Inclusão Étnica e Racial PDF
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Braslia
2005
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USP, UFPR, UFRGS, depois da UFRJ, depois da UnB. Assim, a mesma rede branca
original simplesmente se duplicou e se expandiu geometricamente. No momento
presente, ns temos em mdia 0,5% de professores negros nas universidades pblicas
brasileiras. Em algumas, isso chega a um escndalo como o da USP que de 0,2%. De
4700 professores, ns no contamos 10 professores negros em toda a USP. A
Universidade de So Carlos tem 670 professores e tem 3 professores negros, isso chega
tambm a 0,2 %. A UnB tem 1500 professores tem 15 professores negros, 1%. A
maioria chega a 1% como teto. a mesma porcentagem de diplomatas negros: dos 1000
diplomatas do Itamaraty, apenas uns 10 so negros. Esta a porcentagem da presena
negra na elite brasileira.
Penso que os argumentos em favor das aes afirmativas se esclarecem mais se
ns vemos o topo da pirmide escolar e no apenas a sua base. Ns estamos lutando
primeiro para a incluso no vestibular, mas preciso compreender que o controle
acadmico, o controle da cincia, o controle do ensino superior por parte da etnia branca
de 99% e por muito tempo ainda permanecer deste modo inquo. Acredito que essa
situao, moralmente escandalosa deveria motivar-nos e inspirar-nos quando
comeamos a pensar o que significa propor cotas, se elas devem seguir apenas o recorte
de baixa renda ou se deve ser para egressos da escola pblica. Tudo isso depende de
como nos vemos e nos compreendemos, de quanto tempo achamos que ser necessrio
para que o Brasil se apresente como um pas integrado racial e etnicamente.
Posso ilustrar essa excluso com uma pequena simulao, a partir de uma
pesquisa amostral da composio racial dos docentes da Universidade de So Paulo. A
USP demorou 20 anos para passar de 0,1% a 0,2% de professores negros. Se
continuarmos nesse ritmo to lento de absoro, vamos precisar de 160 anos para que a
USP chegue a ter 1% de professores negros. Isso, partindo de uma hiptese positiva de
uma incluso crescente porque, se piorar, no alcanaremos 1% de professores nem nos
prximos trs sculos. preciso ter a conscincia desse passivo numrico na cabea na
hora de projetarmos uma imagem de nao multi-racial para o Brasil.
Podemos, ento, fazer essa comparao com o Brasil, porque evidente que este
um assunto extremamente grave e doloroso e difcil de lidar, quando o discutimos
apenas entre ns, brancos acadmicos, que a situao mais comum que vivenciamos
dada a segregao racial j naturalizada em nosso meio. Mudanas dramticas j
ocorreram h dcadas passadas em outros pases, quando outras sociedades racistas
compreenderam que no era mais tolervel continuar com seus padres histricos de
racismo e decidiram mudar seus projetos de nao. So alguns exemplos clssicos
gostaria de mencionar rapidamente. Primeiro, a ndia em 1949. Quando a ndia deixou
de ser uma colnia britnica, (e ns tambm estamos vivendo um momento histrico-
poltico que poderamos chamar de um momento ps-colonial) e se transformou em
uma nao independente, foram abertas cotas para os dalits, ou shudras, tambm
conhecidos como os intocveis, que conformam o grande conjunto de sub-castas dos
que no tinham nenhum acesso educao. Foram estipuladas cotas para os dalits em
todas as faixas do sistema educativo e do funcionalismo pblico. Atualmente, aps mais
de 50 anos, a ndia ainda est no processo de integrao dos dalits na vida social, porm
evidente que a situao de incluso est muito mais avanado agora do que no seu
incio.
O segundo exemplo a Malsia, pas onde as aes afirmativas funcionaram
muito bem at agora. Em 1968, por uma deciso de Estado parecida com a deciso da
ndia, o Executivo iniciou um plano de reparaes para os bhumiputras (o grupo tnico
malaio original) que estavam totalmente fora das universidades e do mercado de
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trabalho. Eles, que estavam prximos desse 1% de que falvamos da comunidade negra
no Brasil, passaram a ter uma porcentagem de cotas de 30% de todos os concursos para
funcionrios pblicos, nas vagas para estudantes e professores, em todos os cargos
acadmicos. Trinta anos aps esse projeto de polticas pblicas de incluso atravs de
aes afirmativas, os bhumiputra j esto praticamente integrados. Ou seja, o perfil
tnico e racial da Malsia dramaticamente diferente do que era h trinta anos atrs,
onde chineses e indianos (as duas etnias dominantes, equivalentes ao papel dominante
dos brancos no Brasil) eram praticamente donos de tudo. Ento, ns estamos falando de
pases onde havia um grande contingente populacional etnicamente marcado cujo
direito de acesso cidadania havia sido historicamente negado.
Quero fixar um pouco mais esses dois exemplos, porque o exemplo maior que
ns temos sempre dos Estados Unidos, e os Estados Unidos tambm passaram por
uma dramtica transformao na sua cidadania do ponto de vista racial. Pensemos no
que era os EUA em 1964, com a excluso brutal do negros e vejamos hoje nos jornais
de todos os pases a foto de Condoleezza Rice como o segundo personagem mais
poderoso do pas e um dos personagens mais poderosos do planeta. Ela conseqncia
das aes afirmativas norte-americanas, mas preciso lembrar que nos EUA a
populao negra naquele momento do auge dos movimentos civis representava apenas
9% do total. Por isso, essa situao um pouco diferente da situao brasileira. Ou seja,
houve uma transformao drstica que conta uma saga da incluso racial dos negros nos
EUA, narrativa evidentemente muito importante e muito digna, e uma saga da
incluso de apenas 9% da populao nacional. Se lembrarmos que no Brasil estamos
falando de 45% da populao, o Brasil se parece mais com os pases que tinham duas
etnias dominantes demograficamente e uma etnia controlava todos os bens, todos os
recursos e o acesso irrestrito aos cargos de importncia em 98% de todos eles, que a
porcentagem dos estudantes nas nossas universidades pblicas. No d para comparar
sequer com os EUA nesse ponto, porque no se trata de uma soluo para uma minoria:
trata-se de superar a excluso sistemtica de quase metade da populao nacional.
Considero importante frisar que no se trata de um raciocnio para propor aes
afirmativas para uma minoria; uma outra idia de nao que aparece. Ento, se a
porcentagem dos negros na regio de Novo Hamburgo de 10%, ou no Rio Grande do
Sul como um todo de 17%, fica claro que a presena atual da populao negra nas
universidades gachas est abaixo de 5%.
Se houve uma insero dramtica dos negros no ensino superior com 9% nos
EUA, ento, temos ento que fazer essa insero dramtica com os 17% daqui do Rio
Grande do Sul, porcentagem ainda menor que em outros lugares do Brasil como
Maranho, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e o Rio de Janeiro, onde as porcentagens
da populao negra nos estados vo de 50% at quase 80%. Insistamos no ponto central:
totalmente possvel compreender a necessidade urgente dessa transformao, bastando
que aceitemos os dados oficiais do IPEA sobre a excluso racial e tnica e os
consideremos como moralmente inaceitveis.
Outro ponto que precisa ser tomado em conta o carter generalizado, sob o
ponto de vista geogrfico, da excluso racial no Brasil. Em outros pases da Dispora
africana nas Amricas, os grupos tnicos excludos formaram sub-regies nacionais. Tal
o caso da comunidade negra na Venezuela, concentrada na regio de Barlovento e da
comunidade negra na Colmbia, concentrada na regio do Choc. Nesses pases, apesar
do racismo e da segregao racial, pelo menos algumas regies concentram a
desigualdade racial, o que torna mais fcil expor o problema e mais difcil para a elite
branca dominante fazer de conta que ele no existe. J no caso do Brasil, nossos ndices
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professor, ele dever ter preferncia entre os candidatos aprovados. Na mesma linha de
argumentao, j formulei uma proposta de aes afirmativas para a ps-graduao.
Precisamos de cotas na graduao porque o vestibular generaliza a competio pelo
acesso. Por outro lado, a ps-graduao no universalista: ela temtica e baseia-se
sempre em um conjunto de interesses. Assim, muitas vezes um estudante com mais
capacidade no entra na ps-graduao porque no encontra o tema que queria estudar.
Digamos que o programa de ps-graduao que escolheu no oferece o tema de seu
interesse, enquanto um candidato menos preparado consegue entrar porque encontrou
um tema adequado e um professor que aceita orient-lo. A ps-graduao totalmente
seccionada por interesses.
Raciocinar nos termos da ps-graduao torna-se mais complexo, o que implica
uma vontade maior. Somos obrigados a colocar o interesse de integrao racial como
mais um interesse constitutivo de todos os programas de ps-graduao do pas. A
mesma coisa deveria valer com respeito aos concursos de professores: onde houver um
candidato negro com o perfil para uma determinada vaga oferecida, ele ter a
preferncia entre todos os aprovados. Diferente do sistema de cotas, que se baseia em
porcentagens fixas e previstas, no sistema de preferncia no se pode tabelar de antemo
quantas vagas sero reservadas.
A mesma idia de preferncia deveria ser usada em relao carreira de
pesquisa do CNPq. Dos oito mil pesquisadores do CNPq, o nmero de pesquisadores
negros irrisrio, no passa de 0,1%. Essa ao afirmativa necessria porque as redes
da pesquisa esto estabelecidas e muito difcil furar essa rede autonomamente, ou
individualmente. A tendncia a rede se auto-reproduzir com os professores colocando
seus orientandos nos novos cargos a ser preenchidos. Como os pesquisadores negros
no foram includos no momento de formao da rede nacional de pesquisadores; e
como no foi possvel formar uma rede paralela de pesquisadores negros, os jovens
candidatos carreira esto sendo barrados nas suas tentativas de entrar no sistema.
Somente uma ao integrada entre CNPq, CAPES e SESU poderia equacionar a
necessidade de uma mudana urgente nas regras de ingresso ps-graduao,
docncia superior e carreira de pesquisador.
O grave quadro de excluso aqui descrito aponta para a necessidade e a urgncia
de um esforo de incluso racial que no pode se limitar apenas s universidades
pblicas, porque, por mais que lutemos por mais vagas, no ser de um dia para o outro
que poderemos quintuplicar o nmero de vagas no vestibular, na ps-graduao e na
docncia. E sabemos, responsavelmente, que no contamos com uma reserva de meio
milho de professores qualificados. Fica, claro, portanto, que esse esforo corresponde a
todas as universidades - pblicas, privadas, comunitrias e pblicas no estatais. Ou
seja, se se trata de empreender uma reviso radical da imagem e da reconstruo da
nao brasileira, temos que abrir as portas para os ndios e os negros para que possam
entrar em todo o sistema de ensino superior, seja privado, pblico estatal e no estatal e
comunitrio, cada qual segundo suas possibilidades e respeitando o seu modo prprio de
realizar a incluso.
Temos que mentalizar essas tarefas em termos de dcadas e no de anos. Se
restringirmos a luta apenas s universidades pblicas, as dcadas de espera se
transformaro em sculos e seria at absurdo raciocinar nesses termos. Para que os
professores e estudantes da FEEVALE tenham uma idia do nosso passivo de incluso,
a frica do Sul j era mais integrada que o Brasil mesmo nos dias do apartheid. E hoje
em dia, qualquer universidade da frica do Sul tem mais professores negros, mais
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de fechar portas para os negros, quase cem anos aps o abandono que sofreram em
1888.
Da era Sarney aos dias de hoje muitos dos cargos que antes eram do Estado
foram terceirizados, o que gerou outro problema tambm: ficou mais difcil para os
negros entrar nos postos mais importantes, basicamente porque se tornaram mais
escassos. preciso fazer a radiografia do mercado de trabalho neste momento e ver
como podemos combinar essa anlise com as propostas de aes afirmativas. Seria
importante refazer a prpria idia de chefia, que no deveria mais ser nem discricionria
nem personalizada. Talvez, por muito tempo ela no possa mais ser de confiana, como
na Malsia, nos EUA e na frica do Sul ela deixou de ser discricionria. Em todos esses
pases, a igualdade racial nas chefias tornou-se compulsria, como corresponde a um
assunto de interesse de um Estado que se comprometeu a intervir na desigualdade tnica
e racial historicamente construda. No podemos mais escolher somente na base da
confiana, temos que estabelecer metas e polticas de igualdade. Podemos comear com
as metas e polticas de igualdade tnica e racial no meio no qual atuamos, o meio
acadmico. Muito obrigado.
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
Eis algumas referncias bibliogrficas bsicas sobre o tema das aes afirmativas no
Brasil atual.
CARVALHO, Jos Jorge Incluso tnica e Racial no Brasil. A Questo das Cotas no
Ensino Superior. So Paulo: Attar Editorial, 2005.
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Acesso e Permanncia de Jovens Negros na Universidade . Belo Horizonte:
Autntica, 2004.
QUEIROZ, Delcele Mascarenhas (org.). O Negro na Universidade Brasileira. Salvador:
A Cor da Bahia, 2003.
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Pblicas contra as Desigualdades Sociais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonalves e SILVRIO, Valter Roberto (Orgs.) Educao e
Aes Afirmativas: Entre a Justia simblica e a injustia econmica. Braslia:
INEP, 2003.