sedento de razes e o outro voltado para o cosmopoli-
tismo, esse imaginrio ganha fora crescente.
No imaginrio humorstico, particularmente, presente a imagem do Bra
sil como nacionalidade inconclusa, frgil, contemplativa e voltil, resultando em
uma "histria encrencada". Essa idia aparece, em vrias caricaturas, narrativas
particas e piadas. Conta-se que o professor Joo Ribeiro, sabatinando um aluno,
indagara:

Depois que Cabralps o p no Brasil, que fez ele em seguida?


Ao que o aluno responde: Depois que ps um p, ps o outro que
estava no ar. .

Refletindo sobre as bases do imaginrio no pensamento de Mrio de


Andrade, Carlos Sandroni'^ observa a recorrncia de um eixo de metforas,
composto de pares de opostos. Na dcada de 1930, em Txi e Crnicas de Dirio
Nacional essa oposio se configuraria a partir do imaginrio ar (Brasil, relacio
nado Frana) e terra ( Alemanha). Para Mrio, o Brasil teria forte tendncia
Cf. Brigitte Diaz. L'pistolaire de Ia pensce nmade. Paris: Presses Universitaire de France, 2002.
" D. Quixote, Rio de Janeiro, 18/2/1925.
Carlos Sandroni. Mrio de Andrade contra Macunatna. Rio de Janeiro/So Paulo: Vrtice/
luperj, 1988.
334 mnica pimenta valioso

para absorver o imaginrio da cultura francesa, em virtude da sua seduo pelo


cosmopolitismo e por uma quase volpia pelas coisas novidadeiras. Por isso, o
autor fer restries influncia dos autores franceses na arte de Tarsila e
Drumond.
A meu ver, tal imaginrio, inspirado nas foras elementaresda natureza, co
mearia a ser construdo ao longo das cartas trocadas com Carlos Drumond de
Andrade e Tarsila do Amaral, bem no incio dos anos 1920. em tom de conver
sa, e, aqui, estou me referindo ao aspecto heurstico das conversas,'^ que Mrio
alerta Tarsila para a necessidade de fazer uma arte brasileira. Recomenda que ob
serve, de maneira cautelosa, as categorias a reter da pintura cubista. Equilbrio,
construo e sobriedade.'^ J temos, esboados, a, alguns traos constitutivos do
imaginrio terra.
por meio da imagem da rvore que Mrio expressa aos amigos a urgncia
da construo e da criao de razes, capazes de garantir a sustentao da nacio
nalidade. Para que essa apresentasse a sua contribuio no cenrio das civiliza
es, seria preciso a elaborao de um projeto a ser desenvolvido pelos intelec
tuais e artistas.
Investir no fortalecimento dos laos afetivo intelectuais, discutir idias e ex
por sentimentosseria uma forma de despertar a energia participativa do grupo.
nesses termos que Mrio interpela Carlos Drumond:

preciso que vocs [mineiros] se ajuntem a ns ou com esse delrio


religioso que meu, do Oswaldo, de Tarsila ou com a clara serenidade e
deliciosa flexibilidade do pessoal do Rio, Graa, Ronald.'^

para esse mergulho no universo das sensaes, sejam elas serenas ou


arrebatadoras, que,Mrio, convida, insistentemente, osamigos participao.
" Verticallzar o Brasil"

Ao propor "dar uma alma ao Brasil", Mrio enfatiza o aspecto sublime de


que se reveste essa tarefa. Elege, a criatividade como valor mximo. Mais impor
tante do que a crtica (exerccio exclusivo dos intelectuais), a capacidade criativa
que distinguir o Brasil no conjunto civilizacional: " o nico meio de. . .
verticalizar" o Brasil, confidencia a Drumond.'
Essa idia importante: a verticalidade constitui-se em um dos elementos
centrais do imaginrio queseconstri acerca da rvore. H imaginrios queatra-

" Silviano Santiago inclui o ato de sentir, observar e conversar ao domnio da hermenutica.
(Cf. Silviano Santiago. Suas cartas, nossas cartas. In: Frota Llia Coelho Frota (org.). Carlos & Mrio.
Rio de Janeiro: Bem te vi, 2002).
" Carta de 16/6/1923. In: Aracy Amaral (org.). Correspondncia Mrio de Andrade e Tarsila do
Amaral. So Paulo: Edusp/IEB, 2001, p. 75.
Carta de 10/11/1924. In: Lio do amigo, cit., p. 23.
'* Carta sem data. In: Ibidem, p. 43.
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 335

vessam os tempos, expressando formas de pensar e de representar o mundo. As


imagens arquetpicas inscrevem-se nesse caso.
no campo daantropologia que a histria cultural pode encontrar algumas
idias interessantes para trabalharcom o imaginrio, com basena perspectiva dos
arqutipos, conforme nos sugere Sandra Pesavento." A reflexo de Gilbert Durand,
Les StructuresAnthropologiques de Vlmaginaire, destaca-se, nesse sentido, como con
tribuio particularmente rica. Vou retom-la, mais adiante, ao discutir a cons
truo do imaginrio marioandradino.
Para a histria cultural, o conceito de arqutipo, coloca de imediato o enfren-
tamento de uma questo delicada: Como o historiador, que elege como um de
seus pressupostos centrais o estudo das historicidades, poderia lidar com a ques
to da permanncia dos arqutipos? Permanncia e mudana no seriam termos
incompatveis?
Essa precisamente uma das questes a que se prope discutir Lucien Boia.^
Na sua reflexo sobre o imaginrio, destaca a tenso entre a mudana e a perma
nncia. Entende que os arqutipos so permanncias mentais que vo, no entanto,
sendo reelaboradas e ressignificadas ao longo da histria. Em funo desse pro
cesso, no existiria propriamente contradio entre os termos, desde que consi
derado o elemento mudana.
Em outras palavras, fundamental para o historiador focar a ateno na ca
pacidade dos indivduos de trabalharem essas imagens, trazendo-as para o pre
sente, inscrevendo-as no quadro das questes que o desafiam na vida cotidiana.
Para o historiador, em suma, interessa ver como as imagens do inconsciente (ar
qutipos) adquirem visibilidade e sentido, quando transpostas para a esfera das
experincias e do vivido. Esse um ponto delicado da questo.
Condensando elementos sensveis da realidade brasileira, no incio da dcada
de 1920, a representao imagtica da rvore, possibilita reconstituir uma me
mria ainda no explorada do modernismo. Esse um dos grandes desafios
experimentados pelo historiador das sensibilidades: buscar entender os sistemas
de representao e de apreciao de uma poca, evitando o anacronismo. Re
conhecer a multiplicidade de razes e sensibilidades presentes no passado, reco
nhecer a interferncia de cdigos estticos que constrem percepes diferencia
das ante os mesmos fenmenos sociais. Tais pressupostos tornam problemtica,
por exemplo, uma afirmao, to corriqueira no discurso do historiador: "Em tal
poca. .
A reflexo sobre o modernismo brasileiro requer uma compreenso pro
funda da alteridade: preciso pensar no s em "um outro tempo", mas tambm
"um outro no tempo".^' H que se fazer um deslocamento temporal, no s no

" Cf. Sandra Jatahy Pesavento. Histria e histria cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2003.
Cf. Lucien Boia. Por une histoire u imaginaire. Paris: Belles Lettres, 1998.
Essas idias esto discutidas em Alain Corbain. Histoiren ciu sensible; entretiens avec Gilles
Heur. Paris: La Dcouverte, 2000, pp. 68-71 e em Sandra Jatahy Pesavento. Palavras para crer,
imaginrios de sentido que falam do passado. Nuevo Mundo Mundos Niievos, n." 6, ano 2006.
Disponvel em: <http://vvww.nuevomundo.revues.org/document99html>).
336 mnica pimenta velloso

sentido linear, mas buscando atingir, tambm, a profundidade, referente ao uni


verso das subjetividades.
Isso implica tentar perceber a originalidade do pensamento de Mrio de
Andrade, a sua capacidade de criar imagens poticas, compartilhando-as com os
amigos por meio das cartas. A apreciao individual deve ser pensada na sua arti
culao com a apreciao coletiva.^^
Esse um dos desafios que mobiliza a escrita desse ensaio. Mas retornemos
a uma questo especfica: a proposta urgente de Mrio para "verticalizaro Brasil",
entendendo ser essa a nica soluo possvel, conforme expe a Drumond. O que
estaria querendo dizer ao recorrer a tal imagem? Como, essa proposta de "verti
calizar" o pas se articularia com as suas idias iniciais de um projeto esttico?
claro que tais idias no esto dispostas, de forma sistemtica, ao longo
das cartas. A obra de Gilbert Durand explora uma ampla gama de significados,
construdos em torno do imaginrio arqutipo da rvore." Mediante esse imagi
nrio vamos buscar alguns fios que nos ajudaro a compor o raciocnio, visando
entender a historicidade dessa imagem no pensamento de Mrio de Andrade.

O sentimento de religiosidade

Nas narrativas mtico-religiosas das sociedades arcaicas como a australia


na, semita, hindu e grega o smbolo da rvoreadquire centralidade. Integrada
ao conjunto dos smbolos vegetais, ela configurou-se como imago-mundi, orga
nizando valores, imagens e sentimentos.
Mas h um significado maior que a particulariza: a verticalidade. em ra
zo dessa verticalidade que a rvore conseguiria estabelecer a unio entre os ho
mens e o cosmos: razes fincadas no corao da terra, tronco em posio ascen
dente. A rvore efetua, assim, a comunho entre contrrios (elemento Terra e ar),
harmonizando-os numa totalidade csmica.
A idia de uma harmonizao de contrrios, voltada para um sentido de
integrao, estfortemente presente, nesse momento dadiscusso modernista. Nas
cartas, Mrio, est, sempre, enfatizando a necessidade de o Brasil, "voltar-se para
dentro", organizar-se culturalmente, visando "incorporar-se ao movimento uni
versal das idias".
Tomando emprestadas as palavras de Manuel Bandeira, observa a Carlos
Drumond a necessidade de enquadrar, situar a vida nacional no ambiente uni
versal, procurando o equilbrio entreos dois elemento^"^ (destaque nosso).
Nessamesma carta, Mrio evoca,com entusiasmo,alguns versosda Paulicia:

Ns somos as juvenialidades Auriverdes [. . .]


Os lirismos dos sabis e das jandaias.
Os abacaxis, as mangas, os cajus

" Cf. Corbin, 2000, op. cit.


Gilbert Durand. Les stnictures anthropologiques de rimagiitaire, introdiiction rarchtypologie
gnrale. Paris: Bordas, 1969, pp. 391-9.
Carta sem data. In: Lio do antieo, cit., p. 29.
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 337

Almejam localizar-se triunfantemente,


Na fremente celebrao do Universal!"

Fica clara a nfase categoria da integrao com o universal. Harmnica,


festiva e lrica, ela aparece, aqui, associada ao imaginrio da natureza, mais espe
cificamente, ao da rvore que d frutos. . .
Mrio estabelecia uma diferena essencial entre a escrita dos versos e a da
prosa. Na primeira poderia expressar todas as sensaes e sentimentos: amar e
chorar; na prosa deveria, no entanto, dedicar-se a "ensinar" e ser professor."
Essa observao significativa, poisnos mostra como as formas (prosa e poe
sia) podem traduzir sentidos, percepes e sentimentos diversos que, por sua vez
apontam para prticas sociais, tambm diversas. Nos versos da Paulicia Desvaira
da, o poeta experimenta ser o lirismo dos pssaros e a vivacidade das cores,
sugeridas pelas frutas.
A escrita atravessada pelasemoes e racionalidades, cabendo ao intelectual
o papel de organiz-la. A emoo um dos componentes da inteligncia que apre
ende o que vem no interior de um nebuloso racional onde os afetos tm lugar.-'
O projeto de arte ao, proposto por Mario, no era, apenas, fruto de sua
subjetividade. Traduzia um anseio da gerao intelectual, no perodo entreguerras,
que defendia, com veemncia e paixo, a dimenso artesanal da arte e o papel do
artista como operrio arteso. Opondo-se ao individualismo burgus, centrado no
eu, e a figura demirgica do gnio romntico, o grupo enfatizava a operao do
fazer artstico," que requeria a anulao do eu.
Mais tarde, em carta a Prudente, datada de 12/10/1929, Mrio apresentava
uma radiografia ntima de sua obra, definindo-a pelo fazer, obra Messinica (Pre
fcio, Paulicia e Escrava) e de evaso (Macunama).
Orgulhava-se da obra messinica, considerando-a fruto da arte-ao, do
pragmatismo e da intencionalidade. Confessava que a obra de evaso a que lhe
dava prazer artstico, a de que mais gostava. No entanto, considerava que esse gos
to no tinha o mnimo valor crtico. Essa perspectiva de conceber a arte, implica
va a dolorosa anulao do eu.
Explorando, ainda, a simbologia da rvore, encontramos, nas narrativas, uma
outra idia, relacionada verticalidade: a que se refere ao seu aspecto ascensional
e religioso. No contexto da dcada de 1920, Mrio compreendia a religiosidade,
sobretudo como emoo mobilizadora. Entendia que era a "comoo" (palavra
para ele, densa de significados) que iria despertar e sensibilizar os sentidos para a
compreenso da brasilidade,deslanchando o projeto esttico.
A proposta de uma arte, disposta a "abrasileirar o Brasil", requer energias;
um verdadeiro "delrio religioso".

Ibid.
Ibid., p. 3.
Cf. Ariette Farge, op. cit.
Cf. Eduardo Jardim de Moraes. Mrio de Andrade, a morte do poeta. Rio de Janeiro: [s.n.],
2005, pp. 82-3.
338 mnica pimenta velloso

" Carlos, devote-se ao Brasil," diz Mrio.


J a Tarsila pede:
" Abandona Paris, volte pra dentro de ti mesma".

Exortaes, renncias, altrusmos, enfim, sentimentos, que evocam, fortemen


te, o universo da religiosidade. Para Mrio, as camadas populares que guardariam
esse sentimento religioso da vida. Expondo a Carlos Drumond essa idia, comenta:

Fique sabendo duma coisa, se no sabe ainda: com essa gente que se
aprende a sentir e no com a inteligncia e a erudio livresca. Eles que
conservam o esprito religioso da vida e fazem tudo sublimemente num ri
tual esclarecido da religio.^'

Mrio conta ao amigo uma cena de rua, no Rio de Janeiro, que muito o
impressionara, inspirando-o a escrever um poema: "Carnaval Carioca". Teria sido,
a partir desse fato, que conseguira perceber e entender o sentimento religioso.Conta
ele a experincia:

Foi [. . .] um fato que assisti em plena Rio Branco. Uns negros dan
ando samba. Mas havia uma negra moa que danava melhor que os ou
tros. Os jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade mas
ela era melhor. S porque os outros faziam aquilo um pouco decorado,
maquinizado, olhando o povo em volta deles, um automvel que passava.
Ela, no. Danava com religio. No olhava pra lado nenhum. Vivia a dan
a. E era sublime.^"

Da mesma forma que a mulher vive o samba, no seu corpo, Mrio vivncia
a cena, tentando traduzi-la na escrita, endereada ao amigo. Num lance de intui
o, percebera a uma idia da brasilidade. O ritual da dana consegue ensinar o
que os livros jamais lhe haviam ensinado: a felicidade.^'
Para Mrio, os intelectuais, alm de exercerem a funo crtica, deveriam,
tambm, viver as sensaes. No ser apenas "inteligente de cabea", tendo a inteli
gncia mobiliada francesa, como alertava Drumond. Era necessrio viver e
evocar as sensaes vividas na escrita.
Os paradigmas epistemolgicos do sculo XIX, baseados no ceticismo, teriam
ocasionado a fadiga e o cansao intelectual. Da o apelo, que faz ao seu amigo
Carlos Drumond, para que no veja mais o Brasil pelos olhos pessimistas de
Anatole France. Recomenda: " Seja ingnuo, seja bobo, mas acredite que um
sacrifcio lindo".^^
Retomando a metfora da rvore h, ainda, uma outra questo que gostaria
de abordar. O simbolismo cclico e sazonal do tempo, a, subtendido: tempo de
Carta de 10/11/1922. In: Lio do amigo, p. 22.
Ibidem
" Ibidem, p. 24.
Ibidem.
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 339

plantar, tempo de amadurecer e de colher os frutos. Esse, tambm, seria o ciclo


que daria sentido vida intelectual;

Carecemos fazer, embora imperfeito, pra os que vierem depois, ento,


j mais fceis de especializar, refaam melhor o que a gente fizer [. .

Logo em seguida, Mrio, presentificava as suas esperanas, incentivando a


gerao dos amigos, mais jovens, a prosseguir:

Eu tenho uma esperana brutaa em vocs que me parecem a coisa


mais sria do Brasilliterrio de hoje. [. . .] vocs so to naturais, to equili
brados, to inteligncia sensvel e sobretudo to sem dilentantismo liter
rio, to sem extradionarices. Pois ento, faam.^"*

Essa seria uma outra idia, da imago mundi, representada pela verticalidade:
orienta, de maneira irreversvel, em direo a um devenir, humanizando-o. H
todo um messiansimo subjacente ramagem e folhagem; toda rvore que frutifica
e floresce uma rvore de Jess. H uma promessa de redeno, triunfo e otimis
mo. Mas, h, tambm, uma ambivalncia que percorre essa imagem. Freqente
mente, a redeno messinica e a ascenso se fazem acompanhar de um movi
mento descendente e de luta csmica.^
Se o projeto esttico de Mrio apontava na direo de um sentido ascensional,
devenir cheio de otimismo, ao mesmo tempo, mostrava o seu amargo ceticismo e
sentimento de descrena em relao ao pas. Na realidade, esse sentimento de
ambivalncia atravessa toda a sua obra, fazendo-se presente, muitas vezes, na es
crita cotidiana das cartas. O seu pensamento repousava sobre uma base filosfica
dualista: a oposio de impulsos formais e sensveis.^^
Nas cartas essa ambivalncia transparece, mais claramente, quando Mrio
discute a questo da amizade. Esse ponto ser discutido mais adiante.
Nas narrativas mtico-simblicas sobre a rvore, h uma questo de funda
mental importncia: o envolvimento visceral entre a rvore e os seres humanos.
Ambos possuiriam uma natureza vertical, ascensional. em funo dessa per
cepo que se verifica a antropomorfizao da rvore. Essa configurada como
totalidade psicofisiolgica da individualidade humana. O tronco representa a in
teligncia, as cavidades interiores os nervos sensitivos, os galhos as impresses e
as folhas e frutos as boas e ms aes.^^
Por meio dessa imagem potica, podemos configurar uma dinmica na es
crita de Mrio de Andrade em que se interligam e interatuam os aspectos inte-
lectivos, sensitivos, perceptivos e as prticassociais, expressa pelasaes.

" Ibidem.
" Carta de 16/10/1925. In: Ibidem, pp. 59-60.
Cf. Gilbert Durand, op. cit., p. 398.
"" Eduardo Jardim de Moraes, baseado na doutrina filosfica de Schiller, sobre a constituio
humana, observa que essa tenso atravessa a vida e obra do autor (Cf. Eduardo Jardim de Moraes, op.
cit.
340 mnica pimenta velloso

Para um "sonhador de palavras",^ como era Mrio, essa poderia ser uma
imagem metafrica e tradutorada brasilidade.
O seu projeto de"arte ao" inclua os intelectuais comoa basesustentadora
e tradutora (tronco) assegurando a comunicao com o conjunto, composto pe
las camadas populares, desempenhando essas o papel de essncia, percepo sen
svel da brasilidade (interiores). As aes (frutos e flores) seriam efetivadas pelos
intelectuais a partir da sintonia vital com o popular.
Mas vamos, agora, retomar a metfora da rvore, desdobrando-a em uma
outra direo: o fenmeno da amizade.

Uma potica do sensvel

Antes de discutir a questo da amizade, seria importante abordar a prpria


escritura de cartas.
Trabalhando no imbricamento da histria cultural com a histria literria,
Marie-ve Threnty sugere a existncia de uma "potica histrica da forma". Ela
consistiria no deslocamento da anlise do mbito textual para o da forma. Para a
histria cultural, a questo do gnero da escrita merece ateno especial, pois
capaz de traduzir maneiras de pensar, imaginar, falar e agir. Uma leitura crtica
dos romances de Eugne Sue, por exemplo, pode nos revelar mais sobre a socie
dade da "Monarquia de Julho", do que a poesia romntica de Victor Hugo e de
Alphonse de Lamartine.^'
Mesmo trabalhando com textos e autores cannicos, como o nosso caso,
as cartas de Mrio so reveladoras. Encontramo-nos diante de uma escrita que
possibilita reconstruir imagens de sensibilidade, extradas de impresses ante a
rotina cotidiana. Imagens que presentificam a multiplicidade de experimentos,
de lugares, e, mesmo, de vozes. No s o intelectual organizador quem escreve,
mas, tambm, o homem, com toda a sua carga de sentimentos contraditrios. Co
mentando os sentimentos que lhe ocorreram, na ocasio em que escrevia os ver
sos de Paulicia Desvairada, Mrio conta que deixou falar o homem e no o artis
ta. Fora uma escrita, ditada pelo estado sublime, selvagem da pura ordem da
natureza. Por isso, considera a obra como o momento mais feliz da sua criao,
como diz a Drumond.^" A escrita do eu fora reconhecida como tradutora de um
momento de felicidade na vida do autor.
As cartas no so, apenas, expresso de um pensamento j elaborado, mas
ao contrrio, marcam o nascimento, difcile radioso, de um pensamento epifnico.
Um pensamento nmade que vai da escrita da carta escrita da obra, da obra das
palavras obra de si, conforme observa Diaz.""
A operacionalizao dessa escrita complexa, implicando ir alm da inscrio

" Cf. Durand, 1969, op. cit., p. 398.


A expresso de Bacheiard, conforme observao feita anteriormente.
Cf. Marie-Eve Threnty & Alain Martin Vaillant. Histoire littraire et histoire culturelle. In:
Laurent Martin & Sylvain Venayre. Vhistoire culturelle du contemporain. Paris: Noveau Monde, 2005.
Cf. Carta de 16/11/1925. In: Lio do amigo, op. cit.
Cf. Brigitte Diaz. Vpistolaire de Ia pense nmade. Paris: Presses Universitaire de France, 2002.
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 341

das palavras sobre a pgina. Inclui a capacidade de visualizar as palavras, por meio
de imagens, assim, tambm, como escut-las. Nas cartas de Mrio de Andrade
ntida essasensibilidadepara percebera interveno dos sentidos, moldando e orga
nizando a escrita. Ao comentar as poesias de Carlos Drumond e de Manuel Bandei
ra, escuta, com ateno, a expresso rtmica e a vibrao de cada palavra no texto.
Observa a importncia do toque nas teclas, criando palavras. De uma m
quina, "bem limpinha e azeitada", sai, quase sempre, uma escrita que uma
boniteza, observa."*- Sente, tambm, o "[.. .] reflexo mecnico / dos sentimentos
torturados / Pressa, muita pressa / 200palavras por minuto"."*^
Mas recorrendo visualidade, seguramente, por meio das palavras-ima-
gens, que Mrio ir compor a arquitetura potica do seu texto.
Essa antropologia dos sentidos, que conjuga audio, tato e viso, apresen
ta-se como uma das bases inspiradoras da histria das sensibilidades.'*'' Sensibili
dades podem ser afetadas pela mudana dos cdigos estticos de uma poca. Mas
vamos por partes.
Mediante o seu projetode"arte-ao", Mrio tentavajustamente isso: mudar
osvalores do cdigo cultural vigente, criando asbases de uma esttica brasileira. J
vimos que esse projeto, estruturado emtornodeumarazo organizadora, demanda
va, tambm, sentimentos religiosos, tais como a valorao do sublime e a devoo.
Nas cartas, freqentemente, Mrio se queixa das disperses da vida cotidia
na, que acabavam o levando disperso: "[. . .] quero arranjar um pouco de lar-
gueza pra viver mais interiormente"."*
Asua prpria sensibilidade afetada pelos valores do cdigo esttico, que
demandam ao intelectual disciplina e concentrao de esforos."***
com os amigos que Mrio compartilha essa luta interna de sentimentos:

[...] vida me aperta e meus amigos longnquos e meus trabalhos ficam


vivendo dentro de mim uma vida silenciosa de raiz, uma vida vegetal que a
gente percebe, nopranunca, porm, no pereparonela. Em todo o caso,
isso que estsustentando a rvore, meu caro,seno elacaa, te garanto."*^

A rvore funciona como imagem-guia na escrita epistolar de Mrio que a


acesa, sobretudo, quando quer expressar os seus sentimentos, referir-se s suas
relaes deamizade ou expor idias sobre o fenmeno da amizade. Mas essa ima
gem, ao longo das cartas, ,a meu ver, elaborada e utilizada dedistintas maneiras.
Percebo apropriaes diferenciadas (conscientes ou no) quando setratada expo
sio de idias acerca do projeto esttico ou desuas impresses sobre a amizade.
Resumindo um poucoas idias. Trabalhamos, at agora, o processo de mon-

A poesia "Mquina de escrever" est na carta de Mrio, enviada a Anitta Malfatti. In; Batista,
1989, p. 53.
Ibidem.
Cf. Alain Corbin, op. cit.
Carta de 8/5/1926. In: Lio do amigo, cit., p. 78.
Cf. Alain Corbin, op. cit.
Carlos Drumond de Andrade. Lio do amigo, cit., p. 78.
342 mnica pimenta veiloso

tagem de umadeterminada imagem dabrasilidade modernista que coincidia, com


alguns elementos, extrados dasnarrativas mticas ancestrais sobre a rvore (ascen
so, integrao ao cosmos, devenir messinico, equilbrio de elementos opostos).
Nessas cartas, a imagem da rvore no aparece,a no ser por essas categorias
acima mencionadas.
Quando se coloca o tema da amizade, muda-se a configurao do smbolo.
A imagem da rvore se presentifica. Mrio fala do seu trabalho solitrio como
uma "vida silenciosa de raiz" Reconhece que graas sua escrita que a rvore
(ele prprio) sobrevive. Se o autor entende que a nacionalidade brasileira neces
sita de uma alma, conforme diz a Carlos Drumond, ser uma "comunho de al
mas" que tornar possvel a realizao do projeto esttico.
A rede de amizades, ao possibilitar a circulao de idias, afetos e, sobretu
do, a partilha de experincias, incentiva o crescimento mtuo. dirigindo-se a
Drumond que Mrio vai expor tais idias:

As almas so rvores. De vez em quando uma folha da minha vai


avoando posar nas razes das de voc. Que sirva de adubo generoso. Com as
folhas da sua, lhe garanto que creso tambm.''

o sonho cclico progressivo que d sentido vida do escritor: "Continuo


no meu caminho, produzindo que nem fruteira, mais duma vezpor ano"."*' Quan
do discute a questo da influncia intelectual, tambm metfora vegetal que
recorre: "Cada indivduo fruto de alguma coisa".
Mas nos trechos das cartas a Carlos Drumond de Andrade que encontra
mos, de forma recorrente, a metfora da rvore, associada ao ciclo contnuo da
vida: nutrio, crescimento, amadurecimento. Freqentemente encontramos, tam
bm, a presena do elemento terra, como base de sustentao amizade.
Ao falar dos motivos de sua desavena com Oswald de Andrade, em carta a
Tarsila, Mrio retomaria, mais uma vez, a metfora:

Eu sei que fomos vtimas de um ventarro que passou. Passou. Porm


a rvore caiu no cho e no lugar duma rvore grande, outra rvore tamanha
no nasce mais no. impossvel.^"
a morte drstica da metfora. Na mesma carta, Mrio diria a Tarsila que,
apesar de seu orgulho enorme, confessava que se sentia "quebrado cruelmente".
Insustentvel no tempo presentee cotidiano, a amizade do grupo (Tarsila, Oswald,
Dulce e Mrio), permaneceria viva, no entanto, ao ser transposta para o plano da
memria:

Se deu apenas uma que transposio de planos, e aqueles que faziam


parte da minha objetividade cotidiana, continuam amigos nessa espcie de

In: Carlos Drumond de Andrade. Lio do amigo, cit., p. 45.


Gilbert Durand, op. cit.
^ Carta de 4/7/1929. In: Aracy Amaral, op. cit., pp. 106-08.
imagens de sensibilidade na corresponncia modernista 343

ambiente de anjo em que o esprito da gente descansa mais, povoado de re


tratos bons.^'

Penetrando nos domnios do intemporal, coerente com a natureza da mem


ria, Mrio consegue, como o personagem proustiano, alcanar reas de sua vida
que so o paraso perdido (ambiente de anjo), a partir da abstrao da presena.^'
possvel, ento, "continuar amigo".
Um telegrama de Mrio

A questo de saber se Mrio, teve, de fato, acesso leitura das narrativas


mticas no pode ser respondida. Dispomos, no entanto, de alguns indcios que
podem ser esclarecedores.
Mrio conhecia bem a literatura alem, dominando um universo considervel
de autores. Impresses e notas, extradas de relatos de viajantes alemes, no Brasil,
aparecem em Macunama, sendo tambm bastante conhecida a referncia inspira-
dora obra de Jung. Pelo menos,no que se refere a sua teoria dos arqutipos cultu
rais,por meio da qual se enfatizava a idia do trnsito do inconsciente e consciente.
O interesse pelos mitos, narrativas simblicas e sagradas de outras culturas,
incluindo a oriental, est presente, ao longo da escrita marioandradina. prov
vel que ela tenha se inspirado no cristianismo, em particular, na arte romnica,
que estabelece a idia de dois mundos, compondo o nexo do microcosmo e macro-
cosmo, incluindo a natureza humana.^^
Mas h particularmente um escrito de Mrio que me parece esclarecedor:
A Escrava que No Isaura^ "discurso sobre algumas tendncias da poesia moder
nista fragmentos". O texto dedicado a Oswald. Nele, tematiza o surgimento
da poesia, em forma de parbola: "Gostode falarpor parbolascomo Cristo [. .
Mas h uma passagem que chama especial ateno: as imagens que evocam
a comunicao entre o nvel do consciente e do inconsciente. Mrio parece dar
um recado endereado especialmente a ns, seus leitores:

O que realmente existe o subconsciente enviando inteligncia telegra


mas e mais telegramas [. . .]. A inteligncia do poeta o qual no mora mais
numa torre de marfim recebe o telegrama no bonde, quando o pobre vai
pra repartio, para a Faculdade de filosofia, para o cinema [. . .] O telegrama
lhed fortes comoes [. . .] e o poeta lana a palavra solta ao papel. o leitor
que se deveelevar sensibilidade do poeta, no o poeta que deve se baixar
sensibilidade do leitor. Poisesse que lhe traduza o telegramaP^ (grifo nosso).

Carta de Carta de AH11929. Ibidem, p. 106.


" Cf. Frederick Karl. O modernismo de Proust 1900-1925: No limiar de uma floresta em flo
rescimento. In: Idem. O moderno e o modernismo, a soberania do artista. Rio de Janeiro: Imago, 1988, p. 426.
" A idia da narrativa do cristianismo est em: Juan Eduardo Cirlot. Diccionario de smbolos.
Barcelona: Labor, 1992.
Jorge Schvvartz. Vanguardas latinas americanas polmicas, manifestos e textos crticos. So
Paulo: Fapesp/Edusc/lluminiras, 1995, p. 126.
" ibidem, p. 129.
SOB O OLHAR DE PRIAPO: NARRATIVAS E IMAGENS
EM ROMANCES LICENCIOSOS SETECENTISTAS

Mrcia Abreu
Universidade Estadual de Campinas

O objetivo de um autor deve ser o prazer de seus leito


res. Nada contribui mais para a felicidade do que uma
leitura agradvel. Fontenelle dizia "Nenhuma dor resiste
a uma hora de leitura". Ora, de todas as leituras, a mais
estimulante a de obras erticas, sobretudo se estas so
acompanhadas de figuras expressivas.
Rtif de La Bretonne. Anti-Justine^

O que acontece quando algum l? Que impacto tm os livros sobre a mo


ral dos leitores? A que tipo de ao levaa leitura? Ela pode provocar alteraes no
corpo do leitor? Aimaginao podegerar efeitos fsicos?
Se hoje muitas dessas questes parecem constituir verdadeiras excentrici
dades, no Setecentos, em um momento que parecia tomado por uma "mania de
leitura", um "desvario de leitura", uma "praga de leitura",^ esses eram temas can-
dentes. O furor causado pelos livros est expresso, por exemplo, nas Confessionsy
de Rousseau, que, aos dezesseisanos tomou-se de uma obsesso pela leitura:

Eu lia no banco da oficina, eu lia enquanto ia enviar minhas mensa


gens, eu lia no guarda-roupas, e a me esquecia de horas inteiras; a cabea

Esse trabalho parte do projeto temtico "Caminhos do Romance no Brasil: sculos XVIII e
XIX", que conta com apoio da Fapesp e do CNPq. Resultados das pesquisas realizadas no projeto
esto disponveis no site <wvm.caminhosdoromance.iel.unicamp.br>, onde se encontram tambm
romances raros dos sculos XVIII e XIX em verso digital.
' Nicolas Edme Rtif de La Bretonne. nti-Justine. Trad. Marina Appenzeller. Porto Alegre:
L&PM, 2005, p. 16.
^ Martha Woodmansee. The Author, Art, and the Markct Rcreading the History of Aesthctics.
Nova York: Columbia University Press, 1994, p. 24.
narrativas e imagens em romances licenciosos 345

girava com minha leitura, eu no fazia nada alm de ler. Meu mestre me
observava, me surpreendia, me batia, tomava meus livros. Quantos volu
mes foram rasgados, queimados, atirados pelas janelas! Quantas obras fica
ram incompletas na Tribu!^ Quando eu j no tinha mais com que lhe pa
gar, eu dava a ela as minhas camisas, minhas gravatas, meus andrajos; meus
3 sois de gratificao todos os domingos lhe eram entregues regularmente.
[. . .) A leitura me afastava de qualqueroutra atividade. Inteiramente aban
donado ao meu novo gosto, eu no fazia nada alm de ler [. . .] Meu cora
o batia na impacincia de folhear o novo livro que eu tinha no bolso; eu o
tomava assim que me via s [. . .] fora de brigas, de golpes, de leituras
furtivas e mal escolhidas, meu humor se tornou taciturno, selvagem; minha
cabea comeou a se alterar, e eu me tornara uma pessoa verdadeiramente
intratvel.^

A relao com a leitura mantida tanto pelo jovem quando por seu mestre
parece semelhante que se manteria hoje com uma droga poderosa. Para afast-lo
doslivros, o mestre o espionava, o surrava, tomava-lhe oslivros para rasg-los, quei
m-los, atir-los longe. Para obt-los, o rapaz era capaz de qualquer sacrifcio, des
pendendo com issotodo o seu dinheiro e parte de seus bens.A leitura, uma "paixo"
que em breve se tornou um "fiiror", mobilizava seu corpo, fazendo com que seu
corao batesse acelerado, sua cabea girasse e todo seu modo de ser se alterasse.
Uma atividade com to extraordinrio impacto individual e social no po
deria deixar de mobilizar a ateno de alguns dos mais importantes letrados eu
ropeus, que produziram dezenas de livros e milhares de pginas buscando com
preender os sentidos e os efeitos do contato com os livros. Ler e no sofrer
nenhuma alterao era uma idia inconcebvel, j que se tinha certeza de que a
experincia da leitura jamais seria incua.
Um tipo particular de livro parecia causar maior inquietao: os livros de
prosa fccional que, poca, eram denominados como novelas, histrias, contos,
narrativas picas em prosa ou, simplesmente, romances. Sua extraordinria difu
so no sculo XVIII causou grande agitao no mundo das Letras. Concebidos ao
arrepio dos preceitos retrico-poticos que regulavam a produo das Belas-Le-
tras e destinados a leitores pouco instrudos, eram vistos como um divertimento

* Tribu era o nome de uma senhora que alugava livros.


*"Je Usais Ttabli, je Usais en allant faire mes messages, je Usais Ia garde-robe, et m'y oubliais
des heures entires; Ia tte me tournait de ma lecture, je ne faisais plus que lire. Mon maitre m'piait,
me surprenait, me battait, me prenait mes livres. Que de volumes fiirent dchirs, brls, jets par les
fentres! que d'ouvrages restrent dpareilles chez Ia Tribu! Quand je n'avais plus de quoi Ia payer je
lui donnais mes chemises, mes cravates, mes bardes; mes trois sois d'trennes tous les dimanches lui
taient rgulirement ports. [. . .] La lecture m'eut t toute activit. Livr tout entier mon nouveau
got, je ne faisais plus que lire [.. .] Le coeur me battait d'impatience de feuilleter le nouveau livre que
j'avais dans Ia poche; je le tirais aussitt que j'tais seul (...) A force de querelles, de coups, de
lectures drobes et mal choisies, mon humeur devint taciturne, sauvage; ma tte commenait
s'altrer, et je vivais en vrai loup-garou". Jean-Jacques Rousseau. Confessions. Livre Premier (1712-
1728). Paris: Librairie Gnrale Franaise, 1963, pp. 72-4. [1782] (primeira parte) e [1789] (segunda
parte).
346 mrcia abreu

ordinrio. Ao contrrio da leitura de obras clssicas, que supostamente instrua,


ampliava a erudio e a capacidade de apreciao esttica, a leitura de romances
era tida como perda de tempo, modo de corrupo do gosto e instrumento de
difiso de idias moralmente condenveis.
Alm disso, os romances pareciam suscitar uma relao peculiar com o texto,
ao confundir deliberadamente fico e realidade e ao promover a identificao do
leitor com os personagens, criando o desejo de transpor para a vida real as cenas e
as situaes observadas nas narrativas. Diferentemente das obras clssicas, que re
queriam uma reao intelectual, baseada na comparao com outros textos e em
seu julgamento, os romances provocavam, muitas vezes, sensaes fsicas, como
lgrimas e palpitaescardacas. Alheios s convenes tradicionais, os romances
eram avaliados pela intensidade das emoes que conseguiam produzir.
Eles pareciam, ao mesmo tempo, poderosos e perigosos, pois no traziam
nenhum benefcio do ponto de vista cultural, ao mesmo tempo que podiam alte
rar a percepo de mundo dos leitores, desarranjando seus valores e transtornan
do seu sentido moral.^
Um clebre pregador firancs do sculoXVIII, Jean-Baptiste Massillon,^ pre
ocupava-se tanto com os efeitos da leitura que chegou a proferir um "Discurso
indito sobre o perigo das ms leituras'7 No largo espectro de narrativas ficcionais
que surgiram no sculo XVIII, Massillon identificava dois tipos de livros perigo
sos: os ffvolos e os lascivos. Os primeiros, embora no representassem perigo para
a moral ou para o esprito, deveriam ser evitados,pois distanciariam as pessoasde
suas obrigaes, roubando tempo s atividades religiosas. A leitura desses livros
afastaria da meditao, da caridade e do autocontrole, oferecendo em troca ape
nas divertimento. Os livros lascivos eram ainda mais perigosos, pois associavam
um contedo libidinosoa um discurso pautado em valores tidos por imorais, con
ferindo novo sentido a atos condenveis. Segundo o pregador, nesses textos, o cri
me poderia ser visto como uma fraqueza, a castidade, como um cuidado desne
cessrio e a seduo, como ato de amor. Massillon no concebia sequer a idia de
que a leitura de um romance lascivo pudesse deixar de causar dano fsico, inte
lectual ou moral. Dizia ele:

Sem dvida que os efeitos destes livros no se fazem sentir instanta


neamente; mas por serem tardios, eles so ainda mais terrveis: um vene-

' Para uma discusso a respeito da reao aos romances nos sculos XVIII e princpio do XIX
ver: Mrcia Abreu. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras/ALB/Fapesp, 2003; e Sandra
G. T. Vasconcelos. A formao do romance ingls: ensaios tericos. Livre-Docncia. So Paulo:
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, 2000.
Jean-Baptiste Massillon era professor oratoriano e foi um clebre orador. Era membro da
Academia Francesa de Letras e bispo de Clermont. Era admirado por Voltaire pela elegncia de seu
estilo ("Catalogue de Ia plupart des crivains franais qui ont paru dans le Sicle de Louis XIV, pour
servir Thistoire littraire de ce temps". In: Le sicle de Louis XIV, 1751). D'Alembert escreveu um
"loge de Jean-Baptiste Massillon, vque de Clermont", o qual foi publicado como prefcio pri
meira edio de seus Sermes feita em 1745 {Oeuvres Compltes de Massillon, vque de Clermont. A
Paris, chez Raymond Libraire, 1821). Massillon nasceu em 1663 e faleceu 1742.
' Massillon. Discours indit de Massillon, stir le danger des mauvaises lectures, suivi de plusieurs
pices intressantes. Paris: Beauc, 1817.
narrativas e imagens em romances licenciosos 347

no lento que corre nas veias, percorre insensivelmente as entranhas, e ter


mina por devorar inteiramente; um fogo que dorme sob as cinzas, e que
no tarda a se transformar em vasto incndio cujo fiiror ningum poder
conter.

Chama ateno a terminologia empregada por Massillon para descrever os


resultados do contato com os livros, associados a um "veneno" que corri e a um
"fogo" que consome. Longe de pensar em alguma reao cognitiva abstrata, ele
corporifca os efeitos da leitura, fazendo com que eles penetrem as "veias" e as
"entranhas" do leitor, levando sua inexorvel runa.
Embora a preocupao central de Massillon diga respeito aos indivduos,
seu comportamento moral e sua relao com o sagrado, os romances lascivos ou
libertinos transcendiam muito o mbito individual. Eles punham em xeque as
mais caras instituies do Antigo Regime, criando narrativas em que a uma ani
mada relao carnal sucedia um no menos animado debate filosfico que servia
como conjuntura argumentativa (ou ponto de repouso) que suscitava nova cena
de sexo, e assim sucessivamente. Robert Darnton, em um artigo intitulado "Sexo
D o que Pensar",sintetizou bem a situao ao dizer que:

[. . .] por volta de 1750, o libertinismo dizia respeito tanto ao corpo


quanto ao esprito, pornografia e filosofia. Os leitoressabiam reconhecer
um livro de sexo quando viam um, mas esperavam que o sexo servisse como
veculo para ataques Igreja, Coroa e a toda espciede abuso social.'

Se os romances convencionais geravam reaes contrrias, o que dizer de


textos que faziam uso das propriedades do gnero para enfocar uma explosiva com
binao de sexo, religioe poltica? Para desespero dos conservadores e dos mora
listas, parecia quase impossvel resistir seduo provocada por esses livros. No
mesmo texto j citado, Massillon declarava:

[. . .] poderamos ns ter esperana de conservar nosso corao puro e


intacto lendo estes livros nos quais tudo desperta e inspira a volpia, nos
quais as pinturas impuras, as imagens lbricas inflamam os desejos, exci
tam os sentidos, revoltam a carne; nos quais a infmia das aes responde
infmia das palavras; nos quais freqentemente a arte das gravuras acres
centa ainda mais ao escndalo das aventuras? [. . .] Por fora de demorar o
olhar sobre imagens obscenas, o corao acaba por se estragar, o pudor no
combate mais, e cessa de intervir. Entusiasmados pelas mximas infames

" "Sans doute que les effets de ces livres ne se font pas sentir rheure mme; mais pour tre
tardifs, ils n*en sont que plus terribles: c'est un poison lent qui coule dans les veines, ronge in-
sensiblement les entrailles, et finit par les dvorer entirement; c'est un feu qui couve sous Ia cendre,
et qui ne tarde pas se transformer en un vaste incendie dont rien ne pourra arrter Ia fureur",
Massillon, op. cit. Traduo minha.
* Robert Darnton. Sexo d o que pensar. In: Adauto Novaes (org.). Libertinos e libertrios, s.l.:
MinC/Funarte, p. 25.
348 mrcia abreu

de seus livros, vocs sacodem o jugo e se abandonam ao imprio dos senti


dos; nada os detm, vocs no tm outro freio alm de um instinto brutal,
outra regra que seus desejos,outra ocupao que atiar suas paixes. O que
se torna o homem ento, oh meu Deus! Abandonado fria de suas incli
naes, s desordens de sua imaginao?'"
Retoricamente, Massillon amplifica o poder dos livros ao mesmo tempo que
minimiza a capacidade dos leitores de resistir a eles. Como fazer face a narrativas
que libertam os mais fundos desejos e mobilizam o corpo, subjugando a f e a
razo, deixando as paixes, os sentidos e a carne governarem soberanos? O arguto
pregador percebia que o poder desses livros no advinha apenas das "mximas",
"aes" e "palavras" de que se compunha, mas tambm de sua forma material,
composta pelo texto e por "pinturas impuras", "imagens lbricas" e "obscenas"
sobre as quais se"demorava o olhar" do leitor.
A impossibilidade de manter o autocontrole quando se tinha um livro desses
nas mos foi representada por Rtif de Ia Bretone, em sua suposta autobiografia
Monsieur Nicolas ou le Coeur Humain Dvo/7," na qual a promessa de manter-se
fiel, feita pelo narrador a sua amada Zefire, tornou-se inteiramente invivelassim
que ele tomou contato com um livro licencioso. Apesar de estar sendo fiel a sua
mulher j h dezoito meses, e de sentir-se feliz nesse estado, teve um nico
momento de fraqueza, ocasionado justamente pela leitura de um livro.'^Ele con
ta como foi:

Mas o que vai mostrar o perigo de livroscomo Oporteiro doscartuxos,


Teresa filsofa, A religiosa de camisola e outros, o erotismo sbito e terrvel
que eles excitaram em mim depois de uma longa abstinncia!. . . Um gran
de libertino, este Molet de quem j falei [. ..], veio me ver um domingo de
manh, quando eu estava ainda na cama, e me trouxe o primeiro destes li
vros, que eu tinha apenas entrevisto na casa da Mass. Vivo, ardente, curio-

" "pourrions-nous esprer de conserver notre coeur pur et intact, en lisant ces livres o tout r-
veille et inspire ia volupt, o des peintures impures, des images iubriques enflamment les dsirs, ex-
citent les sens, rvoltent Ia chair; o rinfamie des actions rpond Tinfamie des paroles; o souvent
Tart des gravures ajoute au scandale des aventures? (. ..] A force d'arrter vos regards sur des images
obsc-nes, le coeur finit par se gter. Ia pudeur ne combat plus, et cesse de s'effaroucher. Enhardis
(sic) vous-mmes par les maximes infames de vos livres, vous secouez le joug, vous vous abandonez
Tempire des sens; rien ne vous arrte, vous n'avez plus d'autre frein qu'un instinct brutal, dautre
rgle que vos dsirs, d'autre occupation que d'assouvir (sic) vos passions. Que devient Thomme alors,
mon Dieu! livr toute Ia fureur de ses penchans, tous les dsordres de son imagination Massillon,
op. cit., p. 8.
" Nicolas Edme Rtif de Ia Bretonne era filho de uma famlia de camponeses relativamente
prsperos. Na juventude, mudou-se para Paris, onde trabalhou como tipgrafo e, em seguida, como
autor de romances. Juntando-se s centenas de "proletrios da literatura" que existiam s vsperas da
Revoluo, passou a publicar praticamente um romance por ano, a partir de sua primeira experincia
La Famille Vertuese (1767). Desde 1775, tornou-se capaz de ganhar a vida escrevendo, rpida e co-
piosamente. Seu gosto declarado pelos bas-fonds parisiense se conjugava com convices virtuosas,
como se v em VAnti-Justine (1798), em que a tematizao da libertinagem se apresenta com uma fina
lidade moral. O livro Monsieur Nicolas, publicado entre 1794 e 1797, se pretende autobiogrfico, mas
mistura a experincia vivida com a fantasia. Rtif de Ia Bretonne nasceu em 1734 e morreu em 1806.
A relao de Rtif de Ia Bretonne com Zefire transcorre entre 1757 e 1758.
narrativas e imagens em romances licenciosos 349

so, eu o tomei arrebatadamente e me pus a l-lo no meu leito: eu esquecia


tudo; mesmo de Zefire. Depois de umas vinte pginas, eu pegava fogo.
Manon Lavergne, uma costureirinha da rua Notre-Dame [. . .] veio [. . .] tra
zer a minha roupa [. . .] Eu me joguei em cima dela. A moa no ops gran
de resistncia. . . Eu retomei a leitura aps sua partida. . . Uma meia hora
depois, apareceu Ccile Decoussy [. . .] Sem me preocupar com a posio
dessa jovem loira (ela iria se casar) [.. .] eu pus tanto furor no meu ataque
que, to assustada quanto surpresa, ela me sups louco ou tomado de rai
va. . . Elacedeu, aps ter implorado nos meus joelhos para que mudasse de
opinio. Eu retomei minha ftinestaleitura. .
Alternando leitura e ao, ele manteve relaes sexuais de maneira quase
ininterrupta, seduzindo ou violando seis diferentes moas que, em poucas horas,
passaram por seu movimentado quarto. A leitura, cujos efeitos so no apenas
intelectuais, mas obviamente fsicos, era mais forte do que as convices morais
de Monsieur Nicolas, do que sua deciso de manter-se fiel, do que sua felicidade
com Zefire. Como disse o pregador Massillon, no h "freio" capaz de conter o
domnioexercido por esse tipodeleitura queconduz a um"impriodos sentidos".
O livro capaz de originar toextraordinrio efeito foi o Porteiro dos CartuxoSy
um dosmais clebres livros licenciosos do sculo XVIII. Segundo Robert Darnton,
a''Histoire dedom B. . Portier des ChartreiiXj atribudo a J. C.Gervaise de Latouche,
[] um tour deforce obsceno eanticlerical que, junto com Thrse Philosophe, en
cabeou as listas debest-sellers ata derrocada do Antigo Regime".'"^
Ambos os livros, mencionados por Monsieur Nicolas juntamente com A
Religiosa de Camisola como incontrolvel fonte de excitao, tiveram larga circula
o, no apenas no Antigo Regime francs. Mantendo seu interesse portoda a Eu
ropa, ao longo do XVIII edo XIX, chegaram at Portugal, onde enfrentaram alguma
dificuldade devido constante vigilncia dacensura, que levava a apreenses nas
alfndegas e nas casas de livreiros ou a denncias sobre a posse e a leitura desses
livros. Teresa Filsofay por exemplo, foi avaliada por Frei Jos Malachias, do Con-

"Mais ce qui va montrer le danger des Livres tels que le Porter-des-Chartreux, Terse-Filosofe,
La Religieuse en-chemise etirst: c*est Trotisme subit et terrible qu'ils exciterent en moi, aprs une
longue abstinence. Un grand Libertin, ce Moiet dont j ai deja parl [. . .] tait venu me voir un
Dimanche matin, que j'tais encore au lit, et m avait aporte le ler de ces Livres, que je n'avais
qu'entrevu chez Ia Masse. Vif, ardent, curieux, je le pris avec transport, et me mis a ie lire dans mon
lit: J'oubliait tout, jusqu'a Zefire. Aprs une vingtaine de pages, j'tais en feu. Manon Lavergne, petite
couturire de Ia rue Notre Datne [.. ] vint [...) m aporter mon linge (. . .] je me jetai sur elle. La
JeunefiUe (sic) ne fit pas une grande resistance [sic] Je repris ma lecture, aprs son depart
Une demi heure aprs, parut CecUe-Decoussi (...) Sans gard pour Ia posicion de cette Jeune-blonde
(elle alait se marier), [.. .] je mis tant de fureur dans mon ataque, qu'effraye autant que surprise, elle
me crut fou, enrag... Elle ceda, aprs s'tre mise mes genoux, pour me flchir. Je repris ma funeste
lecture. . ." Nicolas Edme Rtif de La Bretonne. Monsieur Nicolas ou le coeur humain dvoil. Publi
par lui-mme. Avec figures. Imprime Ia Maison; et se trouve Paris, chs (sic) le Libraire indique au
Frontispice de Ia Derniere Partie. MDCCXCIV. Edio fac-similar publicada por Slatkine Reprints,
Genve-Paris, 1988, pp. 2.167-9. 5.' parte. Traduo minha.
Robert Darnton. Os best-sellers proibidos da Frana pr-revolucionria. So Paulo: Companhia
das Letras, 1998, p. 103.
350 mrcia abreu

selho-Geral do Santo Oficio, em 1758, quando da apreenso, em Lisboa, de um


suspeito pacote de livros.' J Histoire de dom B. . . foi "suprimida", na classe dos
livros obscenos, pela Real Mesa da Comisso-Geral para Exame e Censura dos
Livros, o que no impediu, entretanto, que a obra circulasse, comose percebe na
declarao de Lus de Barros Teixeira Lobo que, em 1810, denunciou a si mesmo
"pr. obedincia aos respeitabilssimos decretos do Tribunal do Santo Ofcio, e
descargo de ma. conscincia", declarando que, entre 1788 e 1795, teve contato
com diversas obras licenciosas em Coimbra, entre as quais "o infame livro
intitulado Goblerdon, ou o Porteiro dos Cartuchos".'^ A ao da censura no ape
nas revela o desejo de banir esses livros como tambm atesta sua presena, por
debaixo do pano, em territrio luso.'^
Por esses motivos, esses sero os dois livros analisados aqui: Histria de Dom
Bougre^^ e Teresa Filsofa,^^ considerando especialmenteos efeitosobtidos pela pre-

" Parecer elaborado por Fr. Jos Malachias a pedido do Conselho-Geral do Santo Ofcio,
mao 41, doe. 22. ANTT. Este e outros pareceres de censores a respeito de livros licenciosos apre
endidos em Portugal e no Brasil foram analisados por mim em "'As mais infames e abominveis'"
obras livros licenciosos dos dois lados do Atlntico. In: Eduardo Frana Paiva (org.). Brasil-
Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no mundo portugus (sculos XVI-XVIII). So Paulo:
Annablume, 2006, pp. 181-200.
Inquisio de Lisboa, Processo n." 14.102, ANTT.
Sobre a circulao de livros licenciosos no mundo luso, ver: Maria Adelaide Salvador
Marques. A Real Mesa Censria e a cultura nacional aspectos da geografia cultural portuguesa no sculo
XVIII. Coimbra: Coimbra Editora, 1963. Maria Teresa Esteves Payan Martins. A censura literria em
Portugal nos sculos XVII e XVIIL Doutorado em Literatura e Cultura Portuguesas especialidade
Histria do Livro. Lisboa: Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, Departamento de Estudos
Portugueses, Universidade Nova de Lisboa, 2001 e Daniel Pires. Introduo. In: Bocage. Obra
Completa - poesias erticas, burlescas e satricas. Porto: Edies Caixotim, 2004, pp. 1-55.
' O autor desse romance parece ser Jean-Charles Gervaise de La Touche, advogado no
Parlamento de Paris, desde 1744, falecido em 1782. A histria de Saturnino, personagem principal da
narrativa, gerou diversos ttulos diferentes e mltiplas edies. Impresso, pela primeira vez, sob o
ttulo de Histoire de Dom B. . ., portier des Chartreux (1748, deux parties in-8."), foi reimpresso diversas
vezes, tanto sob o ttulo de Histoire de Gouberdom (anagrama de Dom Bougre], Portier des Chartreux
(1772, in-8.", 1790, deux parties) quanto como Mmoires de Satumin (1787, deux parties in-18.. 1803,
deux volumes in-18.). Dados sobre edies podem ser encontrados em Jean-Marie Goulemot. Esses
livros quese lem com uma s mo leitura e leitores de livros pornogrficos no sculo XV///. So Paulo:
Discurso Editorial, 2000; em Robert Darnton. Os best-sellers proibidos da Frana pr-revolucionria. So
Paulo: Companhia das Letras, 1998; e em Pascal Pia. Histoire d'un livre traqu, LePortier des chartreux,
augmente de nombreuses pices indites extraites des archives de Ia Bastille. In: Pascal Pia. Histoire
de Dom B., portier des chartreux, crite par lui-mme. Fac-smile da edio de "Paris: La Bibliothque
prive, Le premier Janvier, 1771. Paris: TOr du Temps, 1969.
" Thrse Philosophe, supostamente escrito por Aries de Montigny (ou pelo Marquis d'Argens),
teve uma primeira edio em 1748 e foi fortemente perseguido pela polcia. Os Archives de Ia Bastille
mencionam, a todo instante, interrogatrios e perseguies originadas pelo livro. Aries de Montigny,
comissrio de guerra, foi tido como seu autor e por isso passou oito meses na Bastilha. A parte inicial
do livro refere-se ao caso havido, em 1731, entre o Padre Gerard, jesuta e pregador francs, e Ca-
therine Cadire, bela jovem de dezoito anos originando os episdios que narram a relao entre o
Padre Dirrag e a penitente Eradice, nomes anagramticos. O caso, encaixado nas supostas memrias
de Teresa, deu origem a um dos mais apreciados livros licenciosos do XVllI, diversas vezes publicado
em vrios pases. Ver: Robert Darnton. Os best-sellers proibidos da Frana pr-revolucionria, cit.; Jean-
Marie Goulemot, op. cit.; De Boyer D'Argens. Thrse Philosophe ou mmoires pour servir a rhistoire
du P. Dirrag et de Mlle Erradice avec Vhistoire de Mme. Bois-Laurier. La Haye (a La Sphre) 1748-1910.
Renato Janine Ribeiro. Literatura e erotismo no sculo XVIII francs o caso de "Teresa filsofa".
narrativas e imagens em romances licenciosos 351

sena de imagens, pois, como ressaltou Massillon, neles "freqentemente a arte


das gravuras acrescenta ainda mais ao escndalo das aventuras"
Monsieur Nicolas, no trecho citado, dizia que o Porteiro dos Cartuxos no
era uma obra inteiramente desconhecida para ele, pois j a havia "entrevisto na
casa da Mass" Madame Mass mantinha uma casa de prostituio na Rua des
Frtes, em Paris, onde, como era costume, deixava livros licenciosos disposio
de seus fregueses como "mise en jambes", ou seja, comooaqueles que tivessem de
aguardar sua vez.- Esse era o caso de Monsieur Nicolas:

Instalei-me ao lado de uma lareira, em um tipo de sof, e peguei o


livro com as figuras. Era D. B. [Dom Boiigre], que eu conhecia apenas de
nome. Li-o rapidamente. Eu estava no trecho em que Saturnino e a peque
na Suzette olhavam por uma fenda no tabique o que se passava no quarto
de Toinette, quando a porta se abriu.^'

Em um contexto de espera como esse, a narrativa nem sequer precisaria ser


lida, sendo concebvel imaginar a ao de um cliente que olha as imagens e se
excita enquanto espera.Tendo o Porteiro dos Cartuxos na mo, era possvel se de
parar com imagens como as seguintes, em que se vem pessoas em situaes er
ticas, e dar asas fantasia sem se preocupar em saber quem so essas personagens
e qual sua histria.

In: Adauto Novaes (org.). Libertinos libertrios. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 219-29;
Luiz Carlos Villalta. Tereza Filsofa e o frei censor: notas sobre a circulao cultural e as prticas de
leitura em Portugal (1748-1802). In: Eduardo Frana Paiva (org.), op. cit.
A leitura como forma de "mise en jambes" foi analisada por Goulemot, que observa o fato
de haver cenas de leitura em casas de prostituio referidas em diversos livros, alm de Monsieur
Nicolas, como Margot, a Remendeira, Teresa Filsofa e O Levantar da Cortina ou a Educao de Laura
(Goulemot, op. cit. p. 65).
" Nicolas Edme Rtif de La Bretonne. Monsieur Nicolas ou le coeur humain dvoil. Publi par
lui-mme. Avec figures. Imprime Ia Maison; et se trouve Paris, chs [sic] le Libraire indique au
Frontispice de Ia Derniere Partie. MDCCXCIV. Edio fac-similar publicada por Slatkine Reprints,
Genve-Paris, 1988. Em todas as outras citaes, eu apresentei o original na nota de rodap. Nessa
ficou faltando, por isso acrescento agora:
"Je me mis auprs d'un grand feu, sur une sorte de sofa, et je pris le livre avec figures. Ctait
D.B., que je ne connaissais encore que de nom. Je le lus avec rapidit. J*en tais Saturnin regardant
par une fente de Ia cloison, avec Ia petite Suzette, ce qui se passait dans Ia chambre de Toinette,
lorsque Ia porte s'ouvrit" (5. poca, p. 2007 traduo minha).
mrcia abreu

Histoire de Do??i Boiigre, Portier des Chartreiix. Pginas 56 e 102.""

Entretanto, a autonomia das imagens em relao ao texto relativa, pois, na


maior parte dos casos elas claramente sintetizam uma situao narrativa, atian-
do a curiosidade de quem as observa para conhecer os acontecimentos a figura
dos, como se v, por exemplo, na imagem seguinte:

Histoire de Dom Bougre, portier des chartreux nouvelle ditiou rcvue siir le texte original
augmente de tons lespassages snpprimcs dans loutes les ditiom modcnies. Et precede d'une prface par
Helpey, bibliographe poitevin. Cluny: chez le sacristains des carmes, s.d. Essa e as demais edies
analisadas aqui pertencem ao acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal.
narrativas e imagens em romances licenciosos

Histoire de Dotn Bougre, Portier des Chnrtreux. Pgina 106.

Diferentemente das duas anteriores, no h aqui corpos nus em cenas er


ticas nas quais, para alm qualidade da moblia, nada indica a origem, a condio
ou a situao em que se encontram as pessoas. Nesse caso, as roupas trazem im
portante carga de informao, especialmente no caso do homem, que porta um
hbito monstico, indicando que se trata de um religioso. Ele est visivelmente
excitado diante de uma mulher cujos seios esto expostos, sem, entretanto, dar
mostras de qualquer lubricidade. Atrs dessa mulher claramente zangada, uma
moa parece querer escapar da cena que, se bem observada, mostra ter sido palco
de algum destempero, tendo em vista o fato de o religioso estar diante de uma
cama quebrada. Uma imagem como essa possivelmente atiaria o interesse do leitor
pelo enredo, levando-o a se perguntar: o que teria acontecido com essa gente?
Se ele comeasse a ler, descobriria que as personagens envolvidas so
Catarina (ou Toinette, na edio francesa), me de Saturnino (Saturnin), a qual
traa o marido Arabrsio (Ambroise) com o Frade Policarpo (Fere Polycarpe), o
qual foi surpreendido por ela enquanto tentava possuir sua filha, Suzana (Suzette
/ Suzon). Ao entrar no quarto e perceber do que se tratava. Catarina estapeou os
dois, obrigando Suzana a sair dali, fora de bofetadas. Talvez o leitor j decidisse
continuar a ler, caso ficasse fisgado por um enredo em que se misturam infideli-
dade, religio, disputas familiares e alguma violncia.
Se, entretanto, ele fosse do tipo minucioso, que tudo observa, necessria-
354 mrcia abreu

mente teria deler mais para entender por que motivo a me tinha os seios expos
tos, e por que a cama havia se quebrado. Para tanto, ele teria de retroceder umas
poucas pginas, chegandoJustamente ao ponto em que Monsieur Nicolas aban
donou a leitura: "no trecho em que Saturnino e a pequena Suzette olhavam por
uma fenda no tabique o que se passava no quarto de Toinette" O que eles viam
pela fenda no tabique era justamente sua me tendo relaes com o Frade. Aob
servao da cena os excitou de tal maneira que os irmos tambm decidiram ter
relaes sexuais. Como se tratava da primeira experincia de Saturnino, houve
alguma dificuldade, o que fez com que a"violncia dos movimentos" fizesse par
tir um parafuso da cama, derrubando os jovens no cho. A me, que estava no
aposento ao lado, ao ouvir o barulho, correu para o quarto do rapaz. Assim como
seus filhos excitaram-se ao v-la com o Frade, ela tambm se excitou ao v-los,
ou, como narrou Saturnino: "[. . .] olhava-nos com olhos animados mais de
lubricidade que de furor"." Desse modo, nosso curioso leitor ficaria sabendo por
que havia uma cama quebrada atrs do Frade. Bastaria ler mais uns tantos par
grafos para saber que a lasciva me seduziu e teve relaes com o filho, divertin-
do-se bastante at que, ouvindo "um estrondo surdo" no quarto ao lado, vestiu-se
apressadamente, mal cobrindo os seios, e foi ver do que se tratava. Nesse momen
to, encontrou seu amante e sua filha na situao que j conhecemos.
A partir da nosso suposto leitor no teria mais dvidas sobre os elementos
presentes na estampa e, se tivessepreocupaes semelhantes s nossas, j teria per
cebido que as imagens podem ser pontos de sntese do enredo. Se ele tivesse to
mado para ler uma edio ilustrada de Teresa Filsofa, o efeito de sntese do enre
do obtido pelas figuras seria ainda mais evidente, pois, em muitas delas se inseriam
pequenas legendas sob as estampas, resumindo o contedo da cena, como por
exemplo: "Teresa, com 9 anos, brinca em um celeiro com meninos e meninas da
sua idade: efeito de um temperamento prematuro", "O voluptuoso padre Dirrag
castiga sua penitente", "Ele sente prazer com isso: propriedade do cordo de So
Francisco" e assim por diante.^"* Mesmo nas edies em que no h legendas, as
" As citaes procedem de uma edio em portugus, a qual segue bastante de perto a francesa,
embora opere algumas alteraes. Intitulada Saturnino, Porteiro dos Frades Bentos, teria sido composta
"na Impresso do Anonimo Brazileiro", em 1842. O Brasil toma parte na obra no apenas na indicao
bibliogrfica com freqncia falsa , mas tambm no enredo, uma vez que Saturnino apresenta-se
como sendo "fructo da incontinncia dos Reverendos Padres Bentos da Cidade do Rio de Janeiro!..."
Na edio firancesa, o narrador afirma ser "le fruit de Tincontinence des Reverends Peres Clestins de
Ia Ville de R". A coincidncia na letra com que principia o nome da cidade e o fato de o romance
estar sendo vertido ao portugus pode ter estimulado o tradutor a definir o nome da localidade como
sendo o Rio de Janeiro. No final do livro, a edio francesa declara que Saturnino tomou o caminho
de Paris, o que, na edio em portugus substitudo por "caminho da cidade do Rio de Janeiro".
Devido s referncias cidade presentes no incio e no desfecho da narrativa, o leitor levado a crer que
as aventuras de Saturnino teriam como cenrio a cidade do Rio de Janeiro e seus arredores e, como
protagonistas, seus religiosos. No obstante, essas referncias nem sequer garantem que se trate de
uma edio feita no Brasil, tendo em vista a prtica de se criar falsas tipografias e editoras assim como
falsos locais de edio na tentativa de burlar a censura e as perseguies policiais. So feitas tambm
pequenas modificaes nos nomes de algumas personagens (Madame Dinville torna-se Hermogenia;
Toinette torna-se Catarina, enquanto Ambroise permanece Ambrsio e Suzon, Suzana). [Annimo].
Saturnino, porteiro dos frades bentos, [s.l.]: Na Impresso do Anonimo Brazileiro, 1842, p. 55.
" Ver Jean-Marie Goulemot, op. cit., p. 168.
narrativas e imagens em romances licenciosos 355

imagens, juntamente com os longos ttulos apostos aos curtos captulos de Teresa
Filsofa, podem produzir resultado semelhante, permitindo que se acompanhe a
narrativa, mesmo sem l-la.-'
Essa caracterstica permite diversos usos do livro e diferentes formas de lei
tura. Mesmo uma pessoa iletrada, ou incapaz de ler em lngua estrangeira, pode
ter interesse em um livro desse tipo, visando observar suas imagens.-^ Um leitor
pouco proficiente pode socorrer-se do auxlio das figuras para melhor compreen
der o enredo; um leitor desatento pode valer-se delas para recuperar informaes
nas quais no prestou ateno (e, no caso de um livro como esses, os motivos de
desateno podem ser bastante bvios) e qualquer um deles, mesmo o leitor mais
instrudo, pode lanar mo das imagens para relembrar o enredo j conhecido
ou, simplesmente, para excitar-se.
Objetos para ler e ver, os livros licenciosos tomam essas duas atividades como
prticas centrais em sua composio. Pode-se dizer que o ato de ver constitutivo
dos romances licenciosos, mesmo quando no h imagens. Eles estimulam e agu
am o voyeurismo que, de uma forma ou de outra, sempre est presente quando
algum toma um romance para ler, uma vez que parte de seu interesse observar
a vida, a intimidade e os pensamentos dos que se movimentam a sua frente. No
caso dos romances licenciosos, trata-se de observar momentos muito especficos
da vida, da intimidade e dos pensamentos de personagens que tm como objetivo
central excitar-se e ter prazer.
Assim, no se trata de um voyeurismo tomado em sentido lato, como gosto
pela observao.Trata-se sim de voyeurismo em sua acepo mais literal, ou seja,
da representao de um "indivduo que experimenta prazer sexual ao ver objetos
associados sexualidade ou o prprio ato sexualpraticado por outros",como ensina
o Dicionrio Houaiss. Criando uma interessante situaode mise-en-abyme, em que
um acontecimento se repeteno interior de outro, os romances licenciosos no ape
nas estimulam o voyeurismo leitor, mas encenam constantemente o das persona
gens: elas espreitam umas s outras, seja por buracos nas paredes e nas fechaduras,
seja escondidas atrsde mveis e cortinados ou de rvores e plantas.^^ Acentuando

" Os captulos recebem ttulos como "Efeito do temperamento de Teresa com a idade de nove
anos. Sua me a surpreende"; "Continuao do efeito do temperamento de Teresa aos nove anos nas
suas brincadeiras com outras meninas e meninos da mesma idade"; "Aos onze anos Teresa posta no
convento e ali faz a sua primeira confisso". (Annimo). Teresa filsofa. Trad. Maria Carlota Carvalho
Gomes. Porto Alegre: L&PM, 1999.
A forte represso circulao desses livros fez que edies em portugus surgissem
tardiamente, no sculo XIX, o que os tornava objetos destinados, sobretudo, a uma elite intelectual,
capaz de ler francs. No obstante, registram-se diversos casos de tradues manuscritas de obras
proibidas, o que revela um interesse mais amplo por esses textos e a relativa ineficcia da censura. A
circulao de manuscritos est atestada, por exemplo, no processo de Jos Anastcio da Cunha, preso
pela Inquisio de Coimbra, em 1778. Ver: Joo Pedro Ferro. O processo de Jos Anastcio da Cunha na
Inquisio de Coimbra (1778). Lisboa: Palas Editores, 1987.
" Para Robert Darnton, o voyeurismo um recurso constante nos romances libertinos: "se
alguma tendncia distinguia essa categoria como um todo, era o voyeurismo. Em todas as histrias de
deboche, as personagens se observavam umas s outras pelo buraco da fechadura, atrs de cortinas ou
de arbustos, enquanto o leitor espiava por cima de seus ombros. As ilustraes completavam o efeito.
Em geral mostravam casais copulando ante o olhar secreto de um narrador ou, mais comumente.
356 mrcia abreu

O gosto pela observao, a esse voyeurismo encenado com palavras acrescentam-


se, em geral, imagens que retratam o momento em que algum espia uma cena
de sexo.
A cena j comentada, em que Saturnino e a irm observam a me, foi re
presentada em diversas edies do livro, com maior ou menor qualidade tcnica.
Da mesma forma, nunca falta uma cena um pouco anterior, na qual Saturnino
toma conhecimento da origem dos estranhos barulhos que ouvia no quarto de
sua me, espiando por uma abertura e descobrindo, de uma s vez, tanto o que
acontecia ali quantoa origem dos sentimentos que o agitavam j h algum tempo
alm da forma de apazigu-los.
Na edio francesa, de onde provm as imagens anteriores, a cena inicial
assim representada:

Histoire de Dom Bougre, portier des chartreux. Pgina 38

de uma narradora , que podia estar entregue masturbao, como se convidasse o leitor a fazer o
mesmo. Anjinhos lascivos, postados no alto da ilustrao, com freqncia observavam a cena. A
interao entre imagem e texto multiplicava o efeito de espelhos dentro de espelhos, conlerindc ao
conjunto um ar teatral. O sexo nos livres pltilosophiqiics era rococ e tambm filosfico" Robert
Darnton, op. cit., p. 88-89.
narrativiis e imagensem romances licenciosos 357

Um observador pouco atento talvez nem notasse a presena do rapaz, da mes


ma forma que o casal no parece ter-se apercebido de nada. Entretanto, basta olhar
com um pouco mais de ateno para que se perceba o garoto, olhando por uma
estranha abertura, localizada a poucos centmetros da cama onde est o casal. Con
trastando com a imagem do rapaz, inserida em um canto e parcialmente oculta
por uma espcie de cortina, os rgos sexuais so apresentados de frente, no cen
tro da imagem e em destaque. possvel imaginar que os personagens se exibem
para quem os obser\'a, mas, dada a disposio dos corpos e a localizao do rapaz,
parece claro que, se eles se exibem, o fazem para o leitor que, ao contrrio de
Saturnino, os olha de frente.
Em Histoire de Gonherdom, Portier des Chartreux, a cena praticamente a
mesma embora tenha havido uma inverso fato comum quando se prepara
uma matriz para a impresso desconsiderando-se que a imagem ser invertida ao
ser estampada. Como nenhuma das edies tem data no possvel saber qual
delas foi fonte para a cpia se que ambas no tomaram uma terceira imagem
como modelo.

Histoire cie Goubcrdow, portier des chortrcux. Pgina 6.-

Hisioirc le Goiibcrdom, portier des ehiirlretix. CcUc hdition a ctc re\'ue, corrigee & augmcntc
sous Ics yeux du Saint Fere, s.d. Fremiere partie.
358 mrcia abreu

Embora sejam muito semelhantes, basta algumaobservao para que se per


ceba que no so a mesma imagem apenas invertida. Naquela que ilustra a hist
ria de Gouberdom anagrama de Dom Bougre o rapaz ganha algum destaque
devido distribuio da luz no espao da gravura, que faz com que a parede atrs
da qual se esconde seja a mais iluminada do quarto. A figura que observa tam
bm ganha destaque pelo simples fato deestar direita e no mais esquerda,
como em Histoire de Dom Bougre , pois, habituados que estamos a mover os
olhos da esquerda paraa direita diante de uma pgina, voltaremos provavelmente
nosso olhar para o local em que se encontra o rapaz.
Aobservao atenta permite perceber que, apesar deas imagens serem muito
semelhantes, at mesmo em pequenos detalhes como as chinelas da me ao p da
cama, h uma forte diferenana maneira de retratar os pequenosvoyeurs.

Histoire de Gouberdom (detalhe). Histoirede Dom Bougre (detalhe)

Enquanto a imagem extrada de Histoire de Gouberdom parece indicar al


gum constrangimento, ou talvez tristeza, pela posio dos olhos com as plpebras
baixas e pela boca entreaberta como quem se espanta, em Dom Bougre se v cla
ramente que o rapaz ri enquanto observa a cena. Teria o ilustrador da Histoire de
Gouberdom se incomodado com a idia de que algum se divertisse vendo a me
traindo o pai com um padre? Ou teria acreditado que era mais verossmil retratar
um jovem ligeiramente constrangido em uma cena como essa? Jamais sabere
mos, mas o que fica claro que, mesmo cm casos em que h reproduo de ima
gens entre um livro e outro pode haver interveno dos ilustradores que deixam
sua marca nos menores detalhes.
O ilustrador de uma traduo para o portugus, supostamente impressa no
Brasil em 1842, possua um apuro tcnico bastante inferior e criou uma cena
desarticulada, em que o primeiro plano ocupado por objetos que pouco contri
buem para o erotismo da cena como uma cadeira, uma p, um balde com frutas,
um pedao de garrafa e um jarro.

Satiirtiiiio, porteiro dos frades beatos. Na impresso do Anonimo Brazileiro, 1842.


narrativas e imagens em romances licenciosos

a.if

Sfimr/fino, porteiro cios frades bentos. Pgina 6

Embora menos cuidadosa que as demais, a imagem se vale dos mesmos ele
mentos: uma cama, dojs amantes, (fazendo todo o contorcionismo necessrio para
que seus corpos se tornem o mais visveis possvel) e um rapaz que observa. Aqui
tambm o ilustrador deixou sua marca. Talvez mais anticlerical que os outros, o
autor dessa imagem fez questo de deixar claro que o homem um religioso, ao
apresenta-lo ainda vestido com parte do hbito monacal e, principalmente, por
destacar o fato de ele ter seu cabelo tonsurado. Se, nas outras cenas, a proximida
de entre os amantes e o jovem voycur parecia excessiva, aqui se torna quase im
possvel supor que os amantes no se apercebessem da presena do rapaz. Mas,
estando absortos em seus prazeres, talvez eles no o vissem realmente. Entretanto
o leitor dificilmente deixaria de perccb-lo, pois, ao contrrio das outras imagens
no h apenas uma pequena abertura na parede, mas sim uma grande porta, pela
qual se pode ver o moo de corpo inteiro. O ilustrador optou tambm por deixar
muito claro que o prazer do rapaz no se limita a olhar, criando um quadro em
que h no apenas uma, mas duas cenas de sexo.
Nessa mesma edio, a ilustrao correspondente ao momento em que os
irmos observam a me inusitada em relao s demais. Nos livros licenciosos,
em geral, embora as posies dos corpos permitam pensar que os amantes se exi
bem para o leitor, eles se mostram inteiramente absorvidos pelo que fazem e por
seus parceiros, parecendo ignorar o mundo exterior ao quadro. Isso ocorre em
Histoire cie Goubedron e em Histoire de Dom Bougrc.
Saturnino, porteiro cios frades bentos. Pgina 53
narrativas e imagens em romances licenciosos 361

Assim, o jogo dos olhares se torna mais complexo, pois Suzana observa os
amantes enquanto Saturnino, segundo indica o texto, deveria estar examinando
a moa minuciosamente "desejoso ento de experimentar se o exemplo ope
rava, principiei a levantar-lhe as saias, e no achei mais que uma leve resistn-
cia".^ A ilustrao deixa claro, entretanto, que, embora o jovem estivesse debaixo
de suas saias e se masturbasse, ele no olhava para Suzana, mas, talvez, para aque
le que olhava para ele. O jogo do texto e da imagem parece indicar a possibilidade
de que o leitor faa como o rapaz e passeda obser\'aoao ato.^'
Esse jogo de olhares pode ser tambm encenado no interior das imagens
pelo recurso a esttuas voltadas em direo dos amantes com ar malicioso, como
se v nessa cena em que at mesmo Cupido parece um pouco espantado com o
entusiasmo dos amantes.

Histoire (ic Dom Bougrc. Pgina 132

Cupido e seus companheiros mitolgicos, Priapo e stiros, comparecem no


apenas na forma de esttuas nos jardins, mas tambm em pinturas penduradas
nas paredes dos cmodos em que os amantes se encontram. Elas guardam espao
tambm paraquadros que figuram casais mantendo relaes sexuais, criando, no
vamente, uma situao de nse-en-abymc-, um efeito de espelho em que uma cena
se repete no interior de outra. o que sev, por exemplo, na imagem a seguir, em
lAnnimo], SaUirnino, porteiro dos fratics hciitos. s.l.: Na Impresso do Anonimo Brazileiro,
1842, p. 52,
" Segundo Roberl Darnton, "o voyciir com freqncia se masturba, implicitamente convidan
do o leitor a imit-lo: pois a cadeia de voyeiirs termina por fim no leitor, o nico que observa sem ser
visto" (Darnton, 1998, p. 122).
362 mrcia abreu

que alm da profuso de corpos representados em primeiro plano em zona ilu


minada, h reduplicaes no quadro na parede, na esttua sobre o aparador e at
mesmo em um curioso candelabro de forma flica.

li
mm

Histoire cieDom Bougre. Pgina 202

O procedimento de mise-en-abyme se faz presente tambm nas encenaes


de leitura que os romances freqentemente contm. Em numerosas imagens, li
vros repousam ao lado de casais entregues a relaes sexuais, indicando certa conti-
gidade entre leitura e sexo. Nas diversas ediesrelativas histria de Dom Bougre
os livros aparecem apenas em cenas que envolvem religiosos, como freiras e padres,
ou em locais como conventos e igrejas, o que permite supor que no se trate de
romances lascivos, mas sim de obras religiosas. Tendo lido ou fingido ler as
obras pias, os religiosos e os devotos entregam-se a prticas sexuais, acompanhados
ou solitariamente. A associao entre religio e sexo to comum nos livros
licenciosos aqui se refora pela insero de escritos religiosos em locais nos
quais caberiam obras libidinosas, ou seja, como aquecimento para o ato sexual.
narrativas e imagens em romances licenciosos 363

J em Teresa filsofa a presena de livros e as prticas de leitura so muito mais


freqentes e variadas. Nele a tematizao da escrita e da leitura condio mesma
da existncia do texto, j que o livro apresentado como fruto da insistncia do
Conde,amante de Teresa, para que ela registrasse por escrito sua vida e, principal
mente, suas experincias sexuais para que ele pudesse l-las, depois de j t-las ouvi
do contar. Aps fazer algum negaceio, a moa aceita escrever sua histria, esmeran-
do-se para que as cenas vividas"nada percam de sua lascvia" de modo que o Conde
possa ver "todos os recnditos do seu corao desde a mais tenra infncia", conhe
cendo "inteiramente os detalhes das pequenas aventuras que, sem que percebesse a
conduziram, passo a passo, ao auge da volpia'?- Se nas imagens j comentadas o
leitor espreitava por cima do ombro de um personagem que observava cenas de
sexo,aqui o leitor l por sobre os ombros do Conde, primeiro destinatrio do texto.
A leitura ganha ainda maior relevncia no final da narrativa, quando o mes
mo Conde faz uma singular aposta com Teresa. Diante de sua recusa em ser pe
netrada, apesar de j ter vivido as mais animadas aventuras sexuais com diversos
parceiros, o amante decide "mandar vir de Paris [sua] biblioteca galante, com [sua]
coleo de quadros no mesmo gnero" e prope-lhe um acordo:

Ento, senhorita Teresa [. . .], gostais das leituras e das pinturas


galantes? Estou encantado comisso. Tereis ascoisas mais notveis. Mas, por
favor, faamos um pacto: consinto em vos emprestar e em colocar em vosso
aposento a minha biblioteca e os quadros durante um ano, contanto que
vos comprometais a ficar durante quinze dias semcolocar a mo nessa par
te que, com toda justia, deveriahoje pertencer ao meu domnio, e que, sin
ceramente, vos divorcieis do manualismo?^

Acreditando intensamente no poder das narrativas e das imagens, o Conde


chega a propor a Teresa uma aposta: "aposto a minha biblioteca e os meus qua
dros contra a vossa virgindade, que no observareis a continncia durante quinze
dias, como prometestes".^ '
Assim como o amante de Teresa, o historiador Thomas Laqueur^^ observou
um interessante paralelismo entre a masturbao e a leitura de romances. Eleperce
beu coincidncias importantes entre as inquietaes de mdicossetecentistasacer
ca do onanismo e as preocupaes de letrados sobre a leitura de obras ficcionais.
Segundo ele, no seria mera coincidncia o fato de importantes obras de combate
prtica dosexo solitrio, como Onania (supostamente escrita pelo ingls JohnMarten
e publicada em 1712) e VOnanisme (do mdico suo Samuel-Auguste Tissot,
publicada em latim em 1759 e em francs em 1760) terem sido contemporneas
da criao e ascenso do romance moderno. No se trata, portanto, de relacionar

" lAnnimo]. Teresa filsofa. Trad. Maria Carlota Carvalho Gomes. Porto Alegre: L&PM, 1999,
pp. 25-6.
" Ibidem, p. 155.
''' Ibidem, p. 156.
Thomas W. Laqueur. Solitary sex: a cultural history of masturbatiou. Nova York: Zone Books. 2004
364 mrcia abreu

somente as obras licenciosas masturbao e sim de associ-la a um modo pecu


liar de leitura suscitado pelognero romanesco comoum todo. Realizada de forma
privada esolitria, solicitando um vigoroso contato com aimaginao, gerando certo
tipo deabsoro e um forte envolvimento corpreo, a leitura de fico era no ape
nas um problema em si, mas tambm incitadora de um perigo maior: a prticado
prazer solitrio. Os temores suscitados pela leitura de romances, assim como os
originados da prtica da masturbao, so, segundo Laqueur, frutos de um mes
mo mundo, em que a individualidade progressivamente adquiria papel central.
Os letrados da poca, como os j mencionados Massillon e Bretonne, no
acreditavam que fosse possvel resistir seduo dos romances em gerale, especial
mente, promovida pelos licenciosos. Mais preocupados ainda ficavam com a
leitura ficcional praticada por mulheres, cuja imaginao parecia exacerbada e
cujo corpo aparentava ceder facilmente diante de estmulos externos, produzindo
rubores, desmaios e torrentes de lgrimas. No toa, portanto, que se produziram
copiosamente imagens de mulheres que se abandonam ao onanismo ao lado de
livros entreabertos ou espalhados pelo cho. A imagem da mulher que l, diz Laqueur,
torna-se, assim, uma forma de figurao modelo da prtica da masturbao. '^
Curiosamente, Teresa Filsofa um romance licencioso que se junta cru
zada contra a masturbao, atividade que obseda a personagem principal desde a
infncia e da qual o amante quer livr-la no porque recriminasse o onanismo
como doena e ameaa sade, como alguns de seus contemporneos, mas por
que queria atrair Teresa para novos prazeres nos quais ele pudesse tomar parte.
Por isso, recorria aos livros com objetivo oposto ao que comumente se fazia. Ex
pondo sua amante s narrativas e imagens lbricas ao mesmo tempo em que a
impedia de se masturbar para ganhar a aposta, ele esperava pr fim masturbao
e faz-la desejar ser penetrada. Teresa mostrou uma resistncia admirvel, sendo
capaz de conservar-se firme por quatro dias, mesmo tendo observado "quadros
onde as posies mais lascivas eram apresentadas com um colorido e uma ex
presso que levavam um calor incandescente s [. . .] veias" e tendo lido a apa
rentemente irresistvel "histria do Portier des Chartreux^^ e uma srie de outros
livros licenciosos"La Tourire des Carmlites, VAcadmie des Dames, Les Laiiriers
Ecclsiastique, Thmidore, Frtillofy etc. e numerosas outras dessa espcie".^^
Obviamente, uma edio ilustrada no poderia perder a oportunidade de re
tratar tal situao especular. Foi o que se fez, por exemplo, em interessante edio,
publicada supostamente em Londres em 1783, e ornada com 36 guas-fortescolo
ridas.^ A penltima delas sintetiza a situao h pouco narrada, mostrando o quar
to de Teresa, no qual havia pilhas de livrose grandes pinturas representando cenas
lascivas. No centro do quadro, a jovem Teresa, com a aposta inteiramente perdida.
Thomas Laqueur reproduz e analisa diversas dessas imagens em seu livro.
(Annimo). Teresa filsofa, cit., pp. 156-7.
Therese philosophe. lere. Partie avec figures. Londres, 1783. lleme. Partie avec figures. Londres,
1783. Segundo uma notcia bibliogrfica colada na encadernao do exemplar conservado pela Biblio
teca Nacional de Lisboa (cota ERO 98) trata-se de: "Curiosit bibliographique. Thrse philosophe ou
mmoires pour servir Thistoire de D. Dirrag et de Mlle Eradice, avec Thistoire de Mlle Bois-Laurier.
Londres (La Haye), 1783, 2 vol. In 12, br, dans un tui. 280 fr. Reimpression moderne et exacte de cette
dition et orne de 2 frontispice, 2 titres et 36 eaux-fortes libres hors texte attribues Binet. Rarc."
narrativas e imacens cm romances licenciosos

im-v
ti!; -;^V.. 1

Tlwrcsc PhilosopJtc. Il"'^ Partic. Pgina 72

O voyeurismo contido em cada um desses elementos


amplificado pela presena do Conde, que espreita por um can
to da porta, em prontido, enquanto mostra sua mo espalma f
da, claramente resistindo ao mamiahsno.
366 mrcia abreu

A situao especular no se d apenas no nvel das imagens, pois a cena em


que Teresa posta prova e, como vemos, fracassa redondamente, narrada em
um captulo cujo ttulo poderia encimar um dos diversos escritos produzidos con
tra os romances, "Efeitos da pintura e da leitura", o que lhe confere certo ar de
zombaria. Os detratores da fico romanesca e o autor de Teresa Filsofa apresen
tam os mesmos resultados da leitura e da observao de imagens licenciosas: a
moa no apenas foi incapaz de abster-se da masturbao, mas chegou a superar
seu maior receio, aceitando ter relaes sexuais completas com o Conde. Entre
tanto, onde os adversrios da leitura viam a prova do mal, o autor de Teresa Filso
fa v, ironicamente, um final feliz.
Sem o menor temor de melindrar o leitor, o ilustrador alterou, de uma ima
gem a outra, a cena retratada a qual, segundo o texto, se desenrola na seqncia e,
portanto, no mesmo lugar.

Tlierese Philosophe. IP""". Partie. Pgina 74.


narrativas c imagens em romances licenciosos 367

A alterao sutil e envolve as pinturas penduradas na parede. Na primeira


imagem, havia dois quadros, colocados um sobre o outro. No superior, uma est
tua representando Priapo, de frente, rodeado por corpos nus entre os quais um
casal mantendo relaes sexuais; no inferior, um homem e uma mulher desnu
dos. Ao preparar a imagem final, o ilustrador alterou a quantidade, a disposio e
o contedo das pinturas penduradas na parede, criando um grande quadro no
alto e dois menores abaixo. Dos pequenos, vem-se apenas as molduras; o maior
mostra uma esttua de Priapo, dessa vez voltada para o lado, tendo seu falo
incensado, enquanto dois jovens nela apoiados se entregam ao amor. Ainda que
discretas, as referncias a Priapo nas duas ltimas imagens do livro, criam uma
interessante circularidade, pois remetem ao ffontispcio da segunda parte, em que
se vem Priapo e os amantes, de forma muito mais explcita.

Theresc Pllosophe. 11^^ Partie. Frontispice'

A expresso "Aspicit et fulgent. Volt", que encima a imagem significa "(Priapo) olha e (os
casais) brilham".
368 mrcia abreu

A representao de esttuas de Priapo, seja em quadros em paredes, seja em


jardins, erabastante comum nos livros licenciosos. Odeus Priapo^" apresenta duas
caractersticas fundamentais: seu falo sempre ereto e seu carter agrrio, fecunda-
dor e protetor dos jardins e das hortas, ameaando aos ladres e invasores, com
violncia de ordem sexual. O deus tem ainda a bvia funo de propiciar o bom
xito dos intercursos sexuais. Segundo Carlos de Miguel Mora, seu aspecto gro
tesco fazia dele "o deus da sexualidade mais frontal e directa, por oposio sen
sualidade de Vnus e Cupido, e dava azo a uma considerao pouco sria dos
seus atributos e atribuies". Por isso, o deus se fazia presente, sobretudo, na lite
ratura satrica, pardica e humorstica^' e, sabemos ns, tambm na licencio-
sa. Se Cupido, vez por outra, faz uma apario nas imagens que povoam os livros
libertinos, Vnus no parece ter lugar quando se trata de licenciosidade explcita.
Essa literatura, vista como da mais baixa extrao, no abriga musas e divindades
do primeiro escalo e sim divindades menores, como Priapo."*^
Sua presena ganha uma conotao particularmente interessante nos casos
em que estabelece uma relao no com os personagens do livro ou com aman
tes abstratos que se deliciam a seus ps, mas com escritores, em imagens que pa
recem representar os autores dos livros. Brincandocom a tradio que fazia retra
tar, no frontispcio das obras, imagens do escritor em contato com sua Musa, os
ilustradores de obraslibertinas substituem-na por uma esttuade Priapo.

^0 H polmica sobre a origem de Priapo. Certas fontes o apresentam como filho de Vnus e
Baco, justificando o tamanho de seu pnis como uma punio da promiscuidade da me, por )uno,
protetora do matrimnio. Outras verses o do como filho de Vnus e Jpiter e explicam o tamanho
de seu falo tambm como punio de Juno, que temia uma criatura que tivesse a beleza da me e o
poder do pai. Ao observar o filho, no momento do nascimento, Vnus teve vergonha de ter concebido
um ser disforme e abandonou-o nas montanhas. Ele foi recolhido e criado por pastores, o que explica
seu carter rstico e humilde. H, ainda, os que o supem filho do mortal Adnis, protetor das plan
taes, assim como Priapo. Joo ngelo Oliva Neto. Falo no jardim priapia grega, priapia latina.
Cotia/Campinas: Ateli/Unicamp, 2006.
" Carlos de Miguel Mora. Os trs castigos de Priapo: o sexo como arma no Corpus Priapeo-
rum. In: A. M. Ferreira (coord.). Percursos de Eros: representaes do erotismo. Aveiro: Associao Labor
de Estudos Portugueses/Universidade de Aveiro, 2003.
As literaturas grega e latina contam com diversos poemas que simulam a fala ameaadora de
Priapo, em tom ertico e bem-humorado. A coleo de poemas pripicos latinos mais extensa o
Corpus Priapeorum, composto por oitenta epigramas em que, em tom brincalho, se toma o deus
como temtica principal. Os poemas simulam terem sido retirados de escritos autnticos encontrados
em jardins ou no pedestal de esttuas do deus. Ver Carlos de Miguel Mora, op. cit. e Joo ngelo Oliva
Neto, op. cit.
narrativas e imagens em romances licenciosos

Lcsplaisirs de rAndcii Rc^ittie^-^

Nessa imagem, que serve de frontispcio a uma antologia de poesia ertica,


o cenrio convencional, que colocava o autor escrevendo, prximo natureza,
em um jardim, quebrado pela presena de Priapo, no lugar que caberia a uma
das nove musas. Irreverente, o ilustrador substitui o tradicional tinteiro representa
do nesse tipo de imagem pelo pnis do deus, indicando, talvez, que sua escrita se
origine dessa fonte. Mas, quem sabe temendo as conseqncias de tal zombaria,
precav-se inserindo no quadro dois smbolos convencionais da inspirao poti
ca: a lira, representada no encosto da cadeira, e a figura de Pgaso ao fundo."'"'
Observa-se, tambm aqui, o procedimento de niise-efi-abynwy pois, assim como
acontece nas representaes dos leitores, a figurao de um escritor em vias de com
por a obra cria um efeito especular. o que se v na imagem seguinte, em que o
ilustrador fez de questo de indicar que se trata do "autor, tomado por seu assunto".

Fronstispcia dc Lcs phiisirs de rAiuieii Regime, el de tons lcs ages. A Londres, Imprime par
ordre dos Paillards. MDCCXCA'.
" O cavalo alado era um dos smbolos da inspiraijo potica por sua participaro no certarne que
envolveu as Musas e as Piridas, divindades com especial talento musical. Durante o concurso, que de
veria celebrar a que se destacasse por suas habilidades, o monte Melico inchou-se de prazer, amea
ando atingir os cus. Por ordem de Neluno, Pgaso fendeu a montanha com seu casco, devolvendo-a
a seu tamanho normal e fazendo jorrar a fonte Hipocrene, que, desde ento, tambm se tornou smbolo
da inspirao potica.
mrcia abreu

T HKRKSi:

I^IIJJ.OSOJPIJE

r:" PARTiK
av-cc jE^ures

O ilustrador, aqui tambm, brinca com a tradio. A convencional luz que


emana do cu, ao invs de indicar inspirao divina para o autor ou para seu li
vro, incide sobre uma jovem nua que l e se acaricia. O grande pnis refere tam
bm uma tradio antiga. Os romanos faziam pendurar, na entrada dascasas {pre
cisamente no lugar de passagem entre o mundo exterior e o interior), falos
semelhantes a esse, acreditando que o objeto seria capaz de afastar o mal.'^' Assim
como faziam os romanos, aqui se representa um falo, destacado de qualquer cor
po, na entrada do livro, ou seja, em seu frontispcio. Entretanto, como no se tra
ta apenas (ou propriamente) de proteo, o pnis representado em plenoorgas-
mo. O frontispcio condensa, assim, os sentidos mobilizados pela obra: a leitura,
o gozo c certa irreverncia em relao religiosidade.
A imagem lembra, ainda, um comentrio de Rousseau, em Coiifcssious, fei
to logo aps a narrativa de sua obsesso juvenil pela leitura, com a qual se iniciou
esse texto. Ele se orgulhava de jamais ter cedido seduo da locadora de livros
que lhe apresentava os "obscenos e licenciosos" com "ar de mistrio". Segundo
ele, a sorte aliada a seu carter pudico fizeram com que ele tivesse mais de trinta
anos quando, pela primeira vez, ps as mos em um desses"perigosos livros que
uma bela senhora do mundo acha incmodos, pois, como diz ela, eles no po-
" li) ngelo Oliva Neto, op. cit., pp. 48-156.
narrativas e imagens em romances licenciosos 373

dem ser lidos se no com uma s mo".^^ Mal sabia a senhora que esses so livros
que se lem, e se escrevem, com uma s mo.
Ao levar ao extremo os procedimentos romanescos e ao suscitar efeitos de
leitura bastante concretos, como os experimentados por Monsieur Nicolas ou por
Teresa, os romances licenciosos fornecem um bom ponto de observao, pois ne
les tudo amplificado. Eles so um caso-limite que pode tornar mais fcil perce
ber como se compreendia a leitura e a escrita de romances, bem como observar o
papel desempenhado pela fico no sculo XVIII.

"ccs dangereux livres qu'une belle dame de par le monde trouve incommodes, en ce qu'on
ne peut, dit-elle, les lire que d'une main". Jean-Jacques Rousseau. Confessions, Livre Premier (1712-
1728), Librairie Gnrale Franaise, 1963, pp. 72, 73, 74. 1 edio 1782 (primeira parte) e 1789
(segunda parte).
MALDITOS TIPGRAFOS'^

Nelson Schapochnik
Universidade de So Paulo

No me parece despropositado iniciar este ensaio sobre as turras e queixu-


mes dos homens de letras brasileiros contra a qualidade dos trabalhos tipogrficos
realizados nestas terras ao longo do sculo XIX com uma assero bastante bvia,
mas talvez, por isso mesmo, muito significativa. A afirmao de Roger Stoddard,
curador das Obras Raras da Biblioteca da Universidade de Harvard que, num en
saio conciso e de altssima qualidade, registrou:

Seja o que quer que faam, os autores no escrevem livros. Os livros


no so absolutamente escritos. Eles so fabricados por copistas e outros ar
tfices, por operrios e outros tcnicos, por prensas e outras mquinas. A
maioria dos livros escritos antes de 1600, digamos, so cpias. Cada cpia
manuscrita era transcrita de um exemplar manuscrito especfico, copiado
palavra por palavra, talvez linha por linha. Um copista poderia copiar o seu
exemplar com a completa liberdade de sua caligrafia, expandindo ou con
traindo suas letras ou palavras, adicionando ornamentos e elementos deco
rativos, de modo que cada cpia feita diferiria de todas as demais.
Com a mecanizao do processo, a imprensa criou a abundncia, a
imensa quantidade de cpias. Para atingir isto, ela mudou a relao entre o
exemplar e as cpias.'

* Este artigo apresenta resultados do subprojeto de pesquisa "Cartografia da leitura no Imprio


Brasileiro" que integra o Projeto Temtico Caminhos do Romance no Brasil: sculos XVIII e XIX,
financiado pela Fapesp (Proc. 02/08710-2).
' Roger Stoddart. Morphology and History of the Books on an American Perspective. Printing
History, v. IX, n." 17, 1987, p. 4.
374
malditos tipgrafos 375

O argumento irrepreensvel, poissalienta ao menos trs aspectos que taci-


tamente foram desconsiderados na tradio dos estudos histricos e literrios. O
primeiro deles repudia o uso no problemtico da categoria autor, evitando trans
ferncias ou empregos anacrnicos deuma concepo deautoria queemerge ape
nas em meados do sculo XVIII e estabelece uma unidade fundamental entre
autor e obra, gnio criativo e propriedade legal.- O segundo sublinha a importn
ciada perspectiva morfolgicano tratamento dos artefatos devotados leitura, con-
trapondo-se concepo eivada de idealismo e que concebe o livro "como trans
lcido portador de um contedo transcendente: o texto'? Sendo assim, ele chama
nossaateno para o papel das formas materiais na construo do sentido da ope
rao da leitura. Finalmente, Stoddart indica a necessidade de explicitar o papel
dos intermedirios esquecidos e sua insero no circuito de comunicao das
obras. Deste ponto de vista, artfices e tecnologias so mediadores que possibili
tam a passagem da realidade conceitualizvel do discurso para a materialidade do
texto, seja ele manuscrito ou impresso.
Estas consideraes tm imensa serventia e podem contribuir para uma
mudana nos horizontes da histria editorial sem desmerecer, decerto, o pionei-
rismo e as contribuies de trabalhos precedentes. A orientao que presidiu este
ensaio foi a de verificar, a partir de um conjunto bastante heterogneo de textos,
composto por um manual de carter prescritivo sobreasartestipogrficas no Brasil,
folhetins, correspondncias, paratextos e crnicas, como os homens de letras e
outros segmentos envolvidos na produo dos artefatos textuais fixaram repre
sentaes sobre a tipografia e os tipgrafos, quando no transformaram o labor
em matria do fazer literrio.
Como suficientemente conhecida, a aventura da cultura letrada na terra
brasilis esteve por muito tempo sujeita censura e ao obscurantismo dos rgos
de represso do Estado Monrquico Portugus."* A instalao de prelos, o incio
das atividades de impresso e o fim da censura s puderam efetivar-se aps a ins
talao daFamlia Real portuguesa noBrasil. ainda nobojo doprocesso deeman
cipao poltica que o monoplio da Impresso Rgia (que passou a ser denomi
nada de Imprensa Nacional) foi suspenso, favorecendo um processo gradativo de
instalao de novos estabelecimentos tipogrficos.
A iseno de tarifasalfandegrias para a importao de livros no perodo de
1819 a 1833, de acordo com Laurence Hallewell, e a existncia de um setor dedi
cado produo e o comrcio livreiro especializado em lngua portuguesa na Fran
a, representado pelas casas Didot, J. P. Aillaud e Beaul et Jubin, responsveis

^ Para a compreenso da historicidade da categoria "autor", veja HANSEN, Joo Adolfo


Hensen. Autor. In: Jos Lus Jobim (org.). Palavras da critica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. (s. Autor).
ris. Rio de Janeiro: Typ. de L.A. Ferreira de Menezes, 1848. Para uma histria dos debates e da pro
duo de dispositivos normalizadores da propriedade literria, do regime de privilgio ascenso dos
direitos autorais, veja Mark Rose. Authors and Owners. The Invention of Copyright. Cambridge:
Harvard University Press, 1993.
' Marisa Lajolo 8c Regina Zilberman. Afortnao da leitura noBrasil. So Paulo: tica, 1996, p. 60.
Sobre o papel da censura e a circulao livreira entre Portugal e o Brasil nos sculos XVI11 e
incio do XIX, veja: Mrcia Abreu. O caminho dos livros. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp, 2003.
376 nelson schapochnik

pelo repasse considervel de obras de natureza diversa para o Brasil, favoreceram


a instalao no Rio de Janeiro, em meados da dcada de 1820, de filiais de livrarias
francesas.^ Entre os recm-desembarcados na corte imperial, destacam-se repre
sentantes das casas Firmin Didot Frres, Mongie, Bossange e J. R Aillaud (repre
sentado por Souza Laemmert), sendo que alguns tambm conciliavam a prtica
da venda com o aluguel de livros "por dia, semana ou ms, por preo cmodo",
conforme anncios publicitrios publicados na imprensa carioca do perodo.'' Nes
ta conjuntura de organizao da infra-estruturado circuitoda cultura letrada num
contexto marcado pela rarefao do impresso, importante ressaltar o desembar
que de experientes livreiros-impressores franceses como Pierre Plancher, Gueffier
e Ren Ogier. Todos eles tiveram um papel significativo por introduzir procedi
mentos tcnicos e administrativos que no s atualizaram o patamar inicial repre
sentado pela Tipografia Nacional e as outras assemelhadas, como buscaram sin
tonizar a arte tipogrfica realizada naquele momento com as suas contemporneas
europias.
A imprensa em particular e a tipografia em geral foram apropriadas pelos
discursos responsveis pela construo de representaes eufricas e celebrativas.
A reunio da tecnologia e da informao espelhava a crena no progresso e na
irreversibilidade dos tempos vividos, estabelecendo um corte em relao ao pas
sado, identificado com a intolerncia, e ao obscurantismo. A crer nestas imagens
divulgadas pela imprensa e nos editoriais dos peridicos de vida efmera, mas que
contribuam para difuso dos valores tico-morais e para a formao da comuni
dade de leitores, as novaspossibilidades decorrentes do empregodo vapor e o triunfo
do impresso emblematizariam duas foras "uma na ordem fsica, outra na mo
ral"que,de acordo comos redatores da /r/s, "suprimiram osespaos, fraternizaram
os povos, fundiram os conhecimentos, ligaram n'uma s famlia cosmopolita os
membros espalhados da raa humana".^
Embora apresentasse argumentos solidriosao discurso do progresso repre
sentado pela imprensa, ao qual agregava o papel moralizador e fomentador do
"esprito pblico", o ensaio publicado no Beija-Flor (1830) destacava uma pers
pectiva no menos importante, cuja nfase remetia dimenso pragmtica e
utilitarista da imprensa entendida como organizao empresarial e industrial. O
articulista no deixava dvidas, ao mencionar que:

Alis, fazendo abstrao da influncia moral que a publicidade exerce


no desenvolvimento do esprito pblico, da educao e da indstria; con-
tentando-nos com o produto pecunirio deste ramo de trabalho, acharemos

^ Sobre a iseno tarifria e o estabelecimento de livreiros franceses no Rio de Janeiro, veja:


Laurence Hallewell. O livro no Brasil. So Paulo: TAQ/Edusp, 1985, pp. 130; 65-80.
* Sobre os gabinetes de leitura, entendidos como "boutiques lire", instalados na cidade do
Rio de Janeiro na primeira metade do sculo XIX, veja: Nelson Schapochnik. Os jardins das delicias:
gabinetes literrios, bibliotecas e figuraes da leitura na Corte Imperial. Doutorado em Histria Social.
So Paulo: FFLCH, Universidade de So Paulo, 1999, fls. 49-61.
^ (s. autor]. Introduco. In: . ris. Rio de Janeiro: Typ. de L.A. Ferreira de Menezes, 1848,
(s.p.j, V. 1. Nesta citao, como nas demais, foram introduzidas atualizaes ortogrficas pelo autor.
malditos tipgrafos 377

que entre diretores, compositores, impressores e distribuidores, mais de du-


zentas pessoas so empregadas e sustentadas por 54 publicaes, alm dos
mais ofcios que acham ocasionalmente algum lucro nos trabalhos anexos,
e dos mais empregos das imprensas, em obras extensas ou folhas avulsas,
bem como as profisses anexas de livreiros e encadernadores, podendo sem
exagerao, taxar-se em mais de 200 contos de ris o capital que nisto gira.
Uma aquisio industrial de tanta monta, de que no havia sombra havia 9
anos, merece que se apreciem bem as vantagens que a liberdade de impren
sa traz consigo, mormente quando se refletir que o impulso que d e as lu
zes que espalha a prol das mais indstrias, promovem empresas melhora
mentos cujo produto, se se pudesse avaliar em cifras, passaria de muito
aquele que diretamente emana da mesma liberdade.

O excerto explicita com clareza os vnculos entre a tipografia e a indstria,


sublinhando sua estrutura hierrquica, a aplicao de critrios de racionalidade e
diviso do trabalho, a complementaridade de funes e atividades, o nmero de
publicaes, a inverso de capitais, enfim, as dimenses do negcio. Apesar de
sua breve existncia, o setor era responsvel pela movimentao de uma quantia
bastante considervel para o perodo, sobretudo quando pensamos no nmero
reduzido de consumidores potenciais.
Entretanto, bom que se recordeque, assimcomo as livrarias do perodo ven
diam simultaneamente livros, rap, ch, tinta, papel e porcelana, no possvel es
tabelecer uma relao direta entre a expanso do nmero de tipografias e o cresci
mento da produo livreira,posto que elaseram incumbidas de preparar rtulos de
diversos produtos, folhetos, panfletos, ediode jornais, revistas e, qui, de livros.
Em 1832, Ren Ogier publicou o Mamml da Tipografia Brasiliense^ acres
centando logo abaixo do seu nome as credenciais "antigo impressor de Paris, e
estabelecido no Rio de Janeiro desde 1827". O emprego desta soluo grfica de
notava uma estratgia de autopromoo, apresentando-se como algum compe
tente para difundir a correta aplicao das normas e usos na produo de impres
sos, por isso elese dirigia a duas instnciasespecficas.
As prescries se voltavam para aqueles envolvidos diretamente na produ
o do impresso e na administrao do empreendimento, da afirmar no prefcio
"detalhei da maneira mais clara, e concisa, tudo o que ensina a dirigir com vanta
gem uma tipografia, bem como os conhecimentos prprios do aprendiz, compo
sitor e impressor". Contudo, ele no deixava de advertir, no mesmo prefcio, que
"esse Manual indispensvel aos homens de letras", exortando a importncia da
leitura deste livro como uma iniciao ao lxico,cdigos e tcnicas que passariam
a regular as relaes entre autor e editor.
O Manual um minucioso receiturio sobre as tcnicas de racionalizao
da produo manufatureira do impresso que envolvia a distribuio espacial dos

" Apud Da imprensa iiteraria no Brasil. Carta a Francisco Ferreira Soares. O Futuro, n " 7 15/
12/1862, p. 218.
378 nelson schapochnik

equipamentos empregados na tipografia, a diversidade dos materiais e utenslios,


a diviso do trabalho com as suas hierarquias e qualificaes exigidas na execuo
das diversas etapas do processo produtivo. O texto evidencia a assimetria entre as
funes exercidas por cada categoria detrabalhador, destacando tambm as espe-
cifcidades de cada compartimento da empresa.
No topo da tipografia encontrava-se o Diretor, tambm chamado de "chefe
da oficina", cujos atributos no se limitavam s questes tcnicas, mas incluam
uma srie de preceitos administrativos de ordem financeira, comercial e contbil.

O diretor o chefe encarregado das oficinas e de todos ao empregados


de casa. Ele deve conhecer ^oxfundamento^ por prtica e teoria todos os tra
balhos que se executam em tipografia; ser instrudo, para em ocasio de ne
cessidade rever ele mesmo as provas das obras que encarregado de fazer
executar.
Ele deve tambm conhecer todas as leis sobre a tipografia, a fim de se
conformar a eles estritamente.
Ele trata com os autores, livreiros e editores; recebe o original, manda
aos compaginadores, dirige a marcha das obras, vigia sua execuo, faz as
frias dos oficiais, as encomendas e despesas para o interior.
Um diretor deve ser atraente e afvel, ter muita ateno a prevenir os
desejos dos autores, e dos livreiros.'

Ogier no economiza palavras para descrever as relaes ideais que o Dire


tor, enquanto chefe da oficina, deveria travar com os demais funcionrios da casa.

Ele deve evitar de ter um tom de superioridade para com aqueles que
fazem trabalhar em sua casa.
de seu deverde poder falar com todos,e deve dar a mesma ateno e
amenidade em suas relaes com os oficiais.
Como uma tipografia um lugar digno de curiosidade, digno de ser
visto, as oficinas devem conservar-sesempre limpas.
Como tambm um lugar onde se trata muitas vezes trabalhos im
portantes, que reclamam discrio e assiduidade, o diretor d ordens a fim
que ningum possa entrar na tipografia para visitar as oficinas ou os oficiais
sem sua permisso; de resto, o diretor tem o direito de estabelecer qualquer
regulamento de ordem que ele julga conveniente de ser bem desempenhado.
Ele no pode contudo, constranger os oficiais seno a coisas legtimas
e racionais. Ele no pode torn-los responsveis seno naquilo que especial
mente lhes diz respeito.
Os interesses gerais e particulares, e tudo aquilo que convm pros
peridade da tipografia so de sua competncia.

' Ren Ogier. Manual da Tipographia Brasiliense. Rio de Janeiro: Typ. e Ed. R. Ogier, 1832, p.
214.
malditos tipgrafos 379

Ele o rbitro nato das contestaes que podem ter lugar entre os oficiais
relativamente obra. Ele deve ter a mo a que os trabalhoscomecem, sejam
suspensos, tornam a comear, e cessem todos a uma hora fixa, igual para
todos os empregados da casa, sem distino de grau, de oficiais por obra, de
oficiais por jornal,e a que cadaum semantenhaassiduamente em seu posto.

Abaixo do Diretor e apartada do convvio com os fornecedores de manus


critos, encontrava-se a comunidade dos trabalhadores, sendo tambm recomen
dada a existncia, se possvel, de "uma entrada particular para as oficinas e que se
no comunique com a dos autores". Ogier destacava a existncia de um padro
organizacional na tipografia que remetia velha tradio das corporaes, men
cionando uma hierarquia vertical entre tipgrafos, oficiais e aprendizes. de se
supora correspondncia entreo tipgrafo e o proprietrio dos meios de produo
reunidos no interior da oficina, bem como sua funo diretiva. Alm da dicotomia
de fundo, o lugar de cada trabalhador nessa ordemseassentava nos distintosgraus
de familiaridade com as habilidades e competncias leitoras. E assim, ele ressal
tava que:

Um tipgrafo deve possuir algum fundo de instruo: fora mesmo de


desejar que tivesse extensos conhecimentos em letras, artes e cincias, por
que muitas vezes os autores o consultam, e ele o seu rbitro. Um autor se
justifica desuas faltas, exprobrando-as ao impressor: convm pois que este
possa argi-lo tambm de suas negligncias. Se no possvel que possua
grandes conhecimentos, deve ao menos conhecer a linguagem, e os termos,
para se no acharestranhoa qualquer manuscrito, que se lhe apresente.
No se pode exigir os mesmos conhecimentos dos oficiais; entretanto
um bom compositor deve ao menosconhecer bem a sua lngua.''

Por sua vez, aos aprendizes era solicitado um grau de instruo elementar,
condizentecom funes que este trabalhador poderia exercer na oficina.

Um Aprendiz deve conhecer bem a sua lngua; muitas vezes ele in


cumbido da cpiapeloscorretores quando eles precisamde algum.'^

Apesar de compartilharem o espao da oficina, havia uma outra distino


entre o corpo dos trabalhadores que remetia horizontalidade ou diviso do
trabalho. Essa hierarquia se traduzia no cumprimento de diferentes funes e ati
vidades, no emprego de utenslios e materiais necessrios para realizar as distin
tas etapas da metamorfose do manuscrito para o impresso, bem como no conv
vio com diferentes condies de luminosidade, rudo e limpeza.

Ibidcm, pp. 215-6.


" Ibidem, p. 50.
Ibidem, p. 56.
380 nelson schapochnik

Os corretores devem estar separados, longe de bulha, e de toda a dis


trao, num lugar bem claro, e enfim numa biblioteca, a ser possvel; deve-
se ao menos fornecer-lhes os livros, de que possam necessitar nas suas in
dagaes, e paraverificarem ascitaes.'^
A etapa da composio era compreendida como montagem das palavras, li
nhas, pginas, e folhas. Obviamente, tambm impunha condies tcnicas e ma
teriais peculiares:

Na oficina dos compositores deve haver um profundo silncio: cum


pre-lhes evitaras conversaes estranhas ao seutrabalho; o cantar, o brincar,
porque no somente a sua composio ser defeituosa, mas tambm per
turbam os homens laboriosos, que os cercarem, e s vezes a desordem se
introduz na oficina. Cumpre aos diretores velar em que haja sempre um
silncio na sala dos compositores.

J para com os impressores a ateno deveria concentrar-se no controle dos


equipamentos e acessrios que garantiriam a integridade dos meios de produo
e a qualidade final do produto, condizentecom as expectativas do chefeda oficina.
O primeiro dever dos impressores entrando em fiino de assegu
rar-se se seu prelo est em bom estado; se ele no suscetvel de algum con
serto; se provido de todos os seus acessrios. Se falta alguma coisa, eles
devem a pedir logo ao diretor, porque uma vezque elestenham tomado posse
de um prelo, bem que eles sejam responsveis de todos os acessrios susce
tveis de serem extraviados, tais como estofos, martelos, bandulho, chave das
ponturas, etc., e quando eles deixam seu prelo, eles devem apresentar todos
estes objetos ao diretor.
Suas primeiras funes so: de ajustar os tmpanos, esfregar os esto
fos, colar as ffasquetas, limpar o prelo, e o seu banco;enfim, pedir tudo quan
to necessrio para pr seu prelo em estado de bem trabalhar.'^

O Manual de Ogier proporcionava orientaes precisas para os candidatos a


autor. Sobretudo, prescrevia as condiesmateriaisque poderiam garantir, no tem
po mais breve, a entrega de um produto impresso de boa qualidade. Na perspecti
va daquele que aceitava a incumbncia da impresso, as condies de legibilidade
do manuscrito eram um pr-requisito:

Um autor deve mandar o seu Original com boa ortografia, pontuao,


e letra inteligente, de maneira que se possa ler distncia de um brao, e
tudo isso para evitar a perda de tempo dos compositores; do contrrio h
razo de pedir uma indenizao por causa do ruim Original.
" Ren Ogier, op. cit., pp. 15-6.
Ibid., p. 72.
Ibid., pp. 173-4.
malditos tipgrafos 381

Este deve ser feito a meia-margem, para que as emendas, e citaes se


faam com as menos riscaduras, que for possvel, e se apresentem duma
maneira ciara, e inteligvel.'^

Portanto, quanto menos anotaes e correes o autor introduzisse no tex


to j composto e configurado como prova, maiores seriam as possibilidades de o
resultado sair mais condizente com a expectativa do autor e do editor.

Um autor deve meditar, emendar e demorar o seu Original antes de o


mandar para a tipografia; porque se ele tiver a mania de o aperfeioar nas
provas, a sua obra apesar de todos osdesvelos ficar atulhada de repeties,
pedaos destacados, defeitos de toda a casta, mostrar precipitao, e aca-
nhamento, porque em provas to sobrecarregadas lhe impossvel abrang-
laem todas assuas partes; e deve esperar depois por uma execuo de tipo
grafia muito viciosa.'^

Apesar dos inequvocos esforos de Ogier em disciplinar e modernizar as


prticas tipogrficas na Corte, eleencerrava o livro com uma observao de cau
sar perplexidade,quando afirmava:
Todas as funes aqui indicadas, at o presente ainda no foram exe
cutadas por nenhum Diretor de tipografia, visto o pouco material que elas
tm; porm, ns no temos podido fazer menos que de as detalhar todas,
porque presumindo, que o acrescentamento da tipografia no Rio de Janei
ro, far sua execuo necessria, visto o progresso rpido desta arte depois
de dez anos no Brasil.'

O descompasso entre aquilo que era prescrito como a meta de uma "tipo
grafia brasiliense" e a realidade precria da sociedade carioca no deixavam de
indicar uma soluo estratgica de Ogier e dos demais livreiros-impressores para
ocupar o "lugar de uma tradio tipogrfica ausente". Conforme apontou Jussara
Menezes Quadros, diante de "concorrentes entregues ao amadorismo de prticas
improvisadas e irregulares, eles souberam antecipadamente impor regras hierarqui-
zadas para o exerccio das funes de uma arte, inspiradas num corporativismo
ainda presente mas em declnio no mercado do livro europeu", mas que lhes con
feriu uma posio de destaque e, no menos importante, nobilitao. Ao mesmo
tempo, "na ambivalncia de situarem-se entre o favor e a ousadia empresarial,
desorganizao do campo do impresso reagiram com a adoo de modelos pro
dutivos modernos, introduzindo novas mquinas e tcnicas e procurando apro
ximar as oficinas de um funcionamento administrado"."

" Ibidem, p. 74.


Ibidem, p. 75.
Ibidem, pp. 238-9.
" Jussara Menezes Quadros. Estereotipias. Literatxira e edio no Brasil na primeira metade do sado XIX
(1837-1864). Mestrado em Teoria Literria. Campinas: lEL, Universidade de Campinas, 1993, fls. 106-07.
382 nelson schapochnik

De qualquer forma, assolues empregadas indicam os efeitos dacompres


so temporal experimentada na sociedade brasileira quando confrontada com a
experincia das sociedades europias. Em outras palavras, enquanto o contexto
europeu fora marcado nos ltimos duzentos anos pela "revoluo do impresso",
pela passagem daleitura intensiva para aleitura extensiva, pela ascenso de novos
leitores e expanso do sistema pblico de ensino, pela substituio do sistema de
privilgios do Antigo Regime para a soluo liberal representada pelo capitalismo
editorial, aqui no Brasil as dificuldades e espertezas dos livreiros-impressores
radicados no Rio de Janeiro foram respostas que estavam diretamente associadas
intensificao do processo de implantao das "artes tipogrficas" num perodo
muitssimo breve, de cerca de vinte anos.^
Depois de um curto perodo de euforia,decorrentedas transferncias e atri
buies grandiosas do papel da imprensa nas tarefas de traar uma "pedagogiada
Nao", nossos homens de letras constataram a timidez dos recursos tcnicos e
humanos existentes aqui e os limites do circuito de comunicao da cultura le
trada. O resultado desta guinada na representao das potencialidades da tipogra
fia brasileira no custou a ser divulgado. O tom adotado deixou de ser o da exalta
o das virtudes e passoua ser modulado para o dascarncias.
Um bom exemplo deste diapaso ctico pode ser encontrado num artigo
publicado narevista /ns,nosegundo semestre de 1848, que discorria sobre o projeto
de criao de um estabelecimento tipogrfico em Niteri, incumbido de publicar
os Atos do Governo e, simultaneamente, formar mo-de-obra especializada. Depois
de uma abertura em chave maior, que retomava uma das tpicas sobre o papel da
tipografia ("termmetro da civilizao de um povo"),o ensastavertia lamrios:

No temos uma escolatipogrfica; sentimos todos os dias falta de tip-


grafos, sobretudo impressores. No temos uma fundio de tipos nacional
(e a particular que existe no satisfaz), apesar das dezenas de contos que o
governo tem gasto para isso, em diferentes pocas; no temos uma fbrica
de tinta de imprimir, noh tipografia completa, pois quea todas falta ainda
as prensas hidrulicas de descravar e de acetinar; no temos fbrica de car-
tonagem (nem de papel, desgraadamente). Eis o nosso adiantamento. .

Embora relativize os seus argumentos em nome da existncia de prestigio


sos editores-impressores no Rio de Janeiro que atestavam a existncia de uma
infra-estrutura editorial, o responsvel pelo artigo publicado na ris reconhecia os
limites dos atos voluntariosos uma vezque a precariedade e indigncia destarede
suplantavam qualquer possibilidade de avaliao maispositiva.

o mote da compresso temporal foi empregado por Sandra Guardini T. Vasconcelos e


tambm por Joo Cezar de Castro Rocha para designar alguns dos traos formativos do romance no
Brasil. Pelas sempre animadas conversas, iluminaes profanas e a amizade, deixo registrado os meus
sinceros agradecimentos.
[s. autor). Typographia. Estabelecimento em Nictheroy, In: . /ris, t. II. Rio de Janeiro: Typ.
de L. A. Ferreira de Menezes, 1848, p. 336.
malditos tipgrafos 383

Semfazermos coro com as censuras dirigidas tipografia fluminense;


atribuindo-as antes ao natural patriotismo, que desejaria, em honra de seu
pas, operar irrealizveis milagres, observemos que modernssimo o de
senvolvimento da arte no Brasil; que a enorme falta de pessoal (de bons
compositores e impressores) torna insuportveis as dificuldades contra que
lutam os donos desses estabelecimentos; que o gosto pela leitura no se
achando mui geralmente difundido, as edies so pequenas e dispendio-
sssimas; que a carncia de fundies e matrias-primas agrava os estorvos;
que, no obstante, se tm multiplicado consideravelmente estes veculos de
pensamento, e cada dia novos se levantam; que entre esses, alguns h, como
o dos srs. Paula Brito, Laemmert e Villeveune que fariam honra a muitas
grandes cidades europias. .

O mencionado regime de carncias estimulava, portanto, um crculo vicio


so. A combinao de matrias-primas caras com a mo-de-obra deficitria e
malformada gerava produtos de qualidadeinferior aos similaresimportados. Acres
cido ainda rarefao de leitores, o resultado era uma tiragem reduzida e cara.
Da perspectiva do escritor, a situao tambm no era satisfatria e gerava
muitas vezes um desconforto, conforme relata o Visconde de Arax, num texto
ficcional, a experincia de umjovem estudante da Academia de So Paulo. Depois
de deixar o seu manuscrito com um afvel livreiro-impressor, o candidato car
reira de beletristaretorna oficinae ouve a seguinte explanaosobre os procedi
mentos adotados naquelas circunstncias:

Senhor doutor, disse o mecenas, eu nesta casa sigo um dos trs siste
mas com os manuscritos que me apresentam; ou compro-os por preo que
parece razovel, ou imprimo-os por conta de ambos, isto , para dividirmos
os lucros, deduzidas as despesas. O terceiro sistema, mais usual e prprio
desta casa, publicar as obras por conta e risco dos seus autores; e quando
me encarregam da venda, levo uma pequena comisso pelo meu trabalho.
Agora, senhor doutor, no posso comprar nem publicar de sociedade o seu
romance, porque me acho j no desembolso de no pequenas quantias; s
me resta o papel de mero impressor, e nesta qualidade ponho-me s suas
ordens."

Modulando do plano ficcional para o mundo da necessidade, Quintino


Bocaiva engrossava o coro dos descontentes, reiterando alguns aspectos j men
cionadossobre o estadode arte tipogrfica e de seusdesdobramentos.

No h quem ignore quanto difcil a impresso de uma obra em nos


so pas.
" Ibidem, p. 337.
" Visconde de Arax. Remiiiiscnas e fantasias, v. 1, Vassouras: [s.n.J, 1883, p. 164. Apud Ubi-
ratan Machado. A vida literria no Brasil durante o romantismo. Rio de Janeiro: Ed.Uerj, 2001, p. 68.
384 neison schapochnik

Carestia de leitores, carestia de mo-de-obra das impresses, carestia


de todos os gneros precisos para a manufatura do livro, determinam da parte
dos escritores uma prudente abstinncia de publicaes. [. . .]
Pobres, como quase sempre so aqueles que fazem das letras a paixo
dominante de sua alma, quando no a especialidade de seus estudos e de
suas aplicaes, vem-se semprena, paraeles, dolorosa necessidade de guar
darem sepultos nas gavetas seus escritos ou, quando se abalanam a impri
mi-los, a incomodarem seus amigos promovendo por uma subscrio que
auxilie,quando no perfaa, o custo total das despesas da obra.^''
Premido pelo desejo de dar visibilidade e concretude material para os seus
escritos, os homens de letras se viam na situao constrangedora, mas bastante
disseminada ao longo do sculo XIX, de solicitar subscrio para a futura obra. E
no raro esses queixumes descambavam em apelos explcitos por prticas de pro
teo e de mecenato oficial. Sem descartar a adoo da tica do favor, Quintino
Bocaiva tocava num aspecto fundamental para a profissionalizao do escritor:
a existncia de dispositivos legais que garantissema propriedade literria e de pro
tocolos contratuais para defender os interesses dos autores contra a prtica da ces
so perptua ou ainda no menos danosa pirataria editorial.
Oscilando entre asvelhas demandas e asnovas possibilidades. Bocaiva permite
entrever os efeitosda mencionada compressotemporal nas atividades dos escritores:
Do mal da falta de leitores nasce o mal da carestia das publicaes, e
destes dois reunidos que provm essa estagnao intelectual que observa
mos na massa geral da nao, essa espcie de paralisia moral que entorpece
as faculdades brilhantes que se revelam por todo o pas.
Os livros que se buscam, custam caro e no aos espritos preocupa
dos pela incerteza de seu destino e pelos embaraos de sua vida que se deve
pedir produes de engenho e modelos de arte.
Da parte de nossos governos a mesma indiferena, o mesmo olvido!
Nem uma medida protetora da literatura, nem um concurso, nem uma sub
veno, nem um auxlio! Nem ao menos uma lei regulando o direito da
propriedade literria e artstica, venha por sua influncia abrir os talentos
nacionais um novo horizonte a suas ambies!"

De acordo com o argumento empregado, as condies materiais da produ


o livreira eram obstaculizadas por uma srie de elementos que remetem aos
entraves jurdicos, comerciais e tcnicos. Os dados colhidos no AlmanackLaemmert
atestam que, para almde todos os problemas indicados pelos diferentes protago
nistas, houve avano inequvoco no estabelecimento de livrarias, encadernadores
e impressores na cidade do Rio de Janeiro, registrando tambm a ascenso de co
merciantes de livros usados.

Quintino Bocayuva. Estudos criticas e litterarios. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1858, p. I.
Ibidem, pp. X-XI.
malditos tipgrafos 385

Ano Livreiros Antiqurios Encadernadores Impressores

1844 10 15 13
1845 10 -
18 17
1846 11
20 16
1849 14
22 23
1850 15
21 26
1852 14
21 22
1853 14
19 26
1855 12 -
19 25
1857 13 3 23 26
1858 14 5 25 26

Fonte: Almaiiack Laemmert. Rio de Janeiro, 1844-1858.

O crescimento dos setores mencionados na tabela teve como contrapartida


o aumento dos trabalhadores envolvidos nessas atividades. Particularmente, os ti
pgrafos se mobilizaram e j no fim do ano de 1853 fundaram uma entidade be
neficente de carter mutualista, a Associao Tipogrfica Fluminense. Alm de se
envolver na questo das reivindicaes e defesados interesses dos trabalhadores, a
Associao teveimportante papel na formao e ampliao do horizonte profissio
nal e cultural dos seus membros (incluindo a a instalao de uma biblioteca em
1854, promoo de palestras, etc.), como tambm se posicionou e interviu em
questes tcnicas e econmicas do setor (denunciando as encomendas s tipo
grafias estrangeiras, em detrimento da empresa nacional, sobretudo com a redu
o do custo do frete e do seguro em decorrncia da introduo de linhas de va
pores ligando o Rio de Janeiro aos centros europeus; a reduo das alquotas para
importao de papel paraimpresso, tintas e mquinas; o melhoramento da ins
truo artstica; a defesa da reorganizao da Tipografia Nacionale os incentivos
formatao de umaesttica tipogrfica distinta do modelo europeu).
De acordo com Jos Artur Renda Vitorino, os tipgrafos do Rio de Janeiro
no s organizaram uma greve em 1858 como tambm se envolveram na defesa
daabolio gradual daescravido. Embora adotassem uma postura antiescravagista,
a discriminao contrao elemento servil no estava descartada. Ele relata que"em
um artigo publicado em um jornal tipogrfico carioca de 1863, o articulista, a
fim deafirmar a imagem dostipgrafos como operrios intelectualizados, buscou
delinear as aptides necessrias ao exerccio daprofisso: no bastava saber as pri
meiras letras, era tambm necessrio que o profissional fosse inteligente e de
avantajada compreenso, Eacrescentou que seria muito difcil que um africano
conseguisse ser um bom tipgrafo".^'
No obstante a representao de trabalhadores intelectuais que ostipgrafos
faziam de si prprios, a opresso e a explorao eram traos inerentes condio
de subalternos e comum aos trabalhadores livres e cativos. No por acaso, os versos
de um tipgrafo enunciavam uma guinada naauto-imagem desse trabalhador.
" Cf. Artur Jos Renda Vitorino. Mquinas e operrios. Mudana tcnica e sindicalismo grfico
(So Paulo e Rio de Janeiro, 1858-1912). So Paulo: Annablume/Fapesp, 2000, pp. 72-119.
" Idem. Escravido e modernizao no Brasil do sculo XIX. So Paulo: Atual, 2000, p. 32.
386 nelson schapochnik

Sou tipgrafo! Meus tipos


Do-me nobreza e valor!
Que importa que eu sejapobre,
Preto, branco oii ci'outra cor?
No h, no h diferena
Entre ns, que a mesma crena
Herdamos de nossos pais:
Embora os ricos, os nobres,
Creiam-se acima dos pobres,
Deixa-lo, somos iguais!^

Pode parecer coincidncia, e talvez o seja, mas o fato que, neste mesmo
momento de organizao dos tipgrafos, Manuel Antnio de Almeida, um "de
serdado da fortuna" como o seu amigo Bocaiva, dirigia a Tipografia Nacional.
Segundo o seu bigrafo, ele recebia um salrio de 800 mil ris e mais outros 400
de gratificao,importncia essaque "daria apenas para no morrer de fome". Em
funo do cargo de que estava investido, ele"recebia quase que queixas dirias do
chefe das oficinas sobre um rapaz aprendiz de tipgrafo cujo trabalho no ren
dia, pois largava constantemente a ocupao, para ir ler nos cantos pouco fre
qentados da oficina. O rapazola foi afinal chamado ao gabinete. M. A. Almeida
simpatizou-se com ele e informou-se da sua vida. Soube que tinha um salrio
nfimo, comia mal, morava mal, dormindo no raro nos bancos duros da oficina.
Viu que se tratava de "algum" que precisava ser protegido e protegeu-o, no s
usando da sua posio de administrador, como honrando-o com sua amizade.
Apresentou-o a Pedro Lus Pereira de Sousa, a Francisco Otaviano e Quintino
Bocaiva".^'
O tal rapazola no era ningum mais, ningum menos que o jovem Ma
chado de Assis, que no perodo de 1856-1958 foi iniciado nas artes tipogrficas.
Decerto, esses anos de formao no foram totalmente desprezveis e podem ter
contribudo para uma percepo mais aguda das intervenes de compositores,
impressores, revisores, encadernadorese editoresno impressoe, no limite, na pr
pria operao da leitura e da escritura. Nesse sentido, no parece equivocado afir
mar que, em algumas crnicas. Machado de Assis encena de forma metalingstica
transposies do fazer tipogrfico no fazerliterrio.
Na condio de operador da linguagem, ele tinha muita clareza de que, en
tre a intencionalidade do escritor e a recepo do pblico-leitor, postavam-se os
mediadores que transmutavam as tiras de papel almao caligrafadas em colunas
diagramadas e impressas nos jornais e revistas. Por isso, ele advertia para os peri
gos dos erros tipogrficos:

o Tipgrafo, Rio de Janeiro, 21/4/1868, p. 3. Apud Ibidem.


" Marques Reblo. Vida e obra de Manuel Antnio de Almeida. 2/ ed. So Paulo: Martins, 1963,
pp. 95-6. Veja tambm: Jean-Michel Massa. A juventude de Machado de Assis. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1971, pp. 169-74.
malditos tpgrafos 387

Tenho medo quando escrevo a palavra parlamento ou a palavra parla


mentar. Um descuido tipogrfico pode levar-me a um trocadilho invo
luntrio. Sistema parlamentar, composto s pressas, pode ficar um sistema
para lamentar. Note-se bem que eu falo do erro de ser composto s pressas
ou mal composto. . . pelos compositores.^

Salta s vistas, entre as crnicas de Machado, a quantidade de referncias ao


seu editor B(atiste) L(ouis) Garnier, tambm alcunhado pelos estudantes e outros
homens de letras de "Bom Ladro Garnier". Entretanto, inexiste alguma refern
cia denegadora aos prstimos do editor. Os elogiosso escancarados e as interven
es parecem ser muito mais do que meras resenhas dos lanamentos no mercado
editorial brasileiro perpetrado pelo livreiro fi-ancs. Tome-se comoexemplo o in
forme sobre a nova edio de O Demnio Familiar^ de Jos de Alencar. Original
mente, a comdia em quatro atosfoi representada no Ginsio Dramtico,em 1857,
sendo impressa nomesmo ano pela Tipografia Soares e Irmo. O texto o seguinte:
Acasa Garnier acaba de receber de Paris os exemplares deuma edio
que mandou fazer da comdia do Sr. conselheiro J. de Alencar O Dem
nio Familiar,
O pblico fluminense teve j ocasio de aplaudir esta magnfica pro
duodaquela pena cultae delicada, entre as maisdelicadas e cultasdo nosso
pas.
A edio do Sr. Garnier o meio de conservar uma bela comdia sob
a forma de um volume. A nitidez e elegncia do trabalho convidam a abrir
este volume; intil dizer que a primeira pgina convida a l-la at o fim.
A casa Garniervaiabrindo destemodo a esfera das publicaesliterrias
eanimando osesforos dos escritores. justo confessar queassuas primeiras
edies no vinham expurgadas de erros, e era esse um argumento contra
as impresses feitas em Paris. Agora esse inconveniente desapareceu; acha-
se em Paris, testa da reviso das obras portuguesas, por conta da casa Gar
nier, um dos melhores revisores que a nossa imprensa diria tem possudo.^'

A mensagem da obra no merece uma linha sequer (o tema a presena de


um escravo domstico trapalho e a soluo a alforria como punio), mas a
embalagem, o impresso e a sua materialidade recebem loas do cronista. no livro
e no seueditorque Machado centra o seu foco e conduz o leitor. Ele sublinha que,
enquantoa representao cmica fugaz, a obra perenizada pelo livro, acrescen
tando que "a nitidez e a elegncia" seduzem e convidam o leitor a prosseguir na
leitura. A nota tem o papel sub-reptcio de informar que os livroscom a chancela
do editor parisiense radicado no Rio de Janeiro, supostamente, j no haveriam

Machado de Assis. Dirio do Rio de Janeiro (17/7/1864). In: Idem. Chronicas, v. 2. Rio de
Janeiro: W. M. Jackson, 1938, p. 50.
" Machado de Assis. Dirio do Rio de Janeiro (20/6/1864). In: Ibidem, pp. 27-8.
388 nelson schapochnik

de estar eivados de erros em funo da contratao de um revisor. Desta maneira,


ele criava uma predisposio no leitor que favorecia a acolhimento dos livros edi
tados por Garnier.^^
Usando o mote do lanamento de novos livros, Machado voltou a tecer elo
gios cujos argumentos compunham uma linha evolutiva que corresponderia
consagrao dos editores com os quais ele teve as mais estreitas relaes. Suas pa
lavras estabelecem um momento formador e indicavam, de maneira teleolgica,
o presente como a mais alta realizao deste processo. De quebra, tome propa
ganda e tenha modos:

Falar do Sr. Garnier, depois de Paula Brito, aproxim-los por uma


idia comum: Paula Brito foi o primeiro editor digno desse nome que hou
ve entre ns. Garnier ocupa hoje esse lugar, com as diferenas produzidas
pelo tempo e pela vastido das relaes que possuifora do pas.
Melhorando de dia para dia, as edies da casa Garnier so hoje as me
lhores que aparecem entre ns.
No deixarei de recomendar aos leitores fluminenses a publicao
mensal da mesma casa, o Jornal das FamUaSy verdadeiro jornal para senho
ras, pela escolha do gnero de escritos originais que publica e pelas novida
des de modas, msicas, desenhos, bordados, esses mil nadas to necessrios
ao reino do bom-tom.^^

Pelo menos em parte, as razes para os elogios aos editores podem ser en
contradas no texto que marca a sua interveno como crtico na seo "Semana
Literria" do Dirio do Rio de Janeiro^ em 1866. A passagem longa, mas vale
acompanhar o raciocnio que legitima e justifica os bons olhos do crtico para
com os editores.

A temperatura literria est abaixo de zero. Este clima tropical, que


tanto aquece as imaginaes, e faz brotar poetas, quase como faz brotar as
flores, por um fenmeno, alis explicvel, torna preguiosos os espritos, e
nulo o movimento intelectual. Os livros que aparecem so raros, distancia
dos, nem sempre dignos de exame da crtica. H decerto excees to es
plndidas quanto raras, e por isso mesmo mal compreendidas do presente,
graas ausnciade uma opinio. [. . .]
Ao nosso ver, h duas razes principais desta situao: uma de ordem
material, outra de ordem intelectual. A primeira, que se refere impresso

Cf. afirma Jean-Marie Goulemot: "O gnero do livro, o lugar da edio, as crticas, o saber
erudito, nos colocam em posio de escuta, em estado de recepo. Lemos Gailimard, ditions de
Minuit, diferentemente: o que significa que a reputao pblica dessas casas prepara uma escuta: do
severo ao razovel, do srio ao enfadonho, o sentido j est dado". Jean Marie Goulemot. Da leitura
como produo do sentido. In: Roger Chartier (org.). Prticas da leitura. So Paulo: Estao
Liberdade, 1996, p. 113.
" Machado de Assis. Dirio do Rio de Janeiro (3/1/1865). In: Idem. Chronicas, v. 2. Rio de
Janeiro: W. M. Jackson, 1938, pp. 282-3.
malditos tipgrafos 389

dos livros, impresso cara, e de nenhum lucro pecunirio, prende-se intei


ramente segunda que a falta de gosto formado no esprito pblico. Com
efeito, quando aparece entre ns essa planta extica chamada editor, se os
escritores conseguem encarreg-lo, por meio de um contrato, da impresso
de suas obras, claro que o editor no pode oferecer vantagem aos poetas,
pela simples razo de que a venda do livro problemtica e difcil. [. . .] H
um crculo limitado de leitores; a concorrncia quase nula, e os livros
aparecem e morrem nas livrarias. No dizemos que isso acontea com to
dos os livros, nem com todos os autores, mas a regra geral essa.^^

O elogio machadiano parece repousar no reconhecimento da capacidade


empreendedora do editor, que mesmo diante de constrangimentos materiais e in
telectuais se arrisca na divulgao de uma obra. Portanto, em funo do olho
vivo e do faro fino para selecionaruma espcie na estufa que fazia do editor uma
figura digna de evocao.
Por fim, merece destaque a narrativa machadiana, na chave irnica, a pro
psito de um supostoencontro com um poetaque afirmava estar indispostocom
os tipgrafos. Todavia, as perquiries do narrador revelam a existncia de um
acordo tcito. O desfecho mostra a vigncia de um artificio discursivo ainda mui
to empregado, isto ,quando a qualidade do produto fere padres estticos, ticos
e at mesmo morais, a responsabilidade autoral transferida para outrem. No caso
abaixo, funde-se a duvidosa cumplicidade dos tipgrafos incapacidade criativa
do poeta e sagacidade aguda do investigador.
Conheci um poeta que era, neste assunto, o mais infeliz de todos os
poetas. Nunca publicou um verso que a impresso o no estropiasse. o
que ele dizia:
"Viste hoje aqueles versos na folha?
"Vi.
O poeta acrescentava:
"Sou infeliz, meu amigo; tudo saiu errado; desenganar; no publica
rei mais impressos, vou publicar manuscritos."
verdade que, sprimeiras lamentaes destanatureza, procurei corri
girmentalmente osversos errados, e vique,seo eram, no cabia aostipgra
fos todaa culpa, a menos que estes no fossem as musas do referido poeta.
Fiz, porm, uma descoberta de que me ufano: os erros tipogrficos
eram autorizados pelo poeta; esta ffaudezinha dava lugar que a tornassem
comunsas faltas da impresso e as faltas da inspirao.
De descoberta em descoberta, cheguei soluo de um problema, at
ento insolvel:
Um mau poeta com a conscincia da sua incapacidade.^^
Idem. Dirio do Rio de Janeiro (9/1/1866). In: Idem. Obra completa, vol. 3. 5." ed. Rio de
Janeiro: Aguilar, 1986, p. 841.
" Idem. Dirio do Rio de Janeiro (17/7/1864). In: Idem. Chrottkas, v. 2, cit., p. 51.
390 nelson schapochnik

Faustino Xavier de Novais, cunhado de Machado de Assis, tambm abordou


astensas relaes entre autores, editores e tipgrafos, aolongo dasua colaborao
na seo "Pginas Menores" do Correio Mercantil (RJ), durante o perodo de 11/
1863 a 6/1864. Posteriormente, os textos foram reunidos num livro intitulado
Cartas de um Roceiro^ publicado em 1867.0 ttulo parecebastante adequado, pois
se trata de um conjunto de crnicas sob a forma epistolar, enviada da Corte por
um negociante de nomeBernardo Jnior (naverdade, um alter-ego do escritor) e
dirigido aos seus confrades que viviam no interior. Essa estrutura faz lembrar as
Cartas Persas, de Montesquieu. O fato de ser vazada num modo satrico se amol
dava perfeitamente s possibilidades de confrontar o l e o c, o campo e a cidade,
Portugal e o Brasil.
O tom jocoso, do qual ele era useiro e vezeiro, fornecia parmetros precisos
para criticar o estado da tipografia e os descaminhos das prticas editoriais na cor
te imperial. Livredas peias do favor e da camaradagem, ele toma o caminho opos
to ao de Machado de Assis e desfere petardos em direo ao editor Garnier. Como,
por exemplo, ao anunciar a publicaodo livro de Emlio Zaluar:

Em breve te falarei do poeta, que acaba de publicar um livro interes


sante, sob o ttulo Peregrinaes pela provncia de S.Paulo, livro em que se
fala muito na grande riqueza, no grande fiituro da nossa terra e que foi im
presso em Paris, sem duvida para desenvolvimento da arte tipogrfica no
Rio de Janeiro.^^

O argumento de Novaes reiterava os protestos dos tipgrafos nacionais que


durante a greve de 1858 acusavam o editor de condenar os trabalhadores e suas
famlias mngua para regozijo dos tipgrafos franceses. Se, da perspectiva dos
trabalhadores, a atitude de Garnier representava um insulto dignidade, sob a
lgica empresarial, o editor buscavaracionalizar os custosda produo, benefician
do-se da empresa tipogrfica familiar que poderia aprontar as encomendas num
prazo e preo final menor do que se fosse feito por aqui.
Valendo-se da estratgia da troca epistolar,eledenunciava aos amigos da roa
a transgresso dos direitos de sucesso cometida por um editor inescrupuloso con
tra o patrimnio da me do poeta Casimiro de Abreu.

Li tambm um protesto da Sra. Luza Joaquina das Neves, contra a


publicao, que se anuncia, de uma nova edio das poesias de seu adorado
filho, o distintssimo poeta Casimiro de Abreu. Julga-se a Sr. D. Luza, com
muita razo, a nica pessoa competente para autorizar essa publicao; mas
julgam-se autorizados para essa empresa todos aqueles a quem a natureza
negou tudo, menos a esperteza para ganharem dinheiro."

^ Faustino Xavier de Novaes. Cartas de um roceiro. Rio de Janeiro: Typ. Perseverana, 1867, p. 3.
Ibidem, p. 276.
malditos tipgrafos 391

Convm lembrar que as prticas da pirataria editorial e a impresso de con


trafaes, sobretudo, de obras de autores portugueses, posto que no careciam de
investimentos na traduo, tambm contriburam para adensar as crticas dirigidas
aos editores brasileiros. Eles foram acusados de prejudicar autores nacionais e es
trangeiros, mas, diante da ausncia de convenes internacionais que regulassem
os direitos sobre a propriedade literria entre os dois pases, no havia uma solu
o legal para o problema.
Porm, se para os editores o tom que Faustino Xavier de Novais empregava
era custico, quando ele se voltava para os tipgrafos, lanava recursos discursivos
que variavam do comedimento irnico mais deslavada esculhambao. Ao lon
go das cartas esto presentes uma srie de recomendaes aos tipgrafos, no sen
tido de evitar erros que possibilitassem interpretaes dbias, como nos exem
plos que se seguem:

Queira voc recomendar aos seus tipgrafos que tenham muito cui
dado na composio da palavra busto: a troca de uma letra e uma ligeira
transposio podem, sem tirar a semelhana ao retrato, dar-lhe feies di
versas das que tm. . .
(...]
No sou de tmpera rija, no acamei, e desta intrepidez (no vo tais
amigos escrever estupidez) resultou o aumento do mal.
[...]
Eu tive a cndida inocncia (assim necessrio o maior escrpulo, se
me escreverem estas duas palavras com iniciais maisculas, ficar o pbli
co sabendo que tive em casa duas mulheres).
[...]
Na manh do dia seguinte, depois que me benzi, entreguei-me lei
tura (cuidadinho, no escrevam tortura) dos jornais.^

Nas pginas do peridico O Futuro, do qual fora redator, Faustino tambm


teceu comentrios sobre o trnsito de manuscritos pelas mos dos diversos traba
lhadoresde uma oficina tipogrfica, cujosresultados estavam longede correspon
der harmonia de uma orquestra.

Vai um artigo para a tipografia. O compositor, para no desmentir o


nome, compe. O autor, no obrigado a entender todas as lnguas, com
preende apenas que foi descomposto, enche a prova derabiscos, e devolve-a.
O tipgrafo, que tambm no tem obrigao de saber msica, v-se mais
embaraado que da primeira vez, e cuidando que deveras solfa o que tem
diante de si, comea a executar variaes, e l vem uma desafinao horr
vel arranhar de novo os ouvidos do autor do artigo. E assim, de c para l, e

Ibidcm, pp. 35; 78; 79; 81.


392 nelson schapochnik

de l para c, vai fugindo o tempo, que necessrio espaar para trs, visto
queo programa no consente que se espace para diante.^^
Em se tratando de um autor que j gozava de alguma reputao quando
aportou no Brasil e que aqui continuou a trilhar pelos caminhos das letras e do
jornalismo, sua indignao com o estado da arte eventualmente se exacerbava e
logo era incorporada ao texto. O recurso ao exagero era uma bvia estratgia que
contribua ainda mais para o clima de zombaria empregado na correspondncia,

Meu caro Redator Seeu pudesse fazerdesaparecer da face do globo


todas as tipografias, creia que eu faria (Recomende aos compositores que
no escrevam o verbo com f grande).
A humanidade lucraria muito. Desta destruio resultaria a desapario
de imensas publicaes soporferas, em prosa e verso, e o trabalho braal
teria auxiliado por muitos homens possantes, que empregam toda a sua fora
bruta em arrigentar [s/c] palavras, que nos vendem por bom dinheiro e que
tanto custa a ganhar (Recomende ao compositores que no substituam por
apanhar).''"

Mas, ao contrrio do que vaticinava o personagem Bernardo Jnior, as tipo


grafias continuaram prestando todo o tipo de trabalho e os erros e deslizes tam
bm iam se acumulando. As crticas srio-jocosas, mesmo quando explicitavam
a sua origem ficcional, no deixavam de ter um fundo de verdade. Por isso, o mis
sivista sugeria a adoo de um bizarro exame de ingresso na categoria profissio
nal como um antdoto quela chusma de atribuies equivocadas cometidas pe
los tipgrafos. Assim, eleregistrava:
Releia minha ltima carta, e achar l a Omagem da vida crist. Pare
ce-me que ningum deveria ser elevado categoria de um compositor sem
ter provado previamente:
1. Saber que um I um I
2. Que um O um O
3. Que um I no um O
4. Que um O no um I
Saindo-se bem deste profundo exame, pode qualquer indivduo ser
admitido em todasasoficinas tipogrficas, semprejuzo dasglrias alheias.
Muito lhes devo eu, citando o nome do autor daquela obra, por no
lhe chamarem Frei Heitor Peru, em lugar de Heitor Pinto.""

Diferentemente de Machado de Assis e de Faustino Xavier de Novais, os ar


gumentos empregados por Jos de Alencar para criticar o estado da tipografia no

" Faustino Xavier de Novaes. Chronica. O Futuro, n." 2, 1/10/1862, pp. 71-2.
Idem, 1867, op. cit., p. 75.
Cartas de um roceiro, cit., p. 76.
malditos tipgrafos 393

Brasil no so vazados no modo irnico. O ponto de vista assumido por ele o de


quem se sentia usurpado pela ineficincia dos trabalhadores, pelo dilogo trunca-
do com editores e responsveis pela preparao do livro, pela ausncia de investi
mentos em recursos tcnicos e na formao de artfices mais qualificados, como
tambm pelos altos custos comerciais e morais decorrentes dessa inpcia.
Num texto redigido em 1873, que ele mesmo definiu como "autobiografia
literria", Alencar destacou as agruras de ser escritor numa terra de minguados
leitores. Alm de registrar a "conspirao do silncio e da indiferena" com que
fora acolhido pela crtica, ele relata as dificuldades, da perspectiva do escritor, na
edio de livros. No poucas vezes teve de vender a propriedade de suas obras ou,
no caso de Lucola (1862) e de Iracema (1865), edit-las com seus prprios recur
sos. Ao fazer um balano de sua trajetria, ele conclua pesaroso:

Ao cabo de vinte e dois anos de gleba na imprensa, achei afinal um


editor, o Senhor B. Garnier, que espontaneamente ofereceu-me um contra
to vantajoso em meadosde 1870. [. . .]Todavia ainda para o que tevea fortu
na de obter um editor, o bom livro no Brasil e pr muito tempo ser para
seu autor, um desastre financeiro. O cabedal de inteligncia e trabalho que
nele se emprega, daria em qualquer outra aplicao, lucro cntuplo.
Mas muita gente acredita que eu me estou cevando em ouro, produto
de minhas obras. E, ningum ousaria acredit-lo, imputaram-me isso a cri
me, alguma cousa como srdidacobia."*-

O testemunho de Alencar reitera a avaliao partilhada por outros escritores


e crticos oitocentistas sobre a impossibilidade de viver da prpria pena naquele
contexto, mesmo no caso dele, autor consagrado. Alm do trabalho que envolvia
a produo dos textos, entremeada com artigos de fundo para os jornais em que
trabalhou, da instruo de processos e das lides ministeriais e parlamentares, ele
teve de acompanhar a produo dos seus livros. Essa atividade, segundo suas re-
miniscncias, tomou-lhe um tempo precioso e causou-lhe desgostos profundos.
Ao se recordar da edio avulsa de O Gntrm/,"[. . .] depois de concluda a
publicao em folhetim", explica o escritor,"[. . .] foi comprada pela livraria do
Brando, por um conto e quatrocentos mil ris que cedi empresa. Era essa edi
ode mil exemplares, porm trezentos estavam truncados, com asvendas de vo
lumes que se faziam formiga na tipografia. Restavam pois setecentos, saindo o
exemplar a 2$000".''^ Por razes que escapavam do controle do autor, o produto
final estava prejudicado, sendo necessrio descartar 30% da tiragem. Isso afetava
diretamente a planilha de custos e lucros do livreiro-editor que havia encomen
dado o servio de umatipografia e de um encadernador cuja qualidade do servio
tinha se mostrado sofrvel. Indiretamente, o fato tambm maculava a reputao

* Jos de Alencar. Como e porque sou romancista. In: Idem. Obras completas, v. 1. Rio de
Janeiro: Aguilar, 1959, pp. 120-1.
Ibidem, pp. 117-8.
394 nelson schapochnik

do escritor, e, some-seainda,o fato de que o encarecimento do livro poderia con


tribuir para um afastamento ainda maior dopblico.
O descompasso entre o tempo empregado na criao textual e a produo
do livro tambm foi registrado por Jos de Alencar. Indignado, ele afirmava ter
empregado trs meses, entre 1864 e 1865, na elaborao dos cinco ltimos volu
mes d'A5 Minas de Prata. Por sua vez, "a demorada impresso estorvou-me um
ano, que tanto durou". Da o balano depreciativo da relao entre o escritor e os
prstimos da tipografia brasileira:
Ningum sabe da m influncia que tem exercido na minha carreira
de escritor, o atraso da nossa tipografia, que um constante caiporismo torna
em pssima para ela. Se eu tivesse a fortuna de achar oficinas bem monta
das com hbeis revisores, meus livros sairiam mais corretos; a ateno e o
tempo por mim despendidos em rever,e mal, provas truncadas, seriam me
lhor aproveitados em compor outra obra."'*'

Em 1870, portanto, cinco anos aps a primeira edio de Iracema, custeada


pelo prprio autor, que havia confiado sua impresso Typographia de Vianna 8c
Filhos, foi publicada pela Casa Garnier uma nova edio. O fato de ser a mais
prestigiosa editora de obras literrias do perodo, de dispor de umaempresa asso
ciada, a Tipografia Franco-Americana, e ainda contar com a livraria mais freqen
tada da Rua do Ouvidor, levaria a crer que a beligerncia de Alencar fosse dar
lugar a um perodo de distenso e de relaes mais cordiais com os encarregados
da produo livreira. Ledo engano. O "ps-escrito 2." edio" tornou-se um dos
paratextos alencarianos mais lidos e debatidos por conta da defesa de uma lngua
portuguesa-brasileira. Entretanto, podemos localizar neste texto asseres muito
interessantes para a compreenso dos desacertos entre o escritor e os responsveis
pela formatao do livro.
Vejamos a linha de raciocnio, tal qual ela apresentada nesse texto.

Sai estaedio escoimada de alguns defeitos que na primeira abunda


ram; porm, a respeito de erros de imprensa, sem dvida mais incorreta.
Nossas tipografias em geral no tm bons revisores; e o autor o mais
imprprio para este rduo mister.
Inteiramente preocupado da idia ou do estilo, pouca ateno sobra
para dar parte ortogrfica do livro. Alm de quemuitas vezes o pensamen
to profundamente gravado na memria, no deixa perceber no papel as in-
fidelidades de sua reproduo."^

De acordo com Alencar, essa nova edio foi beneficiada pelas intervenes
do autor que retificou passagens, corrigiu o texto, tudo isso de uma perspectiva

Jos de Alencar. Como e porque sou romancista, cit., p. 120.


Jos de Alencar. Ps-escrito 2.' edio de Iracema (out./i870). In: Idem. Iracema. 2.' ed.
(ed. crtica por M. Cavalcanti Proena). Rio de Janeiro/So Paulo: LTC/Edusp, 1979, p. 99.
malditos tipgrafos 395

estilstica. Entretanto, ele reconhecia que os erros de impresso so abundantes e


no s se eximia de qualquer parcela de culpa, como a transferia para o revisor.
Mas, ao apelar para uma diviso intelectual do trabalho, Alencar atribua ao revi
sor a manuteno de uma coerncia que deveria estar sob o controle do escritor,
isto , a ortografia.
A seguir, ele procura mostrar os resultados do imbricamento entre as incer
tezas ortogrficase a pluralidade de convenes na profuso de erros tipogrficos.

A incerteza que reina sobre a ortografia da lngua portuguesa, acha


que herdado do latim, ainda mais concorre para a incorreo dos livros. Su
cede muitas vezes que o autor, para no multiplicar emendas nas provas,
aceita um sistema adotado pelo compositor, que, entretanto, logo depois o
altera e substitui por outro."*^

O que se verifica no argumento alencariano justamente a introjeo da


queles procedimentos apontados por Ogier, que insistia na necessidade de evitar
muitas emendas nas provas. Uma vez acatadas as convenes preconizadas pelo
compositor, a manuteno da coerncia passa a ser desse trabalhador das letras e
no mais do criador do texto.
Apesar de ser reconhecido pelos seus contemporneos como um homem
de letras e de ter forjado sua auto-imagem associada operao do texto, Jos de
Alencar credita a existncia de muitas faltas, apelando para a distino entre o
profissionaldas letras e o diletante, por um lado, e ao ritmo e solicitaesda musa
industrial, por outro. Desta forma, ele anotava que:

Facilmente escapam essas anomalias, sobretudo ao escritor, que no


faz das letras uma profisso, porm mero passatempo. Chegam-lhe as provas
tardias, muitas vezes no meio de outras e graves preocupaes, que absor
vem seu esprito. Apenas tem ele tempo de lanar-lhe um olhar distrado.
Nesta segunda edio h de o leitor encontrar exemplos de todas as
faltas a que me refiro, sem contar o nmero no pequeno das que devem
correr exclusivamente por conta da inadvertncia do compositor.

Entre os principais elementos de discrdia entre o autor e os compositores,


Jos de Alencar destacava: a) o uso simultneo de o e am, b) a acentuao da
preposio a, c) o uso indiscriminado do ditongo eoeeue do sufixo ioe iu, d) uso
da conjuno si e no se.
A crer nesse esquema, as incorrees tipogrficas escapavam da alada do es
critor, pois ele j no teriacondies de visualizar nas provas os erros de um texto
que j foi lido, rasurado, revisto, etc. Por sua vez, os equvocos ortogrficos resul
tariam de um pacto ou da transferncia da responsabilidade para o compositor.

Ibidem.
Ibidem.
396 nelson schapochnik

que, em ltima instncia, deveria zelar pela coerncia dosistema de notao elei
to pelo escritor.

So estas as observaes principais que de momento me ocorrem a


respeito da ortografia do livro.Serviro para no me lanaram conta, como
j tem sucedido, as incorrees tipogrficas, to copiosas infelizmente em
minhas obras. Podem elas depor contra a aptido do autor para a reviso, do
que est ele plenamente convicto, mas devem ser desculpadas ao escritor,
que o primeiro a censur-las.''

Todos aqueles que j se depararam com manuscritos e impressos brasileiros


oitocentistas devem ter constatado a instabilidade ortogrfica criticada por Alencar
e experimentada ainda por muitos contemporneos do escritor. Entretanto, essa
parece ser uma vereda que pode conduzir ruptura de um certo maniquesmo
entre aquilo que os escritores querem nos fazer crer como verdadeiro, por um
lado, e que se ancoraria na suposta correo dos autores, e no desleixo e outros
predicados negativos atribudos aos revisores, compositores, impressores e enca-
dernadores, por outro.
B o prprio Alencar quem fornece uma chave para esse descentramento,
quando afirmava que aquilo que era tomado como um erro tipogrfico poderia
no ser um erro, mas uma transgresso deliberada, que se chocava com as con
venes mais ortodoxas ou normativasadotadas pelostipgrafos.

Minhas opinies em matria de gramtica tm-me valido a reputao


de inovador, quando no a pecha de escritor incorreto e descuidado.
Entretanto, poucos daro mais, se no tanta importncia forma do
que eu: pois entendo que o estilo tambm uma arte plstica, porventura
muito superior a qualquerdasoutrasdestinadas revelao do belo.^^

Desta maneira, fica evidente que o instrumento da ironia ou da stira em


pregadas por Machado de Assis eFaustino Xavier de Novais tinha um efeito tpi
co, isto , denunciar e ridicularizar o estado datipografia no Brasil. Por sua vez, as
reclamaes de Alencar tambm estavam sintonizadas com um diapaso crtico,
mas tinham um carter propedutico, a saber: fundar uma lngua literria nacio
nal, transgressora do portugus cannico que era matriz pela qual os tipgrafos se
orientavam. Daa inevitabilidade dosconfrontos.
Caminhando para a concluso, recorro ao aporte do terico tcheco Felix
Vdicka que afirma que "a obra literria, depois de publicada ou divulgada, tor
na-se propriedade do publico, que a le com a sensibilidade artstica da poca
Portanto, ao recusar a velha frmula da autoridade autorial, podemos pensar que
Jos de Alencar. Ps-escrito 2.' ed. de Iracema, cit., pp. 104-05.
Ibidem, p. 105.
Felix Vdicka. A histria da repercusso das obras literrias. In: Dionsio de Tole'
Circulo Lingstico de Praga: Estrnturalismo e Semiologia. Porto Alegre: Globo, 1978, p. 299.
malditos tipgrafos 397

a manipulao de uma obra repleta de erros tipt^rficos, com pginas ausentes


ou truncada, poderia indicar um trao de inventividade do leitor, que escapa aos
usos previstos por autores e editores. Mas, afinal, o que justificaria o apelo a um
livro cujas caractersticas materiais sacrificariam a compreenso da mensagem?
A tentativa de responder a esta pergunta coube a uma senhora velhaca cuja
astcia possibilitou pensar naquilo que outros leitores desconsideraram:

H dias deu o Jornal cio Commerao o seguinte anncio, entre outros:


"Pede-se para trocar o segundo volume do romance de Rocambole,
porque falta um grande nmero de pginas (64 a 81) assim como no fim a
ordem das pginas est invertida".
Isto ao p da letra, um disparate. Trocar um volume, porque tem
falta de pginas, proposta que se faa a algum? Alm de falta de pginas,
h pginas invertidas, isto , um defeitoalm de outro, e que s vem agravar
o primeiro. Finalmente, no diz onde, nem quem deseja trocar o volume.
Uma senhora com quem falei esprito agudo e velhaco respon
deu-me placidamente:
O anncio um rendez-vous. Rocambole e a troca do volume so ape
nas o fio que liga a orao secreta. Fiquemos no nmero de pginas que
faltam: 64 a 81; fiquemos nas circunstncias das pginas invertidas do
fim. 64 compe-se de um 6 e um 4; 6 e 4, dez. So as horas do rendez-vous.
81 8 e 1; invertidos (pginas invertidas no fim) do 18, dia do rendez-vous.
Assim temos: no dia 18, s 10 horas, espere-me.
Oh Champollion!''

Machado de Assis. Ilustrao Brasileira (15/5/1877). In: Idem. Chronicas, v. 3. Rio de Janeiro:
W. M. Jackson, 1938, pp. 220-21.
TENHA MODOS! A CORRESPONDNCIA EM MANUAIS
DE CIVILIDADE E ETIQUETA (ANOS 1920-1960)*

Maria Teresa Santos Cunha


Universidade do Estado de Santa Catarina

Boas maneiras, manuais de civilidade, regras de etiqueta, correo dos mo


dos, prticas de bom-tom: se h alguns anos atrs tais atitudes soavam estranha
mente associadas a um tempo pretrito e, principalmente, a regras anacrnicas,
atualmente voltam cena e compem o que se convencionou chamar de literatu
ra de civilidadey^ um corpus textual integrado por livros voltados para a propaga
o de boas maneiras e a partirdos quais possvel aprender e ensinar o que ou
o que deve ser civilizado. Em pleno sculo XXI, noes de civilidade entendidas
na perspectiva da tradio advinda de Erasmo, no sculo XVI para quem o
conceito de civilidade^ representava um ideal de perfectibiiidade social que supu
nha um processo ativo de interiorizao de cdigos sociais a que se chegava es
sencialmente por imitao merecem investimento editorial.
Dirigidas crianas sem distino, a civilitas segundo Erasmo pretendia en
sinar um cdigo vlido para todos e, da mesma forma, funcionava como regula
dora de instintos "era o que fazia possvel a vida em comum sem odiar-se, ensi
nando a ser agradvel ao outro e a evitar ferir-se"^Sempre a prescrever que os
bons comportamentos podem ser ensinados e aprendidos de maneira til para
todos tais postulados, hoje, se materializam na presena de numerosos manuais

*Este texto integra o Projeto "Tenha Modos! Educao e Sociabilidades em Manuais de


Civilidade e Etiqueta (1920-1960)" realizado com apoio do CNPq.
' M. do C. T. Rainho. A distino e suas normas: leituras e leitores dos manuais de etiqueta e
civilidade Rio de Janeiro, sculo XIX. Acervo: Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro,
Ministrio da Justia, v. 8, n." 01-02, 1995, p. 140.
- Do latim civitas indicando o conjunto de cidados livres civis reunidos na cidade e que pre
cisavam interiorizar cdigos sociais para fazer frente barbrie e ignorncia (ver: J. L. Guereha. Ei
alfabeto de Ias buenas maneras. Los manuales de urbanidad en Ia Espafm contempornea. Madri: Funda-
cin Germn Snchez Ruiprez, 2005, p. 30).
' N. Elias. O processo civilizador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993, p. 184.
a correspondncia em manuais de civilidadee etiqueta 399

colocados venda ao grande pblico."* A emergncia dessas produes foi qualifi


cada como uma "febre de protocolo","uma obsessiva liturgia por bons modelos"^
que voltam a ocupar um lugar central nas estratgias profissionais e sociais de
hoje, como pode ser evidenciado pela circulao de livros nesse teor, produzidos
por profissionaisde variadas formaes.
Na esteira dos trabalhos desenvolvidos por Chartier, esta pesquisa em passos
curtos, "desenhou seu territrio"'' por uma abordagem vinculada histria cultu
ral em busca de imagens discursivas que circulam, como crenas, em materiais
impressos e que evidenciam a produo e circulao desse gnero que se dirige a
todos e que, pelas figuraes da leitura "visam incorporar no indivduo os gestos e
maneiras conforme exigncias mundanas e crists".'
Esta procedncia crist dos ditos Manuais de Civilidade afirmada por Chartier
merece registro porque agrega a importncia, na produo desses impressos, de ele
mentos de fundo religioso que, em geral, esto presentes na maioria dos textos de
civilidade/urbanidade do sculo XVII em diante e que do conta de que foi a Igre
ja, em primeira instncia, quem se ocupou de civilizar e educar os jovens nessa ma
tria, justificando sua funo com base no respeito a Deus e no amor ao prximo.^
O cdigo social definido pela civilidade/urbanidade responder ao que tudo indica,
ao modelo catlico e os manuais ligar-se-o a um tipo de catecismo religioso que
ser estendido a todas as classes sociais mediante a escolarizao que caracterizar o
sculo XIX e XX, reafirmando uma virtude essencial que preservava a moralidade e
fortalecia, em certo sentido, a ordem social existente. Tais noes de sentido trazem
os benefcios de uma distino soal no sentido forjado por Pierre Bourdieu.
Matria de longos tratados, sempre enunciada maneira do dever ser,encarna
da em dizeres e regras, as prticas de civilidade podem ser consideradas como formas
de racionalizao do cotidiano e se confundem com a represso dos sentimentos
* Refiro-me aos livros de etiqueta de autoria da jornalista Danuza Leo. (D. Leo. Na sala com
Danuza. 8.' ed. So Paulo: Siciliano, 1992) e, igualmente, a obra organizada pelo historiador Jaime
Pinsky (Cultura & elegncia. So Paulo: Contexto, 2005), j em segunda edio. Recentemente, a
compilao das crnicas de Clarice Lispector utilizando pseudnimo de Tereza Quadros pu
blicadas em jornais da dcada de 1950, tambm pode ser consideradas como literatura de civilidades
(C. Lispector. Correio Feminino. Rio de Janeiro: Rocco, 2006).
J. L. Guerena, op. cit., p. 11.
'' R. Chartier. Leituras e leitores na Frana do Antigo Regime. So Paulo: Unesp, 2004, p. 7.
Ibidem, p. 12.
* Para fins dessa pesquisa e embora consciente de variaes lingsticas e considero como ho
mnimos os conceitos de civilidade e urbanidade na clave proposta por Jean-Louis Guerena (op. cit.,
pp. 12-3), para quem: "A palavra urbanidade deriva de urbe e significa cidade; d a entender que
compreende as boas palavras e os modelos honestos que, em suas relaes empregam as pessoas cul
tas das cidades, as mais cuidadosas, as que tm boas maneiras cujos comportamentos remetem tanto
aparncia externa como a seus comportamentos sociais visveis e evidenciados".
Roger Chartier tambm se manifesta no mesmo diapaso, pontuando que: "Civilidade se
insere numa srie de adjetivos designando as virtudes mundanas visveis nas cidades/urbes. [. . .)
honesto, polido, corts, gracioso, afvel, bem-educado, tratvel, socivel. Este conjunto de palavras
vizinhas desenha um outro espao de civilidade [. . .] onde conta antes de tudo a aparncia das ma
neiras de ser" (op. cit., p. 46).
V. T. Sptien. Los textos de urbanidad y los libros de conducta (una reflexin inicial). In: J.
L. Guerena; G. Ossenbach & M. dei M. Pozo. Manuales escolares en Espana, Portugal y Amrica Latina
(siglos XIX e XX). Madri: Uned, 2005, pp. 259-70.
400 maria teresa santos cunha

que, num estgio de civilizao, propicia o "abrandamento das puises'V que se


tornam socialmente aceitveis apenas se reprimidas. Norbert Elias considera que
o padro de comportamento de cadaperodona histria est determinado por va
lores particulares e estruturas sociopolticas que se expressam em seus cdigos de
boas maneiras e alerta que, hoje,"[. . .] so to fortes a censura e a presso da vida
social que enformam os hbitos, que para o jovem h apenas uma alternativa: ou
submeter-se forma de comportamento exigida pela sociedade ou ficar excludo
da sociedade bem educada"."
Escolarizados, desde as primeiras dcadas do sculo XX, notadamente pre
sentes nos currculos das Escolas Normais, constituam um registro do saber que
uma sociedade determinada considerava que deveria ser transmitido pela institui
o educativa e este parece ser um dos aspectos mais importantes desses impres
sos como fonte para uma Histria Cultural da Educao e das Sensibilidades. Seu
papel ia alm do ensino de boas maneiras ou da difuso de regras de etiqueta pois
que seus propsitos estavam mais assentados em buscar preparar os(as) futuros(as)
professores(as) para a vida em sociedade e para a formao de alunos como cida
dos patriotas e perfeitamente afinados ao modelo catlico, embora vivendo em
uma sociedade cuja constituio afirmava a laicidade do ensino.
Entre tantos ensinamentos encontrados nesses livros, as lies que privile
giam os bons modos, a aparncia nas maneiras de ser, o exerccio de uma conduta
moral irrepreensvel, a suavidade expressa em gestos, a forma de portar-se diante
de pessoas e de diferentes maneiras em lugares especficos, as formas de cumpri
mentar autoridades e cidados comuns, os hbitos de asseio pessoal, as prticas de
leitura autorizadas, a escrita protocolar de cartas, constituram-se, a partir das pri
meiras dcadas do sculo XX, como partes de um programa de civilidade, adota
do pela Escola Normal na formao de professores(as).
Sistematizados em obras conhecidas como Manuais de Civilidade, embora
nem sempre tivessem estes nomes estampados em suas capas, esses saberes foram
escolarizados, integravam a bibliografia escolar e tinham inteno de guiar com
portamentos tendo em vista prticas de sociabilidade que regulariam uma pessoa
"bem educada". A disseminao desses manuais supunha a existncia de comu
nidades de leitores, e sua circulao, em alguma medida, estava assegurada pela
atualidade dos temas que veiculava, informava para formar disposies, condu
tas, sensibilidades, direes de vida, para o que privilegiava; uma forma de gesto
de corpos e almas que encerra o indivduo em redes de vigilncia."
Muitas possibilidades de anlise abrem-se ao estudo dos manuais. So provo
cativas e de difcil alcance investigativo asquestes formuladas por Chartier" rela
tivamente complexidade das relaes que ligam os manuais a seus leitores, ou o
Este justamente o ttulo de um dos captulos com que Norbert Elias conclui seu
monumental trabalho. Ver; N. Elias. O processo civilizador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993.
" N. Elias. O processo civilizacional, v. 1. Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 183.
J. Revel. Os usos da civilidade. In: R. Chartier (org.). Histria da vida privada 3: da Renascena
ao Sculo das Luzes. So Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 170.
R. Chartier. Textos, impresso, leituras. In: L. Hunt. A Nova Histria Cultural. So Paulo:
Martins Fontes, 1992.
a correspondncia em manuais de civilidade e etiqueta

prprio texto dos manuais, o objeto que comunica o texto e o ato que o apreende.
Em outras palavras, o estudo da relao prtica que liga quem escreve, os supos
tos leitores a quem escreve e os leitores efetivos, que no ato da leitura produzem
as significaes do texto, de tal monta que pode ser at mesmo inatingiveL'"* H
uma significao mvel das noes expressas pelos manuais, variando segundo o
estado social dos leitores, seus repertrios de leitura, suas relaes com outros tex
tos, seus lugares de utilizao, os gestos e usos sociais que lhes so possveis.
Os manuais de civilidade eram considerados, portanto, vetores de sistemas
de valores, erramentas para a consolidao das formas e dos cdigos morais e
sociais. Eles compunham-se de inmeros conselhos, regras precisas e orientaes
de conduta pessoal, moral e social cujo objetivo era transmitir e ensinar atenes e
cuidados que cada indivduo deveria dirigir a si mesmo, no espao pblico e priva
do. A civilidade , ainda hoje, distintiva e fonte para se compreender uma gramtica
que ordena a vida em sociedade em um conjunto de conselhos de como portar-se
"[. . .1 sempre enunciada como modo de dever ser, a civilidade visa transformar
em esquemas incorporados, reguladores, automticos e no expressos das condu
tas, as disciplinas e censuras que ela enumera e unifica numa mesma categoria".'"
No Brasil, numerosos manuais de civilidade
e etiqueta j no final do sculo XIX, foram edita
dos e divulgados, principalmente quando a elite
agrria brasileira se mudava para as cidades e uma
nova burguesia ocupava espaos. O mais famoso (e
W? I I. Ki^iuriir
provavelmente
, T
mais antigo)
1
manual chamava-se
Cdigo do Bom Tom-, de autoria do cnego portu-
*?OM-TOM^ gus identificado apenas como J. I. Roquette, pu
blicado em 1845 (j em sexta edio em 1900).
Relanado em 1998, este manual introduziu regras
de como se comportar em festas, eventos da socie
dade, artes de bem viver, inspirado em manuais
franceses. Sendo assim, as prescries contidas nes
ses livros e supostamente postas em prtica por ca
madas mais amplas da populao urbana, j esta
riam suficientemente interiorizadas no primeiro
quarto do sculo XX.
Para fins dessa pesquisa, montamos um acer\'o desses materiais comprados
em sebes, outros doados por amigos e conhecidos, que totaliza at o momento
cerca de cinqenta exemplares."'

Cf. Rogcr Charticr. Leituras e leitores na Frana ilo Antigo Reginw, cit., p. 48.
M. Stophanoii. Sade, higiene e civilidade em manuais. In: /// Congresso lirasilciro de Histria
da ldiieao, 2004, Curiliba/PR. A Educao Escolar em Perspectiva Mistrica. Curitiba/PR: Universi
tria Champagnal, 2004.
Roger Cluirtier. Leituras e leitores na Frana do Antigo Regime, cit., p. 48.
' Dispt>nveis no NEH {Ncleo de Estudos Hislricos)/Udcsc, adquiridos com apoio das bol
sistas Cristiane Cecchin e Daniela Queiroz Campos. Outra parte encontra-se na UFRGS sob guarda da
Prol." Dr/ Maria Stephanou, integrante do Projeto.
402 maria teresa santos cunha

A partir da dcada de 1920, Manuais de Civilidade e Etiqueta comeam a


figurar com bastante freqncia nas estantes de bibliotecas das Escolas Normais.
Na maior parte das vezes estes livros compunham o material didtico utilizado
em aulas de variadas disciplinas, como Educao Moral e Cvica, Economia Do
mstica,Higiene, Literaturae Didtica que eram ministradas como parte dos cur
rculos oficiais para a formao de professoras e professores do chamado Ensino
Primrio.' Assim, incutir formas civilizadas de conduta pessoal e moral e desfi
lar suas prprias marcas de etiquetasocial eram aspectos desenvolvidos como um
saber escolar, que num processo histrico de longa durao, constituram a edu
cao das crianas como objeto de interveno higinica e disciplinar. Como tal,
os currculos estavam preocupados em definir regras para o controle e a conten
o de sentimentos e sensaes e, ao mesmo tempo, investir na formao de sen
sibilidades recatadas, civilizadas, consideradas indispensveis como signos de re
finamento para professoras/es nesse processo histrico que "constituiu a escola
como instituio intrinsecamente disciplinar e a modernidade como sociedade
da escolarizao"'^
Este perodo caracteriza-se pela emergncia de variados discursos e produ
es escritas provenientes de diferentes campos como a Igreja, a Escola, a Medici
na, a Imprensa; todos preocupados com aspectos ligados higiene, moral e
construo de homens e mulheres saudveis e civilizados(as), base necessria para
o fortalecimento do Estado e para a construo de novas sensibilidades que vose
definindo com a urbanizao crescente.
Datade 1932, a propagao e divulgao nasEscolas Normais da edio bra
sileira do Pequeno Manual deCivilidade para uso daMocidade, editado pela Livra
ria Francisco Alves. Este procedimento aponta para o uso escolarizado desses li
vros nos quais se propunha;

A civilidade existe sob duas formas: a primeira consiste no conjunto


dos sentimentos que nos animam em relao ao prximo: a civilidade do
corao. A segunda forma a manifestao externa destes mesmos sen
timentos: a civilidade dos modos. [. . .] A civilidade dos modos consiste
em observar certas regras no trato social e chamada: o saber viver. Estas
regras so um cdigo queensina o necessrio para mantermos com os nos
sos semelhantes relaes suaves e amenas, para saber falar, escutar, conver
sare escrever polidamente; ningum conhece de maneira inata os preceitos
da civilidade, e nem os aprende de improviso; aprendem-se pelas lies dos
mestres e pela prtica, como tambm pela ffeqentao pessoas bem edu-

A Proposta Curricular da Escola Normal Catharinense, desde 1892 continha aulas de Deveres
Cvicos e Deveres Morais (ver M. A. S. Schaffrath. A proposta curricular da Escola Normal Ca
tharinense de 1892. In: L. Scheibe & M. D. Daros (org.). Formao dos professores em Santa Catarina,
Florianpolis: NUP/CED/UFSC, 2002, pp. 93-111.
" M. M. C. Carvalho. Quando a histria da educao a histria da disciplina e da higie-
nizao das pessoas. In: M. C de Freitas. Histria Social da Infncia no Brasil. So Paulo: Cortez, 1997,
p. 291.
a correspondncia em manuais de civilidade e etiqueta 403

cadas; resumem-se na discrio, no tato, na amabilidade, na delicadeza e na


abnegao.-

Amplamente divulgados no ambiente escolar os manuais mostram, com pre


ciso, a sutileza e a agilidade de quem, sendo breve, sabe ser profundo na transpa
rncia de transmisso de normas, condutas e valores, na clareza das idias, na coe
rncia da escrita, na envolvncia de imagens discursivas (s vezes at visuais) que
se tecem em narrativas simples, quase coloquiais. Os manuais contm mapas para
um percurso (materializados em ndices por assuntos, pginas numeradas, dese
nhos ilustrativos, exemplos edificantes) pretendem enraizar-se numa cultura do
gesto e do agir e podem valer como preciosos elementos de auxlio para "[. . .] o
entendimento de prticas culturais que contriburam para a constituio do in
divduo moderno".-'
Polissmicos em seus usos, plurais na sua composio, vulgarizadores de
prescries para vrios aspectos da vida em sociedade, os manuais so livros di
fceis de classificar convencionalmente: nem totalmente prticos, nem somente
literrios, mas sempre com determinaes e objetivos pedaggicos, estavam es
treitamente ligados ao mercado do livro escolar, o que pode ajudar a entender a
freqncia com que se fizeram presentes nas bibliotecas escolares.
Para a construo deste texto, trabalhei especificamente com as prescries
para a escrita epistolar que eram alvo de investimento nos manuais e que foram
reforadas como um saber escolar a ser internalizado.
Considerando a escola, por tradio e funo, depositria e instrumento dos
processos de aprendizagem e de ensino da escrita e da leitura, a presena e a mul
tiplicao de manuais de civilidade e etiqueta nesse ambiente esto ligadas ge
neralizao do modelo escolar como espao de socializao infantil. O manual
era, pois, um livro de leitura escolar que, presente nos currculos, participava da
construo de um repertrio de atos plausveis desde formular uma emoo e
exprimir um desejo, a saber sentar-se para ler e escrever corretamente uma carta.
Saber escrever uma carta era alvo de investimentos nos manuais que circu
lavam no ambiente escolar e tema de estudos e aplicao na escola. importante
ressaltar que o tradicional Colgio Dom Pedro II (RJ) que, por muito tempo, foi
colgio-padro no Brasil, apresenta em seu Programa de Portugus para os cursos
clssico e cientfico do ensino secundrio, pela Portaria Ministerial n. 87, de 23
de janeiro de 1943, um item que previa "exerccios de redao e composio sob
formas de cartas"^^ evidenciandoa prtica epistolar como conhecimento escolariza
do, o que nos permite inferir que outras instituies escolares seguissem o mes
mo exemplo.

Pequeno Manual de Civilidade. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1932, pp. 13-5 (obras
raras do acervo do Museu da Escola Catarinense/Udesc/SC).
A. C. Gomes (org.). Escrita de si, escrita da histria. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 11.
" A. Vechia & K. M. Lorenz (org.). Programa de Ensino da Escola Secundria Brasileira (JS50-
1951). Curitiba: Editora do Autor, 1998, p. 358.
404 maria teresa santos cunha

Um dos manuais mais conhecidos e utilizados em Escolas Normais, especial


mente em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, chamava-se Tratado de Civili
dade e Etiqueta, de autoria da Condessa de Genc, editado em Portugal em 1909 e
que, em 1951, j se encontrava na dcima quarta edio. O captulo XVI desta
obra intitula-se "Correspondncia"; e ali esto apresentadas receitas para o exerc
cio de escrever cartas que deveria ser aprendido na escola.
Na esteira do trabalho realizado pela historiadora espanhola Vernica Sierra
Blas" centrar-se- a anlise, em um primeiro enfoque, nas recomendaes episto-
lares propostas pelomanual e suas tipologias (suporte, estilos, precaues, frmulas
para a escrita de cartas). Em um segundo momento, pequenas regras de conduta
e higiene, expressas em livros de leitura e romances para professoras, sero alvo
de destaque e reflexes como instrumentos oficialmente aprovados para leitura
em salas de aula. Tais recomendaes textuais, historicamente construdas, apre
sentam prescries/receitas para a prtica da correspondncia as regras do bom-
tom da escrita epistolar bem como conselhos, sob forma de pensamento e his
trias de que se pretendiadifundir na formao de futuras professoras e professores
(em menor nmero).
No que diz respeito scorrespondncias como portadorasde civilidade, pres
creve-se que uma carta pode expressar muitos sentimentos (amor, pesar, felicita
es);deveseguir certasregras (letra, formas de tratamento, embalagem) e obede
cer a certos ditames (oficial, pessoal). Em seu conjunto, a correspondncia tem
um lugar importante nas relaes sociais por ser um registro considerado, na maior
parte das vezes,"[. . .] como um conjunto de prticas de escrituras [. . .] e uma
das formas de escrita ordinria que se caracterizam por introduzir a ordem do
escrito no cotidiano das existncias"^"* onde esto materializados testemunhos de
poca, tanto do indivduo como dos grupos a que pertence. Nesse momento, mais
que um estudo sobre cartas em si, a inteno encontrar as prescries que fazem
a sua construo, o repertrio denormas escritas quedo forma ao gnero epistolar
socializado pela Escola.

Histrias sobre o Manual: da autora e do suporte

O Tratado de Civilidade e Etiqueta, objeto dessa anlise, no um manual


restrito de correspondncia, mas dedica um captulo a prescrever normas para a
escrita de cartas. A autoria registrada apenas como Condessa de Genc e a edio
que aqui se estuda a oitava, datada de 1935. Pesquisas realizadas econsultas em
bibliotecas da Frana e de Portugal^^ confirmam o desconhecimento do nomeverda
deiro da autora que se assina com o pseudnimo de Condessa de Genc e que tem

" V. S. Blas. Aprender a escribir cartas. Los manueles epistohres enIa Espana contempornea (1927-
1945). Gijn (Asturias): Trea, 2003.
R. Chartier. La Correspondance. Les nsages de Ia lettreati XIX sicle. Paris: Fayard, 1991, p. 33.
Agradeo a gentileza do Prof. Dr. Karl M. Lorenz, da Sacred Heart University, em Fairfield,
Connecticut (EUA) pela ajuda inestimvel na coleta de dados sobre a autora desse manual de
civilidade.
a correspondncia em manuais de civilidade e etiqueta 405

nacionalidade francesa. H uma breve referncia que indica o ano de 1872 como
o de seu nascimento no havendo qualquer indicao sobre seu falecimento.
A primeira edio desse manual de civilidade foi publicada na Frana em
1895 e, em 1909, apareceu a primeira traduo em portugus que foi publicada
pela Livraria Editora Guimares 8c Cia.,de Lisboa.-^ Com esse pseudnimo a Con-
dessa publicou outros trabalhos, tais como: Le Cabinet de Toilette d\me Honnte
FemmCy em 1909, sem traduo conhecida para o portugus e o Guia Mundano
das Meninas Casadorasy em 1910, pela mesma editora, em Lisboa. Sua presena
nas bibliotecas escolares catarinenses^' data do incio dos anos de 1930.
Pesquisas indicam queparece mais comum do quese imagina o uso de pseu
dnimo na autoria dos manuais de civilidade. Muito poucos apresentam o nome
completo dos seus autores, preferindo referenci-los com ttulos nobilirquicos
ou eclesisticos, portadores de certa distino e legitimidade em funo do lugar
social de onde escrevem (no caso, aqui, da nobreza). O mais antigo manual em
circulao no Brasil tambm conhecido como sendo aquele escrito pelo cnego
portugus conhecido por Roquette;- e, ainda, a mesma situao se repete no Pe
queno Manual de Civilidade para Uso da Mocidade^ de 1932, editado pela Livraria
Francisco Alves, cujo autor no aparece.
Os estudos de Dauphin^' autorizam a pensar que os autores dos manuais
nobres, clrigos encontram-se, oportunamente, em posio de mediadores para
ajustar as regras de distino social a novas configuraes e a novos receptores.
Num sculo marcado pelos novos usos do escrito, o papel das obras normativas
o de participarda construo de um repertrio que postula uma esttica de com
portamento social. O manual, assim, no somente fruto de iniciativas individuais;
resultado de uma ao coletiva de pessoas que se apresentam como qualificadas
(pelaorigemsocial ou por cargos) para avaliaras necessidades dos outros.
Os autores, em geral, formam um conjunto de pessoas diligentes que se dis
pem a produzir e socializar um saber mais restrito e a prescrever regras, condu
tas e valores que circulam em meios ditos mais civilizados. Um livro como este
em pauta cuja autoria de algum portador de um ttulo de nobreza; cujo tema
versa sobre etiqueta e civilidade e destinado a uma elite desejosa de aparentar
boas maneiras, refora a idia de um engajamento maior dos leitores pela possvel
legitimidade de seu lugar de produo. Acresce-se a isto o fato de que no mundo
aristocrtico, a sociabilidade epistolar um elemento tradicional da vida munda
na e que a nobreza feminina que sabia escrever pretendia oferecer a garantia de

Em livrarias portuguesas foi possvel encontrar a dcima stima edio desta obra, datada de
1968.
" Dados recentes colhidos pela Prof." Dr." Maria Stephanou evidenciam a circulao desse
material em bibliotecas escolares do Rio Grande do Sul, a partir da dcada de 1930.
* Gilberto Freire, em Casa-Grande & Senzala, faz referncias explcitas a este manual: "O autor
de um certo Cdigo do Bom Tom (o cnego Roquette) alcanou grande voga entre os bares e
viscondes do Imprio, os quais passaram a adotar regras de bom tom na criao dos filhos". G. Freire.
Casa-grande & senzala: formao da famlia brasileira sob regime da economia patriarcal. 23.' ed. Rio de
Janeiro: Jos Olympio, 1984, p. 420.
C. Dauphin. Prte-moi ia plume. . . Les manuels pistolaires an XIX sicle. Paris: Kim, 2000.
406 maria teresa santos cunha

sua experincia. Entre as marcas do verdadeiro aristocrata est o manejo gil das
normas do comportamento: um nobre diz o que apropriado, mas tambm anun
cia o verdadeiro para ser seguido.
A contribuio da bibliografia material^ e da histria da leitura^' mostra que
a materialidade de um impresso, o suporte onde ele dado a ler, cria condiciona
mentos sobre os sentidos que ele pode liberar. Assim, as formas do texto dado
pelos editores, o nmero de pginas, o tamanho das letras, moldam possibilida
des de compreenso e recepo.
O Tratado de Civilidade e Etiqueta^ por exemplo, apresenta-se ao leitor sem
ilustraes, em capa simples, com o ttulo escrito em letras maiores de cor preta e
se assemelha aos demais livros, produzidos na mesma poca.^^ Apresenta-se como
um dispositivo textual bastante comum poca da edio, organizado em quatro
partes, a saber: Preliminares Cortesia; Em casa (apresentado em quatro captu
los); Acontecimentos que modificam a famlia (quatro captulos) e Na sociedade
(apresentado em oito captulos), o que permite concluir que o objetivo maior o
de postular e instaurar regras e normas para a vida polida e civilizada que se alme
java na sociedade e que deveriam ser lidas como finas especiarias, em uma rela
o entre a alma, o olho e a mo.
A ausncia de imagens na capa funciona como um protocolo de leitura,
pode-se inferir que a significao passa da capa para o tema, o ttulo centralizado
em letras negras e grandes direciona o olhar e no est ali de maneira inerte: cons
tri tambm o que descreve e o que conta; divulga contedos, produz imagens
retricas e inscreve na sua escrita os efeitosde sua ao.

A Correspondncia no Manual: vitrines d'arte de escrever cartas

A grande maioria dos manuais de civilidade e etiqueta dedicavam espaos


para tratar da correspondncia,o que permite pensarsobre a importncia que lhe
era destinada como formadora das artes de escrever tanto como atividade realiza
da na escola como fora dela. Eles difundiam normas da escrita epistolar que ser
viam de apoio para a aprendizagem e interiorizao de regras para a prticadessa
escritaque se pretendia fosse adquirida na escola. Aescola imps-se, assim, como
o lugar para democratizar o estudo das cartas e o manual foi um instrumento
polivalente e precioso para alcanar este fim. Segundo Blas:

Desde a Idade Moderna, o recurso epistolar foi envolvido em um pro


cesso que se configurou como uma prtica cotidiana de comunicao. [. . .]

Cf. J. Hebrard. Por uma bibliografia material das escrituras ordinrias: a escritura pessoal e
seus suportes. In: A. C. V. Mignot; M. H. C. Bastos & M. T. S. Cunha. Refgios do eu. Educao, histria,
escrita autobiogrfica. Florianpolis: Mulheres, 2000, pp. 29-61.
R. Chartier. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. So Paulo: Unesp, 1998.
32 Livros da coleo de romances intitulada "Biblioteca das Moas", editada em Lisboa, na
mesma poca, e que circulavam na Escola Normal apresentavam capas e diagramao bastante
semelhantes. Estudos sobre esta questo foram realizados por M. T. S. Cunha. Armadilhas da seduo.
Os romattces de M. Delly. Belo Horizonte: Autntica, 1999.
a correspondncia em manuais de ci\nlidade e etiqueta 407

na Idade Contempornea o uso generalizado dessa prtica levou necessi


dade de dot-la de uma regularizao e normatizao, de uma ordem. Co
mearam, assim, a proliferar os manuais de cartas como forma de respon
der a crescente demanda tanto do mercado como do gnero em si.-^-^

No Tratado. . a Condessa de Genc dedica um captulo (XVI), o ltimo


do livro, doze pginas de um total de 180, para tratar da correspofidiida e anuncia
guisa de Introduo que:

Uma carta pode servir para fazer um pedido ou substituir uma visita.
Pode escrever-se n'uma carta tudo o que se no tem ocasio de dizer de Viva
voz. A correspondncia tem um lugarimportante nas relaes sociais e, por
conseqncia, "o saber escrever" faz parte do saber viver.^'*

Preocupado com o estilo e as regras de civilidade na escrita, o item "O estilo


d'uma carta", anuncia:

Uma carta deve ser redigida num papel decente. Quer seja a pequena
folha de papel azulou cor de rosa que a mundana emprega [. . .] ou o papel
reclame adotado pelo fornecedor ou mesmo o bilhete do caseiro/feitor (. . .]
o asseio do papel a primeira qualidade que se exige d\ima carta.

A utilizao de um suporte adequado para a escrita de cartas, a procura de


um papel decente mobilizou duas jovens estudantes dos finais dos anos 1960 que
trocaram cartas. Depois de procuraro melhor modo para trocar correspondncia,
optaram por folhas de arquivo argumentando que eram soltas, de bom tamanho,

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V. S. Blas, op. cit., p. 21.


C. Gcnc. Triilndo de civilidade c etiqueta. 8.^ ed. Lisboa: Guimares, 1925, p. 173.
Ibidem.
408 maria teresa santos cunha

no exigiam maiores gastos por fazerem parte do material escolar, almde permi
tirem maior conservao. Vrias vezes referiram-se a esse suporte de escrita como
o ideal: "A idia das folhas de arquivo foi tima, poderei escrever at durante a
aula".^^ O asseio, o papel limpo como qualidade principal de uma carta assegura
uma ordem, um trabalho civilizatrioafinando sensibilidades para a ordem, o limpo
e buscando um resultado moralmente eficaz. Ordem, asseio, maneira de usar eram
assim regulamentadas para todos e foram difundidas por textos de vrios matizes,
principalmente nas Escolas Normais que preparavam professores(as) e onde se
ensinava, a partir das civilidades, a leitura, a escrita, a decncia. A noo de decn
cia resumia "o essencial de uma atitude e a expresso das disposies da alma".^^
Escrever uma carta envolvia/envolve um ritual de cerimnias e os atos que
demarcam este ritual expressavam/expressam normas que apontam para o acesso
ao universo escrito. Parece importante registrar que nos comeos do sculo XX,
manter correspondncia era um hbito bem mais regrado, portador de um estilo.
Assim, o estilo tambm recomenda:

As dimenses do papel variam segundo as pessoas que escrevem ou a


quem se escreve [. . .] Devem-se evitar as formas extravagantes tais como
em losango. A distino inimiga da excentricidade [. . .] O papel de cartas
pode ser de uma cor leve, clara. As cores vivas tais como o carmesim,o ver
de ou o roxo, so de muito mau gosto. Os tons claros, malvas, gris, convm
s senhoras, s meninas e mesmo s colegiais. Os ornatos e os desenhos pe
cam sempre contra a simplicidade e o bom-tom. (. . .] Para escrever-se a
uma pessoaque no seconhece, usa-se o papelbranco ordinrio; para escre
ver-se a um ministro ou a uma personagem importante a quem se faz um
pedido, adota-se o papel branco de grande formato, chamado "papel minis
tro". Deixa-se sempre uma margem. Deve-se sobrescritar de forma legvel.^

Pode-seperceberpelas regras citadas que a carta,na sua materialidade, trans


mite todos ossignos dereconhecimento social. O transporte, o envelope, o papel,
a assinatura, as margens so marcas que situam e representam uma correspondncia
correta. Raros so os manuais que no do sua maior parte a estes smbolos que
marcam a distino nas artes de escrever. Distino que tambm se encontra nas
prescries sobreas frmulas parabemescrever umacarta e queassim aparecem:
Devem-se sempredatar as cartas, mas mais usado faz-lo no princ
pio do que no fim da carta. [. . .] No secomea a escrever uma carta logo
no princpio da folhade papel,primeirocoloca-se n'uma linha,isoladamente,
segundo o caso, "senhor, minha senhora, meu querido tio meus queridos
pais", etc. . . e mais abaixo o que se quer dizer. Nas cartas triviais no se
M. T. S. Cunha. Armadilhas da seduo, cit., p. 181.
D. Rocco. Histria das coisas banais. Nascimento do consumo. Sculo XVII-XIX. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 267.
" C. Genc, op. cit., p. 174.
a correspondncia em manuais de civilidade e etiqueta 409

deixa margem. Deixa-se sempre um intervalo pouco mais ou um centme


tro entre a ltima linha da pgina e o limite do papel.^'

Ao recomendar que uma carta deve terminar adequada e delicadamente,'^'^ o


manual apresenta formas de tratamento mais utilizadase pontifica:

As formas de saudao e tratamentoso as seguinte: "spessoas a quem


se deve respeito: Queira V. Excelncia aceitar a expresso do meu profundo
respeito ou com todo o respeito e considerao que expresso meus res
peitosos cumprimentos. Aum superior escrever-se-: Creia V. Ex. na mi
nha dedicao. Um inferior dirigir ao seu superior a expresso dos seus
afetuosos cumprimentos. No comrcio, em negcios, trocam-se cordiais
cumprimentos, mas j nose o humilde criado de ningum.""

Sutilmente, um outro equilbrio social ia sendo construdo, j no se mais


criado de ningum, diz o manual, mas recomendam-se formas de tratamento di
ferenciadas por posio social. As distncias e hierarquias sociais eram reafirma
das e mantinham situaes distintivas, expressas pelos termos inferior, superior,
discpulo, por exemplo.
Importa salientar que as prescries que finalizam estaparte indicam que a
carta queseenvia aos amigos ntimos e aos pais, escapa sconvenes e s formas
calculadas. A afeio a melhor conselheira do estilo destinado aos entes queri
dos e que necessrio apropriar, em todas ascircunstncias, a linguagem situa
o, sem nunca abandonar a simplicidade. Recomendao semelhante foi obser
vada por Blas ao analisar manuais epistolares espanhis da dcada de 1930, onde
se aconselhava:

Asimplicidade em nossas cartas a caracterstica mais apreciada. Os


estilos rebuscados,com grande alardes de retrica, resultam pesados e nun
ca podem ser sinceros. Em contrapartida, escrevendo com simplicidade
possvel criar um estilo agradvel e a sensao ao leitor deque est manten
do uma conversao com quem lhe escreve."*^

Escrever com simplicidade tambm vai reverberar entre as amigas ambas


professoras normalistas que trocam correspondncias entre o Paran e Santa
Catarina nos finais da dcada de 60 do sculo passado e permitem pensar que a
observncia detais normas seinstauram aolongo do perodo epermanecem como
condio da escrita mais ntima.
Qualquer que seja sua funo, a correspondncia o que d o acesso es
critae para isto os manuais pretendem oferecer um grande nmero de modelos e
Ibidem, p. 175.
Ibidem.
Ibidem, p. 176.
C. Genc, op. cit., p. 135.
410 maria teresa santos cunha

frmulas para escrever. Sua presena na educao escolarizada insere-se no mo


vimento iniciado na Frana no sculoXIX. Comprometidaem ampliar suas com
petncias para alm de saber ler, escrever econtar, aescola difunde vrios saberes,
mais complexificados que permitiro a entrada das crianas nas multiplicidades
do escrito"*^ e assim, a aprendizagem e o exerccio de prticas epistolares merece
ram investimento escolar.
O apelo necessidade de respeitar tcnicas para assimilar um processo espe
cfico de escrita comparece no manual nos itens reunidos sob o ttulo "O estilo de
algumas cartas". Estas recomendaes so bastante econmicas e reafirmam a pr
tica da delicadeza como fundamental em qualquer estilo em que sejaescritaa carta.

O estilo da carta no pode ser igual quando se tratam assuntos dife


rentes mas a delicadeza sempre obrigatria. Uma carta a um fornecedor
muitas vezes mais custosa de redigir do que um pedido a uma personagem
importante. Devemos dar s nossas cartas, o tom de delicadeza e de corre
o que empregamos nas nossas conversas. O estilo das cartas deve ser s
brio, simples e claro. As cartas afetadasso extremamente ridculas."'''

Ao comparar a escrita delicada das cartas a uma conversa correta a inteno


sinaliza para uma duplicao permanente das finalidades dessa prtica escolar.
Escrita e oralidade presentificadas sutilmente nas recomendaes so uma outra
maneira de inscrever frmulas da cultura oral em textos escritos e tambm po
dem ser indcios da presena da oralidade nasprticas epistolares. Levando-se em
conta que este manual est sendo utilizado e lido na Escola Normal, instituio
responsvel pela formao de professores e especialmente, professoras para atuar
no Ensino Primrio, parece importante pensar que lhes caberia ensinar aos futu
ros alunos a escrever cartas com delicadeza e correo.
O problema metodolgico que assola o historiador no uso desses materiais
foi sintetizado por Valentina Torres Sptien que, ao estudar textos de urbanidade
e livros de condutas no Mxico, a partir do sculo XIX, pontuou que: "[...] as
regras escritas esto vinculadas fundamentalmente como ideais, com um dever
ser que est longe da prtica cotidiana"^^ e alertou que no se pode saber como
eram efetivamente vividos padres deautoridade e hierarquia social uma vez que
este discurso oferece indicaes sobre o sentido que o legislador, leigo ou religio
so, imaginava um mundo "real", sem levar em considerao a distncia que exis
tia entre o ideal educativo e o comportamento cotidiano.
Em suaqualidade prescritiva, o manual parece no ter perdido a atualidade,
haja vista a persistncia de outros livros sobre o tema. De acordo com Blas, sua
popularizao acontece na poca contempornea uma vez que em suas pginas
aparecem representados osproblemas e necessidades detodos osgrupos quecom-
Cf. J. Hebrand. Por uma bibliografia material das escritas ordinrias. O espao grfico do ca
derno escolar (Frana, sculos XJX e XX). Revista Brasileira de Histria da Educao, n." 1, 2001, p. 115
Genc, op. cit., p. 177.
V. T. Sptien, op. cit., p. 264.
a correspondncia em manuais de civilidade e etiqueta 411

pem a sociedade. Divulgando exemplos, sugerindo prticas, colaboraram para


criar novos hbitos e costumes, embora no se possa fazer um juzo dessas pres
criesj que estestextos so transversalizados pelasprticas que possibilitamou
tras apropriaes.
No cruzamento das artes de ler com as artes de escrevery ou seja, na relao
entre as normas propostas leitura e as prticas incorporadas pela via da escrita, o
diagnstico sempre arriscado porque o livro feito para ser lido, nem sempreo ,
porque do prescrito ao efetivamente realizado as apropriaes podem ser mlti
plas e singulares.^^
O caminho aqui seguido e o territrio desenhado pde levar a uma dada
compreenso que justifica a importncia de estudos desses manuais tanto como
livros de leitura quanto textos pedaggicos e escolares. So textos que contribuem
para que o historiador possa explicar aspectos da sociedade que os consome e,
igualmente, esclarecer formas como os indivduos desenvolvem suas maneiras
de ser no tempoe no espao. Preceitos divulgados mais explicitamente entre 1920
1950 que, como um saber escolarizado, forneceram modelos e exemplos quecon
tm certas permanncias, fixadas tanto pela legislao como pelas prticas escola
res que, progressivamente, se propagam no corpo social, no devem nos fazer es
quecer que sempre existe uma distncia entre a norma e a vivncia, a injuno e
a prtica, o sentido pretendido e o sentido produzido uma distncia em que se
podem insinuar as reformulaes e os desvios.
As regras para correspondncia, perfeitamente ritualizadas, presentes nos
Manuais destinados a ensinar boas maneiras, integram prticas de civilidade e,
embora prescritas nas primeiras dcadas do sculo XX, vieram a contribuir para a
constituio e expanso da chamada civilizao. Parece consensual afirmar que
tais prescries, hoje, em sua maioria estranhas e anacrnicas, ajudam a pontuar
a permanncia de alguns ditames que convertem a carta em artefato capaz de re
presentar com rigor umpacto social.
Por ltimo convm assinalar que no mundo dos textos dados a ler na esco
la ou fora dela, figuraes dessas leituras podem reverberar em usos ordinrios
desses preceitos pois que para finalizar com Chartier "[. . .] no existe produo
cultural livre e indita que no empregue materiais impostos pela tradio, pela
autoridade ou pelo mercado e que no esteja submetida vigilncia ou censura
de quem tem poder sobre as palavras e ascoisas".
Para estes usos, por favor, tenha modos!

Cf. R. Chartier. As utilizaes do objeto impresso. Lisboa: Difel, 1998, p. 21.


R. Chartier. Leituras e leitores ua Frana do Antigo Regime, cit., p. 16.
V / Imagens de si, imagens do outro
UMA NOVA IMAGEM DE SI:
IDENTIDADES EMCONSTRUO*

Joana Maria Pedro


Universidade Federal de Santa Catarina

Recentemente, uma novelada rede Globo' apresentou um depoimento mui


to semelhante aos que tenho observado na pesquisa que focaliza os anos de 1964
a 1985, no Brasil. Neste perodo, havia o que se chamava de"grupos de conscin
cia".- No depoimento recente que apareceu ao final de um captulo da novela
Pginas da Vida , uma mulher, afro-descendente, de camadas poplares, relata
va que, durante o perodo em que fora casada, nunca tivera um orgasmo. Que
aquilo que as amigas diziam sentir, ela nunca sentira, em contato com um ho
mem. Prazer, mesmo, disse ela, sentiu durante um sonho em que escutava uma
msica de Roberto Carlos. Acordou-se desse sonho, afirmou ela,"toda babada".
Afora o lugar-comum deste depoimento, no qual uma mulher relata nunca
ter sentido orgasmo em relao com um homem, o que mais me impressionou
no foi o depoimento em si, foi a reao a ele, divulgada na mdia. Os autores e
diretores da novela tiveram de rever os depoimentos a serem divulgados. Ou seja,
fazer uma espcie de "censura prvia nos depoimentos que iriam aparecer no
horrio das 20 horas. Recentemente, eu vi esta mesma senhora na Rede TV re
clamando que perdeu o emprego depois da divulgao do depoimento; e mais:
um advogado dizia que iria processar a empresa de televiso porque esta teria
* Os dados para este texto so originrios da pesquisa "Revoluo do Gnero: apropriaes e
identificaes com o feminismo (1964-1985)". Iniciada em maro de 2004, coordenada por mim, e
contando com a participao muito ativa da Prof." Roselane Neckel, e que, a partir de 2006, com a
expanso da pesquisa para o Cone Sul, incorporou a Prof." Cristita Scheibe WolfF e o Prof. Marcos
Montysuma. Conta, ainda, com os seguintes estudantes, por ordem alfabtica: Gabriela Marques,
Gabriel Jacomel, Juliano Silveira, Maria Cristina Athayde, Soraia de Mello, Veridiana Oliveira. Conta
com apoio financeiro do CNPq.
' Trata-se da novela Pginas da Vida (Manuel Carlos, 2006).
^ Tambm foram chamados de "grupos de reflexo", "grupos de conscientizao", "grupos de
linha da vida". Os nomes que adotaram refletiram as condies de cada poca e local.
416 Joana maria pedro

divulgado tal depoimento de forma descontextualizada, ou seja, recortada do in


terior de uma narrativa mais longa. E, ainda, que a depoente no sabia que aquilo
iria passar na televiso. Como disse, o que mais me espanta que, em pleno scu
lo XXI, depois de toda a discusso do feminismo de"Segunda Onda'? este tipo de
depoimento cause tanto constrangimento eseja motivo de estardalhao na mdia.
A prtica de relatar acontecimentos da intimidade foi muito usada entre a
dcada de 60 e 80 do sculo XX, e fazia parte de uma reviso das "imagens de si"^
que as mulheres, em geral casadas, de classe mdia, comearam a realizar entre
1966 e 1967, nos Estados Unidos. Estasformavam o que veio a ser conhecido como
"grupos de conscincia", e era constitudo somente por mulheres. Pretendia a ex
panso da conscincia ou, ainda, a "criao de conscincia". Cada participante de
uma dessas sees deveria, tambm, tornar-se uma formadora de outro "grupo de
conscincia".^ Essas prticas foram desenvolvidas dentro do que se chamou, nos
Estados Unidos, de "feminismo radical".
Tais grupos consistiam de reunies informais, realizadas em geral nas casas
das pessoas, mas no somente: podiam ser no escritrio, no poro de uma igreja,
num caf, e constituram a base do movimento de "Libertao da Mulher" dos
finais da dcada de 1960 e incio da de 1970, tributrio dos movimentos negros,
estudantis e de contracultura.^ Eram baseados em pequenos grupos. Tinham, ge
ralmente, entre seis e 24 mulheres. Somente elas participavam. Eram conversas
que se iniciavam com as experincias vividas pelas mulheres. Alguns desses ci
clos de conversas adquiriram uma metodologia de focalizar diferentes etapas da
vida: a infncia, o perodo em que veio a primeira menstruao, a juventude, o
casamento, quando fizeram abortos, os partos, a relao com o marido, a meno-
pausa, e assim por diante. Por isso, passaram a se chamar de "Linhas da Vida".

^ O feminismo, como movimento social visvel, tem vivido algumas "ondas". O feminismo de
"primeira onda" teria se desenvolvido no final do sculo XIX e centrado na reivindicao dos direitos
polticos como o de votar e ser eleita , nos direitos sociais e econmicos como o de trabalho
remunerado, estudo, propriedade, herana. O feminismo chamado de "segunda onda" surgiu depois
da Segunda Guerra Mundial, e deu prioridade s lutas pelo direito ao corpo, ao prazer, e contra o pa-
triarcado entendido como o poder dos homens na subordinao das mulheres. Naquele momento,
uma das palavras de ordem era: "o privado poltico". Convm lembrar que h discusses sobre a
quantidade de perodos em que se dividiria a trajetria do feminismo. Enquanto algumas autoras, e
entre elas eu me incluo, definem a existncia de duas "ondas", outras autoras, como Ana de Miguel
lvares relacionam trs grandes "blocos" da trajetria do feminismo. Ver: Ana de Miguel Alvares.
Histria do feminismo. Disponvel em: <www.creatividadfeminista.org>. Ver, tambm, Christine
Dephy. Patriarcat (thories du). In: Helena Hirata et al (org.). Dictiommire critique du fminisme. Paris:
PUF, 2000.
* Estas mulheres buscavam rever imagens, mitos e preconceitos, vigentes na sociedade oci
dental que atribuem s mulheres inmeras desqualificaes como de possurem pouca inteligncia,
fragilidade fsica e diversas incapacidades, definindo o lar como seu espao "natural".
^ Cf. Yasmine Ergas. O sujeito mulher. O feminismo dos anos 1960-1980. In: Georges Duby &
Michelle Errot. Histria das mulheres no Ocidente. Porto/So Paulo: Afrontamento/Ebradil, 1995, pp.
583-611.
' tambm desta poca a publicao de pesquisas sobre prticas sexuais. Relatrios destas
pesquisas tornaram-se livros e foram traduzidos para vrias lnguas. A este respeito ver Roselane
Neckel. Pblica vida intima: a sexualidade nas revistas femininas e mascidinas (1969-1979). Doutorado
em Histria. So Paulo: Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. 2004.
uma nova imagem de si: identidades em construo 417

Nenhum aspecto da existncia das mulheres era deixado sem discusso. O pres
suposto era de que o pessoal poltico. Ou seja,"a vida pessoal de cada um poli
ticamente estruturada com lutas viscerais de poder'7
Esta, de acordo com Juliet Mitchell,foi uma prtica "copiada" dos grupos de
"criao de conscincia" realizados entre os camponeses da China pr-revolucio-
nria. Esses grupos realizavam o que se chamava de "expressando amarguras". Os
camponeses da China, "subjugados por mtodos violentos de coero e por uma
misria abjeta, deram um passo adiante ao deixar de pensar que seu destino era
algo natural, pelo nico fato de falar disto em voz alta". Tambm, nos"grupos de
conscincia" realizados pelas mulheres, tomar a palavra e expor suas queixas era
considerado uma forma de criar para si uma nova imagem, exorcizando a "baixa
auto-estima" que costumava vigorar entreelas.
Adaptando o mtodo dos camponeses da China, mulheres urbanas de ca
madas mdias criaram grupos de conscincia que se reproduziram em diferentes
pases e formaram um movimento internacional, expresso em manifestaes, lu
tas por mudanas legislativas, publicao de peridicos que,coincidentemente ou
no, tinham geralmente um ttulo semelhante como: Ns Mulheres (no Brasil)'
Nosotras (no Chile e no Mxico), Nos/Otras (na Espanha), NoiDonne (na Itlia).
Muitos desses peridicos, diziam, eram produzidos por um "Coletivo de Mulhe
res", ou representava um "Crculo de Mulheres". O que se observa, aqui, a refe
rncia a coletivos, crculos, enfim, que lembram a forma como se organizavam
estes "grupos deconscincia".
A organizao dos grupos tinha, como objetivo, "unir as mulheres, para es
tabelecer estreitos laos de amizade e solidariedade entre elas mesmas". Assim, o
objetivo final seria,para esses pequenos grupos, formar "coletividades revolucion
rias". Neste caso, tais pessoas deveriam perceber que, "assim como os problemas
da mulher no so de ndole privada e pessoal, tampouco seria a sua soluo".
Deveriam, ento, passar de uma "autoconscincia pessoal para uma conscincia
degrupo, fazendo a transio do pessoal para o poltico".'
Convm lembrar quegrande partedessas mulheres quetomaram a iniciati
va de se reunir em "grupos de conscincia" tinha participado, juntamente com os
homens, dediversos movimentos sociais que lutavam contra o racismo, pelos direi
tos civis, contra a guerra do Vietn, contra a corrida armamentista. Elas relatam
que, nasreunies desses movimentos sociais, a sua palavra eradesqualificada. Suas
opinies eram desconsideradas. Tornou-se famosa a resposta deum destes lderes
de movimentos sociais que, quando indagado qual era a posio das mulheres no
movimento, respondeu: "A posio das mulheres de bruos"." Era justamente
' Amy Erdman Farrell. A Ms. Magazine e a promessa do feminismo popular. So Paulo: Barra-
cuda, 2004, pp. 37-8.
" Juliet Mitchell. La condicin de Ia mujer. Barcelona: Anagrama, 1977, p. 66.
' Peridico surgido em So Paulo, que circulou entre 1976 e 1978.
Mitchell, op. cit., pp. 63-4.
" Essa infame declarao foi feita por Stokely Carmichael, quando perguntado sobre o papel
das mulheres no SNCC Comit de Coordenao Estudantil Anti-Violncia. Amy Erdman Farrell,
op. cit., p. 36.
418 joana mana pedro

para fugir destas desqualificaes que as mulheres passaram aintegrar grupos nos
quais a fala de cada uma era estimulada equalificada.
Creio que fica evidente, aqui, a constituio de uma identidade, ou seja, a
identidade de "Mulher". E o objetivo era fugir da identidade de "outro", como j
havia denunciado, em 1949, Simone de Beauvoir, ao lembrar que, na sociedade
ocidental capitalista, "O homem o sujeito, o absoluto, ela [a mulher] o ou
tro".'^ Ou, ainda, fazer desaparecer aquilo que Betty Friedan tinha denunciado,
em seu livro publicado em 1963, nos Estados Unidos, como Mstica Feminina}^
Ora, o que esses grupos estavam fazendo, aotomar conscincia dequeo quevivi
am era coletivo, era criar uma nova "imagem de si", diferente da que a cultura,
que ashavia transformado em"outro", havia constitudo.
Nesses grupos, as mulheres puderam reformular a imagem que tinham de
si mesmas, em sua maior parte depreciativa. Reviram preconceitos, esteretipos,
criaram uma identidade da qual queriam orgulhar-se. Criaram "o orgulho de ser
mulher". Entendiam que estavam descobrindo sua "verdadeira identidade".
No Brasil, obtivemos notcias da existncia desses grupos somente a partir
de 1972. Adaptaram a metodologia que haviam aprendido, muitas destas mulhe
res, em viagens aos Estados Unidos e a pases da Europa Ocidental. Nestes grupos,
discutiram vrias etapas da vida, a sexualidade, o casamento, a relao com os
homens. Liam uma literatura que estava sendo publicada no exterior, com pouca
traduo no Brasil. Na poca, no Brasil,a ditadura militar, iniciada em 1964, tor
nava difcil, quando no impossvel, fazer outro tipo de militncia, como o que se
via nos Estados Unidos e em pases da Europa no final dos anos 1960 e nos anos
1970, em grandes manifestaes pblicas.
Assim, foi nesse contexto que em So Paulo, em 1972, Clia Sampaio e
Walnice Nogueira Galvo, de regresso de viagens aos Estados Unidos e Europa,
chamaram algumas pessoas para conversar sobre o novo movimento feminista
com o qual haviam tido contato no exterior. O grupo foi formado por professoras
universitrias ligadas militncia poltica de esquerda, cujasidades variavam en
tre trinta e trinta e oito anos. A maioria delas tinha militado em partidos polti
cos, ou ento, era parenta, filha ou esposa de gente envolvida com a luta de resis
tncia ditadura.'"
Na memria de MariaOdilaLeite da Silva Dias, que fez parte do grupo,cha
mado, de acordo com ela, de "grupo de conscientizao feminista", as reunies
eram feitas todas as semanas na casa de uma pessoa, em rodzio. Nessas reunies,
faziam leituras feministas.' Os livrosque liam tinham vindo na bagagem de vrias
delas que haviam estado, especialmente, na Frana e nos Estados Unidos. Eram,
assim, resultado do movimento feminista, que estava ganhando espao nas ruas e

Simone de Beauvoir. O segundo sexo, v. 1. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1968, p. 10.
" Betty Friedan. A mstica feminina. Petrpolis: Vozes, 1971.
Yasmine Ergas, op. cit., p. 65.
" Maria Odila Leite da Silva Dias nasceu em So Paulo, em 1940. Hoje professora da PUC/SP
e reside em So Paulo. Entrevista realizada em 24/6/2005, em So Paulo, por Roselane Neckel
(transcrita por Veridiana Oliveira).
uma nova imagem de si: identidades em construo 419

na mdia em geral, de diversos pases da Europa e nos Estados Unidos. No Brasil,


entretanto, tudo isso era novidade.
Maria Odila diz que ainda participaram dogrupo algumas pessoas que, hoje,
so famosas no campo do feminismo, como Albertina Costa e Marta Suplicy. Ti
nha, ainda. Branca Moreira Alves, que vinha, de vez em quando, do Rio de Janei
ro paraparticipar. Nesses grupos liam vrios textos feministas. O grupo durou at
1975.'^
Falando do grupo deconscincia de So Paulo, Maria Odila narra como foi
sua identificao com o feminismo nos Estados Unidos. De acordo com ela, quan
do se divorciou, em 1968, foi para Yale, a clebre universidade americana. L,em
bora estivesse fazendo uma tese de doutorado sobre outro assunto, passou a se
interessar pelo feminismo. Comeou a comprar livros e a descobrir algumas edi
toras. Quando voltou para o Brasil, passoua integrar o grupo de conscincia. Esse
grupo era formado, tambm, por algumas pessoas quej haviam morado nos Es
tados Unidos. A maioria falava o ingls e o francs. "Era um grupo muito interna
cionalizado. [. . .]. Muita literatura francesa nessa poca e muita americana; todo
mundo trazia livros, todo mundo que viajava trazia livros, nossa, quando eu vol
tei vim com uma biblioteca de estudos [. . .]".
A trajetria de Maria Odila contato com grupos feministas dos Estados
Unidos e formao de grupos de conscincia no Brasil segue o roteiro da pr
pria prtica desses grupos, ouseja, de reproduo em rede. E, assim como existiu
esse grupo em So Paulo, no Rio de Janeiro tambm se formou um grupo a par
tir de 1972. De acordo com Annete Goldberg, no Rio, em vez de grupo de
conscincia ou de autoconscincia, passaram a cham-los de "grupo de reflexo",
parano confundir com "militncia poltica".'"
O primeiro grupo do Rio foi formado por Branca Moreira Alves, e durou
at 1973.' Este grupo teve, principalmente, a influncia do feminismo dos Esta
dos Unidos. Branca Moreira Alves estudava em Berkeley quando entrou em con
tato com o feminismo, participando, por trs meses, de um destes grupos de
reflexo.'^ Ao chegar ao Brasil, resolveu usar a mesma metodologia, reunindo mu
lheres. Fez, inicialmente, um s grupo com mulheres das mais diferentes idades.
Entretanto, a diferena de gerao estava inibindo as pessoas. Ela, ento, dividiu o
grupo entre as da gerao de sua me acima de quarenta e cinco anos e as
da gerao dela. Este grupo das mais jovens durou de 1972 at o final de 1973.^
Outras mulheres tambm narram sua participao em grupos de reflexo.
Este o casode Santinha Maria do EspritoSanto, que participou de um deles
no Rio de Janeiro:

Ibidem. . r , . ,
Annete Goldberg. Femintsmo e aiitontansmo: a metamorfose de uma utopia de liberao em
ideologia liberalizante. Mestrado. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 1987, fls. 108-09. Apud
Rachel Sohiet. Defrontando-se com os preconceitos: mulheres ea luta pelo controle do corpo, p. 3. Indito.
.1
Cf Cli Regina Jardim Pinto. Uma histria do feminismo no Brasil. So Paulo: Fundao
cn_i
Perseu Abramo, 2003, pp. 50-1.
Goldberg. Apud Sohiet, op. cit., p. 101
Ibidem.
420 joana mariapedro
[. . .] nos grupos de reflexo voc se mostrava: "eu sou Santinha, eu
sou Jaqueline, eu sou fulana, [...]" Ea gente ia sentindo quais eram as di
ficuldades das outras, quais eram as preocupaes; o qu que voc queria
resolver nesse mundo, qual era a tua busca, qual era o teu sonho. Entende?
Em termos de "voc mulher" O que que tu querias para melhorar a tua
situao no mundo. Foi muito interessante esse perodo e lindo [. . .] Por
que, eu falava pra ti e a tu j trazia uma colega. A no outro sbado tinha
mais quatro mulheres. vidas para falar, paraouvir.^'

Na fala de Maria do Esprito Santo, fica configurada a constituio da identi


dade que sebuscava, designada por ela de"voc mulher". Essa identidade, ela enten
dia como a base para a formao de uma solidariedade e a adoo de iniciativas
para mudar, para "resolver", como ela mesma diz, "neste mundo". Assim, a partir
de uma nova imagem de si, pretendiam "melhorar a tua situao no mundo".
Suely Gomes Costa, em seu depoimento, narrou que foi convidada por San
tinha para integrar o grupo de reflexo, mas sua reao inicial foi de desconforto.

Ela [a Santinha] me chamou para vrias reunies. (...) eu no me via


muito no campo dela. Eu era muito mais ligadas lutas da esquerda do que
qualquer coisa. Assim, ligada a problemas existenciais e tal, eu no era. Ela
me chamou para uma reunio eu fiii. E a, eu achei aquela reunio [e
era] um "choror" danado, n? As mulheres falando de dominao, dos ma
ridos que tomavam conta e que no sei qu. . ., e eu me achava assim: a
mulher que no tinha prises, a mulher solta no espao. Eu pensei: o que
que eu estou fazendo aqui, eu no vivo nenhum drama desse e tal. E eu
pensava isso.^^

Nesse depoimento, convm destacar a forma como Suely pensava estes gru
pos de reflexo. Suas palavras refletem o que grande parteda esquerda brasileira e
internacional pensava desses grupos. E ela justifica a avaliao ao lembrar que
naquele momento, ela estava "mais ligada s lutas da esquerda". E,apesar de Suely
dizer que a princpio no viu utilidade nesses grupos, mais tarde veio a compre
ender a importncia deles, quando viveu um problema no casamento. Ela narra
que, no incio dos anos 1980, seu casamento estava em crise; ela estava, pela pri
meira vez, desempregada e decidiu estudar, fazer o mestrado em histria. O fato

Entrevista com Maria do Esprito Santo Tavares dos Santos. Maria do Esprito Santo Tavares
dos Santos, conhecida como "Santinha", nasceu em Bacabal, Maranho, atua no Conselho Estadual
de Sade do Rio de Janeiro. Foi militante do Partido Comunista Brasileiro e designada por este partido
para participar do movimento feminista no Rio de Janeiro. residente no Rio de Janeiro e foi
entrevistada por Roselane Neckel em 14/2/2005.
22 Entrevista com Suely Gomes Costa. Suely Gomes Costa, nasceu no Rio de Janeiro em 1938,
professora aposentada do Servio Social da Universidade Federal Fluminense, identificou-se com o
feminismo na dcada de 1970, por influncia de Maria do Esprito Santo. residente no Rio de Janeiro
e foi entrevistada por Joana Maria Pedro, em Florianpolis, em 17/2/2004. Entrevista transcrita por
Maise Zucco.
uma nova imagem de si: identidades em construo 421

de estar desempregada f-la perceber o quanto sua relao com o marido era desi
gual. Ela explica melhor:

quando eu tinha dinheiro, eu pagava algum. Agora que no ti


nha dinheiro me era cobrado fazeres que eu at ento no fazia. Por exem
plo, se eu tinha dinheiro eu comprava um bolo, se faltava o bolo, eu era
indagada porque que o bolo no tinha sido feito. Pequenas coisas assim, em
relao ao cuidado com os filhos, [. . .] foi muito interessante eu ir toman
do conscincia de cobranas que, quando eu trabalhava, [. . .] tinha absolu
ta autonomia em relao a minha estrutura de gasto, eu no percebia [. .

Ela narra que trabalhava desde dezessete anos, e que tinha independncia
financeira desde muito cedo em relao aos pais, e que, quando casou, manteve
essa relao como marido, a qualfoi quebrada quando perdeu o emprego.
[. . .] eram sucessivas cobranas a ponto por exemplo, de eu ficar to
constrangida quando eu tinha que pedir um dinheiro pra passagem, [. . .]
quando, eu sentia que eu recebia aquele dinheiro, at no gesto, no modo de
dar o dinheiro, eu sentia um gesto de cima pra baixo. No sei se era para
nia minha [. . .]. Mas foi irreversvel, quer dizer, a todo [aquele] papo da
Santinha passou a ter sentido. O choror, que eu achei na reunio, eu disse
no tem choror nenhum, a regra essa mesmo, quer dizer h uma relao
. . . que a gente no percebe se a gente est forte na relao, se a gente est
igual, a gente no percebe, mas se a gente est em situao de desigualdade,
isso aparece.^"*

Os grupos de reflexo no tinham nenhuma forma deregulamento. As reu


nies tinham temas, mas no tinham pauta, discutia-se tudo. Albertina, citada
por Cli Pinto, diz que havia o lado terapia sem guru, nem terapeuta, de terapia
autogestionada para mulheres, que noespao competente eram analisadas por es
pecialistas".^^
Em seu trabalho, juntamente com Jaqueline Pitanguy, Branca Moreira Alves
descrevia, em 1982, os objetivos ea metodologia dos "grupos de reflexo":
[, . .] grupos pequenos e informais, constitudos unicamente por mulheres.
Esta ttica desenvolveu-se espontaneamente. Surgiu pela necessidade de se
romper o isolamento em que vive a maior parte das mulheres nas sociedades
ocidentais, nuclearizadas em suas tarefas domsticas, em suas experincias

" Entrevista com Suely Gomes Costa realizada por Joana Maria Pedro, em Florianpolis, em
17/2/2004, transcrita por Maise Zucco.
" Ibidem. .. . - ^ *
Albertina Costa. vivel o feminismo nos trpicos? Resduos de insatisfao So Paulo,
1970. Cadernos de Pesquisa, So Paulo, Fundao Carlos Chagas, n." 66, ago. 1988. Apud Cli Regina
Jardim Pinto. Uma histria do feminismo no Brasil. So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2003, p. 50.
422 joana maria pedro

individuais vividas solitariamente. A mulher constituiu assim um espao


prprio para expressar-se sem a interferncia masculina, para compreen
der-se atravs de sua voz e da voz de suas companheiras, para descobrir sua
identidade e conhecer-se. Nestes grupos a mulher descobre que sua experin
cia, suas dificuldades, frustraes e alegrias no so isoladas nem fruto de
problemas unicamente individuais mas, ao contrrio, so partilhadas por
outras mulheres. A descoberta dessa experincia comum, a transformao
do individual em coletivo, forma a base do movimento feminista. [. ..] Se o
que era aparentemente individuale isolado se revela, na verdade, como uma
experincia coletiva, concretiza-se a possibilidade de luta e de transfor
mao.^^

Aqui, convm, novamente, destacar deste trecho o objetivo do grupo: "des


cobrir sua identidade e conhecer-se".O pressuposto era de que o grupo no estava
constituindo uma identidade para as mulheres estava "descobrindo" uma "ver
dade essencial".
Branca Moreira Alves, falando, ainda, sobre a eficcia desses grupos de re
flexo, narra que, neles, o relato de questesda intimidade deflagravam inmeras
confisses semelhantes. Ela conta:

Nos dias de grupo de reflexo em que eu falava: "Eu nunca gozei", a


outra tambm dizia que nunca tinha gozado e como era isso. E num grupo
de reflexo, aqui no Rio, uma amiga minha me ensinou a tirar a cpula do
chuveiro e deixar a gua cair no clitris e a foi o meu primeiro orgasmo.-"

Ora, voltando ao que dizia no inciodestetexto, o que BrancaMoreira Alves


relata, e que foi publicado em 1992 num livro organizado por Miriam Goldenberg
& Moema Toscano, no muito diferente do que a citada senhora disse em seu
depoimento no final do captulo de Pginas da Vida. No caso dela, foi a msica
de Roberto Carlos em sonho, no de Branca Moreira Alves, foi o chuveiro modifi
cado. Evidentemente, trata-se de pblicos diferentes: ao passo que Brancase diri
ge a um pblico leitor, portanto bem reduzido, a depoente da novela se dirigiu
para o pblico da televiso, em horrio nobre e, portanto, imensamente mais nu
meroso. Assim, certamente, o impacto de um e de outro so muito diferentes.
Maria Luiza Heilborn tambm narra a formao, no Rio de Janeiro, de um
grupo de reflexo. Esse grupo teria a vantagem de receber por intermdio de uma
delas, a Marhel Maria Helena Darcy de Oliveira, toda uma literatura feminis
ta que vinha da Europa, enviada por uma cunhada da Marhel, que estava exilada

Branca Moreira Alves & Jacqueline Pitanguy. O que feminismo. So Paulo: Brasiliense, 1982,
pp. 66-7.
Moema Toscano & Miriam Goldenberg. A revoluo das mulheres: um balano do feminismo
no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1992, p. 55. Apud Maria Cristina Athayde. Prazer em conhecer:
Feminismo e sexualidade nas obras de Marta Suplicy. Monografia. Graduao em Histria, UFSC, 2005,
fl. 14.
uma nova imagem de si: identidades em construo 423

na Sua.^ Ainda de acordo com Maria Luiza Heilborn, foi Mariska, a cunhada
de Marhel, quem conseguiu o patrocnio da ONU para realizar o encontro que
ocorreu, em 1975, na sede da ABI, considerado marco "fundador" do feminismo
de "Segunda Onda" no Brasil.-'
O que quero chamar a ateno, aqui, para a reproduo desses grupos, a
partir de pessoas que dele participavam. FlixGuattari, visitando o Brasilem 1982,
chamou este tipo de prtica de organizao em rede, de rizoma.^' E, certamente,
era isto que formavam. Nas entrevistas que fizemos, possvel acompanhar a re
produo desses grupos e os contatos que proporcionavam, em mbito local, na
cional e internacional. Assim, em Santa Catarina, por exemplo, Janine Petersen
identificou, no na dcada de 1970, mas nos anos 1980, dois grupos feministas:
"Amlgama" e"Vivncias", e o primeiro deles funcionava como"grupo de conscin
cia". Este grupo foi formado dentro dos prprios ideais dos grupos de origem nor
te-americana. Foiuma professora que participou de um grupo assim, em Campi
nas, que trouxe para Florianpolis a idia, e formou aqui este grupo.^- Por sua
vez, o grupo de Campinas foi formado por mulheres que tinham participado de
grupos como estes nos Estados Unidos.^- Ouseja: eram a reproduo do quealgu
mas mulheres tinham vivido em outros pases.
Ainda em pesquisa na cidade de Rio Branco, estado do Acre, entrevistei duas
mulheres reconhecidas como feministas, que tambm relataram sua identificao
com o feminismo apartir do que elas chamaram de participao em "grupo decons
cincia" na modalidade de "Linha da Vida".^^ Essas entrevistadas atribuem a Teresa
Mansur, que hoje vive em Vitria, noEsprito Santo, a organizao desses grupos.
O que se pode, ainda, observar, alm da narrativa de identificao com o
feminismo ocorrida com a participao nestes grupos presente em vrias en
trevistas , a apropriao da prticade grupos de conscincia, sua transforma
o e adaptao. Em So Paulo, por exemplo, Maria Amlia de Almeida Teles nar
ra que coordenou grupos de reflexo em dezoito clubes de mes. Ela ia para os
bairros levando exemplares do peridico Brasil Mulher^^^ e os discutia comas mu
lheres. "Eu era amiga do padre. O padre deixava, e ia l, porque [eu] tinha muito
controle. Ele dizia vai l, Amelinha, discutir com as mulheres, elas gostam".^^

Entrevista com Maria Luiza Heilborn citada por Annete Goldberg, op. cit., fl. 101.
Annete Goldberg, op. cit., fl. 104.
Cf. Flix Guattari & Suely Rolnik. Micropoltica. Cartografias cio desejo. 4.' ed. Petrpolis:
Vozes, 1996.
" Trata-se de Julia Givan, professora do Doutorado Interdisciplinar em Cincias Humanas e
do Departamento de Cincias Sociais da UPSC.
" Esse grupo foi organizado por Marisa Corra.
" Essas entrevistadas so Julia Maria Matias de Oliveira e Mara Vidal. Entrevistas realizadas em
5 de maio de 2006, por Joana Maria Pedro, em Rio Branco, estado do Acre.
^ Este peridico circulou entre 1975 e 1980.
" Entrevista com Maria Amlia de Almeida Teles, que nasceu em 6/10/1944, em Contagem,
Minas Gerais. Foi militante do PC do B Partido Comunista do Brasil, presa duas vezes entrou em
contato com o feminismo na cadeia. Participou do movimento de mulheres e divulgou o jornal Brasil
Mulher. Reside atualmente em So Paulo, coordena uma ONG. Entrevista realizada em So Paulo/SP,
em 24/8/2005 e foi transcrita por Veridiana Oliveira, Soraia Mello e Maria Cristina Athayde.
424 joana maria pedro

Assim, Maria Amlia apropriava-se da metodologia e, em vez de fazer um


grupo onde todas as que participavam eram pensadas como iguais presente na
verso dos grupos de conscincia surgidos nos anos 1960 , e cujos depoimen
tos ajudavam a pensar o coletivo, ao levar o peridico e ler com elas os textos,
Amlia se colocava na posio de quem est levando "conscincia" para as que
"no teriam".
Maria Ligia Quartim de Morais refletiu sobre essa prtica. Escrevendo, em
1990,sobre o feminismo dos anos 1970, reconheceu o preconceito que sentia em
relao aos "grupos de conscincia ou de reflexo". De acordo com ela, estes eram
acusados de parecerem uma espcie de "ch das cinco das ricas ociosas". Reco
nhece, ento, que, atuando nos movimentos de mulheres, ela e suas companhei
ras tambm faziam uma espcie de "grupo de reflexo" nas:

[. . .] longas conversas aps o expediente regular, quando falvamos


de nossa vida pessoal, de nossas frustraes e medos, no passavam de for
mas espontneas de reflexo. Mas por usarmos as "outras" como libi, isto
, falarmos do aborto delas; dos anticoncepcionais delas (asoperrias, as mu
lheres da periferia, etc.) terminvamos por esquecer que vivamos os mes
mos problemas e que poderamos serpersonagens de matria sobreos nossos
abortos, anticoncepcionais, etc. No eram s as outras que tinham proble
massexuais, que aturavam maridos prepotentes e relaes deserotizadas, que
dependiamfinanceiramente dos pais e maridos, etc.^^

Ou seja, para essas mulheres de classe mdia intelectualizada, envolvidas


com as lutas contra a ditadura militar, tratava-se de adaptar a prtica dos grupos
de conscincia, mas, ao mesmo tempo, reconheciam, acabavam por considerar
que somente as operrias, as pobres, que tinham dificuldades. Esqueciam, por
vezes, que viviam os mesmos problemas.
Outra adaptao apareceu na narrativa de uma de nossas entrevistadas que
militou nos anos 1980, no Rio Grande do Sul; l, de acordo com ela, os grupos
eram mistos. Dele participavam tambm os homens.^^
A prtica de grupos de reflexo, em seu incio nos Estados Unidos,sua adap
tao na Frana e, mais tarde, no Brasil e em outros pases, no previa, como j
dissemos, a presena de homens. O argumento para excluiros homens era de que
eles inibiam, com suas presenas, as possibilidades dos depoimentos das mulhe
res. Franoise Collin, conhecida feminista francesa, num artigo publicado no pe
ridico Nosotrasy de 1975, esclarecia que o objetivo dos grupos de conscincia era
"criar uma solidariedade ativa, uma identidade", necessria paraa organizao da
luta na "construo de um mundo mais humano". Neste caso, as reunies que as
mulheres faziam entre elas eram necessrias como uma etapa para atingir este
Maria Lyga Quartim Moraes. A experincia feminista cios anos setenta. Araraquara: Unesp,
1990, p. 29. . . . r -.
Trata-se da antroploga Soma Maluf, que participou ativamente dos movimentos feministas
no Rio Grande do Sul, entrevistada em 6 de julho de 2006 por Joana Maria Pedro e Maise C. Zucco.
uma nova imagem de si: identidades em construo 425

mundo. Lembra, ento, que a presena dos homens, nas reunies, freava as pala
vras e as iniciativas das mulheres; por isso, era para escapar a esses freios que os
movimentos feministas no aceitavam reunies mistas.^
Uma outra questo importante a ser assinalada que as participantes desses
grupos de conscincia afirmavam que essa forma de discusso inventava uma nova
forma de relacionamento entre as pessoas e o trabalho coletivo. Assim, a poltica
do Movimento de Libertao das Mulheres se baseava no desenvolvimento coleti
vo do trabalho e em evitar o surgimento de "dirigentes", de "porta-vozes". Diziam
que, em vez de uma direo vertical, teriam uma direo horizontal, na qual nin
gum seria a dona da verdade, em que ningum chegaria a "dominar ou a no
participar do tempo permitido para discusses". Nas reunies, no havia lideran
a e, quando havia, era sempre rotativa e apregoada como uma nova forma de
"fazer feminista". Assim, ao trabalhar de forma coletiva e no aceitar dirigentes,
elas recusavam uma "relao competitiva"entre mulheres, diziam, tal como exis
tia na sociedade em que viviam e que repudiavam.^'
Surgiram tambm, na poca, muitas crticas a esses grupos. Eram conside
rados incuos. Diziam que sua falta de hierarquia era, ao final das contas, uma
espcie de autoritarismo sem regras. Dizia-se, ainda, que a autoconscincia orga
nizava muitas mulheres, mas que elas eram organizadas"para nada". Algumas das
que assim criticavam defendiam um ativismo que se configurava em manifesta
es e marchas de mulheres, queima de sutis, criao de centros de ajuda, cuida
dos com a sade."*" Alm de outras, que entendiam que a transformao somente
seria concreta com mudanas legislativas.
Outra crtica sempre presente, como j assinalei, era de que se tratava de
uma espcie de "ch das cinco" de mulheres ricas e ociosas. No mnimo, um des
perdcio de tempo, que poderia sermais bemempregado se destinado para a luta
"maior" e"geral", como, por exemplo, fazer a revoluo socialista. Era esta a prin
cipal crtica da esquerda. No caso do Brasil, alguns grupos envolvidos com a luta
pela anistia e contra a ditadura consideravam tais grupos divisionistas, que, em
vez de somar esforos, estariam promovendo a discrdia nas famlias e no campo
da esquerda.
Uma das histrias de disputas entre a esquerda brasileira e os grupos de cons
cincia foi narrada por Danda Prado."*' Danda diz que organizou em Paris, no
incio da dcada de 1970, um grupo de conscincia com mulheres brasileiras e de

'8 Cf. Franoise CoUin. Nuevo feminismo. Nueva sociedad o el advenimiento de otra. Boletim
Nosotras. Grupo Latinoamericano de Mujeres, a. II, n. 21-22, sept./oct., pp. 9-12,
8' Cf. Juliet Mitchell. La condin de Ia mujer. Barcelona: Anagrama, 1977, pp. 62-3.
O feminismo radical dizia ser o patriarcado o "centro da dominao" na "esfera privada".
Ver, a este respeito: Ana de Miguel. Neofeminismo: los anos sesenta y setenta. Disponvel em <www.
nodo50.org/mujeresred/historia-feminismo3.html>. Acesso em 25/7/2006.
Danda Prado. Yolanda Cerquinha da Silva Prado nasceu em So Paulo, em 24/10/1929. Filha
de Caio Prado Jnior, envolveu-se, por causa do pai, nas lutas contra a ditadura militar. Foi para a
Frana em 1970, com quarenta e um anos e divorciada. L, teve contato com o movimento feminista
francs, formou um grupo de mulheres latino-americanas do feminismo radical, que passou a pu
blicar o jornal Nosotras. Hoje, presidente da Editora Brasiliense.
426 joana maria pedro

outros pases da Amrica Latina, exiladas na Frana. E, entre as mulheres que com
pareceram s reunies do grupo estavam Norma Benguel e Gilda Grilo que, por
causa de uma pea de teatro que fazia crticas ditadura, tinham ido refugiar-se
na Frana. As reunies quinzenais com as mulheres, em formato de grupo de
conscincia, eram realizadas no subsolo de um caf, em Paris.
Os maridos dessas mulheres, ela informa, ficavam muito curiosos sobre o
que estava acontecendo e, principalmente, com a presena de Norma Benguelen
tre elas. Por isso, desciam para o banheiro, que ficava prximo do lugar onde se
reuniam, vrias vezes. Entretanto, o grupo organizado por Danda encontrou srias
dificuldades com os homens que lideravam o grupo de exiladosbrasileiros na Fran
a. Ela foi pressionada por elesa transformar o grupo de mulheres em instrumento
para a realizao de tarefas propostas e controladas pelos homens, lderes dos exi
lados. Como ela se negou a colaborar, eles passaram a exigir que as mulheres se
afastassem do grupo. Chegaram, diz ela, at a ameaar de retirar o apoio financei
ro que forneciam s famlias, se as mulheres continuassem a participar daquelas
reunies."*^ Esta ameaa surtiu efeito, e, assim, muitas das mulheres brasileiras
abandonaram o grupo."*^ Alm disso, diz Danda, eles criaram um outro grupo de
mulheres brasileiras, estas comandadas por Zuleika Alambert.
Evidentemente, este no foi o nico conflito entre os grupos de esquerda e
os grupos de conscincia, ou mesmo entre outros grupos feministas. Destaquei-o
pelo fato de ter uma narrativa maisdetalhada. De maneirageral, estes grupos eram
acusados de elitistas, compostos por pequeno-burguesas, divisionistas e, princi
palmente, antimacho. Ou seja, diziam que no aceitavam homens em suas reu
nies porque eram contra eles, sendo acusadas, em sua maioria, de "lsbicas". Es
sas acusaes remontavam s que perseguiam o feminismo desde o sculo XIX, e
contribuam para reforar o esteretipo de que as feministas eram feias, "mal-
amadas" e que odiavam os homens.
Convm destacar que o "feminismoradical"oriundo desses grupos de cons
cincia afirmava que o principal agente da opresso das mulheres era o homem,
no todos, mas os que se identificavam comos "privilgios da supremacia do pa
pel masculino". E ainda afirmavam "[...] o feminismo radical poltico, porque
reconhece que um grupo de indivduos (os homens) tem organizado as institui
es da sociedade com o objetivo de manter este poder".'*'' Ou seja, a avaliao de
que esses grupos eram contra os homens tinha grande parte do fundamento nos
discursos do feminismo radical.
Lembramos, novamente, que o que essas mulheres estavam constituindo
era a identidade de mulher. Esta era constituda pelo reconhecimento de traos
comuns entre as mulheres, que extrapolavam o corpo, mas que eram apoiados
nele. Tambm se definia em contraposio a um novo "outro", o homem. Este,
como o sentido de "mulher", era pensado de maneira universal. O que elas consi-
Perder o apoio significava, para essas famlias, perder a ajuda financeira e o emprego. Isso
inviabilizaria sua manuteno na Frana.
Cf. Annete Goldberg, op. cit fl. 72.
Manifesto Radical Feminista de Nova York, 1970. Apud Juliet Mitchell, op. cit., pp. 53-4.
uma nova imagem de si: identidades em construo 427

deravam era que no corpo, no genital, estava o que consideravam como "femini
lidade",e que as definia. Entendiam que, por serem mulheres, poderiam fazer atuar
uma "sororidade", uma unio, pois afinal, diziam, tinham independentemen
te de classe, gerao, raa/etnia uma mesma subordinao. Afirmavam, ento,
que o que tinha acontecido com elas, individualmente, era comum a todas as de
mais e concluam que como tinha dito Simone de Beauvoir era a cultura,
dominada pelos homens, que as tinha tornado submissas e com to baixa auto-
estima. Estaera, realmente, uma perspectiva "separatista".'*^
A maneira como expressaram este "separatismo" e esta identidade fez com
que fossem consideradas "diferencialistas", notadamente as que seguiam o grupo
ligado a Luce lrigara)d^ e Helne Cixous,"*' na Frana, em comparao com as se-
guidoras de Simone de Beauvoir, considerada"igualitarista".**
O prprio uso da categoria "Mulher", por sua vez, sofria interpretaes das
mais diversas, dependendo da maneira como entendiam as relaes. Foi, ainda,
no contexto norte-americano que essa categoria foi criticada com mais eficcia.
Mulheres negras, ndias, mestias, pobres, trabalhadoras, muitas delas femi
nistas, reivindicaram uma "diferena" dentro da diferena. Ou seja,a categoria
"mulher" que constitua uma identidade diferenciada da de "homem", no era
suficiente para explic-las. Elas no consideravam que as reivindicaes as in
clussem. No consideravam, como fez Betty Friedan na Mstica Feminina^ que o
trabalho fora do lar, a carreira, seria uma "libertao". Essas mulheres h muito
trabalhavam dentro e fora do lar.O trabalho fora do lar era para elas,apenas, uma
fadiga a mais."*' Alm disso, argumentavam, o trabalho "mal-remunerado" que
muitas mulheres brancas de camadas mdias reivindicavam como forma de sa
tisfao pessoal, poderia sero emprego quefaltava paraseus filhos, maridos e pais.
Todo esse debate fez muitas pessoas perceberem que no havia a "mulher",
mas simasmais diversas "mulheres", e queo queformava a pautade reivindicaes
de umas, no necessariamente formaria a pauta de outras. Afinal, as sociedades
possuem as mais diversas formas de opresso, e o fato de ser uma mulher no a
torna igual a todas asdemais. Assim, a identidade de sexo no erasuficiente para
juntar as mulheres em torno de uma mesma luta. Isso fez com que a categoria
"Mulher" passasse a ser substituda, em vrias reivindicaes, pela categoria
"Mulheres", respeitando, assim, o pressuposto das mltiplas diferenas que se ob
servavam dentro da diferena. Emais: que a explicao para a subordinao no
era a mesma para todas as mulheres, e nem aceita por todas. Mesmo assim, era
preciso no esquecer que, mesmo prestando ateno nas diferenas entre asmulhe
res, no era possvel esquecer as desigualdades e as relaes de poder entre os
Este perodo chamado de "separatista" devido aesta prtica de grupos de reflexo, do qual
os homens estavam proibidos de participar.
Luce Irigaray. Ce Sexe qui nen est pas un. Paris: Minuit, 1977.
Helne Cixous. Contes de Ia diffrence sexuelie. In: Mara Negron (org.). Lectures de Ia
diffrence sexuelie. Paris: Des Femmes, 1990.
Lia Zanotta Machado. Gnero, um novo paradigma? Cadernos Pagu, n, 1993 pp io7-25
Verena Stolcke. La mujer es puro cuento: Ia cultura dei gnero. Estudos Feministas v 12 n"
2, 2004, p. 92. , . , .
428 joana maria pedro

sexos.^ Dessa forma, a prpria noode"descoberta da identidade", que pressupu


nha uma "verdade essencial", viu-se questionada dentro do prprio movimento.
Retomando a discusso que comecei neste texto, gostaria de lembrar que
foi justamente a partir desses grupos dereflexo, como vimos, adaptados de uma
prtica semelhante criada porcamponeses da China, que muitas mulheres passa
ram a se identificar com o feminismo nas dcadas de 1970 e aps. Nesses grupos,
as mulheres relatavam os problemas de seus relacionamentos afetivos, suas rela
es com os homens, suas dificuldades em ter prazer, em terorgasmo, como fez a
depoente do final do captulo da novela citada.
Convm, ainda, lembrar que essa prtica de grupos de conscincia ou de
reflexo tornou-se to comum que chegou a ser levadapara o teatro. Cidinha Cam
pos e outras atrizes, como Marlia Pra, levaram para o espao cnico a prtica
dessesgrupos. Na pea Homem no Entra, que tem sido estudada por Gabriel Felipe
Jacomel, escrita em 1975 por Rose Marie Muraro e Heloneida Studart autoras
bastante conhecidas dentro do movimento feminista no Brasil , a atriz Cidinha
Campos fazia, com a platia, uma espcie de "grupo de reflexo". A ao passava-
se na platia, e no no palco. Somente mulheres podiam participar; os homens
ficavam fora do teatro, sendo as crianascuidadas por pessoas encarregadasdelas.
E, como nos grupos de reflexo, as mulheres narravam suas vidas, faziam suas
queixas, expunham coisas, certamente mais ntimas que a depoente de Pginas
da Vida}^ J sabemos que a pea foi proibida pela ditadura acusada de estar
praticando sexismo. A pea era, em grande parte, uma adaptao de outras que,
vindas dos Estados Unidos, estavam trazendo para o teatro tais discusses. Era o
caso da pea Monlogos da Vagina, que fez muito sucesso e discutia, com os aportes
do "feminismo radical",as relaes das mulheres com os homens, dialogando com
a platia.
Algum poder dizer, e com razo, que o que estas mulheres revelavam ao
pblicodo teatro ficava restrito somente s mulheres presentes e que o que ocor
reu em Pginas da Vida foi veiculado pela televiso queabrange um pblico bem
maior. Convm lembrar, entretanto, que, em 1979, Marta Suplicy dirigiu uma
seo do programa TV Mulher, no qual discutia sobre orgasmo, prazer, e atensi
nava as mulheres a se masturbarem.^^ Rose Marie Muraro, em seu livro Memrias
de Uma Mulher Impossvel, diz que este foi o susto que levou quando voltou dos
Estados Unidos, no final dos anos 1970 e incio dos 1980." E isso era discutido
num programa que passava pela manh, e no em horrio to tarde, como o da
dita novela dasoito.Entretanto convm destacar ,a posio de MartaSuplicy,

Franoise Thbaud. Genre et histoire. In: Christine Bard; Christian Baudelot & Janine Mos-
suz-Lavau. Quand lesfemmes s'en mlent genre et ponvoir. Paris: La Martinire, 2004, pp. 44-63.
" Cf. Gabriel Felipe Jacomel. Apropriaes feministas no teatro brasileiro (1964-1985). Relatrio
de Iniciao Cientfica, Graduao em Histria da UFSC, 2006.
" Cf. Maria Cristina de Oliveira Athayde. Prazer em conhecer: feminismo e sexualidade nas obras
de Marta Suplicy. Trabalho de Concluso de Curso de Graduao em Histria, Florianpolis, UFSC,
2005, pp. 17-8.
" Cf. Rose Marie Muraro. Memrias de uma mulher impossvel. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1999.
uma nova imagem de si: identidades em construo 429

ao discutir essas questes, era a de uma especialista em sexo. Isto, certamente,


criava uma situao diferente desta da depoente da novela.
Concluindo, gostaria de lembrar que o que foi o mote deste texto a con
fisso pblica de intimidades foi prtica comum nos anos 1960, 1970 e 1980,
principalmente entre mulheres de camadas mdias urbanas. Hoje, entretanto, o
pblico se escandaliza quando uma pessoa narra a mesma coisa numa televiso.
Podemos pensar que os tais grupos no se expandiram o suficiente para esvaziar
o impacto desse tipo de confisso.
Sabemos que, atualmente, j no se fazem mais "grupos de conscincia".
Snia lvares, discutindo os feminismos na Amrica Latina, argumenta que os
"grupos de conscincia", que foram uma das principais metodologias usadas pelo
feminismo de "Segunda Onda" at os anos 1980,transformaram-se em "oficinas"
organizadas e desenvolvidas por ONGs Organizaes No-Governamentais,^
sendo ministradas por "especialistas". Por que uma prtica realizada h quarenta
anos hojecausa estranheza? Justamente quando convivemos com uma mdia que
expe a intimidade de famosos e de nem to famosos assim. A intromisso na
vida privada imensa. Aameaa deexposio constante. Ser que essa ameaa
que est promovendo este "pudor" renovado?
As prticas que pretendiam promover a mudana na "imagem de si" das
mulheres, esto desacreditadas. J no se pensa mais que o relato de questes pes
soais possa "descobrir a verdadeira identidade" das mulheres. Alis, nem sequer
consideramos a existncia de uma verdadeiraidentidade". Esta, sabemos, estsob
"rasura". Afinal, a identidade muda de acordo com a forma como somos interpe
ladas ourepresentadas. Aidentificao pode ser ganha ouperdida.
Tambm j no se usam mais os relatos da intimidade para reformular as
imagens que se fazem das diversas minorias mesmo que essas imagens conti
nuem sendo desqualificadoras. Este relato daintimidade foi apropriado pela mdia,
mas para faturar. E, neste faturamento" feito sobre os relatos da intimidade,
dado destaque, apenas, s pessoas clebres, de preferncia jovens, ricas e brancas.
Adepoente que apareceu no final do captulo de Pginas da Vida no preenchia
esses requisitos. Ser por isso queest sendo ridicularizada e punida?
Mesmo que se leve em considerao que o pblico ao qual adepoente dirigiu
seu depoimento muito diferente do que se constituiu nos grupos de conscincia,
no teatro e no programa de televiso dirigido por especialistas em sexualidade,
mesmo assim, causa espanto o escndalo que provocou e a punio que suscitou.
Leva-nos a refletir e nos remete ao passado. Permite pensar sobre as promessas de
transformao, que no caminharam na direo que gostaramos. E, ainda, per
ceber que ocorreram mudanasque no estavam planejadas ou desejadas.
Snia E. Alvarez. A globalizao dos feminismos latino-americanos. Tendncias dos anos 90
e desafios para o novo milnio. In: Snia E. Alvarez; Evelina Dagnino &Arturo Escobar (org.). Cultura
e poltica tios tuoviitieiitos sociais latiiio-atiicricanos: novas leituras. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000,
pp. 383-426.
" Cf. Stuart Hall. A identidade cultural na ps-tnodernidade. Rio de Janeiro: DP8cA, 1999, p. 21.
ONDE EST O OUTRO? A PRESENA INVISVEL,
O ETNOCENTRISMO EA CONSTRUO DE IMAGENS

Eduardo Frana Paiva


Universidade Federal de Minas Gerais

Inmeros tipos de objetos, de animais e de vegetais no europeus integra


ram colees particulares e gabinetes de curiosidade, assim como foram estam
pados em obras religiosas e pedaggicas, em gravuras, em livros de outra nature
za, em louas, jias e tecidos, em tapearia, pinturas, desenhos e esculturas e, ainda,
foram elementos muito usados na composio arquitetural. A presena marcante
do diferente e do "extico", associados naturalia^ mirabilia e monstrosa^ no
universo material, mas, tambm, na dimenso do imaginrio e das representaes,
vinha sendo fomentada na Europa desde as cruzadas medievais. Essas campanhas
em nome de Deus foram muito alm do combate ao Isl e a outras heresias e da
pilhagem de riquezas alheias: foram verdadeiras marchas de contatos, de deslum
bramento e de novos conhecimentos, mesmo que tudo estivesse paramentado (e
tenha permanecido assim por muitos sculos) de perspectiva etnocntrica e teo-
cntrica, de cristandade e de luta contra pretensos infiis. Um dos resultados mais
espetaculares desses grandes deslocamentos humanos e, ao mesmo tempo, um
dos menos conhecidos foi o trnsito de cultura e de natura, assim como o de mitos,
encantamentos, formas de pensar e de fazer, o que fomentou muitas novas repre
sentaes do"outro", quesignificam, aofim e aocabo, representaes do"eu", ainda
que invisveis ou invertidas.'
' Recentemente, mais exatamente em junho de 2006, foi inaugurado o Museu do Quai Branly,
chamado de Museu do Outro ou Museu das Artes Primeiras (Muse de TAutre, Muse des Arts Pre-
miers), em Paris, em meio a uma ferrenha discusso nacional sobre uma viso positiva da colonizao
francesa na Amrica, sobre a escravido de negros e de mestios em territrio francs e sobre a par
ticipao francesa do trfico atlntico de escravos, alm de envolver as chamadas Leis Memoriais, que,
de maneira absurda e arbitrria, em nome do Estado, determinam como certos eventos histricos de
vem ser vistos, compreendidos e ensinados por historiadores e por professores de Histria. O Museu
do Quai Branly, nesse contexto, suscitou, claro, opinies diversas e algumas tentaram pens-lo em rela
o alteridade que perpassa o projeto da nova instituio. Em artigo de jornal, Patrick Prado (CNRS-
a presena invisvel, o etnocentrismo e a construo de imagens 431

Mestios e negros na Europa antes do Novo Mundo

Antes da inveno do Novo Mundo, o infiel islamizado passara a fazer parte


do imaginrio da cristandade europia, junto natura e tkhn exticas, e o con
trrio, possivelmente, ocorreu. Um exemplo interessante, na perspectiva europia
ocidental, so os moretti veneziani representados de variadas formas e com mlti
plas funes, mas que assumem, talveza partir do fim do sculo XVII, o status de
talisms, sob a forma de jovens negros, geralmente broches nicos, elaborados
em bano, metaise pedraspreciosas. O gosto pelos moretti parece ter incio poste
riormente vitriaveneziana (e da liga crist, que incluiu,entre outros, a Espanha
e os Estados Papais)contra os turcos (islmicos) em Lepanto,famosabatalha ocor
rida em 1571, um dos ltimos suspiros das cruzadas contra os maometanos.-
interessante perceber a associao entre moro/mouro (referncia aos povos ne
gros islamizados da Mauritnia) e negro, na verdade, bem mais antiga que a men
cionada batalha, que se refora ainda mais ao final do sculo XVI, consubstan-
ciando-se eminmeras representaes iconogrficas. Dessa associao deriva, em
portugus, o termo morenoy que assume, pelo menos desde o sculo XVII, signifi
cado de cor e no mais de origem religiosa.^

Lahic) escreveu: "Inventer un muse de INoutre est une ide gnreuse, celle de Jacques Chirac et de
Jacques Kerchache, grands amateurs des arts que Ton disait premiers, mais c'est une affaire com-
plique, parce qu'on ne sait pas toujours qui est Tautre et parce que Tautre est toujours Tautre de
quelqu'un d'autre. Ensuite, accorder le statut dart aux oeuvres de Tautre est une affaire ambigu qui
nous concerne nous, plus que Tautre. Mais enfin, cela permettrait, nous dit-on, de ngocier le virage
postcolonial" (Patrick Prado- O sont, Quai-Branly, les traces des enfants de ces maitres que nous
nommons aujourd'hui "artistes"? Leurs descendants meurent sur nos barbels, Paris, Lihration, Jeudi
20juillet 2006, p. 31).
- Em 1603, provavelmente, William Shakespeare escreveu Otelo, o Mouro de Veneza, pea
encenada no ano seguinte. possvel que Shakespeare tenha se inspirado na novela IIMoro di Venezia,
de Giraldo Cinthi, publicada em 1584 (Disponvel em: <http://\wv\v.mundocultural.com.br/analise/
otelo-_shake.pdf#search='giraldo%20cinthi'>. Acesso em: 10/10/2006), poucos anos aps a Batalha
de Lepanto. Isso demonstra como o "moro" passa rapidamente a incorporar o imaginrio e o gosto
da poca.
' Ver Antonio Houaiss. Mouro; Moeno. In: . Dicionrio Houaiss de Lngua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, (http://houaiss.uol.com.br/busca). J no Vocabulrio Portuguez e Latino, D.
Raphael Bluteau esclarece: "Morno. Cousa de cor escura, mas no totalmente negra". Nesse antigo
dicionrio. Moro refere-se ilha do Mora, localizada no Oriente, onde habitava gente "selvagem",
"muito brbara" e antropfaga. Ver D. Raphael Bluteau. Vocabulrio Portuguez e Latino ulico,
Anatmico, Architectonico, Bellico, Botnico, Brasilico, Comico, Crtico, Chimico, Dogtnatico, Dialectico,
Dendrologico, Ecclesiastico, Etymologico, Economico, Florifero, Forense, Fructifero, Geographico, Geom
trico, Gttomonico, Hydrograpbico, Homonyrnico, Hierologico, Ichtyologico, Indico, Isagogico, Laconico,
Liturgico, Lithologico, Medico, Musico, Meteorolgica, Nutico, Numrico, Neoterico, Ortographico,
ptico, rnithologico, Potico, Philologico, Pharmaceutico, Quidditativo, Qualitativo, Quantitutvo{sic),
Rethorico, Rstico, Romano, Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapteutico, Technologico,
Uranologico, Xenophonico, Zoologico, AUTORIZADO COM EXEMPLOS DOS MELHORES ESCRITO
RES PORTUGUEZES, E LATINOS; E OFFERECIDO A EL REY DE PORTUGUAL, D. JOO V, PELO
PADRE D. RAPHAEL BLUTEAU CLRIGO REGULAR, DOUTOR NA SAGRADA Theologia, Pregador
da Raynha de Inglaterra, Henriqueta Maria de Frana, &Calificador no sagrado Tribunal da Inquisio de
Lisboa. Coimbra: No Collegio das Artes da Companhia de JESU Anno de 1712. Com todas as licenas
necessrias.
eduardo frana pai%'a

IHm . m
Moretti veneziani expostos em vitrine de joalheria de Veneza, 2006

O infiel, depois de submetido, vencido e anulado, incorporado, represen


tado e reproduzido envolto cm exotismo, transformado cm objetos aos quais se
atribuem propriedades mgicas. Os mouros, antigos inimigos da cristandade, em
plena era de trfico escravista intenso para o Novo Mundo e do culto ao extico,
transformado, no seio da cristandade, em talism, em amuleto usado contra o
azar e outros males, tradio que chegou ao sculo XXI. '
Mas, muito antes de Lepanto, na Europa, a figura dos infiis, ainda delet
ria, diluda entre muitos elementos identitrios, pouco conhecida pelo grosso da
populao e mesmo entre camadas mais abastadas, passou a tomar formas mais
precisas, cada vez mais freqentemente, sobretudo em pinturas, desenhos e gra
vuras. Quando o suporte era colorido, aos islamizadosemprestaram-lhes tons bron
zeados, escurecidos, alm de lhes perfilar, isso tambm para suporte em preto e
branco, com narizes e lbios mais protuberantes ou meio deformados, grandes
bigodes e barba longa, cabelos mais ondulados e turbantes, tnicas e mantos que
os diferenciavam dos europeus. O tom da pele desses infiis, representados na arte
da cristandade, parece ter-se escurecidoprogressivamente com o passardo tempo,
prtica evidente entre os pintores renascentistas da pennsula itlica (que foram
mestres de inmeros outros pintores, principalmente vindos do norte para os
' H poucos estudos sobre os niorelti veucziui}!. Algiimns informaes podem ser encontradas
ein <http://freeweb.supereva.com/m0reUivene7.iani/indcx.lnmRp> (consulta realizada em ft/8/206)
e em <http://www.boldringioielli.com/collezioni/linea_boldrin.htm> (consulta realizada em 6/8/
2006).
a presena invisvel, o etnocentrismo e a construo de imagens 433

ateliers florentinos, genoveses, milaneses, venezianos e romanos, e que viajaram


por vrias cortes europias, produzindo para as casas nobres e constituindo ver
dadeiras escolas em torno de si). Nessa regio, devo insistir, desenvolveram-se pre
coce e intensamente contatos com o mundo do Oriente, com o do Isl e com o
da frica negra. O maior contato com a frica negra, comercial inclusive, a in
troduo de levas de escravos negros africanos (desde a Siclia, onde trabalhavam
nas plantaes de cana e na produo de acar, at as cortes ao norte e a oeste,
nas quais dividiam o domnio do extico com anes e outras "anomalias"huma
nas, bufes, papagaios africanos e aves coloridas as americanas so introduzidas
j no final do sculo XV) e a consolidao do Isl, via Jihad, em extensa regio
dos negros africanos, tudo isso parece ter contribudo decisivamente para escure
cer a pele dos no europeus nessas representaes pictricas. Na cristandade, pr
ximo de Roma, a capital do orhis terrarutriy as imagense representaes de infiis,
escravos, africanos, hereges e, tambm, de mestios fundiam-se e, cada vez mais,
diferenciavam o catlico europeu original dos outros, inclusive de europeus
pretensamente menos puros biolgica, religiosa e culturalmente.
Muito antes, portanto, da extraordinria experincia americana, negros e
mestios compunham a iconografia europiae, mais importanteainda, eram per
sonagens reais, de ruas e de cortes, nas principais cidades do Velho Mundo. At
mesmo no meio intelectual a imagem deles se fez presente, embora pensadores
negros e mulatos tenham sido raros at o sculo XVI na Europa e nas Amricas;
nas grandes cidades da frica negra islamizada havia Universidades e estudos do
Coro e, certamente, intelectuais/religiosos negros.'' Contudo, na Europa, houve
islmicos (provavelmente mestiados) que ensinaram e escreveram. Foi o caso,
por exemplo, de "El-Hasan ben Mohammed el-Wazzan ez-Zayyti, nascido em
Granada, entre 1489 e 1495, e refugiado em Fez, capturado no Mediterrneo e
levado Itlia, onde foi batizado pelo papa em pessoa, que lhe deu o nome de
Leon, dito o Africano. Ele ensina rabe em Bolonha, depois retorna frica e,
provavelmente ao Isl, em 1525".^
Na Paris da segunda metade do sculo XVI era possvel encontrar a imagem
de negros associada ao mundo das letras. OALA4ANACH, pourVan 1560. Compos
par Maistre Michel Nostradamus, Docteur en Medicine, de Salon de Craux, cn
Provence, foi publicado por um certo Guillaume le Noir, instalado na Rue Saint
Jacques, que usava um braso encimado por um busto de um negro, que aparece
sobre um elmo.^

^ Sobre as universidades e os pensadores na frica Negra islmica ver Catherine Coquery-


Vidrovich. Histoire des villes d'Afrique Noire. Paris: Albin Michel, 1993; Germaine Diterlen (pres.).
Textes sacrs d'Afriqiie Noire. Paris: Gallimard, 2005.
" Carmen Bernand. Un Inca plotoniden. Gardinso de Io Veja, 1539-1616. Paris: Fayard, 2006, p.
38.
' Fotografia feita por mim, sob permisso da direo do Muse de 1'Imprimerie de Nantes, a
cujo acervo pertence o Almanach.
eduardo frana paiva

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V ' ^ iUtU-frUincietotuftMW, ^
'r . ' AuccPluilrt' ( t.

ALMANACH, pour lan 1560. Compos par Maistre Michel Nostradamus Musce de
1'Imprimerie de Nantes / Association ProArte Graphica (fotografado etn 20/7/2006)

A presena de africanos na Pennsula Ibrica , contudo, bem anterior e


muito mais intensa que na velha Paris. Em 1448, o cronista portugus Gomes
Banes de Azurara terminava de escrever sua clebre Crnica do Descobrinieiito e
Conquista da Guin, na qual tinha registrado uma partilha de cativos mouros, tra
zidos da frica pelo capito Lanarote, ocorrida na vila de Lagos, no Algarve, em
1443. Azurara, tomado pelo sentimento de piedade, descreveu a partilha dos 235
cativos mouros em cinco partes, sendo uma delas destinada ao Infante D.Henrique,
realizada em "campo que est alm da porta da vila", local semelhante, talvez, aos
mercados de escravos que existiriam mais tarde no Brasil e na Amrica espanho
la. A descrio rica em detalhes relativos cor da pele dos cativos e ao fentipo
deles, claro, tudo imbudo de um olhar europeu e de um padro de beleza igual
mente ocidental e ocidentalizante:

[. . .] os quais [cativos], postos juntamente naquele campo, era uma


maravilhosa cousa de ver, ca entre eles havia alguns de razoada brancura,
formosos e apostos; outros menos brancos, que queriam semelhar pardos;
outros to negros como etipios, to desafeioados, assim nas caras como
nos corpos, que quase parecia, aos homens que os esguardavam, que viam
as imagens do hemisfrio mais baixo."

" Gomes Hancs dc Azurar.i, (.'rniai do descobrimento e coiu}iiistii da Mir.i-Sintm-Mcni


Martins: F.uropa-Amrica. 1989, p. 97.
a presena invisvel, o etnocentrismo e a construo de imagens 435

A Lisboa da segunda metade do sculo XV conviveu com uma quantidade


razovel de escravos africanos levados para a cidade depois das primeiras viagens
dos portugueses costa e s terras subsaarianas. De maneira semelhante, africa
nos negros eram figuras comuns em cidades como Sevilha e Anturpia, antes que
se iniciasse o sculo XVI. Durante o Quinhentos os nmeros avolumaram-se e a
presena negra africana na Europa estendeu-se a outras vrias cidades. Imagens
produzidas nessa poca registraram essa "africanizao",ainda que parcial,das ruas
e das praas do Velho Mundo. Uma das mais famosas, annima do sculo XVI,
mostra uma realidade lisboeta impressionantemente marcada pela presena de
negros e pelas condies cotidianas de produo da mestiagem, digamos assim:
mobilidade, espaos de sociabilidade, contato prximo entre as camadas mais po
bres, integrao dos negros ao cotidiano da cidade, s formas de viver, de se ex
pressar, de trabalhar. Evidentemente, no se trata de uma fotografia da realidade
assim como ela o seria: isso, sabemos bem, no existe.^ Contudo, a cena compa
tvel com o que a documentao da poca descreve e com os dados que a histo
riografia mais recente vem apresentando.'

*Discuti a questo em Eduardo Frana Paiva. Histria &Imagens. Belo Horizonte, Autntica, 2002.
Ver Jorge Fonseca. Escravos no sul de Portugal, sculos XVI-XVII. Lisboa: Vulgata, 2002;
Didier Lahon. Black African Slaves and Freedmen in Portugal during the Renaissance: Creating a New
Pattern of Realy. In: T. F. Earle (org.). Black Africains in Renaissance Europe. Cambridge University
Press, 2005, pp. 261-79; Didier Lahon. Esclavage et confrries noires au Portugal durant VAncien Rgitne
(1441-1830). Thse de Doctorat prsente EHESS, 2001; Didier Lahon. Noirs et multres dans les
corps d'arme au Portugal. In: Carmen Bernand &Alessandro Stella (coord.). D'esclaves solats; mi-
liciens et soldats d'origine servile Xllle-XXle sicles. Paris: L'Harmattan, 2006, pp. 133-48; Franoise
Massa. Colloque international organis para Vquipe de rechercbe Erilar. Le Portugal et VEspagne dans
leurs rapports avec les Afriques continentale et insulaire. Rennes: Universit Rennes 2 Haute Bretagne,
2005; Antnio Almeida Mendes. Portugal e o trfico de escravos na primeira metade do sculo XVI.
Africana Studia, Porto, n. 7, 2004, pp. 13-30; Antnio de Almeida Mendes. Traites ibriques entre
Mditerrane et Atlantique: l noir au coeur des empires modernes et de Ia premire mondialisation
(ca. 1435-1550). Anais de Histria de Alm-Mar. Lisboa, v. VI, 2005, pp. 51-387.
I

n Jf
1

Chafariz cl'El Rey no sc. XVI. Mestre desct)nhccido, c. de 1570-1580, Pases Baixos.
leo sobre madeira de castanho. Lisboa, C)leo Particular"

Impressiona, entretanto, constatar que antes mesmo de Lisboa, mais ao norte


da Europa, mais precisamente na Colnia do sculo XV, condies semelhantes de
vam ter existido, talvez impulsionadas pela pulsantedinmica da cidade, centroarts
tico, universitrio e comercial, nas margens do Reno, o que facilitava contatos e
negcios com o sul do continente e com os Pases Baixos. A imagem que segue
reproduzida, no apenas testemunha a presena de negros {a cena reproduz e pro
jeta a sociedade renana do Quatrocentos no passado, transportando-a, e a seus "ti
pos", ao Calvrioe pocada crucificao de Cristo), mas registra inequivocamente
a diversidade dos tons de pele e dos fentipos, revelando a mescla biolgica e cultu
ral j existente a. A figura de um mulato, que encabea o cordo de rostos coloca
do na lateral esquerda da cena, um verdadeiro cortejo que acompanha a sada do
casal de monarcas do castelo branco, situado na poro ocidental (crist) dessa alego
ria do mundo, contrasta comasoutrasfiguras de negros e de mouros detez escurecida
que aparecem sobre a tela. Assim, o Mestre de Colnia, em seu delrio esttico ma-
niquesta, optou por fazer representar a diversidade dos habitantes do Ocidente, ainda
que unificados sob a f crist. A matizao desse universo certifica a mestiagem
produzida em solo europeu, assim como a importncia de diferenciar esses persona
gens (negros, pardos, brancos mulatos podem ser facilmente identificados nesse cor
do humano), o que, certamente, lastrava-se no prprio cotidianodessa sociedade.

" Imagem retirada de Ana Maria Rodriguc.s (coord.). Os negros ein Portugal scs. XV a XIX.
Lisboa: ('omisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 104.
Large Caivary, ca. 1415-1420 - Westfalian Master in Cologne (active in Cologne 1415-1435) -
Coleo do Waliraf-Richartz-Museum - Fondation Corboud

Antes, portanto, do grande trfico atlntico de escravos em direo ao Novo


Mundo se efetivasse no sculo XVI, houve muitos cativos negros, pardos e at bran
cos na Europa, nascidos a ou provenientes de regies africanas. Antes do produto
humano miscigenado e das culturas hbridas resultantes do grande laboratrio ex-
pansionista dos sculos XV e XVI, sobretudo a partir das experincias americanas,
todo o continente europeu j conhecia e j convivia com intensa mestiagem, tanto
a biolgica, quanto a cultural, e isso foi ainda mais marcante na Pennsula Ibrica,
onde os contatos entre catlicos e muulmanos se alongaram durante sculos.
Nada era, ento, absoluta e essencialmente novo quando as imagens, a na
tureza, os objetos e os homens da Amrica (mestios, inclusive) comearam a
alterar o panorama planetrio ( bem verdade que os "amerndios" e suas cultu
ras, no senso mais extenso do termo, foram uma novidade impactante!). Talvez, a
grande novidade dessa "americanizao"do mundo tenha sido a dimenso alcan
ada, assim como a rapidez das trocas e da constituio, verdadeiramente, de um
novo mundo em todos os aspectos, desde a natureza cambiada e reconstruda, as
culturas hibridadas, as formas de viver e de pensar resignificadas, at as imagens
produzidas nesse perodo e que, de uma forma ou de outra, portavam signos e
formas desses novos tempos.
O que imporia aqui , principalmente, desacreditar a idia deque a Amri
ca "inventou", por assim dizer, a mestiagem na poca Moderna. Talvez, o pavor
que as elites americanas cultivaram com relao mestiagem, durante o sculo
XIX, contrapondo-a civilizao, tenha acentuado essa associao equivocada e a
438 eduardo frana paiva

projetado sobre o passado, criando as condies para que ela se estendesseduran


te todo o sculo XX. No foi a Amrica, portanto, que introduziu "o outro",o "di
ferente", o "extico" e, principalmente, o mestio e o mulato no mundo e no ima
ginrio europeus, inclusive entre as camadas populares. O que ocorreu, entretanto,
foi que a Amrica intensificou bastante esse fenmeno, pari passu dinamizao
do comrcio e das relaes poltico-administrativas em mbito mundial.

Negros e mestios no Novo Mundo: onde est o europeu?

Desde as primeiras imagens produzidas sobre o Novo Mundo, seja in locoy a


partir de observao direta, portanto, seja distncia, por reminiscncia, porcpia
ou por imaginao, os europeus buscaram se fazer presentes nascenas. Em alguns
casos, se representaram entre os nativos, geralmente em situao de superioridade,
de observadores e de negociantes, ou, ao contrrio, vitimizados pela barbrie dos
naturais, sobretudo pelos ritos antropofgicos que provocaram terror, curiosidade
e esteretipos exagerados noVelho Mundo, durante osprimeiros sculos de ocupa
o daAmrica. Mas, ainda que no estivessem representados de corpo, eles com
puseram as cenas a partir de objetos europeus, alguns nem mesmo conhecidos
pelos ndios" nos primeiros tempos de contato; a partir de atitudes ede costumes
europeus emprestados aos nativos; a partir de tcnicas desconhecidas no Novo
Mundo eagregadas aos naturais; apartir da projeo da natureza de outras partes
do mundo na Amrica; apartir da introduo, no cenrio americano, da monstrosa
eda mirabilia colecionadas na Europa, vindas de vrias outras regies do globo.
Mas o se fazer presente sem se mostrar explicitamente foi realizado, sobre
tudo, a partir dos vcios edos hbitos condenveis, no senso europeu ecristo do
julgamento, queeram atribudos ao"outro" e nele acentuados. Nesse caso, o cani
balismo largamente indicado pelos primeiros retratos dos povos do Novo Mundo,
foi, sem dvida, uma imagem fortemente oposta s de civilizao, de cristandade
e de virtude auto-atribudas pelos pintores, desenhistas e observadores do Velho
Mundo.Desde, provavelmente, 1502, h imagens produzidas que associam o
canibalismo aos ndios", sobretudo aos temidos eadmirados tupinambs da Am
rica portuguesa, o que ser comumente feito nos sculos que se seguiriam, las-
treando, cada vez mais fortemente, as idias de exotismo, de ignorncia ede bar-
barismo ao homem enatureza americanas e, mais tarde, aos resultados mestios
da experincia colonial.
Portanto, sublinhar a barbrie e, por vezes, a ingenuidade tambm (como
o caso, em muitas cenas, da nudez), dos povos "descobertos" foi, intencionalmen-
Um inventrio das primeiras imagens sobre a Amrica e uma discusso sobre a produo
iconogi^nca podem ser encontrados em William C. Sturtevant. First Visual Images of Native Amrica
In. Fredi Chiappelli (ed.). First Images of Amrica; the Impact of the New World on the Old, v. 1. Los
Angeles: University of Califrnia Press, 1976, pp. 417-54.
Ibidem, p. 438, fala de um mapa manuscrito portugus da costa sul-atlntica, supostamente
de 1502, no qual aparece um homem branco sendo assado no espeto, "um mtodo de cozinhar Tu-
pinamb , por outro homem de pele acobreada. A imagem parece se referir a um episdio se
melhante, ocorrido entre 1501 e 1502, no qual foi vtima um marinheiro que servia Amrico Vespcio.
a presena invisvel, o etnocentrismo e a constnio de imagens 439

te ou no, uma forma de comparao e de diferenciao entre os mundos em


recente contato.No era, por certo, a primeira vez que se produzia tal fenme
no. O mesmo ocorrera antes, com freqncia e em "mo dupla", durante o longo
contato estabelecido, de variadas maneiras, entre os povos das trs partes conheci
das do mundo. Mas a Amrica, a partir do sculo XV, dinamizou a produo des
sas imagens, mesmo porque, dinamizou a prpria realidade de trocas, contatos,
migraes e comrcio, assim como a produo de novos conhecimentos, o fo
mento de novos hbitos, a integrao da natureza em escala planetria, a mescla
de culturas antigas e a inveno de novas culturas, enfim, o Novo Mundo dina
mizou a reinveno do prprio mundo. Pode-se mesmo falar de certa americani-
zao planetria, como elemento fundamental no que se entende comomundiali-
zao ou globalizao iniciada no sculo XV.'^
Retratos e representaes dos habitantes da Amrica foram logo produzi
dos, tanto m loco, quanto na Europa, o que fomentou a circulao de informaes
sobre o novo continente, os nativos e as gentes que para l iam. As diferenas
tanto as de fentipo, quanto as culturais e sociais entre os grupos foram igual
mente registradas e, como o passar do tempo, foram acentuadas. Evidentemente,
as imagens dos nativos foram, junto com a dos europeus que se instalaram nas
terras conquistadas, as primeiras a surgirem. Contudo, mesmo nessas imagens, j
estavam registradas prticas e produtos mestiados, assim comocondies mate
riais, culturais e naturais de produzir-se mestiagem,'^ embora sedemorasse mais
Sobre a produo de imagens associadas a textos ou de imagens como suporte pedaggico na
Amrica espanhola colonial, desde o primeiro sculo de ocupao, ver Joanne Rappaport & Tom
Cummins. Between Images and Writing: The Ritual of the King's Quillca. Colonial Latin American
Review, n." 1, v. 7, 1998, pp. 7-32.
Sobre essa temtica ver Clara Garcia Ayluardo & Manuel Ramos Medina (coord.). Ciudades
mestizas: intercatnbios y continuidades en Ia expansin occidental. Siglos XVI a XIX. Mxico: Condumex,
2001; Rui Manuel Loureiro 8( Serge Gruzinski (coord.). Passar asfronteiras; II Colqnio Internacional
Sobre Mediadores Culturais Sculos XV a XVIII. Lagos, Portugal: Centro de Estudos Gil Banes, 1999;
Scarlett 0'Phelan Godoy 8c Carmen Salazar-Soler (ed.). Las quatro partes dei mundo. Passeurs,
mediadores culturales y agentes de Ia primera globalizacin en el Mundo Ibrico, siglos XVI-XIX. Lima:
Pontifcia Universidad Catlica dei Per-lnstituto Riva Agero/lnstituto Francs de Estdios Andinos,
2005; Serge Gruzinski. Opensamento mestio. So Paulo: Companhia das Letras, 2001; Serge Gruzinsky.
Les quatre parties du monde. Histoire d'une mondialisation. Paris: La Martinire, 2004; Eduardo Frana
Paiva 8 Carla Maria Junho Anastasia (org.). O trabalho mestio; maneiras de pensar eformas dc viver
sculos XVI a XIX. So Paulo: Annablume, 2002; Berta Ares Queija 8c Serge Gruzinski (coord.). Entre
dos mundos; fronteras culturales y agentes mediadores. Sevilha: Escuela de Estdios Hispano-/Unerica-
nos de Sevilla/CSlC, 1997; Johan Verberckmoes; Werner Thomas 8c Eddy Stols (ed.). Naturalia, Mira-
bilia &Monstruosa in the Iberian Empires from the 16th to the I9th CenUiry. 6th Intemational Colloquium
Mediadores Culturales. Lovaina: Ed. Universit de Louvain, 2006.
" Desde as primeiras imagens que representaram os ndios como antropfagos, at as pinturas
indgenas realizadas na Nova Espanha, os cdex (por exemplo, o Codex Telleriano-Remensis, de
1549/1550, o Codex Mendoza, produzido entre 1541 e 1550 e o Codex Florentino, compilado pelo frei
Bernardino de Sahagn, em 1579, todos pintados na Nova Espanha e por artistas nativos) ou as
pinturas murais e sobre telas realizadas em igrejas e mosteiros por toda a Amrica espanhola, trazem
registros desses produtos mestiados e da possibilidade de miscigenao, tanto biolgica, quanto
cultural. Ver, entre outros, Serge Gruzinski. L'Aigle et Ia Sybille. Fresques indiennes du Mexique. Paris:
Imprimerie Nationale ditions, 1994; Joanne Rappaport 8c Tom Cummins, op. cit.; Donald Robert-
son. Mexican Indian Art and the Atlantic Filter: Sixteenth to Eighteenth Centuries. In: Fredi Chiappelli
(ed.), op. cit.; William C. Sturtevant. First Visual Images of Native Amrica, op. cit.
440 eduardo frana paiva

algum tempo para que os primeiros registros de homens e mulheres mestios e,


tambm, de negros e de crioulos fossem realizados. At esse perodo, sublinhe-se,
os europeus estavam muito mais acostumados que os americanos com a presen
a de negros, de mulatos e degente decor de pele escurecida (islmicos do Oriente
Prximo, seus descendentes, por exemplo) e, nem to evidente ao nosso olhar
de passado escravista, havia mais africanos e descendentes deles na Europa, que
na Amrica. Alis, muitos desses no brancos na Europa do sculo XV (antes de
1492) eram servos ou escravos, sobretudo os africanos e os mulatos, e estavam
presentes em, praticamente, todo o Velho Mundo, certamente que mais numero
sos em algumas regies que em outras. Contudo, a presena deles na costa medi
terrnea, nos portos do Atlntico, na regio de Anturpia e de Colnia foi algo
marcante desde esse perodo. Isso, alis, ajuda a entender a rpida e fcil opo
pelo trfico atlntico de escravos africanos para o Novo Mundo,a partir do sculo
XVI, bem como pelo escravismo como forma de trabalho majoritria em grandes
extenses da rea espanhola e na rea portuguesa (na qual, durante os primeiros
cento e cinqenta anos de ocupao, destacou-se a escravizao de ndios). At o
incio do sculo XVII, preciso, ainda, destacar, houve mais africanos, crioulos,
zambos, mulatos e pardos escravos nas reas espanholas, que nas portuguesas no
Novo Mundo. Nessa poca, cidades e regies como Santo Domingo, La Habana,
Mxico, Veracruz, Puebla de los ngeles, Zacatecas, Lima, Callao, Cusco, Potos,
Cartagena de ndias. Santa F de Bogot, Quito, Caracas, Ciudad de Panam
(Portobelo) e Buenos Aires contavam com uma grande populao no branca e
no ndia.
Somente a partir do incio do Seiscentos que a monstruosa produo
aucareira no litoral norte do Brasil (ento sob a Unio Ibrica) fora a maior
entrada de escravos africanos nessa rea, processo que se acentuar ainda mais
nos sculo XVIII eXIX. No por outro motivo, portanto, que os primeiros regis
tros iconogrficos conhecidos dessa populao tm origem nas reas espanholas.
Ainda no final do sculo XVI aparecem as primeiras imagens de mulatos
americanos. Uma delas tornou-se clebre: trata-se do impressionante retrato dos
caciques mulatos de Esmeraldas, regio prxima a Quito, no Vice-Reino do Peru,
produzido Andrs Snchez Calque, identificado como pintor ndio, em 1599. A
cena de completa edesconcertante hibridao: caciques, ttulo indgena por exce
lncia, mulatos ou zambos (resultado de mesclas entre ndios e negros), quase
negros, poder-se-ia dizer; indumentria espanhola, mesclada com lanas e com
adornos corporais dourados de fatura indgena; homens em pose oficial
ocidentalizada, ttulos honorficos registrados ao fundo, sobre a cabea de cada
um, evocando automaticamente a idia de mestiagem e de (des)ordem na
Amrica.'^

Sobre esse quadro ver Adam Szszdi. El transfondo de un cuadro; Los Mulatos de Es
meraldas de Andrs Snchez Gualque. Cuadernos Prehispanicos, v. 12, 1986-1987, pp. 93-142. Ver,
ainda, Joanne Rappaport & Tom Cummins, op. cit.
a presena invisvel,o etnocentrismo e a construo de imagens

Andrs Snchez Gualque. Retrato de mulatos de Esmeraldas. Quito, 1599


(Museu de Amrica, Madri)

Pouco tempo depois, novas imagens de mestizos (resultado de mesclas entre


espanhise ndios), criqj,iIos, negrose mulatos'^ foram desenhadas pelo ndio Don
Phelipe Guaman Poma")de Aiala, natural da regio de Huamanga, Peru, antes de
1615, ano em que ele termina seu clebre texto EI prinier nueva cornica I buen
gobienio (complementado em 1616), o qual o ofereceu ao rei espanhol Filipe III.

Sobre a diferenciao entre essas categorias na Amrica espanliola ver Carmen Bernand.
Negros csclnvos y libres en !ns ciiulades hispnnodnwricanas. Madri: Fiindacin Histrica Tavera, 2001;
Berta Ares Qiieija. Las categorias de! mestizaje: desafios a los constreniniientos de un modelo social en
el Per colonial temprano. Hislricn, Lima, Pontifcia Univesidad Catlica dei Per, n." 1, v. XXVIII,
pp. 193-218, 2004; Berta Ares Queija. "Un borracho de chicha y vino". La construccin social dei
mestizo (Per, siglo XVI). In: Gregorio Salinero (ed.). Mczcltido y sospechoso; niovilidad e identidades,
Espana y Amrica (siglos XVI-XVIII). Madri: Collection de Ia Casa de Velzquez, 2005, pp- 121-44.
Ver Rolena Adorno. A Witness unto Itself: The Integrity of the Autograph Maniiscnpt of
Felipe Guaman Poma de Ayala s El primor itticon cornica y buen gobienio (I615/I616). New Haven
(Connecticiit): Yale Universily, 2002 (Disponvel em: <http://w\vw.kb.dk/elib/mss/poma/>). O mes
mo site permite acesso ao texto e aos 398 desenhos de Aiala. Ver, tambm: Eliane Garcindo de S.
Escravido o mestiagem na Crnica colonial entre Amrica e frica. Texto apresentado no I!
Simpsio Escravido c Mestiagem: Elistrias Comparadas. Belo Horizonte; Anpiih, 2006 (disponvel cm:
<vvww.cscravidao.cjb.net>).
442 eduardo frana paiva

I IHROS F METROS 1
CORE&IMIBMTO
QlfflffiCRlLOS
f.

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/ 'y ' , l
?^Hv
/- ? A

Phelipe Guaman Poma de Aiala. El primer nueva cornica Ibuen gobierno.


El corregidor convida agente baja: el mestizo, el mulato yel ndio tributrio (p. 509)
Los buenos negros sufren los castigos dei amo con mucha pacincia yamor aJpucristo (p. 720)
Los negros criollos hurtan plata de sus amos para enganar aIas ndias prostitutas (p. 723)

Aausncia de figuras representando espanhis, emalgumas cenas, no muda


essencialmente nada em relao classificao dos indivduos e grupos sociais
retratados. Trata-se deuma representao hierrquica daquela sociedade eda clas
sificao dos povos desde os mais inferiores, at os superiores. Na verdade, esse
esquema identifica, por meio de uma srie de signos e de alegorias, os mais pr
ximos da civilizao (significa dizer, mais prximo dos espanhis) e os mais afas
tados dela, ainda que se trate de desenhos produzidos por um ndio, que os faz
associados a um texto, com o objetivo de denunciar os excessos cometidos pelos
administradores e por seus cmplices contraos nativos. Cultura x Natura, Civili
zao X Barbrie, Bons x Maus, Virtuosos x Pecadores so alguns dos atributos
veiculados nessas imagens e associados aos personagens. No jogo iconogrfico das
culturas, o "eu" e o "outro" alimentam-se desses valores e dos esteretipos cons
trudosem torno deles. Embora noexplicitadas nas imagens produzidas noNovo
Mundo e sobre o Novo Mundo, Europa, frica e Amrica so alegorias que no
ocupam o mesmo espao, nem o mesmo nvel na hierarquia do orbis terrarum.
Nesse sentido, essas imagens reproduzem a idiada distino natural e hierrqui
ca que subjacente s inmeras representaes dos Quatro Continentes, to co
muns na Europa, a partir do sculo XVI. Da mais civilizada e "culta" mais br
bara das alegorias femininas geralmente emprestadas a cada uma das partes,
seguiam, em ordem decrescente, a Europa, a sia, a frica e a Amrica (as duas
ltimas sempre em condio muito semelhante). esse o esquema que rege a
produo iconogrfica sobre essa populao de ndios, negros e mestios de todos
os matizes, designados sob uma infinidade de expresses tanto anteriores, quanto
posteriores Amrica. Dessa maneira, ainda que no intencionalmente, Europa
e europeus, assim como "cultura europia" (expresso, alis, bastante imprecisa e
falsa), tornam-se presentes em todas essas imagens, ocupando o lugar do "eu" e
a presena invisvel, o etnocentrismo e a construo de imagens 443

do "outro" dependendo de quem as produz, onde as produz, para quem e com


que objetivo as produz. No obstante, o que mais importa aqui demonstrar que
explicita ou implicitamente, nessas relaes entre diferentes, o modelo de civili
zao e de ocidentalizao est presente. bom salientar mesmo que ele conti
nua presente at hoje, inclusive e, talvez, principalmente, por meio do olhar do
observador, que continua atribuindo ou destituindo essasvelhas imagens de valo
res, de significados e de "verdades" histricas, mantendo-as, intencionalmente ou
no, como importantes testemunhas do passado hbrido do Novo Mundo e, em
ltima instncia, do prprio mundo.
Chegava ao fim a primeira metade do sculo XVII, quando, no Brasil ho
lands, foram produzidos os mais detalhados, elaborados e precisos retratos dos
diversos povos que habitavam essa parte da Amrica, invadida pelos batavos em
1630 e ocupada por eles at 1654. Seguindo instrues do Conde Johan Maurits
Nassau-Siegen, dois artistas que integravam sua comitiva, instalada em Recife, pin
taram cenas cotidianas, gente, costumes, paisagens, natureza,objetos, adornos, re
produzindo gestos, movimentos e cores daquelas plagas. Tratava-se de repertoriar
o Brasil para que os resultados pudessemser vistos, admirados e cobiados na Eu
ropa. Frans Post pintou paisagens grandiosas, nas quais aspessoas ocupavam cena
secundria. Mas Albert Eckhout se dedicou mais detalhadamente s gentes e suas
prticas e suas formas de viver, alm de magnficas naturezas-mortas, que so ver
dadeiras enciclopdias das frutas, legumes e tubrculos existentes, o que facilita
ao observador interessado identificar o nativo e o introduzido nesse domnio, at
o sculo XVI. De toda a produo artstica deles, os oito retratos em tamanho na
tural de casais de diferentes origens biolgicas e tnicas tornaram-se clebres (h
dvidas se essas pinturas foram realizadas no Brasil ou se depois de Eckhout ter
regressado Holanda, em 1644, assim como se elas foram feitas a partir de aqua
relas anteriores e muito menos elaboradas, produzidas por outro integrante da
comitiva da Nassau, Zacharias Wagener, em seu Thierbuch). Assinados e datados
entre 1641 e 1643 (a tela que retrata o Mulato no est datada, mas geralmente
aceita a data aproximada de 1641), Eckhout representou: ndio tapuia com azagaias
e tacape; Mulher tapuia segurando uma mo cortada e carregando em um cesto um
p cortado; Mulher tupi segurando criana ecom cesto na cabea; ndio tupi com arco
eflechas; Mulher negra segurando um cesto, com seu filho; Homem negro segurando
uma azagaia; Mulato com mosquete eflorete; Mameluca com cesta de flores. Cada
personagem ocupa a cena principal das telas, mas ao redor deles e ao fundo apa
recem as alegorias que os associam mais proximamente natura ou cultura. Os
tapuias, considerados brbaros, aparecem nus (umfeixe defolhagem cobre o sexo
da mulher tapuia), inseridos em natureza selvagem, sem nenhum sinal de inter
veno do homem "civilizado", entre animais peonhentos e batalhas endgenas.
Alm dessa dupla, Eckhout pintou, em torno de 1640, Dana dos ndios tapuias.
Na tela, oito homens nus danam em crculo, com seus tacapes e azagaias mo,
portando adereos corporais e pequenos cocares de penas vermelhas e azuis.
Complementam a cena duas mulheres nuas, mas com feixe de folhagens como
tapa-sexo, que parecem emitir sons ritmados. Tudo se passa, tambm, em meio
444 eduardo frana piiiva

natural e selvagem. Um tatu, no cho, direita, observa a cena (geralmente, nas


pinturas europias renascentistas, um cachorro domesticado assiste s cenas re
tratadas). A estava o prottipo da barbrie americana: alm de tudo isso, tratava-
se de ndios antropfagos.

Albcrt Eckhout, Copenhagen, Nationaiimiscct.


Mulhertapuia segurando uma mo coi tada e carregando em umcesto um pcortado, 1641.
Dana dos ndios tapuias, c. 1640.

Eckhout, certamente incorporando valores e julgamentos portugueses so


bre os diversos grupos amerndios do Brasil, inclui nos retratos dedicados aos n
dios tupis imagens em segundo plano que os vinculam "civilizao" e cultura,
isto , que os aproxima do "eu" e de um modelo europeu. Atribuir-lhes ou desti
tuir-lhes desses atributos configurou na obra desse artista holands a base decom
posio das imagens do outro e, ao mesmo tempo, comoj disse, das imagens de
si, ainda que aparentemente ausentes da cena. assim, tambm, o fundamento
de Eckhout (tambm, de artistas e de cronistas anteriores a ele) para a percepo
de povos e de culturas "diferentes", o que hoje pode ser abordado a partir de con
ceitos como alteridade e identidades. O recurso foi usado pelo pintor para as ou
tras duas duplas: nos negros e os mestios. Nenhum deles, contudo, iguala-se ao
espectro europeu que, de longe, invisvel, os classifica e os julga a partir de sua
pretensa perfeio e completude.-"

Ver, entre outros, Albert Hckhout. Volui no lirnsil 1644-2002. Copenhague: Nationalmuseel,
2002; Quentin Buvelot (ed.). Albert Eckhout n Dutch Artist iu Brazil. Tlie Hague/Zwolle: Royal Cabinet
of IViinlings Maurilshuis/VVaancicrs 1'iiblishers, 20()-l; Cristina Ferro & los Paulo Monteiro Soares
(cd.). lirnsil Ilolniidcs o "Tliicrbhcli" e a "Aiitohiogrnfur de Znchnriiis VVoeuer, v, 11. Rio de Janeiro:
Inde.x, 1997; Paulo Merkenhoff (org.). O lirnsil e os Holandeses 1630-1654. Rio de janeiro: Sextante
Artes, 1999. Sobre a paisagem nas obras produzidas sob os auspicios de Nassau ver Sandra lataliy
Pesavenl. A inveno do Brasil o nascimento da paisagem brasileira sob o olhar do outro. Fnix
Revista de Histria e Estudos Culturais, v. I, a. I, n." 1. out./nov./dez. de 2004, pp. 1-34. Disponvel
em: <vv\vnv.revistafenix.pro.br>.
a presena invisvel, o etnocentrismo e a construo de imagens 445

Antes de Eckhout, as imagens do outro, na Amrica, eram mais etreas. A


partir dos retratos (ainda que idealizados, verdade, como de resto,todo retrato e
toda descrio o so, de uma maneira ou de outra), o nativo do Novo Mundo, o
trazido forado a essas terras e os descendentes deles compem uma taxionomia
indita, impactante e muito influente. A seqncia abaixo, montada de acordo
com meu propsito, evidentemente, demonstra de maneira inequvoca como
Eckhout se preocupou em distinguir e em classificar os personagens do mundo
que ele retratava em oposio ao mundo do qual ele provinha e ao qual era fiel. O
desfile de personagens multicolores uma negra, um "crioulinho" (filho de pais
aft-icanos nascido no Brasil) ou "mulatinho" escuro e um mulato pode ser com
parado ao cordo plurimatizado que envolve o cavaleiro medieval no quadro do
Westfalian MasteVy reproduzido no incio deste texto. Mas o holands quase, di
gamos, "cientfico" em sua descrio iconogrfica. A criana com a espiga de mi
lho (de origem americana) na mo direita e o papagaio (africano?) na esquerda,
para alm de filho da negra, a Amrica, ou, melhor, a alegoria do Brasil, filho
da frica, note-se, mais que da Europa, que o pai quase no reconhecvel e
identificvel, no fosse a tez clareada do menino, que se destaca ao lado da cor de
bano da genitora. Essa seqncia que se finaliza com um mulato bem claro ,
ainda, uma metfora do embranquecimento evolutivo (alm da cor da pele, ob
serve-se a seminudez, de um lado e a indumentria do outro, bem como o florete
e o mosquete, smbolos de statussocial), inevitvel a longo prazo, postaa superio
ridade do "eu", isto , da civilizao e da cultura sobre a natura. Nesse sentido,
embora no fosse sua inteno criar uma teoria historiogrfica, Eckhout anteci
pava em quase duzentos anos as idiasde von Martius, em seu clebre manual de
Como se Deve Escrever a Histria do Brasil}^

Carl Friedrich Phillipp von Martius. Como se deve escrever a histria do Brasil. Revista
trimestral de Histria e Geografia ou Jornal do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, n." 24, pp. 31-2,
1845. O naturalista alemo recebeu o prmio criado em 1840, pelo Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro, por essa monografia sobre a histria do Brasil, baseada na mistura das trs raas, o branco,
o negro e o ndio, e do branqueamento natural baseado na superioridade gentica do europeu.
eduardo frana paiva

Albcrt Eckhout, Copenhagon, Nationalmuscct


Mulher negrasegurando um cesto,com seu filho, 1641
Mulher negrasegurandoum cesto, com seu filho, 1641. (detalhe)
Mulato com mosquete e florcte, c. 1641

Retratos e paisagens da realidade reproduzida fidedigna e detalhadamente,


ideal renascentista perseguido pelos pintores do norte europeu, instituam-se como
verdade e informavam a muitos sobre um universo que apenas poucos vivencia-
vam. Da, talvez, naquele universo mundializado do sculoXVII, o negroe o mula
to americanos, mais especificamente, os do Brasil, acabarem chegando Europa
nesses retratos, provocando muitas cpiassob diversossuportes (tapearia, pintu
ras murais e outras pinturas sobre tela), sendo reproduzidos e circulando inten
samente, e, por fim, relegando ao esquecimento as antigas imagens de negros e de
mulatos presentes no Velho Mundo. Afinal, deve-se lembrar, o Seiscentos poca
do gosto pelo exotismo alheio, pelo que diferente, mas quase sempre com rela
o ao "outro" O olhar que cultivava o extico buscava-o fora da Europa e no
nas telas de pintores europeus ou nas "bizarrices" domsticas; isso no teve o mes
mo valor, nem despertou a mesma cobia. Nos famosos gabinetes de curiosidades
renascentistas, organizados desde o sculo XVI (ou, talvez, um pouco antes), va
lorizava-se, muito mais, o extico do "outro", das regies j conhecidas, mas dis
tantes ou das recin-tocadas pela pretensa civilizao.
Alm dos retratos de Albert Eckhout, o acervo construdo por Nassau, a par
tir da enorme produo de seus patrocinados, ajudou, certamente, a associar
Amrica a mestiagem, o que se pode observar desde as naturezas mortas de
Eckhout (nas quais produtos da natureza nativa e outros introduzidos pragmati-
camente- reproduzem a prpria mundializao do perodo),at o tratado de His-

Al^ordei esse tema em F.diiardo I-rana Paiva. Mandioca, pimenta, aljfares: trnsito cultural
no imprio portugus Naturalia, inirabiia. In: Jolian Verberckmoes; Werner Tomas & Eddy Stols
(org.), op. cit., pp. 107-22, Ver tambm Luiz Felipe de Alencastro. O inito dos vivenics: foniuio do
a presena invisvel, o etnocentrismo e a construo de imagens 447

tria Natural de Piso e Marcgraf.-^ Desse conjunto, emerge a idia de lun mundo
impuro, selvagem e, por vezes, ingnuo e, at mesmo, jovem, em formao, como
se fosse uma criana ainda,-'' idia j formulada antes por religiosos, principal
mente os jesutas, que atuavam no Brasil desde o sculo anterior.
A Amrica, certo, no foi o palco no qual se inventou o mulato, mas ele
foi naturalizado americano (assim como ocorreu com africanos e europeus). Sua
origem americana, sua importncia demogrfica e cultural e sua atuao poltica
e econmica, assim como seu vnculo familiar estreito com parte das elites foram
fatores que contriburam nesse sentido. Mamelucos, cabras, zambos, cuarterones
e uma infinidade de termos que identificaram os mestios americanos, desde o
sculo XVI, conheceram processos semelhantes ao dos mulatos." No Brasil, no
Peru, no Mxico, em Cuba, em Porto Rico, na Argentina, na Colmbia, na
Venezuela, essas histrias se aproximam, por vezes de maneira surpreendente. At
o incio do sculo XX, intelectuais, polticos e cientistas latino-americanos e eu
ropeus, de maneira geral, agora tomados pelo paradigma da raa e do meio, viram
essas jovens naes e suas populaes mestias, negras e ndias como a anttese
da civilizao, malgrado as teorias e as polticas embranquecedoras colocadas em
prtica desde o sculo XIX. Novamente com semelhanas notveis e com cone
xes ainda pouco estudadas, soaram vozes quase coevas, como as de Fernando
Ortiz, Gilberto Freire e JosVasconcelos, que transformaram o destino condena
do pela mestiagem justamente no seu oposto. Eles a apresentaram, em perspec
tivas distintas, claro, como civilizaes mestias, modelos para o mundo, ainda
que guardando essa idia j muito antiga, etnocntrica, sempre superlativa do"eu"
e redutora do"outro": a de civilizao."
Brasil no Atlntico sul sculos XVI e XVII. So Paulo: Companhia das Letras, 2000; e Paulo de
Assuno. A terra dos brasis: a natureza da Amrica portuguesa vista pelos primeiros jesutas (1549-1596).
So Paulo: Annablume, 2000. Um texto fascinante sobre essa temtica o do franciscano Frei Antonio
do Rosrio. Frutas do Brasil numa nova, e assetica Monarchia, consagrada Santssima Senhora do
Rosrio, o menor dos Menores da Serfica Famlia de S. Antonio do Brasil, & Missionrio do dito
Estado; mandando-a imprimir o Comissrio Geral da Cavallaria de Pernambuco Simam Ribeyro
Riba. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Caram, 1702.
" Willem Piso & Georg Marcgraf. Historia Naturalis Brasiliae. Amsterdam: Joharmes de Laet, 1648.
Ver sobre o tema ris Kantor. Esquecidos e Renascidos: Historiografia Acadmica Luso-
Americana (1724-1759). So Paulo: Hucitec, 2005.
" Os famosos quadros de castas produzidos na Nova Espanha e no Peru so testemunhas dessa
complexidade identitria e da necessidade de retratar e de classificar o "outro", isto , os mestios. So
vrias dezenas de designaes de tipos de mestios, associadas s suas imagens, a atividades econ
micas e a prticas culturais e, por vezes, a formas de ser de cada um. Nem todas as designaes foram
usadas no dia-a-dia, mas muitas delas foram freqentemente empregadas, tanto pelas elites, quanto
pelos populares. Sobre os quadros de castas ver E. Garcia Barragn. Jos Augustn Arrieta, lumbres de
Io cotidiano. Mxico, 1998; I. Katzew. Casta Painting, Images ofRace in Eighteenth-Century Mxico. New
Haven: Yale, 2004; Natalia Majluf (ed.). Los cuadros de mestizaje el Virrey Amat; Ia representacin
etnogrfica en el Per colonial. Lima: Museo de Arte de Lima, 1999; Maria Concepcin Garcia Saz. Las
castas mexicanas; un gnero pictrico americano. Mxico: Olivetti, 1989; Alberto Ruy Snchez (ed.).
Artes de Mxico La pintura de Castas. 2.' ed. Mxico: Artes de Mxico y dei Mundo, 1998, n. 8.
Ver Jos Vasconcelos. La raza csmica: misin de Ia raza iberoamericana. 5.' ed. Mxico:
Espasa Calpe, 1977 [1925]; Gilberto Freyre. Casa-grande &senzala: formao da famlia brasileira sob o
regime da economia patriarcal. 27." ed. Rio de Janeiro: Record, 1990 [1933]; e Fernando Ortiz.
Contrapunteo cubano dei tabaco y el azcar. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1978 [1940].
MENSAGENS DO ALM, IMAGENS DO AQUM:
O ESPIRITISMO NO DISCURSO DA FACULDADE DE MEDICINA
DO RIO DE JANEIRO NAS PRIMEIRAS DCADAS DO SCULO XX

Artur Csar Isaia


Universidade Federal de Santa Catarina

Estudando o discurso catlico sobre o espiritismo na primeira metade do s


culo XX, deparamo-nos com um aliado muito importante da hierarquia catlica
na sua luta contra as prticas medinicas no Brasil; o discurso mdico-psiquitrico.
Como referente discursivo, tanto em um caso como em outro, o espiritismo era
remetido a um lugar monstruoso, escuro, anmico, aparentado com a loucura, a
subverso, o crime. Comoanti-realidade, o espiritismo afirmava o primado do que
de pior havia na sociedade brasileira. Praticar o espiritismo era afirmar os valores
dos segmentos sociais mais nfimos, gravitar em torno da incultura. Em um mo
mento em que a medicina-psiquitrica brasileira aprofundava uma disposio
intervencionista sobre a realidade social, o espiritismo erarepresentado como agen
te patolgico dos mais graves, capaz dejustificar a interveno mdica e credenci-
la ante os poderes pblicos. Aloucura aparecia como uma dasconseqncias mr
bidas da promiscuidade entre vivos e mortos, propalada pelo espiritismo. Sobre um
povo inculto, doente, fraco, sugestionvel, as prticas medinicas so pintadas, no
discurso mdico da poca,como catalisadoras de desajustes mentais, tornando im
produtivauma larga parcela dapopulao. Dessa maneira, em nome da higienizao
da sociedade e dos interesses nacionais, os quais os mdicos passam a arvorar-se
um dos mais abalizados porta-vozes, a medicina-psiquitrica decretava uma inter
dio radical sobre o espiritismo. Interveno e interdio sobre o espiritismo, por
outro lado, soavam como medidas totalmente familiares para uma igreja que ainda
teimava em desdenhar da organizao popular, persistindo no elogio ao predom
nio das elites,que se diziam catlicas. Portanto, na economia das foras em jogo na
primeira metade do sculo XX, estamos diante de dois aliados (mdicos e padres),
detentores de uma acumulao simblica no desprezvel e unidos contra o espiri
tismo. Em trabalhos anteriores, privilegiamos o estudo do discurso catlico sobre as
prticas medinicas, abordando a riqueza imagtica com que construiu o espiritis
mo, em um momento em que ainda a igreja possua uma posiocmoda no campo
o espiritismo no discurso da faculdade de medicina do rio de janeiro 449

religioso e entre os atores polticos. Neste trabalho, vamos ater-nos ao outro parcei
ro, o discurso mdico-psiquitrico, capazde habitar a mesmalgica da excluso da
diferena e da denegao da realidade sociocultural brasileira.
Para Giumbeli' o discurso mdico brasileiro tendeu a uma condenao fron
tal ao espiritismo. Ao contrrio do discurso jurdico, capaz de endossar a clivagem
entre "alto" e "baixo" espiritismo, tolerando o primeiro e penalizando completa
mente o segundo, o discurso mdico brasileiro da primeira metade do sculo XX
tendeu para uma condenao substantiva do espiritismo. As atividades medinicas
eram vistas como momentos completamente negadores da coerncia do eu, do
agir racionalmente orientado e remetidas ao repertrio das aes que exigiam a
represso do estado e a interveno combativa da cincia. Em se tratando do dis
curso mdico-psiquitrico da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, o com
bate ao espiritismo acontecia em um lugar institucional marcado pela influncia
da psiquiatria organicista, trazida da Alemanha pelo baiano Juliano Moreira. Em
bora no fosse professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e sim, diretor
do Hospcio Nacional dos Alienados, a influncia de Juliano Moreira imps-se
sobre professores e estudantes. Em torno de Juliano Moreira, em breve formou-
se um grupo de mdicos bastante significativo, entre os quais aparecia o catedr-
tico de medicina psiquitrica, Henrique Belford Roxo. Neste trabalho, vamos
enfocar a produo de alguns desses mdicos, formados nessa tradio, e a sua
apreenso do espiritismo. Juliano Moreira trouxe da Alemanha e legou a esse gru
po o modelo psiquitrico de Emil Kraeplin (1856-1926). Ainfluncia da psiquiatria
alem aparecia em Juliano Moreira, sobretudo na nfase pela objetividade, pro
curando, por meio da observao, a etiologia orgnica das doenas men
tais." Era um modelo no qual se buscava a relao entre a doena mental e leses
corporais especficas. Da o interesse em estudar as relaes entre a loucura e doen
as como a sfilis, a epilepsia, a tuberculose, a lepra. Da, igualmente, o interesse
em credenciar os conhecimentos mdicos s polticas pblicas de interveno so
cial e equacionamento do espao urbano. E da, obviamente, o interesse em remeter
o espiritismo convivncia patolgica, capaz de reclamar a mesma interveno
mdica na esfera pblica suscitada pela presena da sfilis ou do alcoolismo. A
interveno mdica assentava-se no reconhecimento, pelos profissionais da po
ca, de que, tanto a predisposio hereditria, quanto as leses neurolgicas e as
condies socioambientais, representavam ordens de causalidade dos distrbios
mentais. O discurso mdico credenciava-se no Estado, como capaz de prever a
emergncia da loucura entre a populao, diagnosticar as diversas infeces, into
xicaes ou traumatismos que determinavam as leses neurolgicas e propor me
didas profilticas, capazes de higieniz-la.^ Higienizaro espaourbano passava por
medidas conducentes a dot-lo de um planejamento racional, a remover os focos
das doenas, a excluir a visibilidade da mendicncia, da prostituio, da vadia-
gem, propondo atitudes normativas e coercitivas. dentro desse esforo clas-
' Emerson Giumbelli. O cuidado dos mortos. Uma histria da condenao e legitimao do
espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
^ Ruth Mylius Rocha et al. Juliano Moreira: o aprisionamento da loucura no discurso
cientfico. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 4(9), p. 451.
' Carlos Fidelis da Ponte. Mdicos, psicanalistas e loucos: uma contribuio histria da
psicanlise no Brasil. Mestrado em Sade Pblica. Rio de Janeiro: Fundao Oswaldo Cruz, 1999.
450 artur csar isaia

sificatrio, normativo, que Juliano Moreira vai propor um trabalho preventivo,


com vistas a reverter o nmero de doentes mentais no pas, visando ao aumento
do contingente produtivo, uma vez que seu critrio de normalidade existia arti
culado aos interesses do mundo da produo capitalista. Juliano Moreira consi
derava um indivduo livre e normal, "caso aceitasse os imperativos morais e eco
nmicos defendidos pela sociedade burguesa",^ credenciando-se produo e
cidadania. Para Juliano Moreira a psiquiatria tinha uma tarefa importantssimaa
cumprir, em um momento da vida nacional marcado pelo incremento dos cen
tros urbanos e da industrializao. O crescimento urbano e a concentrao ope
rria eram vistos por Juliano Moreira como o caldo de cultura para o crescimen
to dos ndicesde doena mental, aparecendo, o asilo e a assistncia aos alienados,
como "imperativos polticos e como exigncia de civilizao".' Na funo de
prever e intervir no meio urbano, Juliano Moreira e a gerao que o seguiu sero
tributrios de uma teoria que conviver com o organicismo de Kraepelin: a teoria
da degenerescncia, formulada por Benedict-Augustin Morei (1809-1873). Esta
teoria identificava a origem da loucura na degenerao, vista como um "desvio
mrbido de um tipo primitivo ideal",^ hereditariamente transmitido. Essa con
cepo trouxe, entre outras conseqncias, a alta na cotao da psiquiatria, como
disciplina capaz de impor-se parceria do Estado, no af de disciplinar e ordenar
o espao urbano. Isso porque, no alienismo clssico de Pinei e Tuke, admitia-se
apenas a existncia deindivduos sos (portadores de um comportamento orien
tadopela razo) e loucos (portadores de umcomportamento destitudo de razo).
Ateoria da degenerescncia tornou bem mais complexa a leitura da doena men
tal. Acreditando em um tipo normal que se degenerava hereditariamente, essa teo
ria passou a advogar uma gradao dos estados patolgicos. O degenerado portava
uma "doena invisvel",^ capaz de ser lida somente pelo especialista. Este, cada vez
mais orienta sua ao profissional na direo intervencionista, identificando as
manifestaes da degenerescncia nos comportamentos desviantes. O"demi-fou",
o "louco moral", assim como todas as manifestaes da degenerescncia, so vis
tos ao mesmo tempo como produtos da cidade e atrados para ela, que lhes acena
com o anonimato, com a licena dos costumes, com a multiplicidade de opes
de vida. Juliano Moreira representa bem uma virada da psiquiatria brasileira, uma
verdadeira descontinuidade, ao propor um olhar sobre adoena mental, no mais
centrado unicamente na loucura (como a nosologia do sculo XIX), mas agora
sobre a concepo de anormalidade. Aservio da medicina legal, o discurso m
dico credenciava-se como capaz de prever o comportamento anti-social, identifi
cando a periculosidade latente do anormal.

Embora no tenha sido claramente formulada do ponto de vista


conceituai, h uma descontinuidade que se estabelece sobretudo a partir do
Lazara Carvalhal. O pensamento de luliano Moreira: uma abrodagem histrica. Anais do I
Congresso de Sade Mental do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 10.
' Maria Clementina Pereira Cunha. O espelho do mundo. Juquery, a histria de um asilo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 46.
" Pierre Morei. Dicionrio biogrfico PSI. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 179.
^ Maria Clementina Pereira Cunha, op. cit., p. 25.
* Vera Portocarrero. Arquivos da loucura. Juliano Moreira e a descontinuidade histrica da
psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.
o espiritismo no discurso da faculdade de medicina do rio de janeiro 451

surgimento, no final do sculo XIX, da concepo de anormalidade como


pertencendo ao campo da patologia, que se estende a todos os indivduos
reconhecidos como fora da ordem social, fora da norma, sejameles degene
rados, criminosos, imbecis, ou dbeis mentais.'

nesse contexto que o espiritismo ganha espao como referente discursivo


na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. A invocao dos espritos denun
ciada como passvel do mesmo controle sanitrio da cidade pelos mdicos, capaz
de identificar as manifestaes da degenerescncia. Sendo remetida patologiae
sendo reconhecido como contagioso,contra o espiritismoera necessrio um "iso
lamento sanitrio", capaz de impedir a sua difuso. Para Antnio Austregsilo, o
espiritismo era uma "psiconeurose semelhante histeria ou prxima dela, con
tagiosa e de fcil difusibilidade [s/c]".' Reconhecendo o espiritismo como um
perigo, os mdicos cobram do Estado medidas repressivas, visando a enquadrar
penalmente os seus prceres, bem como medidas "profilticas" visando sua
erradicao. Os mdicos buscavam a criminalizao do espiritismo, tentando
desconstruir, tanto a sua identidade religiosa (protegida pela Constituio),quan
to a cientfica (propalada pela obra de codificao esprita).Os mdicos opunham-
se s sentenas judiciais nas quais o exerccio do espiritismo era defendido com
base no argumento da liberdade de culto. Comentando as referidas sentenas ma
nifestam-se Leondio Ribeiro e Murilo de Campos:
Justamente o contrrio disso" est hoje absolutamente demonstrado
pelos mdicos e psiquiatras, que reclamam medidas urgentes a fim de evi
tar os perigosque disso resultam no s para o indivduo que fica com a sua
sade em risco, mormente se j um doente ou tarado, como ainda para a
sociedade, que v por esse meio serem facilitados e praticadosos maisvaria
dos crimes. No Brasil no se pratica absolutamenteo espiritismo como reli
gio nem com o fim de realizar estudos cientficos, como se faz em outros
pases. O que se v aqui, em toda a parte, uma indstria organizada com
esse rtulo para explorar a credulidade pblica."
O espiritismo encarado, do ponto de vista das manifestaes anti-sociais,
como produto desse meio urbano monstruoso, imprevisvel, capaz de acobertar
comportamentos anormais. A cidade j era remetida no XIXeuropeu a represen
taes monstruosas, nas quais a multido passava a ser vista como ameaa anni
ma e brutal." Osmdicos, fazendo a relao apontada porBresciani" entre cidade
e degenerao fsica e moral das populaes, credenciavam-se a uma interveno
cientfica, a fim de sanar o espetculo das epidemias, entre as quais incluam as
de origem psquica. Ao espiritismo ligavam o perigo dessas ltimas. Como lugar
' Ibidem, p. 141.
Apud Joo Coelho Marques. Espiritismo e idias delirantes. Doutorado em Medicina. Rio de
Janeiro: Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1929, p. 32.
" Referem-se ao carter inofensivo do espiritismo, defendido em algumas sentenas judiciais.
Leondio Ribeiro & Murilo de Campos. O espiritismo no Brasil. Contribuio ao seu estudo
clnico e mdico-legal. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1931, p. 85.
" Maria Stella Martins Bresciani. Metrpolis: as faces do monstro urbano. Regista Brasileira de
Histria, (8-9), pp. 35-68, 1985. Ibidem, p. 56.
452 artur csar isaia

da licena, o meio urbano era encarado, igualmente, como o lugar do perigo. Dia
logando com o discurso mdico, Joo do Rio mostrava, no incio do sculo XX, a
cidade que encobria as prticas horripilantes de"Salptrire africana", pordetrs
da inofensiva fachada de casinhas de subrbio.'" A percepo higienizadora dos
mdicos sobre o espiritismo, compunha-se com o processo de "normatizao das
prticas sociais", detectado por Pesavento na capital federal dos incios da Rep
blica."^ O inaceitvel para os mdicos era quando a licena urbana contava com a
conivncia do poder pblico. Nesse sentido, elucidativo o teor da ata de 19 de
abril de 1927, da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, na qual o mdico
Bonifcio Costa, inspetor da Fiscalizao do Exerccio de Medicina do Departa
mento Nacional de Sade Pblica, reclamava da presena policial, ajudando a
organizar a fila dos que buscavam receitas homeopticas na sede da Federao
Esprita Brasileira.'" Como um caso de sade pblica, como indcio de anormali
dade, era intolervel, para os mdicos, qualquer tipo de omisso ou, na pior das
hipteses, conivncia do Estado como espiritismo. O espiritismo eraassociado ao
comportamento imprevisvel das multides, objetos da ateno e do esforo de
diferentes discursos que visavam disciplinarizao da vida urbana. A idia de
multido, tal qual aparecia em Gustave Le Bon e outros autores lidos pelos psiquia
tras brasileiros da poca, remetia a uma associao essencialmente psicolgica,
na qual desaparecia a racionalidade e o discernimento, instaurando-se o domnio
do comportamento impulsivo, primitivo e contagioso. Ora, o transe medinico
no era visto pelo discurso mdico da poca como o imprio do automatismo, do
psiquismo inferior, de um mundo subliminal que aflorava? O prprio Le Bon
interessou-se pelo estudo dos fenmenos espritas. Estes eram vistos como de-
nunciadores de um estgio inferior do pensamento humano, baseado na crena,
quedeveria sersubstitudo, em um estgio superior, pelo conhecimento.'" Acrena
acontecia para Le Bon a partir de uma "intuio inconsciente", ao passo que o
conhecimento era edificado por mtodos exclusivamente racionais. Opondo Le
Bon crena a conhecimento, o espiritismo era enquadrado na primeira categoria.
Como catalisador de energias desconhecidas e primitivas, o espiritismo aparecia
como um perigo, capaz de provocar crises de histeria coletiva, transformar ho
mens e mulheres pacatos em feras humanas. Nesse sentido, tanto Leondio Ribei
ro e Murilo de Campos, quanto Xavier de Oliveira, recorrem a uma observao
de Franco da Rocha,diretor do Juqueri em So Paulo e egresso da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, para ilustrar um caso de "epidemia psquica" ocorri
do em "contexto esprita". Trata-se de um caso, ocorrido em Taubat, So Paulo,
por volta de 1885. Nessa ocasio, "escravos, crianas seminuas e outros sectrios
do espiritismo" seguiam cegamente um advogado, "chefe da seita", que, em nome
Joo do Rio. >\s religies do Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976 11904).
" Ver Sandra Pesavento. O imaginrio da cidade. Vises literrias do urbano. Paris/Rio de Janeiro/
Porto Alegre-. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999.
' Apud Leondio Ribeiro & Murilo de Campos, op. cit., p. 183.
Gustave Le Bon. Les opinions et les croyances: gense, volulion. Paris: Flammarion, 1911.
O relato transcrito em um artigo de Nina Rodrigues, publicado sob o ttulo "La folie des
foules", publicado nos Annales Mdico-Psychologiques, jan./ago. de 1901 e reproduzido no livro
Coletividades Anormais, fruto de um trabalho de compilao de Artur Ramos (ver Raimundo Nina
Rodrigues. A loucura epidmica de Canudos. In: Idem. As coletividades anormais. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1939).
o espiritismo no discurso da faculdade de medicina do rio de janeiro 453

dos espritos, propalava a necessidade de imolao de um de seus seguidores, de


vendo seu sangue ser bebido por todos.' Sobre as causas, natureza e possibilida
des de enfrentamento de casos como este, refere-se Franco da Rocha:

Tais epidemias surgem por ocasio de uma emoo geral, principal


mente nas reunies de mulheres-' em que h histricos e degenerados de
toda a sorte. Aqui mesmo, em So Paulo, tivemos ensejo de registrar uma
dessas exploses epidmicas, a de Taubat, em 1885, que nasceu numa ses
so esprita. Produzidas por semelhantes circunstncias, as perturbaes
mentais se esvaem desde que se separem os pacientes. Essas epidemias tm
sido em sua mor parte de carter religioso, ou antes supersticioso."

Um outro fato de "epidemia psquica" ou "loucura coletiva", associado por


Leondio Ribeiro, Murilo de Campos e Xavier de Oliveira ao espiritismo, teria ocor
rido na Paraba, em Campina Grande. O inqurito policial relata o caso de uma
mulher que, logo aps dar a luz, comeou a apresentar sintomas de desequilbrio
mental. "Chamado um charlato, este declarou que se tratava de simples mani
festao de um esprito mau e determinou o jejum obrigatrio e coletivo." Alm
disso, teria declarado que a cura aconteceria aps a vtima ser transformada em
um sapo, que deveria ser morto a pauladas. Ao julgarem chegar o momento de
exterminar o "sapo", os parentes matarama mulhera pauladas."
Construindo a patologizao do espiritismo, os mdicos associavam-no,
subverso da ordem republicana. Se a repblica era vista comoo triunfo da razo,
esperava-se do cidado a vivncia das"virtudes" republicanas. Nada mais oposto a
elas do que o comportamento julgado doentio e primitivo, cujo reconhecidocon
tgio pairava como uma ameaa ordem. No pensamento mdico da poca, isso
no era nenhuma novidade. Nina Rodrigues j havia estabelecido uma relao
entre o misticismo de populaes, julgadas em estgio evolutivo inferior e a adoo
do que chamava de "sentimento poltico". Assim, sertanejos e negros eram julga
dos, por Nina Rodrigues, incapazes, tanto da vivncia da cidadania e da compre
enso das abstraes prprias da frmula republicana, quanto do catolicismo e
do contedoteolgico do cristianismo." Juliano Moreira, porseu turno, reavaliou

Leondio Ribeiro & Murilo de Campos. O espiritismo no Brasil. Contribuio ao seu estudo
clinico e mdico-legal. So Paulo: Nacional, 1931, pp. 59-60. Xavier de Oliveira. Espiritismo e loucura.
[s.l.]: Geem, 1930, p. 261s.
Ao destacar o papel do espiritismo na provocao dessas "epidemias psquicas" e das mulheres
na sua difuso. Franco da Rocha reproduzia uma postura peculiar a vrios observadores do perodo.
Estes, lendo os fenmenos espritas como tpicos comportamentos histricos, destacavam a mulher
como locus principiai dos fenmenos medinicos. Essa postura acontecia, mesmo quando a histeria j
no era mais reconhecida como uma doena do tero (desde a dcada de 1880, Charcot relatava casos
de histeria masculina, chamada por ele de "traumtica"). Por outro lado, esse era mais um ponto em
comum entre discurso catlico e mdico. Ambos construam uma "feminizao" do transe medinico
(ver Artur Csar Isaia. Catolicismo pr-conciliar e religies medinicas no Brasil: da demonizao ao
saber mdico-psiquitrico. In: Ivan Aparecido Manuel & Naimora M. B. Freitas. Histria das religies.
Desafios, problemas e avanos tericos, metodolgicos e historiogrdficos. So Paulo: Paulinas, 2006).
Franco da Rocha. Esboo de psiquiatria forense. So Paulo: Tipografia Laemmert, 1904, p. 182.
" Leondio Ribeiro 8< Murilo de Campos, op. cit., p. 60.; Xavier de Oliveira, op. cit., p. 264.
'* Tecendo um paralelo entre o comportamento de sertanejos e negros na esfera pblica,
escreve Nina Rodrigues:
454 artur csar isaia

as teses de Nina Rodrigues, negando o determinismo racial nele contido. Contu


do, herdeiro de Kraepelin, no desprezava o carter "contagioso", do espiritismo,
capaz de impordanos ao psiquismo dos julgados fracos, crdulos, ignorantes, su
persticiosos. Aesse respeito, refere-se Kraepelin:
As manifestaesdos distrbios psquicos encontradias hodiernamen-
te em relao ao hipnotismo e o espiritismo tm uma certa afinidade com
os processos de contgio fsico. As excitaes transmitidas a estes, as expli
caes supersticiosas,que se juntam s misteriosasprticasso evidentemen
te para as naturezassensveis e fracas, um visvel perigo. [. . .] Semdvida, a
predisposio tem, tambm, uma parte essencial, por isso que, os indivduos
que participam com grande zelo do espiritismo e hipnotismo, apresentam
grande sugestionabilidade para tais experincias.-^
Se Juliano Moreira negava o determinismo racial de Nina Rodrigues, isso
no impediu seus seguidores de remeter o espiritismo vivnciados valores, tanto
da negritude quanto da anormalidade, sempre vinculada s camadas nfimas da
sociedade. Assim, Henrique Roxo no s tecia a relao negritude e espiritismo
como via o negro impossibilitado, fsica e culturalmente, de ombrear-se com a
elite branca na vivncia plena da cidadania. Em seu Manual de Psiquiatria, Hen
rique Roxo deixava clara a relao defendida entre universo negro e espiritismo:
As sesses so muito freqentadas. Muitas pessoas se renem em uma
sala pequena. O mdium fica no meio. O chefe ao lado do mdium. Aquele
sugestiona este e lhe diz que invoque um esprito conhecido. O mdium se
pea tremer, solta grandes gritos. V-se muito freqentemente o queseobserva
no cinema, nessas danas de negros, com seus movimentos extravagantes,
suas contores e seus gestos [. . .] As sesses finalizam quase sempre com
crises de nervos e um estado geral de excitao, mais ou menos intenso.^**
O mestre Juliano Moreira discordava abertamente da explicao racial da
degenerao, polemizando, tambm, com Raimundo Nina Rodrigues. Moreira
"Para acreditar que pudesse ser outro o sentimento poltico do sertanejo, era preciso negar a evoluo
poltica e admitir que os povos mais atrasados e incultos podem, ser maior preparo, compreender,
aceitar e praticar as formas de governo mais liberais e complicadas. A populao sertaneja e ser
monarquista por muito tempo, porque no estdio inferior da evoluo social em que se acha, falece-
lhe a precisa capacidade mental para compreender e aceitar a substituio do repre-sentante concreto
do poder pela abstrao que ele encarna, a lei. [...] Por seu turno, no peculiar a Canudos a
tendncia a se constituir em uma epidemia vesnica de carter religioso. Se os estudos que tenho
publicado sobre a religiosidade fetichista da populao baiana no ministrassem j documentos
suficientes para se julgar a crise em que se encontra o seu sentimento religioso, no conflito entre a
imposio pela educao que recebe a populao de um ensinamento religioso superior sua
capacidade mental e a tendncia para as concepes religiosas inferiores que requer a sua real
capacidade efetiva, ns poderamos corrobor-las com a prova do que neste momento se passa nesta
cidade com relao interna epidemia de varola que desapiedadamente a flagela (...] A populao de
cor despreza a vacina porque est convicta de que o melhor meio de abrandar a clera do oris
fazer-lhe sacrifcios que consistem em lanar nos cantos das ruas em que ele habita a sua iguaria
favorita milho estalado em azeite de dend" (Raimundo Nina Rodrigues, op. cit., p. 69.)
Apud Genaro Veiga Sampaio. Espiritismo e loucura. Contribttio ao esfido das chamadas psicoses
espritas na Bahia. Doutorado em Medicina. Salvador: Faculdade de Medicina da Bahia, 1926, p. 68.
Henrique de Brito Belford Roxo. Manual dePsiquiatria. Rio de Janeiro: Guanabara, 1946, p. 469.
o espiritismo no discurso da faculdade de medicina do rio de janeiro 455

insistia que os inimigos a combater contra as degeneraes seriam principalmente


o meio ambiente e as condies sanitrias e educacionais, assim como as verminoses,
o alcoolismo e a sfilis. Esse posicionamento no impediu que Henrique Roxo va
lorizasse a raa como fator possvel de degenerao, em aula ministrada sobre a
etiologia da doena mental, em 14 de junho de 1905.-^ A respeito dos negrose par
dos, Roxo no os via como degenerados, mas como "retardatrios": "No evolu
ram, no progrediram. Apegam-se ao passado" Jos brancos,"devastam com pupi
las ovantes os horizontes do futuro".^ Roxo remetia a condio negra, tanto para
inferioridade fsica, quanto cultural. Herdando um crebro no desenvolvido, care
cia aos negros condies de credenciar-se plena vivncia da cidadania, presos s
origens atvicas, s doenas oportunistas, a uma herana cultural eivada de supers
tioe incultura. Sea raacomo exphcao da degenerao no era descartada. Roxo
colocavao meio como fator determinante, tanto de evoluo,quanto de degenerao:

Suponhamos, porm, que um negro, com esta m tara hereditria, se


transportasse para um centro adiantado e com sua congnere viesse a ter
descendncia. Imaginemos, demais, que esta fosse pouco a pouco progre
dindo e que de pai a filho se fosse legando, cada vez mais um crebro exer
citado, ativo. Dentro de um certo nmero de descendentes, chegaria, final
mente um com o crebro to evoludo quanto de um branco. Seria to
inteligente quanto este.V-se que o meio o agente por excelncia. Vai apri
morando pouco a pouco a raa e o indivduo e consegue nivelar, aps pro
gresso crescente, lenta e laboriosa, os extremos da srie.^'

Portanto, a fim de reverter o atraso que impedia o desenvolvimento nacio


nal, Roxo propunha uma interveno capitaneada pela medicina, para a erradi
cao dos trs males, por ele julgados determinantes para o aumento dos casos de
degenerao mental e fsica no pas: a sfilis, o alcoolismo e o espiritismo. Volta,
novamente, a argumentao de Roxo questo racial: no seu ponto de vista, o
negro representava o contingente predominantemente suscetvel s trs "patolo
gias". Especificamente sobre o espiritismo,mostrava Roxo a presena de delrios e
alucinaes com acento no mundo dos seres difanos, de fantasmas e espritos,
nos quadros clnicos por ele estudados: "Freqentadores de prticas espritas, acre
ditam (os negros) em fices e, quando alucinados, surgem os entes que lhes fo
ram sugeridos anteriormente. As idias diablicas j se vo tornando raras. Os
negros no os temem como outrora".^" Para Henrique Roxo, o combate ao espiri
tismo como patologia estava totalmente amparado na cincia, propondo uma en
tidade mrbida peculiar,desencadeada a partir da familiaridade com os mortos: o
delrio esprita episdico, caracterizado como:

[. . .] uma doena mental que se caracteriza por um delrio que surge


de repente em conseqncia de um choque emotivo, o qual se fundamenta
em alucinaes e pouco duradouro, tendo, no entanto, a capacidade de se

Idem. Molstias mentais e nervosas. Aulas professadas durante o ano letivo de 1905 pelo Dr.
Henrique de Brito Belford Roxo. Rio de Janeiro: [s.n.], 1906, p. 32.
" Ibidem, p. 160.
Henrique de Brito Belford Roxo. Molstias mentais e nervosas, cit., p. 190. '"Ibidem.
456 artur csar isaia

repetir com relativa facilidade. Comumente se desenvolve pela freqncia


de sesses de espiritismo, no do espiritismo cientfico que estudado por
muitos sbios e deve ser respeitado. coisa muito diferente deste: o espiri
tismo de pessoas sem instruo, que acreditam facilmente em coisas absur
das. So pessoas que tm algum sofrimento fsico ou moral e queem vez de
procurarem a curapor meio de um mdico ou de um sacerdote, vo procurar
a sesso de espiritismo para a cura de seus males.^'
Se na citao anterior Roxo fala rapidamente em "espiritismo cientfico", o
contato com os espritos aparece, emsua obra, sempre remetido escria social.'-
Ademais, mesmo reconhecendo a possibilidade de um dito "espiritismo cientfico".
Roxo mostrava que o caldo de cultura predominante no Brasil, favorecia justamen
te o "espiritismo de pessoas sem instruo". Em um pas como o nosso as prticas
espritas tenderiam para o misticismo de populaes carentes de cultura, sade, co
laborando para o desencadeamento deepisdios mrbidos, compondo-se com a"tara
hereditria" de negros e mestios. Essa idia aparece de forma clara, no depoimento
de Bueno de Andrade, citado na tese de um aluno de Roxo, Joo Coelho Marques.
Segundo Bueno de Andrade, mesmo o espiritismo praticado com o rtulo de cien
tfico no Brasil, consistia em fator preocupante deavano dadoena mental:
No Rio de Janeiro, denominam-se espritas no s esses grupos de indi
vduosque se dedicam ao estudodas foras psquicas em manifestaes que
escapam experimentao cientfica, como tambm essa prtica grosseira de
pessoas que mal sabem ler eescrever eque procuram prever o futuro, melho
rar a sorte, resolver casos complicados, etc., idias e prticasverdadeiramen
te absurdas e sem fundamento cientfico nem justificativa que a sancione."
Outro aluno de Roxo na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Xavier
de Oliveira vai, igualmente, valorizar o espiritismo como indcio de atraso de po
pulaes carentes da interveno mdica e estatal. Contudo, vai negar a existn
cia de um "delrio esprita episdico" como patologia individualizada, como que
ria Roxo. Para Xavier deOliveira o queexistia erauma"espiritopatia", caracterizada,
no como uma molstia autnoma, mas por"delrios de feitio religioso ouespri
ta enxertados em certas neuropsicoses"." Claramente Xavier de Oliveira tenta em
sua obra associar o espiritismo a uma vivncia mrbida do sentimento religioso
e, a partir desta associao, remet-lo, subverso da ordem republicana e a um
comportamento poltico ligado a estgios primitivos da convivncia humana.
Xavier de Oliveira voltava, assim, associao j defendida por Nina Rodrigues
entre espiritismo, vivncia patolgica da religio e tendncias anti-republicanas.
muito sintomtico que Nina Rodrigues transcreva, no mesmo artigo em que
relata os episdios do que qualifica de"seita esprita" de Taubat, suas observaes

Ibidem, p. 468.
Anteriormente, Henrique Roxo, em conferncia realizada na Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, em 1918, afirmara a inexistncia de um "espiritismo cientfico" no Rio de Janeiro: "o
espiritismo que aqui se pratica e que leva comumente ao hospcio no tem o menor cunho cientfico"
(apud Ribeiro & Campos, op. cit., p. 195).
" Apud Joo Coelho Marques, op. cit., pp. 34-5.
Xavier de Oliveira, op. cit., p. 21.
o espiritismo no discurso da faculdade de medicina do rio de janeiro 457

sobre a "Epidemia de loucura religiosa em Canudos; histria mdica do alienado


meneur".^^ Xavier de Oliveira, igualmente, defendia que os delrios de natureza
mstica apareciam nos comportamentos religiosos mrbidos, nos quais inclua
tanto o espiritismo, quanto as chamadas "misticopatias". Contrariamente a Nint;
Rodrigues, contudo, no valorizava a raa como fator explicativo e sim, o meio
sociocultural. Dessa forma, se os casos estudados de "misticopatas" urbanos com<
Manuel das Virgens, Teilo Conceio ou o Profeta da Gvea, no tiveram a mesmc.
importncia que Antnio Conselheiro, era porque sua atuao dava-se na cidade,
onde sua voz era relativizada. Contudo, Xavier de Oliveira defendia a relao en
tre morbidez religiosa, atestada pelos delrios de natureza mstica, e o comporta
mento de segmentos sociais considerados incapazes da vivncia da cidadania: anti-
sociais, perigosos, tendendo para um comportamento anti-republicano. Era o caso
dos chamados "reivindicadores msticos", os quais se associavam, para Xavier de
Oliveira, irracionalidade dos segmentos sociais no inseridos na convivncia re
publicana. A leitura patolgica dos comportamentos reivindicatrios pelo discur
so mdico-psiquitrico foi explorada por CasteP^ ao mostrar a homologia criada
pela medicina mental francesa entre as "manifestaes da loucura" e a complexi
dade crescente do meio urbano, com a agudizao das reivindicaes sociais,com
a misria, com o afrouxamento dos costumes. Assim, a cidade passa a ser o cen
rio onde mais visveis eram os comportamentos julgados desviantes, aparentados,
para os psiquiatras brasileiros do perodo, a fatores como raa, fanatismo religio
so, contestao poltica.^^ propagao do espiritismo no meio urbano, os mdi
cos respondiam, disponibilizando-se ao Estado para desencadear as medidas hi
ginicas requeridas. Se a morbidez religiosa propagava-se com mais facilidade no
meio interiorano, a aceitao cada vez maior do espiritismo nos centros urbanos
atestava a origem comum do mal. A esse respeito, Xavier de Oliveira, avalia a atua
o, na cidade do Rio de Janeiro, de um interno do Instituto de Psicopatologia,
Teilo Conceio, autodenominado "Amante de Deus e Profeta de Santo Incio":
Nos subrbios desta capital, onde exerce a sua ao, atualmente, as
suas prdicas, certamente resultaro sempre sem nenhuma conseqncia
grave a lamentar. Nos sertes de onde veio, porm, e onde o fanatismo into
lerante e belicoso, facilmente se propaga e desenvolve, com a rapidez, os sin
tomas e as conseqncias de uma verdadeira epidemia, a sua ao no po
deria de ser funesta.^

Xavierde Oliveira inicia sua obra, onde apresenta sua leitura sobreo espiri
tismo no Brasil, citando Nina Rodrigues e o seu diagnstico a respeito de Ant
nio Conselheiro. Ligado a um grupo de mdicos formados por Juliano Moreira,
esse diagnstico foi contestado no concernente raa como elemento explicativo
dasua "patologia". Para Xavier deOliveira, Antnio Conselheiro tratava-se de mais
um tpico reivindicador mstico, no qual o que chamava de"mal constitucional"

" Raimundo Nina Rodrigues, op. cit., p. 125ss.


Robert Castel. A ordem psiquitrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
Ver nesse sentido Magali Engel. A loucura na cidade do Rio deJaneiro: idias e vivncias (1830-
1930). Doutorado. Campinas: Unicamp.
Xavier de Oliveira, op. cit., p. 149.
458 artur csar isaia

achava no serto inculto o terreno frtil, tanto para crescer como patologia, quan
to para transformar-se em uma "epidemia de loucura religiosa".'^ Afrnio Peixoto
tinha a mesma opinio. Na introduo do seu romance Maria Bonita, refere-se a
um personagem, um velho de longas barbas brancas, um "santo" do serto, nas
suas palavras, que, como Antnio Conselheiro e Padre Ccero, contagiava as mul
tides de todo o Brasil, levando-as ao fanatismo coletivo. Ao contestar o diagns
tico de Nina Rodrigues sobre o Conselheiro, Afrnio Peixoto reafirmava a neces
sidade de combater essas manifestaes, no pela represso, mas pela educao e
conduo das populaes incultas. Nesse trabalho educador e condutor, logica
mente, a medicina credenciava-se como elemento de proa:

Talvez o diagnstico de loucura que lhe fez Nina Rodrigues, ou de cri


me, a que aludiu Euclides da Cunha, seja indevido e injusto, salvo transpon
do os termos: loucos e criminosos sero aqueles, representantes de uma civi
lizao incapaz, que nosouberamou no puderam esclarecer e governar essas
rudes massas populares, largadas pela ignorncia a todos os impulsos, e no
momento do perigo destroem, brutalmente, o que no conseguiram educar e
conduzir, quando no transigem, vergonhosamente fora maior deles. Ca
nudos e Juazeiro so as duas solues, que ambas depem contra ns.^"
Os "msticos" figuravam, para Xavier de Oliveira, entre os reivindicadores
que poderiam chegar aos comportamentos mais radicais e anti-sociais, podendo
suas idias fixas de misso, eleio, contato com o sobrenatural, transform-los
em lideranas perniciosas, difusoras da doena mental. a que Xavier deOlivei
ra mostra o carter anti-republicano, contrrio racionalidade cidad, do com
portamento mstico patolgico, aproximando-se da leitura de Nina Rodrigues a
respeito de Canudos. Xavierde Oliveira cita, como exemplo de magnicidas msti
cos, Aime-Cecile Renault, acusada deconspirar contra a vida de Robespierre e o
monge Jacques Clment, assassino deHenrique III. Aprimeira, apresentada como
uma fantica, capaz deexpor sua vida pela volta da monarquia eosegundo, como
um regicida, que, apesar disso, apresentava vises noturnas reveladoras dedelrios
de colorido explicitamente monrquicos. Nessas vises, um anjo lhe apresentava
uma clava, prometendo-lhe atributos reais em troca da morte do rei: "Pensa, pois
em ti,como teir bem acoroa do martrio que teest sendo preparada. . Como
em todos os reivindicadores msticos, Xavier de Oliveira identifica nosatosde Jacques
Clment um contedo claramente avesso noo de cidadania republicana: "h
sempre uma aproximao entre os msticos e os monarquistas"."*^ O carter patol
gico e primitivo desses "reivindicadores msticos" era, para Xavier de Oliveira, apa
rentado com o espiritismo, visto como "uma nova epidemia de loucura religiosa,
" Fiel aos ensinamentos transmitidos na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Xavier de
Oliveira, via o Conselheiro como um "paranico... no conceito germnico de Kraepelin" (ibidem, p.
66.) Ou seja, o Conselheiro no era um completo alucinado. Ele captava a realidade, criando idias de
lirantes, onde, segundo Kraepelin, mantinha-se a clareza e a ordem do pensamento. Essas idias deli
rantes, ao contrrio das esquizofrenias, no so desconexas, sem nenhuma coerncia, h uma relativa
coordenao nelas (Emil Kraepelin. Introduction Ia psychialre clinique. Paris; Vigot-Frrcs, 1907).
Afrnio Peixoto. Maria Bonita, s.n.t. [1914].
Xavier de Oliveira. O magnicida Manode Paiva. Rio de Janeiro: Beneditode Souza, 1928, p. 70.
Ibidem, p. 66.
o espiritismo no discurso da faculdade de medicina do rio de janeiro 459

igual a tantas outras que a tem castigado em pocas diversas de sua evoluo, e no
s domnio do sentimento religioso". O sucesso do espiritismo no sculo XX visto
como prova da sobrevivncia, da "mesma mentalidade do totem e do tabu".''^
O espiritismo como evidncia do mesmo comportamento contrrio ordei
republicana, aparecia, igualmente, na literatura. Essa representao do espiritismo
como avesso da vivncia civilizada, republicana aparece em Coelho Neto, por exem
plo. Este autor, antes de sua converso ao espiritismo, constri uma personager
altamente emblemtica desse jogo interdiscursivo. a negra Felcia de Turbilho.^"
Publicado no incio do perodo republicano, o livro conta a histria de uma ex-
escrava, que perde o filho na Revolta da Armada e passa a freqentar sesses espri
tas, como lenitivo para sua dor. A ex-escrava, aparece na obra como indcio da so
brevivncia de um Brasilmcomodamente pr-repubcano, no absorvidototalmente
s normas da cidadania (Felcia chama sua patroa de "minh'ama"). O autor mostra
a personagem sucumbindo ao espiritismo e tentando disseminar essavivncia pato
lgica e inculta no seio de uma famia"honesta". Sobra para a ex-escrava a loucura,
que vaiseafirmando e tem como eplogo a sua retirada do convvio social. bastante
sintomtica a construo de uma personagem negra, adepta do espiritismo, doente
mental e com um comportamento duvidoso para os quadros morais da poca (a
ex-escrava acusadapor um dos personagens de favorecer o relaxamento doscostu
45
mes no seioda famlia, levando "perdio"a filha de sua patroa,que foge decasa).
Na tentativa de associaro espiritismoa uma constelao imagtica devalores
claramente anti-republicanos, os mdicos viravam as costas, tanto para a obra de
codificao esprita, quanto para a postura da Federao EspritaBrasileira. No pri
meiro caso, o que se depreende justamente o oposto. O espiritismo tentou, na
Frana de meados do sculo XIX, credenciar-se como um valor novo na sociedade,
assumindo a herana revolucionria. Nesse sentido, procurou associar-se, idia
de repblica, defendendo a laicizao do Estado, a igualdade civil entre homens e
mulheres e a universalizao do ensino.''^ Conforme nos referimos em outro traba
lho, o discurso esprita tendeu para a consolidao dos valoresliberais burgueses:

O que chama a ateno na obra de codificao a sua busca em equili


brar o mundo engendradopelarevoluo burguesa, em fornecer aos atores so
ciais uma viso tranqila e harmnica da vida e da sociedade. Dessa maneira, o
discurso espritatendeu para a defesa de um prottipode trabalhador, cujolimite
de apreenso do realestivesse circunscrito sconquistas liberais burguesas."*^

A Federao Esprita Brasileira recebe, no Brasil do final do sculo XIX, mui


tos membros da elite republicana, assumindo o seu rgo oficial O Reformador
um imaginrio no qual o espiritismo associado ao progresso moral e poltico.
Xavier de Oliveira. Espiritismo e loucura, cit., pp. 12-3.
" Coelho Neto. Turbilho, (s.n.t), [1904].
Sobre o assunto ver: Artur Csar Isaia. Espritos e mdiuns na obra de Joo do Rio e Coelho
Neto. In: Clria Botelho da Costa & Maria Clara Tomaz Machado. Histria & literatura: identidades e
fronteiras. Uberlndia: Editora da Universidade Federal de Uberlndia, 2006.
Marion Aubre & Franois Laplantine. La table, le livre et les esprits. Naissance, volution et
actualit du mouvement soal spirite entre France et Brsil. Paris: JC Latts, 1990.
Artur Csar Isaia. Espiritismo, conservadorismo e utopia. In: Elisabete A. Pinto & Ivan A. de
Almeida. Religies: tolerncia e igualdade no espao da diversidade. So Paulo: Falapreta, 2004, p. 112.
460 artur csar isaia

contra a religio oficial e a monarquia.^" Enquanto o discurso mdico remetia o


espiritismo ao convvio dos valores pr e anti-republicanos, temos o registro de
importantes nomes, ligados consolidao do statu quo republicano, vinculados
Federao Esprita Brasileira. Joo do Rio"*^ identifica como freqentadores da
Federao Esprita Brasileira, alm de Quintino Bocaiva, os generais Girard e
Piragibe, ambos de grande proximidade com o governo republicano. O General
Girard at marchou com as tropas legalistas contra Canudos, chefiando uma de
sastrada brigada governamental, de acordo com o registro de Euclides da Cunha.^
O General Piragibe destacou-se entre as foras do governo no esforo para manu
teno da ordem militar durante a Revolta da Vacina."' Outro nome apontado
por Joo do Rio e de alta proximidade com o governo republicano foi o do Mare
chal Francisco Raimundo Everton Quadros, presidente do Clube Militar no man
dato de Prudente de Morais. Comandante da Escola Militar da Praia Vermelha,
Everton Quadros atuou na defesa do governo de Floriano Peixoto durante a re
volta de 1893-1894, tendo comandado as operaes militares no Paran.^- Everton
Quadros foi o primeiro presidente da Federao Esprita Brasileira, fundada em
1884, dentro do esforo em centralizar a luta das diferentes sociedades espritas
pela afirmao institucional da doutrina e contra o status privilegiado desfrutado
pelo catolicismo durante a monarquia." Por outro lado, a Federao Esprita Bra
sileira empreendeu uma luta visando a manter a ascendncia moral sobre os adep
tos do espiritismo em todo o pas. Nesse sentido, tentava enquadrar as diversas
sociedades espritas a um paradigma, que tinha na cultura livresca e no elogio
cientfico um importante componente identitrio. A consolidao de um "campo
medinico", que revelou uma pluralidade no redutvel ao modelo prescrito pela
Federao Esprita Brasileira mostrou o insucesso desse objetivo. Contudo, ine
gvel uma luta pela afirmao do espiritismo no Brasil, capitaneada pela Federa
o Esprita Brasileira, que congregou uma elite bastante familiar com o poder
republicano e com a cultura livresca. Mesmo levando-se em conta a dinamicidade
das apropriaes e recriaes culturais,capazes de revelar a um "espiritismo bra
sileira"," em que a identidade cientfica tentada por Kardec cedeu lugar a uma
feio predominantemente religiosa, o livro continuou desempenhando um pa
pel preponderante como componente identitrio esprita. O espiritismo, para
Lewgoy caracteriza-se como "uma religio do livro, da leitura e do letramento,
A postura republicana e abolicionista do rgo oficial da Federao Esprita Brasileira,
contudo, dava-se no mbito da leitura linear e progressiva da histria endossada pelo discurso esp
rita. Assim: "Se vrios espritas endossavam a luta abolicionista e republicana, a postura do rgo ofi
cial da Federao era bastante moderada. Ao invs de assumir explicitamente a campanha republicana,
preferiam valorizar a lei do progresso como capaz de viabilizar as idias poltico-sociais embasadas na
razo. O rgo oficial da Federao Esprita Brasileira assumia muitas vezes uma linguagem codifica
da, alegrica, tentando, subliminarmente, criar um imaginrio, onde se opunham os pares: monar-
quia-catolicismo-atraso versus repblica-espiritismo-progresso". Artur Csar Isaia. O espiritismo
diante da idia republicana no Brasil. Fragmentos de Cultura, 15(10), p. 1544, 10/2005.
Joo do Rio. As religies do Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976 (1904].
^ Euclides da Cunha. Os sertes. So Paulo: Martin Claret, 2003.
Ver Jos Murilo de Carvalho. Os bestializados. O Rio deJaneiro e a repblica que no foi. So
Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 108.
" Cf. Zeus Wantuil. Grandes espritas do Brasil. Rio de Janeiro: FEB, 2003, pp. 326-32.
Cf. Sylvia Damzio. Um pouco de histria do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Fundao Casa de Rui Barbosa, 1994.
^ Sandra Jacqueline Stoll. Espiritismo brasileira. So Paulo: Edusp, 2003.
o espiritismo no discurso da faculdade de medicina do rio de janeiro 461

num sentido que dificilmente se iguala em outras religies".'^ O discurso mdico


proferido na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, contudo, no reconhecia
esse esforo rumo ao letramento e cincia, voltando suas costas, igualmentt
para a familiaridade com o crculo de poder republicano desfrutada pela Feder
o Esprita Brasileira. Colocando-se em alteridade total ao espiritismo, descreden
ciando-o, esses mdicos tentavam resguardar e ampliar um direito reconhecia'
de nomear a realidade. Ao estratgica, na acepo de Michel de Certeau, ca\
de garantir "um lugarsuscetvel de sercircunscrito como algo prprio e ser a base
de onde se podem gerir as relaes com uma exterioridade de alvos ou amea
as".'^ Fundamental na lgica interna das aes estratgicas, a criao, pelos po
derosos, de balizas identitrias capazes de afirmar o seu poder e negar o outro.
Negando aos espritas a sua pretendida cientificidade e sua construda identidade
com o livro, os mdicos estabeleciam as balizas identitrias que deveriam separar
medicina e espiritismo, progresso e atraso, cincia e superstio, verdade e menti
ra. Ora, o que caracteriza as aes estratgicas, para Certau, justamente a criao
deste lugar prprio, racional, cartesiano, que tem como objetivo "circunscrever
um prprio num mundo enfeitiado pelos poderes invisveis do outro. Gesto da
modernidade cientfica, poltica ou militar"." Na denegao do espiritismo, os
mdicos buscavam anular qualquer familiaridade reclamada por ele com a cin
cia, com a cidadania e com o livro, estabelecendo os processos de interdio e
excluso, mostrados por Foucault ao abordar a constituio das disciplinasno Oci
dente. Dessa forma era preciso, sobretudo, negar qualquer parentesco do espiri
tismo com o livro, visto como umbilicalmente ligado ao "progresso". Fazendo a
ligao entre modernidade, progresso e livro, Certau^ salienta a valorizao do
escriturstico pela modernidade ocidental, procurando uma oposio frontal ao
oral. Segundo o autor, a modernidade ocidental relegou o oral ao atraso, como
aquilo "que no contribui para o progresso". Portanto, os mdicos no podendo
reconhecer a identidade letrada do espiritismo, tentavam anular completamente
o valor do livro esprita. Dessa forma, o Livro dos Mdiuns de AUan Kardec era
visto por Xavier de Oliveira" comoa "cocana dosdebilitados nervosos quese do
prtica do espiritismo". Por outro lado, a Livraria da Federao Esprita aparecia
como "o foco infeccioso de onde parte a epidemia que hora se alastra por todo o
Rio".*^" Como "foco infeccioso", seus produtos no tinham qualquer relao com a
cincia, justamente a fonte de onde jorravam as verdades capazes de debelar as
infeces e erradicar as epidemias. No se tratando de religio e sim de mera su
perstio, ao espiritismo carecia legitimidade para reclamar o cumprimento dos
preceitos constitucionais de liberdade e igualdade de cultos. E em se tratando de
superstio, reveladora dos estgios mais primitivos da vida, sua tendncia anti-
social, contrria moral republicana e vivncia plena da cidadania, remetia-o
posio daqueles, carentes da ao de um estado, a quemosmdicos credenciavam-
se como fora interventora, capaz de reverter a situao de um Brasil, que na
acepo de Miguel Pereira, no passava de um "grande hospital".

" Bernardo Lewgoy. Os espritas e as letras: um estudo antropolgico sobre cultura escrita e
oralidade no espiritismo kardecista. Doutorado em Antropologia Social. So Paulo: USP, 2000, p, 10.
Michel de Certeau. A inveno do cotidiano. Artes de fazer. Petrpolis: Vozes, 1994, p. 99.
Ibidem. " Ibidem, p. 224.
Xavier de Oliveira. Espiritismo e louatra, cit., p. 211. . Ibidem.
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Alcides Freire Ramos
Professor Associado 2 da Uni
versidade Federal de Uberln
dia. autor, entre outros, dos se
guintes livros: Canibalismo dos
Fracos (Ed. Edusc) e Cinema e
Histria do Brasil (Ed. Contexto,
em colaborao com Jean-
Claude Bernardet). pesqui-
f sador CNPq e integra o Ndeo
1^9 de Estudos em Histria Social da
Arte e da Cultura (Nehac). um
dos editores do peridico Fnix
Revista de histria e estudos culturais.

Rosngela Patriota
Professora Associada 2 da Uni
versidade Federal de Uberln
dia. autora dos livros Vtani-
nha: um dramaturgo no corao
de seu tempo (Ed. Hucitec) e A
crtica de um teatro crtico (Ed.
Perspectiva), entre outros.
pesquisadora CNPq e coordena
o Ncleo de Estudos em Hist
ria Social da Arte e da Cultura
(Nehac). uma das editoras do
peridico cientfico Fnix Revista de histria e estudos
culturais.

Sandra Jatahy Pesavento


professora titular da Univer
sidade Federal do Rio Grande do
Sul e pesquisadora CNPq. No
exterior desenvolveu pesquisas
de ps-doutorado e atuou co
mo docente em ps-graduao.
NaUFRGS est credenciada no
Programa de Ps-Graduao
em Urbanismo. Coordena o GT
Nacional de Histria Cultural
da Anpuh (que se tornou Dire
trio de Pesquisa do CNPq) e do Grupo Internacional
Clope de Histria e Literatura. Entre suas publicaes
esto: Exposies Universais: espetculos da modernidade
no sculo XIX (Ed. Hucitec), Uma outra cidade: o mundo
dos excludos no final do sculo XIX (Ed. Nacional) e
Histria eHistria Cultural (Ed. Autntica).

T T T T >
I / IMAGENS DA MEMRIA E DO SENSiVEL
* Imagem, memria, sensibilidades: territrios do historiador
f Do documento naturalista ao documento social: Jean-BaptisteDebret e os pintores
viajantes
* Histria e Fotografia. Narrativas de um espao de colonizao: Uruanga
Paisagens narrativas do espao amaznico
Imago mortis: o texto, a imagem, o rastro dos subalternos
* Rememorar o espetculo e observar-se rememorando
Imagem e memria: As musas inquietantes

II / IMAGENS DA POLTICA
A imagem do historiador, entre erudio e impostura
* A transfigurao da f religiosana crena revolucionria: Mistrio-Bufoy de Vladimir
Maiakvski, e a recriao da histria
* Imagens da sensibilidade revolucionria no cinema brasileiro dos anos 1960
Memria e histria nos escritos autobiogrficos de San Tiago Dantas
* Foto-cones, a histria por detrs das imagens? Consideraessobre a narratividade
das imagens tcnicas
* 1972:Sesquicentenrio da Independncia uma esttica para a nao
III / IMAGENS DA CIDADE
9 Santos: para alm do porto do caf
* De como os mulatos entraram na histria dos musicais cariocas
Mozart na pera do Carnaval: canto e viso sem igual
A cidade em textos e imagens na obra de rico Verssimo
Ver e ser visto pelo poder: quando a poltica vai s ruas na Porto Alegre dos anos
1920
Lealdades compartilhadas: famlias negras e etnicidades no espao urbano (Porto
Alegre, sculo XIX)

IV / IMAGENS DA ESCRITA
* "Sob a copa das rvores",imagens de sensibilidade na correspondncia modernista
* Sob o olhar de Prapo narrativas e imagens em romances licenciosos setecentistas
MMalditos tipgrafos
Tenha modos! a correspondncia em manuais de civilidade e etiqueta (anos 1920-
1960)

V / IMAGENS DE SI, IMAGENS DO OUTRO


* Uma nova imagem de si: identidades em construo
Onde est o outro?A presenainvisvel, o etnocentrismo e a construo de imagens
* Mensagens do alm, imagens do aqum: o Espiritismo no discurso da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro nas primeiras dcadas do sculo XX

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ISaN:978.85-60-438-79-2

9 788560 438792

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