Caça As Bruxas - Silvia Federic
Caça As Bruxas - Silvia Federic
Caça As Bruxas - Silvia Federic
de Leituras
n.63 Caa s bru-
xas, passado
e presente e o
medo do poder
das mulheres
1 [Nota da Editora] Este texto,
com o ttulo Witch-Hunting,
Past and Present, and the Fear
of the Power of Women, foi pu-
blicado em 100 Notes 100
Thoughts / 100 Notizien 100
Gedanken. N096. dOCUMEN-
TA (13) HATJE CANTZ VERLAG,
Ostfildern (Germany), 2012. Pu-
blic-lo nesta coleo foi ideia
de rica Zngano, a quem agra-
Traduo de Catarina Barros
Reviso de Miguel Manso
Silvia Federici 1
2 Ela est sozinha ao entardecer, num espao vazio, segurando nas mos uma meada de fio azul
que serpenteia em seu redor, envolvendo um casario que quase parece a continuao do seu
corpo. Trazando el camino (1990) um dos muitos quadros que Rodolfo Morales, um dos mais
importantes artistas mexicanos do sculo XX, dedicou ao tema do corpo feminino enquanto
tecido material e social que mantm a comunidade unida. A pintura de Morales o contraponto
da imagem da bruxa: com o seu olhar silencioso e o seu avental bordado, a mulher que repre-
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do poder das mulheres Silvia Federici
senta quase angelical. No entanto, algo de mgico e dissimulado nela faz lembrar a conspira-
o feminina que foi a justificao histrica para a caa s bruxas que manchou de sangue a
Europa do sculo XV ao sculo XVIII, fornecendo talvez uma pista para alguns dos mistrios que
esto no centro desta perseguio ainda no resolvida pelos historiadores.
Porque que esta caa era principalmente dirigida s mulheres? Como se explica o facto de,
ao longo de trs sculos, milhares de mulheres na Europa se terem tornado a personificao
do inimigo entre ns e do mal absoluto? E como se concilia o retrato todo-poderoso, qua-
se mtico, que inquisidores e demonlogos pintaram das suas vtimas como criaturas do
inferno, terroristas, devoradoras de homens, servas do diabo que atravessavam os cus des-
governadas nas suas vassouras com a figura indefesa das mulheres concretas que foram
acusadas destes crimes e depois horrivelmente torturadas e queimadas na fogueira?
Uma resposta comum a de que a perseguio s bruxas advm das mudanas causadas
pelo desenvolvimento do capitalismo, em particular da desintegrao das formas comunit-
rias de agricultura que haviam prevalecido na Europa feudal e do empobrecimento desenca-
deado pelo crescimento da economia monetria e pela expropriao das terras entre vastos
sectores da populao. De acordo com esta teoria, por serem as mais fragilizadas com as
mudanas, eram as mulheres as mais propensas a tornarem-se vtimas, sobretudo as mais
velhas, que constituam o maior nmero de acusadas. Por outras palavras, as mulheres fo-
ram acusadas de bruxaria porque a restruturao da Europa rural no alvorecer do capita-
lismo destruiu os seus meios de sustento e o seu poder social, deixando-as sem recursos,
dependentes da caridade dos que estavam em melhor situao, num tempo em que os laos
comunitrios se estavam a desintegrar e em que uma nova moral comeava a impor-se, cri-
minalizando peditrios e caridade, a assistncia social do mundo medieval.
Esta teoria faz todo o sentido e validada por provas empricas slidas. H certamente uma
relao directa entre a caa s bruxas e os processos de anexao (privatizao da terra),
como se demonstra pela caracterizao social das acusadas, pela natureza das acusaes
e pela descrio da bruxa como uma mulher pobre, velha, vivendo sozinha, dependente de
donativos de vizinhos, amargurada com a sua marginalizao, muitas vezes violenta com
quem se recusasse a ajud-la e que era acusada de ser ela mesma a responsvel pelos seus
infortnios. Esta imagem, no entanto, enganadora. No explica como que criaturas to
miserveis poderiam instigar tanto medo. Ignora tambm o facto de que muitas entre as con-
denadas no encaixavam neste padro, sendo muitas vezes mulheres que tinham alcanado
um certo poder na comunidade exercendo prticas mgicas como cura, adivinhao e pre-
parao de poes amorosas, ou parteiras.
Ser que as bruxas representavam uma ameaa invisvel, apenas real aos olhos dos que
colaboraram no seu extermnio? Responder a esta questo requer que se desmistifique a
ideologia fantasiosa por detrs da caa s bruxas e que se deduza, a partir das consequn-
cias da perseguio, qual o seu real alvo. Requer tambm que repensemos o processo que
levou ao desenvolvimento do capitalismo, de maneira a darmos conta da profundidade dos
conflitos sociais que foram premissa da destruio das relaes sociais e de gnero que ca-
racterizavam o mundo medieval.
O capitalismo foi a resposta aos conflitos da elite feudal a igreja, os proprietrios das
terras e os comerciantes em reaco luta do proletariado rural e urbano que, por volta
do sculo XIV, comeou a pr em causa o seu domnio. Foi uma contra-revoluo que
no apenas dizimou as novas reivindicaes de liberdade, como tambm virou o mundo
ao contrrio, criando um novo sistema de produo baseado em concepes do trabalho,
riqueza e valor completamente diferentes. Enquanto sistema que tem na indstria a prin-
cipal fonte de acumulao de riqueza, o capitalismo no teria lugar sem levar a cabo uma
batalha histrica contra tudo o que limitasse a completa explorao do trabalhador, a co-
mear pela rede de relaes que uniam os indivduos ao mundo natural, s outras pessoas
e aos seus prprios corpos. Uma condio prvia para o desenvolvimento do capitalismo
3 foi a destruio da concepo mgica do corpo que prevalecia na Idade Mdia, que lhe atri-
bua poderes que a classe capitalista no poderia explorar e que pareciam incompatveis
com a transformao do trabalhador numa mquina de trabalho. Tratava-se do poder de
voar, adivinhar o futuro, adquirir formas animais, regressar do tmulo para exercer vingan-
as e, acima de tudo, controlar os elementos da natureza.
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do poder das mulheres Silvia Federici
neste contexto que o ataque s mulheres deveria ser situado. Devido sua relao nica
com o processo reprodutivo, em muitas das sociedades pr-capitalistas as mulheres eram
consideradas particulares conhecedoras dos segredos da natureza que lhes permitiriam ge-
rar a vida e a morte e descobrir as propriedades secretas das coisas. Praticar magia (como
curandeiras, praticantes de medicina tradicional, ervanrias, parteiras, criadoras de poes
de amor) tambm era para muitas mulheres uma forma de emprego e, sem dvida, uma for-
ma de poder, embora isso as deixasse expostas vingana quando os seus remdios falha-
vam. Esta uma das razes pelas quais as mulheres se tornaram o primeiro alvo da tentativa
capitalista de criar uma concepo mecanizada do mundo. A racionalizao do mundo na-
tural condio prvia para uma disciplina de trabalho mais organizada e para a revoluo
cientfica passou pela destruio da bruxa. At mesmo as torturas indescritveis s quais as
acusadas foram sujeitas adquirem um significado diferente quando entendidas como formas
de exorcismo contra os seus poderes.
Neste contexto, devemos tambm interpretar a descrio da sexualidade das mulheres to
central definio de bruxaria como algo diablico ou a quintessncia da magia femini-
na. Tambm aqui podemos questionar a interpretao clssica deste fenmeno que atribui a
obsesso sexual dos inquisidores lascvia e sadismo resultantes do ascetismo cristo. No
h dvida que o legado do cristianismo e que a participao eclesistica na caa s bruxas
foi fundamental para a construo da sua estrutura ideolgica e jurdica. Mas no podemos
perder de vista o que a sexualidade feminina representava para a nova elite capitalista no m-
bito do seu projecto de reforma social e de instituio de uma disciplina de trabalho estrita.
Tal como os padres da igreja que, de Tertuliano a Heinrich Kramer e James Sprenger au-
tores Dominicanos do Malleus Maleficarum (1486)2 , no desperdiaram nenhuma ocasio
para dar livre curso ao dio que nutriam pelas mulheres, a recm-nascida classe capitalista
precisava de controlar a sexualidade e o prazer. Eros, a atraco sexual, foi sempre suspeita
aos olhos de tiranos e de elites polticas, como uma fora incontrolvel que cria laos que
nem a morte pode dissolver. A perspectiva de Plato acerca da origem e efeitos do amor no
Banquete d uma dimenso ontolgica a esta viso. O amor o grande mgico, o demnio
que une a terra e o cu e que torna os humanos to corajosos, seres to inteiros e redondos
que, assim que se unem, no podem ser derrotados. No sculo IV, quando os Padres da Igre-
ja foram para o deserto africano para fugir corrupo da vida urbana e provavelmente da
seduo de Eros depressa tiveram de reconhecer o seu poder, sendo atormentados por um
desejo apenas concebvel como vindo do diabo. Desde ento, proteger a coeso da Igreja en-
quanto cl masculino patriarcal e evitar que a propriedade acumulada se dissipasse devido
fraqueza do clero perante o poder feminino levaram a que a Igreja retratasse o sexo feminino
como um instrumento do diabo: quanto mais agradvel vista mais mortal para a alma. Este
o leitmotiv de toda a demonologia, comeando desde logo no Malleus Maleficarum, possi-
velmente o texto mais misgino alguma vez escrito.
No que concerne negao crist da sexualidade feminina e dia-
2. Kramer e Sprenger foram inquisidores bolizao do corpo da mulher, as normas culturais sexuais institudas
no sul da Alemanha. O seu livro Malleus pela classe burguesa/capitalista tm sido consideradas um ponto de
Maleficarum (Martelo das Bruxas) foi uma viragem, sendo aparentemente inspiradas por preocupaes mais
das primeiras e mais influentes demono- utilitrias. Assim, a reintegrao protestante do sexo na vida matri-
logias, reimpressa variadssimas vezes ao monial enquanto remdio para a concupiscncia e o reconhecimen-
longo de 200 anos. Como Joseph Klaits in- to do legtimo papel das mulheres na comunidade enquanto esposas
dica, entre 1481 e 1486, Kramer e Sprenger e mes tm frequentemente sido descritos como um corte com o
presidiram a mais de cinquenta execues passado. Mas, na realidade, o que o capitalismo reintegrou no reino do
por bruxaria na diocese de Constana. comportamento feminino socialmente aceitvel foi uma sexualidade
Klaits, Servants of Satan: The Age of the submissa, domesticada, instrumental para a reproduo e pacifica-
Witch Hunts. Bloomington: Indiana Univer- o da fora de trabalho. No capitalismo o sexo s pode existir en-
sity Press, 1985, p.44. quanto fora de produo ao servio da multiplicao de trabalhado-
4 res/assalariados homens, da expanso do mercado de trabalho e como meio de pacificao
social e de compensao pela misria da existncia quotidiana.
Fora destes parmetros, tambm para os capitalistas a sexualidade das mulheres tem repre-
sentado historicamente um perigo social: enquanto ameaa disciplina de trabalho, como
forma de poder sobre os outros e como obstculo conservao das hierarquias sociais e
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das relaes entre classes. Este era especialmente o caso no sculo XVI quando as estru-
turas que na sociedade feudal regulavam a conduta sexual e as transaces sexuais entre
homens e mulheres entraram em crise devido ao aparecimento de um novo fenmeno: mu-
lheres independentes a viverem sozinhas, muitas vezes trabalhando como prostitutas, quer
nas cidades, quer nas zonas rurais.
No de surpreender que a acusao de perverso sexual seja to central nos julgamentos
organizados pelas autoridades legais como pelos que foram iniciados e dirigidos pela Inquisi-
o. Tambm aqui, por detrs da mirabolante acusao de cpula com o diabo, encontramos
o medo de que as mulheres pudessem enfeitiar os homens com o seu charme, subjugan-
do-os e neles inspirando um desejo tal capaz de os fazer esquecer todas as obrigaes e
diferenas sociais. Foi esse o caso, de acordo com Guido Ruggiero, das cortess da Veneza
do sculo XVI que, tendo conseguido contrair matrimnio com homens da nobreza, foram
depois acusadas de serem bruxas.3
Isto explica a popularidade das demonologias do mito de Circes, a lendria encantadora que,
graas aos seus poderes mgicos, transformava os homens que a desejavam em animais; ex-
plica tambm as muitas especulaes sobre o poder que tm os olhos das mulheres, capazes
de influenciar os homens sem lhes tocar, apenas pela fora da atraco. Tambm o pacto
com o diabo de que as mulheres foram acusadas, e que costumava envolver troca monetria,
expressa uma preocupao a respeito da capacidade que as mulheres tinham de controlo
dos recursos financeiros dos homens, assim como revela uma preocupao com a gesto do
salrio masculino.
Assim, tudo se fez para descrever a sexualidade feminina como algo perigoso para os homens
e para humilhar as mulheres de modo a que reprimissem o desejo de usarem os seus corpos
para atrarem os homens. Nunca antes na Histria o corpo das mulheres havia sido sujeito a
um ataque to massivo, organizado internacionalmente, legalmente aprovado e abenoado
pela religio. Com as mais inconsistentes provas, de costume no mais que uma denncia,
centenas de milhares de mulheres foram presas, despidas, completamente depiladas e, de
seguida, picadas com longas agulhas por todo o corpo em busca da marca do diabo, muitas
vezes na presena de homens, desde os seus carrascos aos padres e notveis da regio. E
isto no era de todo o fim dos seus tormentos. As mais sdicas torturas alguma vez inven-
tadas pelo homem foram infligidas aos corpos das acusadas, providenciando o laboratrio
ideal para o desenvolvimento de uma cincia da dor e da tortura.
Como escrevi em Caliban and the Witch, a caa s bruxas instituiu um regime de terror para
todas as mulheres, a partir do qual surgiu o novo modelo de feminilidade a que tiveram de se
conformar, para serem aceites na sociedade capitalista que se estava a desenvolver: sem
sexo, obedientes, submissas, resignadas subordinao ao mundo masculino e aceitando
como natural o seu confinamento esfera das actividades reprodutivas que o capitalismo
tinha desvalorizado completamente.4
3. Ruggiero, Guido. Binding Passions: Tales As mulheres foram aterrorizadas com acusaes fantasiosas, tor-
of Magic, Marriage, and Power at the End of turas horrendas e execues pblicas porque o seu poder social
the Renaissance. Oxford: Oxford University tinha de ser destrudo um poder social que, aos olhos dos que as
Press, 1993. perseguiam, era obviamente significativo, at mesmo no caso das
mulheres mais velhas. Eram estas, alis, as portadoras da memria
4. Federici, Silvia. Caliban and the Witch: colectiva da comunidade. Como Robert Muchembled nos recorda,
Women, the Body, and Primitive Accumu- eram elas quem se lembrava das promessas feitas, da f trada, do
lation. New York: Autonomedia, 2004. tamanho das propriedades (sobretudo terras), dos acordos relati-
vos aos costumes e da responsabilidade de quem os violava.5 Como
5. Muchembled, Robert Muchembled. Cul- o fio azul em Trazando el Camino, a circulao das mulheres de
ture populaire et culture des lites dans la casa em casa veiculava histrias, segredos e conhecimento: unindo
France moderne. Paris: Flammarion, 1978. paixes, entrelaavam o passado e o presente.
5 Quanto s razes pelas quais os desafios impostos pelas mulheres s estruturas do poder ti-
veram que ser descritos como uma conspirao demonaca, trata-se de um fenmeno que se
vem repetindo at aos nossos dias. A caa s bruxas de McCarthy contra o Comunismo e a
actual guerra ao terror assentam na mesma dinmica. O exagero na descrio de crimes
de propores mticas para justificar castigos terrveis um modo eficaz de aterrorizar toda
uma sociedade, de evitar que se lhes retire importncia e de fazer com que as massas temam
Caa s bruxas, passado e presente e o medo
do poder das mulheres Silvia Federici
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