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CALVINO - Institutas Vol. 4

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64 LIVRO IV

C A P T U L O III

DOS MESTRES E MINISTROS DA IGREJA


SUA ELEIO E OFCIO

1. DEUS CONFIOU AO MINISTRIO DOS HOMENS O GOVERNO DE SUA IGREJA,


EXPRESSO DA CONSIDERAO EM QUE OS TEM, INSTRUMENTO CONVENI-
ENTE PARA INFUNDIR HUMILDADE E MEIO PARA FOMENTAR O AMOR E A
UNIDADE ENTRE OS FIIS

Agora nos cabe falar da ordem mediante a qual o Senhor quis que sua Igreja fosse
governada. Pois ainda que importe que exclusivamente reja e reine na Igreja, ele
tambm preside nela ou exerce eminncia sobre ela, e indispensvel que este im-
prio seja exercido e administrado somente por meio de sua Palavra. No entanto,
visto que ele no habita entre ns em presena visvel, de sorte que no nos declara
sua vontade pessoalmente, por sua boca, dissemos que nisso se aplica o ministrio
dos homens e como que uma obra vicria, no lhes transferindo seu direito e honra,
mas somente para que, pela boca deles, ele mesmo execute sua obra da mesma
forma que tambm o artfice usa de um instrumento para fazer seu trabalho.
Vejo-me na obrigao de reiterar novamente coisas que j expus previamente.
Certamente que ele poderia fazer isso ou por si mesmo, sem qualquer outro auxlio
ou instrumento, ou at por meio de anjos. Entretanto, muitas so as causas por que
ele prefere faz-lo por meio dos homens. Ora, deste modo declara, em primeiro
lugar, sua considerao para conosco, quando dentre os homens toma aqueles que a
seu favor desempenhem embaixada no mundo [2Co 5.20], que sejam seus intrpre-
tes da vontade secreta; enfim, que representem sua pessoa. E assim, com evidncia,
comprova no ser vo que, de quando em quando, nos chame templos seus [1Co
3.16, 17; 6.19; 2Co 6.16], enquanto da boca dos homens, como se fosse do santu-
rio, d aos homens suas respostas.
Em segundo lugar, este um timo e ultilssimo exerccio humanidade, en-
quanto nos acostuma a obedecer sua Palavra, conquanto ela pregada atravs de
homens semelhantes a ns, por vezes at inferiores em dignidade. Se ele falasse
pessoalmente do cu, no haveria de se maravilhar, sem tardana seus sacros orcu-
los seriam recebidos reverentemente pelos ouvidos e nimos. Pois, quem no se
apavoraria de seu manifesto poder? Quem no se sentiria aturdido com aquele imenso
fulgor? Quando, porm, um homenzinho qualquer surgido do p fala em nome de
CAPTULO III 65

Deus, aqui, de mui excelente testemunho declaramos nossa piedade e deferncia


para com o prprio Deus, se nos exibimos dceis a seu ministro, quando, no entan-
to, em coisa alguma este nos exceda. Portanto, tambm por esta causa o tesouro de
sua sabedoria celestial est oculto em vasos frgeis e de barro [2Co 4.7], para que
assuma mais segura comprovao de quo grande nosso apreo por ele.
Em terceiro lugar, nada era mais apropriado para fomentar mtuo amor do que
os homens serem ligados entre si por este vnculo, enquanto um constitudo pastor
para que, a um tempo, ensine aos demais, os que se ordenam discpulos recebem a
doutrina comum de uma s boca. Ora, se cada um se bastasse a si mesmo, nem
tivesse necessidade da ajuda de outrem, qual a soberba do engenho humano, cada
um desprezaria aos outros e seria por eles desprezado. Portanto, aquele que o Se-
nhor previu haver de ser o mais firme n para reter sua unidade, com esse apertou
sua Igreja, enquanto ministrou aos homens a doutrina da salvao e da vida eterna,
para que pelas mos desses a comunicasse aos demais. A isto visava Paulo quando
escrevia aos Efsios: Um s corpo, um s Esprito, assim como tambm fostes
chamados em uma s esperana de vossa vocao. Um s Senhor, uma s f, um s
batismo. Um s Deus e Pai de todos, que sobre todas as coisas, e atravs de todas
as coisas, e em todos ns. A cada um de ns, porm, foi dada graa segundo a
medida do dom de Cristo. Pelo que diz: Quando subiu ao alto levou cativo o cativei-
ro e deu dons aos homens. O que desceu aquele mesmo que subiu, para que preen-
chesse a todas as coisas. E ele mesmo deu uns para apstolos, outros para profetas,
porm outros para evangelistas, outros para pastores e mestres, para a renovao
dos santos, para a obra do ministrio, para a edificao do corpo de Cristo, at que
todos cheguemos unidade da f e do conhecimento do Filho de Deus, a varo
perfeito, medida da idade plenamente adulta, para que no mais sejamos meninos
que so levados em volta por todo vento de doutrina; pelo contrrio, buscando a
verdade em amor, cresamos em tudo quele que a Cabea, isto , a Cristo, em
quem todo o corpo, encaixado e compactado atravs de toda juntura de sua dispen-
sao, conforme a ao na medida de cada parte, promove o crescimento do corpo
para a edificao de si prprio atravs do amor [Ef 4.4-16].

2. O SAGRADO MINISTRIO, INSTRUMENTO DIVINO, BASE VITAL PARA GERIR E


NORTEAR A IGREJA

Com as palavras supra-referidas Paulo mostra, em primeiro lugar, que esse mi-
nistrio dos homens, do qual Deus se serve para o governo da Igreja, o nervo
motriz atravs do qual os fiis so ligados em um s corpo. Em segundo lugar,
porm, tambm indica, no de outro modo, poder a Igreja manter-se inclume, para
que se sustente com estas salvaguardas, nas quais aprouve ao Senhor estabelecer
sua preservao. Cristo subiu ao alto, diz ele, para que preenchesse todas as
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coisas [Ef 4.10]. Mas, esta a maneira de preencher: que por meio dos ministros,
aos quais confiou este ofcio e conferiu a graa de levar avante sua funo, dispensa
e distribui seus dons Igreja, se mostra pessoalmente presente, manifestando o
Esprito o poder Deus nesta sua instituio, para que no seja ela intil e ociosa.
Assim se leva a bom termo a renovao dos santos, de modo que tambm o corpo de
Cristo edificado [Ef 4.12] e assim crescemos em tudo naquele que a Cabea
[Ef 4.15], e nos faz mutuamente unidos; e assim somos todos conduzidos unidade
de Cristo, caso a profecia tenha entre ns vigor, se acolhemos os apstolos, se no
desprezamos a doutrina a ns ministrada.
Portanto, na desintegrao, ou antes na runa e destruio da Igreja, se empenha
quem ou diligencia por abolir ou quase faz menos necessria esta ordem de que
estamos a discorrer, e este gnero de regime. Pois, nem a luz e o calor, nem a comida
e a bebida so to necessrios para nutrir e suster a presente vida, quanto o ofcio
apostlico e pastoral para conservar a Igreja na terra.

3. DIGNIDADE E EXCELNCIA DO MINISTRIO DA PALAVRA NO PRPRIO ENSI-


NO DA ESCRITURA

J frisei supra que nosso Senhor exaltou a dignidade deste estado com todos os
louvores possveis, a fim de que o estimemos como uma coisa superior a todas as
excelncias.27 O Senhor atesta ser singular benefcio prodigalizar aos homens susci-
tando-lhes mestres, onde ordena ao Profeta exclamar quo formosos so os ps
daqueles que anunciam a paz [Is 52.7]; e quando chama os apstolos luz do mun-
do e sal da terra [Mt 5.13,14]. No podia adornar este ofcio mais espledidamen-
te do que quando disse: Quem vos ouve, ouve a mim; quem vos rejeita, rejeita a
mim [Lc 10.16]. Nenhuma passagem, porm, mais luminosa que em Paulo, na
Segunda Epstola aos Corntios, onde, de forma expressa, trata esta questo. Portan-
to, ele declara que na Igreja nada pode haver mais preclaro ou glorioso do que o
ministrio do evangelho, quando a ministrao do Esprito, da justia e da vida
eterna [2Co 3.9; 4.6]. Estas e consideraes afins dizem respeito a que esse modo
de a Igreja ser governada e mantida atravs dos ministros, que o Senhor sancionou
para sempre, no deve ser entre ns menosprezado, e por fim caia em desuso pelo
prprio descaso.
E de fato, quo grande sua necessidade, j o declarou no apenas por palavras,
mas tambm por exemplos. A Cornlio, como o quisesse iluminar mais plenamente
pela luz de sua verdade, enviou-lhe um anjo do cu para que a Pedro encaminhasse

27. Primeira edio: Por isso mesmo, acima frisei que, com quais encmios pode, no-lo h Deus
freqentemente recomendado a dignidade, para que entre ns estivesse em sumo interesse e apreo, como
cousa de todas a mais excelente.
CAPTULO III 67

[At 10.3-6]. A Paulo, como o quisesse chamar ao conhecimento dele e inseri-lo na


Igreja, no lhe fala com sua prprio voz, mas o envia a um homem de quem recebe
no s o ensino da salvao, mas tambm a santificao do batismo [At 9.6, 11, 12,
17-19]. Se no acontece ao acaso que um anjo, que o intrprete de Deus, de expor
a Cornlio a vontade de Deus, se abstm ele mesmo, mas ordena que um homem
seja encarregado de exp-la; que Cristo, o Mestre nico dos fiis, confia a Paulo o
magistrio de um homem, e esse Paulo, que havia determinado arrebatar ao terceiro
cu e dignar de mirfica revelao de coisas inefveis [2Co 12.2-4], quem ouse
agora menosprezar esse ministrio ou preteri-lo como sendo suprfluo, por cujo uso
Deus quis que tais comprovaes fossem atestadas?

4. OS DIVERSOS OFCIOS EXCLESISTICOS DA IGREJA PRIMITIVA, SEGUNDO


EFSIOS 4.11, E SUA NATUREZA
Aqueles que presidem ao governo da Igreja, segundo a instituio de Cristo, so
chamados por Paulo [Ef 4.11], primeiro apstolos; em seguida, profetas; terceiro,
evangelistas; quarto, pastores; finalmente, mestres; dos quais apenas os dois lti-
mos tm funo ordinria na Igreja, os outros trs o Senhor suscitou no incio de seu
reino, e s vezes ainda suscita, conforme convm necessidade dos tempos.
Qual a funo apostlica se faz evidente luz deste mandado: Ide, pregai o
evangelho a toda criatura [Mc 16.15]. No se atribuem seus limites definidos; ao
contrrio, os envia para que conduza o mundo inteiro obedincia de Cristo, para
que, espargindo o evangelho por toda parte que possam, em todos os lugares erijam
seu reino. Por isso mesmo Paulo, como quisesse provar seu apostolado, recorda que
no ganhou para Cristo uma nica cidade, seno que propagava o evangelho ampla
e extensivamente; nem ps as mos em fundamentos alheios, seno que plantava
igrejas onde ainda no se ouvira o nome do Senhor [Rm 15.20]. Portanto, os apsto-
los foram enviados para que reconduzissem o mundo inteiro da alienao verda-
deira obedincia de Deus; e mediante a pregao do evangelho, implantassem por
toda parte o reino; ou, se preferes, para, como os primeiros construtores da Igreja,
lanassem seus fundamentos em todo o mundo [1Co 3.10].
Ele chama profetas no a quaisquer intrpretes da vontade divina, mas queles
que exceliam em singular revelao, como agora nenhum subsiste, ou so menos
evidentes. Por evangelistas entendo aqueles que, embora fossem menores que os
apstolos em dignidade, entretanto mais perto estavam em seu ofcio, e at s vezes
se assemelhavam a eles, como, por exemplo, Lucas, Timteo, Tito e demais como
eles; e talvez tambm os setenta discpulos que Cristo designou em segundo lugar
aps os apstolos [Lc 10.1].
Segundo esta interpretao, a qual me parece coerente tanto com as palavras
68 LIVRO IV

quanto com a opinio de Paulo, essas trs funes no foram por isso institudas na
igreja para que fossem perptuas, mas apenas para esse tempo em que deveriam ser
implantadas igrejas onde nenhuma havia antes existido, ou certamente tinham de
ser transpostas de Moiss para Cristo. Embora eu no negue que depois houve tam-
bm apstolos, ou pelo menos evangelistas no lugar deles, Deus s vezes os suscita-
va, como ocorreu em nosso tempo. Pois por meio deles se fez necessrio que recon-
duzissem, da defeco do Anticristo, de volta a Igreja. Contudo, ao prprio ofcio
chamo extraordinrio, porquanto ele no tem lugar nas igrejas regularmente cons-
titudas.
Seguem-se pastores e mestres, dos quais a Igreja jamais pode prescindir, entre
os quais penso haver esta distino: que os mestres no presidem a disciplina, nem
a administrao dos sacramentos, nem as admoestaes ou exortaes, mas apenas
a interpretao da Escritura, para que entre os fiis se retenha pura e s a doutrina. O
ofcio pastoral, entretanto, contm em si todas estas funes.

5. RELAO ENTRE MESTRES E PROFETAS, E ENTRE PASTORES E APSTOLOS


Temos assim quais os ministrios que foram temporrios no governo da Igreja,
e quais foram institudos para durarem perpetuamente. Ora, se agruparmos os evan-
gelistas com os apstolos, de certo modo nos restaro dois pares que correspondem
entre si. Pois, a semelhana que nossos mestres tm com os antigos profetas, os
apstolos a tm com os pastores. O ofcio proftico foi mais eminente em razo do
dom singular de revelao pelo qual os profetas exceliam, mas o ofcio dos mestres
tem natureza quase semelhante e um exerccio inteiramente o mesmo. Da mesma
forma tambm aqueles doze a quem o Senhor escolheu para que proclamassem ao
mundo a nova pregao do evangelho tiveram precedncia sobre os demais em or-
dem e dignidade. No entanto, o sentido e a etimologia do termo podem chamar
corretamente apstolos a todos os ministros eclesisticos, visto que so todos envi-
ados pelo Senhor e so seus mensageiros. Contudo, visto que importava muitssimo
que se tenha seguro conhecimento acerca da misso desses que apresentariam coisa
nova e inaudita, foi conveniente que esses doze, a cujo nmero mais tarde se acres-
centou Paulo [At 9.15; Gl 1.1], sejam mencionados acima dos outros por um ttulo
especial. Na verdade, o prprio Paulo, em alguma parte [Rm 16.7], atribuiu este
ttulo a Adrnico e Jnias, a quem diz que eram insignes entre os apstolos; quando,
porm, quer falar acuradamente, o atribui exclusivamente quela primeira ordem. E
este o uso comum da Escritura. Os pastores, entretanto, exceto que regem, um a
um, determinadas igrejas a si designadas, mantm com os apstolos o mesmo cargo.
Alm disso, de que natureza seja esse encargo ainda ouviremos mais claramente.
CAPTULO III 69

6. AS FUNES QUE SE ATRIBUEM AOS PASTORES SO AS MESMAS ATRIBUDAS


AOS APSTOLOS E DEVEM SER DESEMPENHADAS COM ZELO IDNTICO

O Senhor, quando estava enviando os apstolos, deu-lhes, como foi dito a pou-
co, a comisso de pregar o evangelho e de batizar os que cressem, para a remisso
de seus pecados [Mt 28.19]. Antes disso, porm, mandara ele que distribussem, a
seu exemplo, os sagrados smbolos de seu corpo e sangue [Lc 22.19]. Eis a santa, a
inviolvel, a perptua lei imposta queles que sucedem ao lugar dos apstolos, pela
qual recebem o mandado da pregao do evangelho e da administrao dos sacra-
mentos. Do qu conclumos que aqueles que negligenciam a uma e outra dessas
duas funes pretextam falsamente o papel de apstolos.
Mas, o que dizer dos pastores? Paulo fala no apenas em relao a si prprio,
mas de todos eles, quando diz: Assim nos considere o homem como ministros de
Cristo e despenseiros dos mistrios de Deus [1Co 4.1]. Igualmente, em otro lugar:
Importa que o bispo seja pertinaz nessa palavra fiel que segundo a doutrina, para
que seja poderoso para exortar mediante a s doutrina e para refutar os contradizen-
tes [Tt. 1.7, 9]. Destas e de passagens afins, que ocorrem a cada passo, possvel
inferir que tambm na funo dos pastores estas so as duas partes primordiais:
anunciar o evangelho e administrar os sacramentos. Mas, a maneira de ensinar con-
siste apenas no em discursos pblicos, mas diz respeito tambm a admoestaes
particulares. Assim sendo, Paulo cita os efsios como suas testemunhas de que da-
quelas coisas que lhes eram do interesse a nada se esquivou que lhes anunciasse e os
ensinasse publicamente e de casa em casa testificando a judeus, ao mesmo tempo
que a gregos, o arrependimento e a f em Cristo [At 20.20, 21]. Igualmente, pouco
depois diz que no cessou de, com lgrimas, admoestar a cada um deles [At 20.31].
Contudo, no pertence ao presente desgnio expor minuciosamente os dotes do bom
pastor, um a um, mas apenas indicar o que professam os que se chamam pastores,
isto , presidirem Igreja de tal maneira que no tm uma dignidade ociosa, antes
que, com a doutrina de Cristo, instruem o povo verdadeira piedade, administram
os sagrados mistrios, conservam o exerccio da reta disciplina. Pois todos quantos
foram postos por atalaias na Igreja, o Senhor lhes anuncia que, se algum perea por
ignorncia, em razo de negligncia deles, ele requerer de suas mos seu sangue
[Ez 3.17, 18]. Tambm a todos eles compete o que de si diz Paulo: Ai de mim se
no pregar o evangelho, quando uma dispensao me foi confiada [1Co 9.16, 17].
Enfim, o que os apstolos fizeram para o mundo inteiro, isso cada pastor deve a seu
rebanho, ao qual foi designado.
70 LIVRO IV

7. CADA PASTOR DEVE ATUAR ESPECIFICAMENTE NA REA OU IGREJA PARA A


QUAL FOI DESIGNADO

Mas, ainda que a cada pastor, um a um, atribuamos sua prpria igreja, contudo
no negamos que possa ajudar a outras igrejas aquele que foi ligado a uma, quer
algum distrbio haja ocorrido que lhe requeira a presena, ou que, acerca de alguma
coisa mais obscura, se pea dele conselho. Mas, visto que para manter a paz da
Igreja, se faz necessria esta poltica que a cada um se proponha o que deve fazer,
de modo que no tumultuem todos a um tempo, no corram, incertos, para c e para
l, sem algo definido, nem corram todos a um s lugar desordenadamente, e a seu
bel-prazer no deixem vagas as igrejas os que esto solcitos por seu conforto mais
do que pela edificao da Igreja , esta distribuio deve ser geralmente observada,
at onde possvel, de sorte que cada um, contente com seus limites, no se intrometa
nem usurpe a posio alheia.
Nem isso uma inveno humana; antes, uma instituio do prprio Deus.
Pois lemos que Paulo e Barnab instalaram presbteros nas igrejas individuais da
cidade de Listra, de Antioquia, de Icnio [At 14.21-23]; e Paulo mesmo ordena a
Tito que constitua presbteros de cidade em cidade [Tt 1.5]. Assim, em um lugar [Fp
1.1] menciona os bispos dos filipenses e em outro cita [Cl 4.17] Arquipo, bispo dos
colossenses. E Lucas se refere ao excelente discurso dirigido aos presbteros da
igreja efsia [At 20.17-35]. Portanto, quem quer que haja assumido o governo e
cuidado de uma igreja saiba que foi atado a esta lei da divina vocao; no que,
como se atado gleba, como dizem os jurisconsultos, isto , sujeito e como que
preso, sem poder da arredar p, quando assim o requeira o benefcio pblico, desde
que isso se faa retamente e em ordem. Mas, aquele que foi chamado para um lugar
ele mesmo no deve cogitar de mudana, nem segundo haja julgado ser vantajoso a
si, buscar da liberao. Ento, se a algum parea conveniente ser transferido para
outro lugar, contudo no deve tentar isto por deciso pessoal, mas aguardar a apro-
vao pblica.

8. TTULOS E FUNO DO MINISTRO DA PALAVRA EM DISTINO DE OUTROS


CARGOS OU OFCIOS NA IGREJA

Quanto ao que tenho chamado indiscriminadamente bispos, presbteros, pasto-


res e ministros, queles que regem as igrejas, eu o fiz pelo uso da Escritura, que
emprega estes vocbulos um pelos outros, pois todos quantos desempenham o mi-
nistrio da Palavra, a esses lhes atribui o ttulo de bispos. Assim, em Paulo, quando
a Tito se ordenou constituir presbteros de cidade em cidade [Tt 1.5], acrescenta-se
logo em seguida: Ora, importa que o bispo seja irrepreensvel etc. [Tt 1.7]. Assim,
em outro lugar [Fp 1.1], Paulo sada a muitos bispos em uma s igreja. E em Atos
CAPTULO III 71

se refere que o Apstolo convocara os presbteros efsios [20.17], aos quais em sua
orao ele chama bispos [20.28]. Aqui hora de observar-se que at este ponto
enumeramos somente esses ofcios que consistem no ministrio da Palavra, tam-
pouco Paulo faz meno de outros naquele captulo quarto da Epstola aos Efsios
que j mencionamos. Na Epstola aos Romanos [12.7, 8], e na Primeira aos Cornti-
os [12.28], porm, ele enumera outros, como potestades, dom de curas, interpreta-
o, governo, cuidado dos pobres, dos quais deixo de considerar os que foram tem-
porrios, porquanto no vale a pena deter-nos neles.
Mas h dois que permanecem perpetuamente: governo e cuidado dos pobres.
Penso que governo foram pessoas mais idosas escolhidas dentre o povo, as quais,
juntamente com os bispos, presidiam censura dos costumes e disciplina a ser
exercida. Pois, tampouco podes interpretar de outro modo o que ele diz: Quem
preside, faa-o com diligncia [Rm 12.8]. Logo, desde o incio cada igreja teve seu
senado, recrutado dentre homens piedosos, srios e santos, de mos com o qual
estava aquela jurisdio em corrigir vcios de que falaremos mais adiante. Com
efeito, que ordem desta natureza no foi de um sculo o declara a prpria expern-
cia. Portanto, tambm este ofcio governamental necessrio em todos os sculos.

9. O CUIDADO DOS POBRES OFCIO DOS DICONOS, DOS QUAIS HAVIA DUAS
CLASSES NA IGREJA PRIMITIVA

O cuidado dos pobres foi confiado aos diconos. Todavia, na Epstola aos Ro-
manos lhes so atribudas duas modalidades: Aquele que distribui, diz Paulo a,
faa-o com simplicidade; aquele que exerce misericrdia, com alegria [Rm 12.8].
Uma vez que certamente ele est falando dos ofcios pblicos da Igreja, necessaria-
mente houve dois graus distintos de diconos. A no ser que me engane o juzo, no
primeiro membro da clusula ele designa os diconos que administravam as esmo-
las; no segundo, porm, aqueles que se dedicaram a cuidar dos pobres e dos enfer-
mos, como, por exemplo, as vivas das quais faz meno a Timteo [1Tm 5.9, 10].
Pois nenhum outro ofcio pblico podiam as mulheres desempenhar alm do servi-
o aos pobres. Se recebemos isto (como tem de ser absolutamente recebido), duas
sero as modalidades de diconos, dos quais uns serviro Igreja na administrao
das coisas relativas aos pobres; outros, cuidando dos prprios pobres. Mas, ainda
que o prprio termo diakoni,a/ [diak(n*] tenha sentido mais amplo, contudo a Escri-
tura denomina especialmente diconos aos que so constitudos pela Igreja para
distribuir esmolas e cuidar dos pobres, como seus procuradores. A origem, a insti-
tuio e o cargo dos diconos o menciona Lucas nos Atos dos Apstolos [6.3]. Ora,
como fosse excitado pelos gregos o murmrio de que no ministrio dos pobres as
vivas estavam sendo negligenciadas, os apstolos, justificando que no poderiam
atender a ambos os ofcios, solicitam da multido que fossem escolhidos sete ho-
72 LIVRO IV

mens probos que atendessem no s pregao da Palavra, mas tambm ao minis-


trio das mesas, aos quais confiassem essa funo.
Aqui est a misso dos diconos nos dias dos apstolos, e como devemos t-los
conforme o exemplo da Igreja primitiva.

10. NOS OFCIOS ECLESISTICOS, O ELEMENTO PRIMRIO A VOCAO DIVINA


Agora, pois, quando em uma assemblia sagrada tudo deva ser feito em ordem
e com decncia [1Co 14.40], no h nada que importe observar com mais dilign-
cia do que o estabelecimento do governo, porquanto em coisa alguma o perigo
maior do que quando algo feito sem a devida ordem. Assim sendo, para que no se
introduzissem temerariamente homens inquietos e turbulentos a ensinar ou a gover-
nar, o que de outra sorte haveria de acontecer, tomou-se precauo expressamente a
que algum no assuma para si ofcio pblico na Igreja sem a devida vocao. Por-
tanto, para que algum seja considerado verdadeiro ministro da Igreja, primeiro
importa que tenha sido devidamente chamado [Hb 5.4]; ento, que responda ao
chamado, isto , empreenda e desempenhe as funes a si conferidas. Isto possvel
notar freqentemente em Paulo, o qual, quando quer provar seu apostolado, quase
sempre menciona sua vocao juntamente com sua fidelidade em executar seu of-
cio. Se um to grande ministro de Cristo no ousa arrogar para si autoridade para ser
ouvido na Igreja, seno porque no s foi nisso constitudo por mandado do Senhor,
mas tambm leva fielmente a bom termo o que lhe foi confiado, quo grande impu-
dncia ser, se qualquer dos mortais, destitudo de uma ou outra destas duas creden-
ciais, reivindique para si uma honra desta natureza!
Mas, uma vez que j abordamos supra a necessidade de desempenhar o ofcio,
tratemos agora somente da vocao.

11. DUPLA VOCAO MINISTERIAL: INTERIOR E EXTERIOR


A considerao desta matria aborda quatro itens: que saibamos quais, como e
por quem os ministros devem ser investidos e com que rito ou com que cerimnia
devem ser instalados. Estou falando da vocao exterior e solene, que diz respeito
ordem pblico da Igreja. Contudo deixo fora de considerao aquela vocao que
no tem a Igreja por testemunha. De fato ela o bom testemunho de nosso corao,
de que recebamos o ofcio outorgado no por ambio, nem por avareza, nem por
qualquer outra cobia, mas por sincero temor de Deus e zelo pela edificao da
Igreja. Certamente que isto necessrio a cada um de ns, como eu j disse, se
queremos que Deus aprove nosso ministrio.
No entanto, perante a Igreja, no obstante, foi chamado devidamente aquele que
atendeu a esse ministrio em m conscincia, contanto que sua iniqidade no se
CAPTULO III 73

manifeste. Costumam tambm dizer que foram chamadas para o ministrio mesmo
pessoas leigas que se revelam aptas e idneas para exerc-lo, visto que, na verdade,
a erudio associada piedade e aos demais dotes do bom pastor lhe sejam uma
como que preparao. Ora, aqueles que o Senhor destinou a to grande ofcio os
equipa antes com essas armas que so requeridas para desempenh-lo, de sorte que
no venham a ele vazios e despreparados. Do qu tambm Paulo, na Primeira Eps-
tola aos Corntios, como quisesse discutir acerca dos prprios ofcios, enumerou
antes os dons em que devem exceler os que desempenhem os ofcios [1Co 12.7-11].
Mas, uma vez que este o primeiro dos quatro tpicos que acima propus, avana-
mos para ele agora.

12. QUE PESSOAS DEVEM SER ADMITIDAS AO MINISTRIO E OFICIALATO DA


IGREJA E COMO FAZ-LO
Em duas passagens [1Tm 3.1-7; Tt 1.7-9], Paulo faz extensa meno a que tipo
de homens devem ser eleitos bispos. Em suma, ele ensina que s devem ser eleitos
os que professam a s doutrina e vivem vida santa, que no foram manchados por
nenhum vcio notrio que os faa desprezveis e seja causa de afronta para o minis-
trio. Quanto aos diconos e ancios, a qualificao inteiramente semelhante [1Tm
3.8-13]. preciso sempre ver que no sejam incapazes ou inaptos para suster o nus
que lhes imposto, isto , que hajam sido dotados dessas capacidades que sero
necessrias para o cumprimento de seu ofcio. Assim Cristo, quando estava para
enviar os apstolos, adornou-os com as armas e instrumentos de que no podiam
prescindir [Mc 16.15-18; Lc 21.15; 24.49; At 1.8]. E Paulo, pintando a imagem do
bom e verdadeiro bispo, exorta a Timteo a que no se contaminasse a si mesmo,
elegendo algum estranho a ela [1Tm 5.22].
Aplico a partcula como no ao rito de eleger, mas ao temor religioso que se
deve observar na eleio. Daqui, os jejuns e oraes de que Lucas faz meno, e que
os fiis fizeram uso quando criavam presbteros [At 14.23]. Ora, como compreen-
dessem que estavam fazendo coisa da maior seriedade, nada ousavam tentar sem
extrema reverncia e solicitude. Mais do que tudo, porm, se aplicaram s oraes,
nas quais a Deus rogavam o Esprito de conselho e discernimento.

13. A VOCAO OU INDICAO DOS MINISTROS FUNO DE DEUS, NO PRO-


PRIAMENTE DOS HOMENS

O terceiro item que inclumos em nossa diviso era por quem os ministros de-
vem ser eleitos. Mas, desta matria no se pode buscar regra segura na instituio
dos apstolos, a qual contm algo distinto da vocao comum dos demais. Ora,
visto que ele era um ministrio extraordinrio, para que se fizesse distinto por algu-
74 LIVRO IV

ma nota mais insigne, foi necessrio que fossem chamados e constitudos pela boca
do prprio Senhor aqueles que o haveriam de desempenhar. Portanto, no foram
investidos por nenhuma eleio humana, mas foram cingidos para a obra to-so-
mente pelo mandado de Deus e de Cristo. Daqui procede que os apstolos, quando
querem colocar um outro no lugar de Judas, de certo modo no ousam nomear um
nico homem, mas apresentam dois, para que o Senhor declare por sorte qual desses
dois queira que seja o sucessor [At 1.23-26]. Tambm nessa maneira convm inter-
pretar o fato de Paulo negar haver sido feito Apstolo por homens ou atravs de um
homem, mas por Cristo e Deus Pai [Gl 1.1].
Esse primeiro ponto, isto , no ter sido feito Apstolo por homens, considerou-
se comum com todos os pios ministros da Palavra, pois algum no podia exercer
devidamente esta ministrao seno aquele que fosse chamado por Deus. O segun-
do ponto, porm, isto , no ter sido designado atravs de homem, foi-lhe prprio e
peculiar. Portanto, enquanto se gloria disto, o Apstolo no est apenas se gloriando
de ter o que convm ao verdadeiro e legtimo pastor, mas tambm exibindo as insg-
nias de seu apostolado. Pois, como houvesse entre os glatas aqueles que, esforan-
do-se por denegrir-lhe a autoridade, fizessem dele um discpulo comum, sujeito aos
apstolos primrios, para que vindicasse dignidade inclume sua pregao, contra
a qual sabia que estas insdias eram intentadas, se viu obrigado, em todo respeito,
mostrar que em nada era inferior aos demais apstolos. Conseqentemente, afirma
que fora escolhido no pelo critrio de homens, semelhana de um bispo vulgar,
mas por boca e orculo manifesto do prprio Senhor.

14. A VOCAO DIVINA NO IMPEDE NEM EXCLUI A DESIGNAO OU ESCOLHA


POR PARTE DA IGREJA

Mas que seja preciso, na vocao legtima dos pastores, ser eleitos pelos ho-
mens, ningum sobriamente negar, quando nesta matria subsistem tantos teste-
munhos da Escritura. Tampouco a isso se contrape esta afirmao de Paulo, como
foi dito, de que eu fui enviado no por homens, nem atravs de homens [Gl 1.1],
quando a no est falando a respeito da eleio ordinria de ministros, mas reivin-
dicando para si o que era especial para os apstolos. No obstante, ainda que ele
mesmo fosse eleito pelo Senhor, mas sua eleio foi de tal maneira que interveio a
ordem eclesistica, pois Lucas assim o relata: Estando os apstolos a jejuar e a
orar, o Esprito Santo lhes disse: Separai-me Paulo e Barnab para a obra para a
qual os escolhi [At 13.2]. A que propsito, pois, esta separao e imposio de
mos, depois que o Esprito Santo atestara sua eleio, seno para que fosse conser-
vada a disciplina eclesistica, sendo eles os ministros designados atravs dos ho-
mens? Portanto, de nenhum exemplo mais claro Deus pde aprovar disposio des-
ta natureza que, enquanto declarara antes haver destinado Paulo para ser Apstolo
CAPTULO III 75

aos gentios, no entanto quer que ele seja designado pela Igreja. Isso mesmo se pode
perceber na escolha de Matias [At 1.23-26]. Ora, visto o ofcio apostlico ser de to
grande importncia, que no ousassem escolher um s homem para esse posto, por
seu prprio critrio, apresentam dois, dos quais esperam que a sorte caia sobre um,
para que assim tambm a escolha tenha reconhecido testemunho do cu, e tampou-
co seja inteiramente preterida a sistemtica da Igreja.

15. A ELEIO OU ESCOLHA DOS MINISTROS DEVE SER POR SEUS PARES, ASSIS-
TIDOS DOS PRESBTEROS OU ANCIOS, COM APROVAO DIRETA DA IGREJA
OU ASSEMBLIA DOS FIIS

Agora indaga-se se porventura o ministro deva ser eleito por toda a Igreja, ou
apenas pelos colegas e os presbteros que presidem censura, ou porventura de fato
possa ser constitudo pela autoridade de um s. Aqueles que atribuem este direito a
um s homem citam o que Paulo diz a Tito [1.5]: Por isso te deixei em Creta, para
que constituas presbteros de cidade em cidade. Igualmente, a Timteo: A nin-
gum imponhas as mos precipitadamente [1Tm 5.22]. Mas esto enganados se
pensam que, ou Timteo em feso, ou Tito em Creta, exercera poder rgio, de modo
que dispusesse de tudo e de todos a seu bel-prazer. Ora, estiveram frente apenas
para que assistissem ao povo com bons e salutares conselhos, no para que sozi-
nhos, excludos todos os demais, fizessem o que bem lhes aprouvesse. E para que
no parea que estou a imaginar algo, farei isso evidente com um exemplo seme-
lhante. Pois Lucas [At 14.23] relata que foram constitudos, por Paulo e Barnab,
presbteros nas igrejas, porm assinala, ao mesmo tempo, a maneira ou modo, quan-
do diz que isso foi feito por sofrgio ceirotonh,santej [cheir(t(n@sant$s havendo
eles estendido a mo para votar], diz ele, presbute,rouj katV evkklhsi,a/n [pr$sbyt$rous
kat'$kk@s*n presbteros em cada igreja]. Logo, eles dois os criavam, mas toda a
multido, como era o costume dos gregos nas eleies, com as mos levantadas
declarava qual desejasse ter. Alis, assim no raro falavam os hitoriadores romanos
ter o cnsul que promovia a assemblia criado os novos magistrados, no por
outra causa, mas porque recebia os sufrgios e servia de moderador do povo no
processo de eleio.
Certamente no crvel que Paulo haja concedido a Timteo e Tito mais do que
ele prprio assumira para si. Mas descobrimos que ele costumava criar bispos
pelos sufrgios do povo. Portanto, assim se deve entender as passagens supracitadas
que no diminam algo do direito e liberdade comuns da Igreja. Por isso Cipriano
setenciou bem, quando afirma provir de divina autoridade que o sacerdote seja es-
colhido, presente o povo, sob os olhos de todos e seja comprovado digno e idneo
pelo testemunho e critrio pblico. Com efeito, descobrimos que isto foi observado,
por mandado do Senhor, nos sacerdotes levticos, de sorte que fossem trazidos
76 LIVRO IV

presena do povo antes da consagrao [Lv 8.4-6; Nm 20.26, 27]. Matias no


admitido de outra maneira no colgio dos apstolos [At 1.15; 21-26], nem de outro
modo so criados os sete diconos [At 6.2-7], seno que o povo estava presente e
aprovando. Esses exemplos, diz Cipriano, mostram que a ordenao de um sa-
cerdote s se pode fazer sob o conhecimento do povo a assisti-la, para que seja uma
ordenao justa e legtima, que seja consignada pelo testemunho de todos.28 Por-
tanto, vemos que, segundo a Palavra de Deus, este o legtimo chamado de um
ministro, quando aqueles que so vistos como idneos sejam constiudos com o
consenso e aprovao do povo; mas a eleio deve ser presidida por outros pastores,
para que a multido no incorra em alguma falta, quer por leviandade, quer por
maus desgnios, quer por distrbios da ordem.

16. O RITO DE ORDENAO MINISTERIAL ENFEIXADO NA CERIMNIA DE IMPO-


SIO DE MOS

Resta, ainda, o rito de ordenao, ao qual demos o ltimo lugar na considera-


o da vocao. Contudo manifesto que os apstolos no se serviram de outra
cerimnia, quando admitiam algum ao ministrio, alm da imposio de mos.
Contudo julgo que este rito oriundo do costume dos hebreus que, pela imposio
de mos, era como se apresentassem a Deus aquilo que queriam que fosse abeno-
ado e consagrado. Assim Jac, estando para abenoar a Efraim e a Manasss, imps
as mos sobre as cabeas deles [Gn 48.14]. Isto seguiu nosso Senhor ao fazer sua
orao em favor das crianas [Mt 19.13-15]. Com o mesmo significado, segundo o
vejo, os judeus impunham as mos sobre seus sacrifcios, conforme o prescrito pela
lei [Lv 1.4; Nm 8.12, e muitas outras passagens nesses dois livros]. Da, pela impo-
sio de mos os apstolos significavam que estavam oferecendo a Deus aquele a
quem iniciavam no ministrio, se bem que a usaram tambm sobre aqueles a quem
conferiam as graas visveis do Esprito [At 19.6]. Seja como for, este foi o rito
solene sempre que chamavam algum para o ministrio eclesistico. Assim como
consagravam os pastores e os mestres, tambm os diconos.
Mas, embora nenhum preceito expresso subsista quanto imposio de mos,
uma vez que, no entanto, a vemos vigorar em uso perptuo pelos apstolos, essa sua
observncia to acurada deve valer-nos por preceito. E certamente til como sm-
bolo desta natureza, tanto para recomendar ao povo a dignidade do ministrio, quanto
para advertir aquele que ordenado, de que j no de seu direito, mas antes
dedicado em servido a Deus e Igreja. Isto posto, no ser um sinal sem sentido, se
for restaurado a sua origem genuna. Ora, se o Esprito de Deus nada institui na

28. Carta LXVII, 4.


CAPTULO III 77

Igreja em vo, haveremos de sentir, quando ela for provida por ele, que esta cerim-
nia no intil, desde que no se converta a abuso supersticioso.
Finalmente, isto h de ter-se em conta: que nem toda a multido impunha as
mos sobre seus ministros, mas somente os pastores, embora seja incerto se eram ou
no sempre muitos os que impunham as mos. Claramente se v que se procedeu
assim no caso dos diconos29 [At 6.6], de Paulo e Barnab [At 13.2, 3] e de alguns
outros poucos. Mas o prprio Paulo, em outro lugar [2Tm 1.6], rememora que ele,
no muitos outros, imps as mos sobre Timteo: Relembro-te, diz ele, que rea-
nimes a graa que em ti h pela imposio de minhas mos. Pois o que se diz na
outra Epstola acerca da imposio de mos do presbitrio [1Tm 4.14], no aceito
como se Paulo esteja falando do colgio de presbteros, mas antes com este termo
entendo a prpria ordenao, como se estivesse dizendo: Faz com que a graa que
recebeste por imposio de mos, ao constituir-te presbtero, no seja infrutfera.

29. Primeira edio: Haver-se feito, por certo, aquilo, evidente no caso dos diconos.

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