2015 - LiaAraujoMirandadeLima - O Livro Ilustrado
2015 - LiaAraujoMirandadeLima - O Livro Ilustrado
2015 - LiaAraujoMirandadeLima - O Livro Ilustrado
INSTITUTO DE LETRAS IL
DEPARTAMENTO DE LNGUAS ESTRANGEIRAS E TRADUO LET
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DA TRADUO POSTRAD
Braslia 2015
ii
Capa: Ilustrao extrada do livro Fique longe da gua, Shirley! (Come Away From the
Water, Shirley!), de John Burningham. Trad. Claudio Alves Marcondes. Cosac Naify, 2011.
iii
Braslia 2015
iv
LIMA, Lia Araujo Miranda. Tradues para a primeira infncia: o livro ilustrado
traduzido no Brasil. Braslia: Departamento de Lnguas Estrangeiras e Traduo,
Universidade de Braslia, 2015, 196 f. Dissertao de mestrado em Estudos da Traduo.
FICHA CATALOGRFICA
196 f.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Professora Doutora Germana Henriques Pereira de Sousa (POSTRAD/UnB)
(Orientadora)
___________________________________________
Professor Doutor Eclair Antonio Almeida Filho (POSTRAD/UnB)
(Examinador interno)
___________________________________________
Professora Doutora Marie Helene Catherine Torres (PGG/UFSC)
(Examinadora externa)
___________________________________________
Professora Doutora Vlmi Hatje-Faggion (POSTRAD/UnB)
(Suplente)
DEDICATRIA
AGRADECIMENTOS
Ao meu marido e companheiro, Rafael Gazzola, que segurou com mo de ferro minha
casa para que eu pudesse criar. A ele que me botou o po na mesa, as crianas no ventre e a
coragem no seio.
A minhas filhas:
Ana, que concebi, gerei, pari e amamentei durante o mestrado, e que agora caminha
em duas pernas e fala poesia;
Margarida, por quem eu passava dias sem escrever, enquanto ela tossia e chupava os
dedos em meu colo. Margarida que minha fora e minha ternura;
e Emlia, a voz que jamais se cala. A energia, a alegria, a inteligncia.
Por elas tive coragem de seguir sem olhar atrs. Por elas abandonei meus grilhes, por
elas sou livre. E era com os ps sujos de areia do parquinho que eu escrevia.
Aos meus pais, Jos Miranda e Luzia, que, enquanto puderam, cuidaram das minhas
crianas; e quando j no puderam, foram conselho, foram a rocha em que me apoiei.
Aos meus sogros, Carla e Flvio, sempre inteiros para as netas.
A minhas irms, Ldia e Bel, pelo cuidado com as sobrinhas.
Ao meu irmo, Daniel, minha cunhada, Clara, e meus sobrinhos, Davi e Mateus, pela
inspirao.
Ao professor Eclair Antonio, pela presena em minha banca de qualificao e por sua
generosa disponibilidade para conversar.
Aos tradutores Ivo Barroso e Paulo Neves pelas entrevistas concedidas.
A Eloah Pereira, Assistente Editorial da Cosac Naify, por ter intermediado com
presteza e pacincia meu contato com os tradutores.
Ao autor e ilustrador Renato Moriconi pelas conversas e trocas de ideia.
Aos professores da UFMG Clia Magalhes, Aracy Alves, Graa Paulino, Clia
Abicail Belmiro e Carlos Augusto Novais pelo dilogo e pelas informaes sobre o PNBE. A
Flvia Ferreira de Paula, doutoranda da UFMG, pelas conversas sobre traduo para crianas.
Coordenao Geral de Materiais Didticos do Ministrio da Educao
(Cogeam/SEB/MEC); a Sonia Schwartz, Coordenadora-Geral dos Programas do Livro
(CGPLI/FNDE) e Enedina Leite Maroccolo Antunes, da Diviso de Apoio aos Programas do
viii
A minha querida orientadora, Germana P. H. de Sousa, por sua f no meu projeto, por
seus incentivos, por ter sido referncia para mim. Por me orientar com afeto.
A todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contriburam para que eu pudesse
concluir este trabalho.
Ao Deus de Abrao, Isaque e Jac; Sara, Rebeca, Lia e Raquel. quele que era, que
e que sempre ser.
RESUMO
ABSTRACT
SUMRIO
DEDICATRIA ...................................................................................................................... vi
AGRADECIMENTOS ...........................................................................................................vii
RESUMO................................................................................................................................... x
ABSTRACT ............................................................................................................................... xi
NDICE DE FIGURAS ......................................................................................................... xiv
NDICE DE TABELAS ........................................................................................................ xvi
INTRODUO ........................................................................................................................ 1
CAPTULO 1 - PANORAMA HISTRICO DA LITERATURA INFANTIL
TRADUZIDA NO BRASIL: das tradues ao nacional, do nacional s tradues ........... 9
1.1. Polissistemas, normas, refraes e patronagem ......................................................... 10
1.1.1. Tradues portuguesas, adaptaes abrasileiradas e o livro infantil traduzido no
Brasil do sculo XXI ......................................................................................................... 18
1.2. Literatura infantil e livro ilustrado ............................................................................. 34
1.2.1. O infantil da literatura......................................................................................... 34
1.2.2. O ilustrado do livro ............................................................................................. 43
CAPTULO 2 - CARTOGRAFIA DA TRADUO DE LIVROS ILUSTRADOS NO
BRASIL ................................................................................................................................... 48
2.1. Livros publicados e livros distribudos .......................................................................... 49
2.1.1. O Estado e a distribuio de livros para crianas: a literatura traduzida no PNBE
(acervos 2008, 2010, 2012 e 2014) ................................................................................... 50
2.1.2. As editoras: panorama das obras em catlogo (2013-2014) ................................... 61
2.1.3 O livro ilustrado traduzido e o cnone: prmios e listas de melhores livros............ 84
2.2. As tradues para crianas em edies e publicaes ilustradas ................................... 89
2.2.1. Quem so os tradutores de literatura infantil no Brasil ........................................... 89
2.2.2. Tradutores visveis e tradutores invisveis: capas, quartas capas, paratextos e
recursos grficos ................................................................................................................ 98
CAPTULO 3 - ANLISE CRTICA DA LITERATURA INFANTIL E ILUSTRADA
TRADUZIDA NO BRASIL ................................................................................................. 110
3.1. Texto e ilustrao em traduo .................................................................................... 111
3.1.1. O texto do livro ilustrado ...................................................................................... 111
3.2. Traduzindo o texto em sua relao com a imagem ...................................................... 116
xiii
3.3. Uma girafa e tanto: poesia ilustrada para crianas ...................................................... 121
3.4. O dariz: o ldico na traduo. ...................................................................................... 140
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 157
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................... 163
APNDICES ......................................................................................................................... 170
ENTREVISTA COM O TRADUTOR IVO BARROSO ............................................... 171
ENTREVISTA COM O TRADUTOR PAULO NEVES ............................................... 175
xiv
NDICE DE FIGURAS
FIGURA 19: Capa: A rvore generosa (The Giving Tree), Shel Silverstein. Trad. Fernando
Sabino. Cosac Naify, 2006 .................................................................................................... 108
FIGURA 20: Capa: The Giving Tree, Shel Silverstein. HarperCollins, 1964 ..................... 108
FIGURA 21: Quarta capa: A rvore generosa ..................................................................... 108
FIGURA 22: Guardas iniciais: Caos!................................................................................... 109
FIGURA 23: Guardas finais: Caos!...................................................................................... 109
FIGURA 24: Dessine-moi un rve (O sonho que brotou), Renato Moriconi. Trad. Fanny
Gauvin. Actes du sud, 2011................................................................................................... 119
FIGURA 25: Pgina dupla: Rpido como um gafanhoto (Quick as a Cricket), Audrey Wood
e Don Wood (il.). Trad. Gilda de Aquino. Brinque-Book, 2007........................................... 120
FIGURA 26: Pgina esquerda (Sou medroso como um camaro): Rpido como um
gafanhoto .............................................................................................................................. 120
FIGURA 27: Capa: A Giraffe and a Half, Shel Silverstein. HarperCollins, 2014 .............. 130
FIGURA 28: Capa comemorativa 50 anos: A Giraffe and a Half, Shel Silverstein.
HarperCollins, 2014 .............................................................................................................. 130
FIGURA 29: Capa e quarta capa: Uma girafa e tanto (A Giraffe and a Half), Shel Silverstein.
Trad. Ivo Barroso. Cosac Naify, 2011 .................................................................................. 131
FIGURA 30: Pgina dupla: Uma girafa e tanto .................................................................. 132
FIGURA 31: Pgina dupla: Uma girafa e tanto .................................................................. 132
FIGURA 32: Pginas de biografias: Uma girafa e tanto ..................................................... 133
FIGURA 33: Pginas de crditos e publicidade: Uma girafa e tanto .................................. 133
FIGURA 34: Capa: O dariz (Le nez), Olivier Douzou. Trad. Paulo Neves. Cosac Naify, 2009
................................................................................................................................................ 148
FIGURA 35: Quarta capa: O dariz ...................................................................................... 148
FIGURA 36: Dedicatria e folha de rosto: O dariz ............................................................. 149
FIGURA 37: Pgina dupla: O dariz ..................................................................................... 149
xvi
NDICE DE TABELAS
INTRODUO
Desde as suas origens, a literatura para crianas tem sido um objeto menor nos
departamentos de estudos literrios, embora sempre presente nos cursos de educao.
Estreitamente vinculada urbanizao, expanso do sistema escolar e s tcnicas de
reproduo grfica, a literatura infanto-juvenil se firma na Europa entre fins do sculo XVIII e
incio do sculo XIX j como um produto da indstria cultural. Marisa Lajolo e Regina
Zilberman, que tm se dedicado pesquisa em literatura infanto-juvenil no pas, encontram a
a fonte do baixo estatuto que esse segmento literrio possuiu diante da academia e da crtica
especializada: por estar a servio de um projeto pedaggico, do letramento, e por sua
dependncia do sistema escolar, a literatura para jovens e crianas tem sido vista, desde seus
primrdios, como uma categoria inferior de literatura (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p.
17).
Alm de seu carter de mercadoria, mais marcado e franco do que quando se pensa
na literatura no-infantil, o pblico alvo da literatura infantil outro elemento que, segundo
estudiosos como Peter Hunt (2010) e Lajolo e Zilberman (2007), a desqualifica enquanto
produo cultural. A teoria dos polissistemas, desenvolvida por Itamar Even-Zohar. a partir de
trabalhos publicados na virada da dcada de 1960 para a de 1970, e subsequentemente
ampliada por outros estudiosos, notadamente Gideon Toury, til para nos ajudar a
compreender como o estatuto da literatura infantil se define dentro do quadro mais amplo da
literatura em geral.
Even-Zohar desenvolveu a teoria dos polissistemas para responder a problemas
especficos tais como aqueles propostos pela teoria da traduo e pela complexa estrutura
histrica da literatura hebraica. Seus fundamentos j estavam solidamente presentes no
formalismo russo da dcada de 1920 (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 1). O autor observou que o
sistema literrio raramente um uni-sistema, mas sim um sistema mltiplo, cujos vrios
elementos se relacionam, de maneira interdependente, formando um todo coeso, de maneira
ao mesmo tempo dinmica e heterognea. O termo polissistema, cunhado por Even-Zohar,
designa, assim, uma rede fechada de relaes na qual os seus membros assumem um
determinado valor atravs de seus respectivos opostos (VIEIRA, 1996). Esse valor no
imutvel, mas se altera conforme o dinamismo das interaes entre seus elementos. Podemos
localizar, portanto, um polissistema do sistema cannico, dentro do qual cada gnero literrio,
ou cada autor, ou cada livro avaliado, compreendido e explicado a partir dos demais.
Lajolo e Zilberman acreditam que, na hierarquia cultural dominante, a literatura
infantil permanece abaixo da adulta:
3
Peter Hunt, terico literrio ingls que se dedica a esse segmento literrio, tambm
reconhece a posio inferior da literatura infantil diante da academia:
Nas ltimas dcadas, a literatura para jovens e crianas tem conquistado grande espao
no mercado editorial brasileiro e j no pode ser ignorada pela pesquisa cientfica. Essa
guinada teve importante marco nos anos 1980, quando se deu o conhecido boom da literatura
infantil brasileira, conforme registra Lgia Cademartori (1994). Naquele perodo, a venda de
livros para crianas alcanou nmeros sem precedentes, proliferaram associaes de incentivo
leitura, seminrios e congressos sobre literatura infantil e foram includos cursos sobre o
assunto no currculo de cursos universitrios (CADEMARTORI, 1994, p. 11).
Lajolo e Zilberman observam o trnsito de autores entre a literatura infantil e a no-
infantil, o que contribui para a profissionalizao dos escritores. As autoras defendem uma
reflexo conjunta acerca de ambas:
Assim, estudar tambm a literatura no adulta seria uma condio indispensvel para
se compreender o conjunto da literatura como um todo.
4
1
http://www.erudit.org/recherche/. Acesso em 06/10/2014. A pesquisa foi feita considerando todos os campos
(ttulo, resumo, palavras-chave, texto integral, bibliografia), todas as datas e os fundos rudit e The Electronic
Text Centre at UNB Libraries.
2
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4737387Z5. Acesso em 06/10/2014.
3
SENDAK, Maurice. Onde vivem os monstros. Trad. Heloisa Jahn, Cosac Naify, 2009.
4
NIRES-CHEVREL, Isabelle. Introduction la littrature de jeunesse. Paris, France: Didier Jeunesse, 2009.
5
DOLLERUP, Cay. Translation of reading aloud. Meta : journal des traducteurs / Meta: Translators' Journal,
Vol. 48, c. 1-2, mai 2003, p. 81-103.
6
MUNDT, Renata de Sousa Dias. A adaptao na traduo de literatura infanto-juvenil: necessidade ou
manipulao? XI Congresso Internacional da ABRALIC. Tessituras, Interaes, Convergncias. 13 a 17 de julho
de 2008. USP So Paulo, Brasil.
7
PEREIRA, Nilce Maria. Traduzindo com imagens: a imagem como reescritura, a ilustrao como traduo.
2008. Tese (Doutorado em Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008. Disponvel em:
5
orientada pelo professor John Milton, que trata da ilustrao em literatura como uma forma de
traduo intersemitica. Observamos, contudo, que a maior parte das referncias traduo
de literatura dita infanto-juvenil no Brasil se concentra em romances de certo flego, nos
quais a ilustrao acessria, e que transitam mais facilmente no universo que vai da
adolescncia vida adulta que naquele das crianas ainda no alfabetizadas. Assim,
consideramos que a pesquisa voltada especificamente traduo de literatura para a primeira
infncia ainda incipiente8.
Buscando suprir a carncia da pesquisa nos estudos em traduo e o grande potencial
que esse campo nos oferece, o presente trabalho se debruar sobre a literatura infantil
traduzida no Brasil, mais especificamente sobre os chamados livros ilustrados, ou livros
lbuns, a fim de:
1. traar um panorama do que vem sendo traduzido para a primeira infncia no pas,
de modo a fornecer uma espcie de retrato do cenrio atual;
2. refletir criticamente sobre esse cenrio, avaliando o que ali existe de fecundo ou de
preocupante, considerando o que vem sendo traduzido para as crianas brasileiras
e como vem sendo traduzido;
3. fornecer subsdios para que pesquisadores, educadores, mediadores, pais, mes,
editores, tradutores, escritores, ilustradores e quem quer que atue entre o livro e a
criana, para que possam pensar sua prtica em prol de uma literatura desafiadora,
que permanea na memria afetiva das crianas.
9
Disponvel para consulta em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=
13698&Itemid=986. Acesso em 12/05/2015.
10
Disponvel para consulta em: http://fnlijservidordb.no-ip.org:81/pergamum/biblioteca/. Acesso em
12/05/2015.
7
CAPTULO 1
Para uma base terica que nos auxilie a investigar essas questes, tomemos o conceito
de norma proposto por Gideon Toury: A traduo como um ato e como um evento
caracterizada pela variabilidade, histrica, social e culturalmente determinada, em suma,
governada por normas11 (1998, p. 10). As normas, segundo Toury, so convenes, valores
gerais, ideias compartilhadas por certa comunidade quanto adequao ou inadequao.
Conforme as normas adotadas pelo tradutor, a obra poder ser aceita ou rejeitada no polo
receptor.
A abordagem descritiva e sistemtica de Toury privilegia as tradues reais e, por
decorrncia, o polo receptor. Os principais conceitos de sua teoria so a teleologia (nfase no
fim, e no na origem) e a norma (VIEIRA, 1996). A partir de uma metodologia rigorosa,
Toury se props a mapear todo o escopo das possibilidades de traduo para da derivar um
conceito subjacente de traduo e um conjunto de leis coerentes que possam ser usadas
para explicar e prever o comportamento da traduo (GENTZLER, 2009, p. 177).
Toury pretendeu identificar regularidades, padres recorrentes, por meio da anlise de
um corpus de tradues reais e explicar essas regularidades pressupondo que o
comportamento que as gerou governado por normas. Embora as regularidades no estejam
presentes em 100% do texto, elas jamais esto completamente ausentes: se procurarmos com
11
Translating as an act and as an event is characterised by variability, it is historically, socially and culturally
determined, in short, norm-governed. Traduo nossa.
11
esforo suficiente (ou estendermos nosso corpus suficientemente), reflexos de qualquer modo
possvel de comportamento seguramente sero encontrados12 (TOURY, 1998, p. 23).
A ideia de norma em traduo se relaciona com a variabilidade do prprio conceito de
traduo em funo de diferenas interculturais, intraculturais e de mudanas ao longo do
tempo. A presena das normas em traduo deve-se ao fato de que ela opera em um contexto
sociocultural, para o consumo de indivduos diferentes dos que produzem as tradues. Toury
(1998) defende a inseparabilidade entre os atos de traduo (cognitivos) e o contexto
situacional do indivduo que executa esses atos (o evento de traduo).
Os procedimentos que sero aceitos ou rejeitados em certas circunstncias so
negociados, e dessas negociaes resultam as convenes sociais que governaro o
comportamento dos membros do grupo. Criam-se rotinas de comportamento, e os eventos
passam a ser previsveis. As escolhas so confinadas a limites pr-estabelecidos (restries).
Embora se busquem a estabilidade e a previsibilidade, os processos de negociao so
constantes e interminveis, de modo que as normas so dinmicas, e o equilbrio, temporrio.
(1998, p. 15-16).
As normas precisam ser sancionadas, e os membros do grupo lutam para
estabelecerem suas posies, alguns com mais influncia que outros. Neste ponto, a teoria de
Toury toca o conceito de patronagem de Lefevere, que desenvolveremos mais adiante neste
item: movimentos de validade e potncia tm muito a ver com mudanas de status e,
portanto, com relaes de poder13 (1998, p. 19). As normas no precisam ser formuladas
para operarem; podem agir implicitamente:
12
(...)if one looks hard enough (or extends one's corpus enough), reflections of any possible mode of behaviour
are sure to be found. Traduo nossa.
13
shifts of validity and potency have a lot to do with changes of status, and hence with power relations.
Traduo nossa.
14
Verbalisations obviously reflect awareness of the existence of norms and their significance. However, they
always embody other interests too, particularly a desire to control behaviour i.e. dictate norms (e.g. by culture
planners) or account for them in a conscious, systematic way (e.g. by scholars). Traduo nossa.
12
A teoria dos polissistemas, formulada por Itamar Even-Zohar, postula que as tradues
se relacionam de pelo menos duas maneiras com o sistema literrio receptor: nos princpios de
seleo de obras a serem traduzidas; e na maneira como os textos traduzidos adotam normas,
comportamentos e princpios a partir de sua relao com outros co-sistemas de chegada ou,
em outras palavras, no seu uso do repertrio literrio (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 46).
Considerando a literatura traduzida no apenas como um sistema fechado dentro de um
polissistema literrio, mas como um sistema ativo dentro desse ltimo, Even-Zohar avalia as
posies que o primeiro pode assumir em relao ao segundo. Em alguns casos, a literatura
traduzida ocupa uma posio central dentro do sistema literrio (o que significa que atua
como fora inovadora); em outros, perifrica (caso em que est a servio de repertrios
conservadores) (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 46-47).
Um dos casos em que as tradues ocupam uma posio central quando o
polissistema literrio receptor jovem, conforme aponta Even-Zohar. o caso do Brasil no
sculo XVIII. Nesse caso:
15
Norms operating within one and the same group are not merely different from each other. Quite often they
are competing too. After all, in the dynamic structure of a living society, there is always a struggle for
domination, as a result of which norms may change their position vis--vis a certain centre of gravity, the more
so as the centre itself may be undergoing shifts. Traduo nossa.
16
Through the foreign works, features (both principles and elements) are introduced into the home literature
which did not exist there before. These include possibly not only new models of reality to replace the old and
established ones that are no longer effective, but a whole range of other features as well, such as a new (poetic)
language, or compositional patterns and techniques. It is clear that the very principles of selecting the works to
be translated are determined by the situation governing the (home) poly-system: the texts are chosen according
13
to their compatibility with the new approaches and the supposedly innovatory role they may assume within the
target literature. Traduo nossa.
17
A writers work gains exposure and achieves influence mainly through misundestandings e misconceptions,
or, to use a more neutral term, refractions. Traduo nossa.
14
define restries que influenciam e modelam as tradues (1982, p. 7). As refraes que
levam uma obra literria de um sistema ao outro seriam, assim, o indicador perfeito das
restries dominantes de cada sistema.
O grau de comprometimento de uma refrao depende da reputao do escritor.
Quanto mais canonizado o autor, mais conforme sua prpria potica ele ser traduzido;
quanto menos canonizado, mais conforme potica receptora ser traduzido. Lefevere
menciona ainda a necessidade que o sistema receptor tem do autor estrangeiro, que pode ter
diferentes graus. Quando se sente a necessidade dele, o sistema mais receptivo ao modelo
estrangeiro. Veremos como isso se deu nos primrdios da literatura infantil brasileira e como
os modelos importados foram rejeitados posteriormente embora nunca, de fato, tenhamos
chegado a nos desvencilhar deles totalmente.
Lefevere menciona ainda o papel das antologias na canonizao. Este papel exercido
de maneira semelhante pelos prmios literrios e pelas selees do Estado no mbito da
literatura infantil. O que Lefevere afirma acerca das antologias apresentadas aos estudantes de
literatura pode ser aplicado s selees e prmios mencionados:
Essas antologias (...) determinam que autores devem ser canonizados. O estudante
que est ingressando na rea, ou o leigo educado, tendero a aceitar as selees,
oferecidas nessas antologias como clssicos, sem questionar as restries
ideolgicas, econmicas e estticas que influenciaram as selees. Como resultado,
as peas frequentemente antologizadas alcanam uma posio de relativa
hegemonia. (...) Assim, a educao formal perpetua a canonizao de certas obras
literrias, e as antologias escolares e universitrias exercem um papel imensamente
importante nesse movimento essencialmente conservador dentro do sistema
literrio.18 (1982, p. 8)
18
These anthologies (...) determine wich authors are to be canonized. The student entering the field, or the
educated layman, will tend to accept the selections, offered in these anthologies as classics, without
questioning the ideological, economic and aesthetic constraints which have influenced the selections. As a result,
the plays frequently anthologized achieve a position of relative hegemony. (...) Thus, formal education
perpetuates the canonization of certain Works of literature, and school and college anthologies play an
immensely importante part in this essentially conservative movement within the literary system. Traduo
nossa.
15
pessoas que as prprias realidades que representam, e so responsveis pela recepo e pela
sobrevivncia de obras literrias entre leitores no profissionais.
Segundo Lefevere, toda reescrita manipulao a servio de um poder. Pode ter
funo inovadora, colaborando para a evoluo de uma literatura e de uma sociedade, como
tambm pode reprimir a inovao. Em geral, as adaptaes e manipulaes (que so
intrnsecas prpria reescrita, incluindo a traduo) esto a servio da(s) corrente(s)
poetolgica(s) dominante(s) de sua poca. Embora essas influncias estejam mais evidentes
em sociedades totalitrias, esto presentes mesmo nas sociedades mais abertas e influenciam
as reescrituras de maneira semelhante.
Lefevere toma o conceito de sistema, formulado pelos formalistas russos, para
estruturar seu estudo da reescrita, pois considera que esse modelo oferece um arcabouo
neutro e no etnocntrico para discutir as relaes de poder que a operam. A cultura,
conforme os formalistas russos, era vista como um complexo sistema de sistemas, composto
por diversos subsistemas, entre eles a literatura. Os fenmenos literrios e os extraliterrios
relacionam-se entre si.
Dentro do sistema literrio existem restries que delimitam parmetros para a escrita
e a reescrita. Lefevere fala em um duplo mecanismo de controle sobre o sistema literrio, de
modo que ele no se distancie demasiado dos outros subsistemas que compem a sociedade.
O primeiro desses mecanismos atua de dentro do sistema, personificado pelo profissional:
crticos, resenhistas, professores, tradutores, que prestam um servio e so considerados
competentes em sua rea de atuao:
19
They will occasionally repress certain works of literature that are all too blatantly opposed to the dominant
concept of what literature should (be allowed to) be its poetics and of what society should (be allowed to) be
ideology. But they will much more frequently rewrite works of literature until they are deemed acceptable to
the poetics and the ideology of a certain time and place (...). Traduo nossa.
16
citado por Lefevere como o mais importante desses patronos. Isso se d ainda mais
claramente quando se fala em literatura para crianas. No apenas os editores e livreiros, mas
todos os mediadores (quem compra o livro ou quem o l para a criana) exercem a
patronagem nesse campo.
Podemos relacionar o conceito de patronagem de Lefevere mediao da leitura,
responsvel pela recepo da literatura pelas crianas que ainda no sabem ler, ou que ainda
no leem fluentemente ou mesmo que leem, mas que no tm poder de ir e vir, adquirir
livros para si ou emprest-los livremente de uma biblioteca. O mediador entre o livro e a
criana atua tanto na seleo das obras a serem lidas quanto na forma como sero lidas. O
leitor adulto pode editar a obra a seu bel prazer, excluir ou incluir trechos que considere
inadequados ou adequados, melhorar um texto poeticamente fraco por meio da
performance. Ao mesmo tempo, a criana interage com o adulto leitor, fazendo perguntas e
comentrios e conduzindo, ela tambm, a leitura.
Lefevere v na patronagem trs elementos: o componente ideolgico (que restringe
forma e contedo), o componente econmico e o status. Esses componentes podem atuar
juntos, sob a batuta de um mesmo patrono, caso em que se d a patronagem no diferenciada,
ou de maneira independente, caso em que Lefevere fala em patronagem diferenciada. Nas
sociedades modernas ocidentais, existe um novo tipo de patronagem no diferenciada,
centrada no mais em um soberano, mas no componente econmico. Os fatores econmicos
podem chegar a alcanar o estatuto de uma ideologia, dominando todos os outros fatores
(LEFEVERE, 1982, p. 6).
Os cnones so estabelecidos conforme as poticas dominantes, e por essa razo
mudam conforme o tempo. Atualmente, as listas de em alta e em baixa das revistas de
grande circulao ilustram bem a volubilidade das poticas. Entretanto, as obras que esto h
sculos no cnone tendem a no mais deix-lo, apontando uma tendncia conservadora do
sistema literrio. O cnone clssico influencia ainda a recepo de obras atuais, determinando
quais sero doravante aceitas. Essa dinmica pode ser observada, por exemplo, nas editoras
Cosac Naify e Cia. das Letrinhas. Em seu segmento infanto-juvenil, ao lado dos clssicos
alguns deles em traduo integral, outros adaptados, mas todos revisitados e reilustrados em
edies modernas , esto os lanamentos. O estatuto intelectual dessas editoras reside em sua
capacidade de fazer interagir o cnone com o que h de novo.
Clssicos centenrios so atualizados por meio da reescrita. Isto se d muito
claramente com as fbulas e os contos de fadas e as coletneas de Grimm, Perrault, Esopo, La
17
20
The works of literature canonized will be the same but the rewritings by means they are presented to the
audience differ, sometimes radically. Traduo nossa.
21
Note-se que a inteno do PNBE renovar constantemente os acervos da biblioteca; da fazer sentido a
contemporaneidade dos livros. Quanto aos livros didticos, a postura ainda parece ser um pouco mais
conservadora.
22
Como exemplos, citamos Uma sopa 100% bruxesca (Une soupe 100% sorcire), de Quitterie Simon, com
ilustraes de Magali le Huche (Cia das Letrinhas, 2010, trad. Heloisa Jahn); O Grfalo (The Gruffalo) de Julia
Donaldson e Axel Scheffler (Brinque-Book, 1999, trad. Gilda de Aquino) e Chapeuzinho redondo (Chapeau
Rond Rouge), de Geoffroy de Pennart (Brinque-Book, 2012, trad. Gilda de Aquino).
18
tradues; depende se tomamos o termo adaptao como um termo tcnico para a literatura ou
se o consideramos como um fenmeno filosfico, presente em toda escrita e em toda
traduo.
Apoiada no modelo funcionalista de Christiane Nord23, Riitta Oittinen defende a
legitimidade da adaptao em funo do pblico embora reconhea a imprevisibilidade da
resposta do leitor e seu papel ativo na interpretao e na reformulao do texto. Oittinen,
assim como Lefevere, problematiza a originalidade dos originais, remetendo a Harold
Bloom24 e seus conceitos de tradio e imitao: At onde temos de ir para encontramos a
histria Original de todos os originais?25 (2002, p. 77). A reinterpretao parte intrnseca de
qualquer leitura processo sem o qual a traduo no pode ocorrer:
Assim, Oittinen considera toda traduo como uma transformao. Para ela, embora
identifique uma maior abertura nos procedimentos realizados em verses e adaptaes que
nas tradues, a principal diferena entre traduo e adaptao reside em nossas atitudes e
pontos de vista, no em qualquer diferena concreta entre as duas27 (2002, p. 80).
Yves Gambier (1992) analisou as adaptaes a partir do ponto de vista
comunicacional. O autor identifica uma antinomia entre a traduo literal e a adaptao
livre , que provm de outra dicotomia pertinente comunicao: a primeira diria respeito
comunicao enquanto transao consensual, codificada; a segunda a consideraria como
dialtica interacional, trabalho de coproduo e construo conjunta de sentidos (1992, p.
421). Essa oposio, contudo, provm de um julgamento de valor, no de uma explicao
racional e refletida acerca da transferncia entre texto de partida e texto de chegada. Gambier
23
cf. NORD, Christiane . Scopos, Loyalty, and Translational Conventions. In: Target 3:1, p. 91109, 1991.
24
cf. BLOOM, Harold. A Map of Misreading. New York: Oxford University Press, 1980.
25
How far do we have to go to find the Original story of all originals?. Traduo nossa.
26
When reading a story to ourselves, when reading the story to someone else, when hearing the story, we
reevaluate, reemphasize, rethink it all over again. We bring ourselves to an individual situation, as we are; we
approve and disapprove, we agree and disagree, as we are. Every time a story is told, in translation, through
illustration or by reading aloud, it takes on new meanings, new life. Traduo nossa.
27
In my view, the main difference between translation and adaptation lies in our attitudes and points of view,
not in any concrete difference between the two. Traduo nossa.
20
identifica conceitos fluidos tanto para a traduo quanto para a adaptao, sendo, portanto,
difcil estabelecer uma fronteira entre ambas. A adaptao est na base dos processos
comunicativos, e a comunicao enquanto ajuste a parmetros situacionais, extralingusticos e
lingusticos pressupe tambm liberdade de escolha. Assim, Gambier emprega o termo
tradaptao (cunhado por Michel Garneau) para refutar a existncia de tradues puras, sem
a presena de elementos adaptativos:
criana e os objetivos pedaggicos da literatura infantil podem abalar seu estatuto literrio,
com o silenciamento de questes relativas sexualidade, ao racismo, segregao das
mulheres e outras mazelas da sociedade e de seus jogos de poder (CADEMARTORI, 1994,
p. 24) 30.
Riitta Oittinen (2002), por sua vez, no apenas v a adaptao como uma condio
natural de qualquer traduo, mas tambm como um fenmeno positivo que contribui para a
sobrevida dos clssicos31. O escritor e tradutor sueco Lennart Hellsing recorda que muitos
clssicos existem ainda apenas graas s adaptaes para crianas: eles devem ser adaptados
ou morrero.32 Tratamos, aqui, de adaptaes globais, conforme classificao proposta por
Georges L. Bastin. So adaptaes no apenas pontuais, mas que afetam todo o conjunto do
texto de chegada.
Para Bastin, tanto traduo quanto adaptao so de natureza interpretativa, e tm
estreita ligao entre si. Assim define ele a adaptao:
Assim como Gambier, Bastin tambm faz referncia aos fenmenos de comunicao
para fundamentar sua anlise da traduo. A adaptao uma questo de reexpresso, com
foco no polo receptor, de modo que a comunicao seja vivel. Ele prioriza os efeitos de
sentido no processo tradutrio, que devem ser detectados no original por meio de anlise
exegtica e dar o tom da traduo (BASTIN, 1990, p. 471). Bastin menciona ainda, como
um dos pontos chaves para a gerao do texto, sua lgica. Para a reorganizao lgica do
texto de chegada, necessrio ao tradutor um conhecimento de mundo: Ei-nos outra vez
decididamente no eixo fundamental da comunicao, o saber partilhado sendo um dos fatores
30
Zohar Shavit defende ponto de vista semelhante, afirmando que a liberdade que os tradutores tomam para
manipular os textos para crianas se deve ao fato de que esse gnero no tem no cnon o mesmo estatuto que a
literatura no infantil. cf. SHAVIT, Zohar. Translation of Childrens Literature as a Function of its Position
in the Literary Polysystem. Poetics Today v. 2, n. 4, p. 17179. 1981. Tal ideia tambm est presente nas
reflexes de Lefevere acerca do grau de comprometimento de uma refrao, que tratamos no item 1.1.
31
cf. STEINER, George. After Babel: Aspects of Language and Translation. New York: Oxford University
Press, 1976.
32
HELLSING, Lennart. Tankar om barnlitteraturen. Malm: Rabn & Sjgren, 1963.
33
Ladaptation est le processus, crateur et ncessaire, dexpression dun sens gnral visant rtablir, dans
un acte de parole interlinguistique donn, lquilibre communicationnel qui aurait t rompu sil y avait
simplement eu traduction. Traduo nossa.
22
34
Nous revoici dcidment dans laxe fondamental de la communication, le savoir partag tant lun des
facteurs primordiaux de la transmission dides. Traduo nossa.
35
A Semana, ed. 72, Rio de Janeiro e So Paulo, 1895, p. 24. Disponvel em http://memoria.bn.br/docreader/
DocReader.aspx?bib=383422&pagfis=1899&pesq=&esrc=s. Acesso em 04/11/2014.
23
Nem sempre tarefa fcil identificar a partir de qual idioma, e menos ainda de que
edio da obra original, as tradues foram produzidas. So obras raras que, quando
localizadas, no costumam trazer essa informao nos paratextos. O professor Gentil de Faria
(2008), que conseguiu localizar apenas a segunda edio da adaptao de Robinson Crusoe
por Carlos Jansen (a primeira publicao brasileira do romance), descreve os dados presentes
no livro: no havia, nesta edio, data de publicao, nem referncia ao nome do autor ingls,
Daniel Defoe, na capa ou na folha de rosto. Defoe mencionado apenas no prefcio de Slvio
Romero, datado de 1884. Assim, no se sabe a partir de qual edio e de qual idioma Jansen
produziu a adaptao, embora, em sua anlise, Faria use o texto ingls como arqutipo para
comparao (no para cotejo, uma vez que se trata de uma adaptao global). O Robinson
Crusoe de Jansen, publicado em 1885, a primeira verso do clssico no Brasil. bem
provvel que o adaptador conhecesse as tradues portuguesas, as edies francesas e uma ou
mais edies inglesas da obra. A proposta de Jansen no era produzir uma traduo integral,
mas um material de leitura agradvel para os jovens brasileiros nas escolas.
Sabe-se que a Frana foi, durante muito tempo, uma grande influncia nos costumes e
na literatura nacional:
Leonardo Arroyo, que fez um estudo minucioso da literatura para crianas e jovens
desde o sculo XIX at meados da dcada de 1960, fala das remessas de livros franceses ou
traduzidos em francs que chegavam ao Brasil enviadas pela Librairie Garnier Frres. Entre
os autores traduzidos estavam Andersen, os Irmos Grimm e Daniel Defoe (ARROYO, 1990,
p. 106). Lawrence Hallewell (1985, p. 320) atribui a prtica corrente de tradues indiretas
escassez de tradudores competentes em outras lnguas alm do francs e do espanhol.
A revista A Semana, que circulou entre 1885 e 1895, foi um hebdomadrio com
caractersticas de jornal dirio que tratava de literatura, arte e poltica e divulgava
24
36
A Semana, ed. 164, Rio de Janeiro e So Paulo, 1888, p. 34. Disponvel em:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=383422&pagfis=1899&pesq=&esrc=s. Acesso em
08/11/2014.
37
SWIFT, Jonathan. Gulliver's Travels. New York: W. W. Norton & Company, 1970. (A Norton Critical
Edition Revised/ An authoritative test; the correspondence of Swift; Pope's verses on Gulliver's Travels; Critical
Essays.)
38
JUNIOR, Gonalo. Conta outra: O livro das mil e uma noites ganha traduo direta do rabe. Revista
Pesquisa, ed. 115, So Paulo: Fapesp, set. 2005. Disponvel em: http://revistapesquisa.fapesp.br/
25
2005/09/01/conta-outra/. Acesso em 08/11/2014. Ressalte-se que no existe uma verso definitiva dessa
coletnea, conforme artigo da professora do departamento de Antropologia da Pontifcia Universidade Catlica
de So Paulo (PUC-SP), Mariza Werneck, publicado na revista Cult (http://revistacult.uol.com.br/home/
2010/03/livro-das-noites/) em maro de 2010. O livro chegou ao ocidente na traduo do francs Antoine
Galland, publicada entre 1704 e 1717, fonte mais usual de traduo em outros idiomas.
39
PIMENTEL, Figueiredo. Histrias da Avozinha. 1 Edio. Rio de Janeiro, 1896. Disponvel em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000137.pdf
26
Bem sabe que o editor mal paga o trabalho; mas um operrio como eu aspira a mais alguma
coisa que ao rendimento material (...) (BARBOSA, 1955).
O material traduzido consistia principalmente em contos e clssicos da literatura
mundial, como Perrault, Grimm e Andersen. Encabeada pela literatura escolar, essa guinada
nacionalista contou ainda com a incluso de autores brasileiros em seletas preparadas e
impressas em Portugal (SANDRONI, 1998, p. 11-12).
Ainda sobre o final do sculo XIX, Laurence Hallewell escreve:
Assim, Pedro da Silva Quaresma, embora fosse ele mesmo portugus, contratou o
jornalista Alberto Figueiredo Pimentel para produzir, em portugus do Brasil, a coleo que
seria intitulada Biblioteca Infantil. Em 1894, Quaresma publica Contos da carochinha, o
primeiro ttulo da srie.
Figueiredo Pimentel, embora considerado primognito em nossas letras infantis
(LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 29), no foi o primeiro a traduzir literatura infantil no
Brasil. Antes dele, outros tradutores brasileiros se ocuparam da tarefa, porm sem a
regularidade de Pimentel, com destaque para Carlos Jansen:
pesquisa de Hallewell (1985) e nos anais da Biblioteca Nacional40 pudemos levantar alguns
dados sobre a produo de Jansen:
Ressalte-se que essas adaptaes no eram voltadas para crianas, mas, como afirma
Machado de Assis em seu prefcio s Mil e uma noites, para adolescentes41.
Os editores Garnier, Laemmert e Quaresma, conforme relata Leonardo Arroyo,
constituam ento a trindade dos fornecedores de livros no Rio de Janeiro (ARROYO,
1990, p. 110). Quaresma era editor de livros populares, de onde nasce o desejo de abrasileirar-
lhe a linguagem:
40
Anais 1907, Vol. 29., p. 28. Biblioteca Nacional. Disponvel em: http://docvirt.com/docreader.net/
DocReader.aspx?bib=anais_bn&pagfis=23603&pesq=&esrc=s. Acesso em 10/11/2014.
41
Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. Publicado como prefcio a
Contos seletos das mil e uma noites, Rio de Janeiro, Laemmert & C., s/d. Republicada na Revista do Brasil,
junho de 1939. Disponvel em http://machado.mec.gov.br/images/stories/html/ critica/mact30.htm. acesso em:
15/09/2014.
28
jovens leitores com esses valores (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 30-31). Como
exemplos, Lajolo e Zilberman citam Cuore, 1886, do italiano Edmundo de Amicis, que teve
vrias tradues no pas (a mais conhecida a de Joo Ribeiro, de 1891), e Le tour de la
France par deux garons, 1877, da francesa G. Bruno (pseudnimo de Augustine Tuillerie,
esposa do escritor Alfred Fouill) que inspirou, em 1910, Atravs do Brasil, de Olavo Bilac
e Manuel Bonfim. Cuore ainda exemplo de como tradues portuguesas e brasileiras
chegavam a coexistir e dividir espao nas escolas, como relata Leonardo Arroyo (1990, p.
107).
Sandroni (1998) fala do ano de 1915 como um marco de transio na literatura
infantil publicada no pas, com a melhora da qualidade grfica dos livros publicados. Naquele
ano, a Weiszflog Irmos Editores, que posteriormente deu origem editora Melhoramentos,
inicia suas atividades com a publicao de O patinho feio, de Andersen, abrindo a Biblioteca
Infantil, organizada por Arnaldo de Oliveira Barreto (HALLEWELL, 1985, p. 258). Segundo
Leonardo Arroyo, os temas eram no poucas vezes adaptados por Arnaldo de Oliveira
Barreto e a coleo, anos mais tarde, foi revista pelo Prof. Loureno Filho (1990, p. 186).
Conforme informao no blog do Acervo Histrico do Livro Escolar42, organizado pela
sociloga e pesquisadora Azilde Andreotti, que rene livros escolares das antigas bibliotecas
pblicas infantis da cidade de So Paulo, O patinho feio foi adaptado pelo prprio Barreto. A
coleo pioneira na qualidade grfica, com ilustraes de Francisco Richter em cores,
impresso e acabamento primorosos (SANDRONI, 1998, p. 12).
Apesar da contratao de tradutores brasileiros para a publicao de obras estrangeiras
no pas, Monteiro Lobato (1882-1948), nas primeiras dcadas no sculo XX, ainda se
queixava do ar lusitano das tradues feitas no pas, conforme sua clebre declarao em carta
a Godofredo Rangel:
42
Disponvel em: http://acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br/2010/11/serie-biblioteca-infantil.html.
Acesso em 08/05/2015.
43
LOBATO, Jos Bento Monteiro. A Menina do Narizinho Arrebitado. So Paulo: Monteiro Lobato e Cia,
1920. Acervo Cedae/Unicamp.
29
A partir dos anos 70 notam-se algumas modificaes nesse quadro, que se vai
alterando no sentido de uma grande diversificao da produo com o
aparecimento de novos autores para atender ao crescimento do pblico leitor
provocado pela lei da reforma de ensino que obriga a adoo de livros de autor
brasileiro nas escolas de 1 grau. Mais uma vez a literatura infantil se v ligada
ao sistema de ensino. (1998, p. 17)
nos meios educacionais e culturais, conforme relata Maria da Glria Bordini. A partir da
dcada de 1980, com o processo de redemocratizao, bons autores estrangeiros voltam a ser
traduzidos (BORDINI, 1998, p. 44).
tambm na dcada de 1980 que as escolas se espalham em massa pelo pas, e o
governo, adquirindo livros para bibliotecas e escolas pblicas, passa a ser o principal cliente
da indstria editorial. Nesse mesmo perodo, abre-se espao para a presena de multinacionais
na educao brasileira, com destaque para a parceria entre a Fundao Roberto Marinho e a
Hoechst para a distribuio de 30 mil colees da Ciranda de Livros no ensino fundamental
da rede pblica. Escreve Bordini:
A literatura infantil, mais ainda que a literatura adulta, passou a ser uma importante
arma emancipatria e de resistncia. Bordini menciona sua importncia na semeadura de
ideias libertrias durante o regime de exceo, pois esse segmento, inferiorizado pela
assimetria de poder entre adulto e criana, muitas vezes passava despercebido pela censura:
Autores como: Ruth Rocha e seu O reizinho mando, Ana Maria Machado
com De olho nas penas e Do outro lado tem segredo, Lygia Bojunga Nunes
com Os colegas, Anglica e A bolsa amarela, Carlos de Marigny, com
Lando das ruas, Fernanda Lopes de Almeida com sua fadinha contestadora,
Srgio Caparelli e seus meninos da Rua da Praia, a Coleo do Pinto e
outros tantos, atravs do universo mgico dos livros infantis, puderam
desacreditar os valores que sustentavam a poltica de linha dura dos
militares, de certo modo induzindo uma gerao a pensar por si e a
desconfiar de ideias que matam. (1998, p. 38)
acessibilidade da decorrentes, o que renderia ainda outras discusses. Por ora, cabe-nos notar
que esses dois tipos de livros (o livro-revista e o livro de luxo) coexistem nas livrarias,
biblioteca, escolas e acervos privados os primeiros em quantidade superior aos segundos.
Os anos 1990 so conhecidos como a dcada das bibliotecas, que se tornam cada vez
mais acessveis aos jovens leitores. A literatura para crianas e jovens que remete para dentro
da prpria biblioteca uma das grandes linhas de fora na literatura para jovens nestes anos
90, escreve Numa Gonalves Lacerda (LACERDA, 1998, p. 61).
Como no poderia deixar de ser, mais uma contradio se coloca: se agora as crianas
e jovens tm acesso aos livros por meio das bibliotecas, o advento de novos meios de
entretenimento e informao, especialmente os eletrnicos, afastou paulatinamente os leitores
dos livros o que causou uma mudana na demanda por livros que perdura at hoje: A
demanda por livros se torna bem mais especializada. Compram os que precisam ler por razes
de atualizao profissional ou de formao geral e profissional. (BORDINI, 1998, p. 37) E
segue:
Lacerda define os anos 1990 como a era da literatura descartvel, tanto em termos da
qualidade literria do texto quanto em termos de edies baratas, sem preocupao com a
esttica ou com a durabilidade do livro (1998, p. 72). Passados mais de 20 anos, a literatura
descartvel segue forte no mercado. Grandes redes de livrarias exibem em suas estantes
colees de tradues sem autoria, com as mesmas antigas histrias de domnio pblico em
verses que pouco diferem uma da outra e ilustraes simplrias feitas no computador por
profissionais que no so artistas ou designers, muitas plagiadas dos desenhos animados da
Disney. Os estandes das feiras e bienais dedicadas ao tema tambm esto repletos de
personagens licenciados, livros com brilho, livros cor de rosa para meninas e azuis para
meninos.
33
44
Como exemplo, citamos Histrias maravilhosas de Andersen (Fairy tales from Hans Christian Andersen, Cia
das Letrinhas, 1995, trad. Heloisa Jahn) e Contos maravilhosos infantis e domsticos 1812-1815 (Kinder- und
Hausmrchen 1812-1815), de Jacob e Wilhem Grimm (Cosac Naify, 2012, trad. Christine Rhrig).
34
45
Para uma fecunda discusso acerca das teorias literrias que permearam a histria e que coexistem at a
atualidade, ver EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introduo. Traduo: Waltensir Dutra
[reviso da traduo: Joo Azenha Jr.] 6 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2006.
35
linguagem pode ser um critrio para definir literatura, uma vez que os livros-imagem, ou
livros sem palavras, tambm esto compreendidos no universo literrio). Trata-se de uma
experincia de leitura peculiar, diferente daquela que temos diante de textos pragmticos, no
ficcionais embora a classificao de certos textos como ordinrios ou especiais, cannicos,
literrios nem sempre seja unnime.
O ingls Terry Eagleton fala da literatura como exemplo supremo da rica
interioridade da vida pessoal (2006, p. 297). Percebe-se a um elemento de introspeco, de
subjetividade. A teoria literria, para Eagleton, tem a ver com significao, valor, linguagem,
sentimentos e experincia humanos: Na verdade, a teoria literria , em si mesma, menos um
objetivo de investigao intelectual do que uma perspectiva na qual vemos a histria de nossa
poca (2006, p. 294). Sendo assim, todas as teorias literrias, por mais puras, objetivas,
neutras, tcnicas, cientficas e universais que se pretendam, so, por natureza, ideolgicas e
polticas. O mesmo ocorre com qualquer teoria da traduo.
O ponto de vista de Eagleton, embora nos ajude pouco em termos de definio de
nosso objeto de estudo, apresenta uma perspectiva bastante realista a partir da qual podemos
enxergar a literatura pensada para crianas. Da mesma forma que aquilo que se apresenta
como literatura em geral, o que se considera literatura infantil no pode ser considerado
universal e inquestionvel: parte de um ponto de vista em relao no apenas ao que a
literatura, mas ao que a infncia em geral. O carter poltico e ideolgico notadamente
presente na produo, na distribuio e na mediao da literatura para crianas. Questes
como censura, educao, doutrinao, so marcantes em uma literatura produzida por adultos
para crianas o que gera uma comunicao de natureza assimtrica, segundo OSullivan:
46
The asymmetrical nature of the communication in childrens literature is reflected in this model as follows:
an adult implied author creates an implied reader based on her/his (culturally determined) presuppositions as to
the interests, propensities and capabilities of readers at a certain stage of their development. Traduo nossa.
36
47
Para justificar tal afirmativa, listamos a seguir algumas editoras e as etiquetas que do a essa categoria de
literatura. Rocco: jovens leitores; Globo: Globinho; Publifolha: Publifolhinha; Cosac Naify: infantojuvenil;
Zahar: Pequena Zahar; Sextante: infantil; Saraiva: infantil e juvenil (uma nica categoria); wmf Martins Fontes:
infantis e juvenis (uma nica categoria); tica: infantil e juvenil (duas categorias); Cia das Letras: Cia das
Letrinhas e Seguinte (duas categorias); Projeto: infantil, juvenil e infanto-juvenil (trs categorias). Das editoras
listadas, oito possuem apenas uma etiqueta para a literatura destinada ao pblico infantil e/ou jovem, enquanto
apenas trs apresentaram etiquetas distintas. H ainda as editoras especializadas em literatura infantil que no
possuem categorias internas, como a Brinque-book e a Callis. Finalmente, h as editoras especializadas em livros
didticos e pedaggicos, que tm a subsesso literatura, tais como a FTD (que classifica ainda os livros de
literatura por ano escolar) e a Positivo.
48
No tpico sobre a histria da literatura infantil no fizemos esta separao, pois o material de pesquisa
disponvel sobre o assunto abarca a categoria mais genrica de literatura para crianas e jovens e fornece as
bases para a leitura mais recortada que propomos aqui.
37
geral, especialmente considerando o trnsito de muitos autores de peso entre a literatura dita
adulta e a infanto-juvenil (Jos Saramago, Eduardo Galeano, Ferreira Gullar, Bartolomeu
Campos de Queirs, Ceclia Meireles, Vincius de Moraes, Chico Buarque, C. S. Lewis,
apenas para citar alguns). Considerar a literatura adulta na anlise da literatura infanto-
juvenil e vice-versa seria, portanto, enriquecedor para os dois lados: como se a literatura
infantil e a no-infantil fossem polos dialticos do mesmo processo cultural que se explicam
um pelo outro, delineando, na sua polaridade, a complexidade do fenmeno literrio...
(LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 10).
Lembramos ainda de livros que, embora tenham a apresentao material de livro
infantil, parecem no ser exatamente direcionados s crianas, como o caso de Os gatos
(The Old Possum's Book of Practical Cats), de T. S. Eliot (Cia. das Letrinhas, 2010), acerca
do qual seu tradutor, Ivo Barroso, tece interessantes comentrios que sero discutidos no
captulo 3 (item 3.3). Tais livros possuem o que Ritta Oittinen chamou de pblico dual (dual
audience), duas camadas de leitura, uma para adultos e outra para crianas (2002, p. 64).
Zohar Shavit trata do assunto em seu Poetics of Childrens Literature, em captulo
intitulado The ambivalent status of texts. Para Shavit, o sistema [literrio] infantil tem uma
auto-imagem fraca que impe limitaes para o texto49. Uma delas a necessidade de dirigir-
se simultaneamente criana e ao adulto. A maioria dos escritores de literatura infantil,
segundo Shavit, escrevem dentro desses limites; contudo:
(...) alguns tentam super-los por meio de duas solues extremas: rejeitar
completamente os adultos (tpica do sistema no canonizado; (...) e dirigir-se
essencialmente aos adultos, usando as crianas como uma desculpa, mais
que como um destinatrio real (tpica do sistema canonizado)50 (1986, p. 63).
49
As ideias de Shavit a esse respeito so bastante conservadoras. Entre as restries impostas ao sistema infantil,
por exemplo, Shavit menciona a tendncia de auto-perpetuao, a aceitao apenas do que conhecido e vivo e
a relutncia do sistema em admitir novos modelos (the tendency to self-perpetuation, the acceptance of only the
well known and extant and the reluctance of the system to admit new models. Traduo nossa) (1986, p. 63). As
inovaes possibilitadas pelo livro ilustrado, a rpida evoluo grfica do objeto livro e suas repercusses
tambm sobre seu contedo textual vm colocar em cheque a viso de Shavit.
50
(...) some try to overcome them through two extreme solutions: rejecting adults altogether (typical of the
noncanonized system; (...); and appealing primarily to adults, using the child as an excuse rather than as a real
addressee (typical of the canonized system). Traduo nossa.
38
em outros sistemas semiticos, tais como sistemas sociais, implica que certo signo (neste
caso, um texto literrio) entra em mais de uma oposio de estatutos dentro do mesmo
sistema51 (SHAVIT, 1986, p. 64).
Shavit se refere ao conceito de ambivalncia de Lotman52, que trata, entre outras, da
mudana de estatuto de textos originalmente no direcionados a crianas, como os de
Dickens. A autora, porm, restringe o escopo de Lotman por consider-lo demasiado amplo:
Shavit prope assim uma noo de ambivalncia aplicada apenas a textos que, de
maneira sincrnica (embora dinmica), mantenham um estatuto ambivalente no seio do
polissistema literrio. So textos que pertencem a mais de um sistema e, consequentemente,
so lidos de maneira diferente por pelo menos dois grupos de leitores (idem, p. 66). No so
apenas textos de maior flego, como os de Dickens, Carroll, Defoe que possuem essa
ambivalncia em si. O pblico dual da literatura infantil tampouco se restringe quelas obras
que, embora curtas, tenham sido escritas por autores cannicos da literatura no-infantil,
como Cortzar, com Discurso do urso (Discurso del oso), publicado pela Record (2009, Trad.
Leo Cunha), T. S. Eliot com Os gatos (The Old Possum's Book of Practical Cats), publicado
pela Cia das Letrinhas (2010, Trad. Ivo Barroso) ou James Joyce com O gato e o Diabo (The
Cat and the Devil), publicado pela Cosac Naify (2012, Trad. Tatiana Belinky). Vale ressaltar,
todavia, que, ao contrrio de Shavit, no consideramos um comportamento tpico da literatura
no cannica dirigir o texto tanto para crianas como para adultos. A dupla camada de leitura
pode, ao contrrio, enriquecer a obra, como o caso de Uma girafa e tanto, do estadunidense
Shel Silverstein, texto cuja traduo analisamos no captulo 3. A criana se diverte com as
51
The phenomenon of a diffuse status, well known in other semiotic systems, such as social systems, implies
that a certain sign (in this case a literary text) enters into more than one opposition of status within the same
system. Traduo nossa.
52
Cf. LOTMAN, Jurij. The Content and Structures of the Concept of Literature. PTL: A Journal for
Descriptive Poetics and Theory of Literature 1(2): 339-356, 1976.
53
Lotman's notion of ambivalence refers to a vast range of different texts. According to his concept, almost any
text could be described, from the historical point of view, as ambivalent, because almost every text has
historically changed its status in the literary polysystem due to the dynamics nature of that system. Traduo
nossa.
39
Na verdade, seria uma literatura cujo tema aventura, ou viagens, e que foi,
tardiamente, identificada como infanto-juvenil, talvez devido ao tema, talvez devido a seu
carter formativo, da Bildung54.
Peter Hunt, terico ingls especializado em literatura para crianas, afirma que a
literatura infantil (e as crianas) uma parte da cultura que no podemos ignorar. (2010, p.
15. Grifo nosso.) Nesse sentido, concorda com Eagleton quanto ao carter poltico e
ideolgico das teorias que se debruam tambm sobre a literatura infantil.
Hunt declara que a literatura infantil se define exclusivamente em termos de um
pblico que no pode ser definido com preciso (idem, p. 23). O autor desfaz certas
premissas abundantes entre os crticos em relao literatura para crianas, como a de que
adultos e crianas deduziriam sentidos semelhantes do texto, ou de que a leitura do adulto, se
discordante daquela da criana, seria a correta. Assim, prope que se definam princpios
bsicos para que possam ser feitas escolhas criteriosas diante da grande oferta de livros
infantis, e mesmo diante das listas sugestivas de cnones oferecidas por instituies que,
muitas vezes, possuem interesses comerciais. As diretrizes de Hunt so teis quando
pensamos nos critrios de seleo de obras a serem traduzidas.
54
Para maiores reflexes acerca do conceito alemo de Bildung, cf. BERMAN, Antoine. Bildung et
Bildungsroman. Le temps de la rflexion, v. 4, Paris, 1984.
40
Riitta Oittinen afirma que a literatura infantil definida a partir de uma ideia que se
tem acerca da infncia. Essa ideia , ao mesmo tempo, individual, baseada na histria pessoal
de cada um, e coletiva, compartilhada pela sociedade:
Oittinen apresenta, ento, sua prpria viso acerca da literatura infantil: uma literatura
lida silenciosamente por crianas e em voz alta para crianas. (idem, p. 5) O trabalho de
Oittinen que alm de pesquisadora tambm tradutora de livros ilustrados voltado
essencialmente para crianas em idade pr-escolar (sete anos, na Finlndia). Contudo,
reconhece que a infncia um conceito fluido.
Embora no haja acordo sobre a definio de criana e seja praticamente impossvel
classificar os livros conforme uma faixa etria definida, Oittinen se permite definir duas
caractersticas especficas da literatura infantil: os livros costumam ser ilustrados e pensados
para serem lidos em voz alta. Poder-se-ia argumentar que livros no infantis tambm podem
ser pensados para serem declamados, como a poesia e a prosa potica. Mas, na literatura que
atende primeira infncia, essa caracterstica se universaliza, uma vez que estamos lidando
com um pblico que nem sempre alfabetizado e para o qual a leitura uma experincia de
compartilhamento. A mediao , assim, um ponto marcante da literatura para crianas, e
acerca dela cabem aqui algumas observaes.
A primeira experincia de leitura da criana compartilhada. O livro um instrumento
de comunicao, de contato entre a criana e o adulto. O designer grfico e autor de livros
infantis japons Katsumi Komogata, no evento Conversas ao P da Pgina II56, relata como
comeou a fazer livros para crianas:
55
When publishers publish for children, when authors write for children, when translators translate for
children, they have a child image that they are aiming their work at (...). Moreover, when speaking of child and
childrens literature, we should be able to dene them somehow. Yet there is little consensus on the denition of
childhood, child, and childrens literature. Traduo nossa.
56
O Conversas ao P da Pgina um espao de debates organizado desde 2011 pela revista eletrnica Emlia,
dedicada literatura infantil, e pelo centro de estudos, pesquisa e assessoria Cor da Letra. A segunda edio do
evento, realizada em 2012, resultou na publicao de uma revista organizada por Dolores Prades e Patrcia
Pereira Leite.
41
Foi em 1988, quando nasceu minha filha. No incio, eu no era um bom pai,
pois no sabia como lidar com um beb, porque ela era muito frgil.
Entretanto, quando fez trs meses, ela j me olhava com muita ateno,
como se estivesse perguntando quem eu era. (...) Quando a minha filha
comeou a olhar para mim, quis estabelecer algum tipo de comunicao com
ela. (...) Recortei vrios cartes e mostrava para ela, percebi ento que
minha filha, ainda beb, comeava a responder ao que via. (PRADES, 2013,
p. 167. Grifos nossos.)
Pode-se ter como hiptese que um autor faz livros para um receptor (ainda que muitos
neguem ter o leitor como motivao), como Komogata passou a fazer livros para sua filha.
Contudo, no caso do designer japons, ele se coloca no apenas como autor, mas tambm
como mediador da leitura. Assim como na literatura em geral, os mediadores so muitos
(ilustradores, diagramadores, tradutores, editores, livreiros), mas no que diz respeito
primeira infncia, o mediador final aquele que l para a criana, os pais, os professores, os
irmos mais velhos, os avs tem presena marcante.
Quando minhas filhas tomavam um livro nas mos e saam caminhando atrs de mim,
pedindo l, mame, l!, elas desejavam no apenas um auxlio para decifrar os cdigos que
ainda no conheciam (as letras, as palavras novas, as convenes de representao grfica57,
as convenes narrativas), mas tambm uma companhia, um contato humano. A leitura
infantil marcada pela mediao e, portanto, pelo afeto.
Existem, assim, razes para acreditar que algumas caractersticas so peculiares aos
livros para a primeira infncia que, ainda que possam estar presentes na literatura dita para
adultos, tm mais presena, mais peso, e so indissociveis da literatura infantil: mediao,
oralidade, visualidade, sensorialidade. Para Peter Hunt, a literatura infantil est se tornando
auto-definidora (HUNT, 2010, p. 100). Lajolo e Zilberman, embora afirmem, como foi dito
acima, que o infantil da literatura mais uma questo de circulao que de caractersticas
intrnsecas aos livros ditos infantis, reconhecem que certos traos se tornaram tpicos dos
livros para crianas, como a ilustrao:
curtos com grandes ilustraes, como as obras de David McKee ou Maurice Sendak; ou vrias
gradaes entre esses exemplos.
A pesquisadora mexicana Evelyn Arizpe Solana (2013-2014), da Universidade de
Glasgow, considera o livro lbum como uma categoria especfica dentro do selo infanto-
juvenil:
Nikolajeva e Scott (2011) lembram que palavra e imagem podem relacionar-se de uma
infinidade de formas, numa dinmica em que os dois extremos seriam um texto sem imagens
e um livro-imagem, sem palavras (2011, p. 23). O livro ilustrado estaria entre esses dois polos
(embora parea se aproximar mais de um livro-imagem que de um texto sem imagens). As
autoras retomam a noo de iconotexto de Kristin Hallberg59 para distinguir o livro ilustrado
[picturebook] dos livros com ilustrao [picture books] ou livros com imagens [books with
pictures]60.
Sophie Van der Linden (2008) fala no livro ilustrado [livre illustr] como aquele no
qual a primazia dada ao texto e a imagem tem a funo ilustrativa. O lbum ilustrado [album
illustr] seria um objeto hbrido, apresentando uma preponderncia das imagens mas
permanecendo prximo do livro ilustrado em sua organizao e na prioridade conferida ao
texto (VAN DER LINDEN, 2008, p. 51)61. O texto verbal o principal responsvel pela
narrativa, e as imagens permanecem subordinadas ao texto. Para o nosso objeto de estudo, o
58
Dentro del conjunto de obras que se consideran como literatura infantil y juvenil, el libro lbum es uno de
los ejemplares ms sofisticados e innovadores ya que extiende una excepcional invitacin al lector a terciar en
un complejo juego entre la palabra y la imagen. Si acepta la invitacin, el lector debe atender a los diversos
elementos semiticos ofrecidos por el autor/ilustrador, crear puentes y llenar vacos en una labor interactiva y
recursiva de construccin de significados. Traduo nossa.
59
HALLBERG, Kristin. Litteraturvetenskapen och bilderboksforskningen. In: Tidskrift fr
litteraturvetenskap, n. 3-4, 1982. p. 163-168. O iconotexto seria uma entidade indissocivel de palavra e
imagem, que cooperam para transmitir uma mensagem. (NIKOLAJEVA & SCOTT, 2001, p. 21)
60
Os termos foram empregados conforme a traduo de Cid Knipel para a edio brasileira do livro. Contudo,
no meio editorial, e entre pesquisadores e educadores, tem sido frequentemente empregado o termo lbum
ilustrado para o que seria o picturebook de Nikolajeva e Scott.
61
(...) objet hybride, prsentant une prpondrance des images mais restant proche du livre illustr dans son
organisation et dans la priorit qui est donne au texte. Traduo nossa.
45
livro no qual texto e imagem tm pesos semelhantes, Van der Linden usa simplesmente o
termo lbum [album].
Peter Hunt, na traduo de Cid Knipel, ope livro-ilustrado62 a livro com
ilustraes, sendo a distino, em grande parte, organizacional. No livro-ilustrado, os
elementos visuais so responsveis por expressar uma boa parcela da complexidade da
narrativa. Exatamente por isso, defende Hunt, essa categoria de livro tem sido desprezada pela
crtica, pois a linguagem verbal pode parecer mais simples do que em livros que se apoiam
somente nela. Contudo, exatamente essa interao texto-imagem que torna o livro-
ilustrado especialmente complexo e interessante. Ao citar o escritor e ilustrador britnico
Philip Pullman, Hunt (2010) menciona o diferente fluxo de leitura que existe nos livros-
ilustrados, pois vrios elementos so visualizados simultaneamente, no importando tanto
qual lemos primeiro. Ademais, texto e imagem podem se relacionar em uma infinidade de
relaes: as palavras podem aumentar, contradizer, expandir, ecoar ou interpretar as imagens
e vice-versa. Os livros-ilustrados podem cruzar o limite entre os mundos verbal e pr-
verbal (2010, p. 233-234).
Outra marca dos livros-ilustrados, ou lbuns ilustrados, que neles a relao texto-
imagem to profunda que eles no aceitariam uma nova ilustrao sem serem
descaracterizados. Maurice Sendak tem um texto peculiar, que poderia ser reconhecido
mesmo sem suas (tambm caractersticas) ilustraes. Contudo, tratar-se-ia de outra obra,
uma vez que os elementos visuais carregam parte essencial da narrativa. Em Onde vivem os
monstros (Where the Wild Things Are), publicado pela Cosac Naify em 2009 com traduo de
Helosa Jahn, por exemplo, as primeiras ilustraes so pequenas, e vo crescendo at
ocuparem a pgina inteira, medida que o protagonista Max vai se distanciando do mundo do
seu quarto e entrando na fantasia.
Diferentemente dos livros ilustrados, os livros com ilustrao podem ser reilustrados
em edies diferentes ou em tradues. H inmeros casos de tradues com reilustrao, em
que ilustradores brasileiros so contratados para reilustrar (e, consequentemente, reinterpretar)
obras estrangeiras, o que tambm pode ser entendido como uma traduo feita entre sistemas
semiticos63. O poema O aprendiz de feiticeiro (Der Zauberlehrling), de Goethe (Cosac
62
A expresso livro-ilustrado, com hfen, ser usada sempre entre aspas por se tratar de terminologia
especfica de Hunt (2010), na traduo brasileira. No restante do trabalho falaremos em livro ilustrado, sem
hfen, expresso correntemente usada para se referir a essa modalidade de obra (cf. VAN DER LINDEN, 2011).
63
A esse respeito, ver tese de doutorado de Nilce Maria Pereira, orientada pelo Prof. Dr. John Milton.
PEREIRA, Nilce Maria. Traduzindo com imagens: a imagem como reescritura, a ilustrao como traduo.
46
Naify, 2006, Trad. Mnica Rodrigues da Costa), ganhou ilustraes de Nelson Cruz que
retratam o aprendiz como um morador de favela. Maria Rosa: uma brincadeira de carnaval
(Maria Rosa), de Vera Kelsey (Record, 1983, Trad. Laura Sandroni), foi publicado no Brasil
com ilustraes de Cndido Portinari. As tradues reilustradas tm sido uma modalidade de
publicao bastante frequente no setor infanto-juvenil. No entanto, elas extrapolam nosso
recorte, que permanece no universo do lbum ilustrado.
As fronteiras do livro ilustrado por vezes extravazam tambm para a seara das artes
grficas e plsticas. Atualmente, o livro ilustrado tem se tornado reduto de artistas plsticos
entre os quais poderamos citar, no Brasil, Renato Moriconi, Fernando Vilela, Odilon Moraes,
ngela Lago, Eva Furnari, Janana Tokitaka, Marilda Castanha. Como afirmou o designer e
autor de livros infantis japons Katsumi Komagata em mesa no evento Conversas ao P da
Pgina, em 2012: No vejo nenhuma diferena entre arte e ilustrao. A diferena est no
business. (PRADES, 2013, p. 191) De fato, algumas obras se situam na interseco da
histria da arte e da histria do livro ilustrado, conforme depoimento do pesquisador belga
Michel Defourny em Para ler o Livro Ilustrado, de Sophie Van der Linden (2011): Songs of
Innocence and of Experience (1789), de William Blake; A histria dos dois quadrados
(1922), de El Lissitzky; Die Nibelungen (1909), de Carl Otto Czeschka, entre outros. Diante
desses objetos raros, preciosos, diferentes ou estranhos, os adultos, muitas vezes
desconcertados, custam a acreditar que se trate de livros para criana (2011, p. 27).
Finalmente, cabe ressaltar que o livro ilustrado se define no apenas pelo
imbricamento entre texto e imagem, mas tambm por uma ntima relao desses com o
suporte. Conforme recorda Sophie Van der Linden: A prpria organizao desses textos e
dessas imagens no livro (em primeiro lugar, na pgina dupla) gera sentido, acrescentando
assim uma nova dimenso expressiva aos dois primeiros (VAN DER LINDEN, 2008, p.
51)64. Assim, o formato do livro, a capa, as texturas, abas, janelas e outros recursos grficos
tambm do sentido obra e devem ser considerados em sua leitura. A mise en page, ou a
forma como o ilustrador organizar as informaes grficas e textuais na pgina de forma a
tirar o melhor proveito do suporte, condiciona em grande parte o discurso veiculado (2008, p.
51).
2008. Tese de Doutorado em Estudos Lingsticos e Literrios em Ingls Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas. Universidade de So Paulo, So Paulo. Disponvel em: http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/8/8147/tde-03092009-172824/. Acesso em: 08/05/2015.
64
Lorganisation mme de ces textes et de ces images dans le livre (en premier lieu la double page) fait sens,
ajoutant donc une nouvelle dimension expressive aux deux premires. Traduo nossa.
47
CAPTULO 2
Desenhar um mapa, por mais rudimentar que seja, dos livros ilustrados para crianas
traduzidos no Brasil uma tarefa que exige uma pesquisa manual cuidadosa. Em primeiro
lugar, preciso selecionar, entre o vasto montante de literatura traduzida para crianas, uma
amostra para anlise, segundo critrios definidos. Em seguida, necessrio peneirar, entre os
livros classificados na rubrica infanto-juvenil, aqueles que tm as caractersticas de livro
ilustrado, conforme definio tratada anteriormente com texto e ilustrao ocupando pesos
semelhantes na obra e que possam ser lidos (ou parafraseados) para crianas ainda no
alfabetizadas.
Nossa amostra ser retirada dos catlogos de trs editoras selecionadas (Cosac Naify,
Brinque-Book e Pequena Zahar), conforme critrios que sero explicitados no item 2.1.2. Para
esta pesquisa, foram considerados os livros que estavam em catlogo nos anos de 2013 e
2014, tendo sido publicados naqueles anos, como lanamento, ou no.
A fim de no viciar a amostra, visto que algumas editoras se especializam em um
determinado tipo de publicao e tm metodologias especficas para a contratao de
tradutores, levantaremos tambm as obras premiadas ou presentes nas listas de melhores
livros, montadas por instituies reconhecidas, como a Fundao Nacional do Livro Infantil e
Juvenil (FNLIJ), ou pela grande mdia, como a Revista Crescer. Tais prmios e listas so
muito influentes na escolha que os mediadores pais, professores, educadores e instituies
escolares fazem ao adquirir os livros.
Os catlogos das editoras nos mostram um cenrio do que est sendo publicado em
termos de traduo; os prmios e listas apontam tendncias de consumo. Contudo, para
conhecer o que de fato tem sido adquirido para as crianas e apresentado a elas, uma preciosa
fonte so os acervos do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), conduzido pelo
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao (FNDE), autarquia vinculada ao Ministrio
da Educao. Iniciaremos por a nossa cartografia.
50
percentual mximo de literatura traduzida que pode constar nos acervos, embora a literatura
nacional venha ocupando um espao bem maior que a estrangeira nas selees.
Os critrios de avaliao e seleo expostos no edital revelam os ideais polticos e
ideolgicos que motivam a escolha dos ttulos:
Para montar seus acervos, o FNDE tem contratado consultorias especializadas, com
destaque para a FNLIJ, em 1999, e para o Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita, da
Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais (Ceale/FaE/UFMG), em
2008. Atualmente, o Ceale atua como Coordenador Geral do processo seletivo, do qual
participam cerca de 100 avaliadores distribudos pelos estados brasileiros68.
Em 2008, o Ministrio de Educao, em conjunto com a UFMG, publicou um
catlogo69 das 60 obras selecionadas para comporem os trs acervos distribudos quele ano
para a educao infantil. O catlogo expe um pouco da histria do PNBE e explica como
suas aes so realizadas:
68
Informao prestada por e-mail pelo professor Carlos Augusto Novaes, Coordenador do Grupo de Pesquisa do
Letramento Literrio (GPell/Ceale/UFMG), em 16/10/2014.
69
PAIVA, Aparecida et al. Literatura na infncia: imagens e palavras. Braslia: Ministrio da Educao,
Secretaria de Educao Bsica; Belo Horizonte: UFMG, Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita, 2008.
52
A fim de obter uma viso geral da literatura traduzida que tem sido distribuda pelo
Estado nos ltimos anos, tomamos quatro acervos para anlise: 2008, 2010, 2012 e 2014. O
PNBE atende alternadamente: 1) as escolas de educao infantil, de ensino fundamental (anos
iniciais) e de educao de jovens e adultos; e 2) as escolas de ensino fundamental (anos finais)
e de ensino mdio. O que nos interessa aqui so os livros distribudos primeira infncia, ou
seja, creche e pr-escola, que tm sido atendidas nos anos pares.
O guia PNBE na escola Literatura fora da caixa70, elaborado pelo Ceale/UFMG
para orientar os professores quanto ao uso dos acervos, apresenta um levantamento do total de
livros inscritos pelas editoras para a seleo do PNBE 2014, nas seguintes categorias:
1) 0-3 anos;
2) 4-5 anos;
3) anos iniciais do ensino fundamental;
4) educao de jovens e adultos.
Na faixa de 0-3 anos (creches), o nmero de incries foi bastante reduzido: apenas
3% do total. A categoria 2 (4-5 anos) teve 18% das inscries. J os anos iniciais do Ensino
Fundamental tiveram mais da metade dos inscritos (55%). Segundo o relatrio, tal
constatao evidencia uma carncia na produo editorial disponvel para a primeira infncia.
O guia Literatura fora da caixa apresenta, ainda, dados relativos aos gneros textuais
inscritos para a seleo. Conforme o edital do PNBE 201471:
70
MINISTRIO DA EDUCAO; Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita da Universidade Federal de
Minas Gerais. PNBE na escola: literatura fora da caixa. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de
Educao Bsica, 2014.
71
Item 4.3 do Edital PNBE 2014. Disponvel em: http://www.fnde.gov.br/programas/biblioteca-da-
escola/biblioteca-da-escola-consultas/item/3982-edital-pnbe-2014. Acesso em 27/02/2015.
53
O relatrio aponta que a quantidade de livros em prosa inscritos pelas editoras bem
superior s outras duas categorias: para a faixa de 0-3 anos, 48% dos livros apresentados
foram em prosa; para a faixa de 4 e 5 anos, o montante foi de 60%:
72
PNBE na Escola: literatura fora da caixa, 2014. p. 13.
73
Idem, p. 14.
74
Os acervos esto disponveis para download e consulta no endereo eletrnico http://portal.mec.gov.br/
index.php?option=com_content&view= article&id=13698&Itemid=986. Acesso em 21/07/2014.
TABELA 1 Tradues nos acervos do PNBE 2008
Uma histria atrapalhada A sbagliare le storie Gianni Rodari, Alessandro Biruta It. Italiano Silvana Cobucci Leite e Denise
Sana (il.) Mattos Marino
Vira-lata Mutt dog! Stephen Michael King Brinque-Book EUA Ingls Gilda de Aquino
TABELA 2 Tradues nos acervos do PNBE 2010
Pequeno 1 Little 1 Paul Rand, Ann Rand Cosac Naify EUA Ingls Alpio Correia de Franca Neto
Cinco ovelhinhas Cinco ovejitas Ana Guerrero, Andrs SM Esp. Espanhol Rodrigo Vilella
Guerrero
A histria dos lobos de todas as Over de blauwe gele rode oranje Jan de Maeyer Biruta Belg. Holands Marcelo Jordo
cores roze paarse groene bruine grijze
appelblauwzeegroene witte en
zwarte wolf
O homem da chuva L'omino della pioggia Gianni Rodari, Nicoletta Biruta It. Italiano Francisco Degani
Costa (il.)
TABELA 3 Tradues nos acervos do PNBE 2012
75
Inclumos no levantamento estatstico os livros imagens, pois embora neles a traduo interlingustica se
restrinja aos ttulos e paratextos, tais obras representam uma escolha institucional de autores estrangeiros diante
dos nacionais.
59
PNBE , que carregam em si esse custo. O grande livro de palavras da Ninoca (Maisys
Amazing Big Book of Words), de Lucy Cousins (tica, 2010, trad. Maria Elza M. Teixeira),
que compe um dos acervos do PNBE 2012, em julho de 2014 estava sendo vendido por
R$ 60,90 no site da livraria Saraiva76. Para o Estado, existe o benefcio da reduo de preos
pela compra em larga escala. Ressalte-se, porm, que os livros adquiridos para o PNBE nem
sempre tm as mesmas caractersticas grficas que aqueles distribudos pelas editoras s
livrarias, uma vez que se torna invivel produzir uma quantidade massiva de livros em um
curto espao de tempo com certos tipos de papel, por exemplo.
O autor e ilustrador Renato Moriconi, que tem cinco livros no PNBE (E a mosca foi
pro espao, Dia de Sol, Telefone sem Fio, Bocejo, O alvo77), relatou-nos em entrevista via
Skype sua viso acerca da venda de livros para o governo:
Em linhas gerais, o perfil dos livros traduzidos selecionados para o PNBE caracteriza-
se: por uma variedade considervel de editoras representadas; pela predominncia de pases e
idiomas centrais nas seletas; pela presena de tradutores de perfis diversos, com destaque para
poetas, escritores e pesquisadores; pela predominncia de textos em prosa; pela qualidade
literria e grfica dos ttulos.
Embora representem uma importante amostra da literatura traduzida que vem sendo
apresentada primeira infncia, os acervos do PNBE no refletem exatamente o mercado
editorial brasileiro. Enquanto as editoras precisam sobreviver, no podendo lanar-se
76
http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/3362783/o-grande-livro-de-palavras-da-ninoca/. Acesso em
29/07/2014.
77
Dia de Sol, Jujuba, 2009; E a mosca foi pro espao, DCL, 2011; Telefone sem Fio, Cia. das Letrinhas, 2010;
Bocejo, Cia das Letrinhas, 2010; O alvo, tica, 2011. Os trs ltimos ttulos so de co-autoria com o escritor Ilan
Brenman.
78
Trecho de entrevista concedida por Renato Moriconi a esta pesquisadora via Skype em 25/11/2014. Os traos
de oralidade foram mantidos na transcrio.
61
publicao de obras sem considerar seu retorno comercial, o Estado pode exercer um papel de
resistncia, priorizando a qualidade literria e esttica em detrimento dos apelos
mercadolgicos do livro. interessante, ainda, analisar o peso que a literatura traduzida tem
tido no mercado editorial, uma vez que o PNBE sempre ter o compromisso de apresentar s
crianas a literatura nacional e de garantir a sua permanncia.
Evidentemente, no podemos desprezar a relao do Estado com o mercado. Ter um
livro selecionado para o PNBE garante editora vendas massivas, alm de prestgio. O Estado
segue sendo o maior cliente das editoras que publicam literatura infantil, o que as estimula a
buscar publicaes que venham a ser selecionadas para programas como o PNBE e o
Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD), ou para a aquisio por governos locais.
Assim, altamente provvel que, sem o Estado e sem a instituio escolar, o mercado para a
literatura infantil fosse bem diferente.
Contudo, o acervo das editoras se compe de muito mais ttulos alm daqueles que
conseguem ser selecionados pelo MEC. No ano de 2012, por exemplo, entre as editoras
vencedoras, cada uma vendeu apenas trs ou quatro ttulos traduzidos para os acervos da
educao infantil, havendo uma variedade considervel de editoras representadas. Assim,
procuramos ampliar nossa amostra a partir dos catlogos de trs editoras, a fim de buscar uma
viso um pouco mais clara da traduo infantil no mercado livreiro.
79
Constam da lista: todas as editoras representadas no PNBE 2008-2014, anos pares, acervos de creches e pr-
escolas; todas as editoras identificadas em pesquisa na biblioteca da FNLIJ por nome de tradutor, considerando
todos os tradutores que aparecem nos acervos do PNBE e nos catlogos das editoras aqui analisadas; outras
identificadas manualmente pela busca em mais de 200 ttulos, disponveis em bibliotecas pblicas infantis,
livrarias e em minha biblioteca pessoal.
62
A fim de obter uma viso mais ampla da literatura traduzida para crianas no Brasil,
tomaremos como amostra parte dos acervos de trs editoras, selecionadas conforme critrios
expostos a seguir:
a. Brinque-Book
80
O prmio Hans Christian Andersen, conferido pela International Board on Books for Young People (IBBY),
a mais importante premiao internacional para a literatura infantil, considerado um pequeno Nobel.
81
https://www.brinquebook.com.br/editora/brinquebook/. Acesso em 11/04/2015.
64
literatura no-infantil); Ler e ouvir, que integra contedos digitais aos livros impressos, com
leituras gravadas em MP3; e Escarlate, com fices direcionadas para adolescentes. A
maioria dos livros, porm, traz simplesmente a marca Brinque-Book.
Entre as editoras selecionadas, a Brinque-Book a que tinha o maior catlogo
poca desta pesquisa, com 306 ttulos de 216 autores e ilustradores. Entre os autores e
ilustradores, 173 (aproximadamente 80%) eram estrangeiros, o que significa uma importante
representatividade de literatura traduzida. Devido ao excessivo nmero de ttulos, optamos
por realizar a pesquisa por autor, segundo seu pas e idioma de origem. Excluindo os
ilustradores, chegamos a 107 escritores (ver tabela 8, ao final deste item), a maioria oriunda
de pases anglfonos, conforme tabela abaixo:
82
Os pases identificados com os autores e ilustradores no necessariamente se referem sua nacionalidade ou
naturalidade, mas ao pas onde tm publicado suas obras. Marta Alts, por exemplo (autora de No!, Brinque-
Book, PNBE 2014), espanhola, mas atualmente publica na Inglaterra, em lngua inglesa. Acrescente-se que
nem sempre uma tarefa simples identificar o pas onde primeiramente foi publicada uma obra, uma vez que
existem editoras internacionais e muitas vezes o livro lanado simultaneamente em mais de um pas. Contudo,
sem nos atermos a esses detalhes, possvel identificar uma orientao editorial da empresa, com preferncia
para ttulos de lngua inglesa e por pases ocidentais desenvolvidos, havendo pouco ou nenhum espao para
pases perifricos.
65
2008 a 2014, anos pares) para a educao infantil. interessante pensar no que isso representa
para a heterogeneidade literria, uma vez que se corre o risco de ter um achatamento da
linguagem pela falta de variao de tradutores. Alguns tradutores que tm dividido a tarefa
com Gilda de Aquino so Vnia M. A. de Lange e Arthur Diego van der Geest (holands),
Dieter Heidemann, Hedi Gndinger e Jos Feres Sabino (alemo), ndigo (italiano). No
existem escritores de renome nem pesquisadores, exceo de Dieter Heidemann, professor
da USP na rea de geografia, e Jefferson Teixeira, doutor em economia agrcola pela
Universidade de Tquio.
A Brinque-Book tem trabalhado com temticas recorrentes, e seus releases so
voltados para os educadores, em uma busca ntida por espao nas escolas. O catlogo traz um
ndice de temas gerais, com destaque para: amizade, amor, aventura, diversidade animal,
fantasia, filosofia, imaginao, relacionamento entre me e filho, respeito s diferenas, tica,
meio ambiente e pluralidade cultural. A editora tambm investe em temas pedaggicos, sob o
selo Brinque-Book saber. Entre os ttulos traduzidos, destacam-se, finalmente, as releituras
de contos de fadas, elencadas sob o tema clssico revisitado83. So bastante numerosos
tambm os livros para bebs, com folhas cartonadas e recursos interativos como abas, janelas,
pop ups e sons.
Em relao qualidade grfica das edies, a Brinque-Book tem investido em livros
com belas ilustraes em cores vivas. No encontramos no catlogo livros que explorem a
melancolia, a escurido, a morbidez, a feira o que condiz com os temas preferidos pela
editora, mais palatveis para as crianas e, principalmente, para os adultos mediadores.
Embora produza livros de boa qualidade grfica, esta editora tem preferido acabamento em
lombada canoa s capas duras, que ficam reservadas para os livros direcionados aos bebs e
para aqueles com recursos grficos que no dispensam a capa dura, como Vai embora, grande
monstro verde! (Go Away, Big Green Monster), de Ed Emberley (2009, trad. Gilda de
Aquino), e Abra com cuidado! (Open Very Carefully), de Nick Bromley e Nicola OByrne
(2013, trad. Gilda de Aquino).
83
Num rpido levantamento, conseguimos listar: Chapeuzinho redondo (Chapeau Rond Rouge), 2010, Eu voltei!
(Je suis revenu!), 2014, O lobo voltou (Le loup est revenu!), 2011, e O lobo sentimental (Le loup sentimental),
2013, de Geoffroy de Pennart; A verdadeira histria de Chapeuzinho Vermelho (The True Story of Little Red
Ridding Hood), 2008, e A verdadeira histria de Cachinhos Dourados (The True Story of Goldilocks), 2014, de
Agnese Baruzzi e Sandro Natalini; Cachinhos Dourados e um urso apenas (Goldilocks and Just One Bear),
2013, de Leigh Hodgkinson; Dez porquinhos. Dez? (Tien varkentjes tien?), 1998, de Leo Timmers; e Os trs
lobinhos e o porco mau (The Three Little Wolves and The Big Bad Pig), 1996, de Eugene Trivizas.
TABELA 8 Autores estrangeiros publicados pela Brinque-Book
Kathryn Meyrik Inglaterra Ingls Samanta Gorducha vai ao baile das bruxas Gilda de Aquino
Katja Reider (il. Angela Von Sua Alemo Orelha de limo/ A pena Dieter Heidemann e Marily da
Roehl/ Gabriele Hafermaas) Cunha Bezerra/ Yara Arnaud
Heidemann
Kazumi Yumoto (il. Komako Japo Japons O urso e o gato monts Jefferson Teixeira
Sakai)
Laurence Bourguignon (il. Blgica Francs No corao e na bolsa Gilda de Aquino
Valrie D'Heur)
Leen van den Berg (il. Ann Holanda Holands A preciosa pergunta da pata Vnia M. A. de Lange
Ingelbeen)
Leigh Hodgkinson Inglaterra Ingls Cachinhos dourados e um urso apenas Gilda de Aquino
TABELA 8 Autores estrangeiros publicados pela Brinque-Book
Marie-Louise Gay Canad Ingls Marcos e Estela (srie)/ Corina curiosa Gilda de Aquino
Marije Tolman (com Ronald Holanda Holands A casa na rvore -
Tolman)
Marilyn Burns (il. Debbie EUA Ingls Espaguete e almondegas para todos Gilda de Aquino
Tilley)
Marion Billet Frana Francs Daomi adora (srie) Gabriela Degen Marothy
Mark Teague EUA Ingls O atalho secreto Gilda de Aquino
Marta Alts Inglaterra Ingls No! Gilda de Aquino
Martin Waddell (il. Barbara EUA Ingls Voc e eu, ursinho?/ Voc no consegue dormir, Gilda de Aquino
Firth) ursinho?
Mem Fox (il. Julie Vivas) Austrlia Ingls Guilherme Augusto Arajo Fernandes Gilda de Aquino
Michael Rosen (il. Jonathan EUA Ingls Dorminhoco Gilda de Aquino
Langley)
Michael Grejniec Polnia Alemo Qual o sabor da lua? Jos Feres Sabino
Mike Jolley (il. Deborah Inglaterra Ingls Grunter Gilda de Aquino
Allwright)
TABELA 8 Autores estrangeiros publicados pela Brinque-Book
b. Cosac Naify
A Cosac Naify uma editora que se destaca por suas publicaes nas reas de artes
plsticas, moda, cinema, teatro, design, fotografia, arquitetura, cincias humanas e literatura.
A marca da editora so livros graficamente complexos, com formatos e tipos de papel
variados, encartes, transparncias, entre outros recursos. O primeiro livro editado pela Cosac
Naify, Barroco de Lrios (1997), do artista plstico Tunga, pretende ser ele prprio uma obra
de arte. Um dos recursos grficos desta pea a fotografia dobrvel de uma trana que chega
a um metro de comprimento. A editora orgulha-se ainda de ter publicado tradues inditas de
crticas de arte, como Outros critrios (Other Criteria), de Leo Steinberg (2007, trad. Clia
Euvaldo).
Os livros infantis, segundo texto institucional publicado no site da editora, so sua
menina dos olhos:
84
http://editora.cosacnaify.com.br/EditoraHistoria/1/Editora.aspx. Acesso em 11/04/2015.
73
sendo vendidos pelo site da Livraria Cultura85). Por outro lado, Onde vivem os monstros
(Where the Wild Things Are), de Maurice Sendak, editado em 2009, embora estivesse
indisponvel para venda desde o incio da pesquisa, permanecia listado no site da editora. Em
setembro de 2014, o livro foi reimpresso, confirmando o constante movimento no catlogo.
Outro obstculo ao levantamento de dados so falhas existentes na categorizao dos
livros. Quando selecionamos a categoria literatura infantojuvenil, por exemplo, em agosto
de 2014 eram listados 343 produtos. Na subcategoria autores brasileiros, havia 82 produtos
disponveis; na subcategoria autores estrangeiros, havia 179 produtos. Assim, havia uma
importante divergncia entre o total de produtos categorizados como literatura infantojuvenil
e a soma dos produtos listados em suas subcategorias (343 contra 261) 86. Contudo, mesmo
com essa discrepncia possvel afirmar que a Cosac Naify tem publicado, na rubrica
intitulada infantojuvenil, um volume consideravelmente maior de literatura traduzida que de
literatura nacional (aproximadamente o dobro), representando uma importante fonte de
pesquisa para o objeto deste trabalho.
Apesar dessas falhas, foi possvel desenhar um perfil geral das publicaes da editora
por meio da seleo de uma amostragem significativa de livros: 97 ttulos publicados entre
2000 e 2014, que ainda constavam no catlogo da editora em agosto de 201487 (ver tabela 9
na prxima pgina). Exclumos da amostra os ttulos que no se enquadravam na definio de
livro ilustrado, conforme o item 1.2.2 deste trabalho, bem como aqueles pedaggicos e
informativos (como a coleo Metropolitan o que faz de um mestre um mestre?, do crtico
de arte estadunidense Richard Mhlberger, com vrios ttulos publicados entre 2000 e 2003).
Entre os livros excludos esto aqueles direcionados a crianas maiores, adolescentes e jovens
tais como os clssicos da literatura mundial que a Cosac Naify vem publicando: Peter e
Wendy (Peter and Wendy), de J. M. Barrie (2012, trad. Srgio Flaskman); As aventuras de
Pinquio: Histria de um boneco (Le avventure di Pinocchio: Storia di un burattino), de
85
http://www.livrariacultura.com.br/scripts/index.asp?&caminho=1. Acesso em 07/08/2014.
86
Cabe observar ainda que o nmero de produtos listados corresponde apenas aproximadamente ao nmero de
ttulos publicados, uma vez que alguns deles so vendidos ao mesmo tempo em colees e individualmente,
havendo duplicidade de alguns ttulos. o caso da srie Gaspar e Lisa (Gaspard et Lisa), de Anne Gutman e
Georg Hallensleben, e da Coleo Ache o Bicho, de Svjetlan Junakovic. Na pgina que exibe os produtos da
categoria infantojuvenil, existem tambm itens de venda casada de dois ou mais ttulos com desconto, e
estimamos que venha da a discrepncia entre o nmero de itens da categoria geral e o total das duas
subcategorias.
87
A seleo no excluiu os ttulos esgotados ou indisponveis, desde que ainda estivessem listados no site da
editora o que representa um potencial de reedio ou reimpresso. Chamo novamente a ateno para o caso de
Onde vivem os monstros (Where the Wild Things Are), de Maurice Sendak, que foi reimpresso durante esta etapa
da pesquisa e entrou em pr-venda em agosto de 2014.
74
Carlo Collodi (2011, trad. Ivo Barroso), Mary Poppins, de P.L. Travers (2014, trad. Joca
Reiners Terron), Alice no pas das maravilhas (Alice in Wonderland), de Lewis Carroll (2009,
trad. Nicolau Sevcenko) e vrias selees dos Irmos Grimm. Exclumos tambm a srie
Capito Cueca (Captain Underpants) e Superbeb Fraldinha (Super Diaper Baby), de Dav
Pilkey, pois pertencem ao universo dos quadrinhos (embora tenhamos includo na seleo as
sries Ricky Ricota e seu Super-rob (Ricky Ricottas Mighty Robot) e Os Coelhos Tapados
(The Dumb Bunnies), do mesmo autor que so mais prximos da definio de livro ilustrado
que trabalhamos anteriormente). Tais obras dariam um interessante objeto de anlise no
campo dos estudos de traduo; contudo, extrapolam o escopo desta pesquisa.
Em relao aos idiomas representados, encontramos uma importante preponderncia
do ingls (35 ttulos), do francs (26 ttulos) e do alemo (23 ttulos), somando 87,5% do
total. Os outros idiomas representados foram: holands/flamengo (4 ttulos); espanhol (4);
japons (2); italiano, russo e coreano, com um ttulo cada. Em relao aos pases de origem
dos ttulos, temos um cenrio semelhante ao da editora Brinque-Book: apenas pases centrais,
com pouco ou nenhum espao para a literatura latino-americana, africana ou de outras regies
culturalmente perifricas. Estados Unidos, Frana e Alemanha forneceram 67% dos livros da
amostra. Os dados esto sistematizados nas tabelas abaixo:
O que de mais interessante a Cosac Naify nos oferece para esta pesquisa so o perfil
e a visibilidade de seus tradutores. Entre as editoras selecionadas e possivelmente entre
todas as editoras que publicam literatura infantil traduzida , a que mais d destaque a seus
tradutores, usando-os inclusive como recurso de promoo e valorizao de suas
publicaes88. A ficha tcnica dos livros disponveis na internet traz sempre o nome do
tradutor e, muitas vezes, sua biografia (ver fig. 1 na prxima pgina).
Em alguns ttulos, o nome do tradutor impresso na quarta capa ou at mesmo na
capa, quando se trata de escritor famoso, e comum que as edies tragam uma pequena
biografia do tradutor, ao lado das biografias dos autores e ilustradores. o caso de A rvore
generosa (The Giving Tree), de Shel Silverstein (2006), que traz o nome de Fernando Sabino
na primeira capa (fig. 19, p. 108); Uma girafa e tanto (A Giraffe and a Half), do mesmo autor
(2003), que traz o nome de Ivo Barroso na quarta capa (fig. 29, p. 131), alm de biografia do
tradutor; O dariz (Le nez), de Olivier Douzou (2009), com destaque para o tradutor Paulo
Neves na quarta-capa (fig. 35, p. 148); e Aprendo com meus amigos (Minna ga oshiete
kuremashita), de Taro Gomi (2008), que traz a biografia do tradutor Diogo Zenha Kaupatez.
Em relao ao perfil dos tradutores que tm trabalhado nas publicaes infantis da
Cosac Naify, percebe-se a recorrncia de pesquisadores e professores oriundos do meio
acadmico, poetas, escritores, profissionais ligados rea editorial e at atrizes famosas (ver
tabelas 10, ao final deste item, e 14, p. 93). A editora investe nos tradutores de literatura
infantil de forma semelhante ao que faz em seu segmento no-infantil. Por um lado, nota-se a
contratao de alguns profissionais de nvel, especialmente para a traduo de autores
renomados (como Shel Silverstein), com textos de maior complexidade. Por outro lado,
evidencia-se um apelo mercadolgico vinculado ao nome do tradutor, como o caso da
escolha de atrizes como Fernanda Torres e Denise Fraga para o trabalho. interessante notar
que as atrizes foram contratadas para traduzir livros da tambm atriz Julianne Moore,
Morango Sardento (Freckleface strawberry), 2010, e Morango sardento e o valento da
escola (Freckleface strawberry and the dodgeball bully), 2011. Em ambos os casos, o nome
das atrizes-tradutoras consta na primeira capa, podendo-se notar uma relao direta entre a
escolha das tradutoras e o apelo mercadolgico do livro e a tentativa de equiparar tradutores e
autores em nvel de atividade artstica. A prtica de contratar tradutores de perfil semelhante
ao dos autores tambm se mostra no nome de Daniel Lembo Schiller, estudante adolescente
que traduz os livros de Dav Pilkey (autor que comeou a escrever seus livros ainda na escola),
88
Entre as editoras que levantamos, apenas a Cia. das Letrinhas d destaque semelhante aos tradutores.
76
e do fsico e professor da Universidade Federal Fluminense Marco Moriconi, que traduz Caro
Einstein (Ask Albert Einstein), de Lynne Barasch (2007).
Nota-se, ainda, uma relao entre a escolha de tradutores de renome e o investimento
na qualidade grfica dos livros. H um volume considervel de livros em capa dura (todos os
de Shel Silverstein foram impressos assim) e outros com recursos grficos que valorizam o
objeto-livro, como Ter um patinho til (Tener un patito es til), de Isol (2013), que vem em
uma caixa de papel cartonado (chamada de luva no jargo editorial) e dobrado em zigue-
zague no formato de uma sanfona. So livros que carregam um ar precioso, que pedem para
serem guardados por longo tempo. Assim, sugerem que seu contedo seja cannico, que a
palavra e a imagem ali gravadas so, por assim dizer, um produto de qualidade89. Na lombada
dos livros, a logomarca da editora, com um grande C e um grande O, lembra as letras da
marca Chanel, gravadas na perna de um par de culos escuros (fig. 2). A Cosac Naify publica
o que poderamos chamar de livros de grife, bonitos e destinados a um pblico intelectual.
89
Em janeiro de 2015, a editora anunciou o lanamento de Alice Atravs do espelho (Through the Looking-Glass
and What Alice Found There), de Lewis Carroll, com o seguinte texto: A traduo saborosa do poeta
Alexandre Barbosa de Souza e a artista Rosngela Renn assina as ilustraes.
(http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?tag=cadao-volpato. Grifos nossos)
TABELA 10 Livros traduzidos publicados pela Cosac Naify (amostra)
c. Pequena Zahar
90
http://www.zahar.com.br/apresentacao/editora. Acesso em 11/04/2015.
91
http://www.zahar.com.br/sites/default/files/arquivos/manual_de_identidade_zaharDEFINITIVO.pdf. Acesso
em 11/04/2015.
92
http://www.zahar.com.br/pequenazahar. Acesso em 11/04/2015.
82
No Supermercado dos animais Al supermercato degli animali Giovanna Zoboli; Simona Itlia Italiano Eliana Aguiar
Mulazzani (il)
Tem lugar para todos C' posto per tutti Massimo Caccia Itlia - -
Os Trs porquinhos I tre porcellini Giusi Quarenghi; Chiara Itlia Italiano Noelly Russo
Carrer (il.)
A Viagem da senhorita Timothy Il viaggio di miss Timothy Giovanna Zoboli; Valerio Itlia Italiano Noelly Russo
Vidali (il.)
Vozes no parque Voices in the park Anthony Browne Reino Unido Ingls Clarice Duque Estrada
84
Aps traar um panorama das tradues para crianas que vm sendo publicadas
pelas editoras e adquiridas pelo Estado, lanaremos um olhar sobre as premiaes e listas de
melhores livros. Para as escolas privadas, os pais e outros mediadores, tais indicaes
representam um guia para a aquisio de livros para seus filhos, alunos e outras crianas sob
sua tutela. Assim, de grande interesse para uma editora que suas publicaes figurem nessas
listas o que garante, de certa forma, uma boa vendagem.
Atualmente, a principal instituio avaliadora da qualidade dos livros direcionados
para crianas e jovens no Brasil a Fundao Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Criada em 1968, a seo brasileira do International Board on Books for Young People
(IBBY), instituio de direito privado, de utilidade pblica federal e estadual, de carter
tcnico-educacional e cultural93. A FNLIJ confere prmios anuais aos melhores livros, em
diversas categorias entre elas, Traduo/adaptao Criana , alm do selo Altamente
Recomendvel. A fundao confere, ainda, o Selo Acervo Bsico FNLIJ para os ttulos que,
embora no sejam altamente recomendveis, poderiam fazer parte de uma biblioteca.
Finalmente, a FNLIJ ainda organiza um catlogo anual das produes nacionais para a Feira
de Bolonha principal feira internacional dedicada literatura infantil. A prpria instituio
seleciona os leitores-votantes entre especialistas em literatura infantil e juvenil de todo o pas.
Segundo o regulamento para a 40 Seleo anual do Prmio FNLIJ 2014 Produo
2013, entre os objetivos do Prmio FNLIJ esto:
(i) identificar e dar publicidade aos melhores ttulos editados para crianas e
jovens;
(ii) estimular o trabalho de escritores, ilustradores, tradutores, editores (...);
(v) subsidiar a ao de pesquisadores, escritores, pais, editores, autores e
especialistas em literatura para crianas e jovens, divulgando e
disponibilizando informao sobre leitura e literatura infantil e juvenil;
(vi) criar uma base referencial de qualidade, permanentemente atualizada,
sobre literatura infantil e juvenil e leitura;
(viii) subsidiar polticas culturais e educacionais de compra de acervos e
programas de leitura em todos os nveis de governo ou fora deles.
(FNLIJ, Regulamento da 40 Seleo anual do Prmio FNLIJ 2014
Produo 2013, p. 1)
93
Fonte: http://www.fnlij.org.br/site/o-que-e-a-fnlij.html. Acesso em 13/08/2014.
85
Existe, portanto, uma relao direta entre o trabalho da FNLIJ e o mercado, uma vez
que ela pretende ser um referencial para a aquisio de livros pelos mediadores, alm de
fomentar a atividade dos profissionais envolvidos na produo de livros para crianas
inclusive os tradutores.
Conforme levantamento das premiaes outorgadas nos ltimos dez anos na categoria
Traduo/adaptao Criana (ver tabela 12, ao final deste item), a FNLIJ tem privilegiado
autores clssicos da literatura mundial, muitos dos quais transitam entre a literatura infantil e a
no-infantil, como James Joyce, Aldous Huxley e Lewis Carroll. The Slant Book (O livro
inclinado, Cosac Naify, 2008), de Peter Newell, cuja traduo de Alpio Correa de Franca
Neto foi premiada em 2009, teve sua primeira publicao nos Estados Unidos em 1910. O
tpico livro ilustrado, ou livro lbum, tem dividido espao com esses clssicos (alguns
reilustrados por ilustradores brasileiros, como Alice no pas das maravilhas94 e O gato e o
diabo95), direcionados a leitores mais fluentes. Assim, percebe-se que a literatura traduzida
para crianas menores nem sempre encontra espao entre os melhores livros.
Entre as editoras selecionadas, as que mais figuraram entre as tradues para crianas
premiadas nos ltimos dez anos foram a Cosac Naify (4 vezes) e a Cia. das Letrinhas (3
vezes) justamente as editoras que mais tm dado visibilidade a seus tradutores. Ressalte-se
ainda que os livros premiados nos ltimos nove anos foram todos escritos originalmente em
lngua inglesa. Dos dez anos considerados, apenas uma traduo, premiada em 2005, foi feita
a partir do francs.
Embora a FNLIJ seja a principal referncia para a aquisio de livros no Brasil, os
adultos que adquirem livros para as crianas (pais, educadores e outros mediadores) muitas
vezes buscam indicaes na grande mdia. Muitos no trazem consigo uma cultura literria e
desconhecem critrios para a escolha de um entre tantos livros ofertados pelo mercado da a
proliferao dos livros industriais, sem autor nem qualidade grfica ou literria, uma vez que
h pblico para compr-los. Nesse cenrio, ganhou grande visibilidade a lista organizada
anualmente pela Revista Crescer, da Editora Globo. Embora no seja uma lista oficial, ou
sequer com ares de neutralidade, uma vez que a revista tem finalidade lucrativa e interesses
editoriais, a seleo da Crescer ganhou reconhecimento ao ponto de constar no catlogo da
Brinque-Book entre as premiaes recebidas por seus livros.
94
CARROLL, Lewis; ZERBINI, Lus (il.). Alice no pas das maravilhas. Trad. Nicolau Sevcenko. So Paulo:
Cosac Naify, 2009.
95
JOYCE, James; LELIS (il.). O gato e o diabo. Trad. Lygia Bojunga. So Paulo: Cosac Naify, 2012.
86
96
Conforme descrio no site da revista, disponvel em: http://revistacrescer.globo.com/Infograficos/Melhores-
livros/noticia/2013/05/os-30-melhores-livros-infantis-do-ano-2013.html. Acesso em 13/08/2014.
TABELA 12 Livros premiados FNLIJ Categoria Traduo Criana 2005-2014
A partir da cartografia traada no item anterior, lanaremos, neste item, um olhar mais
especfico para as publicaes traduzidas e seus tradutores: o livro em si, suas caractersticas
editoriais e grficas, os temas recorrentes e o perfil dos tradutores que tm atuado no
segmento infantil.
Dos mais de 500 ttulos97 arrolados nesta pesquisa, foi possvel identificar 123
tradutores de perfis diversos. De posse desses dados, elaboramos uma planilha (tabela 14, ao
final deste item) com todos os nomes que aparecem pelo menos uma vez entre as obras
extradas:
a) dos catlogos das editoras Cosac Naify (2014), Brinque-Book (2013) e Pequena Zahar
(2014), conforme critrios explicitados no item 2.1.2 e tabelas 8, 10 e 11;
b) dos acervos de creches e educao infantil do PNBE de 2008 a 2014, anos pares,
conforme tabelas de 1 a 4;
c) dos ttulos premiados pela FNLIJ na categoria Traduo Criana nos anos de 2005 a
2014 (tabela 12) 98; e
d) da lista de melhores livros da Revista Crescer, 2013 (tabela 13).
97
O montante estimado, uma vez que alguns ttulos se repetem nos catlogos das editoras, nos acervos do
PNBE e nas listas de melhores livros.
98
Ressalte-se que inclumos apenas os ttulos que receberam o Prmio FNLIJ O Melhor para Criana, na
categoria Traduo Criana, deixando de lado os ttulos do Acervo Bsico FNLIJ e os Altamente
Recomendveis FNLIJ. Estudos complementares poderiam inclu-los a fim de enriquecer a lista aqui proposta.
90
contempladas neste estudo de maneira detalhada; aparecem apenas nos dados referentes ao
PNBE e aos prmios. Recordamos, por exemplo, do professor, pesquisador, escritor e tradutor
Marcos Bagno, que traduziu diversos livros infantis para a SM e a tica, entre os quais
Fedelho: manual do proprietrio (The Sprog Owner's Manual: (Or How Kids Work)), da
irreverente autora inglesa Babette Cole (tica, 2004). lvaro Faleiros, da USP, embora de
maneira mais pontual, tambm deu sua contribuio para a literatura infantil, tendo traduzido
A fome do lobo (Quand le loup a faim), de Christine Naumann-Villemin (Berlendis &
Vertecchia, 2013), adotado pelo PNBE 2014 na categoria 3 (anos iniciais do Ensino
Fundamental). Ressaltamos ainda a coletnea de poemas de Victor Hugo Cantos para meus
netos (Gaivota, 2014), reunidos e traduzidos pela professora da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) Marie-Helne Torres, com ilustraes de Laurent Cardon, que recebeu em
2015 o selo Altamente Recomendvel da FNLIJ.
Assim, importante considerar esta lista como uma referncia geral do perfil dos
tradutores que tm se dedicado literatura para a infncia, no como um banco de dados
fechado e inviolvel.
A fim de melhor esboar quem so os tradutores que tm se dedicado literatura para
crianas, buscamos, resumidamente, as reas de formao e atuao de cada um, as editoras
pelas quais traduziram e os idiomas a partir dos quais trabalham. Os dados foram obtidos em
pesquisa no sistema da biblioteca da FNLIJ, a partir do qual pudemos identificar outros ttulos
traduzidos por esses profissionais, com as respectivas editoras e idiomas de origem; nos sites
das editoras; na plataforma Lattes/CNPq; no dicionrio de tradutores literrios (DITRA) da
UFSC; e em websites pessoais, de onde pudemos retirar informaes complementares sobre
atuao profissional e acadmica de cada tradutor.
A respeito de alguns nomes, no h nenhuma informao disponvel na internet. Nesse
caso, optamos por defini-los como tradutor quando h um nmero significativo de obras por
eles traduzidas. Quando no conseguimos identificar a rea de formao do tradutor e,
ademais, seu nome aparece apenas pontualmente, em um ou dois ttulos (considerando como
base o acervo online da biblioteca da FNLIJ e busca eletrnica em livrarias e sebos),
deixamos o campo em branco o que significa que se trata de um profissional no tradutor
que, numa situao isolada, assinou a traduo de um livro para crianas.
Os dados apresentam alguns fatos notveis: em primeiro lugar, observamos um
importante contingente de tradutores ligados s editoras, seja como proprietrios, diretores,
coordenadores, tais como Charles Cosac (Cosac Naify), Gilda de Aquino (Brinque-Book),
91
Helosa Jahn (Companhia das Letras), Mnica Stahel (wmf Martins Fontes), Daniela Padilha
(Jujuba), Bruno Berlendis de Carvalho (Berlendis & Vertecchia). Alguns editores traduzem os
prprios livros que publicam, em vez de contratar um tradutor de fora para a tarefa. O
fenmeno se d com editoras independentes, como a Jujuba, mas tambm com grandes
editoras, como a Brinque-Book.
Percebe-se nas editoras um clima domstico, por assim dizer, quanto escolha dos
tradutores, mais prximo de pequenos negcios familiares que de grandes corporaes.
evidente que tal fenmeno no se restringe literatura para crianas, sobretudo se
recordarmos que parte desses mesmos editores-tradutores atuam tambm na literatura no-
infantil, tais como Charles Cosac e Heloisa Jahn. A relao entre autores, editores e tradutores
natural, uma vez que todos atuam no mesmo meio, da o trnsito entre profissionais de cada
uma dessas reas.
Em segundo lugar, h entre os tradutores um bom montante de pesquisadores e
professores. Embora nem sempre assinem um nmero vasto de ttulos, sua presena notvel
na literatura para crianas: Marcos Siscar, Marcus Mazzari, Yun Jung Im, Betina Bischof,
Carlos Frederico Barrre Martin, Alpio Correia de Franca Neto (este ltimo com um grande
nmero de ttulos infantis traduzidos), entre outros. A editora Cosac Naify uma das grandes
responsveis por esse cenrio, conforme j tratamos no item 2.1.2; contudo, outras editoras
tm convidado acadmicos para traduzir livros infantis: SM, Positivo, Cia. das Letras, Paz e
Terra, Pulo do Gato, 34, Girafinha, Berlendis & Vertecchia, Iluminuras, tica, Brinque-Book.
Em terceiro lugar, nota-se a presena de poetas e escritores, tanto de literatura infantil,
como Ana Maria Machado, Lygia Bojunga e Tatiana Belinky, como de literatura no-infantil,
como Fernando Sabino, Ferreira Gullar, Fabio Weintraub, Heitor Ferraz Melo, Ivo Barroso,
Josely Vianna Baptista, Marlia Garcia, Ronald Polito, entre outros. Tal fato evidencia um
importante trnsito entre a literatura infantil e a no-infantil, complexificando a demarcao
de fronteiras entre esses dois segmentos literrios e enriquecendo a ambos.
Em quarto lugar, recordamos que uma parte significativa dos tradutores no possui
referncias, ainda que nossa amostra rena apenas livros que poderamos chamar de livros de
literatura. Sabemos que esses no so os nicos livros infantis traduzidos no mercado
brasileiro (e ousaramos dizer que sequer so a maioria), pois convivem nas livrarias com a
subliteratura, na qual muitas vezes o tradutor sequer identificado. Se, por um lado,
defendemos a complexidade potencial do texto ilustrado para crianas, reconhecemos tambm
que em livros para a primeira infncia muitas vezes os textos so simples e no requerem
92
grande competncia literria para sua traduo. o caso, por exemplo, da coleo Ache o
Bicho, de Svjetlan Junakovic, publicada pela Cosac Naify.
Observamos, porm, inmeros casos em que os textos originais requereriam tradutores
com maior competncia potica, notadamente aqueles em versos rimados. Algumas tradues
resgatam apenas timidamente os recursos estilsticos do texto original, como o caso de Na
cozinha noturna (In the Night Kitchen), de Maurice Sendak, traduzido por Heloisa Jahn e
Antonio de Macedo Soares (Cosac Naify, 2014). Outras ignoram completamente rimas,
aliteraes, mtrica, como o caso de Rpido como um gafanhoto (Quick as a Cricket), de
Don e Audrey Wood, traduzido por Gilda de Aquino (Brinque-Book, 1982). As tradues
executadas por poetas tm sido mais bem sucedidas que as realizadas por no poetas, como
veremos na anlise de Uma girafa e tanto (A Giraffe and a Half), de Shel Silverstein, com
traduo de Ivo Barroso (Cosac Naify, 2003), no captulo 3.
Recordamos aqui o que diz Lefevere (1982) acerca do grau de comprometimento de
uma refrao (no caso, a traduo) e sua relao com a reputao do escritor, assunto de que
tratamos no captulo 1. Autores canonizados tendem a ser traduzidos mais em conformidade
sua prpria potica, o que no se d com autores no canonizados. Isso se observa na
diferena de nvel das tradues da prpria Gilda de Aquino quando se trata de Julia
Donaldson ou de outros autores. Nos livros de Donaldson99, Aquino recria as rimas do texto
em ingls, com o cuidado tambm com a mtrica e o ritmo. O mesmo no ocorre em livros de
outros autores, como no j citado Rpido como um gafanhoto e em Qual a cor do amor?
(What colour is love?), de Linda Strachan e David Wojtowycz (Brinque-Book, 2005).
O perfil do tradutor, como seria de se esperar, tem ligao direta com o destaque que
concedido a seu nome na estrutura do livro. Quanto mais conhecido o tradutor, mais a editora
desejar dar-lhe visibilidade a fim de promover a vendagem do livro. Desenvolveremos este
tema a seguir.
99
Apertada e sem espao (A Squash and a Squeeze), 2012; Carona na Vassoura (Room on the Broom), 2012; O
filho do Grfalo (The Gruffalos Child), 2006; O Grfalo (The Gruffalo), 1999; e Macaco Danado (Monkey
Puzzle), 1999, todos com ilustrao de Axel Scheffler.
TABELA 14 Tradutores de literatura infantil
Todo livro, ilustrado ou no, composto no somente do texto em si, mas tambm de
outros elementos estruturais que abrigaro informaes textuais adicionais ou informaes
grficas. Edna Lcia Cunha Lima, em seu Estrutura do livro (2012), define elementos pr-
textuais falsa folha-de-rosto, folha-de-rosto, dedicatria, epgrafe extratextuais capa,
folhas de guarda, orelhas, sobrecapa (ou jaqueta), lombada e ps-textuais. Entre os
elementos pr e ps-textuais, muitos dos que Lima identifica no costumam constar dos livros
infantis, como prefcio, introduo e sumrio. Acrescentaramos como elementos ps-textuais
tpicos da literatura para crianas, no mencionados por Lima, as biografias do autor e do
ilustrador (e, menos frequentemente, do tradutor). Essas breves biografias podem constar
tambm antes do texto, nas guardas, na folha de rosto ou na primeira orelha. A pgina que
abriga a ficha catalogrfica do livro e, por vezes, outros paratextos biografias, lista de outros
livros do mesmo autor chamada de pgina de crditos, e pode vir antes ou depois do
miolo.
Um livro pode, ainda, conter uma cinta, tira de papel removvel que envolve a capa e a
quarta capa (ou sobrecapa), como o caso de O cntico dos cnticos, de ngela Lago (Cosac
Naify, 2013). De maneira geral, todos os livros tero capa, quarta capa e folha de rosto, onde
sero impressos o nome do autor e do ilustrador, se houver, a editora, a ficha catalogrfica do
livro e outras informaes editoriais. Em relao aos livros infantis, Lima escreve:
Embora de estrutura simplificada, nas palavras de Edna Lcia Cunha Lima, o livro
infantil ilustrado pode ser bastante complexo no que tange sua materialidade. O suporte do
livro ilustrado oferece possibilidades ilimitadas, como mostra Bruno Munari com sua mini
biblioteca porttil de pequenos livros fabricados com materiais diversos madeira, tecido,
papel que chamou de I prelibri (Corraini, 2011, 4 ed.).
99
Ao reelaborar o projeto grfico de uma edio traduzida, o editor deve cuidar para que
as novas informaes a serem inseridas no livro no descaracterizem a obra original. A
maquete da capa, as ilustraes das guardas, os espaos em branco, a tipografia devem ser
levados em conta no momento da diagramao. O nome do tradutor deve constar, no mnimo,
na ficha catalogrfica, que pode ser impressa no interior do livro (prtica mais usual) ou na
quarta capa, o que se d mais comumente em livros cartonados, para bebs e crianas muito
pequenas, quando a insero de pginas adicionais torna o livro mais espesso e pesado.
Manuseando um grande nmero de livros ilustrados, identificamos como mais
corriqueira a apresentao do nome do tradutor na folha de rosto. Outras possveis
apresentaes so na quarta capa ou, mais raramente, na capa.
A Brinque-Book demonstra preferncia pelo nome do tradutor na folha de rosto,
embora esta prtica no seja padronizada. Em Carona na vassoura (Room on the Broom), de
Julia Donaldson e Axel Scheffler (il.) (2012, trad. Gilda de Aquino), O beijo (Kusje), de
Valrie dHeur (2013, trad. Heiz Dieter Heidemann) e Caos (Chaos in Bad Berlebug), de Lili
LArronge (2013, trad. Hedi Gndiger), o nome dos tradutores aparece tambm na capa (fig.
3, 5 e 6, p. 103). Existem casos em que a Brinque-Book omite o nome do tradutor da folha de
rosto, e este pode ser identificado apenas na ficha catalogrfica, como em O grfalo (The
Gruffalo), de Julia Donaldson e Axel Scheffler (il.) (2012, trad. Gilda de Aquino) (fig. 4, p.
103). As quartas capas so normalmente aproveitadas para oferecer ao leitor a sinopse do
livro.
J a Zahar mantm a prtica mais uniforme de publicar o nome do tradutor apenas na
folha de rosto e na ficha catalogrfica. Na folha de rosto, o nome do tradutor fica bastante
visvel. Nas quartas capas podem constar citaes de louvor obra e trechos de artigos de
jornal sobre o livro, como nos bestsellers. o caso de Vozes no parque (Voices in the park),
de Anthony Browne (2014, trad. Clarice Duque Estrada). Todos os livros de Browne trazem
tambm um selo na capa com a inscrio, em caixa alta: Ganhador do prmio Hans Christian
Andersen (fig. 7, 8 e 9, p. 104). O selo no consta nas edies em ingls, provavelmente em
virtude de Browne j ser bastante conhecido nos pases anglfonos.
A editora Cosac Naify tambm demonstra a tradicional preferncia pela identificao
do tradutor na folha de rosto, porm em muitos casos pode vir a destacar seu nome tambm na
quarta capa ou at mesmo na capa. O uso da quarta capa para divulgar o nome do tradutor
bastante comum em seus livros: em O pato, a morte e a tulipa (Enten, Tod und Tulpe), de
Wolf Erlbruch (2009), o nome do tradutor Jos Marcus Macedo destacado na quarta capa e
100
na folha de rosto (fig. 11 e 13, p. 105), e uma breve biografia sua publicada na segunda
orelha. O mesmo se d em O inimigo (Lennemi), de Davide Cali e Serge Bloch (il.) (2008,
trad. Paulo Neves), porm a biografia do tradutor impressa em uma pgina a parte, logo
antes da ficha catalogrfica. Alguns outros livros da Cosac Naify que trazem o nome do
tradutor na quarta capa so Selma (fig. 15, p. 106); Fico espera (fig. 18, p. 107); Vov;
Fique longe da gua, Shirley!; Hora de sair da banheira, Shirley!; Fuja do Garabuja; Uma
Girafa e tanto (fig. 29, p. 131); O dariz100 (fig. 35, p. 148).
A Cosac Naify pode aproveitar a quarta capa tambm para publicar pequenos
comentrios sobre o livro, assinados por especialistas de diversas reas ou at mesmo por
celebridades que sejam pais de crianas, como Malu Mader e Tony Belotto, que assinam a
sinopse de Meu reino (Mon Royaume, Kitty Crowther, 2011, trad. Flvia Varella). Outros
exemplos so Chico Homem de Melo em Pequeno 1 (Little 1, Ann e Paul Rand, 2007, trad.
Alpio Correia de Franca Neto); Fabrcio Corsaletti em A parte que falta (The Missing Piece,
Shel Silverstein, 2013, trad. Alpio Correia de Franca Neto); Rosely Sayo em Papai! (Papa!,
Philippe Corentin, 2008, trad. Cssia Silveira); Eucana Ferraz em Histria da ressurreio
do papagaio (Historia de la resurreccin del papagayo, Eduardo Galeano e Antonio Santos
(il.), 2010, trad. Ferreira Gullar); Sophie Van der Linden em Vov (ver nota 100).
raro que o nome do tradutor aparea na capa do livro, como em A rvore generosa
(The Giving Tree, Shel Silverstein, 2006, trad. Fernando Sabino) (fig. 19, p. 108). Neste caso,
a insero justifica-se pela fama do tradutor. Vemos tambm neste lbum uma notvel
interao ente os paratextos e o miolo do livro. Na quarta capa, o editor joga com o texto de
Silverstein, que traz em vrios momentos o verso E a rvore ficou feliz: Fernando Sabino
traduziu./ Shel Silverstein ficou feliz (fig. 21, p. 108).
O poeta, professor e pesquisador Fernando Paixo, na primeira orelha de Era uma vez
uma capa (2008), fala da capa do livro como seu rosto, com o qual ele se oferece ao
mundo:
100
Selma (Selma), Jutta Bauer, 2007, trad. Marcus Mazzari; Fico espera (Moi, jattends), Davide Cali e Serge
Bloch (il.), 2007, trad. Marcos Siscar; Vov (Granpa), 2012, Fique longe da gua, Shirley! (Come Away From
the Water, Shirley!), 2011, e Hora de Sair da Banheira, Shirley! (Time to Get out of the Bath, Shirley!), 2011,
John Burningham, trad. Cludio Alves Marcondes; Fuja do Garabuja (Dont bump the Glump), Shel Silverstein,
2009, trad. Alpio Correia de Franca Neto; Uma girafa e tanto (A Giraffe and a Half), Shel Silverstein, 2003,
trad. Ivo Barroso; O dariz (Le nez), Olivier Douzou, 2009, trad. Paulo Neves.
101
A capa , assim, um espao nobre na estrutura do livro. Por vezes, a nica parte que
se pode visualizar em uma compra online. Nas prateleiras das livrarias tambm o maior
chamariz. Algumas bibliotecas infantis tm inclusive estantes diferenciadas, para exibir as
capas e no as lombadas dos livros, como o caso da biblioteca infantil da 104/304 sul, em
Braslia. No caso do livro infantil, essa disposio ainda mais importante, uma vez que so
livros de poucas pginas, na maioria das vezes grampeados, cuja lombada nem sempre
permite identificar o ttulo e o autor do livro.
Se tradicionalmente a capa serve para conter o ttulo e o autor do livro, numa
disposio grfica que se mostre atraente ao leitor, nos livros infantis ela abriga as ilustraes
que convidaro o pequeno leitor a abrir o livro. O trabalho de um autor-ilustrador no se
restringe ao miolo do livro: ele concebe tambm a capa, as guardas, a folha de rosto. s vezes
a narrativa comea j nas guardas e pode se estender at as guardas finais ou at a quarta capa.
No j mencionado Caos, que descreve com imagens a confuso que poderia causar uma casca
de banana jogada no cho, as guardas iniciais mostram o caminho da banana at o menino: a
semente plantada na terra, a chuva regando a bananeira, o cacho sendo colhido, o transporte
at a feira. As guardas finais mostram o desfecho da histria de personagens que aparecem ao
longo do livro (fig. 22 e 23, p. 109). O editor de um livro traduzido ter de levar isso em conta
ao definir o espao onde constar o nome do tradutor.
Em O pato, a morte e a tulipa, temos uma capa extremamente limpa (fig. 10, p. 105).
O nome do autor centralizado acima, o ttulo do livro logo abaixo e, ocupando quase toda a
extenso vertical da folha, a figura ereta de um pato. O fundo amarelo claro, sem nenhum
outro elemento. A quarta capa traz a imagem de uma tulipa, um texto com informaes sobre
o livro e o nome do tradutor (Jos Marcos Macedo). Nos cantos inferiores direito e esquerdo,
respectivamente, o nome da editora e o cdigo de barras, ambos de pequenas dimenses e
bastante discretos (fig. 11, p. 105).
O livro tem orelhas grandes, pouco mais estreitas que uma pgina. Na primeira, apenas
a figura do pato, desta vez olhando para trs. Na folha de rosto, o pato est andando. como
se o pato da capa estivesse morto e fosse sendo chamado vida aos poucos. A segunda orelha
traz as biografias do autor e do tradutor. A folha de crditos tambm ilustrada, porm nesta
102
o pato, que caminha, ocupa apenas o canto inferior esquerdo da pgina (fig. 12, 13 e 14, p.
105 e 106).
V-se, portanto, que o layout do livro deve ser considerado no momento de decidir
onde ser impresso o nome do tradutor. Para a autora-ilustradora Suzy Lee, tudo figura:
palavras e imagens (LEE, 2012, p. 136). Com a computao grfica, as letras digitadas
podem ser distorcidas, duplicadas, espelhadas, exatamente como se faz com as imagens:
A ideia de que as letras pudessem ser tratadas como imagem parecia nova. Eu
pensava que as letras digitadas simplesmente flutuavam na superfcie do papel e as
imagens no se misturavam a elas. Depois da descoberta, passei a examinar
atentamente o instante em que as letras e as imagens mudavam de lugar; tal como
letras digitadas se modificavam como imagens. (2012, p. 136)
Fig4 K H Carona na vassoura 0Room on the Broom1 Fig4 V H O Grfalo 0The Gruffalo1
Julia Donaldson e Axel Scheffler Julia Donaldson e Axel Scheffler
Trad4 Gilda de Aquino Trad4 Gilda de Aquino
BrinqueHbook' j5j4 BrinqueHbook' j5j4
Acima:
Fig. 10 - Capa - O pato5 a morte e a tulipa QEnten, Tod und Tolpex
Wolf Erlbruch
Trad. Jos Marcus Macedo Abaixo:
Cosac Naify5 2009. Fig. 12 - Primeira orelha - O pato5 a morte e a tulipa
Fig. 11 - Quarta capa - O pato5 a morte e a tulipa Fig. 13 - Folha de rosto - O pato5 a morte e a tulipa
1n6
CAPTULO 3
Uma lngua um canto, o eco das vozes que estiveram antes de ns.
Uma lngua uma boca que se move (...).
Ento, quando eu olhava o movimento das bocas, pensava: a isso se
dedicam as crianas, a ver como se movem as bocas, a ver como saem
as palavras, como cantam os corpos que lhe acolhem.
Neste captulo, tomaremos duas tradues para serem analisadas mais de perto: Uma
girafa e tanto (A Giraffe and a Half), de Shel Silverstein, traduzido do ingls por Ivo Barroso
em 2003; e O Dariz (Le nez), de Olivier Douzou, traduzido do francs por Paulo Neves em
2009, ambos publicados no Brasil pela editora Cosac Naify.
A partir desses dois textos ilustrados, refletiremos sobre questes relativas traduo
de livros para crianas: em primeiro lugar, as relaes entre o verbal e o no verbal, uma vez
que, na literatura para a primeira infncia, as ilustraes representam um campo semntico to
forte quanto as palavras; em segundo lugar, rimas, ritmo, aliteraes, jogos de linguagem e
outros recursos estilsticos, visto que a oralidade outra marca da leitura para crianas, que
costuma ser mediada. Finalmente, consideraremos os aspectos extraliterrios da prtica
tradutria, notadamente a influncia do mercado.
A fim de introduzir a anlise das tradues, retomemos aqui algumas reflexes do item
1.2.2. acerca do livro ilustrado, debruando-nos aqui sobre: 1) as especificidades do texto do
livro ilustrado; e 2) a influncia das ilustraes sobre o trabalho do tradutor. Em seguida,
partiremos para as anlises dos livros, complementando-as com uma entrevista para cada
tradutor, nos apndices deste trabalho.
Monteiro Lobato.
(A Barca de Gleyre, 2 Tomo, p. 233)
O que poderamos identificar de peculiar no texto do livro ilustrado que nos auxilie no
exame de sua traduo? Poderamos aplicar prtica, anlise e crtica tradutria de lbuns
ilustrados os mesmos preceitos que regem a traduo literria em geral? E que reflexes
poderamos extrair da anlise das tradues de livros infantis e ilustrados?
A fim de tratar as especificidades do texto ilustrado, retornemos categoria de livro
ilustrado e a como ela se define dentro do quadro mais amplo da literatura. Em primeiro lugar,
necessrio averiguar se poderamos trat-lo como um gnero literrio. Quando se fala em
gnero literrio, fala-se em limites, convenes, caractersticas que um determinado conjunto
de textos teria em comum. Parece-nos uma tendncia natural classificar como subsistema da
literatura a literatura infantil (ou infanto-juvenil), ou a literatura para crianas. Conforme
desenvolvemos anteriormente (item 1.2.1), a literatura infantil se define a partir do pblico
pblico que, recordamos, no pode ser definido com preciso. Tericos que tm se debruado
sobre o assunto empregam com frequncia a palavra gnero para referir-se a essa categoria,
tais como Lgia Cademartori (1994), Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2007) e Zohar Shavit
(1986). Lajolo e Zilberman, embora tratem a literatura infantil enquanto o gnero dividido
infncia, admitem seu carter ambivalente (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 14). J
Shavit menciona, com justeza, constantemente gneros literrios internos literatura infantil
conto de fadas, romance, histrias curtas, histrias fantsticas (SHAVIT, 1986).
Riitta Oittinen no considera a literatura infantil um gnero enquanto tal. Referindo-se
pesquisadora finlandesa Riitta Kuivasmki101, Oittinen defende que uma vez que a
literatura para crianas e para adultos engloba muitos dos mesmos gneros, parece errneo
considerar a literatura infantil como um gnero parte (OITTINEN, 2002, p. 54). A autora
acrescenta que tal postura seria prejudicial ao se pensar a traduo de livros para crianas,
como se essa estivesse sujeita a normas diversas daquelas que regem a traduo para adultos.
Para Oittinen, dever-se-ia pensar, por exemplo, a traduo de versos para crianas, em vez de
considerar toda traduo de livro infantil como uma prtica padro.
Peter Hunt, em sua Enciclopdia Internacional de Literatura Infantil, dedica uma
seo intitulada formas e gneros a artigos que discorrem sobre categorias especficas de
texto dentro do quadro mais amplo da literatura infantil e juvenil textos medievais, mitos e
lendas, contos folclricos, contos de fadas, parlendas, rimas, poesias, fbulas, histrias
101
Kuivasmki, Riitta. Siiwollisuuden tuntoa ja ylewt kauneuden mielt. Suomenkielinen
nuorisokirjallisuus 18511899 (A Chaste Mind with a Noble Longing for Beauty: Finnish-language Childrens
Literature 18511899). Jyvskyl Studies in the Arts 34. Jyvskyl: University of Jyvskyl, 1990. apud
OITTINEN, 2002.
113
escolares entre outros. dentro dessa seo que Hunt insere os artigos dedicados aos livros
ilustrados. Poderamos ento considerar o livro ilustrado um subgnero, uma forma ou uma
categoria de literatura infantil?
Sabemos que existem livros ilustrados que no so dirigidos s crianas embora os
livros para crianas no letradas sejam sempre ilustrados. Sophie Van der Linden (2011), em
Para ler o livro ilustrado, menciona a editora francesa LAmpoule, fundada pelo designer
grfico Christian Dubuis Santini e pelo escritor-ilustrador Olivier Douzou em 2002.
LAmpoule se auto descreve como casa de edio de literatura-imagem (maison dedition de
littrature-image), e no como casa de edio de literatura infantil. A editora trabalha com
livros endereados a crianas pequenas, como os de Ann e Paul Rand102, traduzidos do ingls,
mas tambm com ttulos de temas e formato claramente adultos, como Absinthe prcis de la
troublante, de Pierre Kolaire (texto) e vrios ilustradores (2012), e Lgar, de Frdrique
Bertrand e Frdric Rey (2002). No site de LAmpoule, o editor Santini escreve: Nossa poca
parece propcia emergncia dessas novas narrativas, na fronteira de diversos gneros103.
Em face da evoluo do livro ilustrado contemporneo, que tem assumido pblicos diversos
(Douzou fala em livros de mltiplo acesso104), torna-se problemtico seu enquadramento
enquanto um gnero interno literatura infantil.
Van der Linden defende, portanto, que o livro ilustrado no pode ser considerado um
gnero, uma vez que ele assimila vrios gneros da literatura, tais como contos de fadas,
histrias policiais e poesia. Para ela, o livro ilustrado constitui uma forma especfica de
expresso (2011, p. 29). Trata-se, portanto, de uma definio baseada na forma, no no
pblico.
Van der Linden parece privilegiar o aspecto plstico do livro ilustrado, dedicando a
seu texto escrito uma ateno menor. J David Lewis, autor de Reading Contemporary
Picturebooks, recorda que livro e leitura so inseparveis, de modo que o livro ilustrado seria
primeiramente um tipo de texto, um artefato quasi-literrio mais prximo de outros tipos de
texto que de obras de arte visual (LEWIS, 2001, p. 1). O texto do livro ilustrado no
102
Je sais plein de choses (I know a lot of things, Chronicle Books, 1956), publicado no Brasil sob o ttulo Eu sei
um monto de coisas (Cosac Naify, 2010, trad. Alpio Correia de Franca Neto) e coute, coute (Listen! Listen!,
Harcourt, 1970), sem publicao no Brasil at o momento.
103
Notre poque semble propice l'mergence de ces nouveaux rcits, la frontire de plusieurs genres
Traduo nossa. SANTINI, Christian Dubuis. Des livres de littrature-image. Le mot de lditeur. Disponvel
em http://www.lampoule.com/index-ampoule.html. Acesso em fev. 2015.
104
apud VAN DER LINDEN, 2011, p. 30.
114
consistiria apenas nas palavras, mas no conjunto texto-imagem (ou o iconotexto de Hallberg,
j mencionado no item 1.2.2.).
Lewis inicia a introduo de seu livro com uma citao de Barbara Bader acerca do
livro ilustrado:
105
A picturebook is text, illustrations, total design; an item of manufacture and a comercial product; a social,
cultural, historical document; and, foremost, an experience for a child. As an art form it hinges on the
interdependence of pictures and words, on the simultaneous display of two facing pages, and on the drama of the
turning of the page. BADER, Barbara. American Picturebooks from Noah's Ark to the Beast Within. Nova
Iorque: Macmillan Pub Co, 1976. apud LEWIS, 2001, p. 1. Traduo nossa.
115
A autora chama a ateno para as limitaes formais extenso do texto, tais como o
espao restrito de que esse dispe na pgina ilustrada e a tendncia dos editores de evitarem
fontes pequenas, a fim de se preservar a legibilidade para o leitor iniciante. A diagramao,
trabalhada de forma a articular o texto com as imagens, outro elemento formal que atua
sobre o texto:
muito raro, por exemplo, que uma frase se estenda de uma pgina dupla
para a seguinte. A unidade de sentido deve ser respeitada nesse nvel. Alm
disso, a leitura se elabora por idas e vindas entre a mensagem do texto e a da
imagem; um texto curto permite manter um ritmo de leitura relativamente
equilibrado entre as duas expresses. (VAN DER LINDEN, 2011, p. 47)
As estruturas textuais que devem manter unidade de sentido na pgina dupla, s quais
Van der Linden se refere, podem ser encaradas como unidades de traduo106. As tabelas nas
quais foram organizados os textos integrais que analisaremos aqui, com o original ao lado da
traduo, permitem uma clara visualizao desse fenmeno. Cada clula da tabela
corresponde a uma pgina ilustrada. No caso de Uma girafa e tanto, onde Silverstein se
aproveita da pgina dupla de maneira bastante sistemtica, a tabela foi dividida em colunas de
pginas pares e pginas mpares, numa apresentao espacial que facilita a observao dos
versos em cada pgina enquanto unidades de traduo.
Retornando brevidade dos textos infantis, ressaltamos que crianas pequenas tm
tolerncia limitada a textos muito extensos. Alm disso, o leitor ou ouvinte criana est em
fase de aquisio da linguagem ou de ampliao do vocabulrio e das estruturas sintticas da
lngua, o que confere ao texto para crianas caractersticas prprias. Se por um lado o escritor
ou o tradutor de textos infantis tm sua disposio um repertrio lingustico limitado, por
outro, no h limites para a construo potica da linguagem, por mais simples que seja.
Crianas bem pequenas, ainda no habituadas s estruturas oficiais, por assim dizer, da lngua,
106
Para maiores reflexes acerca das unidades de traduo, cf. ALVES, Fbio; MAGALHES, Celia;
PAGANO, Adriana. Traduzir com Autonomia: estratgias para o tradutor em formao. So Paulo: Contexto,
2000.
116
agentes externos, entre eles os ilustradores: De uma maneira ou de outra, o dilogo sempre
envolve seres humanos que complementam uns ao outros e trazem uma viso a mais sobre
cada situao. Nesta seo, incluo as ilustraes e seus criadores na dialgica de traduzir para
crianas: traduzir livros para crianas interpretar tanto o verbal quanto o visual109
(OITTINEN, 2002, p. 100). um processo dual, dialtico, no qual os dois campos de leitura
operam simultaneamente, como nos poemas.
Ezra Pound (1991), em seu ABC of Reading, afirma que existem essencialmente trs
maneiras de carregar as palavras de significado: a fanopeia, que consiste em lanar uma
imagem visual na imaginao do leitor por meio de uma palavra; a melopeia, que o faz por
meio do som; e a logopeia, que o faz por meio da combinao entre um grupo de palavras
(POUND, 1991, p. 37). Essas trs dimenses se cruzam para compor um texto potico. Da
mesma maneira deve ser observado o texto infantil ilustrado, no qual a relao entre a sintaxe
das palavras, o som e as imagens visuais especialmente evidente.
O campo visual de leitura de um livro no diz respeito apenas ilustrao, mas
tambm ao layout, tipografia e a outros elementos grficos:
Para criar uma traduo na qual as partes contribuam para o todo, o tradutor
deve levar em considerao a interpretao que o ilustrador faz da histria.
Isso to importante quanto o espao deixado em cada pgina para as
palavras ou qualquer outro detalhe concernente histria escrita e
ilustrada.110 (OITTINEN, 2002, p. 102)
Oittinen menciona, por exemplo, fontes cursivas que somem nas tradues, como foi o
caso dos livros da sueca Tov Janssen publicados nos Estados Unidos. O estilo da fonte
tambm faz parte da expressividade do texto ilustrado, e sua substituio tem efeito sobre a
leitura. Eis um caso que exemplifica nossa afirmao: o autor-ilustrador Renato Moriconi, ao
acertar o contrato de traduo de O sonho que brotou111 na Frana, exigiu que fosse mantida a
fonte cursiva. Contudo, a editora grafou, aleatoriamente, algumas palavras do texto em
109
One way or the other, dialogue always involves human beings complementing each other and bringing their
surplus of vision to each situation. In this section, I include illustrations and their creators in the dialogics of
translating for children: translating books for children is interpreting both the verbal and the visual. Traduo
nossa.
110
To create a translation where parts contribute to the whole, the translator must take into consideration the
illustrators interpretation of the story. This is as important as the space on each page left for words or any
other detail concerning the written and illustrated story. Traduo nossa.
111
DCL, 2010. Publicado na Frana sob o ttulo Dessine-moi un rve pela editora Actes du sud em 2011, com
traduo de Fanny Gauvin. As informaes foram prestadas pelo prprio autor do livro, em conversa por Skype
em 25/11/2014.
118
vermelho (o livro impresso em duas cores: preto, para a realidade, e vermelho, para os
desenhos da menina protagonista), imprimindo leitura um direcionamento na interpretao
que no estava presente no livro brasileiro (fig. 24, pgina a seguir). O livro publicado na
Frana tem tambm dimenses menores que a edio brasileira, porm nesse caso a alterao
foi acordada previamente com o ilustrador. Outro exemplo de livro ilustrado com fonte
cursiva Selma (fig. 16, p. 106), de Jutta Bauer (Cosac Naify, 2007), que manteve a fonte
escrita mo nas edies brasileira, portuguesa, argentina, estadunidense e espanhola, pelo
que pudemos apurar.
Oittinen compartilha sua experincia pessoal enquanto tradutora de livros ilustrados:
As relaes entre texto e imagem podem ser sutis, como a delicadeza das ilustraes
de P.J. Lynch para The Christmas Miracle of Jonathan Toomey, cujo efeito Oittinen buscou
resgatar no texto em finlands (Joonaksen jouluihme, 1998); ou bvias, como a
correspondncia entre o texto e os animais retratados em Quick as a cricket, de Audrey Wood
e Don Wood (Rpido como um gafanhoto, Brinque-Book, 2007, trad. Gilda de Aquino). Sem
nos aprofundarmos na anlise da traduo deste ltimo que eliminou do texto em portugus
as rimas e as aliteraes presentes no ingls, preferindo a equivalncia palavra a palavra ,
ressaltamos as restries impostas ao tradutor pelas imagens. O que descrito no texto
corroborado pela ilustrao.
112
As a translator I have often found the strong influence of illustrations, for instance in 1998, when I was
translating an extraordinarily beautiful story The Christmas Miracle of Jonathan Toomey by Susan
Wojciechowski. The illustrations by P. J. Lynch are rich and delicate, which made my work very rewarding and
very difficult. I found it of the utmost importance not to take away the effect of the illustrations but to support
them with my language, choice of words, and the rhythm. The Finnish text needed to be delicate and as smoothly
flowing as possible on the aloud-readers tongue and yet something that the readers would not pay any attention
to. Thus, I needed to combine several stories one by the author, another by the illustrator to recreate the
story in the Finnish language. Traduo nossa.
119
A primeira pgina, por exemplo, diz I'm as quick as a cricket (fig. 25, pgina
anterior). A ilustrao traz um menino com um amplo sorriso, saltando animadamente por
cima de um grilo. Para manter a aliterao, ou substitui-la por algum outro recurso estilstico,
poderamos traduzir a frase por sou tranquilo como um grilo, mas neste caso haveria uma
ntida incongruncia entre texto e ilustrao (o que nem sempre problemtico, mas neste
caso no parece ser a inteno da obra). O tradutor fica impossibilitado, assim, de substituir o
grilo por outro animal.
Mesmo tendo optado por no substituir os animais ou os adjetivos que os
acompanham, ainda que sacrificando as caractersticas formais do texto o que pareceria,
primeira vista, justificar-se pela presena da ilustrao , a traduo apresenta, em duas
situaes, incongruncias entre o animal mencionado no texto e aquele retratado na imagem.
Voltando primeira pgina do livro, cricket foi traduzido por gafanhoto que, embora seja
um animal semelhante, no corresponde exatamente ilustrao. Outro exemplo foi o verso
I'm as shy as a shrimp, traduzido como Sou medroso como um camaro. A imagem
mostra uma lagosta parcialmente escondida numa concha (fig. 26, pgina anterior).
Assim, as ilustraes podem influenciar o trabalho do tradutor de maneira mais
evidente, apresentando restries reescritura do texto, ou mais sutil, emprestando suas
caractersticas ao texto traduzido. Acrescente-se, porm, que ao mesmo tempo em que pode
limitar as opes do tradutor, a ilustrao pode ampli-las.
Tendo apresentado estas notas acerca do texto do livro ilustrado e de sua relao com
a ilustrao, passemos anlise das tradues.
Uma girafa e tanto (A Giraffe and a Half), de Shel Silverstein, foi publicado pela
Cosac Naify em 2003, com traduo de Ivo Barroso, tendo ganhado uma segunda edio em
2011. Trata-se de um clssico de 1964, que, desde que foi lanado, nunca deixou de ser
reeditado em sua verso original em ingls.
O estadunidense Shel Silverstein (1932 1999) foi poeta, compositor, msico,
cartunista e autor de livros para crianas, muitos dos quais traduzidos para mais de 30
idiomas. Entre as canes que comps, destaca-se A boy named Sue, consagrada na voz de
122
Johnny Cash. Seu livro mais conhecido provavelmente A rvore generosa, publicado em
2006 tambm pela Cosac Naify, com traduo de Fernando Sabino. A editora j publicou sete
livros de Silverstein: alm dos dois j mencionados, Leocdio, o leo que mandava bala
(2003, traduo Antnio Guimares), Quem quer este rinoceronte? (2007), Fuja do Garabuja
(2009), A parte que falta (2013) e A parte que falta encontra o grande O (2014), os quatro
ltimos com traduo de Alpio Correa de Franca Neto113. Em sua edio brasileira, Uma
girafa e tanto foi adotado pelo Ministrio da Educao para o Programa Nacional do Livro
Didtico (PNLD) 2005, para o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) 2005 e para o
Programa Ler e Escrever 2007.
O livro, em sua verso comercial, foi editado no Brasil em capa dura, com texto e
ilustraes em preto e branco (com cor apenas na segunda e na terceira capas e nas folhas de
guarda, que so completamente verdes)114. O nome do tradutor impresso na quarta capa (fig.
29, p. 131). No miolo do livro, o nome de Ivo Barroso aparece primeiramente na segunda
pgina ( esquerda), ao lado da pgina com o ttulo e o nome do autor ilustrada com uma
girafa ( direita). Ao final do livro, so impressas, lado a lado, a biografia do autor (pgina
esquerda) e a biografia do tradutor (pgina direita) (fig. 32, p. 133). Nas duas ltimas pginas,
aps as biografias, esto a ficha tcnica da obra (pgina esquerda) e uma pgina de divulgao
dos outros livros de Silverstein publicados pela editora (direita) (fig. 33, p. 133).
A biografia do tradutor Ivo Barroso inicia-se assim:
Umberto Eco e Italo Calvino , bem como sua atuao profissional com Paulo Rnai e
Antonio Houaiss. Embora no conste na biografia publicada no livro, Ivo Barroso ainda
autor de dois livros infantis: Poesia ensinada aos jovens (Tessitura, BH) e Viagem ao mundo
da Poesia (Fino Trao, BH), livros, nas palavras de Barroso, para iniciar as crianas no gosto
da poesia116. Embora a literatura infantil no seja o principal segmento de atuao de Ivo
Barroso, ele traduziu os seguintes ttulos:
Os dois primeiros so tpicos livros ilustrados, com texto e ilustrao do mesmo autor.
Old Possum's book of practical cats uma coletnea de poemas escritos por Eliot na dcada
de 1930 em cartas para seus netos, que foram recolhidos e publicados no Reino Unido pela
editora Faber and Faber em 1939. A primeira edio trazia uma ilustrao de capa do prprio
autor. Em seguida, o livro teve edies ilustradas por Nicolas Bentley (1940), Edward Gorey
(1982) e Axel Scheffler (2009). Dos quatro ttulos infantis traduzidos por Barroso, o clssico
As aventuras de Pinquio o nico direcionado a leitores fluentes, ou o que poderamos
chamar livro infanto-juvenil.
Uma girafa e tanto conta a histria de uma girafa que tem seu pescoo esticado por
um menino. Ao longo da narrativa, o menino veste a girafa e acrescenta-lhe uma srie de
objetos. No auge da acumulao, todos caem em um buraco. Aps sair do buraco, vo se
desfazendo das coisas, at que resta apenas a girafa. Silverstein apresenta a uma crtica bem-
humorada ao consumismo.
Quanto forma, o texto original de A giraffe and a half um poema composto em
versos rimados, regidos por unidades de trs slabas fonticas, embora haja pequenas
variaes com versos de 4 e 7 slabas. Mesmo os versos mais longos so marcados pelas
pausas aps unidades de trs slabas (ex.: you would have/ a giraffe/ and a half/ with a rat/ in
his hat). O ritmo do poema recorda a cadncia das canes country compostas por
116
Informao prestada por Ivo Barroso a esta pesquisadora por e-mail em 17/03/2015.
124
117
O livro no paginado; se comessemos a contar a pgina 1 a partir da primeira do miolo (onde o ttulo
aparece), as pginas aqui descritas seriam a 8 e a 9.
125
Audrey Wood em A casa sonolenta (The Sleepy House. tica, 2009. Trad. Gisela Maria
Padovan): medida que o texto cresce, as repeties do o tom sonolento da narrativa.
Eis, em linhas gerais, o perfil do texto que se apresentou traduo de Ivo Barroso.
Trata-se de um texto complexo, que apresenta desafios importantes ao tradutor, tais como a
recriao do ritmo, das rimas e das aliteraes em coerncia com a ilustrao. Passemos,
portanto, s estratgias empregadas pelo tradutor.
Para o ttulo, teramos a traduo literal de uma girafa e meia. Ivo Barroso optou por
Uma girafa e tanto, aproveitando o jogo de palavras, que d a ideia da grandiosidade que a
girafa atinge.
Quanto mtrica, a estrutura do texto em portugus menos rgida, com uma maior
variao no tamanho dos versos. Mantm, contudo, o ritmo cadenciado na leitura em voz alta,
construdo a partir de sequncias de versos de sete slabas, ou de mais slabas, porm com o
hemistquio na 7 slaba (como em uma girafa e tanto com chapu de rato e com uma
vespa roxa ferroando a coxa), e tambm a partir das rimas.
Os dois primeiros versos das pginas pares, que se iniciam com Se..., so sempre
heptasslabos, com exceo de Se lhe puser um chapu barato (nove slabas fonticas). O
primeiro verso de cada pgina mpar, no texto de Silverstein, sempre idntico: you would
have a giraffe and a half. O tradutor optou por recriar versos variados em lugar de you
would have, sempre rimando com o verso anterior, como nos exemplos abaixo, extrados das
nove primeiras pginas do poema:
sua cadncia, ao mesmo tempo em que foi preservado, em certa medida, seu contedo
semntico. O texto traduzido, assim como o original, um texto para ser recitado em voz alta.
Mesmo com os desafios formais apresentados pelo texto de Silverstein, o tradutor teve
sucesso ao produzir um texto coerente com as ilustraes. Substituiu bee por vespa, knee por
coxa e mole por tatu. A toupeira no aparece na ilustrao, apenas o buraco que ficou bem
mais brasileiro ao ser cavado por um tatu. J a abelha que ferroa o joelho pode ser
perfeitamente uma vespa ferroando a coxa; no existe um estranhamento importante quanto
ao que retratado na ilustrao.
iniciativa, como foi o caso de Pinquio (Le avventure di Pinocchio, Carlo Collodi. Cosac
Naify, 2011). Em seu relato quanto a O livro do foguete, Barroso revela um cuidado da
editora com a preservao do valor literrio do texto de partida (no caso, as quadras rimadas)
e a busca de um tradutor com competncia para a tarefa.
Quanto s especificidades da traduo de textos para crianas, Barroso considera a
adequao da linguagem como seu principal desafio: no pode ser vulgar nem tatibitate, mas
igualmente no pode ser preciosa nem doutoral. Ele demonstra ainda preocupao com os
aspectos sonoros do texto e a performance do leitor.
Nota-se ainda seu cuidado com a ambientao dos textos para o leitor brasileiro.
Usando como exemplo Os gatos, Barroso explica que substituiu provrbios e nomes prprios
por equivalentes locais. Se vssemos esse procedimento sob a luz da crtica de Gambier s
adaptaes-distores (ver cap. 1, item 1.1.1), que condena o apagamento das diferenas
culturais, assim como tambm elaboraria Lawrence Venuti em The Translator's Invisibility: A
History of Translation (1995), no poderamos analisar-lhe com justeza o mrito.
importante tomar como pressuposto o fato de estarmos em uma literatura perifrica,
possivelmente formada majoritariamente por tradues de pases centrais. O apagamento
cultural, quando h, tende a ocorrer no sentido inverso: um sem-nmero de produtos culturais
para crianas com ttulos em ingls, nomes prprios estrangeiros que passam a compor a
onomstica local, invernos ambientados na neve. Assim, o abrasileiramento da traduo
torna-se procedimento de resistncia, especialmente quando se lida com a literatura destinada
a sujeitos em formao, sem um histrico afetivo que os arraigue sua terra.
Recordamos aqui a hiptese de Haroldo de Campos (1992) acerca da intraduzibilidade
de textos criativos, que desemboca na possibilidade de sua recriao. A ligao entre o texto
criativo original e o texto recriado residiria na isomorfia: sero diferentes enquanto
linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-o dentro de um mesmo sistema
(CAMPOS, 1992, p. 34). A recriao ao mesmo tempo autnoma, na medida em que h
abertura de possibilidades, e recproca, na medida em que a fisicalidade e a materialidade dos
signos do texto original vinculam a traduo. Haroldo de Campos v a traduo como crtica,
uma maneira atenta de ler e penetrar nas obras estrangeiras, uma vivissecao implacvel,
que lhe revolve as entranhas, para traz-la novamente luz num corpo lingustico diverso (p.
43). Campos prope uma traduo que transcenda a fidelidade ao significado para conquistar
uma lealdade maior ao esprito do original trasladado, ao prprio signo esttico visto como
entidade total, indivisa, na sua realidade material (...) e na sua carga conceitual (p. 47). A
129
Acima:
Fig. 29 - Capa e quarta capa - Uma girafa e tanto 3A Giraffe and a Half)
Shel Silverstein
Trad. Ivo Barroso
Cosac Naify, 2011.
132
Texto integral
A Giraffe and a half/Uma girafa e tanto
TABELA 15 Texto integral A Giraffe and a Half /Uma girafa e tanto
you would have a giraffe and a half a coisa ento fica feia:
with a rat in his hat uma girafa e tanto com chapu de rato
looking cute in a suit de terno elegante e rosa no olfato
with a rose on his nose uma vespa que esfola
and a bee on his knee e o sapato que cola
and some glue on his shoe tocando um flautim que amola
playing toot on a flute com uma cadeira por pente
with a chair in his hair cobra com bolo no dente
and a snake eating cake um gamb que havia l
and a skunk in a trunk mais um drago no seu carro
and a dragon in a wagon a bicicleta que espeta
and a spike in his bike com uma feia baleia.
and a whale on his tail.
If he fell in a hole you would have a giraffe and a half Mas se, por praga de urubu, vai ser um sururu:
that was dug by a mole... with a rat in his hat houver buraco de tatu... uma girafa e tanto com chapu de rato
looking cute in a suit de terno elegante e rosa no olfato
with a rose on his nose uma vespa que esfola
and a bee on his knee e o sapato que cola
and some glue on his shoe tocando um flautim que amola
playing toot on a flute com uma cadeira por pente
with a chair in his hair cobra com bolo no dente
and a snake eating cake um gamb que havia l
and a skunk in a trunk mais um drago que passeia
and a dragon in a wagon a bicicleta que espeta
and a spike in his bike com uma feia baleia
and a whale on his tail caem todos glugluglu!
in a hole with a mole. no buraco do tatu.
But... if you brought him a pole and the whale left his tail Mas... se voc lhe arranjar um bambu e se a baleia largar a ceia pelo meio
to climb out of the hole... and went off for the mail... certo que ela sai da toca do tatu... pra ler a carta que lhe veio do correio...
TABELA 15 Texto integral A Giraffe and a Half /Uma girafa e tanto
- Joaquina e sua mquina. Cosac Naify, 2007. Trad. Cssia Raquel da Silveira
(Ermeline et sa machine, Le Rouerge, 1994);
- Esquim. Hedra, 2008. (livro imagem) (Esquimau, d. du Rouergue, 1996);
- O dariz. Cosac Naify, 2009. Trad. Paulo Neves (Le Nez, MeMo, 2006);
- Peixinhos. Hedra, 2012. Il. Bruno Heitz. Trad. Graziela Marcolin (Les Petits
poissons, d. du Rouergue, 2001);
118
Entre as tradues do conto de Ggol publicadas no Brasil, identificamos a de Roberto Gomes pela L&PM
(2000) e a de Rubens Figueiredo, pela Cosac Naify (2008), esta ltima com ilustraes de Guendi Spirin.
141
Para a verso brasileira, a editora escolheu Paulo Neves, tradutor profissional desde
1986 e escritor. Neves trabalha com diversos gneros textuais (ensaios, artigos, romances),
com preferncia pelo idioma francs. Entre suas tradues para o portugus esto Saudades
do Brasil (Cia. das Letras, 1994), de Claude Lvi-Strauss; Jacques Lacan: Esboo de uma
vida, histria de um sistema de pensamento (Jaques Lacan: esquisse d'une vie histoire d'un
systeme de pense), de Elisabeth Roudinesco (Cia. das Letras, 1994); O Vermelho e o Negro
(Le rouge et le noir), de Stendhal (L&PM, 2013); A Mulher de Trinta Anos (La femme de
trente ans), de Balzac (LP&M, 2005). No segmento infantil, identificamos cinco ttulos
traduzidos por Paulo Neves, todos publicados pela Cosac Naify:
espao; Dia de sol) e Odilon Moraes (O presente; Pedro e Lua) no Brasil e Serge Bloch na
Frana (O inimigo; Fico espera).
A histria criada por Douzou narrada por um nariz congestionado que procura o
grande leno branco para assoar. No caminho, encontra outros narizes com o mesmo
problema: um boto (que pensava ser um nariz), uma tromba de elefante, um nariz de
palhao, um focinho de porco, um bico de passarinho, um focinho de cachorro, o nariz do
Pinquio e um focinho de tamandu.
Na edio francesa, comea apenas na folha de rosto o jogo de troca de letras para que
o texto soe como se estivesse sendo narrado por algum com o nariz obstrudo. Na capa, o
ttulo le nez, o nome do autor olivier douzou e o nome da editora MeMo. Na folha de rosto, o
ttulo passa a ser le dez; o nome do autor, olibier nouzou, e a editora, ditions BeBo. No se
emprega caixa alta no ttulo do livro, tampouco no nome do autor.
Na edio brasileira, preservaram-se as primeiras letras em caixa baixa, e a troca de
letras no nome do autor, da editora (COSACDAIFY) e do tradutor (baulo nebes) tambm
acontece na folha de rosto (fig. 36, p. 149). Contudo, o ttulo do livro, j na primeira pgina,
o dariz. A nica edio traduzida em outro idioma que pudemos localizar foi Il Naso,
publicado pela editora italiana Orecchio Acerbo. A edio italiana tambm traz a troca de
letras somente a partir da folha de rosto. Segundo o tradutor Paulo Neves, tratou-se de uma
deciso da editora. Uma hiptese para o ttulo O Dariz j na capa o fato de que a editora
brasileira possua poca em seu catlogo o conto homnimo de Ggol (ver referncia na
nota 118), e desejou evitar a publicao simultnea de dois livros com ttulos idnticos.
Olivier Douzou criou uma histria que termina exatamente como comea o conto de
Ggol: um nariz encontrado no meio de um po. Conforme explica o prprio autor em um
pequeno texto ao final do livro: Essa histria do nariz verdadeira, foi imaginada por
Nikolai Ggol em 1835: o Major Kovaliv perdeu o nariz e acabou perdendo o prestgio.
Todo o texto escrito de maneira a reproduzir a fala afetada por um congestionamento
nasal. Troca-se, por exemplo, o /m/ e o /v/ pelo /b/, como em batin e rebeill; o /b/ pelo /m/,
como em mouch; o /k/ pelo /g/, como em gombltement; o /s/ pelo /z/, como em zuis; o /d/
pelo /n/, como em nit; o /n/ pelo /d/, como em dez. A substituio das consoantes no feita
de maneira mecnica e padronizada, mas considera os fonemas circundantes. Por exemplo,
em bouchoir (mouchoir), o ch mantido; chercher, contudo, torna-se gerger. O efeito sobre o
texto cmico, pois algumas palavras passam a ser grafadas exatamente como outras que
significam coisas diferentes: mouch (assoado) para bouch (obstrudo); mouton (carneiro)
143
para bouton (boto); boisson (bebida) para poisson (peixe); mec (cara, rapaz) para bec (bico);
mois (ms, homfono de moi mim/eu) para bois (madeira); bas (baixo) para pas (passo);
mien (meu) para bien (bem).
Na traduo em portugus, buscou-se manter a sonoridade da fala anasalada, porm de
maneira mais tmida. H a substituio do /n/ pelo /d/, como em dariz, do /t/ pelo /d/, como
em endupido, do /k/ pelo /g/, como em gompletamente, do /m/ pelo /b/, como em cabinho.
Porm o som de /s/ alterado pelo /z/ apenas eventualmente, como em za ou zer. Leno, se,
assoar, assim, por exemplo, mantm a grafia. Torna-se, assim, mais fcil decifrar o texto em
portugus em comparao com o texto em francs, mesmo prescindindo da leitura em voz
alta. Acerca desse procedimento, Paulo Neves afirma ter optado por uma traduo mais
intuitiva que sistemtica, conforme veremos em entrevista nos apndices deste trabalho.
A polissemia causada pela escrita fontica, embora com menos ocorrncias, tambm
encontrada no texto em portugus: domar (tomar), bodo (boto), trompa (tromba), cabinho
(caminho), pico (bico). Um dos efeitos narrativos da confuso na pronncia das palavras um
desvio do nariz em sua busca pelo grande leno. Quando encontra um focinho de tamandu
(cheio de formigas), este se oferece para conduzi-lo ao que o nariz acredita ser o leno, mas
todos vo parar num castelo onde um toco de vela pede para ser soprado: On z'tait trombs,
on avait convondu bouchoir et bougeoir barce que le tabadoir brononsait bal les bots.
(Havamos gonfundido leno de assoar e vela de assobrar, o broblema gue o tabandu
bronunciava bal as balavras.)
Neste mesmo trecho da histria h uma aparente referncia ao poema de Robert
Desnos Le tamanoir119:
119
Je n'ai pas vu le tamanoir!/ Il est rentr dans son manoir,/ Et puis avec son teignoir/ Il a coiff tous les
bougeoirs,/ Il fait tout noir. DESNOS, Robert; GURY, Laura (il); WENDLING, Julie (il.). Chantefables et
Chantefleurs. Paris: Grd, 2010.
144
Grande parte desses jogos de palavras perdeu-se na traduo, embora Paulo Neves
tenha encontrado uma boa soluo para dez dez: gara a gara.
A edio traduzida teve o cuidado de atentar para o uso da fonte, que varia de
tamanho. Este um procedimento bastante utilizado nos livros ilustrados, que podem brincar
com as palavras como se fossem imagens, conforme vimos no item 2.2.2. As dimenses da
fonte orientam o leitor quanto intensidade do som: as fontes reduzidas sugerem uma leitura
120
REZENDE, Luiz. Agora que vocs j leram. In: QUENEAU, Raymond. Exerccios de estilo. Traduo,
apresentao e posfcio de Luiz Rezende. Rio de Janeiro: Imago, 1995. p. 146.
145
sussurrada (de doute banire z'dait bas un dez/ Dambm budera, ele do era um dariz),
enquanto as fontes de grandes dimenses pedem uma leitura em alta voz (J'abais envin
troub le grand bougeoir/ Ajei envim o crande leno pranco).
O texto de Le nez rico em onomatopeias: risadas, sons de animais, espirros, que
Neves buscou traduzir maneira brasileira: RGRggruik/ Oinc, oinc; atchoub/ atchum.
O texto de Neves mais conciso que o de Douzou, o que nos pareceu um recurso
compatvel a um falante congestionado: haveria uma tendncia natural a falar o mnimo
possvel. Em portugus pode-se tambm omitir os pronomes pessoais retos, o que no se d
no francs. Assim, moi jai nit torna-se simplesmente falei. Outros exemplos de reduo
so je zuis un dez mouch d'hobbe/ sou um dariz de hobem; En chebin on a rengontr
auzzi un mec qui nous a nit qu'il tait mouch/ No cabinho engontramos dambm um pico
endupido.
Em outros casos, porm, o tradutor optou por fazer acrscimos de modo a garantir a
compreenso. No final do livro, o nariz pede um banho quente e acabam o enviando a uma
padaria. Em francs, a correspondncia pain/bain perfeita, porm o mesmo no se d em
portugus (panho/bo). Assim, Neves acrescentou endenderam bo em vez de panho. J
para m'a serr la bince, traduzida como me abertou a bo, o tradutor preferiu no inserir
informaes adicionais que esclarecessem ao leitor de onde surgiu o pregador. Uma
importante diferena entre os dois casos a presena da ilustrao no segundo (fig. 37, p.
149).
interessante mencionar ainda os trechos em que Paulo Neves optou por uma
traduo mais com base no som que na correspondncia de sentido palavra a palavra: aller
drouver le grand bouchoir/engontrar um leno e assoar; dmouch lui auzzi/
desendupido bor fim. Para o dito Groix de mois groix de ver, si je bents, je bais en enver,
Neves tambm preferiu uma traduo que tivesse ritmo e sons semelhantes, sem substitu-la
por expresso brasileira: Gruz de balta gruz de ferro, se eu bentir vou bro inferno.
Antoine Berman (2007), ao defender a traduo do texto enquanto letra, diferencia
esta ltima da palavra. Para ilustrar sua explanao, Berman recorre aos provrbios, que
costumam possuir equivalentes em vrias lnguas. A traduo literal de um provrbio no
deve se confundir com a traduo palavra por palavra, mas diz respeito traduo de seu
ritmo, seu comprimento (ou sua conciso), suas eventuais aliteraes etc. Pois um provrbio
uma forma (BERMAN, 2007, p. 16). O procedimento empregado por Neves na traduo do
ditado francs pode ser assim descrito: No se trata, pois, de uma traduo palavra por
146
palavra servil, mas da estrutura aliterativa do provrbio original que reaparece sob outra
forma (BERMAN, 2007, p. 16). Com isso, o texto traduzido permite que se sinta o sabor do
provrbio original, a referncia materialidade da cruz e ao juramento catlico, resgatando-
lhe no apenas a logopeia, mas a melopeia (o som do provrbio) e a fanopeia (a imagem
visual que o ditado suscita) (POUND, 1991).
A recriao de rimas consoantes em rimas toantes foi outro recurso empregado pelo
tradutor, como no exemplo acima e no pequeno texto em verso que fecha a narrativa:
A fim de esclarecer alguns pontos de nossa anlise, buscamos o tradutor Paulo Neves
para falar de O dariz, assim como fizemos com Ivo Barroso para nossa leitura crtica de Uma
girafa e tanto.
Em seu depoimento, Paulo Neves explica que sempre traduziu literatura infantil por
convite da editora (Cosac Naify, no caso), e de maneira espordica. Ele avalia de forma
positiva o dilogo com a editora, que atua em conjunto com o tradutor para definir o produto
final.
Neves considera que a literatura infantil um gnero em alta, mencionando o espao
que ela tem ocupado em feiras de livros e a presena de grandes escritores da literatura no-
infantil em seu meio. Embora reconhea o valor da literatura infantil, Paulo Neves admite que
textos complexos como O dariz, traduzidos por profissionais qualificados, no so os que
121
Oittinen dedica um captulo de Translating for children, intitulado Breaking the Closed System (Rompendo o
sistema fechado), a comentar a censura nos livros infantis em relao s excrees. Estas fazem sucesso entre as
crianas em razo da identificao da cultura infantil com o carnavalismo (OITTINEN, 2002, p. 84-99).
147
Texto integral
Le nez/O dariz
TABELA 16 Texto integral Le nez /O dariz
le dez o dariz
Guand je be zuis rbeill ce batin-n Guando agordei esta banh
j'dais gombltement mouch. esdava gombletamente endupido.
C'est gomme a gue l'histoire a cobbenc. E foi assim gue a hisdria cobeou.
En chebin on a rengondr No cabinho engontramos
un dez brhisdorique : um dariz br-hisdrico,
une trombe qui tait auzzi mouche, uma trompa gue esdava dambm endupida,
elle abait mu meaucoup drop d'eau tinha pepido buita gua
dans la ribire et abait d abaler e engolido beixes do rio.
guelgues boissons. - E, parata, aonde vai? - a trompa falou.
- Eho, cadar, o bas-du gomme a ?
Do sou parata,
Je suis bas un gadard, sou um dariz de hobem
je zuis un dez mouch d'hobbe et e brocuro o leno crande
je bais gerger le grand bouchoir, gue desendope dariz.
zelui qui dmouche les dez. Abosto gue ele vai dambm te ajudar.
Je te barie gu'il beut auzzi d'aider.
Endo vou gom vocs - ela falou.
Ogay, elle a nit, je biens abec bous.
Bien abec dous, on lui a nit, Vem gom a gente dissemos a ele ,
on ba gerger le grand bouchoir. esdamos brocurando o leno crande.
RGRggruik, il a fait. Et il dous a suibis. Oinc, oinc ele fez. E nos agombanhou.
N'ailleurs, il vaut que je le bois auzzi Alis bom gue eu dambm v v-lo,
car je zuis rembli de zuire. bois esdou jeio de zerragem.
Boi, vaut bas me bresser, a dit le mouton. Bais devagar falou o bodo.
ha ha ha ha
hi hi hi hi
de doute banire z'dait bas un dez. Dambm budera, ele do era um dariz.
Buis un jour il ne me suibait blus, il abait disbaru At gue um dia do agombanhou bais,
gomme il tait benu. assim gomo veio, desabareceu.
J'abais Ajei
envin envim
troub o crande
le grand leno
bougeoir. pranco.
TABELA 16 Texto integral Le nez /O dariz
C'est bas Do
mossible bossvel!
L'AUDEUR O AUDOR
157
CONSIDERAES FINAIS
When Papa was away at sea, and Mama in the arbor, Ida played her
wonder horn to rock the baby still but never watched.
So the goblins came. They pushed their way in and pulled baby out,
leaving another all made of ice. Poor, Ida never knowing, hugged the
changeling and she murmured: How I love you. The ice thing only
dripped and stared, and Ida knew goblins had been there. They stole
my sister away! she cried, To be a nasty goblins bride!
Now Ida in a hurry snatched her Mamas yellow rain cloak, tucked
her horn safe in a pocket, and made a serious mistake. She climbed
backwards out her window into outside over there. Foolish Ida never
looking, whirling by the robber caves, heard at last from off the sea
her Sailor Papas song: If Ida backwards in the rain would only turn
around again and catch those goblins with a tune shed spoil their
kidnap honeymoon!
tambm, outra coisa, tantas outras coisas: so o riso, o medo, o asco, o sonho. So o que h de
visceral e primitivo em ns.
Os livros ilustrados elencados neste trabalho foram observados a partir de dois pontos
de vista: o primeiro, tcnico, buscou uma metodologia suficientemente sistemtica para
desenhar-lhe um perfil geral. Foram arrolados os ttulos originais das tradues, os pases e
idiomas de origem, os autores e ilustradores, as editoras e os tradutores de cada obra.
Levantamos ainda um perfil geral de todos os mais de 100 tradutores identificados na
amostra. Evidentemente no foi possvel o encontro presencial com a totalidade dos livros, e
alguns deles foram conhecidos apenas por suas descries nos catlogos das editoras. Porm,
centenas deles puderam passar pelas minhas mos, de maneira que pude observar-lhes
formato, peso, layout, disposio grfica de elementos paratextuais de onde foi possvel o
estudo da visibilidade que os tradutores recebem nessas obras.
O contato fsico com os livros leva-nos ao segundo ponto de vista a partir do qual
sobre eles nos debruamos: o subjetivo, emotivo, sensorial, corporal. Alguns pontos da
anlise apenas se esclarecem no momento da leitura do texto para as crianas. Na leitura
mediada, pode-se observar como os pequenos reagem ao som do texto e s ilustraes que se
apresentam simultaneamente a eles. E o prprio pesquisador pode deixar-se abandonar
sensao provocada pelas palavras e pelas imagens e, mais que observar apenas
cientificamente o objeto que tem nas mos, senti-lo, viv-lo. Assim tambm o tradutor,
conforme os depoimentos que apanhamos, tem a oportunidade de realizar sua tarefa de
maneira extremamente prazerosa. Ainda nos faltaria aprofundar questes relativas leitura
por prazer, e aos efeitos que a associao entre livros e escola provoca tanto nos leitores
quanto no contedo dos prprios livros. A me j no a principal iniciadora da leitura nas
crianas, mas o professor122, o que provoca um deslocamento da leitura do ambiente
domstico, reduto da liberdade e do lazer, para o ambiente escolar, relacionado ao dever e
obrigao.
A partir dessas duas abordagens a sistemtica e a sensorial, por assim dizer ,
traamos um quadro geral das tradues ilustradas que circulam no pas na atualidade.
Identificamos a recorrncia de algumas temticas, muitas relacionadas aos projetos
122
De acordo com a edio mais recente da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pr-
Livro em 2011 com crianas a partir de 5 anos: Entre os mais citados, o professor tem lido mais do que a me,
para as crianas at 12 anos, conforme revelam os nmeros: a me que sempre l foi citada por 17% das crianas
e a que l s vezes por 43%. O professor que l sempre foi citado por 45% delas e para 41% l s vezes.
(FAILLA, 2011, p. 43)
160
entre adulto e criana e falamos exaustivamente sobre a ligao entre livro infantil, escola e
mercado. Por essa razo, a literatura para pequenos leitores torna-se uma janela privilegiada a
partir da qual se podem observar as ideologias, normas e convenes dominantes na
sociedade.
A partir desta pesquisa, lanamos algumas bases para futuras investigaes. Um dos
caminhos que se abre a ampliao da amostragem de editoras a fim de incluir propostas
editoriais diversas e complementar o rol de tradutores, incluindo pesquisadores, poetas e
figuras de grande competncia tradutria que no apareceram na amostra (como os j citados
Marcos Bagno, lvaro Faleiros e Marie-Helne Torres). Catlogos como o da Cia. das
Letrinhas, SM, tica, Martins Fontes renderiam farto material de estudo. Pequenas editoras
tais como a Jujuba, que tm publicado de maneira independente, tambm fornecem um
fecundo campo de pesquisa. Outros ttulos que poderiam ser includos em pesquisas futuras
seriam aqueles que trazem o selo Altamente Recomendvel da FNLIJ e os que compem o
Acervo Bsico FNLIJ, que no foram considerados neste trabalho.
Seguindo o rumo das editoras, seria ainda necessrio investig-las mais a fundo a fim
de esclarecer questes que permanecem no campo da especulao. Entrevistas com os
personagens ligados publicao editores, coordenadores e diretores do segmento infantil
das editoras poderiam fornecer informaes acerca de como se do a seleo de livros
estrangeiros para publicao e a escolha dos tradutores. A partir da se poderiam pensar
melhor as questes econmicas envolvidas na produo literria para crianas. A influncia
do PNBE na seleta de livros para publicao seria outro ponto a se considerar.
Ainda acerca do mercado editorial, que acreditamos ser cenrio indispensvel
compreenso da literatura traduzida para crianas, seria interessante investigar os dados
fornecidos pela pesquisa Produo e Venda do Mercado Editorial, feita pela Fundao
Instituto de Pesquisas Econmicas (Fipe) por encomenda da Cmara Brasileira do Livro
(CBL) e do Sindicato Nacional de Editores (Snel). A partir de um levantamento de dados
mais abrangente, poder-se-ia estimar a posio da literatura traduzida em relao aos livros de
autor nacional e extrair da reflexes acerca da dinmica de nosso sistema literrio. Quanto
pesquisa de campo, cremos que estas so as rotas mais imediatas que esta pesquisa introduz.
Quanto reflexo terica, necessrio pensar em como o estudo do livro infantil
ilustrado pode contribuir para renovar a perspectiva terica a partir da qual vemos a traduo
literria em geral, conforme sugeriram Lajolo e Zilberman (2007). Que traos da literatura
no-infantil que tm se mantido sombra podem ser desvelados a partir da?
162
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170
APNDICES
171
2) Atuando nos dois segmentos infantil e no-infantil , voc nota diferenas na traduo
de textos para crianas e textos para adultos?
Creio que o texto infantil exige um cuidado maior na escolha das palavras a fim de se
evitar preciosismos ininteligveis criana, mas a fidelidade ao original deve ser a mesma, a
menos que se trate de uma (digamos, pois no gosto da palavra) recriao.
172
3) Como voc v o status da literatura infantil dentro do quadro mais amplo da literatura?
Poderamos falar em gnero marginal?
4) Assim como a literatura no-infantil, a literatura para crianas tambm tem seu cnone.
Alm dos autores que transitam entre os dois universos como Eduardo Galeano, Tolkien,
Joyce, Victor Hugo e o prprio Eliot, que voc j traduziu autores premiados, tais com
Maurice Sendak e Shel Silverstein, tambm compem uma espcie de cnone da literatura
infantil internacional. Reconhecendo o alto nvel de literariedade desses textos infantis e a
necessidade da competncia potica para traduzi-los, boas editoras tm escolhido poetas e
tradutores de poesia para a tarefa, como o seu caso. O que isso representa para o segmento
infanto-juvenil?
Tive essa experincia com a Girafa. Era necessrio que os versos correspondessem ao
que aparecia sucessivamente nas gravuras: chapu, rato, terno chique, rosa no focinho, etc.
Depois de manter todos esses elementos (substantivos) ao longo da narrativa, era necessrio
173
considerar o ritmo da frase e o jogo das rimas. Um belo exerccio para o tradutor-poeta. No
sei como seria esse texto se traduzido simplesmente ipsis litteris.
7) O livro infantil, e mais especificamente o livro ilustrado, que atinge no leitores e leitores
em formao, pensado para uma leitura mediada: o adulto l o livro em voz alta para a
criana. De que forma isso influencia suas escolhas como tradutor?
8) Gostaria que voc falasse um pouco sobre as estratgias de traduo empregadas diante
dos efeitos rtmicos provocados pelo poema original. Por exemplo: a maneira acumulativa
como Silverstein conta a histria, acrescentando novos versos e sempre repetindo os
anteriores; o predomnio de unidades de trs slabas fonticas, mostrando alguma influncia
de sua atuao tambm como compositor country; as rimas e as aliteraes.
Sobre a Girafa, acho que j falei bastante. Mas h um caso mais completo: Os Gatos,
de Eliot. Trata-se da obra de um grande poeta que resolve deixar mostra sua ndole infantil,
contudo estruturada dentro da mais habilidosa das tcnicas poticas. So histrias-poemas.
9) Fale um pouco sobre a traduo do ttulo. Como voc chegou soluo Uma girafa e
tanto para A giraffe and a half?
10) Sua biografia impressa no livro Uma girafa e tanto menciona a expresso tradutor
orgnico, cunhada por voc. O que ela significa e como se aplica traduo do texto de
Silverstein?
174
No tenho memria dessa frase, que alis no consta da minha edio do livro (a 1).
Mas pode significar algo como um tradutor que procura interpretar no apenas a mensagem
grfica (o significado das palavras) mas a sua repercusso na sensibilidades das crianas.
11) A obra Os gatos (T. S. Eliot) foi publicada pela Cia. das Letrinhas com o texto original ao
final do livro. Como traduzir para edies bilngues?
Como se sabe, Eliot escreveu esse livro como uma brincadeira, uma srie de presentes
em versos que ele dava a seus afilhados em datas natalcias. Da ter jogado com as rimas e a
musicalidade dos versos, alm de usar e abusar dos jogos de palavras. Pela primeira vez, tive
que abandonar o meu apego traduo integral, ou seja, fidelidade absoluta ao que est dito,
para poder alcanar a graciosidade do que se quis dizer. Substitu vrios provrbios por seus
equivalentes portugueses, e mesmo personagens que nenhum sentido teriam para o leitor
brasileiro. Por exemplo, mudei o notrio casal Mungojerrie and Rumpel teazer em Miragli e
Kalbinni (uma gozao com os nomes de ngela Maria e Cauby Peixoto). A incluso do
texto original, no final do livro, me parece bastante til, principalmente para aqueles que
possam apreciar, pelo conhecimento da lngua, como o tradutor conseguiu transpor para o
portugus palavras e frases que, se transpostas literalmente, nenhum sentido teriam para os
pequenos leitores brasileiros.
No quis me alongar muito sobre a ltima pergunta, mas voc pode comparar o Gus:
The Theatre Cat/Gog: o Gato ator para ver o quanto de adaptao foi conseguido na
traduo. J no ttulo, consegui transformar o Gus em Gog (palavra que na gria significa
falastro, mentiroso). Quando ele cita artistas do teatro ingls, conhecidssimos dos leitores de
l, mas absolutamente nada para os daqui, adaptei para: No colo de Ziembinski e aos ps da
Marineaux (que eram os equivalentes da poca em que foi feita a traduo). Mas h ali
inmeros trocadilhos que eu prprio criei.
175
1) Como tradutor profissional, voc tem atuado em uma ampla gama de gneros textuais.
Embora represente uma parte pequena de sua produo, voc traduziu quatro livros infantis
para a Cosac Naify: O povo das sardinhas (Delphine Perret); O inimigo (Davide Cali e Serge
Bloch); O dariz (Olivier Douzou); e A diaba e sua filha (Marie NDiaye). Fale um pouco sobre
sua relao com a literatura infantil e sobre como comeou a trabalhar com textos para
crianas.
O que eu disse se aplica ainda mais traduo desses livros infantis. Como o texto
geralmente curto, cada frase e mesmo cada palavra exigem muito mais ateno, exatamente
como se eu estivesse traduzindo poesia. E, embora esteja relacionado com a imagem, ele tem
sua autonomia e sua prpria criatividade. No a mesma coisa que o texto meramente
complementar ou explicativo de uma histria em quadrinhos, por exemplo. Nesses livros
123
Disponvel em: http://www.lpm-blog.com.br/?tag=paulo-neves. Acesso em fev. 2015.
176
infantis, pelo menos nos que traduzi, o texto tem que ser to bom e convincente quanto a
imagem. Talvez por causa dessa leitura mediada do adulto para a criana a que voc se refere.
No cheguei a fazer esse teste, mas o tradutor tem que levar tudo isso em conta ao fazer suas
escolhas.
4) Em linhas gerais, seu texto mais objetivo que o de Douzou. Por exemplo, para elle abait
mu meaucoup drop d'eau dans la ribire et abait d abaler guelgues boissons, temos tinha
pepido buita gua e engolido beixes do rio; para je zuis un dez mouch d'hobbe, temos
sou um dariz de hobem. Fale um pouco sobre essa opo.
Essa objetividade se deve em parte ao que eu disse na resposta anterior, mas em parte
tambm a uma preferncia pessoal por formulaes mais concisas. No caso particular da
segunda frase que voc menciona, e que eu poderia ter traduzido por sou um dariz endubido
de hobem, acho que considerei s o que importava dizer naquele momento, em funo de um
certo ritmo das frases que para mim o mais importante na traduo. a partir desse ritmo
177
que o leitor se liga ou no ao que est sendo dito. Mas difcil lembrar e justificar detalhes e
opes especficas, pois j se passou muito tempo desde que fiz essa traduo. Lembro apenas
que o prazo que me deram foi curto. Assim nem todas as solues que encontrei podem ter
sido as melhores ou as mais convenientes. De qualquer forma no h traduo perfeita. E por
isso necessrio que ela seja avaliada por mais algum, no caso o editor, que deve (ou
deveria) sempre manter um dilogo com o tradutor.
5) Na edio francesa, a capa traz o ttulo le nez, e somente na folha de rosto comea a
brincadeira com a troca de letras (le dez). Por que, na edio brasileira, optou-se pelo ttulo
o dariz j na primeira capa?
A deciso do ttulo foi da editora e possvel que se deva ao fato de ela j ter editado
(ou planejar editar) o conto de Ggol, O nariz, no qual Douzou se baseou para criar sua
histria. Alis, mesmo no caso de tradues de outros gneros, acontece s vezes de eu propor
um ttulo e a editora escolher outro. um aspecto que considero secundrio no que chamei de
dilogo do tradutor com o editor. O importante nesse dilogo a ateno ao texto traduzido,
que eu possa discutir e aprovar ou no as sugestes de mudana feitas pelo editor. E nesse
ponto nada tenho a me queixar dos editores de literatura infantil da Cosac Naify. Eles sempre
se mostraram muito respeitosos em relao ao meu trabalho e quase sempre acatei suas
sugestes, pois afinal tm muito mais experincia que eu nesse tipo de literatura. Alis, esse
retorno da parte do editor outro aspecto excepcional dessa experincia. Ele raramente
acontece nas minhas outras tradues.
6) Como voc v o status da literatura infantil dentro do quadro mais amplo da literatura?
Poderamos falar em gnero marginal?
A literatura infantil pode ter sido um gnero marginal no passado, mas hoje, ao
contrrio, um gnero em alta. Ocupa cada vez mais espao nas feiras do livro. E mesmo no
passado grandes escritores como Clarice Lispector e Mrio Quintana se dedicaram com gosto
a esse gnero. Talvez porque ele representa igualmente um aprendizado para o escritor, no s
para a criana.
crianas, boas editoras tm recorrido a poetas e tradutores literrios para textos infantis
mais complexos, como o caso de O dariz. Voc tradutor profissional com vasta bagagem
e escritor em paralelo. O que representa para o segmento infanto-juvenil esse cuidado com a
escolha dos tradutores de livros ilustrados?
Eu no saberia avaliar quanto e o que est sendo hoje traduzido para esse segmento.
Mas textos mais complexos, como O dariz e os outros que traduzi, certamente ocupam apenas
um espao restrito nessa produo. Destinam-se a um pblico relativamente pequeno, a
comear porque, exigindo tambm um maior cuidado grfico, no so livros baratos. Assim
no acho que se possa generalizar esse cuidado, que inclui a escolha de tradutores, para a
literatura infantil como um todo.
8) Como voc avalia o mercado para o tradutor de livros infantis, considerando a equao
tempo X remunerao do trabalho?
outro ponto sobre o qual no sei fazer uma avaliao geral. Para a literatura infantil
no se aplica o critrio de remunerao por nmero de laudas traduzidas. Como o texto
geralmente curto, calcula-se a remunerao em funo do tempo necessrio para traduzir, o
que nem sempre fcil, pois um texto pode dar muito mais trabalho do que o previsto. Mas,
no caso das minhas tradues, a remunerao sempre me pareceu justa.
9) No seu processo de traduo, existe um dos polos que voc acredita predominar em suas
escolhas tradutrias fonte ou alvo ?
Isso depende do tipo de traduo. A escolha obedece mais fonte no caso de um livro
de filosofia, por exemplo, onde preciso restituir com muita exatido os termos e conceitos
empregados pelo autor. J um livro de fico ou mesmo um ensaio permitem mais libertade
na escolha de palavras ou expresses. No caso de poesia, que s traduzo amadoristicamente, a
liberdade tem que ser ainda maior, porm submetida ao extremo rigor da forma. Isso se aplica
tambm aos livros infantis que traduzi. No me refiro s a O dariz, mas a livros que abordam
questes ticas, como O inimigo, de Davide Cali, e especialmente A diaba e sua filha, de
Marie NDiaye, de quem, alis, eu j havia traduzido dois romances. Nesse livro importava
recriar, com liberdade e rigor, e em conformidade com os traos sombrios e nebulosos das
179
ilustraes, o clima de medo no qual evoluem os personagens da Marie. Seja como for, as
escolhas tradutrias nunca so puramente tcnicas e no se prendem a um nico polo. Elas
sempre tm um fundo afetivo.
10) Fale um pouco sobre sua relao com a lngua francesa e sobre sua preferncia por
traduzir neste idioma.
11) Em seu artigo A Sombra do tradutor124, que traz depoimento seu no I Encontro de
Tradutores de Obras Francesas no Brasil (2006), voc afirma: Quem traduz, e sobretudo
quem traduz muito de uma lngua, acaba assimilando por osmose as virtudes, as manias, o
arrire-pense de um outro povo. Em seguida, voc afirma que o francs se caracteriza por
uma conscincia escrupulosa da linguagem. Fale um pouco sobre como voc empregou esse
arrire-pense absorvido na traduo do texto de Douzou e sobre a conscincia escrupulosa
da linguagem neste mesmo autor.
Como eu disse antes, o texto do Douzou est cheio de trocadilhos, frases com duplo
sentido, e isso um trao muito caracterstico dos franceses, para quem a conscincia
escrupulosa da linguagem um hbito que vem de longe. Antes mesmo de ser tradutor, eu j
havia incorporado atravs da leitura esse hbito, muito difundido em nossa formao at
algum tempo atrs, porque antes se lia muito em francs. A traduo apenas aprofundou esse
124
NEVES, Paulo. A sombra iluminada do tradutor. In: Cerrados: Revista do Programa de Ps-Graduao em
Literatura, n. 23, ano 16, 2007, p. 171-173.
180
gosto de investigar o que h por trs das palavras, o que h por trs daquilo que o outro diz.
No caso particular do texto do Douzou, senti que devia suspeitar de tudo que ele dizia, que
havia armadilhas por toda parte. nesse sentido que falei que a gente absorve sem saber o
arrire-pense de outro povo, isto , sua maneira inconsciente de se expressar.