Arjun Appadurai

A VIDA SOCIAL DAS COISAS

As MERCADORIAS SOB UMA PERSPECTIVA CULTURAL

EdUFF
4) 1986 by Combridg. University Press slIMARIo
Tftulo origin:al: Th~ socic11lifto/Ihings: commodities in cultural perspectlv
(l) 2008 (~ brasileira) EdUFF - EditOta d>. Univ ersidade Fedt .... f1wnin<:nse
Rua Miguel de Frias.9 - on.. O- sobreloj' - Ieanl - Nit.r6t RJ - CEP 24220-900 AUTORES,7
Tel.: (21) 26295287 Tel.fax (21) 2629-5288 - hnp:l/www.edit."..ulT.br BREVE INTRODUC;Ao A EDI<;AO BRASILEIRA, 9
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Iip'OibOda rq>l'Cldutio """' "" pa.-ci1Idesu obn S<1D ~lo e'l':<SSI da Ildi ..... PREFAcIO. t 1
PARTE 1- Por uma antropologia das colsas
INTRODUC;Ao:
AM6 AppOOurni. Arjun. MERCADORIAS E A POLiTICA DE VALOR, 15
A vida soclal das ccisas: as mercudorias sub urno perllpeclh'3 cullurall Arjun Appadurai
Arjun Appodurai: Tr3du~ao de Agatha Oace,lar - Nilet61: Editorn ce Univer-
sidnde Pederal Fluminense, 2008. JI A BJOGRAFlA CULTURAL DAS COISAS:
399 p.: 2lcm. - (C<II,~110AntropOlogi. ,CI.nci. POUtlca:41). A MERCANTILIZAc;AO COMO PROCESSO. 89
Jnclui blblioyali4S. Igor Kopytof!
ISBN 98785m4~~
PARTE 11 - Troca, cODSomO e exjbi~ao
I. MIropOIOSi.. 2. SimboliJ1Ol).3. M'-" L Titulo. U. Sbie.
COD J06
III DOIS TIPOS DE VALOR NAS ILHAS
SALOMAO ORIENTAlS, 125
NormoliZlJfilo: Caroline BrilO William H. Davenport
Rnisiiu: Ic~ia Freixinhoe Tatiane de A.ndr.ideBraga
T"uluriio: Agatha Bacel,r 1V RECEM-CHEGADOS AO MUNDO DOS BENS:
Revisba ,~cn;cQ:Letl('iilVeloso o CONSUMO ENTRE OS GONDE MURIA. 143
Capo: MlIICosAntonio de Jesus Alfred Gelf
Editoruriio t!/t1lrIJnic{l: Ana Caroline Ferreira
OiogralMfllo: vfvian Macedo de Souza PARTE III Prestigio, comemora~iio e valor
Supervisao grdfica: Kalhia M. P. Macedo
V VARNA E 0 SURGIMENTO DA R1QUEZA
NA EUROPA PRE.Hl~'T6R1CA, 181
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Colin Renfrew
Rei/I)" Roberto de Souza Salles VI MERCADORlAS SAGRADAS:
ViceReiror. Emmanuel Paiva de Andrade A CIRCULAc;Ao DE RELfQUIAS MEDlEVAlS, 217
Pr6.Rt/'or dt PtsquiSQ e P6s'<;raduQfiio: Humberto r-cmandes M.<hado
Diretor do dUFF: Mauro Romcn) lnl P.... os
Patrick Geary
Oi",'or do Oivisilo d. di/oTOfao e Produfel ..: Ricudo 80rses PARTE IV - Regimes de prodo~o e 3 sodologia da
Di~(of'tJ da Dil/fsao dt' Dt'setrl1olvimen1o~ Mtrrado: Leciene P. de Mones demanda
A..utssora de Comunicao e EVUftOr. Ana Pau1a Campos

..
YU TECELOES E NEGOClANTES:
A AUTEN11CIDADE DE UM TAPETE ORIENTAL, 247
~ Brian Spooner
(dUff
VIO QAT: MUDAN<;A$ NA PRODUCAO E NO CONSUMO AUTORES
DE UMA MERCADORlA QUASE-LEGAL
NO NORDESTE DA AFRICA. 299 ARJUN APPADURAl e associateprofessor de antropologia e estudos
Lee V. Cassanelli sul-asi:iticos na Univcrsidade da Pensilvania, E 0 autor de Worship
and conflict under colonial rule (1981).
PARTE V - TraDSfonna~s bist6riC8S e cOdigos
mercantts C. A. BAYLI c fellow do St. Catharine's College, na Universidade
IX A ESTRUTURA DE UMA CRISE CULTURAL: de Cambridge, e smuts reader em Estudos do Commonwealth,
PENSANDO SOBRE TECIDOS NA FRANCA Publicou The local roots of indian polities: Allahabad. 18801920
ANTES E DEPOIS DA REVOLUC;:AO,329 (1975) e Rulers, townsmen and bazaars: North Indian society in the
WilliamM. Reddy age of British expansion, 1770-1870 (1983).

X AS ORIGENS DO SWADESHI LEE V. CASSANELLI e professor do Departamento de Hist6ria da

(INDUSTRIA DOMEsTICA): TECroOS Universidade da Pensilvsnia. E 0 autor de TI,e shaping of somali
E A SOCIEDADE INDIANA DE 1700 A 1930,357 society: reconstructing the history of a pastoral people (1982).
C.A. Bay/y
WILLIAM H. DAVENPOKT ensina antropologia na Universidade
da Pensilvinia, onde tambem e curador encarrcgado da Oceania no
University Museum. Realizou pesquisa de campo na Jamaica e nas
lIhas Salornao e pesquisas hist6ricas 500re 0 Haval pre-europeu. Tern
publicado diversos irabalhos sobre essas areas de estudos,

PATRICKGEARYeassociateprofessorde hist6ria da Universidade da

F16rida. E 0 autor de Furta sacra: thefts of relics in the central middle
ages (1978) e Aristocracy in Provence:the Rhone Basin ot the dawn of
tirecarolingian age (1985).

AlFRED GELLensina antropologia social na Escola de Economia e

Ciencia Polftica de Londres. E 0 autor de Metamorphosis of the
cassowaries: umeda society, language and ritual (1975).

IGOR KOPYTOFF. do Departamento de Anrropclogia da

Universidadc da Pensilvania, e co-editor (com Suzanne Miers) de
Slavery in Africa: historical and anthropologicalperspectives (1977)
e auror de Varietiesof witchcraft: the social economy of secretpower
(no prelo),

7
WILLIAM M. REDDY e assistant professor de bistoria na BREVE INTRODUGAo
Univcrsidade de Duke e esereveu Therise of market culture:tiletextile
trade and French society, 1750-1900 (1984). A EDIGAo BRASILEIRA
COLIN RENFREW e Disney professor de arqueologia da
Uoiversidade de Cambridge eFellowdo SI. John's College. Eo autor Laura Groziel Gomes
de Problems in European prehistory (1979) e Approaches to social
archaeology (1984). A presente publicacso em lingua ponuguesa da coletanea organizada
por Arjun Appadurai (1988) vern completar e sornar-se ao conjunto
BRIAN SPOONER ensina no Departamento de Anrropologia da de textos acadernicos produzidos no contexte da antropclogia anglo-
Universidade da Pensilvania. Escreveu Ecology in development: a americana e francesa sobre 0 terna do Consumo e do consumismo
rationale for three-dimensionalpolicy (1984). modernos nas tres ultimas decadasdo seculo XX, mas que comeca-
ram a ser publicados entre nos somente nos (iltirnos anos (a partir de
2000).'
Delle ser ressaltado que urna caracteristica fundamental desses textos,
euja publicac;iiono Brasil se iniciou comA etica romanticae 0 espirho
do consumismomoderno de Colin Campbell (2001), foi a retomada de
uma perspectiva propriamente socioantropol6gica sobre 0 fenomeoo
do consumo, que desautorizava algumas teses vigentes de cararer trans-
cendente e moral. Esta abordagem surgiu, portanto, como urna "terceira
Ilia" para aqueles que 000 se adequavam ou nao conseguiam mais en-
xergar este importante fato social do mundo contemporanec - 0
consume - pela 6tica exclusiva das polarizacoes e dos dualismos.
De algum modo, todos esses textos apresentam urn ponto em comum.
Todos eles respondem, de uma forma ou de outra, a algumas acusa-
es graves feitas ao consumo e ao consumismo, alem da classica
atribuicao de fetichiza~iio dos objetos. Uma dessas acusacoes seria a
incapacidade de ambos para estabelecer vfnculos socia is "autenti-
cos". Ao contrario, tal como uma especie de cincer, 0 consumismo
moderno veio para destruir os "verdadeiros" lacos socia is. Para com-
pletar este cenario de Deus e 0 Diabo na 'Ierra do Sol, a literature de
negocios, salvo excecoes, tambem sempre deixou muito a desejar
porque, panindo de premissas reificadoras, ela acabou consagrando
uma concepcso pecarninosa do consume.

Un.,. ~ (oj 0 Uvrode MarsbalI Sahlins. CtdturD(, rll4JjqpriStiar. "lj3 Itd~ bmsiIcira roi em
1979. I"'on I)!j ontrop6logos. de anunciav. I.mIl nova pt:rSpC<tiva em rcJ~ ~ teru do co'sumo,
tmbom 03 Cpnca n30 f05S(i lido e diswtido somcOle ).'klf esse vits.
-,

8 9
Autores como Bourdieu, Mary Douglas, Marshall Sahlins, Colin PREFACIO
Campbell, Daniel Miller e ouiros demonstraram exatamenre 0 con-
trario, sem cairem na tentacao de destituir 0 semido c a importancia
das Iormas de sociabilidade tradicionais criadas a partir da familia, Embora antropelogos e historiadores Calem cada vez mais uns so-
da produ,.ao e do trabalho. Baseados em pesquisas cmpiricas, eles brc os outros, eles raramente falam uns com os outros. Este livro t
mostraram que 0 consume e.~[ana base da fonna,.ao do gOS[O,da o resultado de um di610go entre anlrop6logos e hisroriadores sobre
dislin~ao, scm 0 que nao se poderia falar de individualisrno e de es- o [COladas mercadorias, que se estendeu por urn ano. Tres dos arti-
Iralegias de reproducao de muitos grupos e identidades sociais no gos (os de Cassanelli, Geary e Spooner) forum apresentados no
mundo moderno. Assim, alern de produzir vlnculos sociais, 0 consu- workshop de Etno-his[6ria na Universidade da Pensilvsnia em 1983-
mo tambern gera formas particulares de solidariedade, confianca e 1984. Os outros (II excecao de meu proprio ensaio imrodutorio)
sociabilidade fundamentals para a vida social. foram aprescntados em urn simp6sio sobre as rela~oes entre merca-
Como as dernais obras, a coletanea organizada por Arjun Appadurai e dorias e cuhura, sediado no Programa de Etno-histeria, na Filadclfia,
uma dcmonstra~ao eloqueme dcssa perspective. Ela ainda tern a varna- nos dias 23 a 25 de maio de 1984.
gem de trazer consigo todo 0 vigor provocative que a polemica adquiriu lee Cassanelli, meu colega no Departamento de Hisl6ria da Univer-
durante as decadas de 1980/1990.1sso se torna evidente no momcnto sidade da Pensilvania, propos primeiramente 0 tema "Mercadorias e
em que Appadurai apresenta 0 ponto de vista que proplls 80S autores cullura" para 0 workshop de Etno-historia de 1983-J984. A ele e a
dos capitulos: 0 que acontece se deixarmos de prestar a[en~o apcnas Nanc)' Farriss (tambem do Departamento de His[oria, e mentora do
nos vinculos socials que supostameme precedem ou deveriam prece- workshop desde seu principio em 1975), devo varies anos de estimu-
der as coisas, e eomecarmos a observar as coisas durante os variados tames di610g05 interdisciplinares, A proposta de lee Cassanelli
percursos e trajetorias que elas fazem e tracam na sociedade por meio coincidiu fonuitamente com uma conversa que eu havia lido com
das diferemes esferas de circulacao nela existentes? Igor Kopytoff e William Davenport (meus colegas no Departamento
o livre e importame nao apenas pelas respostas que cada autor en- de Antropologia, na Universidade da Pensilvania), no desenrolar da
controu no seu universe de pesquisa para esra proposicao, e que 0 qual concordamos que j6 era tempo de ser feita uma revilaJizactao da
leiter lera con(!i90es de avaliar, mas pel a evocacao de algo importan- amropologia das coisas.
te em termos metodologicos. A coleranea nos faz lernbrar que a o simp6sio de maio de 1984, que levou diretamente ao projcto deste
pesquisa sociolegicn nao pode, de forma algurna, ficar refern de ob- livre, foi possibilitado pelos auxflios que 0 programa de Erno-histo-
[eros pre-cons[ruidos. ria recebeu do National Endowment for the Humanities e da Escola
Ni[cr6i, 13 de revcreiro de 2008. de Artes e Ciencias da Universidade da Pensilvania. 0 sucesso dessc
simp6sio deve muito ao apoio organizacional e in[electual de estu-
dao[ts e colegas participantes. Em particular, agrade~ a Grela Borie,
Peter JuS[ e Cristine Hoepfner por toda a assislencia antes e duranle 0
simp65io.
Eu [ambtm desfrutei de mui[a generosidadc durante a preparac<ao
des[e livro. Susan AUen-Mills, da Cambridge University Press, foi
uma valiosa fonte de orienta,.ao intelec[ual e editorial. lCnhO uma
dfvida especial com a equipe do Centro de Esludos Avan~ados em
Ciencias Comportamen[ais, cujos recursos da secrc[aria e ad~inis-

lJ
10
Ir3~ao ajudaram materialmente na rapida preparacao dos originals.
Em particular, e um prazer agradecer a Kay Holm, Virginia Heaton e
Muriel Bell.
Stanford, California
Arjlln Appadurai

PARTE I
Por uma aotropologia das coisas

12
 I
rnTRODUGAO:MERCADO~
E A POLITICA DE VALOR

Arjun Appadurai

Este ensaio tern dois objetivos: 0 primeiro e apresentar e estabelecer

o contexte dos artigos que comp6em este livro; 0 segundo 6 propor
uma nova perspective sobre a circulacao de mercadorias na vida so-
cial. Tal perspectiva pode ser sintetizada da seguinte forma: a troca
economica cria 0 valor; 0 valor e concretizado nas mercadorias que
S.10 trocadas; concentrar-se nas coisas trocadas, em vez de apenas
nas formas e fun~s da rroca, possibilita a argumentacao de que 0
que cria 0 vinculo entre a Iroca e 0 valor e a politico. em seu sen lido
mais amplo. Este argumemo, que sera elaborado no decorrer deste
texto, justifies a tese de que as mercadorias. como as pessoas, tern
uma vida social.'
Pode-sc definir mercadorias, ainda que de urn modo provis6rio, como
objetos de valor economico. Quanto ao significado da expressso "valor
econemico", 0 melhor guia (embora nao seja 0 padrao) ~ Georg
Simmel. No primeiro capitulo de A filosofia do dlnheiro (1907),
Sirnmel forncce uma descricao sistematica da melhor forma de se
definir 0 valor cconemico. Para ele, 0 valor jamais c urna proprieda-
de inerente aos objetos, mas urn julgamento que sujeltos fazem sobre
eles. Mas, de acordo com Sirnmel, a chave para se compreender 0
valor reside em uma regiao oode "essa subjetividade 6 apenas provi-
sOria e, com efeito, nao muito essencial" (SlMMEL., 1978, p. 63).
Ao explorar esse dominio dificil - nem totalmente subjetivo, nem
exatamente objetivo, de onde 0 valor emerge e onde ele ope-
ra -, Simmel sugere que os objetos nao sao dificeis de se adquirir
porque sao valiosos, "mas chamamos de valiosos aqueles objetos
que opoem resistencia a nosso desejo de possuf-los" (1978, p. 67). 0
que Simmel denomina, em particular. objetos econOmicos existe no
espa~ entre 0 desejo puro e a fruJ~o imediata, com alguma distfulcia
entre elcs e a pessoa que os deseja. Tal distancia pode sec ultrapassada,
o que ocorre e por meio da troca economlca, na qual so determina

15
reciprocamente 0 valor dos objetos, Ou seja, 0 desejo de alguern por teoha sido sempre assirn, nem rnesmo no Ocidente, como observou

urn objeto e sarisfeito pelo sacrificio de um outro objeto, que e fooo Marcel Mauss, em seu celebre Ensaio sobre 0 dom, a forte tendencia
do desejo de outrem. Tal troca de sacriffcios ~ 0 que constitui a vida eontemporanea e considerar 0 mundo das cotsas inerte e mudo. s6 sen-
econornica, e a econornia, como forma social especlfica, "consiste da movido e animado, ou mcsmo reconhecivel, por intermdio das
nao apenas em trocar valores, mas na troca de valores" (SIMMEL. pessoas e de suas palavras (ver tarnbem DUMONT, 19SO,p. 229-230).
1978, p. SO). 0 valor economico e, para Simmel, gerado por essa NaO obstante. em rnuitas sociedades histericas, as coisas nao estavam
especie de troca de sacriffcios. tao divorciadas da capacidade das pessoas de agir e do poder das pala-
vras de oomunicar (ver Capitulo 2). Que urna tal visao a respeito das
Essa anlise do valor economico na discussao proposta por Simmel
coisas nao tenha desaparecido mesmo nas circunstancias do capitalis-
tern diversos desdobramentos, 0 primeiro e que 0 valor econornico
roo industrial rnoderno e uma das inmicoes que sustentavam a discussao
nao e simplesmente urn valor generico, mas uma quantidade definida
famosa de Marx sobre 0 "fetichismo das mercadorias", JlO Capital.
de valor, que resulta da comensuracao de duns intcnsidades de de-
manda. A forma que essa comensuracao assume e a troca de sacriffcio Mesmo que nossa abordagem das coisas esteja necessariamcnrc con-
por ganho. Assim, 0 objeto economico nao tern urn valor absoluto dicionadu pela ideia de que colsas nao tem significados afora os que
como resultado da demanda que suseita, mas e a demands que, cor_no lhes conferem as transacoes, atribuiqoes e motiva~6es humanas, 0
base de uma tTOCareal ou imaginaria, confere valor ao objeto, E a problema, do ponto de vista antropologico, e que esta verdade formal
troca que estabelece os parametres de utilidade e escassez, nao 0 nlio lan~a qualquer luz sobre a circula ..ao das coisas no mundo con-
contrario, e e a uoca que t a fonte de valor: "A difieuldade de aquisi- creto e hist6rico. Para isto remos de seguir as coisas em si mesmas,
c,;ao,0 sacriffcio oferecido em troca, e 0 unico elernento consntutivo pois seus significados estao inscritos em suas Iormas, seus usos. suas
do valor, de que a escassez e tao-somente a manifesta~ao externa, trajetonas. Somente pela analise destas uajet6rias podemos interpre-
sua objetivao sob a forma de quantidade" (SIMMEL. 1978, p. 1(0). tar as transa~ e os calculos humanos que dao vida as coisas, Assim,
Em suma, a troca nao e um subproduto da valorao mutua de obje- embora de um ponte de vista teorico atores humanos codifiquem as
tos, mas sua fonte. coisas por meio de significacoes, de um ponto de vista metodologico
sao as eoisas em movimento que elucidam seu contexto humane c
Com estas obscrva~oes concisas e brilhantes, Simmel prepara 0 ter-
social. Nenhuma an~lise social das eoisas (seja 0 analista um econo-
reno para a analise do que considerava ser 0 mais complexo
mista, urn historiador da ar1e ou urn antrop6logo) e eapaz de evitar
instrurnento do procedimento de troca economica - 0 dinheiro - e de
(lor completo 0 que pode ser denominado fetiehismo metodologico.
seu lugar na vida modema. Mas suas observa~6es podem ser toma-
Este fClichismo metodol6gico, que restitui nossa atenc;.'lo as coisas
das em urn sentido um tanto diferentc. Estc senlido alternativo, que
em si mesmas, C. em parte, urn antidoto Ii lendenciu de atribuir um
se exemplifiea no corpo deste ensaio, consiste em explorar as condi-
excessivo valor sociol6gico as transaes realizadas com as coisas,
es sob as quais objelos economicos eireu lam em difercntes regimes
tendeoeia que devemos a Mauss, conforme Firth observou recente-
de valor no tempo e no espa~. Muitos dos artigos que compiiem este
mente (1983. p. 89).'
livro examinam coisas (ou gropos de coisas) especiJicas. uma vez
que circulam em ambientes culturais e bist6ricos especificos. 0 que Mercadorias. e coisas em geral, desper1am, de modo indepcodcote, 0
estes ar1igos permitem e uma serie de olhares sobre os modos como interesse de diversos tipos de antropologia. Constituem os prineipios
de.o;ejoe demanda, sacrificio reciproco e poder interagem para criar 0 basicos e os ulrimos reeursos dos arque6Jogos. Sao a substancia da
valor economico em situaes sociais espec(ficas. ~Cultura material", que une arque6logos a antrOp6logos culturai.~ de
divel'j)as linhas. Na quaJidade de objetos de valor. oeupam uma posi-
Nos dias atuais, 0 senso comum ocidental, calcado em diversas tradi-
o cenlral na antropoJogia economica e, com igual impor1iIOCia,oa
c;Ocshisloricas da filosofia, do direito e das ciBncias naturais, tern uma
teoria da troca 011 na antropologia social em geral, uma vez que sao 0
forte tendencia a opor "palavras" c "coisas". Muito emborn isso nao

16 17
 as den .. is, "Conhecimento e mcrcadorias", busca dernonstrar que
instrumcnto do ato de presentear. Analisar as coisas sob II pcrspeeti-
va das mercadorias constitui urn PODlOde partida de grande urilidade poJilicas de valor sao. muitas vezes, pcliticas de conhecimento. A
para 0 interesse na culture material, renovado pela crientacso concJusiio retoma a discussao sobre a politica como inslaneia media-
semi6tica, e que foi rccentemente ressaltado c exemplificado em uma tlora entre a troca e 0 valor.
sec;ao especial da RAIN (MILLER. 1983). Mas as mercadorias nao
sao um interesse fundamental apenas dos antropologos. Tambem cons- o ESPiRlTO DA MERCADORIA
tituern urn 16pico privilegiado na hist6ria economica e social na
historia da ane e, antes que nos esquecamos, na economia embora POUC()S negariam que a mercadoria e algo cornpleramente socialize-
cada disciplina possa formular 0 problema de urn modo diferentc. As do. Logo, em buses de uma definicao, a questao a ser colocada e: ern
mercadorias representarn, pois, urn lema sobre (l qual a antropologia que consiste esta sociabilidade? A rcsposta purista, que se tornou
pode ter algo a oferecer as disciplinas afins, como tambem tem multo r(>linaatribuir a Marx, e que uma mercadoria e urn produto destina-
a aprender com estas disciplinas. do, sobretudo, A troca e que tais produtos emergcm, por definicao,
sob as condiljoes institucionais, psicologicas e econemicas do capi-
Os cnsaios deste livro abrangem uma boa parte das questoes histori- ialismo. Definicees rnenos puristas vccm as mercadorias como bens
cas, etnograficas e conceituais, mas nao prcrendem fazer, dcslinados 11troca, independentcmente da forma de uoca, A defini-
absolutarnente, uma analise exaustiva das relac;<iesda cultura com as ~30 purista da um fim premature 11questao. As definic;iies mais frouxas
mercadorias, Entre os colaboradores. h:icinco antrop6logos socials, correm 0 risco de tornar equivalentes mcrcadoria, dl1diva e diversos
urn arque6logo e quatro historiadores socials. Economistas e histo- ourros ripos de coisas. Nesta secao, por meio da critica 11 concepcao
riadores da anc nao estao aqui represeniados, mas suas id~ias nao marx ista da mercadoria, pretendo sugcrir que rnercadorias sao coisas
foram de modo algum negligenciadas. Algumas das principals areas com um upo particular de potencial social, que se distinguem de "pro-
do mundo nao foram abordadas (notadamenre a China e a America ".>, "obi
duI~, jeros,
105" "ben,s"."ar I'era IOS" e outros - mas apenas em a Iguns
Latina), mas a eobertura geografica e de uma exrensao bern razoavel. aspectos C de um dcterminado ponte de vista. Se for convincente,
Ernborn os artigos tratern de uma seric consideravel de bens, 0 lista meu argumento resultara no reconhecimento de que, rom vistas a
de rnercadorias niio discutidas aqui seria urn tanto longa, havendo uma defioi~[io, e de grande utilidade considerar as mercadorias como
uma preferencia por bens especfficos ou de luxo, em vez de merca' algo que existe em uma enorme gama de sociedades (embora tenham
dorins "ern estado bruto" e de "primeira neccssidade". Enfim, a maioria uma f\lr~a e proje~ao especiais nas sociedades capitalislas moder-
dos autorcs dedicase a bellS em vez de scrvifOs, embora eSles lam- nas), c de que h{t uma convergcncia inesperada entre Marx e Simmel
bern scjam imporlantes objetos de mercantiliza~iio. Ainda que cada sobre 0 16pico das mercadorias.
uR,ladestas omissiies seja grave, prelendo sugcrir, ao longo deste en
satO, que algumas lem menos relevancia do que pareeem. A discusslio mais elaborada e inSliganle aeerca da id6ia de mercado
ri.nconsln da primeira parte do primeiro livro de 0 Capital, de Marx,
As cinco se~6es que se sucedem nesle ensaio dcdicam-se aos seguin- aloda que a idtia eslivcsse muito difuodida nos debates sobre ccono-
ItS objelivos. A primeira, "0 espirilo da mercadoria", e um exercicio mia poli1ica do sCculo XIX. A revisao, fcita pelo proprio Marx, do
crltico de defllli<;ao, na qual se argumenta que as mercadorias, deyj conceito de mercadoria foi uma parte fundamental de sua crilica a
damente compreendidas, nao sao monop6lio das economias industriais economia polftica burguesa e a base para a Iransi($lio que se verifica
modernas. Em seguida, URotas e desvios" discute as estral~gias (se entre ;;eu pr6prio pensamento inicial sobre 0 capilalismo (vcr, em
jam individuais ou inslitucionais) que fal.em da cria,.ao de valor urn especial, MARX, 1973) e a analise mais madura de 0 Capirol. Alual-
proccsso mediado pela politico. A se~iio subsequcnlc, "Descjo e de- menle, a ccnlmlidade conceitual da ideia de mercadoria foi substituida
mando", arlicula model os de loogo e curto prazo na circula,.ao de relo conceilO neoclassico e marginal iSla de "bens". A palavra "mer
O1ercadorias para mostrar que 0 ronsumo est;! sujeito ao controle so cadoria" e usada na economia neoclassica apenas COOl referencia a
cial e a rcdefini<;ao polilica. A ultima sc~'io tao fundamental quanta

19
18
uma subclasse ~sp'ccifica de bens primllrios e j6 nao exerce urn papel comensura~ilo do dinheiro. Hoje, a ligao entre mercadorias e formas
analftico central. E claro, esse nao e 0 caso das abordagens marxistas p6s-industriais, sejam iais formas socials, financeiras ou de troca, e em
na eoooomia e na sociologia, ou das neo-ricardianas (oomo as de geral urn ponte pacffico, mesrno entre os que, noutros aspectos, nao
Piero Sraffa), nas quais a analise da "mercadoria" ainda tem uma levam Marx a serio.
fun~o te6rica fundamental (SRAFFA, 1961; SEDDON, 1978). ContudO, nos textos do proprio Marx, podc-se encomrar a base para
'Iodavia, no maioria das analises modemas da economia (fora da an- uma abordagem das mercadorias muito mais abrangentc e proffcua de
tropologia). 0 significado do rerrno mercadoria ficou restrito a urn ponto de vista intercultural e historico, cujo espirito se vai atenuan-
repercutir apcnas uma parte do tegado de Marx e dos prirneiros ceo- do, a medida em que ele passa a estar envolvido nos detalhes de sua
nomistas politicos. Ou seja, na maioria dos usos comemporsneos, as analise do capitalismo industria) do seculo XIX. De acordo com esta
mercadorias sao um tipo especial de bens rnanufaturados (ou servi- primeira formulacao, para produzir mercadorlas, em vez de meres pro-
<;05), que se associam somcnte aos modes de produ<;iio capitalista e, dutos, urn hornern tem de produzir valores de uso para os outros, valores
portanto, 56 pod em ser encomradas onde penetrou 0 capitaJismo. de usc sociais (MARX, 1971, p. 48). A esta passagern, Engels acres-
Assim, mcsmo nos debates atuais sobre a proto-industrializacao (ver, centou uma interessante glosa, inserida entre parenteses no texto de
por exemplo, PERLIN, 1982), a questso nao e se as mcrcadorias se Marx, em que se reformula a ideia da seguinte forma: "Para se tornar
ass~iam ao capitalismo, mas se certas formas de organi.z.a<;ao e de mercadoria, 0 produto tem de sec transferido para outrem, a quem ira
tecOlC3Sassociadas ao capitalisrno tern uma origem exctusivamente servir de valor de usc, por meio de troca" (MARX. 1971, p. 48). Em-
europeia. Mercadorias sao, em geral, vistas como Hpicas representa- bora En~els se contentasse com esra efucidacao. Marx prosseguiu com
es. materia is do modo de producao capitalista, mesmo quando uma sene extremamente comptexa (e ambfgua) de distines entre pro-
classificadas como triviais, e seu contexte capitalista como incipiente, dutos e mercadorias, mas, para prop6sitos anrropolegicos. a principal
passagem merece ser citada na integra:
Porem, e evidente que tais analises se valem de apenas uma parte da
concepcao de Marx da natureza da mercadoria, Pode-se dizer que 0 Todo prodetc 00 ",batho f, em led<><os esiados da
sociedade, valor de usa; mas 56 em uma determina-
tratamento dado 11 mercadoria nas pnmeiras cento e tanras pagiaas de da epoca do d ..senvotvimenro hisl6ricod. sociedade
o Capital e uma das partes mais dificcis, contraditorias e arnbiguas da o produto do trabalho setransfonna em mercadoria,
obra de Marx. Inicia-se com uma defini~iio de mercadoria extrema- 3 saber, aqucla em que 0 trabntbo gasco na produ~o
mente vaga ("A mercadoria e, antes de tudo, 11111 objeto exterior, uma de objl.!{osuteis se coma tl cxpress!io de Ulnadas qua
coisa que, por suas propriedades, satisfaz neccssidades humanas de lidades increnles a tsses objc..fos. ou seja, explcsslio
qualquer <:specie"). Continua, entao, dialeticamellte. corn uma serie de de seu valor. Re~uhadai que a fOrn\3~vaJor clemen-
tar c tambCm a forma primitiva sob n qual 0 proouto
defini~cs mais parcimoniosas. que possibililam a elnboraltiio gradual do trabalho surge bisloricamenlt como urn;) mera-
da abordagem marxista Msica do valor de usc e valor de troca, 0 pro- doria e que a Ir..mform~ogto1doal desses produtos
blema da equivalcncia, a circul~o e a tmea de produtos C 0 significado em mercadorias prosscguc p:asso a pa.~ cum 0 de-
do dinheiro. E a elabord<;30 desta conce~o das rela~ entre a for- sc.o,-olvimeDloda form.valor. (MARX, t97l. p. 67)
mamercadoria c a forma-dinheiro que permite a Marx estabeJecer a A dificuldade em distinguir 0 aspecto 16gioo do aspedO his16,ico oessa
(amosa distin~o entre as duas formas de circul3~0 de mercadorias argu~ntat,;ao foi observada por Anne Chapman (1980), em urna dis-
(Mcrcadorias-Dinheiro-Meccadorias e Dinhciro-Mercadorias-Di- cussao que retomarei em breve. No excerto de 0 Capitalcitado acima, a
nheiro) sendo a segunda a representa~o da f6rmula geral do capitalismo. passagelll do produto a mercadoria ~ tratada em termos hist6ricos, mas 0
No decurso deste movimento analitico, as mercadorias sao intricada- resu_ltadoflJ1alpermanece muito esquematico e e dificil especificn-lo ou
mente atrcladas ao dillheiro, a um mercado impessoal e ao valor de Ie$tilo com alguma c1areza.
troca. Mesmo lIa forma mais simples de circula<;iio (Iigada ao valor de
uso). as mercadorias relacionam -se por mei(l da capacidade de

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A quesuio ~ que Murx ainda esrava preso a dois apriorisrnos da lI)eTcadOrias. Cnmbinando aspectos de diversas dcfinicocs corrernes
episteme de meados do seculo XIX: urn estabclecia que s6 se podia da pemlut. (inclusive a de Chapman). sugiro que se trata de urna
observar a econom ia corn refereucia ~s problematicas de producao troca mutua de objetns sem alusao a dinheiro e CQIII a maxima redu-
(BAUDRILLARD, 1975); 0 outro considcrava o movimcnto em di- ~o factivel nos custos socia is, culturais, politicos ou pcssoais da
rec;iio ii producao de rnercadorias como evolutivo, unidirecional e transac;iio.O primeiro criterio disiingue a perrnuta da troca de merca-
historico. 0 res ultado: rnercadorias existern OU nao existem e sao darias num senrido estritamenre marxista, enquanro 0 segundo a
produtos de uma especie particular. Cada uma dessas suposicocs pre- dislingue da troea de prescnres em praticamenre qualqucr dcfini~o.
cisa ser modifieada. Chapman tern razso ao afinnar que. na medida em que a teoria do
A despeito dessas limita(iOes epistemicas, em sua celebre discussao valor de Marx e levada a serio, 0 teatamento nela dado a permuta
sobre 0 feticbismo das mereadorias, Marx de fato observa, como 0 apresenta problemas teoricos e conccituais que permanecem insohl-
faz em outras passagens de 0 Capital,que a mercadoria nao e uma veis(CHAPMAN. 1\180, p. 6870), pois Marx postulava que a perm uta
invencao do modo de producao burgucs. mas se manifestava "ern 3$Sumiaa forma tanto de uma rroca direta de produros (x do valor de
datas anrigas da histdria, embora nao de urn modo tao predominante usoA = y do valor de uso B), quanto de uma rroca direta de mercado-
e caracterfstico como nos dias de hoje" (MARX, 1971, p. 86). Ainda rias (x da mercadoria A = Y da mercadoria B). Mas esra concepcao da
que cxplorar as dificuldades do pr6prio pensarncnto de Marx sobre permuta. por mais problcmatica que seja para uma teoria rnarxista
economies pre-capitalisras, sem Estudo e niio monetizadas, seja algo sabre a origem do valor de rroca, tern a virtude de estar em harmonia
que ultrapasse os limires do presente ensaio, poderlamos observar com a reivindicacao mais persuasiva de Chapman, a saber, que a
que Marx nao afustou a possibilidade de haver mercadorias, ao me- perm uta, seja como Corma de troca dominante ou secundaria, existe
nos em urna forma primitiva, em muitos tipos de sociedade. em uma grande variedade de sociedades. Chapman critica Marx por
incluir a mcrcadoria na pcrmuta e pretende mante-las bern separadas,
A esrraregia de dcCinic;iioque proponho aqui consistc em urn retorno alegando que mcrcadorias assumern a fun,.ao de objetos monetarios
a versao da emend a Ieha por Engels ii definictio mais abrangente (e. portanto, de valor de trabalho congelado), nao apcnas a funcao de
formulada por Marx, que inelui a producao de valor de uso para os unidadc de calculo ou de medida de equivatencia, Para Chapman, a
outros e possui ponros convergentes com a enfase de Simrncl na tro- troca de mercadorias s6 ocorre quando urn objeto monetario inter-
ea como fome do valor econ6mico. Comccclll()s com a ideia de que vern na troca. Como, em seu modelo, a permut~ cxclui tal io!crven~ao,
uma mercadoria e qllll/qUIt/' Clli.WItlestillada Ii Iroca, 0 que nos Iiberta b3 uma distinliao formal e complcla entre a troca de mercadorias e a
de uma prcocupa<;Ao c"clusiva com 0 "produto", a "produ~ao" e a permut3, em bora possam coexistir em algumas socicdades
inten~ao original ou predominnntc do "produtor", e possibilita nos (CHAPMAN, 1980, p. 67-68).
concentrarmos nas dinamicas de troca. Para fins comparativos, en-
tao, a questiio deixa de ser"O que ~ mercadoria?" para ser "Que tipo Parece-me que Chapman, em sua critica a Marx, adota uma visao
de troca e a teoea de mercadorias!". Aqui, como parte de urn esCor~ demasiado restritiv8 do papel do dinhciro 113 circllla~iio de mcrcado-
em definir mercadorias da melhor forma possfvel, temos de lidaroom rias. Marx, rnesmo tendo encontrado dificuldades em sua propria
dois tipos de troca que sao convcncionalmente contrastados com a analise das rela~6es entre permuta e troea de mercadorias, linha ra-
troea de mercadorias. 0 primciro c a permuta (algumas vezes chama- uo em ob!>ervar, como 0 fez Polanyi, que a perm uta e a troca
da de troea dire!a); 0 segundo e a troca de presentcs. Comecemos capitalista de mercadorias tinham urn esplrilo COIIIIIIII,ligado (em
com a pcrmuta. $Cuponto de vista) a natureza centrada no objeto, relativamcnte im-
pessoaJ e associal. de amba.~ as formas de troca. Em diversas formas
A pemluta e uma forma de troca que Chapman (1980) analisau re- simples de perm uta. percebemos um esfor~o em trOcar coisas sem as
centementc. em urn cnsaio que, entre outras coisas, discorda da analise coer~s da sociabilidade nem as complicaCS do dinbeiro. No mun-
do proprio Marx ,nbre as rcla(JOcs entre a troca dircta c a tToea de do contemporaneo, a permuta esta em aha: h:i uma cstimativa de que

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 rnovimcntc 12 bilb6cs de d61ares em bcns c services por ano apenas tendencia de ver uma oposicao fundamental entre estas duas modali-
nos Estsdos Unidos, Perrnutasinternacionais (por cxemplo. xarope dades de rroca continua sen do urn traco distintivo do discurso
de Pepsi por vodca russa; Coca-cola por palitos de dente corcanos ou anlropol6gico (DUMONT, 1980; HYDE, 1979; GREGORY, 1982;
por empilhadeiras bulgaras) estao-se transformando em uma com- SAHLlNS, 1972; TAUSSIG, 1980).
plexa economia alternativa. Ncstas circunsrsncias, a permuta e urna
A amplia,.io e a reifica~o do comraste entre dadiva e mercadoria na
rca~iioao namero cada vez maior de barreiras impostas ao comercso
e as finan~as internacionais e tern um papel especifico a exercer na produ~50academica antropologica tem muitas fontes, entre as quais
estiio: a rendencia de idealizar as sociedades de pequena escala de
cconornia global. Assim, como forma de comercio, a permuta articu-
um modo romimtico; de confundir valor de uso (no sentido de Marx)
la a irocu de mercadorias nas mais divcrsas circunstancias sociais,
tecnol6gicas e institucionais. Pode-se, portanio, considerd-Ia uma- corn gemein~c/rafr'(no sentido de 'Ioennies); de esquecer que tam-
b~m as sociedades capitalistas operam de acordo com padr6cs
forma especial de troca de mercadorias, na qual, por uma serie de
razlies,0 dinheiro nao desempenha qualquer papcl, au um papel muito cultur:lis; de marginalizar e minimizar os aspectos calculistas, im-
pessoais c auto-enaltccedores das sociedades nao-capitalistas. Estas
indireto (como uma mera unidade de calcuto). Com esta defini~o de
tendencias, por sua vez, sao 0 produto de uma visiio demasiado
permuta, seria praticamente imposslvcl encontrar qualqucr socieda-
de humana em que a troea de mercadorias seja completamente simplisra da oposicao entre Mauss e Marx, que, como observou Keith
Hart (1982), deixa escapar aspectos imponantes dos pontes em co-
irrelevante. A permuta parece ser a forma de troca de mercadorias
em que a circulacao de coisas mais se divorcia das normas sociais, mum que se verificam entre eles.
potuicas ou culturais. Porem, onde quer que haja evidencias disponi- Dadivas - e 0 csplrito de reciprocidade, sociabilidade e espontanei-
veis, a determinacao do que pode ser permutado, onde. quando e pol dade em que sao nonnalmente troeadas - sao em gerat postas em
quem, assirn como 0 que impulsiona a demanda por bens de "ou- oposi~ao ao espfrito ganancioso, egocemrico e calculista que anima
trern", e urn fato social. Ha uma forte tendencia de perceber tal 8 circulac;aode mercadorias, Ademais, enquanto presenres vinculam
regularnentadto social como urna quesuo em grande parte negative, eoisas a pessoas e inserem 0 fluxo de coisas no f1uxo de relacoes
de modo que a perm uta em sociedades de pequena escala e em socials, mercadorias supostamente represenram 0 movimento - em
pertodos remotes e, com frequencia, considerada uma forma de troca grande parte livre de coercoes morais ou culturais - de bens uns pe-
restrita IIrcla~ao entre comunidades em vez de no interior das comu- los outros, movimento mediado pelo dinheiro, nao pela sociabilidade.
nidades. Neste modele, a perrnuta e tomada como Oligoinversarnente Muitos dos ensaios deste livre, assim como minha propria argumen-
proporcional A sociabilidade e, por extensao, 0 comercio exterior e t8~ao aqlli, destinam-se a mostrar que esta s~rie de cootrastes e
visto como algo que "precedeu" 0 comercio interno (SAHLlNS, 1972). exagerada e simplista. Porem, por enquanto, apresento apenas uma
Mas M boos motivos empiricos e metodol6gicos para questionar estc importanle propriedade comum a troca de presentcs e ~circulaao de
ponto do!vista. mercadorias.
A ideia de que 0 comercio em economias pre-industriais nao o modo como compreendo 0 cspirito da troca de presentes deve muito
monetizadas e, em geml, percebido como an(i~socialsob a perspecti- a Bourdieu (19n), que expandiu urn aspecto atc enlao negJigenciado
va das comunidades de contato direto e, portanto, restringia-se com da analise de Maus.~sabre a dadiva (MAUSS, 1976, p. 70-73), no
frcquencia a negocia~es com estranhos lem como contrapanida im- qual se enf~tizam certos paralelos eslf3tegicos entre a troca de pre-
plieila a visao de que 0 espfrilo da d:idiva e 0 da mercadoria sao seotes e as pr:1ticas "econ6micas" mais ostensivas. A discussao de
profundamcnte opostos. Sob tal ponto de visla, a Iroca de prcsentes e Bourdieu, que ressalta a dinilmica temporal do ato de presentear,
a troca dc mcrcadorias sao, por essencia, contrastantes e excluem-$C emprcende uma analise perspicaz do espirito COO1umsubjacente II
mulunmcnlc. Apesar das lenlativas recentes de arnenizar 0 exagera- troca de prcscntcs e 11 circulac;aode rnercadorias:
do conlraste entre Marx e Mauss (HART. 1982; TAMBlAH, 1984), a

24 25
 Sc c vcrdade queo intervalo de tempo Imcrposto ee dianlC, E"tas oposlcoes saO caricauuas de a~~s os p61?,~e reduzem
que f>OS.'Sibilib BO dam OU;'U \:unlra-dt)m S~f vistu e as diversidad.s humanas de urn modo artificial. Urn sintoma deste
experimemadc lvmu urn alO inaugural de gcnclU\i.
problema rem sido uma concepcao demasiado positivista da meres-
dade, scm qualqu<r passado OU futuro, quer dizer,
sem cd/(uto. cmsc fica c18'0 que. au reduxir 0 doria como urn dcrerrninado tipo de coisa c, portanto, resrringindo,
poIilttico au monol~tiro. u ohjetivh,mo aniquila a assim, 0 debate it qucsrao de decidir de qual tipo de coisa se trata.
cspecificidade de todilS:lS pritiea~que, como a tro- Mas. quando sc tenta comprccndcr 0 que e especifico a troca dc mer-
C3 de presenres, lendem a, OU prctcndem, colocar a cadorias, nao faz scntido distingui-la radicalrnente do permute nem
lei do ioreresse prOprio em suspenso. Por dissimua da uoca de prcsentes. Como sugcre Simmel (1978. p, 97-98), c im-
lar, ~1endcodo no tempo. a lronsa(fioque 0 eontrato por1ant~ considerar a dimensiio calculista em todas esras Ires forruas
racional condcnsa em um insrante, :.t rrcca de dons
e. senao 0 iiniC-Q modo de circul:u;l1o de mercadorias de rroca, mesmo se variam as formas e intensidades de sociabilidadc
a scr pratic. ...do,
;10 menos o uDiC() modo plenarnerue
associadas n cada uma delas. Resta-nos, agora, caracrerizar a iroca de
rcconhccldo, em sociedades que, como coloca rnercadorills de urn modo comparative c processual.
Lukacs. ncgam 0 verdadeiro solo de SU3S vidas", e
14

que, como sc Rao quisesscm c nAo pudcsscm confe-

F~mos uma abordagem das mercadorias como coisas em uma deter-
rir a.~realidades ccenemlcas seu sentido puramenre minada situa~ao. situa~ao csta que pode caracterizar diversos tipos de
econemico, ten, uma cconolni~ em /'Ii e nau para si coisas, em pontes diferentes de suas vidas socials. 1550significa olhar
(BOURDIEU, 1977. p, 171) para 0 potencial mercantil de todas as coisas, em vez de buscar em vao
Esse tratamento dado ii troca de presentes como uma forma particu
a magica distin~ao entre mercadorias e outros tipos de coisas. Tambem
lar de eircula~ao de mercadorias precede da crftica que Bourdieu dirige significa romper de urn modo caregonco com a visao marxista da mer-
nao apenas a tratamcntos "objetivistas" da a~o social, mas a urn tipo cadoria, dominada pela perspectiva da producao, e concentrar-se em
de etnocentrismo, em si mesmo urn produto do capitalismo, que lorna toda a Iraj~t6rill. desde a producao, passando pela troca/dislTibui~o.
per incomestavel uma defini~o demasiado restrita do interesse eco- ale 0 consumo.
namico.' BOllrdieu sugere que "a pralicajamais eessa de obedecer ao Mas como deveriamt)s definir a silua~o mcrcantil? Proponho que a
calculo econOmico. mesmo quando da uma impressiio de completo s;lUat;iio mercalllll 1111 vida social de qualquer "co;sa" sejll dcfill;da
desinlcresse por eseapar 1116gica do c,ilculo inlcrcssado (no senlido C()mo a SiltlUFiQ em qlle Stili trocabilidadc (passada, presellte 011fu-
estrilO) e estar norleada por aposlas que sao imateriais e dificilmente lura) por ((lglIIII(( OIl/ra ClJ;.WICOII$I;llIi sell IrU~lJ social relevallle,
quantifieadas" (BOURDlEU, 1977, p, 177), Ademais. a sitlla<;ao mercantil, assim definida, pode ser dccomposta
em: (1) a (ase meresnlil da vida social de qllalquer coisa; (2) a caodi
Sllponho que Cst3 sugestao converge, ainda que de urn dngulo ligei-
ramcnte diferentc, com as propostas de Thmbiah (1984), Balldrillard dalura de qualquer coisa at) eSlado de mercadoria; (3) 0 contexto
mercanlil em que qualquer eoisa pode ser alocada, Cada um destcs
(1968, 1975, 19(1), Sahlins (1976) e Douglas & Isherwood (1981),
aspectos da "mercantilidade" cxigc alguma explicu~ao,
lbdas estas propostas sao tentativas de restituir a dimensiio cullura.1
de sociedades quase sempre descritas apenas, em tennos gerais, como A n~o de fase mercantil na vida social de uma COiS3t uma forma
economias. e de rcslituir a dimensao calculisla de sociedades quase de sintetizar a ideia central do importanle ensaio de Igor Kopyloff
sempre relnltadas apenas em temlOS r;Strilos de solidariedade. Pane que COosta deste livro. em que se observam certa.~ coisas transitando
das dificuldades quese encoDlJam nas analiscs interculturais de mer- dentro e fora do eSlado de mercadoria. Terei mais a dizer sobre esta
cadorias, como tambem de oulros domInios da vida social. reside no aOOrd"gcm biogrdfica das c(lisas oa proxima se~o. ma~ nOle-se. por
(ato de a antropologia seT demasiado duaJisla: "n6s C eles"; "mate enquanto. que coisas entram e saem do eSlado de mcreadoria. que
rialista c religioso"; "objelifica~iio de pessoas" verStlS "personifica~o tais movimcntos podem ser rapidos ou lentos, reversiveis ou termi-
de coisa~"; "truca comercial~ versus "rcciprocidadc"; e assim por Dais, nomJativos ou discrepantesS Embora 0 aspeClo bi<lgrafico de

26 27
algumas coisas (tais como objetos herdados, selos postais e antigui- Nuda, como mostrou Simmel, do ponto de vista do individuo e sua
dades) possa ser mais patentc do que 0 de outras (tais como barras de subjetividade, todus as nocas podem conter este tipo de discrepancia
aco, sal ou a~ucar), este componcntc nunca 6 de todo irrelevante. entre os sacrificios do comprador e do vendedor, discrepancias nor-
A candldatura de coisas ao esrado de mercadoria e um traco mais malmcnte postas de lado por causa das inumeras conveneoes sobre a
conceituaJ do que temporal, e concerne as padroes e criterios (simb6- ItOC3 que sao cumpridas por ambas as partes (SIMMEL, 1978, p.
liens, classificatorios e marais) que detcrminam a trocabilidade de sO). podemos, pois, Ialar do quadro cultural que determina a candi-
coisas em qualquer contexro social e hist6rico em particular. A pri- datura $Iecoisas 30 estado de mercadoria, mas devemos ter em mente
meira vista, tal tra!;Opareceria mais bem explicado como 0 quadro que algumas silual;Oesde troca, tanto inter quanto intracultural, se
cultural em que coisas sso classificadas, e e uma das principais pre- caracterizam por uma gaOlamais superficial de padr6es de valor com-
ocupacocs do artigo de Kopytoff neste livro. Porem, tal expliea~ partilhados. Por conseguinte, prefiro usar 0 termo regimes de valor,
oculta uma variedade de complexidades. E verdade que, na maioria por ndo implicar que 1000 aro de Iroea de mercadorias pressupooha
das sociedades estaveis, seria posslvel descobrir urna estrurura urnquadro cultural em que se companilhe uma toralidade de crencas,
raxioncrnica que definisse 0 mundo das coisas, formando conjuntos Aates, 0 termo sugere que 0 grau de cocrencia valorativa pode ser
de detcrminadas coisas, estabelecendo distin~ entre outras, vin- altamente vari'vel conforme a situa~o, e conforme a mercadoria.
culando significados e valores a esses arranjos e fomecendo uma Neste sentido, um regime de valor condiz tanto com graus muito
base para regras e praticas que govemariam a circulacao desses obje- l!itos quanta com graus rnuito baixos de cornpartilhamento de pa-
tos. No que range 11 economia (ou seja, a troca), a descricao de Paul dr6cs pelas partes envolvidas em casos particulares de troca de
Bohannan ('1955) das esferas de troca entre os Tiv e urn exemplo mercadorias. This regimes de valor sao 0 fator determinante na cons-
claro desse tipo de quadro cultural de troea. Mas M dois tipos de tante transcendencia de fronteiras culturais por meio do fluxo de
situac;ao em que os padr6es e criterios que governam as trocas sao mercadorias, entendendo-se cultura como um sistema de significa-
tao tenues, que parecern praticamente ausenres. 0 primeiro tipo Ii 0 dos localizado e delimirado,
C<lSO de transacroesque transpoem fronteiras culturais, em que tudo 0
a
Bnfim, 0 contexto mercantil so refere variedade de arenas sociais,
que se combina e 0 preco (monetario ou nao) e um conjunto minimo 110 interior de ou entre unidades culturais, que ajuda a estabelecer 0
de convencocs concernentes a transa~ao em si." 0 outro Ii 0 caso vlDeuloentre a candidatura de uma coisa 30 estado de mercadoria e a
daquelas trocas intraculturais em que, a despeito de urn amplo uni- fase mercantil de sua carreira. Assim, em rnuitas soeiedades, transa-
verso de conhecimenlos compartilhados, lima tTOeaespecifica se ~ ~e casamento podcm constiluir urn contexto em que rnulheres
baseia em perccNcies profllndamcntc difercntes do valor dos objctos sao Vlstascom maior intensidadc, e de modo mais apropriado, como
que esliio sendo trocados. Os mclhores exemplos de tal divergencia +aJoresde troea. Negocial;6es com eSlrangeiros podcm produzir con-
de valor entre culturas podcm ser encontrados em situaf$6esde extre- &ems para a mercantJljza~ao de coisas que noutras oeasi6es estariam
ma privac;ao (como epocas de fome ou de guerra), quando a 16giea prot~gtdas da mercanliliza~ao. Leiliies acentuam a dimensao mer-
das trncas realizadas lem muito poueo a ver com a comensuraf$ao de C8lltil de .objetos (tais como pinturas) de um determinado modo que
sacriffcios. Assirn, urn homem bengali que entrega sua esposa a pros- pode mUltobem scr percebido como eXlremamente inapropriado em
titui~o em troca de uma refei~o, ou uma mulher IUrkanaque vende ClUtrosconte~tos. Bazares sao cenanos propensos a encorajar 0 fluxo
algumas de suas melhores j6ias pela comida de uma scmana estlio cIe IIICrcadonas,eoquanto cenuios domesticos podem nao ser. A va-
participando de transa~6es que pOOemser consideradas legitimas em ~e de tais coolextns, no inlerior e atraves de soeiedades, prOOuz
circunstancias extremas, mas que jamais seriam vistas operando em ~~o eOlre 0 ambie~te socia~da mercadoria e seu estado simb6-
urn complexo quadro de valom~lio compartilhado entre 0 vendedor e "t"" e_temporal. Como J6 sugen, 0 contexlo mercantil, como uma
o comprador. Outra fonna de caracterizar tais situa~ Ii dizer que, ~ SOCial,pode reunir atores provenientes de sistema.~culturais
nestes contextos, valor e pre~ foram quase tOlalmente desatrelados. diferentes, que comparlJlbem apenas urn minimo de eotendi-

28 29
mentes (em uma perspective conceitual) sobre ()S objetos em questao Jacques Maquet, em 1971, a respeiro de producocs esteticas,? divide
e estejarn de acordo apenas accrca dos termos da ncgoctacao. 0 fe- mercadorias nos quarro tipos que se seguem: (1) rnercadorias por
nomeno conhecido por comercio silcncioso ~ 0 exemplo mais 6bvio QeslilUll(iio, ou seja, objetos destinados principalmcnte a troca pelos
do minimo ajuste entre as dimensoes culturais c socials da rroca de prOpriOSprodutores; (2) mercadorias por metamorfose, coisas desti-
mercadorias (PRICE. 11)80). padas a o.utros uses ~ue se coloeam .no csrado de mcrcadoria; (3)
Portanto, a rnercanrilizacao res!dc na cornplexa inrersccao de fatores mercadonas por desvio urn caso especial, mais accntuado, de merca-
temporals, culturais e sociais. A medida que, numa deterrninada $0- dorias por merarnorfose isro e, objetos que sao postos 110 csrado de
cicdade, algumas coisas, com Irequencia, se encontram na fase meread:>rias embora estivcssem, em sua origem, especificamcnte
mercantil, preencher os requisites da candidatura ao estado de mer- protegidos de tal estado; (4) ex-mercadorias, coisas retiradas, quer
cadoria e aparecer em conrcxtos mercaniis. tais coisas silo suas temponiria ou perrnancntemcnte, do estado de mercadoria e posras
mercadorias rnais ifpicas. A medida que, numa dcterminada socieda- num outro estado. 'Iarnbem e valido distinguir mercadorias "singula-
de, um mirnero consideravcl de coisas, OU mesmo a maioria del as, res" de "homogeneas", no intuito de di(erenciar aquelas cuja
algumas vezes precncbe estes crirerios, pode-se dizer que a socieda- candidatura 30 estado de mercadoria e precisamente uma qucsrao de
de em questao e altamente mcrcantilizada. Nas sociedades capitalistas earacterfsticas de sua classe (uma barra de aco perfeitarnente padro-
modcmas, pode-se afirrnar que hAuma tendencia de que urn numero nizada) daqueJas cuja candidatura reside precisamente em seu carater
maior de coisas experimcnte uma fase mercantil cm suas carrciras, Wlicono interior de uma classe (uma tela de Maner em vez de urna de
que urn numero maier de conlCXIOSse torne mercantil c que O~pa- Picasso; uma determinada tela de Manet em vez de uutra do mesmo
droes da candidature ao esrado de mcrcadoria abranjam uma parte' piator). Inrimamenre relacionada com esta ultima, mas niio identj-
maior do universe de ccisas do que em sociedades nao-capiialistas. ca, e a distin~ao entre mercadorias primarias e secundarias:
Embora Marx tivesse razao em ver 0 capitalismo industrial moderno pecessidades e futilidades; e 0 que chamo de mercadorias moveis
como 0 sistema economico que acarreia 0 tipo de sociedatle mais ver~u~ mercadorias .ellcai.iCaclas.8 Contudo, todos os esforcos em
inlensamente mercantilizada, a compara~o de sociedades em rela- defJDIr as mercadonas esUio condenados 11esterilidadc a nau ser
~o ao grau de "mercantiliza~50~ seria uma que.<;taoextremameote .~ue elucidem mercadorias em movimento. Este 6 0 prin~ipal obje-
cornplcxa, tendo em visla a defini~ao de mercadorias que se abordou tlVOda pr6xima se~o
aqui. Segundo esta defini~ao. 0 termo "mercadoria" passa a ser em-
pregado no restante deste ensaio com referencia a coisas que. numa ROTAS E DESVIOS
determinada Jase de suas carreiras e em urn contexto particular. pre-
enchern os requisitos da candidalura ao cstado de mercadoria. A As ~e~dorias sao (reqiientemente representadas como 0 resultado
analise que Keith Hart (1982) fez reccntemente sobre a importancia mecan.co de regimes de produ!;ao govc:rruldos pelas leis dc oferla e
da crcscente hegemonia das mereadorias no mundO eslaria de acordo proeura. Recorrendo a certos exemplos etnognificos. pretendo mos-
com a abordagem que sugerimos, exceto pelo fOlIOdc, aqui, a ::ar'ne~ta sc"ao, que 0 fluxo de mercadorias, em qualqucr situac;ao
mereanliliza~o ser considerada urn proccsso diferenciado (que en- ~enmJla~a, e urn aco.rdo oscilante entre rotaS soeialmenle regula-
volve, de urn modo diferenciado, questiies de Case, contexto e e desv.os competrl.vamenle motivados.
categoriza~ao) e 0 modo capitalisl3 de mercantiliza~ao ser visto em Co~o ressaltou Igor Kopytoff, pode ser util considerar quc as merea-
do naste h'"
illtera~a(l com uma miriade de outras formas socia is nativ3s de fase m m l~tonas. d e ~Ida.
. .
D~acordo com csta vislio processual, a
mcrcantiliza~o. creamll na hlst6na de VIda de urn objeto nao exaure sua bio-
Tr~ ~ries de distin~iies entre mercadorias merecem ser adic.ionadas gratia e cullu!'"Imenle regulada e sua intcrpreta~o admite ate certo
aqui (outras seraO apresentadas ma;" adiante). A primeira, um3 apJi- P9DtO,a mantpula~o individual. A1cm disso, ainda de ac:,rdo com
cat;~t) modificada de lima distinG50 estabelecida originalmente por I<opytoff. a pergunta "Ouais lipos de objeto devem tcr quais tipos de

30 31
biografia?" t uma questao mais de comesracao social e de go.sto indi- eles 30 ensalo de Nancy Muon (1983), publicado ern urna cole-
eDtre , ,- d dc f _ .
vidual nas sociedades modernas do que nas sociedades .tinea influentc sobre urn renomeno e gran C importancta para 0
proto-industriais, nlio monetizadas e de pequena ~Ia. Ha. DOmo- assuntOdo presente Iivro, 0 celebre sistema kula do Pacifico Oeiden-
delo de Kopytoff, urn cabo de guerra Clemo C universal entre a tal (LEACH; LEACH, 1983).
rendencia de todas as economias em expandir a jurisdi~ao da o kula ~ 0 exemplo mais bern documentado de urn sistema de troca
mcrcantiliza~o e a tcndencia de todas as culturas em limita-la. Indi- translocal nlio ocidental, pre-industrial e nao moneuzado. e. com a
vlduos, nesta concepcao, podem acompanbar qualquer uma destas publ.ica<;iOdessa recente coletanea, pode-se afirmar que se tornou 0
tendencias, conforme se ajustem a seus interesses ou condigam com excmplo mais complete e proficuamentc analisado. Agora, revelou-
StU senso de adequa~o moral, embora nas sociedades pre-modernas se que a classica descricao de Malinowski desre sistema
o espaco para mudancas de rumo nao seja, em geral, muito g~ande. (MAUNOWSKl, 1922) era parcial e problenuitica, muito em bora
Das diversas virtudes do modele de Kopytoff, a meu ver, a mats im- lIIetenha lancado os alicerces para as analises mais recemcs, inclusi-
porrante e a proposta de um modele generico e processual da ve as mais sofisticadas. As implicacoes desta recenie rcconsideracao
mercantihzacao, no qual os objetos podern transitar dentro e fora do do fe06meno kula para os interesscs gerais do prescnte livro sao inu-
estado de mcrcadoria. Estou menos seguro quanto ~ oposicao entre IIICtaS. Bmbora os ensaios desta coletfinca que irei char repercutarn
singulariza<;ao e mercantilizacao, urna vez que alguns d~ casos mais dilerentes pontes de vista, quer emograficos, qucr teoricos, eles, de
interessantes (que, como 0 proprio Kopyloff concorda, suuam-se na t.Io, permitem algumas observacoes gerais.
zona intermediaria de seu contraste ideal e lipificado) envolvem a
mercanulizacao mais ou menos permanente de objetos singulares, o bUa e um sistema regional extremamente complexo para a circu-
laliio de tipos particulares de objetos de valor. norrnalmente entre
E possfvel levantar duas questoes sobre esse aspecio da argumenta- bomens de posses, no arquipelago Massim, ao loogo da costa na ex-
~o de Kopyloff. Uma seria que a propria defini~o do que constitui tremidade teste da Nova Guine, Os principais objetos trocados uns
objetos singulares em oposicao a classes de objetos ~ uma questao ~ outros sao de dois tipos: colares e braceletes oroamentados (cada
cultural, na medida em que podem existir exemplos unicos de classes urn circulando em dire~s contrarias). Estes objetos de valor adqui-
hornogeneas (a barra de aco perfeita) e classes de objctos singulares tern biografias muito especificas, conforme sc movem de 11mlugar a
culturalmente esrimados (tais como obras de arte ou pecas de ves- outro, e de uma mao a outra, it medida que os homens que os trocam
tuarlo com a eliquela do estilista). Por outro lado, uma critica marxista 'pnham c perdcm reputa~o ao adquirir, possuir e se desfazer destes
desse contra sIc sugeriria que e a mercantiliza,iio, comO um processo 'objelos de v<llor. 0 termo keda (estrada, via, rOla 011 trilha) e IIsado
hisl6rico global, que delerrnina, de maneira imporlame. as rela~es 'em. algumas comunidades Massim para descrevcr 0 percurso desses
oscilanles entre coisas siogulares e homogeneas em qualquer mo- bbjetos de valor de uma ilha a outra. Mas keda tamMm possui um
mento da vida de uma sociedade. Porem, a principal questaO aqui f;, 'COIIjuntomais difuso de significados, que se referem aos vioculos
que a mercadoria nao e urn tipo de coisa, em vez de um outro tipo, ~ais, polfticos e de reciprocidade mais ou menos estaveis entre os
mas uma fase oa ,>idade algumas coisas. Neste POOIO,Kopytoff e eu. 'bexnens que fazem parte destas rolas. Em sua ace~o mais abstrata,
estamos de pie no acordo. .1aI4 re{ere-se 11 rOla (criada pela troca desles objet(lS de valor) que
ThI conccPlt-'1oda mercadoria e da me.rcantitiza~o traz diversas im- ~a l riqucza, ao poder e a reputa~o dos bomens que negociam tais
plicac;6es importantes, algumas das quais slio m~nci~nadas n? d~rso .~os (CAMPBELL, 1983, p. 203-204).
da argumenta~o de Kopytoff. Outras serao dlsculldas mats adlante :~ c, pois, urn conceilo polissemico, no qual a circula~o de obje-
neSle eosaio. Meu inleresse imedialo, porem, se volta para um aspec- 1Ol,.a conslruCiao de mem6rias e reputa<;6es, e a busca de distin~iio
to significalivo dessa perspecliva temporal sobre a mercantiliza<;3o. ,~pot mcio de cstralegias de parceria sao evocadas todas de uma
das coisas, que conceme ao que denominei rOlas e desvios. Devo ~yez. Os vinculos dclicados e complexos entre hom ens c coisas,
estes dois termos, e ccrta parte de minha compreensao das rela~es

32 33
centrals para as politicas do keda, sao captados 110 seguinte excerto.j, 1983, p. 203204) que ~ermile ~ negociacao co~pe~iciva de estimati-
partir da perspective da ilha de Vak'Ula: vas pessoais de valor a luz de mtercssesindividuals tanto de longo
o krda bern-... ""did... e furm.do pot homens qua quanlO de eurto prazo (FfRTH, 1983, p. 10I). 0 que Firth chama aqui
530capaxes de manter parcenas keda rClativameote de ~engenharia da divida" e uma variedade da cspecie de IrOCl calcu-
estdveis por meio de admir4vci~habilidades oraI6.: Iada que, segundo minha definiciio, toma turva a linha que separa a
ria~e menipuladuras, c que agem como uma cquipe, ttoca de mercadorias de varianrcs mais sentimentais. A difcrcnca mais
ceda urn in1erprtla::Jdo os mcvimentcs do ouuo. 'R>- iJDpOrtanteentre a troea destas mercadorias e a rroca de mercadorias
davia, muiln$. keda desmoronam, to,nando
necessarto que os homensse realinhem rcgularmeo- em economias modernas e indusuializadas Cque 0 diferencial que SI!
te. Alguns forman' iipos de kedu eompletamente
busca nos sistemas como kula "stll na reputacao, nome ou fama, de
diferentes, cnqu;snlo os remanescentes de um keda modo que pessoas ~iio a forma crucial de capital para a prodll~ii()
rompido podem quem- form., cerro keda, alicitndo desSC lucro, em vez de outros fatores de producao (STRATHERN,
novos partic:ip..ntes. Ainda outrM podem jamais par- 1983, p. 80; DAMON, 1983, p. 339-340).0 nao ter preqo e urn luxo
ticipar dUkel/" novameme, por sua faltade habllidade para poucas mercadorias,
em forrnarourrokedu em f!17.:in de uma"md" r(p~
l~O na atividade *u.to. No. realidade. 0 universe> de ialvez ainda mais importance que 0 aspecro calculista das trocas no
objctos de valor fcilos em concha em quaJque.rdIJ ~ seja 0 fato de esses estudos recentes tornarcm multo dificil ob-
~ migraiorio a composi~ sociat de urn t.d4 , servar a troca de objctos de valor no kula como algo que ocorre apenas
U4ln~it6tia.A hi~16riaaeumulada de urna conc.ha 6
_ fronreiras entre comunidades, sendo as que se realizam no interi-
retardada pelo movimen(o cun((nuo entre os ke.dtl.
cnquaot(.1a reivindjca~aodos homcas por imunal'" er delas mais proximas da Iroea de presentes (DAMON, 1983, p.
dade de"vanecc no momenrc em que as cuncbas 339). 0 conceito de kitoum fornece 0 vinculo recnioo C conceitual
perdcrn sua aSMK.-13<1ao com estes bomens ap6s to- entre as longas rotas percorridas pelos objetos de valor e as trocas no
rem sido atrilida~coin txilo para urn cerro ktdtl, interior da ilha, mais Intimas, regulares e problernaticas (WEINER.
~umindo. portanlO, a idenlidalk: social i..Ie, r.eUSBO- 1983; DAMON, 1983: CAMPBELL, 1983; MUNN, 1983). Ainda
vo' donos. (CAMPBELl. W1I3,p. 211l219)
IlK 0 lermo kilQlIIn seja complexo e em cerlos aspeclos ambiguo,
Assirn, a rOla tomada por esses objelos de valor sirnultaneamente -,uece claro que designa a articula~o enlre 0 kula e outras modali-
reflele e conslr6i parcerias e confJilos sociais por proerninencia. Mas cIades de Iroea nas quais homens c mulheres Iransacionam em suas
ha urn born numcro de OUlros fatores que sao dignos de nOla no que ')ir6prias comunidad~s. KiloumS silo objelos de valor que podem ser
lange ii circula~o destes objetos. 0 primeiro c quc sua Iroea nao 6 1NJISIOS ou legilimamenle retirados do sislema kula para se efclUarem
facilmcnle calcgorizada como uma Iroea recfproca simples, dislante "convers6es" (no sentido de Paul Bohannan) eolre niveis discrepan-
do espfrilo da negocia~ao e do comcrcio. Aind" que as valorac;;6es .!f.s.de "C;'3"sferencia" (BOHANNAN, 1955). No uso de kilOlllll, vemos
I11llnetarias eSlejam ausenlcs, lanto a nalureza dos objCIOSquanlo uma ps cruclalS vf.oculos conceiluais e inslTumenlais enlre as rolas mais
variedade de fonles de f1exibilidade no sislema possibililam que exisll .~ e mais longas que formam a 10lalidade do mundo das Irocas
ai 0 lipo de troca calculada que suSlenlO ser 0 ceme da Iroea de mer ~ ~im. Como moSlIOUAnnetle Weiner, e urn equivoco isolar 0
cadorias. ESles complex os mod os de val()rac;;ilo permicem que ~de Sistema de Iroeas entre ilhas das Iransferencias <.Ieobjelos que
parceiros ncgociem () que Firth (seguindo CASSADY JR., 1974) cha- c9.f0n'cm por causa de dfvidas, morte e afinidadc - Irocas mais fnti-
mou de "lf0C3 por lratado particular", urna silua"ao ~m que sc chega {!'t por~m (para os homens) mais sufocanles (WEINER 1983 P
~YOO-16S). ' ,.
a uma especie de pre~o por meio da negoeiac;ao de alguns processos
que difercm das for~s impeSS<lais de of crt a e procura (FIRTIi, 1983, 1:.':'.;:ma kula confere urn caniler dinamico c processual irs ideias de
p. \II). A~sirn. apesar da presen~a de laxas de Iroea gcneralizadas 0 .oIo;;.._~-- no
que lange 11mistura ou IrOCade qualidadcs enlre homens e
oonvencionais, ex isle um complexo calcul0 qualil31ivo (CAMPBE[J., -. como nOIOUMunn em relac;ao as trocas A?lla em Cawa: "Em-

34 35
bora os homens parecam ser os agentes na defini~o do valor cia para as mais mundanas realidades de poder e valor na vida comum.
conchas. na verdade, sem conchas. eles nao podem definir seu p~ eomo no kula, do mesrno modo que em tais torneios de valor em
prio valor; quanto a isso, conchas e homens sao agenres recfprocq geraI, habilidades esrraregicas sao medidas culturalmcme pelo su-
na defini~iio do valor de urn e de outro" (1983, p. 283). Mas, collli c:esso com que os atores arriscam desvios ou subversoes das rotas
observou Munn, naconstrucso recfproca de valor, as rotas naosao ~ cullUratmenlc convencionadas para 0 fluxo das coisas.
unicas a exercerem urn papel importante: os desvios tambem 0 ftj A idtlia de torneios de valor e uma tentativa de eriar uma categoria
zem. As relacoes entre rotas e desvios sao cruciais para as polfti~ geral, seguindo uma obscrvacao recente de Edmund leach (1983,
de valor no sistema kula, e a orquestracao apropriada destas rela~ p. 535), que compara 0 sistema kula com 0 mundo da arte no Ociden-
e a principal estrategia do sistema: te IJlO(Ierno.A analise de Baudrillard dos leiloes de arte no Ocidenre
Na verdade, 0 sistema de m1as inlplica 0 de!i:~., ooDlemporanoo permite que se amplie e aprofunde eSIS anaJogia.
que este e um dos meios de I~r nuylS Iotas.. Pc4 Baudrillard observa que 0 lei lao de arte, com seus aspectos hidicos,
suit mais de um3 rot .. tamblm indk.. a probabUi~ rituais e reciprocos, se localiza fora do ethos da troca economica con-
de:Ouimet desvios a partir de:uma roc.:.eSlabelecida' veocional, e que "vai rnuito alem do calculo economico e diz respeito
outra, it medida que homcns se tornam sujcitos a ij
todos os processos de transmuta~ao de valores, de uma 16gica de
t(rcsse.~ e persuasivas de Qulro~ grupos de parceird
[... J De fato, no kula, os bomens de posses ,em J valor a outra, que pode ser observada em determinados lugares e
desenvolver alguma cap.acidndc de cquilibrar op/, iostitui~6es" (BAUDRlllARD, 1981, p. 121). A anallse que
ra~oes: dcsvios de uma rota devcm SCT repostos mal Baudrillard faz do ethos do leilao de arte merece ser citada na Inte-
lank para acalmar parceiros frustrados e evitar q{ gra, j~que poderia ser facilmenre uma caracterizacao apropriada a
a rota desapareca, ou evitar que eles mesmos seja' outros exemplos de torneios de valor:
."primidns d. rota. (MUNN. 1983, p. 301)
Ai) contranode .r~ comerciais,quein!4itv
Estas trocas de grande escata representam esforcos psicologicos ~ em urn::. rclll~io de rivalidadt economicI entre
transccnder OUJ(os rna is humildes de coisas, mas, nas polfticas ~ indi.id..,. em condi~Oes de iguoldade (Offilal.com
reputacao, ganhos na arena mais ampla lem implica~6es para as aI1 c-lda um guiando seu proprio alcu10 de l-tpropria-
oas menores, e a ideia de kiloum assegura que lanlo as transferilnc~ ~iio individual, 0 leiJao, como a fesfaOU0 jV80,
in."llitui urna YCldadeira comunidu\lc de ll'OC3 entre
quanto as conversoes lem de ser conduzidas com cuidado com viSIl!
pares. rndepcndcnlcnlcnledequem arrematruos lan~
nos melhores gaohos no lotal (DAMON, 19&3,p. 317-323). 0 kuJ, us. a fun~k)c.~"eocia!do Jeill0 6 a instilui~i'lo de
pode ser vislO como 0 paradigma do que propunho chamar de lor11i!J umn cOlnunidade dos privilegi3do~ que se
os de valor.' aUlodefincm como lai.~por mcio da e!Opc:x:ula~;io
,agoni~ticsobrcurn restrilo C()TpIIsdc si~ Aconl"
Thmeios de valor sao complexos eveotos pen6dicos que, de algum pe'i~o de tiPJ arlstocritico legitima sua JM,idQdc
forma culturalmente bern definida, se afaslam das rOlinas da vid (que aio tem noda vcr com igualdade formal da
economica, A participa~ao oestes eventos rende a ser simulran~ compcti~o economical c. assim, ~ua privilegiad3
men Ie um privih'gio daqueles que esrao no poder e um instrument ca.-<uacolc'iV:l djaAte de codas os QUIros..de quem Ji
de dispula de SIll/US enlre ties. A moeda corrente destes tomeios tad nio se scparam mcramente pelu poder de compra,
bern tcode a ser dislinguida por meio de diacrflicos culturais mui' mas pclo :llo sunluariu c colerivo de produzir e Iro.
C3r valorcs d<>ssigno . (1981. p. 117)
bern compreendidos. Finalmentc, 0 que esta em paula nestes tomei~
nao e apenas 0 slanlS, a posi~ao, a fdma ou a repul.3~O dos atores, JDI ltD faur uma analise comparativa de tais torneios de valor, pode ser
a disposi~o dos principais emblemas de valor da soc.iedade em qud. ~e~vel oao seguir a tendenda de Baudrillard de isoIl1-los, para
laO.,0 Enfim, embora IMS lome ins de valor ocorram em cpocas c lugad T~IJCOS, da Iroca economica mais mundana, em bora seja mui-
especiais, suas formas c resultados sempre trazem oonseqiienciJ vel que a articula~o dcsl.3Sarenas de valor com OUlrasarenas

36 37
cconomicas apresemc grandes variacoes. Terei mais a dizer sobre tor- dcm ser rnercantilizados por ninguern. 0 corpo da arte e do ritual em
ncios de valor na discussao acerca das rela<;i\cs entre conhecimento c sociedades de pequena escala e uma destas zonas encaixadas, onde 0
mercadorias, mais adiante nesre ensaio, espirito d.amercadoria s6.adcntra sob condi~(ics de mudancas cuhu-
o ~711(l,de qualquer modo. representa um sistema muito complexo rais mass-vas. Para uma d.scuS$ao mais longa deste fenomeno, rcmos
panl a inrcrcalibragem das bingrafias de pessoas e coisas. Mostra- o cnsaio de ~illiam Davenport sobre a producao de objetos destina-
nos as dificuldades de separar a troca de mercadorias da de prcsentes, dos ao uso ritual nas ilhas Salomao Orientals.
rnesmo nos sistemas pre-industriais e nao monetizados, alem de nos Os fcn6me~os disclllidoS. no artigo de Davenport elucidam os aspec-
lembrar dos riscos envolvidos em correlacionur, de modo demasiado 105mercanns da VIdaSOCIalprecisamente por ilustrarern uma especic
rigido, zonas de intimidade social com formas distintas de troca. Po- de quadro moral e cosmologico no qual a mercantilizacao e resrrita e
rem. e talvcz 0 mais impcrtante, trata-se do excmplo mais intricado resguardada. Durante as observiincias funebres desta regiao, particu-
da polltica dos torneios de valor, em que os atorcs manipulam as larmente na celcbracao de larga cscala charnada murina, investem-se
rotas culturalrnente definidas e 0 potencial estrategico dos desvios, muita energia e despesa oa confec"iio de objctos que desempenharn
de modo que 0 rnovimento das coisas lorna mais alias suas pr6prias um papel centr~1 D~ritual, ~~s sao rigorcsarnente pOSIOSna catego-
posicoes. na de m~rcadonas terrmnais (KOPYfOFF, Cap. 2), ou seja, objctos
No entanro, dcsvios nao silo encontrados apenas como partes de es- q~c, devido ao conrexto, ~o proposito e ao significado de sua produ-
traiegias individuais em SilU3\;OeS compcritivas, mas podem ser ,,~o,fazern apenas urn trajeto da produ<;iio ao consume, Em seguida,
institucicnalizados de varias formas que removem ou protegcm ob- aJOda.que al~umas vezes tenharn eventuais usos domesticos, jamais
jetos dos contextos rnercantis socialmentc relevantcs. Monop6lios lhes e per~I~ldo rel~rnar. ao estado de mercadoria. 0 que os lorna
de realezas sao, talvez, os cxemptos mais conhecidos de tais "mcrca- desmercamilizados .e: pois, ~ma cornplexa concepcao de valor (na
dorias encaixodus", como aponta Kopytoff no Capitulo 2. Uma das
qual s,e.unem 0 estenco, 0 ritual e social). C lima biografia rilual
discussocs mais amplas e interessantes sobre csie tipo de rcstrir,;30 cspecifica. Podemos parafrasear as observacoes de Davenport e ob-
monopolisla 30 fluxo de mereadorias e a de Max Gluckman (1983), servar que 0 que se passa aqui - no centro de um conjunlO
no contexlO da~ propriedades reais enlre os lozi da Rode.~iado None. extrell_lamenl~ complexo e ~alculado de inveslimenlOS, pagamenlos
Em sua di~cussao acerea das categorias de "d<idiva". "tribum" C "coi- e crcd.tos - e um llpo espec.al de Iransvalordliao, 110 qual objetos sao
sas regias", Gluckman mostra como. mesmo em urn reino agrfcola POSI<)~alem da zona de mercanljliza~a(l culturalmcnle demarcilda.
com baixos excedentes. () nuxo das mcrCadtlfias possui implicaes E:-~IeIIPO de transvalora<;iio pode assllmir forrnas diferentes em so-
muito diversas c signjficativas. Em sua anMise das "coisas regias", c,eda~es diferenles, mas, em muilas sociedadcs, caracteristicamente
lorna-so: claro que a principal fun<;iio deslO:~monopOlios reais era os objetos que ~epres~n~m elaooral<Oes cslelicas e aqueles que ser-
manter a exclusividade suntuaria (como no monop6lio real de &span- :e~ de sacr~.saoprolbldos d.e ocupar 0 eSlado de mereadoria (quer
ta-moscas fcito com pele de elande), a primazia comercial (como SOCIal,de~mllva o.ulemporanamenle) por muilO lempo. No rigoroso
com as prcsas de ctefantc) c a cxibi<;iio da hierarquia. Tal reslri<;ao de co~proml.sso dos ItheliS de Salomao de colocar seus produlOS rilllais
coisas retiradas das e~feras de troca mais indiscriminadas e parte n.lals eSletlzados fora do alcanee da mercantiliza~ao, vemos uma va-
do modo pelo qual. em lideram;as e imperios pre-modernos, 3 rea- nante de uma Icndencia muilo difundida.
leza podia assegurar a base male rial da exclusividade suntuaria. Esle Um exemplo um lamo diferenlC da lensao enlre a troca de sacra e de
tipo de proce~so pode ser chamado de desmercantiliza~ao "de cima ?,crca_dorias pode St~vislo na an~Jise de Patrick Geary acerca do
para baixo". Inter.camblo de relfqul3s nos primlirdios da Europa medieval. As rc-
Mas 0 caso mais complexo concerne a areas inleiras de atividadc e ~,fqulas descritas sao, obviarncnlc, "encontradas" em vez de
produ~iio que ,ao dcstinadas a fabricar objetos de valor que Ilao po- fabncadas". e sua circula<;iio repereule um aspecto muito imponan-
Ie da constru<;iio da identidade comunilaria. do prcstfgio local e do

38 39
controle eclesiastico e centralizado na Europa latina do perfodo me cIanO. Tais OIercadorias encaixadas guardam uma semethanca famili-
dieval inicial. com outra c1asse de coisas, frequentementc discutida na literarura
~16gica como "objetos de valor primiuvos", cuja especificidade
Estas reliquias penencem a uma economia particular d~troca e de-
10vincula direlamcnle 11 troca de mercadorias,
manda na qual a historia de vida da rellquia em questao e essencia~
em vez de incidente, a seu valor. A auteniicacao desta hist6ria ~ igu~i Embora as mercadorias, em virtude de seus destines de troca e de sua
mente central para seu valor. Tendo em vista a abordagem geraJ OIl COIDensurabilidade mutua, tendam a dissolver os vinculos entre pes-
diterenca entre dddiva e mercadoria que fiz neste ensaio, eu sugeriru seas e eoisas, tal tendencia e sempre equilibrada por uma
que Geary talvez dclineie urn contrasre por demais rigido entre ambasj conttateDdeocia, em todas as sociedades, de resiringir, controlar c
na verdade, seu proprio material mostra que 0 presente, 0 roubo e d canalizar a rroca. Em muitas economias primitivas, objctos de valor
comercio erarn, iodos, modos de movimentar os sacra no contexte exibem estas quaJidades socialmente restritas. Dcvemos a Mary
rnais ample do coni role eclesiastico, da competicao local e da rivalk j)ouglas (1967) a ideia de que varies destes objetos de valor se asse-
dade entre comunidades. Sob esta perspecuva, as reHquias medieval! melbarn a cupons e llcencas das economias industriais modernas. Ou
parecem estar menos cautelosameme protegidas dos riseos elf lilja, apesar de serem parccidos com dinheiro. nao sao urn meio ge-
rnercanrilizacso que os objetos rituais de Davenport. No entanto, peri IItralizado de troca, mas possuem as seguintes caracterfsticas: (I) os
manece a inferSneia de que modos comerciais de aquisicao da! podeles aquisitivos que representam sao alta mente especfficcs; (2)
reliquias eram menos desejaveis que a dadiva au 0 roubo, nao exata .. distrlbui~o e controlada de formas diversas; (3) as coDdi~Oes
mente por uma antipatia direta 11negociaiio de reliquias, mas, antes .. govemam sua emissiio criam uma serie de rela,,6es do tipo
por serem os outros dois modos mais emblematicos do valor e dI Jll'fooo-cliente; (4) sua principal fun"iiu c fornecer a condicao ne-
eficacia do objeto, Qess8ria 30 ingresso em posicoes de alto slams; e (5) os sistemas
lIIICiaisem que tais cupons e licencas funcionarn sao engrenados para
Assim, tarnbem essas reliquias caem na categoria de objetos cuj!
Wiminar ou reduzit 3 cempeucao em favor de urn padrao estave! de
rase mercantil e ideal mente curia, cujo movimento 6 resrrito e qul
IMtIa (DOUGlAS, 1967, p. 69). Tecidos de rMia na Africa Central,
aparentemente nao "recebem um preco" da mesma maneira que oJ
--..pumJl entre os indios do leste dos Estados Unidos, dinheiro-con-
tras coisas. No entanto, a forca da demanda e lamanha que as fill
circular com um3 velocidade consideravel e de modo muito parecidc
11M entre os Yurok e a moedaconcha da lIha Rossell e OUlras partes
cia Oceania sao excmplos de tais "eupons de mercadoria" (nas pala-
com 0 tie suas cOlllrapartes mundanas. Portanto, mesmo no easo <II
~ de Douglas), cujo Ouxo reslrilO eSla ~ disposi~iio da reprodu~iio
objelos "Iransvalorados", que assumem as caraetcr!slicas de mer~
" alslemas politicos e sociais. Coisas, nestes conlexl05, conlinuam
dorias encaixat/as, em vez de m6veis, M varia~oes consider~veis nOt
mecanismos de reprodu<t3o das rela~6es enlre pessoas (vcr tam-
mOlivos para, e na nalureza de, lal enctave. As "coisas rc$gias" ~
~~ DUMONT, 1980, p. 231). Tais cupons de mercadorias
Gluckman, as reHquias de Geary e os objetos rituais de DavenllOll
~ese?tam urn ponto inlemlediirio enlre dadivas "puras" e um
sao tipos diferenles de mercadorias encoixadas, objelos cujo polen:
~Erclo "puro". Com a dadiva, eles compartilbam uma certa in-
cial mereanlil e cautelosamenle resguardado. Pode, ainda, s~
.rencta pela oferla e procura, urn aho grau de codi fica~5o em
apropriado nOlar que uma forma institucional bem significaliva ~
restringir a zona dn lroca de mercadorias em si mesma e 0 "porto-del
~os do: etiqueta e apropriabilidade, e uma lcndencia de 5egIJir
~ so~laJmentc eSlabelecidas. Com a pura permula, sua Iroca
comercio" as.c;ociado a muitos reinos prc-modemos (GEERTZ,'I 980)
~P~rtllba 0 espirilo do calculo, uma receptividade ao inleresse
embora lais reslri6es ao comercio na polilica pre-modema possad ~no e uma preferencia por transa~6cs com pessoas relariva-
nao ser tao radicais quanlo se imaginou (CURrIN, 1984, p. 58). ()( ~te estranbas.
motivos para lal resguardo sao bern variaveis, mas, em cada caso, at
h.~sistemas reSlrilOSde Ouxo de merc.adorias,
bases morais da restri<t3o tern impJicaes claras para enquadrar ~
facilitar trocas plllilicas, sociais e comerciais de urn tipo mais mud 'Ji nos quais objel05
re:terrem 0 papel de cupons ou Iicen~as de$linados a proteger

40 41
sistemas de status, vemos 0 equivalenrc funcional, que c iambem 0 crises podern assumir uma varicdac.le de form as: adversidades econo-
inverse tecnico, da "moda" nas sociedades mais complexas. Sc. Dum micas, em qualqucr cspecie de sociedade. podem Jevar familias a se
dererminado caso, sistemas de status sao protegidos C reproduzidos desfazercm de objetos transmitidos por diversas gera<;iies. de anti-
pelas restricocs de equivalencias e trocas em um universo estavel de guidade~e de memorabilia para mercumitiza-los. tsso e tao verdadeiro
rnercadorias, em urn sistema de moda, 0 que se resrringe e control a ~ para objetos de valor mais modernos quanto no kula. A outra forma
o gosto, num universe de mercadorias em constanie IIwla~iio,com a de crise em que mercadorias sao dcsviadas de suas rotas apropriadas,
ilusao de urn carater total mente intercambiavel c de acesso irrestrito. obviamente, e a guerra c a pilhagem que a acompanhou ao longo da
Leis suntuarias constituem urn mccanismo intcrmediario de regulari- hist6ria. Em tal pilhagem, e DOesp6lio que deja deriva, vernos 0
za~ao do consumo, apropriado a socicdades preocupadas com inverso do comerclo. A transferencia de mercadorias em tempos de
exibic;oes destatllS cstaveis em contextos mercantis de expansao ace- guerra sempre tern uma intensidade si mhOlics especial, exemplificada
Icrada, tais como a india, a China e a Europa do periodo pre-rnoderno na tendencia de enquadrar uma pilhagem mais mundana no transpor-
(prosseguirei com estas comparacoes na pr6xima ser;ao deste ensaio)." te de armas cspcciais, insignias ou partes de corpos que pertenciam
This formas de restri~ao, e as mercadorias encaixadas que criam, as 30 inimigo. Na pilhagem pretensamente legftima que instaura 0 qua.
vezcs fomecem 0 contexte c as metas das estrategias de desvios. 0 dro propicio a saques mais mundanos, vemos 0 analogo hostil do
que significa dizer que 0 desvio pode, em certas ocasioes, envolver a duplo processo de sobrcposicao de camadas dos circuitos de troea
remocao calculada e "interessada" de coisas de uma zona encaixada mundanos c mais personalizados em outros CODleXlOS(tais como 0
para aloca-las em uma zona onde a troca C rnenos limitada e mais kula eo gimwali na Melanesia). 0 roubo, condenado na maioria das
lucrative, num sentido de cuno prazo. Onde 0 enclave atende aos sociedades hurnanas, ISa forma mais simples de desvio de mercado-
interesses de grupos, em especial os grupos que detem 0 poder eco- rias de suas roras predeterminadas.
nornico e politico em qualquer sociedade, os oesvios sao, com Mas h3 exemplos mais suus de desvios de mercadorias de suas rotas.
freqiiencia, os recursos do individuo ernpreendedor. Mas, sejam gru- Uma area de grande abrangencia c a que tern sido chamada de arte
pos ou indivfduos OSenvolvidos em qualquer tipo de atividade, 0 turfstica, em que objetos produzidos para usos esteticos, cerimoniais
contraste fundamental e que, enquanto 0 enclave busca proieger cer- ou suntuarios em pequenas comunidades de contato direto sao trans-
tas coisas da mercantjjiza~ao, 0 desvio freqUentemente visa atTair formados cultural, economica e socialmentc pelos gostos, rnercados
coisas prOlegidas para a zona de mercantilizaC;iio. e ideologias de economias maiores (GRABURN, 1976). Terei mais a
Em uma discussao extremamente interessante sobre 0 comercio brio dizcr sobre a arte turfstica na se!;iio deSle ensaio intitulada 'Conheci.
tanico no Havai em fin~ do seculo xvm e inicio do sOCulo XIX, mento e mercadorias". Outra area reJacionada e a da hist6ria e da
MarshaU Sahlins mostrou como os chefes havaianos, ao estender oatureza das grandcs coleg6es de arte e arqueologia no mundo oei.
conceJXi6es tradicionais de tabu para incluir novas classes de bens d~otal, cuja cOnstilui~ao apresenla uma complexa mistura de
comerciais (adaptando-os a seus interesscs cosmopoliticos), tiveram pd.bagem, veDda e heran~a. combinada com 0 goslo ocidenral pelas
exito em transformar a "finalidade divina" ate mesmo de labus ceo COIS3Sdo passado e dos OUlros." Neste trafego de anefatos, podemos
nomicos cm inslrumcntos de oportunismo (SAHLlNS, 1981, p. eOCOntrar,boje, a maioria das mais serias questoes de debate cultuml
00 tluxo internacional de mercadorias "aulenticas" (ver SPOONER
44-45). Assim, 0 que Sahlins denomina "pragmatica do comeccio"
desgasta e Iransform3 as fronteiras cu !turais no interior das quais sao cap. 7) e "singulares" (vcr KOPYTOFF, cap. 2). As dispulas atuai;
inicialmente concebidas. Em suma, as politicas de enclave, longe de dos mu,seus e govcrnos norteamericano e brillinico com varios Ou.
sercm uma garantia de estabilidade sistem'tica, podem se tornar 0 lros palses trazcm A tona todos os embara~s polilicos e morais que
(laSsam a estar em jogo quando as coi$as sao desviadas, repctidas
cavalo de Tr6ia da mudan~.
vezcs, d: suas:Olas minimas e conveneionais, e sao Iransferidas por
o desvio de mcccadorias para fora das rotas especificadas e sempre ~os lao vanados que fazem com que suas historias de reivindica.
um sinal de criatividade ou crise, scja estt:tica ou economica. Tais ~s c conlrareivindica~oes sejam elCtremamente dificeis de julgar.

42 43
o desvio de mercadorias de sua rota costumeira sempre carrega dade do Stado sobre a organiza,.ao social do lazer entre os cida-
uma aura arriscada e rnoralmente ambigua. Sempre que aquilo daos recem-ricos e em ascensao social da Somalia urbana. Com
que Bohannan (1955) charnou de transferncia dli lugar ao que ele este exemplo, somos mais uma vez lembrados que mudancas rapi-
chamou de conversoes, 0 espirito de empreendimeoto e 0 de das nos habit os de consumo, quando nao reguladas pelos que estiio
corrupcao moral cntram em cena simultaneamente '. No casu das no poder, tendem a lhes parecer ameacadoras. Ainda, no caso da
rrocas kula na Melanesia, 0 movimento de mercadorias atr3v6~ de SOlOalia, temos urn 6timo exemplo da tensao entre uma allera~ao
esferas, ainda que de algum modo (ora de ordem, I~mbcm e~l~ no brusca na politica economica de urn ecarneno mercantil regional e
cerne da esrrategia do participante kula bem-sucedido e habllrd? a auloridade de urn Estado nesse ecumeno.
so. Conversoes inapropriadas de urna esfera de troca ~ outra sao
com frequencia corrobnradas, recorrendo-se II alegacao de crise Bem entendido, os melhores exemplos de desvios de mercadoria de
cconomica, quer se traie de pemiria ~u de falenc!a. Se tais alega- suas conexoes originais devern ser encontrados DOdomfnio da moda,
c;oes Olio forem validas ou crtveis, acusacoes de mouvos da exibi~iio domestica e das colecoes no Oeidente moderno. No vi-
inapropriados e venais serao manifestadas. Excelentes exemplos
sual high-tech inspirado pol Bauhaus, a funcionalidadc de fllbrieas,
das implicacoes potlticas do desvio s50 encontrados na arena de
armazens e locais de trabalho e desviada para a esterica domesrica.
rrocas de mercadorias ilegais ou quase-legais. Urn casu de trocas
Os uniforrnes de voirios offcios passam a fazer parte do vocabulario
da confeccao de roupas. Na 16giea dos objets trouves, mercadorias
deste tipo e abordado em seguida.
coli dian as sao deslocadas e estetizadas, Tudo isso sao exemplos do
o intrigante artigo de Lee Cassanelli que consta deste livre discute a que podemos chamar de mercantilizacao por desvio, em que 0 va-
alteracao na poluica economica de uma mercadoria quase-legal cha- lor, seja no mercado de rnoda ou de arte, is catalisado e intensificado,
mada qat icatha edulis), durante os (illimos 50 anos, no nordeste da colocando-se objetos e coisas em COnleXIOSimprovsveis. E oa este-
Africa Qal fornece urn excelente exemplo de mudanca no que se rica da descontextualizacao (ela mesma motivada pela busca da
pode denominar um ecurneno rnercantil," quer dizer, u~a .red.e oovidade) que esta a essencia da exibi9iio, nas casas de ocidentais
transcultural de relacionamentos que vinculam produtores, distribui- suposiamente intelectualizados, de utensOios e artefatos do "ou-
dores e consumidores de urna mercadoria, ou conjunto de mercadorias, tro": alforjes turcomanos, lancas rnassais, cestos dinca." Nestes
particular. 0 que e especifieamenle interessante, oeste case, C a dras- oojetos, vemos alem de uma equivalencia entre 0 autentico eo co-
tica expansao daescala de coosumo (e de produ9iio) de qal, clara mente tidiano ex6lko, a estclica do desvio. Thl desvio nao e apcnas urn
Iigada a mudan~as oa infra-estrutura Iccnica, assim como 11econo- instrumento de desmcrcanliliza~ao do obiclo, mas tambem a (po-
mia politica da regiiio. Embora a expansiio da prod~9iio. pare~a tencial) intensifica~iio da mercantiliza~iio pelo aumento de valor
condizcnte com condi9i)es que se ajuslnm a padroes rnalS UOlversals que lesu)ta desle desvio. Este aumento de valor por meio do desvio
na comercializa~ao da agricultura, a que e mais iotrigante e a expan- esra por tnis da pilbagem de objelos de valor dos inimigos em tem-
sao da demanda e a rea9iio do Estado - em especial oa Som(\lia - ao pos de guerra, da compra e exibic;lio de objetos utilitirios
s(ibito crescimento tanto oa produ9iio quanto no consumo de qal. "primitivos", do deslocamento dos objelos "encontrados", da for-
A reeente proibi~ao (1983), promulgada pelo governa so~ali, de ma~ao de cole~Oes de qualquer esp6cic. '" Em lodos estes excmplos,
plantar, importar c mascar qal e c1aramcnte a.mov~mento mals novo o desvio das coisas combina 0 impulso eSllitico, 0 vinculo empre-
da ambivalencia eslatal sabre uma mercadona cUJo consumo e per- codedor e um toque de choque moral.
cebido como urn habilo ligado a formas de sociabilidade Thdavia, desvios s6 sao dOlados de significado se relacionados as
improdutivas e potencialmeole subversivas. No .caso da pro~bi9iiO rotas de que foram eXlrdviados. Na verdade, ao se observar a vida
somali em vigor, parece que a qal (co~o.o leel~o ?a ret6nca de SOcialde mercadorias em qualquer sociedade ou periodo determina-
Gandhi) c visla como urn problema de multlplos OI~els, quedesafi.a dos, pane do desafio antropologico e definir as rotas relevanles e
nao SOllleote 0 eontcole do E.~tado sobrc a economla. mas a aulO[l- COstumeiras, de sone que a logica dos desvios possa ser enlclldida de

44 45
urn modo apropriado e relacional. As rclac;6es entre rotas C desvios C)~ibi~6escolctivas, ao igualitarismo cconemico e a sociabilidade - 0
sao, em si mesmas, historicas e dialeticas, como mostrou coin rnes- que ger. urn problema para os murias que, como consequencia de
tria Michael TI,ompsom (1979) a respeito de objetos de arte no mundo allcra<;6es na economia tribal mais ou mcnos 30 longo do ultimo se-
ocidcJltal moderno. Dcsvios que se tornam previslveis estao a cami- culo, adquiriram uma riqueza consideravelrnente maier que 0 resro
nho de se tornarem novas rotas, que, por sua vez, irao inspirar novos de suas comunidades. 0 resuhado ~ urn padrfio que, invertendo Veblen,
desvios ou retornos a rotas antigas, Estas retacoes hist6ricas sao r~pi- poderiamos charnarde "parcimonia conspfcua", em que a simplici-
da e facilmente verificaveis em nossa propria sociedade, mas menos dade do estilo de vida e das posses e mantida contra as crcscentes
visiveis em socicdades em que tais aJterac;6es sao mais graduais. pressoes do aurnemo da renda, Quando despesas com mercadorias
sao Ceilas, tendem a girar em torno de formas de mercadorias rradi-
Na construcao cultural de mercadorias, a rnudanca deve ser buscada cionalmente accitas, tais como cameros de bronze, ornamentos
nas relacoes alternantes de rotas a desvios durante a vida das mcrca- cerimoniais ou casas, que concretizarn valores compartilhados cole-
dorias, Seus desvios de rotas costumeirus fazern surgir 0 novo. Mas 0 tivamente. Niio sc trara de urn mundo dominado pelo ethos de bens .
desvio e com frequeneia uma fun~ao de desejos irregulares e dem.nn- limitados, como pode parecer a primeira vista, mas de urn mundo
das recentes. Passernos, entao, a considerar 0 problema do desejo e onde nao ha interesse real na maioria das coisas que os mereados tern
da dernanda. para ofcrecer. Identidade do grupo, homogencidade sunruaria, igual-
dade economica e sociabilidade hedonistica compoern uma estrutura
DESEJO E DEMANDA de valores no interior da qual a maioria dos bens introduzidos de fora
e desinteressante e preocupante. A regulamentacao colctiva da de-
A razao por que n demands continua sendo COl geral urn mistcrio_se manda (c, assim, do consume) c, aqui, parte de uma estratcgia
deve, em parte, ao fato de supormos que ela IJOSSUl alguma rc!n~ao, consciente dos ricos para center as implicacoes divisivas da diferen-
de um lado, com 0 desejo (par sua natureza supostamente infinita e e
cia~o. 0 exemplo muria urn caso impressionantc de regulamcntacao
transcultural) e, de outro lado, com a necessidade (por sua natureza social do desejo por bens, mesmo quando as condicoes tecnicas e
supostamente estavel). Seguindo Baudrillard (1981), sugiro que tra- loglsticas para uma revolu~o do CODSumoforam atcndidas, como no
temos a demanda - c, ponanto, 0 consumo - como urn aspecto geral easo dos tecidos na india, 0 proximo a ser discutido,
da politica economica das sociedades. Qucr dizer, a ,dem_anda s~r~e
A contribuicao de Christopher Bayly para est a cotetanea e uma an6-
como uma fun~ao de uma serie de praticas e claSSlftcac;ocs SOCtaIS,
lise extremamente sutil e sugestiva das l11udan~as na economia moral
em vez de uma misteriosa revela~flo das nccessidades humanas, de
e politica dos tecidos na fndia desde 1700." 0 texto demollstra, de
uma real<ao meciinica 11rnanipulac;iio social (como em um modelo
urn modo muito claro, os lat;os entre polftiea, valor e demanda on
dos efeitos da propaganda em nossa sociedade), ou de uma redu~iio
bist6ria social da~ coisas. De acordo com 0 argumento de Bayly, a
de um desejo univtrsal c voraz por qualquer coisa que, por aeaso,
produ~o, a troea eo consumo texteis constiluem 0 material de um
esteja disponfvel. ~dlscurso politico" (urn lanlO como a qat on Somalia) que vincula a
o magnifico retrato dos dilemas de COlisumo entre os gondes murias demanda regia, as eSlrlllllras de produ~o e solidariedades sociais
da India central, feito por Alfred Gell nl~Capitulo 4, discut~ qllcstoes locais, e a constru~iio da legitimidade pol[tica. Eo aspecto do consu-
importanlcs e illtercssantcs sobre as complexidades cullurats do eon- mo prescnle nestc discurso politico que explica a grande penCtra~ao
sumo e os dilemas do desejo em sociedades de pequena e~cala que de tecidos inglcses nos mercados indianos durante 0 siculo XIX, e
estiio passando por mudan~ bruscas. Ap6s a leitura deste anigo, nlio rneram.nte a logiea brula da utilidatle e pre~o. Enfim, no movi
seria pralicamentc impossivel ver 0 descjo por bens como algo sem mento nacionalisla do final do siculo XlX e come~ do seculo XX.
fundamentos ou independente da cu.ltura, c a demanda como u,:"a em especial na rctorica de Gandhi, os iniimeros fios do discurso po-
rea~ao nalural e medniea a disponibilidade de bens e de d~nhelro Ifuco acerca do tecido sao reconstiluJdo~ e reempregados no que se
pAra compra-Ias. 0 consumo entrc os gondes e intimamente Itgadn a

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pode chamar de uma lioguagcm de resistencia mercantil, na qual sig- ourro, pode manipular, dentro de oertos Iimires, estas forcas econe-
nificados mais antigos e mais recentes do tecido se voltarn contra 0 micas e ~ociais. 0 ponto esscncial e que, de uma pcrspectiva historica,
imperio britanico, 0 ensaio de Bayly (que, entre outras coisas, e uma esres dois aspectos da demanda podem afetar urn ao OUIIO.'Iome-se,
aplica<;ao extraordinariamente rica das ideias de Werner Sombart), por exemplo, a demanda regilt, como na discussiio de Bayly sobre a
all examinar os efeitos de longo prazo na vida social de uma merca- India pre-moderna. Aqui, a demanda regia constitui uma for<;a que
doria particular significativa, nos fornece duas clucida<;.oes de cnvia mensagens ou rnolda a producao, vista sob a perspectiva inter-
consideravel importancia em termos comparativos: primeiro, que as na da socicdade indiana no seculo XVILI. Quer dizer, a demanda da
16gicas do consumo habitual em comunidades pequcnas se ligam in- realcza estabelece os parflmetros tanto do gosto quanto da produ~o
timamente a regimes de valor mais amplos, definidos por sistemas 00 campo de influencia que lhe concerne. Mas a demanda real tam-
politicos de grande escala; e que 0 vinculo entre processes de bern ~ urna forca de recepcao de mensagens, na medida em que tern
"singularizac;iio" e "mercantilizacao" (para usar os termos de suporte em suas relac;6es com os estilos e produtos europeus contem-
Kopytoff) nas vidas socials das colsas ~, em si mesmo, dialetico e poraneos. GoSIOSda elite, em geral, !lim essa funcao de "torniquetc",
esta sujeito (nas maos de indivfduos como Gandhi) ao que Clifford fazendo selec;6es a partir de possibilldades ex6genas e, entao, ferne-
Geertz chamaria de "jogo nbsorvente"." cendo modelos, assim como comroles politicos diretos, para os gOS!OS
e a producao interna.
A demanda e, pois, a expressao economica da logica politica do con-
sumo; logo, seu fundamento rem de ser buscado nessa logica. Um mecanisme que frequenrcmenre transpoe 0 connote polulco na
Seguindo os rastros de Veblen, Douglas e Isherwood (1981) e demanda de consume ~ 0 das "leis suntuarias", que caracteriza so.
Baudrillard (1968,1975, 1981) sugiro que 0 consume e eminente- ciedades complexas pre-modernas, mas tambern sociedades de
mente social, relacional e auvo, em vez de privado, atOmico ou pequena escala, pre-industriais c pre-letradas, Sempre que vestimenta
passive. Douglas tern urna vantagem sobre BaudriJIard, a de nao res- comida, moradia, ornamentacao do corpo, mimerc de esposas ou d~
tringir iI sociedade capitalista contemporsnea seu modo de ver 0 escravos, ou qualquer outro 310 manifesto de consumo estao sujeitos
consumo como urn ato de comunicacao, mas estcnde-lo igualmente a a uma regulamenracao extern a, podemos perceber que a demaoda
ouiras sociedades, Baudrillard, por sua vez, colnca a 16gica do coo esta ~gualme?t~ sujeita a defini~ao social e ao controle. Desse ponte
sumo sob 0 dominio das logicas sociais tanlo de produ~o quanto de de VIsta, os Inumeros "tabus" das sociedades primitivas, que proi-
troca, e de modo identico. Alem disso, elc faz uma critica extrema- bem determinados lipos de casamento, de consumo de a1imeot(lS e de
mente eficaz a Marx e seus colegas ecooornisl3s polilicos no que diz inlera~ao (a~sim como suas injlln<;6es cognalas positivas), podem ser
respeito ao par de cOllceitos "neeessidade" e "ulilidade", ambos vis- considerados como cSlritos an~logos morais das leis sUillunrias mais
tos como enraizados em um subSlrato primitivo. universal e natural eltptrcitas e legitimadas, de sociedadtls mais cornplexas e IClradas. E
da condi~ao humana. por m~io deste elo que podemos oompreender melhor a perspicaz
analogla que Douglas (I 967) Ira~a entre sislemas de racionarneoto
MiDha propria inclina~o e dar urn passo Ii {rente na desconslru<;ao kprimitlvos" e "modern os".
que Baudrnlard taz dosconceitos de "neccssidade" e "utilidade" (e 0
deslocamento dos mesmos em uma esfera mais ampla de produ~o e o dinheiro modemo esta para os meios de troca primilivos, assim
Iroca) e estender sua id6ia lambem 3 sociedades nao-capitalistas. Em ~~~ a moda esla para as primitivas regulameuta96es suntu:lria.~. Hoi
que consiste esta visao do consumo? Em observar 0 consumo (e a Slm.IUudes morfol6gicas c1aras enlre ambas, mas 0 lermo "moda"
demanda que 0 toma possivel) como um ponto de coovergncia n50 sugere alta vclocidade, rapida rotalividade, a ilusao de um acesso
apenas de ellvio de mensagens sociais (como propOs Douglas), mas, total e de uma alIa conversibilidade, a sllposi'tao de uma democracia
igualmentc, de recePfiio destas mensagens. A demanda, portanto, de consumidores e de objetos de consumo. Por OUlro lado, os mcios
ocuha dois tipos difercntcs de relaao entre COIIsumOe produ\;ao: 1) ~ !roea pri~livos, como as. lei~ sUDlu~rias e os labus, parecem rigi-
de urn lado, e detenninada por for<;as sociais e eoonomicas; 2) de os, de mOVlOlenlOlenlo, fragelS em sua eapacidade de comensurar,

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Iigados a bierarquias, discriminacoes e posicocs cia vida social. Mas, mente sintonizadas, Assirn, podemos postular como uma regra geral
como dernonstraram 1<;0 bern Baudrillard (1981) e Bourdieu (1984), que as comunidades em que 0 consume se vincula de um modo rnais
as autoridades estabelecidas que controlam a moda e 0 born gosto na inlricado com mensagens sociais cruciais tendcm a ser menos susce-
sociedade ocidenral contemporanea nao sao mcnos eficazes em limi- 11veis a ~lterac;6es bruscas na oferta ou no preco, porern rnais
tar a mobilidade social, em demarear a posicao social e a a manipulacao politica no nivel da rcgularnentacao da
SU5(.'CtivCtS
discriminacao, c em colocar os consumidores em urn jogo com re- sociedade.
gras consrantemente alteradas, determinadas pelos que "ditam 0 gosto"
Do ~nto de vi~ta soc!al, e ao longo da historia humana, os agentes
e seus especialistas afiliados, que habitam 0 topo da sociedade.
decisivos na articulacao da oferta e procure de mercadorias tern sido
Os consumidores modemos sao certamcnte hio vltimes da velocida- e
nan apcnas os govern antes, mas, clare, os comerciantes. 0 magni-
de da moda quanto os consumidores primitives 0 sao da estabilidade fico trabalho, recentemente publieado, de Philip Curtin sobre 0
da legislacao suntuaria. A demanda por mercadorias c drasticamente comercio entre culturas no mundo pre-industrial sugere que modelos
rcgulada por esta varicdade de mecanismos que ditam os gosros, cuja anteriores, ~omo 0 de Polanyi, da adminisfrac;ao do cornercio podem
origem social e compreendida de modo mais claro (tanto por consu- ter superestirnado0 contrcle do Estado sobre economias complexas
midores quanto por analistas) em nossa pr6pria sociedade do que pre-modernas (CURTIN, 1984, p. 58). 0 que fica claro e que as rela-
naquelas distantes de nos. Do ponto de vista da demanda, a difcrenca c;Oe5 entre g?vernantcs e Estados variaram enormementc no tempo e
crucial entre as sociedades capitalist us modern as e as baseadas ern no espaco. Embora estudos como 0 de Curtin estejam comecando a
formas de iecnologia e uabalho mais simples /llio e que nos possui- demonstrar padroes subjacenres a esta divcrsidade, 0 componerue da
mos urna eeonomia totalmente mercantiiizada, ao passo que, 03 de.mao.da n:ssas.di~a.micas de cemercio permanecc obscure. As pro..
economia daqueJas socicdades, dominaria a subsistencia e a troca de pnas Ioga~es historicas estrcitas entre governanies e comercianres
mercadorias teria feito apenas incursoes Iirnitadas. Antes, tal dife- (sejam de cumplicidade ou de antagonismo) poderiam, parcialrncn-
renlta reside no faro de, em nossa sociedade, as demandas de consumo te,. sC.ra Ionte das reivindicacoes de ambas as partes pclo papel
das pessoas serem reguladas por crirerios de "apropriabilidade" principal no regulamenla~~() social da dcmanda. As politicas de de-
(moda) de alta rotatividade, em conuasie com as aJterac;6es menos manda encomram-se, com freqiiencia, ua origem da tensao entre
freqiientes nos sistemas de regulamenta~ao mais diretos, suntuarios eomerciantes e elites politicos; sempre quc cnmereiantes apresentam
ou consuetudimirios. Porem, em ambos os casos, a demanda e urn ~ma tendencia de ser os representantes sociais de uma equivalencia
impulso gerado e regulamentado sociaJmente, oao urn artefato de 'rrestrlta, de novas mercadorias e de goStos estranhos, as elites pOlfti-
caprichos ou occessidades individuais. ~ apresentam uma tendencia deser os uladores da troea restrita, de
SIstemas mercantis estaveis e de gostos cstabelecidos e normas
Mesmo em sociedades capitalistas modernas, e claro, os meios e 0
impulso de imitar (no ~entido de Veblen) oao sao os unicos insITu- SUntuana~. Este antagonismo entre Ix:ns "cstcaogeiros" e estrutura~
suntmlrias (e, portanto, politicas) locais e, provavelmcntc a razao
memos da demanda de con sumo. A demanda pode ser maoipulada
fun~amental da tendencia, Dluitas vezes notada, das sociedades pri-
por recursos poJitico.~ diretos, scja sob a forma especial de apclos
para boicotar alfaces eultivadas em mas coodi~6es de trabalbo ou mlllvas em restringir 0 comercio a urn eonjunto limit ado de
rnercadoria.s e _a negocia~ com estranhos, em Vel de parentes ou
sob as forma.~ generalizadas de protencionismo, "ofieiaJ" ou "nao-
amtgos. A ,dela de que 0 comercio viola 0 CSpirilo da d:ldiva pO<le,
ofieial". Novamente, 0 tratamento dado por Bayly a manipula~ao
que Gandhi faz com 0 significado do tecido produzido oa indill e urn em SOClcdadeseomplexas, ser spenas urn subproduto, vagamente apa-
rentado, deste antagonismo mais fundamental. Em socicdades
arquicxemplo de politiza~ao direta da demanda. No entanlo, esta
pre-modern as, portanto, a demanda por mercadorias algumas vczes
manipula~o em larga escala da demanda por tecido oa india do se-
reflete dinii~cas do Eslado, Oil, como no caso do kula, a fun~o de
eulo XX s6 foi possivel porque 0 tecido vinba sendo, em urn nlvel
pon~o de ~rtlcula~o na competi~o de status entre elite~ masculinas
local, urn instrumento para 0 envio de mensagens sociaissoCisticada- ao IogarS'Slemas de troca interne; e externos.

50 51
Esse pode ser um ponto apropriado pa...a se observer que M diferen- liva. segundo a qual eo uso de objcios de alia tecnologia que e crucial
;as imponantes entre a biografia cultural e a his/orin social das coisas. para altera~oes na estrutura de status. Ponanto, 0 que se dcve expli-
As diferencas dizem respeiro a dois tipos de temporalidade, duas for- car sao nO<loes de valor rnutaveis, que, por sua vel, implicarn novos
mas de identifiear uma classe e dois niveis da escala social. A uses de descobcrtas recnotogicas c novas formas de connote polirico
perspectiva da biografia cultural, formulada por Kopytoff, e apro- dos produlos de tais inovacocs. A complexa argumentacso de Renfrew
priada a coisas especificas cnquanto passam por maos, contextos e iluslra a quesrao de que mudancas DO papel social de objeros de exi-
uses diferentes, acumulando, assim, uma biografia especifica, ou urn bi~ao (elcs mesmos fundados no controle sobre materiais de valor
conjunto de biografias. No entanto, quando obscrvamos classes ou superior) explicam alreracoes de longo prazo no va lor e na demanda.
tipos de coisas, e irnportante considerar altera~es de longo prazo Ao mesmo tempo, seu ensaio nos lembra que 0 papel cultural das
(muitas vezes na demanda) e dinamicas de larga escala que transcen- mercadorias (conquanto lema central deste livro) nao pode ser, em
dem as biografias de membros particulates dessa classe ou tipo. Assim, ultima instftncia, separado de questoes de tecnologia, producao e co-
urna reJlquia particular pode ter uma biografia especffica, mas a tota- mercio. Contudo, ainda que 0 problema arqueologico sirva para realcar
Iidade dos tipos de reliquia - e, ainda, a pr6pria classe de coisas a complexidade e a dimensao historica das rela~oes entre valores,
chamadas "relfquia" -jem urn fluxo e refluxo hiSI6rico mais amplo, diferenciaC;1io social e rnudanca tecnica, a ausencia de documentos
no decurso do qual seu significado pode se alterar expressivamentc. escrltcs ou orals mais convencionais, na vcrdade, dificulta mais a
reconstru~iio da mudanca de valor que a da mudanca social e
o ensaio de Colin Renfrew, "Varna e 0 surgimcnto da riqueza na
tecnol6giea. 0 ensaio de Renfrew tern a virtude de it ao reves do que
Europa", levanta uma serie de questoes imponames, de cuobo
suas cvidcncias confirmariam de um modo mais confonavel.
metodclegico e teerico, sobre as mercadorias vistas no decurso de
urn longo periodo de tempo, Seu ensaio lembra-nos que as mercado- Proces.o;osde longo prazo envolvendo 0 papel social das mercadorias
rias sao essenciais para algumas das allerac;oes muito antigas e foram recememenre estudados em Ires grandcs obras, duas da autoria
fundamentals na vida social humana, espeeificamente a passagem de de hisioriadores (BRAUDE!..., 1982; CURllN, 1984) C uma de urn
sociedades relativamente nao-difercnciadas de caca e coleta as pri- amropelogo (WOLF, 1982). Cada um destes esrudos tern algumas
meiras socicdades com formas de governo, mais complexas. Em vinudes particulares, mas tarnbem M sobreposicocs significativas
primeiro lugar, observar lais processos no decurso de period os muilo enlre eles. 0 Iivro de Curtin e urn audacioso eSludo cOlllparalivo do
longos e, necessariamenle, estar envolvido com modelos de inferencia que ele denomina "diasporas comerciais", comunidades de comerci-
que vinclliam a produc;ao com 0 consumo. Em scguida, cxaminar anles que moveram bens atraves das fronteiras cuhurais ao longo da
processos de produ<;iio nos prim6rdios da hisl6ria humana implica hist6ria regislrada e ale a epoca da expaus30 induslria.1 curopeia. Ele
observar mudanc;as Iccnol6gicas. Aqui, Renfrew nos mostra de urn se empenha em manter uma visao nao-eurocentrica do mundo do
modo muito persuasivo que os falores decisivos Da inovac;iio comercio anles da era industrial e, nisso, possui muilOs lra~s em
lecnol6giea (crucial para 0 desenvolvimenlo de novas mercadorias) comum com os objelivos de Eric Wolf em seu Iivro rceenle. Conlu-
sao muilas vezes sociais e politicos, em vez de meramente IteDicos. do, 0 eSludo de Wolf, em parte por seu pontO de visla Iwrico e por se
Isso POSIO,segue-se que, como Renfrew deixa claro, considera~ ocupar de urn capitulo bern mais receme da hisI6ria dos la~os da
50bre valor e demanda tomam-se cenlrais para a compreensao do Europa com 0 re!>IOdo mundo, se orienla muilO mais em dire<;iio a
que, ~ primeira visla, parecem saltos eslrilamenlc lecnicos. Europa. CUrtin e Wolf fazem urn grande esfor~ para demolir a ideia
de fluxos de merendoria como algo recenle OUexclusivamcnle ligado
Assim, ao analisar 0 papel do ouro e do cobre em \'.lrna, como lam-
ao capitalismo melropolilano, e servem como lembreles imponanles
b6m de objelos similares de "valor primordial" em Oulros silios
do pano de fundo inSlitucional,logistico e politico a despeito do qual
pre-hisl6ricos da Europa, Renfrew nos afasla das lenla~es de uma
o COmercio aconteceu por entre as fronleiras sociais e cullurais. Mas.
visao reflexionist3 (segundo a qual objelos de valor rcflelem 0 allo
por difcrenlcs molivos em cada caso, Curtill e Wolf inlereSSam-se
stalUS das pessoas que os usam) em prol de uma visUo rna is conslru-

52 53
menos pela qucsrao da demand a co problema da construcao cultural destas complexas rela~s entre trajet6rias de grande c pequena es-
do valor. Os ensaios no preserue livro, COlao. cornplemcntam e enri- cala e padroes de longo c curto prazo no mnvimento das coisas nso
queccrn 0 amplo panorama institucional, econemico e tccnol6gico saO multo difundidos na literatura, mas podemos comecar a observar
dos fluxes de mercadoria aprcscniados nesses dois estudos. tais rclaes com referencia as transformacocs dos sistemas de troca
sob 0 irnpacto do regime colonial (DALTON, 1978, p. 155165;
Braudel, 0 formidavel decano da Escola dos Anais, e uma outra his- STRATHERN, 1\lS3) e as transformacoes da sociedadeocidental que
t6ria. No segundo volume de seu esrudo magistral sobre 0 capitalismo levarom au surgirnento do souvenir. do objero colecionavet e da lem-
e a vida material de 1500 a 1800 d.C . Braudel Olio se comema em bran,a (STEWARD, 1984). Neste livro, os ensaios de Bayly, Geary,
nos dar uma descri~ao densa e cornovente da formulfao do mundo Cas.~anelli e Reddy sao discussoes especialmenre interessantes das
industrial moderno. Nesse volume, cujo t(lulo em inglesc The Wheels rela~cntre estas duas dimensoes da ternporalidade das coisas, Nflo
o/Commerce,19 Braudel se ocupa, tal como Curlin e Wolf (alern de, e e uma coincidencia que estes cstudiosos sejarn, rodos, hlstoriadores
clare, muitos outros historiadores socials e econemicos) da natureza, socials. intcressados em processes de longa dur31,;<10.
A melhor abor-
esrrutura C dinamica do comercio no mundo apes 1500. Na verdade, dagem geral da relacao entre demanda, circulagao de objetos de valor
tornados em conjunto, estes tres estudos aprcscntam urn rcrrato im- e allern<;Oesde longo prazo na producao de mercadorias cnconrra-se
pressionantede urn grupo extremamcnte complexo e intcr-relacionado no rrabalho de Werner Sombart (SOMBART, 1967).
do que chamei de "cc6menos rnercantis", que, cornecando por volta
de 1500, liga diversas partes do mundo. Braudel discute brevernente Devemos a Sombart a importante observacao hist6rica, de que, no
a parte da dcmanda oeste grande esquema. No que conccrne as rela- periodo entre 1300 e 1800 oa Europa, que clc vii como 0 cerne do
<;6es entre oferra e procura nos prim6rdios do mundo capital ista, sua comeco do capitalismo, a principal causa da expansao do ccmercio,
argumentacao, como sempre, coloca as coisas em uma :unpla pers- industria e capital financeiro era a demanda por bens de luxo, sobre-
pectiva temporal (BRAUDEL, 1982. p. 172-83);mas, sobre as origens tudo da parte dos IrOuveQlU riches, das cortes e da aristocracia. Ele
e 3S conscquencias das mudancas na demanda, pouco do que diz na~ idenlilica a fonte deste aumento da demanda, por sua vez, na nova
havia sido aniecipado por Werner Sombart, que sera discutido logo forma de compreender a venda de amor "livre", nos refinarnentos
abaixo. 'Iodavia, estes tres principais tratarnentos rccentes do fluxo sensuais e na polftica economica das relacoes de corte durante este
de mercadorias na construcao do sistema global sao uteis por realc;ar perfodo, 0 significado dessa nova fonte de demands era que a moda
e (ornecer 0 contexto para aquilo que os cnsaios dcste !ivro buscam havia Sf tornado lima forca mofriz para as classes mais altas, sacia-
realizar, que e csclarecer as dinamicas sociais c cullurais do Ouxo de das apenas IKITartigos de consumo em quantidades ca<.lavez maiores
mercadorias. Thda esta discussao acerCD de qucsfoes relativas a va- e qualidades cada vez mais difcrenciadas. Est;l iJllensi(ica~ao da de-
lor, carreira e c1assificac;uolem, obviamente, 0 objetivo de cnriquecer manda, sexual e politica em suas origclls. assinnlava 0 fim de urn
nossa compreensao das idiossincrasias das coisas, uma <.Iimensao a ~Iilo de vida senhorial ao mesmo tempo em que estimulava a manu-
que a produ~iio academica previa nao tern dado uma atenc;ao muito fatura e 0 comtrcio do capitalismo naseente.
sistemalica. ~mbora a abordagem geral de Sombart da hist6ria social do capita-
A hist6ria social das coisas e suas biografias culturais nao sao assun- IIsmo tenha sido, duranle e ap6s sua vida, legitimamente crilicada
fOSde todo separados, PO'S c a hist6ria social d3S coisas, no decurso por uma s6rie de deficieneias empfricas c idiossincrasias
de longos periodos de tempo e em niveis sociais eXfensos, que cons- metodol6gicas, ela perrnanece como uma ahernativa potcnte (embo-
tr6i coercivamente a forma. ossignificados e a eSlrulura de lrajetorias r~ s.ubl~rr3nea~ as visOes de Marx c de Weber sobre as origens do
de curto prazo, mais especificas e particulares. Thmbem hi caS()S, capllahsmo ocldcntal. Ao vohar-se para 0 consumo e a demanda, a
ainda que tipicamenle mais dificeis de docllm~ntar ou prever, em que obra pertence a uma tradisao minoritaria e opositiva. algo de que
muitas altcra~6es pequenas na biograli" cultural d"s coisas podem, SOD1~a.rteslava bem ciente. Neste sentido, Sombart cum dos primci-
com 0 t~JllPO, levar a altera<;(ies em suas historlas sociais. Excmplos ros Cflhcos do que Jean Baudnllard chamou de "espclh() da produ<;ao",

54 55
no qual uma boa parte da teoria dorninante da economia polftica do ciais), poderia fazer mais sentido vcr luxes como urn "rcgistro" espe-
Ocidente moderno tern se visto. Em sua enfase na demanda, em suas cial de consume (por analogia com o modelo linguistico) do que ve-los
obscrvacees fundamentals sobre as polfticas da moda, em sua colo- como uma classe especial de coisas. Os traces disnntivos dcsre regis-
ca~o das f()r~s econemicas no contexte das iransforrnacoes da tro. em rela~iio as mercadorias, sao alguns des ou todos os seguintcs
sexualidade e em sua visao dialetica das rela~6es entre luxuria e ne- atributos: (I) rescri\ao, quer por preco OU por lei, a elites; (2) comple-
cessidade, Sombart aniecipa recentes abordagens semi6ticas do ~-;dade de aquisi~~o, que pode ou nao scr uma funljiio de "escassez"
comportamento economico, tais como as de Baudrillard, Bourdieu, real; (3) virtuosidade semi6tica, isro e, a capacidadc de assinalar, com
Kristeva e outros. legitimidade, complexas mensagcns sociais (como a pimenta na cu-
linaria, a seda DOvestuario, as j6ias em ornamcntos e reliquias em
A abordagem de Sornbart foi recentememe reromada em urn estudo
atosde culto); (4) um conhecimento cspecializado como pre-requisi-
extrcmamente interessante das circunstdncias que antecederarn 0 co-
to para serem usados "apropriadamerue", isro e, rcgulamentacao pela
meco do capitalismo, da autoria de Chandra Mukerji (1983). 0
moda; e (5) um alto grau de assoeia~o entre seu consumo co corpo,
argumento de Mukerji, que converge para 0 meu em diversos pontos,
a pessoa e a personalidade.
e que, longe de serem resultado da revolu~o tecnol6gica/industrial
do seculo XIX, uma cuhura materialists e urn novo tipo de consumo Do pontO de vista do consume, aspectos desse registro de luxo po-
voltado para produtos e bens provenientes de todo 0 mundo foram dem, de ceria forma, eonvir a toda e qualquer mercadoria, mas algumas
pre-requisite para a rcvolu~iio tecnol6gica do capitalismo industrial. mercadorias, em certos contextos, passam a condensar 0 rcgistro de
Nesta audaciosa crftica li hip6tese weberiana sobre 0 papel do tuxo, e podem ser vagamente dcscriras como bens de luxo. Vistas
ascetismo puritano de fornccer 0 contexte cultural para 0 calculo ca- deste modo, todas 3S sociedades apreseniam alguma demanda por
pitalista, Mukcrji segue Ncf (1958) e outros, A argumemacao dela e bens de luxo, e poder-se-ia argumenrar que foi apenas na Europa
uma sofisticada descricao historiea do pano de fundo cultural dos p6s-ISOO (ap6s 0 dcsaparecimento das leis suntuarias) que essa de-
prirnordios do capitalismo na Europa. Apresenta novas evidencias e rnanda sc libertou da regula~ao politica e foi legada ao jogo "livre"
argumentos para colocar 0 gosto, a demand .. e a moda no centro de do mercado e da moda. Nessa perspective, a regularnentacao suntuaria
uma explicacao cultural das origens do capitalismo ocidental, assim e a da moda sao p6los oposios na regulamentacio social da demanda,
como para a centrulidade das "coisas" nessa ideologia na Europa em particular daquela por bens com alto valor discriminatorio. Em
Renascentista (vcr tambem GOLDTHWAITE, 1983). certas c)l<)cas, 0 fluxo de bens de luxo cxibe lima poderosa tensao
cntre estas duas for~s: os ultimos seculos do Antigo Regime na Eu-
Para os nossos prop6sitos, a importaneia do modelo proposto por
ropa, por exemplo, mOstram for~as (Iue atuam em ambas as dire~6es.
Sombart para as rcla90es entre luxllria e 0 come~o do capitalismo
As primeiras decadas do contato colonial tam bern exibem, por quase
reside menos nas especificidadcs hist6ricas e espaciais de sua argu-
toda parte, cst3 tensao entre novas modas e regulamcntat;Oes suntuarias
menta~ao (que C urn problema para historiadores dos prim6rdios da
preexistentes. A moda, nestes contcxtos, ~ 0 impu Iso de imitar novas
Europa muderna) do que no carater generalizante da 16gica de seu
potencias, e esse impu Iso ~ muitas vezes intcgrado, para melhor ou
argumcnto no que d.iz rcspeito ~ base cultural da demanda por, ao
pior, a irnperativos suntu~rios tradicillnais. Esta teosao, no nivel da
menos, alguns tipos de mcrcadoria, aquelas que chama mas de luxos.
dcmanda e do con sumo, Iiga-se, obviamente, as tensiies entre os sis-
Proponho que consideremos os bens de luxo nao exatamenle em con- temas de produ~o e bens nativos e os importados, entre meios de
trastecom necessidadcs (urn contraSte cheio de problemas), mas como troca nativos e os trazidos de fora. Um escudo de caso extremamente
bens cujo uso principal e relorico e social, bens que sao simplesmen- inleressante acerca das liga~s entre comercio, moda, leis suntuarias
te simbolos l1Iuterializados. A neccssidade a que eles c:orrespondem e tccnologia e encont;ado na discussao de Mukerji sobre as conex6es
e fundamentalmente politica. Ou mclhor, ja que a maioria dos beDS entre a Ingl.atcrra e a India para 0 comercio do calico no seculo XVII.
de luxo e consumida (ainda que de formas especiais e a custos e.~pe- (MUKERJI, J 983, p. 166-2(9).

56 57
A segunda questao de importancia a que Sombart dirige nossa aten- armas nucleares no lade oposto. Os altos e baixos desse comercio
~ao e a complexidade das Iiga~ entre os bens de luxe e mercadorias sao 0 pre-requisitepard 0 movimento~e ouiras mercadorias, raiscomo
mais mundanas. No caso de que ele se ocupa, as ligacoes envolvem graos alimentieios c alta tecnologia. E precisamente este tipo de rcla-
principal mente 0 processo de produ<;iio. Assim, nos prim6rdios da cionamento politicamcnte mediado entre registros distimos de
Europa moderna, 0 que Somban ve como bens de luxo primaries C(Jrncrcioque explora agressivamcnte a reccnte politica none-ameri-
tern, como pre-requisites, processes de producao secundarios e cana de "vincula ..ao", pela qual a intratabilidade sovietica em urna
terciarios: a manufatura do tear de seda da suporte aos centres de esferd de troca e pun ida em outra esfera. Em socicdades e tempos
tecelagern de seda, que, por sua vez, dno suporte a cria<;30 de rnobi- mail; simples, 0 equivalente dos acordos SALT devia ser visto na
liario e vestuario de luxo; a serraria produz rnadeiras essenciais para diplomacia da rroca de prcsemes entre comcrcianies c cbefes, ou sim-
a producao de escrivaninbas sofisticadas; quando a madeira se esgo- plesmenle entre os chefes, situacoes de transtorno nas quais era
ta, passa a haver uma grande demanda por carvao na industria do possivel malograr 0 comercio em registros menos carregados.
vidro e de ourros IU)C(lS;a fundi<;iio de ferro forneeeu os encanamen-
Em todas cssas formas, podernos ver que a demanda pclos tipos de
tos eruciais para as fumes de Versailles (SOMBART, 1967, p.
objeros de valor que cbamamos de luxos, e 0 que chamei de rcgistro
145-1(6). Visto que um crescirncnto na dema.nda por bens de luxo
de luxo de qualquer fluxo particular de mercadorias, esta intimamen-
primaries e decisive para a expansao da produ<;iio de instrurnentos de
te ligada a outros registros, mail; cotidianos e de alia roratividade, da
segunda e terceira ordem, a demand a por luxes rem grandes implica-
linguagem das mercadorias na vida social.
C;iicsno sistema economico, Este e 0 casu das economias modernas e
complexas em seus princjpios. Esse pode ser tarnbem 0 memento oponuno para fazer uma observe-
<;"0mais geral acerca das mercadorias discutidas nestc livre, muitas
Porern, em econornias diferentes quanto ~ escala, a estruiura c a orga-
das quais possuem uma dimensao extrema mente luxuosa e parccem,
nizacao industrial, a conexao entre bcns de luxe e bens de outros
pois, compor uma amostragern que estaria destinada a favorecer uma
rcgistros de uso pode envolver nao as reverberacoes de um complexo
abordagem cultural de um dererminado modo que mercadorias mais
conjunto de meios e formas de produtjao, mas, antes, os dominies da
comuns, produzidas em massa, oao 0 fariam, 0 taro e que a linha
troea e do consume. Assim, retornando ao sistema kula da Oceania,
entre mcrcadorias luxuosas e cotidianas nao apenas se allem bistori-
analises recenles deixam claro que 0 "comercio" de objelos de valor
cament~, mas, me.~moem quaJquer ponlo deterrninado no tempo, algo
do kula sc relaciona com uma eomplexa dialetiea social e cstrategica,
que da a impressao de ser urn item hornog~neo, em estado brulo ~ de
com absorc;iies de, e drenagens em, oUlros registros de lroca, que
urn C"IllPO semantico extremamente reslrito pode sc lornar muilo di-
podem incluir casamento, morte, heranc;a, compra e venda, e assim
fcreme no decurso da distribui<;ao e do consumo. Talvcz 0 melhor
pordiante (ver, em especial, WEINER, 1983).
exemplo de uma mercadoria comum cuja bistoria e repleta de
Por ultimo, 0 comercio de luxos pode muilo bem fomecer urn quadro idiossincrasias culturais seja 0 a~car, como mosnaram de rno<los
cordial, dur~vel e sentimental para a conduc;ao de Irucas de outros bern diferentes Sidney Mintz (1979) e Femand Braudel (1982, p. 190-
bens e de outros modos: aqui, a ocorrencia de troeas gimlVali, 011 no J 94). A distinlf30 entre mercadorias comuns e mercadorias mais
cstilo de mercado, em CQntraste com 0 pano de fundo do lalla e, no- ex6licas nao e, portanto, uma diferen<;a de especie, mas, com maior
vamente, urn exemplo primitivo apropriado (UBEROI, 1962). Um freqilencia, uma diferen~a de demanda ao longo do tempo ou, algu-
exemplo bern moderno dcsse tipo de rela<;iio entre 0 com6rei(l no mas vezes, uma diferen<;a entre locais de produ<;30 e locais de
registro de luxe e em registros simbolicamcnte mceos carregados e 0 Consumo. Sob a pcrspectiva da escala, estilo c importlincia economi-
relacionamento comerciaJ entre os E.~tados Unidos e a Uniao Sovie- ea, Mukerji apresentou uma argumen1a~.ao eloqiiente, ao menos no
tica. Nesle easo, os acordos sobre a Iimita9iio de armamentos caso dos primordios da Europa modcma, para que 1100 sc Iraeem
estrategicos podem ser vistos como tipos allamente competitivos de fronleiras rfgidas entre consumo de massa e de elite, bens de luxe e
comercio de luxo, em que 0 luxo em questiio e assegurar a rCSlri<;1ioa bens maiscomuns, bens de consumo e de capital, ou ainda, a estclica

58 59
da exibicao em contrastc com os modelos dos arnbientes de produ- ria como exclusivarnente tecnico 011 empirico, e 0 conhecimento na
~ao prima ria (MUKERJI, 1983, cap. I). extrcmidadedo consume como exclusivamenre avaliador e ideol6gi-
Assim ,a dernanda nao Ii nem uma reaciio mecanica a estrutura
_ e ao co. 0 conhecimento, em ambos os pOIos, tern componentes t.knicos
nivel de producao, nem uma ansia natural insondavel. E urn compte- mitologicos e avatiadores, e os dois polos sao suscetiveis a interacoes
xo mecanisme social que intermedeia padroes da circulacao de mutuas e dialericas.
mercadorias de tongo e curto prazo. Estrategias de desvio de curto Se considcrarmos que algumas mercadorias tern "historias de vida"
prazo (tais como aquelas discutidas na secao anterior) acarretariam ou "carreiras" em urn senti do significative, en tao, torna-se util obser-
pequenas alteracoes na dernanda que podem transformar, gradual- var a partilha de conhecimento em diversos mementos de suas
mente, os fluxos de mercadorias com 0 correr do tempo. Porern, carreiras. Tais carreiras atingem 0 grau rna is alto de uniformidade no
observados sob a perspectiva da reproducao de padroes de fluxo de p610 da producao, pois e provavel que, no momento da producao, a
mercadorias (em vez de alteracoes dos mesmos), os padroes de de- mercadoria em questao mal tenha lido oportunidade de acumular uma
manda estabelecidos M muuo tempo funcionam como mecanisrnos biografia idiossincratica ou de desfrutar uma carreira peculiar. As-
de coacao sobre qualquer conjunto de rotas de mercadorias. Uma das sirn, 0 locus de producao de mercadorias tendc a ser dominado por
razoes por que tais IOtas sao inerentemente vulncraveis, em especial prescricoes de fabricacao culturalmcnte padronizadas. Portanto, fa-
quando envoi vern fluxos transculturais de mercadorias, e que clas se bricas, campos, fundicoes, minas, oficinas e a maioria dos outros
ap6iam na distribuicao instavel de conhecimento, urn assunto para 0 loeais de producao sao, em primeiro lugar, depositos de conheci-
qual nos voltarnos agora. mentes tecnicos de producao de urn tipo altamente padronizado.
1?davia, vale notar que, mesmo aqui, 0 conhecimento teenico reque-
CONHECIMENTO E J\.1.ERCADORIAS lido pela producao de mercadorias primarias (graos, metais,
combustivel, petr6leo) tende a ser muito rnais padronizado que 0 co-
Esta ser;iio se ocupa das peculiaridades do conhecimento que acom- nhecimenro requerido pela producao de mercadorias secundarias ou
panha fluxes de mercadoria relativamentc complexes, de Jonga de luxo, nas quais 0 gosto, a apreciacao e a experiencia individual
distancia e interculturais - embora mesmo em loci de fluxes mais tendem a criar variacoes acentuadas no conhecimento de producao.
homogeneos, de menor escala c menos tecnologia haja sempre urn ~iio obstante, 0 fmpeto da mcrcantiliz31;ao na extremidade da produ-
potencial para discrepancias no conhecimento acerca de mercado- ~ao se volta para a padronizacao do conhecimento tecnico (como
rias. Mas, conforme aumenta a distancia, a negociacao da tensao entre fazer). Obviamente, com todas as mercadorias, prirnarias ou nao, 0
conhecimento e ignorancia se torna, em si mesrna, urn determinante con_hecimento tecnico sempre se mistura profundamente com supo-
crucial do fluxo de mercadorias. srcoes cosmol6gicas, sociclogicas e rituals que tendcm a ser
Mercadorias representarn formas sociais e partilhas de conhecimen- amplamente compartilhadas. Os oleiros azande de Evans-Pritchard
to muito eomplexas. Em primeiro lugar, e grosso modo, tal (1937), os camponeses colombianos de Taussig (1980), os fazedores
conhecimento pode ser de dois tipos: 0 conhecimento (Iecnico, social, de .eanoa Gawan de Nancy Munn (1977), os produtores de cana-de-
a~ucar do Panama de Stephen Gudeman (J\l84), todos combinam
estetico etc.) que integra a produ<;iio da mercadoria; e 0 conhecimen-
to que integra a a~ao de consumir apropriadamente a mercadoria. 0 estr~tos tecno!6~icos e co~mol6gicos em seus discursos sobre a pro-
conhecimento de produ<;iio interpretado em uma mercadoria e bem dUJ~o. Na malona das socledades, tal conllecimenlo de produc;iio esta
diferente do conhecimento deconsumo que e int.erpretado a partir da su!e_uo a alguma descont~nuidade em sua partilha social, seja pelos
mercadoria. Edaro, essas duas interpreta~oes irao divergir proporci- crttenos m31SsImples de Idade ou de genero, por criterios mais com-
plexos que distinguern familias, castas ou aldeias de arleS"OSdo reSIO
onalmente ao aumento da distiincia social, espacial e temporal entre
produtores e consumidores. Como veremos, pode nao scr muito da sociedade, ou ate por divisoes do trabalho ainda mais complexas
que separam, em termos de papel a ser desempenhado, empreendc-
acurado ver 0 conhecimento no loclis de produ<;iio de uma mercado-

60 61
dores e trabslhadores de chefes de familia e consumidores, como na riotOSde informacao complexos e culturalmcnte organizados COmo
maioria das sociedades modernas. estes sejarn um I.ra<;o.
especial de economias do tipo bazar, e se ausen-
Mas M outra dimensao do conhecimento de produ($iiO,que e 0 co- tent em econonuas Simples scm mercado, assim como em economias
nhecimento do mercado, do publico consurnidor, do destine da in<lustriaisavancadas, Porem, como 0 pr6prio Geertz (1979, p. 224)
mercadoria. Em sociedades tradicionais de pequena escala, tal co- sugere, 0 bazar como uma categoria analftica pode muito bern se
nhecimento e mais ou menos direto e complete no que diz respeho aplicar ao mercado de carros usados (mas nao ao mercado de carros
ao consumo interne, porem mais irregular e incomplete em relacao a "zero") nas economias industria is cootemporaneas. Podernos colo-
demand a exterior. Em contextos pre-capitalistas, e claro, a transposi- car.a questao de uma forma mais geral; buscas de informa~iio no
~ao de demandas exrernas para produtorcs locais e da nl!tuda do estilo do bazar tendern a caraclerizar qualquer cenario de troca onde
comereiante c seus agenies, que providenciarn ponies logisticas e de a qualidadc c a val~ra\fiiOapropriada dos bens nao sejam padron iza-
preco entre universes de conhecimento que podem ter urn contaro das, embora os mouvos p~a a falta de padroniza~o, para a f]utua~o
direto mfnimo. Assirn, e praticamente certo que os habiranres tradi- dos precos e para a qualidade mcerta de coisas especificas de um
cionais da floresta Borneo tivessem so uma vaga ideia dos uses a que certo ~iposofram variacoes enormes, De faro, sistemas para a troca
se destinavam, nas praticas medicas e culindrias chinesas, os ninnos d? objetos de valor do kula, de carros usados e de tapetes orientals,
de passaros que vendiam a intermediaries, Esse paradigma de pontes ainda que ocorrarn em cenanos institucionais e culturais multo
mercanris que atravessam grandes abismos de conhecimento entre dfspares, podem envolver, todos, ceonomias de informacao no estilo
produtores e consumidores caracteriza a movimentacao de grande do bazar.
parte de mcrcadorias por tcda a historia, ate 0 presente, Hoje, essas Mas os abismos no con~ecim:nto e as dificuldades de comunica~lio
pontes persistem tanto por causa de abismos culturais intransponiveis entre produtor e co?sumldor nao sao obstacutos reais para 0 vigoroso
(como entre os produtorcs de 6pio na Asia e no Oriente Mcdill e os fluxo d~ mercado~l~s em estado bruto destinadns a multiplas trans-
viciados e traficantcs em Nova York), quanta por causa da especiali- Corrna~oesindustriais antes de ehcgar aos consumidores. No caso de
zaeao infinitesimal da producao de mercadorias ou 0 seu inverse - a tais merca~~rias (alg~m~ vezes cbamadas de mereadorias primari-
disrancia entre uma mercadoria em estado bruto (como, por exem- as), uma sene quase infinita de pequenos circulos de conhecimento
plo, 0 cobre) e as centenas de transforma~6es por que ira passer antes q~c se sobrep6c1llpode Iigar 0 produtor original eo consumidor ter-
de chegar ao COllsumidor.Observamos quo)csses grandes abismos de minal. Mas nao e este 0 caso de mercad(lrias por destinacrao que sao
conhecimento do mcrc<ldofinal da parte do produtor conduzem, em amplamcnte "fabricadas"_ 00 scntido de Nancy Munn, desd~ 0 prin-
geral, a lucros altos no comercio e a urna rclativa deslitui<;Aoda re- cfP!o d.esuas carreiras (MUNN, J 977). Estas exigem mecanismos
giao ou da classe produtora em rela~ao aos consumidores e 0 fillS ~lfetos para uma negoc!a~~ sati~f~t6ria de pr~ e uma equi-
comerciante (vcr Spooner, capilulo 7). ~o do gOStodo consumldor a bablhdade, 30 conhecimento e a
Problemas <Iueenvolvam conhecimento. inforrna!;30e ignorlncia nao d~o ~o pr~ut?r. Thlvez os melhores exemplos deste tipo de co-
se restringem aos p6los de produ!;ao e consumo das carrciras das muruca~o malS dlreta incluam 0 cornercio internacional de roupas
mercadorias, mas caraclerizam 0 pr6prio processo de circula~o c ~ODtas (SWALLOW, 1982) e 0 de arte turistica no que Nelson
1rOca. Em uma infIuente descri~o do bazar Moroccan, Clifford Gecnz rabum (1976) chamou de quarto mundo.
colocou a buse-dpor informa<;6esconfi'veis no centro dest8 instirui- !::ire que h3 descontinuidade.~no conhecimento que acompanha 0
~o e mostrou quao difieil e, para os atores nesse sistema, obte-Ias
seja sobre pessoas, seja sobre coisas (GEBRTZ, 1979). Boa parte da
estrutura institucional e da forma cultural do bazar apresellta dois
=,,::s~
~ento de mercadorias, problemas envoll/cndo autenticidade e
entram em ccn~. D!versos artigos deste Iivro lidam com
ta te Ol~ass~ntos. 0 PfJmel~o e.o texto de Brian Spooner sobre
gumes, dificullando 0 accsso a inforrna930 confiavel, mas tambem ~ s onentms, ullla provocattva IDterprela~aoantropol6gica de urn
faciJitando a busea por tal informa~ao. E tcntador concluir que labi- lema que reune hist6ria da ane, hist6ria economica e analise

62 63
cultural. 0 tema de Spooner - as atteracoes nos tcrmos das rclnc;Oes contemporaneo. Esta economia polltica tern sido, talvez, mais bern
entre produtores e consumidorcs de tapecarias orientais - pOe em invesligada na Franca, por Baudrillard (1981) e Bourdieu (1984).
evidencia urn exemplo particularmentc notavel de uma mercadoria
que liga dois universes de significados e fun'iOescxtremamcnte iso- Ha uma serle particular de queslOesque concemern ~autcnticidadc e
lades. Comercializados original mente por meio de lima serie de a expertise que incomoda 0 Ocidente modemo, e esta sene, que gira
entrepostos asiaiicos e europeus, que impunham, cads urn, fihros em rorno de t6picos como bom gOSIO,conhecimento espcctatizudo,
economicos e de gosro, os tapctes orientais cnvolvem, hoje, uma DC- "originaJidadc" c dislin9~() social, manifesta-sc em especial no do-
gocia<;.aobem mais direta entre OSgostos da classc m'ediaalta ocidental mfnio da arte e de objetos arusticos, Em seu famoso ensaio hA obra
e as organizacoes de tccelagem na Asia Central. Mas esta altera~ao de arte na cpoca de suas tecnicas de reproducao"," Walter Benjamin
DaO abrange apenas mudaneas no contexte da negociacao de precos. (1968; edi<i3ooriginal de 1936) rcconhecia que a aura de uma obra
o que e negociado, como observa Spooner de um modo incisive, e a de arte autentica esta ligada a sua originalidade c que esra aura. que t
autenticidade. Isto e, conforme 0 ritmo da mobilidade e a aglomera- o fundamento de sua autenticidadc, C posta em risco pelas modernas
~iio de pessoas no topo da sociedade ocidental se tornarn mais tecnologias de reproducao. Neste sentido, copias, falsifica~Ot:~e ver-
rnarcados, e conforme a recnologia possibilita a rnulriplicacao de soes "piratas", que lem umalonga hisl6ria, nao ameacam a essencia
objetos de prestigio, instaura-se urn crescente e ironico di610goentre do original, mas buscam compartilhar dela. Em uma nota de rodapc
a necessidade de criterios de autenticidade que se ancram constante- deste ensuio, Benjamin fez a scguinte observacao, muito perspicaz:
mente no Ocidente c as morivacoes cconornicas dos produtores e "Na verdade, it epoca em que foi feita, uma pintura medieval da Vir-
negociarues, 0 mundo dos negociantes, alem disso, ioma-se ele mes- gemainda nao era' autentica', 'Ibmou-se .autentica' durante os seculos
mo atado as poliricas de proficiencia e da formalizacao de urn saber seguintes e, talvez, sobretudo, no seculo XIX." (BENJAMIN, t936,
erudito sobre raperes no Ocidenie. p. 243) Em um ensaio sabre 0 conceito de "assinatura" no mundo da
arte moderna, Baudrillard (1981, p. 103) prossegue com a questao:
De uma forma geral, podemos sugerir que, em relacao a mercadorias
de luxo como tapetes oriemais, conforme a distancia entre consumi- Ale 0 s~('uloX1X. a l.."Opiade uma obn origin;.lli.
dores e produtores diminui, a quesrao da exclusividade dti lugar A "hOiseu pr6prio valor, era uma prunca lcgltima, Em
nC)f.Satpoca a cOpia ~ ilegftima, inaulenlica: j~"rio e
questao da alilelllicidade. Quer dizer, em circunstfincias pn:-moder- mais "Brlt-". Da mcsma forma, 0 eonccito de lalsifi.
na~, (l movimento de longa dist~ncia das mercadorias preciosas ca~~omudou - ou nlclhor, aparectu de n:pcntc conl
implicava custos que faziam de sua aquisi~iio, em si meSIl1I1,urn o advento da nlod(.nicJadc. Anlcs, pin1orC5sc scr-
lIlarcador de exclusividadc c urn instrumento de distin~iio suntmiria. vium rcgularmenle de coJ.. boradore:: ou nbCI'CS; unl
Onde 0 controle de tais objctos nall estivcsse sujeito h regulamcnta- cspccitllisI3 em 8rvore.~,outTO em nnjmais. 0 310 de
~o do Estado, elcs eram regulamemad(ls indiretameme pelo custo pintar, as)im como a a..,c;iniltur4. nao o.lHenl:ava a
mesm. i~i.)lc;ncja mitolOgica sobre a aUlen,ici<Ltde
da aquisi<i3o.de modo que permaneciam Dasmaos de poucos. Com - me impera'iyu moraJ a que a anc modema ~ de-
as mudan<;aslecnologicas, a reproduc;aoem massa destes objetos tor- diet c pelo qUJI cia se torna rr.<KIema-que loi po$I3
nou-se possivel, 0 dialogo entre consumidores e a fonte original passa COl cyj~ncia desdt- que 3 rcl~o com ~ iJustr~o
a ser mais direlo, e consumidores de classe media foram capacilados t, portant". 0 proprio ~ignifitndo do objtto ;utlslico
(legal c ceonomicamentc) a disputar estes objetos. A uniea forma de mudou com 0 ato Olesmo da pinlurn.
pmscrvar a fun~iiodcstas mercadorias nas economias de prestigio do Com\lstascousidera~Oes. e possivel situar 0 aspecto do eonsumo dos
Ocidente moderno e tomar os crili:rios de autenticidade mais compli- processos observados por Spooner no contexlO do que BaudriUard
cados. As CXlremamentecompJicadas competi'iiio e colabora~ao entre vI!COrooa emergencia do "objeto", iStll e, uma coisa que j~niio e
"pcritOS" do mundo da artc - IIcgociantcs, produtores, cstudiosos e apcnas UfO produto ou u~a mercadoria, mas, em essencia, e um sig-
consumidores - t parte da economia poliHca do gosto no Ocidenle no em urn sIStema de slgnos de SlalllS. Os objetos, de acordo com

64 65
Baudrillard, surgem plenamente apenas oeste seculo, DO Ocidente julgar, negnciar e comprar sao mais diffceis de mudar que ideologias
moderno, no contexte das formulacoes tc6ricas de Bauhaus acerca de guildas, precos ou producao. Foi precise uma serie muito
(BAUDRILLARD, 1981, p. 185), cmbora se tenba mostrado reccn- complexa de altera<;OesIragmernadas e asstncronas na polftica, na
temcnte que 0 surgimcnto do objeto na cultura europeia rernorua, iecnologia e na cultura, que se estenderam par urn seculo, antes que
pelo menos, ao Renascimeoto (MUKERJI, 1983). A moda C 0 veicu- urn novo quadro epistcmotogico surgisse para classificar produtos
10 cultural por meio do qual objetos, no senrido de Baudrillard, se CO!l1erciai~.Neste novo esquema, poderiamos dizer que bens Coram
movem. rCCOncebidoscomo produtos e 0 "olhar" (no scntido de Foucault) do
consumidor e do oomerciante deu lugar ao "olhar" do produtor. 'Ieci-
Contudo, problemas de autenticidade, pcrlcia e avalia~fio de merca- dos, no primeiro lcr~ do scculo XJX, passaram a ser vistos no que
dorias nao sao, obviarnente, urn fenameno do seculo xx. Iii Baudrillard chama de "espelho da producao", Autenricidade, 110 co-
mencionamos 0 artigo de Patrick Geary, oeste volume, sobre 0 inter- meco desse cenario industrial, j6 nao Cuma qucstac de proficiencia,
carnbio de reliquias na Europa carollngia. Aqui, h~ urn problema 01iJ.'i de metodos de producao dados objet ivamente. A perlcia do ne-
crucial no que diz respeito II autenticacio e, rambcm aqui, este pro- gocianlee do financista da lugar a pericia da produ<;iioindustrializada.
blema esu ligado ao Iato de reliquias circularern por longos periodos o cnsaio de Reddy nos lernbra que a hist6ria social das COiS3S,meso
de tempo, passando por muitas maos e percorrendo grandes distan- mo das mais comuns como tecidos, reflete altcr.<;OeSextrernamenre
cias. Aqui tambem b:i uma preocupacao com Calsifica~oes, uma complicadas na organizacao do conhecimento e dos modos de pro-
obscssao pelas origens. Mas 0 regime cultural da autenticacao e um du~ao. Tais alteracoes tern uma dimensao cultural que naDpode ser
tanto diferenre do regime modemo. Ainda que haja um pequeno gro- deduzida a partir de, OU reduzida a, rnudancas na tecnologia e na
po de procedirnenros lecnicos e prerrogativas clericals cornprometidos economia.
na auienticacao, irara-se, de um modo geral, de uma questao em que
compreensocs populares sobre a eficacia ritual c criterios comuns de Um ultimo exemplo da complexidade das rela~s entre autenticida-
autemicidade desempenham um papcl fundamental. A autcnticidade de, gosto e as politicas das relacoes entre consumidor e produtor
aqui nao e da al<;adade pcritos e de criterios csorericos, mas de espe- concernc ao que tern sido dcnominado arte etnica ou turisuca. Essas
cies popu lares e pabllcas de confirmacao e verifica~iio. Ioram terna de estudos anrropologicos bastante rigorosos c M uma
importanle coletitnea de ensaios sabre 0 assunto (GRABURN, 1976).
o pwblcma do conhecimento espeeializado e da autenlicidade assu- Emborn o~ Cen6rnenos diseulidos sob csscs rotulos incluam uma
me ainda uma oulra forma no Cascinante estudo de caso de William desconcenanlc gama de objelOs, como observa Graburn em seu en-
Reddy sobre as al1era~oes na organiza~al) de saberes cspectficos na saio inlrodut6rio, <lIes compoem lalvez 0 melhor excmplo das
industria leXlilda Frao~, antes e depois da revolu<;iiode 1789. Con- divcrsidades entre produtores e cODsuroidores em g0510, compre-
cenlrando-sc em dois dicionarios de lennos comcrcia is publicados eosao e usa. No lado do prnduloT, podemse ver as tradi~Ocs de
na Fran~, ns dccada de 172(1e em 1839, Reddy argumenla que, (abrica\ao (novamenle seguindo Muno) mudando cm rea~iio a impo
embora a Revolu~o Francesa parc<;ater destruido toda uma forma sj~s comcrciais e esteticas ou a impelos de cscalas mais largas e,
de vida da noite para 0 dia, eSle nao foi, na verdade, 0 caso. 0 vaslO algumas vezes, a consumidores distanles. No lado do consumidor, h3
ediffcio do conhecimento e das praticas cotidianos mudou lenta, in- Souvellirs, lembran<;as, raridades, colc<;6es, objetos de exposi<;iio,
cena e relulanlemenle. Um exemplo desla crise prolongada - iSlOe, assim como a compcli~o por status, a pericia e 0 comercio em que
urn periodo em que 0 conhecimento, a pr~tica e a orienla!i3o politica ~,?,aneecm. Entre 3S duas eX1Temidades,uma serie de la~ comer-
cstavam notavelmente fora do passo - pode ser visto no mundo codi- ems e eSl<!licos,algumas veres complexos, miilliplos e indirelos,
ficado do conhecimento relativo ao comercio textil. Nos principios o.utrasvczes aberlos, Tarose dirclos. Em ambos os casos, a arte turis-
de sistemas modernos de fluxo de mercadorias, Reddy nos mostra ~Ica conSlitui urn trMego de mercadorias especial, em que as
que as rela9iie~ entre conhecimento t,knico, gosto e regulamenta"ao ldentidades grupais de produlores sao emblem as para as politicas de
poUlica sao muilo complex as c leotas para muliur. Modos de saber, s/arl<$ dos consum idores.

66
67
 especial a venda de graos na bolsa de Chicago 00 comeco do seculo
o artigo de Alfred Gell, neste livro, traz algumas observacoes astutas XX. (2) Mitologias produzidas por consumidores (ou consumidores
sobre os complicadostiposde retra<>napercepcso que podemacorn- polenciais) alicnados do processo de produlJiioe de disrribuicao de
panhar a intera~ao de pequenas populacoes tradicionais com mercadorias-chavc. Aqui, os melhores exemplos vem dos "cuttos da
economies e sistemas culturais de larga escala, Refletindo sobre 0 carga" da Oceania. (3) Mitologias consiruidas por trabalbadores en-
interesse muria porjogos de prates em bronze produzidos fora de sua volvidos no processo de producao que estao completamente
regiao, GcU observa que "os murias, um povo tradicional sem urn divorciados da 16gicade distribuicao e de consume das mercadorias
legado proprio de producao de artesanato e bens de prestigio, eS13o, que produzem. Os modcmos mineradores de estanho da Bolivia des-
na verdade, bem mais pr6ximos dos ocidentais. que buscarn autenti- critos por Michael Taussig em The Devil and Commodity Fetishism
cidade no exotico, do que das tradicionais sociedadcs produtoras de inSouthAmerica (0 diabo e 0 [etichismo do mercadoria na America
artesanato, categoria a qual erroneamente se supee que eles pcrten- !loSII!) sao urnexcelente exemplo tfpico dcssas mitologias. Nos pro-
cam", 1hbalhos recentes sobre exibicoes c museus, empreendidos ximos paragrafos, discuto brcvernente cada uma dcssns varia<:;<ics,
por antrop61ogos e historiadores (BENEDICT, 1983; comc~'ndo pelas bolsas de mercadorias capitalistas.
BRECKENRIDGE, 1984), assim como por semiotogos e te6ricos da
literatura, ampliam e aprofundam nossa compreensiiodo papel exer- A esferamcrcantil no sistema global do capitalismo modernoparece,
cido por objetos do "outre" na criacao do souvenir, da colecao, da a primeira vista, ser uma enorme maquina impessoal, governada por
exposi~o e do trofeu no Ocidente moderno (BAUDRILLARD, 1968, movimentos de preco em larga escala, complexes interesses
1981; STEWART,1984). De uma forma mais geral, poder-se-ia dizer inslitucionais,e de urn cararer totalmente desmistificado, burocrau-
que, conforrne os percursos institucionais e espaciais das mercadori- co e auro-regulador, A impressao e que nada poderia cstar mais
as se rornam mais complexes e a alienacao mutua entre produrores, afastadodos valores, mecanismos e ericas dos Ouxosde mercadorias
comerciantes e consumidores aumenta, h5 uma tendencia de surgi- em sociedades de pequena escala. Porem, essa impressiio If falsa,
rem mitologias culturalmente modeladas acerca do fluxo de Nestememento, deveria cstar clare que 0 capitalismo niiorepresenta
mercadorias. apenasum esquema recnologico e economico, mas urncomplexo sis-
Hist6rias e ideologias cultura1menteconstruidas acerca de fluxes de temacultural com uma hist6ria muito especial no Ocidente moderno.
mercadorias sao lugar comum em IOOasas sociedades. Mas tais his- Essa visiio, que sempre teve adeptos eminentes na hist6ria social e
t6rias adquirem qualidades especialmentc intcnsas, novas e economics (WEBER, 1958; SOMBART, 1.967; NEF, 1958;
impressiouantcs quando as distancias espaciais, cognitivas ou ~RAUOEL, 1982; LOPEZ, 1971;THRISK,1971l),ganhou um novo
instilucionais entre produ~ao, distribui~ao e consumo sao grandes. lmpulsoa partir de estudos antropol6gicos e sociologicos da cultura
ThIdistaneiamenlopodeser institucionalizadono interiorde umaunica euro-americana (BAUDRILLARO, 1981; BOURIEU, 1984;
economia complexa ou pode ser uma fun~o de novos lipos de Yln- DOUGLAS; ISHERWOOD, 1981; MUKERJI, 1983;SAHLlNS
1~~ ,
culo entre sociedades e ecoDomiasate enlao separadas. 0 div6rcio
inslitucionalizado (em relalJiioao conhecimento, ao interesse e ao o estudo do esquema cultural do capitalismo em sua forma norte-
papel) entre as pessoas envolvidas em diversos aspectOSdo f1uxode arneri~ana foi empreendido com graDde vigor on ultima decada;
mercadorias gera mitologias especializadas. Nesta ~o, analiso Ires histonadores, anlrop6logos e soci610goseslao come!;3ndoa reunir
varianles de tais mitologias e os contcxtos em que surgem. (I) Mi- Umarica descrilJiioda cultura do capitalismo nos Estados Unidos
tologias produzidas por cornerciantes e especuladores que sao em (COLLINS, 1979; DIMAGGIO, 1982; LEARS. 1984; MARCUS,
grande parte indiferentcs tanto as origens da prOOu~O quanto ii no prelo; SCHUDSON, 1984). Ernbora esse contcxto mais amplo
dcslin3(jao do consumo das rnercadorias, exceto nos casos em que esteja,fora do escopo da presenle discussao, esla bern claro que 0
afctcm as flulUa~oesde pre(jo.Os melhores exernplos de...sctipo sao pr6pno capitalismo Ii uma forma~o cultural e hist6rica e que. nessa
os Olcrcados de fuluros em econornias capitalistas comp1exas, em

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forma~iio, as mercadorias e seus significados desempenharam um -egras espcciais. Em ambos os cases. trocam-se emblem as de valor
papel crucial. VOl exemplo das expressoes eulturais do capitalismo que so podem ser transformados em outros meios por uma complexa
moderno, peculiar e impressionante, ~ 0 mcrcado de futures nos Es- serie de ctapas e em circunstancias inusuais. Em ambos os casos, ha
tados Unidos, que se desenvolveu na metade do seculo XlX e cujo forn~as especiflcas pclas quais a reproducao da economia mais arnpla
paradigma e a Bolsa de Graos de Chicago. e aniculada com a estrutura da cconomia do torneio.
o comercio de mercadorias em estado bruto permancce, hllje, como Al~m disso, e talvez 0 mais importante, em ambos os casos hA urn
uma parte extremamente irnportantc do cornercio e do sistema eco- ethos agontsrico, rornfmticc, individualista e com ares de jogo que
nomico mundial (ver, por exemplo, ADAMS; BEHRMAN, 19R2) e contrasta com 0 ethos do comportamento econornico cotidiano, A
esse intercambio de mercadorias em larga escala continua sendo, tal- fun~iio da participal[iio no 1,11/0 na construcao de renome e repula~ao
vel, a principal arena em que as contradicoes do capitalismo de indivfduos nas ilhas da Oceania c patente. Mas II mcsmo ocorre
internacional podem ser observadas, Entre esses comradicoes, e cen- DOSrncrcados de futures. Nasegunda metade do seculo XIX, a "mina
tral aquela entre a ideologia de livre-comercio do capitalismo classico de trigo" (a Bolsa de Grllos) em Chicago era claramente 0 cenario da
e as formas variadas de protecionisrno, carteis e acordos reguladores cria~iio e do quebra de repuracoes individuais, e de esforcos arrogan-
que surgiram para restringir essa liberdade em favor de diversas coa- tes da parte de deterrninados homens para rnonopolizar 0 mercado,
limes de produtores (NAPPI. 1979). Mcrcados de futures representarn (DIES, 1925, 1975). Esse ethos agonistico, romantico e obsessive
a arena institucional em que os riscos que acompanham os fluxes nao desapareceu das bolsas de mcrcadorias, como nos Icmbra 0 inci-
nacionais e internacionais dessas mercadorias sao negociados, com a dcme dos irmdos Hunt em relac;iio ii prata (MARCUS, no prelo),
diminui!;iio dos riscos da parte de alguns e puras especulaeoes da embora 0 quadro moral, institucional e politico que governa a espe-
parte de ourros, eula~a? sabre mercadorias tenha mudado basrante desdc 0 seculo
Mercados de futures giram COl tomo de urn grande mimero de transa- X1X. E claro, hli muiras diferencas entre 0 kula e 0 ntercndo de futu-
..6es que envolvcm contralOS para cornpra e venda de mercadorias,
ros quanro a escala, aos recursos, ao contexte e as metas. Mas as
em datas fururas. Esse comereio de contratos e urn comercio de pa- similitudes sao reais, Como sugcn antes, muitas sociedades criam
pel, que raramcme inclui trocas reais das mercadorias entre os arenas especializadas para torneios de valor, nos quais emblemas de
comerciantes. Como a bolsa de valores, esses mercados sao lorneios mercadorias especificas sao cornercializados e tal comercio afeta _
especulativos, nos quais (\ jogo dos pre\;os, riscos e trocas aparece por meio da economia de status, peder ou riqueza - f1uxos de merca-
totalmente divorciado, para 0 espeelador, de todo 0 processo de pro- dorias mais mundanos. 0 intercfimbio de rel(quias, 0 mercado de
du~iio, distribui'iifio, venda e consumo. Poder-se-ia dizer que a ~turos, 0 kula, 0 potlacht e 0 hU20S/tj da Asia Central (AZOY, 1982)
espeeuI3~.ao sebrc mcrcadorias fulUTaSscpara, drasticamente. pre~o s~o, todos, exemplos de lais "torneios de valor". Para cada caso, pre-
e valor. sendo 0 ultimo algo scm qualquer interesse. Nessc sentido. a clSa.mos de urn exame. mais compJeto do que e posslvel empreender
logica docomercio dcmcrcadorias futuras e, seguindo Marx. urn tipo aqut, dos modos de articula~iio dessas eeonomias de "tomeio" com
SCus contextos merC3JlIis mais rotineiros.
de meta-fetichismo em que nao apcnas a mercadoria substitui as rela-
c;Oes sociais que CSlaOpor IT1is dela, mas 0 movimenlo de p,.ec;os se A mitologia da circula!;iiO criada em bolsas de mercadorias (assim
lorna lim substituto aulonomo dos fluxos das proprias mereadorias. ~rno, de outros modos, em bolsas de valores) mistura rurnores com
Embora esse duplo grau de remoc;ao das rclac;6es sociais de produ- InCormac;6es mais conriiiveis: com respcito a reservas de mercado
<;lioe troea diferencie muito os mercados de futuros de ()utros tomeios regulamentac;6es govcmamentais. alterac;6cs sazonais, vari:ivcis d~
de valor, tais como os rctratados no 1.1110, ha alguns paralelismos in- consumo, erescimentos de mercados internos (inclusive os rumores
teressantes c revcladores. Em ambos os casos, 0 torneio ocorre em sabre. as intenc;6es ou Il:otiva~ de outros especuladorcs) e assim
uma arena especial, isolada do vida cconomica pnltica e sujeita 8 por dlante. Tais informa~oes compOem urn cenario de variaveis in-
cessantemcnte altemantes (e potencialmente infinitas) que afetam os

70 71
precos. Embora tenha havido mclhorias consistentcs nos fundam~n. de muitos dcsscs movimentos, tcve urn papel importaute a promessa
tos ICCniClJ,para analisar eoperar com ex ito na bolsa de mercadorias, feita pelo tider/prufeta da chegada de valiosos bens europeus ~m
permanece a busca quasc magica pela formula (divinatona em vez.de avi6es ou navies, que "choveriam" sobre 05 que rcalmente acredita-
efetiva) que se revelanI uma previsao a prova de falhas das alterd~oes vam no movimcnto c no profeta.
de precos (pOWERS, 1972, p. 47). A base est~tural.dessa ~itologia t dificiJ discordar da opiniao de Worsely (1957) e OUlrOS de que 0
da circulaC;aode mercadorias e o fato de el? Jogar ':'defi.llldanr~nte simbolismo da chegada misteriosa de bens europeus tern muito aver
com a Outuac;aode precos; de buscar exaunr uma sene inexaurivel com a diSlor~aodas rela~~ indigenas de rroca sob 0 regime coloni-
de variaveis que afetam os precos; e de seu interesse por mercadon~s al com a percepcao, da parte dos natives, da contradielo patente
ser exclusivamente informacional e semiotico, completamente di- e~tre a riqueza dos europeus (apesar da falta de esforco) e sua propria
vorciado do consume. 0desejo irracional de monopolizar 0 mercado pobreza (apesar do trabalho arduo). Nao surpreende, tendo em vI.sta
de alguma mercadoria especiflca, a busca (comrarin ao senso comum) que forarn subjugsdos, ~e subito, a um complexo si5te~a c~n6mlco
por f6rmulas magicas que facam previsoes das mudancas de preco, a internacional do qual viam apenas alguns aspectos IIIISICIIOSOS, que
histeria coletiva controlada, tudo isso eo resultado dessa completa sua reacao fosse buscar, ocasionalmente, replicar 0 que eles conside-
conversao das mercadorias em signos (BAUDRJLLARD, 1981), que cavumscr 0 magico modo de producao dcsses bens.
sao, elcs mesmos, capazes de render lucros se forem manipulados
apropriadameme. 0 corrcspondente primitivo desse tipo de constru- Ao observar 0 simbolismo e as praticas rituais desses movirnentos, e
S'iiomitol6gica e generativa de mercadorias pode ser enconrrado nesta posslvel ver que eles nao sao simplesmente um milo.acerca das _ori-
materia-prima antropol6gica que sao os "cultos da carga" que se gens das mcrcadorias europeias, mas uma tentattva de repltcar
muhiplicaram, oeste seculo, nas sociedades scm Eslado do Pacifico. ritualmenre I) que percebiam como rnodalidades socials da vida euro-
peia. Essa e a signiflcacao do uso de moldes, forrnas de falar, tilulos
"Cultos da carga" sao movimentos socia is de um carater milenar e etc. dos militares europeus. Ainda que frequentemente ordenados de
intenso, centrados no simbolismo de bens europeus. Surgiram sobre- acordo com os modelos indlgenas, a pratica ritual dos "cultos da car-
IUdono Pacifico desde os primeiros contatos coloniais, embora tenham ga" em muiros cases nao passava de urn esforco enormc de imitar as
antecedentes e analogos pre-colonials em outras socicdades, Forum formas socials europcias que lhes pareciam mais conducentes a pro
tema de analises exaustivas de antrop610gos,que os observaram como du~iiode bens europeus. Numa especie de fetichismo invertidO, 0
fenomenos pSicologicos, religiosos, economicos e politicos. Apesar que era reproduzido era 0 que era visto como as formas sociais e
das divergcncias consider<iveisenlre as interprcta($oes antropol6gi lingu,sticas curopeias mais potentes, ern um esfor~o por aumenlar a
cas de.~scsmovimcntos, a maioria dos observadores concorda que 0 probabiJidade da chegada das mercadorias europCias. P(lrern, Glynn
aparecimenlo de "cullos da carga" nos primordios das .sociedades Cochranc(1970) nos lembra que esses CUllOS, por mais que distorcidos,
colonia is do Padfico tem algo a ver com a transformac;ao das rela nao buscavam /odas as mercadorias eurOpCias,mas apenas aquelas
<toesde produ~o nesse novo contexto, a falta de ~ecursos entre os que cram vistas, em particular, como conducentes a manuten~ao de
nativos para obter os novos bens europeus que deseJ~vam, a che.gada descontinuidades de slah,s nas sociedades locais. "Cultos da carga"
de um novo sistema teol6gico e cosmol6gico por melo dos mlss.lon~- tambtm ilusuam uma mitologia particular acerca da produc;3ode bens
rios, e 3 conseqilente ambivalencia com respeito as f~rrna~ ntuals acabados europeus, criads por oalivos enredados na produ~ao de
indigcnas. 0 resultado foi uma serie de mo~imcnlo~ ~Ifundldos_por mercadorias primarias destinadas ao comercio mundial, assim como
tooa a Oceania (e mais tarde pela MelaneSIa), de eXlto, durac;ao e urnritual imitativo e revivescente. As mercadorias envolvidas no cul!o,
intensidade desiguais, que simuitaneamentc imitavam c.protestav~ tal cornu os objclos de valor do kula e OUlrasformas indigenas de
conlra as formas rituais e sociais europeias e que assumlam pos,,;oes troea especializada, sao vistas como metonimias de lodo um sistema
tanlOde forte oposi~iio quanta de intcnsa revivescencia n~ que t~nge de poder, prosperidade e status. A~cren~as do "culto da carga" sao
a seus proprios milos e rilOSde prosperidade e troca. No slmboltsmo urn e~emplo extremado das teorias qoe tendem a se proliferar quan

72 73
 circeiio assegera esterilidade c: morte em va de pros-
do consumidores permanecem completamerue ignorantes das condi-
peridade e (eniHdade. &~i35t na Ifansfotma~o
<;i)esde producso e de distribuicao de mcrcadorias, e incapazes de ter da reciprocidade em troca de mcrcadorias.
livre acesso a elas. Tal privacao cria as mitologias do consumidor (fAUSSIG. isso, p. 2241
atienado, da mesma forma que as bolsas de mercadorias propagam a
mitologia do eomerciante alienado. Finalmentc, vonamo-nos para a Os rilOSde produc;ao nas minas de estanho da Bolivia e a mitologia
terceira varianre, as mitologias de produtorcs ill. ordens das forcas da que os acompanha nao sao meros rernanescentes de ritOSde produ-
demanda e da distribuicao que fogem a seu controle e ultrapassarn ~ao eamponeses. Refletern as rcnsoes de uma sociedade em que a
seu universe de conhecimento. merc3nliliza<;ao ainda nlio se tornou urn lugar comum, onde 0
fetic]lismo das mcrcadorias, em decorrencia de sua hegemonia in-
Para esse tipo de mitologia, 0 melhor relaro que temos c a analise de completa, 6 visto como mal e perigoso, havendo, portanto, urna
Taussig das mudancas no simbolismo do diabo entre os mineradores tentativa paradoxa] de cercar 0 diabo em ritos de reciprocidade, Isso
de estanho bolivianos desdc a chegada dos espanhois (TAUSSIG, nao t fctichismo das rnercadorias no sentido marxisia classico (em
1(80). Em resume, a hist6ria se descnrola da seguinte maneira: antes que produtos dissirnulam e representam rela~ocs sociais), mas um
da chegada dos espanh6is, a mineracso era uma atividade de peque- fetichismo rnais literal, no qual se Iaz com que a mercadoria, ela
na escala adrninistrada como um monop6Jio do Estado. Com a chegada rnesma transformada em Icone do diabo, seja 0 pivo de urn conjunto
dos espanh6is, a mineragao se tornou a base voraz da cconomia colo- de transac;oes rituais concebidas para compensar os riscos
nial, a causa de urn deslocamento em massa e do aumento da cosmologlcos e risicos da mineracao. Nessa mitologia de produto-
mortalidade entre a populacao indigena aimara da Bolivia. A extra- ~extratores alienados, as fontes de connote impessoais e invisiveis
~ao de minerios sempre envolveu magica c ritual. mas foi apenas (0 Estado) e de demanda (0 Mundo do Mercado) sao realocados em
ap6s a conquista espanhola que passou a incluir 0 cspirito do mal, um leone de perigo e ganancia, metaforas socials da economia de
simbolizado por uma figura chamada de Tio, identificada no novo mercado. Embora a descricao de Taussig tenda, assim como a de
idioms cristao com 0 diabo, a qual era considerada 0 espirito pro- Gregory e muiros outros, a exagerar 0 conrraste entre economias de
prietario das minas. Essa figura diab61ica passou a reprcsentar todas presentes e de mercadorias, trata-se de uma analise persuasiva do
as forcas estrangeiras da nova cconomia capitalista, que os fetichismo literal de mercadorias que parece acompanhar a producao
mineradores slmultaneamente temiam, odiavam e serviam, em con- de mcrcadorias prirnarias para mercados desconhecidos e nao-con-
irasrc com suas formas tradicionais de economia rcciproca. Capturados trolados.
entre 0 controlc do Estado sobre a produ~iio C 0 mcrcado intemacio-
nal, de um lado, e 0 diabo do outro lado, ele.~elaboravam urn ritual Em cada um dos exemplos quediscuti, 0 mercado de futuros, "cullos
que rcflete as ambigiiidades C cOlltradi<;ocs de uma pratica economi- da carga" e mitologia da mincra~ao> as compreensoes mitol6gicas da
ca que transpunha dois mundos incompaliveis: cJrcula~ao de mercadorias sao geradas por causa do isolamento, indi-
feren<;aou ignorancia dos participantes com relaltlio a todos os oulrOS
Corn eCeiIO.:1 cXlcll~i"3cadeia 4ft Itoeas nos Andes aspectos da trajetor;a economica da mercadoria que nlio sejam 0 (ini-
e esta: campon(~ lrOC3m d~divas com 0 espirilO COem que eSliio cnvolvidos. Isolado em enclaves quer na produ~iio
proprietario; 0 c5.('Itrito proprielJrio conV(ne essas
dadivas em mclai~prtCi~. que (,Ies "encontram'" quer no comercio cspeculativo ou no loclls de consumo do Ouxo ~
conquanlO C'.xecutem 0$ ritU' de cr()(:3de didivas com OIcrcadorias, 0 conhecimento tecnico tende a scr rapidamente subor-
o espirito; 0 trabalho dm; mincr3dore.~concrctiuoo dina~o a teorias subcuhurais mais idiossincrJliC<ls sobre as origens e
no minion de cstanho. e vtndidu como uma merca- deslm~~ das COiS3S.Esses sao exemplos das diversas formas que
doria aOS proprielariM legais c palr6es~~~~ 6ltimos o fetlctllsmo das mercadorias pode assumir quando hA
vcndem 0 mincri(_~no mercH(j() inltrnaci()nal. Assirn. descontlDul
. 'dades aeenluadas na partilha do conhecimenlO coneernente
lrncas lc('iproca~ de dddiv3R u:rminam como trocas
de mcrcad(,ltia~est8Tldo entre 0 diabo e 0 E";13do, os a SUastrajcl6rias de circula~o.
mincrautlreS inlClmedeiam c~~llranSrorm39;io.E..'iSC

75
74
Hi! urna ultima questao a ser uatada sobre as relacoes emrc con.heei. reccnte, que recebeu ampla publicidade, Michael Scbudson (1984)
rnento e mercadorias, urna que nos lernbra que a comparacao de que~lionou as analises neomarxistas da manipulacao de consumido-
sociedades capitatistas com ourros tipos de sociedades c u~ ass~lDto res pela propaganda na America. Ele propiie que as imagens texruais
complicado. Em sociedades capitalistas complexas, a questao. nao se e grMicas criadas pela maquina da propaganda sao mais bern consi-
resume a segmenta~ao (ou mesmo fragmcntaliao) do conhecimento dcradas como uma especie de "realismo capitalists", uma forma de
como, por exemplo, entre produtores, distribuidores, especuladore~ lepresentasao cultural das virtudes do estilo de vida capitalist a, em
e consumidores (e diferentes subcategorias de cada grupo). 0 fato e vez de tecnicas de seduo visando a atos especificos de consumo. A
que 0 conhecimento sobre mercadorias esta sendo, ele ~esmo, cada adulao com a qual esse argumento foi acolhido pelos profissionais
vez mais mercantilizatlo. Tal mercantiliza<;ao do conbecimcmc rela- do propaganda e fonte de algumas objecoes circunstanciais 11pr6pria
tivo as mercadorias c, obviamente, parte de urn problema mais amplo argUInenla<;iio. A quesruo e que, provavelmente, qualquer analise
da economia polltica da propria cultura (COLLINS, 1979), em que a decisiv3 dos efeitos da propaganda teria de passar a ver as imagens
expertise, 0 crcdencialismo e 0 csteticismo. int.elcctuahsta da propaganda em seqjj~ncia com as mudancas nas ideias sobre arte,
(BOURDIEU 19!!4) dcsempenham, cada um! papeis dlf~rentcs. As- design, esrilo de vida e djstin~ao, no intuito de elucidar 0 papel desse
sim, ainda que haja, mesmo nas economias mars slm.ples, ~m tipo de "realisrno capitalista" oa mobiliza~iio social da demanda
complexo trMego de coisas, e somente com a acentuada diferencia- (H6BDIGE, 1983; BOURDlEU, 1984).
C;;aosocial, tecnica e conceitual que se desenvol~e 0 que ~em~
Porem, parece valido Iazer uma observacao, sobre a propaganda, que
chamar de Ira/ego de criterios concernente a COISas.Quer diaer, e
somente nessa ultima situa<;iio que a compra e venda de perfcia rela- 6 relevante pard a presente argumentacao. lndependememente da efi-
cacia da propaganda em assegurar 0 sucesso de qualqucr produto
tiva a apropriabilidade tecnica, ~ocial ou cst~tica das mcr~adorias
passa a se difundir amplamente. E clare, tal trafego de crttenos mer- particular, parece ser correto propor que os modos de represenracao
cantis nao se restringe a sociedades capilalislas, mas parece haver da propaganda contemporanea (em particular na televisao) comparti-
Ibam urna detenninada estrategia, que consiste em tomar 0 que na
indicios consideraveis de que e nessas sociedades que tal ullfego se
maioria das vezes sao produtos perfeitamente comuns, produzidos
revel a mais dense. em massa, baratos, ale mesmo inferiores, e fazer com que eles pare-
Ademais c diCicil distinguir, em economias capitalistas conternpora- c;;amde algoma forma desejaveis ainda que acessiveis (no senrido de
ncas, a ~ercantiliza<;iiO de bens da meneantiliz3c;;ao de servi~os. De Simmel). Mercadorias perfeltamente comuns sao colocados em uma
fato, s combinac;;5o rotineira do par "))en~ e servi~o~" e, ela mesma, eSpCcicde zona pseudoellcaixada, COIIIO se clas nao estives.~ell1dis
uma beran~a da economia neocltissica. (sse nao eqUlvale a dlzer que poniveis a qualquer urn que possa pagar 0 pre,.o. A maiOr parte das
servi<;os (sexuais, ocupacionais, rituais ~~ em~ionais) ?Crmane~:un imagens sociais que criam essa ilusiio de exclusividade pode ser
totalmeote fora do dominio da mercantlhza~o em SOCledades nao- explicada como 0 fetichismo do consumidor em vez daquele da mer
capitalistas. Mas e sumente em economias ~s.industriais co.~plexas cadoria. As imagens de sociabilidade (pertencimento, apelo sexual,
que os servic;;os se tornam urn Ira<;o dommante, ate defimtlvo, do peder, distin,.ao, saudc, intirnidade familiar, camaradagern) que
mundo da troca tic meneadorias. Uma an~hse comparatlva oomplcta subjazem a grande parte da propaganda visam a transfonna~iio do
e
da dimen~ao do servi<;o na mcrcanlilizac;;ao, porem, algo que uma CODsumidora tal ponto que a mercadoria particular que esta sendo
colelanea como eSla pode apenas ter espcranl;3s de estimular. vendida fica em segundo plano. Essa dupla inversao das rcla~oes
POrt!m, talvez 0 mel hor exempl0 da rela<;iioenlre 0 conhecimento e 0 entre pes.was e coisas poderia ser vista como 0 movimento cultural
controle da demanda seja ofereeido pelo papcl da propaganda nas CI1Jciaido capitalismo 3,ran<;ado.
sociedades capitaliSlas contemporfuleas. Escreveu-se mUllOsobre eSSl A rela<;iioenlre conhecimento e mercadorias tern muitas dimens6es
t6pico importanle e, nos Estados Unldos, M sioais de urn debate rea que nao foram discutidas aqui. Mas a qucstfio essencial para os mcus
nimado sobre a efic:lcia funcional da propaganda. Em urn estud( PTopositos e esta: 11medida que as mercadorias percorrem d.istancias

76 77
cada vez maiores (insrhucionais, espaciais ou temporals), 0 conheci- ro. Mas essas imirneras negociaes ordinarias nao seriam possfveis
mento sobre elas tendc a se tomar parcial,contradit6rio e difercnciado. 51! 030 houvesse urn amplo conjunto de acordos concernemes so que
Mas tal difcrenciacao pode, ela mcsma, (por meio dos rnecanismos e desejavel, a em que consiste uma "troca de sacriflcios" razoavel e a
de torneios de valor, autcntica~o OU desejo frustrado) levar a uma quem e permitido cxercer que tipo tie demanda efetiva e em que cir-
intensificacao da demanda. Se observarmos 0 mundo das mercadorias cunstiincias.0 politico, nessc processo, nao se refere tao-somcntc ao
como urna serie de altcra~6es em rotas locais (culturalmente regula- 1'3tOde represcntar e constituir rela~6es de privilegio e conrrole social.
das) de mercadorias, podemos ver que as polfticas de desvio assim o politico, nesse processo, se refere a tensao consrantc entre quadros
como as de enclave se ligam com frequencia a trocas, possiveis ou existctltcs (de prcco, barganha etc.) e a rendencia das mercadorias
factuais, de mercadorias com outros sistemas mais distantes. No exa- rompcrcm tais quadros. Essa pr6pria tensao decorre do fato de nem
to momenta em que urn sistema menor interage com urn maior, a todas as partes compartilharern os mesmos interesses em qualquer
intera~o entre conhecimento e ignorancia serve de torniquete, faci- regimecspecifico de valor, ncm serem idenlicos os interesscs de qual-
litando 0 fluxo de algumas coisas e obstruindo 0 movimento de outras. quer urna das duas panes em uma dererminada troca.
Nesse sentido, mesmo os rnaiores ecumenos mereantis sao 0 resulta- No ropo de muitas sociedades, temos as politicas dos rorneios de
do de complexas imcracoes entre sistemas de demaoda Incais valor c de desvios calculados que podern levar a novas roras de Iluxo
politicamente mediados. de mercadorias. Como exprcssoes dos interesses das elites em rcla-
c;iillnos indivlduos do POVO, temos as politicas da mod", de leis
CONCLusAo: POLITICA E VALOR suntudrias e de tabus, quc regulam, todos, a demands. Porcm, como
as mercadorias constantemenre uhrapassam as fronteiras de culturas
Mora aprender alguns raros relativamente inusuais e considera-los espcclficas (e, portanto, de regimes de valor especfficos], tal controle
de um ponto de vista pouco convencional, hii alguma vantagem mais politicoda demanda e sempre ameacado por disnirbios. Em uma gama
geral em observar a vida social das mercadorias do modo proposto surpreendentemente ampla de sociedades, e possfvel testcmunhar 0
neste ensaio? 0 que essa perspective nos diz sobre valor e troca na seguintc paradoxo oomum. Em bcneffcio dos que estao no poder, 0
vida social que ainda nao sabcmos, ou que nao poderiamos descobrir fluxodas mercadorias e completamente congelado por meio da cria-
de um modo menos complicado? E relevante assumir a posigao ~;jode um universe fechado de rnercadorias e de urnconjunto rigoroso
heuristica segundo a qual as mercadorias existem por toda parte e 0 de regulamenta~6es sobre como devem se movimentar. COIlIUdo,a
espfrito da troca mercantil nflIJse divorcia totalmente do espfrito de pr6pria natureza das disputas entre os que cstilo 00 poder (ou do~ que
ouLrasformas de troca? aspiram a urn poder maior) tende a incitar urn afrouxamcnlo dcssas
Ao responder essas queslOes, nao irei faxer um tedioso resumo das regrase uma expansiio da variedade de mercadorias. Esse aspeclo da
prineipais observaes apresentadas no desenrolar desle ensaio, mas poUticadas elites e comumente 0 cavalo de 116ia das alteraes de
irei diretamente ao que e substancial em minha proposla. Este ensaio valor. Enquanto as mercadorias estiverem em questao. a fonte da
tomou como ponto de partida a visao de Simmel de que a troea e a polfticasera a lensao entre essas duas tendencias.
fonte do valor, e nao 0 contrario. Os artigos neste livro nos permitem Vimos que tal politica pode a.ssumirmuitas formas: polfticas de des-
aeresecntar uma dimensao crltica a intui~ao um tanto abstrata de viosc de exibiC;iio;polltieas de autelllicidade e autentica~o; polfticas
Simmel acerca da genese social do valor. de COnhecimentoe ignorantia; polfticasde perlcia e con!role suntuario;
Apo/(rica (no sentido mais amplo de rela~6es, suposi\ioes e disputas polilicas de proficiencia e de dentandas deliberadamente mobiliza-
relativas ao poderl e 0 que vincula valor e tToea na vida social das das. Os altos e baixos das relac;6esno interior de e entre essas divcrsas
mereadorias. Nas trocas (mundanas, cotidianas e de pequena escala) dimcns6es da politiea dao conta dos capricbos da demanda. E ncs.~
de coisas ns vida comum, esse f..to nao e patente, pois a troea tern 8 sentido que a politica e 0 vinculo entre regimes de valor e fluxos de
aparencia rotineira e convencional de lodo comportamenlOeostumei mcrcacJoriasespecfficos. Desde Marx e os primeiros economistas po-

78 79
Hticos, nao bouve muito misterio sobre as rela~oes entre politica e ]'IOTAS
produ~5.o. Estamos, agora, em uma posi,iio melhor para desmistificar
1\0 romal I.\m'I a lrun,. tcnbo plena conscitncia de ($Iar indo oontr.. um:a (Otftntc da
o aspecto da vida economica relative a demanda.
I

an['~' cc.vOOm.~,mais recemc, qUIt 'lerrJr a dnlOOlt " 2\t~'W o.a parl a prodU(ao.
01~ p-'r3 u runSflntO. E5.S3 C'On.:ntC' (01 uma resposta ju.<la C'~c.'Q)iva p:eoc"~ C'Cm a
~ C J. ci.rcuJI(!n que prccedc:u. 0 ponto de vi5.t.a cia mere.ubi .. M rc"l:.nlo, p,efrK"Jt'
INFORMA<;OESCOMPLEMENTARES cscJlI'tf C'tfWiS l6piCOIo no eSf!..wIo d.l." rrocas q'.JC' c:o~-m I petecer cnf-ado!lhCJl(Oou
nUf(ri~ i"~;Ilvc,i.s.
Este ensaio foi escrito enquanto 0 autor era membro do Centro de. Z \I" AJrrcd Schmidt (1971, p. 69) para uma crittc:a similar 1 lendCncl3 "jdeah~1'' I'IOS C''Studos
Esrudos Avan~ados em Ciencias Cornportarnentais (Centre for marxlsU1S. ql,j~(flvor-e Jt ideia de qoe "Mm<"I Man; reduz ,odD."3\ CJlcgl'.ill8C'CQn6nltcaS 2
Advanced Study in the Behavioral Sciences), em Stanford, na ,claeion:unc:nIOli(Rile seres hum.!Ul')~.I) ml,lnooe composro de Id~)c precesses, em vee
de C;Olsalt matc:tlllb: C COI'ICletilS.Oln..iamentc. Jiub~rj('s Regjigcnlcs a ,.,t.u.' POlliO de vista
California, durante 0 ano lctivo de 198485. Pelo apoio financeiro poOc:lI!tevar 11 clulgcroli d:t variedaoc "vulgar".
durante esse perfodo, agradeco 0 auxflion". BNS 1:1011494 da Funda- J Rchl~1io~l)ci:l1c.sponll\ncaquo se caracteriza pot lig:lc~ lecfpllx::I:t de flrcl(j6nc pcrernescc
~.iioNacional de Ciencia (National Science Foundation) concedido ~itucrkn tieum!lINldl\iloccmum. A palavra6. normalmente. uaduuda por'\vmunKlade".
au Centro, assim como a licenca concedida pela Univcrsidade da IN. 1,1:1
Pensilvania. ''itnhOOUtllidtncia de que 0 empregc de termcs como "Interesse" e "c'lculo" 10I:tproblemas
OJMdt,~v(i~ no que diz rc;:,pc:ito40 CSludocomparati,,o d:t.va'(W~Ifv. tl'Oe.'", ccm~rclo c
Ao planejar e escrever este ensaio, acumulei muitas dividas de grati- d3Wva. ~lbofl\" riKO & exportar hipQl~C' model05 ulili\Jti~ (ll1WmcomOf(U~ p~f'I'n
dao, que tenho 0 prazer de agradecer aqui, Durante 0 ano letivo de pr6.xirnM,0 individuali"(n'IO(IoIru-ameriQ!)()c 0 tconllmirnmo) .scj. grsve. ~ igualm-enlC
tcodC'fK."~ f~"'af lIO'I' horn-e1l$ oci&nl:li."i 0 clilotitu t.Ie: C3tt1ftM"lnlerc$~"110 t~.Ji-
198384. na Universidade da Pensilviinia. alem dos colaboradores d6-d d.. \ida miliclili. 0 que S(; chama a cena, e ahxb nAn estse. excetO em l!'\tIIdo
deste livro, as seguintes pessoas apresentaram trabalhos sobre mer- embrioBllio (,cr M EDICK; SABEAN. 1984) um aIQ~ pan CSlIIdocompan!""
cadorias que muito me ofereceram para reOexao: Marcello du CC()Mmi,\ C'!mque .. vAliWade c:uhllm de -ordr. -pt~" ou ",nc1ividl..'O" (seuiDdo
Getttt. ( Dumunl) lot 'he a urn t$ludn eo:mpal'ltl\u do dJculo (de .WleJo com Oourditu) C'
Carmagnani, Philip Curtin, Mary Douglas, Richard Gold!hwaite, do inkfQ~ ()tsuDdo SlhUns). ApenilS ap6s 0 dese[l\'Olvimentu de 1113JCoIOOIl\"Q.iareIDOS
S!cphenGudeman, George Marcus,Jane Schneider, An!honyWalace .P-'<h" twudar IS mntl\,'~ O~irn;cromeDlos.flnal~ c ~ (!tlt.M dJ ~Iivldltik econ6mica
e AnctICWeiner. Os participames c comen!adores presentes nas dj~ de urn modl'l s;tnuinMmrnte comp3r~l1j\'o.
versas sessoes do workshop de E!no-hisr6ria, realizado oa s SimnlC'l (1971J.p. 138). em um co.nl(lttt\ urn 1anlodifcrcntc, anl~iplt II IlO(Ao de l,fUt' ,",visas
c:nu:un(' ~m docstado de mem.dori3se ObSCr\'3 que 1011idCi:t lem rC!!plltoo em ArisI6Iclc~.
Univcrsidade da Pensilvlinia em 1983-84, e do Simp6sio "Mercado-
(I Oray (19A4) o(crc:cc um .. tXCelenle discussi(). (3mb.:m inOutncioda JX)r Sinlnlcl. $()!xc 3.~
rias e Cul!ura", em maio de 1984, enriqueceram meu pr6prio diV\'rgc!'Kj~~de vltkw\luc podcm moooJal a niliureza da trocaquc uQn)f)Uefronleim<cuhu.ais.
pcnsamen!o. 0 !rabalho de Igor Kopyloff publicado nes!e Iivro e a Seu c~ludo foOOlO os leilOe~de cordeiros na:slegi6es de (mntch:. enlre 3 Inglalernac: a Esc6c:i.a
mais recen!e de lima longa rerie de con!ribui~6cs fei!as por elc lis wnWm Ctlll)dlUi uml\ ri(3 iluStrar;ao etoognifica do 1.1,,1:~h:Jn.ei de 1()l1'Ici~de valo,.
minImsid6iassobre as mercadorias. "Sou &litO a Orab4.1m(1976). cujo uso da (cnninologia orig.i.n31de MaqIXt, (.01sua c:ll~~ific.M~ao
de ~Ies elnic4l~( tutisdc3:S, iMpilou min}':' prOpria ada".:t.~io.
VersOesameriores des!e ensaio foram apresen!adas no Cenno de Es,
!ullos Ayan~adosem Cicncias Componamen!ais e no Departamento
de An!ropologia da Universidade de Stanford. Nes:;as ocasi6es, os
.
Ou kja. raJlIlU) em !.1menclave. IN. da T.].
"'-_
....~I
...
j) Ctrmo "'W'ncius de valor a pattil cn usu. feilo por Mt"'ot em um MntcKto btm
ctifc:r.tC',da C'OCI(l(p(ki de lomtios dt po$if,"io.
seguin!es colcgas fizeram valiosas crilicas e suges!oes: ~a~~ P.m sa r~r"C' .Hj(:'U$$iosoble ftif2S c ~ mu:nclOOs.Burton Benedict (IWQ:6)
obstcvou etemC'n(()Jde dj~,dC'. exib~competili\"~ t de poUlica de: SUIIUS 2..'CSOci1!:00s
DiMaggio,Donald Donham,MichelEpelbaum,UifHannerz, Vir~la (b
COOlw, (\'tftkn.
Held, David Hollinger,Mary Ryan,G. WilliamSkinner, BurtonStell!, u c..... 1<;,.. de """"'''.11'1. cia IJ
Denis Thompson, Pierre van den Berghe e Aram Yengoyan. Enfim Il: SUb
mc.1 ~19S7) t~az !,1m.djscU$Sdn ~min.l:sobre ~ i6gita cultural d.I tnt""'i. 'kr '.mhem"
Carol A. Breckenridge, como sempre, me proporcionoll c1areza,in ""C ~OC:13~ An1h\Cde Boug)t.~~reo:) pild,Oc:s dccoo..;umo QlI! aloo-ibo dalDdi. M) artij,'O~
ccn!ivo e um olbar critico agu"ado. :bnslOphtr Rayly no prt~nle livro. assim com<) Mall: Weber (1918)
"~C1ttltnle .
extmpl0 dt..~ prOCC'sso~ eOCMtrado em Henckel! (1981).

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