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Manual de Abordagem - Final 27-02-2014

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MANUAL DE ABORDAGEM DE

DEPENDNCIAS QUMICAS

Organizao: Frederico Duarte Garcia

Assisitncia editorial: Alessandra Assumpo

Reviso: Natlia Figueiredo

Imagem da capa: Thi Rohrmann, Pedra, 70x50cm, 2013

Design editorial: Fernanda Moraes e Jos Arnaldo Mendes | UTOPIKA EDITORIAL

Garcia, Frederico Duarte (Organizador)


Manual de abordagem de dependncias qumicas / Frederico
Duarte Garcia.
Belo Horizonte. Utopika Editorial, 2014.

384p.
ISBN 9788567783000

CDU 610

Endereo para contato:


Centro Regional de Referncia em Drogas da UFMG CRR-UFMG
Avenida Professor Alfredo Balena, 190/ Sala 235
CEP 30130-100 Belo Horizonte MG Brasil
Telefone (31)3409-9785/3409-9786
E-mail: crrdrogas.ufmg@gmail.com / sam@medicina.ufmg.br
SUMRIO

Sobre os autores
p.7

Prefcio
p.15

Parte I. Conceitualizao, epidemiologia e legislao

Captulo 1. Conceito de drogas e seus padres de uso


Frederico Garcia | Nina Ramalho Alkmin
p.19

Captulo 2. Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo


Frederico Garcia | Lucas Barroso
p.33

Captulo 3. Bases para uma poltica pblica sobre lcool,


tabaco e outras drogas baseada em evidncias
Valdir Ribeiro Campos
p.47

Captulo 4. Polticas pblicas e a assistncia integral


do paciente com dependncia qumica
Daniela Conceio dos Santos
p.59

Captulo 5. Aspectos do Estatuto da Criana e do Adolescente e o uso de drogas


Renato Csar Cardoso | Luiz Filipe Arajo
p.67

Captulo 6. O papel conselho tutelar na abordagem da


criana e adolescente usurios de drogas
Renato Csar Cardoso | Luiz Filipe Arajo
p.77
Parte II. Aspectos clnicos dos transtornos do uso de drogas

Captulo 7. Efeitos somticos e alteraes clnicas do lcool, tabaco e da maconha


Luciana Diniz Silva | Tatiana Bering | Marta Paula Pereira Coelho
Tamyres Tania Martins Marques | Naiara Cristina de Oliveira Souza
p.91

Captulo 8. Alteraes clnicas caractersticas do uso de crack


Luciana Diniz Silva | Kiara Gonalves Dias Diniz | Daniel Gonalves Dias Diniz
Lucas de Freitas Virglio
p.109

Captulo 9. Adolescncia: desenvolvimento normal e associada ao uso de drogas


Maila de Castro L. Neves | Marina de Souza Maciel
p.121

Parte III. Abordagem farmacolgica dos transtornos do uso de drogas

Captulo 10. Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de lcool


Valdir Ribeiro Campos
p.135

Captulo 11. Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack


Thiago Gatti Pianca | Diego Barreto Rebouas | Guilherme Luis Menegon
Felix Henrique Paim Kessler
p.151

Captulo 12. Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso da maconha


Silas de Oliveira Tavares
p.179

Captulo 13. Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de tabaco


Rodolfo Braga Ladeira | Patrcia Maria da Silva Roggi
p.201
Parte IV. Ateno integral e abordagem psicossocial
dos transtornos de substncia

Captulo 14. Abordagem integral do paciente com dependncia qumica:


em vista da construo de um modelo clnico
Frederico Garcia
p.217

Captulo 15. A hospitalizao do paciente com dependncia qumica:


critrios clnicos e modalidades de internao para a alta de usurios de drogas:
internao voluntria, involuntria e compulsria
Frederico Garcia
p.235

Captulo 16. Aconselhamento motivacional em usurios de drogas:


conceito, princpios, estratgias e aplicaes
Lvia Pires Guimares | Neliana Buzi Figlie
p.247

Captulo 17. Terapia cognitivo comportamental na abordagem do


transtornos de uso de tabaco
Patrcia Maria da Silva Roggi | Mara Ferreira Nogueira da Gama
Raika Lidiane Marques Rodrigues | Isadora Oliveira Wittickind
Fernando Silva Neves | Frederico Garcia
p.255

Captulo 18. Abordagem teraputica dos familiares do usurio de drogas


Ana Paula Ribeiro | Orestes Diniz | Fernanda Toledo
p.269

Captulo 19. Avaliao neuropsicolgica do usurio de drogas


Frederico Garcia | Alessandra Assumpo | Ana Paula Ribeiro Lafaiete Moreira
p.279

Captulo 20. A insero do enfermeiro na abordagem do dependente qumico


Amanda Mrcia dos Santos Reinaldo
p.295
Captulo 21. Avaliao das condies sociais do usurio de drogas:
limitaes, potencialidades, interesses e expectativas
em relao sua reinsero social
Moiss de Andrade Jnior
p.307

Captulo 22. Reinsero social em usurios de drogas:


conceitos, princpios, estratgias e aplicaes
Alessandra F. A. Assumpo | Ana Ceclia Alves Cardoso | Monaliza ngela Rocha
Smara Araceli Faria Arajo | Frederico Garcia
p.325

Captulo 23. Gerenciamento de casos em usurios de drogas:


conceitos, princpios, estratgias e aplicaes
Alessandra F. Almeida Assumpo | Mara Glria de Freitas Cardoso
Andr Augusto Corra de Freitas | Frederico Garcia
p.337

Captulo 24. Reduo de danos no Brasil: desafios e perspectivas


Lvia Guimares Pires | Moiss de Andrade Jnior
p.349

Captulo 25. Rede de Ateno ao dependente qumico:


dispositivos de sade e de assistncia social
Alessandra F. Almeida Assumpo | Nina Alkmim | Lucas Barroso
Marinna Garcia Barbosa de Figueiredo | Amanda Machado | Frederico Garcia
p.363
Sobre o Organizador:
Frederico Garcia professor adjunto do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de
Medicina da UFMG. Tem doutorado em Biologia Celular e Molecular obtido na Universit de
Rouen, na Frana e ps-doutorado na mesma instituio. Durante sua estada na Frana foi
Chefe de Clnica na Universidade de Rouen e no Centro Hospitalar Universitrio de Rouen.
Obteve o ttulo de especialista em psiquiatria pela Associao Brasileira de Psiquiatria aps
concluir sua residncia no Hospital das Clnicas da UFMG. Obteve o Attestation de Formation
Spcialise da Universidade de Strasburgo. Recebeu o prmio de pesquisa da World Federa-
tion of Societies of Biological Psychiatry em 2013.

Sobre os autores:
Alessandra F. Almeida Assumpo: Mestranda no Programa de Ps-Graduao em
Medicina Molecular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Psico-
logia pela UFMG (2012) e graduada em Servio Social pela Universidade Federal do Esprito
Santo (2005). preceptora em Neuropsicologia Clnica no Ambulatrio de Dependncias
Qumicas e comportamentais do Hospital das Clnicas/UFMG e integrante do Centro Regional
de Referncia em Drogas da UFMG.

Amanda Machado: Graduanda em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais.


Aluna de iniciao cientfica do Centro Regional de Referncia em Drogas da UFMG.

Amanda Mrcia dos Santos Reinaldo: Doutora em Enfermagem Psiquitrica. Espe-


cialista em Pesquisa para Estudo do Fenmeno das Drogas na Amrica Latina- CICAD/OEA.
Docente da Escola de Enfermagem da UFMG. Coordenadora do CRR/UFMG/ Escola de En-
fermagem. Lder do Grupo de Pesquisa Sade Mental lcool e outras Drogas- Diretrio de
Grupos do CNPq.

Ana Ceclia Alves Cardoso: Graduanda em Medicina pela Universidade Federal de Minas Ge-
rais. Possui experincia nas reas de neurocincias e psiquiatria, atuando principalmente nos
seguintes temas: cognio, esquizofrenia, neuropsicologia e dependncia qumica.

Ana Paula Ribeiro: Psicloga pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012). Espe-
cialista em Neuropsicologia pela Faculdade de Medicina de Minas Gerais (2013). Integrante
do Centro Regional de Referncia em drogas (CRR - UFMG).

Andr Augusto Corra de Freitas: Graduando do curso Medicina pela Universidade


Federal de Minas Gerais. Tem experincia na rea de Psiquiatria, com nfase nos seguintes
temas: esquizofrenia, cognio, qualidade de vida, dependncia qumica.

7
Daniel Gonalves Dias Diniz: Graduando do curso Medicina pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Aluno de Iniciao Cientfica do Ambulatrio de Hepatites Virais do Instituto
Alfa - HC - UFMG. Monitor do curso a distncia de Eletrocardiografia - CETES - UFMG.

Daniela Conceio dos Santos: Advogada, coordenadora do Centro POP, professora


de Legislao Aplicada e Participante da Equipe Tcnica de Elaborao do Projeto Crack
Possvel Vencer do Municpio de Contagem e Colaboradora do CRR.

Diego Barreto Rebouas: mdico psiquiatra

Felix Henrique Paim Kessler: Possui graduao em Medicina pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (2005). Especialista em Psiquiatria da Infncia e Adolescncia pela
UFRGS (2011), atuando principalmente nos seguintes temas: genes candidatos, transtorno
de dficit de ateno e hiperatividade, dependncia qumica e crianas e adolescentes. M-
dico Contratado do Hospital de Clnicas de Porto Alegre, atua no Servio de Psiquiatria da
Infncia e Adolescncia, atendendo crianas e adolescentes com problemas relacionados
ao uso de substncias psicoativas na Unidade lvaro Alvim.

Fernanda Toledo: Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.


Estagiria em projeto de extenso do CRR no Hospital das Clnicas (2013) - UFMG.

Fernando Silva Neves: Possui graduao em Medicina pela Universidade Federal de


Minas Gerais (1997), residncia em psiquiatria pelo IPSEMG, mestrado em Biologia Celular
pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006) e doutorado em Biologia Celular pela Uni-
versidade Federal de Minas Gerais (2008). Atualmente professor adjunto do departamento
de sade mental da faculdade de medicina da UFMG, coordenador do servio de psiquiatria
do Hospital das clnicas da UFMG, coordenador do NTA (Ncleo de transtornos afetivos do
HC/UFMG) e orientador permanente do programa de ps-graduao em neurocincias da
UFMG.

Guilherme Luis Menegon: Mdico psiquiatra

Isadora Oliveira Wittickind: acadmica de psicologia. Bolsista da PROEX.

Kiara Gonalves Dias Diniz: Nutricionista pela Fundao Universidade de Itana


(2011). Mestranda em Cincias Aplicadas Sade do Adulto, rea de concentrao em
Cincias Aplicadas ao Aparelho Digestivo, pela Faculdade de Medicina da UFMG. Atualmente
participa do Grupo de Pesquisa em Hepatites Virais Crnicas do Instituto Alfa de Gastroen-

8
terologia do Hospital das Clnicas da UFMG, do Grupo de Pesquisa em Transplante Heptico
do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clnicas da UFMG e do Grupo de Pes-
quisas do Ambulatrio de Dependncia Qumica da Faculdade de Medicina - UFMG.

Lafaiete Moreira: Psiclogo pela Universidade Federal de Minas Geriais (2010). Mestre
pelo Programa de Ps Graduao em Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da UFMG
(2013). Colaborador do Laboratrio de Investigaes Neuropsicolgicas do Instituto Nacional
de Cincias e Tecnologia em Medicina Molecular da UFMG. Neuropsiclogo do Instituto
Jenny de Andrade Faria de Ateno Sade do Idoso. Desenvolve trabalhos nas reas de
Neuropsicologia do envelhecimento, Sintomas Comportamentais e Psicolgicos das Demn-
cias e Neuropsicologia das Dependncias Qumicas.

Lvia Pires Guimares: Psicloga pela FUMEC, Especialista em Criminologia pela PUC-
MINAS / ACADEPOL, Especialista em Gesto Pblica em Organizaes de Sade pela UFJF,
Especialista em Dependncia Qumica pela UNIFESP, Mestre em Educao, Cultura e Orga-
nizaes Sociais pela UEMG / FUNEDI.

Lucas Barroso: Graduando em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais


(UFMG). Aluno bolsista de iniciao cientfica pela PRPq/Bolsa para Doutores Recm-Con-
tratados, na rea de psiquiatria, com nfase em dependncia qumica e comportamento ani-
mal.

Lucas de Freitas Virglio: Graduando do curso Medicina pela Universidade Federal de


Minas Gerais. Participa de pesquisas nos seguintes temas: esquizofrenia, qualidade de vida,
cognio e hepatites virais.

Luciana Diniz: Professora Adjunta do Departamento de Clnica Mdica da Faculdade de


Medicina da UFMG. Mdica Assistente do Ambulatrio de Hepatites Virais do Instituto Alfa
- HC UFMG. Membro do Grupo de pesquisas do Ambulatrio de Dependncia Qumica da
Faculdade de Medicina - UFMG.

Luiz Filipe Arajo: Professor Assistente de Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito
e Prtica Jurdica da Universidade Federal de Viosa. Coordenador do Curso de Direito na
mesma Universidade. Doutorando em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais (2013). Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2012). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Viosa
(2008).

Maila de Castro L. Neves: Possui graduao em Medicina pela Faculdade de Medicina


da Universidade Federal de Minas Gerais (2003), Residncia Mdica em Psiquiatria pela Fun-

9
dao Hospitalar do Estado de Minas Gerais (2004), Residncia Mdica em Psicoterapia
pela Fundao Hospitalar do Estado de Minas Gerais (2006), Mestrado em Cincias Biol-
gicas: Farmacologia Bioquimica e Molecular pela UFMG (2006), Doutorado em Cincias da
Sade: Medicina Molecular (2008). professora Adjunta de Psiquiatria da Faculdade de
Medicina da UFMG. Atualmente membro da diretoria da Associaao Mineira de Psiquiatria
na Comisso de Educao Continuada. Tem experincia nas reas de Psiquiatria, Intercon-
sulta Psiquitrica, Gentica Molecular e Neuroimagem, atuando principalmente nos seguintes
temas: cognio social, neuroimagem e comportamento suicida.
Mara Ferreira Nogueira da Gama: Psicloga Clnica formada pela UFMG. Colaboradora
do CRR/UFMG.
Mara Glria de Freitas Cardoso: Possui graduao em Psicologia pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2012). Atualmente psicloga (unidade AVE) do HOSPITAL DAS
CLINICAS e pesquisadora voluntria - Laboratrio de Investigaes em Neurocincia
Clnica da UFMG. Tem experincia na rea de Psicologia, com nfase em Neuropsicologia

Marina de Souza Maciel: Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas


Gerais.

Marinna Garcia Barbosa de Figueiredo: Graduanda em Psicologia pela Universidade Fe-


deral de Minas Gerais.

Marta Paula Pereira Coelho: Nutricionista pelo Centro Universitrio Newton Paiva.
Atualmente realizandoatendimento nutricional em consultrio particular e atendimento nu-
tricional voluntrio no Ambulatrio de Dependncia Qumica da Faculdade de Medicina
UFMG e Ambulatrio de Hepatites Virais UFMG.

Moiss de Andrade Jnior: Possui graduao em Psicologia pela UFMG (2005), mes-
trado em Psicologia pela UFMG (2008) e doutorando em Psicologia pela mesma universi-
dade. Possui especializao em Dependncia Qumica pela UNIFESP (2013)

Monaliza ngela Rocha: Possui o ttulo de tcnica em Qumica (COLTEC/UFMG - 2001)


e graduao em Cincias Biolgicas Licenciatura Noturno (UFMG - 2010). Atualmente bol-
sista de apoio tcnico de nvel superior no INCT de Medicina Molecular da UFMG. Cursa o
quarto perodo do curso de Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais, atuando prin-
cipalmente nos seguintes temas: dependncia qumica, artrite reumatide, transplante car-
daco, angiognese e inflamao.

Naiara Cristina de Oliveira Souza: Graduanda da Faculdade de medicina da UFMG.


Monitora bolsista da disciplina Epidemiologia.

10
Neliana Buzi Figlie: Psicloga pela Universidade So Marcos, Especialista em Depen-
dncia Qumica, Mestre em Sade Mental e Doutora em Cincias pela UNIFESP. Professora
e Pesquisadora Snior na UNIAD/INPAD, Orientadora no Curso de Ps-Graduao em Psi-
quiatria na UNIFESP.

Nina Alkmin: Graduanda em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade Ferderal


de Minas Gerais. Aluna bolsista pela FAPEMIG de iniciao cientfica. Experincia na rea
de psiquiatria, com nfase no tema dependncia qumica.

Orestes Diniz: Psiclogo Clnico, Doutor em Psicologia Clinica (PUC-Rio), Mestre em Psi-
cologia Social (UFMG), Especialista em Terapia de Famlia Professor Adjunto IV (UFMG).

Patrcia Maria da Silva Roggi: Psicloga do Ambulatrio de Dependncia Qumica do


Hospital das Clinicas da UFMG. Mestranda do Programa de Ps-graduao em Neurocincias
da UFMG.

Raika Lidiane Marques Rodrigues: Graduanda de Psicologia da UFMG.

Renato Cardoso: Professor Adjunto, em dedicao exclusiva, na Faculdade de Direito da


Universidade Federal de Minas Gerais, nos cursos de Direito, de Cincias do Estado e no
Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor
em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008) e Mestre em Filo-
sofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2004). Bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais (2001), Bacharel em Relaes Internacionais pela
Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (2001).

Rodolfo Braga Ladeira: Mdico Psiquiatra do Servio Mdico de Urgncia do IPSEMG.


Especialista em Dependncia Qumica pelo Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Mestre
pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Pesquisador Colabora-
dor do Laboratrio de Neurocincias (LIM-27), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clnicas da FMUSP.

Smara Araceli Faria de Arajo: Graduao em Medicina pela Universidade Federal


de Minas Gerais. Tem experincia na rea de Psiquiatria, com nfase em Dependncias Qu-
micas.

Silas de Oliveira Tavares: Mdico psiquiatra. Preceptor do ambulatrio de Dependn-


cias Qumicas do HC/UFMG.

11
Tamyres Tania Martins Marques: Graduanda do curso Medicina pela Universidade
Federal de Minas Gerais.

Tatiana Bering: Doutoranda no Programa de Ps-Graduao Cincias Aplicadas Sade


do Adulto desenvolvendo o projeto no Ambulatrio de Hepatites Virais HC- UFMG. Atual-
mente Professora Temporria no curso de Nutrio da Universidade Federal de Viosa .Nu-
tricionista Mestre em Cincia de Alimentos pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2012), graduao pela Universidade Federal de Viosa (2010).

Thiago Gatti Pianca: Psiquiatra, especialista em psiquiatria da infncia e adolescncia


pela UFRGS. Mdico Contratado do Hospital de Clinicas de Porto Alegre. Doutorando no
Programa de Ps-Graduao em Psiquiatria da UFRGS.

Valdir Ribeiro Campos: Mdico Psiquiatra, especialista em Dependncia Qumica pela


Unidade de Pesquisa em lcool e Outras Drogas/ Instituto Nacional de Polticas Pblicas do
lcool e Outras Drogas- UNIAD/INPAD e Doutor pelo Departamento de Psiquiatria e Psico-
logia Mdica da Universidade Federal de So Paulo- UNIFESP. Membro da Comisso de Con-
trole do Tabagismo, Alcoolismo e uso de Outras Drogas da Associao Mdica de Minas
Gerais- CONTAD/AMMG.

12
PREFCIO

Frederico Garcia

com grande satisfao que apresento o Manual de Abordagem


de Dependncias Qumicas. Este livro fruto do trabalho coletivo de todos
os tutores e colaboradores dos cursos de formao do Centro Regional de
Referncia em Drogas da UFMG no ano de 2013. Ele compe uma das ativi-
dades de perenizao do conhecimento do Projeto de Implantao do
CRR/UFMG e esperamos que ele seja til na multiplicao do conhecimento
sobre este tema.

Partimos de uma viso bio-psico-social da questo do uso de dro-


gas. Esta viso demanda uma abordagem multidisciplinar, que leve em
conta os aspectos multifatoriais do tema. por isto que o livro aborda
apectos clnicos, psicoteraputicos, sociais e legislativos.

Cada um dos captulos deste livro corresponde a um ou mais


temas abordados em sala de aula e foram redigidos para serem o mais
abrangente e didticos possvel. Esperando que este manual seja lido por
profissionais de reas diferentes (sade, assistncia social, educao,
defesa civil, jus-tia...) optamos, muitas vezes, por simplificar a linguagem e
alguns conceitos para torn-los mais acessveis. Nos pontos, ou termos,
que nos pareceram pouco claros inserimos pequenos bales na lateral das
bordas para que nossos leitores possam se referenciar. Outras informaes
sobre os temas podero ser obtidas no site do CRR/UFMG
(crr.medicina.ufmg.br).

15
Espero que este livro possa servir como referncia para todos os
profissionais envolvidos na abordagem do usurio de drogas e seus
familiares.

Gostaria de agradecer a todos os autores e colaboradores que


participaram e acreditaram neste projeto. Agradeo tambm a toda a
equipe do Centro Regional de Referncia em Drogas da UFMG (CRR-UFMG)
que pelo excelente trabalho que desenve tornou possvel no apenas a pu-
blicao deste livro, mas, tambm os projetos que propusemos no ano de
2013. Agradeo a Secretaria Nacional de Politica sobre Drogas SENAD,
nosso financiador e fomentador de projetos inovadores nesta rea. Ao Pro-
fessor Humberto Correa, meu muito obrigado por ter sempre incentivado e
apoiado projetos cientficos e de extenso no Departamento de Sade
Mental e na Faculdade de Medicina. Devo ainda um agradecimento
particular a Alessandra Assumpo que ajudou com toda a logstica, na
construo e formatao deste livro.

Boa leitura!

16
1o

1
PARTE 1
Conceitualizao, epidemiologia
e legislao
Captulo 1

Conceito de drogas e seus padres de uso


Frederico Garcia
Nina Ramalho Alkmin
Conceito de drogas

Droga definida, segundo a Organizao Droga: substncia no pro-


duzida pelo organismo que tem
Mundial de Sade, como qualquer substncia no propriedades de atuar sobre
produzida pelo organismo que tem propriedades de um ou mais de seus sistemas,
causando alteraes em seu
atuar sobre um ou mais de seus sistemas, causando funcionamento.

alteraes em seu funcionamento. Algumas dessas


substncias produzem aes benficas ao organismo e
so usadas como medicamentos no tratamento de
doenas e outras substncias, produzem efeitos nocivos,
txicos ou venenosos causando malefcios a sade.

As drogas psicoativas

As drogas que interferem no psiquismo so


chamadas psicotrpicas ou psicofrmacos. Estas
substncia psicoativas so basicamente de trs tipos: 1.
Inibidoras, como os anestsicos, analgsicos opiides,
ansiolticos, benzodiazepnicos e antipsicticos; 2.
Ativadoras do psiquismo, que agem aumentando a
viglia e reduzindo o apetite o sono e a fadiga, como a
cafena, cocana e anfetaminas e ainda os antidepressivos
que normalizam o humor sem elevar a viglia; 3.
Pertubadoras do psiquismo, atuam causando delrios,
alucinaes e outras distores perceptivas, dentre elas
temos o LSD, os chs e a psilocibina. (Tabela 1)
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Alguns psicofrmacos depressores e estimulantes so


utilizados como drogas de abuso e podem causar dependncia
qumica: anfetaminas, cocana, nicotina, lcool, benzodizepnicos e
solventes inorgnicos.

Tabela 1
Tipos de drogas segundo a classificao de efeito no
sistema nervoso central. Descrio do efeito de cada grupo
Inibidoras Ativadoras Alucingenas
(Psicolpticas) (Psicoanalpticas) (Psicodislepticas)
lcool Cocana/Crack LSD

Benzodiazepnicos Cafena Cogumelos

Maconha Tabaco Ecstasy

Barbitricos Anfetaminas Maconha


Solventes ou GHB Ch-Santo-Daime
Inalantes
Quetamina Modafinila Ch-de-Lrio

Opiides Ch-de-Trombeta

Cactos
Causam diminuio global da So as drogas que causam As drogas perturbadoras
atividade do SNC. H uma um aumento da atividade causam fenmenos
tendncia reduo da cerebral, sobretudo em psquicos anormais como
atividade motora, da certos grupos de neurnios. os delrios e as alucinaes.
reatividade dor e da As drogas estimulantes
ansiedade. comum um induzem um estado de
alerta exagerado, causando
efeito euforizante no incio
diminuio do sono e do
do uso e posteriormente apetite, sensao de energia
de sonolncia e menor fadiga; Uma
acelerao do pensamento
e da fala; taquicardia,
acelerao do pulso e
aumento da presso arterial

20
Conceito de drogas e seus padres de uso

Os efeitos descritos acima resultam da ao das drogas


psicotrpicas sob o sistema de gratificao e recompensa do
crebro. O uso repetido da droga causa a fixao de memrias de
longo prazo que podem levar a apario da fissura e diminuem o
potencial inibitrio do crebro, causando a perda do controle do
uso da droga.

Drogas lcitas e ilcitas

Segundo a lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Brasil,


2006), em seu artigo 1o, consideram-se como drogas as substncias
ou os produtos capazes de causar dependncia, assim como espe-
cificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodica-
mente pelo Poder Executivo da Unio. O paragrafo 2o dessa lei
determina que Ficam proibidas, em todo o territrio nacional, as
drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a explorao de
vegetais e substratos dos quais possam ser extradas ou produzidas
drogas, ressalvada a hiptese de autorizao legal ou regulamentar,
bem como o que estabelece a Conveno de Viena, das Naes
Unidas, sobre Substncias Psicotrpicas, de 1971, a respeito de
plantas de uso estritamente ritualstico-religioso.
Drogas lcitas so aquelas que podem ser comer- Droga lcita: substncia que
causa efeitos psicoativos que
cializadas de forma legal, podendo ser submetidas a algum podem ser comercializada de
forma legal, podendo ser sub-
tipo de restrio ao uso. Exemplos de restrio ao uso so: metida a algum tipo de re-
o lcool e o tabaco, que no podem ser vendidos a menores strio ao uso.
e alguns medicamentos que no podem ser vendidos sem
receitas mdicas especiais.
Drogas ilcitas so aquelas cuja produo, fabrica- Drogas Ilcitas: so aquelas
cuja produo, fabricao,
o, aquisio, comrcio, fornecimento, armazenagem, so aquisio, comrcio, forneci-
mento, armazenagem so
proibidas por lei. As drogas ilcitas so enumeradas nas Lis- proibidas por lei e esto lis-
tas de Substncias Sujeitas a Controle Especial da Agncia tadas na Lista de Substncias
Sujeitas a Controle Especial da
Nacional de Vigilncia Sanitria ANVISA, conforme a ANVISA.
portaria nmero 433 de 12 de maio de 1998.

21
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Uso de drogas e dependncia qumica

Um ponto inicial para a compreenso da dependncia


qumica a diferenciao entre o transtorno de uso de drogas e
a dependncia qumica. A falta de distino entre os dois termos
fonte de confuso e mal entendidos entre profissionais da sade
e pacientes.
Intoxicao por droga:
Estado consequente ao uso de
O uso de uma droga pode ocorrer fora do con-
uma substncia psicoativa e texto de uma dependncia qumica. Nem todo usurio
compreendendo perturbaes
da conscincia, das faculdades de drogas dependente de uma droga. O uso de drogas
cognitivas, da percepo, do
afeto ou do comportamento, ou pode ser feito voluntariamente, buscando-se os efeitos
de outras funes e respostas
psicofisiolgicas. As pertur-
psicoativos da droga. O usurio consome a droga para
baes esto na relao direta obter os efeitos psicoativos da intoxicao pela droga, tal
dos efeitos farmacolgicos agu-
dos da substncia consumida, e como prazer, sensao de ebriedade, relaxamento ou al-
desaparecem com o tempo, com
cura completa, salvo nos casos
terao do senso percepo. Enquanto no est sob o
onde surgiram leses orgnicas
ou outras complicaes.
efeito da droga, o usurio tem a sua capacidade decisional
Capacidade decisional: preservada e consegue escolher entre usar ou interrom-
capacidade de tomar decises
a partir da anlise dos fatos
per o uso da droga a qualquer momento.
sem ser influenciado por fa-
tores externos (ex.Drogas psi-
A dependncia qumica (Tabela 2) um transtorno
cotrpicas) ou internos (ex. caracterizado pelo uso descontrolado da droga, marcado
Doenas mentais)
Sndrome de Dependncia
por uma alternncia entre alvio durante o uso da droga
Qumica: Conjunto de fen- e grande sofrimento na ausncia ou na perspectiva de im-
menos comportamentais, cog-
nitivos e fisiolgicos que se possibilidade do uso de uma substncia.
desenvolvem aps repetido
consumo de uma droga psicoa-
tiva, tipicamente associado ao
desejo poderoso de tomar a
droga, dificuldade de contro-
lar o consumo, utilizao per-
sistente apesar das suas
consequncias nefastas, a
uma maior prioridade dada ao
uso da droga em detrimento de
outras atividades e obrigaes,
a um aumento da tolerncia
pela droga e por vezes, a um
estado de abstinncia fsica.

22
Conceito de drogas e seus padres de uso

Tabela 2
Critrios propostos para a caracterizao de um comportamento
de dependncia ou comportamento aditivo. Adaptado de Goodman, 1990

Dependncia caracterizada pela presena de:

A - Repetidos insucessos de resistir impulso de realizar um comportamento especfico.


B - Sentimento de tenso antes de iniciar o comportamento.
C - Sentimento de prazer ou alvio em realizar um comportamento.
D - Pelo menos cinco dos elementos seguintes:
Preocupao constante ligada a um comportamento ou com as suas atividades preparatrias.
Frequncia maior ou durao mais longa de um comportamento que previsto inicialmente.
Perda de tempo significativa com a preparao, realizao ou recuperao dos efeitos de um compor-
tamento.
Esforos repetidos para reduzir ou controlar um comportamento.
Comprometimento das atividades sociais, profissionais ou de lazer em prol do comportamento.
Persistncia do comportamento apesar das consequncias negativas (bio/psicossociais e econmicas)
geradas pelo comportamento.
Tolerncia ao comportamento.
Agitao ou inquietao caso o comportamento no seja realizado.

Classificao categorial dos


transtornos relacionados ao uso de substncias

De acordo com as classificaes categoriais, os transtor-


nos de uso de substncia so classificados de maneira independente
a partir do padro de uso e suas consequncias (Figura 1).

23
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Figura 1
Classificao categorial dos transtornos relacionados ao uso de
substncias. No modelo categorial existia a ideia de que o uso e a
intoxicao por drogas no trariam consequncias negativas ao usurio.
Contudo, tm-se cada vez mais evidncias de que qualquer uso de drogas
est associado a consequncias biolgicas, psicolgicas e sociais.

Uso

Intoxicao aguda

Uso nocivo

Sndrome de dependncia

Consequncias somticas/psquicas/sociais/econmicas

O uso espordico de substncias era considerado


anteriormente conduta de baixo risco, pois acreditava-se que ele
no acarretaria consequncias evidenciveis em termos biolgicos,
psicolgicos ou sociais.
Uso Nocivo ou Abusivo de
drogas: Modo de consumo de
A segunda categoria o uso nocivo ou abusivo de
uma droga que prejudicial uma substncia. Nessa categoria, o uso de uma substncia
sade. As complicaes podem
ser fsicas (por exemplo, he- est associado a consequncias fsicas, mentais e sociais
patite consequente a injees
de droga pela prpria pessoa),
evidentes, mas ainda existe o controle sobre a deciso do
psquicas (por exemplo, epis- uso da droga.
dios depressivos secundrios a
grande consumo de lcool) ou Na terceira categoria, considerada a mais grave,
sociais (por exemplo, dificul-
dades financeiras, conjugais, est a dependncia substncia. Essa caracterizada por
profissionais e problemas com
a justia).
um consumo descontrolado, pela presena da sndrome
de abstinncia e pela coexistncia de complicaes clni-
cas severas.

24
Conceito de drogas e seus padres de uso

A Classificao Internacional de Doenas (CID-10), da


Organizao Mundial de Sade (OMS) (Tabelas 3 e 4), e o Manual
Diagnstico Estatstico de Doenas Mentais (DSM-IV), da Ameri-
can Psychiatric Association (APA), propem o diagnstico catego-
rial dos padres de uso de substncias segundo esses nveis. H uma
diviso diagnstica em ambos os cdigos internacionais, entre in-
toxicao aguda, uso nocivo e dependncia (OMS, 1993) (American
Psychiatric Association, 1994).

Tabela 3
Critrios diagnsticos do CID-10 para uso nocivo (abuso) de substncia

O diagnstico requer um dano real sade fsica e mental do usurio.


Os padres nocivos de uso so, frequentemente, criticados por outras pessoas
e esto associados a consequncias sociais diversas de vrios tipos.
O uso nocivo no deve ser diagnsticado, se a sndrome de dependncia,
um transtorno psictico ou outra forma especfica de transtorno relacionado
ao uso de drogas ou lcool estiver presente.

25
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Tabela 4
Critrios do CID-10 para dependncia de substncias

Presena de trs ou mais dos seguintes sintomas


em qualquer momento durante o ano anterior:
Um desejo forte ou compulsivo para consumir a substncia;
Dificuldades para controlar o comportamento de consumo de substncia

em termos de incio, fim ou nveis de consumo;


Estado de abstinncia fisiolgica, quando o consumo suspenso ou reduzido,
h consumo da mesma substncia (ou outra muito semelhante) com a
inteno de aliviar ou evitar sintomas de abstinncia;
Evidncia de tolerncia, segundo a qual h a necessidade de doses crescentes
da substncia psicoativa para obterem-se os efeitos anteriormente
produzidos com doses inferiores;
Abandono progressivo de outros prazeres ou interesses devido ao consumo
de substncias psicoativas, aumento do tempo empregado em conseguir
consumir a substncia ou recuperar-se dos seus efeitos;
Persistncia no consumo de substncias, apesar de provas evidentes de consequncias
prejudiciais, tais como leses hepticas, causadas por consumo excessivo de lcool,
humor deprimido, consequente de um grande consumo de substncias, ou
perturbao das funes cognitivas relacionadas com a substncia.

Uma rpida anlise dos padres de consumo,


segundo esta escala de gravidade, pode levar
interpretao errnea de que o uso espordico de
substncias no teria consequncias danosas ao
indivduo e que a dependncia, ou terceiro nvel, seria
aquele mais grave e mais danoso ao indivduo. Essa
viso, no entanto, tem sido desconstruda. Hoje se tem
evidncias cientficas de que nenhum padro de
Incuo: que no prejudicial consumo de substncias isento de riscos ou seja incuo.
A intoxicao aguda pelo lcool, por exemplo, pode
causar acidentes de trnsito e suas consequncias so
to graves quanto aquelas presentes em um indivduo
com a sndrome da dependncia j estabelecida.
26
Conceito de drogas e seus padres de uso

Alm disso, o lcool tem uma ao txica para asclulas


hepticas e neurnios. Ainda que as consequncias
tardem a aparecer, qualquer exposio s drogas leva a
modificaes do metabolismo e do funcionamento
celular. Seguindo esta corrente, na quinta edio do DSM V: Lista de critrios clni-
cos para o diagnstico e
Manual Diagnstico e Estatstico de Doenas Mentais (DSM-V), transtornos psiquitricos da
Associao Americana de
(APA 2012), os critrios de dependncia de substncias Psiquiatria (APA). Est em sua
foram revisados. A dicotomia entre os diagnsticos de quinta edio.

abuso e dependncia, presente em sua quarta edio,


deixou de existir, dando lugar avaliao da severidade
do quadro de abuso da substncia. As novas classifica-
es diagnsticas so: dependncia leve, dependncia
moderada e dependncia grave (American Psychiatric
Association, 2013).

A dependncia qumica um transtorno crnico e recidivante


Circuito de Recompensa: Cir-
cuito cerebral envolvido na per-
A dependncia qumica pode ser entendida cepo da sensao de prazer
e recompensa. Faz parte do
como um transtorno psiquitrico resultante das alte- Sistema Lmbico e composto
pela rea tegmentar ventral;
raes causadas pela droga no circuito de recompensa ncleo acumbens; e crtex pr-
(Figura 2), das alteraes neurotxicas persistentes e de frontal. Todas as drogas agem
neste circuito estimulando os
modificaes no processamento de funes cognitivas. neurnios e aumentando a pro-
duo, liberao ou a inibio
da receptao do neurotrans-
missor dopamina. Estes
processos podem resultar no
aumento da dopamina nas
sinapses.
Neurotxica: Ao txica
sobre os neurnios. Trata-se
do efeito negativo de certas
drogas sobre os neurnios po-
dendo causar alteraes qumi-
cas, celulares e at mesmo a
morte neuronal.

27
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Figura 2
A ao das drogas na liberao de dopamina no circuito
de recompensas, via mesocorticolmbica

As bases neurobiolgicas das modificaes comportamentais


em dependncia qumica

A dependncia qumica um transtorno crnico e recidi-


vante caracterizado pela compulso para procurar e consumir a
substncia, a perda de controle em limitar o consumo da
substncia e surgimento sofrimento fsico e emocional quando o
acesso substncia qumica impedido, configurando a sndrome
de abstinncia.
As drogas de abuso atuam no SNC atravs de
mecanismos diferentes, causando uma ampla gama de efeitos. A
partir de diferentes mecanismos, que tem como ponto comum o
aumento da dopamina da via na via mesocorticolmbica (Figura 2)
(West, 2006). Essa via se projeta da rea tegmentar ventral para o

28
Conceito de drogas e seus padres de uso

ncleo accumbens e para o crtex frontal, compondo o chamado sis-


tema de recompensa.
A maioria das drogas de abuso, como o lcool, os opiides
e a nicotina influenciam a concentrao de dopamina no sistema
de recompensa de forma indireta, pelo bloqueio do controle inibi-
trio dos neurnios gabargicos na rea tegmentar ventral. J a co-
cana e as anfetaminas atuam diretamente no ncleo accumbens,
impedindo o processo natural de recaptao da dopamina na fenda
sinptica, aumentando a concentrao desse neurotransmissor no
espao extracelular. Esses dois mecanismos causam um aumento
do nmero de impulsos dopaminrgicos no ncleo accumbens. Essa
alterao bioqumica responsvel pelas sensaes de prazer e eu-
foria sentidas pelo usurio e o reforador positivo para o com-
portamento de autoadministrao da droga (KOOB et al., 1998).
No apenas o prazer gerado pela estimulao
da via dopaminrgica que mantm o estado de depen-
dncia do indivduo. A evitao dos sintomas desagrad- Disforia: sensao ou estado de
veis, como disforia, ansiedade e irritabilidade, mal-estar, ansiedade ou tristeza.
experimentados na abstinncia da droga, uma grande Sndrome de Abstinncia:
Conjunto de sintomas cuja
propulsora da manuteno do uso compulsivo da droga gravidade varivel que ocor-
rem quando da interrupo ab-
(Koob et al., 1998). Os sintomas de abstinncia decorrem soluta ou relativa do uso de
provavelmente de alteraes neurotxicas e persistentes uma substncia psicoativa
consumida de modo prolon-
nos neurnios (WESt, 2006). gado. O incio e a evoluo da
sndrome de abstinncia so
limitadas no tempo e depen-
dem da categoria e da dose da
substncia consumida imedi-
atamente antes da parada ou
da reduo do consumo. A sn-
drome de abstinncia pode se
complicar pela ocorrncia de
convulses.
Uso compulsivo: modo de uti-
lizao da droga que no se
consegue resistir ou conter.

29
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Funes cognitivas: conjunto


dos processos mentais usados
O crtex pr-frontal, integrante do sistema de re-
no pensamento e na percepo compensa, o local de processamento de muitas funes
e, em ltimo caso, na apren-
dizagem. So funes cogniti- cognitivas, como a ateno, a memria de trabalho, a tomada
vas: a percepo, a ateno, a
memria, a linguagem e as de deciso e o autocontrole (ou controle inibitrio). todas
funes executivas. essas funes esto de alguma maneira, comprometidas nos
pacientes com dependncias qumicas. Destaca-se, dentre
Controle inibitrio: habilidade
de controlar ou evitar um com-
essas funes, o controle inibitrio, entendido como a habili-
portamento. dade de controlar ou evitar um comportamento, principal-
mente quando esse no vantajoso ou inadequado.
Pacientes com dependncias qumicas, apesar
dos sinais evidentes e devastadores causados pelos efeitos
da droga, possuem uma reduzida habilidade de inibir o
uso excessivo da substncia. A disfuno de regies es-
pecficas do crtex pr-frontal esto tambm relaciona-
Anosognosia: Distrbio neu-
ropsicolgico que impede o
das ao desenvolvimento da fissura e da anosognosia ou
doente de perceber e adminitr negao/ desconhecimento da prpria dependncia qu-
que tem uma doena, mesmo
que ela seja notria. mica (GOLDStEIN E VOLKOW, 2011).
Alm dos efeitos neurobiolgicos devem-se considerar
tambm os efeitos neurotxicos das drogas. Esses efeitos levam a
modificao de receptores, morte neuronal, alterao de circuitos
e perda de funo cerebral. A perda de funo pode levar a
mudan-as de comportamento e alteraes de longo prazo das
funes executivas do paciente.
Devido s leses cerebrais e alterao de cir-
cuitos cerebrais ocorre o aparecimento de sintomas tais
Fissura: O reflexo de um estado
de motivao orientado para o
quais os da fissura e da perda de controle inibitrio do
consumo de drogas desen- uso da droga. Esses sintomas persistem mesmo aps a
cadeado por pistas ambientais
(ex. Exposio a situaes de extino do efeito da droga e vo se acentuando com o
uso de droga ou odores da
droga) e internos (ex. Ansiedade,
uso continuado da droga. Assim sendo, pode-se consi-
tristeza, imagens mentais, ex- derar a dependncia qumica como um transtorno carac-
pectativas de um resultado pos-
itivo do uso de drogas). um terizado pelas constantes recadas, resultado da fissura e
estado subjetivo que integra a o
desejo do uso da droga. da perda de controle do uso da droga. uma doena de
curso crnico e de grande impacto na vida familiar,

30
Conceito de drogas e seus padres de uso

social, emocional e profissional do paciente dependente qumico.


Os impactos e prejuzos provenientes da dependncia podem ser
agravados pelas mudanas no padro de uso, pelas comorbidades
psiquitricas associadas dependncia, pelas novas drogas introdu-
zidas no mercado ilegal e, por vezes, pelo envolvimento do indiv-
duo com a criminalidade (SzUPSzyNSKI E OLIVEIrA, 2008).

Concluso

todas as drogas psicotrpicas agem no crebro causando


modificaes nos neurnios e circuitos cerebrais. Estas modifica-
es causam efeitos sentidos a curto prazo e que passam com o
trmino do efeito da droga. O uso repetido de drogas causa leses
nos neurnios e circuitos cerebrais. Estas alteraes podem
modificar permanentemente o circuito de recompensa causando a
dependncia qumica, que uma doena crnica caracterizada pela
fissura e pela perda de controle inibitrio do uso da droga.

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32
Captulo 2

Epidemiologia do uso de drogas


no Brasil e no mundo
Frederico Garcia
Lucas Barroso

Introduo

Epidemiologia: Cincia que


A epidemiologia atravs dos estudos epidemiol- estuda quantitativamente a
gicos contribui para o estudo dos transtornos do uso de distribuio dos fenmenos de
sade/doena, e seus fatores
drogas. Ela nos permite melhor compreender quantas condicionantes e determinantes,
nas populaes.
pessoas esto implicadas no uso de drogas, qual o perfil
dessas pessoas e qual o impacto das drogas na vida delas.
Essas informaes so de grande importncia, para a ava-
liao de pacientes, pois nos permitem prever quais os
perfis de risco para o uso de drogas, como para o plane-
jamento do uso dos recursos em preveno e tratamento.

Obteno de dados epidemiolgicos

Os estudos epidemiolgicos nos transtornos de uso de


drogas obtm informaes atravs de levantamentos de dados e de
indicadores epidemiolgicos indiretos.
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Levantamentos

Os levantamentos epidemiolgicos so pesquisas que


usam como metodologia de obteno de dados, entrevistas
padronizadas de pessoas representativas de uma amostra
significativa da populao a ser estudada. Na interpretao desses
estudos muito importante a compreeno de: 1. Qual
populao avaliada, para se entender a que pessoas aquelas
informaes se referem (ex. populao geral, adolescentes,
presidirios); 2. O perodo de coleta dos dados; 3. O tipo de
agravo das condies de sade causado pelas drogas (ex. uso na
vida, no ltimo ano, no ms, uso abusivo ou dependncia; 4. O
instrumento ou escala utilizado para avaliar o agravo de sade.

Indicadores de dados indiretos

Os indicadores epidemiolgicos indiretos sobre o uso de


drogas so informaes no obtidos por um levantamento e que
tambm refletem o padro do uso de drogas de abuso por uma
determinada populao. Esses dados so obtidos em relatrios ou
bancos de dados governamentais. Dentre estes dados podemos
citar o nmero de bitos por overdose, nmero de apreenses e
quantidade de droga apreendida, nmero de hospitalizaes por
dependncia qumica, indicadores de violncia.

Prevalncia e incidncia

Dentre os diversos indicadores epidemiolgicos


Prevalncia: nmero total de
dois tm grande importncia: 1. prevalncia; 2. in- casos ou proporo de casos de
uma doena em uma populao
cidncia. A prevalncia corresponde ao nmero total em um momento especfico.
de casos ou proporo de casos de uma doena em
uma populao, em um momento especfico. A

34
Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo

incidncia corresponde ao nmero total ou a propor- Incidncia: nmero total ou a


proporo de novos casos em
o de novos casos em uma populao em um de- uma populao em um determi-
nado perodo de tempo.
terminado perodo de tempo.

Epidemiologia do uso de drogas no mundo

lcool e tabaco
O lcool e o tabaco continuam sendo as drogas mais
con-sumidas no mundo. Estima-se que 48% da populao
mundial adulta seja usuria de lcool e 29% de tabaco. Isso
corresponde a dois bilhes e 1,1 bilhes de adultos
respectivamente (Anderson, 2006). No ano de 2005, o consumo
anual de lcool era de 6,13 litros por cada habitante acima de 15
anos. Sabe-se que o uso de drogas influenciado pelas leis de
mercado. O uso de drogas lcitas to disseminado, atualmente,
pela grande disponibilidade e os baixos custos dessas drogas. O
uso abusivo de lcool resulta em 2,5 mi-lhes de mortes a cada
ano, ou seja, 4% das mortes no mundo, numa proporo de
quatro mulheres para cada homem (WHO, 2011). O tabaco
responsvel por 6 milhes de mortes por ano no mundo. Dessas
600 mil so de pessoas no fumantes expostas a fumaa do tabaco
na famlia ou no trabalho. Mais de 80% dos fu-mantes vivem em
pases de baixa ou mdia renda. Apesar do con-sumo de tabaco
ter diminudo um pouco nos ltimos dez anos, ele continua
crescendo entre mulheres jovens (WHO, 2013).

Drogas ilcitas
No mundo, estima-se que entre 167 milhes e 315
milhes de pessoas entre 15 e 64 anos (3.6% a 6.9% da populao
mundial dentro desse grupo) usou alguma droga ilcita no ano
anterior a 2011 (UNODC, 2012). Desde 2008, houve um
aumento de 18% no nmero total de pessoas que usaram alguma
35
Manual de abordagem de dependncias qumicas

droga ilcita, (UNODC,2012) reflexo, principalmente, do aumento


da populao mundial e da facilidade de acesso a essas
substncias. A distribuio do consumo das diversas drogas ilcitas
no feito de maneira uniforme. Na Europa e na sia, predomina
o uso de opiides, nas Amricas a maior demanda por cocana,
na frica por maconha (UNODC,2013).

Grfico 1
Evoluo do nmero de usurios e dependentes de drogas
ilcitas no mundo 1990-2001 a 2010. Adaptado de UNODC,
2012

O uso de maconha aumentou globalmente, sendo a


droga ilcita mais utilizada no mundo. Estima-se que a maconha
seja consumida por 125 a 203 milhes de pessoas no mundo,
sendo a maior prevalncia de usurios na frica Central e Oci-
dental (12.4% da populao entre 15 e 64 anos). Estimulantes se-
melhantes anfetamina so altamente difundidos pelo mundo,
com 0,7% da populao sendo estimada j ter se utilizado de
alguma anfetamina no ltimo ano a pesquisa. A maior prevalncia
de uso na Oceania, com at 1,2% da populao entre 15 e 64
anos.

36
Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo

O uso de opiides no mundo permanece estvel. Cerca


de 16.5 milhes de pessoas entre 15 e 64 anos, com aumento
desde 2009 na sia. Em 2009, a prevalncia anual de uso de
cocana era de 0,3% a 0,5% (14.2 a 20.5 milhes) da populao
mundial entre 15 e 64 anos. O uso de cocana decaiu entre 2010 e
2011, principalmente na Amrica do Norte (1.5% para 1.2%) e
Europa Central e Ocidental (1.3% para 1.2%). O uso de ecstasy
(methylenedioxymethamphetamine (MDMA)) tambm vem
decaindo, com pequeno aumento de uso na Europa (0.7%),
associado aos jovens de idade entre 15 e 34 anos (UNODC,
2012). Desde 2009, a prevalncia do uso da maconha, opiides e
opicios subiu, enquanto a prevalncia do uso de cocana,
anfetaminas e substncias do grupo do ecstasy apresentaram um
declnio (UNODC, 2012). Essas variaes fizeram com que a
prevalncia do uso de drogas ilcitas e de dependentes se
mostrassem estveis nos ltimos anos (UNODC, 2012).
No ano de 2011, estima-se que 211 mil mortes foram
associadas ao uso de drogas ilcitas. A maior parte dessas mortes
ocorreu na populao jovem e est relacionada violncia. Em
2008 haviam 16 milhes de usurios de drogas injetveis dos quais
trs milhes desses (18.9%) eram HIV positivo. A infeo pelo
vrus HIV est correlacionado tanto ao uso de drogas injetveis
quanto o comportamento sexual de risco apresentado por alguns
usurios de drogas. Quase 7.4 milhes (46.7%) de usurios de
drogas so infectados com hepatite C e 2.3 milhes com hepatite
B (UNODC, 2013).

37
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Grfico 2
Tendncias mundiais na prevalncia do uso de diferentes drogas
de 2009 a 2011. Adaptado de UNODC, 2012

Prevalncia de dependncia qumica no mundo

Enquanto houve um aumento na prevalncia de usu-


rios de drogas ilcitas, o nmero de usurios que so classificados
como dependentes permaneceu estvel. Estima-se que 15.5
milhes a 38.6 milhes de pessoas respondam aos critrios de
classificao para dependncia a drogas, ou seja, 12% dos usurios
mundiais (UNODC, 2012).

Fator de Risco: Qualquer situ-


aoo que aumente a probabil- Fatores de risco
idade de ocorrncia de uma
doena ou agravo sade.
Algumas pessoas so mais susceptveis continuao ou a um uso
mais intenso de drogas que outras (EMCDDA, 2000). Os indica-
dores so de que a experimentao e o uso intermitente entre jovens

38
Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo

esto ligados curiosidade, ao comportamento de aceitao pelo grupo


ou estilo de vida, assim como a viabilidade e oportunidade (Tabela
1). A experiemntao drogas no pode ser considerado como
normal durante a adolescencia, exigindo acompanhamento para
avaliar se ele ser atenuado ou extinto com o tempo.
Problemas mais graves com drogas costumam estar as-
sociados com dificuldades individuais ou familiares e
circunstncias sociais e/ou econmicas adversas. Esses so fatores
sociais comumente ligados a problemas mentais ou de
criminalidade (LLOyD, C 1998). Pode-se argumentar tambm
que com o aumento do uso de drogas pela populao geral, mais
pessoas com problemas sociais ou psicolgicos, venham a se
tornar dependentes (EMCDDA, 2002).
Tabela 1
Fatores de risco associados ao uso de drogas no mundo.
Adaptado de E.M.C.D.D.A; 2002
Idade - aumento at a terceira idade.
Sexo - masculino.
Estilo de vida - frequentar bares, festas, boates.
Precocidade - iniciao em comportamento adulto: sexo, fumo,bebidas e drogas
Alta renda.
Morar em reas urbanas - maior para drogas ilegais.

Habitar reas de alta prevalncia e viabilidade de drogas.


Imagem positiva do uso de drogas entre colegas.
Uso de lcool ou tabaco
Uso de droga por pais
Fatores de risco associados dependncia a drogas
Caractersticas individuais - incluindo gentica, metabolismo e personallidade.
Problemas familiares.

Baixo status social, marginalizao ou desemprego.


Outros problemas sociais e psicolgicos - dificuldades escolares,
baixa autoestima, depresso.
Primeiro uso em idade precoce.
Exposies repetidas droga - especialmente em grupos vulnerveis.
Falta de informao clara e relevante quanto aos problemas de sade

relacionados ao uso da droga.

39
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Epidemiologia do uso de drogas no Brasil;

Incidncia e prevalncia do uso de drogas e dependncia

lcool e tabaco

tambm no Brasil o lcool e o tabaco tm importante


impacto negativo na sade da populao. Segundo o ltimo
Levantamento Nacional de lcool e Drogas (LENAD, 2013) 50%
da populao brasileira adulta consumiu lcool no ano de 2012.
No mesmo estudo descreve-se uma ligeira reduo do consumo
de lcool com relao ao levantamento feito em 2006. Contudo, o
nmero de pessoas que bebem uma ou mais vezes por semana
aumentou de 20% na populao adulta, saltando de 45% para
54% em 2012. Entre as mulheres o aumento de usurias de lcool
pelo menos uma veze por semana foi maior, aumentando de 29%
para 39%, ou seja, um aumento de 34,5% (LENAD, 2013).
Apesar do uso de tabaco ter diminudo de 2006 para 2012,
o Brasil tem ainda 15,6% da populao geral que tabagista. Sendo
que 3,4% de adolescentes. A idade de incio do uso de tabaco no
Brasil de 16,2 anos e a idade de uso regular de 17,4 anos. A
prevalncia do tabagismo passivo estimada em 70 milhes de
brasileiros. Do ponto de vista regional a regio sul a mais
acometida pelo tabagismo (20,2% da populao) e a menos
atingida a regio nordeste com 14,2% da populao. A
prevalncia de homens tabagistas quase o dobro da de mulheres
sendo 21% e 13%, respectivamente. As classes sociais mais baixas
so as mais atingidas pelo tabagismo sendo que as classes D e E
tm uma prevalncia de 22,9% e 19%, respectivamente contra
10,9% e 12,7% das classes A e B respectivamente (LENAD, 2013)

40
Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo

Dependncia de lcool e tabaco no Brasil

Segundo o LENAD, em 2013, 17% dos consumidores


de lcool no Brasil eram abusadores ou dependentes. Isso
corresponde a 12 milhes de habitantes. A dependncia ao lcool
mais frequente entre homens do que em mulheres, na proporo
de 10,5% e 3,6%, respectivamente. O uso problemtico de lcool
est associado a uma maior prevalncia de depresso. No Brasil
41% dos bebedores problemticos apresentaram um episdio
depressivo na vida contra 25% da populao geral. Dos fumantes
72% apresentam critrios de dependncia ao tabaco (LENAD,
2013).
Drogas ilcitas

O uso de drogas ilcitas no Brasil ainda no regra, mas


to importante quanto de drogas lcitas. A estimativa de uso na
vida inteira, na populao adulta, de 22.8%. A prevalncia de
uso anual em 2005 foi 10.3% (GALDUrz et al., 2005;
CArLINI et al., 2005).
Os dados do levantamento nacional (CARLINI et al.,
2005) apontam para um aumento do uso de maconha, solventes,
cocana, anfetaminas, benzodiazepnicos, alucingenos, crack,
anabolizantes e barbitricos. Ao se comparar diferentes faixas
etrias, observa-se que a prevalncia do uso de maconha (17%) e
solventes (10.8%) maior entre as idades de 18 e 24 anos,
enquanto que cocana (5.2%) e anfetaminas (4%) possuem maior
prevalncia entre a populao com idades de 25 a 34 anos.
O uso de maconha em todas as faixas etrias , em
mdia, trs vezes maior em homens do que em mulheres. O uso
tem incio entre os 12-17 anos, com pico na terceira dcada (17%),
reduzindo em seguida (5.6%). Estima-se ainda que 1.24% da
populao atende aos critrios para dependncia a maconha.

41
Manual de abordagem de dependncias qumicas

A prevalncia para usurios de cocana durante a vida


de 2.9% (1.459.000) da populao geral (CArLINI et al., 2005),
chegando a 3% entre estudantes (ANDrADE et al., 2010). O uso
de crack mais prevalente no sexo masculino (3.2%) na faixa de
25-34 anos, estimando-se que 1.2% (2.3milhes) da populao usa
ou j usou crack (ANDrADE et al., 2010).
O uso de anfetaminas predominante no sexo feminino,
com prevalncia populacional de 3.2% (1.605.000 pessoas), sendo
que 0.15% dessa populao atende aos critrios de dependncia. O
uso de opicios corresponde a 1.3%, equivalente a uma populao
de 668.000 pessoas, com predomnio de uso por mulheres sobre
os homens. estimado que 1% da populao j tenha feito uso de
algum alucingeno durante a vida.
A regio com maior prevalncia no uso de qualquer droga
ilcita na vida, o Nordeste (27,6%), seguido pelo Sudeste (24.5%),
Centro-Oeste (17%), Sul (14.8%) e Norte (14.4%).

Fatores de risco

No Brasil, diversas condies influenciam no aumento


da probabilidade de uma pessoa vir a utilizar qualquer substncia
psicoativa (CANAVEz et al., 2010). Destacam-se fatores indivi-
duais, familiares, ambientais e culturais. O modo como cada fator
ir interferir com a chance de cada pessoa usar ou no e vir a se
tornar um dependente, depender sobretudo de sua capacidade de
resilincia (CANAVEz et al., 2010).
Entre os fatores individuais de risco temos a insegurana,
insatisfao com a vida, sintomas depressivos, curiosidade e busca
de prazer, sensao de invulnerabilidade entre outras caractersticas.
Essas caractersticas atuam facilitando a aceitao ao uso de drogas
pelo indivduo, e o tornando mais disposto a utiliza-las. (SEIBEL
E JUNIOr, 2001).

42
Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo

Entre os fatores de risco que predispem ao uso abusivo


de drogas destacam-se: 1. o convvio com usurios destas
substncias; 2. a aceitao social do uso; 3. a carncia de relaes
afetivas genunas e de apoio familiar; 4. a violncia domstica
(CANAVEz et al., 2010; ANDrEtA, 2005).Sanchez et al. (2005)
relatam que o consumo de drogas ilcitas cinco vezes maior
entre familiares de usurios, que dos no usurios. Encontraram
tambm que h envolvimento srio de um ou mais membros da
famlia com pelo menos uma droga, com destaque para lcool e
cigarro. (SANCHEz et al., 2002).

Concluses

O uso de drogas licitas e ilcitas no Brasil e no mundo


ainda no a regra, mas atinge nveis preocupantes. Considerando
apenas as drogas ilcitas, a prevalncia mais baixa no
ultrapassando uma, em cada dez pessoas no mundo. Contudo, o
impacto epidemilgico das drogas muito significativo e resulta m
um custo humano e econmico muito elevado. O uso de drogas
tem importante impacto negativo na sociedade. No somente
pelas mortes violentas, mas tambm pelo agravamento das
condies de sade e pela perda de qualidade de vida.
A dependncia qumica uma doena passvel de
preveno, desde que se tome medidas para postergar ou evitar a
exposio droga.

43
Manual de abordagem de dependncias qumicas

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45
Captulo 3

Bases para uma poltica pblica sobre lcool,


tabaco e outras drogas baseada em evidncias

Valdir Ribeiro Campos

Introduo

Os problemas relacionados ao consumo de l-


cool, tabaco e outras drogas so um grave problema de
sade pblica. A Organizao Mundial de Sade (OMS,
2001) relata que cerca de 10% da populao dos centros Prevalncia: Nmero total de
urbanos de todo o mundo consomem abusivamente dro- casos de uma determinada
doena existentes numa popu-
gas, independentemente da idade, sexo, nvel de instruo lao em um determinado mo-
mento temporal; Proporo da
e poder aquisitivo, sendo que o lcool e tabaco possuem populao que tem uma
maior prevalncia de uso global, trazendo consequncias doena
tempo.
em um determinado

graves para a sade pblica mundial. H uma tendncia UNODC: United Nations Office
mundial que aponta para o uso cada vez mais precoce de oncritrio
Drugs and Crimes (Es-
das Naes Unidas
substncias psicoativas, sendo que tal uso ocorre de sobre Drogas e Crimes). uma
agencia especializada da
forma cada vez mais pesada. O ltimo relatrio do Naes Unidas que presta con-
UNODC - Escritrio das Naes Unidas sobre Drogas e Crimes sultoria dirigida e coordenada
para responder a questes
aponta uma tendncia de aumento do consumo de dro- relacionadas ao trfco ilegal,
abuso de drogas, crimes e pre-
gas sintticas e de prescrio (UNODC, 2013). veno de crimes.

No Brasil essa realidade no diferente. Estudos realiza-


dos pelo Centro Brasileiro de Informaes sobre drogas psicotr-
picas da Universidade Federal de So Paulo-CEBrID-UNIFESP
mostra, sistematicamente, que a cada ano o consumo de lcool e
Manual de abordagem de dependncias qumicas

outras drogas tem sido cada vez mais precoce entre estudantes do
ensino fundamental e mdio. Entre essa populao, a idade mdia
para o incio do consumo de lcool e tabaco por volta dos 12 anos
de idade e o incio do uso de outras drogas, tais como a maconha,
a cocana e o crack, ocorre por volta dos 13 e 14 anos de idade
(CArLINI et al., 2010).
O uso de drogas gera vrios efeitos danosos
para a sade. Esses danos vo depender de quanto da
substncia utilizada, de que forma e com que padro
de uso levando a efeitos txicos e a dependncia. Entre
as consequncias diretas e indiretas do consumo de dro-
gas destacam-se os acidentes de trnsito, as agresses, de-
presses clnicas, distrbios de conduta, ao lado de
HIV: Vrus da Imunodeficincia
comportamento de risco no mbito sexual e a transmis-
adquirida. A infeco pelo
vrus pode causar a AIDS, ou
so do vrus HIV e da hepatite B e C pelo uso de drogas
sndrome de imunodeficincia injetveis. Por outro lado, os efeitos danosos da depen-
adquirida.
dncia no contexto social, gera desarmonia familiar, vio-
lncia domstica, abuso infantil, separao, delitos,
abandono escolar, faltas ao trabalho, desemprego e inca-
pacidade para vida.
Para conter esses prejuzos, os governantes necessitam
tomar decises com base em consensos na forma de lei, regras e
regulaes. O conjunto dessas medidas define polticas pblicas
(LArANJEIrA; rOMANO, 2004). Apesar dos impactos sociais
relacionados ao consumo e dependncia de lcool, tabaco e outras
drogas (AtOD), as estratgias de preveno, tratamento e polticas
pblicas, ainda so muito deficientes, sendo que muitas vezes os re-
cursos so alocados de forma inadequada. Alm disso, percebe-se
ainda que h uma grande lacuna entre o que comprovadamente
eficaz, segundo as pesquisas, e o que de fato se faz, tanto na prtica
clnica quanto em relao s polticas de preveno e controle social
(DIELH et al., 2012).

48
Bases para uma poltica pblica sobre lcool, tabaco e outras drogas baseada em evidncias

O modelo geral de causas do consumo de lcool,


tabaco e outras drogas

Um modelo de compreenso causal e de medidas de pre-


veno para o consumo de lcool, tabaco e outras drogas, com
base em evidncias cientficas, foi desenvolvido por Birckmayer
e colaboradores em 2004. Segundo esse modelo, o desejo de con-
sumir a droga pelo indivduo cria uma demanda que estimula a
oferta, sujeito as leis do mercado (lei da oferta e da procura ou
demanda). Alm do mais, com um maior potencial de gerar lucro
e competitividade, a consequncia seria o aumento da demanda
por meio de promoes. A disponibilidade representa um dos
componentes fundamentais do consumo de substncias psicoati-
vas. Quanto maior a disponibilidade, maior as chances do con-
sumo de drogas. Dessa forma, sem disponibilidade, no pode
haver uso ou problemas associados. A acessibilidade a AtOD,
por sua vez, depende de fatores ligados a leis vigentes (federais,
estaduais ou municipais), fiscalizao e punies (Figura 1). Assim,
a disponibilidade econmica est relacionada ao preo que se paga
para obter o lcool, tabaco ou outras drogas, a disponibilidade de
varejo ou comercial a facilidade de compra e acessibilidade
drogas por meio do mercado formal e informal, a disponibilidade
social que no envolve dinheiro e as drogas so obtidas atravs
de familiares e amigos.

49
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Figura 1
Modelo Geral de causas do uso de lcool, tabaco e outras drogas.
Adaptado de Birckmayer et. al. 2004.

Preveno ao uso de lcool, tabaco e outras drogas


Fator de Risco: Qualquer situ-
ao o coisa que aumenta a Os fatores associados ao alto potencial de uso
probabilidade de ocorrncia de
uma doena ou agravo sade. de drogas so denominados fatores de risco. Por outro
lado, aqueles que puderam ser associados com reduzido
Fator de Proteo: Situao
ou coisas que protegem o indi-
potencial ao uso de drogas chamam-se fatores de proteo
vduo de fatos que podero (Tabela 1). Os fatores de risco para o uso de lcool e ou-
agred-lo fsica, psquica ou so-
cialmente, garantindo um de- tras drogas so caractersticas ou atributos de um indi-
senvolvimento saudvel.
vduo, grupo ou ambiente de convvio social, que
contribuem para aumentar a probabilidade da ocorrn-
cia desse uso. Por sua vez, se tal consumo ocorre na
comunidade, no mbito comunitrio que tero lugar
as prticas preventivas de maior impacto sobre a vul-
nerabilidade e o risco. Fatores de risco e de proteo

50
Bases para uma poltica pblica sobre lcool, tabaco e outras drogas baseada em evidncias

podem ser identificados em todos os domnios da vida: nos pr-


prios indivduos, em suas famlias, em seus pares, em suas escolas
e nas comunidades, e em qualquer outro nvel de convivncia so-
cioambiental (FIGLIE, BOrDIN, LArANJEIrA, 2004).

Tabela 1
Fatores de risco ou de proteo conhecidos para o
desenvolvimento de uso de drogas

Fatores de Risco Fatores de Proteo

Ambientes domsticos caticos, especial- Fortes laos com a famlia


mente aonde os pais abusam de substn- Pais experientes em monitorar com regras
cias ou sofram de doenas mentais claras de conduta dentro da unidade familiar
Paternidade ineficiente, especialmente e envolvimento dos pais na vida de seus filhos
com crianas com temperamentos difceis Fortes laos com instituies sociais como
e desordens de conduta a famlia, a escola, e organizaes religiosas
Falta de entrosamento entre pais e filhos Adoo de normas convencionais sobre uso
e dficit de nutrio de drogas
Comportamento inapropriado de timidez e Sucesso escolar
agressividade em sala de aula Outros fatores como a disponibilidade de
Insucesso escolar drogas, padres de trfico de drogas, e
Habilidades de enfrentamento social po- crenas de que o uso de drogas normal-
bres mente tolerado tambm influenciam o nmero
Amizade com adolescentes com compor- de jovens que comeam a usar drogas
tamentos inadequados
Percepes de aprovao de comporta-
mento de uso de droga na escola, entre os
colegas e no ambiente comunitrio

Ambientes e domnios da vida

As aes preventivas podem ser realizadas em diversos


ambientes como, por exemplo, a comunidade, a escola e as empre-
sas. Para cada um desses domnios existem fatores de risco e fatores

51
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Programa de preveno:Pro-
gramas que visam evitar a ex-
de proteo. Um programa de preveno planejado deve co-
posio de uma pessoa ou um mear definindo o ambiente de onde vo partir as aes
grupo de pessoas a um fator
de risco e aumentar o impacto e a partir de ento quais os domnios devero ser traba-
dos fatores de proteo com o
objetivo de se evitar um agravo
lhados. A preveno visa diminuir os fatores de risco e
de sade ou doena. aumentar os fatores de proteo para cada um dos do-
mnios de vida definidos como foco do programa de pre-
veno. Em cada um desses ambientes existem diferentes
domnios, cujas aes preventivas podem ser direciona-
das (Tabela 2).

Tabela 2
Diferentes domnios de direcionamento de aes preventivas

Domnio Individual: refere-se aos fatores relacionados a um indivduo especfico -


sua carga gentica; seu funcionamento psicolgico; suas habilidades psicolgicas
e sociais.
Domnio de Pares: refere-se aos fatores relacionados a um grupo de indivduos
que tem estreita convivncia entre si: seus hbitos; seus valores; seus comporta-
mentos e estilo de vida.
Domnio familiar: refere-se aos fatores relacionados aos hbitos, regras, definies
de papis na famlia.
Domnio Escolar: refere-se aos fatores relacionados s regras, papis, relaciona-
mentos entre os diversos membros da escola (alunos, diretores, professores, coor-
denadores).
Domnio Social: refere-se aos fatores relacionados ao ambiente coletivo - as regras,
os relacionamentos entre as diversas faces da sociedade, as polticas pblicas
de restrio de venda de bebida, etc.

Intervenes preventivas

A preveno voltada para o uso abusivo e/ou dependncia


de lcool e outras drogas pode ser definida como um processo de
planejamento, implantao e implementao de mltiplas estratgias
voltadas para a reduo dos fatores de vulnerabilidade e risco es-

52
Bases para uma poltica pblica sobre lcool, tabaco e outras drogas baseada em evidncias

pecficos, tambm de fortalecimento dos fatores de proteo


que implica, necessariamente, em insero comunitria das pr-
ticas propostas, com a colaborao de todos os segmentos so-
ciais disponveis, buscando atuar dentro de suas competncias,
para facilitar processos que levem reduo da iniciao no con-
sumo, do aumento desses em frequncia e intensidade, e das
consequncias do uso em padres de maior acometimento global
(FIGLIE, BOrDIN, LArANJEIrA, 2004).
O compartilhamento de responsabilidades, de forma
orientada s praticas de efeito preventivo, tambm no deve abrir
mo da participao dos indivduos diretamente envolvidos com o
uso de lcool e outras drogas, na medida em que devem ser impli-
cados como responsveis por suas prprias escolhas, e como agen-
tes e receptores de influncias ambientais (MArLAtt, 1999).

Relacionamento familiar

Programas de preveno podem fortalecer os fatores de


proteo entre crianas pequenas, ensinando aos pais habilidades
para melhor comunicao na famlia, disciplina, leis e regras fami-
liares consistentes, e outras habilidades que os pais devem ter. As
pesquisas tambm mostraram que os pais devem tomar maior co-
nhecimento e ter mais participao na vida de seus filhos como,
por exemplo, falar com eles sobre drogas, monitorar as suas ativi-
dades, saber quem so seus amigos e compreender seus problemas
e preocupaes.

Relacionamento entre colegas

Programas de preveno focalizam o relacionamento de


cada um com os colegas, desenvolvendo habilidades e competncia

53
Manual de abordagem de dependncias qumicas

social, que envolvam melhoria da capacidade de comunicao, me-


lhoria de relacionamentos positivos entre colegas e comportamen-
tos sociais e habilidades de resistncia para recusar a oferta de
drogas.

O ambiente escolar

Os programas de preveno tambm tm como objetivo


a implementao do desempenho acadmico e o estreitamento dos
laos entre a escola e o aluno, oferecendo a eles maior identidade e
capacidade de realizao, reduzindo a probabilidade de abandono
escolar. A maior parte dos currculos inclui o apoio a bons relacio-
namentos entre colegas
e uma educao desenvolvida de modo a corrigir a falta
de percepo de que a maior parte dos alunos est usando drogas.
As pesquisas mostraram tambm que, quando as crianas entendem
os efeitos negativos das drogas (fsicos, psicolgicos e sociais) e per-
cebem a desaprovao do uso de drogas dos seus colegas e da fa-
mlia, tendem a evitar o incio do uso de drogas.

O ambiente comunitrio

Os programas de preveno trabalham no nvel comuni-


trio com organizaes cvicas, religiosas, de execuo de leis e po-
lticas pblicas governamentais, atravs de mudanas na
regulamentao poltica, esforos de mdia de massa e programas
comunitrios amplos. Os programas comunitrios devem incluir
novas leis e a melhoria das anteriores, restries propaganda, e
zonas escolares sem droga - todas desenhadas para oferecer um
ambiente seguro e livre delas.

54
Bases para uma poltica pblica sobre lcool, tabaco e outras drogas baseada em evidncias

Polticas pblicas para o lcool e outras drogas

Entende-se por poltica pblica de preveno de uso de


droga, qualquer esforo ou deciso de autoridades governamentais
e no governamentais para minimizar ou prevenir problemas rela-
cionados ao consumo de AtOD. Essas aes so divididas em duas
categorias para as drogas lcitas (lcool e tabaco): alocatria e regu-
latria (BABOr et al., 2003; DUAILIBI, 2007). A alocatria est
relacionada com as campanhas educativas e tratamento do depen-
dente. A regulatria est relacionada com as leis que regulam os
preos e taxao de bebidas e cigarros, idade mnima para compra
de lcool e tabaco, horrio de funcionamento de bares, proibio
parcial ou total de propagandas de bebidas e tabaco. Para as drogas
ilcitas as aes so centradas e discutidas em relao a: represso,
fiscalizao, priso, descriminalizao, despenalizao ou legalizao
(Figura 2).

Figura 2
Polticas pblicas para reduo da mobimortalidade do uso abusivo
de lcool e outras drogas. Adaptado de Babor, 2003

Alocatrias Regulatrias
Campanhas educativas. Leis que regulam os preos e
Tratamento para o dependente. taxao de bebidas alcolicas e
compra de tabaco.
Restrio do horrio de funciona-
mento de locais de venda e idade
mnima para compra.
Proibio de propagandas.

Outras medidas
Represso
Fiscalizao
Priso
Descriminalizao
Despenalizao ou legalizao
55
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Efetividade: Capacidade de Um estudo da OMS com especialistas de nove


produzir um efeito, que pode
pases para avaliar o custo-efetividade de diferentes polti-
ser positivo ou negativo. Con-
sequentemente, o que efe-
tivo no necessariamente cas preventivas relacionadas ao consumo de bebidas al-
eficiente ou eficaz.
colicas composta das dez melhores prticas com base
na evidncia de efetividade, existncia de suporte cient-
fico, possibilidade de transposio para diferentes cultu-
ras, custos com implementao e sustentao. Dessas
prticas, cinco so regulatrias do controle do lcool,
quatro do controle do beber e dirigir e uma de terapu-
tica, do tipo interveno breve para bebedores pesados
(DUAILIBI, 2007).
Com o objetivo de reduzir a morbimortalidade do uso
abusivo de lcool e outras drogas, o ministrio da sade elaborou
algumas diretrizes tais como: investimento em aes educativas e
informativas sobre o lcool, drogas, acidentes e violncia; campa-
nhas preventivas sobre dirigir alcoolizado, tipo: se beber no dirija,
tolerncia zero no trnsito, implementao de polticas de reduo
de danos para o uso de lcool e outras drogas (MINIStrIO DA
SADE, 2006).

Tabela 3
Polticas pblicas para reduo da morbimortalidade
do uso abusivo de lcool. Adaptado de Babor, 2003.

Regulatrias do controle de lcool Regulatrias do beber e dirigir


1. Estabelecimento e fiscalizao de idade 1. Reduo do limite da concentrao de
mnima legal para a compra de bebidas al- lcool no sangue permitida para dirigir
colicas 2. Suspenso administrativa da licena de
2. Monoplio governamental das vendas de motoristas que dirigem alcoolizados
bebidas no varejo 3. Estabelecimento de postos de fiscaliza-
3. Restrio de horrios ou dias de venda o de sobriedade
4. Restries de densidade dos pontos de 4. Poltica de tolerncia zero quanto ao
venda de lcool dirigir alcoolizado por vrios anos no licen-
5. Criao de impostos para o lcool ciamento de motoristas novatos

56
Bases para uma poltica pblica sobre lcool, tabaco e outras drogas baseada em evidncias

Consideraes finais

H evidncias de que a disponibilidade de lcool, tabaco


e outras drogas, a promoo e propaganda, as leis e normas sociais,
esto de forma direta ligadas ao consumo e aos problemas relacio-
nados. O aumento do preo e taxao diminuem o consumo de l-
cool e tabaco e os problemas associados. Intervenes no
ambiente/comunidade mostram melhor relao custo-efetividade
do que as intervenes direcionadas ao indivduo. Polticas eficazes
requerem que leis e normas sejam cumpridas, intervenes para
preveno e promoo da sade, e acesso a tratamento de quali-
dade. O processo de tratamento deve estar atrelado a vrios com-
ponentes disponveis na comunidade, tais como: servios de sade
mental e tratamento de doenas infectocontagiosas, servios voca-
cionais, servios de atendimento criana e famlia, servios edu-
cacionais, transporte, habitao, assistncia legal (National Institute
of drug abuse, 2012) (Figura 3).

Figuras 3
Componentes do tratamento integral do abuso de drogas

57
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Referncias

BIRCKMANE, JD, HOLDER, HD, NACOUBIAN, GS, & FRIEND, KB.


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58
Captulo 4

Polticas pblicas e a assistncia integral


do paciente com dependncia qumica
Daniela Conceio dos Santos

Introduo

As polticas pblicas brasileiras comearam a ter Polticas pblicas: direitos


assegurados constitucional-
relevncia a partir de 1988, em que os direitos fundamentais mente ou que se afirma graas
foram institudos. O direito sade e assistncia es- aosociedade
reconhecimento por parte da
e/ou pelos poderes
sencial pessoa humana, garantindo qualidade de vida e pblicos enquanto novos dire-
itos das pessoas, comunidades,
o desenvolvimento pleno da sociedade. coisas, ou outros bens matrias
ou imateriais. So conjuntos de
Assim, uma das formas de se garantir o acesso programas, aes e atividades
a princpios basilares do nosso Estado democrtico de desenvolvidas pelo Estado di-
reta ou indiretamente que visam
direito se d atravs das polticas pblicas que podem ser assegurar determinado direito.
consideradas como diretrizes, princpios norteadores do Direitos fundamentais: so
os direitos humanos positiva-
poder pblico e que estabelecem regras e procedimentos dos em um determinado orde-
namento jurdico. No Brasil os
nas relaes entre poder pblico e a sociedade. direitos fundamentais so es-
As polticas de sade e assistncia abordam dire- tabelecidos na constituio e
esto divididos em trs dimen-
trizes para o acesso aos servios de preveno, tratamento, ses: 1. Individuais, civis e
polticos; 2. Sociais, econmi-
reabilitao e reinsero social, contribuindo assim para cos e culturais; e 3. Difusos e
que as pessoas tenham melhores condies de vida, bem coletivos.
como possam construir novos projetos de vida ante as vul-
nerabilidades existentes em nossa sociedade.
O presente captulo tem por objetivo demonstrar que o
ordenamento jurdico brasileiro estabelece leis e princpios que ga-
Manual de abordagem de dependncias qumicas

rantem o direito sade e a assistncia, entretanto h a necessidade


de eficcia de seu acesso e de conhecimento de tais institutos para
que se possa realizar de forma qualificada o atendimento e enca-
minhamento de seus usurios. Por outro lado, cabe aos usurios
exigir a tutela dos direitos essenciais sua dignidade, fazendo com
que o Estado cumpra seu dever de guardio da Carta Magna.

Polticas pblicas de sade e sade mental

O direito sade direito de todos, sendo essencial ma-


nuteno da vida, j que previsto como direito fundamental. Ante
a evoluo da sociedade, o conceito de sade alcanou novos sen-
tidos, abrangendo tanto o corpo como a mente dos indivduos.
Desta feita, as polticas pblicas de sade foram institudas com o
objetivo de proteger bens jurdicos essenciais pessoa humana,
quais sejam: a vida e sade.
Sistema nico de Sade O ordenamento jurdico brasileiro prev a pre-
SUS: conjunto de aes e
servios de sade, prestados veno, proteo, recuperao e reabilitao frente aos
por rgos e instituies pbli-
cas federais, estaduais e mu- riscos encontrados, assim com a implantao do Sistema
nicipais, da Administrao
direta e indireta e das fun-
nico de Sade (SUS), que organizado com base nas leis
daes mantidas pelo Poder 8.080/1990 e 8.142/1990, cabe ao Estado cumprir com
Pblico.
Descentralizao: transfer-
o direito sade, previsto constitucionalmente. Ademais,
ncia do poder de deciso possui como diretrizes a responsabilidade descentralizada,
sobre a poltica pblica do
nvel federal para os estados e a hierarquizao e a participao da comunidade.
municpios.
Descentralizao: transfer-
ncia do poder de deciso
sobre a poltica pblica do
nvel federal para os estados e
municpios.

60
Polticas pblicas e a assistncia integral do paciente com dependncia qumica

Insta salientar que o SUS tem como base os


princpios da Universalidade: que garante o direito a Universalidade: princpio do
SUS que garante o direito a
todos os cidados; Equidade: garante o direito sade todos os cidados.
de forma igualitria, considerando suas especificidades; Equidade: princpio do SUS
Integralidade: em que as aes so desenvolvidas para que garante o direito sade
de forma igualitria e con-
ofertarem a promoo da sade, preveno e riscos siderando suas especificidades.
ante seus agravos, recuperao e assistncia. Integralidade: Princpio do SUS
que garante que as aes so
Com o intuito de tratar o uso de lcool e drogas desenvolvidas para ofertarem a
promoo da sade, preveno
como sade pblica, em 2003 foi publicado pelo Minis- e riscos ante seus agravos, recu-
trio da Sade, a Poltica de Ateno Integral a Usurios perao e assistncia.
de lcool e Outras Drogas.
J no que pertine sade mental, aps a luta antimanico-
mial que props diversas mudanas no sistema psiquitrico, pode-
se destacar a Lei 10.216/01, que dispe sobre a proteo e os
direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais redirecio-
nando o modelo assistencial em sade mental. Ademais, um
grande marco para os usurios e dependentes de lcool e outras
drogas, pois prev aes para o atendimento a eles.
Vale registrar a possibilidade de modalidades de interna-
es que devero ser procedidas, depois de esgotadas s medidas
extra-hospitalares e de laudo mdico circunstanciado. So elas:
Internao voluntria: aquela que se d com o consenti-
mento do usurio;
Internao involuntria: aquela que se d sem o consenti-
mento do usurio e a pedido de terceiro;
Internao compulsria: aquela determinada pela justia.
Lado outro, no intuito de no afastar tais usurios da so-
ciedade, tem-se como objetivo proporcionar atendimento qualifi-
cado em equipamentos no hospitalares de internao, tais como
o Centro de Atendimento Psicossocial - CAPS, em especial, o
CAPS AD (Cento de Ateno Psicossocial lcool e Drogas) que
tem como {...} objetivo atendimento populao, realizar o acompanha-
mento clnico e a reinsero social dos usurios pelo acesso ao trabalho, lazer,

61
Manual de abordagem de dependncias qumicas

exerccio dos direitos civis e fortalecimento dos laos familiares e comunitrios.


(Portal. Sade. gov.br)
Outro marco importante para o atendimento aos usurios
de lcool e outras drogas o Programa Nacional de Ateno Co-
munitria a Usurios de lcool e Outras Drogas, institudo atravs
da Portaria GM/MS 816/2002 no mbito do SUS, que tem por ob-
jetivo:

Art. 1. {...}
I. Articular as aes desenvolvidas pelas trs esferas de governo des-
tinadas a promover a ateno aos pacientes com dependncia e/ou
uso prejudicial de lcool ou outras drogas;
II. Organizar e implantar rede estratgica de servios extra-hospitalares
de ateno aos pacientes com esse tipo de transtorno, articulada
rede de ateno psicossocial;
III. Aperfeioar as intervenes preventivas como forma de reduzir
os danos sociais e sade, representados pelo uso prejudicial de lcool
e outras drogas;
IV. realizar aes de ateno/assistncia aos pacientes e familiares, de
forma integral e abrangente, com atendimento individual, em grupo,
atividades comunitrias, orientao profissional, suporte medicamen-
toso, psicoterpico, de orientao e outros;
V. Organizar/regular as demandas e os fluxos assistenciais;
VI. Promover, em articulao com instituies formadoras, a capaci-
tao e superviso das equipes de ateno bsica, servios e progra-
mas de sade mental locais. (Portaria GM/MS 816/2002)

Em 2004, a Portaria GM/MS 2.197/2004 instituiu a Po-


ltica Nacional de Ateno Integral a Usurios de lcool e Outras
Drogas, tambm por intermdio do SUS, que deve ser desenvolvido
de forma descentralizada, pelos municpios, estados, Distrito Fede-
ral e governo federal, observando-se a intersetorialidade entre a
sade mental e a ateno primria sade.
Ademais, visando possibilidade de atendimento emer-
gencial dos usurios de lcool e outras drogas, a Portaria 2.629 de
2009, prev a internao de curto prazo em hospitais gerais.

62
Polticas pblicas e a assistncia integral do paciente com dependncia qumica

Alm dos vrios marcos legais supramencionados, des-


taca-se tambm a lei 11.343/06 que prev medidas para preven-
o ao uso indevido, ateno e reinsero social de usurios e
dependentes de droga, represso produo no autorizada e ao
trfico ilcito de drogas, bem como define crimes.
Convm ressaltar que tal legislao aborda inovaes,
pois dispe acerca da distino entre usurios, dependentes e tra-
ficantes, a aplicao de medidas scio-educativas a serem aplica-
das pelos Juizados Especiais Criminais para dependentes e
usurios, e no mais sujeitos pena privativa de liberdade, man-
tendo assim a caracterizao do porte de drogas, entrementes
aquele que estiver sob regime de pena privativa de liberdade de-
ver ter atendimento ofertado pelo sistema prisional, ademais
prev o aumento do tempo de priso para os traficantes e tipifica
o crime de financiador, bem como, prev benefcios fiscais para
iniciativas de preveno.
Desta feita, conclui-se que o acesso e a efetividade de tais
polticas de suma importncia para que direitos fundamentais a
pessoa humana sejam observados, bem como para que os princ-
pios em nossa Carta Magna sejam garantidos.

Poltica de assistncia

Ao se analisar a evoluo da assistncia constata-se que


foi a partir da Constituio de 1998 que a mesma adquiriu relevn-
cia, se tornando um direito social a ser prestado para aqueles que
dela necessitarem, independentemente de contribuio, e estabele-
cendo diretrizes para as polticas pblicas, deixando assim o carter
assistencialista at ento institudo.
Por sua vez, em 1993, a Lei Orgnica da Assistncia Social
LOAS foi instituda asseverando que a mesma tenha a participa-
o da populao, bem como tenha a descentralizao poltico-ad-

63
Manual de abordagem de dependncias qumicas

ministrativa. Ademais, a implementao do Sistema nico da As-


sistncia Social SUAS que resultou de deliberao da IV Confe-
rncia Nacional de Assistncia Social, efetivou a assistncia social
como poltica pblica, universalizando os acessos e a responsabili-
dade estatal, prevendo a sua organizao em todo o territrio na-
cional, identificando os problemas sociais e os recursos financeiros
necessrios, aumentando assim a cobertura social, garantindo bem-
estar e proteo a todos aqueles que dela necessitarem.
Assistncia Social: faz parte
do sistema de Seguridade So-
J a Poltica Nacional de Assistncia Social
cial no Brasil definido pela Con- PNAS/004, aprovada pelo Conselho Nacional de Assis-
stituio Brasileira e pela
LOAS. Tem como funo a tncia Social CNAS, unificou conceitos e procedimen-
manuteno de uma poltica
social destinada ao atendi-
tos em todo o territrio nacional, estabelecendo aes a
mento das necessidades bsi- serem desenvolvidas, baseadas nos princpios da univer-
cas dos indivduos em prol da
famlia, maternidade, infncia, salidade de direitos sociais, supremacia de atendimento,
adolescncia, velhice, amparo
s crianas e adolescentes car- igualdade de direitos de acesso ao atendimento sem ne-
entes, promoo da Integrao
ao mercado de trabalho, habil-
nhuma discriminao, respeito dignidade, autonomia
itao e reabilitao das pes- dos cidados aos seus direitos e divulgao dos benef-
soas portadoras de deficincia
e a promoo de sua inte- cios, servios, programas e projetos assistenciais.
grao a vida comunitria.
Nessa vereda, a norma operacional bsica do SUAS
NOB/SUAS regulamenta a gesto pblica da poltica de assistncia
social, considerando-se a descentralizao poltico administrativa
e o financiamento.
Insta registrar que a tipificao Nacional de Servios
Socio-assistenciais 2009, padronizou os servios scio-assisten-
ciais, organizando-os conforme os nveis de complexidade do Sis-
tema nico de Assistncia Social.
No que tange ao enfrentamento ao uso e dependncia de crack
e outras drogas, a Poltica de Assistncia Social ganhou grande impor-
tncia na medida em que as aes devem ser intersetoriais, conforme pre-
coniza o Decreto 7.179/2010 e pelo programa Crack Possvel Vencer.
Para que haja enfrentamento das vulnerabilidades existen-
tes, necessria a implantao de diversas polticas pblicas, consi-
derando-se as especificidades dos territrios, garantindo assim aos

64
Polticas pblicas e a assistncia integral do paciente com dependncia qumica

usurios o acesso aes preventivas, socioeducativas, pautadas no


fortalecimento comunitrio e familiar.
Desta forma, seja na proteo bsica atravs do Centro de
Referncia da Assistncia Social - CRAS; que oferta servios scio-as-
sistenciais s famlias em situao de vulnerabilidades sociais, bem
como na proteo especial, atravs do Centro de Referncia Especiali-
zado da Assistncia Social - CREAS que oferta servios especializados,
destinados a famlias e indivduos em situao de risco pessoal e
social, por violao de direitos; e o Centro de Referncia Especializado
para Populao em Situao de Rua - Centro POP, que oferta servio es-
pecializado para populao em situao de rua devem ter obser-
vncia, precipuamente, na preveno e reinsero social dos
usurios e dependentes de crack, conjuntamente com suas famlias
oportunizando a construo de novos projetos de vida frente s
vulnerabilidades existentes.
Salienta-se tambm que necessria a capacitao con-
tinuada dos profissionais de tais equipamentos, para que ante a
complexidade do uso de crack e outras drogas possam desenvol-
ver intervenes efetivas e no baseadas em posturas moralistas.
Assim, como se v a poltica de assistncia de suma re-
levncia para que o atendimento a usurios e dependentes de crack
e outras drogas seja qualificado. Ademais, tal poltica coaduna com
as demais polticas sendo, dessa forma, dever do Estado garantir o
acesso a tais servios.

Concluso

Desde a Constituio de 1988 as polticas pblicas vm


modificando-se consideravelmente, possibilitando condies mni-
mas de proteo a direitos essenciais pessoa humana.
Nesse sentido, constata-se que o direito sade e a assis-
tncia so direitos essenciais, previstos em nossa Carta Magna,

65
Manual de abordagem de dependncias qumicas

assim a no observncia de tais direitos ope-se aos preceitos cons-


titucionais nela previstos.
Ademais, torna-se necessrio o conhecimento das legisla-
es brasileiras acerca de sade, assistncia, bem como segurana
pblica para que todos os setores possam disseminar tais informa-
es, contribuindo assim para a preveno, tratamento, reinsero
social e o enfrentamento ao trfico de drogas, na medida em que
afetam a todos os cidados.
Por fim, observa-se que ante as legislaes j existentes e
direitos j garantidos, basta-se a sua efetividade, todavia muito ainda
h que se conquistar para que o acesso a tais polticas possam re-
presentar as reais necessidades de nossa sociedade, ofertando ser-
vios qualificados e oportunizando melhores condies de vida.

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toledo;Windt,Mrcia Cristina Vaz dos Santos; Cspedes, Lvia. Vade Mecum Com-
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BrASIL. Poltica Nacional sobre Drogas. Braslia. Presidncia da repblica, Se-
cretaria Nacional sobre Drogas, 2010.

66
Captulo 5

Aspectos do
Estatuto da Criana e do Adolescente
e o uso de drogas
Renato Csar Cardoso
Luiz Filipe Arajo

Introduo

Marco fundamental na histria brasileira, a Constituio


de 1988 trouxe modificaes importantes, em inmeros aspectos
do tratamento jurdico que at ento recebiam as mais diversas
questes, promovendo mudanas profundas no ordenamento p-
trio. No que tange garantia de direitos infncia e adolescncia,
assim como ao tratamento das questes relativas s drogas, em seus
mais variados mbitos, no foi diferente.
De fato, com o novo marco legal de 1988, novidades sig-
nificativas so incorporadas e assistimos a uma verdadeira revoluo
na forma de normatizar tudo o que diz respeito criana e ao ado-
lescente. Mudanas que j vinham tomando corpo no cenrio jur-
dico internacional, e.g. a doutrina de proteo integral, acabam
sendo incorporadas definitivamente ao direito brasileiro:

A doutrina de proteo integral inspira-se na normativa


internacional, materializada em tratados e convenes, especialmente
os seguintes documentos: a) Conveno das Naes Unidas Sobre os
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Direitos da Criana; b) regras Mnimas das Naes Unidas para a Ad-


ministrao da Justia da Infncia e da Juventude (regras de Beijing);
c) regras Mnimas das Naes Unidas para a Proteo dos Jovens Pri-
vados de Liberdade; e d) Diretrizes das Naes Unidas para a Preven-
o da Delinquncia Juvenil (Diretrizes de riad). (CUry,
GArrIDO & MArUrA, 2002, p. 21).

No plano da Constituio, portanto, passamos a encontrar


dispositivos diversos que nos interessam especialmente; em seu ca-
ptulo VII cuja redao atual foi dada pela Emenda Constitucional
n 65, de 2010 o texto da Carta Magna se dedica especificamente
ao tema da famlia, da criana, do adolescente, do jovem e do idoso.
Uma breve anlise do captulo revela preceitos constitucionais que
tocam em pontos nevrlgicos da temtica aqui exposta. Seu artigo
226, j de incio, estabelece que: A famlia, base da sociedade, tem
especial proteo do Estado e que: 8 O Estado assegurar a
assistncia famlia na pessoa de cada um dos que a integram,
criando mecanismos para coibir a violncia no mbito de suas re-
laes.
O artigo 227, por sua vez, dispe: dever da famlia, da
sociedade e do Estado assegurar criana, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimen-
tao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, digni-
dade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria,
alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discrimi-
nao, explorao, violncia, crueldade e opresso. 1 O Estado
promover programas de assistncia integral sade da criana, do
adolescente e do jovem, admitida a participao de entidades no
governamentais, mediante polticas especficas (....).
O mesmo artigo constitucional, em seu pargrafo terceiro,
estabelece os aspectos a serem abrangidos pelo direito proteo
especial; entre outras medidas, dispe em seu inciso I a idade m-
nima de quatorze anos para admisso ao trabalho; no IV estabe-
lece a garantia de pleno e formal conhecimento da atribuio de

68
Aspectos do Estatuto da Criana e do Adolescente e o uso de drogas

ato infracional, igualdade na relao processual e defesa tcnica por


profissional habilitado, segundo dispuser a legislao tutelar espe-
cfica; em seu inciso V comanda obedincia aos princpios de bre-
vidade, excepcionalidade e respeito condio peculiar de pessoa
em desenvolvimento, quando da aplicao de qualquer medida pri-
vativa da liberdade; enfim, em seu inciso VII, propugna por pro-
gramas de preveno e atendimento especializado criana, ao
adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas
afins.
Dando seguimento e aprofundamento s reformas ini-
ciadas com a Constituio, cabe destacar a aprovao, em 13 de
julho de 1990, do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA),
pela Lei n 8.069, que passou a vigorar a partir de 14 de outubro
do mesmo ano. Em sede de lei ordinria, o ECA tem por escopo
dar concretude aos dispositivos da Constituio que asseguram
s crianas e aos adolescentes direitos concernentes a todas as di-
menses do desenvolvimento humano. O papel do ECA na re-
gulamentao e realizao dos preceitos constitucionais foi
imprescindvel: Apesar de toda a inovao no que tange assis-
tncia, proteo, atendimento e defesa dos direitos da criana e
do adolescente, constantes na Constituio Federal, esses no po-
deriam se efetivar se no regulamentados em lei ordinria. Se
assim no fosse, a Constituio nada mais seria do que uma bela,
mas ineficaz carta de intenes. (VErONESE, 2008, p.10)
Em substituio ao antigo Cdigo de Menores, a lei n.
6.697, de 10 de outubro de 1979, o ECA trouxe avanos indiscut-
veis: passam a viger as doutrinas da proteo integral, especial e
prioritria para crianas e adolescentes, reconhecendo-se a esses
como pessoas em desenvolvimento, sujeitos de direitos e merece-
dores de reconhecimento especial por parte do Estado e da socie-
dade: A criana e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais pessoa humana, assegurando-se-lhes, por lei ou por
outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes fa-

69
Manual de abordagem de dependncias qumicas

cultar o desenvolvimento fsico, mental, moral, espiritual e social


em condies de liberdade e dignidade (NOGUEIrA, 1996, p.12).
Agora em regime de responsabilidade compartilhada, famlia, so-
ciedade e Estado passam a ter que assegurar a proteo destes
novos sujeitos de direitos. Veja-se, quanto a isso, o art. 70 do ECA:
dever de todos prevenir a ocorrncia de ameaa ou violao dos
direitos da criana e do adolescente.
Com efeito, apesar de hoje parecer-nos absolutamente
correto e justo que assim o seja, nem sempre o tratamento dado s
crianas e adolescentes foi pautado por esses princpios. O citado
Cdigo de Menores, que ditava a disciplina, era focado na sano e
no no cuidado e proteo, no reconhecendo queles aos quais se
dirigia a condio de sujeitos mnimos de direitos, e contribuindo,
decisivamente, para a perpetuao das condies de indignidade em
que viviam inmeras crianas e adolescentes. Adotava a perniciosa
doutrina da situao irregular, no abrangendo assim a todos os
menores, com o intuito de proteg-los, mas apenas queles rfos
ou infratores, com fito primeiro de vigi-los.
Partindo de pressupostos e paradigmas inteiramente dife-
rentes, com o objetivo de estabelecer dispositivos para a proteo
integral da criana (at doze anos incompletos) e o adolescente
(entre os doze e dezoito anos), o ECA estabelece que: gozam de
todos os direitos fundamentais inerentes pessoa humana, sem pre-
juzo da proteo integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,
por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a
fim de lhes facultar o desenvolvimento fsico, mental, moral, espi-
ritual e social, em condies de liberdade e de dignidade (art. 3).
O ECA tambm veio garantir, em seu artigo 4, absoluta
prioridade na efetivao dos direitos referentes vida, sade,
alimentao, educao, ao esporte, ao lazer, profissionalizao,
cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia fa-
miliar e comunitria, s crianas e aos adolescentes, estabelecendo
como dever da famlia, da comunidade, da sociedade em geral e do

70
Aspectos do Estatuto da Criana e do Adolescente e o uso de drogas

poder pblico assegur-los. O pargrafo nico do mesmo artigo


esclarece do que se trata essa garantia de prioridade: a) primazia
de receber proteo e socorro em quaisquer circunstncias; b) pre-
cedncia de atendimento nos servios pblicos ou de relevncia p-
blica; c) preferncia na formulao e na execuo das polticas
sociais pblicas; d) destinao privilegiada de recursos pblicos nas
reas relacionadas com a proteo infncia e juventude.
Ponto importante, que no pode ser olvidado, foi o reco-
nhecimento da condio peculiar da criana e do adolescente como
pessoas em desenvolvimento pela Constituio, em seu artigo
227, V, refirmado e reforado no ECA, em seu art. 6, nos seguintes
termos: Na interpretao desta lei levar-se-o em conta os fins so-
ciais a que ela se dirige, as exigncias do bem comum, os direitos e
deveres individuais e coletivos, e a condio peculiar da criana e
do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Para alm da mudana de enfoque, tambm a mudana de
terminologia que vemos com a implementao do ECA merece ser
destacada, haja vista que contribuiu, significativamente, no esforo
de mitigar alguns dos estigmas que cercam muitas crianas e ado-
lescentes, em especial os marginalizados. A comear pelo prprio
termo crianas e adolescentes, que substituiu menores, pas-
sando pelo uso de ato infracional no lugar de crime ou delito,
ou de medida socioeducativa no lugar de punio ou pena,
nota-se profundo esforo de desconstruir inmeros preconceitos
que, no obstante, em muitos casos ainda perduram.
reconhecidas como pessoas humanas em processo de de-
senvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais,
garantidos na Constituio e nas leis, as crianas e adolescentes pas-
sam a ter reconhecidos seus direitos liberdade, ao respeito e dig-
nidade (art. 15).
A tabela a seguir (Tabela 1) sintetiza de forma esquemtica
as mais importantes inovaes introduzidas pelo Estatuto da
Criana e do Adolescente, comparativamente legislao anterior:

71
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Tabela 1
Comparao do Cdigo de Menores com o ECA
adaptado de BRANCHER (2000, p. 126)
ASPECTO CDIGO DE MENORES ECA
Doutrinrio Situao irregular Proteo integral
Carter Filantrpico Poltica pblica
Fundamento Assistencialista Direito subjetivo
Centralidade local Judicirio Municpio
Executivo Unio/estados Municpio
Decisrio Centralizador Participativo
Institucional Estatal Co-gesto
Organizacional Piramidal Rede
Gesto Monocrtica Democrtica

Importante destacar que o ECA, em seu art. 19, estabelece


de forma direta a previso legal de que: toda criana ou adoles-
cente tem direito a ser criado e educado no seio da sua famlia e,
excepcionalmente, em famlia substituta, assegurada a convivncia
familiar e comunitria, em ambiente livre da presena de pessoas
dependentes de substncias entorpecentes. Nesta esteira, o art. 98
comanda que se apliquem medidas de proteo criana e ao ado-
lescente que so aplicveis sempre que os seus direitos forem amea-
ados ou violados, indistintamente I) em caso de ao ou omisso
do Estado; II) em caso de falta omisso ou abuso dos pais ou res-
ponsveis; III) em razo de sua conduta.
As medidas de proteo que devem ser determinadas pela
autoridade competente, nestes casos de ameaa ou violao a direitos,
variam grandemente conforme o caso concreto. Entre elas temos
desde o simples encaminhamento aos pais ou responsveis, mediante
termo de responsabilidade, at a requisio de tratamento mdico,
psicolgico ou psiquitrico, em regime hospitalar ou ambulatorial ou
mesmo a incluso em programa oficial ou comunitrio de auxlio,
orientao e tratamento a alcolatras e toxicmanos (art.101).

72
Aspectos do Estatuto da Criana e do Adolescente e o uso de drogas

A importante questo do acesso justia, no caso das


crianas e adolescentes, abordada no ECA a partir do ttulo VI,
art. 141, que diz: garantido o acesso de toda criana ou adoles-
cente Defensoria Pblica, ao Ministrio Pblico e ao Poder Judi-
cirio, por qualquer de seus rgos. A assistncia gratuita, ( 1),
bem como a iseno de custas e emolumentos nas aes judiciais
da competncia da Justia da Infncia e da Juventude (2) tambm
so garantidas. A criao da Justia da Infncia e da Juventude, re-
gulada no art. 145 e seguintes, diz que os estados e o Distrito Fe-
deral podero criar varas especializadas e exclusivas da infncia e
da juventude, cabendo ao Poder Judicirio estabelecer sua propor-
cionalidade por nmero de habitantes, dot-las de infra-estrutura e
dispor sobre o atendimento, inclusive em plantes. A sua compe-
tncia, explicitada no art.148, vai desde conhecer representaes
promovidas pelo Ministrio Pblico, para apurao de ato infracio-
nal atribudo a adolescente, aplicando as medidas cabveis ou con-
ceder a remisso, como forma de suspenso ou extino do
processo, at conhecer pedidos de adoo e seus incidentes ou
aes civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos
afetos criana e ao adolescente. tambm de sua competncia
conhecer aes decorrentes de irregularidades em entidades de
atendimento, aplicando as medidas cabveis.

Justia da infncia e da juventude

O movimento de implementao da justia da infncia e


da juventude pode ser mais bem explicado com a aplicao da co-
nhecida teoria das trs ondas do acesso justia: Na primeira
onda, temos o acesso justia expandido pela garantia de assistncia
jurdica gratuita e a expanso de servios jurdicos parcela despri-
vilegiada da sociedade, removendo os obstculos econmicos exis-
tentes no Poder Judicirio. O segundo momento desse processo

73
Manual de abordagem de dependncias qumicas

vem no sentido de estabelecer incorporao dos interesses cole-


tivos e difusos, tornando mais simples e eficaz a tutela de interesses
de grande parcela da populao. Por fim, a terceira onda, ainda em
processo de concretizao, se caracteriza pela maior informalidade,
busca da celeridade e da preveno, preocupao maior pela efeti-
vao dos direitos fundamentais e das garantias constitucionais.
(CAPPELLEttI; GArtH, 2002)
Nesse sentido: A Lei 8069/90 j atendeu a primeira onda
do acesso justia, ao conferir o direito a um Defensor Pblico,
que poder inclusive exercer a funo de Curador Especial, na tutela
dos Direitos da Criana e do Adolescente, conforme consta nos ar-
tigos 124, III, 142, pargrafo nico, 148, pargrafo nico, alnea f,
18 6, 2 e 190, I e II. A segunda onda do acesso justia tambm
foi alcanada na justia infanto-juvenil, pois a Lei 8069/90 prev a
possibilidade de proteo de interesses difusos e coletivos da infn-
cia e juventude nos artigos 208 e seguintes. A tutela dos interesses
metaindividuais de crianas e adolescentes foi to prestigiada que a
competncia da justia infanto-juvenil prevalece at mesmo sobre
a competncia das Varas de Fazenda Pblica, na forma do artigo
148, IV, da Lei 8069/90. O grande desafio atual atender aos ob-
jetivos almejados na terceira onda do acesso justia, buscando dar
efetividade as garantias constitucionais em favor de crianas e ado-
lescentes. (VALVErDE, 2010, p. 4).
Enfim, muito h ainda que avanar na realizao dos ideais
da Constituio e do ECA, no que diz respeito concretizao dos
direitos das crianas e adolescentes dignos de respeito e proteo,
enquanto pessoas em desenvolvimento que so. Mais do que apon-
tar os problemas, tentou-se mostrar que os caminhos j existem,
que as garantias j esto transformadas em direitos e que cabe-nos
agora buscar efetiv-los. O desafio, dirio e hercleo, nem sempre
superado com sucesso, no pode ser contudo abandonado: em jogo
temos nada menos que o destino de uma gerao.

74
Aspectos do Estatuto da Criana e do Adolescente e o uso de drogas

Referncias

BrANCHEr, Leoberto Narciso. Organizao e gesto do sistema de garantia


de direitos da infncia e da juventude. In: KONzEN, Afonso Armando (coord.)
et al. Pela Justia na Educao. Braslia: FUNDESCOLA/MEC, 2000.
CAPPELLEttI, Mauro; GArtH, Bryant. Acesso justia. traduo de Ellen
Gracie Northfleet. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris Editor, 2002.
CUry, MArUrA & GArrIDO. Estatuto da criana e do adolescente ano-
tado. So Paulo: revista dos tribunais, 2002.
NOGUEIrA, Paulo Lcio. Estatuto da criana e do adolescente comentado. 3
ed. So Paulo: Saraiva,1996.
SArAIVA, Joo Batista da Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indife-
rena proteo integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil.
2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005.
VALVErDE, tadeu Antonio. ADOO INtUItU PErSONAE, 2010,
http://www.abmp.org.br/media/files/biblioteca/00002574_tadeu_valverde_ado
cao_intuitu_personae_abmp.pdf, acessado em 01/12/2013.
VErONESE, Josiane rose Petry. O estatuto da criana e do adolescente e os
direitos fundamentais. So Paulo: Edies AMPM, 2008.

75
Captulo 6

O papel conselho tutelar na abordagem


da criana e adolescente usurios de drogas
Renato Csar Cardoso
Luiz Filipe Arajo

Introduo

Os ltimos vinte e cinco anos da histria brasileira no re-


presentam apenas um perodo de redemocratizao pela via eleito-
ral, mas marcam tambm o incio de uma srie de mudanas
estruturais no campo da sociedade, da poltica e do direito. Se a so-
ciedade brasileira passou a respirar os ares da liberdade poltica,
pouco a pouco as prprias instituies desses trs campos passaram
a acompanhar essa nova vida. A dcada de 90 do ltimo sculo foi
no campo jurdico, repleta de alteraes legislativas que se fizeram
sentir na sociedade. Nesse contexto encontraremos o Estatuto da
Criana e do Adolescente.
temos nesse perodo a criao de modelos jurdicos que
superam a viso reducionista de um indivduo abstrato: o cidado
para o Cdigo Civil, o criminoso para o Cdigo Penal. Legislaes
que em tamanha abstrao se esqueceram das individualidades e
particularidades que compem o corpo social. Com a Constituio
da repblica de 1988 tivemos a possibilidade de reconhecimento
de novos atores e interesses na vida brasileira: o consumidor, o
jovem, o idoso, a mulher em vulnerabilidade, o direito ao meio am-
Manual de abordagem de dependncias qumicas

biente, o direito das cidades, e o que nos interessa neste momento:


a criana e o adolescente. Vejamos o que dispe a Constituio
sobre o interesse dos menores de idade e dos jovens:
Art. 227. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar
criana, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito vida,
sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura,
dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm
de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao,
violncia, crueldade e opresso.
Pode-se dizer que redemocratizao implica, necessaria-
mente, em ampliao das possibilidades de participao, atuao e
proteo da sociedade civil nas questes pblicas. No regime pol-
tico anterior podia-se perceber uma relao paradoxal sobre os re-
gramentos jurdicos: ou encontrvamos concentrao desmedida
ou completo descaso em relao aos projetos e planos sobre como
lidar com certos setores sociais, ou seja, legislaes que implicavam
intervir junto sociedade civil, como no caso da educao, famlia,
crianas, adolescentes, jovens, idosos, indgenas, portadores de ne-
cessidade especiais1.

O Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA)

Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei 8.069 de 13 de julho


de 1990) marco normativo para a construo de uma nova pers-
pectiva sobre como o Estado, atravs do direito, compreende as
parcelas que compem a sociedade civil. O ECA, como comu-
mente conhecido, representa a primeira legislao brasileira que cria
os chamados microssistemas jurdicos2, onde as normas jurdicas
de um diploma legal no tratam de apenas uma relao especfica,
mas de um complexo de relaes jurdicas.
Dito atravs de outra perspectiva, compreende-se os sujeitos
de direito na sua complexidade existencial e com o devido tratamento

78
O papel conselho tutelar na abordagem da criana e adolescente usurios de drogas

de suas necessidades e singularidades. Exemplificando, no se v o


menor de idade apenas como um incapaz para os atos da vida civil ou
como criminoso em potencial, mas como um sujeito de direito que de-
manda toda uma forma particular de cuidado para o desenvolvimento
de suas faculdades, no seio de uma famlia saudvel e harmnica.

Sistema de garantia dos direitos da criana e do adolescente

Se por um lado o ECA representa um microssistema jur-


dico, por outro ele inaugura um sistema misto de proteo popu-
lao infanto-juvenil. Nesse sentido, h a estruturao de um
Sistema de Garantia dos Direitos da Criana e do Adolescente, como foi
consagrado pela resoluo n 113 do Conselho Nacional dos Direitos
da Criana e do Adolescente CONANDA. Este sistema pode ser dividido
em trs grandes frentes de atuao: promoo, controle e defesa
dos interesses da Criana e do Adolescente. tal sistema possui uma
intrincada estrutura que se desenvolve entre os entes da federao
(Unio, Estados, Municpios e Distrito Federal). Para ilustrar tal
complexidade segue representao grfica do mesmo3:

Grfico 1
Promoo, Controle e Defesa dos interesses da Criana e do Adolescente

79
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Destacaremos apenas os rgos que mais nos


interessam neste momento. No plano das polticas p-
blicas encontram-se as figuras dos Conselhos de Direito,
nos trs mbitos da federao, quais sejam: CONANDA
Conselho Tutelar: O Conselho
Conselho Nacional de Direitos da Criana e do Adolescente, Tutelar um rgo pblico cole-
giado da esfera municipal, de
CEDCA Conselho Estadual de Direitos da Criana e do Adoles- carter deliberativo, executivo
cente e CMDCA Conselho Municipal de Direitos da Criana e do e(nofiscalizador. permanente
pode ser dissolvido),
adolescente. Em especial, encontramos o Conselho Tutelar, o autnomo (no pode sofrer
qualquer ingerncia no cumpri-
qual constitui-se em um rgo essencial do Sistema de mento de suas atribuies), no
Garantia dos Direitos (resoluo n 113 do CO- jurisdicional (no integra o
Poder Judicirio e nem a ele
NANDA), tendo sido concebido pela Lei n 8.069, de 13 est subordinado), sendo encar-
regado pela sociedade de zelar
de julho 1990, para desjudicializar e agilizar o atendi- pelo cumprimento dos direitos
da criana e do adolescente.
mento prestado populao infanto-juvenil.
Poder-se-ia dizer que o Conselho tutelar veio desjudicializar
para agilizar o atendimento e a defesa dos interesses das crianas e
dos adolescentes, em uma parceria entre sociedade civil e poder p-
blico. Inegavelmente, no regime anterior havia uma concentrao
excessiva de funes no chamado Juiz de Menores do antigo Cdigo
de Menores de 19794, em que esse detinha a competncia e a deciso
para questes relativas ao infanto-juvenil5. Por mais proeminente
que seja a figura do poder judicirio aps a Constituio de 1988,
necessrio se faz aperfeioar a forma de atuao do poder pblico
por um princpio de organizao racional da estrutura burocrtica
do Estado. Est a o relevante papel do Conselho tutelar na atual
ordem constitucional.
Nesse sentido a natureza jurdica do Conselho tutelar
bastante peculiar, pois no rgo vinculado ao Poder Judicirio,
mas sim de natureza administrativa, como esclarece Wilson Doni-
zeti Liberati e Pblio Caio Bessa Cyrino na obra Conselhos e Fundos
no Estatuto da Criana e do Adolescente. O Conselho tutelar constitui
uma instituio de direito pblico, de mbito municipal, com ca-
ractersticas de estabilidade e independncia funcional, desprovido
de personalidade jurdica6. Isso implica dizer que participa do con-
80
O papel conselho tutelar na abordagem da criana e adolescente usurios de drogas

junto das instituies do Poder Pblico brasileiro, estando, portanto


obviamente subordinado s leis vigentes no pas.
O conselho tutelar tem sua primeira elaborao legislativa
no Estatuto da Criana e do Adolescente nos artigos 131 e seguin-
tes. Os Conselhos tutelares, hoje, tm sua regulamentao com-
plementada pelo CONANDA7, atravs da competncia normativa
que lhe atribuda por lei, em que regulamenta de forma comple-
mentar a forma de criao e funcionamento dos Conselhos tute-
lares atravs da resoluo N 139 de 17 de Maro de 2010. tal
regulamentao se faz necessria pois, em pesquisa empreendida
pelo prprio CONANDA, foi revelada a inexistncia de Conselhos
tutelares em cerca de 10% dos municpios brasileiros e graves de-
ficincias no funcionamento da maioria dos j constitudos8.

O conselho tutelar

Neste breve estudo sobre o Conselho tutelar abordare-


mos trs dos seus aspectos centrais: sua estrutura, em especial a fun-
o do Conselheiro; as atribuies do Conselho tutelar, em especial
como rgo essencial proteo da populao infanto-juvenil e o
elo entre Sociedade Civil e Estado; e, por fim, a funo social do
Conselho tutelar.

Estrutura do conselho tutelar

Como claramente enuncia o art. 131 do Estatuto da


Criana e do Adolescente, o Conselho tutelar rgo permanente
e autnomo, no jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar
pelo cumprimento dos direitos da criana e do adolescente. tal
rgo ser criado na proporo mnima de um conselho para cada
cem mil habitantes por municpio ou entidade administrativa, como

81
Manual de abordagem de dependncias qumicas

no caso do Distrito Federal. J a resoluo 139 do CONANDA


prev que o Conselho tutelar dever de preferncia ser vinculado,
administrativamente, ao rgo da administrao municipal ou, na
inexistncia desse, ao gabinete do prefeito ou ao governador, caso
seja do Distrito Federal. tal previso extremamente importante
para fixar a necessidade de apoio do Poder Executivo na estrutura-
o material dos Conselhos tutelares.
Deve-se desde j destacar que os Conselhos tutelares so
rgos especialmente locais, ou seja, municipais ou distritais; no
se encontrar semelhante estrutura no mbito estadual ou federal.
Porquanto, nesses o importante a fixao de poltica pblica es-
tratgica, a qual ser empreendida pelo CEDCA Conselho Esta-
dual de Direitos da Criana e do Adolescente e CONANDA
Conselho Nacional de Direitos da Criana e do Adolescente, res-
pectivamente.
Em cada municpio haver, no mnimo, um Conselho tu-
telar na proporo de 1 (um) Conselho a cada 100.000 habitantes.
Cada conselho ser composto de no mnimo cinco membros, es-
colhidos pela comunidade local para mandato de trs anos, permi-
tida uma reconduo. Desde j, vale a pena mencionar que se trata
de escolha e no eleio. Isso implicou at mesmo em alterao le-
gislativa, que visou facilitar a deliberao para compor tal rgo. tal
opo se deve s dificuldades enfrentadas pela maioria dos munic-
pios em se organizar administrativamente. Assim, a j mencionada
resoluo 139 estipula que, preferencialmente, a escolha se dar
por sufrgio universal, ou seja, por todos os eleitores do muncipio.
todavia, de maneira complementar, o processo de escolha
dos conselheiros ser disciplinado por lei municipal e ser realizado
sob a responsabilidade do Conselho Municipal dos Direitos da
Criana e do Adolescente, com a fiscalizao do Ministrio Pblico
(art. 139, ECA). Ainda por lei municipal haver disposio sobre
local, dia e horrio de funcionamento do Conselho tutelar, inclusive
quanto a eventual remunerao de seus membros (art. 134, ECA).

82
O papel conselho tutelar na abordagem da criana e adolescente usurios de drogas

Para a candidatura a membro do Conselho tutelar, sero


exigidos trs requisitos: (a) reconhecida idoneidade moral; (b) idade
superior a vinte e um anos e (c) residir no municpio (art. 133, ECA).
Ainda quanto aos requisitos para candidatura a conselheiro, a re-
soluo 139 sugere critrios a serem levados em conta pelas legis-
laes locais, quanto aos requisitos adicionais candidatura, como
por exemplo: I - a experincia na promoo, proteo e defesa dos
direitos da criana e do adolescente; II - formao especfica sobre
o Estatuto da Criana e do Adolescente, sob a responsabilidade do
Conselho dos Direitos da Criana e Adolescente local; e III - com-
provao de concluso do ensino fundamental.
Esse enquadramento estabelece presuno de idoneidade
moral ao conselheiro tutelar e assegurar priso especial, em caso
de crime comum, at o julgamento definitivo. Para alm da respon-
sabilidade criminal, h que se mencionar as consequncias em caso
de quebra das obrigaes do conselheiro. A destituio do conse-
lheiro deve ser prevista por lei municipal, em especial nos seguintes
casos: descumprimento de suas atribuies; prtica de atos ilcitos;
conduta incompatvel com a confiana dada pela comunidade; den-
tre outras estipuladas no art. 40 da resoluo n 139 do CO-
NANDA.

Atribuies do conselho tutelar

O artigo 136 do Estatuto da Criana e do Adolescente


elenca as atribuies do Conselho tutelar. Comentaremos algumas
delas no que tange aos aspectos jurdicos. O Conselho tutelar deve
atender as crianas e adolescentes nas hipteses de ao e omisso
dos responsveis, sociedade e Estado; quando aplicar as medidas
protetivas do art. 101, I a VII. Estas so, de forma geral, medidas
administrativas que visam o encaminhamento, orientao e requi-
sio da criana e adolescente em situao de vulnerabilidade.

83
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Um aspecto interessante que o Conselho tutelar no


pode aplicar por fora prpria a perda de guarda, destituio de tu-
tela, suspenso e destituio do poder familiar. Esses so casos em
que, pela gravidade das consequncias, as decises devem ter res-
paldo do Poder Judicirio; tambm no pode o Conselho tutelar
aplicar a medida de famlia substituta sem semelhante autorizao
judicial. Vale ainda destacar que a criana que praticar algum ato in-
fracional (ato previsto como contraveno penal ou crime) ser en-
caminhada ao Conselho tutelar e estar sujeita s medidas de
proteo previstas no art. 101; j o adolescente que pratica ato in-
fracional est sujeito a 7 (sete) medidas socioeducativas que tambm
sero aplicadas pelo Poder Judicirio e no pelo Conselho tutelar,
sendo eles: prestao de servio comunidade; obrigao de reparar
o dano; liberdade assistida ou vigiada; internao; advertncia; se-
miliberdade e medida especfica de proteo.
Existem ainda algumas garantias legais para o exerccio da
atividade do Conselho tutelar que visam fortalecer a autonomia e
independncia da funo. Por exemplo, quem embaraa a atuao
do Conselho pratica crime previsto no art. 236 do ECA, com pena
de 6 meses a dois anos de deteno. Cabe tambm destacar que o
Conselho tutelar detm a capacidade para legitimamente represen-
tar perante o Ministrio Pblico, em quaisquer circunstncias que
se encontrem violaes de direitos da criana e do adolescente.
As decises e medidas adotadas pelo Conselho tutelar,
certamente podero ser revistas pela autoridade judiciria, como
deixa claro o Art. 5, da Constituio, mas o prprio ECA refora
a questo em seu art. 137. todavia, no pode o juiz, de ofcio, ou
seja, autonomamente, rever a deciso do Conselho tutelar. tal cir-
cunstncia somente pode ocorrer por requerimento de quem tenha
legtimo interesse, devido ao princpio da inrcia jurisdicional que
rege a atividade da magistratura. Destarte, sempre que necessrio
poder o Ministrio Pblico ou outro interessado pleitear a reviso
do ato do Conselho tutelar.

84
O papel conselho tutelar na abordagem da criana e adolescente usurios de drogas

Funo social do conselho tutelar

Para alm dos aspectos meramente normativos impor-


tante compreender a atuao do Conselho tutelar como um elo de
conexo entre Sociedade Civil e o Poder Pblico, conforme desta-
cou-se no incio do presente texto. Veja-se que a legislao no con-
cebeu a funo como mera carreira do funcionalismo pblico
burocrtico. O Conselho tutelar recebe a estrutura, enquanto uma
funo sui generis, que no se enquadra como servidor pblico stricto
sensu, mas sim como cargo honorfico que presta servio de utili-
dade pblica. A equiparao com o servidor pblico surge em casos
especficos, tais como nos casos de desacato, desobedincia ou
quando o conselheiro comete peculato - apropriao ou desvio de
valores ou bens em virtude de sua funo.
O ponto central neste dilogo democrtico entre Socie-
dade Civil e Estado reside no carcter representativo e no-poltico
que o Conselho tutelar recebe em seu tratamento pela legislao
brasileira. tal fato distingue essa instituio de quaisquer outras que
tenham sido concebidas na histria institucional do Brasil. Certa-
mente, somente a partir dos influxos de participao dos movimen-
tos sociais e organizaes no governamentais, a partir da dcada
de setenta e oitenta, foi possvel a estruturao dos Conselhos tu-
telares de forma plural e que, em tese, adequa-se s finalidades de
igual considerao e respeito do Estado Democrtico de Direito.
Como toda instituio humana passvel de distores e
falhas, assim tambm ocorre com os Conselhos tutelares. Por es-
tarem inseridos nas questes locais, muitos acabam sendo influen-
ciados pela pequena poltica municipal; no raras so as vezes que
se utiliza a funo de conselheiro tutelar como ponte de projeo
social para futuros cargos polticos. Enquanto no exerccio de fun-
o pblica administrativa, deve o conselheiro atuar com impessoa-
lidade e imparcialidade nos termos do art. 37 da Constituio.
todavia, no h previso expressa quanto desincompatibilizao,

85
Manual de abordagem de dependncias qumicas

ou seja, afastamento da funo at 3 (trs) meses antes do pleito


eleitoral, situao que mereceria ateno do Poder Legislativo.
Apesar das possveis distores, o Conselho tutelar possui
um papel importantssimo de concretizao das polticas de prote-
o integral da populao infanto-juvenil no Brasil. Acima de tudo,
deve-se destacar que as qualidades que devem estar concentradas
no conselheiro tutelar esto alm das de um mero servidor pblico,
em especial no que toca sensibilidade e percepo da realidade do
outro. Exige-se uma grande capacidade de alteridade e compreen-
so das demandas especficas da criana e do adolescente.
Por fim, faz-se necessrio destacar: os deveres normativos,
como os do art. 319 da resoluo n 139 do CONANDA, expres-
sam apenas uma plida sombra das caractersticas que devem estar
presentes na difcil atuao do conselheiro tutelar. Por isso, trata-se
de uma instituio que merece respaldo do poder pblico e noto-
riedade pela sociedade civil, pois possibilita a construo de um fu-
turo melhor para aqueles que em uma gerao anterior estariam
desamparados e negligenciados pelo Estado brasileiro.

Notas

1
Para marcar esse paradoxismo na legislao brasileira veja-se o cunho civiliza-
dor do Estatuto do ndio - Lei n 6.001 de 19 de dezembro de 1973 e intuito
garantidor do Estatuto da Igualdade Racial Lei n 12.288, de 20 de julho de 2010.
2
tEPEDINO, Gustavo (Coord). Problemas de Direito Civil. rio de Janeiro: reno-
var, 2001. Pg. 1 e segs.
3
GADELHA, Graa apud Alexandre rocha Arajo. Responsabilizao no contexto
do Sistema de Garantia de Direitos de Belo Horizonte: a posio do Conselho tutelar.
Dissertao de Mestrado. 114p. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 2009.
Pg. 50.
4
Lei n 6697, de 10 de outubro de 1979. Bem como o antigo Cdigo Mello Mat-
tos (Decreto N 17.943-A de 12 de outubro de 1927).
5
Para um breve percurso histrico da legislao nos primrdios da republica cf.
FErrEIrA, Laura Valria Pinto. Menores Desamparados da Proclamao da Repblica
ao Estado Novo. Disponvel em: http://www.ufjf.br/virtu/files/2010/05/artigo-
86
O papel conselho tutelar na abordagem da criana e adolescente usurios de drogas

7a5.pdf. Acesso em: 08/12/13.


6
Vide LIBErAtI, Wilson Donizeti; CyrINO, Pbio Caio Bessa. Conselhos e fun-
dos no Estatuto da Criana e do Adolescente. So Paulo: Malheiros, 1993. Pg. 107.
7
Criado com a lei 8.242 de 12 de Outubro de 1991.
8
Como demonstra a pesquisa Conhecendo a realidade (CONANDA, 2006)
9
Art. 31. No exerccio de suas atribuies, o Conselho tutelar dever observar
as normas e princpios contidos na Constituio, na Lei n 8.069, de 1990, na
Conveno das Naes Unidas sobre os Direitos da Criana, promulgada pelo
Decreto n 99.710, de 21 de novembro de 1990, bem como nas resolues do
CONANDA, especialmente:
I - condio da criana e do adolescente como sujeitos de direitos;
II - proteo integral e prioritria dos direitos da criana e do adolescente;
III - responsabilidade da famlia, da comunidade da sociedade em geral, e do
Poder Pblico pela plena efetivao dos direitos assegurados a crianas e adoles-
centes;
IV - municipalizao da poltica de atendimento crianas e adolescentes;
V - respeito intimidade, e imagem da criana e do adolescente;
VI - interveno precoce, logo que a situao de perigo seja conhecida;
VII - interveno mnima das autoridades e instituies na promoo e proteo
dos direitos da criana e do adolescente;
VIII - proporcionalidade e atualidade da interveno tutelar;
IX - interveno tutelar que incentive a responsabilidade parental com a criana
e o adolescente;
X - prevalncia das medidas que mantenham ou reintegrem a criana e o adoles-
cente na sua famlia natural ou extensa ou, se isto no for possvel, em famlia
substituta;
XI - obrigatoriedade da informao criana e ao adolescente, respeitada sua
idade e capacidade de compreenso, assim como aos seus pais ou responsvel,
acerca dos seus direitos, dos motivos que determinaram a interveno e da forma
como se processa; e
XII - oitiva obrigatria e participao da criana e o adolescente, em separado
ou na companhia dos pais, responsvel ou de pessoa por si indicada, nos atos e
na definio da medida de promoo dos direitos e de proteo, de modo que
sua opinio seja devidamente considerada pelo Conselho tutelar.

87
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Referncias

FErrEIrA, Laura Valria Pinto. Menores Desamparados da Proclamao da Repblica


ao Estado Novo. Disponvel em: http://www.ufjf.br/virtu/files/2010/05/artigo-
7a5.pdf. Acesso em: 08/12/13.
GADELHA, Graa apud Alexandre rocha Arajo. Responsabilizao no contexto do
Sistema de Garantia de Direitos de Belo Horizonte: a posio do Conselho tutelar.
Dissertao de Mestrado. 114p. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 2009.
p.50.
LIBErAtI, Wilson Donizeti; CyrINO, Pbio Caio Bessa. Conselhos e fundos no
Estatuto da Criana e do Adolescente. So Paulo: Malheiros, 1993.
tEPEDINO, Gustavo (Coord). Problemas de Direito Civil. rio de Janeiro: renovar,
2001. p.1 e segs.

88
1o

2 89
PARTE 2
Aspectos clnicos dos transtornos
do uso de drogas
Captulo 7

Efeitos somticos e alteraes clnicas do


lcool,tabaco e da maconha
Luciana Diniz Silva
Tatiana Bering
Marta Paula Pereira Coelho
Tamyres Tania Martins Marques
Naiara Cristina de Oliveira Souza

Das Utopias
Se as coisas so inatingveis... ora!
No motivo para no quer-las...
Que tristes os caminhos, se no fora
A presena distante das estrelas!
Mario Quintana

Introduo

O uso abusivo e a dependncia ao lcool e a outras drogas


ilcitas so considerados problemas relevantes de sade pblica. O
consumo abusivo de lcool apontado como uma das principais
causas de mortalidade e morbidade da populao mundial. Ainda,
o uso abusivo de lcool associa-se a consequncias graves no m-
bito social (WHO, 2007). Cerca de dois bilhes de pessoas conso-
Manual de abordagem de dependncias qumicas

mem bebidas alcolicas e mais 76 milhes de pessoas tm proble-


mas relacionados ao alcoolismo. Dados da OMS estimam que 2,3
milhes de mortes prematuras por ano se relacionam ao uso nocivo
do lcool, o que corresponde a 3,7% da mortalidade global
(SCHUCKIt, 2009).
O II Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas Psicotrpicas
(CArLINI et al., 2007) mostrou que o lcool a substncia lcita
mais utilizada nas 108 maiores cidades do Brasil. Do total de 7.939
indivduos entrevistados, 74,6% faziam uso de lcool e 12,3%
foram diagnosticados como dependentes dessa substncia. A pre-
valncia do tabagismo foi de 44% e 10% para o uso durante a vida
e para dependncia do tabaco, respectivamente. Nesse mesmo es-
tudo, verificou-se que 22,8% dos indivduos estudados, a maioria
do sexo masculino, j havia feito o uso de substncias ilcitas du-
rante a vida. No Brasil, observa-se que a droga ilcita de maior
consumo e de maior acessibilidade a maconha (8,8%), seguida
pelos solventes (6,1%), os benzodiazepnicos (5,6%), a cocana
(2,9%) e o crack (1,5%). Segundo estudos publicados no relatrio
mundial sobre drogas de 2007, da Organizao das Naes Uni-
das (ONU), no Brasil, foi detectado aumento do uso de cocana
e de maconha, que se modificaram de 0,4% no ano de 2001 para
0,7% em 2005 e de 1% no ano de 2001 para, aproximadamente
3% em 2005, respectivamente.
Diversos fatores que determinam o incio do
consumo de substncias tm sido elencados, dentre eles
Hedonismo: busca pelo prazer.
destacam-se o hedonismo, a curiosidade, o alvio da dor,
do sofrimento e o desejo de vivenciar novas experincias
(BrAJEVI-GIzDI et al., 2009). Os episdios depres-
sivos tm sido associados ao abuso de substncias
(BUKStEIN, et al., 1989).
Alm dos transtornos psiquitricos, vrias comorbidades
clnicas associam-se ao uso abusivo e dependncia de lcool e dro-
gas no lcool.

92
Efeitos somticos e alteraes clnicas do lcool,tabaco e da maconha.

Consequncias clnicas associadas ao uso de lcool

O espectro de anormalidades associadas ao uso abusivo


de lcool enorme. Dentre eles destacam-se aumento do risco car-
diovascular, do risco de cncer, de adoecimento, aumento da trans-
misso de Doenas Sexualmente transmissveis (DSt) e HIV (sexo
desprotegido e injeo de drogas) e aumento da violncia e de aci-
dentes. No Brasil, o lcool responsvel por cerca de 60% dos aci-
dentes de trnsito e considerado uma das causas de morte
descritas em 70% dos laudos cadavricos de mortes violentas
(MArQUES; rIBEIrO, 2002).
Mais de sessenta e um tipos de doenas relacionadas ao
uso abusivo de lcool foram descritos na literatura mdica. Muitas
dessas comorbidades repercutem sobre o trato gastrointestinal. Isso
faz que o alcoolismo seja causa frequente de internao nos servios
de gastroenterologia. Nesses casos, os pacientes so admitidos com
quadros graves de dependncia de lcool e, na maioria das vezes, j
acompanhados por doenas associadas ao uso dessa substncia.
Dentre os possveis diagnsticos envolvidos, destacam-se a doena
heptica alcolica, que pode estar ainda na fase assintomtica ou j
ter atingido o estgio mais avanado (cirrose heptica e hepatocar-
cinoma), pancreatites (aguda ou crnica) e diversos tipos de cncer
como de esfago e de estmago (WHO, 2007). Vale ressaltar que
muitas dessas situaes evoluem para complicaes graves e irre-
versveis.

93
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Tabela 1
Resumo das principais consequncias clnicas
associadas ao uso do lcool

Alteraes neurolgicas (SHERLOCK, 2011)


Sndrome de Wernicke-
Sndrome de Wernicke-Korsakoff
Korsakoff: tambm conhecida Doena cerebelar
como encefalopatia alcolica. Atrofia cerebral
Trata-se de uma neuropatolo-
gia relacionada a deficincia de Neuropatia perifrica
vitamina B1 (tiamina). Esta sn- Alteraes cardiolgicas (SHERLOCK, 2011)
drome caracterizada pela
trade de sintomas: paralisia de Arritmias, hipertenso arterial
movimentos oculares, alte- Cardiomiopatia
raes da marcha e confuso
mental (desorientao tem-
Doena cardaca isqumica
poro-espacial e amnsia an- Complicaes hematolgicas
tergrada). Alteraes musculares e esquelticas (SHERLOCK, 2011)
Miopatia
Osteoporose
Alteraes gastrointestinais (GONALVES, 2012)
Hepatopatias (esteatose, cirrose heptica e hepatite)
Esteatose: acmulo anormal e
reversvel de lipdeos (gordura) Pancretite crnica
nas clulas hepticas. um lcera e gastrite
precursor de doenas hepticas
mais graves como a cirrose Neoplasias (boca, lngua, esfago, estmago e fgado)
heptica. Alteraes nutricionais (MAIO, et al., 2000)
Deficincia de micronutrientes (vitamina B12, folato, tiamina, piridoxina,
niacina, riboflavina, magnsio, zinco, clcio) e macronutrientes (protena)
Desnutrio
Alteraes hematolgicas (PALADINO, 2000)
Anemia megaloblstica e anemia ferropriva
trombocitopenia
Alteraes pulmonares (GONALVES, 2012)
Incidncia aumentada de tuberculose e de pneumonias bacterianas

Intoxicao aguda pelo lcool

A intoxicao pelo lcool determina o surgimento de


sinais e sintomas que so caracterizados pela depresso do sis-
tema nervoso central. Inicialmente, h sintomas de euforia leve,
94
Efeitos somticos e alteraes clnicas do lcool,tabaco e da maconha.

evoluindo para tontura, ataxia e incoordenao motora, Ataxia: incoordenao pa-


tolgica dos movimentos do
passando para confuso e desorientao. Pode alcanar corpo.
graus variveis de rebaixamento do nvel de conscin-
cia, inclusive evoluir com estupor e coma (MArQUES; Estupor: alterao da cons-
cincia marcado pelo entor-
rIBEIrO, 2002). A intoxicao aguda provoca altera- pecimento das faculdades
cognitivas acompanhado de al-
es variveis do comportamento e do afeto, tais como teraes motoras e sensitivas.
excitao e alegria, irritabilidade, agressividade, depres- Coma:
cia.
Estado de inconscin-

so e ideao suicida. Ainda, alteraes cognitivas esto


presentes como lentificao do pensamento, prejuzo
da concentrao, raciocnio, ateno e julgamento. H
maior susceptibilidade para acidentes automobilsticos,
agresses fsicas, suicdios e homicdios e outros aci-
dentes (LArANJEIrA et al., 2000).
A correlao entre nveis sanguneos de lcool (mg%),
alteraes clnicas e condutas a serem adotadas esto descritas
no Tabela 2.

95
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Tabela 2
Nveis plasmticos de lcool (mg%), manifestaes clnicas e condutas

Alcoolemia Quadro clnico Conduta


(mg%)
30 Euforia e excitao alteraes Ambiente calmo.
leves da ateno. Monitoramento dos sinais vitais.
50 Incoordenao motora discreta Ambiente calmo.
alterao do humor personalidade Monitoramento dos sinais vitais.
e comportamento.
100 Incoordenao motora pronunciada Monitoramento dos sinais vitais.
com ataxia diminuio da concen- Cuidados intensivos manuteno
trao, piora dos reflexos sensitivos das vias areas livres.
e piora do humor. Observar risco de aspirao do vmito.
200 Piora da ataxia, nusea e vmitos Internao.
Manuteno das vias areas livres.
Observar risco de aspirao.
Administrao intramuscular de tiamina.
300 Disartria, amnsia, hipotermia e estu- Internao.
por (estgio I). Cuidados gerais para a manuteno
da vida.
Administrao intramuscular de tiamina.
400 Coma/bito (bloqueio respiratrio Emergncia mdica.
central). Cuidados intensivos para a
manuteno da vida.
Seguir diretriz apropriada para a
abordagem do coma.

Fonte: MARQUE;RIBEIRO, 2002

Sndrome de abstinncia: Sndrome de abstinncia do lcool


Conjunto de sintomas cuja
gravidade varivel que ocor-
rem quando da interrupo ab-
soluta ou relativa do uso de
A cessao da ingesto crnica de lcool ou sua
uma substncia psicoativa con- reduo pode levar ao aparecimento de um conjunto de
sumida de modo prolongado. O
incio e a evoluo da sndrome sinais e sintomas definidos como sndrome de abstinncia
de abstinncia so limitadas no
tempo e dependem da catego- do lcool (SAA) (MArQUES; rIBEIrO, 2002).
ria e da dose da substncia con-
sumida imediatamente antes da
parada ou da reduo do con-
sumo. A sndrome de abstinn-
96
cia pode se complicar pela
ocorrncia de convulses.
Efeitos somticos e alteraes clnicas do lcool,tabaco e da maconha.

Os sinais e sintomas mais comuns da SAA so: Delirium Tremens: estado con-
fusional que ocorre durante a ab-
agitao, ansiedade, alteraes de humor (irritabilidade, stinncia de lcool em indivduos
dependentes dessa substncia.
disforia), tremores, nusea, vmitos, taquicardia, hiper- caracterizado por confuso men-
tenso arterial, entre outros. Ocorrem complicaes tal, desorientao, ideao per-
secutria, delrios, iluses,
como: alucinaes, o Delirium Tremens (Dt) e convulses alucinaes (tipicamente visuais
de animais), inquietude, tremores,
(LArANJEIrA et al., 2000). Os sintomas, em geral, re- sudorese, taquicardia e hiperten-
lacionam-se ao desenvolvimento da adaptao do cre- so. A instalao do delirium
tremens ocorre 48 horas ou mais
bro exposio crnica do lcool e variam quanto aps a cessao ou reduo do
consumo de lcool e pode durar
intensidade e gravidade. por mais de uma semana.

A SAA tem uma durao mdia de sete a 10 dias e a maior


parte dos dependentes (70% a 90%) apresenta SAA entre leve a
moderada, que ocorre no perodo de 24 a 36 horas aps a inter-
rupo da ingesto do lcool. Contudo, alguns pacientes podem de-
senvolver sintomas e complicaes mais graves, inclusive evoluir
para o bito (LArANJEIrA et al., 2000). A mortalidade gira em
torno de 1% (MArQUES; rIBEIrO, 2002).
Vrios fatores influenciam o aparecimento e a evoluo
dessa sndrome, entre eles destacam-se a vulnerabilidade gentica,
o gnero, o padro de consumo de lcool, as caractersticas indivi-
duais e os fatores socioculturais (LArANJEIrA et al., 2000).
De acordo com a Classificao Internacional das Doen-
as (CID), da Organizao Mundial de Sade (OMS), existem cri-
trios para o diagnstico da SAA, que esto descritos na Tabela 3
(MArQUES; rIBEIrO, 2002).

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Manual de abordagem de dependncias qumicas

Tabela 3
Critrios para o diagnstico da Sndrome de Abstinncia do lcool (SAA)

Estado de abstinncia (F10.3)


A. Deve haver evidncia clara de interrupo ou reduo do uso de lcool, aps uso repetido,
usualmente prolongado e/ou em altas doses.
B. Trs dos sinais devem estar presentes:
(1) tremores da lngua, plpebras ou das mos quando estendidas;
(2) sudorese;
(3) nusea, nsia de vmitos ou vmitos;
(4) taquicardia ou hipertenso;
(5) agitao psicomotora;
(6) cefaleia;
(7) insnia;
(8) mal-estar ou fraqueza;
(9) alucinaes visuais, tteis ou auditivas transitrias,
(10) convulses tipo grande mal.
Fonte: LARANJEIRA et al., 2000

A gradao da SAA varia entre nvel I (leve a moderado) e


nvel II (grave). O nvel I caracterizado por agitao psicomotora
leve e caracterizado por tremores finos de extremidades; sudorese
facial discreta; episdios de dor de cabea; nusea sem vmitos; sen-
sibilidade visual sem alterao da percepo auditiva e ttil, ansiedade
leve sem episdios de violncia. O tratamento pode ser feito ambu-
latorialmente. Contudo, o nvel II associa-se agitao psicomotora
intensa, com tremores generalizados, sudorese profusa, cefaleia, nu-
sea e vmitos, sensibilidade visual intensa e quadros epiletiformes
agudos ou relatados na histria pregressa. Nesse quadro, o paciente
apresenta desorientao e ansiedade intensa. Diante de indivduos
com caractersticas de SAA, nvel II, o tratamento deve ser feito me-
diante hospitalizao (LArANJEIrA, et al., 2000).
SAA responsvel por um aumento significativo na
morbidade e mortalidade relacionadas ingesto de lcool e um
dos critrios diagnsticos da sndrome de dependncia de lcool
(MACIEL, et al., 2004).
98
Efeitos somticos e alteraes clnicas do lcool,tabaco e da maconha.

O tratamento tem como objetivo o alvio dos sintomas


existentes, a preveno, quadro graves acompanhados por convul-
ses e delirium. Alm desse aspecto, torna-se essencial estimular e
direcionar o paciente para o tratamento da dependncia qumica
(LArANJEIrA, 2000).
muito importante o acompanhamento desses pacientes
por uma equipe interdisciplinar e multiprofissional, em que vrios
profissionais da sade atuam em benefcio do paciente, sendo ne-
cessrio tambm o suporte para os familiares (LArANJEIrA, et
al., 2000).

Sndrome de dependncia do lcool

A Sndrome da Dependncia do lcool um transtorno


psiquitrico com repercusses individuais, sociais e econmicas gra-
ves (GIGLIOttI et al., 2004).
No Brasil, a prevalncia varia de 3% a 10% na populao
adulta, sendo que o lcool considerado a substncia psicotrpica
mais consumida no pas (MONtEIrO et al., 2011). Em 2002, ocor-
reram 4.580 e 515 bitos, nos indivduos do sexo masculino e fe-
minino, respectivamente (LEON, 2007). O uso compulsivo de
lcool ocasiona reduo da qualidade de vida para o indivduo e
seus familiares e, ainda, associa-se atitudes antissociais (MON-
tEIrO et al., 2011). Na Tabela 4, encontram-se as caractersticas da
Sndrome de Dependncia do lcool (SDA).

99
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Tabela 4
Elementos essenciais para o diagnstico da Sndrome de
Dependncia do lcool (SDA)

Estreitamento de repertrio: o indivduo utiliza a bebida com flexibilidade,



mas depois aumenta a frequncia do consumo, aumentando a quantidade
e com o passar do tempo, torna-se compulsivo e incontrolvel.
Relevncia do comportamento de busca pela bebida: o indivduo prioriza

o ato de beber que se torna superior famlia, ao trabalho e aos amigos.


Aumento da tolerncia ao lcool: h necessidade do aumento das
doses para obter o mesmo resultado das doses menores.
Sintomas repetidos de abstinncia: se tornam mais intensos de acordo
com a gravidade da dependncia.
Alvio ou evitar sintomas de abstinncia pelo aumento da ingesto da bebida, que
sintoma importante dessa sndrome sendo mais evidente com a progresso do quadro.
Conscincia subjetiva da compulso para beber no sentido de aliviar
os sintomas da abstinncia.
Reintegrao da sndrome aps abstinncia: ocorre aps longos perodos de
abstinncia, seguidos de uma recada retornando para o quadro antigo de dependncia.

Fonte: GIGLIOTTI et al., 2004

O diagnstico de dependncia de lcool feito quando h


um padro de consumo desproporcional da substncia evidenciado
durante um ano. tambm necessrio trs ou mais das seguintes
manifestaes: desejo forte ou senso de compulso para consumir
a substncia; dificuldade em controlar o comportamento de con-
sumir a substncia em termos de incio, trmino ou nveis de con-
sumo; e estado de abstinncia quando o uso da substncia cessou
ou foi reduzido (MONtEIrO et al., 2011).
O tratamento pode ser feito ambulatorialmente ou por
meio de hospitalizao (MONtEIrO, 2011). Ainda, o plano tera-
putico pode englobar outros tipos de interveno como Alcoli-
cos Annimos (AA) em que a dinmica baseada na terapia de
grupo. primordial que o suporte teraputico envolva o indivduo
e seus familiares.

100
Efeitos somticos e alteraes clnicas do lcool,tabaco e da maconha.

Consequncias clnicas associadas dependncia da nicotina

O tabagismo uma doena causada pela depen- Tabagismo: sndrome de de-


dncia nicotina, droga presente em qualquer derivado pendncia ao tabaco.
do tabaco, seja cigarro, charuto, cachimbo, cigarro de
palha ou fumo de rolo. A nicotina exerce sua ao au-
mentando as concentraes de dopamina, que por sua
vez, induz a sensao de prazer, relaxamento e reduo
do estresse, o que acaba por levar a dependncia. Alm
disso, a nicotina ocasiona diversos efeitos prejudiciais
sade (CUNHA et al., 2007). Dentre eles, destacam-se au-
mento do risco de doenas cardiovasculares, doenas pul-
monares, aumento do risco de cncer, osteoporose,
lceras gstricas e influncia sobre a fertilidade (BrASIL,
2001).
A nicotina ao atuar sobre o corao ocasiona aumento
da frequncia cardaca, da contrao do corao e da vasocons-
trio coronria (artrias responsveis pela irrigao sangunea do
corao). Esses efeitos acarretam diminuio do fluxo sanguneo
para rgos nobres como o corao e o crebro. Essas alteraes
determinam o surgimento de leses nesses rgos alvo: infarto
agudo do miocrdio e acidente vascular cerebral (AVC). A fumaa
do cigarro tambm contm o monxido de carbono (CO), gs
que dificulta a chegada de oxignio s clulas, aumentando ainda
mais os riscos de doenas isqumicas. Alguns estudos apontam
que o consumo de tabaco responsvel por 45% dos bitos por
doena coronariana (infarto do miocrdio) e 25% das mortes por
doena cerebrovascular (WHO, 1996; DOLL, 1994; U.S. SUr-
GEON GENErAL, 1989; rOSEMBErG, 2002 apud BrASIL,
2003b). Ainda, alteraes nos vasos sanguneos e aumento da
agregao plaquetria, situaes que elevam, consideravelmente,
o risco de trombose, tambm so identificadas (CUNHA et al.,
2007).

101
Manual de abordagem de dependncias qumicas

A nicotina ocasiona broncoconstrio, isto , dificulta a


passagem de ar para esse rgo. Ainda, eleva a produo de muco,
o que pode ocasionar bronquite crnica obstrutiva e acomete cerca
de 80% dos fumantes. Ao longo do tempo, devido s continuas
agresses, ocorre instalao de processo inflamatrio crnico, as-
sociado a fatores genticos e acarreta leso alveolar (responsvel
pelas trocas gasosas), resultando assim em enfisema pulmonar. Essa
doena tem grandes repercusses na sade do indivduo, como por
exemplo, dispneia (falta de ar), hipxia (diminuio da oxigenao
dos tecidos), cianose (colorao azulada da pele) e alteraes do
formato do trax (trax globoso). (LOPEz et al., 2004)
O uso do tabaco est relacionado taxa de mortalidade
por cncer duas vezes maior em fumantes do que em no fumantes,
sendo o tabagismo responsvel por 90% dos casos de cncer de
pulmo (VOLKOW, 2006).
Na gestao, o uso de nicotina pode ocasionar alteraes
como prematuridade, baixo peso ao nascer, alteraes na placenta
e, aps o nascimento, pode provocar alteraes do sistema respira-
trio e do desenvolvimento neurolgico da criana (Abordagem e
tratamento do Fumante, Brasil, et al., 2001).
As consequncias do tabagismo passivo tambm devem
ser consideradas. Alguns estudos apontam que os no-fumantes,
cronicamente expostos fumaa do tabaco, tm 30% de risco de
desenvolver cncer de pulmo e 24% de risco de desenvolver doen-
as cardiovasculares a mais que os no-fumantes no expostos
(WHO, 1996; DOLL, 1994; U.S. SUrGEON GENErAL, 1989;
rOSEMBErG, 2002 apud BrASIL, 2003b). A exposio de crian-
as pequenas e, especialmente bebs, fumaa do cigarro dos pais
aumenta em 50% o risco infeco respiratria baixa, como pneu-
monia e bronquite (BrASIL, 2007).
Deve-se enfatizar que sempre h benefcios diretos e indi-
retos para quem deixa de fumar, independente da idade ou do sexo.
Como exemplo, aps trs semanas sem fumar a respirao se torna

102
Efeitos somticos e alteraes clnicas do lcool,tabaco e da maconha.

mais fcil e a circulao melhora; aps um ano o risco de morte por


infarto do miocrdio se reduz metade e, aps cinco a 10 anos o risco
de sofrer infarto ser igual ao das pessoas que nunca fumaram; aps
20 anos sem uso do tabaco o risco de desenvolver cncer de pulmo
ser igual ao das pessoas que nunca fumaram (BrASIL, 2001).

Consequncias clnicas associadas ao uso da maconha

A maconha ocasiona efeitos narcticos e aluci- Narctico: que causa sono e


ngenos, isto , sintomas de bem-estar que reforam seu faz adormecer.
uso continuado o principal motivo pelo qual essa droga
utilizada como droga de abuso. Seu uso amplamente
difundido no mundo e a maior importncia dessa droga
est no fato de que ela, muitas vezes, torna-se o passo
inicial no caminho da dependncia qumica, j que muitos
usurios de outras drogas, como cocana e crack, relatam
a maconha como primeira droga ilcita de abuso.
A maconha preferencialmente fumada a partir da com-
binao de diversas partes da planta na forma de cigarros de fabri-
cao caseira baseados, em cachimbos ou narguils. Podem
tambm ser ingerida (folhas mascadas) ou preparada com alimentos
(infuses ou ch de folhas, caules ou bolos). A biodisponibilidade
da substncia nesses casos maior, e os efeitos mais tardios, mas
mais intensos e duradouros (LArANJEIrA, et al., 2000).
O tempo de ao varia de duas a quatro horas, depen-
dendo da qualidade e da quantidade de substncia utilizada. O me-
tabolismo do tetrahidrocanabinol (tHC) principalmente heptico,
mas tambm pulmonar, com formao de derivados canabinides
ativos, com grande afinidade lipdica, concentrando-se rapidamente
em crebro e gnadas. A eliminao de metablitos pode ser pelas
fezes ou pela urina. Os canabinides so detectveis na urina at
sete dias aps o uso de um cigarro (FILHO et al., 2001).

103
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Manifestaes clnicas

So manifestaes comumente relatadas: relaxamento, eu-


foria, alegria e aumento da acuidade dos sentidos, associados dis-
toro com relao orientao temporo-espacial, diminuio do
senso crtico e da capacidade executiva, podendo ocorrer tambm
prejuzos na coordenao dos movimentos, distrbios de equilbrio
e fala arrastada (FILHO et al., 2001).
Ainda, alguns sintomas somticos so identificados: taqui-
cardia, xerostomia, congesto de conjuntivas, alteraes da pupila
e dificuldade de acomodao visual, aumento do apetite, nusea,
vmitos e aumento relativo da libido (desinibio, com consequente
facilitao do desempenho sexual).

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Efeitos somticos e alteraes clnicas do lcool,tabaco e da maconha.

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107
Captulo 8

Alteraes clnicas caractersticas do uso de crack


Luciana Diniz Silva
Kiara Gonalves Dias Diniz
Daniel Gonalves Dias Diniz
Lucas de Freitas Virglio

Introduo

Apesar do uso de crack ainda no ser o maior


problema de sade pblica, associado ao uso de drogas,
a prevalncia do uso dessa droga tem crescido no Brasil
Prevalncia do uso de
nos ltimos dez anos. A prevalncia do uso de crack era de crack: cresceu de 0,4% em
2001, para 0,7% em 2004,
0,4% em 2001, 0,7% em 2004 e 0,85% em 2013 (FIO- para 0,85 em 2013.
CrUz, 2013). A dependncia ao crack instala-se rapida-
mente, e em muitos casos, assume uma forma
devastadora do ponto de vista somtico, social e psico-
lgico.

O crack e a cocana
Crack: substncia derivada da
Crack (tambm chamado de craque) uma cocana que pode ser fumada.
Seus efeitos diferenciam-se do
droga, geralmente, fumada feita a partir da mistura clori- da cocana por serem de incio
drato de cocana com bicarbonato de sdio e amonia. mais rpido e de durao mais
curta.
uma forma impura de cocana e no um subproduto. O
Manual de abordagem de dependncias qumicas

nome deriva do verbo to crack, que, em ingls, significa


quebrar, devido aos pequenos estalidos produzidos
pelos cristais (as pedras) ao serem queimados, como se
quebrassem (BAStOS, 1997; LANDry, 1994).

Alteraes clnicas produzidas pelo uso do crack

O uso do crack pode desencadear sintomas gra-


Delrio: modificao do pensa-
mento marcada por uma falsa ves de agressividade, de delrios e alucinaes, alm de acar-
crena irrefutvel a argumen-
tao lgica. retar prejuzos importantes sade fsica e mental do
Alucinaes: so percepes
sensoriais reais de um objeto
indivduo (LArANJEIrA et al., 2001; GUINDALINI et
que no existe. al., 2006).
Quando o crack fumado, a fumaa contendo a
substncia atinge o pulmo, absorvida e a cocana
transportada pela corrente sangunea at o crebro. A co-
cana distribuda pelo organismo por meio da circulao
Metabolismo: conjunto de
transformaes qumicas sangunea e, por fim, uma vez metabolizada, eliminada
feitas nas molculas que en-
tram no organismo para neu- pela urina. Sua ao no crebro responsvel pela de-
tralizao ou eliminaoo de
uma droga.
pendncia.
Dentre as consequncias clnicas do uso do
Paranoia: sentimento de des-
crack destacam-se doenas pulmonares, comorbidades
confiana persistente, exces- psiquitricas (psicose, paranoia, alucinaes) e doenas
sivo, mal fundamentado e
irremovvel pela argumentao cardacas (DIrEtrIzES GErAIS MDICAS PArA
lgica.
ASSIStNCIA INtEGrAL AO CRACK, 2011).
Dessa maneira, o espectro de alteraes clnicas associadas
ao uso do crack variado (Tabela 1) e observam-se desde alteraes
locais, como queimaduras e bolhas em pontas dos dedos (Figura 1),
podendo se associar s leses graves em vias respiratrias que amea-
am a vida dos indivduos (rIBEIrO et al., 2010).

110
Alteraes clnicas caractersticas do uso de crack

Tabela 1
Efeitos e manifestaes clnicas relacionadas ao uso do crack/cocana

Cardacas
Angina do peito, Arritmias cardacas, Cardiomiopatia dilatada, Edema agudo de pulmo,
Hipertenso arterial, Hipertrofia de ventrculo esquerdo, Infarto agudo do miocrdio,
M-formaes cardacas (CIA, CIV e pulmonar), Miocardite, Rotura de aorta
Gastrointestinais
Colite isqumica, Isquemia intestinal, Perfurao gastroduodenal
Obsttricas
Baixo peso para a idade gestacional, Descolamento prematuro de placenta,
Microcefalia, Prematuridade
Neurolgicas
Atrofia cerebral, Convulses, Dor de cabea, Hemorragia cerebral,
Infarto cerebral, Vasculite Cerebral
Pulmonares
Bronquilote obliterante, Crack lung, Edema pulmonar, Exacerbao de asma,
Pnemomediastino, Pnemopericrdio, Pneumotrax
Otorrinolaringolgicas
Alteraes do olfato, Ceratite, Eroso do esmalte do dente, Perfurao de septo nasal,
Rinite crnica, Sinusite osteoltica, Ulcerao gengival
Psiquitricas
Ansiedade, Delrio, Depresso, Paranoia, Psicose, Suicdio
Endcrinas
Hiperprolactinemia
Renais
Insuficincia renal aguda (rabdomilise)
Outras
Defeito do epitlio da crnea, Hipertermia, Morte sbita, Neuropatia ptica, Priaprismo

Adaptado de ANDRADE FILHO et al., 2001.

111
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Figura 1
Leses cutneas por queimadura nas pontas dos dedos de
caractersticas de usurios de crack

Alteraes cardacas associadas ao uso de cocana/crack

Os sintomas cardiovasculares so os mais com-


prometedores e ameaadores vida de usurios de crack.
Angina: dor no peito de incio Dentre esses, destacam-se angina, cardiomegalia, infarto
agudo.
agudo do miocrdio (ASLIBEKyAN et al., 2008;
MArAJ et al., 2010), arritmias, isquemia miocrdica
aguda, hipertenso arterial, ruptura da aorta, morte sbita
entre outros (JONES et al., 2003; AFONSO et al., 2007;
MArAJ et al., 2010).
Nos Estados Unidos, o uso abusivo de cocana consi-
derado causa frequente de dor torcica em adultos e jovens, e
responsvel por 25% dos infartos do miocrdio em pessoas com
menos de 45 anos de idade (QUrESHI et al., 2001). O uso da
cocana est relacionado aos efeitos txicos agudos e crnicos,
sendo que dos atendimentos hospitalares, cerca de 5% a 10%

112
Alteraes clnicas caractersticas do uso de crack

tem como causa o uso da cocana (ASLIBEKyAN et al., 2008;


MArAJ et al., 2010).
O efeito alfa-adrenrgico, produzido pelo bloqueio da re-
captao de noradrenalina causa vasoconstrio coronariana
(LANGE et al., 1989), sendo assim, a cocana estimula o sistema
nervoso central, ocasionando o aumento da presso arterial e a ace-
lerao dos batimentos cardacos (MArAJ et al., 2010). Alm desse
aspecto, seu uso promove a agregao plaquetria e formao de
trombos no local e, em longo prazo, acelera a aterosclerose e pro-
duz hipertrofia ventricular esquerda (HOLLANDEr, 1995).

Figura 2
Aumento do trabalho cardaco, sob efeito da cocana, com reduo do
aporte de glicose e oxignio para o corao, aumentando assim o risco
de isquemia, arritmias e infarto agudo do miocrdio (RIBEIRO et al., 2010).

113
Manual de abordagem de dependncias qumicas

A terapia utilizada em quadro agudo de dor torcica ba-


seada em administrao de oxignio suplementar, aspirina, nitratos
e benzodiazepnicos, quando o paciente apresenta taquicardia, hi-
pertenso ou ansiedade. O paciente deve ficar em observao cl-
nica por 24 horas que se seguem admisso hospitalar. J no caso
de infarto agudo do miocrdio induzido pelo uso de cocana/crack
deve-se seguir o tratamento para dor no peito pelo efeito da
cocana, recomendado pela American Heart Association (AHA)
(rIBEIrO et al., 2010).

Alteraes pulmonares associadas ao uso de cocana/crack

A cocana exerce efeito estimulatrio agudo sob o aparelho


respiratrio, quando em pequenas doses, e depresso respiratria no
caso do uso excessivo. Por sua vez, o crack a substncia ilcita mais
associada s complicaes respiratrias que exigem internao hos-
pitalar. As alteraes pulmonares esto associadas via de adminis-
trao da droga, quantidade e frequncia do uso e das caractersticas
individuais de cada usurio. Ainda, em funo da inexistncia de con-
trole de qualidade na produo da droga, a variedade de produtos
utilizados em sua produo tambm determina dano pulmonar
(tErrA FILHO, 2004; LArANJEIrA et al., 2010).
Usurios de crack podem evoluir com vrias complica-
es, desde queimadura da faringe e das vias areas, at pneumonias
e infeces secundrias (rIBEIrO et al., 2010). A apresentao cl-
nica variada, incluindo sintomas inespecficos ou diretamente re-
lacionados ao dano pulmonar, presentes aps 1 a 12 horas do uso
(LArANJEIrA et al., 2010). As manifestaes so compostas por
dor torcica, dispneia, tosse com escarro enegrecido, expectorao
sanguinolenta, chiado e febre. Quadros de asma podem ser induzi-
dos ou exacerbados em funo da ocorrncia de broncoespasmo
(tErrA FILHO, 2004).

114
Alteraes clnicas caractersticas do uso de crack

Geralmente, os usurios inspiram profundamente e, em


seguida, executam a manobra de Valsalva para acentuar a absoro
e os efeitos da droga. Essas manobras provocam aumento da pres-
so intra-alveolar e desencadeiam ruptura alveolar. Complicaes
semelhantes so menos observadas em fumantes de maconha
(VANDEr KLOOStEr e GrOOtENDOrSt, 2001). Dessa
maneira, o enfisema bolhoso, s vezes ocorre em sua forma grave
nos usurios de cocana, de maconha (JOHNSON et al., 2000) e de
metilfenidato intravenoso (SCHIMIDt et al., 1991).
Dentre as complicaes pulmonares subagudas relaciona-
das ao uso da cocana, incluem-se edema pulmonar, pulmo do
crack, pneumonite intersticial e bronquiolite obliterante com pneu-
monia de organizao (BOOP) (DEVLIN et al., 2008).
O pulmo do usurio de crack caracterizado pela dis-
pnia aguda, acompanhada por baixa concentrao de oxignio no
sangue, febre, expectorao sanguinolenta e insuficincia respira-
tria (FOrrEStEr et al., 1990). Do ponto de vista antomo-pa-
tolgico, observa-se leso alveolar, hemorragia alveolar e infiltrao
de clulas inflamatrias intersticiais e intra-alveolar (DEVLIN et al.,
2008).

Alteraes gastrointestinais associadas ao uso de cocana/crack

As alteraes gastrointestinais associadas ao uso


de cocana so menos comuns que as pulmonares e car-
dacas. Aps o uso da droga, o usurio pode apresentar
dor abdominal, nusea, vmito e diarreia com sangue
(tIWArI et al., 2006). O uso de cocana por qualquer via
Xerostomia: boca seca.
de administrao produz xerostomia, bruxismo e reduo Bruxismo: contrao da man-
dbula causando o ranger dos
da motilidade gastrointestinal. Alm dessas alteraes, a dentes.
cocana induz isquemia e vasoconstrio, que podem re-
sultar em ulcerao gastrointestinal, perfurao e colite

115
Manual de abordagem de dependncias qumicas

isqumica. lceras associadas cocana so distribudas, principal-


mente na primeira poro do duodeno e na curvatura maior e re-
gio pr-pilrica do estmago (LArANJEIrA et al., 2010).
Leses no fgado tambm esto relacionadas ao uso da
droga. A cocana ocasiona necrose hepatocelular com aumento das
aminotransferases. Contudo, como usurios de cocana, comu-
mente fazem uso abusivo de lcool, na maioria das vezes difcil
determinar o impacto isolado de cocana/crack na funo heptica.
Sabe-se que a ingesto concomitante de lcool pode sensibilizar
os hepatcitos a danos pela cocana (LArANJEIrA et al., 2010;
PErINO et al., 1987; PONSODA et al., 1999).

Alteraes renais associadas ao uso de cocana/crack

A funo renal pode ser influenciada pelo uso


de cocana/crack. Dentre os mecanismos implicados na
disfuno renal, destacam-se alteraes hemodinmicas,
anormalidades na sntese da matriz glomerular, vasocons-
Rabdomilise: quebra rpida
de msculo esqueltico devido
trio e rabdomilise. Esse ltimo evento refere-se des-
a leso no tecido muscular. truio de clulas musculares e se associa vasocontrio
arterial grave, ao aumento da atividade do sistema ner-
voso autnomo simptico e hipertermia. A disfuno
renal pode ocasionar insuficincia renal aguda, que nor-
malmente responde ao tratamento conservador, porm
pode ser necessria dilise (HOSSEINNEzHAD et al.,
2011).

Caso clnico ilustrativo do desafio na abordagem do


usurio de cocana/crack: padro de uso poliuso

Vida real - caso clnico do Ambulatrio de Dependncia Qumica


(FM/UFMG)

116
Alteraes clnicas caractersticas do uso de crack

Paciente, sexo masculino, trinta e oito anos, usurio de


drogas injetveis (UDI), etilista de longa data e portador do vrus
da hepatite C (VHC), iniciou o uso abusivo de lcool (280
gramas/dia) e de tabaco (20 maos/ano) aos 10 anos de idade, que
foram seguidos pelo consumo de maconha. Aos quatorze anos, co-
meou a fazer uso de cocana inalvel e injetvel. A partir de deze-
nove anos, iniciou adico ao crack em doses progressivamente
elevadas, concomitantes ao etilismo e ao uso de maconha. Em 2012,
foi detectada infeco pelo VHC, por meio do teste rpido para
rastreamento da hepatite C. Essa infeco foi confirmada pela pro-
pedutica complementar: reao em cadeia de polimerase positiva;
Genotipagem: gentipo 1 subtipo a. Contudo, aos trinta e dois anos
de idade, o paciente j apresentava sinais de hepatopatia avanada
com varizes esofagianas de fino e mdio calibre e gastropatia pr-
pria da hipertenso portal. Encaminhado ao Servio de Dependn-
cia Qumica para abordagem e tratamento da adico. Nesse
momento, relatou sintomas de humor deprimido, ideao suicida e
tentativa de autoextermnio. A conduta psiquitrica baseou-se na
prescrio de fluoxetina e benzodiazepnico, na entrevista motiva-
cional e no incentivo interrupo do uso de drogas. Em funo
de instabilidades na estrutura familiar e emocional e da dependncia
crnica de psicoestimulantes, cursou com irregularidade o uso da
medicao prescrita, recadas em relao ao uso de drogas e sinto-
mas de abstinncia.

Concluses:

n Crack forma impura de cocana, constitudo de uma


mistura de pasta de cocana com bicarbonato de sdio.
nO crack uma droga ilcita amplamente usada, que causa
dependncia e acarreta prejuzos importantes sade fsica e mental
do indivduo.

117
Manual de abordagem de dependncias qumicas

O crack utilizado principalmente fumado. A fumaa t-


n

xica dessa substncia atinge o pulmo, vai corrente sangunea e


chega ao crebro. distribudo pelo organismo por meio da circu-
lao sangunea, sendo eliminado pela urina.
O espectro de alteraes clnicas associadas ao uso do crack
n

variado e observam-se desde alteraes locais como queimaduras


e bolhas em pontas dos dedos, podendo se associar s leses graves
em vias respiratrias que ameaam a vida dos indivduos.
Dentre as consequncias do uso dessa droga destacam-
n

se doenas pulmonares, comorbidades psiquitricas (psicose, para-


noia, alucinaes) e doenas cardacas.
Os sintomas cardiovasculares so os mais compromete-
n

dores e ameaadores vida de usurios de crack. Esses sintomas


so causados, principalmente, pelo efeito alfa-adrenrgico e de es-
timulao do sistema nervoso central pela cocana.
No aparelho respiratrio, a cocana exerce efeito estimu-
n

latrio agudo quando em pequenas doses, e depresso respiratria


no caso do uso excessivo. A apresentao clnica variados, in-
cluindo sintomas inespecficos ou diretamente relacionados ao dano
pulmonar.
As alteraes gastrointestinais associadas ao uso de co-
n

cana so menos comuns. O uso de cocana produz xerostomia,


bruxismo e reduo da motilidade gastrointestinal. Aps o uso da
droga, o usurio pode apresentar dor abdominal, nusea, vmito e
diarreia com sangue.
Sabe-se que a ingesto concomitante de lcool pode sen-
n

sibilizar os hepatcitos a danos pela cocana. Porm, como usurios


de cocana comumente fazem uso abusivo de lcool, na maioria das
vezes difcil determinar o impacto isolado de cocana/crack na
funo heptica.
A cocana pode provocar disfuno renal por meio de
n

alteraes hemodinmicas, anormalidades na sntese da matriz glo-


merular, vasoconstrio e/ou rabdomilise.

118
Alteraes clnicas caractersticas do uso de crack

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120
Captulo 9

Adolescncia:
desenvolvimento normal e associado
ao uso de drogas
Maila de Castro L. Neves
Marina de Souza Maciel

Introduo

A adolescncia uma etapa em que os indiv-


duos experimentam novos interesses e desejos, observam
mudanas fsicas em seus corpos e se deparam com
maior liberdade, independncia e responsabilidade (Glad-
win et al., 2011). Apesar de definies distintas, a adoles-
Puberdade: idade em que o in-
cncia compreende o perodo do incio da puberdade, at divduo adquire maturidade
que o indivduo assuma seu papel social como adulto sexual e se torna apto para a
procriao.
(BLAKEMOrE et al., 2010). A adolescncia um pe-
rodo crtico da vida, quando falamos do uso, abuso e de-
pendncia de drogas.
Diversos fatores parecem colaborar para que adolescentes
estejam especialmente propensos a experimentar drogas (ArNEtt,
1992). Adolescentes so indivduos com a personalidade em for-
mao e influenciveis por hbitos de grupos aos quais gostariam
de pertencer (DAyAN et al., 2010). A adolescncia um perodo
da vida em que nem todas as partes do crebro esto completa-
mente formadas (MILLEr E COHEN, 2001). Adolescentes so
Manual de abordagem de dependncias qumicas

impulsivos e no calculam bem os riscos de suas aes (rEyNA E


FArLEy, 2006), tm uma tendncia a querer experimentar coisas
novas e transgredir, como forma de se afirmar (DAyAN et al., 2010).
Alm de mais propensos ao uso inicial, crebros de indi-
vduos durante a adolescncia so sensveis aos danos causados por
drogas (CLArK et al., 2008) e parecem ter maior sensibilidade para
se tornarem dependentes (WONG et al., 2013). Alm disso, a de-
pendncia iniciada em estgios precoces do desenvolvimento parece
ser especialmente grave e influenciar fortemente a personalidade e
os padres cognitivos desses adolescentes (GLADWIN et al., 2011).
Usar drogas durante a adolescncia pode acarretar danos irrevers-
veis durante a vida adulta (MAttHEWS, 2010).
O objetivo do presente captulo discutir as particulari-
dades do funcionamento cerebral durante a adolescncia, forne-
cendo arcabouo terico para pensarmos como aspectos
cognitivos, comportamentais e sociais podem predispor o adoles-
cente a usar e se tornar dependente de drogas; e como as drogas
vo influenciar o desenvolvimento de um indivduo ainda em for-
mao.

Neurodesenvolvimento

A adolescncia um dos eventos mais dinmicos de cres-


cimento e desenvolvimento humano. Aps a proliferao neuronal
na primeira infncia, o crebro reestrutura-se a partir do incio da
puberdade at vinte e quatro anos de idade, especialmente o crtex
pr-frontal (CPF) (ArAIN et al., 2013). O crebro do adolescente
passa por alteraes morfolgicas dramticas, que incluem mudan-
as na expresso de neurotransmissores e nos padres de conecti-
vidade (StUrMAN & MOGHADDAM, 2011). A adolescncia
uma fase da vida humana com especial plasticidade cerebral. O
termo plasticidade refere-se significativa capacidade neuronal

122
Adolescncia: desenvolvimento normal e associado ao uso de drogas

para aquisio de novas competncias. Os neurocircuitos podem


ser formados, refinados ou enfraquecidos durante a plasticidade, e
esse processo pode ser influenciado por exposio ambiental a
agentes potencialmente txicos. Uma parcela significativa do cres-
cimento e desenvolvimento cerebral que ocorre na adolescncia
a construo e fortalecimento de neurocircuitos regionais, resul-
tando em amadurecimento do CPF para controle do movimento,
resoluo de problemas, espontaneidade, memria, linguagem, con-
trole de impulsos, comportamento social e sexual. Por sua vez, o
processo de maturao, consolidao e reconstruo contnua do
CPF, pode predispor o adolescente a busca por novidades, inclusive
drogas (tAU & PEtErSON, 2010).
Dentre os neurotransmissores, a dopamina, a serotonina e
a melatonina, exercem papel fundamental no amadurecimento do c-
rebro na adolescncia. A dopamina modula a resposta emocional, a
capacidade de experimentar prazer e dor e o controle do movimento.
Durante a adolescncia, ocorre uma tendncia diminuio de do-
pamina, o que pode estar relacionado a mudanas de humor e difi-
culdade de regular as emoes. A serotonina, tambm reduzida nesse
perodo, desempenha papel significativo no controle dos impulsos,
nas alteraes de humor e na ansiedade. Por fim, a melatonina, regu-
ladora dos ritmos circadianos e do ciclo sono viglia, pode aumentar
a necessidade de sono entre os adolescentes (ArAIN et al., 2013).
Estruturas lmbicas esto envolvidas na expresso das
emoes e motivao, relacionam-se a sentimentos de prazer, com-
portamentos de recompensa, como alimentao e sexo. Alm disso,
o sistema lmbico regula as funes relacionadas ao armazenamento
e recuperao de eventos que evocam forte resposta emocional.
Estudos de neuroimagem revelam que os adolescentes so mais
propensos a serem influenciados por suas emoes nas tomadas de
deciso (ArAIN et al., 2013).
O CPF est associado ao pensamento abstrato, mode-
rao do comportamento em situaes sociais complexas; recebe

123
Manual de abordagem de dependncias qumicas

inputs sensoriais e orquestra pensamentos e aes a fim de alcanar


metas. uma das ltimas regies cerebrais a completar a maturao
e est relacionado imaturidade comportamental de alguns adoles-
centes (KOLB et al., 2012). Estudos de ressonncia magntica de-
monstram que ocorre mielinizao nos lobos frontais ao longo da
adolescncia, permitindo, assim, melhor fluxo de informaes entre
as regies cerebrais. A maturao do CPF parece fornecer refina-
mento tomada de decises, antes direcionada hegemonicamente
por estruturas lmbicas, possibilitando controle de impulsos e adia-
mento de recompensas.
Ocorre tambm a maturao funcional do corpo caloso
feixe de fibras nervosas que ligam os hemisfrios cerebrais per-
mitindo ao indivduo o acesso a uma gama completa de estratgias
analticas e criativas para responder aos dilemas complexos que pos-
sam surgir na vida do adolescente (ArAIN et al., 2013).
Dentre os fatores que influenciam a maturao cerebral
durante a adolescncia, destacam-se: hereditariedade, insultos pr-
natais e ps-natais, estado nutricional, padres de sono, farmaco-
terapia e intervenes cirrgicas durante a primeira infncia, estresse
fsico, mental, econmico e psicolgico, abuso de drogas e exposi-
o a hormnios sexuais (ArAIN et al., 2013).

Desenvolvimento cognitivo e comportamental

Durante a adolescncia os seres humanos iro adquirir


muitas habilidades cognitivas. Por volta dos doze anos, h um de-
crscimo dos pensamentos concretos e, a partir dessa idade, o ado-
lescente demonstra capacidade para pensamentos abstratos,
visualizao de resultados potenciais e compreenso lgica de causa
e efeito. A capacidade de pensar, hipoteticamente, sobre conceitos
e hipteses o que Jean Piaget chamou de estgio operacional for-
mal. Essas habilidades fornecem ao adolescente o status de discutir

124
Adolescncia: desenvolvimento normal e associado ao uso de drogas

sobre poltica, tica, poesia, filosofia e cincia. Esses aspectos de


desenvolvimento correlacionam-se com a maturao parcial do
CPF (BLAKEMOrE et al., 2010). Segundo Kohlberg, a partir de
tais capacidades que os homens podem internalizar um cdigo
moral que oriente suas vidas (KrEBS & DENtON, 2005).
O comportamento adolescente segue uma lgica muito
peculiar. A partir de suas habilidades cognitivas crescentes, os ado-
lescentes comearo a questionar a lgica vigente, perguntas que,
muitas vezes, so fontes de angstia e tornam o adolescente cen-
trado em si e em seus dilemas pessoais. Os adolescentes so indiv-
duos socialmente sensveis, muito preocupados com que os outros
pensam, querem ser aceitos e tornam-se influenciados pela opinio
do grupo.
Entretanto, embora estejam em seu pico de fora fsica,
resistncia e funo imunolgica, as taxas de mortalidade entre os
15 e 24 anos so trs vezes maiores quando comparadas a crianas
de 10 a 14 anos (ArAIN et al., 2013).
Adolescentes tem uma tendncia a assumir mais e maiores
riscos do que os indivduos em qualquer outra idade, culminando
em comportamentos como sexo desprotegido, delitos, comporta-
mento perigoso no trnsito e uso de drogas. Estudos neurospico-
lgicos indicam que os adolescentes tm dificuldades de tomada de
deciso, so muito influenciados por informaes emocionalmente
competentes, e no utilizam de maneira adequada informaes re-
levantes sobre mensurao do risco de suas aes. Esse perfil cog-
nitivo pode levar a escolhas de risco (GLADWIN et al., 2011).
O ncleo accumbens parte do sistema de recompensa
do crebro, localizado no sistema lmbico responsvel pelo pro-
cessamento de informaes relacionadas motivao e recom-
pensa. Estudos de imagem cerebral tm demonstrado que essa
regio altamente sensvel em adolescentes, com rpido envio de
impulsos de ao quando confrontados com a oportunidade de
obter algo desejvel. Por exemplo, os adolescentes so mais vulne-

125
Manual de abordagem de dependncias qumicas

rveis a tornarem-se dependentes de nicotina, lcool e outras subs-


tncias psicoativas, uma vez que o sistema lmbico e outras regies
que governam impulsos e motivaes no se encontram totalmente
desenvolvidos (rOBINSON et al., 2011).
A auto-regulao definida como a gesto das emoes
e motivao tem por objetivo o controle e direcionamento do
comportamento para enfrentar os desafios do meio ambiente e tra-
balhar em direo a um propsito consciente. Envolve tambm o
controle de emoes intensas, de impulsos e da gratificao atra-
sada. Um incio mais precoce da puberdade aumenta a janela de
vulnerabilidade, tornando os adolescentes mais suscetveis a assumir
riscos que afetam sua sade e desenvolvimento ao longo da vida.
O controle comportamental parece estar relacionado s funes
executivas, que por sua vez podem estar relacionadas maturao
do CPF, que s se completa por volta dos vinte e cinco anos
(ArAIN et al., 2013).

Uso de drogas

O uso de drogas um exemplo de comportamento de


risco que particularmente preocupante na adolescncia. Os fatos
amplificam o problema, adolescentes tm perfil cognitivo, especial-
mente propenso a experimentar drogas e tem risco maior de se tor-
narem dependentes. Alm disso, parece haver uma forte associao
entre a idade de incio e o risco de desenvolver problemas relacio-
nados ao uso de drogas (GLADWIN et al., 2011).
Monteiro e colaboradores, em 2012, realizaram um inqu-
rito epidemiolgico, nas escolas pblicas de teresina-Piau, com
196 adolescentes. Foi obtida uma prevalncia do consumo de dro-
gas ilcitas de 17,9%. Os fatores relacionados ao uso de drogas pelos
adolescentes esto relacionados aos locais que frequentam, tais
como: casa de amigos (42,9%), boates e bares (34,3%). As drogas

126
Adolescncia: desenvolvimento normal e associado ao uso de drogas

consumidas pelos adolescentes foram maconha (60%), crack (20%),


solventes (11,4%) e outras (17,6%) (MONtEIrO et al., 2012).
Modelos animais sugerem que aps o uso de drogas, possa
ocorrer uma sensibilizao neural em adolescentes que leva a com-
portamentos de busca mais impulsivos, difceis de controlar volun-
tariamente. Alm disso, o uso de drogas pode causar prejuzos
permanentes nas funes executivas e dificuldade em controlar im-
pulsos (GLADWIN et al., 2011). como se os indivduos fossem
fadados a permanecer adolescentes para sempre.
A adolescncia um perodo crtico para exposio ni-
cotina, com aumento da probabilidade de dependncia. As causas
provavelmente so mltiplas. Evidncias sugerem que essa predis-
posio possa ser influenciada por aumento na transmisso sero-
toninrgica na presena de nicotina em adolescentes (BANGA B
& COMMONS, 2011). Alm disso, durante a adolescncia, ocorre
uma facilitao da transmisso dopaminrgica, pelo maior desen-
volvimento dos sistemas glutamatrgicos excitatrios. Os sistemas
gabargicos inibitrios, entretanto, permanecem subdesenvolvidos.
Neuroanatomicamente, a transmisso dopaminrgica origina-se na
rea tegmental ventral em direo ao ncleo accumbens e a nicotina
aumenta a liberao de dopamina. Hipotetiza-se, desse modo, que
os adolescentes exibem maior recompensa da nicotina (ArAIN et
al., 2013; NAtIVIDAD et al., 2011). Finalmente, exposio nico-
tina durante adolescncia pode comprometer o desenvolvimento
do crebro e causar prejuzos cognitivos, especialmente em funes
executivas, que persistem durante a vida adulta (COUNOttEA et
al., 2011).
A adolescncia o perodo em que a maioria dos indiv-
duos tem sua primeira exposio ao lcool, sendo o consumo etlico
excessivo muito comum durante essa fase (GUErrI & PASCUAL,
2010). Adolescentes e adultos respondem ao lcool de maneira di-
ferencial. Adolescentes tem menor sensibilidade a prejuzos moto-
res, mas maior a hipotermia induzida pelo lcool. O uso compulsivo

127
Manual de abordagem de dependncias qumicas

de grandes quantidades de lcool na adolescncia est relacionado


a leses cerebrais potencialmente duradouras (MAttEWS, 2010).
A maconha a droga ilcita mais consumida entre os
adolescentes, podendo seu uso crnico perturbar o papel regula-
dor do sistema endocanabiide, que desempenha papel funda-
mental para o refinamento neuronal durante esse perodo da vida.
Em modelos animais, demonstrou-se que essa exposio causa
prejuzos em longo prazo em componentes especficos de apren-
dizagem e memria. Ademais, afeta a reatividade emocional, cau-
sando efeitos mais brandos sobre o comportamento de ansiedade
e efeitos mais pronunciados sobre o comportamento depressivo.
Aumenta tambm o risco de desenvolvimento de sintomas psi-
cticos e pode predispor o abuso de outras substncias ilcitas
(GLEASON et al., 2012).
Um estudo epidemiolgico realizado em 2003, com
crianas e adolescentes em situao de rua, de 27 capitais brasi-
leiras, confirma a disponibilidade e o consumo de derivados de
cocana no Brasil. O consumo de crack foi mencionado em 22 ca-
pitais e os maiores ndices de uso recente (uso no ms) dessa subs-
tncia foram observados em So Paulo, recife e Curitiba (entre
15 e 26%), seguidas de Natal, Joo Pessoa, Fortaleza, Salvador e
Belo Horizonte (entre 8 e 12%) (NOtO et al., 2003). Estudos
com modelos animais sugerem que adolescentes tm maior sen-
sibilidade a alguns efeitos da cocana, ratos machos adolescentes
tm maiores respostas locomotoras do que os adultos aps a ad-
ministrao aguda de cocana. Ativao aguda dos neurnios por
cocana induz mudanas no comportamento, em longo prazo, ati-
vando complexos de transcrio. A transmisso dopaminrgica
um potencial mediador do risco de adio cocana na adoles-
cncia (CAStEr & KUHN, 2009).

128
Adolescncia: desenvolvimento normal e associado ao uso de drogas

Grupos de maior risco

A adolescncia parece ser uma fase da vida muito pro-


pensa a que indivduos tenham contato e experimentem drogas.
Entretanto, apenas uma porcentagem desses indivduos vai se tor-
nar dependentes. Esse grupo de risco parece compartilhar vulne-
rabilidades genticas, comportamentais e sociais. Estudos com
gmeos mostram a importncia dos fatores genticos para vulne-
rabilidade a dependncia de maconha, lcool e nicotina (PALMErA
et al., 2012). Outros fatores de risco descritos so traos de perso-
nalidades disfuncionais, comorbidades psiquitricas, ambientes des-
favorveis, com cuidados parentais insuficientes (zEINALI et al.,
2011). Alm disso, adolescentes submetidos a adversidades crnicas
na infncia, como abuso e negligncia podem ser particularmente
vulnerveis a oportunidade de usar drogas, abusar e se tornar de-
pendentes. Dessa forma, combater abuso e negligncia na infncia
tambm uma forma de preveno de uso e dependncia de drogas
(BENJEtA et al., 2012).
Exposio precoce drogas pode ter consequncias severas.
O abuso de drogas no perodo pr-natal pode aumentar a impulsividade
durante a adolescncia. Estudos sugerem que a deficincia do sistema
dopaminrgico e do eixo hipotlamo-hipfise-adrenal pode estar re-
lacionada insuficiente inibio comportamental (ArAIN et al., 2013).

Concluses

Os adolescentes so uma populao de risco para uso de


drogas e podem ter mais problemas relacionados ao uso de
substncias e os efeitos cerebrais desse uso so especialmente
deletrios. Precisamos conhecer as particularidades do
funcionamento cognitivo comportamental dos adolescentes para
planejar medidas de preveno e tratamento do uso de drogas
direcionadas essa populao.
129
Manual de abordagem de dependncias qumicas

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131
1o

3 133
PARTE 3
Abordagem farmacolgica dos
transtornos do uso de drogas
Captulo 10

Terapias farmacolgicas para os transtornos


do uso de lcool
Valdir Ribeiro Campos

Introduo

O lcool (etanol) uma droga depressora do SNC. Isso


decorre de sua ao em vrios sistemas neurotransmissores cere-
brais: Gabargicos, Glutamatrgicos, dopaminrgicos, serotoninr-
gicos e opiides endgenos, alm dos canais de clcio das
membranas celulares.

O sistema gabargico
GABA: cido gama-
Existem vrios subtipos de receptores GABA. O aminobutrico. O GABA um
lcool potencializa o efeito dos receptores GABA A, que neurotransmissor inibidor do
sistema nervoso.
controla a entrada de cloro para o interior da clula.
Quando o etanol interage com esse receptor, ocorre uma
potencializao de abertura de canais de cloro. O influxo
desse on torna a clula menos excitvel e de difcil des-
polarizao. Os dois longos tratos GABArgicos identi-
ficados so os neurnios que se projetam a partir do
corpo estriado para a substncia negra e as clulas de
Purkinge que se projetam para o cerebelo. Existem ainda
Manual de abordagem de dependncias qumicas

interneurnios GABArgicos locais no crtex cerebral,


cerebelar, bem como, hipotlamo. As aes nesses locais, explicam
os efeitos clnicos da intoxicao alcolica, como alteraes mo-
toras (decorrente da ao na substncia negra e corpo estriado),
incoordenao (ao no cerebelo) e comportamentais emocionais
(ao no hipotlamo) (HOFFMAN & tABAKOFF, 1996; LO-
WINSON et al., 2005; KUMAr et al., 2009).

O sistema glutamatrgico

O glutamato o principal neurotransmissor excitatrio do


crebro. Seu principal receptor o NMDA. O lcool parece intera-
gir diretamente com o receptor NMDA e inibir a ao do glutamato.
A ao do lcool em receptores glutamatrgicos presentes no hi-
pocampo est clinicamente associada ao fenmeno do blackout. A
ao no lcus cerleos est associada deficincia na ateno e re-
gulao do ciclo sono-vigilia (HOFFMAN & tABAKOFF, 1996;
LOWISON et al., 2005; KUMAr et al., 2009).

O sistema opiide

Pesquisas indicam que a ao do lcool no sistema opiide


leva ao aumento de beta opiide e esses estimulam a liberao de
dopamina na rea tegmentar ventral e ncleo accumbens. O sistema
beta endorfinas o mais relevante na produo de efeitos refora-
dores positivos do uso de lcool (tABAKOFF & HOFFMAN,
1996; LOWISON et al., 2005; KUMAr et al., 2009 ).
Vrios estudos comportamentais tm mostrado que o re-
ceptor 5Ht3 estaria relacionado necessidade de ingerir lcool, in-
toxicao e dependncia (LOVINGEr, 1999; KUMAr et al., 2009).

136
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de lcool

Canais de clcio

Os canais de clcio, voltagem dependentes, desempenham


uma importante funo na despolarizao e repolarizao da clula e
na atividade celular de liberao de neurotransmissores. O lcool age
principalmente no canal de clcio subtipo L inbindo a abertura desses
canais. O menor influxo de ions positivos para a clula torna-a menos
excitvel, alm de inibir a liberao de neurotransmissores. Os canais
de clcio L esto em maior quantidade no cerebelo e isso poderia ex-
plicar as alteraes motoras como incoordenao da marcha, deficin-
cia na ateno e regulao do sono-vigilia. (LIttLEtON & LIttLE,
1994; LOWISON et al., 2005; KUMAr et al., 2009).

Adaptao cerebral ao consumo de lcool

O consumo crnico de lcool leva a mudanas adaptativas no


crebro o que poderia explicar a tolerncia, abstinncia, compulso para
beber e recada (LIttLEtON & LIttLE, 1994; HOFFMAN & tABA-
KOFF, 1996, KOOB & VOLKOW, 2010). Medicamentos que agem
revertendo esses mecanismos neuroqumicos, juntamente com manejos
psicolgicos e comportamentais, tm se mostrado efetivos e ajudado
muitos indivduos a se livrarem do lcool a terem uma vida mais produtiva.

Terapia farmacolgica

O consumo de lcool que, inicialmente, considerado in-


cuo pode evoluir para fases de consumo perigoso, abusivo (nocivo) e
por fim, resultar na instalao da dependncia de lcool em grau leve,
moderado ou grave. O tratamento dos problemas relacionados ao
consumo de lcool pode ser realizado ambulatorialmente ou no hos-
pital conforme a gravidade da intoxicao e dependncia (Figura 1).

137
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Desintoxicao alcolica
Tratamento de desintoxi-
cao: tambm chamado de O tratamento de desintoxicao o primeiro est-
tratamento de abstinncia.
Esta forma de tratamento
gio do tratamento e pode ser indicado para pacientes de-
feita com a interrupo aguda pendentes ou no de lcool. Consiste num perodo entre
do consumo de uma droga e o
tratamento sintomtico dos uma a duas semanas em que o indivduo ir se abster de
sintomas de abstinncia a
droga. Quando bem feito e lcool em ambiente protegido pela famlia ou por equipe
acompanhado por uma equipe
multidisciplinar esta forma de
multiprofissional. Esse perodo costuma ser relativa-
tratamento diminui o sofri- mente mais difcil para indivduos com maior gravidade
mento do paciente em inter-
romper o uso da droga e de se da sndrome de dependncia devido ao aparecimento da
engajar em um projeto terapu-
tico para o perodo ps-desin- sndrome de abstinncia. Inicialmente, pacientes intoxicados
toxicao. por lcool devem ser avaliados clinicamente e laborato-
Abster: interromper o uso por
completo.
rialmente para excluso de alteraes hidroeletrolticas,
Sndrome de Abstinncia:
hemodinmicas e infeces que, geralmente so gerado-
Conjunto de sintomas cuja ras de delirium justificando-se assim o estado confusional
gravidade varivel que ocor-
rem quando da interrupo ab- em que os pacientes normalmente se apresentam devido
soluta ou relativa do uso de
uma substncia psicoativa s complicaes clnicas.
consumida de modo prolon-
gado. O incio e a evoluo da
O tratamento dos quadros de intoxicao alco-
sndrome de abstinncia so lica consiste basicamente em cuidados clnicos para os
limitadas no tempo e depen-
dem da categoria e da dose da casos com e sem complicaes clnicas, com administra-
substncia consumida imedi-
atamente antes da parada ou
o de dieta, reposio hdroeletroltica e de tiamina. A
da reduo do consumo. A sn- dose de tiamina na primeira semana, caso o paciente
drome de abstinncia pode se
complicar pela ocorrncia de apresente nuseas e vmitos, dever ser parenteral na
convulses.
dose de 300 mg/dia e a partir da segunda semana esta
Delirium: perturbao da con-
scincia com reduo da ca- dose poder ser oral at o final da segunda semana. Deve-
pacidade de direcionar,
focalizar, manter ou deslocar a
se evitar administrar glicose hipertnica, isoladamente
ateno. Alterao na cog- sem que se administre tiamina pelo menos 30 minutos
nio, como dficit de
memria, desorientao, per- antes (Laranjeira et al., 2000; Marques & ribeiro, 2002).
turbao da linguagem. O
Delirium se desenvolve em um Tiamina: vitamina B1. Esta
curto perodo de tempo (horas vitamina auxilia no bom fun-
ou dias) te tem uma tendncia cionamento do sistema ner-
a flutuar durante o dia sendo voso central, dos msculos e
que os sintomas so mais in- do corao e auxilia no meta-
tensos no final do dia. Tem bolismo da glicose. Sua defi-
como causa uma alterao do cincia pode ocasionar leso
funcionamento transitria do cerebral e em pacientes depen-
crebro. Deve ser diferenciado dentes de lcool a Sndrome de
de delrio o sintoma psictico Wernicke-Korsakoff (ver cap-
(ver definio no captulo 8)
138
tulo 8)
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de lcool

Nos casos de agitao psicomotora e heteroagressividade,


recomenda-se a administrao de haloperidol IM de 30/30 minutos
at sedao, conteno cuidadosa, nos casos em que isso for neces-
srio, e superviso de equipe de enfermagem de 15/15 minutos
(Laranjeira et al., 2000; Marques & ribeiro, 2002). Aps a desinto-
xicao, o paciente pode evoluir para a sndrome de dependncia
do lcool. Alguns instrumentos, como o questionrio CAGE,
podem ser utilizados para identificar casos de problemas com o uso
de lcool e triagem para servios especializados, e esclarecimento
do diagnstico de dependncia de lcool (Figura 1).

Sndrome de abstinncia do lcool

A sndrome de abstinncia do lcool (SAA)


instala-se em 90% dos pacientes dependentes de lcool
e os sintomas surgem 24 horas aps a ltima dose. Se
Sinais autonmicos: con-
no tratado, o quadro pode evoluir para a forma grave junto de sinais que surgem
nas primeiras 72 horas, cursando com sinais autonmicos devido a liberao de adrena-
lina na corrente sangunea.
mais intensos, tremores generalizados, alucinaes au- Podem surgir: tremores,
taquicardia, hipertenso arte-
ditivas e visuais, desorientao temporo-espacial, con- rial, sudorese.
vulses e delirium tremens (Dt) (Laranjeira et al., 2000;
Marques & ribeiro, 2002) (Tabelas 1 e 2).

139
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Tabela 1
Sintomas que compe a sndrome de abstinncia leve a moderada

Conjunto de sinais e sintomas da sndrome de abstinncia leve/moderada:


Biolgicos: leve agitao psicomotora, tremores finos de extremidades,
sudorese facial discreta, episdios de cefalia, nuseas sem vmitos, sensibili-
dade visual, sem alterao da sensibilidade ttil e auditiva.
Psicolgicos: contato com o profissional est preservado, encontra-se
lcido e orientado no tempo e espao, o juzo crtico da realidade est
mantido, apresenta ansiedade leve, no relata qualquer episdio de
violncia dirigido a si ou a outrem.
Comorbidades: ausncia de comorbidades clnica e/ou psiquitricas
detectadas ao exame geral

Tabela 2
Sndrome de abstinncia grave

Conjunto de sinais e sintomas da sndrome de abstinncia grave:


Biolgicos: agitao psicomotora intensa, tremores generalizados,
sudorese profunda, cefaleia, nuseas com vmitos, hipersensibilidade visual,
quadro epileptiformes recentes ou descritos a partir da histria pregressa.
Psicolgicos: contato com o profissional de sade est alterado,
encontra-se desorientado no tempo e espao, o juzo crtico da realidade
est comprometido, apresenta uma ansiedade intensa, com episdios de
violncia contra si e outrem, apresenta-se delirante, com pensamento
descontnuo, rpido e de contedo desagradvel, observam-se
alucinaes tteis e/ou auditivas.
Comorbidades: com complicaes e/ou comorbidades clnicas e/ou
psiquitricas detectadas ao exame geral.

O tratamento no nvel primrio de sade (ambulatrio,


Programa de Sade da Famlia- PSF) deve ser a primeira escolha.
Alm de menos custoso, no interrompe a vida do indivduo, favo-
recendo sua permanncia no trabalho e vida familiar. A abordagem
hospitalar destina-se a aqueles com SAA grave com complicaes
clnicas, por tratar-se de um ambiente protegido e mais seguro para
manejar tais complicaes. Casos de SAA sem outras doenas psi-
140
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de lcool

quitricas e com outras doenas mentais devem receber tratamento


no mesmo local do diagnstico de base (Figura 1).
O tratamento medicamentoso da SAA visa
reestabelecer o organismo que est em desarmonia de-
vido a falta do lcool. Medicamentos de escolha para tra- Diazepan/lorazepan: medi-
caes benzodiazepnicas.
tar esse perodo entre uma a duas semanas so: diazepam So agonistas gabargicos e
agem nos mesmos receptores
at 40 mg/dia, em caso de hepatopatia, lorazepam na em que age o lcool. Por
terem uma meia-vida maior
dose de at 6 mg/dia. A dose deve ser reduzida na se- que o lcool ajudam a evitar
gunda semana. Caso o paciente apresente sintomas psi- os sintomas de abstinncia.
cticos, sem alteraes de nvel de conscincia, o
haloperidol 5 mg por dia pode ser utilizado.
Aps o perodo de reequilbrio do organismo dos sinto-
mas da abstinncia pode ser necessrio utilizao de medicaes
que ajudem o paciente a manter-se abstinente (Laranjeira et al., 2000;
Marques & ribeiro, 2002).
Nos ltimos anos as intervenes farmacolgicas tm-se
concentrado na reabilitao e preveno de recadas, atravs das
suas aes sobre o desejo compulsivo para beber e na perda do
controle sobre a bebida, com a finalidade de manter a abstinncia
obtida na desintoxicao. Avanos importantes tm ocorrido atra-
vs da introduo de novos agentes farmacolgicos e, em especial,
drogas com propriedades de reduzir o desejo intenso pela bebida
(Jupp & Lawrence, 2010).
Por outro lado, a dependncia do lcool possui taxas ele-
vadas de transtornos ansiosos e depresso, que podem influir no
prognstico do paciente, j que os mesmos podem recair em res-
posta aos nveis de ansiedade e depresso exacerbados. Portanto, o
tratamento eficaz desses sintomas com agentes farmacolgicos es-
pecficos podem resultar numa reduo do consumo de lcool e
dos problemas associados.
Os principais objetivos das intervenes farmacolgicas
nos transtornos relacionados ao lcool so: reverter os efeitos far-
macolgicos do lcool; tratar e prevenir as complicaes da absti-

141
Manual de abordagem de dependncias qumicas

nncia do lcool; manuteno da abstinncia e preveno das re-


cadas, por meio da reduo do desejo para ingerir lcool; reduo
do consumo ao tornar a ingesto de lcool desagradvel e trata-
mento da comorbidade psiquitrica (volpicelli et al., 2001).

Figura 1
Dinmica de encaminhamento para tratamento
da intoxicao alcolica na rede

Sensibilizantes ao lcool

Dissulfiram
Esta medicao atua inibindo a enzima heptica acetoal-
dedo-desidrogenase (ALDH), que catalisa a oxidao do acetal-
dedo em acetato, subprodutos do metabolismo do lcool. O
aumento dos nveis sanguneos de acetaldedo provoca uma reao
aversiva caracterizada clinicamente por rubor facial, cefaleia pulstil,
nuseas, vmitos, dor torcica, palpitaes, taquicardia, fraqueza,
turvao visual, hipotenso arterial, tontura e sonolncia. Nas rea-

142
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de lcool

es graves, os pacientes podem exibir delirium, infarto do miocr-


dio, arritmias cardacas, insuficincia cardaca congestiva, depresso
respiratria e convulses (SUH et al., 2006) A maioria dos casos fa-
tais ocorre em pacientes que tomam mais de 500 mg por dia de dis-
sulfiram e que consomem 90 ml de lcool por dia (por exemplo:
03 a 04 doses de destilados). Deve-se evitar o consumo de bebidas
alcolicas, produtos que contenham lcool (vinagre, enxaguante
bucal) e os aplicados sobre a pele, at duas semanas aps a ltima
dose de dissulfiram (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al.,
2010).

Indicaes
Os pacientes que mais se beneficiam com o uso de dis-
sulfiran so aqueles motivados, sem doenas fsicas graves, estveis
do ponto de vista social e que necessitam de um auxlio externo
para ajudar na sua deciso de interromper o uso de lcool. Para o
uso dessa medicao o paciente deve assinar um termo de consen-
timento livre e esclarecido (tCLE) explicando os objetivos, indica-
es, contraindicaes, precaues e reaes adversas caso o lcool
seja ingerido concomitantemente. A superviso do tratamento por
um familiar ou profissional de sade favorecem a adeso ao trata-
mento (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2011).

Contraindicaes
As principais contraindicaes ao dissulfiram so: doena
vascular cerebral, doena cardiovascular, doena pulmonar grave,
insuficincia renal, cirrose com hipertenso porta, aterosclerose
oculta, transtornos psicticos, transtornos depressivos, neuropatia
perifrica, distrbios convulsivos idiopticos, sndromes mentais
orgnicas e gravidez (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al.,
2010).

143
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Precaues de uso do dissulfiram


As principais precaues a serem adotadas com a prescri-
o de dissulfiram so as interaes com o uso concomitante dos
antagonistas dos receptores -adrenrgicos ou -adrenrgicos e va-
sodilatadores, que so medicaes utilizadas na regulao da presso
arterial. O dissulfiram pode ser empregado nos pacientes com his-
tria de convulses, associadas abstinncia, desde que seja des-
cartada a presena de um distrbio convulsivo idioptico. Nos
pacientes que exercem atividades que necessitam de ateno (por
ex., operar mquinas) deve-se tomar as devidas precaues (tais
como, restringir inicialmente nos finais de semana e na hora de dei-
tar a medicao), j que o dissulfiram pode provocar sonolncia.
Caso a sonolncia persista depois de trs dias de tratamento a me-
dicao deve ser interrompida. Antes de prescrever o dissulfiram
importante solicitar provas de funo heptica devido a um efeito
hepatotxico idiossincrtico raro, porm potencialmente fatal.
Alm disso, os sintomas sugestivos de hepatotoxicidade e os exames
sanguneos devem ser repetidos cada 2 semanas, 3 e 6 meses e
duas vezes no ano, durante o tratamento com dissulfiram. Geral-
mente, a hepatotoxicidade ocorre nos primeiros trs meses de tra-
tamento. (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2010).

Orientaes clnicas
A dose habitual de 250 mg ao dia em dose nica diria,
aps um intervalo de pelo menos 24 horas sem beber. Alguns
pacientes podem beneficiar-se com doses de 500 mg ao dia.
(CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2011).

Interaes medicamentosas
O dissulfiram interfere com a biotransformao dos se-
guintes medicamentos: warfarina, fenitona, isoniazida, rifampicina,
diazepam, clordiazepxido, imipramina e desipramina, cujos nveis
plasmticos devem ser monitorados junto com o tempo de pro-

144
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de lcool

trombina (naqueles pacientes tratados com warfarina) (DIEHL et


al., 2011).

Agentes anti-fissura

O craving ou fissura um fenmeno fisiolgico que sofre


influncia de fatores ambientais, sociais e emocionais, que contri-
buem para a inabilidade dos dependentes ficarem abstmios, vul-
nerabilizando-os para a recada (Laranjeira e col., 1996).

Naltrexona
Indicaes
A naltrexona atua como um antagonista competitivo nos
receptores opiides. A administrao de antagonistas opiides pode
reduzir o consumo de lcool atravs do bloqueio ps-sinptico dos
receptores opiides , e nas vias mesolmbicas. Os antagonistas
opiides devem ser usados como parte de um programa de trata-
mento que inclua aconselhamento ou psicoterapia. Portanto, so
pouco eficazes quando usados isoladamente. O oferecimento de
intervenes psicossociais (por ex., aconselhamento, treinamento
de habilidades sociais, preveno de recada e entrevista motivacio-
nal) associado s intervenes farmacolgicas aumentam a eficcia
e a adeso ao tratamento (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL
et al., 2011).

Contraindicaes
As principais contraindicaes a naltrexona so: hepatite
aguda, insuficincia heptica, dependncia de opiides ou abstinn-
cia de opiides, necessidade de usar opiides. O uso na gravidez
considerado contraindicao relativa, que deve ser levado em con-
siderao os riscos e benefcios do tratamento (CAStrO & BAL-
tIErI, 2004; DIEHL et al., 2011).

145
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Precaues
O aumento leve dos nveis sricos das transaminases no
contraindicam o seu emprego. Entretanto, a monitorizao mensal
dos valores da bilirrubina e das transaminases sricas nos trs pri-
meiros meses, e depois a cada trs meses de suma importncia.
Monitorizaes mais frequentes devem ser indicadas, quando as
transaminases estiverem elevadas. O naltrexona deve ser suspenso,
quando as elevaes das enzimas hepticas persistirem, salvo se os
aumentos forem brandos e atribudos ao consumo atual de lcool.
(CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2011)

Orientaes clnicas
A posologia recomendada 50 mg dirios. Para diminuir
a gravidade dos efeitos adversos pode-se iniciar com 25 mg dirios
nos dois primeiros dias, aumentando a dose para 50 mg dirios
se for tolerada. Nas doses acima de 50 mg dirios pode induzir
hepatotoxicidade dose-dependente, o que contraindica o seu uso
em pacientes com hepatite aguda e insuficincia heptica. Os prin-
cipais efeitos adversos so: nuseas, cefaleia, vertigem, ansiedade
e irritabilidade, fadiga, insnia, vmitos e sonolncia (CAStrO
& BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2011). Para aumentar a ade-
rncia ao tratamento, solicita-se ao paciente ingerir a medicao
pela manh (por ex., junto com o desjejum), principalmente
quando o paciente bebe ao anoitecer.
Para os pacientes com histria prvia de abuso de herona
necessrio de pelo menos um perodo mnimo de sete dias de abs-
tinncia, com vista a prevenir a sndrome de abstinncia. Nos pa-
cientes tratados com metadona recomenda-se um perodo de
abstinncia maior (dez a quatorze dias). Nos pacientes dependentes
de opiides, a naltrexona pode ser administrado por pelo menos
seis meses (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2011)

146
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de lcool

Interaes medicamentosas
As interaes medicamentosas de maior relevncia clnica
so as seguintes medicaes: uso concomitante com dissulfiram,
devido ao potencial dos efeitos hepatotxicos de ambos os medi-
camentos; tioridazina, com piora da letargia e sonolncia, pacientes
que necessitam de medicamentos para controle da dor (deve-se
priorizar outros analgsicos no-opiceos). Os pacientes que sero
submetidos a cirurgias eletivas e analgsicos, contendo opiides no
ps-operatrio devem ser alertados para suspenderem a natrexona
pelo menos 72 h antes da cirurgia. (Diehl et al., 2011)

Acamprosato
Indicaes
Acamprosato (acetil-homotaurinato de clcio) a outra
medicao aprovada para o tratamento da dependncia de lcool.
Estudos recentes sugerem que sua eficcia decorra de antagonismo
na neurotransmisso do receptor N-Metil-D-Aspartato (NMDA).
O acamprosato diminui o fluxo de clcio e a eficcia ps-sinptica
desses neurotransmissores excitatrios (NMDA), diminuindo, por-
tanto a excitabilidade neuronal. uma droga segura que no inte-
rage com o lcool ou o diazepam, e parece no ter nenhum
potencial de causar dependncia. (Castro & Baltieri, 2004; Diehl et
al., 2011)

Contra indicaes
Insuficincia heptica e gravidez (CAStrO & BAL-
tIErI, 2004)

Orientaes clnicas
A dose usual de 1998 mg (dois comprimidos de 333 mg
trs vezes ao dia) para um peso corporal acima de 60 kg. No deve
ser prescrito para indivduos com insuficincia heptica ou renal.
Ensaios clnicos utilizaram o medicamento por seis a doze meses.

147
Manual de abordagem de dependncias qumicas

(WILDE & WAGStAFF,1997; CAStrO & BALtIErI, 2004;


DIEHL et al., 2010)

Consideraes finais

A ao do lcool altera as estruturas cerebrais e seu fun-


cionamento. Essas mudanas ocorrem ao longo do tempo e
podem levar a prejuzos no comportamento, visto em abusadores
e dependentes de lcool. A identificao do estgio do problema,
tratamento inicial da SAA, de complicaes clnicas e comorbi-
dades, pode proporcionar um melhor direcionamento dentro da
rede de assistncia aos usurios com problemas associados ao
uso de lcool.

148
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de lcool

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149
Captulo 11

Terapias farmacolgicas para os


transtornos do uso de cocana e crack
Thiago Gatti Pianca
Diego Barreto Rebouas
Guilherme Luis Menegon
Felix Henrique Paim Kessler

Existem vrios modelos tericos que tentam conceituar


os transtornos relacionados ao uso de substncias, por exemplo,
atra-vs de manuais diagnsticos como o DSM-V. Do ponto de
vista comportamental e neurobiolgico, uma das definies mais
aceitas descrita por Nora Volkow, atual diretora do National
Institute of Drug Abuse (EUA), e George Koob, na qual a
dependncia qu-mica um transtorno crnico e recidivante que
caracterizado por compulso para procurar e consumir a
substncia, perda de controle em limitar o consumo da substncia
e surgimento de estado emocional negativo, quando o acesso
substncia qumica impedido, configurando uma sndrome de
abstinncia, que envolve tambm aspectos motivacionais (KOOB,
2010).
A administrao repetida de drogas leva o crebro a mu-
danas neuroadaptativas agudas e crnicas. tendo em vista a pro-
gressiva alterao neuroqumica da dependncia, devem ser
considerados tratamentos farmacolgicos para auxiliar no trata-
mento da dependncia em si e para as comorbidades psiquitricas,
que geralmente acompanham os problemas relacionados s drogas.
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Neurocircuitos na dependncia qumica

O principal sistema alvo de todas as drogas o sistema de


recompensa cerebral. A principal via do sistema de recompensa
a via mesocorticolmbica, uma via dopaminrgica que tem origem
na rea tegmental ventral no mesencfalo e projeta-se para o ncleo
accumbens, no sistema lmbico, e para o crtex pr-frontal.
As drogas atuam nesse local de forma direta (o sistema
dopaminrgico em si) ou indireta (outros sistemas de neurotrans-
missores que interferem no sistema dopaminrgico). Assim, o est-
mulo do ncleo accumbens, que inclui receptores opioides,
desencadeia uma sensao de prazer que refora comportamento
de busca pela droga e torna-se cada vez mais saliente, enquanto o
crtex pr-frontal pode agir de forma inibitria, porm com o uso
crnico de drogas de abuso pode progressivamente se tornar mais
hipofuncionante. Alm do sistema de recompensa, ocorrem neu-
roadaptaes nos sistemas de aprendizagem e memria (KOOB;
VOLKOW, 2010; PULCHErIO et al., 2010)
A ao da cocana ocorre por bloqueio de uma protena
pr-sinptica (transportador de dopamina) responsvel pela recap-
tao de monoaminas, principalmente da dopamina; no entanto,
tambm h ao na serotonina e noradrenalina, e nas outras mo-
noaminas. Com o uso repetido, o sistema vai se acostumando,
criando tolerncia a, necessrio o uso de quantidades cada vez
maiores para obteno do efeito desejado. Esses fenmenos acon-
tecem tanto mais rpido quanto a droga chega e sai da fenda sinp-
tica. O crack, por conta da via de administrao, tem um incio de
efeito em oito a dez segundos, com durao de 5 a 10 minutos, ou
seja, a maior rapidez de efeito entre as vias de administrao da co-
cana, e consequentemente um potencial de causar dependncia
maior que outras drogas (PULCHErIO et al., 2010).

152
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

Embasamento de tratamento Sndrome de Abstinncia:


Conjunto de sintomas cuja
gravidade varivel que ocor-
rem quando da interrupo ab-
Um dos principais focos do tratamento para soluta ou relativa do uso de
uma substncia psicoativa
pacientes dependentes de cocana e crack a sndrome consumida de modo prolon-
de abstinncia, que pode ser dividida nas seguintes fases: gado. O incio e a evoluo da
sndrome de abstinncia so
Crash: Incio em 15 a 30 minutos aps o uso e limitadas no tempo e depen-
dem da categoria e da dose da
durao de 8 horas at 4 dias. Caracteriza-se por sinto- substncia consumida imedi-
mas depressivos, podendo apresentar tambm ansie- atamente antes da parada ou
da reduo do consumo. A sn-
dade, paranoia e fissura ou craving (intenso desejo de drome de abstinncia pode se
complicar pela ocorrncia de
voltar a usar drogas). Aps a fissura inicial, instala-se convulses.
hipersonia, com despertares intermitentes e tambm a Hipersonia: sono ou sonoln-
cia excessivos.
hiperfagia. relacionada com depleo de monoaminas
Hiperfagia: aumento do
na fenda sinptica. apetite.
Sndrome Disfrica Tardia: Incio em 12 a 96
horas e durao de 2 a 12 semanas. Nos primeiros
quatro dias h a presena de sonolncia e de fissura,
anedonia, irritabilidade, problemas de memria e idea- Anedonia: incapacidade de
sentir ou perceber o prazer.
o suicida, ocorrendo recadas frequentes por conta
da busca por alvio desses sintomas.
Extino: H uma melhora progressiva nos sinto-
mas disfricos, que podem inclusive cessar por completo.
A fissura torna-se intermitente (Marques et al., 2012).
Contudo, os estudos desenvolvidos com psico-
frmacos para o uso no tratamento da dependncia de co-
cana/crack no costumam enfocar somente nos sintomas
de abstinncia, mas na sndrome como um todo. A maioria
dos autores cita que a fissura por essa droga bastante
potente e, assim como a prpria abstinncia, costuma ser
vinculada a uma diminuio de ao no sistema dopami-
nrgico. Por isso, teoricamente, ambas poderiam ser ame-
nizadas atravs do uso de medicaes. Assim, inicialmente,
pensou-se que teraputicas com agonistas dopaminrgicos Agonista: substncia que se
liga a um receptor e estimula a
poderiam, ao mimetizar efeitos farmacolgicos e compor- sua ao.

153
Manual de abordagem de dependncias qumicas

tamentais, controlar melhor os sintomas de abstinncia


e, consequentemente a fissura, funcionando como um
tipo de reposio controlada ou substituio da
droga, com a vantagem de ter menos potencial aditivo
e poderiam criar tolerncia aos efeitos da cocana. Con-
tudo, isso ainda no est totalmente evidente na litera-
tura para o tratamento da dependncia de cocana, ao
passo que teraputicas com agonistas so eficazes para
dependncia de nicotina e opiides (rush; Stoops,
Opiide: substncia que seme-
lhante ou derivada ao pio. 2012).
De forma complementar, procurou-se identi-
Antagonista: substncia que
se liga a um receptor e inibe
ficar antagonistas da cocana, que, na vigncia do uso,
sua ao. poderiam bloquear os efeitos desejados da droga, e le-
variam a uma reduo no comportamento de busca e
de consumo. o exemplo da naltrexona, que um an-
tagonista de receptores opiides, utilizado no trata-
mento da dependncia de herona. No entanto, o risco
que se corre que a reduo no efeito positivo pode
levar ao aumento na quantidade do consumo (rUSH;
StOOPS, 2012).
Com base nessas teorias, muitos ensaios clnicos foram
realizados, e com diferentes hipteses para os mecanismos de
ao das medicaes testadas. Os principais desfechos avaliados
nesses estudos foram: desistncia do tratamento (nmero de pa-
cientes que no completaram o tratamento, como forma de ava-
liar as possveis recadas, j que a maioria das desistncias est
relacionada a esse fenmeno), aceitabilidade (nmero e tipo de
efeitos adversos), abstinncia ou no (uso de cocana atravs de
relato ou nmero de amostras de urina positiva); fissura, gravi-
dade da dependncia, quantidade de cocana utilizada e sintomas
psiquitricos (avaliados por escalas especficas). Diferentes fr-
macos foram estudados atravs de estudos com diferentes me-
todologias, e uma forma de unificar os resultados dos estudos

154
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

parecidos atravs de metanlises bem conduzidas, as Metanlise: tipo de estudo


cientfico que combina o resul-
quais analisam o resultado de vrios estudos ao mesmo tado de vrios estudos para
poder aumentar a confiabili-
tempo, a fim de se ter uma noo melhor da eficcia ou dade dos resultados obtidos.
no de um determinado tratamento. Do ponto de vista
cientfico, as metanlises so os melhores instrumentos
disponveis para avaliar a eficcia de uma medicao para
um determinado transtorno. Nesse caso, juntam-se os
riscos relativos (rr), como se estudos menores, com
mtodos parecidos se tornassem um estudo bem maior.
risco relativo uma medida de fora de associao entre
um fator em estudo (no caso, os tratamentos com fr-
macos) e um desfecho (no caso, aquilo que desejamos
com os tratamentos nos dependentes qumicos, o que
verificado atravs dos itens listados acima). Como uma
razo, entre quantos dos tratados (o numerador), sobre
quantos dos no tratados (o denominador) tiveram o des-
fecho desejado, preciso que a razo seja diferente que
1; afinal, se for igual a 1 significa que o numerador e o
denominador no tm diferena entre si e, assim, que tra-
tar ou no tratar no faz diferena. Se o desfecho algo
positivo, como abstinncia, espera-se que o numerador
seja maior e, assim, que a razo seja maior que 1. Se for
algo negativo, como desistncia de tratamento, que seja
menor que 1. O Intervalo de confiana de 95%, conceito Intervalo de Confiana: in-
tervalo estimado de um
que vem junto do rr, mostra o espectro de valores que parmetro estatstico.

o rr pode variar e, assim, tambm no pode passar


pelo 1 para que seja confivel. A m notcia que ao se
fazer isso e se aumentar a qualidade e confiabilidade dos
achados relacionados efetividade das teraputicas tes-
tadas que, muitas vezes, os resultados positivos so
difceis de serem encontrados, sendo geralmente desani-
madores. Vamos ver a seguir o que mostram alguns des-
ses estudos e algumas dessas metanlises.

155
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Antidepressivos

O consumo crnico de cocana pode levar de-


pleo de monaminas (dopamina, serotonina, noradrena-
lina), o que poderia tambm estar associado aos sintomas
depressivos aps o uso e fissura do crash. Partindo dessa
premissa, dezenas de estudos com as diferentes classes des-
sas medicaes vm sendo realizados desde a dcada de
80, encontrando tanto resultados positivos quanto negati-
vos. Uma metanlise recente, robusta e altamente crite-
Cochrane: organizao no
governamental, sem fins lucra-
riosa, realizada por Pani et al. atravs da Cochrane, analisou
tivos e sem fontes de financia- estudos que compararam diferentes antidepressivos com
mento internacionais, que tem
por objetivo contribuir para o placebo at julho de 2011 (PANI et al., 2012). O nmero
aprimoramento da tomada de
decises em Sade, com base de pacientes tratados ao final foi de 3551 pacientes.
nas melhores informaes
disponveis.
Quando comparado ao placebo, no houve melhor adeso
ao tratamento, nem diminuio da quantidade de cocana
utilizada ou da gravidade da dependncia, nem melhora na
qualidade de vida. Apenas em relao melhora dos sin-
tomas antidepressivos foi observada melhora com o uso
dos antidepressivos. Esses resultados no foram melhora-
dos nem com associao de tcnicas psicossociais. A con-
cluso que se tem diante desses dados que, embora tenha
sido sugerida eficcia dos antidepressivos para tratamento
de dependncia de cocana per se, a sntese dos dados no
mantm tal premissa. Alm disso, o efeito discreto em sin-
tomas depressivos, mesmo com todas as limitaes, no
altera desfechos primrios relacionados dependncia qu-
mica. Os autores da metanlise concluem que o benefcio
do uso de antidepressivos na comorbidade entre depresso
maior e dependncia qumica precisa ser melhor investi-
gado, mas que novas investigaes com antidepressivos
para dependncia qumica somente devem ser
conduzidas mediante uma avaliao rigorosa da
relevncia.
156
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

H uma limitao nos dados do benefcio do uso de anti-


depressivos na comorbidade da dependncia qumica com depres-
so maior inclusive pela possibilidade de sobreposio de sintomas
(6), embora a comorbidade seja frequente (rEGIEr et al., 1990).
Alm disso, situaes inerentes dependncia geram sentimentos
de vergonha e culpa, sintomas que tambm fazem parte da sn-
drome depressiva (rOUSANVILLE, 2004). Uma metanlise bus-
cou responder dvida relacionada comorbidade h benefcio
no tratamento? Essa metanlise foi publicada no JAMA em 2004,
tendo estudado 848 pacientes em 14 ECr, com uma resposta de
52,1% no grupo que foi tratado com antidepressivos e de 38,1%
no grupo que recebeu placebo, demonstrando uma diferena entre
antidepressivos e placebo de 16,8% (IC95% 6,9%-26,7%) signi-
ficativa, portanto, mas com heterogeneidade entre estudos de 51%,
que alta, o que compromete em parte a comparao (8).
Embora os benefcios sejam discretos, na Uni-
dade de Internao especializada em usurios de crack
do Hospital de Clnicas de Porto Alegre temos como
rotina conduzir nossas condutas de acordo com as su-
gestes da metanlise do JAMA (NUNES 2004), que so JAMA: Jornal da Associao
as seguintes:diagnstico de depresso maior comrbida Mdica Americana.
deve ser estabelecido por 1) um breve perodo (poucos
dias) de observao de evoluo de sintomas na
abstinncia e/ou 2) distino de sintomas depressivos pri-
mrios ou secundrios ao transtorno por uso de substn-
cias psicoativas atravs de dados da histria do paciente.
Muitos deles apresentam histrico longo de depresso,
ou histria familiar importante associada depresso
grave, incio dos sintomas antes do incio das drogas, ou
sintomas depressivos importantes que ocorreram durante
perodos de abstinncia das drogas. Nesses casos, inicia-
mos preferencialmente fluoxetina 20mg, adequando
doses conforme gravidade e durao de sintomas, por

157
Manual de abordagem de dependncias qumicas

conta de ser um dos antidepressivos disponveis na rede pblica de


sade, pela melhor tolerabilidade e pelo fato de os antidepressivos
tricclicos no terem mostrado vantagem adicional nos dados at
ento disponveis. Alguns autores sugerem que antidepressivos com
atuao na dopamina podem ser mais benficos para usurios de es-
timulantes como a cocana, especialmente para aqueles que referem
anedonia e falta de energia. Quando possvel, utilizamos bupropiona
at 300mg ao dia por conta da vantagem terica de produzir um
agonismo dopaminrgico a metanlise da Cochrane, anteriormente
mencionada, incluiu os trs principais estudos da bupropiona tota-
lizando 325 participantes; os resultados foram inconclusivos, sendo
que um dos motivos para isso foi a heterogeneidade dos estudos.

Agonistas dopaminrgicos

Uma metanlise recente da Cochrane realizada e publicada


por Amato et. al. buscou estudos que compararam esses agentes
(amantadina, bromocriptina, cabergolina, l-dopa/carbidopa, pra-
mipexol, pergolida e hydergine) com placebo at junho de 2011
(AMAtO et al., 2012). Na busca inicial, encontraram 442 artigos.
Desses, apenas 23 eram ensaios clnicos randomizados suficiente-
mente adequados que se enquadraram nos seus critrios de incluso.
H um pequeno benefcio dos antagonistas dopaminrgicos em re-
lao ao placebo no desfecho abstinncia no seguimento, com um
rr 0,57 (IC95% 0,35-0,93) baseado em quatro estudos e 166 pa-
cientes. Para outros desfechos estudados, como a gravidade da de-
pendncia e sintomas psiquitricos, houve resposta pior que o
placebo. H algumas limitaes, sendo uma das mais importantes
a grande variedade de diferenas nos critrios diagnsticos, mto-
dos de avaliao de desfechos e abordagens psicossociais aplicadas
em conjunto aos psicofrmacos. Apesar disso, a avaliao de risco
de vieses mostra que a qualidade dos estudos boa, sendo que a

158
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

qualidade da metanlise classificada como moderada. No entanto,


apesar disso e dos efeitos discretos, alm das vantagens tericas,
esses achados no sustentam o uso desses agonistas dopaminrgi-
cos diretos de forma isolada, no tratamento da dependncia de co-
cana. Nesses estudos no est includa a bupropiona, que foi
abordada no tpico antidepressivos, embora o efeito principal dela
seja o agonismo dopaminrgico. Alm disso, ser importante no
futuro poder estratificar as amostras de usurios atravs da sin-
tomatologia apresentada, perfil de personalidade e comorbidade,
ou mesmo perfil gentico, o que costuma ser chamado de estudos
farmacogenticos. Dessa forma, poder-se- distinguir melhor os in-
divduos especficos que respondem ou no a determinadas medi-
caes como os agonistas dopaminrgicos.

Dissulfiram

Foi aprovado pelo FDA em 1951 para tratamento da de-


pendncia de lcool baseando-se na inibio da aldedo desidroge-
nase, enzima envolvida na metabolizao do acetaldedo em acetato,
levando ao acmulo de aldedo, que txico e causa a reao eta-
nol-dissulfiram quase imediatamente aps ingesto de lcool. Alm
dessa ao, observou-se, posteriormente que o dissulfiram tambm
inibe a dopamina beta-hidroxilase, enzima envolvida na metaboli-
zao da dopamina em noradrenalina, levando a um aumento na
disponibilidade de dopamina; associado a esse efeito, o dissulfiram
tambm inibe as carboxilesterases microssomal e plasmtica, alm
da colinesterase plasmtica, enzimas responsveis pela metaboliza-
o da cocana. Assim, o efeito final seria uma eliminao mais de-
morada e uma concentrao plasmtica maior da cocana em
comparao encontrada com o efeito do seu uso isolado. Isso le-
varia a uma exacerbao dos efeitos negativos da cocana nos pa-
cientes dependentes, como sintomas psicticos, ansiedade e

159
Manual de abordagem de dependncias qumicas

resposta cardiovascular, podendo desencadear uma sensao de


averso substncia (PEtINAttI et al., 2008).
Em funo disso, vrios ensaios clnicos foram realizados
para testar a eficcia do dissulfiram em amostras de usurios de co-
cana/crack com e sem uso de lcool concomitante, e alguns de-
monstraram resultados interessantes. Contudo, uma metanlise
recente realizada por Pani et al. (2010), atravs da Cochrane analisou
estudos que compararam dissulfiram com placebo, com naltrexona
e com nenhum tratamento com placebo at janeiro de 2009. O pri-
meiro achado foi que h muita heterogeneidade entre os estudos, e
apenas alguns ensaios clnicos utilizaram cegamento, alm de varia-
rem muito na aferio dos desfechos. Os dados sugerem uma maior
adeso ao tratamento dos pacientes que fizeram uso de dissulfiram,
mesmo que no estatisticamente significativo 2 estudos, 87 par-
ticipantes, rr 0,82 (IC95% 0,66-1,03) e 1 estudo, 107 participantes,
rr 0,34 (IC95% 0,20-0,58); no agrupados por conta da heteroge-
neidade. No foi possvel agrupar os dados quanto abstinncia
porque as medidas de desfecho foram diferentes, e apenas um es-
tudo, com vinte pacientes, sugeriu um nmero mdio de semanas
abstinente, favorecendo o grupo do dissulfiram: MD 4,50 (IC95%
2,93-6,07). H algumas outras dificuldades adicionais que justificam
a baixa qualidade dos estudos com dissulfiram. O processo de cegar,
por exemplo, pode prejudicar o efeito de impedimento psicolgico
causado pela ameaa dos potenciais efeitos (que se acredita ser parte
da eficcia da droga), uma vez que os pacientes podem testar se
esto usando o dissulfiram ingerindo lcool. Alm disso, h uma
questo tica envolvida, pois necessrio informar ao paciente de
que ele est em uso da droga ativa por conta da potencial gravidade
do efeito etanol-dissulfiram. Assim, concluem que h pouca evi-
dncia no momento que sustente o uso de dissulfiram para depen-
dncia de cocana (PANI et al., 2010).
Entretanto, na nossa prtica clnica, uma vez que o dissul-
firam uma medicao de baixo custo e j est bem estabelecida

160
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

sua eficcia para a dependncia de lcool, na Unidade de Psiquiatria


de Adio do HCPA, costumamos utilizar essa medicao em pa-
cientes que possuem a comorbidade de dependncia de crack e de
lcool. Sabe-se que a associao entre dependncia de lcool e co-
cana de at 85% e a utilizao de lcool um fator preditivo para
recadas no uso de cocana/crack (rEGIEr et al., 2007). Atentamos
para alguns pontos: informamos sobre a reao etanol-dissulfiram
e orientamos a no ingesto de nenhuma soluo alcolica; alm
disso, orientamos a forma de utilizar a medicao atravs de um
contrato mais concreto de tratamento, pois implica inclusive riscos
vida. Costumamos prescrever para pacientes em estgio motiva-
cional de ao; alm disso, o comprometimento do entendimento
adequado dos riscos e a histria de comportamentos impulsivos
importantes e de difcil manejo devem ser uma contraindicao ao
menos relativa (MArQUES et al., 2012). Visto que h uma reao
hepatotxica idiossincrtica rara, mas fatal, com pico de incidncia
aos 60 dias de tratamento, recomendvel que se oriente procurar
um servio de emergncia no caso de surgimento de sinais de he-
patotoxicidade (febre, dor abdominal, ictercia) e que se solicite pro-
vas hepticas a cada duas semanas nos primeiros 2 meses de
tratamento e, aps, a cada 3 a 6 meses (BArtH; MALCOM, 2010).

Anticonvulsivantes

Os frmacos anticonvulsivantes tm sido consi-


derados para uso na dependncia por cocana baseando-se
na hiptese de que mecanismos de induo de convulso
(mecanismo kindling) contribuem para dependncia
(CrOSBy et al., 1991; KrANzLEr, 1995). A maioria dos
anticonvulsivantes potencializam a neurotransmisso inibi-
tria mediada pelo cido gama-aminobutrico (GABA) (CzA- cido gama-aminobutrico
(GABA). Neurotransmissor an-
PINSKI et al., 2005; LANDMArK, 2007 ). Os neurnios tagonista.

161
Manual de abordagem de dependncias qumicas

GABA so parte do sistema dopaminrgico mesolmbico e a ati-


vao de receptores GABA, na rea tegmentar ventral, diminui a
atividade dopaminrgica no ncleo acumbens (KOOB, 1997). O
efeito inibitrio do GABA pode ser efetivo em bloquear aumen-
tos de dopamina extracelular induzidos por cocana no ncleo
acumbens, que poderia levar a uma diminuio do reforo posi-
tivo no uso de cocana e da auto-administrao (CAMPBELL,
1999; KUSHNEr, 1999). (MINOzzI et al., 2008).
A carbamazepina, por exemplo, vem sendo utilizada em
diversas condies neurolgicas e psiquitricas, tambm vem sendo
testada para a dependncia de cocana, porm sua eficcia no foi
bem estabelecida e os estudos no favorecem seu uso. J em 2002,
uma reviso sistemtica realizada por Lima A.r., et al, mostrava a
falta de evidencia para o uso clnico da carbamazepina na depen-
dncia de cocana. Em 2009, foi realizada outra reviso sistem-
tica, pelos mesmos autores, mostrando algum grau de maior
reteno no tratamento, porm sem significncia estatstica. (LIMA
et al., 2009).
Uma reviso sistemtica publicada pela Cochrane (MI-
NOzzI et al., 2008) sobre uso de inmeros anticonvulsivantes
na dependncia de cocana, demonstrou-se a falta de evidncia
de efetividade desses. Os anticonvulsivantes avaliados foram
carbamazepina, gabapentina, lamotrigina, fenitona, tiagabina,
topiramato e cido valprico. Vale a pena salientar que, em trs
estudos, com a gabapentina e em dois com a fenitona, o pla-
cebo se mostrou superior ao anticonvulsivante. Outra metan-
lise (ALVArEz et al., 2010) mostrou que anticonvulsivantes
no tm sido eficazes no tratamento da dependncia de co-
cana, em termos de reteno no tratamento e uso de cocana.
Apesar dessas revises sistemticas e das metanlises no
recomendarem o uso de nenhum anticonvulsivante, so citados es-
tudos com amostras pequenas, controladas com placebo, indicando
uma ao positiva do topiramato na dependncia de cocana

162
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

(KAMPMAN et al., 2004). As doses utilizadas variam entre 200-


400mg, tendo-se melhores resultados com doses entre 300-400mg
(Johnson BA, 2005). Os efeitos adversos mais relatados so nervo-
sismo, alteraes do raciocnio, dificuldade de memorizao, nusea,
perda de peso, distrbios de linguagem e distrbios da concentra-
o/ateno (GOrELICK et al., 2004).
Os anticonvulsivantes podem ter importante papel em pa-
cientes com comorbidade e com transtorno bipolar. O CANMAt
(Canadian Network for Mood and Anxiety treatments) realizou
uma fora tarefa com recomendaes para manejo de pacientes
com uso de substncias e com transtorno bipolar (tB). Colocam
como primeira linha no tratamento de dependncia/abuso de co-
cana e tB o uso de cido valproico associado a ltio (nveis
sricos 0.8mEq/L para o Litio e 50 g/mL para o cido
valproico). Como segunda linha, indica o uso de lamotrigina
adjuntiva ou monoterapia (at 300mg/dia), ltio monoterapia,
cido valproico adjuntivo ou monoterapia, quetiapina adjuntiva ou
monoterapia (dose mdia de 301,9mg/d), risperidona
monoterapia ou associao (dose mdia 3,1mg/dia) e citicolina
como terapia adjuntiva. Importante salientar que, apesar de
mostrar alguns estudos pequenos com resultados positivos, o
CANMAt no recomenda o uso de carbamazepina para
tratamento de tB e abuso/dependncia de cocana por falta de
evidencia clnica (BEAULIEU et al., 2012).

Antipsicticos

vlido lembrar que o aumento de monoami-


nas, principalmente da dopamina em reas especficas do
sistema meso-lmbico est envolvido na recompensa e
auto-administrao da droga (VOLKOW, 2003). teori- Antipsicticos: medicaes
camente, os antipsicticos so candidatos para tratamento usadas para o tratamento de
sintomas psicticos (delrios e
de dependncia qumica por bloquearem receptores aluncinaes). So antago-
nistas dopaminrgicos.

163
Manual de abordagem de dependncias qumicas

dopaminrgicos e contrabalancear o aumento de dopa-


mina relacionado ao uso da droga, tornando, assim, o uso
da mesma menos atraente. Entretanto, enquanto h um
aumento de dopamina em curto prazo, na abstinncia
aguda e protrada, em longo prazo tende a ocorrer uma
diminuio da neurotransmisso dopaminrgica, relacio-
nada a uma downregulation (diminuio) de receptores
dopaminrgicos. Essa diminuio do tnus dopaminr-
Anedonia: incapacidade de gico pode levar anedonia e aumentar a fissura, mantendo
sentir ou perceber o prazer.
o comportamento aditivo (KUHAr, 1996). Ento, a efi-
ccia do uso de antipsicticos poderia ser questionada,
pois por um lado ajudaria a diminuir os altos nveis de
dopamina relacionados adio; porm, por outro lado,
poderia diminuir o tnus dopaminrgico e aumentar a
fissura e anedonia. Esses conceitos se aplicam bem aos
antipsicticos tpicos, que agem basicamente no sistema
Antipsicticos atpicos: so dopaminrgico. Antipsicticos atpicos, por sua vez, tam-
os psicticos de segunda ge-
rao. Eles tendem a ter
bm agem (juntamente com o bloqueio dopaminrgico) sobre
menos efeitos colaterais e ou outros circuitos cerebrais, como no sistema serotoninrgico
tros efeitos que aqueles medi-
ados pelo antagonismo de (bloqueio 5-Ht2A/2C), o que tem sido considerado com in-
dopamina.
teresse para esse tipo de tratamento, dado o envolvimento da
neurotransmisso serotoninrgica na dependncia qumica
(FILIP, 2005). Hipoteticamente, o bloqueio dopaminrgico
e serotoninrgico poderia ajudar a modular depresso e fissura
associado abstinncia e melhorar a adeso ao tratamento
(FILIP, ALENINA, BADEr, & PrzEGALINSKI,
2010; MCMAHON & CUNNINGHAM, 2001), tor-
nando o uso de antipsicticos atpicos promissor no
tratamento de dependncia de cocana. Alm disso, o
uso de cocana pode desencadear a sensi-bilizao de
receptores dopaminrgicos, levando a sinto-mas
psicose-like como paranoia e alucinaes, o uso de
antipsicticos melhorariam tais sintomas. Dentre os

164
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

mais estudados esto olanzapina, haloperidol, quetiapina e cloza-


pina, e vem aparecendo mais estudos com aripiprazol nos ltimos
anos, porm sem metanlises que suportem o uso de antipsicti-
cos para dependncia de cocana (AMAtO, MINOzzI, PANI,
& DAVOLI, 2007). Apesar da falta de evidncias consistentes,
vlido comentar alguns pontos de alguns trabalhos citados.
Uma meta analise e reviso sistemtica realizada por
Alvarez Y. et al. 2013, incluindo doze ensaios clnicos,
randomizados, duplo-cegos, controlados com placebo envolvendo
681 pacientes com risperidona, quetiapina, olanzapina, reserpina e
ritaserina mostrou que, em geral, antipsicticos no aumentaram
reteno no tratamento ou diminuio do consumo de substncias
em comparao com placebo. Apesar de no se ter chegado a um
desfecho estatisticamente significante, os autores especulam sobre
outros achados. Mostrou-se uma menor diminuio de fissura
com antipsicticos em comparao ao placebo, particularmente
em relao olanzapina. Atribuiu-se tal fato ao possvel bloqueio
de receptores D2, levando a uma maior anedonia e depresso,
podendo aumentar significantemente a fissura e a chance de uso
da substncia, favorecendo o resultado para o grupo placebo.
Entretanto, na reviso realizada por Amato, et al., 2007, mostrou-
se, em um estudo pequeno, benefcio da olanzapina em relao ao
pla-cebo para controle de fissura (rEID, 2005). Alm disso,
outros dois pequenos estudos mostraram melhora da ansiedade e
fissura comparando-se haloperidol e placebo (Berger, 1996) e
melhor que olanzapina para controle de sintomas psiquitricos em
pacientes com comorbidade com esquizofrenia (SMELSON,
2006). Analisando-se abandono de tratamento, os antipsicticos
mostraram marginalmente menos desistncia em comparao a
placebo, sendo a risperidona a que mais contribui para a adeso
em resultados compatveis com ou-tras revises prvias (AMAtO
et al., 2007). importante salientar que doses mais altas de
risperidona (8mg) mostraram uma diminuio na adeso ao
tratamento devido a efeitos colaterais (GrABOWSKI et al., 2000).
165
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Um consenso interessante para o tratamento farmacol-


gico do uso de drogas foi lanado pela Associao Britnica de Psi-
cofarmacologia, em 2012. Em relao aos antipsicticos, limitam-se
em citar a reviso lanada pela Cochrane em 2007 e reforam que
no h evidncias suficientes para uso de antipsicticos na depen-
dncia de cocana. Outro consenso realizado pela Associao Bra-
sileira de Psiquiatria, tambm de 2012, cita o uso de antipsicticos
apenas em concomitncia com sintomas psicticos ou agitao ex-
trema, (sugerindo haloperidol 5mg) e salientando neurolpticos fe-
notiazinicos, tais como clorpromazina e levomepromazina, devem
ser evitados pela reduo significativa do limiar convulsivo. Conti-
nua-se realizando estudos com antipsicticos e buscando-se evi-
dncias robustas para o uso dos mesmos na dependncia de
cocana/crack. recentemente alguns estudos com aripiprazol foram
realizados, porm sem resultados significativos para o uso na ma-
nuteno da abstinncia e seguimento no tratamento (BrUNEttI
et al, 2012). Um estudo mostrou aumento do uso de cocana com
o uso de aripiprazol (HANEy et al., 2011) e um estudo piloto mos-
trou benefcios do uso de aripiprazol e do ropinirol para fissura,
tendo apresentado o aripiprazol melhor resultado (MEINI et al.,
2011).
Como se sabe, na prtica clnica, os antipsic-
ticos so utilizados, principalmente em pacientes com
transtorno bipolar ou esquizofrenia, e o tratamento
dessas comorbidades extremamente importante para
o sucesso no tratamento da dependncia qumica, em
funo da gravidade da sintomatologia e problemtica
CANMAT: Canadian Network envolvida. Para esse fim, o CANMAT (BEAULIEU et al.,
for mood and anxiety treat-
ments Rede canadense para
2012) cita dois antipsicticos no tratamento do tB e
o tratamento de transtornos da dependncia de cocana, risperidona e quetiapina, j
do humor e ansiedade.
citados anteriormente.
Contudo, devido ambivalncia dos achados publicados,
o uso de antipsicticos, especificamente para dependncia

166
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

cocana, sem a comorbidade com outros transtornos psi-


quitricos, deve ser feito de maneira individualizada, pois
alguns pacientes podem se beneficiar do controle dopa-
minrgico e outros piorar, com anedonia e depresso. No
nosso servio, o uso de antipsicticos frequente, espe-
cialmente na internao, visando maior controle da agi-
tao psicomotora, impulsividade, agressividade,
sintomas de abstinncia e, naturalmente, naqueles pacien-
tes diagnosticados com comorbidades psiquitricas. Den-
tre as medicaes mais utilizadas esto haloperidol,
clorpromazina, risperidona e olanzapina. tem-se prefe-
rncia pela risperidona, em funo de seus discretos re-
sultados na melhora da adeso ao tratamento. Utilizamos
haloperidol e clorpromazina em pacientes que no tm
condies financeiras de seguir um tratamento ambula- Haloperidol de depsito:
torial com risperidona. Utilizamos haloperidol de depsito medicao antipsictica inje-
tvel que substitui a medi-
para pacientes com baixa adeso e sintomas psicticos. cao oral e liberado durante
vrios dias.
A olanzapina utilizada especialmente quando pacientes
tm efeitos adversos com outros antipsicticos (sintomas
extrapiramidais, maior risco de convulso), para pacientes
com insnia importante, e para a potencializao de an-
tidepressivos em pacientes deprimidos. Costumamos ter
tambm bom resultado no manejo de agitao, agressi-
vidade e impulsividade no ambiente de internao, em
pacientes refratrios a antipsicticos tpicos.

Psicoestimulantes
Psicoestimulantes: medica-
Psicoestimulantes podem ser definidos, em ter- mentos que causam um au-
mento de dopamina e
mos gerais, como medicamentos que produzem excitao produzem excitao psquica.
Podem ser usados como
psquica e comportamental; agindo, direta ou indireta- medicamentos de substituio
mente, no aumento da dopamina e noradrenalina na de drogas ilcitas estimulantes.

167
Manual de abordagem de dependncias qumicas

fenda sinptica, mecanismo similar ao da cocana. A terapia de


substituio envolve a troca da substncia psicoativa em abuso,
usualmente ilegal e usada vrias vezes por dia, por uma droga legal,
administrada oralmente, em poucas tomadas por dia, mas com
efeito semelhante, menor potencial aditivo e menos riscos para a
sade.
Os principais psicoestimulantes so os anlogos de anfe-
tamina, a meta-anfetamina, o metilfenidato, o modafinil e o ar-
modafinil. Outras medicaes podem ser citadas neste grupo como
supressores de apetite (mazindol, benzfetamina, fentermina, dentre
outros). Entretanto, existem outras medicaes, no classificadas
como psicoestimulantes, porm com propriedades psicoestimu-
lantes (afetam receptao de catecolaminas), como alguns antide-
pressivos (bupropiona) e agonistas dopaminrgicos (levodopa)
(MArIANI et al., 2012).
A Cochrane realizou uma metanlise em 2010
(CAStELIS et al., 2010), avaliando a eficcia de psicoestimulantes
no tratamento da dependncia de cocana. Foram avaliados 6 fr-
macos (bupropiona, dexamfetamina, metilfenidado, modafinil,
mazindol, metanfetamina e selegina). Os resultados mostraram ev-
idncia inconclusiva. Psicoestimulantes no diminuram uso de co-
cana, fissura e adeso ao tratamento, porm uma maior quantidade
de pacientes atingiram abstinncia sustentada em relao ao
placebo. Melhores resultados foram obtidos com dexanfetamina,
bupropiona e modafinil. Valendo salientar uma melhor resposta
com dexanfetamina e bupropiona, em pacientes com dependncia
de cocana e opiides. A reviso salienta que psicoestimulantes no
melhoraram sintomas depressivos. Em termos de efeitos adversos,
psicoestimulantes parecem ser seguros a curto-prazo e no induzi-
ram maiores taxas de desistncia do tratamento em relao ao
placebo, porm h um possvel risco cardio-vascular a longo prazo.

168
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

Transtorno de Dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH)

Psicoestimulantes tem se mostrado eficazes para o trata-


mento de pacientes com tDAH em diversos estudos (KOEStErS,
2008; PEtErSON, 2008), entretanto sua eficcia em pacientes
com uso de substancias comrbido controverso. Nos estudos ava-
liados, psicoestimulantes no melhoraram os resultados em relao
ao uso de cocana. Um estudo com metilfenidato mostrou resulta-
dos positivos com a formulao de liberao rpida, com melhora
importante dos sintomas do tDAH, porm sem diferenas no uso
de cocana (Schubiner et al, 2002). Estudos mostraram segurana
do metilfenidato em doses at 90mg/kg se coadministrado com co-
cana (Winhusen , et al, 2006). Pacientes usurios de cocana com
coocorrncia de tDAH que respondem ao tratamento so mais
propensos em ter diminuio do uso de cocana comparado com
no respondedores (MArIANI et al., 2012). Esses resultados suge-
rem que o metilfenidato tem efeito teraputico em pacientes com
uso de cocana e tDAH, e que a melhora dos sintomas de tDAH,
pode melhorar os desfechos do paciente com dependncia de co-
cana e tDAH comrbidos.

Anfetaminas

Um estudo (GrABOWSKI, 2001), mostrou benefcios


com a dextroamfetamina com doses entre 15 a 60 mg por dia. Um
grupo com doses entre 15 a 30mg e outro entre 30-60mg. O grupo
com menor dose teve melhor adeso no tratamento, enquanto que
o grupo com dose maior teve menor taxa de positividade no exame
toxicolgico de urina. Quando comparados com os pacientes com
dependncia de opiides e cocana, as doses maiores (30-60mg por
dia) mostraram melhor benefcio que o grupo com menor dose e
com placebo.

169
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Em outro estudo (MArIANI, 2012), comparando com-


binao de topiramato com sais mistos de anfetamina de liberao
prolongada versus placebo, mostrou superioridade da combinao
em relao ao placebo na manuteno de abstinncia (33,3% x 16,%
de abstinncia). Importante salientar que ambos os grupos recebe-
ram intervenes comportamentais e as doses mximas utilizadas
foram de 150mg 2x por dia para o topiramato e 60mg por dia para
sais de anfetamina.

Modafinil e Armodafinil

O modafinil, assim como a cocana, bloqueia a recaptao


de dopamina e noradrenalina, aumentando a concentrao dessas
no crebro e causando excitao do sistema nervoso central, porm
de forma mais branda (KArILA et al., 2008). Alm disso, tambm
capaz de aumentar a atividade do sistema glutamatrgico, geral-
mente deficitrio pelo uso crnico de cocana; podendo, com tal
compensao, bloquear os efeitos euforizantes da cocana e prevenir
a reinstalao do comportamento de busca (KAMPMAN, 2010).
Apesar de no apresentar eficcia comprovada estatisticamente, al-
guns estudos mostraram resultados positivos com doses entre 200
e 400 mg, principalmente em pacientes com dependncia de co-
cana e no dependentes de lcool (ANDErSON, 2009). O mo-
dafinil parece ser uma medicao bem tolerada e com um bom
perfil de efeitos adversos. Dentre os mais frequentes (correspon-
dendo a 5%) encontram-se dores de cabea, nusea, nervosismo,
ansiedade, insnia, diarreia, dispepsia e vertigem (JOHNSON,
2005).

170
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

Cuidados com o uso de psicoestimulantes

Medicaes psicoestimulantes tm potencial para uso in-


devido, abuso e dependncia (WILENS, 2008). Uma avaliao do
risco de abuso deve ser feita no paciente que utiliza tais
medicaes e o paciente deve ser informado sobre os riscos da
combinao de tais medicaes e uso de substncia. A cada consulta
o paciente deve ser investigado para possvel abuso de psicoestim-
ulantes (de uma forma no ameaadora). Alguns sinais de alerta
para abuso so: sintomas de intoxicao ou abstinncia, exigncias
de frmacos com rpido mecanismo de ao, liberao prolongada
no funciona para mim, perda repetitiva de prescries, vrios pre-
scritores, preocupao excessiva com estoques de medicao, pre-
scries que acabam antes do tempo estimado, desenvolvimento
de novos sintomas cardiovasculares e desenvolvimento de psicose.
recomendaes como formulaes de liberao prolongada so
preferidas a liberao imediata e prescrio de pequenas quanti-
dades da medicao (com contagem de comprimidos) so impor-
tantes para evitar abuso. Em geral, deve-se enfatizar o uso regular
da medicao, e no quando necessrio, criando segurana e pre-
visibilidade no manejo de tais medicaes (MArIANI et al., 2012).
Em nosso servio, tentamos utilizar o metilfenidato
quando h, no mnimo, uma forte suspeita do diagnstico de
tDAH, que infelizmente de difcil comprovao nessa populao,
pela pouca confiabilidade dos relatos retrospectivos dos prprios
pacientes e de seus familiares. Mesmo atentando para evitar seu uso,
em pacientes com indcios de transtorno do humor bipolar, no
so raros, entre nossos pacientes, os que apresentam sintomas
manacos no incio do tratamento com metilfenidato, que logo
descontinuado nessas situaes, e, por esse motivo, associado ao
fato de ser uma medicao no disponvel gratuitamente na rede
bsica de sade, que s o utilizamos em casos selecionados. Enfim,
apesar de no haver estudos com significncia estatstica para o uso

171
Manual de abordagem de dependncias qumicas

de psicoestimulantes, essas so medicaes promissoras no trata-


mento. Uma recente reviso sobre o uso de psicoestimulantes, que
aborda o tema atravs de uma perspectiva translacional, e con-
siderando essa teraputica como terapia agonista de reposio, sug-
ere que temos muito o que avanar nesse campo e que so
promissoras as possibilidades para o uso dessas medicaes como
adjuvantes no tratamento da dependncia de cocana e crack
(rUSH et al., 2012)

Perspectivas futuras

Atravs dos avanos da bioengenharia e nanotecnologia,


sabe-se que existem inmeras possibilidades de tratamentos farma-
colgicos, estimulao de regies cerebrais atravs de eletrodos, e
criao de molculas e outros elementos que podero atuar no sis-
tema de recompensa cerebral, a fim de colaborar na teraputica dos
usurios de cocana. Entre as mais conhecidas e promissoras, atual-
mente, segundo Montoya, em um editorial publicado na Adicciones
em 2012, so as chamadas vacinas, uma vez que as substncias
que atravessam a barreira hemato-enceflica e que atuam direta-
mente na neurotransmisso no tm mostrado resultados anima-
dores at ento. Nesse sentido, a comunidade cientfica decidiu
caminhar para outro lado est se estudando molculas maiores e
mais complexas, que no atravessam a barreira e no tem ao cen-
tral aos produtos biolgicos. Aparentemente, sua eficcia estaria re-
lacionada a interaes com a droga ainda na corrente sangunea,
impedindo-a de ultrapassar a barreira e de produzir a ao central,
no permitindo, assim, que ocorram seus efeitos agudos a into-
xicao, a overdose e a abstinncia e tambm seus efeitos crnicos
o desenvolvimento da dependncia. Os produtos biolgicos in-
cluem anticorpos, enzimas, vrus ou toxinas manipulados. Como a
adeso aos tratamentos tambm um problema importante, a van-

172
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de cocana e crack

tagem na utilizao dessas teraputicas que, uma vez que a admi-


nistrao acontece por vias parenterais e a durao do efeito cos-
tuma ser mais prolongada, tem-se mais controle sobre o real uso
ou no da medicao.
O efeito das vacinas basicamente estimular o sistema
imunolgico a identificar as drogas como um antgeno; como as
drogas so partculas muito pequenas, preciso promover a conju-
gao com uma protena antignica, para que se forme um com-
plexo antgeno-anticorpo. Esse um processo que muitas vezes
demora um tempo (por conta do estmulo necessrio ao sistema
imunolgico). A administrao de anticorpos monoclonais, por sua
vez, tem a vantagem de no depender do estmulo ao sistema imu-
nolgico para sua ao; no entanto, a durao do seu efeito mais
curta, geralmente apenas algumas semanas, e varia muito entre in-
divduos diferentes. H a necessidade de se desenvolver anticorpos
que alcancem uma concentrao mais alta e prolongada. Atual-
mente, sua utilidade maior nas intoxicaes agudas, pois pode blo-
quear a droga diretamente na corrente sangunea. As enzimas, por
sua vez, seriam responsveis por metabolizar a droga antes que ela
atingisse o crebro e funcionariam melhor quando as concentraes
plasmticas de droga fossem altas, quando as vacinas demorariam
muito a fazer efeito e quando os anticorpos monoclonais facilmente
se saturariam.
As vacinas j esto em fase clnica de testes, e esto apre-
sentando alguns resultados, mas nada conclusivo, ainda devido a
estudos em andamento. Novos produtos biolgicos, cada vez mais
eficazes, surgiro a partir de pesquisas moleculares e genticas.

173
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Concluso

Apesar de anos estudando medicaes para tratamento da


dependncia de cocana, ainda no h tratamento farmacolgico
especfico e embasado em evidncias cientficas. Diversos estudos
realizados com anticonvulsivantes, antidepressivos,
psicoestimulantes, entre outros no mostraram evidncias que
apoiassem o uso dessas medicaes na manuteno da abstinncia
ou outros desfechos relevantes. Esses resultados, entretanto, no
podem ser considerados conclusivos, uma vez que faltam estudos
com metodologia, suficientemente capaz de abarcar a
complexidade das diferenas individuais e controlar os potenciais
vises a que esto sujeitos esses estudos, em funo da extensa
problemtica e inmeros fatores externos/ambientais que
influenciam o consumo de substncias psicoativas.

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177
Captulo 12

Terapias farmacolgicas para os


transtornos do uso da maconha
Silas de Oliveira Tavares

Introduo

A cannabis a droga mais consumida no Brasil Cannabis: planta que produz a


maconha. Seu uso leva a
e no mundo. Seu uso leva a efeitos cognitivos significati- efeitos cognitivos significa-
tivos e est associado com di-
vos e est associado com diversas comorbidades psiqui- versas doenas psiquitricas e
tricas. Ainda assim, h crescentes movimentos com fsicas mo.
como o cncer de pul-

demanda pela legalizao do consumo dessa droga. So-


mente uma pequena parcela dos usurios procura trata-
mento. (2,3,9).
A cannabis derivada basicamente de duas espcies de pe-
quenos arbustos: a Cannabis sativa principal delas e a Cannabis
indica. Produzida em praticamente todo o mundo, geralmente em
pequena escala e para suprir os mercados locais. A planta proces-
sada pode gerar trs produtos:
1. Cannabis herbcea (flores e folhas secas) popular ma-
conha ou marijuana, geralmente fumada, a forma mais ampla-
mente consumida.
2. Haxixe (resina seca concentrada) mais potente do que
a maconha, pode ser fumada ou mastigada.
3. leo de haxixe consumido de vrias formas, produto
com maior teor de canabinoides.
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Seu uso reconhecido h milhares de anos e o interesse


por essa substncia tem aumentado nas ltimas dcadas devido
identificao de um sistema canabinide endgeno, localizado no
sistema nervoso central e em tecidos perifricos, que poderia servir
como alvo teraputico (1,2,4).
H tambm um crescente investimento no comrcio da
cannabis e inmeras campanhas pela legalizao da droga que refor-
am a alegao de que esta uma substncia natural com amplo es-
pectro de benefcios sade, sendo desprezados os prejuzos
associados ao seu consumo j comprovados cientificamente.
A legislao brasileira considera crimes, tanto o consumo
quanto a comercializao da cannabis. At fevereiro de 2013, dezoito
estados norte-americanos aprovaram leis que permitem sua utiliza-
o com finalidade medicinal. Baseados em estudos de pequeno
porte e baixa evidncia cientfica, mdicos podem prescrever can-
nabis para diversas finalidades. Alguns desses estados permitem,
alm de comprar a substncia, uma pessoa com receita mdica pode
produzir uma determinada quantidade para consumo prprio. J
existem lojas, algumas, inclusive, com servio de entrega domiciliar.
H pginas na internet em que possvel descobrir, entre diversos
tipos de cannabis, aquela que melhor atende s necessidades do
cliente, e tambm o direciona ao comerciante mais prximo de sua
casa. Estranhamente, a maioria dessas leis estaduais norte-america-
nas no estabeleceu mecanismos para a distribuio da substncia
nem definiu instrumentos reguladores de sua qualidade e segurana
(WDr 2013).

Prevalncia

De acordo com o recente levantamento de dados do World


Drug Report (2013), houve um pequeno aumento na prevalncia de
usurios (180,6 milhes ou 3,9% da populao com idade entre 15

180
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso da maconha

e 64 anos), em comparao com as estatsticas de 2009. As regies


com prevalncia do consumo de cannabis, maior que a mdia global
continua sendo a frica Ocidental e Central (12,4%), Oceania
(10,9%), Amrica do Norte (10,7%) e Oeste e Europa Central
(7,6%). O consumo de cannabis na Amrica do Norte e na maior
parte da Europa ocidental e central considerado estvel ou em
declnio.
A Amrica do Norte a regio que registra o maior vo-
lume de apreenses de cannabis, responsvel por 69% das apreen-
ses globais da substncia em 2011. Na Amrica Latina e no Caribe,
a regio com o segundo maior nmero de apreenses no mundo, a
maioria dos pases observou um aumento, com destaque para a Bo-
lvia, Colmbia e Paraguai. No Brasil, o nmero de casos de apreen-
so foi praticamente o mesmo em 2010 e 2011 (885 e 878 casos,
respectivamente), mas a quantidade total de maconha apreendida
passou de 155 toneladas em 2010 para 174 toneladas em 2011, o
terceiro aumento consecutivo.
As Naes Unidas consideram que os dados oficiais a res-
peito do uso de cannabis no Brasil, possam estar subestimados tendo
em vista que o volume da droga apreendida no pas est entre os
maiores do mundo. O segundo Levantamento Nacional de lcool
e Drogas (Lenad), concludo em maro de 2012, investigou o pa-
dro de consumo de cannabis no Brasil. Foram entrevistadas 4.607
pessoas a partir de 14 anos de idade em 149 municpios brasileiros.
Os resultados revelaram que 7% da populao j experimentou can-
nabis, representando oito milhes de pessoas; entre os adolescentes,
4% confessaram uso pelo menos uma vez, e mais de 60% dos usu-
rios experimentaram antes dos 18 anos de idade; 3% das pessoas,
nmero igual entre adolescentes e adultos, disseram ter consumido
a droga nos ltimos 12 meses; mais da metade dos usurios, em
torno de 1,5 milhes de pessoas, consomem a droga diariamente;
o consumo entre homens trs vezes mais frequente do que entre
mulheres; mais de um tero dos usurios adultos foram identifica-

181
Manual de abordagem de dependncias qumicas

dos como dependentes; um tero dos adultos usurios no conse-


guiu abandonar a droga e 27% apresentaram sintomas de abstinn-
cia ao tentar parar. Quando perguntado a respeito da legalizao da
cannabis, 75% no concordam, 11% concordam e 14% no tem opi-
nio formada.
Um estudo transversal de 3.398 motoristas descobriu que
4,6% deles atestaram positivo para alguma substncia ilcita. Dentre
os positivos, 32% acusaram tetrahidrocanabinol (cannabis). Em
outro estudo no Brasil, testes de drogas em pacientes que foram
admitidos na sala de emergncia aps acidentes de trnsito mostra-
ram maior associao desses eventos com o uso de cannabis do que
de etlicos. (WDr, 2013).
As taxas de prevalncia de consumo de cannabis nos EUA
esto associadas a variveis sociodemogrficas especficas. A droga
mais prevalente entre os jovens (mais alto para os adultos acima
de 18 a 25 anos, seguido por aqueles de 26 e 34 anos, 12 a 17 anos,
35 a 49 anos e 50 anos ou mais); entre os homens, em comparao
s mulheres (11,4 e 6,7%, respectivamente); significativamente
maior entre separados ou divorciados em comparao com os ca-
sados (odds ratio 1.6). No foi estabelecida associao significativa
entre nvel educacional e prevalncia do consumo de cannabis. (10).
Alguns pases tm um consumo de canabinides sintticos
considervel. Esses so produzidos em diversos laboratrios de pe-
queno porte que os comercializam em pequenas embalagens de
plstico (semelhantes s de preservativos) ou potes plsticos. No
h qualquer controle sobre as substncias includas na mistura. A
aparncia dos canabinides sintticos muito semelhante da can-
nabis. Em algumas embalagens, nos EUA, pode-se ler imprprio
para consumo humano, como forma de burlar as normas da Food
and Drug Administration (FDA). tambm so comercializados na
forma de balas, pirulitos e brownies. Os efeitos so semelhantes
aos da cannabis: elevao do humor, sensao de relaxamento e de
alterao de percepo. Efeitos colaterais incluem taquicardia, v-

182
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso da maconha

mitos, agitao, confuso e alucinaes. Podem levar, tambm,


elevao da presso arterial e isquemia miocrdica. H relatos de
casos de infarto do miocrdio causados pelo consumo de canabi-
nides. Alm disso, h indcios de que alguns desses produtos apre-
sentem potencial carcinognico devido presena de metablitos
das substncias contidas nos produtos.

Farmacologia da cannabis

A cannabis contm mais de 400 substncias, incluindo mais


de 60 canabinides, sendo o delta-9-tetrahidrocanabinol (tHC) seu
principal componente psicoativo. Estudos revelam que o teor de
tHC da cannabis aumentou significativamente, desde a dcada de
1960, de cerca de 1 a 5% a 10 a 15%, com provvel associao com
o aumento das taxas de transtornos do uso da substncia. (10)
Quando a cannabis fumada, so produzidos
por pirlise mais de 2.000 compostos e de 20 a 50% do Pirlise: queima.
tHC absorvido atravs dos pulmes. Devido ao me-
tabolismo heptico de primeira passagem, no caso de in-
gesto oral h reduo da biodisponibilidade do tHC (2).
Quase todo o tHC absorvido liga-se a protenas; am-
plamente distribudo e acumula-se no tecido adiposo, a
partir do qual liberado lentamente - apresenta meia-vida
longa e pode ser detectado na urina desde um dia at um
ms aps o uso. O tHC atinge o crebro dentro de min-
utos aps a absoro e atravessa rapidamente a barreira
hemato-enceflica.
O tHC liga-se a dois receptores do sistema canabinide
endgeno, denominados CB1 e CB2. Os primeiros localizam-se
em neurnios pr-sinpticos do sistema nervoso central e so
responsveis pelos efeitos psicolgicos e cardiovasculares agudos
do uso de cannabis. Os segundos so localizados no sistema ner-

183
Manual de abordagem de dependncias qumicas

voso perifrico e atuam como moduladores de resposta inflama-


tria (1,2).
Os agonistas dos receptores CB (como o tHC) so inibi-
dores da neurotransmisso nas vias colinrgicas, gabargicas e gluta-
matrgicas. O uso crnico desses agonistas leva reduo do nmero
de receptores CB e sua dessensibilizao. O tHC ativa receptores
CB1 no sistema dopaminrgico mesolmbico que, hipoteticamente,
modula os efeitos de recompensa - reforo positivo da maioria das
drogas de abuso. As propriedades de reforo do tHC e a ocorrncia
da sndrome de abstinncia levam ao uso crnico de cannabis e
repetida estimulao do receptor de CB1, que, por sua vez, causa a
dessensibilizao e down regulation dos receptores, resultando na tol-
erncia aos efeitos do sistema nervoso central.
Inmeros estudos cientficos tm explorado os principais
aspectos do sistema endocanabinide, que se mostra um modulador
importante das funes fisiolgicas, no s no sistema nervoso cen-
tral, mas tambm nos sistemas nervoso autonmico, endcrino,
imunolgico, digestivo, reprodutivo e cardiovascular (6-11).

Apresentao clnica e diagnstico

Transtornos relacionados ao consumo de cannabis


Uma das particularidades da cannabis o fato de que, assim
como os etlicos, alguns de seus usurios no apresentam problemas
notveis relacionados ao seu consumo. Isso pode gerar a comum e
equivocada interpretao de que a cannabis uma substncia ino-
fensiva e sustentvel (8). Nem sempre clara a relao entre o uso
de cannabis e os problemas sociais, comportamentais ou psicolgi-
cos, particularmente no contexto de associao com outras drogas.
Por fim, pacientes encaminhados ao tratamento por terceiros ten-
dem a negar consumo pesado ou problemas relacionados ao uso
de cannabis. (DSM V).

184
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso da maconha

Critrios diagnsticos
O mais recente Manual Diagnstico e Estatstico de
transtornos Mentais (DSM V), ainda sem verso na lngua portu-
guesa, considera que o diagnstico de um transtorno de uso de
substncia baseado em um padro patolgico de comportamentos
relacionados ao consumo daquela substncia que proporciona so-
frimento psquico ou prejuzo clnico significativo. O DSM V clas-
sifica quatro grupos de critrios diagnsticos (em traduo livre):
incapacidade de controlar o uso, prejuzo social secundrio, uso de
risco e critrios farmacolgicos. Com relao ao ltimo grupo, no
necessrio que ocorram sinais de tolerncia ou de abstinncia para
que seja diagnosticado um transtorno, mas a presena desses fen-
menos associa-se a curso clnico de maior gravidade.
O transtorno relacionado ao uso de cannabis classificado
como sendo leve, moderado ou grave, de acordo com a quantidade
de sintomas presentes. Outros especificadores so o tempo de abs-
tinncia (dividido em inicial e sustentado, tendo como referncia 3
e 12 meses) e o fato dessa ocorrer em ambiente seguro, caso acon-
tea em local com restrio de acesso droga. A gravidade de um
transtorno relacionado ao uso de uma substncia varia com o
tempo e reflete a intensidade e frequncia do uso num dado mo-
mento. importante lembrar que o termo dependncia (ou adic-
o) no utilizado na nova classificao do DSM V, que observa,
principalmente, o transtorno causado pelo uso e considera o amplo
espectro de gravidade encontrado na prtica clnica.

Intoxicao
A intoxicao por cannabis caracteriza-se por al-
teraes psicolgicas e comportamentais problemticas
que surgem durante ou logo aps o uso da substncia -
prejuzos de coordenao motora, euforia, ansiedade, sen-
sao de lentificao do tempo, alteraes de juzo e isola-
mento social. Sinais clnicos incluem hiperemia conjuntival, Hiperemia conjuntival: ver-
melhido dos olhos.

185
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Hiperexia: aumento do apetite. hiperexia, xerostomia, taquicardia. O estado de intoxicao


Xerostomia: boca seca.
instala-se minutos aps o uso, no caso de inalao, ou
aps horas, no caso de ingesto oral. Os efeitos duram
cerca de trs a quatro horas. Como a maior parte dos ca-
Liposolvel: solvel em gor- nabinides lipossolvel (incluindo o delta-9 tHC), os
dura.
efeitos podero persistir ou recorrer por at 24 horas de-
vido liberao lenta do tecido adiposo e circulao
enteroheptica.
Efeitos do uso da cannabis:
Efeitos de recompensa: hipersexualidade, sensao de len-
tificao do corpo, aumento da auto-confiana e grandiosidade,
risos imotivados, hilaridade, loquacidade, introspeco ou aumento
da sociabilidade, sensao de relaxamento, aumento da percepo
de cores, sons, texturas e paladar.
Sintomas somticos: taquicardia, hiperemia conjuntival,
hipotermia, tontura, alteraes de psicomotricidade, reduo da
acuidade auditiva, aumento da acuidade visual, broncodilatao, hi-
potenso ortosttica, aumento do apetite, xerostomia, midrase, so-
nolncia.
Alteraes psiquitricas: despersonalizao, desrealizao,
tristeza, alteraes sensoperceptivas, crises de ansiedade, irritabili-
dade, paranoia, prejuzo da ateno, da memria de curto prazo e
do julgamento. (12)
Provavelmente associada aos efeitos diretos da
intoxicao crnica pelo tHC, alguns usurios de can-
Sndrome Amotivacional: nabis apresentam a chamada Sndrome Amotivacional, ca-
sndrome caracterizada por
anedonia, desinteresse, aprag-
racterizada por anedonia, desinteresse, apragmatismo,
matismo, passividade, apatia, passividade, apatia, improdutividade, empobrecimento
improdutividade, empobreci-
mento intelectual e retrao intelectual e retrao social. Pode ocorrer em nveis di-
social. Pode aparecer em
usurios de maconha, sobre- ferentes de gravidade, persistir por vrias semanas e at
tudo adolescentes aps algum
tempo de uso da droga.
anos aps cessao do uso. (13)

186
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso da maconha

Sndrome de abstinncia

Quadros de abstinncia foram observados em


estudos de coorte com humanos e reproduzidos em mo-
delos com animais. Os principais sintomas da abstinncia
Sndrome de abstinncia da
de cannabis so ansiedade, irritabilidade, humor depres- maconha: ansiedade, irritabi-
sivo, inquietao, alteraes do sono, pesadelos, dores lidade, humor depressivo, in-
quietao, alteraes do sono,
musculares, cefaleia, taquicardia, hiporexia e sintomas pesadelos, dores musculares,
cefaleia, taquicardia, hiporexia
gastrointestinais. A maior parte tem incio durante a pri- e sintomas gastrointestinais.
meira semana de interrupo do consumo, mas podem
aparecer nas primeiras 24 horas, e so resolvidos aps al-
gumas semanas. Vrios desses sintomas foram relatados
em 61-96% de usurios crnicos de cannabis, e o trata-
mento farmacolgico com o objetivo de ameniz-los po-
deria reduzir o risco de lapsos e recadas. (1,2,14)

Comorbidades e Associaes

Contrapondo a crescente campanha pela legalizao da


cannabis, estudos cientficos de relevncia tm demonstrado diver-
sos prejuzos relacionados substncia, particularmente entre os
adolescentes.
Vrios estudos reforam a percepo de di-
versos especialistas de que o uso de cannabis precipita a
esquizofrenia e outros transtornos psicticos, seja por uma Maconha e esquizofrenia: o
uso de cannabis precipita a es-
interao entre fatores genticos e ambientais ou por quizofrenia e outros transtornos
psicticos. A reduo do con-
perturbar o desenvolvimento do crebro, especial- sumo desta substncia poderia
mente durante a adolescncia, importante perodo de atrasar ou prevenir alguns casos
de psicose.
maturao neurolgica. H evidncias de que a reduo
do consumo dessa substncia poderia atrasar ou pre-
venir alguns casos de psicose. tal reduo poderia ser
relevante no curso da doena, j que o incio precoce

187
Manual de abordagem de dependncias qumicas

de um quadro de esquizofrenia est associado ao pior prognstico;


outros fatores, como histria familiar ou sexo, so inalterveis.
Mesmo que um quadro de psicose seja inevitvel, atingir marcos de
desenvolvimento do final da adolescncia, e incio da vida adulta,
poderia ser de grande ajuda para o indivduo ao possibilitar um
maior grau de funcionalidade pr-mrbida. (15)
Evidncias de um estudo transversal confirmaram o sur-
gimento de sintomas psicticos em pessoas previamente assinto-
mticas. Mais recentemente, zammit e colaboradores mostraram
em um levantamento de aproximadamente 50.000 recrutas suecas
que o uso de cannabis foi associado ao desenvolvimento da esqui-
zofrenia; isso reflete um artigo anterior sobre o mesmo grupo, em
que se observou aumento do risco em cerca de sete vezes aps 50
episdios de uso da droga. Uma anlise baseada em um estudo lon-
gitudinal, na Nova zelndia, mostrou que os usurios de cannabis
iniciados antes dos quinze anos tinham quatro vezes mais chances
de desenvolver esquizofrenia na idade de 26 anos; notvel que,
nesse estudo, um dcimo dos usurios de 15 anos de idade desen-
volveu transtorno esquizofreniforme aos 26 anos. Como exem-
plo, o estudo de Weiser et al. abrangeu 270 mil adolescentes do sexo
masculino, dos quais 50.413 foram, especificamente questionados
a respeito de seu uso de drogas; os pesquisadores, usando um re-
gistro de internao psiquitrica de base populacional, estabelece-
ram que o abuso de drogas na adolescncia mais que dobra a taxa
de internaes por esquizofrenia. Alm disso, um estudo da Grcia
enfatiza que a exposio precoce na adolescncia pode aumentar
o risco de dimenses positivas e negativas de psicose subclnicas.
(16)
H tambm uma associao inversa entre psicose e canna-
bis. Um estudo da Nova zelndia demonstrou que perturbao
mental na idade de 15 anos, conduziu a um aumento do uso de can-
nabis aos 18 anos. A cannabis a droga ilcita mais usada em pessoas
que sofrem de esquizofrenia. (16)

188
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso da maconha

Estudos tambm demonstram a associao entre o consumo


de cannabis e sintomas maniformes. Os usurios de cannabis apresen-
taram pontuao maior em escalas de avaliao de agressividade e de-
sinibio, em comparao com aqueles que interromperam o uso. (12)

Cannabis e o consumo de outras drogas

Consistente evidncia revelou que o uso de cannabis quase


sempre precede o uso de outras drogas ilcitas, incluindo cocana,
metanfetamina, alucingenos (incluindo LSD e ecstasy), medica-
mentos obtidos ilegalmente, e os opiceos, tais como herona ou
de morfina.
Pesquisas a respeito do uso de drogas na adolescncia nos
Estados Unidos, ao longo dos ltimos trinta anos, tm demons-
trado, consistentemente, trs tipos de relao entre cannabis e uso
de herona e cocana. Em primeiro lugar, quase todos aqueles que
experimentaram a cocana e a herona j haviam consumido uso de
lcool, tabaco e cannabis. Em segundo lugar, os usurios regulares
de cannabis tinham maior probabilidade de, futuramente, consumir
herona e cocana. Em terceiro lugar, quanto mais precoce o con-
sumo de cannabis, mais provvel o uso futuro de herona e cocana.
Essas relaes foram confirmadas em estudos longitudinais do uso
de drogas na Nova zelndia. (17)

Cannabis e complicaes clnicas

H evidncia de que o uso prolongado de cannabis leva a


prejuzos cognitivos relacionados organizao e integrao de in-
formaes complexas, envolvendo vrios mecanismos de processos
de ateno e memria. Pode haver dficit em processos de apren-
dizagem mesmo aps perodos mais breves de tempo. (12)

189
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Os usurios de cannabis que procuram tratamento comu-


mente relatam problemas na escola ou trabalho, dificuldades nos
relacionamentos em geral, culpa relacionada ao uso da droga, difi-
culdades financeiras, baixa energia, baixa autoestima, insatisfao
com o nvel de produtividade, problemas no sono e na memria, e
baixa satisfao com a vida. O consumo de cannabis tem sido asso-
ciado com transtornos de conduta, tDAH e transtornos de apren-
dizagem. (18)
Um estudo australiano, baseado em registros hospitalares,
mostrou que o nmero de hospitalizaes relacionadas com a can-
nabis aumentou naquele pas entre os anos 1996 e 2006, com a
maior taxa observada entre indivduos de 20 a 29 anos. Descobriu-
se que entre australianos, nessa faixa etria, cerca de 250 pessoas
por milho, foram internadas devido aos problemas relacionados
com a cannabis (como psicose induzida, dependncia, toxicidade e
outros transtornos por uso). Uma tendncia semelhante foi obser-
vada no Canad, onde a taxa de hospitalizaes relacionadas com
a cannabis dobrou entre os anos de 1996 e 2005. (19)
Estudos tm mostrado que os fumantes regulares de can-
nabis apresentam mais sintomas de bronquite crnica. A competn-
cia imunolgica tambm prejudicada, aumentando as taxas de
infeces respiratrias, pneumonia e procura por servios de sade.
(18, 20, 21)
H boas razes para acreditar que a cannabis pode causar
cnceres de pulmo e do trato aerodigestivo. A fumaa da maconha
contm muitos dos mesmos agentes cancergenos presentes no
fumo do tabaco, que provocam cncer respiratrio, sendo que al-
guns desses agentes se encontram em nveis ainda mais elevados.
Os fumantes de cannabis inalam mais profundamente do que os fu-
mantes de tabaco, retendo mais alcatro e partculas, e os fumantes
crnicos de cannabis mostram muitas mudanas patolgicas nas c-
lulas pulmonares que costumam preceder o desenvolvimento de
cncer em fumantes de tabaco. Sidney, Quesenberry, Friedman e

190
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso da maconha

tekawa (1997) estudaram a incidncia de cncer em 64.855 indiv-


duos durante 8,6 anos de acompanhamento. Homens que fumaram
cannabis tiveram um risco aumentado de cncer de prstata (rr =
3,1), da mesma forma que os ainda fumantes (rr = 4,7). Outro es-
tudo encontrou um risco aumentado de carcinoma da cabea e pes-
coo entre os usurios de cannabis, em um estudo de 173 pessoas
com esse tipo de cncer e 176 controles. Um estudo de caso-con-
trole na tunsia com 110 casos de um hospital de cncer de pulmo
e 110 controles da comunidade mostrou associao com o con-
sumo de cannabis (Or = 8,2). Um estudo caso-controle da Nova
zelndia, que inclua 79 adultos com cncer de pulmo e idade in-
ferior a 55 anos e 324 controles comunitrios (Aldington et al.,
2008) apontou uma relao dose-resposta entre os riscos de cncer
de pulmo e frequncia do consumo de cannabis. Entre os usurios
mais frequentes de cannabis (um tero do total de usurios), houve
um risco 5,7 vezes maior de desenvolvimento de cncer de pulmo
(95% CI: 1,5, 21,6). (20)
Um estudo com 3.882 pacientes revelou risco aumentado
de 4,8 vezes de evoluo para infarto agudo do miocrdio na pri-
meira hora aps o uso. Esses resultados so consistentes com es-
tudos laboratoriais que demonstraram que fumar maconha afeta,
negativamente pacientes com doena cardaca. (20)
A no ser quando h consumo crnico de grandes quan-
tidades de cannabis, raramente um usurio acometido por emer-
gncias clnicas ou psiquitricas.

Complicaes sociais do uso de maconha

Alm dos distrbios relacionados ao consumo de cannabis,


internaes e episdios de tratamento, o uso de cannabis est as-
sociado a uma srie de danos sociais, como, por exemplo, compor-
tamento violento. Um estudo de coorte da Nova zelndia,

191
Manual de abordagem de dependncias qumicas

observou que os indivduos que preencheram critrios para o diag-


nstico de dependncia de cannabis foram 3,8 vezes mais propensos
ao comportamento violento do que aqueles sem dependncia. Um
estudo de coorte mostrou que, aos 21 anos, mais de um quarto de
usurios pesados cannabis foi preso ou condenado por um delito re-
lacionado com o uso droga, em comparao com menos de 1% das
pessoas que no consumiram a droga mais de 10 vezes em sua vida.
As relaes entre o uso de cannabis e violncia devem-se tambm
s circunstncias sociais em que a droga obtida, isto , os crimes
e violncia so cometidos no contexto da busca pela substncia, ou
simplesmente como uma funo de envolvimento no estilo de vida
(por exemplo, lutas por territrio ou fracasso no pagamento de d-
vidas). (19)
tem sido demonstrado que o uso de cannabis associa-se
com leses e acidentes. a droga ilcita mais frequentemente de-
tectada em condutores que foram feridos ou mortos em acidentes
com veculos automotores. Algumas pesquisas revelaram que mo-
toristas em uso de maconha so duas vezes mais propensos a en-
volverem-se em acidentes. A piora no desempenho cognitivo e
comportamental, principalmente em tarefas que requerem ateno
sustentada, pode justificar essas estatsticas. Um grande e recente
estudo transversal realizado na Espanha mostrou que o uso de can-
nabis nos ltimos 12 meses est associado com aumento da proba-
bilidade de leses no relacionadas ao trnsito. Da mesma forma,
um grande estudo retrospectivo na Amrica do Norte descobriu
que os usurios de cannabis tiveram maiores chances de hospitaliza-
es por leses de todas as causas do que a populao de no usu-
rios. Alm disso, o consumo de cannabis tem sido associado com
sintomas depressivos e ansiosos. Finalmente, o uso de cannabis du-
rante a adolescncia tem sido associado a problemas relacionados
vida escolar, incluindo baixo rendimento acadmico, evaso e bri-
gas entre os alunos. (20, 21)

192
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso da maconha

Tratamento do transtorno do uso de cannabis

Um estudo australiano com um total de 490 participantes


revelou que as barreiras mais comumente relatadas para o trata-
mento de transtornos relacionados ao uso de cannabis foram a sen-
sao de que o tratamento no necessrio para reduzir o consumo,
sensao de incapacidade de interromper o consumo, desconheci-
mento das opes de tratamento e a opo em evitar um possvel
estigma associado ao usurio de drogas que necessitam de trata-
mento. De longe, o facilitador mais citado foi melhorar a informa-
o disponvel. (22)
Alguns autores tm demonstrado que as propagandas
sobre tratamento e educao sobre os malefcios do uso continuado
podem aumentar as taxas de acesso e a motivao para participar
do tratamento. Um nico estudo brasileiro mostrou que um servio
de atendimento por telefone especfico para usurios de cannabis
pode operar de forma eficaz tanto como um dispositivo de infor-
mao como de tratamento. (22). Os resultados de um outro estudo
sugerem que intervenes baseadas em acompanhamento pela in-
ternet podem ser uma forma eficaz de tratar usurios de cannabis.
(23)
importante que seja realizado um rastreio a respeito do
consumo de substncias psicoativas durante a entrevista de toda
consulta mdica. Uma vez relatado o consumo de cannabis, para es-
clarecimento diagnstico, deve-se perguntar a respeito do padro e
gravidade do consumo; associao com outras drogas; fatores re-
foradores e atenuadores do consumo; perodos de abstinncia; ma-
nifestaes de sintomas de abstinncia e tolerncia; incapacidades
associadas; comorbidades clnicas e psiquitricas; histrias de tra-
tamento; motivao para o tratamento.
Mesmo que no haja evidente repercusso relacionada ao
consumo de cannabis, o usurio deve ser orientado a respeito dos
possveis transtornos clnicos e psiquitricos a que se expe. Ha-

193
Manual de abordagem de dependncias qumicas

vendo o diagnstico de transtorno relacionado droga, aps psi-


coeducao e aconselhamento, importante avaliar as expectativas
e a motivao do paciente em interromper o consumo da substn-
cia. Uma ferramenta interessante a entrevista motivacional, que
se trata de uma abordagem no confrontadora em que o entrevis-
tador, com postura emptica e escuta reflexiva, conduz o prprio
paciente a assumir a responsabilidade pela mudana.
Deve-se traar o prognstico e planejar tratamento indi-
vidualizado, aps observar a gravidade do quadro e necessidades
especficas do paciente. Principal mtodo para tratamento da de-
pendncia de cannabis a terapia cognitivo-comportamental, que
composta por uma combinao de abordagens destinadas a au-
mentar o autocontrole. tcnicas especficas incluem explorar as
consequncias positivas e negativas de uso contnuo, auto-moni-
toramento para reconhecer sintomas de fissura e identificar situa-
es de risco para o uso, e desenvolvimento de estratgias para
evitar e saber lidar com situaes de alto risco para uso. Um ele-
mento central desse tratamento antecipar possveis problemas e
ajudar os pacientes a desenvolver estratgias eficazes de enfrenta-
mento. As pesquisas indicam que as habilidades individuais apren-
didas atravs de abordagens cognitivo-comportamentais
permanecem aps a concluso do tratamento.
Alguns estudos demonstraram que as abordagens de tra-
tamento utilizando princpios de manejo de contingncias, que en-
volvem a chance de ganhar incentivos de baixo custo, em troca de
amostras de urina livre de drogas, so eficazes na interrupo do
consumo de cannabis. (17)
O grupo de projeto de pesquisa sobre tratamento de Can-
nabis revelou, a partir de um grande estudo multicntrico, que a te-
rapia de incremento motivacional tem se mostrado eficaz para tratar
transtornos relacionados ao consumo da substncia. A terapia con-
siste em uma avaliao inicial, seguida de duas a quatro sesses in-
dividuais de tratamento. Na primeira sesso de tratamento, o

194
Manual de abordagem de dependncias qumicas

terapeuta fornece uma reposta da avaliao inicial, provocando a


discusso sobre o uso pessoal de drogas. As estratgias de enfren-
tamento para situaes de alto risco so sugeridas e discutidas com
o paciente. Em outras sesses, o terapeuta acompanha a mudana,
revisa as estratgias de cessao em prtica e incentiva o compro-
misso para a mudana ou manuteno da abstinncia. (17)
O processo de recuperao geralmente longo e so fre-
quentes os episdios de lapsos e recadas. A incluso da famlia
til para adeso do paciente - particularmente entre adolescentes -
e investigao do contexto em que o uso de drogas se instalou.
H escassez de evidncias cientficas, com relao ao uso
de medicamentos para tratamento do transtorno relacionado ao
uso de cannabis. Os ensaios clnicos disponveis pecam pelas limita-
es metodolgicas, como curto perodo de observao, ensaios
no-controlados, anlises de populao heterogneas e nmeros in-
suficientes de sujeitos de pesquisa includos, fatores que dificultam
quaisquer generalizaes.
A toxicidade aguda da cannabis extremamente baixa e no
h casos de morte por intoxicao confirmada na literatura. O tra-
tamento medicamentoso nesta fase essencialmente sintomtico.
Benzodiazepnicos podem ser teis nos quadros ansiosos agudos.
Sintomas psicticos e agitao psicomotora intensa podem ser
abordados com antipsicticos.
Durante a fase de abstinncia, em caso de sndrome amo-
tivacional, pode-se usar antidepressivos e psicoestimulantes. Exis-
tem dados que sugerem que o dronabinol, uma formulao oral de
tHC sinttico, seria um candidato vivel a farmacoterapia para o
tratamento de transtornos de uso de cannabis, particularmente nos
casos em que os sintomas de abstinncia parecem ser uma barreira
para a cessao, mas ainda so necessrios mais estudos para com-
provao de segurana e eficcia. (24, 25) O uso de carbonato de
ltio mostrou reduo do uso de cannabis e amenizao de sintomas
de abstinncia, em estudos iniciais, assim como o uso de buspirona,

195
Manual de abordagem de dependncias qumicas

que mostrou reduo de sinais e sintomas de fissura e do uso em si


(1,4). Um estudo com n-acetil-cistena, na dose de 1200mg dirios,
mostrou resultados promissores, que devem ser confirmados (5).
O mesmo ocorreu com gabapentina, tambm na dose de 1200 mg
dirios. (6)
Estudos com bupriopiona 300mg/dia e divalproato de
sdio 1500/dia mostraram agravamento dos sintomas de abstinn-
cia cannabis. Estudos com baclofeno e mirtazapina tambm no
sugeriram potencial para uso no tratamento dessa sndrome. (1,4)

Preveno

A ltima reviso sobre cannabis da United Nations Office


on Drugs and Crime (UNODC) demonstra que a preveno do
consumo de cannabis, no somente um senso comum, mas tam-
bm custo-efetiva. Para cada dlar investido em preveno, h uma
economia de at dez dlares em tratamento. trabalhando de forma
mais ampla com as famlias, escolas e comunidades, os cientistas
descobriram formas eficazes de ajudar as pessoas a adquirir as ha-
bilidades e abordagens para impedir problemas de comportamento,
como o uso de drogas, antes que eles ocorram. Dcadas de pesquisa
demonstram que h princpios fundamentais para a preveno do
consumo de drogas. Por exemplo, de acordo com o Instituto Na-
cional de Abuso de Drogas dos EUA (NIDA), que realiza mais de
85% das pesquisas no mundo sobre abuso de drogas, os programas
de preveno devem ter as seguintes caractersticas:
Devem aumentar os fatores de proteo (por exemplo,

monitoramento parental, pais calorosos e auxiliadores, sucesso na


escola e participao em atividades extracurriculares) e reduzir os
fatores de risco (por exemplo, pares desviantes, insucesso escolar,
cuidador dependente qumico, disponibilidade imediata de drogas
na comunidade e polticas que normalizam o uso de drogas);

196
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso da maconha

Devem ser localizados e especficos para a comunidade,

adaptados para o pblico-alvo;


So mais eficazes durante perodos especficos de mu-

danas, quando h mais riscos para os jovens, como transio do


ensino fundamental para o ensino mdio;
Devem ser implementados em vrias configuraes (por

exemplo, na escola e em casa), por longos perodos de tempo, com


subseqentes sesses de follow-up, so mais eficazes.

197
Manual de abordagem de dependncias qumicas

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199
Captulo 13

Terapias farmacolgicas para os


transtornos do uso de tabaco
Rodolfo Braga Ladeira
Patrcia Maria da Silva Roggi

Introduo

A dependncia de nicotina ou tabagismo um Nicotina: substncia absorvi-


da da fumaa do cigarro pelos
transtorno psiquitrico que se caracteriza por fenmenos pulmes e que causa os efeitos
psicoativos do tabaco.
comportamentais, cognitivos e fisiolgicos, induzidos
pela exposio contnua nicotina. Entre os sintomas da
dependncia nicotina, h um forte desejo ou urgncia
em consumir a substncia, dificuldade de controlar o
consumo e utilizao persistente, apesar da conscincia
de seus malefcios. A presena de sintomas de abstinn-
cia, tais como a fissura, o humor disfrico ou deprimido,
a insnia, a irritao e uma sensao de tenso surge
quando da cessao abrupta ou reduo da quantidade
de nicotina. O uso continuado do tabaco leva depen-
dncia e causa consequncias psquicas, somticas, am-
bientais e sociais.
Segundo dados da Organizao Mundial da Sade, o ta-
bagismo est entre os problemas prioritrios de sade pblica e a
maior causa de morte passvel de preveno atualmente, matando
mais de cinco milhes de pessoas em todo o mundo a cada ano e
Manual de abordagem de dependncias qumicas

mais de 200 mil, no Brasil. O tabagismo fator de risco para seis


das oito principais causas de morte no mundo e se o considerarmos
isoladamente como uma causa de morte, ele se torna a terceira prin-
cipal causa, apenas atrs da cardiopatia isqumica e da doena ce-
rebrovascular (WHO, 2008).
Portanto, importante aumentar a conscincia do bene-
fcio da cessao do tabagismo e traar estratgias para encorajar o
paciente a fazer uma tentativa de abandonar a dependncia ao ta-
baco. Vrios tratamentos tm se mostrado eficazes em reduzir o
uso do tabaco. O objetivo desse captulo discutir os principais tra-
tamentos farmacolgicos para o tratamento do tabagismo, de modo
a esclarecer o profissional de sade sobre a disponibilidade, as van-
tagens e desvantagens de cada um deles.

Tratamento farmacolgico

Estima-se que 69% dos fumantes desejam parar de


fumar (CINCIrIPINI, 1997). importante que os profissio-
nais de sade questionem sobre o uso de tabaco com seus pa-
cientes. Os indivduos fumantes devem ser encorajados a cessar
o tabagismo e deve ser oferecida ajuda para faz-lo em todas
as oportunidades.
Uma interveno mnima desejvel na abordagem do
dependente de nicotina consiste em perguntar sobre seu con-
sumo dirio de tabaco e problemas associados; investigar seu de-
sejo de interromper o consumo; aconselhar a cessao do uso;
discutir as alternativas de tratamento e oferecer assistncia du-
rante o processo (MArQUES & rIBEIrO, 2003).
Uma vez determinado a interromper o uso, fundamental
orientar o paciente a escolher uma data para parar, pois todos os
estudos mostram que marcar uma data aumenta a chance e que a
interrupo abrupta mais eficiente que a interrupo gradual, em-

202
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de tabaco

bora os tabagistas pesados possam se beneficiar dessa segunda es-


tratgia (SCHOFIELD, 2006).
O paciente deve ser informado sobre os tratamentos far-
macolgicos e no farmacolgicos. Os tratamentos medicamento-
sos devem ser oferecidos a todos os fumantes acima de 18 anos,
que fumam mais de dez cigarros ao dia. Dentre os vrios medica-
mentos, destacam-se a terapia de reposio de nicotina, a
bupropiona e a vareniclina (MIrrA et al., 2011).
A prescrio deve considerar o grau de dependncia ni-
cotina, a experincia pregressa com frmacos para tabagismo, a pre-
sena de comorbidades, alm das contraindicaes, perfil de efeitos
colaterais e precaues para o uso. Para o uso da reposio de ni-
cotina, imperativo que o paciente interrompa o tabagismo logo
antes de iniciar o tratamento; nos demais, costuma-se marcar uma
data, geralmente dentro de oito dias, para que o indivduo pare. A
durao recomendada para o tratamento de interrupo do taba-
gismo de doze semanas. Entretanto, algumas evidncias sugerem
que a manuteno por prazos maiores pode ajudar a evitar recadas
em longo prazo. Um tratamento por perodo superior a doze se-
manas pode ser recomendado para fumantes que referem sintomas
persistentes de abstinncia ou que tenham histria de recada aps
suspenso da medicao, em tratamentos anteriores (MIrrA et al.,
2011).
As diretrizes para o tratamento do tabagismo mostram
que o tratamento pode ser eficaz. Enquanto aproximadamente
10% dos fumantes conseguem parar sem ajuda, o sucesso pode
au-mentar para cerca de 20 a 30% com as abordagens
farmacolgicas e/ou no farmacolgicas preconizadas (MIrrA et
al., 2011). Fiore e cols. (2008 PHS Guideline Update Panel, 2008)
conduziram uma metanlise de 83 estudos e observaram que a
porcentagem de abstinncia em seis meses, com placebo, era por
volta de 13,8%. Essa chance praticamente triplicava com o uso de
Vareniclina na dose de 2mg/dia. Outros tratamentos em
monoterapia, que praticamente
203
Manual de abordagem de dependncias qumicas

dobravam a chance incluam a terapia de reposio de nicotina


(trN), a prpria vareniclina na dose de 1mg/dia, a bupropiona e
a nortriptilina.

Vareniclina
A Vareniclina um agonista parcial dos receptores coli-
nrgicos nicotnicos alfa4beta2, que impede a ligao de nicotina a
eles e reduz a vontade de fumar. Mais eficaz que a bupropiona, ela
praticamente triplica chances de sucesso no tratamento (CAHILL
et al., 2013).
Est disponvel no mercado brasileiro nas apresentaes
de 0,5mg ou 1mg. Inicia-se o tratamento com 0,5 mg, 1 vez ao dia,
por trs dias. No quarto dia, prescrever 0,5 mg, duas vezes ao dia.
Do 7 dia em diante, prescrever 1mg, duas vezes ao dia. impor-
tante que o indivduo marque uma data para parar de fumar que
sugerida para oito dias aps o incio da medicao (MIrrA et al.,
2011).
A vareniclina apresenta um perfil relativamente seguro de
interaes e de contra-indicaes (apenas hipersensibilidade). En-
tretanto, deve-se ter cautela no uso em pacientes com histria de
transtornos psiquitricos associados. Alguns estudos sugerem agra-
vamento desses sintomas (incluindo suicdio) em indivduos com
predisposio (AHMED, 2011; MOOrE et al., 2011). Embora uma
metanlise publicada em 2011 tenha mostrado um possvel au-
mento do risco de eventos cardiovasculares graves, associados ao
uso desse medicamento, tal ocorrncia no foi confirmada em es-
tudos metanalticos posteriores (PrOCHASKA & HILtON, 2012;
WArE et al., 2013).
necessrio adequar dose em pacientes portadores de in-
suficincia renal grave que estejam em dilise. O uso de vareniclina
est inteiramente contraindicado em gestante.

204
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de tabaco

Terapia de reposio de nicotina


A terapia de reposio de nicotina est disponvel no Bra-
sil em gomas, pastilhas e adesivos. todas elas reduzem os sintomas
da abstinncia do tabaco e aumentam a chance de parar de fumar
em cerca de duas vezes (CAHILL et al., 2013) e grande parte do
insu-cesso deriva do uso incorreto. As gomas esto disponveis na
apre-sentao de 2mg; as pastilhas, de 2mg e 4mg; e os adesivos,
de 21mg, 14mg, 7mg ou 15mg, 10mg ou 5mg.
Ao usar gomas ou pastilhas, inicia-se o tratamento com
a dose de 2mg (tabagistas pesados devem iniciar com a dose de
4mg). As gomas devem ser consumidas a cada uma ou duas
horas, em um total dirio entre 10 a 15 unidades ao dia. Aps 6
semanas, inicia-se a reduo progressiva da dose, mas o trata-
mento deve ser mantido at a 14 semana. Elas devem ser mas-
cadas lentamente para liberar a nicotina, at que se sinta um
gosto apimentado. O paciente deve estacionar a goma na gen-
giva por alguns minutos, para absorver a nicotina. Feito isso,
mascar novamente at sentir o gosto e repetir o processo por
30 minutos. A pastilha deve ser movida de um lado para o outro
da boca, sem mastigar, at que esteja totalmente dissolvida, em
20 a 30 minutos.
Ao optar pelo adesivo, inicia-se o tratamento com o de
15mg ou o de 21mg. A reduo da dose deve realizar-se em in-
tervalo de quatro semanas e o perodo total de uso deve ser de 6
a 14 semanas (MIrrA et al., 2011). O adesivo deve ser aplicado
pela manh, aps o banho, em uma rea do corpo seca e livre de
plos e mantido at o dia seguinte, quando dever ser trocado
por um novo, a ser aplicado em local diferente do primeiro, para
evitar irritao (o efeito colateral mais comum). Os adesivos de
nicotina possuem a vantagem de serem fceis de usar e os pa-
cientes aderirem bem a essa modalidade de tratamento. Vale lem-
brar que seu uso requer a abstinncia total do tabaco desde o
incio do tratamento.

205
Manual de abordagem de dependncias qumicas

recomenda-se abster-se do tabagismo ao iniciar a tera-


pia de reposio de nicotina (trN), devido ao risco de superdo-
sagem da mesma (MIrrA et al., 2011).
Contraindicaes: Incapacidade de mascar a goma, l-
cera pptica ativa (goma ou pastilha), dermatites nos locais de
aplicao dos adesivos, gravidez (adesivos), doenas cardiovas-
culares como arritmias graves, angina instvel ou infarto agudo
do miocrdio recente (<4 semanas).

Bupropiona
A bupropiona um antidepressivo que aumenta disponi-
bilidade sinptica da dopamina e noradrenalina (DIEHL, 2010).
tem sido utilizada no tratamento do tabagismo e praticamente
dobra as chances de sucesso no tratamento (CAHILL et al., 2013).
Encontra-se disponvel no mercado brasileiro nas apre-
sentaes de 150 mg ou 300 mg. Inicia-se o tratamento com 150
mg/manh e aumenta-se a dose para um comprimido de 150 mg,
duas vezes ao dia, partir do 5 dia. Geralmente, as doses so to-
madas no incio da manh e no incio da tarde, para evitar um dos
possveis efeitos colaterais, a insnia. Pode-se, ainda, utilizar o com-
primido de liberao lenta em uma nica tomada pela manh.
importante que o indivduo marque uma data para parar de fumar,
sugerida para o 8o dia, aps o incio da medicao (MIrrA et al.,
2011).
A bupropiona apresenta perfil ideal para pacientes que
temem o ganho de peso que costuma ocorrer nas primeiras sema-
nas de abstinncia do tabaco ou pacientes que apresentam a de-
presso como comorbidade.
contraindicada em gestantes ou pacientes com histria
de epilepsia ou com risco aumentado para convulses (abstinncia
alcoolica, traumatismo cranioenceflico, acidente vascular encef-
lico, uso de medicamentos que reduzem o limiar convulsivo), pre-
sena de anorexia ou uso de inibidores da monoaminoxidase.

206
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de tabaco

Nortriptilina
A nortriptilina um antidepressivo tricclico que tem sido
utilizado no tratamento do tabagismo e dobra a chance de sucesso
(CAHILL et al., 2013).
Est disponvel no mercado brasileiro nas apresentaes
de 25, 50 ou 75 mg. No tratamento para o tabagismo, emprega-se
uma dose menor que para a depresso. Preconiza-se tomar 25mg,
preferencialmente noite, em virtude do seu efeito sedativo. Assim
como no uso de outros medicamentos no nicotnicos, impor-
tante que o indivduo marque uma data para parar de fumar, o dia
D, que pode ser sugerido o 8o dia aps o incio do medicamento.
Apesar de no ser de primeira linha no tratamento do ta-
bagismo, a nortriptilina uma medicao barata, geralmente dispo-
nvel gratuitamente no servio pblico de sade brasileiro. Dentre
os tricclicos, o medicamento com perfil mais brando de efeitos
colaterais, principalmente em dose baixa, como a preconizada para
o tratamento do tabagismo. A nortriptilina apresenta um perfil ideal
para pacientes com problemas de insnia ou que precisam ganhar
peso, pois a sonolncia e ganho de peso so efeitos colaterais espe-
rados para esse medicamento. Pacientes que apresentam a depres-
so como comorbidade tambm podem se beneficiar desta
indicao. Entretanto, para o tratamento da depresso comrbida,
costuma-se empregar uma dose diria maior, entre 50 e 150mg/dia,
que ajustada segundo o resultado do exame de dosagem srica da
nortriptilina.
contraindicada em gestantes e nos quadros de cardio-
patia grave (p. ex., arritmia ou infarto agudo do miocrdio recente),
glaucoma de ngulo fechado, uso de inibidores da monoaminoxi-
dase e medicamentos que prolongam o intervalo Q-t. Sugere-se
cautela nos pacientes com reteno urinria, hiperplasia benigna da
prstata, hipertireoidismo, tumor cerebral, doenas psiquitricas ou
risco aumentado para convulses.

207
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Outros medicamentos
Apesar de haver evidncia cientfica de que a clonidina
seja superior ao placebo no tratamento do tabagismo, ela no deve
ser utilizada como primeira escolha, pelo seu potencial de provo-
car muitos efeitos colaterais (MIrrA et al., 2011). O uso de inibi-
dores seletivos da recaptao da serotonina, em monoterapia ou
da naltrexona no mostrou benefcio no tratamento do tabagismo
(CAHILL et al., 2013).
A citisina um agonista parcial dos receptores nicotnicos
alfa4beta2, semelhante vareniclina, utilizada para o tratamento
contra o tabagismo na rssia e alguns pases do antigo regime so-
cialista com resultados positivos (CAHILL et al., 2013).

Associao de medicamentos

Alguns estudos sugerem que o uso de adesivo de nicotina


associado a uma forma de liberao mais rpida de nicotina (goma
ou pastilha) pode aumentar as chances de sucesso, quando compa-
rado ao uso isolado de uma terapia de reposio de nicotina
(CAHIL et al., 2013). Entretanto, as evidncias sobre a segurana
dessa associao so insuficientes para indic-la como tratamento
de primeira linha (MIrrA et al., 2011).
Apesar de ser a nica associao aprovada pelo FDA, o
uso do adesivo de nicotina associado bupropiona no parece
mostrar benefcio, quando comparado com o uso da terapia de
reposio de nicotina em monoterapia (CAHILL, 2013). Alm
disso, deve-se ter cautela ao indicar essa associao que pode ele-
var a presso arterial.

208
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de tabaco

Particularidades do tratamento em grupos especiais

Portadores de transtornos mentais


O tabagismo comum entre os pacientes com transtornos
psiquitricos, especialmente naqueles com transtorno depressivo,
transtornos de ansiedade e transtornos psicticos. Um transtorno
mental no contraindica a cessao do tabagismo, pelo contrrio:
o tratamento do tabagismo deve ser encorajado e acompanhado
pelo psiquiatra e demais profissionais de sade mental (CAMPION
et al., 2008). O tratamento farmacolgico do tabagismo nos pacien-
tes com transtornos psiquitricos lana mo dos mesmos medica-
mentos utilizados para esse tratamento em outros fumantes, com
taxas semelhantes de sucesso (MIrrA et al., 2011). Entretanto,
muito importante identificar alteraes comportamentais e psqui-
cas que possam estar relacionadas sndrome de abstinncia ou ao
tratamento medicamentoso - especialmente a vareniclina, que pode
estar associada incidncia de sintomas depressivos, ideao ou
comportamento suicida (MOOrE, 2011).

Idosos
A prevalncia mdia do tabagismo em idosos de 12%
(homens, 17% e mulheres, 9%) (INCA, 2011). Parar de fumar na
terceira idade pode melhorar a qualidade de vida, reduzir o risco de
um infarto do miocrdio, entre outros benefcios (Schofield, 2006).
O tratamento do tabagismo nessa faixa etria lana mo da mesma
abordagem utilizada para os mais jovens e com taxas de sucesso se-
melhantes (rICHErt, 2008). Entretanto, importante estar atento
a maior possibilidade de comorbidades e maior risco de interaes
medicamentosas (HALty, 2004). No tratamento de tabagistas
nessa faixa etria, importante lembrar que as prteses dentrias
podem dificultar o uso de gomas de nicotina e, consequentemente,
a aderncia proposta teraputica. Alm disso, alteraes da funo
renal, comuns em idosos, demandam ajuste da dose de medicamen-

209
Manual de abordagem de dependncias qumicas

tos como bupropiona, vareniclina e da terapia de reposio de ni-


cotina (rICHErt, 2008).

Gestantes
Fumar durante a gravidez aumenta o risco de uma srie
de problemas, incluindo o aborto espontneo, diminuio do cres-
cimento fetal e prematuridade. Apesar disso, aproximadamente
30% das mulheres so fumantes quando engravidam e cerca de
23% continuam fumando durante a gravidez. O aconselhamento
para cessao do tabagismo durante a gravidez mostra aumento das
taxas de abstinncia, mas o acompanhamento importante, pois
uma recada comum aps o nascimento do beb. A farmacotera-
pia com reposio de nicotina deve ser considerada apenas quando
uma mulher grvida no conseguir parar com abordagens no far-
macolgicas ou quando a probabilidade dos benefcios da cessao
do tabagismo superar os riscos do uso desse tratamento (MIrrA
et al., 2011). Nesse caso, as formulaes de liberao intermitentes
de nicotina (goma de mascar ou pastilha) devem ser preferidas por
disponibilizarem ao feto uma dose total diria de nicotina menor
do que os dispositivos de liberao lenta (adesivo) (MACHADO &
LOPES, 2009).

Adolescentes
A adolescncia a poca mais comum de incio do taba-
gismo e cerca de 11% dos adolescentes brasileiros so fumantes
(INCA, 2011). O aconselhamento a abordagem que parece ser a
mais efetiva nessa populao, mas as taxas de cessao ainda so
muito baixas (MIrrA et al., 2011). difcil conseguir a adeso de
indivduos dessa faixa etria em programas formais de cessao do
tabagismo.

210
Terapias farmacolgicas para os transtornos do uso de tabaco

Pacientes dependentes de lcool


O tabagismo comum em pessoas com outras dependn-
cias, como a dependncia ao lcool. O tratamento farmacolgico,
nesse caso, lana mo dos mesmos medicamentos utilizados para
o tratamento do tabagismo em outros fumantes (MIrrA et al.,
2011), embora sejam menos eficazes quando comparados com
taxas de sucesso de fumantes sem problemas com lcool. Deve-se
considerar a abordagem concomitante do alcoolismo, uma vez que
parar de beber pode aumentar as chances de sucesso no tratamento
do tabagismo.

Portadores de doenas relacionadas ao tabagismo


A cessao do tabagismo um dos componentes mais im-
portantes do tratamento da doena pulmonar obstrutiva crnica
(DPOC) e a nica interveno que diminui a sua progresso. O tra-
tamento farmacolgico do tabagismo nos pacientes com DPOC
lana mo dos mesmos medicamentos utilizados para o tratamento
do tabagismo em outros fumantes (MIrrA et al., 2011).

Concluses

importante aumentar a conscincia da importncia da


cessao do tabagismo, principal causa de morte passvel de pre-
veno. necessrio que o profissional de sade conhea os tra-
tamentos disponveis e oferea ao indivduo fumante a opo por
um tratamento medicamentoso adequado. Existem vrios medi-
camentos para tratar o tabagismo, como a terapia de reposio de
nicotina, a vareniclina, a bupropiona e a nortriptilina, que so
prescritos, usualmente, por doze semanas. Independentemente da
abordagem farmacolgica escolhida, fundamental orientar o pa-
ciente a escolher uma data para parar, pois essa atitude aumenta
a chance de sucesso.

211
Manual de abordagem de dependncias qumicas

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213
1o

4
PARTE 4
Ateno integral e
abordagem psicossocial dos
transtornos de substncia
Captulo 14

Abordagem integral do paciente com


dependncia qumica
Frederico Garcia

Uma abordagem integral do paciente com dependncia


qumica de extrema importncia para seu reestabelecimento, rea-
bilitao e retorno a uma vida que lhe seja satisfatria.
Partindo de uma viso bio-psico-social da sade, pode-se
entender por integralidade, o conceito do Sistema nico de Sade
(SUS), que postula que as aes integrais so aquelas nas quais as
aes so desenvolvidas para ofertarem a promoo da sade, a
preveno de riscos, ante seus agravos, recuperao e assistncia
(BrASIL, 1990).
Ao menos trs fatores podem influenciar a viso da inte-
gralidade na abordagem de um agravo de sade. O primeiro so as
particularidades do agravo de sade. O segundo trata da disponibi-
lidade dos recursos necessrios para a promoo da sade, preven-
o de riscos, recuperao e assistncia. Por ltimo, a organizao
dos servios disponveis.

Particularidades da dependncia qumica

A dependncia qumica um transtorno psiquitrico com-


plexo de causa multifatorial que se inicia aps algum tempo de ex-
Manual de abordagem de dependncias qumicas

posio droga (ver captulo 1). As caractersticas que separam um


usurio de drogas de um paciente com dependncia qumica so
claras e bem definidas (American Psychiatric Association, 2013). A
dependncia qumica caracterizada, sobretudo, pela perda de con-
trole do uso da droga; pelo favorecimento das atividades ligadas a
droga em relao a outras atividades sociais e de lazer; pelo surgi-
mento da fissura na ausncia do uso da droga; e pela contrao de
riscos com o uso da droga. todos esses fenmenos comportamen-
tais esto relacionados s modificaes no funcionamento cerebral
causados pela droga. Essas modificaes cerebrais so persistentes,
mesmo com a interrupo do uso da droga, o que nos permite dizer
que a dependncia qumica um transtorno crnico e que implica
em que o tratamento assuma como ponto de partida uma fragili-
dade neurofuncional do paciente com dependncia qumica frente
droga (National Institute on Drug Abuse, 2009).
Essas modificaes cerebrais, hoje bem conhecidas e
comprovadas cientificamente, implicam em perdas cognitivas es-
pecficas, as quais chegam a ser percebidas pelas pessoas que con-
vivem com o paciente (KOOB & VOLKOW, 2010). Os pacientes
com dependncia qumica tendem a tolerar menos as emoes ne-
gativas e a frustrao, so mais impacientes e impulsivos, e mantm
um funcionamento cognitivo marcado pela ambivalncia, no so-
mente diante da droga, mas tambm diante de outras situaes da
vida cotidiana (WOICIK et al., 2009). Essas modificaes compor-
tamentais terminam por impactar as pessoas que esto prximas
ao paciente, como a famlia, amigos e os contatos profissionais.
Esse impacto das dependncias qumicas nos contatos so-
ciais pode ser observado, de um lado a ruptura total ou parcial das
relaes afetivas do paciente, levando-o a certo isolamento social
ou a um reagrupamento com as pessoas que tambm usam drogas.
De outro lado, por uma adaptao da famlia nova forma de agir
do paciente e que tem como consequncia aceitao do uso da
droga e do comportamento inadaptado do paciente. Essa ltima

218
Abordagem integral do paciente com dependncia qumica

forma, tambm chamada de co-dependncia, delimita o impacto


da dependncia qumica nas relaes sociais do indivduo e a pos-
sibilidade de sofrimento da famlia ou das pessoas que convivem
com o paciente com dependncia qumica (ver captulo 18).
Consequentemente, esses impactos da dependncia qu-
mica tambm podem causar sofrimento e agravos de sade nos fa-
miliares (GrICHtING & BArBEr, 1989). Pode-se concluir,
ento, que a dependncia qumica um transtorno crnico que
muda a forma do paciente de interagir com os estmulos ambientais
e com as pessoas que convivem com ele e que pode causar sofri-
mento para si e para aqueles que convivem com o paciente.

Disponibilidade de recursos para dependncia qumica

A disponibilizao de recursos pblicos ou privados para


a preveno e tratamento da dependncia qumica depende de al-
gumas premissas (UNODC, 2003).
A primeira que se reconhea a dependncia qumica
como uma doena ou agravo de sade.
Apesar de ela parecer uma premissa bvia, por muitos
anos, o uso de drogas e a dependncia qumica foram vistos por
um ponto de vista moral. Segundo esse modelo ou assim conside-
rando o uso de drogas, se inicia e se mantm como uma prtica he-
donista e do exerccio do livre arbtrio. O usurio/dependente
usaria a droga porque quer, para aproveitar a vida e que a in-
terrupo do uso da droga apenas uma questo de fora de von-
tade, de carter, ou de personalidade. A consequncia da
valorizao moral do uso de drogas que a disponibilizao de re-
cursos para o tratamento da dependncia qumica considerado
desnecessrio, pois a dependncia no caracterizaria uma doena
ou agravo de sade, mas apenas uma mera questo moral com re-
lao ao uso da droga. As evidncias clnicas e de pesquisa, no en-

219
Manual de abordagem de dependncias qumicas

tanto, denotam claramente a existncia de mudanas cognitivas e


comportamentais que caracterizam a dependncia qumica como
um transtorno mental e, portanto como uma doena ou agravo de
sade, problema que afeta a sade dos usurios que dela padece.
A segunda premissa que uma abordagem de preveno,
tratamento e reabilitao da dependncia qumica seja possvel.
Aqueles, que atribuem a origem da dependncia qumica a um
transtorno de personalidade psicoptica ou antissocial, esbarram
na indisponibilidade de recursos teraputicos para esses transtornos
(LEWIS, 1984). No entanto, sabe-se que, como na populao geral,
alguns pacientes com dependncia qumica tambm possuem esse
tipo de personalidade, no entanto a maioria dos pacientes com de-
pendncia qumica no apresenta esse tipo de estrutura de perso-
nalidade. Alm disso, diversos estudos, em diversas populaes, j
demostraram que possvel intervir positivamente tanto na pre-
veno quanto no tratamento e na reabilitao do paciente com de-
pendncia qumica. Esses cuidados permitem que os percentuais
significativos desses pacientes melhorem e possam retornar a uma
vida melhor, adaptada e sem drogas. Alm desse bom resultado in-
dividual e familiar conseguido pelo tratamento do paciente com de-
pendncia qumica, sabe-se que uma rede eficaz de tratamento
reduz a criminalidade relacionada droga, ao desemprego, aos dis-
funcionamentos familiares, e um uso desproporcional dos servios
de urgncia mdica, resultando em uma melhoria dos sistemas de
sade e sociais de apoio aos pacientes (UNODC, 2003).
A terceira premissa que a sociedade priorize o financia-
mento da abordagem de um determinado agravo frente a outros
agravos no momento da alocao de recursos. Se considerarmos
que os recursos para preveno das dependncias qumicas e do
tratamento so ineficazes ou que o investimento gasto na aborda-
gem de um determinado problema de sade tenha um baixo re-
torno para o indivduo ou para a sociedade, a tendncia para que
tais recursos sejam alocados para o tratamento de outros problemas

220
Abordagem integral do paciente com dependncia qumica

de sade considerados prioritrios. neste momento que as evi-


dncias clnicas e cientficas podem contribuir para a definio in-
formada da alocao de recursos para o cuidado desses pacientes.
Ora, se a dependncia qumica uma doena que apesar de ser cr-
nica, ela tratvel e os tratamentos so eficazes, vale a pena alocar
recursos destinados reabilitao e ressocializao do paciente qu-
mico. Contudo, os tratamentos para dependncia qumica, assim
como os tratamentos para outras doenas crnicas, se mostram
mais eficazes, quando observados em longo prazo e, quando outros
fatores biolgicos, psicolgicos ou sociais so abordados concomi-
tantemente.
resumindo, para que mais recursos possam ser disponi-
bilizados para a preveno e tratamento da dependncia qumica,
precisamos reconhec-la como um grave problema de sade, pas-
svel de preveno e tratamento e que as medidas de preveno e
tratamento eficazes a curto, mdio e longo prazo sejam disponibi-
lizadas pelos profissionais responsveis pelo atendimento desses
pacientes.

A organizao dos servios disponibilizados

Assegurar abordagens eficazes e integralizadas de preven-


o e tratamento da dependncia qumica depende da boa organi-
zao dos servios destinados a seu tratamento. retomando o
modelo biopsicosocial de sade e as particularidades da dependn-
cia qumica, podemos perceber que, quando acontece uma a inte-
rao entre os servios abordando aspectos biolgicos, psicolgicos
e sociais simultaneamente, possvel garantir uma abordagem in-
tegral do paciente com dependncia qumica.
(A dependncia qumica se caracteriza como um problema
de sade com alteraes biolgicas, tambm como uma alterao
do funcionamento cerebral, doenas hepticas, pneumopatias, des-

221
Manual de abordagem de dependncias qumicas

nutrio); psicolgicas, como alterao das funes cognitivas, mo-


dificao da percepo das emoes, modificaes da maneira de
perceber o mundo e de pensar); e sociais, como mudanas das re-
laes familiares, desemprego, problemas legais, excluso social).
Dentro desta tica, o tratamento integral de um dependente qu-
mico deveria incluir uma abordagem integrada dos trs aspectos,
objetivando a melhor recuperao possvel dentro do estado da arte.
Um dos problemas que podem surgir nessa abordagem in-
tegral das dependncias qumicas a presena de vises distintas sobre
o problema de sade resultante do uso de drogas entre os profissio-
nais, de cada um dos trs setores, que deveriam se agregar para atuar
na recuperao da dependncia qumica. necessrio ressaltar que se
cada um dos trs setores envolvidos considerar o seu aspecto mais
preponderante ou exclusivo na gnese ou na abordagem do paciente
com dependncia qumica, isso torna impossvel a integrao dos ser-
vios por dificultar adequadamente as abordagens biolgicas, psico-
lgicas e sociais. Alm disso, cada um dos trs setores precisa da viso
e do modus operandi dos outros, para oferecer um cuidado integral e de
qualidade, que aperfeioe a eficcia e as chances de recuperao dos
dependentes qumicos respeitando a sua subjetividade e individuali-
dade. Na prtica clnica, podemos observar que esse trabalho em rede,
apesar de exigir esforos iniciais no sentido da mudana da forma ha-
bitual de trabalho e da ruptura das resistncias, para abrir espao para
os demais setores, se torna, na prtica, muito mais enriquecedor para
todos os agentes envolvidos no cuidado do paciente.

Das evidncias cientficas do


tratamento do paciente com dependncia qumica

As evidncias cientficas, no estado atual do conheci-


mento, nos leva a compreender a dependncia qumica como uma
doena crnica e marcada por recadas (National Institute on Drug

222
Abordagem integral do paciente com dependncia qumica

Abuse, 2009). verdade que em nossa clnica, observamos que


nem todos os casos de dependncia qumica so crnicos e que al-
guns pacientes com o diagnstico de dependncia qumica recupe-
ram-se completamente aps o tratamento. Contudo, a maioria
daqueles que desenvolvem uma dependncia qumica sofrem vrias
recadas mesmo seguindo corretamente o tratamento e mantm
uma vulnerabilidade para recadas por vrios anos e em muitos
casos pela vida inteira. Como em outras doenas crnicas impos-
svel de se predizer quando uma estratgia de tratamento para de-
pendncia qumica ir alcanar a remisso completa.
As pesquisas tambm deixam claras algumas evidncias
importantes (National Institute on Drug Abuse, 2009; UNODC,
2003, 2013):

1. Que a educao ou o encarceramento no corrigem a dependncia


qumica. No se trata simplesmente de uma questo de conhecimento
ou aprendizagem.
2. Que as consequncias do abuso de drogas (ressacas, perda de tra-
balho, problemas com a justia) aparentam ser estmulos importantes
para a entrada em um tratamento para dependncia qumica.
3. Que o tratamento de dependncia qumica no apenas uma ques-
to de se tornar estvel e tirar as drogas do organismo. A taxa de re-
cada aps os tratamentos de desintoxicao quase as mesmas de
recadas aps o encarceramento.

A partir desses dados pode-se concluir que a dependncia


qumica mais bem tratada pela associao de tratamentos ambu-
latoriais, medicaes, monitoramento e reabilitao, com o objetivo
de manter o paciente no programa de tratamento, para maximizar
e manter os benefcios do tratamento. O outro ponto que fica claro
que o tratamento do paciente com dependncia qumica, no se
encerra na interrupo do uso da droga. Alm de ser mantido para
evitar a recada, deve-se assegurar o tratamento das comorbidades
clnicas e psiquitricas, a reabilitao psicossocial, a reinsero scio-
profissional.
223
Manual de abordagem de dependncias qumicas

O processo de mudana como ponto de partida para a


abordagem integral do paciente com dependncia qumica

Visando integrar os aspectos biopsicossociais da depen-


dncia qumica individualidade e a subjetividade de cada paciente,
que padece de dependncia qumica, pode-se propor um modelo
integrador que reagrupe as premissas e os princpios supracitados.
Este modelo faz uso da ambivalncia, um dos principais sintomas
da dependncia qumica, e o processo de mudana como pontos
de partida.
A ambivalncia um processo natural, inerente ao ser hu-
mano e que surge nos momentos em que somos forados a fazer
escolhas. A pessoa vivendo a ambivalncia apresenta, simultanea-
mente, sentimentos ou cognies conflitantes, perante uma situa-
o, pessoa ou objeto (ex. amor e dio; admirao e repdio). O
paciente com dependncia qumica vive constantemente na ambi-
valncia quanto escolha da droga. Isto , o dependente qumico
tem conscincia de que a droga tem um efeito negativo (degradao
biopsicosocial) em suas vidas, enquanto eles buscam a droga pelos
efeitos positivos (prazer, alvio) obtidos pelo seu uso. Apesar da
conscincia desses dois efeitos, por causa das modificaes cogni-
tivas o dependente qumico acaba por ceder balana decisional
em prol da droga.
Os professores William Miller e Stephen rollnick da
Universidade do Novo Mxico nos Estados Unidos propem um
modelo de mudana, que leva em conta a ambivalncia e que
dividido em cinco etapas (Figura 1) (MILLEr & rOLLNICK,
2013). Utilizaremos esse modelo como base para a proposio
de um modelo de ateno integral ao paciente dependente qu-
mico porque ele envolve um recurso importante no processo de
tratamento da dependncia qumica que a motivao do pa-
ciente em se tratar. A falta de motivao, chamada por alguns de
resistncia ao tratamento considerada um dos momentos em

224
Abordagem integral do paciente com dependncia qumica

que a ambivalncia predomina favorecendo o uso da droga e no


a sua interrupo de seu uso.
Nesse modelo teraputico, o processo de mudana divi-
dido em seis fases: pr-contemplao, contemplao, deciso, ao,
manuteno e recada.
A fase de pr-contemplao a etapa em que
a pessoa no consegue reconhecer as consequncias e
o impacto da doena em sua vida. Nesta fase o discurso
do paciente favorvel ao uso da droga, ele tenta mini-
mizar suas consequncias negativas e pela falta de mo-
tivao em interromper seu uso. O paciente apresenta Anosognosia: Distrbio neu-
ropsicolgico que impede o
uma anosognosia em relao a sua condio de depen- doente de perceber e adminitr
que tem uma doena, mesmo
dente e tende a culpabilizar os outros pela sua condio. que ela seja notria.
Na fase de contemplao, o paciente consegue reconhecer
as consequncias negativas advindas do uso da droga e consegue
perceber que esse uso tornou-se um problema em sua vida. Como
a ambivalncia ainda est presente o paciente tende a postergar uma
tomada de deciso ou de se implicar no processo de mudana.
A fase de tomada de deciso a fase em que o indivduo
vence a ambivalncia e opta pela mudana de comportamento.
Nessa fase ele fixa datas, se instrumentaliza e comea a se preparar
para a interrupo do comportamento ou do uso da droga.
Na fase de ao o paciente se mobiliza e pe em ao as
tcnicas que aprendeu na etapa anterior. Ele passa a evitar as situa-
es que o colocam em risco de recair e interrompe o comporta-
mento ou o uso da droga. Surgem os auto-reforos, eu sei que vou
dar conta, agora vai doutor, vou conseguir parar, eu sei que eu
vou ganhar da droga.
A fase de manuteno aquela que segue a interrupo
do comportamento ou uso da droga, na qual o paciente precisa rea-
bilitar-se e colocar em prtica a construo de uma ressocializao.
Essa fase marcada pelo medo da recada e, eventualmente, algu-
mas recadas.

225
Manual de abordagem de dependncias qumicas

A fase de recada ocorre quando o paciente volta a se sen-


tir em ambivalncia e no resiste ao comportamento ou uso da
droga. Como foi dito anteriormente, como a dependncia qumica
, em muitos casos, um transtorno crnico, ela ser sempre marcada
pela presena de recadas. importante observar que tendo recado,
o paciente no entra necessariamente na etapa de pr-contempla-
o, podendo retornar a qualquer uma das fases do crculo.
Cabe se lembrar de que o processo no linear, nem uni-
direcional. O paciente pode passar de uma fase a outra e retornar a
fase anterior ou uma ainda mais anterior. Ele pode tambm, entrar
no processo de mudana sem ter que passar por todas as fases.

Figura 1
O crculo de Diclementi e Prochasca, relativo ao processo de mudana
e ruptura com a ambivalncia. importante notar que as cinco fases
so uma diviso didtica do problema e que o crculo no unidirecional,
ou seja, o paciente pode evoluir e involuir na fase da mudana a
qualquer momento e que a recada considerada uma das fases de
mudana (Prochaska & Velicer, 1997).

226
Abordagem integral do paciente com dependncia qumica

muitas vezes til simplificar de seis para quatro fases, e


assim podemos dividir na clnica o tratamento do paciente, segundo
as fases discutidas quatro fases: pr-contemplativa, contemplativa,
mudana e manuteno. Esta ltima ser chamada a partir daqui de
reabilitao ao invs de manuteno, pois a reabilitao e ressocia-
lizao so fundamentais para a manuteno da abstinncia e para
a retomada de uma vida satisfatria do paciente (Figura 2).

Figura 2
Proposio de modelo tcnicas e servios, para um modelo
de ateno integral do paciente com dependncia qumica a partir
dos princpios do processo de mudana. CAPS: Centro de Ateno
Psicossocial; HG: Hospital Geral; HEP: Hospital especializado em
psiquiatria; UBS: Unidade bsica de sade

P Pr-contemplao
O Reduo de danos Consultrio/equipe de rua
N
T
O Contemplao
S
Entrevista Motivacional/Projeto teraputico Ateno bsica/UBS
D
E
Mudana
E Tratamento especializado CAPS/Leitos em HG/HEP
N
T
R Reabilitao/Ressocializao
A
D Avaliao e reabilitao cognitiva/Reinsero Centro integrado de reabilitao psicossocial
A scio/profissional/familiar

Dentro do modelo proposto o paciente pode entrar em


qualquer um dos servios propostos. Uma vez avaliada a fase em
que ele se encontra, dentro do processo de mudana, ele ser reen-
caminhado, quando necessrio, ao servio que seja mais bem ade-
quado para ele na fase de mudana, na qual ele se encontra. Assim

227
Manual de abordagem de dependncias qumicas

se maximizaria a eficcia de cada tipo de servio e se adequaria


me-lhor o servio necessidade do paciente.
Um princpio bsico para que possamos aceitar cuidados
e perceber que no estamos bem e, que o outro tem um suposto
saber que pode responder ou nos ajudar a recuperar nossa sade.
Os pacientes que se encontram em pr-contemplao, devido a
sua anosognosia, no percebem a necessidade de tratamento e
tendem a no aceitar os cuidados prescritos pelos profissionais
implicados na ateno. Para alguns pacientes a oferta ou a
insistncia para a realizao dos cuidados podem ser vividas como
uma forma de agresso ou de violncia e pode lev-los a recusa do
tratamento proposto e ao afastamento da oferta de tratamento.
Para aqueles pacientes que no estejam em risco de vida ou que
no apresentam uma urgncia premente como uma convulso,
desnutrio grave, ou distrbios metablicos, os servios de
ateno aos dependentes qumicos podem oferecer cuidados
indiretos que melhorem a sua qualidade de vida e previnam riscos
maiores para ele. A tcnica que melhor aborda esse tipo de
cuidado a chamada reduo de danos (veja captulo 24). A busca
da reduo de danos facilita a aproxi-mao dos pacientes aos
servios de tratamento de dependentes qumicos e permite a
criao de uma aliana teraputica, tornando possvel o
encaminhamento a outros servios. Os servios de con-sultrio e
abordagem de rua tm feito esse trabalho com bastante xito.
Quando um paciente est na fase de contemplao, ele
capaz de reconhecer em si um problema associado ao seu uso de
drogas. Mas nessa fase a ambivalncia est ainda presente em um
nvel que favorece o uso de drogas. necessrio ajudar o paciente
a desenvolver suas prprias motivaes internas e ajud-lo a perce-
ber as discrepncias entre seus projetos e motivaes, para que ele
inicie o processo de mudana. A consulta motivacional (veja cap-
tulo 16) uma tcnica muito eficaz para essa conscientizao e pode

228
Abordagem integral do paciente com dependncia qumica

auxiliar o paciente a encontrar suas motivaes. Essa tcnica pode


ser aprendida por profissionais de diferentes formaes e as con-
sultas em geral so curtas (5 a 15 minutos) e frequentes (uma a duas
vezes por semana) at o paciente alcanar a fase de mudana. O
mais comum que este paciente que ainda est na fase de contem-
plao procura os servios de ateno primria ou secundria bus-
cando avaliao e tratamento de complicaes do uso da droga (ex.
leses cutneas, sangramento nasal, hepatopatias, pneumopatias).
Nesse momento, aconselhvel que os servios faam o rastrea-
mento do uso de drogas em todos os pacientes, fazendo uso da
anamnese e/ou escalas padronizadas. Uma vez detectado o uso de
drogas, a anamnese sobre o uso da droga dever ser aprofundada
visando verificar a presena de uma dependncia e, caso seja de-
tectada, uma abordagem motivacional seria indicada. No nosso
ponto de vista cabe, sobretudo, ateno bsica realizar essa abor-
dagem motivacional. Como se trata de consultas curtas para um pa-
ciente s vezes desmotivado a abandonar a droga, a maior
proximidade da Unidade Bsica de Sade (UBS) e a busca ativa com
os Agentes Comunitrios de Sade (ACS) facilitariam a adeso ao
tratamento. Por outro lado, facilitando o trabalho da equipe de
sade da famlia, certamente a mais habilitada a abord-lo, uma vez
que o paciente entra nesse processo de mudana e de construo
de um projeto teraputico integrado, j prevendo o acompanha-
mento desse paciente no momento da alta do servio de reabilita-
o. Por fim, porque a UBS ser a unidade que auxiliar na
reintegrao familiar e no acompanhamento do paciente e de seus
familiares caso acontea que o paciente interrompa a ateno es-
pecializada.
Uma vez que o paciente rompe a barreira da ambivalncia
e entra no processo de mudana ele precisa ser orientado, via pro-
jeto teraputico, a buscar ajuda especializada, para poder escolher
os mtodos de tratamento que lhe sero melhores, ou que responda
mais s suas necessidades (veja os captulos seguintes). Neste mo-

229
Manual de abordagem de dependncias qumicas

mento entram os servios especializados que podem ajudar o pa-


ciente. Os tratamentos variam de paciente para paciente, mas devem
envolver, obrigatoriamente uma abordagem biopsicosocial visando
reabilitao e a reintegrao do paciente no seu meio de origem.
Para alguns casos os servios ambulatoriais so eficazes e podem
bastar. Para outros casos ser necessrio um perodo de internao
hospitalar para realizao de um primeiro tratamento de abstinncia
ou para o tratamento das complicaes clnicas que o paciente apre-
sente. Para isso fundamental que os Centros de Ateno Psicos-
social (CAPS) e os leitos hospitalares em hospital geral (HG), ou
em leitos hospitalares especializados em psiquiatria (HEP) estejam
disponveis e capacitados a gerir os momentos de crise da maneira
mais humana e confortvel para o paciente. Os pacientes que saiam
da crise devem ser encaminhados aos CAPS ou ambulatrios es-
pecializados em dependncia qumica e, uma vez que o indivduo
consiga se engajar em deixar a droga, ele pode ser encaminhado
aos servios de reabilitao psicossocial e reinsero profissional e
familiar.
A ltima etapa do processo, excetuando as recadas que
podero ocorrer, a manuteno. A manuteno do indivduo de-
pendente qumico longe do uso de droga passa pela criao de
novos valores motivacionais e o acompanhamento positivo das con-
quistas e progressos do paciente. Este um processo ativo que de-
pende do paciente ter suas faculdades cognitivas reestabelecidas no
seu melhor nvel possvel. Nessa etapa do tratamento necessrio
um trabalho de avaliao e quantificao dos danos causados pelo
uso da droga e, um trabalho de reabilitao cognitiva e social para
que o paciente possa em um segundo momento, voltar a reintegrar
sua famlia e sua profisso, se assim o desejar. Este espao, ainda a
ser criado dentro da rede de sade pblica, necessitaria de servios
dedicados de neuropsicologia, terapia ocupacional e assistncia so-
cial. Dentro desta proposio, denominou-se este espao de Centro
de reabilitao Psicossocial (CrPS). Este tipo de centro j existe

230
Manual de abordagem de dependncias qumicas

em alguns pases e integra, alm do espao de atendimento, abrigos,


apartamentos medicalizados, programas de trabalho protegido e
um trabalho especfico com as famlias ou as pessoas que acolhero
o paciente na sua sada. Ao final do trabalho de reabilitao o CrPS
deveria realizar a ligao entre os servios de tratamento e as UBS,
de maneira que uma vez que recebesse alta do servio de reabilita-
o, o paciente passaria a ser acompanhado pela equipe de sade
da famlia, que atualizaria o projeto teraputico e realizaria o acom-
panhamento de proximidade desse indivduo.

Limitantes atuais para a implementao de um


programa de assistncia integral ao dependente de drogas

No presente momento, trs limitaes maiores dificultam


a implementao de um programa integral de assistncia ao depen-
dente de drogas. A primeira a falta de recursos humanos capaci-
tados. A formao de profissionais de sade, assistncia social e
jurdica fundamental para que todos os profissionais reconheam
a dependncia qumica como um transtorno mental, passvel de tra-
tamento. tal formao possibilitaria aos agentes envolvidos no tra-
tamento, se instrumentalizar de maneira eficaz para prestar a melhor
assistncia. A segunda limitante a falta de leitos habilitados para
acolher, proteger e tratar os pacientes dependentes qumicos. Com
o fechamento dos leitos, em hospitais especializados psiquitricos,
sem sua substituio por leitos psiquitricos em hospitais gerais,
criou-se um dficit de leitos especializados e equipes tcnicas capa-
citadas para esse tipo de ateno. Alm das equipes especializadas,
fluxos de referncia e contra-referncia, ainda no nos parecem in-
tegrados e por isso, muitas vezes, falham no encaminhamento e ga-
rantia da continuidade do tratamento do paciente, quando ele
retorna a seu domiclio. Como a rede assistencial ainda no est su-
ficientemente integrada, ao receber alta, o paciente reenviado ao

231
Manual de abordagem de dependncias qumicas

domiclio sem que uma equipe de sade da famlia, habilitada para


o tratamento do paciente com dependncia qumica seja acionada.
Esse fato favorece a recada e o retorno a pr-contemplao. Por
ltimo, a falta do CrPS cria uma lacuna entre os servios especia-
lizados, e o retorno a uma vida saudvel para o paciente com de-
pendncia qumica. A reabilitao psicossocial uma etapa crucial
para que o indivduo recobre todo o seu potencial ao trabalho e
vida ativa em sua comunidade de origem.

Concluso

Assegurar a integralidade da assistncia do paciente com


dependncia qumica uma necessidade premente que atende s
diretrizes do SUS. A construo de um modelo de assistncia inte-
gral a estes pacientes denota um grande respeito ao sofrimento
deles e de suas famlias e tem um impacto significativo sobre esse
problema de sade, gerando uma sensao de bem estar e de estar
sendo assistido. Nesse captulo propusemos um modelo de ateno
integral, que tenta utilizar os servios j disponveis na rede pblica
e sugere a necessidade de se criar um novo tipo de servio com ca-
ractersticas prprias para ser um CrPS. Esse modelo seria voltado
a um ponto de partida para a discusso, e para a criao, regionali-
zada e adaptada das realidades locais de ateno integral ao paciente
com dependncia qumica.

232
Manual de abordagem de dependncias qumicas

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Ed. United Nations, New York, 2003.

233
Captulo 15

A hospitalizao do paciente com


dependncia qumica:
critrios clnicos e modalidades de internao,
para a alta de usurios de drogas:
internao voluntria, involuntria e compulsria
Frederico Garcia

Introduo

A hospitalizao de pacientes com dependncias


qumicas uma das formas de tratamento que pode ser eficaz
quando bem indicada e quando includa dentro de um projeto
teraputico bem estabelecido com o paciente.
Se por um lado alguns alegam que a hospitaliazao pode
ser necessria, e o primeiro passo para o tratamento desses
pacientes, que esto em sofrimento, de outro lado alguns alegam
que o tratamento dito forado no leva a nenhum resultado. Os
clnicos e os familiares de dependentes qumicos se confrontam
com essas duas posies e muitas vezes acabam ficando em
dvida de como agir ou sentindo culpa por ter tentado ajudar o
seu paciente ou parente.
A hospitalizao de pacientes com dependncias
qumicas uma modalidade de tratamento que deve ser
considerada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem
Manual de abordagem de dependncias qumicas

insuficientes para salvaguardar a segurana do paciente, de


terceiros ou quando a avaliao do risco para si ou para terceiros
for prejudicada. Quando bem indicada e realizada em boas
condies com uma equipe multidisciplinar, a hospitalizao pode
ser um passo importante na recuperao do paciente com
dependncia qumica. Contudo, a hospitalizao no deve ser vista
como um tratamento isolado, mas sim integrada em um programa
integral de tratamento que comporte outras etapas como a
construo de um projeto teraputico, a reabilitao cognitiva, a
reintegrao scio-familiar e a reabilitao profissional.
Neste captulo, sero revistos os marcos legais, as moda-
lidades de hospitalizao psiquitrica, as indicaes, as contraindi-
caes, e os critrios de alta de hospitalizao de dependentes
qumicos.

Marcos legais

A lei 10.216 de 2001, dispondo sobre a proteo e os direitos das pes-


soas portadoras de transtornos mentais

A dependncia qumica, enquanto doena mental tem um


regime de hospitalizao de pacientes que segue as mesmas normas
para as hospitalizaes psiquitricas regulamentadas pela lei
10.2016 de 2001 e que dispe sobre a proteo e os di-reitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais (BrASIL, 2001).
Laudo: Documento mdico- Segundo essa lei a hospitalizao psiquitrica
legal produzido em cumpri-
mento a encargo definido pela ser realizada somente mediante um laudo feito por
autoridade competente. Difere
do atestado ou parecer que o mdico devidamente registrado no Conselho regional
documento resultante do pe-
dido da pessoa interessada.
de Medicina (CrM) do estado que localize o
estabelecimento de hospitalizao. Esse laudo deve ser
circunstanciado, caracterizando os motivos da
hospitalizao.
236
A hospitalizao do paciente com dependncia qumica: critrios clnicos e modalidades de internao...

A lei 10.216 prev mecanismos de controle social Controle Social: instru-


mento democrtico no qual
para a preveno de possveis abusos da hospitalizao h a participao dos
cidados no exerccio do
psiquitrica. Segundo o artigo 8o dessa lei, toda interna- poder colocando a vontade
o psiquitrica deve ser comunicada ao Ministrio P- social como fator de avali-
ao para a criao e metas
blico Estadual num prazo de setenta e duas horas pelo a serem alcanadas no m-
bito de algumas polticas pub-
responsvel tcnico do estabelecimento em que ela ocor- licas.
reu. Cabe ao estabelecimento informar e garantir ao pa-
ciente o acesso a meios de comunicao para que o
Ministrio Pblico possa ser contatado caso o paciente
julgue necessrio.
A lei 10.216 foi posteriormente regulamentada pela por-
taria do Gabinete do Ministrio da Sade nmero 2.391, de dezem-
bro de 2002 que amplia os mecanismos de controle social. Nela
descrito que os gestores estaduais do SUS devem constituir uma
comisso revisora das internaes involuntrias compostas por um
membro do Ministrio Pblico, uma equipe multiprofissional, re-
presentantes da sociedade civil tais quais membros de associaes
de direitos humanos, usurios dos servios de sade mental e fa-
miliares. A comisso revisora efetua at o stimo dia da internao
a reviso de cada internao psiquitrica involuntria, emitindo
laudo de confirmao ou suspenso do regime de tratamento ado-
tado. Essa portaria alm de reassegurar os princpios da lei 10.216,
define melhor as modalidades de hospitalizao psiquitrica e deixa
em aberto regulamentao da modalidade Internao Psiqui-
trica Compulsria.

Modalidades de hospitalizao de dependentes qumicos

A lei 10.216 define trs modalidades de hospitalizao psi-


quitrica para tratamento de um transtorno mental mediante laudo
mdico circunstanciado que justifique seus motivos: voluntria, in-
voluntria e compulsria (Tabela 1).

237
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Tabela 1
Modalidades de internao psiquitrica segundo a lei 10.2016, de 2001
e a portaria do gabinete do ministrio da sade 2.391, de 26 de
dezembro de 2002. CRM: conselho regional de medicina
Voluntria Involuntria Compulsria
Se d com o consentimento Realizada sem o Determinada por medida
expresso do paciente consentimento expresso do judicial pelo juiz competente
paciente e a pedido de A alta se d somente por
terceiro a condio que seja determinao judicial.
acompanhada de laudo de
mdico registrado no CRM
justificando os motivos da
hospitalizao.
A alta pode ser solicitada por
parente ou pessoa prxima
do paciente.

Hospitalizao psiquitrica
voluntria: a hospitalizao
A hospitalizao psiquitrica voluntria aquela
que acontece quando o pa- que se d com o consentimento expresso do paciente
ciente, civilmente capaz d seu
consentimento autorizando a civilmente capaz. Nessa modalidade o paciente tem li-
hospitalizao.
berdade para, a qualquer momento, solicitar a inter-
rupo da hospitalizao e sua alta. A hospitalizao
Hospitalizao voluntria-
involuntria: a hospitalizao
voluntria poder tornar-se involuntria quando o paciente
voluntria pode se tornar invol- internado exprimir sua discordncia com a manuten-
untria caso o paciente pelo
trmino da hospitalizao o da internao e houver critrios clnicos para a ma-
tendo critrios clnicos para
que a hospitalizao seja man- nuteno da internao, devidamente justificados em
tida. laudo mdico. Um exemplo disso um paciente de-
primido, que exprime ideao suicida, que no tem su-
porte familiar ou assistencial no momento e que pede
alta da sua hospitalizao voluntria. Nesse caso o
risco de passagem ao ato suicida bastante elevado e
esse um critrio clnico para a manuteno da hos-
pitalizao. Assim sendo, o mdico pode optar por
converter a hospitalizao voluntria em involuntria.

238
A hospitalizao do paciente com dependncia qumica: critrios clnicos e modalidades de internao...

A hospitalizao psiquitrica involuntria aquela Hospitalizao psiquitrica


involuntria: a hospitaliza-
que se d sem o consentimento do usurio, e a pedido de o que acontece sem o con-
sentimento do paciente,
terceiro, desde que consubstanciada por laudo mdico porque seu transtorno mental
justificando os critrios clnicos que comprovem a hos- omente incapacita de julgar correta-
o contexto e os riscos.
pitalizao involuntria. Dentre os critrios clnicos que So critrios para hospitaliza-
o involuntria: 1. O paciente
justificam uma hospitalizao involuntria esto: ter uma doena mental; 2. Os
recursos extra hospitalares
1. O paciente ter uma doena mental; 2. Os re- propostos forem insuficientes
cursos extra-hospitalares propostos forem insuficientes para salvaguardar a segurana
do paciente, de terceiros; e 3.
para salvaguardar a segurana do paciente e de terceiros; Risco para si ou para terceiros;
e/ou 4. a avaliao do risco
3. risco para si ou para terceiros; 4. A avaliao do risco para si ou para terceiros est
para si ou para terceiros est prejudicada. Segundo o pa- prejudicada
rgrafo 2o do artigo 8 da lei 10.216, ficou determinado
que a hospitalizao involuntria poder ser terminada
por solicitao escrita do familiar ou responsvel legal,
ou quando estabelecido pelo mdico especialista respon- Hospitalizao psiquitrica
compulsria: a hospitaliza-
svel pelo tratamento. o determinada por juiz com-
petente afim se preservar a
A hospitalizao psiquitrica compulsria aquela vida ou a ordem pblica.
determinada por medida judicial por juiz competente.
Um fluxograma dos procedimentos para hospitalizao
apresentado na Figura 1.

239
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Figura 1
Fluxograma para avaliao da modalidade de hospitalizao psiquitrica.
Adaptado de Taborda, Baron e Neto
NO
Paciente maior Obter autorizao
de 18 anos ? do responsvel legal

SIM

O paciente esclarecido sobre a necessidade de hospitalizao

Est em condies Est em condies


de formar opinio, SIM NO de formar opinio,
manifestar vontade, CONCORDA manifestar vontade,
compreender compreender
a natureza de a natureza de
sua deciso sua deciso

SIM NO SIM
NO

Internao No
voluntria internao

Termo de Internao
consentimento involuntria

Comunicao ao
Ministrio Pblico

Aspectos legais da hospitalizao psiquitrica


de crianas e adolescentes

O tratamento e a ateno sade de crianas e adolescen-


tes com uma dependncia qumica constitui-se em direito sade
de natureza fundamental dessa populao, que se encontra em con-
dio peculiar de desenvolvimento, e que a sua proteo envolve
diuturnamente a atuao dos integrantes do Sistema de Garantias
de Direitos. Tal questo foi detalhadamente avaliada no parecer da
consulta n 6769 de 2010 do Conselho Regional de Medicina de
So Paulo (CREMESP, 2010).

240
A hospitalizao do paciente com dependncia qumica: critrios clnicos e modalidades de internao...

A hospitalizao psiquitrica de crianas e adolescentes


juridicamente possvel, desde que algumas condies especiais
sejam respeitadas. A primeira o cdigo civil brasileiro, que deter-
mina a capacidade jurdica dos indivduos, a segunda no Estatuto
da Criana e do Adolescente (ECA) (Lei 8.069/90), que estabelece
as particularidades e especificidades que devem ser respeitadas no
atendimento dessa populao, para ento aplicarmos as leis que
regem a internao psiquitrica no Brasil, que determina os aspectos
mdico e jurdico das diversas modalidades de internao, num
exerccio de integrao sistmica dessas trs esferas. Capacidade jurdica: a pos-
sibilidade de uma pessoa fsica
Primeiro, necessita-se considerar a questo da ou jurdica de exercer pessoal-
capacidade e da incapacidade jurdica em razo da idade, mente os atos da vida civil,
isto adquirir direitos e con-
conforme estabelecido no cdigo civil, lembrando que trair deveres em nome prprio.
O estado brasileiro divide a
a capacidade a regra e a incapacidade a exceo. O trs estados da capacidade ju-
rdica: Plena, Incapacidade rel-
artigo 3 do cdigo civil estabelece que os menores de ativa, Incapacidade absoluta.
16 anos so absolutamente incapazes, ou seja, so su-
jeitos de direitos, porm, devido a idade, no atingiram o
discernimento para distinguir o que podem ou no fazer,
o que lhes conveniente ou prejudicial. Portanto, podem
expressar sua vontade, mas no tm o poder decisrio
que cabe ao seu responsvel legal. O artigo 4 do cdigo
civil estabelece que os indivduos menores de dezoito e
maiores de dezesseis anos so relativamente incapazes,
ou seja, o exerccio de seus direitos se realiza com a sua
presena, exigindo, apenas, que sejam assistidos por seus
responsveis. Portanto, suas decises devem ser referen-
dadas pelo responsvel legal.
essencial observarmos o que estabelecido pelo ECA,
que por intermdio dos artigos 3, 4 e 7, 1, assegura crianas
e adolescentes a prioridade absoluta de atendimento em sade, in-
cluindo a, o tratamento em sade mental, garantindo-o entre os
direitos fundamentais inerentes pessoa humana, alm dos princ-
pios de proteo integral.

241
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Considerando-se o que estabelecido pelo ECA e o pr-


prio cdigo civil, alguns aspectos sobre as modalidades de interna-
o psiquitrica de crianas e adolescentes e algumas especificidades
na sua realizao devem ser consideradas.
A modalidade de internao voluntria de hospitalizao
s se aplica aos maiores de 16 anos, porque os menores de 16 anos
so, segundo as definies de capacidade civil, totalmente incapazes
de compreender a natureza de suas decises e, portanto, no tm
como decidir sobre a recomendao de tratamento em regime de
internao.
Adolescentes entre dezesseis e dezoito anos podem opinar
sobre o regime de tratamento indicado, desde que acompanhados
de seus responsveis legais. Nos casos de divergncia de opinies
entre os adolescentes e seus responsveis legais, a opinio desses
ltimos no pode substituir a deciso prpria do paciente menor
de idade, devendo-se proceder internao compulsria.
A internao involuntria a que se d a pedido de
terceiro, sem a concordncia do paciente, quer porque no queira
o tratamento ou porque no tenha condies de expressar tal con-
sentimento (menores de 16 anos), e sempre mediante prvio laudo
mdico circunstanciado. Esta a modalidade de internao que se
aplica a todos os menores de dezesseis anos.
A internao compulsria deve ser realizada quando hou-
ver conflito de interesses entre o do paciente menor de idade (ab-
soluta ou relativamente incapaz) e de seus pais ou representante
legal, ou quando esses estiverem ausentes. indispensvel prvia
manifestao do Ministrio Pblico, seno para a obteno da au-
torizao para proceder a internao e para a nomeao de curador
especial (artigo 9, II, CPC e artigo 142, ECA).
No que diz respeito permanncia de crianas e ado-
lescentes no mesmo ambiente hospitalar que pacientes adultos,
o ECA parte da presuno da existncia de maior risco popu-
lao infanto-juvenil, diante de possveis situaes de conflitos

242
A hospitalizao do paciente com dependncia qumica: critrios clnicos e modalidades de internao...

e de consequncias de episdios violentos nas enfermarias.


Assim, crianas e adolescentes devem ser mantidos em reas es-
pecialmente destinadas a essa populao, separados dos adultos.
Assim sendo, vedada a permanncia de crianas e adolescentes
em leitos hospitalares psiquitricos situados na mesma rea de
abrigamento (quarto, enfermaria ou ala) de adultos, e mesmo a
convivncia em atividades recreativas ou teraputicas em am-
bientes comuns, exceto quando forem indicadas pelo mdico, e
devidamente registradas em laudos, como providncias teis ao
tratamento em si, sob o ponto de vista do estrito interesse da
sade do paciente (criana e do adolescente), e desde que haja a
prvia autorizao de quem de direito (do responsvel, na inter-
nao voluntria ou involuntria, ou do Juiz de Direito, na in-
ternao compulsria).
O ECA ainda garante no seu artigo 12 que Os estabele-
cimentos de atendimento sade devero proporcionar condies para a per-
manncia em tempo integral de um dos pais ou responsvel, nos casos de
internao de criana ou adolescente. Este procedimento visa que o
auxlio dessa presena possa representar um benefcio para a re-
cuperao da sade do paciente, alm de fiscalizar o tratamento
propriamente dito. Nos casos que por questes estritamente te-
raputicas e devidamente justificadas em laudo mdico circuns-
tanciado, a presena de acompanhante seja prejudicial ao
tratamento. Sendo esta uma exceo, dever ser solicitada a au-
torizao judicial para que tal direito venha a ser suspenso, pelo
prazo indicado no parecer mdico.

Indicaes de hospitalizao de dependentes qumicos

A hospitalizao de dependentes qumicos segue os mes-


mos princpios de hospitalizao de pacientes psiquitricos. A fun-
damentao legal desses princpios est regulamentada pela lei

243
Manual de abordagem de dependncias qumicas

10.216 de 2001 da seguinte maneira a hospitalizao psiquitrica


s ser indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostra-
rem insuficientes e j tiverem sido propostos.
No caso de internaes voluntrias basta que estejam
presentes os critrios clnicos que justifiquem a necessidade da
hospitalizao.
Com relao a hospitalizao involuntria, segundo alguns
autores (taborda e col. 2008), dois critrios devem ser respondidos
para se justificar uma hospitalizao nessa modalidade. O primeiro
a presena de doena mental. O segundo a presena de no m-
nimo uma das situaes a seguir: 1. risco de autoagresso; 2. risco
de heteroagresso ou de agresso ordem pblica; 3. risco de ex-
posio social; 4. Incapacidade grave de autocuidados. Partindo-se
do pressuposto que a dependncia qumica uma doena mental e
na presena de um desses fatores, uma hospitalizao com o intuito
de proteger o paciente e de prevenir consequncias negativas para
ele ou para a sociedade justificada.
As hospitalizaes devem ser pensadas como ltimo re-
curso e corretamente justificadas, para trazer um benefcio no tra-
tamento do paciente. O benefcio pode ser em um primeiro
momento apenas paliativo, no caso de necessidade de tratamento
de comorbidades clnicas tais como pneumopatias, desnutrio, in-
feces que comprometam a vida do paciente, ou, num segundo
momento, curativas, como tratamento de abstinncia de uma subs-
tncia, tratamento de comorbidades psiquitricas, e construo de
um projeto teraputico para o paciente.

Critrios de alta hospitalar

A alta hospitalar deve ser estabelecida assim que os crit-


rios que motivaram a hospitalizao se extinguirem e no existir
mais justificativa clnica para a manuteno da hospitalizao.

244
A hospitalizao do paciente com dependncia qumica: critrios clnicos e modalidades de internao...

No caso das hospitalizaes involuntrias a alta pode ser


solicitada pelo familiar ou responsvel legal pelo paciente. Nesses
casos cabe ao mdico assistente informar sobre os riscos, benefcios
da interrupo da hospitalizao e sobre a existncia de indicaes
para a manuteno dela.
No caso de hospitalizaes compulsrias, o mdico
assis-tente deve comunicar ao juiz a existncia de critrios para
alta, atravs de um laudo consubstanciado e aguardar a deciso de
alta que ser feita pelo juiz.
A alta das internaes involuntrias e das voluntrias que
se tornaram involuntrias dever ser comunicada ao Ministrio
Pblico.

Concluso

A lei 10.216, de 2001 e a portaria GM n 2.391, de 26 de


dezembro de 2002 regulamentam os mecanismos legais para a rea-
lizao de hospitalizaes psiquitricas. As mesmas normas se apli-
cam hospitalizao de pacientes com dependncias qumicas, visto
que esse transtorno tambm uma doena mental. Um maior de-
talhamento existe na hospitalizao de menores de 18 anos e deve
ser observado com ateno.
A hospitalizao psiquitrica uma forma de tratamento,
que quando bem indicada, pode produzir benefcios maiores que
os malefcios e deve fazer parte da assistncia integral dos
pacientes com dependncias qumicas. A pequena disponibilidade
de leitos, o desinvestimento nos leitos j existentes e a no criao
de novos leitos em hospitais gerais e especializados, podem
comprometer a integralidade da assistncia do dependente
qumico.

245
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Referncias

BrASIL, Portaria GM n2.391, de 26 de dezembro de 2002. regulamenta o con-


trole das internaes psiquitricas involuntrias e voluntrias.
BrASIL, Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o cdigo civil brasi-
leiro.
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reitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo as-
sistencial em sade mental.
BrASIL, Lei n8.069, de 13 de julho de 1990. Dispe sobre o Estatuto da
Criana e do Adolescente e d outras providncias.
BrASIL, Lei n5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Cdigo de Processo
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F. 2ed. Porto Alegre: Artmed, 208. p.440.

246
Captulo 16

Aconselhamento motivacional em usurios de drogas:


conceito, princpios, estratgias e aplicaes
Lvia Pires Guimares
Neliana Buzi Figlie

Introduo
Consulta motivacional: es-
A consulta motivacional um estilo de aconse- tilo de aconselhamento cen-
lhamento centrado na pessoa, com foco na resoluo trado na pessoa com foco na
resoluo de problema da am-
do problema da ambivalncia para a mudana. Surgiu bivalncia para a mudana.

em 1983 e tem se mostrado particularmente til para


pessoas ambivalentes, que querem e ao mesmo tempo,
no querem se comprometer a mudar determinado
comportamento. A ambivalncia aqui, compreendida Ambivalncia: estado emo-
cional no qual a pessoa tem
como um estado mental, no qual a pessoa tem senti- sentimentos coexistentes e
conflitantes a respeito de al-
mentos coexistentes e conflitantes a respeito de alguma guma coisa.

coisa (FIGLIE, 2010). Inicialmente, em sua primeira


edio, a consulta motivacional concentrava-se em pes-
soas com problemas relacionados ao lcool e outras
drogas. Contudo, logo aps suas primeiras publicaes,
em 1985, vrias outras pesquisas foram realizadas e
percebeu-se, ento, que essa poderia ampliar seu campo
de interveno, sendo encontradas pesquisas sobre
asma (SCHMALING & AFArI, 2001), traumatismo cra-
niano (BELL, 2005), sade cardiovascular (BECKIE,
Manual de abordagem de dependncias qumicas

2006), odontologia (WEINStEIN, 2006), diabetes (WESt,


2007), dietas (BrUG, 2007), transtornos da alimentao e obesi-
dade (DUNN, 2006), famlia e relacionamentos (COrDOVA,
2005), jogo patolgico (WULFErt, 2006), promoo de sade
(ELLIOt, 2007), dentre outros.

Desenvolvimento

O surgimento da consulta motivacional (CM) relativa-


mente recente e, talvez por isso, tem trazido confuses ao longo
do tempo. Na tentativa de proporcionar melhor compreenso da
abordagem, Miller e rollnick publicaram as dez coisas que essa
abordagem no (MILLEr & rOLLNICK, 2009). Dentre as coi-
sas apontadas, os autores pontuam que a Consulta Motivacional
no fcil, no baseada no modelo transterico e no uma te-
rapia cognitivo-comportamental (tCC). talvez por isso, essa abor-
dagem tem sofrido adaptaes ao longo do tempo e tenha sido
utilizada em conjunto com esses dois outros modelos. Essa pers-
pectiva corroborada em um estudo de metanlise que concluiu
que, at meados de 2003, nenhum dos estudos publicados at ento,
havia utilizado a CM pura e sim, em combinao, principalmente
com as tCCs (BUrKE et al, 2003). Desde ento, essa integrao
vem sendo evidenciada tanto nos estudos, quanto na prtica clnica
(ArKOWItz et al, 2011). Vale ressaltar que outro estudo recente
de metanlise, evidencia que a consulta motivacional mostra-se
equivalente a outros tratamentos superiores mediante a ausncia de
tratamento; apresenta uma associao positiva, com menor tempo
dispendido, bem como sua eficcia (LUNDAHL et al, 2010).
A primeira edio do livro de EM foi desenvolvida a partir
da experincia de William Miller com pacientes alcooltras e, por-
tanto, o livro direcionado para problemas relacionados ao lcool
e drogas (MILLEr et al, 2001; MILLEr & rOLLNICK, 1991). A

248
Aconselhamento motivacional em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

partir de estudos crescentes, os autores tm revisado constante-


mente o modelo que fundamenta a CM e, portanto, sua estrutura
terica atual bem diferente daquela apresentada na primeira edi-
o, alm de sua utilizao ter sido estendida a diferentes contextos
clnicos, no se restringindo apenas a comportamentos aditivos.
Buscando que os profissionais consigam ver-
dadeiramente compreender em que consiste a CM, os
autores convidam para que possamos compreender o
esprito dessa proposta, que envolve um estilo cola-
borativo, evocativo e com respeito pela autonomia do
paciente. A esse conceito, esto incorporados quatro
princpios, que so: parceria (feito com o cliente e
no para o cliente), aceitao (confiana absoluta,
afirmao e reforo positivo, apoio autonomia e em-
patia acurada), evocao (evocar as foras que motivam
a pessoa, ao invs de persuadir) e compaixo (promo-
ver ativamente o bem-estar do outro, priorizando suas
necessidades). A partir desses conceitos, percebe-se
que a consulta motivacional trabalha de forma signifi-
cativa com a aliana teraputica estabelecida entre o pro- Aliana teraputica: relao
de confiana que pode se esta-
fissional e o cliente; da mesma forma, o estilo do belecer entre o paciente e o
terapeuta ou profissional de
profissional influencia na relao. sade.

O termo compaixo complexo, por abranger diferen-


tes formas de compreenso. Para a proposta da consulta motiva-
cional, trata-se de um termo novo e provocativo, a fim de tentar
consolidar entre os profissionais uma reviso em sua prpria pos-
tura interna no trato com o cliente. No Brasil, de acordo com o
moderno dicionrio da lngua portuguesa Michaelis, a compaixo
definida como dor que nos causa o mal alheio e sinnimo de
comiserao, d, pena e piedade (MICHAELIS, 1998). No seu sen-
tido etimolgico, a compaixo composta pelo prefixo com, que
traz a idia de companhia, e o verbo patior, pateris, passus sum, que
significa sofrer, suportar. A compaixo compreendida como o

249
Manual de abordagem de dependncias qumicas

sentimento que se compartilha com o semelhante (GOMES, 2010),


que, na tica se Schopenhauer, a sada para o homem ser bondoso
e justo e romper com o egosmo.
Na consulta motivacional, a compaixo parece vir para,
definitivamente, destituir o profissional do lugar de suposto saber,
para um lugar mais pessoal, que realmente capaz de compreender
plenamente o que se passa na realidade do outro e se dispe a estar
com esse outro. A aceitao, pressuposta na empatia, parece se tor-
nar mais real no processo. Da a importncia dos profissionais
terem claro esse conceito no sentido de evitar distores pautadas
no assistencialismo e na perda da neutralidade.
Nessa perspectiva, a parceria do profissional bastante
significativa, sendo reforada nas bases relacionais da consulta
motivacional, que inclui seus processos de engajamento (estabe-
lecimento da aliana teraputica), foco (desenvolvimento e ma-
nuteno da direo especfica da conversa para a mudana),
evocao (extrair da pessoa os prprios sentimentos concernentes
ao propsito de mudana) e planejamento (construo de
quando e como mudar) como condio sine qua non para a
identidade da abordagem.
Assim, construdas essas bases, possvel o manejo da
consulta motivacional por meio de sua metodologia denominada
PArr (em ingls, OArS), que consiste em fazer perguntas abertas
para dar espao para o cliente falar, afirmar com reforos positivos,
para que o profissional demonstre sua compreenso pelo cliente,
promover uma escuta reflexiva e resumir o assunto que foi discu-
tido para consolidar a escuta do profissional e organizar melhor as
ideias do cliente.
Alguns alertas, contudo, so feitos aos profissionais, para
que, na prtica da consulta motivacional, no venham cair em algu-
mas armadilhas. Essas armadilhas so apresentadas sob a forma da
armadilha da avaliao (o profissional se preocupa demasiadamente
com a anamnese e investe pouco na relao), armadilha do espe-

250
Aconselhamento motivacional em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

cialista (o profissional demonstra poder dar todas as respostas, dei-


xando o cliente em um papel passivo), armadilha da rotulao (o
profissional se preocupa demasiadamente em dar um diagnstico
de dependncia qumica, mesmo que o cliente o rejeite ou no esteja
pronto para isso), armadilha do foco prematuro (o profissional se
concentra na prioridade do uso ou abuso de lcool e outras drogas
em detrimento de outras situaes, que no momento podem se
mostrar mais relevantes para o cliente), armadilha da culpa (o pro-
fissional se deixa levar pela situao de buscar ou eleger culpados)
e a armadilha do bate-papo (a pouca compreenso que o profissio-
nal possa vir a ter sobre as perspectivas humanistas, podem fazer
com que ceda a conversas informais por muito tempo).
todas essas mudanas parecem ser um conjunto de estra-
tgias que somam esforos para dificultar uma atuao que os au-
tores nomeiam como reflexo de endireitamento (MILLEr &
rOLLNICK, 2013), que seria o desejo do profissional de tentar
corrigir no outro aquilo que lhe parece errado, modificando o curso
das aes a partir de suas prprias perspectivas. Essa atuao no
coerente com a proposta da consulta motivacional, que convida
o profissional a construir em seu trabalho uma postura equilibrada
na tenso entre seguir o indivduo e tambm, gui-lo.
A consulta motivacional considerada uma pr-
tica de interveno breve, que tem como objetivo atingir Interveno breve: psicote-
metas especficas em um curto perodo de tempo. Es- rapia de curta durao.
tudos demonstram que tanto a prtica da consulta mo-
tivacional quanto a da psicoeducao, podem ser
estratgias teis da diminuio de consumo de subs-
tncias psicoativas em adolescentes que cometeram ato
infracional (ANDrEttA & OLIVEIrA, 2010) e que
intervenes breves para adolescentes na rede de sade
em ateno primria reduzem a prevalncia e a inten-
sidade de comportamentos de risco associados ao uso
de drogas em adolescentes (DE MICHELI, FISBErG

251
Manual de abordagem de dependncias qumicas

& FOrMIGONI, 2004). Outro estudo mostrou que 65% de jo-


vens usurios de crack, que foram acompanhados por telefone,
por meio da tcnica de consulta motivacional e aderiram pro-
posta, cessaram o uso da substncia (BISCH et al., 2011). Desta
forma, percebe-se que as propostas de aconselhamento motiva-
cional no precisam se restringir ao setting teraputico e podem
ser estratgias utilizadas em diversas ocasies, tais como em fases
de pr e ps-tratamento.

Concluso

A Consulta Motivacional ainda vem sofrendo modifica-


es, porque alguns resultados no mostram efetividade por sofre-
rem forte influncia do local e do profissional que a pratica
(MILLEr, 1983). A Consulta Motivacional uma abordagem que
no pode ser considerada como um fim em si mesmo, uma obra
acabada, por tratar-se de uma formatao em processo. Este pro-
cesso vem sendo feito por meio de testes e adaptaes com rigor
cientfico e almeja que, alm da mudana no comportamento de
risco, a Consulta Motivacional se concretize no decorrer do tempo,
estabilizando assim, a ambivalncia e agregando uma viso huma-
nista e construtiva nas modificaes de comportamentos de risco.

252
Aconselhamento motivacional em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

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254
Captulo 17

Terapia cognitiva comportamental na abordagem


dos transtornos de uso de tabaco
Patrcia Maria da Silva Roggi
Mara Ferreira Nogueira da Gama
Raika Lidiane Marques Rodrigues
Isadora Oliveira Wittickind
Fernando Silva Neves
Frederico Garcia

Introduo

O tabagismo um transtorno mental e comportamental


provocado pela perda do controle sobre o uso de nicotina, a des-
peito de consequncias fsicas, psicolgicas ou sociais. Atualmente,
a dependncia de nicotina uma das principais causas de morte
evitvel no mundo e tem motivado diversas aes para sua preven-
o, combate, controle e tratamento.
Os mtodos para tratamento do tabagismo
compreendem aspectos farmacolgicos e psicolgicos da
dependncia qumica. Dentre os mtodos farmacolgicos
encontram-se os tratamentos de substituio nicotnica (e.g.
adesivos, gomas de mascar, balas entre outros) e para reduo da
fissura nicotina (e.g. bupropiona e vareniclina).
Atualmente os mtodos psicolgicos utilizados, para o
tratamento da dependncia de nicotina baseiam-se no uso de
psicoterapias de variadas linhas e tm como objetivo informar,
Manual de abordagem de dependncias qumicas

motivar, abordar aspectos especficos da dependncia e prolongar


os perodos de abstinncia. Entre as tmnimas pprmoterormas
disponveis, destaca-se a terapia Cognitivo-Comportamental
(tCC) que tem mostrado resultados mais eficazes que outras
intervenes psicoteraputicas (HALL et al., 2011). Os programas
mais eficazes para interrupo do tabaco so aqueles que associam
mtodos psicolgicos e farmacolgicos para a cessao do taba-
gismo (rEICHErt et al., 2008).
No presente captulo, iremos apresentar os principais concei-
tos da teoria geral da tCC e em seguida algumas particularidades rela-
cionadas sua aplicao para o tratamento da dependncia de nicotina.

A terapia cognitivo comportamental: conceitos bsicos

A tCC uma abordagem psicoterpica proposta por


Aaron Beck, no incio da dcada de 60 e baseada no chamado
modelo cognitivo. Esse modelo foi, inicialmente, desenvolvido para
a compreenso da depresso, sendo posteriormente ampliado para
explicar outros transtornos psiquitricos. Parte do princpio que as
emoes e comportamentos so influenciados pela interpretao
pelo sujeito dos eventos, e de que no so os fatos em si que
determinam o modo de sentir ou agir de um indivduo.
Distinguem-se trs nveis de cognies: os pensamentos
automticos, as crenas intermedi-rias e as crenas centrais.
Pensamentos automticos: O nvel mais superficial e consciente so os
idias ou imagens que surgem
rapidamente conscincia di- pensamentos automticos. Esses pensamentos so ideias
ante das situaes cotidianas
e no dependem da vontade da ou imagens que surgem rapidamente conscincia
pessoa. Desencadeiam re-
spostas emocionais, fisiolgi-
diante das situaes cotidianas e no dependem da von-
cas e comportamentais. tade do sujeito. tais pensamentos desencadeiam diver-
sas reaes emocionais, fisiolgicas e comportamentais.
Por isso, em muitos casos, mais fcil identificar as rea-
es que eles despertam do que o pensamento em si.

256
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

importante notar que os pensamentos automticos baseiam-se


em pressupostos nucleares mais profundos e estveis.
As crenas intermedirias abrangem as atitudes, Crenas intermedirias: ati-
tudes, regras, expectativas e
regras, expectativas e suposies que influenciam o pen- suposies que influenciam o
samento, o sentimento e o comportamento do sujeito. pensamento, os sentimentos e
o comportamento do indivduo.
As crenas intermedirias se apresentam de modo infle-
xvel e imperativo e se traduzem em afirmaes do tipo
se.ento ou deveria (LEAHy, 2006). Elas apresen-
tam relao com as crenas centrais na medida em que
oferecem suporte elas e expressam estratgias compen-
satrias para as crenas centrais negativas.
Num terceiro nvel temos os pressupostos Pressupostos nucleares:
nucleares, bsicos e estveis que se desenvolvem natu- teorias ou hipteses que
dirigem o processo de organi-
ralmente, em resposta s primeiras experincias de zao e estruturao de todas
as informaes que adquirimos
vida. Os pressupostos nucleares diferem-se dos pensa- sobre o mundo e nos ajudam
mentos automticos, pois so mais profundas e gene- nacia interpretao da experin-
ou na construo do signifi-
ralizadas, ao contrrio dos pensamentos automticos cado da mesma.
que se constituem em nveis mais superficiais da cog-
nio (COrDIOLI, 2008). Elas so teorias ou hipte-
ses pessoais que dirigem o processo de organizao e
estruturao de todas as informaes que adquirimos
sobre o mundo, e nos ajudam na interpretao da ex-
perincia ou da construo do significado dela. Nesse
sentido, guiam a seleo da informao que a pessoa
procura ou qual d ateno e tambm influncia na
recuperao da mesma. Consequentemente, essas
ideias tornam-se influncias poderosas sobre os com-
portamentos e estados de nimo da pessoa, quando de-
sencadeadas por um evento da vida que a pessoa
considera, de certo modo, similar ao acontecimento
original. Assim, essas crenas centrais so o modo fun-
damental como o sujeito se considera e avalia a si
mesmo, o mundo e sua experincia (CABALLO, 2003).

257
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Porm, o significado que uma pessoa atribui a uma situa-


o pode ser marcado por erros de compreenso da causa, do efeito
ou de suas implicaes, na medida em que informaes incoerentes,
com os significados j existentes, so ignoradas ou interpretadas er-
roneamente. Nesse sentido, o processo natural de atribuir signifi-
cado s experincias cotidianas pode ser causa de mal estar, visto
que essas cognies no correspondem ao que de fato acontece,
ou seja, elas so distorcidas. Essas distores, somadas ou no s
resistncias, s modificaes e adaptao podem predispor as pes-
soas em vulnerabilidades especficas e contribuir para o desenvol-
vimento de diversos problemas psicolgicos.
Em todos os nveis de processamento das informaes
podem ocorrer erros cognitivos, os quais so comumente classifi-
cados em:
Inferncia arbitrria: tirar concluses sem evidncias ade-
n

quadas ou inclusive quando elas contradizem a concluso;


Abstrao seletiva: concentrar-se em um detalhe espec-
n

fico, extrado do contexto, no levando em conta outras caracters-


ticas mais relevantes da situao;
Generalizao excessiva: chegar a uma concluso a partir
n

de um fato isolado;
Magnificao e minimizao: exagerar ou minimizar o signi-
n

ficado de um acontecimento;
Personalizao: assumir responsabilidade ou culpa por um
n

evento externo, quando no h nenhum fundamento para isso.


Supor que os eventos so todos sobre voc sem saber de todos os
fatos, levar tudo para o lado pessoal;
Pensamento absolutista dicotmico: classificar todas as ex-
n

perincias em categorias opostas;


Leitura da mente: adivinhar o que as pessoas esto pen-
sando ou sentindo;
Adivinhao: fazer previses sobre os eventos futuros;
n

Catastrofizao: dar por certo que o pior vai acontecer;


n

258
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

n
Viso em tnel: enxergar somente aspectos que confirmam
o prprio ponto de vista e ignorar ou menosprezar as informaes
contrrias;
n
Supergeneralizao: estender uma concluso de um acon-
tecimento isolado para outras reas do funcionamento.
No caso da dependncia de tabaco, quando a pessoa est
fissurada e sente um desejo forte e incontrolvel de fumar, crenas
permissivas so ativadas e impedem que o sujeito se lembre das ra-
zes para no usar o cigarro. Ocorre uma distoro cognitiva cha-
mada viso em tnel ou bloqueio mental (BECK, 1993). Esse erro
cognitivo ocorre quando o sujeito d ateno e assimila preferen-
cialmente, apenas os estmulos favorveis fissura e/ou uso de
drogas, desconsiderando todos os outros estmulos, inclusive pen-
samentos alternativos ao uso da droga.
Uma das principais crenas disfuncionais observadas no
tabagista so as crenas acerca do cigarro. Essas se manifestam
desde o incio ou at mesmo anteriormente ao uso. So crenas de
contedo antecipatrio se eu fumar serei aceito naquele grupo -, per-
missivo hoje eu tive um dia estressante, mereo relaxar -, inconsequente
s um trago no vai me fazer mal, entre outros que aumentem a pro-
babilidade do uso imediato. Indivduos que apresentam tais crenas,
associadas a um perfil de baixa tolerncia frustrao, diante de si-
tuaes que envolvem estresse ou algum desconforto emocional
podem ter ativadas tais crenas permissivas e antecipatrias, as quais
tornam-se imperativas preciso fumar agora para relaxar, caso contrrio
algo pior pode acontecer.
Aps o uso do tabaco, muitas dessas crenas acabam
sendo reforadas pelos efeitos benficos iniciais que a droga
proporciona relaxamento, sensao de bem estar. O uso pro-
longado da nicotina aumenta o risco da instalao da depen-
dncia qumica, na qual os efeitos malficos e as consequncias
prejudiciais j passam a superar os aspectos positivos iniciais.
Nesse estgio, um padro comportamental j est instalado e

259
Manual de abordagem de dependncias qumicas

sustentado por pensamentos automticos, crenas interme-


dirias e nucleares.
As crenas passam a ser ativadas na maior parte do dia-a-
dia do sujeito e situaes anteriormente neutras se transformam
em gatilhos poderosos para a urgncia do consumo do tabaco
chamada de fissura. Assim, a passagem por um local onde h ci-
garros disponveis, a observao de outra pessoa fumando, o con-
tato com o cheiro do cigarro ou ainda estados emocionais como
ansiedade e depresso podem ser eliciadores da vontade de consu-
mir o cigarro, que s ser aliviada de fato pelo prprio consumo.
Da mesma maneira, significados psicolgicos passam a serem dados
s drogas o cigarro meu melhor amigo o que estreita ainda mais a
relao dependente entre o sujeito e a substncia.

Caractersticas, indicaes e contra-indicaes da TCC

O tratamento para cessao do tabagismo baseado na tCC


tem se mostrado bastante promissor. Dados nacionais apontam uma
eficcia variando de 65% a 79%, sendo que 62% dos ex-fumantes se
mantm em abstinncia 25 meses aps o trmino do tratamento
(OLIVIA, FALCONE et al, 2005; AzEVEDO et al., 2009).
importe destacar que a taxa de abstinncia ao tabaco
diretamente proporcional a durao do tratamento (FIOrE et al.,
2000; KILLEN et al., 2008) e sofre aumento quando a abordagem
de tCC associada farmacoterapia (KIM et col., 2012; AzE-
VEDO et al., 2009; StEAD et LANCAStEr, 2008).
Cessao do tabagismo: tem
como objetivo estimular o
O tratamento para cessao do tabagismo tem
abandono do tabaco e prevenir como objetivo estimular o abandono do tabaco e pre-
recadas.
venir recadas. Para tanto, necessrio que paciente e
terapeuta, juntos identifiquem e modifiquem o proces-
samento das informaes nos trs nveis de cognies
j citados. Nesse processo fundamental que o paciente

260
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

seja ensinado a detectar situaes de risco para fumar e a desenvol-


ver estratgias de enfrentamento para elas (SILVA, 2010). As situa-
es de risco so ocasies que o ex-fumante pode retornar ao uso
do tabaco e geralmente envolvem momentos de fragilidade.
De carter pedaggico, a tCC visa inicialmente, ensinar
o paciente a estabelecer as relaes entre seus pensamentos, emo-
es e comportamentos (modelo cognitivo), identificar e avaliar pa-
dres nessas relaes e finalmente a planejar mudanas
comportamentais.
Outro objetivo importante da terapia consiste em ajudar
o tabagista a desenvolver autonomia, na medida em que o estimula
a se tornar seu prprio terapeuta atravs da transmisso das tc-
nicas e mtodos para os diversos contextos de vida do paciente.
A tCC apresenta sesses estruturadas, com base em uma
agenda. tal planejamento estabelecido em colaborao entre te-
rapeuta e paciente a cada novo encontro. A primeira sesso geral-
mente caracterizada pela escuta da demanda do paciente e a
construo de uma aliana teraputica, bem como a socializao do
paciente aos procedimentos da tCC. As sesses subsequentes se
iniciam com uma breve atualizao da semana, principalmente
quanto ao humor e uso da medicao. Em seguida, o terapeuta deve
fazer uma breve reviso da sesso anterior e relacion-la com a ses-
so do dia ao construir a agenda. Nesse momento, o terapeuta deve
revisar a tarefa de casa, verificando o quanto o paciente foi capaz
de se apropriar da sesso anterior. Deve construir a agenda e dis-
cutir seus tpicos, realizando sempre um resumo do contedo dis-
cutido. Ao final, o terapeuta indica nova atividade para casa e pede
um feedback de como foi a terapia naquele dia. toda essa estrutura
igualmente aplicvel ao tratamento do tabagista em grupo ou in-
dividualmente.
Um dos elementos importantes que devem nortear a
opo do tratamento em seu formato individual ou grupal, uma
avaliao inicial, que permita ao profissional de sade conhecer o

261
Manual de abordagem de dependncias qumicas

perfil do paciente em termos do histrico do tabagismo, tentativas


anteriores de abandono do tabaco, nvel de dependncia de nico-
tina, alm de outras co-morbidades psiquitricas.
Quando o tratamento realizado em grupo, os tabagistas
tm a oportunidade de perceber que existem outras pessoas com
os mesmos problemas e, a partir disso, criar uma rede de apoio so-
cial e de troca de experincias e informaes. Esse suporte social
fornecido pelo grupo consiste no reforo das ideias de abandono
do tabaco que ajudam a aumentar a motivao dos participantes. A
coeso do grupo permite o desenvolvimento de pertena, a identi-
ficao de afinidades com os demais membros, a realizao de ta-
refas pelo grupo, o que melhora a autoestima de seus participantes
(COrDIOLI, 1998).
O profissional deve trabalhar para fortalecer a
Auto-eficcia: percepo que auto-eficcia, ou seja, a percepo que o sujeito tem de
um indivduo tem que capaz
de fazer algo. A auto-eficcia que capaz de abandonar o tabaco. Alm disso, deve aju-
facilita a ao.
dar os tabagistas a resolverem problemas que podem de-
correr da abstinncia, tais como irritabilidade, fissura e
humor negativo. No grupo, o paciente tambm deve ser
ajudado a resolver as ambivalncias relativas ao abandono
do cigarro e ter suas razes para desejar a abstinncia
sempre reafirmada, de modo a evitar que sua motivao
sofra um declnio, visando facilitar a sua deciso (rEI-
CHErt et col., 2008).
Inicialmente, a tCC em grupo contra indicada em casos
nos quais se observa danos severos da cognio. Para os casos em
que h outras co-morbidades psiquitricas, no h contraindicaes
para o abandono do tabaco, mas deve-se tomar o cuidado de ga-
rantir que o paciente receba o acompanhamento adequado dos sin-
tomas de tais doenas.
Segundo Silva (2010), para a participao nos grupos de
tCC alguns fatores devem ser levados em considerao, tais
como:

262
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

n Pessoas de um mesmo convvio social intenso ou de mesma fam-


lia (parentes mais prximos) no devem fazer parte do mesmo
grupo teraputico, pois h a possibilidade de excesso exposio;
n Fatores como distncia scio-cultural e distncia entre as idades
dos participantes devem ser considerados, tendo em vista no tor-
nar o grupo exageradamente heterogneo;
n Preferencialmente os pacientes devem estar no mesmo estgio
motivacional para que no haja interferncia negativa.

O tratamento segue uma sequncia que se inicia com uma


explicao sobre o modo de funcionamento da psicoterapia e es-
clarecimentos sobre o modelo cognitivo, a chamada fase de psicoe-
ducao. A partir das informaes fornecidas pelo paciente na
entrevista inicial, ocorre uma sntese e integrao dos problemas
apresentados pelo paciente em termos cognitivos e comportamen-
tais. tal processo chama-se conceitualizao de caso e de funda-
mental importncia para nortear o tratamento, na medida em que
contribuiu para a escolha das tcnicas adequadas ao sujeito (BECK,
1993).
medida que o tratamento tem uma sequncia, tal for-
mulao refinada e testada pelo terapeuta e paciente. Desse
modo so realizadas as primeiras hipteses sob seus modos de
pensar, pelo estabelecimento de relao entre pensamento e as
reaes comportamentais, emocionais e fisiolgicas envolvidas
em uma determinada situao.
Aps a explorao dos pensamentos automticos, torna-
se mais clara a visualizao das crenas mais profundas e, portanto,
o entendimento da estrutura do sujeito e o que vem gerando com-
portamentos prejudiciais a ele. Algumas crenas so caractersticas
de certos transtornos, determinando comportamentos e condutas
semelhantes.

263
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Tcnicas de tratamento

A abordagem da tCC combina intervenes cognitivas e


comportamentais. Entre as tcnicas mais utilizadas para o trata-
mento do tabagismo, destacaremos algumas a seguir.
Como j apresentamos anteriormente, uma das
Psicoeducao: tcnica que tcnicas cognitivas do tratamento a psicoeducao. Ela
tem como objetivo prover infor-
maes corretas ao paciente tem como principal objetivo fornecer ao paciente infor-
sobre sua doena, mtodos de
tratamento e paliativos.
maes sobre a natureza da dependncia qumica, os efei-
tos do uso do tabaco no organismo, os mtodos de parar
de fumar. Ao aprender e entender o que sofre, o paciente
reduz sua possvel ansiedade e insegurana em parar de
fumar, alm de desenvolver habilidade de identificao
dos sinais e sintomas, podendo implementar estratgias
de enfrentamento das situaes-problema.
O registro de pensamentos disfuncionais uma tcnica
cognitiva, na qual o paciente faz o registro dos pensamentos e cren-
as negativas que so ativados em seu cotidiano, relacionando-os
com sua reao emocional e comportamental. Por meio de tal ati-
vidade, o paciente tem a oportunidade de conhecer e avaliar seu
modo de encarar as situaes, alm de planejar outras formas de
enfrentar situaes nas quais costuma fumar (BECK, 1993).
bastante comum que os tabagistas conservem crenas
que minimizem as desvantagens sobre o tabaco e o ato de fumar,
ao mesmo tempo, que maximizem as vantagens. Nesses casos, a
utilizao da anlise de vantagens e desvantagens bastante til,
pois permite ao paciente realizar uma avaliao mais real de tais ele-
mentos (BECK, 1993).
O treinamento em relaxamento uma tcnica comporta-
mental bastante aplicada no tratamento do tabagismo. Pacientes ta-
bagistas relatam fumar porque acreditam que o cigarro os acalma.
Por isso, ensinar tcnicas de respirao ou de relaxamento muscular
permite que o paciente tenha conhecimento de um mtodo mais

264
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

seguro para se acalmar, alm de aprender como lidar com a fissura


que pode sentir nos primeiros dias sem fumar (BECK, 1993).
A Preveno recada refere-se a um conjunto de tcnicas
tanto comportamentais, quanto cognitivas, que tm por objetivo
evitar que o individuo retorne ao uso do cigarro aps um perodo
de abstinncia. Os mtodos para evitar uma recada devem ajudar
o ex-tabagista a identificar situaes nas quais existe a possibilidade
de romper com a abstinncia e a realizar um plano estratgico para
enfrentar tal situao sem o uso do tabaco (BECK, 1993).

Proposta de um protocolo de tratamento do tabagismo com TCC

No Brasil, o Ministrio da Sade, por meio do Instituto


Nacional do Cncer (INCA), estabeleceu o programa Deixando de
Fumar sem Mistrios (2007), tendo como base terica a abordagem
cognitivo-comportamental. Este protocolo constitudo de quatro
sesses semanais, com durao mdia de 90 minutos cada. reco-
mendado que os grupos tenham entre 10 a 15 participantes. Estas
sesses semanais so estruturadas de acordo com a agenda bsica
de uma sesso de tCC e contam com tcnicas de soluo de pro-
blemas, psicoeducao, tcnicas de preveno de recadas, treina-
mento de habilidades e de manejo do estresse. Aps o tratamento
intensivo, os pacientes so alocados em sesses de manuteno que
acontecem, quinzenalmente e mensalmente at completar doze
meses. A seguir apresentamos um esquema didtico de tais sesses.

265
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Figura 1
Proposta de protocolo utilizada no programa do
Instituto Nacional do Cancr
Sesses 1 Entender 2 Os primeiros 3 Como vencer 4 Benefcios
porque se fuma e dias sem fumar obstculos para obtidos aps parar
como isso afeta permanecer sem de fumar
sua sade fumar
Intervenes - Informao sobre o - Ensino de tcnicas de - Reviso da sesso Troca de Experincias
tabagismo enfrentamento/soluo anterior -Psicoeducao:
- Psicoeducao: de problemas par lidar -Troca de experincias: prevenindo recadas
trabalhando a com a fissuro - como os que -Listagem dos
ambivalncia Psicoeducao: o que parearam viveram benefcios a longo
- Apresentao dos a sndrome de seus dias? prazo
mtodos para parar abstinncia - Listagem dos -Encorajamento aos
de fumar (abrupta ou - Modificao das benefcios de parar de que ainda no
gradual; reduo ou cognies/descrio fumar pararam a contin-
adiamento) de pensamentos alter- - Informao sobre uarem tentando
-Tarefas: escolher o nativos construtivos possvel ganho de - Tarefa: Pense numa
dia para parar de -Treino de assertivi- peso frase que expresse
fumar. dade para lidar com -Encorajar os que no sua razo mais forte
situaes de estresse pararam de fumar. para no voltar a
-Reviso da sesso fumar. Escreva neste
anterior caro e guarde com
-Discusso das voc.
experincias vividas
-Tarefas: tcnica de
respirao profunda e
relaxamento.

Considerae finais

Do mesmo modo que com outros transtornos


psiquitricos, o tratamento do tabagismo com a tCC baseado na
identificao e modificao dos pensamentos automticos e das
crenas distorci-das, que geram os comportamentos e as emoes
disfuncionais (JAEGEr; OLIVEIrA; SCHrEINEr, 2003).
Alm disso, o pa-ciente deve ser ensinado a desenvolver
estratgias de enfrentamento ao tabaco, de modo que tenha
condies de responder a gatilhos internos e externos de forma
mais adaptativa. Assim, o sujeito passa tambm a prevenir
possveis recadas e ser capaz de superar expe-
266
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

rincias e eventos difceis, sem o uso do tabaco ou outra droga.


importante notar que o tratamento para o abandono do tabaco
um processo que envolve principalmente a motivao do sujeito,
bem como o fornecimento de suporte com informaes e escuta
das dificuldades de cada tabagista.

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Manual de abordagem de dependncias qumicas

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268
Captulo 18

Abordagem teraputica dos familiares


do usurio de drogas
Ana Paula Ribeiro
Orestes Diniz
Fernanda Toledo

Introduo

Clnica da dependncia
Estudos realizados, desde a dcada de oitenta,
qumica que inclui a terapia sugerem que a clnica de dependncia qumica, que inclui a
de famlia: propicia maior en-
gajamento e aderncia ao terapia de famlia e o suporte das redes sociais, quando
tratamento. Reduz a recada e
permite a reestruturao dos comparada interveno individual, propicia um maior en-
comportamentos disfuncionais
familiares.
gajamento e aderncia do paciente adicto ao tratamento.
Nessa abordagem, as taxas de recadas ao uso de drogas
so reduzidas, os comportamentos disfuncionais familiares
so reestruturados, de maneira que favoream a reabilitao
psicossocial e cognitiva do usurio de drogas (ALEXAN-
DEr; PArSONS, 1982; COPELLO; tEMPLEtON;
VELLMAN, 2006; SANtIStEBAN et al., 2006; SLE-
NICK; PrEStOPNIK, 2009; LIDDLE et al., 2011;
rOWE, 2012; GUIMArES; ALELUIA, 2012). Esses
resultados positivos so decorrentes da compreenso do
incio do abuso das substncias psicoativas, a partir da an-
lise dos padres familiares do adicto e da identificao dos
fatores de risco e de proteo, que podem favorecer a
Manual de abordagem de dependncias qumicas

abstinncia do indivduo (FALS-StEWArt; OFArrEL; BI-


rCHELEr, 2003; SCHENKEr; MINAyO, 2004). Assim, o ob-
jetivo deste captulo demonstrar a importncia da incluso da
famlia no tratamento do usurio de crack e outras drogas, apre-
sentando alguns resultados de estudos com diferentes modelos
de interveno teraputica, e as limitaes dessa abordagem de
tratamento nas famlias dos usurios.

Perfil do usurio de drogas

Para tratar a famlia do usurio de crack importante com-


preender algumas caractersticas comuns encontradas nesta popu-
lao. Segundo Duailibi, ribeiro e Laranjeira (2008) comum que
o adicto seja um poliusurio, ou tenha antecedentes de consumo
de outras substncias, em que o incio do uso permeia a adolescn-
cia, atravs de drogas lcitas (lcool e tabaco). So pacientes com
piores indicadores sociais, que exprimem outros comportamentos
disfuncionais, tais como sexuais de risco e uso de agulhas injetveis
compartilhadas, aumentando o risco de adquirir doenas como HIV
e Hepatite C. comum se observar comorbidades psiquitricas,
nos usurios e nos familiares sendo importante a identificao de
outras psicopatologias que concorram com a dependncia compor-
tamental dos adictos. Alm disso, apresentam baixa adeso e ade-
rncia ao tratamento, sendo necessrio um trabalho multidisciplinar
que visa abstinncia, com vrias abordagens de tratamento, entre
elas a farmacoterapia, atendimento a famlia e encaminhamento
para grupos de apoio. todos esses aspectos devem ser considerados
para o tratamento, principalmente no que diz respeito ao sistema
familiar que tende a se tornar rgido e disfuncional, adotando um
comportamento controlador, indiferente e abandonador.

270
Abordagem teraputica dos familiares do usurio de drogas

A famlia do dependente qumico

Segundo Baptista, Cardoso e Gomes (2012), a instituio


famlia responsvel pela socializao de seus membros em que
suas relaes transgeracionais (valores, crenas, afeto e conheci-
mentos passados de uma gerao a outra) orientam a formao do
sujeito, influenciando diretamente em seus padres de comporta-
mentos promovidos pelas caractersticas do seu ncleo familiar.
uma caracterstica comum das famlias dos dependentes qumicos
serem disfuncionais, podendo transmitir normas sociais desviantes
aos filhos, em um discurso de negao e minimizao para proteger
a estrutura do sistema familiar, desprezando os sentimentos e as
experincias positivas.
Pode apresentar ainda, uma inabilidade na educao dos
filhos, com um comportamento autoritrio sobre a relao entre
os membros, utilizando-se de uma disciplina assertiva de poder, um
monitoramento negativo, uma inconsistncia interparental, afeto
desengajado e inflexibilidade cognitiva, o que dificulta a individua-
lizao do sujeito (SCHENKEr; MINAyO, 2004). Essa pseudoin-
dividualizao pode gerar uma dificuldade do adicto de se distanciar
da famlia de origem, sendo comum o seu retorno para a casa dos
pais, deixando sua famlia nuclear constituda por esposa e filhos.
Em alguns casos, o usurio no constitui uma nova famlia man-
tendo-se na casa dos pais e tornando-se cada vez mais dependente
de ajuda externa. As relaes entre os subsistemas conjugais e filiais
se tornam permeveis, resultando em um excessivo apego a um dos
genitores, que acaba facilitando os comportamentos desviantes
do filho como uma linguagem de afeto. Nesses casos comum en-
contrarmos no sistema familiar, um membro que se torna super-
protetor, e outro que acusa o adicto por seus comportamentos
disfuncionais (GUIMArES; ALELUIA, 2012).

271
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Codependncia

Alm da transgeracionalidade, outros fatores re-


lacionados ao ncleo familiar influenciam o tratamento
do adicto. Segundo Kaufman e Brook (2004), o abuso de
substncias um importante fator que contribui para v-
rios problemas familiares. Alguns membros da famlia
acabam se ajustando aos comportamentos disfuncionais
do dependente, que com freqncia no oferecem muita
resistncia ao estilo de vida que o adicto imprime. Nesses
casos, os familiares podem propiciar um ambiente man-
tenedor dos comportamentos disfuncionais do depen-
Co-dependncia: os fami-
dente qumico, que levam ao uso de drogas e se tornam
liares se adaptam a dependn- co-dependentes (CArMO, 2003). Dessa forma, podemos
cia de propiciando um
ambiente mantenedor dos caracterizar o co-dependente como um indivduo que
comportamentos disfuncionais
do dependente qumico que apresenta e vive um comportamento disfuncional rela-
levam ao uso de drogas. cionado dependncia qumica de seu familiar e no tem
conscincia de sua participao. Geralmente, quando se
sinaliza essa disfuncionalidade, tendem a resistir res-
ponsabilidade de promover o vcio do dependente e a de-
fender-se.

Modelos de interveno baseada na famlia

Segundo rowe (2012), alguns fatores como a psicopato-


logia parental, conflitos familiares, a dependncia de outros mem-
bros da famlia, so preditores do uso de drogas e incio do abuso.
todavia, a famlia pode assumir um papel protetor positivo entre
os domnios do tratamento, auxiliando na reduo do uso de subs-
tncias psicoativas de seu familiar, sendo uma grande motivadora
para o adicto entrar e permanecer no tratamento (SCHENKEr;
MINAyO, 2004; KAUFMAN; BrOOK, 2004). Diante disso, dife-

272
Abordagem teraputica dos familiares do usurio de drogas

rentes perspectivas tericas podem orientar a formulao de inter-


venes baseadas na famlia e agrupam-se em quatro abordagens:
psicanaltica, comportamental, sistmica e vrias abordagens de sis-
temas/ecolgicos. A abordagem psicanaltica foca em princpios de
funcionamentos inconscientes articulados no desejo e na lingua-
gem, propiciando a fundamentao da diferenciao psquica, mas
manifestando sintomas no funcionamento familiar. As terapias fa-
miliares comportamentais, atravs da anlise de contingncias en-
fatizam a mudana de comportamentos e atitudes que favorecem
ao abuso de drogas, na tentativa de promover a abstinncia do in-
divduo, modificando o repertrio para comportamentos positivos.
Na teoria de sistemas familiares a famlia vista como um
sistema aberto em constante alterao na estrutura familiar, sendo
elas: individualizao dos adultos; casamento; nascimento do pri-
meiro filho; famlia com filhos pequenos; famlia com filhos ado-
lescentes; ninho vazio- sada dos filhos de casa. trabalha com o
princpio da homeostase e retroalimentao movimento que
tende a manter o equilbrio do sistema se fechando para a retroali-
mentao negativa, e se atualizando com a retroalimentao positiva
(GUIMArES; ALELUIA, 2012). A abordagem sistmica foca no
relacionamento familiar problemtico que influencia o uso de dro-
gas, desenvolvendo novas interaes que melhorem o funciona-
mento dos membros da famlia. E por ltimo, a abordagem que
trabalha com vrios sistemas ou modelos baseados ecologicamente
na famlia, visando alterar alguns fatores familiares disfuncionais,
bem como outros sistemas que envolvam o adicto atravs das redes
sociais (os doze passos, empregadores, amigos, instituies que pro-
movem o tratamento, etc.). Os objetivos fundamentais de todas
essas abordagens so semelhantes: utilizar o apoio da famlia para
importantes mudanas do estilo de vida e alterar aspectos disfun-
cionais do ambiente familiar. Entre estas destacamos na Tabela 1,
alguns estudos que demonstram a eficcia de modelos de terapia
baseadas na famlia que podem ser utilizados na interveno clnica

273
Manual de abordagem de dependncias qumicas

dos adictos: Terapia de Famlia Multidimensional (MDFT); Terapia Mul-


tissistmica (MST); Terapia de Famlia Funcional (FFT); Terapia de Famlia
Estratgica Breve (BSFT).

Tabela 1
Modelos de terapias baseadas na famlia
Modelos de terapias Conceitos Modelos Estudos Resultados
baseadas na famlia Tericos
MDFT Endossada pelo National Institute Sistemas/ Liddle et al., Aps 3 meses de tratamento,
for Drug Abuse (NIDA) e pela ecolgicos 2011 87% de jovens tratados com
Substance Abuse and Mental MDFT se mantiveram
health Services Administration abstinentes comparado 23%
(SAHMSA)(HUDGINS, 2009), de Jovens que participaram do
um tratamento ambulatorial que tratamento tradicional.
trabalha com terapia de famlia,
individual, psicoeducao, vrios
sistemas de interveno sobre os
domnios: desenvolvimento inter
e intrapessoal; padres transa-
cionais familiares, interveno
com os membros influentes do
sistema extrafamiliar.
MST Trabalha mltiplos fatores de Sistemas/ Slesnick; 119 adolescentes que apresen-
risco que envolve o dependente, ecolgicos Prestopnik, tavam problemas com lcool
entre eles a famlia e a comu- 2009 tratados com EBFT e FFT
nidade onde este est inserido. tiveram melhores resultados,
O objetivo implcito de reestru- comparados aos jovens
turar o ambiente para reduzir os submetidos ao tratamento
comportamentos anti-sociais. tradicional quando analisados as
Um exemplo de MST a Terapia recadas ao uso de drogas aps
Ecologicamente Baseada na 15 meses.
Familiar (EBFT).
FFT O tratamento visa alterar Comportamental Alexander; Melhoria da dinmica familiar e
relaes negativas da familiar Parsons, reduo na reincidncia da
e usa intervenes comportamen- 1982 delinquncia dos adolescentes
tais para reforar respostas tratados com FFT, quando
positivas, sendo uma eficaz comparados a outros programas
abordagem de resoluo de de tratamento (Grupos Juvenis
problemas no seio da famlia no tribunal de Justia, a Grupos
de Terapia Domiciliar, Terapia
psicodinmica) ou nenhum
tratamento.
BSFT Baseia-se em estudos anteriores Sistmica Santisteban Em ensaios clnicos do NIDA
que demonstram resultados et al., 2006 em oito locais diferentes, com
positivos usando estratgias de mais de 400 adolescentes
engajamento e estratgico usurios de drogas e famlias
estruturais, visando demonstram que BSFT foi
reestruturao das interaes uperior ao grupo terapia na
familiares e promovendo reduo do uso de maconha.
mudanas significativamente
positivas na famlia.

274
Abordagem teraputica dos familiares do usurio de drogas

Esses resultados demonstram que o envolvimento tera-


putico dos familiares podem ser um importante preditor da ade-
rncia ao tratamento. Como descrito anteriormente, o abuso de
droga por um indivduo, afeta todos os membros da famlia, in-
cluindo parceiros, filhos e outros no residentes em casa. E esses
precisam de ajuda, no s para lidar mais eficazmente com a droga
do abusador, mas tambm para lidar com suas angstias e resolver
seus prprios problemas, sendo que o estresse nas relaes paren-
tais pode exacerbar o abuso de drogas e contribuir com as recadas
(rOWE, 2012).

Limitaes do tratamento com a famlia do dependente qumico.

As maiores dificuldades da interveno esto relacionadas


famlia que por vezes abandona o adicto, e no o acompanha
desde o incio do tratamento, sendo importante a equipe profissio-
nal investir na incluso dos familiares na relao teraputica (GUI-
MArES; ALELUIA, 2012). Outra limitao encontrada a
durao do tratamento. A maioria dos estudos revela que as inter-
venes duram entre doze a dezoito meses. Considerando que a
dependncia uma doena crnica, com constantes recadas, h
uma necessidade de que o tratamento seja contnuo para sua efeti-
vidade. Sendo assim os familiares e o adicto precisam manter o con-
tato com os profissionais em caso de retorno ao uso e abuso das
drogas. tanto a famlia, quanto os profissionais no devem esperar
resultados imediatos, embora a participao em um episdio inicial
de tratamento possa aumentar a probabilidade de sucesso em pro-
gramas posteriores, aumentando a motivao para o incio do pro-
cesso de mudana (rOWE, 2012).

275
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Discusso

No podemos deixar de considerar a importncia do en-


volvimento da famlia do dependente qumico no tratamento. A fa-
mlia responsvel por sua participao na comunidade atravs de
suas relaes interpessoais, favorecendo a individuao do sujeito
pela retroalimentao positiva e negativa que caracteriza sua subje-
tividade. improvvel que fatores como os valores, crenas, afeto
e conhecimentos da famlia, no contribuam para a subjetivao do
indivduo, sendo indispensvel o entendimento do funcionamento
familiar, do estilo parental empregado, e da histria da famlia com
o dependente. Da mesma forma, toda a famlia, sendo ela caracte-
rizada como um sistema, no pode se isolar completamente da rea-
lidade do adoecimento de seu membro. Esse est intrinsecamente
ligado a ela, e por isso, gera no ambiente familiar uma desordem
que precisa ser considerada na interveno teraputica. De fato,
todo modelo de tratamento que trabalhe com uma abordagem de
interveno familiar, favorece em alguma medida a motivao do
adicto na terapia, possibilitando que este permanea abstinente por
mais tempo. Apesar disso, no existem muitos programas de inter-
veno no sistema de sade do pas, mesmo considerando que a re-
lao custo benefcio da terapia baseada na famlia garanta a
incluso dessa abordagem teraputica em unidades de sade (MOr-
GAN; CrANE, 2010; COPELLO; tEMPLEtON; VELLMAN,
2006). Sugere-se que para aumentar a efetividade do tratamento dos
usurios de crack e outras drogas, se desenvolvam programas nas
instituies responsveis que trabalhem com a preveno e inter-
venes nas famlias.

276
Abordagem teraputica dos familiares do usurio de drogas

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278
Captulo 19

Avaliao neuropsicolgica do usurio de drogas


Frederico Garcia
Alessandra Assumpo
Ana Paula Ribeiro
Lafaiete Moreira

Introduo

A dependncia qumica (DQ) uma doena crnica ca-


racterizada por: (a) compulso para procurar e utilizar drogas; (b)
perda de controle do limite de utilizao; (c) surgimento de
emoes negativas associadas privao de utilizao da droga
(KOOB & LE MOAL, 2008); (d) recadas ao uso de droga. A
quinta edio do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (DSM-V) da Associao Americana de Psiquiatria,
estabelece critrios objetivos para o diagnstico diferencial, sendo
a tolerncia progressiva, os sintomas de abstinncia e prejuzos
psicolgicos e sociais associados ao uso abusivo da substncia, os
fatores mais importantes a serem considerados na DQ. Dentre
esses prejuzos, as dificuldades no desenvolvimento profissional,
nos processos de aprendizagem, e nas relaes interpessoais, esto
relacionadas com os comprometimentos cognitivos gerados pelo
uso contnuo de substncias. Todos estes prejuzos dificultam o
tratamento e a reinsero social dos usurios de drogas.
A avaliao neuropsicolgica pode ser utilizada para
investigar a extenso do prejuzo cognitivo, sendo uma ferramenta
importante para se desenvolver um plano de tratamento individua-
Manual de abordagem de dependncias qumicas

lizado. Partindo do pressuposto que a DQ uma doena cerebral


crnica, com alteraes que persistem por um longo tempo aps a
abstinncia, medidas que auxiliem na psicoeducao do usurio e
sua famlia, so importantes principalmente para a compreenso
de possveis recadas ao longo do tratamento.
Neste captulo sero revistos os principais conceitos liga-
dos ao comprometimento neuropsicolgico dos pacientes
usurios de drogas. Objetiva-se sensibilizar e instrumentalizar o
leitor a rastrear estas alteraes nos pacientes com uma DQ.

Mecanismos neuropsicolgicos da dependncia qumica

A DQ uma doena multifatorial definida por um pa-


dro mal adaptativo do uso de uma substncia, associado neces-
sariamente a prejuzos clnicos e sociais significativos. A transio
para a dependncia facilitada por vulnerabilidades genticas e
ambientais, combinadas plasticidade neural que culmina em
com-portamentos associados resposta da exposio s drogas
como recompensa natural (KALIVAS; OBrIEN, 2008). Apesar
da exis-tncia de critrios claros para diagnstico da doena, os
mecanis-mos pelos quais ela ocorre ainda no so totalmente
compreendidos. Um dos modelos neuropsicolgicos que tem
apresentado mais evidncias de confiabilidade o de Koob e Le
Moal (1997). Neste modelo a DQ conceitualizada como um
ciclo crescente de desregulao do sistema recompensa do cre-
bro, que resultaria no uso compulsivo da droga. O processo de
dependncia estaria relacionado, num primeiro estgio, a uma mu-
dana no continuum de contingncias comportamentais, em que h
alteraes da valncia do reforamento do estmulo, de positivo
para negativo. Na DQ ocorreria algo comparvel transio de
um transtorno do controle dos impulsos, em que o estmulo
desencadeador da resposta positivo, para um transtorno

280
Avaliao neuropsicolgica do usurio de drogas

compulsivo, em que o estmulo eliciador da resposta negativo.


Esta transio ocorreria em trs estgios: 1. preocupao/
antecipao; 2. abuso/in-toxicao e 3. fuga/emoo negativa
(KOOB; LE MOAL, 2008). A maior vantagem desse modelo de
poder ser investigado em di-versos nveis, indo desde a
neurobiologia e neuropsicologia expe- rimental at psicologia
cognitiva social, o que permite uma abordagem translacional.
Em termos do substrato neurobiolgico, Feltenstein e See
(2008) sugerem que o processo de dependncia ocorre devido
desregulao induzida pela droga no sistema de recompensa do
c-rebro, na via mesolmbica (ver captulo 1). Neste circuito algumas
drogas induziriam um aumento da estimulao dopaminrgica,
principalmente no striatum ventral e ncleo accumbens, gerando
sensaes agradveis que orientam o indivduo ao comportamento
ativo e adaptativo como procurar abrigo, alimento e reproduo.
Certas drogas agindo sobre os circuitos de aprendizagem os
alterariam de modo a criar dependncia, o que pode ser
demonstrado pela ativao experimental dos circuitos de
recompensa. (KALIVAS; OBrIEN, 2008) O uso abusivo das
drogas sobrecarrega esse sistema, levando a um aumento na si-
nalizao dopaminrgica do ncleo accumbens. Disso resultam
estimulos que motivam a ingesto de quantidades cada vez
maiores da droga, que levam a formao de associaes mal
adaptadas produzindo sintomas clnicos, como abstinncia, fissura
e vulnerabilidade recadas.

Alteraes neuropsicolgicas

Cada tipo de droga age por mecanismos neurobiolgicos


especficos, afetando diferentes circutos envovidos no ciclo de
desenvolvimento da dependncia. A maioria das drogas de abuso
interfere na plasticidade neural, que tambm sofre influncia de
outros estimulos com estmulos motivacionais e biolgicos capa-

281
Manual de abordagem de dependncias qumicas

zes de estimular direta ou indiretamente a ao dopaminrgica do


circuito de recompensa (KALIVAS; OBrIEN, 2008).
Os fatores mais importantes para a anlise dos compro-
metimentos causados pelas diferentes drogas so: 1. tipo de droga;
2. Frequncia de de uso (eventual (espordico), abusivo
(repetidamente em dias diferentes) e crnico aqui chamado de
dependente (perodo prolongado); 3. dose consumida; 4. grau de
comprometidimento cognitivo; e 5. Nmero de hospitalizaes.
Na prtica, outro fator a ser considerado que sujeitos
dependentes ou que utilizam drogas de forma abusiva, geralmente
usam mais de uma substncia ao mesmo tempo. importante
identificar qual a droga mais utilizada. O uso uso de mltiplas
drogas dificulta a identificao e a avaliao de associaes espe-
cficas, entre tipos de drogas e domnios cognitivos distintos. De
forma geral, usurios de drogas apresentam alteraes neuropsico-
lgicas na memria episdica, processamento de emoes e fun-
es executivas, principalmente tomada de deciso. Tais alteraes
dependem do tipo de droga utilizada, maconha, psicoestimu-
lantes, opiides e lcool. J foram estabelecidas correlaes entre
o uso de psicoestimulantes e lcool, com impulsividades e
flexibilidade cognitiva; entre a maconha e a metanfetamina com
memria prospectiva; e com a maconha e ecstasy com velocidade
de processamento e planejamento (Tabela 1).

282
Avaliao neuropsicolgica do usurio de drogas

Tabela 1
Funes cognitivas comprometidas de drogas estimulantes e
inibidoras no Sistema Nervoso Central (SNC)

*Estudos no apresentam resultados.

Drogas estimulantes

Cocana e Crack
Os usurios eventuais de cocana e crack podem apre-
sentar comprometimentos significativos em comparao com
os grupos controle, nas seguintes funes: ateno sustentada e
alternada, memria espacial, controle inibitrio e flexibilidade
cognitiva. Tais alteraes levam a uma menor capacidade de
ajustar de forma rpida e flexvel o comportamento com rapidez
podendo ter repercurses no desempenho das atividades do
cotidiano (COLZATO; HOMMEL, 2009; COLZATO; HUIZINGA;
HOMMEL, 2009; COLZATO et al., 2009). Em usurios
destas substncias so observadas frequncias maiores de

283
Manual de abordagem de dependncias qumicas

traos esquizotpicos, sugerindo uma provvel disfuno


dopaminrgica.
Estudos indicam a alterao da impulsividade (FErNA-
NEz-SErrANO et al., 2012), em usurios eventuais de cocana,
os quais apresentam maiores e menor desempenho em tarefas de
controle inibitrio, e maiores ndices de perseverao. Estas
alterao refletem possveias disfuno orbitofrontal que influem
nas atividades de reforo de aprendizagem.
Vrios autores descrevem compromentimento em
dependentes e usurios crnicos de cocana apresentam
comprometimentos, na memria de trabalho, controle inibitrio,
memria verbal, aprendizagem e memria, memria de curto
prazo e funo psicomotora.
Alm dessas alteraes, foram encontrados comprometi-
mentos na capacidade de tomada de deciso (CUNHA et al., 2004),
no qual as escolhas desvantajosas no Iowa Gambling test (IGt)
foram associadas a altos nveis de disfuno social em relao ao
grupo controle, avaliado com a escala Social Adjustment Scale
(SAS). tal comprometimento pode ser indicativo de associao
entre dificuldade de tomada de deciso e maior disfuno social.
Em mulheres usurias de cocana observa-se um maior
comprometimento com relao memria de trabalho,
flexibilidade cognitiva e controle inibitrio (VAN DER PLAS et
al., 2009). Essa diferena de gnero pode ser importante na
criao de planos de tratamento especficos para mulheres.

284
Avaliao neuropsicolgica do usurio de drogas

Drogas sintticas estimulantes (MDMA/Ecstasy)


A produo e venda de substncias psicoativas tem ocor-
rido nos ltimos anos em diferentes pases. Tm-se pouca
experincia clnica e farmacolgica com estas novas drogas para
que se possam conhecer os impactos neurocognitivos (UNODC,
2013). As evidncias em estudos com algumas dessas novas
drogas sugerem, que os danos causados por elas significativo,
podendo em alguns casos desencadear mecanismos de destruio
neuronal em sistemas monoaminrgicos (apoptose).
O ecstasy (3,4 metilenedioximetanfetamina ou MDMA) causa
efeitos deletrios na cognio dos usurios mesmo com uma
pequena frequencia de uso. Tais alteraes resultariam de um
efeito txico em neurnios do sistema serotoninrgico
(MCCARDLE et al.; 2004). O uso do ecstasy tem sido associado
com comprometimento persistente da memria e disfuno
psicolgica. O comprometimento de memria (WARD; HALL;
HASLAM, 2006) persiste por at dois anos mesmoaps absti-
nncia.
O uso eventual de drogas estimulantes foi associado ao
comprometimento de memria e as alteraes serotoninrgicas. A
maior parte dos estudos indica comprometimento na memria, na
aprendizagem (HANSON; LUCIANA, 2004; MCCArDLE et al.;
2004; WAGNEr et al., 2013); comprometimentos visio-motores
(WAGNEr et al., 2013); ateno (MCCArDLE et al.; 2004; yIP;
LEE, 2005); memria verbal (BEDI; VAN DAM; rEDMAN,
2010; yIP; LEE, 2006) (tHOMASIUS et al., 2003); memria no
verbal (WArD et al., 2006; yIP; LEE, 2005) e na memria de curto-
prazo (MCCArDLE et al., 2004).
Nas funes executivas so observados comprometimen-
tos relativos memria de trabalho (FISK et al., 2004; yIP; LEE,
2005), fluncia verbal (yIP; LEE, 2005), na tomada de deciso
(QUEDNOW et al., 2007) e na velocidade de processamento
(HALPErN et al., 2004).

285
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Estudos com ex-usurios de drogas estimulantes


mostram a persistncia de altos nveis de impulsividade
(HALPErN et al., 2004; QUEDNOW et al., 2007), sintomas de-
pressivos (MCCArDLE et al.; 2004; WArD et al., 2006) e
sintomas ansiosos (WArD et al., 2006), especialmente em ex-
usurios.
Drogas inibidoras

lcool
Embora alguns abusadores crnicos de lcool
mantnham o nvel intelectual praticamente intacto, um grande
nmero deles apresentam alteraes cognitivas correlacionadas
com a quantidade e frequncia do uso do lcool, como: (a)
alteraes cognitivas leves; (b) prejuzos cognitivos moderados; e
(c) danos neuropsicolgicos mais severos, como a demncia
persistente induzida pelo lcool e do transtorno amnstico
persistente induzido pelo lcool (Sndrome de Korsakoff)
(CUNHA; NOVAES, 2004). As alteraes mais frequentemente
encontradas so aquelas relacionadas memria episdica
(COrLEy et al., 2011; CUNHA; NOVAES, 2004), to-mada de
deciso (CUNHA; NOVAES, 2004), controle inibitrio
(BArDENHAGEM; OSCAr-BErMAN; BOWDEN, 2007;
CUNHA; NOVAES, 2004; HILDEBrANDt et al., 2004; KA-
rEKEN et al., 2013; NOEL et al., 2007; ), memria de trabalho
(CUNHA; NOVAES, 2004; HILDEBrANDt et al., 2004;
tHOMA et al., 2013), processamento visioespacial (CUNHA;
NOVAES, 2004; SCHOttENBAUEr; HOMMEr; WEIN-
GArtNEr, 2007), nas habilidades sociais (tHOMA et al., 2013),
velocidade psicomotora, velocidade do processamento, ateno, e
gera uma baixa ativao do Crtex Pr-Frontal (CPF) que pode
ser observada mesmo aps meses de abstinncia, devido a
atividade gabargica e serotoninrgica desta regio.(ABErNAtH;
CHANDLEr; WOODWArD, 2012; CUNHA; NOVAES, 2004)

286
Avaliao neuropsicolgica do usurio de drogas

Para avaliao de rastreio das funes associadas ao CPF,


indica-se o uso da Bateria de Avaliao Frontal que rastreia algum
dficit das funes executivas, relacionadas ao CPF, como o
planejamento, a tomada de deciso e o controle inibitrio. Ainda
para avaliar as funes executivas, sugere-se o uso do Wisconsin
Card Sorting task (WCSt) e o Iowa Glambing task (IGt).
O uso eventual de lcool, mesmo na ausncia de
intoxicao pela substncia, causa alteraes no controle inibitrio
e memria episdica verbal (WOICIK et al., 2009). Os
comprometimentos cognitivos em dependentes de lcool se
assemelham a danos cerebrais difusos. Alguns desses dficits
desaparecem durante a abstinncia, outros persistem mesmo aps
anos, da ltima ingesto de lcool. (CUNHA; NOVAES, 2004)

Cannabis (Maconha)
A Cannabis, uma das drogas ilcitas mais utilizadas no
mundo, devido aos seus efeitos psicoativos e fisiolgicos (bom
humor, euforia e relaxamento). Seu uso apresenta riscos quando
feito a longo-prazo. Estudos epidemiolgicos, de que o seu uso
crnico est associado ao desencadeamento de esquizofrnia no
incio da idade adulta.
Os endocanabinides, um dos princpios ativos da ma-
conha, esto envolvidos na regulao das funes cognitivas, em
circuitos neuronais do crtex, nos neurnios do hipocampo e em
neurnios da amgdala. Sua ao atinge tambm o estriado e a
substncia cinzenta periaquedutal (CASADIO et al., 2011). Apesar
de no haver evidncias da alterao das funes cognitivas em
adolescentes, estudos revelam que em usurios pesados, ocorre
uma alterao da tempralidade, reduo da volio e do desejo,
reduo da ateno, da aprendizagem, e da capacidade de
processar e regular as emoes. Usurios crnicos de cannabis
apresentam uma diminuio bilateral do hipocampo e da
amgdala. uando comparados com a populao geral estes
usurios podem no apresentar resultados inferiores em baterias
287
Manual de abordagem de dependncias qumicas

de avaliaes neuropsicolgicas, indicando que eles recrutam


redes neurais alternativas, como um mecanismo compensatrio
durante a execuo das tarefas.(CASADIO et al., 2011;
rAMAEKErS et al., 2011).
Mesmo sem estar sob o efeito da canabis, usurios
crnicos podem apresenta alteraes na velocidade de
processamento de informaes, na memria episdica e nos
processos atencionais.
Usurios eventuais de maconha apresentaram alteraes
em processos atencionais e memria de curto-prazo. ( HEU-
NISSEN et al., 2012)

Herona/opiides
A exposio crnica a opiides ocorre tanto em
pacientes em tratamento de dores crnicas, quanto por depen-
dentes qumicos que a usam sem prescrio. Dependentes
crnicos de opiides apresentam comprometimentos durante o
perodo de abuso da droga (BALDACCHINO et al., 2012;
POrtENOy; FOLEy, 1986; VErDEJO-GArCIA et al., 2005)
em funes executivas, como flexibilidade cognitiva e memria de
trabalho e na memria de reconhecimento.
Dependentes e usurios crnicos de opiides apresentam
comprometimentos na memria de trabalho (BALDACCHINO et
al., 2012), memria de reconhecimento (ErSCHE; SAHAKIAN,
2007), fluncia verbal, flexibilidade cognitiva (BALDACCHINO et
al., 2012) e planejamento (ErSCHE; SAHAKIAN, 2007).
Aps abstinncia prolongada, comprometimentos cogni-
tivos consistentes foram observados nas funes executivas (ErS-
CHE; SAHAKIAN, 2007), memria de reconhecimento e
aprendizagem. Ersche e Sahakian (2007) sugerem que mesmo aps
alguns anos de abstinncia, o comprometimento persistente pode
refletir a neuropatologia nos crtex frontal e temporal. tal fato
importante para o planejamento personalizado de tratamento.

288
Avaliao neuropsicolgica do usurio de drogas

Concluso

A avaliao neuropsicolgica uma importante ferra-


menta para a avaliao e mensurao dos comprometimentos cog-
nitivos decorrentes do uso ou abuso de substncias. O diagnstico
precoce das perdas neuropsicolgicas permite uma adequao do
programa de tratamento e o planejamento de aes teraputicas
especficas para cada paciente. A avaliao neuropsicolgica pode
pode oferecer informaes que nos permitem compreender as
dificuldades de manuteno da abstinncia e auxiliar na orientao
dos familiares dos usurios de drogas.

289
Manual de abordagem de dependncias qumicas

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293
Captulo 20

A insero do enfermeiro na abordagem do


dependente qumico

Amanda Mrcia dos Santos Reinaldo

Introduo

A dependncia qumica deve ser observada sob diferentes


aspectos. trata-se de um quadro plural, em que intervenes pr-
determinadas a priori, nem sempre so ditosas quando se avalia que
existem padres individuais de consumo que variam em intensidade
ao longo de um continuum, em que claramente se reconhecem n-
veis de uso com ou sem problemas e abuso com complicaes cl-
nicas e psquicas. (StEFANELLI; FUKUDA; ArANtES, 2008)
As comorbidades associadas dependncia qumica so
desafios que demandam abordagem de diferentes profissionais e
especialidades. Os profissionais da sade direcionaram suas aes
e esforos diante do impacto social produzido pelo consumo de
drogas, em especial o crack, mesmo considerando que o lcool se
mantm como a substncia de maior impacto nos custos diretos e
indiretos da sade no espectro das dependncias qumicas.
O II Levantamento Nacional de lcool e Drogas
(LENAD, 2013) estima que 11,7 milhes de pessoas sejam depen-
dentes de lcool no pas. A pesquisa foi realizada com 4.607 mora-
dores (52% mulheres e 48% homens) de 149 municpios brasileiros,
Manual de abordagem de dependncias qumicas

sendo 9% deles menores de idade. Entre os adultos 54% dos en-


trevistados revelou consumir lcool regularmente, ou seja, uma vez
por semana ou mais. Em 2012, houve crescimento de 20% do uso
frequente de lcool, em relao ao estudo de 2006, quando 45%
das pessoas revelaram beber com regularidade. O aumento no per-
centual de homens que consomem lcool com frequncia foi de
56% em 2006 para 64% em 2012. Entre as mulheres o aumento foi
de 29% para 39% da primeira para a segunda anlise. Em geral
houve um aumento no consumo nas regies brasileiras, exceto na
regio Nordeste que se manteve estvel.
Em relao ao consumo de cocana e crack quase seis mi-
lhes de brasileiros (4% da populao adulta) j experimentaram
alguma apresentao de cocana na vida. O ndice foi de 3% entre
adolescentes, representando 442 mil jovens. No ltimo ano, a pre-
valncia de uso dessa droga atingiu 2,6 milhes de adultos (2%) e
244 mil adolescentes (2%). Aproximadamente dois milhes de bra-
sileiros j usaram cocana fumada (crack/merla e oxi) pelo menos
uma vez na vida 1.4% dos adultos e 1% dos jovens. Um em cada
cem adultos usou crack no ltimo ano, representando 1 milho de
pessoas. O uso de cocana fumada na adolescncia foi mais baixo,
1% para o uso na vida (150 mil jovens) e 0.2% de uso no ltimo
ano, cerca de 18 mil pessoas. (LENAD, 2013)
A partir desse cenrio discutiremos a insero do enfer-
meiro na abordagem do dependente qumico a partir de trs eixos
que se complementam: 1 Formao, 2 Pesquisa e 3 Abordagem
ao dependente qumico.

1 Eixo: Formao

A Comisso Interamericana para o Controle do Abuso de


Drogas (CICAD) criada pela Secretaria de Segurana Multidimen-
sional da Organizao dos Estados Americanos (CICAD, 2011)

296
A insero do enfermeiro na abordagem do dependente qumico

tem como meta entre seus programas e projetos na rea da depen-


dncia qumica, introduzir nos currculos de graduao e ps-gra-
duao em enfermagem e demais profisses da sade, disciplinas
relacionadas ao tema drogas, em mais de 170 universidades na Am-
rica Latina e no Caribe, atingindo 15.000 estudantes por ano.
uma meta audaciosa, mas factvel diante do problema
social causado pelo consumo de drogas e o crescente gasto do sis-
tema de sade com o tratamento dos dependentes qumicos. Cabe
citar que mais de 70.000 enfermeiras foram treinadas em cursos pa-
trocinados pela CICAD nos ltimos dez anos na Amrica Latina e
Caribe e que o investimento anual para alcanar essa meta em
torno de US$ 8.1 milhes por ano.
Nas ltimas dcadas, o abuso de substncia tem sido re-
conhecido como uma prioridade na formao dos diversos profis-
sionais da sade. Apesar desse reconhecimento pouca nfase tem
sido dada ao ensino nessa rea, fato observado em diferentes pes-
quisas realizadas no Brasil e no mundo. Em estudos quali e quanti-
tativos que se ocuparam do tema, os acadmicos de enfermagem e
enfermeiros reconhecem uma deficincia em sua formao para
lidar com a questo. (rEINALDO, PILLON, 2007)
Segundo (Clarck, 1981) existem quatro impedimentos para
os profissionais da sade realizarem o diagnstico e o tratamento da depen-
dncia qumica.
O primeiro impedimento o cognitivo, que implica na falta
de conhecimento por parte dos profissionais, para identificar os
sintomas produzidos pelo uso de droga, comprometendo assim o
diagnstico diferencial; o segundo est relacionado atitude do pro-
fissional associada a uma viso negativa do usurio e do tratamento;
o terceiro a comunicao devido resistncia ao tratamento por parte
do dependente qumico o que provoca nos profissionais de sade
respostas pouco acolhedoras, e por fim o quarto impedimento de
ordem conceitual esse, por sua vez, est atrelado ao fato de que os
profissionais no avaliam a dependncia qumica como uma doena

297
Manual de abordagem de dependncias qumicas

passvel de diagnstico e de tratamento. uma viso interessante


que merece ateno.
Observa-se que os impedimentos identificados pelo autor
sugerem possibilidades de interveno durante a formao do en-
fermeiro a partir de disciplinas com contedos pertinentes a rea
que abordam: teorias, conceitos bsicos e avaliao diagnstica; ava-
liao e tratamento das comorbidades e tratamento farmacolgico
e no farmacolgico. (OMS, 1991)
Outra questo a ser trabalhada na formao do enfer-
meiro aponta para a identificao das crenas e atitudes desse pro-
fissional, frente ao fenmeno dependncia qumica, que se reflete
na confiana em atender o dependente qumico; nas atitudes em
relao ao prognstico e pessoa e no julgamento do modo de vida
do sujeito.
Esforos tm sido realizados na tentativa de oferecer ca-
pacitao para os enfermeiros para atuarem na abordagem do de-
pendente qumico considerando a reviso das competncias a serem
obtidas durante a graduao e o aperfeioamento dos profissionais
para suprir as deficincias da educao formal.
O enfermeiro deve se capacitar para desenvolver aes
tais como: realizar uma histria adequada sobre o padro de con-
sumo de substncias psicoativas, implementar estratgias de inter-
veno e educao em sade, avaliar os problemas associados ao
uso da substncia, identificar o uso nocivo ou a dependncia e ofe-
recer cuidados de sade e apoio durante a reabilitao e preveno
de recadas.
tais mudanas podem ser conquistadas por meio de uma
poltica educacional de ensino sobre lcool e outras drogas na gra-
duao e na ps-graduao, integrando diferentes cenrios de atua-
o, ensino, assistncia, pesquisa e extenso, bem como se faz
necessrio fortalecer estratgias de enfrentamento da problemtica
por parte de diversos setores da sociedade. (PILLON; SIQUEIrA;
SILVA, 2012)

298
A insero do enfermeiro na abordagem do dependente qumico

Um dos objetivos da capacitao profissional inclui a iden-


tificao precoce da dependncia qumica pela utilizao de ques-
tionrios e inventrios padronizados voltados deteco dos
transtornos decorrentes do uso de lcool e outras drogas. Como,
por exemplo, o CAGE (acrnimo referente s suas quatro pergun-
tas- Cut down, Annoyed by criticism, Guilty e Eye-opener) especfico para
o lcool, e o Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test
(ASSISt) para o uso de outras drogas, favorecendo assim a abor-
dagem inicial e a compreenso dos aspectos biolgicos, cognitivos
e psicossociais da dependncia qumica, bem como estimular mu-
danas de atitudes dos enfermeiros em relao ao dependente qu-
mico e seu tratamento. (LArANJEIrA, 2003)

2 Eixo: Pesquisa

O avano da profisso de enfermagem na Amrica Latina


necessita que sejam desenvolvidos esforos e parcerias nacionais e
internacionais no mbito da pesquisa.
A CICAD no mbito do fomento a pesquisa, por meio
do Observatrio Interamericano de Drogas apoia pesquisas na rea,
com o objetivo claro de transformar a informao produzida em
dados teis para os formuladores de polticas.
Em 1997, a CICAD, inicialmente com o apoio financeiro
do governo do Japo, e posteriormente com o dos Estados Unidos
e o Canad, iniciou uma experincia nica com algumas escolas de
enfermagem na Amrica Latina. A meta foi preparar docentes e,
por meio deles, futuros enfermeiros para trabalhar na rea da pes-
quisa visando a reduo do uso e abuso de drogas, com atividades
relacionadas promoo da sade, preveno e integrao social.
(WrIGHt et al., 2005)
O Primeiro Programa Internacional de Capacitao em
Pesquisa para Enfermeiros no Estudo do Fenmeno das Drogas

299
Manual de abordagem de dependncias qumicas

na Amrica Latina foi implementado, com o apoio tcnico e fi-


nanceiro da CICAD, do governo do Canad e da faculdade de en-
fermagem da Universidade de Alberta, em 2003. A durao do
programa, dividido em trs partes, foi de um ano. A parte I foi im-
plementada na Faculdade de Enfermagem da Universidade de Al-
berta e compreendeu trs mdulos, que destacaram os seguintes
aspectos: mdulo I. Sade Internacional e o Fenmeno das Drogas;
mdulo II. O Fenmeno das Drogas nas Amricas; mdulo III. meto-
dologias de pesquisa. (WrIGHt et al., 2005)
As pesquisas na rea da dependncia qumica desenvolvi-
das por enfermeiros ligados a centros de pesquisa e servios de
sade no Brasil e no mundo se ocupam de diferentes temas, entre
eles: modelos explicativos para o fenmeno do uso e abuso de dro-
gas, implicaes sociais e familiares, modelos de ateno, avaliao
das polticas pblicas para a rea, formao e capacitao na gra-
duao e ps-graduao, pesquisas epidemiolgicas e de avaliao
de servios.
Observa-se hoje um crescimento significativo de pesqui-
sadores da enfermagem se debruando sobre o tema, considera-se
esse movimento como um passo decisivo para a formao do en-
fermeiro e para a contribuio da profisso na elaborao de pol-
ticas pblicas para a rea.
No campo da pesquisa importante considerar os princi-
pais fatores que reforam a excluso social do usurio de drogas.
De acordo com o Ministrio da Sade (2004), importante avaliar
o impacto do uso de lcool e outras drogas no aumento da violncia
urbana; os estigmas atribudos aos usurios e que reforam a segre-
gao social do mesmo; a incluso do trfico como alternativa de
trabalho e gerao de renda e a ilicitude do uso que impede a par-
ticipao social de forma organizada na elaborao das polticas p-
blicas para o setor.
As pesquisas no campo da enfermagem em dependncia
qumica tm colaborado para a compreenso desse fenmeno, e

300
A insero do enfermeiro na abordagem do dependente qumico

devem considerar as mudanas estruturais que ocorreram no pas


e no mundo nos ltimos dez anos no que concerne ao tema.

3 Eixo: Abordagem ao dependente qumico

Em relao abordagem do enfermeiro ao dependente


qumico, as estratgias e modelos assistenciais disponveis profis-
so tm como meta promover iniciativas no mbito comunitrio
bem como na assistncia direta tanto ao indivduo, quanto famlia
e grupos especficos da comunidade. Atividades de vida diria
(AVD): so as tarefas que o in-
Cabe considerar o prejuzo presente no desen- divduo realiza diariamente. No
volvimento das atividades de vida diria dos usurios de secuidados
resume somente aos auto
de vestir-se, alimentar-
drogas e suas implicaes tardias, cabendo aos profissio- se, arrumar-se, tomar banho, e
pentear-se, mas engloba tam-
nais de sade desenvolver iniciativas intersetoriais e in- bm as habilidades de usar tele-
fone, escrever, manipular livros,
terdisciplinares que deem conta no s da preveno, mas etc alm da capacidade de virar-
tambm do tratamento, reabilitao e da reinsero do see transferir-se
na cama, sentar-se, mover-se
de um lugar a
paciente. outro.

No tratamento do usurio de substncia psicoativa deve-


se considerar o conceito de dependncia qumica adotado; a sua as-
similao pela cultura e pela poltica de cada local; o tipo de
substncia mais prevalente utilizada pela populao que se quer cui-
dar; a motivao do indivduo para o tratamento; a participao da
famlia desse sujeito; a sua rede social de apoio e os grupos sociais
de seu entorno. (GIGLIOttI, 2010)
No existe apenas um modelo a seguir para o planeja-
mento de cuidados da enfermagem na rea da dependncia qumica.
Essa prtica tem se desenvolvido de forma focalizada, de acordo
com as necessidades de repostas aos problemas de sade das po-
pulaes, pois est diretamente ligada ao sistema de sade e cen-
trada nos cuidados gerais de ateno em sade.
Modelos so simulaes tericas para explicar um fen-
meno complexo e multifacetado. A abordagem ao dependente qu-

301
Manual de abordagem de dependncias qumicas

mico, guarda sua complexidade e o profissional pode avaliar o usu-


rio sob diferentes aspectos ao mesmo tempo. O modelo explicativo
para o uso do lcool e outras drogas, atualmente mais utilizado em
nosso meio e que tm contribudo para modificaes desse com-
portamento, tm se baseado no modelo biomdico, centralizado
nas formulaes da psiquiatria, havendo possibilidade de abertura
para o contexto da sade pblica. (PILLON; LUIz, 2004)
Independente do modelo ou estratgia adotada impres-
cindvel identificar as boas prticas na dependncia qumica, ou seja,
o que de fato funciona na preveno de recadas e no tratamento
em si. As abordagens devem ser baseadas em evidncias e conside-
rar a individualizao e a singularidade do sujeito. Deve-se trabalhar
pela disponibilidade de acesso aos servios de sade, considerando
a multidisciplinaridade, um plano de tratamento malevel e factvel,
o tempo de permanncia mnimo no servio de internao, a psi-
coterapia individual e em grupo, a farmacoterapia e o tratamento
integrado da comorbidade.
A desintoxicao deve ser considerada no momento da
interveno. O tratamento voluntrio desejvel e a realidade do
tratamento involuntrio deve ser acompanhada de perto para que
no ocorra violao de direitos, observada frequentemente quando
existe institucionalizao.
O modelo moral deve ser descartado e o monitoramento
do consumo, a regulao do uso e a reduo de danos devem ser
trabalhados de forma sria, por profissionais ou pessoas capacitadas
para isso. A proposta de internao para tratamento deve respeitar
a legislao vigente no pas e o cardpio de opes teraputicas
pressupe o oferecimento de vagas para atendimento, levando-se
em conta as limitaes das polticas locais para a rea sem prescindir
das necessidades reais da populao.
Para planejar e implementar a abordagem do dependente
qumico, o enfermeiro utiliza ferramentas que j fazem parte de seu
cotidiano na clnica psiquitrica, e que se adequam a dependncia

302
A insero do enfermeiro na abordagem do dependente qumico

qumica, recomendvel porm que ele incorpore outras estratgias


que prescindem de formao e aperfeioamento.
A partir dessa perspectiva deve-se lanar mo de um
leque de intervenes psicoterpicas que envolvem diferentes
aes, entre elas podemos elencar: interveno breve, terapia
cognitivo comportamental, entrevista motivacional, aconselha-
mento, acompanhamento teraputico, gerenciamento de casos,
estratgia de reduo de danos, visita domiciliar, psicoterapia de
grupo, terapia familiar, o vnculo, o relacionamento, a comuni-
cao e o ambiente teraputico. Essas aes e estratgias de aten-
o em sade devem considerar a rede de ateno formal e
informal que constituem cenrios privilegiados de abordagem do
dependente qumico.

Consideraes finais

O enfermeiro enfrenta os desafios da abordagem do de-


pendente qumico a partir da viso de que esta para ser efetiva pres-
supe a articulao com diferentes setores e o trabalho
interdisciplinar.
O aperfeioamento de suas competncias; a formao
profissional e a conduo de pesquisas so influenciadas pelas po-
lticas pblicas no planejamento de suas aes. As relaes do usu-
rio com o seu habitat e famlia, as condies de sade no pas, a
relao do usurio com os servios de sade; e os avanos cientfi-
cos e tecnolgicos da rea, entre elas o campo da neurocincia e
neuroimagem, apontam para o campo da interseco de saberes e
prticas de diferentes profisses.
necessrio dar visibilidade s pesquisas realizadas por
centros de excelncia da enfermagem no pas e no mundo, criando
assim um arcabouo terico consistente que sirva de sustentao
para nossos saberes e prticas nesse campo.

303
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Enfim, imprescindvel ponderar e discutir os eixos que


apresentamos, encarando o crculo vicioso da dependncia qumica
como algo passvel de interveno, e buscando abordagens poss-
veis para a dependncia e o dependente qumico que no nos leve
a digresso.

304
A insero do enfermeiro na abordagem do dependente qumico

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305
Manual de abordagem de dependncias qumicas

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306
Captulo 21

Avaliao das condies sociais do usurio de drogas:


limitaes, potencialidades, interesses e
expectativas em relao sua reinsero social

Moiss de Andrade Jnior

Contexto scio-histrico do consumo


de drogas no Brasil e no mundo

A dependncia qumica considerada, hoje, um dos maio-


res desafios de sade pblica no mundo. Mobilizando profissionais
de diversas reas, a discusso sobre o tema abrange a preveno do
consumo de substncias, estratgias de tratamento, polticas pbli-
cas para promoo de sade e intervenes nas condies sociais
que propiciam e fomentam o contato com as drogas. Dados recen-
tes apontam o crescimento constante do nmero de usurios de
drogas no mundo, e estima-se que apenas em 2011, entre 3,6 e 6,9%
da populao teria feito uso de alguma substncia ilegal no ltimo
ano (UNODC, 2013). Dentro das estatsticas mundiais, a prevaln-
cia do uso de cannabis, opiides e opicios apresentou acentuado
crescimento, enquanto substncias como cocana e derivados, an-
fetaminas e metanfetaminas, que apresentaram queda nos ltimos
anos, voltaram a subir (UNODC, 2013). Contudo, importante res-
saltar que as demandas por tratamento e o impacto de determinadas
Manual de abordagem de dependncias qumicas

substncias variam nas diferentes regies e pases, sugerindo a in-


fluncia de fatores histricos e culturais nos hbitos de consumo
dos indivduos. As variaes desse consumo, e sua gravidade rela-
tiva, implicam em diferentes abordagens de compreenso e enfren-
tamento do problema.
No Brasil, as estatsticas do consumo de substncias apon-
tam que em 2005 cerca de 22,8% da populao entre 12 e 65 anos
utilizou alguma droga na vida, excetuando-se o lcool e o tabaco
um crescimento de 3,4% se comparado com dados de 2001
(Duarte; Stempliuk; Barroso, 2009). Dentre as substncias consu-
midas, prevalece a cannabis como a droga ilcita mais utilizada na
vida (8,8%), seguida do uso de solventes (6,1%). Considerando-se
apenas as drogas ilcitas, a cocana apresentou um consumo na vida
de 2,9%, e o crack, que tem sido alvo cada vez mais frequente de
polticas pblicas sobre drogas, 0,7% (CArLINI et al., 2006b). Con-
tudo, os problemas causados pelo consumo abusivo e dependncia
dessas substncias com sequelas sociais, fsicas e psquicas decor-
rentes do consumo a curto, mdio e longo prazo devem ser ana-
lisados em um contexto mais amplo, considerando-se as variveis
sociais e econmicas envolvidas no processo.
tomando-se trs das substncias ilcitas mais abordadas
pelas polticas pblicas sobre drogas no Brasil (a cannabis, a cocana e
o crack), verifica-se nos dados disponveis de 2005, que dentre a po-
pulao que experimentou cannabis uma vez na vida, 21,6% fizeram
uso dela no ltimo ms. No caso da cocana e crack, 13,8% e 14,3%
da populao que utilizou essas substncias, ao menos uma vez na
vida, fez uso delas no ltimo ms, respectivamente (CArLINI et al.,
2006b). As discrepncias entre uso na vida e uso no ms so impor-
tantes indicadores da gravidade do consumo de substncias, ainda
que, analisadas isoladamente, essas estatsticas pouco dizem sobre os
contextos em que elas so utilizadas. Nesse sentido, necessrio con-
siderar as condies sociais em que o usurio se encontra para se
compreender o escopo geral do consumo de drogas no pas: o sujeito

308
Avaliao das condies sociais do usurio de drogas: limitaes, potencialidades, interesses e expectativas...

que se droga atravessado por uma histria e uma cultura, compar-


tilha valores da comunidade a qual pertence, e faz parte de grupos
sociais que influenciam sua relao com a substncia.

Promoo da sade e o uso de drogas

Dentro dessa perspectiva, a orientao mundial sobre a


promoo e manuteno da sade de que ela no pode ser alcan-
ada sem que sejam endereadas suas determinantes sociais: isso
significa combater a desigualdade social, melhorar condies de
acesso a bens e servios de sade, promover polticas pblicas de
preveno e promoo da sade, fomentar a economia e o acesso
a postos de trabalho, combatendo o desemprego, mas ao mesmo
tempo cuidando para que as condies de trabalho no atentem
contra a sade dos indivduos (WHO, 2012). Essas orientaes, por
sua vez, esto em sintonia com a perspectiva de sade que norteia
o SUS, qual seja, a sade como um processo socialmente determi-
nado, e que demanda um atendimento integral ao indivduo, consi-
derando-se como indicativo de sade no apenas a ausncia da
doena, mas tambm as condies socioeconmicas que cercam
pessoas, grupos e coletividades (MACHADO et al., 2007).
No que tange ao consumo de substncias, a proposta de
ateno integral do SUS tem sido aplicada na compreenso do fe-
nmeno, considerado, portanto, efeito de condies histricas, so-
ciais e polticas, e que implicam em diferentes formas de uso, abuso
e dependncia (PrAttA, 2009). Neste sentido, o fenmeno da
drogadio passa a ser considerado dependente de estratos sociais;
de condies de vulnerabilidade social; associados a contextos fa-
miliares que ora atuam como fator de proteo, ora de risco; final-
mente, considera-se, nas polticas pblicas sobre drogas, sua relao
direta ou indireta com situaes de violncia, notadamente a vio-
lncia urbana.

309
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Para compreender com maior propriedade que condies


sociais cercam o usurio de drogas no Brasil, necessrio contex-
tualiz-lo em uma histria de busca pelo prazer, propiciado pelo
consumo da substncia, e polticas de represso e perseguio, per-
petuadas ora por instituies religiosas, ora pelo Estado (ESCO-
HOtADO, 1999). A tentativa de reprimir o consumo de certas
substncias psicotrpicas, contudo, no apenas foi insuficiente para
abolir seu uso, mas acabou por criar redes criminosas paralelas de
comercializao (trfico), associando seu consumo com estratos so-
ciais definidos, e caracterizando determinados tipos de substncias
a pblicos scio e economicamente demarcados, baseados no
preo, disponibilidade e cultura de consumo da droga (FrAGA,
2007).
Considerando-se apenas a maconha, droga mais utilizada
no Brasil e no mundo, sua demonizao e represso, iniciadas nas
dcadas de 1920 e 1930, provocou o rpido recrudescimento do
aparato policial necessrio para seu combate, mas popularizou-a
entre grupos de contestao e contracultura durante a ditadura mi-
litar (CArLINI, 2006a; trad, 2009). Com a criao de pblicos seg-
mentados para o consumo de determinadas substncias,
dependentes de sua disponibilidade no mercado (lcito e ilcito) e
do poder aquisitivo de seus usurios, criaram-se culturas da droga,
contextos sociais fontes de identificao e pertencimento de seus
consumidores, mas tambm alvo de estigmas sociais e representa-
es sociais negativas (WHItE, 1996). Essas culturas da droga, por
sua vez, condicionaram hbitos de consumo e estratgias de prote-
o contra os riscos de utilizao da substncia, baseadas em um
conjunto de cuidados e comportamentos compartilhados pelo
grupo (rIBEIrO; SANCHEz; NAPPO, 2010). Contudo, a difu-
so e popularizao crescente de algumas drogas, como o crack,
inicialmente consumido por uma populao socialmente mar-
ginalizada (e por muito tempo considerado, por esse motivo, uma
droga de gueto); ou seja, substncias consideradas baratas e de

310
Avaliao das condies sociais do usurio de drogas: limitaes, potencialidades, interesses e expectativas...

rpido efeito, tm ampliado as condies de consumo e populao


consumidora, pluralizando os contextos sociais de sua utilizao.
tal fato acabou exigindo do Estado novas formas de pensar a de-
pendncia qumica, dissociando-a da condio de criminalidade e
propondo polticas pblicas que abarcassem sua preveno nos
muitos ambientes em que consumida, ao mesmo tempo promo-
vendo tratamentos baseados em um modelo de ateno construdo
em rede, interdisciplinar e intersetorial (ALVES, 2009; MA-
CHADO, MIrANDA, 2007). O resultado dessa complexificao
dos ambientes e populao consumidora, portanto, significou
novos desafios a qualquer programa de preveno e tratamento da
drogadio.

Consumo de substncias e condies sociais determinantes

Inseridas na discusso sobre os contextos Vulnerabilidade Social:


situaes de marginalizao
plurais da drogadio, encontram-se as condies de socioeconmica, com o desfa-
vorecimento e precariedade
vulnerabilidade social, que possuem um papel impor- nas condies de participao
tante no consumo de substncias no Brasil. Por condi- poltica, acesso ao mercado
de consumo e acesso a bens e
es de vulnerabilidade social, compreendem-se, servios sociais e de sade,
criando condies de maior
principalmente, situaes de marginalizao socioeco- risco e excluso sociais.
nmica, com o desfavorecimento e precariedade nas
condies de participao poltica, acesso ao mercado
de consumo e acesso a bens e servios sociais e de
sade, criando condies de maior risco e excluso so-
cial. Esto includos nesta categoria moradores de rua,
indivduos em condio de pobreza ou pobreza ex-
trema, sem acesso a condies sanitrias adequadas,
mas tambm portadores de HIV com pouco ou ne-
nhum acesso a tratamento, jovens em conflito com a
lei, crianas em situao de rua, dentre outros (PAIVA,
2007; PAULILO, JEOLS, 2000; PAULILO et al., 2001;

311
Manual de abordagem de dependncias qumicas

PErEIrA; SUDBrACK, 2008; DUAILIBI; rIBEIrO; LA-


rANJEIrA, 2008). Neste sentido, condies socioeconmicas
cumprem papel importante na compreenso do perfil dos usu-
rios de crack e outras drogas.
No caso especfico do crack, condies como pobreza,
desemprego, baixa escolaridade e ausncia de vnculos familiares
seguros, sugerem ser determinantes importantes para o consumo.
Em estudos sobre a cultura do crack em So Paulo, o uso da
substncia, prprio desse perfil sociodemogrfico, foi caracterizado
como, predominantemente, compulsivo e com alarmante taxa de
poliuso, notadamente o lcool, maconha e cocana, consumidos na
tentativa de diminuir os efeitos negativos do crack (combinao
com substncias depressoras como a maconha ou lcool) ou inten-
sificar os efeitos positivos (combinao com a cocana) (NAPPO;
OLIVEIrA, 2008; FILHO et al., 2003). resultados semelhantes
foram encontrados em pesquisa no rio de Janeiro, onde tambm
predominam as condies de baixa escolaridade e desemprego no
perfil sociodemogrfico do usurio de crack (VArGENS; CrUz,
SANtOS, 2011).
Ainda no contexto do uso dessa substncia, encontra-se
em aberto a discusso sobre os fatores sociais predisponentes ao
seu consumo. Em algumas pesquisas, a influncia de parentes usu-
rios de psicotrpicos (notadamente o lcool e o cigarro), especial-
mente durante o incio da adolescncia (10-13 anos de idade), a
relao com amigos que j consomem substncias e o ambiente de
transgresso que cerca seu uso so variveis comuns surgidas da in-
vestigao dos motivos do primeiro uso de substncias, que so,
em sua maioria, o cigarro, o lcool e a maconha, rapidamente esca-
lonados para o consumo do crack (SANCHEz; NAPPO, 2002;
SANDrA; HENrIQUES JNIOr; ANDrADE, 1996). Neste
sentido, importante considerar que quanto mais precoce o uso,
mais grave a intensidade do consumo adulto, e mais compulsivos
os hbitos de uso, pior a adeso ao tratamento e pior o prognstico

312
Avaliao das condies sociais do usurio de drogas: limitaes, potencialidades, interesses e expectativas...

e recuperao (DUAILIBI, rIBEIrO, LArANJEIrA, 2008;


KANDEL, yAMAGUCHI, CHEN, 1992; MArQUES, CrUz,
2000; PEIXOtO et al., 2010). O consumo de crack, contudo, no
significa uma percepo distorcida de seus riscos e danos sade
ao contrrio, a quase totalidade dos dependentes qumicos do crack
tem conscincia de seus perigos, mas o prazer obtido pela substn-
cia, a influncia social e presso do grupo (especialmente no caso
de adolescentes), o escapismo proporcionado pela substncia e de-
mais fatores biolgicos e psicolgicos envolvidos em sua utilizao
so mais influentes e decisivos na disposio de continuar utilizando
a droga (CArLINI, 2006b; trad, 2009; WHItE, 1996).

Contexto social e famlia

Ampliando a discusso para os fatores socioeconmicos,


que contextualizam o consumo de drogas e condies de vulnera-
bilidade social, importante considerar tambm a relao da famlia
no processo de drogadio e recuperao. No caso da populao
adulta, a conjuno do estado civil solteiro, a baixa escolaridade e
baixa condio socioeconmica surgem com frequncia nas esta-
tsticas de consumo de substncias ilcitas (NAPPO, OLIVEIrA,
2008; FILHO et al., 2003, VArGENS, CrUz, SANtOS, 2011),
sendo a presena ou ausncia da famlia um importante dado qua-
litativo para a compreenso da relao entre esse sujeito e a droga.
A famlia aqui compreendida como um sistema dinmico de re-
laes, em que o afeto assume posio de destaque, visto que so
os laos de intimidade e cumplicidade os responsveis por agregar
os indivduos de uma mesma famlia (SILVEIrA, SILVA, 2013).
So, inclusive, as foras e dinmicas dessa rede intrafamiliar que
permitiriam ao indivduo lidar e se proteger de foras externas (in-
terfamiliares), considerando-se a existncia de presses de grupos
sociais na deciso de um indivduo em experimentar ou persistir no

313
Manual de abordagem de dependncias qumicas

uso de determinada substncia (WHItE, 1996; SANCHEz,


NAPO, 2002). A influncia da famlia, ou seja, sua presena ou au-
sncia na vida do indivduo propicia fatores de risco ou proteo
ao consumo de substncias.
Dentre os fatores de risco, destacam-se a ausncia de vn-
culos familiares positivos; a ausncia de valores morais e hbitos
saudveis; o exemplo pelo consumo de substncias (mesmo as lci-
tas, como lcool ou cigarro) de parentes; e a permissividade em re-
lao ao uso de substncias e comportamentos de transgresso.
Dentre os fatores de proteo, sobressai a promoo de autonomia
e independncia dos indivduos mais jovens da famlia; laos fami-
liares afetivos e positivos, sem descuidar de medidas disciplinares
claras e efetivas; e o dilogo aberto e compreensivo entre seus in-
tegrantes (SILVEIrA, SILVA, 2013; SILVA, 2011).

O contexto social do consumo de


substncias entre crianas e adolescentes

No caso da criana e do adolescente, a famlia assume im-


portncia fundamental na compreenso da relao que eles estabe-
lecem entre si, o mundo e a droga. No mbito do consumo de
drogas entre crianas e adolescentes, verificou-se um incio muito
precoce do consumo do lcool (incio entre os doze anos), crack
(incio entre os treze anos) e maconha (incio entre os treze anos)
dados do Brasil. Apenas na regio Sudeste, o uso dessas substn-
cias entre estudantes do ensino fundamental e mdio, foi de 68,7%,
0,8% e 6,6%, respectivamente (GALDUrz, 2004). A gravidade
do consumo dessas substncias no organismo da criana e do ado-
lescente, ainda em desenvolvimento, implica na importncia de se
conhecer os contextos de seu uso e de que forma o ambiente social
que as cercam contribuem para o aumento do risco, para o uso ou
sua proteo. Para alm do aspecto biolgico da droga, as variveis

314
Avaliao das condies sociais do usurio de drogas: limitaes, potencialidades, interesses e expectativas...

sociais que cercam a criana e o adolescente precisam ser conheci-


das para a construo de propostas de interveno e, principal-
mente, reinsero social, considerando que os ambientes
pauperizados e de pouca perspectiva de crescimento pessoal, edu-
cao, emprego na vida adulta, proteo de direitos bsicos e acesso
a bens e servios de sade contribuem para a experimentao e uso
da droga, dificultando a proposta de um tratamento ou interveno
(trAVErSO-yPEz, PINHEIrO, 2002). Ou seja, as ms con-
dies de infraestrutura e de vulnerabilidade social, a que certas
crianas e adolescentes esto expostas, contribuem para aumentar
o risco do contato com a droga (SAPIENzA, PEDrOMNICO,
2005). Quando se considera a situao de rua, o quadro ainda
mais grave: 31% das situaes do primeiro episdio de uso de
uma droga ilegal aconteceu depois da situao de rua, contra
19,1% para aqueles que iniciaram o uso antes, sendo que a maioria
dos casos iniciou-se por curiosidade ou atravs de amigos. A
escola, aqui, tambm oferece dados importantes sobre o contexto
de consumo dessas crianas e adolescentes: a ausncia de vnculo
escolar mostrou-se um fator fortemente associado ao consumo de
drogas em situao de rua, sendo que a diferena do consumo de
drogas (uso no ms e uso dirio) entre aqueles frequentando a
escola (42,1%) e aqueles que no a frequentam (83,8%) ou nunca
frequentaram (81,7%) de pra-ticamente o dobro. A famlia, por
sua vez, ocupa um papel central sobre a situao de consumo de
substncias por crianas e adolescentes em situao de rua, sendo
que, dentre aqueles que moravam com a famlia, apenas 19,7%
utilizavam drogas diariamente, contra 72,6% dos que no
moravam com suas famlias (NOtO et al., 2003). Esses dados
sugerem orientaes importantes sobre a construo de
programas de preveno com crianas e adolescentes em situao
de rua, indicando o papel tanto da escola quanto da famlia para a
preveno do consumo de substncias.
Uma hiptese plausvel a de que tanto a escola quanto a
famlia podem ser fatores de proteo do contato com as drogas,
315
Manual de abordagem de dependncias qumicas

desde que construdas como um ambiente saudvel, que promova


a resilincia desta populao aos riscos do consumo de substncias,
auxiliando na construo de um indivduo menos vulnervel ao
risco social presente em determinados ambientes (SAPIENzA,
PEDrOMNICO, 2005; DELLAGLIO, SANtOS, 2011). Os va-
lores que atravessam a constituio familiar e, na medida em que
oferece um espao de trocas sociais, tambm a escola, propiciam
criana e ao adolescente um conjunto de valores, significados e sen-
tidos que lhes permitem considerar a droga sob um olhar mais cr-
tico, a despeito de influncias extrafamiliares ou presso de grupos
para sua experimentao. Como ncleo dos primeiros aprendizados,
conhecimentos e crenas, tanto a escola quanto a famlia desempe-
nham um papel importante na construo da identidade da criana
e do adolescente, sendo, portanto, corresponsveis (quando no
responsveis diretos, pelo mau exemplo e m influncia) pelo pri-
meiro contato do indivduo com a droga e seu uso contnuo
(MAFtUM, 2008; PAIVA, rONzANI, 2009).

Consumo de substncias e violncia urbana

Dentre as condies sociais que cercam o consumo de


psicotrpicos, a violncia, tanto domstica quanto urbana, surge
como varivel importante para se conhecer os desafios todo pro-
jeto de poltica pblica, em que o contexto social da cidade con-
siderado o mbito pblico e poltico da vida do indivduo por
excelncia posto em evidncia. O problema, contudo, est para
alm da violncia empreendida pelo trfico, mas envolve tambm
a relao entre o usurio e a rede de relaes construdas pelo tr-
fico, bem como o comrcio, cada vez mais descentralizado de pro-
duo, venda e consumo da droga. Nessa condio de mercado da
droga, o crack surge como figura de destaque, na medida em que
potencializa os lucros (principalmente pela quantidade, isto , vo-

316
Avaliao das condies sociais do usurio de drogas: limitaes, potencialidades, interesses e expectativas...

lume de venda, do que pela qualidade ou preo da droga) e recru-


desce os conflitos entre traficantes, chefes de boca, usurios e po-
lcia, instaurando o que se convencionou chamar de guerra do
trfico (SAPOrI, SENA, 2012).
Neste sentido, o risco da violncia associada ao uso de
drogas pode ser compreendido por aspectos distintos: pela violn-
cia do trfico, vinculado frequncia do usurio de ambientes ur-
banos onde a violncia uma forma de exercer poder e manter a
ordem; pela violncia proveniente de indivduos sob o efeito de en-
torpecentes; e pelas muitas formas de violncia, algumas mais sutis
do que outras, perpetuadas pelo usurio e por aqueles mais prxi-
mos que o cercam a violncia intrafamiliar, autoinfligida ou per-
mitida como recurso para compra da droga, como o caso da
violncia sexual fonte da prostituio para financiar a adio (SIL-
VEIrA et al., 2013a).
No caso da violncia perpetuada pelo usurio, a investi-
gao de seu nexo causal, isto , de que forma a violncia cons-
truda no contexto social desses indivduos e quais so seus
provocadores mostra uma rede complexa em que esto envolvi-
das: a) a fissura pela droga (e a angstia e ansiedade provocadas por
ela), b) as mudanas comportamentais causadas pela substncia, e
c) a violncia causada por outrem (familiares, amigos, polcia, pro-
fissionais de sade, etc), fsica ou psicolgica, decorrentes de uma
viso moralista e estigmatizante do usurio (MINAyO, DESLAN-
DES, 1998). Assim colocado porque a concepo moralista da adi-
o ainda uma realidade entre a populao brasileira, tanto entre
o meio leigo (PELUSO, BLAy, 2008) quanto no meio acadmico
(MARTINS et al, 2010), e que acaba por atribuir uma causalidade
moral para a doena do indivduo adjetivos como drogado,
vaga-bundo, malandro, etc, fazem parte de uma concepo
estereo-tipada da dependncia qumica, ligada falha de carter ou
falta de fora de vontade. Os resultados desse fenmeno de
estigmatizao ou seja, o preconceito, por um lado, e a discrimi-

317
Manual de abordagem de dependncias qumicas

nao, por outro, especialmente entre profissionais de sade,


implicam em barreiras: a) para a preveno, no sentido de obstruir
a percepo sobre os reais causadores da drogadio, b) para o
tratamento, j que significam uma escuta enviesada do sujeito e
repleta de preconcepes sem fundamento clnico, e c) para a
promoo de uma tica de ateno integral, que considera os
processos sociais como participantes tanto na causalidade da
doena quanto na promoo da sade (SILVEIrA et al., 2013b).

Perspectivas de reinsero social

Considerando-se as mltiplas condies sociais que cer-


cam o usurio de drogas no Brasil, que direes podem ser tomadas
a partir delas, tendo em vista a reinsero social do indivduo? Antes
de mais nada, preciso considerar a necessidade de se melhorar as
condies socioeconmicas que fomentam e contribuem para o
consumo de substncias. O perfil sociodemogrfico dos usurios
de crack e outras drogas indicam uma relao ntima entre condi-
es de vulnerabilidade social: situao de rua, pobreza, baixa es-
colaridade, laos familiares inexistentes ou rompidos, vtimas de
violncia e infrao de direitos. Ainda que o consumo de substn-
cias exista em todos os estratos sociais, so nessas condies sociais
pauperizadas que ele tem um impacto maior nas polticas de sade
pblica. O indivduo privado de direitos bsicos, excludo social-
mente, deve ser o alvo primeiro das polticas de sade sobre drogas.
A reinsero social, neste sentido, implica no reestabelecimento das
relaes sociais positivas do sujeito, reconstruindo as perdas cau-
sadas pela droga e resgatando a noo de cidadania do usurio. Para
tanto, melhorar as condies socioeconmicas de contextos de po-
breza e violncia um importante passo para produzir a reinsero
social dos usurios de drogas presentes nesta populao, preferen-
cialmente atravs da criao de uma legislao robusta e que abar-

318
Avaliao das condies sociais do usurio de drogas: limitaes, potencialidades, interesses e expectativas...

que de forma efetiva os diferentes contextos sociais de proliferao


do consumo de substncias, buscando eliminar os focos de desi-
gualdade social (MOrEttI-PIrES, CArrIErI, CArrIErI,
2008).
Por esses motivos, a reinsero social do usurio um pro-
cesso longo e gradativo, que envolve a articulao dos poderes p-
blicos com a famlia e sua (re) organizao para existir como um
fator de proteo. Igualmente, envolve a articulao com a escola,
no caso de crianas e adolescentes, a sociedade e servios pblicos
de sade. Em relao a esse ltimo, faz-se necessria a contnua am-
pliao e sofisticao da rede de tratamento, aumentando seu es-
copo e ofertas de cuidado, permitindo um trabalho cada vez mais
individualizado e atento s particularidades de cada indivduo em
seu contexto social mais amplo. Finalmente, no que se refere aos
profissionais de sade que trabalham com a dependncia qumica,
de suma importncia sua permanente capacitao para o trabalho.
Nesse ponto, ainda h um longo caminho a se seguir, j que nem
sempre os profissionais que trabalham na rede de ateno sade
esto preparados para abandonar certos modelos tradicionais de
cuidados baseados no biologicismo normalizador (MOrAES, 2008;
PINHO et al., 2009). Considerar as condies sociais do usurio de
drogas, portanto, significa considerar o sujeito de seu cuidado um
indivduo atravessado por uma histria, inserido em um meio social
que contribui para sua sade ou seu adoecimento. Somente a partir
dessa compreenso, orientada por uma tica de ateno integral,
possvel transformar positivamente sua realidade social.

319
Manual de abordagem de dependncias qumicas

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323
Captulo 22

Reinsero social em usurios de drogas:


conceito, princpios, estratgias e aplicaes
Alessandra F. A. Assumpo
Ana Ceclia Alves Cardoso
Monaliza ngela Rocha
Smara Araceli Faria Arajo
Frederico Garcia

Introduo

A reabilitao psicossocial um processo formado Reabilitao Psicossocial:


processo composto por ativi-
por um conjunto de atividades capazes de maximizar as dades capazes de maximizar as
oportunidade de recuperaoo
oportunidades de recuperao de indivduos e minimizar de indivduos e minimizar os
os efeitos desabilitadores da cronificao das doenas, efeitos desbilitadores da
cronificao das doenas.
por meio do desenvolvimento de insumos individuais, fa-
miliares e comunitrios conforme a Organizao Mundial
de Sade (OMS, 2001). Assim estabelecida, a reabilitao
psicossocial torna-se uma condio imprescindvel para
que o tratamento de dependentes qumicos se d de
forma efetiva. O conceito estabelecido pela OMS um
parmetro importante por ter alcance e abrangncia mun-
diais, uma vez que no existe um consenso em relao
caracterizao desse termo.
importante ressaltar que todo o tratamento dispen-
sado ao dependente qumico, alm de concomitante ao pro-
Manual de abordagem de dependncias qumicas

cesso de reabilitao psicossocial, deve ser acompanhado de


psicoterapia realizada por profissionais especializados e apoiado
pela farmacoterapia, conforme necessidade individual de cada
paciente.
Por meio desse texto, buscamos abordar algumas formas
de aplicao dos conceitos existentes em reabilitao psicossocial
no tratamento dos dependentes qumicos, assim como no auxlio
para os seus familiares.

Objetivos da reabilitao psicossocial

Os objetivos principais da reabilitao psicossocial, se-


gundo a OMS (2001) e o Department of Health (England) and the de-
volved administrations (2007), so:

npromover o empoderamento dos dependentes qumicos;


nprevenir e combater o estigma e a discriminao;
ndesenvolver competncias pessoais e sociais dos dependentes;
ncriar um sistema de suporte integrado e continuado;
nrever regularmente os planos e objetivos do tratamento com o paciente;
nprover aconselhamento e informao a respeito do uso indevido de
drogas;
nrealizar intervenes no sentido de reduzir os danos relacionados ao
uso de drogas;
nprevenir recadas;
najudar na resoluo de problemas sociais, como problemas familiares,
habitacionais e empregatcios.

Uma caracterstica importante da reabilitao psicossocial


que ela pode ser desenvolvida nos mais diversos mbitos em que
os dependentes qumicos vulnerveis ou com algum tipo de com-
prometimento estejam inseridos, tais como na sua famlia, na co-
munidade e/ou nos diversos servios que o dependente frequenta
(BACHrACH, 1992).

326
Reinsero social em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

Como a reabilitao psicossocial do paciente com


dependecia qumica objetiva, a sua integrao sociedade, faz-se
necessrio tambm o preparo da prpria comunidade a que ele
pertena, de forma que seja recebido sem discriminaes e reta-
liaes. desejvel que se crie um ambiente favorvel e livre de
hostilidades para que ele possa desempenhar seu papel na
sociedade de maneira independente (BErtOLOtE, 2001). Isso
se d por meio da valorizao das caractersticas positivas do
paciente com dependencia qumica. Esta valorizao deve ser
acompanhada do apoio de toda uma estrutura psicossocial de
longa durao, desenvolvida com o intuito de que a reinsero se
estabelea de maneira slida e dura-doura (SArACENO, 2006).
A reabilitao psicossocial deve ser desenvolvida para a
atingir os paceintes dependentes qumicos de maneira bastante
particular. Deve-se considerar que cada paciente apresenta-se em
determinada situao especfica e tem suas prprias peculiaridades.

Profissionais atuantes na rea

No h um consenso a respeito de qual profisso seria


mais adequada para a realizao da reabilitao psicossocial. Ber-
tolote (2001), afirma que ainda no existe definio de profisses
nem habilidades profissionais ou sociais que abordem a
reabilitao psicossocial. O exerccio da reabilitao composto
por prticas fragmentadas efetuadas por diferentes profissionais,
construindo assim um processo complexo e multifacetado.
A literatura registra como profisses mais comuns na atua-
o em aes de reabilitao psicossocial, psiquiatras, psiclogos,
enfermeiros, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais (JOrGE
et al, 2006; VILArES, 1999; BONADIO, 2010; MANOEL et al.,
2010). Saraceno (1996) prope que a reabilitao psicossocial en-
volva todos os profissionais e atores envolvidos no processo de

327
Manual de abordagem de dependncias qumicas

sade-doena: no s a equipe de sade, como os seus usurios e


toda a comunidade.
Para um processo de reabilitao psicossocial ser efetivo,
imprescindvel a presena de pessoas treinadas que estejam
prontas a auxiliar a pessoa em recuperao a acreditar na sua real
possibilidade de mudana e melhora, nos momentos em que ela
venha a perder a confiana no processo e em si mesma
(ANtHONy, 1993). Percebe-se, assim, o valor do apoio familiar
e dos cnjuges, ao longo de todo o processo, uma vez que ele
longo, contnuo e no linear (GAGNE et al., 2007).

A prtica da reabilitao psicossocial

Vrios princpios norteiam e auxiliam a prtica da reabili-


tao psicossocial, embora no exista um consenso em torno de
sua padronizao. tal peculiaridade deve-se ao fato de que os pro-
jetos teraputicos e os programas de reabilitao propostos so de-
senvolvidos para serem aplicados a diferentes indivduos, caso a
caso. Sendo assim, deve sempre ser elaborada uma proposta con-
dizente com as particularidades do dependente qumico e do meio
em que ele se encontra. ressalta-se novamente que desejvel que
todo o processo seja realizado por uma equipe multiprofissional,
de modo que a interveno seja feita da maneira mais completa e
eficiente possvel (SArACENO, 2006).
Normalmente, o processo inicia-se com uma abordagem
voltada ao indivduo, na qual deve ser realizada uma detalhada
anamnese, seguida por exames clnicos apropriados. imprescin-
dvel que nesse momento o profissional no se restrinja ao enfoque
biolgico e patolgico da condio do dependente qumico. Deve-
se iniciar, ento, uma avaliao psicossocial sistemtica e abrangente,
na qual possa ser estabelecida uma relao das condies fsicas
com toda a histria de vida do indivduo, bem como com suas ca-

328
Reinsero social em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

ractersticas pessoais e com o meio onde vive. Essas informaes


sero de fundamental importncia para a construo de um plano
teraputico individual a ser estabelecido e seguido.
Uma estratgia relevante durante toda a abordagem a
tentativa de resgatar a auto-estima do paciente com dependecia
qumica, j que normalmente, neste momento, ele sente-se
desvalorizado e inferiorizado devido posio em que se encontra
diante da sociedade (Anthony, 1993). Priorizar os pontos fortes e
positivos do paciente que est em sofrimento psquico
importante para que ele consiga ver-se novamente como algum
capacitado e til comunidade. Isto diminui seu sentimento de
desvalorizao, que muitas vezes reflexo da forma como ele
passa a ser tratado pelas outras pessoas de maneira geral.
A avaliao inicial do paciente pode ainda utilizar
questionrios padronizados, que so importantes ferramentas usa-
das com o intuito de estimar, de forma mais precisa, o grau de com-
prometimento do indivduo (BONADIO, 2010). A partir do
somatrio dessas informaes pode-se determinar qual o melhor
plano teraputico a ser seguido.
Dentre os questionrios utilizados encontra-se a UrICA
(University of Rhode Island Change Assesment), que foi formulado para
a aplicao em usurios de substncias ilcitas, tais como maconha,
cocana, crack e solventes, com o objetivo de avaliar o aspecto mo-
tivacional de mudana comportamental do indivduo. Outro ques-
tionrio bastante til nessa abordagem o SF-36 (Medical Outcomes
Study36 Item short Form Health Survey) que visa uma avaliao
geral da qualidade de vida do paciente. possvel ainda a aplicao
do ASI-6 (Addiction Severity Index), uma escala de gravidade e de in-
tensidade da dependncia qumica, que consiste em uma entrevista
semiestruturada desenvolvida pelo Center for Studies of Addiction da
Filadlfia, EUA, e que entendida como a avaliao do grau de
complicaes decorrentes do abuso e da dependncia de drogas.
Avalia, ainda, os efeitos do uso dessas substncias na ocupao, nas

329
Manual de abordagem de dependncias qumicas

relaes sociais e na sade do indivduo. Constitui um instrumento


clnico padronizado, de alta confiabilidade e sensibilidade, no exame
do perfil do dependente qumico e da severidade de seus problemas
em diferentes contextos.
Seguindo a avaliao inicial, uma ampla gama de recursos
pode ser utilizada nas prticas de reabilitao, como elementos me-
diadores desse processo: psicoeducao, reabilitao vocacional,
grupos operativos, oficinas teraputicas, atendimento familiar e su-
porte social (OMS, 2001; BONADIO, 2010). As intervenes ar-
tsticas tambm constituem uma estratgia teraputica usada na
reabilitao de dependentes qumicos (VALENtE, 2005). tais re-
cursos esto dispostos a seguir, na Tabela 1.

Tabela 1
Estratgias e tcnicas utilizadas na prtica da reabilitao
psicossocial para dependentes qumicos
TCNICA DESCRIO

Psicoeducao Interveno em que o paciente recebe informaes sobre a etiologia do seu diagnstico,
como funciona, as possibilidades de tratamento, o prognstico, dentre outras (COLOM, 2004);
Visa tornar o dependente qumico um colaborador ativo, aliado dos profissionais de sade
(JUSTO & CALIL, 2004);
Instrumentos: esclarecimentos, folders educativos, livros com linguagem acessvel a leigos,
filmes, etc;
Busca-se a auto-identificao de pensamentos e comportamentos disfuncionais e/ou
distorcidos que gerem sofrimento e aflio e o conhecimento das consequncias e fatores
desencadeantes e mantenedores dos problemas (FIGUEIREDO, 2009).

Reabilitao vocacional Processo destinado a auxiliar o dependente qumico a retomar e manter uma atividade
produtiva, segundo suas possibilidades (MOWBRAY et al, 1997);
Trabalha-se em torno da postura de prontido para o trabalho, da empregabilidade
(capacidade de funcionamento adequado da pessoa frente a uma situao de trabalho) e da
superao de barreiras ao trabalho (baixo nvel de escolaridade, poucas oportunidades locais
de emprego, estigma dos empregadores);
Objetiva-se o desenvolvimento e aperfeioamento educacional e pessoal, treinamento de
habilidades voltadas para o retorno ao mercado de trabalho elaborao de currculos,
preparao para entrevistas e pesquisa de vagas disponveis (BONADIO, 2010).

Grupos operativos Tcnica de trabalho em grupo que propicia um aprendizado aos participantes por meiode uma
leitura crtica da realidade, com postura de investigao, com abertura para dvidas e inquietaes;
Os participantes assumem diferentes papis e posies diante das tarefas propostas,
contando com a presena de um:
a) coordenador - que faz intervenes, indagaes, problematizaes, estabelece articulaes entre
as falas dos participantes e direciona o grupo para a realizao das tarefas;

330
Reinsero social em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

TCNICA DESCRIO

Grupos operativos b) observador - registra o que ocorreu no encontro, faz o resgate da histria do grupo e, posterior-
mente, analisa os pontos emergentes, a movimentao do grupo em torno das tarefas e os papis
assumidos pelos participantes (Bastos, 2010).

Oficinas teraputicas Realizao de atividades em grupo que proporcionam aos participantes a expresso de sentimen-
tos e problemas, a realizao de atividades produtivas e a prtica da cidadania;
So promotoras da socializao e da insero social;
Destacam-se as oficinas expressivas (expresso plstica, corporal, verbal e musical)
e as oficinas de atividades geradoras de renda (MINISTRIO DA SADE - BRASIL, 2004).

Arte terapia O uso da arte como terapia consiste na elaborao de material artstico sem preocupao es-
ttica, mas com a finalidade de expressar sentimentos, com carter catrtico;
Possibilita que o indivduo se reorganize internamente, atravs do carter regenerador da arte;
Pode ser manifestada sob a forma de pintura, msica, teatro, dentre outras (VALENTE, 2005).

Atendimento familiar Devido s dificuldades e imposies requeridas para cuidar do familiar, faz-se necessria
disponibilizao de apoio e orientao aos familiares do dependente qumico;
Terapia familiar e visitas domiciliares (observao do relacionamento familiar e
identificao de membros chaves no processo de reabilitao) so algumas das
estratgias utilizadas (JORGE et al, 2006).

Suporte social A rede social o conjunto de vnculos e intercmbios interpessoais do dependente qumico,
cujo reconhecimento permite o planejamento de intervenes a serem realizadas at mesmo
por ele prprio, com o objetivo de ativ-las, desativ-las ou mobiliz-las para fazer conexes
que norteiem novas possibilidades (BONADIO, 2010);
A rede se compe de pessoas que o cercam, tais como a famlia, vizinhos, colegas de trabalho,
profissionais de sade, pessoas da comunidade, etc (SOUZA et al, 2006);
As redes sociais influenciam a auto-imagem do indivduo e so fundamentais na sua
percepo de identidade e competncia (CAVALCANTE et al, 2012).

A famlia

A famlia tem um papel essencial, espera-se que ela se


estabelea como um local de proteo, suporte, acolhimento,
desenvolvimento pessoal e interao entre o indivduo e o meio
que o cerca, podendo proporcionar-lhe uma melhor qualidade de
vida (ANIS, 2009). Deve-se estimular a participao efetiva da
famlia, estabelecendo, assim, estratgias de interveno mais
amplas, que podem ser abordadas e trabalhadas as demandas
tanto dos familiares quanto dos indivduos em processo de rea-
bilitao (BIELEMANN et al., 2009; LIND,1997).
O entorno familiar precisa ser envolvido no tratamento
para que fornea o suporte requerido ao paciente com
dependencia qumica.
331
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Alm disso, a manuteno de uma rede social de apoio dentro da


comunidade pode minimizar sentimentos de excluso gerados pelo
preconceito, discriminao e estigmatizao (MAGLIANO et al.,
2002; MAGLIANO et al., 2006, ANIS, 2009, tHOItS, 1995). A
rede social pode tambm agir na facilitao do processo de adapta-
o da famlia s dificuldades e imposies requeridas para cuidar
do familiar que dependente qumico (ANIS, 2009).

Sntese dos principais tpicos em reabilitao psicossocia

Na Tabela 2 esto sintetizados os principais tpicos refe-


rentes reabilitao psicossocial: definio, objetivo geral, onde rea-
lizar, como realizar, profissionais atuantes no processo e estratgias
de prtica.

Tabela 2
Sntese dos principais tpicos em reabilitao psicossocial
Definio Processo formado por um conjunto de atividades capazes de maximizar as
oportunidades de recuperao de indivduos e minimizar os efeitos desabilitadores
da cronificao das doenas, por meio do desenvolvimento de insumos individuais,
familiares e comunitrios.
Objetivo geral Oferecer aos indivduos a oportunidade de alcanar timo nvel de funcionamento
na comunidade.
Onde realizar Deve ser desenvolvida nos diversos mbitos em que os dependentes qumicos
vulnerveis ou com algum tipo de comprometimento estejam inseridos, tais
como a famlia, a comunidade e os servios sociais, no geral.
Quando realizar Ocorre concomitantemente psicoterapia e farmacoterapia.
Profissionais atuantes Sugere-se uma equipe multidisciplinar
no processo
Prtica Elaborao de um plano teraputico individual, composto de avaliao inicial
e uso de diversas estratgias teraputicas (ver tabela 1)

332
Reinsero social em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

Consideraes finais

A partir do exposto, observa-se que a reabilitao psicos-


social deve ser feita ao longo de todo o tratamento do paciente
com dependencia qumica. A reabilitao no deve ser vista
apenas como uma ferramenta complementar ao processo de
tratamento, mas como parte integrante do tratamento. Ela deve
ocorrer, simultaneamente, psicoterapia e farmacoterapia, visto
que as doenas mentais crnicas, como a dependncia qumica,
necessitam de uma abordagem teraputica abrangente.
No existe consenso em torno da padronizao da
prtica da reabilitao psicossocial, uma vez que o plano
teraputico ela-borada de forma individual, de acordo com as
particularidades de cada dependente qumico. O processo comea
por uma avaliao inicial, por meio de anamnese detalhada,
exames clnicos e utilizao de escalas. Ele segue com a
possibilidade de se utilizar diversas estratgias teraputicas, dentre
as quais psicoeducao, reabilitao vocacional, grupos operativos,
oficinas teraputicas, atendimento familiar, suporte social e arte
terapia. Conta-se ainda com as instituies governamentais e da
sociedade civil que podem atuar nesse processo.
Conclui-se que a definio, os conceitos e as estratgias
do processo de reabilitao psicossocial no esto completamente
consolidados, o que o torna um campo de novas prticas e um alvo
promissor de pesquisa.

333
Manual de abordagem de dependncias qumicas

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336
Captulo 23

Gerenciamento de casos em usurios de drogas:


conceito, princpios, estratgias e aplicaes
Alessandra F. Almeida Assumpo
Mara Glria de Freitas Cardoso
Andr Augusto Corra de Freitas
Frederico Garcia

Introduo

O gerenciamento de caso se consolidou nos Estados Uni-


dos na dcada de 1990. Em um contexto de fortalecimento de prin-
cpios neoliberais, relacionados competitividade, eficincia na
produtividade e reduo de custos, alguns reflexos importantes
puderam ser observados no sistema de sade, tais como: fragmen-
tao de servios, mudanas nas polticas de cobertura e de reem-
bolso, dentre outras. O gerenciamento de caso, nessa conjuntura
poltico-econmica, uma alternativa para a prestao de servios
de sade. Decorrem diretamente dessas mudanas poltico-
econmicas duas das principais caractersticas do gerenciamento
de caso: a oferta de servios de ateno sade dentro de uma
rede multiprofissional e a nfase na reduo de gastos (CA-
SArIN, 2003; GONzALES, 2003; MArSHALL, 1995).
A estrutura do gerenciamento de caso envolve o trabalho
de uma organizao de sade com uma rede multidisciplinar de
profissionais, dentre os quais um profissional escolhido para ser
Manual de abordagem de dependncias qumicas

o gerente de caso (GONzALES, 2003), isto : um profissional se


torna a referncia de um determinado paciente, tanto para a equipe
multidisciplinar que o acompanha quanto para o paciente em ques-
to. O gerente de caso responsvel por acompanhar todo o pro-
cesso de tratamento do paciente, determinando as necessidades do
mesmo, avaliando a disponibilidade de recursos, se atentando para
o bom uso desses e coordenando a integrao do tratamento dentre
os diversos componentes da rede de ateno. Alm disso, o geren-
ciamento de caso permite uma ateno individualizada sade do
paciente e de suas necessidades, o que torna a assistncia mais pr-
xima e mais acessvel, proporcionando maior aderncia e continui-
dade ao tratamento. Alguns estudos como os de McLellan (1999),
Schwartz (1997) e rosen & teeson (2001) apontam a contribuio
do gerenciamento de caso no aumento da aderncia e da eficcia
do tratamento.
O gerenciamento de caso estabelece ligaes entre pacien-
tes e prestadores de servios, tenta obter um atendimento mais
apropriado e com custo efetivo para o paciente (GIrArD, 1994),
facilitando acesso ao cuidado, tanto logstica quanto financeira-
mente. Para que sua implementao seja resolutiva, necessria a
interligao dos sistemas de informao e comunicao, que visam
articular a rede de ateno do dependente qumico, de modo a mi-
nimizar a fragmentao de servios e os gastos desnecessrios,
melhorando simultaneamente a qualidade e a continuidade do
cuidado.
Este captulo tem como objetivo discutir o gerenciamento
de caso no tratamento da dependncia qumica. Para tanto, iremos
abordar as evidncias de efetividade, delinear o papel do gerente de
caso e indicar como esse processo pode ser feito.

338
Gerenciamento de casos em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

Populao Alvo

O gerenciamento de caso tem sido apontado como uma


abordagem efetiva no tratamento de grupos especficos, especial-
mente em populaes afetadas por doenas crnicas ou por co-
morbidades. Para citar alguns exemplos, o gerenciamento de caso
utilizado no tratamento de idosos, dependentes qumicos, pacien-
tes psiquitricos crnicos, pacientes soropositivos, deficientes fsi-
cos e mentais (desenvolvimentais ou adquiridos), populaes de
vulnerabilidade social, dentre outros em suma, populaes que
requerem cuidados extensivos, com grande volume de recursos,
readmisses recorrentes, ou procedimentos complexos (CASArIN,
2003; MArSHALL, 1995; POWELL, 1996; FIGLIE & LArAN-
JEIrA, 2004).
Nestas populaes, apesar de os pacientes terem uma
doena crnica que exige tratamento e cuidados contnuos, devido
ao estado de sade estvel, a internao hospitalar desnecessria
e acarreta um alto custo (BEM FILHO, 2007). Dessa forma, o ge-
renciamento de caso pode prover um acompanhamento adequado
a esses pacientes, com menor custo, promovendo continuidade do
tratamento e consequente melhoria da qualidade de vida do pa-
ciente gerenciado (BEM FILHO, 2007).
Vrios modelos de gerenciamento de caso so observados
na literatura. todavia, nenhum modelo considerado melhor ou
mais efetivo que o outro. Cada modelo ser mais adequado a de-
terminado tipo de populao e sua necessidade de acesso aos
servios. Entretanto, faltam estudos que comprovem quais
modelos so mais efetivos para determinadas populaes (HALL,
2002).

339
Manual de abordagem de dependncias qumicas

O gerente de caso

O trabalho do gerente de caso exercido em diversos am-


bientes. Eles podem ser encontrados em instituies hospitalares
ou comunitrias, no trabalho domiciliar e at mesmo como repre-
sentantes de organizaes de servios de sade, atuando para gerir
os cuidados prestados aos beneficirios dessas organizaes.
Mesmo instituies que no se identificam como adeptas ao geren-
ciamento de caso, acabam adotando algumas prticas preconizadas
por esse mtodo.
Parte da literatura aponta o enfermeiro como profissional
mais adequado para atuao como gerente de caso (GONzALES,
2003; CASArIN, 2001) j que se trata de um profissional com
ampla atuao clnica, tratamento holstico, cuidado bsico,
contato mais constante com o paciente e com sua famlia. Alm
disso, por conhecer os demais servios de sade, ele indicado
para orientar encaminhamentos dentro da rede de ateno ao
dependente qumico. Outros profissionais com forma-o
acadmica como assistente social, psiclogo e terapeuta ocu-
pacional, que possuam esses conhecimentos, tambm so
adequados para ocupar o papel de gerente de caso. Junto for-
mao acadmica, o perfil ideal de um gerente de caso com-
posto por bom conhecimento e experincia em dependncia
qumica, conhecimento das caractersticas da populao local e
da rede de servios, prontido para investigar os diferentes do-
mnios da vida do paciente e compromisso com a filosofia do
servio em que atua (FIGLIE & LArANJEIrA, 2004).
Se por um lado a formao acadmica desejvel, ela no
essencial. Em termos gerais, o gerente de caso deve ter amplo co-
nhecimento na rea da sade e conhecimento especfico do trata-
mento da dependncia qumica. Ele tem de estar integrado equipe
de trabalho, e aos demais servios de sade, devendo ser referncia
no contato do paciente com os demais profissionais, conhecendo

340
Gerenciamento de casos em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

e viabilizando as necessidades do mesmo. Profissionais como agen-


tes comunitrios dos programas de sade da famlia, por exemplo,
podem exercer essa funo, com o treinamento adequado e atuar
no contexto da dependncia qumica. O principal requisito que
esse profissional, independente de formao, manifeste disponibi-
lidade para escutar e auxiliar o paciente, alm de demonstrar sensi-
bilidade e sincronia quanto s necessidades do mesmo.
Seus deveres incluem: a avaliao inicial precisa das neces-
sidades do paciente e a reavaliao delas ao longo do processo de
tratamento; o planejamento individualizado das etapas do trata-
mento, delineando objetivos, pontos fracos a serem trabalhados e
pontos fortes a serem aproveitados; assegurar a qualidade e o custo
efetivo dos servios prestados, planejando e avaliando o uso desses
recursos alm da reelaborao do plano de tratamento e das formas
de ateno, quando necessrio (GONzALES, 2003; FIGLIE &
LArANJEIrA, 2004).
importante ressaltar que o gerenciamento de caso (case
management) diferente do cuidado gerenciado (managed care). Este,
apesar de ter alguns objetivos e prticas em comum ao
gerenciamento de caso (como a qualidade dos servios e a reduo
dos custos) apresenta como objetivo principal, o gerenciamento
financeiro dos recursos de sade, incentivando o uso inteligente
dos recursos, desincentivando prticas caras e desnecessrias e
visando o financiamento e prestao de servios na rea da sade.
No gerenciamento de caso, o foco estabelecer a articulao entre
o paciente e a rede de apoio, visando melhor custo-benefcio no
tratamento para o paciente e para sua famlia (GONZALES, 2003;
BEM FILHO, 2007).

341
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Funes do gerente de caso

A avaliao inicial deve abordar o histrico clnico do pa-


ciente, observando especialmente as consequncias do abuso de
drogas (tanto na sade fsica, quanto no mbito social e psicol-
gico). Deve tambm estar atento para as situaes de uso e possveis
gatilhos individuais que aumentam o risco de uso pelo paciente.
Esse primeiro contato, segundo Figlie & Laranjeira (2004), deve
tambm:

1. Criar a aliana teraputica e estimular o paciente a se empenhar no


tratamento;
2. Compreender o contexto no qual o paciente comeou a usar droga
e no qual a dependncia qumica se instalou;
3. reconhecer os fatores que propiciaram o surgimento da depen-
dncia;
4. Identificar elementos que ajudam a sustentar a dependncia;
5. reconhecer motivaes e fatores para promover a abstinncia;
6. Coletar e examinar dados para estabelecer a hiptese diagnstica.

Especificamente no gerenciamento de caso de dependen-


tes qumicos, Marshman (1978) cita algumas funes do gerente de
caso.

1. Fornecer suporte individualizado aos pacientes e seus familiares:


pode-se prover tal suporte de forma particular ou numa abordagem
conjunta, atravs de terapias em grupo e do estabelecimento de redes
de apoio. Elas permitem ao paciente ter um suporte muitas vezes, ine-
xistente em suas relaes familiares e socioafetivas pela reduo
quantitativa e qualitativa que as caracteriza. Alm de ser uma alterna-
tiva com custo mais efetivo, esse tipo de atividade oferece chances
para a troca de experincias e para apoio mtuo na preveno de re-
cadas, por exemplo.
2. Auxiliar o paciente na soluo de problemas: devido ao compro-
metimento cognitivo (principalmente de funes executivas) e ao au-
mento da impulsividade tpico de dependentes qumicos, o gerente
de caso deve auxiliar o paciente para a tomada de decises conscientes
342
Gerenciamento de casos em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

e ponderadas. Deve-se tomar o cuidado de no influenciar a deciso


do indivduo, mas, ao contrrio, promover uma avaliao criteriosa de
prs e contras, a partir da viso do sujeito.
3. Auxiliar no suporte da famlia e empregabilidade do paciente: o de-
pendente qumico, tanto pelos efeitos diretos quanto indiretos da
droga inicia seu processo de recuperao com dificuldades de intera-
o social, baixa de auto estima e, frequentemente, prejuzos cogniti-
vos. Dependendo do perodo de uso, esses prejuzos se estendem para
as reas tcnicas em que o indivduo atuava profissionalmente; ainda
h casos em que o sujeito inicia o uso na adolescncia ou juventude
e nunca desenvolveu essas habilidades tcnicas e profissionais. A in-
sero no mercado de trabalho dificultada por esses fatores e pelo
estigma social da dependncia qumica. O gerente de caso deve faci-
litar o acesso do paciente a cursos tcnicos (principalmente aqueles
de financiamento pblico), orient-lo na procura de um emprego,
estar atento para possveis vagas em empresas parceiras de sua insti-
tuio de sade, dentro das capacidades e necessidades do indivduo.
A atuao de assistentes sociais valiosa nesse ponto, alm de profis-
sionais que trabalham com orientao profissional.
4. Facilitar o acesso entre o paciente e o tratamento: alm da necessi-
dade de articular o tratamento do paciente, com os profissionais den-
tro da rede de atendimento, recomendvel que o gerente de caso
coloque programas de ajuda mtua dentro de seu alcance. Pode ser
necessrio, inclusive, ajudar o paciente no transporte at esses locais.
5. Facilitar o acesso do paciente interconsultas para tratamentos es-
pecficos em caso de necessidade: o gerente de caso deve, tambm
atuar em relao s demandas de sade geral (clnico-hospitalares) do
indivduo, principalmente aquelas relacionadas s consequncias do
uso da droga. No havendo possibilidades de encaminhamento den-
tro do prprio servio, ele deve ajudar o paciente na obteno de um
encaminhamento para a consulta adequada, preferencialmente com
profissionais j experientes no tratamento desse pblico. Deve haver
comunicao entre o gerente e o profissional, de modo que ele possa
atentar-se a problemas que o gerente de caso identificar como rele-
vantes.
6. Manter-se alerta s mudanas nas necessidades e problemas do pa-
ciente durante o curso do tratamento: a avaliao e reavaliao do pa-
ciente deve ser um processo contnuo, permitindo flexibilidade no
tratamento conforme avanos e retrocessos. O gerente de caso deve
estar sensvel a tais modificaes, de modo a promover a mxima efi-

343
Manual de abordagem de dependncias qumicas

cincia no tratamento.
7. Garantir ao paciente que ele poder ser contatado e encorajado a
retornar ao tratamento em caso de abandono: o gerente deve ser um
articulador entre o paciente e a rede de apoio, de modo que retroces-
sos sejam identificados rapidamente. Caso ocorram recadas, im-
portante que o paciente entenda que ele no o nico a passar por
essa situao e que a equipe do servio de sade, continua disposta a
ajud-lo em sua recuperao.
8. reforar e dar continuidade ao processo de tratamento, em modo
menos intensivo, dando seguimento ao tratamento no sentido de for-
necer suporte na reabilitao psicossocial do paciente na comunidade,
identificando precocemente futuras dificuldades.

Reduo de danos

Na reduo de danos, o objetivo ajudar o paciente a


fazer um uso mais controlado da droga, reduzindo fatores que pos-
sam causar maiores prejuzos aos usurios, como o uso de
seringas contaminadas (que aumenta as chances de contaminao
por HIV ou hepatite). Os gerentes de caso podem usar dessa
estratgia como foi relatado por tiderington (2013), que realizou
uma pesquisa qualitativa sobre o uso da reduo de danos por
gerentes de caso. A abordagem utilizada pelos gerentes inclua
primeiramente criar uma aliana, um vnculo de confiana com o
usurio. A proposta da reduo do uso de substncias somente foi
abordada quando o usurio apresentava abertura para conversar
abertamente sobre o assunto. Na percepo dos gerentes de caso,
o vnculo foi essencial para possibilitar a interveno e oferecer ao
usurio os recursos disponveis na rede para que a reduo do uso
e o tratamento ocorressem (tIDErINGtON, 2013).

344
Gerenciamento de casos em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

Famlia

No gerenciamento de caso, o ideal que o paciente no


seja atendido de forma isolada, mas com participao da famlia,
na qual este indivduo est inserido e com quem geralmente apre-
senta maior convivncia. Em um estudo no qual a famlia foi alvo
de interveno com o paciente, houve diminuio significativa da
severidade do uso de substncias em relao ao grupo que recebeu
interveno focada somente no paciente (SANtIS, 2013). Outro
estudo realizado por reinaldo & Pillon (2008) aponta a importncia
de se trabalhar com a famlia do dependente qumico e no aumento
da aderncia e da eficcia do tratamento.

Efetividade do gerenciamento de caso

A efetividade do gerenciamento de caso alvo de discus-


ses. Por um lado, h anlises que assinalam para resultados no fa-
vorveis do gerenciamento de caso, ao levar a um aumento do
nmero total e do tempo total de internaes em pacientes psiqui-
tricos graves (MArSHALL, 1996; tyrEr, 1995). Ainda assim,
possvel ressaltar que o gerenciamento de caso capaz de aumentar
o sucesso na manuteno de contato com o paciente (tyrEr,
1995).
Outro estudo do prprio Marshall (1995) aponta que no
h diferenas significativas em internaes entre pacientes subme-
tidos ao gerenciamento de caso e aqueles que participam do trata-
mento controle. H melhoras em termos de psicopatologia,
qualidade de vida, comportamento social, dentre outros, mas a re-
duo significativa se d no nvel de comportamento desviante.
Por fim, h publicaes que evidenciam resultados pro-
missores do gerenciamento de caso no trabalho com dependentes
qumicos, como: melhorias relativas ao uso de lcool, nas relaes

345
Manual de abordagem de dependncias qumicas

familiares, nas condies de sade e nas questes legais atravs


de uma maior disponibilidade de servios que ocorre pela articula-
o do gerente de caso com a rede de apoio (MCLELLAN, 1999).
So observados tambm: a reduo de readmisses para desintoxi-
cao/reduo de recadas; a melhora do paciente em menor
prazo e de reduo de custo no tratamento (SCHWArtz, 1997).

Consideraes finais

O gerenciamento de caso uma estratgia valiosa no tra-


tamento de pacientes com demandas crnicas e de custo elevado,
circunstncia presente no tratamento de dependentes qumicos. tal
tratamento um processo que exige continuidade e disponibilizao
de diversos servios para o paciente, processo que pode tornar-se
mais eficiente em termos financeiros e de resultado, atravs do ma-
nejo de recursos e do papel articulador exercido pelo gerente de
caso.
Alm do benefcio relativo eficincia, o gerenciamento
de caso oferece a oportunidade para criao de um profissional de
referncia na rede de apoio do paciente: o prprio gerente de caso.
Uma aliana teraputica bem estabelecida chave para esse papel
referencial. Por fim, importante ressaltar que o gerenciamento de
caso mais uma possibilidade no tratamento da dependncia qu-
mica. H diversos formatos, que, se por um lado, tm eficincia
comprovada, nem sempre so ideais para um paciente. So neces-
srios novos estudos para direcionar modelos mais eficazes para
populaes especficas.

346
Gerenciamento de casos em usurios de drogas: conceito, princpios, estratgias e aplicaes

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347
Manual de abordagem de dependncias qumicas

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348
Captulo 24

Reduo de danos no Brasil:


desafios e perspectivas
Lvia Guimares Pires
Moiss de Andrade Jnior

Introduo

Os problemas oriundos do consumo de substncia vo


muito alm de seus efeitos negativos na sade, mas impactam de
forma diversa o campo social e poltico, sendo dependentes de
contextos sociais e culturais diversos, variando de frequncia e
intensidade. A multiplicidade destas formas de consumo de drogas
e as abordagens diferenciadas para cada caso, portanto, obrigam
os diversos saberes da atualidade a rever paradigmas de preveno
e tratamento nos quais foram pautados at ento.

Contextos sociopolticos da reduo de danos

transpondo a questo epidemiolgica do consumo de


substncias para seus efeitos no usurio, cada vez mais considera-
se o tema a partir dos impactos causados pela substncia na sade
do indivduo, ou seja, os prejuzos biolgicos, psicolgicos e sociais
causados pela droga. Dentro dessa concepo, inaugurada junta-
mente com a instalao do SUS no Brasil e desenvolvida a partir
Manual de abordagem de dependncias qumicas

da, a sade passa a ser considerada muito alm da ausncia da


doena (e sua manuteno, a cura de doenas), e sim um processo
socialmente constitudo e determinado, em que a sade e sua pro-
moo dependem de condies socioeconmicas favorveis, acesso
a bens e servios variados (sem se resumir a bens e servios de
sade) e uma rede de ateno descentralizada e intersetorial, exi-
gindo uma reorganizao da formao dos profissionais de sade
e sua compreenso do processo sade-doena (MACHADO et al.,
2007). A importncia desta concepo de sade, que sustenta o pro-
psito do SUS e suas competncias, como a vigilncia sanitria, tem
uma importncia dupla para o tema aqui tratado: em primeiro lugar,
porque institui um modelo de ateno integral, regionalizado e des-
centralizado de ateno ao usurio de lcool e outras drogas, ba-
seado no modelo dos CAPS, na contramo de um modelo
preconceituoso, excludente e hospitalocntrico (MOrAES, 2008);
em segundo, porque passa a conceber o usurio de substncias den-
tro de um paradigma muito mais amplo do que a busca pela ausn-
cia do consumo (abstinncia) como indicativo de sade,
considerando outros fatores contextuais para a promoo da sade
e oferecendo subsdios norteadores para diversas (e mais flexveis)
polticas de preveno.
Dentro desta concepo ampliada do processo sade-
doena, e, por conseguinte, partindo de uma compreenso mais so-
cial e inclusiva do usurio de substncias, um dos debates que se
institui a partir da gira em torno da prpria definio da depen-
dncia pela substncia e das competncias para trat-la, em que as
fronteiras que definem o conceito de dependncia qumica ainda
no se encontram to claras. Neste sentido, ainda que a dependncia
de substncias seja categorizada pelo discurso mdico como uma
doena mental e comportamental (OMS, 1993), sua compreenso
fora da esfera biolgica permanece complexa e multifatorial, cer-
cada por discursos ticos, polticos, sociais e tericos variados, in-
viabilizando um discurso nico sobre sua definio, bem como uma

350
Reduo de danos no Brasil: desafios e perspectivas

soluo universal que atenda todos os casos e contextos de con-


sumo. Dentre os muitos discursos sobre o usurio e a droga, en-
contra-se aquele pautado na compreenso moral da substncia e de
seu usurio, muitas vezes classificado como drogado, vaga-
bundo, incapaz de superar seu consumo compulsivo devido sua
prpria fraqueza moral. Muitas vezes, prximo dessa concepo
moral sobre o fenmeno, encontra-se o discurso sobre o
combate s drogas: a substncia vista como um mal a ser
combatido; pautado, portanto, na represso do trfico, do
consumo e, consequentemente, do usurio (BUCHEr &
OLIVEIrA, 1994). Dentro dessa perspectiva, ele considerado
um sujeito desviante da ordem social vigente, por sua vez, por
uma concepo sanitarizada da sociedade: trata-se de um modelo
de abordagem que exclui, em princpio, a ateno sade do
indivduo que consome substncias, apoiando-se exclusivamente
na proibio e criminalizao do consumo. Portanto, para que as
polticas de reduo de danos pudessem ser levadas a cabo, alm
da mudana de paradigma sobre o processo sade-doena, foi
preciso ultrapassar tambm esta con-cepo moral da drogadio
uma mudana que foi efetuada no campo do direito.
Neste sentido, a lei 11.343/2006, responsvel por insti-
tuir o Sistema Nacional de Polticas Pblicas sobre Drogas, re-
presentou um importante marco legal para o tratamento do
usurio de drogas, abrindo espao para sua compreenso por ou-
tros discursos e poderes que no o da segurana pblica. A di-
ferenciao entre trfico e consumo, traficante e usurio,
permitiu que este fosse alvo de polticas pblicas de sade e as-
sistenciais, na tentativa de tratar o consumo, seus efeitos preju-
diciais e reintegrar o usurio em suas relaes sociais, em um
trabalho de ateno integral e organizado em rede. A aprovao
desta lei pelo Congresso Nacional, por sua vez, proporcionou vi-
trias inquestionveis para a reduo de danos, tornando mais
claras as possibilidades de implementao de programas de trocas

351
Manual de abordagem de dependncias qumicas

de seringas sem que se faam acompanhar de problemas jurdico-


policiais (BAStOS & MESQUItA, 2010).
Passa-se, portanto, a reconhecer os efeitos das drogas para
a sade do indivduo e a importncia de oferecer um tratamento.
Para alm do tratamento, a preveno ao consumo de drogas as-
sume outro papel importante na abordagem do usurio de subs-
tncias, pautada pela importncia da educao do indivduo sobre
os efeitos de seu consumo, a criao de bens e servios de sade,
esportivos, culturais, artsticos, profissionais, dentre outros, como
alternativas ao uso de substncias, bem como o fortalecimento da
autonomia e responsabilidade do sujeito frente ao seu prprio con-
sumo (art. 19).
Esta mudana de pensamento da represso do usurio
para sua descriminalizao para a ateno integral sua sade no
significou, contudo, a descriminalizao da substncia; tampouco
apagou completamente o discurso de combate e guerra s drogas,
mas permitiu avanos para a compreenso do usurio, as mltiplas
razes e contextos de seu consumo e, como consequncia, abriu o
debate para as mltiplas possibilidades de interveno.

A reduo de danos como modelo de ateno


ao usurio de lcool e outras drogas
Reduo de danos: polticas
e programas estruturados com Dentre os modelos de ateno ao usurio de
o propsito de reduzir as con-
seqncias adversas em substncias, a reduo de danos ocupa um papel importante
sade, sociais e econmicas de
drogas utilizadas para alter- nas polticas pblicas brasileiras de sade atuais, e repre-
ao do humor, estados de
conscincia e percepo. A re-
senta um avano significativo no que diz respeito aos di-
duo de danos pode com- reitos humanos do usurio. Contudo, trata-se de uma
preender: (1) abstinncia ou
reduo do consumo de dro- abordagem que ainda fomenta crticas e resistncias s
gas; (2) preveno da trans-
misso do HIV e outras
suas propostas de trabalho, em tantos casos devido in-
infeces / doenas entre compreenso plena de seus pressupostos e bases, tanto
usurios de drogas injetveis;
(3) uso de drogas menos tericas quanto ticas.
danosas em substituio que-
las mais danosas.
352
Reduo de danos no Brasil: desafios e perspectivas

A poltica de reduo de danos (rD) no uma experin-


cia unicamente brasileira, mas aplicada com sucesso varivel em
diversos pases, sendo uma de suas tantas propostas oferecer uma
sada vivel e sustentvel, perante a at ento perdida guerra s
drogas. tanto no Brasil quanto no mundo, a rD ganhou visibili-
dade com o advento da AIDS, na dcada de 80, quando foi formu-
lada como uma tentativa de coibir a transmisso do vrus HIV por
meio do compartilhamento de agulhas de seringas de drogas inje-
tveis. Sua funo, nesse incio, no era coibir o uso de drogas inje-
tveis, mas evitar que a partilha de seringas contaminadas somasse
ainda mais epidemia de AIDS que se alastrava. A eficcia do com-
partilhamento de seringas para a diminuio da contaminao por
doenas transmitidas pelo sangue ainda debatida, com resultados
e sucessos variveis, mas sua aplicao em pases da Europa e Am-
rica do Norte continua at hoje (BAStOS & StrAtHDEE, 2000).
O fortalecimento dessa abordagem para a diminuio do contgio
de AIDS, entre usurios de drogas injetveis, estimulou diversos
pases a disseminarem a prtica e pensarem-na como uma possibi-
lidade para outras situaes mais complexas e abrangentes, ou seja,
praticadas como estratgias de preveno na sade pblica e nas
polticas pblicas. O princpio norteador da rD , neste sentido,
evitar que o dano ocorra, melhorando as condies de vida e con-
sumo do usurio, de forma a evitar danos mais severos sade (ou
mesmo o bito) e melhorando a qualidade de vida destes indivduos
(QUEIrOz, 2001). Nesse sentido, a rD diferencia-se radicalmente
do discurso proibicionista da droga, operando por uma lgica com-
pletamente diferente: aquela que leva em conta 1) o contexto so-
cioeconmico e cultural do consumo, 2) os limites de atuao do
profissional de sade para modificar este mesmo contexto e 3) a
autonomia e responsabilidade do sujeito em decidir seus hbitos de
consumo e tratamento.
Em outros pases, a rD vem sendo aplicada sua reali-
dade local e tem obtido xito, servindo de inspirao para que novas

353
Manual de abordagem de dependncias qumicas

prticas sejam pensadas para cada cultura e realidade local. A expe-


rincia do reino Unido possibilitou que dependentes qumicos re-
cebessem a prescrio de drogas como a herona e a cocana, para
a manuteno e reduo dos danos causados pelo seu uso; a Ho-
landa descriminalizou a maconha e o haxixe, alm de fornecer me-
tadona prescrita, apoio material e reabilitao social para os
dependentes; pases como a Alemanha, Canad e Austrlia, tambm
conseguiram desenvolver estratgias prprias de rD (FONtES et
al., 2010). No Brasil, a rD faz parte de um realinhamento poltico
e ideolgico da Poltica Nacional Antidrogas (Decreto no.
2.632/1998), que em 2005 seria substitudo, pelo CONAD, pela
Poltica Nacional sobre Drogas (resoluo n. 3/GSIPr/
CH/CONAD /2005), o qual assume um papel fundamental ao
lado de outras polticas de preveno (informativas, educativas, ca-
pacitativas, inclusivas, etc) e tratamento, levado a cabo pela rede de
ateno integral sade e tendo, dentre outros objetivos, a reinser-
o social do indivduo usurio de drogas. Neste sentido, ao cons-
tituir parte das polticas de abordagem sobre drogas no Brasil, a
rD institui-se contrria ao discurso proibicionista, na medida em
que no oferece crtica ao consumo do indivduo, oferecendo a ele
(e, em certos casos, restituindo-lhe) a responsabilidade pelo seu pr-
prio tratamento, e consequentemente oposta ideologia de guerra
s drogas, na medida em que parte do pressuposto da insuficincia
e precariedade desta abordagem uma guerra, portanto, j perdida
(ALVES, 2009).

A prtica da reduo de danos

De modo geral, as aes de reduo de danos expandi-


ram-se, especialmente durante o ano 2000. Em 1991, o PrOAD
(Programa de Orientao e Atendimento Dependncia) deu incio
a um trabalho pioneiro em So Paulo, onde pacientes atendidos

354
Reduo de danos no Brasil: desafios e perspectivas

pelo programa foram treinados para distribuir hipoclorito de sdio


e orientar usurios de drogas injetveis a desinfetarem suas seringas
e no compartilhar seus equipamentos de injeo com outros usu-
rios. Nessa perspectiva, o prprio usurio de drogas atua como pro-
tagonista e parceiro, e no como inimigo: o usurio pode tornar-se
agente de sade, aproveitando suas experincias de uso de droga
injetvel para ajudar seus iguais, uma vez que a luta no se d contra
as drogas, e sim contra os danos sade (trIGUEIrOS &
HAIEK, 2006).
A Sesso Especial da Assemblia das Naes Unidas de-
dicada ao controle da epidemia de HIV/AIDS, que teve lugar em
Nova york, de 25 a 27 de Junho de 2001, utilizou como informao
tcnica uma nota do programa de AIDS das Naes Unidas
(UNAIDS), que define a reduo de danos:

reduo de danos se refere polticas e programas estruturados com


o propsito de reduzir as conseqncias adversas em sade, sociais e
econmicas de drogas utilizadas para alterao do humor, estados de
conscincia e percepo. A reduo de danos pode compreender: (1)
abstinncia ou reduo do consumo de drogas; (2) preveno da trans-
misso do HIV e outras infeces / doenas entre usurios de drogas
injetveis; (3) uso de drogas menos danosas em substituio quelas
mais danosas. Baseado nas evidncias encontradas em diversos pases,
em todo o mundo, os programas de reduo de danos provaram ser
efetivos na preveno da infeco pelo HIV, entre usurios de drogas
injetveis. Cabe ressaltar que o programa de reduo de danos efetivos
no se limita proviso de equipamentos de injeo estreis, mas
devem incluir outros componentes, como medidas visando a uma me-
lhor informao e compreenso sobre a AIDS, e educao dedicada
aos usurios de drogas e seus parceiros sexuais, proviso de preser-
vativos visando prevenir a transmisso sexual, tratamento e reabilita-
o da dependncia de drogas, tratamento de doenas sexualmente
transmissveis (DSt) e oferta de outros servios de sade, e acesso a
testagem e aconselhamento para HIV, voluntrio e confidencial. Alm
disso, comunidades locais, incluindo os usurios de drogas, devem ser
mobilizadas de modo a participar intensamente deste pacote de es-
tratgias de trabalho. Nenhum dos elementos aqui mencionados fun-

355
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Princpios da Reduo de cionar adequadamente se implementado de forma isolada.


danos: 1. A reduo de danos
uma alternativa de sade (UNAIDS, 2001)
pblica para os modelos
moral/criminal; 2. A reduo de
danos reconhece a abstinncia
como resultado ideal, mas
aceita alternativas que re-
duzam os danos; 3. A reduo
de danos surgiu principalmente
como uma abordagem de
tais estratgias, entretanto, no so desenvolvi-
das aleatoriamente, mas so pensadas a partir de princpios
baixo para cima, baseada na
defesa do dependente, em vez
bsicos que pautam aes de reduo de danos. So eles:
de uma poltica de cima para
baixo, promovida pelos formu-
ladores de polticas de drogas; 1. A reduo de danos uma alternativa de sade
4. A reduo de danos pro-
move acesso a servios de
pblica para os modelos moral/criminal e de doena do
uso e da dependncia de drogas: o modelo moral de com-
baixa exigncia como uma al-
ternativa para abordagens
preenso da dependncia de drogas, como expresso na
tradicionais de alta exigncia;
5. A reduo de danos baseia-
poltica de controle de drogas dos Estados Unidos, tem
se nos princpios do pragma-
tismo emptico versus
idealismo moralista.
como pressuposto que o uso de drogas crime, merecedor
de punio e moralmente incorreto. Desta forma, o objeto
maior a reduo da oferta, por meio da guerra s dro-
gas, que tem como alvo uma sociedade livre das mesmas.
Ao mesmo tempo, o modelo de doena pautado nos fun-
damentos biolgico/gentico e compreende que a depen-
dncia qumica requer tratamento e reabilitao. Para os
redutores de danos, essa abordagem proibicionista,
problemtica e irreal. Conforme ressalta Marlatt, a
reduo de danos aceita o fato concreto de que muitas
pessoas usam drogas e apresentam outros
comportamentos de alto risco, e que vises idealistas de
uma sociedade livre de drogas no tem quase nenhuma
chance de tornarem-se realidade (MArLAtt, 1999,
p.46). A partir deste enfoque, a reduo de danos surge
como alternativa a esses modelos, desviando a ateno
do uso de drogas em si para as conseqncias ou os
efeitos do comportamento adicto.
2. A reduo de danos reconhece a abstinncia como re-
sultado ideal, mas aceita alternativas que reduzam os danos: a re-
356
Reduo de danos no Brasil: desafios e perspectivas

duo de danos no contra a abstinncia, mas surge como uma


proposta de reduo gradual do uso de drogas, dando possibilidades
ao indivduo que apresenta comportamentos excessivos, ou de alto
risco a caminhar no ritmo de suas possibilidades, dando um passo
de cada vez, a fim de reduzir as conseqncias prejudiciais do seu
comportamento. A reduo de danos no pactua com a proposta
de tolerncia zero, que parte do princpio de que qualquer uso
de substncias condenado, no distinguindo o comportamento
de um usurio ocasional para um usurio crnico, por exemplo. A
reduo de danos tambm no pactua com o modelo de doena de
compreenso da dependncia qumica, por entender que esta pers-
pectiva possui uma vertente de aproximao do modelo moral, uma
vez que o tratamento s se torna possvel quando o indivduo re-
solve cessar o uso definitivamente de todo tipo de droga.
3. A reduo de danos surgiu, principalmente, como uma
abordagem de baixo para cima, baseada na defesa do dependente,
em vez de uma poltica de cima para baixo, promovida pelos for-
muladores de polticas de drogas: mais uma vez, o modelo moral
de compreenso da dependncia qumica promove para a sociedade
uma viso estigmatizante do usurio, gerando uma srie de dificul-
dades para seu acesso ao usufruto de direitos bsicos. Podem ser
percebidos, facilmente, movimentos comunitrios de ampla aceita-
o em defesa do paciente com cncer, por exemplo, porm, o
mesmo no ocorre com os usurios de drogas, pela percepo de
que o uso de qualquer droga errado. A reduo de danos prope
que haja uma sada para esse impasse, uma vez que suas propostas
podem ser efetivadas por meio de agentes comunitrios, na tentativa
de dar voz ao usurio. Para clarear ainda mais este ponto de vista,
vale a pena ressaltar Sisko:

Em seu sentido mais amplo, o tratamento a pedido tem dois compo-


nentes principais, que so, evidentemente, tratamento e pedido.
Mas, longe de serem termos claros e facilmente definidos, eles so
ambguos, complexos e sujeitos a diversas interpretaes por pessoas

357
Manual de abordagem de dependncias qumicas

com pontos de vista diferentes. Para incio de conversa, de que tra-


tamento estamos falando? A pedido de quem o tratamento deve ser
iniciado? Ser que o usurio um dia ter permisso para julgar se ir
receber ou no tratamento mdico com base em sua solicitao, ou
pensar assim no passa de pura ingenuidade? Ser que os dependentes
tero permisso para determinar que modalidade de tratamento
mais adequada s suas necessidades, e ter pronto acesso a ela? (SISKO,
1995, p. 1).

Nesse cenrio, nesta perspectiva que a reduo de danos


se prope a atuar: na possibilidade de dar espao para que a vontade
do usurio tenha mais importncia do que o seu suposto quadro
clnico, ou das vontades que as pessoas que esto ao seu redor te-
nham quanto s suas escolhas.
4. A reduo de danos promove acesso a servios de baixa
exigncia como uma alternativa para abordagens tradicionais de alta
exigncia: as abordagens tradicionais de alta exigncia tm como
pr-requisito a abstinncia; j as abordagens de baixa exigncia, no
so adeptas a esse princpio, por entender que esse seria mais um
obstculo para dificultar o movimento de busca de recursos, por
parte do usurio de drogas. Desta forma, os redutores de danos
crem ser possvel aceitar o usurio dos termos em que o mesmo
se dispem a ser acolhido para que, a partir da, novas estratgias
sejam possveis. As abordagens de baixa exigncia tambm possi-
bilitam que o servio v at o indivduo esteja e no necessaria-
mente que ele mesmo tenha a iniciativa de buscar ajuda, se ele se
enquadrar proposta. Alm disso, a abordagem de baixa exigncia
reduz estigmas e possui a capacidade de aambarcar e consolidar
uma variedade de comportamentos que abrangem o uso da subs-
tncia. Por possuir uma possibilidade de interveno to ampla, a
reduo de danos uma abordagem aberta construo e conso-
lidao de parcerias e cooperao, tanto com sua populao-alvo,
quanto entre outros fornecedores de servios, bem como aqueles
que os recebem.

358
Reduo de danos no Brasil: desafios e perspectivas

5. A reduo de danos baseia-se nos princpios do prag-


matismo emptico versus idealismo moralista: o princpio do prag-
matismo emptico reconhece com naturalidade que
comportamentos prejudiciais acontecem, e no entra no mrito do
julgamento de certo e errado, bom e ruim, mas preocupa-se com o
manejo das situaes cotidianas e das prticas reais, e sua validade
avaliada por resultados prticos. Em contraste ao idealismo mo-
ralista, que preconiza uma sociedade livre de drogas, o pragmatismo
emptico reconhece que algumas pessoas sempre usaram drogas e
continuaro usando, e at mesmo assumiro comportamentos de
alto risco. Vale ressaltar, contudo, que a reduo de danos no co-
nivente a esses comportamentos e tampouco o fomenta. O que a
reduo de danos prope, que em meio a esses fatos, sejam
feitas as seguintes perguntas: at que ponto as consequncias dos
comportamentos desses indivduos so prejudiciais ou favorveis
para os indivduos e para os outros que possam ser afetados? ou
o que pode ser feito para reduzir as conseqncias prejudiciais?
A partir destas perguntas, a reduo de danos considerada uma
abordagem emptica porque no rotula as pessoas e no denigre
aquelas que se envolvem em comportamentos de alto risco.

Concluso

Por se tratar de um problema complexo e pluridetermi-


nado, a dependncia qumica demanda que sejam desenvolvidas
es-tratgias que ampliem o rol de possibilidades de interveno
junto aos dependentes qumicos. A reduo de danos surge como
uma possibilidade inspiradora, por ter sido implementada com
muito xito nas estratgias concernentes realidade do HIV.
Ainda que o HIV e drogas sejam temticas que apresen-
tam temas comuns como a estigmatizao, h muito que ser pen-
sado na aplicao dessas estratgias no manejo da dependncia

359
Manual de abordagem de dependncias qumicas

qumica. A reduo de danos torna-se uma possibilidade de inter-


veno, quando adaptada realidade local, cultura vigente, ao p-
blico-alvo, dentre outros. A reproduo da estratgia de uma
experincia para outra, sem suas devidas adaptaes, comprometem
os seus resultados que poderiam ser bastante efetivos.
No Brasil, a reduo de danos vem encontrando crticas
em sua prxis, por encontrar grupos que mudam seu foco de atua-
o, propondo que seu conceito seja utilizado no tratamento da de-
pendncia qumica, e permitindo que o dependente continue a
utilizar drogas. O fato que a falta de conceitos claros sobre as es-
tratgias de reduo de danos tem produzido muitas dificuldades
para o seu entendimento e sua adoo no nosso pas.
(MArQUES & zALESKI, 2011). Agrega-se a essa realidade a
confuso da reduo de danos com outras ideologias, que em
alguns casos deturpam os reais fundamentos da reduo de danos,
dificultando o manejo e, principalmente, a articulao com outros
servios.
sabido que no possvel a utilizao de estratgias ni-
cas e simplistas para problemas complexos, como a dependncia
qumica. Desta forma, a aplicao efetiva e coerente aos princpios
da reduo de danos ainda desafiadora, por se deparar com in-
meras dificuldades em sua prtica. A real consolidao da to pro-
pagada rede de interveno ao usurio de drogas torna-se uma
possibilidade real para o verdadeiro apoio ao dependente qumico,
justamente por propor diversidade de intervenes pluralidade de
pessoas e circunstncias. Porm, tal fato somente se tornar uma
realidade quando houver espao para o dilogo e a troca, e no a
propagao de ideologias e imposio das mesmas sejam elas quais
forem. Afinal de contas, como a prpria reduo de danos nos con-
vida a pensar: o protagonista o usurio de drogas, e por isso,
aes devem ser pensadas para trabalhar em conjunto com ele.

360
Reduo de danos no Brasil: desafios e perspectivas

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Manual de abordagem de dependncias qumicas

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362
Captulo 25

Rede de ateno ao dependente qumico:


dispositivos de sade e de assistncia social
Alessandra F. Almeida Assumpo
Nina Alkmim
Lucas Barroso
Marinna Garcia Barbosa de Figueiredo
Amanda Machado
Frederico Duarte Garcia

Introduo

A rede de ateno ao dependente qumico um conjunto


de servios que visa o atendimento integral ao usurio de drogas.
Esses servios configuram-se com foco principal de preveno, tra-
tamento e reinsero scio-familiar dos dependentes qumicos, e
fazem parte de um conjunto de atuao em que a prioridade dada
ao usurio e a seus co-dependentes, sujeitos do processo de trata-
mento e no o objeto das intervenes (COSTA, 2009).
Devido complexidade do atendimento ao dependente
qumico, a rede de ateno precisa abordar diversos mbitos que
envolvem a vida desse indivduo e de sua famlia, garantindo todos
os seus direitos de tratamento e preservao. Em situaes de no
integralidade dos diversos eixos que compem essa rede de atendi-
mento, o tratamento ao usurio ter baixa eficcia, visto que a droga
no atinge somente o sistema orgnico do indivduo, mas diversos
outros aspectos de sua vida e de seus familiares.
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Os diferentes tipos de servios que compem a rede


podem ser categorizados a partir de diferentes pontos de vista. Op-
tamos, aqui, por dividi-los segundo a perspectiva das polticas p-
blicas. Sob esse enfoque, a rede de ateno constituda por
polticas pblicas de sade, de assistncia social, de segurana p-
blica, de preveno e do sistema de garantia dos direitos das crian-
as e dos adolescentes (BRASIL, 2012). A Poltica Nacional sobre
Drogas (PNAD) (BRASIL, 2005) assume, nessa concepo, o lugar
de um norteador terico para as demais polticas pblicas relativas
ao tema. A PNAD composta por diretrizes acerca da preveno,
tratamento, recuperao/reinsero, reduo de danos sociais e
sade, estudos/pesquisas e avaliaes. Nela, tambm se fala sobre
a importncia da integralidade da ao dos diferentes servios em
dependncia qumica.
As redes podem ser compreendidas tambm a partir da
articulao entre as redes formais e as redes informais. As redes
formais so aquelas reconhecidas pelos rgos do governo e finan-
ciadas por uma das trs esferas de poder. As redes informais, por
sua vez, so redes sociais criadas pela sociedade civil, e abrangem
associaes de mtua ajuda, de Organizaes No Governamentais
(ONGS), comunidades teraputicas e diversos tipos de iniciativas
privadas que visam, de maneira geral, preveno e reabilitao
psicossocial do usurio de drogas (RONZANI, 2013).
No presente captulo, abordaremos os dispositivos que
constituem as redes de apoio das polticas de sade e de assistncia
social, seus eixos de atuao e as principais caractersticas e atribui-
es de cada servio.

Principais dispositivos das polticas de sade

As polticas de sade configuram um conjunto de aes


que, na esfera individual e coletiva, visam promover e reestabelecer

364
Rede de ateno ao dependente qumico: dispositivos de sade e de assistncia social

a sade do usurio. Os dispositivos que fazem parte desse grupo


so responsveis pelo diagnstico, tratamento, reabilitao e redu-
o de danos. So servios que funcionam no mbito hospitalar-
ambulatorial, atendendo a demanda dos pacientes que buscam
ajuda espontaneamente, ou aqueles referenciados por outros dis-
positivos integrantes da rede de ateno ao dependente qumico. A
rede de apoio sade agrega, ainda, servios de emergncia e ur-
gncia, servios residenciais teraputicos e servios de atendimento
a moradores de rua BRASIL, 2012).
O atendimento ao dependente qumico, visto como pes-
soa portadora de transtorno mental, dentro da lgica de ateno
psicossocial, organizado em modalidades de sistema aberto, se-
miaberto e fechado (BRASIL, 2002).
No sistema aberto, o acolhimento realizado em institui-
es pblicas e privadas, como as Unidades Bsicas de Sade (UBS),
ambulatrios de sade mental e outros centros que ofeream trata-
mento com as caractersticas dessa modalidade (Tabela 1). So servios
prestados s pessoas com dependncia leve e motivadas a permane-
cerem em abstinncia. Esses servios realizam, tambm, atendimentos
de aes preventivas envolvendo a comunidade em geral.
No atendimento semiaberto, o acolhimento e trata-
mento so realizados nos CAPSad e nos hospitais Dia. Esse um
tipo de servio considerado intermedirio entre as modalidades
aberto e fechado, sendo indicado para pessoas com alto grau
de dependncia, mas motivadas para o tratamento. O hospital Dia
foi pensado para desenvolver aes de cuidados intensivos, visando
substituir a internao integral. J o CAPSad presta atendimento a
pacientes com transtornos decorrentes da dependncia, sendo a
ateno direcionada ao tratamento, reabilitao e reintegrao so-
cial, tanto do usurio quanto de seus familiares, dentro da lgica de
reduo de danos (BRASIL, 2004). Alm disso, o CAPSad tem
como uma de suas funes ser o articulador da rede de ateno ao
dependente qumico.

365
Manual de abordagem de dependncias qumicas

No sistema fechado, por fim, encontra-se a ateno de


maior complexidade, em que os pacientes atendidos possuem alto
grau de comprometimento psicossocial devido dependncia, e
normalmente demonstram baixa aderncia ao tratamento. Incluem-
se, nesse regime, as clnicas, os hospitais psiquitricos e os hospitais
gerais (Tabela 1). A Poltica de Sade conta com hospitais gerais, que
possuem leitos psiquitricos ou unidades de desintoxicao, como
hospitalar para os casos que exigem internao de longa e curta
permanncia com o objetivo de desintoxicao. O seguimento do
tratamento deve ser realizado em ambulatrio de referncia.
A tabela a seguir descreve os principais dispositivos inclu-
dos na rede de ateno sade. Esto includas nela as situaes
nas quais o encaminhamento adequado a determinado centro,
considerando-se as atribuies do dispositivo, os pacientes mais in-
dicados e comumente atendidos dentro de cada dispositivo e os
principais eixos de atendimento de cada dispositivo.

366
Rede de ateno ao dependente qumico: dispositivos de sade e de assistncia social

Tabela 1
Dispositivos de sade implicados na ateno de usurios de droga

367
Manual de abordagem de dependncias qumicas

368
Rede de ateno ao dependente qumico: dispositivos de sade e de assistncia social

Principais dispositivos da poltica de assistncia social

As polticas de assistncia social configuram um grupo de


abordagem ao dependente qumico que assumem o carter de tra-
tamento continuado e abrangente ao tratamento oferecido em cen-
tros de ateno sade, promovendo assistncia em longo prazo e
garantindo apoio ao dependente e a sua famlia (FERREIRA, et al.,
S.n.t). So equipamentos no relacionados diretamente ao trata-
mento mdico-hospitalar do usurio, mas uma importante ferra-
menta de assistncia preveno, reabilitao e manuteno da
abstinncia. Possuem carter protetivo frente s situaes de vul-
nerabilidade social, garantindo direitos e benefcios queles depen-
dentes fragilizados socialmente (Tabela 2). Promovem, ainda, uma
das medidas mais importantes no tratamento do usurio de drogas:
a reinsero social (BRASIL, 2012).
O Sistema nico de Assistncia Social (SUAS) a organi-
zao de uma rede de servios e aes baseados nas orientaes da
nova Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS). Seus servios
e aes so divididos em nveis de complexidade que se organizam
em nveis de proteo social: proteo social bsica e proteo social
especial. (BRASIL, 2011).
Os servios de proteo bsica so desenvolvidos no
CRAS, que uma unidade pblica estatal localizada em reas de
vulnerabilidade. Seu objetivo a preveno das situaes de risco
em locais de vulnerabilidade social em decorrncia da pobreza, pri-
vaes, acesso precrio a servios pblicos e discriminaes (Tabela
2). O CRAS um local de acolhida e recepo, que promove ofici-
nas de gerao de renda e realiza encaminhamentos (BRASIL,
2009).
O servio de Proteo Social Especial subdivido em dois
nveis de complexidade: mdia e alta complexidade. O CREAS e
os CENTROS POP integram a rede de mdia complexidade e so
responsveis pelo acompanhamento especializado de indivduos. J

369
Manual de abordagem de dependncias qumicas

os servios de alta complexidade devem assegurar proteo integral


aos sujeitos atendidos.
Enquanto os servios de proteo bsica tm carter pre-
ventivo, aqueles oferecidos pela proteo social especial tm carter
protetivo, sendo destinados a famlias e indivduos sabidamente em
situao de risco pessoal ou social. O CREAS oferece servios con-
tinuados e especializados a famlias e indivduos com seus direitos
violados (maus tratos, abandono, discriminaes), enquanto o
CENTRO POP presta servios populao adulta em situao de
rua (BRASIL, 2008). Conforme a necessidade, pacientes acolhidos
no CRAS so encaminhados para os servios de proteo especial,
CREAS e CENTRO POP. Esses centros acompanham tambm,
pacientes encaminhados de outros servios pblicos. O sistema de
encaminhamento pode ser visto na Tabela 3.
Na tabela a seguir, descrevemos os principais dispositivos
da rede de assistncia social. Inclumos situaes de encaminha-
mento a servios de assistncia, considerando-se as caractersticas
de atendimento do centro e das necessidades do paciente.

370
Rede de ateno ao dependente qumico: dispositivos de sade e de assistncia social

Tabela 2
Dispositivos da assistncia social implicados na assistncia
de dependentes qumicos

371
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Limitantes atuais da rede de apoio ao dependente qumico

A dependncia qumica um fenmeno complexo, que


requer um tratamento multidimensional e integrado, que contemple
as suas diversas demandas. Tendo em vista a multiplicidade de im-
pactos que o consumo da droga exerce na vida do usurio e de seus
familiares, o atendimento eficaz ao dependente qumico exige uma
rede de servios ampla, multifacetada e bem articulada entre si.
As polticas pblicas sobre drogas devem se embasar,
principalmente, no reconhecimento da singularidade de cada indi-
vduo, com objetivo de traar estratgias que no estejam unica-
mente voltadas para a abstinncia da droga, mas principalmente
para defesa da vida, o que aumenta o grau de corresponsabilidade
do usurio. essencial que a famlia atue em conjunto com os pro-
fissionais envolvidos que, por sua vez, devem receber treinamento
adequado para lidar com os dependentes durante sua atuao no
sistema interligado e multiprofissional proposto pelas redes de
apoio.
Contudo, a rede de ateno ao dependente qumico
composta por diversos atores, diferentes foras de poder e dis-
tintas ideologias, o que por vezes dificulta em muito a comuni-
cao entre os servios e seu funcionamento integrado. Deste
modo, o grande desafio rede de ateno ao dependente qumico
torna-se construir respostas efetivas necessidade de integrao
das diferentes polticas pblicas, e aproximar e integrar as aes
desenvolvidas em cada rea implicada na questo da dependncia
qumica. Somam-se a estes a necessidade de constantes questio-
namentos sobre os modelos de ateno desenvolvidos pelas equi-
pes multidisciplinares em cada modalidade de servio. Diante
dessas questes, constantes reflexes e novas aes visando
maior efetividade e qualidade da assistncia so essenciais para a
concretizao de um sistema de ateno integral aos dependentes
qumicos.

372
Rede de ateno ao dependente qumico: dispositivos de sade e de assistncia social

Existem diversos centros de tratamento para dependentes


qumicos (Tabela 3). No h um servio melhor do que o outro, mas
sim pacientes mais indicados para cada servio. A compreenso e
o entendimento das possibilidades e limitaes de cada ambiente
de tratamento auxiliam o processo de adequao de um servio s
necessidades da comunidade a qual presta assistncia (Edwards, G.;
et al, 1999). Deve-se ter em mente, tambm, que o momento do
tratamento influencia a escolha do servio que ser prestado
(SAMSHA, 1999).

373
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Tabela 3
Fluxograma de integrao das redes de ateno relativas
aos servios de sade e de assistncia social

374
Rede de ateno ao dependente qumico: dispositivos de sade e de assistncia social

Consideraes finais

Uma rede de ateno ao dependente qumico, articulada


e comprometida com o tratamento digno e eficaz advm a partir
do trabalho integrado entre as polticas pblicas setoriais de sade,
de assistncia social, de segurana pblica, de preveno e do sis-
tema de garantia dos direitos das crianas e dos adolescentes, com
grande apoio das redes informais de ateno. Essas esferas so es-
senciais para promover e restabelecer a sade do usurio, oferecer
a ele tratamento continuado e abrangente, alm de prevenir riscos
e atuar na sua reabilitao psicossocial.
Independentemente do enquadre teraputico proposto,
um servio deve propiciar ao paciente que o procura uma infraes-
trutura capaz de atender as suas necessidades e remover barreiras
que dificultem sua adeso proposta teraputica. Assim, funda-
mental que cada um dos dispositivos de atendimento ao depen-
dente qumico seja capaz de lhe oferecer um tratamento
individualizado, atento s necessidades especficas de seu caso, ofe-
recendo, de fato, a ateno e o apoio que o dependente e sua famlia
precisam dos servios de tratamento. Deve-se objetivar sempre
manter o indivduo vinculado ao tratamento e focar em sua reabi-
litao psicossocial.

375
Manual de abordagem de dependncias qumicas

Referncias

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Tcnicas: Centro de Referncia de Assistncia Social-CRAS. Braslia, 2008.
BRASIL.Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome. Pesquisa Na-
cional sobre a Populao em Situao de Rua. Braslia, 2008.
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nal de Assistncia Social. Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS/2004), item
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Este livro foi compostona fontes Garamond e Univers Condensed e
impresso na Grfica O Lutador em fevereiro de 2014.

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