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Neurocincia e Sade Mental

POR QUE MENTIMOS? DARWIN EXPLICA

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Borboletas, macacos ou orqudeas, no importa. Animais mentem. A grande

diferena que para os humanos mentir no s uma questo de sobrevivncia e
reproduo.
Mais do que uma falha de carter, mentir uma questo de sobrevivncia. E
mais: se serve de consolo, o humano no o nico a viver de enganos. Outros seres
vivos, como plantas e animais, tambm aprontam para conseguir o que querem. At os
vrus tm hbeis estratgias para trapacear os sistemas imunolgicos de seus
hospedeiros.
A cincia mostra que nossos ancestrais da Idade da Pedra j mentiam. Se
no conseguiam alcanar seus objetivos por meio da fora bruta, tinham que recorrer a
outras tcnicas, mais sutis, de manipulao e trapaa. Podia ser para manter o respeito
do grupo ao voltar da caa de mos vazias, para fugir de um predador, para conseguir
algum para acasalar ou para exercer a liderana sobre um grupo. Ou seja, somos hoje
considerados mentirosos por natureza por causa das muitas vantagens adaptativas que a
arte da dissimulao proporcionou aos nossos antepassados - e que continua a
proporcionar a ns.
"Sem a mentira, a vida em sociedade entraria em colapso. Se voc dvida
disso, basta imaginar o que seria a vida se voc resolvesse dizer a todos os seus amigos
o que realmente pensa de cada um deles", provoca o filsofo e psiclogo evolutivo
David Livingstone Smith, diretor do Instituto de Cincia Cognitiva e Psicologia
Evolutiva da Universidade da Nova Inglaterra, EUA. "Alm disso, em muitos aspectos,
mentir um passaporte para o sucesso nos negcios, na poltica e na vida social.
Indivduos que no sabem mentir so prias sociais."

O valor do engodo

Na implacvel luta pela sobrevivncia e pela reproduo da espcie, o

moralismo no tem espao. Quem mente bem leva vantagem sobre quem diz a verdade
simplesmente porque a lorota funciona para resolver um monte de problemas - como
no ser devorado. E a natureza, pragmtica, tende a selecionar tudo o que funciona.
Outro motivo para a perpetuao da mentira que ela contribuiu para o sucesso
reprodutivo dos cascateiros. Nesse caso, para se tornar um bem-sucedido reprodutor da
espcie, o indivduo precisa ser sedutor o bastante para despertar desejo em membros do
sexo oposto ou intimidador o suficiente para afugentar os do mesmo sexo.
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Como as caractersticas que asseguram a sobrevivncia de uma espcie e

favorecem sua reproduo tm maior probabilidade de ser transmitidas de uma gerao
para a outra, chegamos aos nossos dias como totais mentirosos. "Como primatas
inteligentes que somos, nossos antepassados desenvolveram um alto grau de
inteligncia social. Para obter sucesso e deixar descendentes, a capacidade de
administrar complexas relaes humanas tornou-se imprescindvel em sociedade",
complementa Smith.
verdade que, de todos os seres vivos, nenhuma mente to bem e com tanta
desenvoltura quanto os humanos. O homem mente tanto, mas tanto, que, segundo
Smith, "no teria sido inadequado cham-lo de Homo fallax (Homem enganador) em
vez de Homo sapiens (Homem sbio)". Mentir um fenmeno to natural para o ser
humano - e para qualquer outra coisa viva - quanto se locomover, comer ou se
reproduzir.
Como um animal mente? De vrios jeitos. O mais conhecido o do
camaleo, que muda de cor conforme seu entorno. Muito tempo atrs, ele era apenas um
entre vrios "pr-camalees". S que acabavam sendo devorados por seus predadores. E
qual sobreviveu? Aquele que fosse capaz de disfarar-se de tal modo que simplesmente
desaparecia das vistas de seus algozes. A essa capacidade de adaptar-se aparncia do
ambiente os zologos do o nome de mimetismo.
O naturalista ingls Henry W. Bates (1825-1892) foi o primeiro a estudar
estratgias de engano em animais. Ele observou o comportamento das borboletas no
vale do rio Amazonas. Para fugir das investidas dos pssaros, as gorduchas borboletas
da famlia Pieridae passaram a voar com as da famlia Heliconiinae, que tm um sabor
bem menos agradvel ao paladar das aves. Essa engenhosa tcnica tambm usada por
vermes, moluscos, insetos, aranhas, peixes, anfbios e at mamferos.
Entre os primatas, o homem no o nico a levantar falso testemunho. A
americana Koko exemplo disso. Em 1972, a ento beb gorila comeou a aprender a
linguagem dos surdos-mudos com a psicloga Francine "Penny" Patterson, da
Universidade Stanford. Passados quase 40 anos, o mais famoso representante smio da
comunidade cientfica j domina mais de mil sinais e compreende cerca de 2 mil
palavras em ingls.
Entre outras proezas, Koko consegue diferenciar passado, presente e futuro.
Alm de saber discutir e brincar - e, ainda, mentir. Certa vez, aps quebrar seu
brinquedo favorito, um gatinho de plstico, Koko no titubeou em pr a culpa em um
dos assistentes de Penny a fim de escapar da punio. Em outra ocasio, enquanto
mastigava um giz de cera vermelho, Koko foi indagada pela pesquisadora se estava com
fome. Com medo de levar uma bronca, limitou-se a responder, por meio de sinais:
"Lbio". E, em seguida, comeou a passar o giz pelos lbios, como se fosse um batom.
A exemplo de Francine Patterson, o primatlogo Frans de Waal, da
Universidade Emory, em Atlanta, passou anos de sua vida dedicado ao estudo do
comportamento de alguns primatas no zoolgico de Arnhem, na Holanda. Autor de Eu,
Primata - Porque Somos como Somos, Frans de Waal testemunhou o caso de
chimpanzs e orangotangos que tentavam atrair humanos para a rea prxima de suas
jaulas agitando um pedao de palha com uma expresso para l de amigvel. Quando os
incautos visitantes se rendiam aos apelos dos aparentemente pacatos moradores do
zoolgico, corriam o risco de ter os tornozelos mordidos pelos animais.
"Os animais que no so pr-programados pelo mimetismo se viram com o
puro engodo. Alguns pssaros, por exemplo, emitem alarmes falsos quando encontram
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comida [como o sinal de que um predador est por perto]. Assim, afugentam outros
pssaros, que ficam com medo de se aproximar, e conseguem se alimentar sozinhos",
afirma Frans de Waal.

Inteligncia maquiavlica

Nenhuma ordem de seres vivos capaz de manipular seus semelhantes com

tanta astcia quanto os primatas (humanos inclusos, claro). Em 1987, os primatlogos
Richard Byrne e Andrew Whiten, da Universidade de St. Andrews, Esccia, cunharam o
termo "inteligncia maquiavlica" aps estudar os hbitos manipuladores de babunos
negros, que vivem no sul da frica. Algumas das histrias relatadas por Byrne no livro
The Thinking Ape ("O macaco pensante", sem traduo para o portugus) so quase
anedticas.
o caso de um jovem babuno que, perseguido implacavelmente por sua
me aps praticar uma travessura qualquer, para de repente e, com uma vigarice
surpreendente, lana um olhar preocupado na direo do horizonte, como se estivesse
prenunciando o ataque de um inimigo. Na mesma hora, a me do babuno interrompe a
perseguio e, com medo de sofrer uma emboscada, foge em debandada, rumo a um
esconderijo. Outro babuno observa, furtivamente, o esforo de uma fmea de sua
espcie para arrancar da terra seca uma suculenta raiz. Ao ver que, pouco depois, a
fmea conseguira arrancar do solo seu prmio, o babuno solta um grito estridente,
como se estivesse sendo atacado. Assustada, a me do babuno aparece em seguida e,
julgando que o filhote estivesse levando a pior, pe a fmea para correr. O trapaceiro,
ento, se aproveita da situao para saborear, sozinho, a iguaria.
"O ato de mentir consiste em ler a mente dos outros e tentar manipul-la.
como se voc tivesse que entender as motivaes do outro e usar esse entendimento em
seu benefcio. Para algumas pessoas, a habilidade de prever o comportamento dos
outros unicamente humana. Mas pesquisas recentes afirmam que chimpanzs, gorilas,
orangotangos e bonobos tambm so capazes disso. A habilidade que algumas espcies
tm de adivinhar o que o outro busca e de antecipar suas reaes favorece o engodo, a
mentira e a dissimulao", afirma Byrne.

Sem parar

Na maioria das vezes, os animais s lanam mo de subterfgios enganosos

quando se encontram em situao de perigo e disputa por comida ou parceiro sexual. J
o homem mente o tempo todo, porque fcil e funciona. Isso no quer dizer que no
seja perigoso mentir.
Se fulano mente e beltrano acredita em sua mentira, fulano ganha e beltrano
perde. Mas, se fulano mente e beltrano detecta essa mentira, a chance de fulano
continuar obtendo vantagens por meio de suas mentiras cai drasticamente. E se beltrano
resolve alertar sicrano sobre a desonestidade de fulano? "Mentir pode ser arriscado
porque ningum gosta de ser enganado. Por causa disso, nossa tendncia sempre de
punir quem mente para ns. Se algum flagrado contando uma mentira, sua reputao
manchada e ele pode estar irremediavelmente arruinado", diz Smith.
No caso dos nossos ancestrais homindeos, a mentira podia significar, na
melhor das hipteses, banimento da vida social. Na pior, a morte. Sozinho e
desprotegido, o trapaceiro estaria mais vulnervel ao de predadores e de impiedosos
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grupos rivais. Nos dias de hoje, as punies so outras, s que tambm levam ao
isolamento. Mas existe uma forma para enganar melhor os outros. como afirma o
bilogo Robert Trivers, da Universidade Estadual de Nova Jersey - "Algumas pessoas
s conseguem mentir bem para os outros porque, em primeiro lugar, conseguem mentir
bem para si mesmas. O autoengano pode at no ser essencial para transformar
algum em um exmio mentiroso, mas, sem dvida alguma, pode ser bastante til."

Mentirosos por natureza

A orqudea Orphys speculum, presente no sul da Europa e no norte da

frica, produz pequenas flores sem nctar para atrair polinizadores em potencial. Para
seduzir os incautos machos, as orqudeas tm em suas flores uma mancha violeta que se
parece com os reflexos das asas semicruzadas de uma fmea em repouso. Alm disso,
um longo tufo de pelos vermelhos simula aqueles encontrados no abdmen do inseto e
as ptalas superiores imitam suas antenas. Para completar a farsa, ainda liberam um
forte aroma que simula os feromnios das vespas fmeas.

O Buteo albonotatus (gavio-de-rabo-barrado) tem o hbito de camuflar-se

em meio a bandos de urubus-de-cabea-vermelha quando est procura de comida.
Como os urubus se alimentam de carnia, as presas em potencial do gavio (em geral,
aves e mamferos) no se sentem ameaadas quando a revoada se aproxima. Mas basta
as aves chegarem perto da presa para que o gavio abandone seu disfarce e, mais que
depressa, faa sua investida fatal.

s vezes, uma criatura incua tende a imitar o hbito de outra repelente

para escapar de inimigos naturais. Foi o que aconteceu com as borboletas da famlia
Pieridae - uma fina iguaria para os pssaros. Para fugir das investidas das aves, as
borboletas da famlia Pieridae passaram voar com as da famlia Heliconiinae, que tm
um sabor detestvel.

O pequeno lagarto Heliobolus lugubris nativo do deserto de Kalahari, na

frica. Para no ser importunado por predadores, ele imita, quando filhote, a aparncia
do besouro oogpister ("mija-olho", em africner), que tem um jato de substncias
txicas contra predadores. Os lagartinhos, porm, no mimetizam apenas a cor e o
tamanho do besouro. Eles imitam at seu jeito duro de andar.

Um timo exemplo de "lobo em pele de cordeiro" a tartaruga da espcie

Macrochelys temmincki. Ela passa os dias no fundo de um riacho, com a boca aberta
voltada para a superfcie. A parte interna da boca cinza, mas, no fundo, h uma parte
roscea que imita a aparncia de um verme. Qualquer peixe tolo o bastante para
abocanh-lo corre o risco de virar almoo.

Quando smios descobrem comida, normalmente emitem um alerta para

outros da mesma espcie, que logo aparecem para dividir a refeio. Mas h indivduos
da espcie Rhesus (Macaca mulatta) que agem diferente: em vez de chamar os outros,
comeam a vascular o ambiente ao seu redor. Depois de se certificar que no esto
sendo observados, devoram a comida - sozinhos.
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Quando abordada por um inimigo, a cobra da espcie Heterodon

platyrhinos comea a estrebuchar, como se estivesse agonizando - com direito a boca
aberta e lngua para fora. Para completar a encenao, ainda exala de sua cloaca um
cheiro repugnante.

Saiba mais

Por Que Mentimos? - Os Fundamentos Biolgicos e Psicolgicos da

Mentira David Livingstone Smith, Campus, 2005