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O Romance de Amadis PDF

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'^^^Mmmm^Mm^

y/S^
jomante ^c
o ROMANCE
DE AMADIS
DO AUTOR
JOtb/A

PARA QUE ? (esg.J


NAUFRAGO esg.
( i

AUTO A SEKENTAtesg.i
O MEU ADhUS '.esg.)
O POETA SAUDADE (esg.)
O ENCOBER ro
AR LIVRi
O l'AO E AS ROSAS esg.)
(

MONLOGO DO VAQUEiRO (Gil Vceme*


CANCES DO VENTO E DO SOL esg.i (

ROSAS BRAVAS
POESAS DE HEiNE (lora do mercado)
SOBRE ASSCENAS INFANIIS. uh SCHUMANN K&?.>
ILHAS DE BRUMA
CANCES DE SAUDADE E AMOR (.Heder)
CANCIONEIUO DE COIMBRA
CRISFAL
O LIVKO DE AMOR DE JOO DE DEUS (compilaio)
PAIS LILAS, DES 1 HkO AZUL

PAJA OS TJQUENOS PORTUGUESES


ANIMMS NOSSOS AMIGOS
CAN O INFANTIL
I

BAKTOI OMEU MARINHEIRO


FERNO MENDES NO JAPO (com ilustraccs japone-
sas, a publicar)
PROSA
A CAMPANHA VICE\TINA
EM DEMANDA DO GKAAL
DA KEINTRGKAC DOS PRIMITIVOS PORTUGUE-
SES.
# romance ^e

comporto obre o*^wxb$ ic^aula


Reservados iodos os direitos de reprodu-
^3o em Portugal, conforme prccetuam as
:

disposices do Cdigo Civ Portugus ; nos


ermos do convenio de 9 de Setembro de
889 e lei n." 2.577 de 17 de Janeiro de 1912 ;
nos pases convencionados, enj harmona
cono a Conven^o de Beme, a que Portugal
adriu por decreto de 18 de Marco de 19 u.

l'iragem e cem exempiams en papel


de linko, dos quais sessena postos
no mercado, enea dentados por
Alexandrino. com ferros
especiis, numerados
e rubricados
pelo Autor.
'

fQ
/1AR14 1968 (ep-'^^

Compnsto e mpresso na IMPRENSA


f IBANIO DA SILVA, para a SOCIE-
DADE EDITORA PORTUGAL-
-BRASIL, L.DA_ LISBOA
DFJDJCQ4TO%I(2d
A ME PAl

DO POUCO QUE FIZ,


CREIO QUE ISTO O MELHOR :

EIS PORQUE O OFEREgO A QUEM,


POR SUA TERNURA,
DE LONGE PREPAROU
AS POSS1BII.1DADES DE EU O FAZER.
PREFACIO
o ROJVI'^^CE,V^oyela, Hi$t~
i^ajLxvro ou Conto^ escrito por
Atonso /I45pes Vieira, nobre arauto e
manter\epor do Lirismo da alma portu-
guesa*" e evocador das suas mais puras
manifestafes, nao e' inven^ao nova^ ior
dividual dle.
E a interpreta9o moderna, a sntesc
artstica de urna das grandes obras an-
que todos conhecemos,
tigs de fantasa
de nome fama pelo menos: o Amadis
e
de Gaula (nao da Franca^ mas de Gales^
Wales). Isto e: a narrafo das proezas e
aventuras do primeiro e modelar ca-
valtiro andante das na9es peninsulares

xin
que criaram o tipo. A narra9ao, sobre-
ludo, dos seus amores com Oriana^ a
Sem-Par, ora ora contrariados.
idilicos,

Derivado, h mais de seis sculos, de


lendas bretnicas, cantadas por trovei-
ros anglo-franceses, o Amadis chegara
a Portugal na mocidade deJ-rei D. Denis,
nacionalizado por um
meigo trovador
desta costa ocidental, o qual, impulsio-
nado acaso por atavismos clticos, talve/
j tivesse redigido outros Lais de Bre-
tanha^ tradiizindo c imitando Tristan
Langarote^ que em parte subsistcm
annimos, cni parte desapareceram.
O texto de fins do se'culo xiii c prin-
cipios do XIV, breve relativamente, em
prosa com certeza ingenua c hesitante,
oi quanto ao vocabulario e
retocado
sintaxe, ao cabo de um sculo e, por ;

haver agradado muito, seria ampliado


em harmona com os gstos cada vez
mais cavalheirescos e aventurciros dos
tempos das lancas em frica e com o
nobre idealismo da indita geracao.
Avolumado e reescrito pela terceira
vez antes de i roo, nos alvores da letra

XIV
:

de forma, em castclhaiio e no estilo so-


lene e ceremonitico do Renascimento,
o Amadisxol naturalmente impresso, nao
s urna vez mas numerosas vezcs durante
o sculo, e espalhado pelomundo roma-
no-germinico fora, tanto no origina!
como em tradu96cs, imita^es e conti-
nua^es, em que a progenie do heri
(netos at i quinta gerufao) realiza ta^a-
nhas cada vez mais maravilhosas.
A quarta redacfo a de agora-
pretende ser como que a recondu9ao do
texto,por duas vezes renovado, sua
forma primitiva, verdadeiramente portu-
guesa.
Devido ao traballio de um artista que
tambe'm um fillogo, os feitos de
Amadis o Namorado poderao ser lido.s
por todos quantos Portugueses se inte-
ressem pela parte que os seus maiore^
tiveram na literatura mundial.
Lidos como at hojc nao fora pos-
sivel
Na lingua dos Lustadas.
Em vernculo portugus.
Simples, potico, de graci(vsa e pal-

\\
pitante casticidadc, hbilmente tCM:ado de
leve ptina de idade, conquanto sem um
nico arcasmo.
De mais a mais numa redac9o trao
condensada e atraente que num serao
um bom ledor pode abranger o con-
junto.
De hoje em diante ; e, estranho como
parcha, pela pnmetra pe^.

A suposta redac^ao primitiva, do lempo


de D. Afonso ni e seu filho D. Denis,
nunca foi estampada. Nem se conser-
vou manuscrita.
A incuria dos letrados da na9o dei-
xou-a perder-se. Mal apontaram lac-
nicamente, de longe em longe, a exis-
tencia de um Amadis portugus ou em
portugus. Por is<;o conhecemo-Ia ape-
nas pela obra castelhana. Nesta, o Li-
vro 1, da Infancia e Mocidade do Doncel
do Aat'y e o Livro n, das suas primeiras
proezas e paixo secreta por Oriana, a
Sem-Par dissimulada, segundo a moda
trovadoresca, debaixo de homenagens

XVI
que ele brincando presta irmanzita
da
pnncesa -distinguem-se ambos to no-
tveimente, pela sua gra^a e
ingenuidade,
dos Livros iii e iv, que parece
justo atri-
bu-Ios aos iniciadores
portugueses,
depois de aliviados das roupagens
roza-
gantes em que foram envolvidos
crea
de i5oo.
Alm diss conhecemos, felizmente,
a redac*;o primeira de uma amostra
que sobrenada, inalterada, e a
parcela
mais autntica e amiga de toda a
Novela.
E o Luis que Amadis dedicou tal
pequea e gentil senhorinha.

Senhor gaita=^(senhora genilj

Leonor e a ^

fin roseta,
bda sobre toda fror^

cantiga que se conservou entre as mil e


setecentas do Canciufieiro Colocci-Bran-
culi e figura, traduzida para castelhano,
no Amadis comum.
Pela epgrafe sabemos, de mais a
mais, que o autor se chamava Lobeira.

XVJI
Joam Lobeira. Nome histrico de un
vassalo do Infante *Z). Q/lfonso de Por-
tugal^ irmo mais novo D. Denis,
del-rei
senhor, em de
Portugal,Portalegre e
Lourinh, e nico D. Afonso de Portu-
tugal, tanto da primeira como da se-
gunda dinasta, que durante toda a sua
vida teve positivamente o titulo nobi-
lirquico de Infante.
Por ambos os motivos indicados deve
ser o que fez a Joo Lobeira a curiosa exi-
gencia de alterar as rela96es afectuosas
de Amadis e Briolanja, conquanto desde
o Dr. Antonio Ferreira (ou seu filho
Miguel Leite Ferreira) seja costume
identific-lo com o primognito e suces-
sor de D. Denis D. Afonso iv, o Bravo
vencedor no Salado, e CRiel castiga-
dor de Ins de Castro, por sse ser o
mundialmente conhecido.

Da segunda elabora^o (do tempo de


D. Fernando e D. Joo i ltima me-
tade do seculo xiv) to pouco subsiste o
original. Nem traslado algum. Pelo

XVIII
mesmo motivo do pernicioso deslcix
nacional.
H todavia referencias em escritores
de 1400. Sobretudo urna do cronista
Gomes Eanes de Zurara que levou a
atribu la, j proluxa no estilo, a outro
Lobeira (por ventura descendente do
capaleiro Joo Lobeira), oriundo do
Porto, segundo uns, residente em Elvas,
segundo outros. Esse Lobeira, Vasco
Lobeira, foi armado cavaleiro antes da
batalha de Aljubarrota, talvez em cir-
cunstancias to essenciais como as do
velho escudeiro ^Macayidon.
Outras alusoes, casteihanas, fazm
supor que Vasco Lobeira tinha acres-
centado ao cAmadis um Lipro III, ime-
diatamente traduzido para os vizinhos o
saborearem.
A nao ser assim, se a redac^o pri-
mitiva nao tivesse constado de apenas
dois Livros, nao se comprcendia que um
Pero Ferruz acentuasse o haver lido a
Novela e/n/mLzVros, no seu^e^irao sa-
;az Basco, o Chanceler Pero Lpez do
Ayala (fal. em 1407), que anteriormente
confessara no seu Rimado de Palacio
hayer-se deliciado na mocidade com as
mentir as provadas de livros de depaneios
como Lancarote e oAmadis,

Apenas a tercera eIabora9o subsiste


por ser do tempo da letra de forma,
c, como ) disse, castelhana. E irapressa.
Muita vez.
Obra de Garci-Ordoe:{ de Montalvo^
JRe^edor da mui nobre vila de Medina
del CampOy o qual deu conta clara e
insuspeita da sua actividade como acres-
centador e renovador de um texto an-
tigo, viciado por maus escrevedores e
componedores.
A edi(;o mais antiga, da qual se sal-
vou apenas um exemplar (hoje no Museu
Britnico) de i5o8. E contudo qust
certo ter havido impresses mais anti-
gs (p. ex. uma de 1499).
O Prlogo manifesta-se, em referen-
cias aos Reis Catlicos e conquista de
Granada, como redigido entre 1492 e
1604. No texto h todavia bastantes

XX
passos relativos aos tempos calamitosos
c]ueprecederam o glorioso reinado.
Essc Amadis de Gaula^ em caslelhano^
claro que o comum, o geralmente co-
nhecido, o que foi lido c relido na Pe-
nnsula e fora dla durante o fecundo
seculo XVI. E o de que Afonso Lopes
Vieira se serviu para dle extrar a ma-
teria prima portuguesa.
Estampado mais de vinte vezes antes
de 1 588,* continuado at constar de doze
Livros, cada um com titulo e heri es-
pecifico ; imitado em outros ciclos de
Cavalaria; dramatizado em Portugal por
(il Vicente numa bela tragicomedia;
transposto em epopeia romntica na
trra de Ariosto ; traduzido para as prin-
cipis lnguas vivas, e mesmo para
aquela morta que praxc chamar sa-
grada (c. 1540, Livro I, em Constant-
nopla, pelo impressor hebraico Eleazar
Ben Gershom Soncino) sse Amadis fi-

cou sendo um dos Livros predilectos de


antasia, em cortes, palacios e
tanto
solares, como em casas burguesas, hos-
pedaras e celas de frades e freirs, lido

XJCI
;

e relido pelos reis, fidalgos, letrados, ar-


tistas e santos.
Gostavam dle e das continuafes,
Carlos V e Francisco
i, que instigou
Nicols Herberay, Seigneur des
de
Essarts, a torna- lo conhecido em Fran-
(fa; Santa Teresa e Incio de Loyola;

Diego de Mendoza e Simo da Silvcira


Montaigne, Ariosto, Torquato Tasso.
E realmente a obra de Montalvo nao
e' s grande em extenso (Qiiatro Li-
vros, a qiie o prprio acrescentou ainda
o Quinto, de EsplaTidian, 1 5 io); grande
tambm em valor espiritual e esttico.
De frtil inventiva, notvel eloqencia e
suficiente saber clssico, o '^egedor de-
lineou excelentes descri^es de batalhas,
combates individuis, vitrias, encanta-
mentos e coisas maravilhosas, que pecam
todaviapor serem demasiadas, assim co-
mo copiosas exemplificaes, admoesta-
9es e exclamafes moralizadoras, des-
tinadas a neutralizar os venenos que po-
diam escorrer dos casamentos clandes-
tinos, filhos expostos e amores levianos.
Fulminado por causa dessas pechas

XXIl
por telogos e filsofos como profans-
simo, lascivo, s-cnsual; como mentiroso
por verdadeiros historiadores como
;

corruptor de costumes por educadores,


o oAmadis foi, ainda assim, muitas mais
vezes enaltecido como Dotitrinal de Ca-
valeiros e T{oteiro de Principes. Nao
altam ancdotas sobre as lgrimas ver-
tidas morte de Amadis, por familias
inteiras, nem sobre golpes de espada
distribuidos na India pelos muitos que
julgavam reais as fa9anhas descritas na
Novela e queriam igual-las.

Sobretudo, foi o idealismo amoroso de


Amadis que impressionou os Quinhen-
tistas. Foi a admiravel combinaco que
h nle de urna audacia e herici-
dade a toda a prova, em perigos e
guerras, e, na paz, de mesura discreta,
suave melancola e sentimentalidadc
meiga, qualidades que estavam em con-
trasteaben^oado com a brbara rudeza
de costumes, documentada em numero-
sas faganhas registadas nos Livros de

xxri
Linhagens. Por isso nao acabam os lou-
vores a oAmadis o casto, oAmadis o lial,
OAmadis o bcm amador!
Em Portugal acarinharam-no como
cousa prpria. Em Espanha creio que
influiu poderosamente na constitu^o do
Portugus Namoradoy aqule que de
amor se mantm; gabado, mas tam-
bm s vezes ridicularizado em epigra-
mas, como choro em demasa, e de
devo^o quimrica ou mesmo idoltrica
pela Mulher! No estrangeiro estima-
vam em especial o influxo benfico que
o exemplo de Qyimadis exerceu na vida
social.
La pi bella c forsc la pi giovevole
sioria favolata ; wna das melhores no-
velas do mundOy distinta pela sua paga
htven^ione ou leggiadra vaghei\a, assim
podemos conglobar os louvores essen-
que Ihe foram tributados
ciais ate' em
j6o5 D. Miguel de Cervantes matar
Q/madis^ e com ele todos os cavaleiros
andantes a golpes de ironia.
Mas o prprio criador imortal do Dom
Quixote teceu elogios calorosos k No-

XXIV
:

vela. Salvou-a da fogueira, como nica


na sua arte.
Fv parodiando varias scenas, como a
da penitencia, deu-lhes a imovtalidade
jue o genio comunica mesmo quilo que
parece destruir.
Nos nossos das foi o maior e melhoi'
conhecedor das literaturas peninsulares,
e em especial da Nopela de quem, de
{

resto, a linda frase citada ), foi Menn-


dez y ^elayo quem glorificou o Q/lma-
dii na propos9o seguinte
Sin amohoso de Tristatt,
el vrtigo
sin la adltera pasin de Lani^aroie, sin
el equivoco misticismo de los hroes del
Santo Graal., Q/imadis es el tipo del per-
fecto caballero, el espejo del valor jr de
la corlesid, el dechado de rsalos leales
y de finos f constantes amadores^ el es-
cudo j' amparo de los dbiles j' menes-
teroros, el bra;o armado o puesto al
servicio del orden moral y de justicia.
No meio-tempo entre Cervantes c
Pelayo apontarei apenas urna senten^a
de Goethe, o olmpico, que em carta a
Schiller confessa envcrgonhar-se por

XXV
o-

haver conhecido tarde iivro to exce-


lente.
Creio que basiaro estes tres excei
ptos para recordar aos admiradores de
Afonso Lopes Vieira o mrito excepcii)-
nal da obra que ele hoje Ihes restitu
na sua intensa moderniza<;o.

Para ambas as categorias, censores e


encomiastas, o Q/lmadis era naturalmente
castelhano, conquanto o prprio Montal-
vo nada tivesse dito no seu Prlogo a res-
peito dalinguagem do texto antiquado c
corrupto que corrigira e polira, nem a
respeito do autor (e mesmo escrevendo
castelhano sse podia ser Portugus).
Somentc os rnais cultos investigado-
res, peninsulares e estrangeiros, sabiam
da trad9o que atribua a Novela (
primeiro e o segundo texto sem distincio)
a um Lobeira (i).
Prova (nica, bem pouco firme) de
que em Portugal certos patriotas lamen-
tavam a passagem da invenco nacional
para Espanha, temo-la num trecho das

XXVI
Anigitidades de Entre Douro e Minho
do Dr. Joo de Barros. Falando de Por-
tuenscs ilustres, o autor nomeia Vasco
Lobeira como inventor do oAmadis (nb.
errneamente emquatro livros!) e acres-
centa mas como estas cousas se sccam em
:

nossis mos^ os Castelhanos Ihe mudararn


a lngua e atribuiram a obra a si.

Os palacianos e letrados incluindo


o prprio Barros, que, no seu Espelho
de Casados^ critica, de resto, as fbulas
de Amadis
sabiam todavia perfeita-
mente que a fama mundial do Livro de
Cavalarias provinha dessa sua passa-
gem ento universal lngua do Imperio
de Carlos V, em que o sol nao se punha.

Dos factos alegados a grande rari-


:

dade e depois o desaparecimento total


do suposto Amadis portugus,, e a exis-
tencia e propagaco rpida da redacco
castelhana ; e pelo outro lado a falta de
todo o antigo nome de autor castelhano^
e a importantissima conquanto vaga tra-
d9o secular sobre a autoria dos Lobei-

XXVt
ras; e anda de varios outros pontos du-
vidosos ou problemticos como a
besitafao entre Joo e Vasco Lobeira^
am Tedro e outro Joo e Vasco moder-
namente descobertos nasceu, em volta
das origens e da evolufo do Amadis,
urna das polmicas literarias mais pro-
lficas que conhe^o
ventilada entre
Portugueses e Espanhis, mas em que en-
traram tambm, no scculo da crtica hist-
rica, Franceses, Alemes e Ingleses (2).

Complicada e atraente, tanto pelo as-


pecto nacional e psicolgico, como pelo
lado literario e filolgico, a Queslao do
Amadis j era no sculo xvi cousa de mis-
terio. Segrdo quepoucos sabem Inven-
co de um cMouro latinado Ohra
de
Santa Teresa
De urna dama portuguesa
^Do $epitido ^uqiie de Braganga, na
opino da Senhora D. Caterina, filha do
Infante D. Duarte, enunciada em conversa
com o embaixador Lus Zapata. Fbu-
las, todas olas, sem base alguma !

Entre os pontos discutidos do texto,

xxvni
que se ligam ao problema das origensy
h dois que reforcam, correctamente
interpretados, a fe nos I.obeiras: o de
Briolanja e o de Macandon^ o escudeiro
que encanecido recebeu a ordem de ca-
valaria.
O primeiro caso, o leitor o conhecc
certamente AmadtSy
: mo90 de vinte anos,
reconquista o reino e o trono da deser-
dada nia hermosa. Mas nao cede aos
desejos da romntica e apaixonada don-
zela. que ignora a sua lialdade ideal c
verdadeiro amor por Oriana,
O Senhor Infatite D. Afonso de Portu-
gal suzerano de JoSo Lobeira, a meu
ver, mais realista e positivista do que o
poeta cujo plano psicolgico anda nao
percebera pretendeu altera-lo, e exigiu,
cheio de piedade pela menina, em harmo-
na com os processos grosseiros dos Lt-
vros de Linhagens^ que, rudemente em-
bora romnticamente, ^watVs Ihe fizessc
um filho e uma filha de um s vcntre.
Claro que o autor nao cumpriu tal
mandado. Contentou-se com registar a
exigencia. A margem do seu autgrafo,

XXIX
pens eu; e nos traslados, onde poste-
riormente ela foi intercalada no texto,
passando redact;o de Montalvo.
No prprio texto nao se d seguimento
altera^o. Pelo contrario, afirma-se
que a altera^ao era suprflua^ vd e nao
perdadeira.
E filhos de Q/madis e Briolatya nao
surgem em nenhuma continua9o.
Mas o curioso caso despertou, natu-
ralssimamente, a atenfo dos leitore
portugueses. Um
houve no seculo xvi,
muito culto e particularmente versado
em lngua e literatura arcaica, que in-
terpretou a Nota no sentido que eu Ihe
dou, com a diferen9a apenas que, igno-
rando a existencia do verdadeiro c nico
infante D. Afonso de Portugal, julgou
iratar-sedo mais conhecido e mais falado
Z'ifonso da Dinastia o que foi figura
:

principal na Tragedia de Ins, como j


deixei dito.
Esse quinhcntista, o Dr. Antonio Fer-
reira, autor da Castro^ em que figura o
Brapo^ cultor desvelado da lngua ma-
terna, e que inscreveu nopergaminhoda

XXX
Ajuda tentativas de transpor versos tro-
vadorescos em ritmo moderno, teve o
singular capricho de metrificar a Notu
marginal de Lobeira, fazendo dla um
Soneto italiana, mas na linguagem de
D. Denis (3).
Pseudo-doutos atribuiram-no por isso
ao prprio D. Afonso
identifican-
;

do-o, de ento para c, repito, mesmo


na artstica parfrase que estou a pre-
faciar, com o re D. Afonso iv, o Bravo.
Outros, calculando que um Soneto
portugus, antes de iSaB, seria anacr-
nico, e fazendo fincap na hierarquia de
Infante^ substituirn! onome/l/oHSopelo
de Pedro., do Infante muito mais popular,
o das Sete Partidas.
Fantasias, tambm sem base, em volta
das quais a crtica tem tecido infinitos
arabescos.
Quanto a Macandoti., el viejo escudero
encanecido^ como representante Iitern<:>

do histrico Vasco Lobeira que, dece-


nios depois de o primeiro (?Amadis
correr em Espanha, tomou parte na ba-
talha de Aljubarrota, sendo armado

XXXI
cavaleiro por D. Joao I com dzias de
outros homens de armas, e introduziu
em seguida na Novela (do seu anteces-
sor?) o episodio a ele relativo da espada
e da guirlanda milagrosa, nao seria di-
fcil tornar plausivel o s aparentemente
extraordinario caso.
Em teoria podia eu apontar, nos Don-
/r>;jr> de Cavaleiros^ referencias a ho-
mens estrenuos que tinham entrado em
centenas de combates e assistido to-
mada de outros tantos castelos, sem
terem recebido a ordem de cavalaria.
E,prticamente, podia assinalar exem-
pls.
Nao deve quem trata do Amadis con-
fundir os combatentes do sculo xiii e
XIV com os moradores da corte de
D. Manuel e D. Joo ni.
Quanto cronologia, o De{ir em que
Viliasandino menciona o velho escudeiro,
que depois dos sessenta come90u a cor-
rer tormenta e a ser cavaleiro armado ,

de 1396; e Vasco Lobeira, dizem que


faleceu em 1403 (data que todava nunca
vi documentada).

XXX n
Com rela^o nacionalidade da No-
vela (abstraindo das razes escondidas
no sub-solo cltico e das can96es de
gesta em lngua picarda, etc.), pronun-
ciaram-se a favor de Espanha, por causa
da existencia do texto de Montalvo e
das alusoes tmporas a figuras da No-
vela, os distintos hispanlogos Baret,
Braunfels e Baist, e os Ingleses de hoje
que ainda mencionarei, sem considerar
quo contraproducente a falta de todos
os elementos nacionais na Novela.
A favor de Portugal, ligando impor-
tancia nao s aos argumentos externos,
mas tambe'm aos internos, e abrangendo
nos seus estudos, com simpatia igual, a
Pennsula inteira, declararam-se Mil y
FontanaJs, Gastn Paris, F. Wolf, Sou-
they, antes que Joo Lobeira fsse
conhecido como autor do Lais de Leo-
nor et a.
Depois de 1880, foi, sobretudo e decidi-
damente, Menndez y Pelayo (as Ori-
gens da Novela) como j ficou dito.
fHavia na Pennsula hispnica al-
guma ra9a mais preparada que a de

XXXIII
Gstela para receber o influxo do Ama-
dts de Gaida ? preguntou urna vez.
E respondeu: S urna existia, afastada

as regioes ocidentais, e cujos poetas ha-


viam dado carta de naturalizafo, pela
primeira vez entre nos, aos nomes de
Tristan e Iseu. No mesmo sentido,
alega ainda o misticismo de Nunlvares
Pereira, a imitar Galaaz, e o cavalhei-
rismo de D. Joo i, a fazer de Rei Ar-
tus no sitio de Coria, equiparando os
seus cavaleiros aos da Tvola-Redonda;
a sentimentalidade racial a mesura, dis-
;

cre9o e delicadeza dos costumes as ;

finezas e cortesas de Portugal, que a


Bela de Ticiano^ a Imperatriz D. Isabel,
levou a corte de Carlos v.
Entre nos foi T. Braga quem defendeu
com maior entusiasmo, desde iSyS, a
mesma tese, afirmando, como a autora
destas linhas, que se o o/madis deixou
de pertencer a Portugal, continuou, ainda
assim, a ser portugus pelo lirismo to
bem revelado na combina9ao preciosa
entre a alma suave e a valenta heroica.
Pessoalmente tentei deduzir concluses

XXXIV
das rela^oes mutuas, literarias, entre
Espanha e Portugal.
O Portugus (que em regra tem o dom
das lnguas e ouvido musical finssimo)
entende a sonora lngua do centro com
as suas cinco vogais claras e expressi-
vas e le com facilidade textos de l sem
precisar de tradu9es.
O Castelhano, pelo contrario, tem di-

ficuldade em
apanhar as trinta vogais
diferenciadas do Portugus. E conhece
da literatura portuguesa exclusivamente
o que Luso-castelhanos ou Galego-caste-
Ihanos Ihe vertem ou nacionalizam.
No futuro e indispensvel livro sobre
a Intercultura dos dois pases, j muito
bem preludiado, dever ser feita a an-
lise das prosas arcaicas, para verificar
se o Graal, o Merlin, o Langarote^ o
Vespasiano, o Jos-ab-Artmatia^ a Cle-
mencia^ o Monro T{asis, a Viia Cliristi,
ec.ypassaram de portugus para caste-
lhano, ou de castelhano para portugus.
Aqui basta notar que as duas mais
notveis controversias sobre a autoria
de obras-primas, nao meras tradu96es

XXXV
:

como as arcaicas que citei, mas cria^oes


de arte esto decididas, de h muito, a
favor de Portugal
A da Castro e Nise lastimosa e
A do Palmeirim de Inglaterra.

ltimamente fram tres Ingleses, de


minucioso saber e criterio penetrante,
que examinaram de novo a Questdo do
Amadis^ empenhados como os demais

em apurar a verdade G. S. Williams
(1909, na Revue Hispanique XXI);
Henry Thomas, em Spanish and Por-
tugese ^I(o}7iances of Chivalery^ 1920; e
Aubrey T. G. Bell, em Portuguese Li-
terature, 191 2. Avallando os argumen-
tos positivos e deixando de lado os psi-
colgicos, sses chegaram a uma forma
mais dubitativa anda para Portugal do
que os crticos precedentes:
Talve\ portugus a principio, o Amadis
passou a ser castelhano crea de iSoo
ou anteriormente.
Resultado que, ape-
sar de tudo, nao alterou nem creio al-
terar a f dos que, como Afonso Lopes

XXXVI
a

Veira,procuram e encontram nos pri-


meiros Livros do Amadis a alma portu-
guesa, o lirismo racial.

Maravilha e cotisa de misterio na lin-

guagem dos antigos que, sendo assim


e embora sempre o acarinhassem como
seu, nenhum Portugus se lembrasse at
hoje de restituir patria o tesouro que
na sua fidaiga prodigalidade ela deixara
escapar das suas maos.
Ficou reservada essa gloriosa mis-
so tempo de o acentuarmos
um dos verdadeiros Lusadas de hoje,
poeta de lirismo nativo e poeta ca-
paz de se identificar, por afinidades na-
turaisou electivas, com o trovador yoo
Lobeira (Joo Pires Lobeira Alvim) do
sculo xiii e com o cavaleiro Vasco Lo-
beiray do sculo imediato, como j se ha-
via identificado com Mestre Gil Vicente,
nacionalizando o oMonlogo do Vaqueiro.
Gloriosa missao, na verdade, mas me-
lindrosa e dificil, e que exigia uma in-

tu9o luminosa, um gsto seguro.

XXXVII
as circunstancias peculiares do Ama.
dts nao havia outro processo possvel
senao o de novamente excavar da nica
redac9o existente, castelhana e tardia,
as partes que, crticamente decompostas,
pareciam ser a matra-prma portu-
guesa.
As outras partes, acrescentadas por
Montalvo s duas prmeiras sobrepostas,
era preciso elimin-las. E elas eram
tantas que a compila9ao enchia um in-

-folio enorme igual a um volume in-


teiro da ed9o Rivadeneyra, (o xl) qua-
trocentas e algumas pginas de duas
colunas, a sessenta linhas cada!
Cento e trinta e cinco captulos, para
cuja leitura fatigante s tem nimo, no s-
culo que corre, rarssimos especialistas,
em noites enfadonhas de invernia.
O renovador cortou, por isso, em
primeiro logar os excursos moralizado-
res do filosofante Regedor de Medina
del Campo.
Suprimiu as repetifoes de aventuras
e feitosos enredos inteis numerosas
; ;

figuras secundarias.

XXXVIII
Procurando as liuhas constitutivas da
Novela, reduziu a poucas as batalhas e
os duelos do cavaleiro andante; sem ex-
cluir o maravilhoso, desenvolveu com
breves tra9os o que Ihe pareceu essen-
cial o elemento humano^ o carcter l-
:

rico da Novela. Portugusmente lrico.

Com sse fim, e para conribinar nti-

mamente aquelas aventuras que conser-


vou, introduziu de longe em longe algu-
mas altera96es,queem nada afectam a au-
tenticidade da obra; uma reminiscencia
da Historia Trgico Mjrttima, outra do
romance da au Caterineta
dois ver-
sos do Crisfal
uma quadra popular
um dito trovadoresco.
Tudo isso realizou-o Afonso Lopes
Vieira, depois de repetidas leituras e in-
vestiga95es de quatro anos, no verSo de
1922, no seu Bom-Retiro de Sao Pedro
de Muel. Com entusiasmo varonil e in-
tensa como9o intelectual reduziu os
cento e trinta e cinco captulos de Mon-
talvo a vinte, atraentes e atados de modo
que constituem um todo perfeito : lgico
e artstico, fremente de vida.

XXXIX
Igual Novela de Joo Lobeira e
Vasco Lobeira ?

Exactamente, com certeza que nao.


Mas quanto possvel.
Sendo dos Lobeiras, tambm de
Afonso LopesVieira o ^^omance de oAma-
dis pelo que o viveu e sentiu com apai-
xonada devofo. E como a constru(;o,
assim a linguagem toda dle.
Invocando os manes do poeta-cava-
leiro que escreveu o Lais de Leonor et a,
dirige-se ao pblico? chamando-o com o
tradicional oupide dos troveif os ; e d-
Ihe, d-nos a todos, a quinta-essncia do
Q/madis^pondo em destaque tudo quanto
vivo humano no velho texto e,
e ;

dentro do humano, particularmente o


ncleo sentimental :
o amor-ador acdo.
Amor-adora9o portuguesa, de modo
algum mole e derretido, antes obstinado
como expanso incoercivel das fr9as
do carcter, que o verdadeiro cavaleiro
que ama, conscientemente submete s
leis da Ordem.

Do extensssimo Livro de Cavalarias


de 1 5oo, o arauto e mantenedor doLirismo

XL
.

portugus, sem nada falsificar, alteran-


do apenas as propor?6es entre os feitos
do cavaleiro e o idealismo amoroso,
tornou portante a fazer a heroica e amo-
rosa canco que ele fra nos sculos xiii
e XIV.
Bem haja pelo servico que prestou
as Letras patrias.
Oxal a Na^o e o estrangeiro Iho
agradcyam como merece.
Porto, 3 1 de Dez. de 1922.

Carolina Michaelis de Vasconcellos

NOTAS
(i) Mal documentada embona pela men?o de um manus-
outro, (ou o mesmo) na Casa
crito entre i45o e 1460 (Zurara) ;

de Aveiro em lgS (Miguel Leite Ferreira) ; e em 1726, de-


nunciado Academia de Historia pelo Conde de Ericeira,
como tendo sido catalogado em 1686 entre manuscritos do
Conde de Vimieiro.
(2) Quanto a Montalvo, ele GarcRodrigue\ em i5o8{Sa-

ragoQa); GarciOrdoe^, i5ii, 326, 533; Garc-G<//>rrf 7,


1 1

i>io e 42 as Sergas de Esplandian

(3/ D. Afon80,falando aosuposto autor, diz Dsse Soneto:

Bom Vasco de Lobeira de gram sem,


de pran, que vos avedes bem contado
os feitos de Amadis, o Namorado,
sem quedar ende por contar i rem.
Sem o germtinlco 5tn jiro, entendlmooto.

XLI
o %OMAn,CE
T>E ^MAT) I S
PERION

ENHORES, ouvide o ro-


mance deAmadis, o
Namorado. Escre-
veu-o um velho tro-
vador portugus, e

depois um castelhano, trocando-lhe


a lngua e o jeito, da sua trra o
o r/lOaAV^CE "DE ^mAHOUS

levou. Mas mais nobres men-


j as
tes de Espanha por nosso o do.
Em Portugal tem a segunda patria
o espirito lierico e amoroso da
Tvola-Redonda.
E o cont de amor fino e fiel,

de portugus amor, rendido como


ele s.
Ao comecar o romance de Ama-
dis, invoco a memoria do cavaleiro-
-poeta que o comps, para que me
alumie. Invoco o par para sempre
enla9ado e vivo de Tristan e Iseu,

que morreram de amor e dor ambos


os dois.
E vos que amis com amor heroico
e fiel, que amis o amor, ouvide
a historia como eu a senti.

Nao muitos anos depois da Pal-


o %OmA^CE "DE c^mADIS

xo do nosso Salvador e Redentor


Jess Cristo, houve na piquena
Bretanhaumrei, pornome Garinter,
bom cristo e de ihanas maneiras.
Teve ste rei duas filhas de sua
muiher, boa dona. A mais velha ca-
sou com Languines, rei de Escssia;
e a essa se chamou a Dona da vir^
latida^ porque de urna grinalda mui

rica quis seu marid que ela sempre


cobrisse os formosos cbelos, tanto
gsto Ihe dava olh-los; e por tllhos
houveram Agrajes e Mablia, de
quem men^o se far.
A outra filha, chamada Eli-
sena, era muito mais linda que a
irm, mas como sempre se escusasse
a esposar algum dos prncipes que a
demandavam, tanta esquivan(;a deu
aso a que a apelidassem Devota
perdida.
o %OmA^CE "DE oAmA'DlS

Ora, ste rei Garinter, sendo j


crescido em anos, saa algumas vezes
a montear, para espalhar cuidados;
e urna vez que se afastara dos mon-
teiros e pela espessura andava a
rezar suas Horas, viu um cavaleiro
que com dois outros pelejava, nos
quais reconheceu dois vassalos, de
quem, por soberbos e descorteses,
el-rei muitas queixas havia ; e, apar-
tando-se, olhava o combate, no fim
do qual aqueles dois foram mortos.
Isto feito, veio o cavaleiro a el-rei

e, vendo-o s, preguntou-lhe:'
Bom homem, que trra esta
em que os cavaleiros sao salteados ?

De nao hajais espanto,


isso
retrucou que em todas as
el-rei

trras bons e maus cavaleiros h;


e dsses que dizeis muitos tinham
agravos, e at seu mesmo rei.
o %0^1AV^CE "BE oA^lA'DlS

A sse rei quero eu falar


tornou o cavaleiro e se sabis
onde para, pe90-vos que o digis.
Pois seja como fr, sabei que
tal rei eu o sou.
Entregou o cavaleiro ao escudeiro
o escudo e o elmo, e foi abracar el-rei

Garinter, dizendo-lhe que era el-rei


Perion de Gaula e que muito qui-
sera conhec-lo. Ouvindo ste no-
me, deveras folgou o senhor bre-
to. Conhecia ele Perion por sua
fama alta e honrada, pela bravura
e gentileza da sua cavalaria, as
quais, sendo aqule rei mo^o como
era, to celebradas andavam por
todos os reinos da piquena e da
gr Bretanha. E, do cor^o, deu-
-Ihe as boas-vindas. Ledos se jun-
taram os dois senhores e procura-
ram os monteiros para se recolhe-
:

o T{OmA^CE DE oAmA'DIS

rem vila de Alima, donde el-rei

Garinter partir para montear.


Pelo caminho saltou-lhes um vea-
do escapo da montana e atraz do
qual correram os res a fim de o lan-
cear mas um leo, que das brenhs
;

sara, alcan90u o veado, atassa-


Ihou-o e p5s-se a olhar sanhudo os
cavaleiros, como quem preara coisa
que julgava ningum disputara.
Vendo o que, desmontou el-rei
Perion do cvalo, que a vista do
leo espantara
Pois nao h-de ser teu ! disse
Perion.
Esem que o estorvassem as vozes
de el-rei Garinter, fera se foi com o
escudo embragado e a espada na
mo. Deixando a presa, arremes-
sou-se o leo contra Perion e, jun-
tando-se ambos, aqule o teve de-

8
o "l^O^A^CE ^E qA^MA'DS

baixo, prestes a esqartej-lo; mas


el-rei,nao perdendo nimo, enso-
pou-lhe a espada no ventre e o ma-
tn. Perto soaram as buzinas dos
monteiros, que logo vieram e ro-
dearam a sen senhor. E do que viu
se admirou el-rei Garinter, entre-si
dizendo que nao sem causa el-rei
Perion era tido pelo mais esfor9ado
cavaleiro do mundo.
II

DARIOLETA

cm

C
ARREGADOS dois pilafrns
o leo e o veado, para a
vila seencaminharam com
grande prazer os senhores; do que
sendo avisada a rainha, de ricos e
grandes atavos se enfeitaram os
pa(;os eforam postas as mesas. Sen-
taram-se a urna mais alta os dois reis
e a rainha, com Elisena em outra
a-par desta ;
foram servidos
e ali

como em casa de to bom senhor


convinha.

II
;;

Mas sendo a infanta to formosa,


e el-rei Perion to alto cavaleiro, em
tal hora se olharam que o grande
recat dla nao pode tanto que de
mui grande amor presa nao fsse
e Perion assim tambm dla, pois
que seu cora^o livre o havia. De
maneira que um e outro todo o tempo
ali estiveram fora de si. Recolhen-
do-se a ranha sua cmara, levan-
tou-se Elisena; e, cando-lhe do
regado um anel que tirara para se
lavar, a fim de o apanhar se baixou
mas Perion o tomou e deu-lho.
Quando as mos dles se encon-
traram, Perion apertou a da infanta,
que, olhando-o com amorosos olhos,
Ihe agradecen corando.
Ai, senhora! O ltimo servido
nao ser que vos eu farei, pois toda a
vida a quero empregar em vos servir!

12
o 1{0\AV^CE "DE (ycMA'DIS

To turbada se foi Elisena que a


vista qusi perda.
Nao podendo calar dor to nova,
descobriu seu segrdo a urna don-
zela dequem multo se fava e se
chamava Darioleta. E^ com pranto
dos olhos e mais do seu coraco,
pediu-lhe conselho sobre como sa-
ber poderla se Perln amava outra
mulher, e se aqule amoroso rosto
com que a estivera olhando prova
seria de amor igual ao seu. Pas-
mada com tal mudanca em pessoa
para quem estas eram to
coisas
desusadas, logo a donzela prometen
servi-la, vendo que o amor nao dei-
xara em sua senhora logar para ca-
berem razo ou conselho.
Encamlnhou-se Darioleta para
cmara de el-rei Perln^ a tempo que
o escudelro la levar os vestidos do

i3
:

o %09AXCE 'DE cAmA'DIS

seu senhor. Pediu-lhos a donzela,


dizendo que ela mesma os levara.
Tomando por maior honra o que
a seu senhor se fazia, foi-se o escu-
deiro ; e Darioleta, entrando na c-
mara de el-rei, por ste foi reconhe-
cida como a donzela da infanta
Boa donzela, que me queris ?

Senhor, dar-vos de vestir.


Nu de est meu cora^o.
alegra
Mas por qu ?

Porque sempre a livre fui, esta


trra livre vim, e agora em casa de
vosso senhor ferido fui de ferida
mortal. E se para ela remedio me
achasseis, eu vos darla bom galar-
do.
Responden a donzela que contente
seria de servir to bom senhor, se
soubesse em qu. Sabia muito
bem Darioleta aquilo em que pode-

^4
:

o 1{0IMA^CE ^E oqMA'DIS

ra servir el-rei Perion, mas alegra-


va-se de o ouvir falar do amor que
Elisena Ihe merecia, comparava as
palavras dle com as que Ihe ouvira
a ela, e tudo ia encaminhando ao
ponto que desejava.
Se me prometis, como lial
donzela, guardar segrdo do que
vos eu disser, descobrindo-o s onde
de razo, ento direi.

E, prometendo-lho Darioleta, dis-


se-lhe el-rei que vivera at ali sem
haver empregado o coraco, cos-
tumado a correr aventuras mas nao
a penar cuidados que em forte hora
;

olhara a grande formosura de Eli-


sena; que to cuidoso agora estava
que se julgava a ponto de morrer, e
emfim que morreria se algum reme-
dio nao achasse.
Tornou-lhe a donzela

i5
!

o 1{0mAZNiCE "DE oAmAIflS

Se
me prometis como rei,
guardando em tudo a verdade a que
mais obrigado sois, de a seu tempo
a tomar por mulher, ento eu farei
coisa que nao s o cora9o vos con-
tente,mas tambm o dla, onde
mora amor igual ao vosso. Mas se
o nao prometerdes, por mulher a
nao lograreis, nem vossas palavras
haverei como de honrado amor.
El-rei Perion, que obedeca ao
mando de Deus para que tudo fsse
como adiante ouvireis, pos a mo
na cruz da sua espada e jurou :

Juro nesta cruz e espada


com que a cavalaria recebi, de isso
fazer que me pedis, donzela, e
quanto por vossa senhora reque-
rido me fr.
Pois folgai ora, que eu farei o
que vos disse

16
:

o 'J{0^1a:NCE "DE QmATIS

Buscando a sua senhora, con-


toii-lhe o que com el-rei Perion
concertara, e Elisena, com grande
alegria, abra(;ou-a
Mi-nha amiga verdadeira, mas
quando soar a hora em que em
meus bra^os aperte aqule que por
senhor me foi dado ?
Expiicou-lhe Darioleta que dando
a cmara de el-rei Garinter para o
pomar^ a ela iriam seguras quando
todos estivessem dormindo. Elem-
brando-lhe Elisena que na mesma
cmara el-rei seu pai dormia, a
donzela prometeu que tudo faria
bem.
Quando caiu a noite, Darioleta
apartou-se com o escudeiro de el-rei

Perion e preguntou-lhe que donzela


era que seu senhor amava com en-
tranhado amor.

17
o I^OmAT^iCE "DE QiMA'DIS

O meu senhor a todas ama,


mas a nenhuma como dizeis.

Nste ponto acercou-se el-rei Ga-


rinter e, vendo os dois conversando,
preguntn donzela que tinha ela

que dizer qule escudeiro.


Por Deus, senhor, eu vo-lo
direi : ele me chamou e disse que
seu senhor costuma dormir szinho
em sua cmara, e vossa companhia
certo o estorvar.
El-rei Garinter foi dizer a el-rei
Perion que levantando-se a mati-
nas por ter muito em que cuidar, o
deixaria s naquela cmara para
estrvo Ihe nao fazer.
Quando Darioleta viu que os
reposteiros levavam de ali a cama
de el-rei Garinter, foi contar infanta
quanto sucedia.

Boa amiga, disse-lhe Elisena

i8
o ^{OmA^CE "DE ozMA'DIS

creio que Deus assim o quere ; e

o que parece agora erro, ser ao


depois grande serv90 seu.
E assim estiveram elas at que
todos foram dormir.

9
: :

Ili

ELISENA

c
OMO tudo estivesse sosse-
gado, a donzela encaminhou
a infanta e saram ambas ao
pomar. Fazia um luar muito claro.

Darioleta, olhandoElisena, abriu-


-Ihe o manto, remirou-lhe o corpo,
que ela trazia nu s com camisa, e
disse, rindo
Senhora, em boa hora nasceu
aqule que vos vai ter!
Sorriu a infanta e tornou-ihe
Amiga, dizei antes que bem-

j/
o %OmA^CE "DE cAqMA'DIS

aventurada fui em me dar Deus tal

senhor.
Perion, com do cora-
a queixa
co e a esperanca que a don-
zela Ihe dera, nao havia podido
dormir caira em modorra, e sonha-
;

va. Sonhava que algum entrava


por uma porta falsa naquela cmara
e, a ele se indo, Ihe meti as mos
pelas costas e Ihe arrancava o cora-
^o para o deitar a um rio.


Por que me fazeis tal crueza?
dizia Perion a labutar as vascas
do pesadelo.
porta da cmara, Elisena tremia
toda e, como na aldrava mexssem,
acordou Perion espavorido e ben-
zeu-se.
Nste ponto iam entrar as don-
zelas e, como ele as sentisse^ temeu-
-se de tra9o e saltou do leito, em-

22
:

o q^O^JAV^CE TE oA^MA'DlS

punhando a espada contra os


vultos.
Senhor, isso que ? segre-
dou-lhe Darioleta.
Vendo ento Elisena, foi tom-la
Perion nos bracos. E Darioleta
disse infanta
que anda que
Ficai, senhora,
vos defendestes de muitos, e ele de
multas tambm se defendeu, man-
dou Deus que vos nao defendesseis
um do outro.
E, vendo a espada de el-rei, to-
mou-a em sinal da jura feita, e sau,
Perion, olhando Elisena luz
das tochas que ardiam, parecia-lhe
que nela se ajuntara toda a formo-
sura do mundo.
Antes da alva romper, veio Da-
rioleta pela infanta e, indo as duas
dormir, nada se soube em palacio.

23
o %OmAV^CE "DE qA^A'DIS

Assim por dez noites se amaram


Perion e Elisena ; e em urna dlas
preguntou a infanta ao seu amigo :

E quando vos frdes, que h-


-de de mim
ser ?

Quando me eu fr, dexo-vos


o coraco, e ele, junto ao vosso,
nos dar frcas, a vos para esperar
um tempo, a mim para cedo tornar.
Ao cabo daqules das acordou
el-rei Perion e forQOU sua vontade,
decidindo-se a abalar ; e como o
sonho que tivera Ihe dava grande
cuidado, quera saber como os
sabios do seu reino o entende-
riam.
Despedindo-se de el-rei Garinter,
quando quis cinjir a espada nao
a achou e nao se atreveu a pedi-la,
o que muito Ihe custava porque era
boa e formosa.

24
!

o 'I{0-^IA\NCF: 'DE Q/imA^IS

E partiu daqule reino.


Porm antes talara c om Dariolcta,
a quem disse a pena em que ia e
Ihe contou aquela em que siia se-

nhora ficava.
Ai, minha amiga, eu vo-Ia re-
comend como ao meu prprio
cora^o
E tirando do dedo um formoso
anel de deis iguis que trazi, deu-
-Iho para que Iho levass por seu
amor.

5
!

IV

AMADIS SEM TEMPO

COM que saudade e dor Eli-


sena ficou do seu amigo
E s falando com Darioleta
algum alivio achava. Passando fo-

ram os dias at que a infanta se


sentiu grvida, perdendo o comer
e o dormir formosa cor.
e a sua
Cresceram ento os cuidados e
nao sem grande razo, porque era le
naqule tempo que nao escapasse
morte, por maior que fsse seu es-

27
o T{0mA'3^CE "DE <24mA<T>lS

tado e senhorio, mulher que come-


tesse culpa.
Culpa, nao a cometer Elisena,
pois o que el-rei Perion jurara sobre
a cruz santificava para Deus o amor
que haviam mas isto era para
;

Deus, nao para os homens. E durou


esta lei cruel at a vinda do mu
virtuoso Rei Artur, que a revogou
ao tempo em que matou Floyan em
batalha, as portas de Pars.
Mas aqule poderoso Senhor Deus
por cuja permisso tudo isto se fa-

zia para seu santo serv90, to dis-

creta tornou Darioleta que a donzela


tudo remedin, como agora ouvi-
reis.

Havia em palacio uma apartada


cmara de abobada sobre um rio
que por ali passava, e ao res do
qual se abra uma portinha de ferro

28
!

o ^I{O.V^iA':h(iCE DE c^i^A'DIS

por onde as vezes as donzelas en-


travam na agua para lolgar.
Por conselho de Darioleta, pediu
EHsena esta cmara a seus pais, a
fim de melhorar a sade e rezar
suas Horas sem que a estorvasse
ningum, levando Darioleta para
que a servisse. Tendo-lho les con-
sentido, ali se aposentou a infanta
e alguma coisa descansou de seus
temores.
Um dia preguntou donzela que
se faria ao que nascesse.
Qu, senhora? Que padeca
para que vos livreis
Santa Maria! Ecomodei-
Ai,
xarei matar o que aqule que mais
amo fez ?

Disso nao curis tornou-lhe


a donzela porque, se a vos ma-
tassem, a ele nao poupariam.

29
o 1{0mAV^CE "BE oAmA'DIS

Andaque eu como culpada


morra, nao quero que o inocente
pade9a!

Pois grande loucura seria que
para salvar coisa sem proveito" vos
perdesseis e a vosso senhor, que vi-
ver sem vos nao poderia ; mas, vi-
vendo ambos, outros filhos tereis
que a pena dste vos faro pas-
sar.
Como donzela era Deus que a
guiava, antes do aprto quis o re-
medio: e buscou quatro tboas to
grandes que com elas fez uma arca
do comprimento de uma espada,
e com betume as ligou to bem que
toda a agua vedavam.
Mostrando a Elisena o que fizera,
disse-lhe que a seu tempo saberia
para que aquilo era.
Pouco se me d saber o

3o
:

o 1{0mA:NiCE ^E qA^AT>IS

que se faz ou se diz, que perto eslou


de perder minh alegra e meubem.
Doeu-se de pena a donzela, ven-
do-a to triste e chorando, que bem
Ihe cuslava ter de ser crua por fr^a;
e foi-se para que a infanta a nao
visse tambm chorar.
Pensava Elisena em Perion, de
quem nao houvera mais novas e, ;

embora cresse no amor dle e em


que elenunca a esquecia, pesava-
-Ihe muito a ausencia, para mais em
to incerta hora. Uma vez pregun-
tou a Darioleta
Por que nao vira o meu se-

nhor?
Sossegou-a a donzela responden-
do-lhe o que a infanta a si mesma
dizia quando cuidava naquela au-
sencia :

Senhora;, por tudo ser, menos

3i
!

o 1{0mAV^CE "DE cAMA'DIS

porque vos esqueca, pois no jura-


mento feito sua palavra empe-
nhcu.
Nao tardou muito que a Elisena
chegasse a hora de ser alumiada;
e como nao podia gemer, dobrada-
mente sofria.
Emfim Nosso Senhor que um
quis
lho nascesse e, tomando-o a don-

zela nos bracos, viu que era vivo e


formoso
Mas logo tratou de fazer o que
convinha, segundo o que ela antes
pensara : baptisou o menino como
se fra em artigo de morte, e, depois
de o embrulhar em ricos panos,
trouxe a arca.
Que ides fazer?
P-lo aqui deit-lo
e ao rio!
A me apertava-o ao peito, cho-
rava que se matava:

32
o %OmA'J^CE 'DE c4^A-DIS

Meu menino! Meu rico filhi-


nho!
A donzela escreveu num perga-
minho Este Amadis sem tempo^
:

filho de Re. E o nome era o de


um santo de muita devoco a quem
o encomendou; e dizia sem
tempo porque cuidava que ele ia
logo morrer.
Pos a carta ao pescoco do menino,
e Elisena pendurou da mesma fita
oanelquePerion Ihe dera. Deitado
o menino na arca, puseram-lhe ao
lado a espada de seu pai e a
donzela deitou a arca ao rio . . .

Como a corrente era forte, de-


pressa chegou ao mar; e, sendo j
manh, aconteceu uma daquelas
coisas que o Senhor mui alto, quando
Ihe apraz, usa fazer.
No mar navegava uma au em

3 33
:

o ^lO^MA^CE 'BE qAMA'D1S

que um cavaleiro de Escssia paria


da piquena Bretanha com sua mu-
Iher, que dera a luz pouco havia e ;

de bordo viram a arca e mandaram


recolh-la. O cavaleiro, que se cha-
mava Cndales, abriu a arca e viu
o menino, que em seus bra(;os to-
mn
Este filho de algo; e que es-
pada formosa!
Maldizia o cavaleiro a me crua
que tal criatura enjeitara, e pediu
a sua mulher que o criasse. Logo
esta Ihe deu o peito da ama que a
seu filho Gandalinaleitava e onde o
menino mamou com vontade, do
que os bons senhores se alegraram.
Assim foram navegando at An-
tlia, cidade de Escssia e, de ali

partidos, chegaram a um castelo


seu, que era dos bons do reino. Ai

34
o %OmAV^CE 'DE QmA'DIS

foram criando o menino como se


fra seu filho e todos creram que
;

sim porque pelos marinheiros nada


se soube, tendo les navegado a
outras partes.

35
!

o DONZEL DO MAR

PARTiNDO el-reiPerion da pique-


na Bretanha, como j se vos
contou, quanta saudade de
sua senhora havia
Chegado que foi ao seu reiao, en-
viou recado aos homens bons para
que Ihe mandassem os mais sabedo-
res, a fim de Ihe explicarem um so-
nho que tivera.
Vieram os vassalos mui desejosos
de o verem, que de todos el-rei era
querido ; e, depois que tratou das

^7
:

o 1{0mA^CE DE qAqMATUS

coisas do reino e do que sua fa-


zenda cumpria, a cada um mandou
para as suas trras. Passadotempo
chegaram a palacio tres homens sa-
bedores daquilo que a el-rei tornava
cuidoso, por prticos serem na lei-
tura dos astros; e, tendo-os levado
cpela, onde Ihes fez jurar que toda
a verdade diriam sem Ihe esconde-
rem dura verdade, contou-lhes el-rei
o sonho, guardando-se de dizer onde
e como o tivera, e come^aram os
mestres a futurar. Havendo falado
dois dles, dizendo cada um o que
Ihe parecia, Ungan o Ricardo, que
era o mais sabedor, come(;;ou por
dizer
-Senhor,
por-ventura vi eu j
coisas que melhor guardar para
nos.
Saram os outros, conforme o

38
:

o ^{O^IA^CE "DE ^i'^lADIS

desejo mostrado ; e, quando ficou


s com el-rei Perion, Ungan o Pi-
cardo falou-lhe assim
Ora vos quero dizer, senhor,
o que encobris : amis e j vossa
vontade cumpristes. E o sonho do
coraco deitado ao rio, quere dizer
que na agua ser achado um filho

que haveis de ter.

Agora sabei que o donzel que em


casa de Cndales se criava, e ao
qual chamavam o Donzel do Mar,
em tanta formosura crescia que a
todos maravilhava.
Urna vez, ia Cndales seu cami-
nho e apareceu-lhe urna donzela
que Ihe disse :


Ai, Cndales! se muitos altos
senhores soubessem o que eu sei,
cortavam-te a cabera. . .

39
!

o 1{0mAZNiCE "DE qA^A^IS

Pasmou o bom cavaleiro.


Porque em tua casa guardas
a morte dles.
Donzela, por Deus rogo vos
expliquis !

Digo-te que aqule que achas-


te no mar ser a flor da Cavalaria :

far tremer os fortes, humilhar os


soberbos, defender os agravados,
e tudo obrar com honra. E ser
tambem o cavaleiro que com mais
bela lialdade h-de manter seu
amor!

Ah! senhora, dizei-me quem
sois
Sou Urganda a Desconhecida,
mas nao me busques que nao me
acharias.
E, ao passo que assim dizia, de
mo(;a formosa se mudou em velha
tropega. sto vendo, teve Cndales

40
o ^{OSMA^CE DE oAmA-DIS

a Urganda por uma daquelas mu-


Iheres que possuem saber de sortes
e encantamentos, conhecem a vir-
tude das palavras, das aguas e das
ervas, e guardam o segrdo de
manter mocidade, beleza e poderlo.
Voltando ao castelo, tomou Cn-
dales nos bracos o Donzelebeljou-o
com lgrimas nos olhos.
E o menino, que tinha tres anos
e eraformoso maravilha, quis en-
xugar o pranto do bom senhor, do
que ste se alegrn, pensando que
na velhice Ihe seria doce.
Quando o Donzel fez cinco anos,
deu-lhe Cndales um arco sua
altura, e outro a seu filho Gandalin,
com os quais os fazia atirar.
E assim o foi criando ate que ele

fez sete anos.


A ste tempo el-rei Languines,

4t
o ^(OmAV^CE "DE QiMAT)IS

de jornada no sen reino, albergou-se


com no castelo de Ganda-
a ranha
es, em caminho.
que Ihe ficava
Mas aos donzis mandou-os Cn-
dales para um patio, a fim de nao
serem vistos. Ora, a ranha, olhan-
do de um eirado, viu-os em baixo
jogando e, entre les, o Donzel do
Mar, de cuja formosura tanto se
maravilhou que chamou asaias para
que o vissem tambm :


Ora vinde e veris a mais linda
criatura que nunca foi vista I

Estavam a ranha e as aias de-


brucadas a admirar o que viam,
emquanto os donzis iam atir^ndo
ao arco.
O donzel formoso, que pareca
senhordosoutrosno s por lindeza
e garbo seno porque trazia vestes
mais ricas, foi-se a uma bica de

42
o 'JlOaA^CE 'VE Q/imA'DlS

agua beber e, emquanto se afastou,


um, mais crescido, quis tirar a Gan-
dalin o arco com que ste atirava.
Acode-me, Donzei do Mar!
gritou Gandalin.
Logo o mais piqueno se foi ao
maior e, como o visse lutar com
Gandalin, dcu-lhe com o arco na
cabeca e derribou-o. Foi-se o don-
zei ferido queixarao aioe,vindo ste
com urnas crrelas para dar castigo,
ajoelhou o Donzei do Mar e disse :

Mais quero que me castiguem


que ver padecer meu irmo.
Do eirado onde eslava, a ranha
viu tudo; e admirou-se do nome
do Donzei como se maravilhara da
sua formosura. Nste ponto che-
gava el-rei, acompanhado de Gan-
dales; e preguntou a ranha:
Dizei-me, Cndales: vosso

4S
:

o ^{OSMA^CE "DE oAmADIS

filho aqule formoso donzel a quem


chamam o Donzel do Mar?
Deu rebate o coraco do bom se-
nhor, vendo j descoberto o que ele
por acautelado guardara e respon- ;

den pouco seguro como quem nunca


mentia
Senhora, sim. . .

Continuou a ranha, curiosa:


E por que tem tal nome?
Porque no mar nasceu, quando
eu tornara da piquena Bretanha.
Pois, amigo, nao parece se
comvsco a rainha sorrindo
disse
e pensando que o seu vassalo Cn-
dales, se era muito abastado em
bondades, pouco devia formo-
sura.
Chamai-o para que eu o veja
tornou ela.

Logo que o Donzel ajoeihou

44
: :

o %O^'J<iCE ^E Q^aA^lS

diante da rainha, disse esta a Cn-


dales :

Sou eu que o quero criar!


Dorido no corando, e as lgrimas
escondendo, preguntou Cndales ao
Donzel do Mar
Qucres com a rainha, meu
ir

filho?
onde me mandardes, mas
Irei

comigo v meu irmo.


Nem eu o acrescen-
deixaria!
tou Candalin, que o acompanhara.
Senhor, Cndales a disse el-

rei to amigos sao um do outro


que haveis de os levar aos dois.
Chamou el-reiLanguinesseu filho
Agrajes e, mostrando-lheosdonzis,
recomendou-lhc
Filho, quero que sejas muito
amigo dstes, pois que muito o sou
eu do pai dles.

45
: !

o 1(0mAU^CE "DE QAmA'DIS

Vendo el-rei Languines os olhos


de Cndales razos de agua, sorriu
do seu rassalo
Amigo, nunca eu cuidei que
to louco fsseis
Senhor, nao o sou eu quanto
cuidis.
Ento, a sos com seus senhores,
contou-lhes Gandaies a historia de
aqule donzel, de como o achara
boiando no mar com urna espada
formosa, de como julgava que ie
vinha de grande linhagem, e tambm
o que dissera Urganda, que o bom
senhor tinha por fada.
Por meu o quero, se vos apraz
disse a ranha. E pois Deus
tanto cuidado teve em o guardar,
razao para Ihe querermos mais.
Fiiho ormoso pensava Gan-
daies que to cedo comecaste a

46
o 1{0mA^CE ^E Q/SMA'T)IS

correr perigo e aventura, que cu


logo amci quando te vi na arca dci-
tadinho ao lado da espada, e agora
vais servir quem talvez devera ser-
vir-te, Deus te aben(;e e eu chegue
a ver as maravilhas que te prome-
tidas sao!
Passados dias, partiram.
Criava a rainha o Donzel do Mar
como a seu prprio filho Agrajes, e
afeicoara-se-lhe Mablia como terna
irm.
De to bom engenho era ele que
tudo aprenda melhor e mais de-
pressa que os outros : tao certeiro
cravava urna seta, como lia direito

urnas Horas ou cantava uma canco.


A do monte tanto Ihe aprazia
ca(;a
que pudera
se nunca a deixara.
E a rainha queria-lhe tanto que
sempre a-par de si o havia.

47
VI

ORIANA A SEM-PAR

el-rei Perion por carta de


SouBE
Elisena que el-rei Garinter
morrera, e como em cada dia
a lembrava com fiel amor, logo par-
iu ansioso de a esposar. Nao a
esquecera Perion um s dia, anda
que um tempe tardara, nem o jura-
mento Ihe sairada memoria, como
cumpria a quem tanto zelava sua
honra. Mas haviam-no demorado
promessas antigs de cavaleiro, e s
queria partir para receber conforme

49
o 'I{0^lAtKCE DE Q^iPilA'DIS

a le de Cristo aqucla que esposara


no seu coraco, depois de pagar tais
promessas, a m de levar a alma
segura. Concertadas as coisas do
reino c feitas as festas das bodas,
vieram ao reino de Gaula, onde
depressa a ranha foi querida. E
de Perion houve dois filhos, que se
chamaram Galaor c Meiicia.
Mas quantas vezes pensava Eli-
sena naqule menino formoso que
por torca das coisas enjeitara Pa- !

decia de o haver perdido, mal o che-


gara a Tcmia que Deus ihe nao
ter.

perdoasse o feito, inda que oSenhor


bem vira como ela sofrera em seu
coraco. Doa-lhe a maldade de
haver exposto aquela vida s ondas
do mar, em cujo deserto escumoso
certamente perecer a tenra cria-
tura, Via-o deitadtnho na arca^

5o
.sorrindo a qatni \he c.->tava prepa-
rando a mortc, e lo esperto e Hndo
como qicm vinha vivcr para ero
ludo vencer e brilhar. E mmtas vc-
zcs. rodeada de seus filhos, entris-

lecia a rnnha cnm saudades do


<nitr<).

Emquanto estas coisas se pas-


savam, Lisuarte, grande cavaleiro
e re da jr Rreanha, aportava
ao reino de Escssia com sna mu-
Iher Brisena, c de ei-rei Lar^giiines
e da ranha eram recebidos com
milita honra.
Traziam consigo sua filha Oriana.
Ah! senhorcs. dizendo este nome,
bate-me o coracao mais apressado!
K que toda esta hist('r!a que se
v<js conta, s por amor dla s<:

5/
o ^OmA^CE 'DE caiA'DIS

pode contar. E entre todas as Bem-


-Amadas nenhuma foi mais bem-
-amada. Nem Gencvra, a queni
tanto amou Langarote do Lago nem ;

Brancaflor, aquem tanto quis Flo-


res, nem mesmo a loira Iseu, por

quem morreu Tristan de Leonis, fo-


ram mais adoradas que Oriana.
E, sbre-tudo, cm nenhum dsses
amores houve a candura dste, c
sua gra^a de mocidade em flor.

A infanta ia nos dez anos e era a.

mais linda criatura da trra. To


linda, que foi chamada a Sem-Par.
Ora, como Oriana andasse enjoada
do mar, el-rei Lisuarte, que nave-
gava para o seu reino, deixou-a en-
tregue a el-rei Languincs e ranha,
dizendo-lhes que mandaria busc-la
quando elativesse cobrado maisfr-

52
o 1(0^1A^Cf: ^Di q4i\A'DIS

A este tempo o Donzel do Mar


tinha doze anos, c em altura c
r^a mostrava quinze. Servia u
ranha, mas, pois chegara Oriana,
deu-lho a ranha para que a servisse.
E ela disse que o Donzel Ihe agra-
dara, e ele guardou no coraco tais
palavras.
De como as guardaria, esta
historia vo-lo mostra, porque o mais
belo amor aqui dles se conta. Mas
o Donzel do Mar, nao sabendo o
que a infantinha senta, tinha-se por
ousado em pensar nela, vista sua
grandeza e formosura e Oriana, ;

que tanto Ihe quera, nao falava ao


Donzel mais que a ouro, por j te-
mer que a suspeitassem. Assim vi-
vjam encobertos, e um para o outro
vivam.
Ora, o Donzel do Mar, pensando

5.?
o liOmA^CP: 'DE QoMA'DJS

em sua se ahora e que esta ihc quc-


rei'ia raais se em scu servico prali-
casse grandes leitos, ou por ela
morrease a praiic-ios, desejoii sor
armado cayaleiro e de isto den parte
a ci-rei Lan^iiincs.
Sorriu el-re do de se jo do Donzel:
-A cavalaria leve de ter e pe-
sada de maoter.
E proaietcii-livj que o armara
quando asad) easejo lunivesse.
Ao mesflio lempo enviou el-rci

Languiiics recado a Gasidaes, a


qucm estas novas milito aiegraram;
e obom senhorf que havia guardado
como a um lesoiro o anel, o perga-
miuho c a espada, jnandou-os a
el-rci, contente de saber que o Don-
zel tanto merecia a estima dos seus
scnhores, c dcscjoso de que ele muio
crescessc em fortuna.

54
Scnhor do Mar, - dissc
Doiizcl
o mcnsageiru de Gandujes -vosso
amo vos saiida como quele a qucm
milito querc, e cnvia-vos Gsle anel,
esta carta e esta espada, pedindo-vos
que a espada usis sempre pela
grande amizade que vos ele tem,
Descobriu o Doncel a espada, li-
rando-a do pao que a envolva e
admirad(3 ile que a nao guardasse
bainha. K, lomando-a na mo,
sorriu que la luminosa nudez.
Don/.el, -disse-lhc el-rei Lan-
guines, depois que com ele se apar-
tou queris ser cavaleiro e vossa
mcsma historia ignoris. M doxe
anos vi eu essa espada, assim nua
e formosa ; e, pois hojc a lendes por
vossa, vos convm saber como a
haveis.
Contou-lhe cnto como ele fura

^.>
o 1{0^a:NCE "DE C.^A'DIS

achado no mar, com o anel ao pes-


coco e aquela espada ao lado.
Senhor, j entendo porque meu
amo Cndales me nao mandou tra-
tar por filho. Mas agora mais me
convm a cavalaria, para ganhar
honra e preco como aqule que nao
sabe donde vem.

Ora, el-rei Perion veio nste c-


menos corte de el-rei Languines, a
pedir-lhc ajada contra el-rei Abies de
Irlanda, que o guerreara e j Ihe to-
mara trras e senhorios. Prometeu
el-rei Languines ajud-lo como pu-
desse; e Agrajes, que j era cava-
leiro, rogou ao pai o deixasse ir

tambcm. Olhava o Donzcl do Mar


a el-rei Perion, e nele admiraA-a a
grande fama que el-rei havia.

5
: :

Epensava que de sua mo, mais


que de outra nenhuma, gostaria de
Tcceber as armas.
Lembrou-se enlo de Orianu
para alcancar por ela o seu grande
desejo. Procurou a infanta, espe-
rando que ca estivcsse apartada
dos mais, ajoelhou-se-lhc aos pcs e
tremente
dissc-lhe
Senhora,pois el-rci mcu senhor
me nao quis armar cavaleiro, nunca
tobem o poderia eu ser como por
mo de el-rei Perion, a vosso rogo.
Oriana, que va ali diante queni
mais que a si prpria amava, sorriu-
-Ihe graciosa e respondeu de alvo-
rocado coraco
E a primcira coisa que me pedis,
Ponzcl do Mar, c fa/er-vo-la querc
de boa-mente.
Combinou Oriana com Mablia
que o Don/X'l viria cpela da ra-
nha quando todos estivessem re-
colhidos c icaram de mandar re-
;

cado a cl-rci Perion quando este se


levantassc para partir, antes da al-
va. Eacontrando-se com Gandalin-
disse-lhe o Donzel :

Irmo, espero rcceber as ar-


nnas esta noitc. Ora dize-me se..
quando eu abalar, queres ir comigo
onde cu Or*
Mas cu
rcspondcu Ganda-
lin nunca vos dcixarci!
Beijou-o o Donzel do Mar na
face c, encaminhando-se para a c-
pela, qtiicdou-sc ante o altar, re-
zando. Pedia a Deus, pois Ihe ra
o Scnior to benigno salvando-o,
destinando-Uic por amos to booi
scnhorcs e mandando que ali vie^se
aqueia por quem o scu cma^o-

5S
:

bata, que no amor de Orlana c na


gloria das armas Ihe desse meren-
d Ttria.
Depois que a rainha oi dormir.
uriana, Mablia e as outras donzc-
las vieram acompanli-lo. E quan-
do chegou cl-rei Pcrion, a quera
Mabia enviara recado, disse-lh*
esta
Senhor, azci o que vos pedir
Oriana, tilba de el-rei Lisuartc.

Perion olhou Oriana e achou-a


ormosa sem par.
Senhor, odom que vos peco
cque fagis cavaleiro o meu Donzc.
Viu cnto el-rei Perion o Donzcl
do Mar, que aos pcs do altar estava
ajoelhado, Viu-o e maravilhoH-s-
da sua formosura.
-
Scnhora, dissc cl-rci a Oriann
de boa-mente vos farei tal dom.

^^
: :

o 'I^OmA^CE DE QiMADIS

E pesar-me-hia de nao ser mais


rica a cerimnia, se nao estivesseis
presente, enriquecendo-a assim.
Acercou-se el-rei Perion do altar
preguntn
Donzel, queris receber a or-
dem da cavalaria?
Senhor, eu o quero.
Em nomc de Deus, que o Se- e
nhor Deus mande que to bem em-
pregada seja quanto vos fez formoso!
Cal(;ou-lhe a espora direita, e
disse-lhe
Ora cavaleiro sois. Tomai a
espada!
E, ntregando-lha, mal cuidara
que era a sua, que por perdida
houvera quando se despedir de
Elisena.
Oriana sorria. El-rei Perion par-
tiu.

'^o
vil

AMADIS DE GAULA

ARMADO cavaleiro, quis o Don-


do Mar partir na mesma
zel

Tardava-lhe empre-
noite.
gar aquela espada que recebera e
com que fra achado no mar.
E olhava Oriana, a despedir-se
dla . . . Olhava-a muito, a dizer-
-Ihe adeus at nao sabia quando !

Senta a infanta o coraco aos


saltos, c os seus olhos respondiam
aos dle^ e tudo um ao outro diziam.
Despedindo-se, disse-lhe Oriana:

6i
.

o %0^:AV^CE "DE O'imA'BlS

Donzel, eu por o bom vos


tcnho que vos nao creio filho de
<andales . .

Senhora, no mar fui achado e


vivo para vos servir'.

Emo Oriana encomendoii-o^ a


Deus. E Mablia, que j era e sem-
pre havia de ser tao doce amiga
dle, disse-Ihe adeus tambm.
A sada dos pacos esperava-o
< fandalin com os cvalos e as armas.
E, sem que de ningum ssem
vistos,' cavalgaram e abalaram.
Pouco adiante amanheceu-ihes e,
<:omo era no mes de Abril, estavam
is rvores em flor e cantavam as aves

a porfa. Lembrando-se da sua ami-


ga^ ia Mar pensando:
o Donzel do
Pobre Donzel sem linhagem
r>eni bem, como ousaste escolher
diquela que em linhagem e fonno-

62
o 'JiOIMAV^CE 'DE q4Z\A'DIS

>UTii todas ai> outras vale I* Mais


ormosa ela que o mais belo ca-
valeiro armado, brilha mais sua
bondade que a riqueza dos maiores
tesonros e tu, pobre Donzel, nao
sabes mesmo qucm es, e s te cabe
calar o amor, morrer de amor antes
de o confcssar!
E com estes e outros pensamen-
tos, cavaleiro e escudeiro meteram-
-se a caminho de aventuras.

Senhores, nao nos demoraremos


TOS primeiros feitos do Donzel do
Alar. Se eu vos contasse, agora
ou mais tarde, todos os feitos do
heri, a historia alongar-se-hia e

encurtava-se a vontade de a ouvir.


E quando me decid a cont-la,
Jogo pensei em a nao fazcr com-

63
o %OmAV^CE 'DE oAmADIS

prida, a fim de que a escutasseis de


boa-mente.
Mas sabci que scm demora fez
belas proezas o moco cavaleiro, e
que aquela desconhecida Urganda
que urna vez aparecer a Cndales
e profetizara a gloria do menino,
Ihe apareceu tambm a ele e Ihe fez
dom de urna lanca.
Embarcando para a piquena Bre-
tanha, tempos depois foi o Donzel
ler a um onde se pelejava
castelo
bravamente. E viu que eram mui-
tos contra um s, que j mal se de-
fenda de tantos golpes. Correu logo
o Donzel a defender o cavaleiro
cercado, derribando sua volta
muitos dos que atacavam. E no
cavaleiro reconheceu el-rei Perion
de Gaula. Vendo-se socorrido, el-rei

Perion ganhou novo nimo, e o

64
!

o T{09dAV^CE ^E qA^AT)1S

Donzel e ele desbarataram os co-


vardes que haviam teito a trai^o,
e eram por el-rei Abies de Irlanda.
Quando o Donzel do Mar tirou
o elmo, por muito Iho pedir el-rei
Perion, reconheceu no mo^o
ste
cavaleiro o donzel a quem tempos
antes dera as armas.
Amigo, louvo a Deus de por
vos haver o que
feito fiz

Senhor, logo vos reconheci.


Se vos aprouver, servir-vos-hei na
guerra de Gaula, e at l nao qui-
sera eu dar-me a conhecer.
Amigo, parece-me maravilha
o que acontece!
Juntos seguiram para palacio,
onde o Donzel foi agasalhado com
muita honra e curado das feridas
que recebera.
E logo se aperceberam para

65
o %OmAV^CE "DE oAmAlDlS

a guerra que el-rei Abies fazia quele


reino, estando j com sua hoste as
portas do burgo.
Concertada a batalha, por tres
dias pelejaram com sanha os de um
e outro campo; aos senhores de
Gaula tinham vindo juntar-se os de
Normndia contra os de Irlanda, e
a estes levava-os el-rei Abies. Era
desmarcada estatura
ste rei de to
que excedia um palmo os mais altos
cavaleiros. No seu escudo figurava,
em campo uma cabe9a de gi-
azul,
gante decepada, em memoria da
que el-rei decepara quele com
quem combatera. E enorme no
seu grande cvalo, coberto com o
escudo sangrento, el-rei Abies era
medonho.
Num passo da batalha, quando
os de Irlanda carregavam os de

66
! :

o 1{0\AZNiCE T)E qA\ADIS

Normandia e Gaula e estes j re-


cuavam, encontraram-se frente a
frente o Donzel do Mar e aqule
rei e entre o fragor da peleja re-
;

quereram-se os dois ao combate,


A poderosa estatura de el-rei
Abies responda a esbelteza forte
do Donzel, e carregavam-se ambos
de golpes que cortavam os escudos,
amolgavam os elmos, desgarne-
ciam os arneses.
Resfolegando furioso sob os gol-
pes e vendo que os que dava nao
derribavam aqule inimigo fino e

de ac, el-rei Abies gritara-lhe


Tanto te desamo quanto te

prezo
Prosseguia entanto a batalha, e os

de Gaula com os de Normandia car-


regavam agora os de Irlanda, aos
>quais mingava o estorbo do seu rei.

67
o 'lipmA'^CE TfE oASMATilS

Mais furiosos que antes, ataca-


ram-se o Donzel do Mar e el-rei
Abies. grande frca de el-rei

desconcertava-a a mbil destreza


que o acometa. Rachou-se de
um golpe escudo sangrento, e
o
Abies recuou com sanha e vergo-
nha, dando-se j por perdido. Em-
fim, um golpe o lan^ou do cvalo e,
vendo-o por trra, bradou-lhe o
Donzel:
Abies, d-me a tua espada,
ou morresl
Morro mas de vergonha 1

tornou-lhe rendendo a alma.
ele,

J os de Irlanda tinham perdido


os seus melhores cavaleiros, e os de
Normndia c Gaula haviam desba-
ratado os invasores.
Ao lado de el-rei Perion entrou
o Donzel do Mar nacidade emfesta

68
:

o T^O^lV^CE ^E oAmATUS
c o povo, que o via passar, salva-
Ta-o e dizia:
Mantenha-vos Dcus, Donzel!
E exclamava maravilhado
Deus, como formoso O Sc- !

nhor Ihe d ajuda c honra para que


sempre como hoje batalhe !

Emquanto o Donzcl do Mar li-

Trava a trra de Gaula, chegavam


corte de el-rei Languines cem ca-
Taleiros de el-rei Lisuarte, c muitas
donas e donzelas, que iam buscar
Oriana.
Partiu a infanta, acompanhada
tambm de Mablia. Mas antes vi-
ra o pergaminho enviado por Cn-
dales, e alegrou-se de saber que o
Donzel era filho de rci e se chamava
Amadis.

6g
o %OmA'^CE "DE Q^mA'DIS^

Ora, senhores, de certo vos lem-


brais daqule anelque Perion dera
a Elisena, no tempo dos seus amo-
res. E como Elisena se pejara de
contar a el-rei Perion que tivera um
filho e o deitara ao mar, dissera-lhe
que perder o anel que ele Ihe havia
dado. Urna vez, passando o Don-
zel do Mar por urna sala dos pa(;os,
viu Melicia chorando e preguntou-
-Ihe o que tinha. E a menina res-
pondeu-lhe que perder o anel que
seu pai Ihe dera a guardar emquanto
dormia.
Tirou o Donzel do Mar o que
trazia no dedo e deu-lho para a
consolar.
Mas sse o que eu perdi!

Nao mas tanto asse-
, se se
melha, melhor vos remediar.
Quando el-rei Perion quis o

70
;

o 1{0mA^CE 'DE Q49d^DIS

anel, Melcia deu-lho e calou-sc


mas Perion achou o oulro, que era,
como sabis, igualzinho. Chaman-
do -parte a menina, mostrou-lhe
el-rei os dois anis, ordenando Ihe

explicasse como houvera o outro e


oihando-a com to carregado cenho
que ela, teniendo castigo, contou-lhe
logo como houvera um dles. Ento
teve Perion um mau pensamento,
quanto injusto e cruel para Elisenal
Com o semblante mudado, buscou a
rainha e, dando-lhe mostras do que
suspeitava, ameacou-a de morte.
Ouvindo Elisena a horrenda sus-
peita, feriu combas mos o rosto e,
chorando, nao podendo mais, con-
tou-lhe que tivera um filho e o dei-
tara ao mar, com a espada ao lado
e aqule anel ao pescoco.
Por Santa Maria disse
! el-rei
o 1(0mA^CE "BE cAmA'DIS

Perion. Creio que ste o nosso


filho.

E num sbito record veio-lhe


memoria o sonho que tivera aquela
noite,quando esperava Elisena e ela
riera a ele; e viu como certo saa o
que Ungan o Picardo futurara.
Foram-se logo cmara onde o
Donzel do Mar ficava e o Donzel ;

dormia. Mas emquanto dormia, cho-


rava, do que eles se maravilharam.
Sabei, senhores, que eram sauda-
des de Oriana.
Olhou Perion a espada pendida
cabeceira e logo a reconheceu por
sua, que nunca outra to boa hou-
vera.
Nste ponto cordou o Donzel do
Mar, e ficou-se turbado de os ver.
Ai ! senhor, disse a ranha
acudi-me na dor-que tenho!

73
o T{0OAAV^CE DE QMA1)IS

Senhora, se o meu servico vos


pode remediar, dizei-o, que o farei

at morte.
Dizei-me : de quem sois filho ?

Senhora, por Deus que o nao


sei. Acharam-me no mar por gr
ventura . . .

Ento disse a ranha, chorando:


Vs aqui teu pai e me !

E, ajoelhada ante Amadis, a me


beijou-lhe as mos, dando gra9as
a Deus.

El-rei Perion fez cortes e apre-


sentou-lhes Amadis de Gaula.
Depois seguiram-se grandes fes-

tas em louvor daqule milagre que


o Senhor Deus obrara, e ordenou el-

-rei Perion muitos jogos e alegrias e


concedeu muitos dons. Mas Ama-

73
o liOmAV^CE T>E cmATfL^

dis s pensava em partir. Bem fi-

zeram seu pai e sua me pelo deter,,


mas Amadis pensava em Oriana.
senhores, com que saudades !

E, acompanhado do fiel Ganda-


lin, embarcou para a gr Bretanha.

74
VIII

NA CORTE DE EL-REI
LISUARTE

A Amadis corte de el-rei Li-


suarte, c de caminho praticara
belos feitos, espalhando Justina
ebem-fazer.
Ora, urna noite, nao achando
pousada e vindo de atravessar urna
floresta, foi bater a um castelo que
tinha luz e de onde saa alarido de
festa, com matinada de quem ia be-
bendo.
Era o castelo de Dardan o So-
berbo, o mais fero cavaleiro da gr

75
o "liOmA^CE T>E cA^A'DIS

Bretanba, e to mau homem quanto


esforzado em batalha. E foi ele

mesmo quem, respondendo com a


soberba voz das altas amelas, ne-
gou pousada a Amadis que Iha
pedia.
Enfureceu-se o moco cavaleiro,
que era flor de cortesa; e a Bar-
dan prometeu que Inda em outro
logar se havlam de ver.
Ao romper de alva, e depols que
passou a nolte na floresta, velo
Amadis a saber, por umas donzelas
com quem fol de camlnho, a fel
historia deDardan o Soberbo.
Amava ele urna dona daquela
trra, a qual, reslstlndo ao desejo
do que a requera e servlndo-se da
fama de bravo que ele tlnha, Ihe fi-
zera prometer ruim servido. Por-
que esta dona tanto desamava a sua

^6
o 1{0SMAV^CE "DE oAmA'DlS

madrasta viva, que quera haver


por seus os bens que eram daqucla.
E a Dardan dissera a sua amiga
que s dle havia de ser no dia em
que a levasse corte de el-rei Li-
suarte, ai dissesse que a ela perten-
ciam os bens de sua madrasta e o
provasse em batalha a quem dis-
sesse o contrario. E Dardan assim
o prometer fazer no seguinte dia.
Mas a dona viva nao viria a ter
quem combatesse por ela, que a
todos Dardan metia respeito. Ale-
grou-se Amadis com tais novas, e
logo determinou combater com o
Soberbo. E de pensar que
sorria
a batalha se daria diante de Orianal
Assim foi andando at chegar a
Vindilisora, que era onde estava
Torneando a vila
el-rei Lisuarte.

sem que o houvessem visto, subiu a

V
o %OmAV^CE "DE oAmA'DlS

um outeiro ; e de ai, sentado som-


bra de urna rvore, via em baixo o
castelo, e ficava-se a olhar, com
lgrimas nos olhos.
Era que eslava Oriana: e ele
ali

tanto a queria ver, que se arreceava


tambm de a encontrar; s por ela
viera, comos por elavivia; e agora,
5abendo-a to perto, qusi quisera
partir, morrendo entanto por v-la...

Mas Dardan o Soberbo chegara


corte para dar sua batalha.
El-rei Lisuarte, com a companhia
de homens bons, encaminhou-se
para o campo cerrado. E Dardan
entrou, trazendo a rdea o cvalo
da sua amiga, que vinha soberba
tambm.
Senhor, disse ele a el-rei
75
:

mandai entregar a esta dona o que


outra guarda e a esta pertence. E
se houver quem diga o contrario,
comigo combater!
Preguntn el-rei Lisuarte viva
Dona, haveis quem combata
por vos ?

Senhor, nao
disse ela cho-
rando, do que el-rei houve pena
porque era boa dona.
Olhava Dardan em roda e nao
via quem combatesse com ele todos ;

Ihe queriam mal, mas todos o te-


miam. E esperara o juzo de el-rei,
dado conforme o costume. . .

Ento, da orla da floresta um ca-


valeiro sau.
Cavalgava um formoso corcel
branco, resplandecia-Ihe o elmo e
as suas armas brilhavam luz. A
jsua vista todos se maravilharam, e

79
:

o %OmAVHiCE "DE QoMA'DJS

diziam que nunca tinham visto to


belo cavaleiro armado.
O cavaleiro foi direito a Dardan,
e disse-lhe
Dardan, defendo quem tu
acusas E ora cumpro a promessa
!

que te fiz.
Preguntou el-rei Lisuarte dona
viva se outorgava seu direito qule
cavaleiro.
Senhor, sim! E que Deus o
ajude !

E el-rei mandou que pelejas-


sem.
Arremessando-se de espado um
contra o outro, Amadis e Dardan
quebram as primeiras lan9as. De-
pois, como os cvalos j cansam,
combatem espada e do to feros
golpes que o a90 dos elmos fasca e
parece que as cabe9as ardem I

8o
!

o I^OaA^KCE DE cl^A'DIS
Comeca Dardan a deler-se, e Araa-
dis carrega-o de golpes.
Mas quem ser o cavaleiro
pensava o povo, seguindo a luta
que fr9a soberba de Dardan ope
tanta frca formosal'
E a alguns que o estavam vendo
c reparavam no que Amadis tinha
a modo de resplandecente, afigura-
Ta-se que ele seria da Cavalaria
do Cu.
Sob os golpes que Ihe chovem e
Ihe cegara a sanha, vai Dardan re-
cuando at debaixo das janelas onde
as damas assistem ao combate.
E eis que, erguendo os olhos,
Amadis v Oriana
Ah ! senhores, sents tudo que es-
tas palavras guardara?
Amadis viu Oriana ! Nao a olhara
ele desde a noite em que recebera

ti
o TiOmA'J^CE ''DE oAmA^BIS

as armas e em que por amor dla


partir caminho de aventuras,
a
cavaleiro pobre e sem nome. E
agora voltava a v-la, e de olh-la
esquecia o fero inimigo que i-

nha ali diame, naqule campo cer-


rado.
J Amadis fere poucas vezes, e
cresce Dardan na seso do furor!
Cuida o Soberbo que a vitria
sua e, a espertar-lhe a sanha, pensa
que da vitria depende o haver o
corpo da sua amiga, por que viera
ali a manter dolo e mentira.

El-rei e o povo, que olham a ba-


talha, por momentos descoro(;am
de que ela acabe como intimamente
esto pedindo a Deus.

que Amadis ergueu os olhos
e nao os pode despregar de onde
os tem ...

82
: !

o I^OmAVSiCE "DE oAmADIS


Se eu morrcr pcnsava ele
morro por ca, e a v-la
Mas, ah senhores, assim como
!

Oriana o ia perdendo, Uriana o sal-


vou porque Amadis lembrou-sc que
:

a fraqueza podia ser julgada covar-


dia. Ento, como acordando de
um sonho, sentiu que Ihe aflua ao
sangue uma frca invencvel. E,
crescendo para Dardan, arrancou-
-Ihe o elmo de um golpe e o Soberbo
rolou morto no chao !

Quando o combate acabou, com


grande alegra de todos, disse Oriana
a Mabilia
Adivinha-me o coraco que ste
cavaleiro Amadis, pois tempo de
me ele buscar 1

E eu assim o cuido tambm


S3
: :

o llOmA^CE "DE cAaA'DJS

disse Mabilia, contente de ver con-


tente a sua amiga e por ser to amiga
de Amadis que o era tanto ou mais
que de Agrajes, seu irmo. Nao
vistes como parou em meio do com-
bate a olhar para a vossabanda?
Se vi
tornou-lhe Oriana.
!

E batia-me o cora9o que perdia
qusi o acord!
Pois se ele Amadis, nao tar-
dar com recado.
Ao mesmo tempo Amadis, des-
cansando na floresta, dizia a Gan-
dalin
Amigo, vai a palacio sem que
te vejaningum; que Oriana saiba
que estou aqui e me diga que fareiv
Gandalin, a furto, falou a Mabi-
lia, que o levou a Oriana
Onde est teu senhor? Que
feito dle ?

^4
!

o Q{O0AV^CE ^E cAmAT>IS
Senhora, dle ser o que qiii-

serdes, pois por vos morre de amor


Ento Oriana que
ensinou-Ihe
nessa noite viria Amadis ao vergel
para onde deitava a cmara em que
ela dorma, e que a uma janela de
rexas de ferro se poderiam falar.

Quando a noite cau, penetrou


Amadis no vergel, seguido de Gan-
dalin, que ficou de esculca, vigiando.
Olhou por todos os baixos do alc-
zar, buscando a lucerna prometida,
e logo lobrigou a janela onde ela
luzia e o chamava. Acercou-se e,
atravs das grades, viu Oriana I

Vesta a infanta um brial de seda


azul com flores de ouro, e estava
formosa sem par.
Meu senhor, sede bemvindo. ..

E\e olhava-a, e o cora;o nao o


deixava falar.

S5
:

o 1{0MA7<iCE "DE oASAADlS

Meu senhor, sede bemvindo,


e sabei que alegra tive com as novas
que me chegaram.
Disse-lhe ento Amadis:
A merc que vos pe90 nao
para meu descanso: que me
deixeis servir-vos e viver s para
vos 1

Oriana tornou-lhe
Mas de mim nao bajis tal
cuidado que eu vos d tristeza e
dor.
Senhora, em tudo obedeco,
nisso nao posso . . .

Com os seus olhos formosos, os


mais formosos da trra, olhava-o
Oriana, revendo-se nle.
Meu senhor, e que vos impede
?"

Beijando aquelas mos, as mais


lindas mos que havia, e estavam
fora das grades a falar tambm para

86
: : !

o %0<^1AV^CE 'DE Q-^^A'DIS

eleno fino gesto dos dedos, Amadis


responden
O meu cora9o
E levando as mos de Oriana aos
prprios olhos, Amadis banhou-as
de lgrimas, feliz de tanto sofrer o
gozo do seu desejo.
Nste ponto aparecen Gandalin
c disse que a alva nao tardava.

No seguinte da entrn Amadis


em Vindilisora, e todos o salvavam
ledos e diziam
o cavaleiro que venceu Dar-
dan!
Sau el-rei Lisuarte a receb-lo
com honra, acompanhado de muitos
homens bons.
Amigo, sede bemvindo!
Senhor, Deus vos d alegra!

^7
o I^OmA^CE "DE o^A'DIS

E, como Oriana o quisera, ficou


Amadis na corte para semr a ranha,
s^nhores, para a servir a ela!

SS
rx

ARCALAUS

DETERMiNou cl-rci Lisuartc ta-


zcr cortes, a fim de bem
ordenar 33 coisas do seu
reino, por grande honra e proveito
de todo o senhorio.
Mandou el-rei apercebcr os ho-
mens bons para que com ele fssem
em Londres no da de Santa Ma-
ra de Setembro, e a ranha enviou
recado as donas e donzclas.
Ora sabei que havia na gr Brc-
ianha m a-rte-mgico, rotado s

S9
: ! :

o %omA':NiCE n^E o^mA^is


malas-artes eem ms obras useiro.
Enredado urna vez em suas manhas,
derrotara Amadis o poder do encan-
tador. E Arcalaus, que assim se
chamava o feiticeiro, jurara vin-
gar-se dle e perder cl-rei Lisuarte^
a quem grande odio havia. Ouvide
a traico que ele fez, e que a graca
do Senhor seja comnosco.
Procurou Arcalaus a Barsinan,
senhor de Sansonha, e disse-llie em
segrdo
Barsinan, senhor, queira-lo tu
c sers reida gr Bretanha
Responden Barsinan que ihe con-
vinha e quis saber como faria.

Mas Arcalaus s Ihe dissera


E ters Oriana por mulhcr!
-

Estava el-rei Lisuarte na sua


:

o "F^OmAV^CE "DE cASAA'DlS

corte, apercebendo-se para partir pa-


ra Londres, quando chegou um rica
mercador que muito ihe queria alar.
Ajoclhando diante de el-rei, disse
o mercador
Senhor, eu vos trago aqu o
que a um grande rei como vos con-
vm !

E, abrindo urna arqueta que tra-


zia, tirou uma cora to tormosa
que a el-rei foram-se-lhe os olhos na
ouro e na pedraria, que era bela t\
maravilha.
Senhor, mercador
disse o
crde tal que
que esta obra

nenhum dos que hoje lavram ouro


c cravam pedras a poderia fazer de
suas mos.
A ranha, que olhava, disse logo:
Certo, senhor, esta formosa
cora vos convm !

9^
! !

Continuou o mercador:

E para tos, senhora, trago este
maato.
E isto dizendo, tirou da arqueta
um manto tao bem obrado como a
cora e formoso como outro jamis
se vira, orvalhado de aljfares e com
todas as aves do mundo bordadas
na mals rica pedraria.
Assim Deus me valha, amigo,
disse a ranha
que ste manto
parece que o bordou a mo daqule
Senhor que tudo pode
Senhora, bem podis crer que
a ste manto o bordou mo da trra,
mas outro nao h assim formoso e,
por o eu saber, vo-lo trouxe.
Tornou logo a ranha a el-rei:
Certo, senhor, ste formoso
manto me convm
Disse ento o mercador:

92
o %O^A'^CE 'DE qA\A1J1S

Senhor, nao sei eu quanto va-


lem estes dons, nem tempo tenho
para me agora deter. Mas levai-os
as cortes de Londres, que les vos
daro mor alteza. Basta-me a vossa
palavra, cujo pre9o, senhor, se
conhece. E por les me daris o
que vos eu l pedir, ou, nao mo
querendo dar, a corOa e o manto
me restituiris.

Disse el-rei que aceitava. Foi o


brilho das pedras que o cegou. E
pelo haver aceitado, veris que do-
res Ihe viro.

95
X

o PRIMEIRO BEUO

FizERAM-sE as cortes em um
grande campo bem plantado
de rvores, e a cadeira real,

em meio do campo, estava coberta


com um pao de sirgo semeado de
tantas estrlas quanas nle podiam
caber. Em redor havia muitos pa-
nos ricamente lavrados com variadas
historias e lavorcs.
E el-rei Lisuarte falou aos homens
bons:
Senhores, assim como Deus me
<P
) :

o 1{0mA^CE 'DE QmA'DIS

fez re,assim devo para seu santo


servico fazer coisas mais louvveis
que outro nenhum. Dizei-me, pois,
o que os vossos juzos alcancarem,
para por mim e por vos ganhar
mais honra.
Na tenda onde el-rei se achava^
estavam com ele Amadis, seu irmo
Dom Galaor, que Amadis trouxera
quela corte, depois de o socorrer
em muitos perigos,
tam- e estava
bm Barsinan, senhor de Sansonha,
e homem tredo.
( Mas que falava seguro,
el-rei,

tinha no cora^o grande cuidado


porque, quando fra a abrir a ar-
queta para tirar manto e cora,
achara a arqueta vazia, inda que
cerrada estava.
Ento, em resposta a el-rei, fala-

ram os homens bons; ele a todos

6
o T{O^AV^CE DE d^^lA'DIS

ouvia, e resolviam-se os pleitos. J


porm sobre o rei, lo gracioso e lial,

e sobre os seus a quem muito queria,


pesa a trai^o de Arcalaus, que tece
o fio da trama. Assim foi que urna
donzela, em pranto etda coberta de
d, se foi queixar a el-rei de males
quelhefaziam. Contoucomo seu pai
fra preso no castelo de Guldenada,
sem culpa ele e ela sem defenso.
E a todos moveu a piedade e a
vontade de a servir.
Escolhei de cavaleiros
estes
disse quais iro em servido
el-rei

vosso.
Senhor, sou de estranha
trra
c escolh-losnao sei mas pe(;o ;

ranha mos d, que bem os conhece


por seus.
A ranha, que houve piedade, es-
colhcu Amadis e Dom Galaor.

97
!

o 1{p^lAX^CE "DE oAmA^IS

Comeca Arcalaus a vencer, por-


que Amadis deixa as cortes e Oriana
fica s

Ora, ao quarto dia da partida de


Amadis, estando el-rei Lisuarte com
muitos homensbons e donas e don-
zelas, adiantou-se o mercador, que
ajoelhou e Ihe disse :

Senlior, por que nao trouxestes


a cora e o manto que vos entregue! ?
Calou-se el-rei, turbado.
Senhor, apraz-me que mos pa-
guis ou mos tornis a dar, a f do
que tratamos.
Ataihou el-rei Lisuarte:

Amigo, nao vo-los posso dar
porque os perdi.
Finjiu o tredo Arcalaus que ihe
doia a nova como indo nisso a sua

9S
: : :

o 'I{0P^1A\KCE ^BE qATMA^DIS

mesma vida ; e, danJo-se por per-


dido, maldizia a sua sorte e arrepe-
lava as barbas com dor.
Tornou-lhe el-rei Lisuarte
Mas dizei-me j seu preco, que
\'0-lo pagarei de contado.

Recolheu-se a pensar consigo o


mercador, e ao cabo de alguns ins-
tantes disse a el-rei
Senhor, bem me custa dizer-
-vos quanto me a mim deveis
mas sabei que s salvarei a vida
se me derdes o manto e a cora,
ou, por escambo de les, a vossa
filha Oriana!
A roda os homcnsbons, as dona.^
e as donzelas, todos tinham os cora-
9es clieios de dor; e alguns iam
arrancar das espadas, quando el-rei,

com um sinal, ordenou que estives-


sem quedos.

99
:

Ento, aomercadorque esperava^


el-rei Lisuarte respondeu:
Amigo,de mais me pedis! Mas.
antes eu perca a filha que a paia-
vra. Porque, perdendo a lha,
perco o que a mim e a mais alguns-
custa e di; mas, perdendo a pala-
vra, a todos faria dao, dandoexem-
plo com que ningum de ora-avante
respeitasse as leis da honra.
E mostrando-lhe Oriana, que
desfalecera, el-rei disse a Arcalaus
Eis o preco que requereis!
Arcalaus tomou a infanta nos
bracos e, seguido de cinco cavaleiros,
cavalgou e desaparecen.

Entretanto Amadis e Galaor so-


friam traico no castelo de Gulde-
nada, c com a ajuda de Deus esca-

JOCf
o "JlOmA^CE 'DE oAmA^IS

pavam as tramas do encantador.


J a caminho de Londres, recebeu
Amadis o aflito recado de Mablia
e por ele soube que Uriana era
roubada.
Santa Mara, valei-me!
Ai,
Corre Amadis em busca do seu
bem.
Interroga no chao o rasto dos c-
valos, acha urna traca e corre, e
perde-a e descorocoa, e cuida mais
adiante ir j por ela . . .

Mas o Senhor Deus nao deixa


sem amparo as almas puras, ncm
sem ajuda contra as malas-artes os
bons filhos seus que elas enredam.
Ao m de muito andar, viu Ama-
dis um lenhador que tinha a sua
cabana a borda do caminho. Como
era noite fechada, ali se recolheu, e

dellou o cvalo a pastar.

lOI
o T{OmA^CE "DE Q^A'DIS

Contou-lhe aqule homem que


vira passar de longada cinco cava-
leiros armados, com um afrente que
levava urna donzela.
Amigo, como era a donzela?
e
Senhor, formosa sem par!
Mais Ihe disse que tinham ata-
Ihado ao caminho do castelo de
Grumen, um primo de Dardan que
fra morto em casa de el-rei Lisuarte.
Nste passo a alva rompia; Ama-
dis e partiu a caminho da
cavalgou
castelo de Grumen.
Escondido na espessura de urna
cerrada mata, espiava Amadis desde
as rvores o castelo, torvo nos mu-
ros grossos. E nao tardou muita
que visse um cavaleiro que a urna
torre viera mirar o campo em roda.
Depois a porta do castelo abriu-se^
saram cinco cavaleiros bem arma-

zn
o %OmAV^CE "DE oAmADIS

dos, e Amadis viu Oriana nos bra-


cos do encantador.
Ai, Santa Maria, valei-mc!
Ora julgai como seriam os golpes
de Amadis !

Ao primeiro, que era Grumen, o


senhor do castelo, irespassou-o
Amadis com a lanca, de sorte que
ferro e fuste Ihe saram a outra parte;
tomando a espada que com-Ihe fra
panheira no mar, fendeu ao segundo
a cabeca traidora; ao terceiro, que
resistir-lhe quera, derribou-o com
sanha pelos peitos e aos outros
;

dois, que j desandavam, acuti-


lou-os pelas espduas refeces.
Eassimficaramoscincosemeando
o caminho com bravas feridas aber-
tas.

A Arcalaus nao o pode Amadis


ferir como aqueles, porque ele foge

io3
! : !

o %OmAV^CE ^E (yimA<T>IS

e leva consigo Senhor! todo o


seu bem
Mas persegue-o, ladeia-o, envol-
ve-o, e como o tredo se teme da
espada crista que rebrilha, Amadis
arrebata-lhe dos bracos Oriana
Oriana a Sem-Par!. . .

Diante dos maus cavaleiros, mor-


ios por trra com disformes gestos,
Oriana estremecen ; e Amadis, ajoe-
Ihado a seus ps, disse-lhe com
do9ura
Quanto mais custa morrer de
amor
Respondeu-lhe a infanta:
Fazei como quiserdes, que bem
fareis; e, se parecer pecado, nao o
ser para Deus.
la Amadis gozando pela vez pri-

104
meira este bem sem igual de se
achar s com a bem-amada.
Ali com ela, tendo-a salvo do
horrendo perigo a que a arrastara
mal precavida promessa e conquis-
tando-a em batalha no momento
em que ia perder o seu bem, sentia
Amadis no coraco to grande ven-
tura que esta qusi o empcia de
a gozar, to grande era.
E anda ali Amadis amava a furto,

se nao j por temor dos homens,


por temor do amor.
Assim fram andando at orla
da mata, levando Amadis pela rdea
o cvalo em que a infanta montara.
Mas sentia-se Oriana to cansada,
como quem nao dormir a passada
noite, que Amadis se cncaminhou
para um vale onde corria um ribeiro
entre a erva vinosa.
!

o TIO^IA^CE ^E qAqMA'DIS

Passai aqu a calma; desean-


sai nesta frescura.
Emquanto Amadis se desarmava,
uriana adormeceu sombra das
rvores.
Chegou-se Amadis devagarinho
e, vendo-a to linda e ali szinha,
ficou-se a olh-la.
Oriana, acordando, sorriu.
E ento, mais por ela o querer
que por ele o ousar, a donzela se
fezdona sobre aquela cama verde.
Bem abracados se tinham, e do
amor o amor crescia
puro amor,
amor sem fim

to
XI

BRIOLANJA

Oriana vollou a casa de scus


pais, salva de tantos perigos.
J J el-rei Lisuarte, contra
qucm Barsinan tramara alcivosia,
retomou seu senhorio com maior
alteza e honra, e castigou o tredo.
Junto da sua amiga, goza Amadis
com ela o bem do amor escondido.
Mas a honra da palavra dada
m.anda-lhe que se aparte do seu bem
senhores, com que saudades !

Porque sabei-o um dia fra

107.
o r[{OaiA^CE "DE Q.MA^IS

Amadis terao castelo deGrononesa,


e ai soubera a triste historia da
linda princesinha Briolanja.
Fra esta esbulhada do seu reino
por horrenda felonia, qnando o pai
tivera morto s mos de um pr-
prio irmo que cobicava a cora.
E como nao havia mais filhos, ali

ficara a Unda princesinha sem de-


enso nem amparo. Para memo-
ria daquela trai^o, tinham alguns
vassalos fiis levantado no castelo
urna figura de pedra que represen-
tava o rei morto, coroado e de es-
pada na mo. E anda ali nao viera
cavaleiro que pelejasse pela prince-
sinha; e esta, to triste em tenros
anos, vivia esperando por ele,

oihando a estatua de pedra.


Dissera'ento Amadis que havia
c ser ele o cavaleiro esperado e ;
o 'JlO'-MA^Cl^ 'DE qA^jVDIS

prometen a Briolanja voltar para Ihc


reaver o reino de sen pai.
Ah na m
! hora prometer estes
liis servicos Amadis. E quanda
a Oriana rogou Ihe deixasse ir fa-
z-los, mal sabia que dor Ihe viria,
e quanto injusta, Senhor!

Vai Amadis nos vinte anos; a


formosura que tem realcam-na agora
os nobres sinais das armas. E j

sua fama to grande, que com ele


resplandece.
Desde que o olhara, e sendo to
menina, quis-lhe Briolanja com per-
dido amor ; e agora, tornando a
v-Io, sent que Ihe quere mais.
Junto dla, e sers'indo-a na guerra,
guarda Amadis a do seu amor.
f

E nem um breve momento, luz

Tog
o ^{pmA^iCE "DE ddmATilS

do solou da la, deix de s viver


para Oriana a Sem-Par.
Mas ao amor depressa vem o
enredo, mesmo ao amor de Ama-
dis, fiel como outro nao h. As-
sim loi que um pagem de Ama-
dis contou na corte de el-rei Lisuarte
e nao o dissera por mal, mas
porque certo o julgava
que seu
senhor amava a princesinha for-
mosa e por amor se fra a con-
quistar-lhe o reino.
Quando a Oriana chegaram estes
di/.eres do pagem, sentiu no coraco
queixa mortal. Em vo Mablia, a
de fiel conselho, Ihe mostrara a ra-
zo e a verdade. Oriana crera na
traico e nao ouvia conselho nem a
razoes atenda.
Ora, emquanto Oriana padece e
guarda no coraco a injusta sanha,

no
:

o ^{OmAV^CE ^DE qA\LVDIS

ou^'idc como Amadis padeca por


Ihe ficar fiel at a morte.
O amor de Briolanja, que ele nao
quere, quere-o a ele com mais amor,
a que se acresce a gratido que Ihe
tem, senhora do seu reino como

j. E tanto se di de Ihe querer,


que o senhor hifante Dom Alonso
de Portugal
filho do bom trovador

e que depois foi to belo cavalen-o


no Salado
se amerceou da linda
princesinha e, por piedade dla,
mandou por no romance um passo
de sua fei^o.
E bem podemos cuidar que ao
trovador de Amadis dissera o bravo
infante, dando mostras de fino cora-
9o, o mesmo que mais tarde havia
de sangrar ao ter de ser cruel para
o Col de garca
Amigo, hei grande sabor dos

///
!

o %OmA^CE ^E QmA'DIS

feitos de Amadis e de tudo que ha-


bis bem contado. Mas por minha
f juro que, por sua grande bondade
e formosura, nao h-de ser Briolanja
tratada de tal guisa !

Senhor, tornara-lhe o serio


cavaleiro-poeta mas vossa merc
bem sabe que at morte ser fiel

Amadis sua senhora Oriana


Pois, amigo, cobremos o reme-
dio, e isto mudai na historia que vos
far sempre louvado dos homens
bons que vos agora lm e lero
adiantc !

E assim se concertou que Amadis,


preso em uma torre at que a Brio-
lanja quisesse por amiga, enviara
recado a Oriana, pedindo-lhe li-

cenqa para se resgatar.


E que Oriana, outro modo nao
vendo de o livrar, dera a licenca

IJ2
!

o T{09^1AV^CE "DE odmA'DIiy

requerida, do que Briolanja houvera


dois filhos de um s ventre.
Remediava desta guisa a ambos
o senhor infante Dom Afonso de
Portugal : a Amadis, por nao que-
brar f jurada ; a Briolanja, por a
servir no desejo.
Mas ah ! senhores, outra a ver-
dade. A verdade que Amadis,
preso em urna torre pelo que ouvis-
tes, perdeu o comer e o dormir e
perto estava da morte.
Ento,temendo mat-lo, Briolanja
soltou-o. E Amadis foi fiel a Oriana
a Sem-Par

zi3
XII

AS PENAS DE AMADIS

AcoNSELHADA pela scm-razo,


e escondendo a Mablia o
que fazia, escreveu Oriana
a Amadis.

Chamou Durin irmo de urna
boa donzela da Dinamarca que na
corte havia muito morava
c or-

denou-lhe que levasse a carta ao


reino deBriolanja e Ihe nao trouxes-
se resposta.
Entretanto Amadis, com seus ir-
mos Galaor e Florestan, com Agra-

z/i
: :

o 1{0mAVSiCE 'TJE QmA'DIS

jes e outros belos cavaleiros, ganhara


a Ilha Firme, que fra de Apolidon,
ali outrora arribado, vindo das ilhas
da Grecia, e dla tomara senhorio
com seus palacios e tesoiiros.
Partiu Durin e, chegado que foi

Ilha Firme, chamou Amadis a furto


onde nao fssem vistos e deu-lhe a
carta.
Quando ele acabou de a 1er ta
crua era ! sentou-se as ervas do
chao, perdida a cor e a firmeza.
Amigo, mandaram-me outro
recado?

Senhor, nao.
Mas levareis meu mandado?"
Senhor, nao o levarei.
Releu Amadis a regra que dizia
Nao me aparejis diante, nem me
busquis, nem me deis novas.
E ento disse

Ji6
! !

Senhor Dcus, por que vos apraz


matar-mc?

Ao fiel, caro Gandalin, que cho-


rava de o ver chorar, Amadis, des-
pedindo-se, dissera:
Gandalin^ amigo! Criou-nos
o mesmo leitc e teus pais me quise-
ram como a filho. Agora, que vou
morrer, ouve a minha vontade : esta
Ilha Firme, que eu ganhci, a ti a dou
para que a ela tragas como senho-
res teu pai e mae. Amigo, nao me
procures, que nao nos veremos mais
E Gandan, transido de dor,
viu-o partir sem elmo, nem escudo,
nem lan(;a, nem espada
Vai Amadis andando e nao sabe
onde.
K o cvalo sem govCrno que o guia.

117
o 1{0a(!AV^CE "DE oAmA'DIS

Amadis nao tem rumo porque o


perdeu com o amor.
Descem dos montes, lentas, as
sombras e deitam-se ao comprido
na trra solitaria. Amadis caminha
e alonga no meio dlas a aparncia
do seu vulto.

O meu amor pensava ele ao
passo que a luz desflcela
como
a sombra :quanto vai sendo mais
tarde, tanto vai sendo maior !
O cvalo endireitou a uma floresta
e penetrou na funda espessura.
Deixa-se ir Amadis ao sabor das
suas penas. Anoiteceu. Assim va-
gueia metade da noite na rumorosa
escurido das rvores.
E desta noite em que vai, mais
cerrada que a outra que o cerca, s
acorda quando um ramo Ihe bate
rijo nos olhos.

ii8
:

o i{o^ia:^ce de QmAi^is

Apeia-se, deita-se, e no escuro a


voz mistura-se ao pranto que chora
maravilha
Oh mea senhor Cndales, bom,
lial cavaleiro meu amo!
Por que
te aprouve recolher aquela piquena
coisa que l ia sobre as aguas do-
mar ?

Ao outro dia, caminhando ven-


tura por uma verde campia, encon-
trou Amadis um ermito que des-
cansava ao p de uma fonte, onde
dera de beber ao seu asno.
Cobria-o um pobre hbito tecido
de l de cabra, e espalhavam-se-lhe
nos peitos as cas mui alvas.
Preguntou-lhe Amadis se ele era

monge, e como o bom velho Ihe tor-


nasse que h quarenta anos o era,

iig
: ;

o 1{0mAVXCE "BE QAmAT>IS

apeou-se o cavaleiro e, de joelhos,


beijou os ps do homem de Deus.
Doeu-se o velho monge da pena
que via em to moco e formoso
senhor
Meu filho, se de arrependido
choris por pecados que hajais
cometido, boas as lgrimas sao.
Pediu-lhe Amadis que o ouvisse
de confisso, e ali Ihe contou da sua
vida assim o bem como a dor.
Meu filho, se os bens tempo-

rais sao fumo que o vento semeia,


que sero prazeres de mulheres
seno um fumo mais vo ?
E foi-o admoestando com palavras
sisudas, que Ihe a idade e estado
aconselhavam, mas tambm com o
jeito brando que rende almas quei-

xosas. Disse-lhe que cuidados tais


os reprovava ele por desgarrados

i20
o %0MAV^CE 'DE cA^lT>IS

que a mocidade e o valeroso rasgo


o deviam de consolar de semelhan-
tes males, os quais em verdade pro-
vinham de coisas que nao acrescen-
tavam o servi(;o de Deus; que o pe-
cado cometa por fazer doce o que
depois com seu travor to amargoso
torna; e mais Ihe disse que nao havia
no mundo mulher nenhuma merece-
dora de que por ela se viesse a per-
der um homem como ele.

Meu pai; nessa parte nao vos


pe^o eu conselho; s vos pe^o que
curis da minha alma.
Rogou-lhe ento Amadis que o
Jevasse consigo onde fsse, pois
sentindo-se a ponto de morrer, pre-
cisava do socorro divino.
Meu filho, moro em logar es-
quivo e trabalhoso, em uma ermida
posta em alta penha que se adianta
.

o %OmAV^CE ^E oAaiA'DIS

sete leguasno mar. Para se l viver


mister despedirmo-nos do mundo,
dos prazeres e vicios que tem. A
trra deserta e, do lado da agua,
s em tempo macic de vero se
logra desembarcar. E eu vivo de
esmolas. .

Responden Amadis que muito Ihe


aprazia quanto escutara, pois para
si se acabara o mundo ; e tornou a
rogar-lhe que o levasse, ou ele iria
morrer nos algares dos montes, de-
sesperado e szinho, perdendo a
alma. Convelo por fim o monge
em o levar;e, erguendo a mo,

aben(;oou-o.
Rezou o ermito as vsperas e,.

ao cabo, tirou de um alforge urna


escassa merenda que repartiu com
Amadis. Nao comia h tres
ste
dias, mas recusou o bocado, do que.

J22
!

o "lOzMAVSiCE "DE QAmA<T>lS

o santo homem Ihe ralhou, fazcnda


que um pouco comesse.
Anoitccia entrementes ; o ermito
deitou-se a dormir no sen manto, e
Amadis, a sj^us pcs, adormeceu
tambm. E Amadis tcveumsonho.
Sonhou que eslava encerrado em
cmara to negra que nao entrava
nela alguma lembran9a do dia e nao ;

achando por onde sasse, arqueja-


v-lhe o coraco e parecia-lhe que
;

vinham a sua prima


ele Mabilia e a
donzela da Dinamarca, e que um raio
de sol bailava diante dlas To- . . .

mavam-lhe elas as mos e diziam-


Ihe :
Senhor, sade e buscai a luz
E, sando, vira Oriana, que eslava
cercada de fogo ... E, passando
atravs do fogosem sentir que ele o
queimasse, tomara Oriana nos bra-
cos e a levara a um ormoso vergel. . .

123'

o ^{OmAT^iCE ^E oAoMATUS

Com aflitos brados, acordou; e o


crmito, despertando com les, dis-
ps-se a ir de longada.
Queria Amadis deixar ali o cvalo
para seguir, apeado e humilde, seu
virtuoso companheiro. Mas nao Iho
consentiu o ermito.
Meu pai, disse-lhe Amadis
mais uma coisa vos peco que a :

ningum digis quem sou, nem me


chamis por meu nome.
Sorriu-se o santo homem e tor-
nou-lhe que a to mo(;o e formoso
senhor, carregado de tanta pena,
daria nome que quadrasse gen-
tileza e a dor.
E ps-lhe o nome de Beltene-
bros,
Ento, indo o monge no asno e
no corcel o cavaleiro triste, tomaram
ambos o caminho da soledade.

J24
XIII

BELTENEBROS

EMQUANTO Beltenebros e o cr-


mitao iam de longada, chegava
a grte de el-rei Lisiiarte urrv
nobre senhor que jornadeava na-
qule reino.
Acompanhado de dez escudeiros,
anunciou-se a cl-rei o poderoso ca-
valeiro e deu-se a conhecer como o
prncipe de Roma, do Impera-
filho

dor e hcrdeiro do Imperio, que de


seu velho pai recebcria.
Acolheu-o cl-rci Lisuarte como

/25
o %OqMAV^CE 'T>E Q^A'DIS

requeria a alteza de aqule hospede;


e, abracando-o, rogou-lhe se alber-
gasse na corte, do que todos have-
riam prazer.
Quando fram comer, viu o prn-
cipe romano Oriana a Sem-Par e
to espantado foi de sua formosura
que se nao pdeter que nao dissesse
a el-rei Lisuarte:
Senhor, rauitas belezas vi e
admirei no mundo e muito ouvira
-eulouvar a formosura da princesa
Oriana vossa filha, mas agora que a
vejo com meus oihos, por mesqui-
nhos tenho os louvores.
Sorriu el-rei Lisuarte, satisfeito

do que o principe dizia;mas Oriana,


que apesar da crueza com que tra-
tara Amadis nao pensava seno nle
e morria por novas, injiu nao ter
visto o olhar que tanto a louvava.

J26
:

Nos das que estcve na corte nao


buscava o prncipe seno servir a
infanta, por mais que esta Ihe mos-
trasse urna esquivan^a de que aqule
pareca nao se aperceber pois como
;

ra soberboso, avalava em grande


conta o servido prprio.
E Oriana, a quera o cuidado do
-amor tornava triste, tinha por cas-
tigo as finezas do romano e suspi-
rava por v-lo abalar.
Tambm o prncipe nao aprouve
aos cavaleirosque com letratavam;
e todos o julgavam mais bravo em
pulir as palavras que em praticar
os fetos.

Antes de deixar a corte, dissera


o prncipe a el-rei Lisuarte, en-
cobrindo em tais palavras um claro
pensamento
Senhor, de vossa corte nao me
727
o r^OmAZNiCE "DE oAmA^IS

poderei eu esquecer; e um da es-


pero mandar-vos de Roma novas-
minhas.

Chegados que fram Penha


Pobre, de cuja braveza Beltenebros
se agradou, aos marinheiros que os
passaram na barca deu ele as vestes
e o cvalo, recebendo um tabardo
de la meirinha com que se cobriu.
Filho, disse-lhe o ermito
eis-aqui a Penha Pobre, e esta a
ermida onde aVirgem Nossa Senhora
vai ter mais um servidor, do que
pagado seris por sua fina bonda-
de. Assim muitas vezes socorre
aos navegantes a Senhora da Penha,,
quando dessas ondas, achando-se
les em perigo, por ela bradam e
Ihe rezam com devo9o. Para aqu

128
o '1{0IMA\><CE 'DE C/^mA'DIS

me passci, deixando sem saudade


os engaos do mundo, depois de
haver gastado a da dade em
lor

desvairos de mancebo. K aqu me


acompanhoLi sempre iel a solido
dstes sitios, a qual em tiinta anos
s urna vez deixei, e a^ora oi, para
ir ao enterro de uma irm.
E ali comecoLi Beltenebros a azer
penitencia, para que Oriana um dia
o quisesse.
Entretanto Durin, correndo a ga-
lope desapoderado, voitara em dez
dias corte de el-rei Lisuarte.
Ardia Oriana por novas e, cncer-
rando-se com ele, preguntou-lhe logo
que dissera Amadis, e que fazia, e

se Durin vira Briolanja e a achara


to tormosa como era tama.
Mas Durin respondeu-lhe com
tristeza:

9 /Sy
! .

Senhora, tudo direi. Mas sa-


bei antes que crueza como a vossa
nunca no mundo se viu
E depois de Ihe contar os feitos
de Amadis e de louvar a formosura
de Briolanja a qual, tirante Oriana
a Sem-Par, era a mais formosa que
vira contou-lhe de como Amadis
ra dorido e triste da cruel sem-
-razo e como desesperado abalara
ou morrera^ sem se saber onde pa-
rava, se acaso anda vi vi a. .

Quando isto ouviu, Oriana sen-


tiu que a ira quebrava e que no
logar onde ela arder estava agora
piedade que a derretia.
Vendo-a chorar grandes lgrimas
compadeceu-se Durin e chamou Ma-
blia e a irm para que confortas-
sem a infanta. Como sucede com
cora^es de mulher, que vo de

j3o
: ! !

<'xtrcma a extrema sem mais guarte,


tudo nela era chorar, arrcpcndcr-sc
e docr-se, desafogando-sc em vozes
de afligao
Ai! coitada sem ventura, que
E a morte
matei o que mais amava!
do mcu scnhor mal vingada ser
com a minha
Foram-na as duas boas donzelas
sossegando, e com isto Ihe davam
prova do mais fino bem-querer, pois
ambas haviam por cru o que ela
em segrdo fizera, e sem olhar
aos perigos da crueza. E aconse-
Iharam-na a que a Amadis enviasse
doce recado sem deten9a ponto
era saber-se onde ele eslava
Que a seutempo Oriana o espera-
ra no castelo de Miraflores, para
onde Mabilia iria com ela. E que
a doDzela da Dinamarca iria acom-

i3i
:

o T{OmA'J^CE 'DE (yimA'DlS

panhada de Durin ao reino de Es-


cssia, a casa de Cndales, para
onde Amadis talvez se fra a buscar
consolaco.

Una vez, na soledade da Penha-


Pobre, fez o ermito sentar a Belte-^

nebros no poial da ermida, e pre-


yuntou-ihe
Bom ilho_, que sonho tivcstes
quando ao p da fonte dormamos
e me acordastes com brados?
Multas vezes scismara Beitene-
bros naquele sonho que Amadis
tivera, sem que alcancasse o que ele

dizia, se Ihe era aviso de novos ma-


jes ou vinha por esperanca de re-
medio. E alegrando-se de que o
ermito Ihe falasse do sonho, con-
tou-lho sem Ihe esquecer nenhns
passo, tocerto se lembrava de tudo
pelo rebate que Ihe dera. la o cr-
mito ouvindo, com os olhos esten-
didos qiiele grande ermo vivo do
mar que tinham diante, e ali era
toda a companhia.
Responda o marulho das aguas
voz de um e ao silencio dooutro;
e quando Heltenebros acabou de o
contar, pcdiu ao santo homem Iho
expiicasse, mesmo que a seu juzo
fsse o sonho prenuncio de outras
penas.
Pensou o ermito un bocado,
como quem sua leitura
soletrava
naquelas coisas que em vcrdade
ram da outra-banda da ^'ida: e ao
cabo disse-lhe contente:
Beltenebros, bom ilho, muito
rne haveis alegrado; e se contra
meu costume vos falo de semelhan-

i33
:

o liOiMA'^KCE "BE oAmA'DIS

tes coisas, porque julgo melhor


servido de Deus o dizer-vos palavra
certa que vos ajude a alar-vos desta
tristeza, que o deixar-vos correr
morte desesperada.
Cau Beltenebros de joelhos aos
ps doermito, regando-lhe as mos
de lgrimas e achando que doce Ihe
era, em dor to spera, ter o mimo
daqule companheiro.
E o santo homem, que muila
amizade ganhara a Beltenebros, con-
tinuou, sorrindo
Bom filho, inda que as coisas
do mundo nao devam de andar-me
na mente, ora ouvireis como entcndo
o que diz sse sonho era a cmara
:

negra o cuidado; as donzelas, ami-


gas vossas que trabalham por vosso
bem; aqule raio do sol, bom man-
dado que recebereis; e o fogo que

i34
o 1{0SMAVSiCE ^E Q^mADIS
cercava a vossa amiga a pena em
que ela vive por vos.

Partiram em demanda de Amadis,


para o reino de Escssia, a donzcla
da Dinamarca e seu irmo Durin.
Levavam consigo uma carta, mas,
a esta, Oriana fizera-a lo doce
quanto a outra era crua.
Navegaram com ventos fagueiros
e ao cabo de sete das arribaram a
Pegez, de onde Ibram seguindo ao
castelo de Gandules.
Voltavu da caca o bom senhor e,

mal soube de onde elcs chegavam,


com grande amizade e alegria pcdiu
novas do sea criado Amadis. Por
onde les conheceram com tristeza
que Amadis ali nao fura.

A este tempo Dom Guilan o Gui-

i3S
!

o %OmA^CE 'DE Q4mA1)IS

dador, que estivera na llha Firme,


trouxe piedosamente a el-rei Lisuarle
as armas de Amadis, que achara ao
abandono.
Tendo Amadis por morto, chora-
ram-no todos.
E Oriana, encerrada em urna
cmara, maldizia como doida a sua
ventura, e queria morrer.
Mas a boa Mabilia consolava-a,
convencendo-a de que Amadis nao
morrera, dequehaviam de saber no-
vas dle, e que o Senhor Deus o te-

ria em sua santa guarda

Ora, um dia arribou Penha Po-


bre uma au em que vinha a con-
dessa Corisanda, acompanhada de
suas damas e cavaleiros.
Correndo o tempo macio, qui-

i36
o %ozMA':sici: ^de q/i:^lvl)Js

seram desembarcar para olgar uns


das, e ao ermito pcdiu a nobre
dama aposento para se albergar.
Como na cela do santo homem ja-
mis ele consentirla que entrasse
mulher, ofereccu Beltenebros a siia,

para onde Gorisanda ez levar a


cama em que dorma, e ele entanto
dormia ao relento. como muita.
vezes costumava.
Alegrou-sc enlo com a leda com-
panhia aquela solido da Fenha
Pobre.
Trazia luzidos cavaleiroscformo-
sas damas a nobre Gorisanda, do-
nairosos de suas armas les, garridas
elas de mocidade e lindeza; e nesscs
dias todos desean savam das
em que
ladigas da viagem, espalhavam-se
pela praia ou pelas rocas, tolgando
cm jogos e tangendo msica.

i37
!

o 'l{0mA7<CE "DE oAmADIS

E Beltenebros, olhando na ribeira


do mar os cavaleiros e as damas,
scismava em tudo que fra, em tudo
que perder, e remirava de longe as
armas, com saudades
Urna vez estava ele a remir-as
do adro da cpela, onde o ermito
entrara para rezar as vsperas; e
como este deixara encostado ao
muro o cajado a que se arrimava,
pegou Belenebros no bordo e flo-
reou-o no ar como urna espada.
Ao sarda ermida, viu o monge
aquela acco sem que o apercebesse
Beltenebros; e como do corago de-
sejava que o seu bom filho abalasse
daqule deserto, pondo cobro pe-
nitencia, sorriu satisfeito e teve por
bom agoiro que em tais mos se
houvesse feito espada um bordo
de pobre vclho.

i3S
o T{OSMA\>iCE T)E (ylSMA'DIS

A missa, que o crmito dizia,


Corisanda c os seus repararam na-
qule homem mo(;o, to triste e
choroso, que se ajoelhava como pe-
nitente aos psda Virgem Mara.
E urna noitc ouviram que Belte-
nebros cantava urna cani^o to
sadosa que nao mais llies esquc-
ceu.
Passados dias, de novo se embar-
caran!. E a- Penha Pobre ficou
mais triste c s.

Mas Corisanda navegava com


rumo corte de el-rei Lisuarte.
Chegada que foi ai, contou ela a
Mabilia, quando conversavam em
coisas da jornada, que vira na Pe-
nha Pobre um moco peninente cuja
dor Ihe cortara o corayo.

i3^
o T{0mA7^CE "DE oAmA^DIS

E como anda Ihe soava aos ouvi-


dos a voz de Beltenebros, contou-lhe
que o ouvira cantar urna canco sa-
dosa, que nao mais Ihe esquecia.
Ouvindo falar daqule penitente,
dera rebate o fiel coraco de Mab-
ia; emquanto Corisanda
e falav^
pensava a boa donzela :

E se aqule penitente fsse


Amadis, a penar penas to duras
por pecados que nao fez?
E disse a Corisanda:
Senhora, mal sabis como me
prende o que me contais; e, se vos
iembrais da can9o, muito a quisera
eu ouvir.
Vendo como Mabilia seguia o que
ela contava, adivinhou Corisanda
haver ali mgoa de amor de que a in-
fanta de Escssia sabia.
E quando ouviu a canco, co-

140
! :

o 'I{0MAV^CE DE 2,4SMA'DIs

nhcccu-a Mablia por urna can^o


de amor que Amadis izera a Oriana.
Ento correu infanta c disse-lhe
de um flego
Amadis vive c est na Penha
Pobre
E Uriana e Mabilia, abracadas,
conlVindiam as lgrimas, sorrindo!

i4r
XV

A SENHOll/V DA PENHA

reino de Escssia, e tris-

N''otes com seu despacho, em-


barcaram Durin e a boa
donzela da Dinamarca. Da corte
de el-rei Languines traziam para
Mabilia os recados da ranha sua
me.
Mas o que mais queriam trazer,
que eram novas de Amadis, nao o
traziam les.

Agora ouvireis como o Senhor


dispe graciosamente as coisas

143
!

o %0MA:HCE "DE qAqMA'DIS

quando tem piedade das suas po-


bres criaturas.
No mar levantou-se urna grande
tormenta, e ficou a au roa, sem
aparlho, e j nao sabiam caminho
nem carreira. Jogados iam ao gsto
das vagas, altas como serras de
agua, e davam-lhes em cima os bor-
botees do vento.
Cuidando j todos que morreriam,
faziam promessas a Nossa Senhora
e rezavam em coro
Virgem Ma-
dre de Deus, rogai por nos!
Apertando ao peito a carta de
Oriana, a donzeia da Dinamarca
chorava e pensava consigo :

Ai, coitada! Nao encontrei


Amadis e agora morro levando co-
migo a carta que salvaria o melhor
cavaleiro do mundo
Destino cru! ia pensando

144
Durin sua parte. Foi por mi-
nha mo que Amadis receben aquela
carta que o perdeu, e se eu Iha en-
tregue! sem suspeitar que desespero
Ule darla, para que obedec no mais,
nao Ihe aceitando a'resposta? E
You morrer sem poder resgatar esta
maldade!
Passados dias o mar e o vento
amainaram e, na torna da manh,

avistaram trra.

Ento conheceram de bordo a


ermida da Pcnha Pobre. Logo de-
lerminaram os mareantes desembar-
car, a fim de ouvirem missa e ren-

derem suas gracas Senhora pela


milagrosa salva9o que Ihes dera.
Ordenados em procisso desde a
praia, seguiam os marinheiros a
cruz que um grumete, vestido em
urna sobrepeliz, levava aleada; atraz
:

o 1{0afAV^CE TjE oAmA'DIS

da cruz ia urna folia e urna danca,


por festejar o escape da perdico, e
no coice da procisso ia o mongc
da Penha Pobre, com o Sanssimo
Sacramento e os cantores.
Desembarcaran! tambm a don-
zela e Durin e depois que o ermio
;

disse a missa, encontraram-se no


adro com Amadis e nao o reconhe-
ceram, to dessemelhado e descar-
nado estava, com cbelos e barba
ao desdm.
Mas ele, quando os encarou, caiii

como morto no chao.


Vendo o ermito a Beltenebros
por trra, cuidou que a ste chegara
a derradeira hora, e corriam-lhe os
prantos pelas cas
Senhor poderoso, por que vos
nao amerceastes de quem por vosso
servico tanto anda poderla fazer?

146
o %OqMAX^CE "DE cAmA'DIS

E pcdiu aos mareantes que o


ajudassem a levar ao catre aqule
penitente.
Apiedada doqiievia, preguntona
donzcla ao ermito quem aqule
honiem era.
Um cavaleiro que aqu pe- faz
nitencia. . .

Se to spero logar buscou,


grandes devem de ser seus pecados.
Mas pois um cavaleiro, deixai-mc
falar com
ele e das coisas que trago

em aau o poderei remediar.


Quando viu a donzela ao p do
seu catre, Amadis tao turbado foi
que nao sabia que fizesse: porque,
se se Ihe dcsse a conhecer, rompia
a vontade da sua senhora cruel, e
se a deixasse partir, com ela se Ihe

ia a esperanc^a.
Bom homem, pelo ermito

W7
!

o %oMA':kce "DE Q^imADis

soube eu que sois cavaleiro, e coma


as donzelas ctimpre servir quem a
elas serve em tantos perigos, dizei-
-me que farei por vossa sade.
Calava-se Amadis, chorando.
Suspeitou a donzela que o peni-
tente estaria morto ; e, como havia
pouca luz na cela, abriu urna fresta
para ver melhor.
Mas ento, afirmando-se em Bel-
tenebros, conheceu-lhe no rosto o
sinal de urna lanzada e caiu de
joelhos, solucando, e beijando as
liios de Amadis

J48
XV

NO GSTELO
DE MIRAFLORES

A o deixar a Penha Pobre des-


pediu-se Amadis do
ermito,
Tn5os que na
beijando
santo
aqueles
m hora Ihe haviam
skk) amparo. E rogou-lhe com
muita amizadc que fsse Ilha Fir-
me, a fm de reformar um convento
de monges que em suas trras man-
dara edificar.
Depois, passando na barca, me-
teu-se a caminho com a donzela e
Durin. To fraco porm se scntia

^49
o 1{0zMA^CE DE qAqMAT>IS

que nao pode ir muito alm; e


achando les upxi logar que bom ihes
pareceu para cobrar a sade com o
descanso, ali Amadis servido
fcou
pela donzela, emquanto Durin parta
a levar recado a Oriana. Era em
verdade deleitoso o sitio, com rvo-
res de meiga sombra e claras aguas
correntes. Ali alavam os dois do
muito que suceder, das dores pa-
decidas, dos cuidados quehouveram
todos quando Amadis se sumir.
Contava-lhe a boa donzela de
como Galaor, Florestan e Agrajes
haviam partido a busc-lo por lon-
ges trras; a dor de Gandalin, que
voltara chorando corte como doi-
do, e a de Durin, que a custo obe-
decer ordem que levava.
Mas era de Oriana que os dois
falavam sem fim. Contava-lhe a

1 5o
!

donzela como se ela arrependcra


logo da sem-r)z5o e crueza, e como
quisera ter morrido, julgando per-
dido o scu senhor.
E moslrava-lhe de como uriana
agora partira para o castelo de
Miraflores, anciosa do scu perdo,
anciosa do seu amor! Dciado
sombra deleitosa, ouvindo o tom da
agua que chalrcava brincando, ia
Amadis rcendo a carta de Oriana,
em que a bem-amada Ihe pedia per-
do e ainda duvidava de que ele Iho
desse. E beijando as doces pala-
vras, pensando no que a bcm-amada
padecer, padeca Amadis por ela,

sem mais lembrar a dor que Ihe viera


e a ponto estivera de mati-lo.
E, pensando no castelo de Mira-
flores, pedia a Deus Ihe tornasse a
sade, para depressa partir, e viver

i5i
o 1{0mAV^CE "DE ciAm^IS

J cobrara Amadis as frt^as : o


desejo agu9ava-lhe a sade e esta-
vam-Ihe os bracos pedindo o peso
glorioso das armas. E a boa doii-
zela, vendo como ele melhorara,
disse-lhe adeus at Miraflores.
Partiu de ali Amadis e, na pri-
meira vila, por dinheiro que Ihe em-
prestara a donzela, teve armas e om
cvalo.
E ento foi o cavaleiro Betene-
bros.
*

Ficava o castelo de Miraflores a


duas leguas de Londres e, sendo pi-
qucno, era o mais lindo que havia
para urna saborosa morada.
Rodeado de vergis, assentava
numa encosta toda coberta de rvo-
res tSo boas que todo o ano davam

l52
frulo e lor. E dentro tinha cma-
ras de rico lavor c ptiozinhos onde
as fonics cantavam.
Urna vez que el-rei Lisiiarte ali

fra cayar e consigo levara a ranha


e Oriana, esta, anda tamanina, tanto
seagradou do castelo que cl-rei Iho

deu de presente.
E ali viera agora Oriana sentida
-das dores que sofrera, trazendo no
rosto formoso o sinal descerado das
penas.
Com a liel Mabilia .sentava-se a
infanta num ptiozinho ensombrado
de rvores frondosas, debaixo das
quais urna fonte cantava por melo-
diosa bica.
Ai confessava Oriana o seu temor
de Ihe nao perdoar Amadis a crueza
com que o tratara; e contava-lhe
de como o amava mais, depois que

j53
:

o liOmA^CE T>E Q/^IA'DIS

tanto o zera penar. Sorria Mab-


lia e dizJa que se
duvidaya do
ela
perdao do seu amigo, que anda
Ihe nao conhecia o maravilhoso
amor; e explicava-Ihe de como ele
mais a amaria depois que tanto pe-
nara por ela.

Animava-se uriana com tais do-


ces palavras e as duas amigas,
;

Oriana anda dolene, Mabilia com


jeito brando, passeavam os vergis

de Miraflores, floridos de moitas


de rosas, e de onde brotavam fon-
tes.

Voltava ao rosto de Oriana a cor


vinosa; e pois cuidavam nao tarda-
rla Amadis, combinavam ledas como
entrarla a furto o cavaleiro que vi-
nha da amorosa penitencia
Esta varanda alta dizia
Oriana
e nao poder subir!

i54
!

o 1(09^1A'^CE DE qAS\1A'T)1S

Sim, subir tornava Mab-


lia, rindo porque nos daremos Ihe
as mos
Entrementes, e para que todos
fssem mais ledos, chegaram ao cas-
telo os amigos fiis a donzela da
:

Dinamarca, Gandan e Durin.


Chegara Gandalin depois dos ou-
tros e, como o porteiro o viera anun-
ciar infanta, logo esta ordenou:
Que entre o bom amigo que to
-bom escudeiro c e foi criado com-
nosco, para mais irmo de leite de
Amadis, a quem Deus guarde!
Senhora,
disse o porteiro
sim, a quem Deus guarde, pois gran-
de perda seria se to bom senhor se
perdesse.
Nao vedes disse Oriana a
Mabilia, quando o porteiro saiu
como a Amadis amam todos, mesmo

1 55
o 'JiCh^lAVSiCE 'DE Q/mA^IS

os mais simples como ste ? E com*


nao o amara eu?
Fechados com seguranza no p-
tiozinho da fonte lormosa, falavam
iodos de Amadis, em breve dia es-
perado, segundo as novas trazidas
pela donzela da Dinamarca.
Gandalin, amigo, disse urna
vez Oriana ao escudeiro fiel anda
me queres mal pelo mal que eu fiz

sem saber!*
Senhora, respondeu Ganda-
lin quero-vos grande bem por meu
senhor, inda que mal vos quis quan-
do perdido o julguei. E vos, para
o recebcrdes, tom*ii ora todo o bri-
ilao e cAr!
To feia te parejo? tornou
Oriana, rindo. Foi por me achar
feia, amigo, dcpois de tanto sofrer,
que eu vim a este castelo esperar a

j56
!

Anuiilis iiu'ii sciilior, c sorlc que,


vcikIo iiic ele, lulo possa (iif',ii- de
Biini

Urna tnnle, eiilrnnJo na (loresla,


foi-sc Ainats acostaiulo parle ile

Miradores; e, cleixaiulo o cvalo


pastar, esperava que anoitecessc.
Tilo pello eslava aj^oia il.i ven-
luta ijiie as llores passadas llie so-
nielhavan sonho que livera; e Irm
brava como laiUas ve/es ipiisera le

niorrido, e agradecia a Deus ipie llie

f(Va tilo corles e benigno seiihoi-.


Quando aiioileCCU, salloii o miir<>
entrn no vergel e, vendo (iaiida
lin, chanu)U-o baixinho.
(!()i reii oamigoe loi avisai( )riana,
tjiie v(Mo A varanda coin as sus liis.

Enllo, ajudado por (landalin e


o 1{0mAVXCE q)E qASM'DIS

Durin, que o
tinham posto us
ombros, ajudado de cima pelas
e
mos de Oriana, de Mablia e da
donzela, entrn Amadis no castelo
e ficou preso num beijo boca
da bem-amada!

i58
XVI

A ESPADA
E A GUIRLANDA

AMADis, que todos julgavam


perdido ou tinham por mor-
. to, fizera a el-rei Lisuarte
servidos assinalados^ combatendo
por sLia gloria, do que j dizian
alguns que a fama de Amadis Belte-
nebros a ofuscava mas como nao
;

tirara o elmo e ningucm Ihe pudera


ver o rosto, guardara o nome de
Beltenebros.
Entretanto, quando a noite des-
cia, entrava em Miraflores.

i5g
o %OmAVXCE "DE cmA^IS
Ora, estando ele ai urna vez com
sua amiga, veio Gandalin da corte
com grandes novas.
Um velho escudeiro grego, por
nome Macandon, mostrara a el-rei
Lisuarte maravilhosas coisas, as
quais trouxera corte da gr Bre-
tanha por ser ela afamada em gen-
tileza.

E depois que el-rei disse Ihe apra-


zia que sua corte a buscassem
por gentil, mostrara-lhe o escudeiro
uma espada como outra jamis se
vira. Encerrava-a uma banha
transparente, c6r de esmeralda, e
a folha de ac era, at metade, to
limpa como agua na
cristalina, e
outra metade to ardente e vermelha
como de fogo. Depois que esta
espada mostrara, mostrara o es-
cudeiro uma guirlanda to maravi-

j6o
o 1f{0^1A^CE "DE Q^^WDIS

Ihosa como aqiiela mctadc das flores


:

que a entreteciam estavam frescas


como se acabassem de abrir, e na
outra metade to murchas que pa-
reca que se iam desfolhar.
Senhor, dissera iMacandon
h sessenta anos ando cu vaga-
mundo, em cata daqules cujo amor
lograr vencer o poder do que vos
mostr. Desses so, de mais nin-
gum, por mando de altos designios,
poderei receber as armas e, emfim
armado cavaleiro, neste cabo da vida
subir ao trono que h tanto me es-
pera. Mas como a sses nao achei,
nem nos reinos distantes nem as
ilhasdo mar, vossa corte vim para
que nela ordenis uma prova e, se
me prometis que a ordenis, direi
o mais que nao disse.
Ouvindo tais maravilhosas pala-

II JI
o %Oi^AV^CE "DE oAmA'DIS

vras, arderam todos por saber o


mais que Macandon calara.
Senhor, disseram a osel-rei

cavaleiros, que olhavam a espada


encantada ordenai pois essa prova
e tentemo-la todos, nao sendo con-
tra a lei de Cristo.
E as damas, que remiravam curio-
sas a encantada guirlanda, disseram
i"ainha:
Senhora, pois que esta guir-
landa nos respeita como toucado de
llores, ordene el-rei esia prova para
que a tentemos tambera.
De boa-mente o prometer el-rei

Lisuarte; e dissera ento Macan-


don:
Senhor, esta espada que vedes
ningum nunca a tirou da bainha,
donde s poder arranc-Ia aqule
que sua bem-amada quiser com

162
o ^{OSMAV^CE 'DE oAmADIS
perfeito amor. E esta guirlanda,
qiiando posta na cabe(;a daquela
que a scu amado quiser com amor
que reverdece e
igual, ento se ver
ficar toda em tlor.

Ouvira Amadis estas novas, e que-


dara-se a pensar nelas.
Contara depois Gandalin que
tendo el-rei j marcado o dia da pro-
va, todos os cavaleiros fariam por
desembanhar a espada, do mesmo
modo que a guirlanda seria posta
em cabccas de donas e donzelas. E
como ento estivesscm na corte os
melhores cavaleiros da piquena e
gr Brctanha, e a ranha Briolanja
que uriana queria ver, mais que a
ningucm no mundo! ali chegara,
coberta de luto por Amadis, a grande
prova respeitava a todos e todos
queriam tent-la.

63
!

o 1{0mAV^CE "DE QmA'DlS

Disse ento Amadis sua amiga:


A prova iremos tambm!
Pasmou Oriana do que ouviu, to
impossivel Ihe pareceu por perigoso
e louco.
Respondendo ao espanto que lia

nos formosos olhos da sua amiga,


beijou-lhe Amadis as mos e expli-
cou seu pensamento:
Mas iris rebufada de guisa
que ninguem saiba quem sois; e
comigo seris diante de vosso pai
e faremos a prova da Espada e da
Guirlanda

Na vspera da prova na corte en-


tou Oriana recado a el-rei, dizendo
que, por estar doente, naqule dia
fieava deitada.
E depois Mabilia e a donzela da

164
:

o 1{0^AVSiCE T)E 0.49^1 ADIS

Dinamarca disfarcaram a infanta


maravilha.
To bcm disfarcadaficou, vestida
em urna capamui rica mas desusada
no reino e com a cara encoberta
com um rebufo, que Amadis, sor-
rindo, disse quando a viu
Nunca eu cuidei que tanto fol-

garia de vos nao conhecer!


E antes da alva do dia saram de
Miraflores e cavalgaram para a corte
em Levava Amadis as mais
testa.

formosas armas, pusera Oriana as


mais formosas joias, e eram ambos
o Perfeito Par.
Na sala grande dos paq:os, e de-
pois de ouvida missa, el-rei Lisuarte
e a rainha Briscna vo presidir
prova. Todos os cavaleiros cercam
o trono e, sorrindo para les, esto
presentes todas as donas e donzelas.

i6b
o %OmA^CE "DE QAmA<T)IS

Guardadas numa arqueta de jaspe


chapeada de ouro, vem-se a meio
da sala a Espada e a Guirlanda.
Quando el-rei Lisuarte soube que
Beltenebros chegava e concorria
prova, alegrou-se e recebeu-o com
honra.
E Beltenebros, que nao tirara o
elmo, adiantou-se para el-rei, levan-
do pela mo a dama rebu9ada . . .

( Ah! senhores, como Oriana


trema!)
Dado sinal, a prova come(;ou.
Primeiro adiantou-se el-rei e, pe-^

gando na espada, nao a pode tirar


da bainha. Seguiram-se Dom Ga-
laor, que amava Briolanja, e Bruneu
de Bonamar, que amava Melcia, e
Arban de Norgales, que amava
Grindalaia e nao desembainharam
:

a espada. Depois foi Florestan, o

166
o %OmAV^CE 'VE oAmA'DlS

outro irmo de Amadis, to lial e


gentil, que amava Corisanda : e a
espada nao sau da banha de es-
meralda.
Seguiram-se Galvanes Sem-Ter-
ra, e Brandoivas, e Grumcdan, e La-
dasin, que todos tinham amores : e
a espada ficou-se na banha. Logo
a provou Guilan o Cuidador, que
amava Brandahia, depois de ahaver
provado Agrajes, que amava Oiin-
da e nao sau da bainha aquela es-
:

pada.
E assini oi com Polomir, com
Dragonis, com todos que a prova-
ram ;
pois se todos, uns mais, outros
menos, arrancaram da espada algum
tanto, nenhum pode arrancar a es-
pada toda.
Ento adiantou-se Beltenebros,
levando pela mo a bem-amada : e,

i6j
o 1{pm^CE "DE QmATUS

pegando na espada, arrancou-a


da bainha!
Fez-se depois a prova da guir-
landa.
A ranha, primeiro, pos na cabega
as flores ; e as flores nao refloriram.
Seguiu-se-lhe Briolanja, formosa
no seu luto, e para quem Oriana
olhava muito, e nao floriu a guir-
landa. Depois foram Estreleta e
Brandahia, e foi Aldeva e foi Olinda
e Grindalaia, e foram todas: e as
flores nao refloriram. Quando pos-
tas naquelas caberas, mais em urnas,
noutras menos, refloriam algumas
flores mas nunca toda a guirlanda.
;

Ento adiantou-se a dama de


Beltenebros, levada pela mo do seu
amado e quando a pos na cabe9a
:

toda a guirlanda floriu!

i68
XVI

A CANCO
DE LEONORETA

ACABADA a prova da Espada


e da Guirlanda, foi Macan-
don armado cavalciro por
Beltenebros e, bemdizcndo o Per-
feito Par, receben as armas das

mos daquela dama rebucada.


Muito lestejou a ranha a dama de
Beltenebros, e el-rei Lisiuirte, para
azer mais honra ao cavaleiro e
bem-amada, sau a dcspedi-los, le-
gando a rdea o cvalo daquela
dama, em cuja cabe;;a lorcscia a

jr,g
o ^OmA^CE T)E d^mATUS
guirlanda, assim como na mo de
Beltenebros rebrilhava a espada.
Voltando a palacio, quis ei-rei

Lisuarte ofertar aos cavaleiros e as


donas e donzelas umacoisa graciosa
e que a todos deu prazer. Depois
que Amadis se perder
e alguns
dos que estavam bem o haviam
ali

buscado por longes trras era a


primeira vez que se davam mostras
de alegra.
Chamou el-rei Leonoreta, sua
filha anda menina, e pediu-lhe que
viesse cantar e danzar, com seu coro
de donzelinhas, aquela can^o que
Amadis, sendo seu cavaleiro, fizera
por seu amor.
Fra o caso que urna vez, estan-
do Amadis a falar com el-rei e a
rainha, Oriana, Mabilia e Olinda
convenceram Leonoreta a que es-

J70
:

o T{OmA'J^CE T)L qA^IAT>IS

colhesse Amadis por scu cavaleiro,


para que ele mu bem a servisse,
sem olhar para mais nenhuma dama.
Riram-se os rcis e Amadis; e este,

pegando ao col na infantinha, sen-


tara-a no estrado e dissera-lhc muito
serio
Pois paracavaleirome queris,
bem me deis uma jia a fim de

me eu ter por vosso.


E a infantinha tirara dos cbelos
um alfmcte de ouro cravado de pe-
dras preciosas, e dera-lho por amo-
roso penhor.
Tendo el-rei Lisuarte contado
esta lembran^a graciosa, todos sor-
riram ouvindo-o.
Mas o que el-rei nao sabia era
que essa can<;o a fizera Amadis
para Oriana, e que emquanto falava
a Lconoreta, brincando com ela no

171
o 1{0^A7<iCE "DE oAmA'DIS

estribilho, em verdade dizia como


amava a furto a Sem-Par.
Entrementes entrou Leonoreta, e
seguiam-na doze damizelas. Vi-
nham todas vestidas por igual, de
telas ricas, e traziam grinaldas as
cabecas.
E Leonoreta e o coro cantaram
e dancaram a formosa canco:

Senhor genta^
min tormenta
voss'amor en guisa tal,

que tormenta
que eii senta^
outra non m' ben nen mal^
mais la vossa i7 mortal,

Leonoreta^
fin roseta^
beta sobre toda fror,
fin roseta^

77:
! f

o T{0^1A'0\^CE 'DE oA^lA'DIS


i
non me meta
en tal caita posso amor!

Das que vejo


non desejo
outra senhor se vs non.

E desejo
tan sobejo
matara un len,
senhor do meu coracon !

Leonoreta,
fin roseti,
tela sobre toda fror,
fin roseta,
non me meta
en tal coita vosso amor

Mha ventura
en loucura
me meten de vus amar.
loucura
que me dura,
que me non poss'n quitar.
Ai fremosura se ni par
o I^OMAHiCE "DE QmADIS
Leonoreia,
fin roseta,
hela sobre toda fror,
fin roseta,
non me meta
en tal caita vosso amor I

jy4
XVIIl

AS SETE PARTIDAS

DEPRESSA foge ao amor a ven-


tura, e assim fugiram ligei-
ros os dias de Miraflores.
Conheceu Amadis que nao podia
encontrar-se ai mais com a sua
amiga, por to perigoso ser.

Doces horas vividas a furto entre


os amigos fiis, no cora9o dos quais

demorava o segrdo escondido e


amado; doces horas de tanto sabor
na cmara de Oriana, ao tomar
rijo nos bracos a esbelteza do corpo

17S
o 1{0MA^CE DE QAmA<T)IS

de ouro; doces horas em que ambos


passeavam sombra rescendente
dos vergis adeus !

Dera-se ento Amadis a conhecer


a el-rei Lisurte e a todos, e em
batalha o fizera, salvando da
el-rei

perdi^oemque estva e mantendo-


-Ihe a vida com a vitria.
Nao mostrara porm el-rei Lisur-
te to agradecido cora^o como
devera, fsse que j invejasse gloria
que tanto brilhava, fsse que a seus
ouvidos ousassem segredar bocas
enredadoras que Amadis Ihe cobica-
va a coroa.
Sadoso deMiraflores, desgostosa
da corte, e nao, como todos cuida-
am, por desejo de andar trras
cstranhas e ver varias gentes e leis^

foi Amadis correr as sete partidas


do mundo.

iy6
!

Amiga adorada, dissera ele


a Oriana, talando a furto com ela
urna ltima vez pois el-rci assim
o quere, assim me convm faz-lo,
e vou-me para que a gloria, que por
ti s ganhei, se nao perca com mi-

nha honra. Amiga, como sou mais


teu que meu, nao me mandes ficar,
inda que eu morra de dizer-te adeus I


Amigo,
respondera-lhe Oria-
na, a quem o corac^ao tambm se
partia a mim era, e nao a el-rei

meu pai, que tu servias; mas pois


da tua honra'me talas at um dia,
e at sempre
Nsses reinos distantes, para onde
se fra depois de visitar o seu bom
senhor Cndales e a corte de Gaula,
praticou Amadis grandes feitos, para
gloria de Deus e da bem-amada.
Um dia, navegando diante de uma

la . 177
o ''I{0aA7<iCE DE cAaiA'DIS

ilha que Ihe pareceu bem vestida de


arvoredo, apeteceu a Amadis des-
embarcar, por descansar um pouco
em sombra mansa.
Senhor, disse-lhe mestre Eli-
sabat, que era o patro da galera,
homem sabio em experiencia e con-
selho esta a liha Triste e de neia
desembarcar nos guardemos nos.
E contou-lhe mestre Elisabat de
como ali reinava Madarque, o gi-

gante cruel de cuja sanha Ihe foi di-

zendo os feitos, contra a lei de


Cristo cometidos.
Mas a Amadis respeitava limpar
o mundo de traico, de maldade e
de erro; e, alcancando trra em um
batelonde levava o cvalo, foi su-
bindo um escarpado monte, coroado
no cimo por um castelo. Logo de
urna torre do alc9ar deu sinal o
o 1{0^AV^CE "DE (y^iAT)IS

fero som de iima buzina, cujo clan-


gor foi tangcndo o recncavo das
lurnas. Nao tardou Madarque em
descer a terreiro, e viu-o Amadis
vestido de ac no possante ginete,
trazendo a cabera coberta com urna
capelina coruscante e na mo um
venbulo de guerra.
Ora me valha aqu minha sc-
nhora Oriana!
rezou Amadis no
ntimo do cora(;o.
E mestre Elisabat ouvira, desde
a galera ancorada, o estrupido da
batalha, que atemorizava os ecos.
Emfim roto dos golpes se abatera
por trra o gigante Madarque e,

vencido prometer ao ven-


e repeso,
cedor abrac^ar a lei de Cristo. En-
to libertara Amadis dos crceres do
castelo os cativos que nelas penavam
e agora bemdiziam o salvador!

779
o ^OmA^CE "DE cAmA'DIS

Outra vez, indo com rumo a


Constantinopla, e depois de urna
tormenta que Ihes dera, passaram
a uma ilha que, por to despovoada
e agreste, entristeca os olhos que
a abrangiam. E mestre Elisabat
contara que aquela era a Ilha do
Diabo, anda mais temerosa que a
Ilha Triste, porque ali havia senho-
rio,nao j criatura com forma hu-
mana, mas uma alimria horrenda,
em cuja fbrica meter mo o de-
monio e a quem o pavor das gentes
nomeava por Endriago.
Tinha o corpo veloso e escamoso,
a modo de rocha felpuda corria ;

voante como touro alado em asas


de morcego, chamejando pela gela
pe9onha de vapores ; e todo o seu
prazer era devorar gente, da qual
pouca restava naquela ilha.

iSo
1 !

o "^OaiA^CE "DE oAmA'^DIS

Ouvia Amadis tais temerosas coi-


sas, e emquanto olhava a ilha rene-
gada, pensava que em combater o
prprio poder do demonio daria
grande lustre ao seu amor.
Gandalin, amigo, Ama- disse
disao escudeiro quando sau a
fiel,

combater o monstro uma coisa


te rogo muito : e que, se eu aqui
morrer,leves aminhasenhoraOriana
o que eu trago e dla o meu
coraco
Ficara-se 'Gandalin em lastimoso
pranto, porque a grande afeii^o

que a Amadis votava, sobrclelava


nle ao desejo de ver o seu senhor
colher mais gloria; e temia tcr de
cumprir to doloroso mandado, le-
vando a Oriana a llor dos cora^es
Fra-se Amadis a desafiar a me-
donha bsta-fera no seu fojo de

i8r
o 1{0MA'XCE TfE QmA<T>IS

rochas taciturnas, dando vozes com


que ela sau a terreiro mais sanhuda.
Como a Endriago assistia o poder
do demonio e como ste via que o
cavaleiro invocava, antes do nome
de Deus, o nome da bem-amada,
j festejava raivoso o desbarate do
inimigo.
Mas o nome de Oriana, junto ao
nome de Deus, anda ali salvara a
que o invocara em bataiha.
E aps o combate, destrocado o
monstro, recolhera Gandalin a Ama-
dis meio-morto galera, onde mes-
tre Eiisabat, com subtis medicinas,
Ihe foi curando as feridas e a peco-
nha.
E, por memoria do grande ieito,
se ficou chamando aquela ilha
Ilha de Santa Maria.
Depois, em Constantinopla, que

j8:
!

eranaqule tempo a cabeca da Cris-


tandade, recebera-o o Imperador
fazendo-lhe multas honras e quan-
10 desejara que em suas Ierras ficasse
demorando o Paladim
Mas tanto se lembrava sempre
Amadis da bem-amada, que, vendo
entrar a infanta, linda maravilha,
se do tempo em que
recordou
Oriana era da idade dla e ele o
Donzel do Mar
e chcgaram-lhe
as lgrimas aos olhos.
Repararam todos naquele pranto
represo, admirados de lgrimas ve-
rem nos olhos do vencedor de En-
driago; mas todos calaram por cor-
tesa a estranheza.
O Imperador, a quem Amadis
mas agradava que nenhum outro
senhor que at ento conhecesse, fa-
lou puridade com mestre Iilisabat:

iS3
! :

Mestre, por que razo chorara


o amo a quem bem servs?
Senhor, como o sabere? S
se que mais formoso e esforcado
cavaleiro nao h
Seria por esconder mgoa de
amor?
Senhor, se ele a esconde, bem
encerrada a tem, pos s quando
dorme suspira, inda que s vezes
as scsmas o tragam por longe.
Mas a princesa, a quem mais que
a todos aquelas lgrimas haviam
chegado ao cora9o, preguntn a
Amadis pedosamente, uma vez que
junto ao seu estrado nao estava por
ento mais ningum
Senhor, por que haveis cho-
rado ?

Recobrou-se Amadis do enleio


em que o deixara a pregunta e, nao

J84
! :

o ^OmA^iCE "DE cA\AT>IS

sabcndo mentir nemqucrendo passar


alm, disfarcou com alegre sem-
blante :

Foi porque me lembrei de um


tempo saboroso
Ao despedir-se Amadis da corte,
juntaram-se na sala grande dos pa-
90S, que era toda forrada de ouro,
com figuras mui ricas de embrocha-
dos, os altos senhores do imperio, e
o Imperador ofertou a Amadis multas
pedras preciosas que provinham dos
tesouros dos reis da Judeia; mas
Amadis escusou-se a aceit-las.
A infanta, a quem aqule adeus
custava, trouxe duas coras do mais
rico lavor e pedraria
Dois dons vos pei;o, senhor:

disse a bela princesa que a cora


cm que alvorecc ste branco rubim
a deis mais linda donzela que

i85
o ^BdA'^CE "DE oAmA^lS

conhecerdes, e estoutra em que


esplende um rubim vermelho mais
ormosa dona a ofertis.
Ento pusera Amadis a cora do
branco rubim na cabeca da infanta
de Constantinopla, e a coroa do
rubim vermelho guardou-a para
Oriana a Sem-Par.

Assim por espaco de tres anos


andou Amadis de ierra em trra e
de gloria em gloria, em Alemanha,
em Romania, em Grecia, protegendo
os fracos, abatendo os soberbos,
reparando agravos, emendando er-
ros, aprendendo as linguagens dos
povos, conhecendo peregrinos cos-
tumes.
As vezes, quando mais Ihe pesava
o lembrar-se, fugia aos louvores
uSG

o I^OqMA^CE "DE QMA'Dls

poisnunca Ihc agradava que o lou-


vasscm
e ao sadar de prncipes
e senhores, e buscava solidao de
floresta para ai, a sos com o seu
cora(;o, szinho com Gandalin,
pensar em Miraflores. Como sina
e magia de sadosos irem ante si
gurando o que adoram, assim via
Amadis os olhos de Oriana, a boca
de Oriana, suas mos, seus cbelos,,
seus ps mimosos nos chapins pon-
teagudos, todo o seu corpo de ouro,
que ele tivera. E como o que via
estava animado daquela luz de den-
tro que a alma, via tambm a al-
ma de Oriana, to finamente trajada
no vestido do seu corpo, e ormosa

como ele.

Quantas ve/.es, no albergue dos


castelos ou na riqueza das cortes,
sentir Amadis que o buscavam o-

:8t
!

OM AVXCE ^E QAmAT>lS

sorriso de muitas bocas formosas e


a luz de muitos olhos lindos
Mas, se os olhava, nem bem os
via, pois to cerrado guardava o
segrdo do seu amor como manti-
nha fiis corpo e alma bem-
-amada.
E sem nunca ter novas de Oriana,
sempre presente na sua alma,
teve-a
porque sempre houve nela a
Saudade.

i88
XIX

IMPERATRIZ DE ROMA

MAScm nao fra esquecida Oriana


Roma, e o novo Impe-
rador que ai reinava man-
dou a el-rei Lisuarte urna poderosa
embaixada a pedir-ihe a sua mo.
Assim, desde que partir da corte
da gr Bretanha, nao esqueccra
aquele principe a formosa Sem-Par
e, logo que subiu ao trono, o seu

primeiro cuidado foi pedi-la, fiado


na boa men^o que el-rei fizera s
palavras da sua despedida, e mais

189
o 1(pmAZNiCE ^E oAmA^DIS

que tudo fiado na soberba de crer


que nenhuma princesa da Cristan-
dade recusara sentar-se sua ilharga
no solio do seu Imperio. Arribaram
Gr Bretanha as naves romanas,
aparelhadas com grande riqueza, e
dlas desembarcaram grandes se-
nhores.
Agasalhou el-rei Lisuarte com
muita honra os nobres embaixado-
res, entre os quais mandara o Im-

perador a ranha Sardamira de Sar-


denha a fim de acompanhar a Im-
peratriz a Roma o prncipe Salus-
tanqudo, senhor de Calabria, Bron-
dajelde Roca e o bispo de Tulncia.
E quando pediram para
les Ihe
o Imperador de Roma a mo da
infanta Oriana, ficou el-rei Lisuarte
de dar a resposta ao cabo de um
mes.

jgo
o "^{OSMA^CH ^Dk cyliiMA'DlS

Mas logo teve el-rei por graciosa


fortuna que o Imperador mais pode-
roso da trra !he mandasse pedir
urna filha.

E, antes que ouvisse conselho,


prometeu a si mesmo que a daria.

Quando Oriana soube que os ro-


manos vinham com tal recado e sua
me Ihe disse que el-rei se inclinava
a dar-lhes favorvel despacho, ficou
tolhida de espanto e dor! Nao sa-
bia a fiel Mablia defender agora
Oriana contra perigo que era maior
por to traicoeiro ser; e, apartadas
de todos na cmara da infanta, de-
safogavam-se em palavras, j de
furor, logo descoro^oadas, do que
ambas iam sofrendo, cada uma de
seu mal, que ao mesmo ia dar, E
lembravam com sanha desdm o
e
principe nscio e inchado que mal

igi
! : !

o liqmAV^CE "DE cmA'DIS

andante viera corte da gr Bre-


tanha.
Ai gema
! Oriana. Por
que se foi Amadis e me deixou s-
zinha, ele, o lume das coitadas?
Nao podendo mais calar a angus-
tia que a trespassava, foi Oriana
ter com seu pai, ajoelhou-se-lhe aos
ps e disse-lhe chorando :

Havei piedade desta filha


Levantou-a el-rei a ponto que
Oriana Ihe ia beijar os ps
Filha, a tudo que disserdes
ouvirei com amor de pai.
Meu pai senhor,
e se vossa
vontade mandar-me ao Imperador
de Roma, apartando-me de vos, da
minha me e da trra onde nasciy
sabei que tal vontade se nao peder
cumprir porque antes morrerei ou
me darei a morte

ig2
o 1{0aiA':NiCE "DE QmA'DlS

Tornou-lhe el-rei que forte lou-


cura seria nao querer o trono mais
poderoso da vendo as gran-
trra,
dezas do Imperio, havendo seu se-
nhorio e tendo reis e ranhas por
vassalos ;
que em
chegando a
ela
Roma logo aprovaria o que el-rei
desejava para bem da sua filha,
a quem muito queria, e para bem
da sua cora, a que muito lustre
dava.
Junto de sua me recebia Oriana
piedade e conforto, mas que podia
a ranha seno acompanh-la na
dor?
E porque el-rei pensou que a seus
fins convinha, mandou Oriana para
o castelo de Miraflores, onde a rainha
Sardamira a acompanhar.
foi

No castelo das lembran9as caras,


mais padeceu Oriana a grande pena

i3 193
o 1{0mAV^CE 'DE QAmAT>IS

em qu se via. Tudo ali Ihe esper-


tava a memoria dos dias saborosos,
tudo, desde o mavioso charelo das
fontes at ao aceno das rvores que
aos dois haviam coberto. Em tudo
lia Oriana os sinais do seu amor,

surga de cada canto o vulto de


Amadis, todo o logar o marcava
}embran(;a de afago ou beijo; e
noite, szinha em sua cmara, via
a seu lado no leito o logar do seu
amado.
Falava-lhe a ranha Sardamira
das grandezas de Roma e do senho-
rio imperial; mas emquanto a ranha
falava, Oriana pensava em seu ami-
go, que sadoso andava por longes
trras; pensava na fidelidade de
Amadis, no que por ela penara e
senta em seu corpo formoso der-
reter-se-lhe a alma por ele.

^94
!

Louvava-lhe a ranha Sardamira


o belo amor do Imperador, que
tanto Ihe quera desde que a vira na
corte, e dla fazia a senhora mais
poderosa do mundo, soberana dos
prncipes da trra.
Mas Oriana, olhando o vergel,
lembrava-se da noite em que Ama-
dis entrara no castelo e icara
preso num beijo a sua boca

Quis el-rei Lisuarte ouvir o lio-


Tiiens bons, e a palacio os chamou
com o conde Argamon, seu tio, a llm
de receber juzos avisados.
Era o velho conde senhor de
mente arguta e tinha muito mundo.
iMesmo doente de gota viera ao
chamamento q, sabedor do que a
tod(3S constava, vendo os modos
o %OmAV^CE "DE QmA'DIS

de el-rei logo o teve por j deter-


minado e por pouco inclinado a
escutar razes. Como conhecera
muitas cortes, bem sabia que aos
reis nao apraz que os atalhem nos
intentos, at por serem de humana
condico.
Mas o conde Argamon vinha se-
guro de sua causa e, depois, j por
to velho ser, desapegado das coisas
do mundo, nao se Ihe dava dizer
aos mais o que tinha por direita
verdade.
Juntos que fram nos pa^os,
falou el-rei Lisuarte aos homens
bons e disse-lhes que havia aqule
casamento por coisa louvvel e
da qual poderiam todos ter apra-
zimento; que o Imperador, esco-
Ihendo Oriana entre as princesas
da Cristandade, dera mostras de

jg6
:

o ^{O^^A^CE ^E oAmADIS
honrar a coroa da <v\ Bretanha,
aliando as grandezas do Imperio
as da cavalaria dste reino; e que
esperava em seu cora<;o de rci e

de pai que a infanta siia filha fsse

ditosa em Roma, aleada ao trono


por Imperatriz.
Ouvira o velho conde o que el-rei
dissera, c fra-o olhando com finos
olhos em cuja chama, que a idade
amortecer, brilhava anda a luz das
mentes claras. E, quando el-rei
acabou, comecou ele
Sobrinho e senhor, custoso
dar conselho em coisas tais, pois se
por vossa vontade tormos, a nos
mesmos podemos engaar, e se con-
tra ela nos pusermos, vos agastar-
-vos-heis.
E foi dizendo que tal casamento
nao era de razo se o nao desejava

^97
Oriana, e que ele suspeitava que a
infanta nao era leda de se alear por
Imperatriz que por sse casamento
;

perda ela o reino de que era her-


deira e de direito Ihe pertencia, de
sorte que, mandando-a ao Impera-
dor, el-rei Lisuarte a deserdava e
dava a cora a Leonoreta; que
tambm tal casamento vinha por
o reino em o Impera-
perigo,, pois
dor, por morte de sua mulher, po-
derla julgar-se com direitos a esta
cora, e em verdade poderia vir
a t-Ios ; e que sendo o Imperador
poderoso como era, sem granda
trabalho o reino viria tomar.
Todas estas avisadas coisas as
dissera o conde Argamon por amor
da verdade, e tambm porque sabia
que Oriana padeca e chorava de
casar, e o discreto senhor senta pela

igS
o %OiMA^CE TtE Q/lPdA<T>IS

formosa infanta um afecto que se


revia em sua beleza dla.
El-rei Lisuarte, a quem o arrazoado
do seu velho to dora, retrucou que
a mocidade, pelo ser, nao sabe o
que mais eonvm ao bem prprio,
e que a muita crescenca dos anos,
com escurecer o mundo, levanta pe-
rigos onde se les nao acham.
E assim como nao atender aos
homens bons, nem ao conde Arga-
mon, com quem se mostrara agas-
tado e se retirou para as suas tr-
ras, nao atenda el-rei Lisuarte a
sua mulher a ranha Brisena, que
chorava de saber que Oriana par-
ta e contra vontade casara.

J nos coracoes dos mais liis


cavaleiros lavrava a tristeza de tal
feito. E Dom Galaor, que alm de
ser dos mais liis, suspeitava que

igg
:

Amadis c Oriana se amavam, falou


por todos a el-rei:
Senhor, manh se Deus quiser
saremos dste reino, que em vossa
corte nao nos apraz mais servir.
Pregunou el-rei Lisuarte porque
o deixavam.
Senhor, porque a vossa filha
fazeiso que nao devieis de fazer
mais miseranda mulher.
E Galaor, Florestan, Agrajes, e
com les todos os liis, dexaram a
corte de el-rei Lisuarte e passaram-se
Ilha Firme.
Ao cabo do prazo marcado, cha-
mou el-rei a Brondajel de Roca e
deu-lhe a sua resposta
Amigo, sabei que ste casa-
mento nao do agrado de alguns,

que, por muito estimaren! minha
filha, a custo a vem partir. Mas

200
o "J^OVAV^CE "DE qAz\A'THS

pois cu julgo que a faco feliz, muito


me apraz a mim ; c em ela che-
gando a Roma, logo me aprovar.
Aparelhai, pois, vossas naus para
levardes a Impcratriz ao Impera-
dor.
Ento, no aperto de to duro
transe, e por conselho da fiel Mab-
lia, mandou Oriana por Durin a
Ilha Firme o seu recado de dor,
pedindo aos cavaleiros de Amadis
que Ihe acudissem na aflico.
E emquanto se aparelham as na-
ves da embaixada, que j baloicam
no porto anciosas da partida roga
Oriana a Deus Ihe traga o seu amigo
a lempo de a salvar I

201
XX

A ILHA FIRME

QUANDO Amadis entrou no


mar Ocano, palpitou-
-Ihe com ngia o cora-
~ 9o.
Vindo de to longe, lembrava-se
que, entrando a navegar naquelas
aguas, voltava aos caros logares
onde ficara E mais viva
Oriana.
se Ihe acendiano cora9o a sauda-
de da bem-amada.
Agora que a idade verde fugira,
fazendo o amor mais pensado, ape-

20
o I^OmAV^iCE T^E oAmA^IS

lecia Amadis para ele a benco da

igreja, que diante de Deus e dos


homens juntara o seu coraco ao
de Oriana, senhora da Ilha Firme
e futura ranha de Gaula.
Cuidava ele que, nao por mere-
cimentos prprios seno porque Iho
permitir a divina bondade, havia
ganhado Oriana desde aquela ma~
nh de Abril em flor eni que aba-
lara sem nome a caminho de aven-
turas, levando a alma to cheia de
amor tal a sentia agora.
Assim vinha Amadis pensando,
mquanto a au cortava aquelas
aguas e ele olhava, entre vendo -as
a distancia, as costas dos reinos e
as areias das praias.
as horas de folganca, com o
vento a acompanhar as enxrcias
as vozes, os marinheiros cantavam,

S04
Quem embarca ? quem se embarca
se ?
quem vem comigo? quem vem ?
Quem se embarca no meu peitOy
que linda mar que iem !

e, ouvindo-os cantar, acudiam-lhe


as lembran9as e as saudades cres-
ciam.
Lembrava-se dos amigos fiis

cujo amparo tivera em horas de


tanta dor da sua doce prima Ma-
:

blia, da donzcla da Dinamarca, de

Durin; como em nvoa de sonho,


revia a soledade da Penha Pobre
e o ermito que Ihe fra abrigo;
e por cima das ondas mandava um
pensamcnto de terna afei^o ao seu
bom senhor Cndales.
Um dia encontraram uma fusta e
chegaram falacomuns mercaderes
da gr Bretanha que partiam a tra-

205
o 1(pmA^CE "DE qA^A'DIS

ficar em outras trras. Como Ihes


pedissem novas do reino e sendo a
maior dlas o casamento de Oriana,
contaram os mercadores o despacho
que el-rei Lisuarte dera embaixada,
contra vontade de muitos e, ao que
les tinham ouvido, contra a vontade
da infanta. E sabendo Amadis que
a Oriana j a tratavam por Impera-
triz de Roma, ficou um tempo sem
acord nos bracos de Gandalin.
Vendo desfalecido o mais forte
cavaleiro, a quem apenas derribava
o cuidado da bem-amada, conside-
rava o escudeiro com pranto enter-
necido aqule maravilhoso amor do
seu senhor e amigo.
Este que vai aqui desacordado
pensava Gandalin aqule que
venceu Dardan o Soberbo, desbara-
tou Abies de Irlanda, converteu Ma-

^06
! !

o 1{0mAV^CE DE (z4mAT)IS

darque o gigante, matou o demona-


co Endriago
Tornando em si, sentiu Amadis
crescer-lhe a sanha contra el-rei Li-
suarte e mis se doeu de ele to in-
grato haver sido a companhia
lial

de armas que o servir, dando ou-


vidos a vozes de trai<;o, nascidas s
da inveja. Recordou que a el-rei fi-

zera servidos to grandes que dles


proviera nova honra e'glria gr
Bretanha, e que o prprio rei Ihe

devia a vida, que Ihe ele salvara em


arriscado perigo.
E, mais pungente que todas, urna
ideia Ihe alravessava a mente:
Oriana! Oriana a padecer na pura
fidelidade do seu cora^o, forjada
a dar-se por noiva, calando o amor
que Ihe tinha, de certo apetecendo a
morle

20J
. : :

o %OmA^CE ^E QmA'DlS

Eda sua alma, que a angustia


agora toda revolva, ergueu-se prece
fervorosssima: que o vento Ihe in-
chasse as velas, para a tempo chegar!
O mar era chao, sopravam os
ventos fagueiros e, ao cabo de al-

guns dias, gritou um gageiro que


subir ao tope real
Alvcaras, alvcaras! J vejo
a Ilha Firme ! . .

Receberam os da Ilha Firme com


grande gloria a seu senhor, acla-
mando quem to desejado e amado
era. E tendo agradecido a Deus o
permitir-lhe que a tempo viesse,
juntou Amadis seus irmos e pares
e cavaleiros, e assim Ihes falou
Bons senhores e amigos, depois
que de vos me apartei, muitas ter-

208
!

ras estranhas andel e muitas aven-


turas corr. Passei grandes pan-
gos e trabalhos, dos quais sai com
a ajuda de Deus. Porm aqueles
em que o meu cora^o foi mais
ledo, eu os passei levando socorro
a donas e donzelasj a quem agravo
e sem-razo se faziam, e a que elas
respondiam com lgrimas e suspi-
ros, que sao as armas das mulheres.
Ora, sabis que sem-razo e agravo
faz el-reiLisuarte a suafilha Oriana,
deserdando-a do reino da gr Bre-
tanha emandando-a, contra seu
mesmo querer, ao Imperador de
Roma. Se el-rei Lisuarte comete
esta crueza contra Deus e contra
seus naturais, digo-vos que a nos
compete remedi-la. Agora diga
cada um seu parecer, que o meu,
amigos, j vo-io dei

4 20g
!

o %OmA\KpE "DE QmA^IS


Ouviram com grande louvor to-

dos os liis as palavras de Ama-


dis : acendia-se-lhes nos olhos a
chama do valor que brada avante^
Q anciavam em cada banha as es-
padas por verem a luz.
Pediram os cavaleiros a Agrajes
que em nome de todos respondesse :

Bom senhor e primo, sabei que


anda que com a vossa presenta se
nos dobrassem as fr<;as, mesmo sem
vos, que por apartado tinhamos,
determinados eramos ao remedio
E Agrajes, assim falando, porseu
prprio cora9o tambm falava,
porque o prncipe Salstanqudio,
senhor de Calabria, mover el-rei
Lisuarte que mandasse Olinda
a
para Roma, a fim de casar com ela.

J2I0
1

o 1{0mA':SiCE ^E oAmATilS

Quando chcgou o da aprazado


aborrecido, desceu Oriana praia
entre o grande cortejo que a levava.
Ordenara el-rei Lisuarte que naquela
despedida concorresse grande bri-
Iho, j por honrar ledamente a noiva,
j porque as grandezas do Imperador
queria ele responder com as prprias.
Vestia Oriana panos de ouro bor-
dados de pedraria e pcrolas, e as-
sentava-lhe nos formosos cbelos
urna cora que scintilava. Alegra-
vam a marcha do cortejo as cores
desenroladas dos pendes, e o clan-
gor das trombetas varava o ar do
burgo praia. As damas, monta-
das em finos palatrns, iam levadas
rdea pelos pagens ; revestiam os
cavaleiros as suas armas mais ricas,
e toda esta companhia luzia de es-

plendor.

21
o %OmAV^CE "DE oAmA'DlS

'
la a infanta a par de el-rei e mon-
tava um soberbo palafrm ricamente
ajaezado, com freio, peitoral e es-
tribo de ouro a martelo, cravejado
de pedras finas, presente de seu pai,
eem que devia fazer a sua entrada
em Roma.
E j a aguardavam os nobres
embaixadores, ora mais orgulhosos
com o despacho.
Mostrava el-rei Lisuarte bom
semblante, posto 'que em seu cora-
cao pesava nuvem grossa : nao es-
lava ali a flor dos seus cavaleiros,
e havia muitos olhos razos de agua.
Doa uma pena escondida nos cora-
9es dos homens bons, e a arraia-
-mida murmurava de ver partir
-a infanta.
Contra vontade vai el pen-
savam as mulheres do povo, a quem

2IL
! !

o %OmA^CE 'DE Q/imATUS

a vista de Oriana mover a doce


piedadc
que Ihe az a riqueza,
e

a bela mal maridada?


Tambcm se nos vai com ela a
pensavam ou-
seguran(;a do reino
tros a quem a formosura da infanta
tocava o coraco na m hora e
vieram os romanos a levar-nos quem
nos pertencia
Com Oriana quisera ir Mablia,
a sempre doce e iel a donzela da;

Dinamarca nao deixara tambm a


pobre de sua senhora ; e Olinda,
toda chorosa, embarcava com elas.

Abracou-se Oriana em sua me,


ambas conundindo as lgrimas:
Filha, eu me o em Deus de
que isto que te manda el-rei por
leu bem
Receberam emfim os embaixado-
rcs :i tormosa Seni-P.nr.

2:3
o 1{0qMA^CE "DE oAmADlS

E, dando ao vento as velas, alon^


gam-se as naus da vista
e todos
os olhos as seguem, e os coraces
todos choram!

J as proas romanas fendem as


ondas, e navegam soberbas as naves.
Dispostas vo de maneira que no
meio guardam a mais soberba dlas,
em cujo tope se desfralda a signa
do Imperador. Fechada a cadeado
em urna cmara rica, nessa vai
Oriana a caminho de Roma.
Mas frente da frota roubadora
surge outra que o amor comanda
e guia.
Gaula, Gaula ! Aqui vai Ama-
dis!...
Rompe fera a batalha entre as
naus abordadas.

274
5

o 1{0^JA^CE 'DE OA^IADIS

Combatem pelos da llha Firme os


nobres aliados, e Briolanja mandn
os seus melhores cavaleiros. Ao
cabo de brava peleja, rendem-se as
naves romanas.
Entao sobe Amadis aqueia em
cujo tope flutua a signa do Imperar
dor, e onde Oriana, dando gra9as
a Deus, posta em joelhos, tinha ou-
vido, sorrindo, a voz do seu amado!
E Amadis liberta e leva para a
llha Firme Oriana, Oriana a Sem-
-Par!...

Senhores,aquise acaba o romance


de Amadis.
Se vos disserem que ele continua,

nao o queirais crer, pois o velho


trovador nao contou mais.
Da historia que se enreda em

21
outras muitas historias, tirei e viv
o que ela tem to nosso urna
hericpa e amorosa cango. E foi

esta que o cavaleiro-poeta por


minha voz cantou.
Suspenso fica o amor de Amadis
e Oriana, sem Ihe sabermos o fim?
Mas o amor nao tem fim, se
belo amor; ou, se o tem, tem-no em
si mesmo, porque o amor ama o
amor.

216
IV^^EX
. 1

l^^EX

PREFACIO XI
1 PERION
II DARIOLETA ... . 1

III ELISENA 21

IV AMADIS SE.M TEMPO 27


V O donzi:l do mar 37
VI 0R1ANA A SEM-PAR 49
Vil AMADIS DE GAULA. 61

VIH NA CORTE DEL-RHl LISUARTE


IX ARGALAS ... 89
X O PRIMEIRO BEIJO 95
XI BRIOLANJA ... 107

XII AS PENAS DE AMADIS . . 1 13

XIII BELTENEBROS 125

XIV A SENHORA DA PENHA ... 143

XV NO GSTELO DK MiRAFLORES '49


XVI A ESPADA E A GUIRLANDA 09
XVII A GANgO DE LEONORETA 169
XVIU AS SETE PARTIDAS 175

XIX IMPERATRiZ DE ROMA . . 189


XX A ILHA FIRME ao3
DA INFELICIDADE
DA coMrosi(;o,
ERROS DA ESCRI-
TURA, E OUTRAS
IMPERFEigKS DA
ESTAMPA, NAO HA
QUE DIZER-VOS:
VOS OS VEDES,
VOS OS CASTIGAI.

D.FRANCISCO MA-
NUEL DE MELLO.
ACABOU-SE DE IMPRIMIR
AS VSPERAS DO NATAL
DE 1922
^^^Mmm^^^
PQ Amad i s de Gaula
6276 romance de Amadis
P6L6

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