Martelo PDF
Martelo PDF
Martelo PDF
RESISTNCIA DA POESIA/
RESISTNCIA NA POESIA1
R
egressemos a 1960, para recordar um acontecimento literrio pleno de sentido.
Nesse ano, Carlos de Oliveira, j ento reconhecido como um dos mais
notveis escritores portugueses e um dos mais consequentes protagonistas do
Neo-realismo literrio, publica uma recolha de poemas intitulada Cantata. O livro viria
a causar indisfarvel desconforto entre os neo-realistas, habituados de h muito ao
empenhamento do autor e ao modo como denunciara a opresso fascista e defendera os
desapossados da terra, tanto na poesia como no romance. E enquanto pela voz de Joo
Gaspar Simes a crtica mais conservadora saudava o modo como Carlos de Oliveira
finalmente resgatava a sua obra do que a comprometia e maculava2, os
compagnons de route do escritor interrogavam-se sobre o que lhes parecia
surpreendente e desviante nos poemas de Cantata.
1
Este ensaio foi elaborado no mbito do Projecto Interidentidades do Instituto de Literatura Comparada
Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Unidade I & D financiada pela
Fundao para a Cincia e a Tecnologia, integrada no Programa Operacional Cincia e Inovao 2010
(POCI 2010), Quadro Comunitrio de Apoio III (POCI 2010-SFA-18-500). Foi lida uma verso
abreviada deste texto no Symposium Poetry and Resistance, organizado pelo Department of Portuguese
and Brazilian Studies, em colaborao com a Rede Internacioanl LyraCompoetics, Brown University, 7-8
de Outubro de 2011.
2
Reproduzo mais extensamente o comentrio de Gaspar Simes: Humano nas suas emoes, nem
sempre Carlos de Oliveira fora puro nas suas aspiraes poesia. O neo-realismo implcito nalguns dos
seus versos, um neo-realismo de confessado propsito o caso de Descida aos Infernos , comprometia
por vezes, a beleza da obra. Com esta Cantata resgata-se do que porventura maculava esses versos
anteriores. A imagem da estrela do mar fossilizada na pedra exprime com sublimidade a condio da
poesia de Carlos de Oliveira, que ficar, na verdade, nos quadros neo-realistas como o aceno petrificado
de uma das mais belas inspiraes da moderna poesia portuguesa (Simes, s. d.: 368).
Tropelas. Revista de Teora de la Literatura y Literatura Comparada, 18 (2012) 37
Resistncia da poesa / Resistncia na poesia
De uma limpidez formal notvel, rarefeitos e concisos, esses poemas eram, sem
dvida, diferentes de algumas das mais emblemticas composies neo-realistas
assinadas por Carlos de Oliveira. Contrariamente ao que acontecia com poemas como
Xcara das bruxas danando (Me Pobre, 1945) ou Descida aos Infernos (1949), no
era fcil detectar em Cantata o estilo que fora comum na poesia empenhada do Neo-
realismo: nem acessibilidade, nem comunicabilidade, nem reelaborao de formas
populares, nem dimenso perlocutiva, nem tom futurizante...3 A ponto de, em 1963, este
livro ter vindo a estar no centro de uma polmica entre o neo-realista Jos Fernandes
Fafe e o ento jovem poeta Gasto Cruz. Em sucessivos nmeros do Dirio de Lisboa,
os dois polemistas iam retomando uma discusso centrada na amplitude a dar uma
eventual definio de Neo-realismo, num momento em que este movimento apresentava
j inequvocos sinais de dissoluo. Vrias vezes debatido ao longo da polmica, o livro
Cantata surgia como uma obra na qual no era fcil identificar sinais da estratgia
intervencionista desenvolvida pelos poetas neo-realistas nas dcadas de 40 e 50, embora
o seu autor nunca tivesse posto em causa a funo de resistncia social e poltica que
sempre atribura tanto ao romance quanto poesia. Cantata ressuma desencanto,
tristeza, cansao... No encontramos a a participao no combate pela dignidade e pelas
condies da felicidade humana, reconhecia Jos Fernandes Fafe, visivelmente a
contragosto. Mas justificava:
Suponho que Carlos de Oliveira tem conscincia disso. Tanto que nunca publicou
Cantata separadamente. (A plaquette com este ttulo resume-se a pequena tiragem,
depressa esgotada nas ofertas do escritor aos amigos). Praticamente, Cantata s foi
publicada h pouco, no volume das Poesias. Talvez Carlos de Oliveira tenha querido que
Me Pobre, Colheita Perdida, Terra de Harmonia projectem na tristeza de Cantata
um pouco dos seus cantos de liberdade (Fafe, 1963: 19).
3
A ttulo de exemplo, recordo o poema Nvoa, de Cantata: A morte / em flor / dos camponeses / to
chegados terra / que so folhas / e ervas de nada / passa no vento / e eu julgo ouvir / ao longe / nos
recessos da nvoa / os animais feridos / do Incio (Oliveira, 2003: 164).
4
Sobre este poema e o modo como circulou de forma a iludir a censura, veja-se Martelo (1998: 208 e ss).
38 Tropelas. Revista de Teora de la Literatura y Literatura Comparada, 18 (2012)
Rosa Maria Martelo
desenvolvido uma ideia diferente acerca da poesia. E essa ideia estava muito mais perto
da perspectiva defendida por Gasto Cruz no contexto da polmica que estou a citar,
quando este acentuava a necessidade de transfigurar a realidade, de lutar contra o
imobilismo, contra a tola venerao do que est, e valorizava o papel da metfora
como elemento bsico do realismo no campo da poesia (Cruz, 1963: 24).
A cincia perdeu, provavelmente por muitos tempos a vir, a sua pretenso a produto
exacto e absoluto de aferio das coisas, do mesmo passo que a poesia (re)comea a
exercer-se na individuao-despersonalizao do enunciado. Importa no ler
despersonalizao como ela parece que aparece na inveno fernandiana: levando a uma
fico de outras-a-mesma-personalidade com cada uma delas afirmando personalidades;
mas sim como real destruio do conceito e da prtica da personalidade, e dos seus
referentes, para emerso do indivduo ausente de nome prprio, de tempo e de lugar []
(Cesariny in Pascoaes, 1987: 30).
O poema pode enrolar-se em bola, mas f-lo ainda para voltar os seus signos para
agudos para fora. Ele pode, sem dvida, reflectir a lngua ou dizer a poesia mas nunca se
refere a si mesmo, nunca se move por si []. A sua ocorrncia irrompe sempre, ou desvia,
o saber absoluto, o ser junto de si na autotelia. Este demnio do corao jamais se
congrega, antes se perde (delrio ou mania), expe-se sorte, preferiria deixar-se
despedaar por aquilo que sobre ele avana (Derrida, 2003: 10).
dvida herdeiro da injuno rimbaldiana la vraie vie est absente (Rimbaud, 1999:
424), que Godard refez em Pierrot le Fou (1965) como la vraie vie est ailleurs,
afirmao na qual a palavra ailleurs mais deslocaliza do que localiza, exprimindo
acima de tudo recusa e expectativa. Resistncia seria, ento, para voltar a Celan, o fazer
atravs da fractura, em contra-faco (1996: 67). E uso intencionalmente o verbo
fazer, em lugar de dizer.
lngua (Helder, 2009: 562 e 572), e nesse sentido que faz a apologia do erro em
vrios fragmentos de Photomaton & Vox. Texto maldito, texto mal dito, seria, ento,
para regressar uma vez mais a Deleuze, aquele que consegue [f]azer gritar, fazer
gaguejar, balbuciar, murmurar a lngua nela mesma (Deleuze, 2000: 149). Nos anos
60, a importncia do silncio (em Eugnio de Andrade, por exemplo), a eroso do verso
(em Carlos de Oliveira), a fragmentao irregular da sintaxe (em Gasto Cruz e Luiza
Neto Jorge), a valorizao da metfora e da imagem potica na generalidade da poesia
ento publicada, a experimentao formal assumida pela generalidade dos poetas, todos
esses traos de escrita se prendem com esta ideia (moderna) de poesia. E se reno nestes
exemplos poetas de geraes diferentes porque a diferena geracional no lhes
impedia obviamente a contemporaneidade. Nenhum destes poetas poria em causa a
equao rimbaldiana segundo a qual la vraie vie est absente, num ailleurs que
nenhuma ideologia ou projecto poltico poderia circunscrever e apontar sem lhe coarctar
liberdade e potncia de concretizao. Nenhum destes poetas poria em causa a
possibilidade de a poesia apontar para esse lugar, ainda que o apontasse como falta ou
em falha. Lugar , de resto, o ttulo de um livro publicado por Herberto Helder em
1962, no qual encontramos estes versos: s vezes penso: o lugar tremendo. / sobre
os mortos, alm da linguagem (Helder 2009: 152). So versos que podemos entender
melhor luz de uma passagem de Photomaton & Vox:
Essa forma, sempre pstuma, surpreendente at para as mos que lhe do origem,
, evidentemente, o poema, compresso da linguagem que se pretende expanso de
mundos. No entanto, a euforia ontolgica e gnoseolgica presente nas palavras de
Herberto Helder reflecte um de dois caminhos possveis. Quando Benjamin dizia que
na pessoa do flneur, a inteligncia vai ao mercado, sublinhando que, embora na
suposio de contemplar de fora o espectculo, o que ela efectivamente procura j um
comprador, estava a indicar um ponto de viragem a partir do qual a poesia no poderia
seno ver-se no prprio seio de um processo de mercantilizao (das artes, da cultura)
ao qual tentar resistir (cf. Benjamin, 2000: 59). desse ponto de viragem que nasce a
modernidade ps-baudelairiana, com tudo quanto a afasta da positividade do conceito
de poesia veiculado pelos romnticos (pensado sobretudo do ponto de vista de uma
potica da produo). E se um dos caminhos ento abertos conduz circunscrio do
potico matria poemtica como espao de resistncia j centrado na textualidade e
nos seus efeitos, bem como projeco da autonomia do esttico que to difcil far o
Tropelas. Revista de Teora de la Literatura y Literatura Comparada, 18 (2012) 43
Resistncia da poesa / Resistncia na poesia
Depois dos anos 70, poetas como Joo Miguel Fernandes Jorge, ou, j no final do
sculo XX, Manuel de Freitas e Jos Miguel Silva iro desvalorizar explicitamente a
metfora, porque [] [u]ma metfora no leva a nenhum lado (Jorge, 1988: 40), ou
porque se repudia a sua baba quente e desajustada (Freitas, 2002: 42). Em seu lugar,
estes autores vo preferir valorizar a alegoria, entendida, em sentido benjaminiano,
como um modo de expresso vocacionado para substituir a epifania pela aluso a uma
irredimvel falta, isto , postergando a verdadeira vida para um ailleurs no localizvel
no devir discursivo do poema. Paralelamente, importar verificar que, nas ltimas
dcadas, em lugar da imagem potica e da afirmao do seu papel epifnico, vamos
encontrar um acentuado incremento do recurso cfrase, que permite dialogar com
outra ideia de imagem, a das artes visuais e tambm genericamente da comunicao
visual.
a quanto se faz sem razo ou vontade prprias (Martins, 2011: 25). Trata-se de uma
observao rigorosamente biogrfica, que remete para um bar lisboeta, no qual a poesia
est permanentemente presente, como o leitor facilmente confirmar, se quiser. Por isso,
quando lemos num outro texto do mesmo livro, que Oposio, Resistncia e
Libertao parecem-me, pois, as trs palavras fundamentais quando o que est em jogo
a felicidade e a infelicidade (9), percebemos talvez melhor que Miguel Martins
recorra ao registo autobiogrfico e inclua este texto num livro cujo registo se situa
algures entre o poema em prosa e a meditao intimista de perfil autobiogrfico.
Referncias bibliogrficas
ADORNO, Theodor (1984): Engagement (1962), em Notes sur la littrature.
Traduo de Sibylle Muller. Paris, Flammarion.
ALEXANDRE, Antnio Franco (1996): Poemas. Lisboa, Assrio & Alvim.
(2001): Uma Fbula. Lisboa, Assrio & Alvim.
46 Tropelas. Revista de Teora de la Literatura y Literatura Comparada, 18 (2012)
Rosa Maria Martelo
BENJAMIN, Walter (2000): Paris, capitale do XIXe sicle, em uvres III, Paris,
Gallimard/Folio.
CASAS, Arturo (2010): Antagonism and subjectification in the poem of resistance,
Cosmos and History: The Journal of Natural and Social Philosophy, vol. 6, 2, pp.
71-81, http://www.cosmosandhistory.org/index.php/journal/article/viewFile/202/311
(ltima consulta, 23-11-2011).
CELAN, Paul (1996): Arte Potica O Meridiano e outros Textos. Organizao,
posfcio e notas de Joo Barrento. Lisboa, Cotovia.
CRUZ, Gasto (1963): Alguns problemas do Realismo, Dirio de Lisboa,
Suplemento Vida Literria e Artstica, 27 de Junho, pp. 17 e 24.
DELEUZE, Gilles (2000): Crtica e Clnica. Trad. de Pedro Eloy Duarte. Lisboa,
Edies Sculo XXI.
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire [entrevistadora] (1988): R comme rsistance,
LAbcdaire. Realizao de Pierre-Andr Boutang, em 1988, DVD ditions
Montparnasse.
FAFE, Jos Fernandes (1963): Resposta a Gasto Cruz, Dirio de Lisboa,
Suplemento Vida Literria e Artstica , 11 de Julho, pp.17 e 19.
FREITAS, Manuel de (2002): Game Over. Lisboa, & etc.
GRBNER, Cornelia e WOOD, David M. J. (2010): Introduction: The Poetics of
Resistance, Cosmos and History: The Journal of Natural and Social Philosophy,
6/2, pp. 2-19, http://www.cosmosandhistory.org/index.php/journal/article/viewFile/
208/307 (ltima consulta, 23-11-2011).
GOODMAN, Nelson (1990): Langages de lArt [1968], Nmes, Editions Jacqueline
Chambon.
HELDER, Herberto (2006): Photomaton & Vox. Lisboa, Assrio & Alvim, 4 ed.
(2009): Ofcio Cantante. Lisboa, Assrio & Alvim.
JORGE, Joo Miguel Fernandes (1988): Vinte e Nove Poemas (1978), em Obra Potica
III. Lisboa, Presena, 2 ed.
LOPES, Adlia (2009): Dobra. Lisboa, Assrio & Alvim.
MARTELO, Rosa Maria (1998): Carlos de Oliveira e a Referncia em Poesia. Porto,
Campo das Letras.
MARTINS, Miguel (2011): Lrias. Lisboa, Averno.
SIMES, Joo Gaspar (s. d.): Carlos de Oliveira II. Cantata (12-2-1961), em Crtica
II Poetas contemporneos (1938-1961). Lisboa, Delfos.
OLIVEIRA, Carlos (1992): O Aprendiz de Feiticeiro (1971), em Obras. Lisboa,
Caminho.
(2003): Trabalho Potico (1976). Lisboa, Assrio & Alvim.
Tropelas. Revista de Teora de la Literatura y Literatura Comparada, 18 (2012) 47
Resistncia da poesa / Resistncia na poesia