Hedonismo Competente Tese PDF
Hedonismo Competente Tese PDF
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Hedonismo Competente.
Antropologia de urbanos afetos
PPGAS - UFRJ
2006
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Hedonismo Competente.
Antropologia de urbanos afetos
Rio de Janeiro
2006
3
Ficha Catalográfica
Eugenio, Fernanda.
Hedonismo Competente. Antropologia de urbanos afetos.
Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS/MN, 2006
Hedonismo Competente.
Antropologia de urbanos afetos
_____________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Viveiros de Castro (orientador)
_____________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Velho (PPGAS/MN/UFRJ)
____________________________________________
Prof. Dr. Otávio Velho (PPGAS/MN/UFRJ)
____________________________________________
Profa. Dra. Maria Isabel Mendes de Almeida (PUC-Rio)
____________________________________________
Prof. Dr. Amir Geiger (UERJ)
5
! Sumário !
VOLUME I
Agradecimentos
8
Resumo
15
Abstract
16
PARTE I
Instantâneo Dionisíaco
22
• Abismar-se •
Miradas. Ao hedonismo competente
105
2. Links
241
VOLUME II
PARTE II
• Cultivar-se •
Sujeitos e Predicados. Do repertório romântico à individualização radical
361
1. Pulsão romântica e
individualismo……………………………….......................366
2. Cristianismo, ascetismo e mundanização do indivíduo dual…………………373
3. Sexo e verdade
………………………………...............................................377
4. Amores
ocidentais………………………………............................................383
5. Afetações diferenciadas. Homens e mulheres……………………………….......399
6. Declínio do prazer, ascensão do prazer racionalizado………………………….403
7. Culturas homossexuais e pragmatização do afeto……………………………….408
8. Individualização da sexualidade, interiorização do controle………………..416
• Perverter-se •
Sensibilidades de Vanguarda e Competência. Dos contradiscursos
ao enquadramento
422
ANEXOS
•
Referências Bibliográficas
544
9
! Agradecimentos !
Que, passados pouco mais de quatro anos, aqui esteja eu com uma
tese em mãos, eis um fenômeno da ordem da sobrevivência.
Acostumamo-nos com a idéia de que sobreviver quer dizer mal e
mal, ou a duras penas, arrastar uma vida pelos cabelos, quase na marra.
Vida minguante. Acostumamo-nos, pois, a entender sobrevivência como
subvivência. Não é disso que falo aqui. Ao contrário, o fenômeno que dou
conta de ter experimentado é sobrevivência na medida em que é
adensamento de vida. Acúmulo, sim. Mas não apenas. Acúmulo posto
seguidamente em ação, aprendizado, espiralamento. Vida crescente.
Supervivência, se quisermos.
E muitas pessoas tornaram-na possível. Ofereceram-me
generosamente múltiplos de vida, sob a forma de disponibilidade, presença,
andanças, fala e escuta. Compartilharam olhares e janelas para o mundo,
abriram-se para a troca. Agradeço todos os dias pelo entorno de queridos
com os quais conjugo sobre-vida - vida além da conta. Esta tese, em
muitos níveis, é uma celebração da amizade e uma crença na comunicação.
Eu a incorporei como aprendizado deste tamanho muito recentemente, no
engajamento simultâneo com livros e pessoas.
Não poderia tê-lo feito sem a escola que foi, para mim, o Museu
Nacional. Agradeço ao Professor Eduardo Viveiros de Castro, sobretudo, por
ter me acolhido como orientanda com este trabalho já em agravado estado
de “desorientação” - e por tudo o que veio no pacote: pela disposição e pela
generosidade; pelos bocados desse admirável brilhantismo que não se
deixa capturar em cinza; pelas mais estimulantes e fantásticas conversas.
Se as contingências1 fizeram breve nosso tempo como orientador e
orientanda, elas no entanto fizeram acontecer um encontro - tardio ou
curto que possa ter sido - intenso no tanto que me proporcionou, e
portanto alargado na métrica que importa. A inspiração, porém, certamente
1
Aqui é preciso cometer um breve escape e, por antecipação, mencionar algumas pessoas
cujo apoio imediato foi fundamental no enfrentamento de tais contingências. De pronto, a
transformação não teria acontecido sem o arguto aconselhamento dos gênios-da-lâmpada
Helena e Luís. Tampouco teria sido possível atravessar aquelas que foram sangrentas
semanas de trabalho sem a “bolha-do-bem” com que me envolveram minha família e todos
os amigos - João e seus emails transbordantes de carinho; Fred e suas prontas respostas
apesar da distância pelo doutorado-sanduíche; a ponderação amorosa de Tati e Octavio; os
“amuletos” de Carol; os abraços “fagocitantes” da Rê; a leitura-urgente de Bebel. Nada
10
notícia de ângulos dantes inexplorados a partir dos quais olhar “lá fora”, e
assim seguir perseguindo este lugar geométrico do eu de que fala Ítalo
Calvino. Mais do que com qualquer outra pessoa, aprendi com essa
“olhuda” o quanto variam as geometrias, no silêncio harmonioso e distraído
do mundo tomado como gradação de luz.
Angélica, com sua agenda de executiva, chegou mesmo só agora,
trazendo a reboque uma imensa e persistente tolerância para com a roda
viva mundana (pela qual não consigo conter a admiração), e um sensível
inquietar-se com o “contemporâneo” que já rendeu belas conversas.
Conjugação curiosa; torço para que fique por perto.
Joana e Camila, lindas e adoráveis, me apresentaram a “frase
mágica” e decalcaram em mim seus largos sorrisos. Jô serenamente já
sabia que as coisas aconteceriam, e soube transmitir, quietinha, as
melhores vibrações.
As conversas magnéticas com Lulis mostraram a nós duas como são
fortes os flexíveis. E agradeço também à Lulis-veterinária, pelos cuidados
dispensados aos meus gatinhos.
Fernanda Avellar, minha serelepe professora de acrobacia aérea que
“tinha certeza” (e estava mesmo certa!), tem também “parcela de culpa”
considerável no redespertar da dança. Um obrigada também aos colegas-
de-turma que torcem, ajudam e comemoram a cada peripécia incorporada,
Eduardo, Ipojucan e a sempre CarolCarol. E também ao Fernando, nosso
encantador professor substituto.
Muitas outras pessoas incríveis compõem a paisagem colorida tanto
da minha vida quanto desta tese. A “lista” abaixo não dá conta nem de
todas nem do tanto que representam. E como decerto esquece (memória
ingrata!) de alguém(ns) precioso(s), digo de antemão que os
eventualmente não mencionados são também muito queridos.
Vamos lá. Ainda pela via do Museu Nacional, Paulo Guérios (brilhante
e tão fofo; e Andréa, com quem forma o casal mais adorável), Luiza Leite
(compartilhamento mesmo à distância de viva poesia), Octavio Bonet
(sempre solícito) e Guilherme Sá (com um beijo na pimpolha Luiza). Ainda
pela via do CESAP, Kate Lyra, a mais doce e amável; e Fernanda Déborah,
forte e alegre de modo tão contagiante. Ainda pela via da PUC-Rio, Aline e
Irene, queridas na diferença. Ainda vizinhas do “Condado 33”, Ines e
14
! Resumo !
! Abstract !
The field of work that generated this thesis is diagramed around the
permeable and imprecise “tension-limits” of youth leisure circuit that we
could call, borrowing a “native” term, cena carioca (Rio de Janeiro’s scene).
A typically urban space-time, marked by the value of “cosmopolitan
unrooting”, the scene connects places, events and people that are not
normally in contact, happening contingently in the vicinities of electronic
sounds, synthetic "substances" (especially ecstasy), erotic-affective
experimentation with “both sexes” and fashion geared towards the blurring
of gender frontiers. This thesis intends, on one side, to map this scene as
an intensity zone, proposing to investigate territorialities instead of
identities, and, on the other side, to describe and make an analysis of the
functioning that is initiated by those who frequent the circuit, which I call
competent hedonism. My argument is that competent hedonism, as a
product of agencying, follows a contemporary “trend”, relevant and
observable beyond Rio de Janeiro’s scene itself. A tendency to recreate the
maps of “prescriptions” that, on one side, are privatized, and, on the other,
cease depending on specific contents, presenting themselves instead as a
machinism – itself oriented towards the production of simultaneity and
conciliation of “spheres of life”, visibly substituting a regime of alternations.
Operating as a disjunctive synthesis, competent hedonism thrives on the
reciprocal contamination between “spheres of life”, that through this
movement cease being characterized as self-contained domains, defined by
excludent oppositions (species), in order to differentiate themselves through
gradation, place and contingency.
18
Não há diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito.
Gilles Deleuze & Félix Guattari, Mil Platôs
19
Depois !
!
Notas sobre o processo de escrita
daí não decorre que eu ache também - possivelmente ela acha o que eu
perdi; eventualmente registra camadas de achados e muito mofo,
sucateamento que assinala a presença, ladra das certezas. Talvez a
narrativa de um desencontro preciso, indiscretamente vivo. Não sei se
pertence a alguma escola, se presta contas a quem devia ou a quem não
devia, se dialoga com outros ditos com o devido respeito ou com o respeito
indevido, se e o quê propõe.
Não, não é leviandade, desengajamento, descaso. Não poderia ser
mais comprometimento. Simplesmente, e disso é tudo que posso falar com
propriedade, porque me pertence “visceralmente” (palavra comprometida,
sei, mas é mesmo de comprometimento que se trata), a tese se fez mais do
que eu a ela, e o que se lerá aqui é mais da ordem de minha relação com
ela, a tese, com ele, o “objeto”, com elas, “as questões”; tudo isso mais do
que uma fala minha. Muitos patamares de relação, e patamares oscilantes:
às vezes afago, sussurro; às vezes tabefe, exaltação. Longa conversa, na
qual o “mim mesmo” foi muitos. Não sei se o que eu penso dela é o que ela
se pensa; não sei se o que gostaria de ter feito dela foi o que ela se fez. “É
por ser inaugural, no sentido jovem deste termo, que a escritura é perigosa
e angustiante. Não sabe aonde vai, nenhuma sabedoria a protege dessa
precipitação essencial para o sentido que ela constitui e que é em primeiro
lugar o seu futuro” (Derrida, 1971: 24).
Admito humildemente que a tese, enquanto sintoma, diz mais do que
eu sei - e este não é um problema: é mesmo o problema em pauta aqui.
Ela é infiel a mim, porque de princípio nunca pude ser fiel a ela - ou o
contrário, fomos ambas mais fiéis do que supunha, e à minha revelia. Sei,
contudo, que ela se cumpriu, no improviso inevitável que caracteriza as
aprendizagens. E não poderia ter feito isso de outro modo, devorando
ofegante o que havia ao meu redor, convertendo em bóias ocasionais o que
apareceu por seu caminho espiralado. Um assalto do si ao consigo, no qual
enquanto não me dispus a entregar tudo o que me pediam - sem saber
sequer se eu tinha - simplesmente nada aconteceu. E uma vez que assenti,
não há mais saídas, só entradas.
Não tenho dúvidas de que se trata de um ente vivo, e tampouco
tenho dúvidas de que se alimentou de minha “carne e sangue” ao longo de
pelo menos quatro anos, tendo se fartado com particular intensidade nos
21
últimos meses antes que isso que você tem em mãos pudesse ser dado por
concluído. Magia negra, eu disse: bochechas rosadas em sacrifício, ossos
roídos pelo mais reluzente e insano pensar. Ela não arrancou pedaços,
carregou o corpo inteiro, revoltoso - ou o inteiro do corpo. Talvez (ventura
que ainda está por se conferir) tenha deixado algum pedaço.
“A obra é a máscara mortuária da concepção”, disse Benjamin
(1995:31); isto que aqui está - chamem-na de tese ou resma suja - é
aquilo que não mais me pertence, mas, mais que isso, é o que foi preciso
expelir para seguir vivendo, em relação contingente com tudo aquilo -
aquilos de muitas ordens - de que eu dispunha a cada momento de sua
duração. A escrita de um volume desses se estende no tempo, abismal: não
há unidade possível, porque muitos eus-mesmos foram recrutados e
falaram nas muitas páginas, porque ela é sucessivo de velocidades
variáveis, tomadas inquietas, pausas, ausências e presenças.
O resultado é qualquer coisa profana, maculada pela mais incestuosa
das relações, na qual talvez (mas não seguramente) alguma fecundação
tenha acontecido. Ou ainda: não se trata há tempos de filiação, mas de
generalizada contaminação.
*
Uma observação geral sobre o uso das palavras e das categorias nesta
tese:
Elas não querem dizer sempre o mesmo a cada vez que aparecem, como
decorrência, quiçá, de um mal crônico de que sofre esta que as empregou -
aquele que Manoel de Barros (2004:19) disse certa vez como um “gostar de
atrelar palavras de rebanhos diferentes” ou como um “falar desemendado”
(2001:32). Esforcei-me para que as vizinhanças nas quais elas aparecem a
cada vez pudesse informar mal ou bem de que sentido ocasional se
revestem - e para que esta oscilação pudesse ser, ela mesma, produtiva.
*
22
PARTE I
23
! Instantâneo Dionisíaco !
2
O esforço de reflexão auto-antropológica de Clifford sublinha as implicações do fato de
que o discurso antropológico consiste “literalmente” em um texto. Como nos diz Viveiros de
Castro (2002b: 141), soma-se a esta problemática “o fato do discurso do nativo não ser,
geralmente, um texto, e o fato de ele ser freqüentemente tratado como se o fosse”.
25
3
A sigla para Gays, Lésbicas e Simpatizantes, versão brasileira e já marcada pelo acento
local no meio, na ponte, no e - acento sobre o qual se debruça notoriamente o trabalho de
DaMatta (1997). Como comenta Palomino (1999: 150), “se os anos 90 foram chamados
pela mídia internacional de ‘Gay 90s’, no Brasil uma simples sigla ajudou a derrubar (ou
afrouxar barreiras): GLS”. A jornalista nos dá conta da genealogia da expressão: teria sido
criada em 1994 pelo publicitário André Fischer para nomear o público do festival de cinema
experimental Mix Brasil, “então uma pequena ramificação do New York Lesbian and Gay
Experimental Film Festival”, mas já dotado de uma peculiaridade em relação a seu
“modelo”. Além de reunir, sob o conceito de “Mundo Mix” (que depois veio a nomear a loja
que funcionou durante o evento, que na seqüência se autonomizou no Mercado Mundo Mix,
uma grande feira itinerante de moda), não apenas gays e lésbicas, mas também “skinheads
gays, roqueiras punks, tatuadores, clubbers” - uma “programação mais hype”, enfim -, o
festival tinha, ainda, um público heteróclito e diversificado, que não se deixava dizer sob a
idéia de uma homogênea “comunidade gay”. “Sabíamos que, diferentemente dos festivais
gays americanos, tínhamos um público mais misto, muito menos radical”, disse Fischer em
entrevista a Palomino (ibidem). A sigla acabou sendo gerada na tentativa de nomear esta
diversidade. Fischer prossegue: “Colocamos a sigla no folheto de lançamento do 2o. Mix
Brasil, com sua explicação. O povo adorou e começou a usar imediatamente, até pela
relação com a sigla dos automóveis versão luxo. Decidimos não registrar a marca, como fiz
com Mix Brasil e Mundo Mix, justamente para que fosse usada por todos. Depois disso a
coisa virou um monstro e até no interior de Pernambuco tem bares gls. Hoje, prefiro usar a
sigla em letras minúsculas para gritar menos…” (ibidem).
26
4
A imagem estranha vem bem a calhar para remeter a pleitos igualitários cuja fala, por
assim dizer, partilha do “torto” recobrimento que esta “metáfora mista” pode oferecer. O
pedido de uma igualdade generalizada (ou de que todos possam adentrar em um mesmo e
asséptico frasco) passa ao largo de que o “todos” que pleiteia ingresso no frasco é “parte”
(já que as outras partes do “todos” já estariam lá dentro, como “normais”). Ademais, este
“todos” que é “parte” não deixaria de sê-lo caso o projeto se cumprisse tal como proposto,
uma vez que este não está para questionar os contornos que fazem das partes, partes.
27
5
O impasse do qual as “lutas de minorias” se mostram cativas pode ser sintetizado por
este trecho de Goldman (1999b: 72): “[Tais] lutas de minorias, paradoxalmente,
reivindicavam ao mesmo tempo suas especificidades enquanto minorias (homossexuais,
mulheres, minorias étnicas…) e recusavam ser tratados de forma discriminatória. Ou seja, e
nos termos de Foucault, tratava-se aí tanto de recusar a individualização a que os poderes
procuravam submeter essas minorias quanto de resistir a sua dissolução em algum tipo de
globalidade mal definida. Essas lutas enfrentavam dessa maneira uma dificuldade enraizada
em seu próprio caráter paradoxal: a que modelo recorrer para conduzir e organizar esses
combates? Existiriam, eventualmente, formas de auto-reconhecimento e de subjetivação
desvinculadas dos mecanismos de poder? A tendência a utilizar modelos científicos ou
pseudocientíficos (especialmente psicanalíticos) mostrou-se rapidamente uma arma
ambígua, na medida em que se voltava contra os próprios movimentos”.
6
Neste curto intervalo de tempo, que talvez não tenha sido maior do que dois ou três
meses, corria a “piada interna” de que, por conta de uma sorte de alastramento ou
contaminação, o “S” já não queria dizer “simpatizante”, mas sim “suspeito”.
28
7
Ou ainda, como comenta Viveiros de Castro (com. pessoal, 2006) em torção adicional,
“só dá certo se der errado”.
8
O clube, entretanto, já existia então há quase um ano. Foi aberto em 8 de maio de 2002
pela mulher de um então casal bastante característico da ‘cena carioca’, ambos tendo uma
trajetória de mais de dez anos de envolvimento com o lazer noturno da cidade, como
freqüentadores e/ou como donos/promoters de outros estabelecimentos “simpatizantes” ou
“friendly”. A mulher (que havia sido dona do Galeria e do Restô), diz-se, embora nunca
tivesse tido relações sexuais com outras mulheres, afirmaria abertamente que gosta de
beijá-las na noite, como parte da fruição da festa; o marido considerar-se-ia gay e teria tido
diversos relacionamentos com homens antes de se casar - ou mesmo depois, segundo
outros “personagens” que conheciam o então casal. Atualmente os dois estão separados e
convertidos em amigos. O ex-marido casou-se novamente, com um ator de cinema e
televisão. O clube passou a ser comandado apenas pela ex-mulher (antes, o marido fazia as
vezes de promoter, tendo saído da mesma função na Bunker para vir a ocupá-la no Dama)
e o ex-marido abriu uma nova casa, em Copacabana, a Fosfobox.
29
incursão se juntam dois amigos dele - um rapaz que, como ele, define-se
como gay, e uma moça, cuja orientação sexual, definitiva ou transitória,
desconhecia e continuo a desconhecer -, além de um casal curioso
(“heterossexual”) de amigos nossos. Temos todos entre 25 e 30 anos.
Apenas eu e o casal nunca estivemos lá.
Sexta-feira, passa da meia-noite, nos reunimos a um pequeno grupo
que faz fila para entrar na casa de dois andares que mais parece uma caixa
de concreto: cinzenta e sem letreiros indicativos do que se passa lá dentro.
Na porta, a recepcionista - que recebe, como de costume em casas
noturnas em geral, a nomenclatura de door - trabalha preenchendo com o
nome de cada um que entra uma cartela na qual será anotado o que for
consumido no bar. Sua pele muito branca é coberta de tatuagens, e a blusa
preta com generoso decote deixa ver que no peito ela carrega um grande
desenho de um coração apunhalado do qual, entretanto, jorram dados
coloridos e labaredas eletrizantes, ao invés de sangue. Os cabelos pretos
em corte geométrico-assimétrico, carregados de pomada modeladora,
emolduram um rosto fortemente maquiado, com destaque para os olhos.
Ela usa ainda pesados coturnos até os joelhos, que contrastam com a
leveza da saia e da blusa, e carrega em seu colo um gato quase imóvel.
Muitos piercings adornam seu rosto e as orelhas; munhequeiras com tachas
pontiagudas envolvem seus pulsos.
Na fila, o visual dos presentes seguia uma direção semelhante. O
menino à minha frente usava jeans e tênis Puma, mas na cintura carregava
uma inacreditável pochete de lantejoulas, e sobre ela deixava casualmente
cair uma “camiseta -outdoor” na qual se lia: “você pra mim é problema
seu”. A menina que o acompanhava tinha o cabelo desfiado a navalha
tingido de vermelho intenso e usava um vestido de malha cor de rosa-
chiclete com a estampa de um tigre rugindo. Embaixo, em letras não
alinhadas, o ferino dizer: “toma cuidado com a canela”. Na parte de trás
das duas panturrilhas, estrelas coloridas tatuadas em linha vertical
apontavam para as sandálias de borracha com saltos semelhantes a
marshmallows. Os outros dois amigos que os acompanhavam, sem camisa,
exibiam músculos bem trabalhados e usavam óculos escuros. Eu ainda não
sabia, mas estavam aí dois “indicadores” freqüentemente lidos pelos demais
presentes da seguinte maneira: o torso nu apontava para uma “quase
30
9
O kitsch, ou o sujo, tudo aquilo que é eleito como interessante justamente por ser “de
gosto duvidoso” e dar margem para “brincadeiras de duplo sentido”.
10
“Eletro em banda: O CDF (Cows don’t Fly) muda a noite eletrônica injetando
irreverência e ousadia com shows performáticos ao vivo”. Revista O Globo, 27 de fevereiro
de 2005.
11
Estilo de música eletrônica com vocais, que teria a preferência dos gays. Segundo um
de meus entrevistados neste começo de 2003: “quando você diz que um lugar toca house,
é como se fosse uma senha pra dizer que é um lugar gay” (veremos que este atrelamento
31
mal empurramos a grossa porta tipo industrial, revestida por uma chapa
laminada. A impressão de um ambiente gelado - o ar condicionado muito
forte para o número ainda reduzido de presentes - é reforçada pelo aspecto
metálico da decoração. Um bar ocupa o lado esquerdo, e nele trabalha
diligente uma barwoman, que prepara drinks um atrás do outro,
envergando uma calça de vinil preta e uma camiseta branca quase
transparente; os seios pequenos se confundem com os músculos bem
trabalhados, e demoro alguns segundos para perceber que se trata de uma
mulher. Os cabelos parecem compridos vistos de perfil, mas quando ela se
vira percebo que toda uma metade da cabeça está raspada. Alguns
presentes bebem e conversam apoiados no balcão do bar, outros se
esticam em poltronas e divãs de ferro, de aparência pouco confortável. Há
ainda uma cama, também de ferro, cujo colchão é forrado com pele de
vaca malhada - um móvel considerado tão hype que, sob encomenda, é
possível comprar um semelhante (igual não, porque, de modo condizente,
trata-se de “peça única”). O primeiro andar é um exemplar do que se
convencionou chamar de lounge, um espaço para a conversa ou para o
“descanso” - sob um som nada repousante, entretanto - dos corpos que
dançaram demais. O chão é de cimento e, como ainda não está coberto por
pés em demasia, tenho a oportunidade de notar que é decorado por placas
metalizadas em formato de espermatozóides. Imagens de pênis recortadas
em metal adornam as paredes, e lustres de cristal enfeitados com rosas
também metálicas pendem do teto, alguns deles com luz vermelha. Ao pé
da escada, uma imagem de São Jorge, iluminada de vermelho, assinala o
caminho para o segundo andar: a pista, ou um grande banheiro público -
abrindo-se espaço para a brincadeira de que ali estariam todos a tornar
pública a intimidade, a performatizar na presença de interlocutores aquele
que seria, segundo Goffman (1975), o “último dos bastidores”.12
compulsório entre um tipo de público e um tipo de som se diluiu ao longo dos anos da
pesquisa). Há, entretanto, muitas variantes de house: deep house, música boa para chill-
out (final de festa, os amigos fazem chill-out na casa de alguém); tech-house e hard house,
mais intensos e sem associação imediata com o universo gay. Vale dizer que nenhum clube
toca apenas um estilo musical; o mais comum, ao contrário, é cada uma das noites ser
dedicada a um estilo diferente, ou combinatórias de dois estilos. Assim, o público também é
bastante diverso: a “fauna” de cada noite dependeria em grande parte de que som está
sendo levado na casa. No clube em questão, as noites de sábado costumam ser dedicadas
ao house. Entretanto, nos after-hours (que a esta época começavam às 5 horas da manhã,
e hoje começam às 7 ou mesmo 8) usualmente toca-se electro.
12
Muito recentemente, também o primeiro andar foi convertido em pista de dança, e nele
32
foi instalada outra cabine de dj, para além da que se mantêm em funcionamento no
segundo andar, à qual foi dada um tom mais intimista, tendo sido entregue em muitas
noites ao comando de alguns dos próprios freqüentadores, que bancam os djs fazendo uso
do estoque de músicas de seus mp3players, os Ipods dos quais ainda falaremos. De modo
que, como em outras casas, podemos presenciar o acontecimento de duas festas em
simultâneo.
13
As pias foram retiradas em meados de 2004, a pedido dos freqüentadores. Eram,
segundo eles, pouquíssimo utilizadas para lavar as mãos, já que as pessoas usavam as
cubas para apoiar as bebidas enquanto dançavam, e também era bastante difícil mover-se
até elas em meio à massa de corpos dançantes. Um outro argumento seria o de que a
pista, já pequena, ficava ainda mais atravancada com a presença delas. Muitos, entretanto,
consideraram a retirada das pias uma descaracterização do clube.
14
O termo teria sido cunhado por uma conhecida personagem da noite clubber paulistana,
Johnny Luxo, nos idos tempos do clube Massivo. Palomino (op.cit.: 39) registra com
precisão: na noite de 15 de fevereiro de 1992. Eis a narrativa de um agravamento. Os
“beijos de três ou de quatro” já então eram rotina desde o clube Nation, “sempre ao ritmo
da música, sempre acompanhando a pulsação da dança”. “Até que uma noite, de repente,
na pista, juntam-se uns dez, entre homens e mulheres, beijando-se, em carícias. Dura algo
como três músicas - e ninguém até hoje sabe direito como começou. É tanta gente que,
visto lá de cima, do mezanino, não dá para entender que mão é de quem, que boca é de
quem. Johnny Luxo olha e comenta, diante do bolo de carne misturada: ‘nossa, parece uma
almôndega…’. O nome ficou e também o procedimento. (…) Em novembro de 1992, o
assunto vira até capa da ‘Ilustrada’. ‘Mais de três já é almôndega’, decreto. A ‘didática
reportagem explica que essas almôndegas ‘da primeira fase’ têm caráter estritamente
‘familiar’: o núcleo básico se compõe de amigos e conhecidos; ocasionalmente estranhos
entram nas extremidades, mas sempre com o consentimento (informal) do grupo. Em tese,
33
nestes contextos; daí ser este um lugar bom para pensar a aporia fundante
do eu, entre “corpo vivo” e “corpo vivido”, ou entre o “corpo que eu tenho”
e o “corpo que eu sou” (Cf. Ortega, 2003). Como argumenta Jackson
(op.cit.: 1, tradução minha), o “clubbing é um fenômeno profundamente
visceral e corporal”, no qual “o incremento sensual nos garante acesso às
modalidades suculentas e carnais de encontro social”. Segundo o autor,
configuram-se aí conhecimentos “sócio-sensuais” específicos, já que “a
intensidade sensual dos clubes gera um corpo alternativo” (op.cit.: 5). Os
termos “nativos” do autor podem encontrar conversão nas recentes
investidas dos teóricos do embodiment (Cf. Csordas, 1994; 2002), ou ainda
em Bourdieu (1970; 1986) e seu conceito de habitus. Um conjunto de
práticas distintivas é elaborado neste tipo de diversão: saberes, valores,
classificações e certezas que se expressam em uma postura corporal
específica, e cujo poder e eficácia devem-se justamente ao “lugar”
encarnado em que são alojados.
Mas este habitus que poderíamos chamar de “intensivo” não anula
nem substitui o habitus do corpo “sóbrio”, “sadio” e “racional” que atua nos
esforços de preservação e “extensão” da vida, nos cuidados com a saúde e
nas tentativas de prolongamento da juventude, no cultivo de uma carreira
profissional e nos demais engajamentos de “reprodução social” dos
“sujeitos”.15 Afinal, estes mesmos sujeitos cuja diversão acompanho agora
fazem outras coisas da vida quando não estão ali: trabalham, estudam,
cuidam de suas carreiras profissionais, administram relações familiares por
vezes conflitantes, preocupam-se com a alimentação e com as taxas de
colesterol, freqüentam exposições, cinemas e salas de psicanalistas,
discutem política na mesa do bar, constroem e desfazem relacionamentos
afetivos, e tematizam, ainda que tortuosamente, seus futuros. De modo
que podemos dizer que ambos os habitus (se é que podemos falar apenas
de dois) convivem e, como nos mostra Duarte (1999: 28), possivelmente
“sempre” conviveram - em um “movimento histórico de longa duração que
jaz no âmago da dinâmica da cultura ocidental moderna” -, sob a forma de
uma tensão fundante entre os “investimentos no longo prazo e na duração”
15
Em tempo: eventualmente teremos “aspas demais” neste trabalho, e se trata de uma
estratégia deliberada. Como diz Viveiros de Castro (com. pessoal, 2006), se em geral o uso
contido de aspas é recomendável, pelo que carregam de uma certa “covardia intelectual”, o
abuso delas, quem sabe, pode recobrir-se de um “valor analítico surpreendentemente
35
invertido”.
16
“Já é!”, inclusive, é expressão corrente na cena, usada para referir justamente a uma
idéia de “pronto” ou “feito” (done), ao momento no qual a orquestra de articulações e
combinações de programas se precipitam com toda a intensidade em uma sorte de
“arquitetura perfeita”. Os programas - festas, viagens para ir a uma rave etc - embora
sabidamente planejados, e declaradamente dependentes de um planejamento prévio,
quando chegam a acontecer adquirem toda uma aura de leveza e de espontaneidade,
autonomizam-se e desprendem-se dos esforços que possam ter custado. Uma vez
executados os planos com competência - para uma viagem, por exemplo, é preciso
combinar o grupo de pessoas (escolhidas a dedo, pois que compartilharão a viagem para a
36
festa e a viagem dentro da festa, ativada pelas substâncias); guardar dinheiro por meses
(às vezes submetendo-se a trabalhos temporários considerados menores, como em uma
loja de shopping); comprar as “substâncias ilícitas”; decidir a quantidade exata e a
variedade delas a comprar, prevendo o intervalo entre as doses e as combinações que se
deseja fazer; decidir onde transportá-las com segurança; comprar roupas e acessórios;
decidir trajetos e o rateio de gasolina; calcular o dinheiro para as refeições etc - estes como
37
que desaparecem em seus esforços, no momento mesmo em que se declara: “já é!”.
38
39
Escritura Acrobática !
!
Sobre antropologia, amizade e propostas de trabalho
Do rigor na Ciência
…Naquele Império, a Arte da Cartografia
alcançou tal Perfeição que o mapa de uma
única Província ocupava toda uma Cidade,
e o mapa do Império, toda uma Província.
Com o tempo, esses Mapas Desmedidos
não foram satisfatórios e os Colégios de
Cartógrafos levantaram um Mapa do
Império que tinha o tamanho do Império e
coincidia pontualmente com ele. Menos
Afeitas ao Estudo da Cartografia, as
Gerações Seguintes entenderam que esse
dilatado Mapa era Inútil e não sem
Impiedade o entregaram às Inclemências
do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do
Oeste perduram despedaçadas Ruínas do
Mapa, habitadas por Animais e por
Mendigos. Em todo o País não há outra
relíquia das Disciplinas Geográficas.
(Suárez Miranda: Viajes de Varones
Prudentes, livro quarto, cap. XLV, Lérida,
1658)
Jorge Luis Borges, “Museu”, O fazedor.
17
Afetos estes entendidos também sob a perspectiva a partir da qual Deleuze & Guattari
tematizam o afecto, na qual “o afecto não é um sentimento pessoal, tampouco uma
característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu”
(2002b: 21).
18
Valho-me aqui do contraponto entre decalque e mapa elaborado por Deleuze & Guattari
(2002a) na medida em que funciona para pensar tanto o procedimento deste fazer-tese
como aquele pelo qual dão-se as ocupações da cidade que fazem aparecer a cena carioca.
Nesta acepção, mapa é modo rizomático de proceder, por oposição ao fazer decalque,
arborescente. Há, contudo, um outro jeito de pensar o fazer-tese, ainda enquanto mapa,
com o auxílio de Bateson (2000 [1972]). Neste caso, o mapa da tese, na relação com o
território que busca mapear, há de operar-se como transferência de diferenças. “Quais são
as partes do território que são transferidas para o mapa?”, se pergunta Bateson
(op.cit.:457). “Sabemos que o mapa não é o território. (…) Se o território fosse uniforme,
nada seria transferido para o mapa, a não ser suas fronteiras, o limite no qual o território
deixa de ser uniforme contra uma matriz maior. O que realmente é transferido para o mapa
é a diferença, seja ela uma diferença de altitude, de vegetação, de estrutura demográfica,
de superfície, enfim, de qualquer tipo. São as diferenças que são produzidas no mapa. Mas
o que é diferença? Trata-se de um conceito muito peculiar e obscuro. Certamente não é
uma coisa ou um evento. (…) Se começamos a perguntar sobre a localização das
diferenças, estamos em maus lençóis. (…) Portanto, uma diferença é uma entidade
40
Tudo já há de ficar mais explícito, mas por ora é tempo de se dizer que a
vertigem com que a cena carioca estende-se devorante pela cidade,
vertigem de apagamento de marcadores19 é aproximável daquela a que este
trabalho também viu-se entregue. Ele que havia de tentar desenhar um
mapa sobre o mapa da cena, este que se alastrava e alastrava, quase a
recobrir uma cidade - ou ao menos a “aldeia” da zona sul, às vezes um
pouco mais (e também, ao mesmo tempo em que um pouco mais, um
pouco menos).
É ao campo específico da antropologia urbana que se endereça, pois,
esta contribuição. E por isso é daí mesmo gostaria de partir.
abstrata” (op.cit.: 457-458; tradução minha). Nesta definição de Bateson, emerge como
irrealizável a pretensão totalizadora de um mapa que “coincida pontualmente” com o
território: o mapa da cidade não é a cidade. Precisamente isto, contudo, é o que permite
que a cidade, pensada como informação/diferença, apareça no mapa. “Os efeitos são
produzidos pelas diferenças” (op.cit.: 458).
19
Esta que venho de tematizar no Instantâneo Dionisíaco, mas também aquela que tem
tornado cada vez mais possível que a cena se “materialize” eventualmente nos mais
improváveis lugares, mesmo em alguns “notoriamente heteros”, o que é mais notável
através da presença aberta de casais de meninas do que de meninos, e retornarei a esta
questão. Como uma espécie de invasão, da qual mesmo a mídia dá conta (vide os diversos
seriados norte-americanos, como Will and Grace, L Word e Queer Eye for a Straight Guy; e
também os casais de meninas nas recentes telenovelas brasileiras, além das incontáveis
matérias sobre a cena publicadas em revistas e jornais com uma freqüência por vezes
semanal). Isto que aparece em fenômeno, que explode em uma fala de senso-comum - a
que diz que vivemos hoje uma espécie de “moda” ou “glamourização da
homossexualidade”, marcadamente a feminina - é algo que já vem sendo tramado há
tempos. Como diz Caiafa (1985: 11), “a cidade atingida por esses efeitos, tudo se fez
imperceptivelmente”. Já em minha primeira aproximação ao universo da cena (Cf. Eugenio,
2003: 5) este operar por contaminação se revelava: na afirmação jocosa entre amigos, a de
que “o mundo é gay” (que parecia precisamente clamar pela explosão do “gay” como
sentido, por transbordamento; se todos são, ninguém é); ou ainda na “moda do
moderninho” que estaria “abrindo as portas do circuito a possíveis ‘caretas’ descolados”, ao
mesmo tempo em que estaria “viabilizando a apropriação ocasional de espaços os mais
insuspeitos, convertidos momentaneamente em parte do circuito pela presença ‘explanada’
41
21
Como sintetiza Goldman (op.cit.: 95), no enfrentamento deste impasse, aquele entre
unidade e fragmentação, duas abordagens podem ser discernidas: “Por um lado, uma
perspectiva ‘internalista’ que, fazendo abstração da inserção do grupo estudado em um
conjunto mais amplo, busca esgotar o conjunto de suas articulações interiores. Por outro
lado, uma tentativa de explicar o grupo visado como uma espécie de efeito de forças que o
ultrapassariam por todos os lados”. Enquanto à abordagem “internalista” - a que tenderam
os estudos urbanos britânicos - aglutinam-se a idéia de uma análise microscópica e a
sustentação da suposta autonomia do grupo estudado (recortado no tempo e no espaço), à
abordagem “externalista” - que caracterizaria, por sua vez, a vertente norte-americana -
corresponde a análise macroscópica e a tomada do grupo em questão (“ranço
durkheimiano”) como reflexo da sociedade abrangente. De modo que “a antropologia
parece ter sempre oscilado entre uma ambição totalizadora mais ampla do que a das
demais ciências sociais e um particularismo cuja minúcia dificilmente encontra paralelo nas
outras investigações sobre o fenômeno humano” (op.cit.: 96). Pode-se dizer ainda, como
observa Bech (1998: 216), que as sociologias urbanas desenvolvidas nos anos 70 e 80
(como por exemplo a de Castells, 1975) tenderam, por sua vez, a resolver o impasse
através do privilegiamento de estudos “de orientação macro, marxista ou weberiana”, que
“rejeitaram firmemente ou ignoraram totalmente” a cidade como espaço de vida: “no
máximo” tomaram-na como esfera - nas palavras de Castells citadas por Bech, “real, mas
relativamente desimportante”.
44
Como se vê, não seria exato (ou não seria tudo) dizer meramente
que os modernos contextos urbanos caracterizam-se por um
“multiculturalismo”, ou pela convivência em contigüidade de uma
pluralidade de “grupos” diferentes (cada qual, porém, dotado de nítidos,
seguros e estáveis contornos) pelos quais transitariam os “indivíduos” (eles
próprios também dotados de nítidos, seguros e estáveis contornos).
Ficaríamos assim, como bem esclarece o trecho citado, apenas em um nível
“tipicamente sociológico”. Ademais, o que viabiliza a consistência de uma tal
personagem, o “indivíduo” - a produzir “ilusão biográfica” (Cf. Bourdieu,
1986) a partir de um “sísifico” esforço de síntese coerente da variabilidade
do vivido - é menos o que podemos observar como fenômeno do que a
eficácia (entre os “analistas” e “interpretadores” não menos que entre os
“nativos”) de nossa “estrutura mítica” moderna - ou, tal como a nomeia
Dumont (1993), a “ideologia do individualismo”, que terei oportunidade de
revisar na Parte II (ver Cultivar-se).
Este “indivíduo” no qual coexistem “orientações e códigos
diferenciados” pode ser dito em outros termos: os da multiplicidade tal
como formulada por Deleuze & Guattari.23 Isto se nos dispusermos a tomá-
22
Um significativo exemplo que pode ser dado desde já, e que por sua “radicalidade” na
conciliação de supostos opostos é suficiente para ilustrar um procedimento que
seguidamente se verifica entre aqueles com quem trabalhei, é o de um rapaz
“extremamente cosmopolita”, que optou por não ter residência fixa e mora “pelo mundo”,
trabalhando em empregos temporários diversos e assim juntando dinheiro para seguir em
suas andanças. Volta com freqüência ao Brasil, onde é acolhido por amigos ávidos por suas
novidades e prontamente integrado não apenas na cena, mas também na vida que aqui
deixou (assim que chega, arranja em “um passe de mágica” emprego, casa, carro e
“namoricos”). Nunca teve um namoro fixo, e já abandonou relacionamentos nos quais
estava apaixonado por conta da primazia que concede ao “seguir viagem”. Ao mesmo
tempo, contudo, é adepto de uma espécie de seita mundial (digo assim porque não sei
mesmo exatamente do que se trata, por mais que ele tenha tentado me explicar) cuja
cartilha prescreve o não-uso de substâncias consideradas “drogas”, uma rotina regrada e a
escolha pela seita do par com que o sujeito deve casar-se, invariavelmente do sexo oposto.
O rapaz relaciona-se com homens e mulheres, usa “drogas” e não pretende se casar. Narro
sua história porque, de passagem, ele sintetizou certa vez de modo notável como processa
sua conciliação: “Eu sou as duas pessoas mesmo, ou então não sou nenhuma delas, ou
então sou várias outras também. É uma coisa, tipo: não conto para a pessoa da seita o que
eu faço na noite e não conto para a pessoa da noite o que eu faço na seita. Mas, ao mesmo
tempo, não é só isso. A pessoa da seita também vai pra noite, está e não está ali quando a
pessoa da noite está beijando um cara. Elas se viram, eu me viro. Pode parecer
estapafúrdio, mas funciona”.
23
Sob esta perspectiva, o que entendemos por “indivíduo” aparece como circunstância ou
processo e não como termo ou estrutura; como relação/“objeto real” (relation) e não como
relação/“objeto lógico” (rapport). Tomar aquilo que se nos aparece como “indivíduo” como
atualização contingente ou local de uma virtualidade (que segue influente no horizonte do
46
24
O manifesto anti-anti-relativista de Geertz (2001) pode nos dar a medida do impasse a
que tanto o relativismo quanto o seu questionamento nos transportam. Como bem sublinha
o autor, uma posição anti-anti-relativista não seria uma defesa do relativismo, “palavra
desgastada” ou “grito de guerra do passado” (daí sua opção por uma dupla negação, no
anti-anti), mas uma investida contra os anti-relativismos, uma tentativa de destruir o pavor
do relativismo, “e não a coisa em si, que penso meramente existir, como a Transilvânia”,
dando-o como infundado na medida em que os males a ele atribuídos (como o subjetivismo
e o niilismo) “na verdade não decorrem dele, e as recompensas prometidas a quem escapa
de suas garras, relacionadas sobretudo com um conhecimento pausteurizado, são ilusórias”
(:47). Tanto a perspectiva anti-relativista se apresentaria como “versão aerodinâmica de
um erro antigo” (ibidem) quanto tampouco funcionariam as investidas relativistas (sejam
elas naturalistas ou racionalistas). Não teria sido o relativismo (enquanto decorrência
inevitável de que não ficamos em casa e não nos contentamos com verdades caseiras: 67)
o que teria destruído “nossas certezas”, mas precisamente “essa atração pelo que não se
enquadra e não se conforma, pela realidade deslocada, que ligou-nos ao tema condutor da
história cultural dos ‘Tempos Modernos’ (op.cit.: 65; grifos meus). “Examinar dragões, não
domesticá-los ou abominá-los, nem afogá-los em barris de teoria, é tudo em que consiste a
antropologia. (…) Tranqüilizar é tarefa de outros: a nossa é inquietar”, diz-nos Geertz
(ibidem).
25
Como argumenta Appadurai (1996: 1), a “modernidade” seria a um só tempo fato e
teoria; o Iluminismo, enquanto sua matriz histórica, teria pretendido gerar, acima de
qualquer outra coisa, pessoas que, after the fact, desejaram tornar-se modernas.
48
no qual participam.26
Posso falar pelo meu trabalho:27 não se trata de um levante
caprichoso, mas de extrair as eventuais conseqüências da contingência
específica da minha pesquisa; de levar a sério a ocasião com a qual meu
campo me confrontou. E de fazê-lo, sublinho, na perseguição mesmo
daquela sorte de fina sensibilidade que confere à antropologia
simultaneamente todo o seu charme e um aspecto de irremediável “ciência
gauche”: como se repete (pelo menos) desde os Argonautas do Pacífico
Ocidental (1976) - ou da cristalização do trabalho de campo como
metodologia privilegiada da Antropologia -, não devemos cometer a
deselegância de levar as teorias prontas e limitarmo-nos a tentar encaixá-
las, ainda que forçosamente, em nossos “dados”. Assim, embora não de
imediato, não demorei muito para dar-me conta de que os pressupostos de
que dispunha como “cartas na manga” - tais como “grupo” e “identidade” -
não funcionavam em relação ao que observava na cena carioca.
Que eu não estava diante de um “grupo” é algo que se explicita
desde o Instantâneo Dionisíaco, com o qual iniciei este trabalho. Desde,
portanto, minhas primeiras aproximações com um “objeto” de estudo que
não se deixava sequer nomear, fugindo pois, ao mesmo tempo, também da
“identidade” - esta que, como nos diz Bourdieu (op.cit.: 70), tem no nome
seu elemento encompassador mais constante e durável; o nome como
aquilo que informa as fronteiras do “eu”, no mesmo movimento em que
assegura sua “constância através dos tempos e uma unidade através do
espaço social”. Pois se eu não dispunha de um “grupo” a pesquisar, de
acordo com a já citada cartilha da “etnologia urbana” sintetizada por
Perlongher, tampouco estaria autorizada a “inventá-lo”. De modo que eu
poderia mesmo dar os “maus lençóis” como certos senão tivesse, por assim
26
Como comenta Lévi-Strauss em entrevista a Viveiros de Castro (1998: 121), “se me
permite uma comparação musical, eu diria que a antropologia tal como a conheci, tal como
nossos mestres a praticaram, era tonal, e agora ela se tornou serial. Isto quer dizer que as
sociedades humanas não significam mais nada fora de suas relações recíprocas. Porque a
nossa se enfraqueceu, porque ela mostrou seus vícios, porque as outras começaram a
trilhar o mesmo caminho que a nossa - isso é como as notas do sistema dodecafônico, elas
não têm mais um fundamento absoluto, elas existem apenas em relação às outras. Enfim, é
assim que as coisas são, teremos uma outra antropologia, como a música serial é uma
outra música. Uma antropologia que será tão diferente da antropologia clássica como a
música serial é diferente da música tonal”.
27
Obviamente, muitos outros defrontaram-se e defrontam-se com questão semelhante, e
posso citar pelos menos dois belos trabalhos - o de Caiafa (1985) e o de Perlongher (1987)
-, dos quais o meu dista cerca de duas décadas, em que já então os autores consideraram
49
31
“O ‘macro’ não é um somatório, nem mesmo um produto simples, de inúmeros ‘micros’
justapostos; o ‘micro’, por sua vez, não é um ‘macro’ reduzido a dimensões que
imaginamos fáceis de controlar e esclarecer, o que permite falar em ‘reflexo’ ou
‘manifestação’. Na verdade, a passagem do ‘macro’ ao ‘micro’ corresponde a uma efetiva
mudança de nível, de modo que, como em física, as variáveis que operam em um plano não
são as mesmas que funcionam no outro. Mais que isso, o ‘micro’ é o plano dos processos de
objetivação que fazem aparecer e que sustentam os ‘objetos’ que encontramos no nível
macroscópico. (…) Trata-se na verdade de um ‘processo de molecularização’ consciente do
ato de que se algum tipo de totalidade existe só pode se localizar no plano de objetivação,
não no objetivado” (op.cit.: 115).
53
32
Um comentário de Fry (2000: 11) pode dar a medida de como começavam a condensar-
se estes que ora viriam a ser nomeados como “estudos culturais”, ora como “antropologias
nativas”: “Vi que a antropologia pós-moderna estava rumando para uma espécie de
solipsismo. A sua origem calcada no encontro entre uns e outros diferentes estaria dando
lugar a um novo ethos que privilegiaria encontros entre semelhantes; mulheres escrevendo
sobre mulheres; homossexuais sobre homossexuais; negros sobre negros; subalternos
sobre subalternos, e assim por diante. Pode ser que estivesse enganado, mas pressentia
que essa tendência sinalizava mais uma etapa na concretização e naturalização das
identidades sociais”.
33
Na mesma direção, comenta Fry (1987: 12-15): “Confesso que mantenho minha posição
com a maior dificuldade perante meus opositores, que preferem acreditar que gay é guei
57
Ou: “não há menos (moins) senão (plus) na idéia de não ser que na
de ser; na desordem que na ordem” (op.cit.: 278). De modo que há uma
dimensão que escapa à chave da ordem/desordem: a do funcionamento
irredutível, aquela a que se ascede ao “tomar os acontecimentos e as
práticas sociais a partir da força que eles encarnam em si, de sua própria,
específica e intransferível singularidade - que é, simultaneamente, uma
multiplicidade” (op.cit.: 278). A singularidade nomeia a especificidade de
um funcionamento, sua diferença que transborda do mero “pertencimento
grupal” ao mesmo tempo em que o viabiliza: “ligados porque heterogêneos,
e não apesar de o serem”, repetindo uma já citada passagem de Viveiros
de Castro. A multiplicidade, por sua vez, efetua-se no funcionamento em
bando, matilha, não se dando a apreender pelos “indivíduos isolados
nômades personalógicos, mas como agenciamento coletivo, em que o que
conta é o togetherness, o estar junto, o entre deux, na microscopia da
deriva” (op.cit.: 279).
“Sob essa perspectiva, pode-se abordar o problema representado pela
capacidade, exacerbada nos circuitos marginais, de o mesmo indivíduo
particular participar, alternativa ou erraticamente, de diversas redes, algumas
delas ‘normais’. São os funcionamentos desejantes do campo social, os fluxos,
as linhas de fuga que atravessam o socius, que arrastam os indivíduos,
escandem-nos, drapeiam-nos, envolvem-nos. Não são os indivíduos - e essa
afirmação é dura - os que decidem ou optam a partir de um ego
autoconsciente, os que constroem, por apelar a um clichê, suas identidades e
suas representações. Eles participam de funcionamentos desejantes, sociais,
que os desbordam; em todo caso, como diz Paul Veyne (1982: 197), esse
61
34
No entanto, se as vivências erótico-afetivas esquivam-se do nomear, a profusão de
nomes transfere-se para os estilos de música eletrônica, para a instabilidade microscópica,
a permanente e preciosista revisão das nomenclaturas, o discordar sistemático. Um
exemplo pode ser dado na própria seleção de músicas para compor o CD-Anexo
Sortimento: eu mesma não me sentia suficientemente “atualizada no debate” para fazer a
escolha, e pedi a contribuição de duas pessoas, no que fui generosamente atendida. Elas
convocaram a ajuda de mais um “especialista”, e juntos os três “discordaram” durante
algumas semanas, não apenas sobre o que era “o melhor” de cada estilo, mas também
sobre o quê pertencia a cada estilo. E isto quando as próprias categorias sobre as quais fiz
a consulta eram as mais “simples”: house (quando este poderia ser acid, deep, hard,
progressive, french, garage, nu, latin, minimal, tech…), techno (quando este envolve
variantes tais como hardcore, big beat, minimal, breakbeat, jungle, drum‘n‘bass…), electro
(ebm, nu, electroclash…), trance (ambient, goa, hard, progressive…) e “música para
chillout”. Uma espécie de “verdade sobre a música” (parafraseando a foucaultiana “verdade
62
sobre o sexo”) parece estar sendo, aí, permanentemente negociada. Bacal (2003)
acompanhou o mesmo movimento em listas de discussão na internet sobre música
63
35
Canevacci (1997: 48) já havia sugerido o potencial de uma aproximação entre as cenas
urbanas e o modo de operação do set cinematográfico, no qual bem se revela o nexo
ecológico (op.cit.: 105) que é montado na relação locação-local (ou nas constantes
atualizações do código-território). Para articular sua proposta, o autor propõe uma inusitada
combinação Benjamin - com seu procedimento alegórico posto a serviço de uma
arqueologia do choque na percepção urbana - e Bateson - com sua problematização do
trabalho antropológico que foca como ponto nevrálgico do método não a coleta, mas a
organização. Ambos a privilegiar o fragmento, uma escrita “visual”, a trabalhar
propositalmente no terreno do contraste, das torções tentativas, da soltura. “É a metrópole
que ‘metacomunica’, através da montagem. A montagem é o pensamento abstrato da
metrópole”, diz Canevacci (op.cit.: 109). Não concordo particularmente com alguns dos
65
termos recrutados pelo autor para dar conta de sua proposta: à montagem como
“representação” operada pelo analista para “interpretar” (op.cit.: 143-144) parece-me mais
interessante contrapor a imagem do mapa sobre o mapa, já que os “nativos” tampouco
deixam de operar montagem e, ademais, nem no patamar da vivência nem no da análise
(também vivência, como qualquer um que escreve uma tese o sabe) creio se tratar de
“representação”, mas, em ambos os casos, de acontecimento e vida. Ainda assim (como,
aliás, foi e será na relação com tantos outros autores aqui recrutados), se a atenção deixar
de ater-se tanto às palavras usadas para voltar-se ao modo de operação ou ao
funcionamento proposto, vemos que há uma interessante aproximação possível.
66
faz e se desfaz em ato, os indivíduos que nela tomam parte, por sua vez,
não acontecem somente enquanto “sujeitos” (neste ponto, tanto quanto os
que circulavam pelas bocas). Parafraseando Viveiros de Castro (2002b),
digamos que todo mundo é sujeito, mas ninguém é sujeito o tempo todo. E
isto não apenas porque é possível dizer que estes “sujeitos” engajam-se
simultaneamente em comprometimentos outros que não a freqüentação da
cena. O vez em quando em que são sujeitos não coincide nem sempre nem
obrigatoriamente com o vez em quando em que freqüentam a cena - ou
seja, não se trata de dizer que são (ou que não são) sujeitos quando
freqüentam a cena, mas antes de dizer que as duas variáveis variam em
ritmos e intervalos diferentes que podem (ou não) recobrir-se, mas que de
todo modo encontram circunstâncias de concertar-se. Os diversos
patamares de vez em quando que assinalam repetição ou regularidade
acontecem em intervalos irregulares (ou tudo vira intermezzo?) - que
ocupam para acontecer.36 Os urbanos afetos que emanam do código-
território aí “detonado” não dizem respeito a uma verdade inconteste que,
por sua vez, confere contornos a um compósito-personalidade. Antes
efetuam nos “indivíduos” uma potência de matilha.
36
Como argumentam Deleuze & Guattari (2002c) acerca do “modelo musical”, dois tipos
de “corte” e “freqüência” podem ser distinguidos: o estriado, definido por um padrão, que
conta a fim de ocupar, gerando um tipo de multiplicidade métrica ou dimensional; e o liso,
irregular e não-determinado, podendo efetuar-se “onde se quiser”, pois que ocupa sem
contar, gerando multiplicidades não-métricas e direcionais. As musicalidades eletrônicas,
bem como a cena que as abriga, aproximam-se do modelo liso da distribuição sem cortes
previsíveis, da variação contínua, do contínuo desenvolvimento da forma, da fusão da
melodia e da harmonia, do traçado de uma diagonal através da horizontal (linhas
melódicas) e da vertical (planos harmônicos).
70
“urbanismo como modo de vida”, como já o teria dito Louis Wirth (1979),
observamos uma multiplicidade virtualmente infinita de efeitos, de modo
que pensar em termos de causação enfaixa e endurece a apreensão de um
fazer-se que só se dá a apreender como aberto.
E isto é “lição” que já nos vêm desde Boas (1968) e sua simples
porém genial observação de que não há resposta obrigatória aos “mesmos”
estímulos e que estímulos diferentes podem gerar respostas “iguais”, na
medida em que entre estímulo e resposta interpõe-se um “contexto
situacional”. Ou: as “mesmas” causas podem conduzir a “soluções culturais”
as mais variadas e “soluções culturais” semelhantes podem advir de causas
diversas. Esta máxima da “pluralidade” cultural só precisa ser agravada,
por assim dizer. Acrescentaria apenas que as “mesmas” causas nunca são
de fato “mesmas”, uma vez que vêm a ser o que são em relação com
aqueles em quem é suposto que provoquem efeitos; já não são “mesmas”
neste engajamento que as diferencia, já não são mesmas se são
significadas diferentemente, de modo que só dispomos de causas
37
diferentes. Daí o terceiro ingrediente de meu enunciado, o “como”.38
37
Por conta disso, ainda que não exatamente com esta apresentação (o “rigor relativista”
de Boas estancava diante de “traços” e “contornos”, e seguia achando possível fixar
“mesmas causas”, inclusive era nelas que via a condição para a comparabilidade), Boas
insiste na adoção de um método histórico capaz de captar não uma história necessária (sua
crítica ao evolucionismo social), mas uma história contingente, através da perspectiva
atomista de um micro-difusionismo, justo baseada na forte assertiva do autor acerca da
impossibilidade de sustentar um ponto de vista mecanicista na análise dos fenômenos
humanos (uma afinidade improvável pode ser apontada aqui, se lembrarmo-nos da já
menciona proposta de Deleuze & Guattari: ao invés do mecanismo, o maquinismo). Tal
interessante perspectiva atomista (característica da sua primeira geração de alunos,
reunida em torno da Escola de História da Cultura, e que poderia ser sintetizada em uma
palavra de ordem tal como “investigar o tudo”), contudo, segundo a prescrição do próprio
Boas, deveria ser complementada pela perspectiva holista de uma “psicologia social” (que
seria realizada na Escola de Cultura e Personalidade, a dar o tom da antropologia
americana), esta que padeceria agudamente da intenção de apreender um “todo”
durkheimiano.
38
É interessante notar como é na conexão desses três elementos - quem, como, onde -
que se “diz” contingentemente o eu: em geral, nas legendas de fotos postadas nos fotologs
ou em outros tipos de escritos (convites para festas, flyers, emails etc), ficamos sabendo de
“quem” se trata ao mesmo tempo em que se nos é informado “onde” se estava, e a
“junção” destes dois elementos (o quem e o onde) é feita pelo uso do “@” (arroba), que
opera precisamente o “como”. A “fórmula” mimetiza os endereços de correio eletrônico,
sendo que o “provedor” é uma locação cambiante e, com ele, varia também a pessoa que
se diz: “fulano@lugar”. É este o formato, no qual o “@” desempenha a função de elo, de
operador de ligação, mas também declara como é feita essa ligação, declara uma
disposição sensível “tecnológica”, que teremos ocasião de explorar quando tratarmos da
idéia de uma “geração eletrônica” (Ver Abismar-se, item 1). Por exemplo, uma pessoa
chamada Renata pode aparecer como “renatinha@aniversáriodemummy”; “vitac@euphoria”
(seu apelido, no contexto de uma festa de trance); “caruda@damadeferro” (aludindo ao
carão, ou pose, que se enverga eventualmente nos clubes) etc. A especificidade do nome
também não precisa ser “literal”; há ocasiões em que Renata se dirá renata@damadeferro
71
40
A despeito do acúmulo de debates, contudo, há de se dizer que permanece vigorando
entre nós, mais ou menos implícita, uma diferença entre o discurso do “antropólogo” e o do
“nativo”, que permite seguidamente alocar o segundo como “objeto” de conhecimento do
primeiro, de modo que para além de uma igualdade “de fato” entre as duas falas,
assentada na idéia de cultura, a antropologia tende a fazer-se negando ao “nativo” sua
igualdade “de direito” com o “antropólogo” - isto é, perpetuando-o como objeto (Cf. Viveiros
de Castro, 2002b: 114-115). “O que faz do nativo um nativo é a pressuposição, por parte
do antropólogo, de que a relação do primeiro com sua cultura é natural, isto é, intrínseca e
espontânea, e, se possível, não reflexiva; melhor ainda se for inconsciente. O nativo
exprime sua cultura em seu discurso; o antropólogo também, mas, se ele pretende ser
outra coisa que um nativo, deve poder exprimir sua cultura culturalmente, isto é, reflexiva,
condicional e conscientemente. Sua cultura se acha contida, nas duas acepções da palavra,
na relação de sentido que seu discurso estabelece com o discurso do nativo. Já o discurso
do nativo, este está contido univocamente, encerrado em sua própria cultura. O
antropólogo usa necessariamente sua cultura; o nativo é suficientemente usado pela sua”
73
(op.cit.: 115).
74
41
Aqui vale, apoiando-nos na observação de Goldman (1999c: 115) de que há “‘casos
privilegiados’, ou seja, períodos e lugares que oferecem um meio mais adequado para o
desenvolvimento, ou ao menos para o esclarecimento, de determinadas tramas”, recrutar
também a observação de Roszak (1972) acerca das dificuldades que enfrentou ao propor-se
a pesquisar, no calor dos acontecimentos em curso, os movimentos contraculturais juvenis
norte-americanos. Que fossem pouco numerosos (comparados a um “contingente global”
de jovens) os adeptos da contracultura, daí não decorria que aquele fosse um movimento
periférico em termos dos efeitos que produzia e produziu - muito ao contrário, por sinal. O
mesmo, penso eu, se passa com o contingente de freqüentadores da cena e com o modo
de vida do hedonismo competente. Creio que vale estudá-los pelo que evocam e vivem, por
se fazerem lugar privilegiado para pensar transformações em curso, aquelas que atendem
pelo vago nome de ar dos tempos ou espírito de época. É tarefa ingrata, decerto, posto que
ajustando o foco para perto tudo o que vemos são pessoas diversas, e diversamente
diferindo entre si. E não temos como forjar contornos, por “dever de ofício” e por
impossibilidade mesmo: não temos como dá-los por existentes lá onde não os há, ou
inventar falsas unidades. Daí que venha a calhar o desabafo que Roszak oferece logo na
abertura de seu livro A contracultura (op.cit.: 7); ficamos com ele para dar a medida da
compulsória incompletude da tarefa em pauta aqui, mas também para apontar sua
validade, seu aspecto de “caso privilegiado”: ““Como tema de estudo, o assunto deste livro
- a contracultura - oferece todos os riscos que um senso mínimo de cautela intelectual faria
uma pessoa evitar a todo transe. Alguns de meus colegas estiveram a ponto de me
convencer que coisas como ‘O Movimento Romântico’ ou ‘A Renascença’ jamais existiram -
pelo menos se o observador se dispõe a esquadrinhar os fenômenos microscópios da
história. A esse nível, ele tende apenas a ver muitas pessoas diferentes fazendo e pensando
muito diferentes. Quão mais vulneráveis se tornam as categorizações amplas quando se
trata de reunir e comentar elementos do tempestuoso cenário contemporâneo! Entretanto,
aquela tênue concepção a que se denomina ‘o espírito de época’ continua a fustigar a
mente e a exigir identificação, porquanto parece ser esta a única maneira pela qual se pode
dar um sentido pelo menos provisório ao mundo que se vive. Seria muito conveniente, é
claro, que esses Zeitgeists perversamente espectrais fossem movimentos que realizassem
manifestações com faixas e cartazes, possuíssem uma sede, uma junta executiva e
publicassem manifestos oficiais. Entretanto, é evidente que isso não acontece. Nesse caso,
o observador vê-se forçado a examiná-los de uma forma um tanto desajeitada, permitindo
que pela peneira das generalizações passe grande quantidade de exceções, mas tendo
sempre a esperança de que da ganga sobre algo de sólido e valioso”.
76
42
“Cultural, o livro é forçosamente um decalque: decalque de antemão, decalque dele
mesmo, decalque do livro precedente do mesmo autor, decalque de outros livros sejam
quais forem as diferenças, decalque interminável de conceitos e de palavras bem situados,
reprodução do mundo presente, passado ou por vir” (Deleuze & Guattari, 2002a: 36).
77
43
Acaba encontrando definição, porém, justamente na tentativa sistemática de cultivar a
indefinição como forma de apresentação de si - ponto ao qual retornarei.
80
44
Sem, no entanto, configurar-se como uma capitulação diante do “perigo” de “comprar o
discurso do nativo”, motivo da conhecida “bronca” aplicada por Lévi-Strauss (1974: 25) a
Mauss, que teria incorrido, em seu Ensaio sobre a Dádiva, em “um desses casos (que não
são tão raros) em que o etnólogo deixa mistificar-se pelo indígena” e não teria se dado
conta, no ponto alto de sua análise, de ter “renunciado aos seus princípios em favor de uma
teoria neozelandesa, que tem imenso valor como documento etnográfico, mas não é mais
do que uma teoria”. Sem dúvida, Lévi-Strauss está atento ao fato de que qualquer teoria
“indígena ou ocidental, não é mais do que uma teoria” (op.cit.: 26), mas condena Mauss
por ter se inclinado diante de uma solução “local” e “consciente”, ao invés de tentar,
através de uma “crítica objetiva”, alcançar a “realidade subjacente”, decantado-a de
“estruturas mentais inconscientes”. Nem é preciso dizer o quanto este projeto universalista
está distante da antropologia praticada hoje, mas não me arriscaria a afirmar que em favor
de soluções melhores ou menos sujeitas a “provar do próprio veneno” (Cf., por exemplo, O.
Velho, 1997 e Goldman, 1999a e 1999c). O alerta de Lévi-Strauss encontra um nível extra
de complexidade nas antropologias “nativas” contemporâneas, que certamente
discordariam de sua prescrição de que “toda sociedade diferente da nossa é objeto, todo
grupo de nossa própria sociedade, desde que não seja o de que saímos, é objeto, todo
costume desse mesmo grupo, ao qual não aderimos, é objeto”. (op.cit.: 18) Ou, em outra e
pioneira direção, Gilberto Velho (1978) já refletira sobre as dificuldades e armadilhas, mas
não impossibilidades, de observar o familiar. O debate pode ser ainda mais atiçado a partir
das investidas de Clifford (1998), que refletiu sobre a viabilidade, até certo ponto um tanto
ideal e “politicamente correta”, de assumir a existência de múltiplas vozes nos trabalhos
etnográficos, alçando-as ao patamar de múltiplas autorias.
45
O plano das causações é também o das gramáticas das causações; se me pronuncio
sobre as causações alheias, só posso fazê-lo com a minha gramática, que só por acidente
coincidiria com a deste outro que analiso. Isto, é claro, não me impede de refletir sobre as
condições de possibilidade de um determinado fenômeno, que, aliás, é ao que me proponho
81
tanto nesta Parte I (ver Abismar-se, item 1) quanto, longamente e de outro modo, na Parte
II (ver Cultivar-se e Perverter-se). Mas não me sinto autorizada a decretar como ou por que
certas condições de possibilidade se organizaram em causas na biografia de um sujeito
específico, menos ainda na conformação de um grupo. As conseqüências, por sua vez,
permitiriam, segundo Viveiros de Castro (ibidem), um confrontação mais próxima de um
patamar comum entre dois pensamentos em jogo, o meu como pesquisadora e o dos
82
3. Carne e Sangue
Pois bem, então aqui temos uma proposta de trabalho. Cumpre dar a
saber um punhado de informações formais sem as quais inquietamo-nos
diante de um material, mas são justamente essas, que parecem as mais
simples, as mais difíceis de sintetizar aqui, e suponho que o percurso que
cumpri até agora torna auto-evidente por quê. Procedo, contudo, à
tentativa desta formalização, como concessão talvez, antes de apresentá-
los mais sob a forma de carne e sangue, a única de que disponho.
84
46
“Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a
’parecer’, nem a ’ser’, nem a ’equivaler’, nem a ’produzir’” (op.cit.: 19).
86
47
“Chama-se longitude de um corpo os conjuntos de partículas que lhe pertencem sob
essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles próprios partes uns dos outros segundo a
composição da relação que define o agenciamento individuado desse corpo”, dizem Deleuze
& Guattari (2002b: 42) ao propor que pensemos os múltiplos engajamentos no mundo em
termos de um “maquinismo universal”, “imensa máquina abstrata com agenciamentos
infinitos” (ibidem).
87
Uma pista proposta por O. Velho (1998) pode nos ser útil aqui, a esta
altura, para pensar o que fazer com esta “terceira pessoa” conservada, ou
o que fazer enquanto (também) terceira pessoa - já que não se trataria de
declará-la mais (ou menos) capacitada como enunciadora do que se passa
(dito e/ou feito) no campo. É a pista da tradução forte como atuação
“eqüidistante” tanto do “objetivismo forte” - aquele que é suposto
caracterizar o projeto “científico” de conhecimento, no qual “conhecer é
dessubjetivar” ou “retirar subjetividade do mundo” (Viveiros de Castro,
2002a: 486-487) - quanto do “subjetivismo forte” - aquele que é suposto
caracterizar o procedimento “nativo”, e do qual, precisamente, caberia ao
“cientista” cuidar de não “macular-se”.
Conservar atuante a “terceira pessoa”; dar-lhe pois uma também
“terceira” faixa de freqüência na qual acontecer: a espécie de “caminho do
meio” da tradução forte, esta que trabalha a partir de um “lugar mestiço”
(Cf. Serres, 1993) deliberadamente sujo, que concede em macular-se (em
“deixar-se afetar”, como nos diz O. Velho), em relacionar-se com o outro
por “empatia” (novamente nas palavras de O.Velho), para daí extrair algum
dito também terceiro (ou quarto?), sem objeto nem sujeito. Como o dizem
Deleuze & Guattari:
“Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente
formadas, de datas e velocidades muito diferentes. (…) Considerado como
agenciamento, ele está somente em conexão com outros agenciamentos, em
relação com outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que um
livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender
num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele
faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e
metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um
livro existe apenas pelo fora e no fora”. (2002a: 11-12)
E isto como “urgência” que se precipita, este agir através daquilo que
O.Velho denomina “desejo de semelhança” - que não é um tornar-se nativo
(quiçá seja um devir-nativo) ou uma identificação, mas o fazer de uma
proximidade. Ou, a diria Gell (1998), contigüidade. Urgência? Baudrillard a
apresenta:
88
ser cega para pesquisar cegos, então por que isso agora?
Por outro lado, acusada também fui, seguidamente, por parte dos
que optam mesmo por se assumir como “antropólogos antropólogos” -
aqueles que não estão dispostos a conceder que as conseqüências do
subjetivismo inevitável da empreitada antropológica afeta a eles também.
Afeta diferenciadamente, diriam eles. Pois é claro que afeta
diferenciadamente, e é este mesmo meu ponto para questionar a validade
da partição entre “antropólogos antropólogos” e “antropólogos nativos”: as
experiências pessoais que teremos como antropólogos em campo são
diferenciadas, contingentes, idiossincráticas. São singulares; de modo que
não temos como reduzi-las a esse binômio. No caso do acusado (por parte
dos antropólogos antropólogos) de praticar “antropologia nativa”, o que se
passaria é que a posição ocupada em campo teria englobado a posição
“distanciada” de seu papel como antropólogo: o dito cujo teria se envolvido
demais, e agora seria incapaz de proferir outra coisa senão a “antropologia
nativa”; não conseguiria mais proferir “antropologia antropológica”. Sim,
contra este esquematismo, de pronto é possível dizer que as duas
antropologias são nativas, ou então as duas natividades são antropológicas
(Cf. Viveiros de Castro, 2002b). A antropologia (“antropológica” ou “nativa”,
ou as tantas mais) será singular sempre, será sempre uma antropologia. O
suposto “antropólogo nativo” já não está fazendo a mesma coisa que o
“nativo que não é também antropólogo” quando produz uma dita
“antropologia nativa”, pois sabemos da natureza diversa do discurso do
antropólogo (mesmo o mais “comprometido”) e do discurso nativo. Como
diz Viveiros de Castro (op.cit.: 114), “o antropólogo sempre diz, e portanto
faz, outra coisa que o nativo, mesmo que pretenda não fazer mais que
redizer ‘textualmente’ o discurso deste, ou que tente dialogar - noção
duvidosa - com ele. Tal diferença é o efeito do conhecimento do discurso do
antropólogo, a relação entre o sentido de seu discurso e o sentido do
discurso do nativo”. Portanto, a “antropologia nativa” do “nativo
antropólogo” não é a mesma “antropologia nativa” do “nativo não-
antropólogo” - e não o seria nunca, mesmo que ele o desejasse, e mesmo
que ele seja também capaz de operar na voltagem da “antropologia nativa”
do “nativo não-antropólogo”.
Em seguida, há de se matizar a idéia de um ser uno que se desdobra
92
discorrendo sobre isso. É claro que implicações há, mas não são unívocas e
nem compulsórias. Estou, contudo, chamando a atenção para o fato de as
implicações são mesmo nosso material de trabalho, e portanto ser “nativo”
tem potencialmente tantas implicações quanto não o ser. De modo que se
fosse para continuar brincando nestes termos, deveríamos no mínimo estar
preparados para conceder que não há porque supor que o perigo de
“ser/virar nativo” seja maior (ou menor) do que o não o “ser/virar”, no que
tange às implicações deste vira-ou-não-vira para o trabalho resultante. As
duas posições (e isso para continuar falando em apenas duas) colocam
questões sérias ao pesquisador, desafios aos quais sempre é possível
responder, mas também sempre é possível capitular - ninguém está de
partida mais propenso ao sucesso ou ao fracasso nesta empreitada.
Novamente, e que fique claro, não estou dizendo que não faz a menor
diferença ser “nativo” ou não ser; precisamente, faz toda a diferença.
Algumas situações em campo só foram acessíveis porque o antropólogo era
“nativo”, ou só o foram porque ele não era? Ótimo, bem-vindos ao óbvio
que nada tem de óbvio: disto não decorre que nenhum dos dois teve uma
posição privilegiada; antes decorre a ululância de que cada qual teve uma
experiência singular. Se quisermos insistir na miséria competitiva, sim,
temos todo o “direito”, dentro do próprio campo da disciplina, de “avaliar”
trabalhos “melhores” ou “piores”, mas devemos atentar para que o façamos
com base no que se produziu, com base no efeito. Não cometamos o
equívoco sumário de fixar efeitos compulsórios a esta ou àquela “causa” -
como se as causas causassem sempre o mesmo (coisa que sabemos que
não fazem).
Um último ponto ainda pode ser motivo de confusão, e por isso vale
a pena tematizá-lo. Assumir a posição de que “o freguês tem sempre razão”
(Cf. Viveiros de Castro, 2006b) - a posição da antropologia simétrica - tem
implicações diferentes quando se é (também) freguês ou quando não se é.
Dadas as ainda vigentes regras do jogo, fica menos custoso fazê-lo ao
antropólogo que não é freguês: eu mesma o fiz em meu trabalho com os
cegos, e fui poupada de mal-entendidos porque definitivamente ninguém
poderia pensar que eu fosse “nativa”. Já quando se é freguês e
antropólogo, a coisa muda de figura. Deixar de conceder prerrogativas à
antropologia-ciência para assumi-la como fala potencialmente tão válida
94
Se o que recolhi e retive como “dados” foi muito, demais para que eu
possa pretender dar conta, é ainda preciso assumir que foi ao mesmo
tempo ínfima parcela de uma fala ininterrupta e múltipla, que se espraia, se
distribui, se repete - redunda simultaneamente em muitas frentes, em
muitos canais, sob muitas roupagens. Uma fala que é o seu próprio ruído.
96
48
Sampler é o aparelho usado pelos djs para produzir música a partir de outras músicas,
isto é, remixagens. O procedimento de samplear seria, segundo os autores, aquilo que
sempre fizemos. Eles sugerem apenas que o assumamos deliberadamente, prescindindo
até mesmo das aspas. “Pirateamento” declarado, o “modo de fazer” do sampleador seria
“uma invasão e uma batida depois da intertextualidade, do pastiche, da menipéia e do
bricolage”. Uma passagem é suficiente para dar conta da diferença proposta entre o xerox e
o sample: “Não é plágio. O plágio reproduz o mesmo sem invenção. A escrita sampler
inventa o mesmo em novo contexto. Não é citação. A citação hierarquiza conhecimentos e
cria uma relação de referencialidade. A escrita sampler não hierarquiza pois não cita, mas
sim incorpora, reinventa. (…) A escrita sampler pega o bricoleur pela mão e o apresenta ao
engenheiro. Nascem projetos fragmentados, matérias-primas sem origem definida,
inventários inventivos, coleções de novidades. A escrita sampler é uma bricolagem
engenhosa. Aglutinação pela dispersão”.
98
49
Assim como os sujeitos tematizados aqui o são em instantâneos coagulares, ou nas
reterritorializações a que eventualmente acedem por estiramento de desterritorialização.
50
Cortázar inspira também a maneira de apresentação dos fragmentos etnográfico-
analiticos que ofereço no Abismar-se (ver 2.Links), que podem ser lidos em qualquer ordem
e remetem-se uns aos outros. Ademais, sirvo-me de trechos d’O jogo da amarelinha para
100
dar o tom do que será discutido em cada um dos “links” - e, para isto, escolha tão arbitrária
quanto qualquer outra, não tenho justificativa senão a de que, surpreendente que seja, eles
funcionam muito bem. Funcionam para dizer aquilo que, talvez porque minha habilidade
com o bailado das letras não seja tanta, não conseguia eu mesma alcançar, menos ainda
com termos como os dele - agudos, precisos e belos.
51
“À sua maneira, este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros. O leitor fica
convidado a escolher uma das seguintes possibilidades: O primeiro livro pode ser lido na
forma corrente e termina no capítulo 56, ao término do qual aparecem três vistosas
estrelinhas que equivalem à palavra ‘Fim’. Assim, o leitor prescindirá sem remorsos do que
virá depois. O segundo livro pode ser lido começando pelo capítulo 73 e continua, depois,
de acordo com a ordem indicada no final de cada capítulo” (1985 [1963]: 11).
101
Como vem de dizer este trecho, ou como virá a dizer a tese no des-
fecho Antes (o fecho que não fecha), ao coágulo segue-se (quando segue-
se alguma coisa) a análise, uma outra maneira de tomar posse da própria
idéia que se teve: “a análise, a diferença entre o que verdadeiramente
forma parte desse instante fora do tempo e o que as associações lhe
acrescentam para atraí-lo, para torná-lo mais teu, colocá-lo mais deste
lado” (op.cit.: 10). Enquanto “repentino bloco vertiginoso”, o coágulo
mesmo está perdido, habita o inefável, é “viva constelação aniquilada no
próprio ato de mostrar-se” (ibidem). É por isso que Juan nos dirá que, para
apoderar-se do coágulo, embora pensar se mostrasse inútil, “pensar
caçadoramente valia ao menos como reingresso neste lado” (op.cit.: 11).
A proposta de trabalho que ofereço, portanto, pode não ser “de todo”
realizável - o que, por fim, a constitui. É mesmo parte do cumprimento da
própria proposta que ela não se cumpra de todo, ou se cumpra localmente
e em instantâneos, do mesmo modo como se cumprem as
reterritorializações na cena estudada. Assim como o coágulo não se deixa
dizer de todo, e no dizê-lo em partes já é de outra natureza o dito, nas
experiências mesmas que observei e vivi em campo há persistentemente
algo (ou uma multiplicidade de algos) que escapa - talvez a poesia, se
retornarmos aqui ao que já mencionamos acerca da empreitada de
tradução. Como diz Caiafa (op.cit: 23), há sempre “algo que escapa” - não
apenas ao pesquisador, mas também aos pesquisados, “em que toda
experiência é um segredo, não porque esconda alguma coisa, mas porque
102
! ABISMAR-SE !
105
Miradas !
!
Ou, ao hedonismo competente
52
Como a mídia norte-americana costuma referir-se a esta “fatia de mercado” que se
mede com dificuldade pela faixa etária, alargada quase ao ponto da indiscriminação, que se
estende dos “pouco menos de vinte” aos “muito mais de trinta” (Cf. Meyrowitz & Leonard,
1993). Não é tão ocasional encontrar pessoas na cena com mais de quarenta anos, ou com
menos de dezoito. Jackson (2004) nos dá conta da presença de pessoas de até - pasmem -
106
80 anos na cena londrina. Entretanto, pode-se dizer que a idade predominante entre
aqueles com quem convivi trafega entre os vinte e os trinta e cinco anos.
53
Ademais, também daí a opção por respeitar a ênfase na ênfase, e mimetizar o
procedimento: como diz Viveiros de Castro (com. pessoal, 2006), “siga as ênfases ou você
nunca vai chegar aos subentendidos - a regra cardinal do método”. Ou, ainda em suas
palavras (idem): “a opção preferencial pelo nativo, tal é o princípio que distingue uma
verdadeira etnografia de uma antropologia ‘Carolina’, aquela que vê da janela o nativo
passar e só o conceito não vêm” (Cf. também Viveiros de Castro, 2006b). O que para os
efeitos de ocasião (i.e. neste trabalho), quer dizer tão somente que não me coloco em
posição de julgar se a ênfase na ênfase, ou a tendência “nativa” a declarar que não há
rótulos que lhe cabem, é ou não “razoável” ou, mais sucintamente, se ela é ou não é: se
configura ou não a identidade alheia, à revelia dos alheios em pauta, que declaram poder
viver sem ela ou, mais que isso, declaram acontecer sobremaneira na diferença e não na
identidade (“no idiossincrático e no efêmero”, como disse). É claro que se pode sempre
constatar que o movimento de desterritorialização de uma “identidade” estável que o
“idiossincrático e efêmero” põem em marcha se reterritorializa - no caso, se reterritorializa
na própria desterritorialização; eis o nômade. De modo algum, contudo, sinto-me
encorajada à violência de dizer o quê são ou não são a cena e seus freqüentadores para
além disso - como se eles pudessem ser alguma coisa que “não saibam” ou “não tenham
consciência” ou, ainda, que pudesse ser declarada de fora, formulada para além da
formulação. O que não é o mesmo que dizer singelamente (e presa de um relativismo
grosseiro) que é “nativo” quem declara sê-lo e ponto, como na base de um vale tudo, como
se não houvesse quaisquer critérios (quando os há, pelo contrário, em profusão; e feitos
critérios pela própria cena enquanto agenciamento, diga-se). Como diz Strathern (1991:
101), “relações sociais são um fenômeno que um outsider não tem como descrever senão
participando nas formulações indígenas” (tradução minha).
107
54
Os termos montação e carão exprimem todo um trabalho ao qual o corpo é submetido.
O primeiro é tomado de empréstimo ao universo dos transformistas e dos travestis (Cf.
Silva, 1993), um empréstimo já feito pelos clubbers dos anos 90 retratados por Palomino
em seu Babado Forte (1999), sublinhando a proximidade dos dois universos (homossexual
e “moderno”) que, segundo a autora, estiveram entrelaçados desde a origem na cultura
club brasileira. O segundo, carão, refere-se à postura facial e corporal recomendadas na
cena: corpos empertigados e olhares tão incisivos quanto evasivos; rostos superlativos, se
possível sublinhados ainda mais por uma maquiagem pesada, que destaca os olhos, muitas
vezes usada também pelos rapazes. O carão é algo como uma “pose”, mas permeado por
lúdica ironia. Para designar o mesmo conjunto de atitudes, muitos referem-se a si mesmos
a e aos demais como posers, e riem juntos ao evocar o que chamam de poser pride
(orgulho poser) - ao mesmo tempo elogio do simulacro e questionamento jocoso dos outros
tantos “orgulhos” que fazem parte do repertório militante duramente criticado aí. Outros
termos relacionados são glam (referência curta para glamour) e hype (para designar o que
“está na moda”).
55
Palomino (idem) nos oferece uma apaixonada narrativa da versão brasileira deste
universo - cuja origem o mito situa em 1990, em São Paulo. O relato do “mundinho” feito
por Palomino desenha os clubes como lugares que desde o seu “nascimento”abrigam por
excelência a “cultura do ‘dowtchalike’ (faça o que quiser)”, proporcionando um espaço para
“transitar entre diferentes sexualidades e experimentar novos momentos (op.cit.: 37).
Assef (2003) nos oferece uma longa duração um pouco maior, remontando à década de 50
as “raízes” do disc-jóquei no Brasil, enquanto Albuquerque & Leão (2004), fazendo uma
retrospectiva pela comemoração dos 18 anos do suplemento Rio Fanzine (do Jornal O
Globo), acompanham o percurso da “cultura alternativa” brasileira através do surgimento
de bandas e personagens-chave que vieram a habitar a cena. Jackson, com seu Inside
Clubbing. Sensual experiments in the art of being human (2004), nos oferece uma
etnografia não menos apaixonada da cena eletrônica londrina, dita um dos pólos “originais”
111
56
Escrevendo em fins dos anos 70 e princípio dos 80, Ariès diagnostica uma espécie de
tendência: “os modelos da sociedade global se aproximam das representações que os
homossexuais fazem de si mesmos” (op.cit.: 78). Trata-se do mesmo movimento para o
qual Pollak (1987) chama a atenção, uma tendência à homossexualização das condutas.
Como condição de possibilidade para um tal fenômeno, teria sido fundamental, segundo
Ariès, a adoção simultânea, pela “juventude” e pela homossexualidade condensada na
figura do “gay”, de um mesmo modelo para a apresentação de si: “uma imagem machista,
esportiva, superviril” aliada à indefinição dos “traços da adolescência” (op.cit.: 79). Nesta
“moda unissex”, calcada no “obscurecimento da diferença aparente entre os sexos”
(ibidem) praticar-se-ia como tendência uma “sociedade unissex”, diz ele - e talvez a cena a
atualize de algum modo. Retraçando as “histórias” do “adolescente” e do “homossexual”,
Ariès acredita que ambas, embora “com uma diferença cronológica”, foram “quase a
mesma”: “primeiramente Querubim, o efeminado, em seguida Sigfried, o viril” (op.cit.: 83).
E prossegue: “A adoção por toda a juventude de um modelo físico de origem sem dúvida
homossexual talvez explique sua curiosidade muitas vezes simpática para com a
homossexualidade, da qual ela toma emprestada algumas características cuja presença ela
busca nos locais de reunião, de encontros, de prazer. O ‘homo’ tornou-se uma das
personagens da nova comédia” (op.cit.: 79).
114
57
Há, para além, a exigência de que a roupa consiga conjugar o aspecto “hiperbólico” e
“inútil” dos adornos estéticos com os imperativos do conforto (tecidos maleáveis e flexíveis
que facilitem a liberdade de movimentos) e da praticidade (um corpo “portátil”, que possa
carregar rente a si tudo o que precisa, em calças “cargo” cheias de bolsos ou através do
acessório indispensável nas raves, a cartucheira, espécie de pochete que permite ter tudo a
mão e, ao mesmo tempo, as mãos livres). Outros elementos compõem o visu (visual) e ao
mesmo tempo cumprem a importante função de suavizar o aspecto “degradante” dos
efeitos físicos de algumas substâncias ingeridas: os óculos escuros (que não deixam
aparecer os olhos revirantes que por vezes resultam do consumo de ecstasy) e os chicletes
e pirulitos (que evitam que as pessoas mordam as gengivas ou aliviam a tensão dos
maxilares trincados por conta do ecstasy ou da cocaína). Estes últimos ingredientes dão a
medida de como o ambiente “permissivo” da cena encontra momentos-limite, que o
“estancam” - e estes incidem precisamente no imperativo de se manter o caráter
“asséptico” da paisagem circundante, em tudo pensada como “sintética” (a música é
sintética e tecnológica; os materiais empregados na decoração e no tecido das roupas,
idem; o próprio ecstasy é um comprimido “limpo”, “prático”; nada deve corromper um
cenário no qual o “feio”, o “sujo” e o “decadente” só têm lugar se estilizados pela “estética
do tosco”; um exemplo é o visual heroin chic como montação, efeito de roupas e
maquiagens no qual o sangue, os hematomas e a palidez são “de mentirinha”).
116
58
Ademais, esse mesmo descomprometimento se nota também na jocosidade autorizada
entre os amigos, que muitas vezes chamam-se uns aos outros de “bicha” ou de “sapatão”,
tudo tornado tão mais engraçado precisamente por não encontrar lastro nem no visual nem
na conduta de nenhum deles. Esta é uma maneira, também, de deixar sair por outra via a
crítica que se faz seguidamente aos estereótipos que caracterizariam os gêneros
repaginados em versão “homossexual” (a “bicha vaidosa”; a “sapatão sem frescura”). Ao
jocosamente chamar, por exemplo, um belo rapaz bem vestido, elegante, bem informado e
sem qualquer “afetação” ou “trejeitos” de “bicha”, os amigos não estão propriamente
classificando-o, mas justamente apontando para o absurdo da classificação que,
estapafúrdia, não confere - ainda que ele goste de rapazes. Ao mesmo tempo, através
desta brincadeira, faz-se também um movimento de condenação aos que de fato envergam
estes comportamentos estereotipados e “dão na pinta” (que são sempre “os outros”, diga-
se).
59
“Metrossexual, o novo ‘homem moderno’ invade a cultura pop”. Folha de S. Paulo, 30 de
dezembro de 2003.
117
serve como cartão de visitas e nem é usada como uma forma de se impor
às pessoas”.60 Tendo “se cansado da mesmice do gueto”, estas “aves
migratórias” são encontradas “nos restaurantes da moda, nos lounges
badalados, (…) [em] todos esses lugares [que] têm sempre muito estilo,
(…) nos points de São Paulo ou do Rio de Janeiro”.
Os metrossexuais, por sua vez, independentemente de se definirem
como heterossexuais convictos (na versão mais “midiática” do termo, que o
aplica apenas aos homens), investem no borrar das fronteiras de gênero
através da composição de um visual andrógino e do prazer em adotar os
recursos cosméticos disponíveis no mercado - homens adeptos de saias,
unhas pintadas, maquiagens, tratamentos antiidade e mesmo cirurgias
plásticas, em alguns casos; mulheres que recorrem a peças clássicas do
guarda-roupa masculino (como gravatas e paletós) realocadas em
composições inusitadas, ou investem nos cabelos curtíssimos ou raspados.
O uso do termo gera muita polêmica; poucos são os que o adotam na cena
- rejeitá-lo, aliás, é quase de bom tom, como maneira de dizer-se
“autêntico” e negar qualquer filiação a expressões fabricadas pela pena de
jornalistas. Entretanto, como uma espécie de “sintoma” de um mesmo
“espírito de época”, o surgimento deste tipo de discussão nos suplementos
de moda dos jornais e revistas do país é consoante ao tipo de projeto que é
posto em prática na cena.
“E de uma costela gay nasceu o homem moderno. Entre outras coisas, 2003
será marcado pelo ano do aparecimento do termo ‘metrossexual’, designação
fashion-mercadológica para um homem das grandes cidades que gasta mais de
30% de seus salários com cosméticos e roupas, freqüenta manicures, aprecia
um bom vinho, adora um shopping, é (para resumir) mais que simpatizante da
cultura gay. Mas não se engane: é um sujeito bem macho” Folha de S. Paulo
(idem).
60
“Metrogays, aonde andam essas criaturas”, por Luiz Veloso, correspondente na Holanda
do canal GLS Planet (www.terra.glsplanet.com.br), 04 de maio de 2004.
118
não se fixam no que foi descrito como metrogay nem como metrossexual,
mas encontram eco em ambos. De imediato, a proximidade com estes
“rótulos” bastante recentes se verifica no ar cosmopolita que imprimem ao
seu estar no mundo, no papel central do espaço urbano para sua
movimentação, no acionar constante do caráter metropolitano e up-to-date
na composição de seus discursos sobre si. Encontramo-nos, no entanto, em
um terreno movediço, e tentar delimitar com clareza o perfil dos que o
habitam e compõem a chamada cena carioca é um projeto de antemão
irrealizável, já que a característica mais manifesta deste espaço mutante é
sua permeabilidade, é ser constantemente naquilo que não é - na
tendência. Ser por derivação; por deriva e por ação. Seus limites são mais
do tipo tensão do que do tipo contorno, como já vimos. Assim, o que se
pode dizer é apenas que esta cena se atualiza a cada noite; ela é (por
transbordamento) sua negociação e sua dissonância. Nem todos os seus
(des)integrantes são gays, metrogays, metrossexuais, bi-curious61… e a
recíproca tampouco é verdadeira. Estamos no lugar das intercessões, arena
de circulação de tipos diversos, que promovem suas poéticas de si
recorrendo às mais variadas combinações de imagens e discursos. É aqui
que reencontramos, para uma conversa, as encantadoras palavras de
Antonio Cicero ao tratar das paisagens urbanas como configurações
marcadas pelo desenraizamento. A cidade, nos diz ele, “não surge, à
maneira de uma planta, da terra em que se localiza, mas sim em
cruzamentos e de cruzamentos” (2005: 15; grifo meu).
“Uma vez surgidas, as cidades multiplicam as oportunidades de ocorrência de
61
O termo bi-curious é parte de um elenco de alternativas do perfil de usuários do site de
relacionamentos Orkut, sobre o qual falarei a seguir. O sujeito que se inscreve no site é
instado a marcar sua preferência sexual, dentre outras, em uma grade de múltipla escolha
que traz as seguintes opções: straight, gay, bissexual ou bi-curious. É interessante o uso
que é feito deste elenco de possibilidades, a princípio fechado. A opção bi-curious é alvo de
ácida ironia por parte dos usuários; embora muitos talvez pudessem se definir assim, o
mais freqüente é deixar este campo do formulário em branco, atitude que diz mais porque
não diz. “Não colocar nada é quase a mesma coisa que dizer ‘sou gay’ ou, no mínimo, ‘já
experimentei’. Não tem nada a ver responder esse tipo de pergunta”, me diz um deles.
Outro rebate: “Geralmente, quando não tem essa resposta no perfil de alguém, as pessoas
logo deduzem que ‘aí tem’. Mas, ao mesmo tempo, é o melhor a fazer, porque não colocar
nada é deixar tão em aberto quanto de fato é. E por isso que geral hoje, ou pelo menos
geral que é gente boa, prefere não responder nada, mesmo aqueles que nunca tiveram
nada com ninguém do mesmo sexo”. Os bi-curious sofrem também de uma outra espécie
de crítica, porque muitas vezes são identificados pelos demais como aqueles que só se
permitem experiências homossexuais eventuais porque “está na moda”. Esta é uma
acusação que incide com muito mais freqüência sobre as mulheres. Diz-se que muitas
meninas beijam-se na boca na noite, mas não chegam a relacionar-se sexualmente, o que
é interpretado pejorativamente como algo meramente “performático”.
119
Até aí, claro, estamos diante de uma fala para a qual não
precisaríamos recorrer a Cicero, visto que a encontramos muito mais perto,
na agudeza e no cuidado com que G. Velho (por exemplo, 1987; 1994) se
dedica, em sua obra, a sublinhar e exprimir o caráter complexo da
experiência urbana, dos engajamentos subjetivos atravessados
permanentemente pela convivência e pela contigüidade de muitas e
divergentes visões de mundo. Interessa-me recorrer a Cicero no que ele
assinala como cosmopolitismo, a afetar a poesia - seu tema de reflexão -
mas, se quisermos alargar o que entendemos por poesia, a afetar a poesia
também das “identidades”, a afetar tudo o que se compõe e se poetiza na
voltagem urbana: o cosmopolitismo como “o mais alto grau de
desenraizamento do mundo” (op.cit.: 16). Que as pessoas que primeiro me
inspiraram a escrever este trabalho tenham em comum, em meio a tantas
dissonâncias e justamente por causa delas, um radical projeto metro, é o
que faz delas um bom lugar para refletir sobre a singularidade do “nosso
tempo”. E isto porque se trata de um tempo que encontra o que é seu no
agravamento, ou, como diz Cicero, “na verdade, nosso tempo consumou,
mas não criou, o desenraizamento” (ibidem).
Nem é preciso que se diga que a temática do desenraizamento é
aproximável daquela que, no vocabulário deleuziano, aparece como
movimento de desterritorialização (Cf. Deleuze & Guattari, 2002a, b, c;
2004a, b). A aproximação funciona ainda melhor se, ainda com Cicero,
acompanharmos o que diz (no sentido de o que informa) este tempo que
não criou o desenraizamento, mas tomou posse dele como nenhum outro,
convertendo-o em ideal de conduta, em valor. O que diz, o que tornou
possível este tempo, não é o desaparecimento de nenhum outro, mas
justamente a convocação simultânea de todos eles, como formas
disponíveis, aproximáveis em um mesmo patamar de uso.62 O que tornou
62
Aqui cabe uma importante ressalva: recorrer a esta que seria uma das definições
“clássicas” de “pós-modernismo”, especialmente em seu uso original na arquitetura (o que
retomarei na Parte II, com Ortiz, 1992), não é aderir a uma abordagem “pós-moderna”. Se
for para “tomar alguma posição” sobre os tempos em que vivemos, aderiria antes, talvez, -
120
Parece-me que isto basta, por enquanto, para que possamos apreciar
com olhar interessado - ou pelo menos não mais desesperado e sim des-
esperado - o caráter persistentemente escorregadio que os conceitos,
rótulos e nomenclaturas assumem no espaço-tempo da cena. O caráter, por
fim, experimental, dos poemas (ou pessoas)63 que aí (mas também fora daí)
se escrevem. O título deste trabalho traz a idéia de urbanos afetos, e não à
toa. Se há alguma especificidade, algum aspecto inalienável no turbilhão de
vivências com as quais esta escrita dialoga, é justamente aquele que
possibilita a “alienação” - no melhor dos sentidos, por favor - de qualquer
outro, ou seu exato oposto, o recrutamento viável (ou o experimentalismo)
de potencialmente todas as formas disponíveis, em arranjo
mandatoriamente idiossincrático. Trata-se, a especificidade a que me refiro,
deste desenraizamento feito valor, desta desterritorialização convertida em
procedimento; do caráter, portanto, irremediavelmente urbano de tais
afetações (por isso mesmo) tão múltiplas, dissonantes, diversas e
63
Particularmente se nos lembrarmos aqui do que diz Derrida (1971: 26) acerca do “poder
de poesia”, o de “invocar a palavra arrancando-a ao seu sono de signo”.
122
64
Tudo o que dói: tudo que revela-se, em alguma medida, “fracasso”. Também, às vezes,
tudo o que é “incoerente”. Curioso, já que se celebra a incoerência. Mas também coerente
com a própria incoerência professada, já que sofrer por não ser coerente ao mesmo tempo
em que se celebra a incoerência é uma das maneiras da própria incoerência se cumprir.
Tudo o que dói, e eis uma lista que se desprende das entrevistas que realizei: insegurança,
medo, rivalidade nas relações afetivas, ciúme, traição, inveja, falência, incompetência, “não
conseguir dar conta”, a “ressaca da ebriedade”, a desesperança, “recusar a esperança por
princípio” mas ao mesmo tempo o “não ver perspectivas para si”, a própria oscilação entre
o registro da festa e o da seriedade (por mais que se tente fazê-los ser um só), a
constatação de que “nem sempre é possível converter tudo em festa”, o peso de tentar
sempre. Mais, e como me disse agudamente uma das moças entrevistadas: dói também
porque, em geral, as profissões escolhidas “lidam com arte” e “quem trabalha com arte
mexe em pontos que as pessoas que trabalham de nove às seis não precisam entrar em
contato, com a idéia de que a criação, o processo criativo, custa, é doloroso, exige auto-
conhecimento e reflexão, exige ser um pouco pirado”. Em suma, dói porque não se
125
65
Projeto, contudo, que nunca se cumpre, por conta mesmo de seu próprio motor, que
chamei de desejo de perfectibilidade, parafraseando a análise de Benjamin (1994c) para as
obras de arte nos tempos da técnica, ponto que exploro mais detidamente na Parte II,
Perverter-se.
127
66
“Se colocar” ou estar “colocado” refere-se ao trabalho simultâneo do sujeito sobre todo o
conjunto de estímulos proporcionado pelo environment da cena, e é o termo utilizado para
designar quem está sob o efeito combinado de substâncias diversas (“drogas” e álcool). O
colocar-se é ato, ressalte-se, a ser produzido a cada vez, contingentemente. Se na noite de
ontem fulano esteve “colocadíssimo” isso não lhe confere prerrogativas de acúmulo para a
noite de amanhã. Cada evento coloca-se como novo começo, neste sentido. Sublinho como
este procedimento é afim ao da formação permanente de que trata Deleuze (1992), ao
mesmo tempo em que cada destas “colocações” é também uma reterritorialização, um
situar-se, um localizar-se.
67
Um aspecto de “círculo infernal” desponta deste procedimento, como comenta de
Viveiros de Castro (com.pessoal, 2006): “o imperativo de ser optativo ou alternativo; uma
exteriorização continua mas que tem de ser recomeçada cada noite; e uma exteriorização,
coisa que, estritamente falando, não chega a ser lá muito cool”. A imagem deste sujeito
“obrigado a escolher” aproxima-se da temática da “liberdade compulsória” que move o
existencialismo sartreano, como tratarei na Parte II, Perverter-se. Note-se, contudo, que o
projeto desenhado por estas pessoas não é o de uma sorte de “identidade alternativa”,
fundada em escolhas e opções “desviantes” ou ao menos “incomuns”; antes, e
precisamente, trata-se do projeto de não precisar escolher desescolhendo (isto é, pela
chave do “ou”), mas sim escolher por adição ou anexação permanente (isto é, pela chave
do “e”). Nas etnografias e análises que se seguem, me dedicarei justamente a pensar isto a
que chamei de “o ‘e’ como estilo de vida”: na passagem da chave da alternância para a da
simultaneidade, a subjetividade em jogo não é a do “alternativo” (característico do
funcionamento por alternância, como é óbvio no próprio nome), mas talvez a do “aditivo”
(ou até mais do que isso, porque os tipos de conduta “puros” somados não meramente se
129
“molarmente (visivelmente) molecular (invisível)”, uma tarefa que sempre quase sucumbe
na impossibilidade de seu projeto, ou que sempre apenas quase faz: se se fizesse por
inteiro, deixaria de ser o que se propõe, ao mesmo tempo em que precisaria fazer-se por
inteiro para superar (e acusar a superação) (d)aquilo mesmo de que padece. Daí que para
viver sob a persistente ameaça de um precipitar-se, na sempre-tentativa de contornar a
iminência do endurecimento, as “identidades” que aí se fazem por oposição a “outros” (o
careta, o playboy, o ploc…) precisem passar, como já vimos, por todo um trabalho
minucioso e situacional de matização: só assim tais “proclamações instantâneas” de “eu”
podem correr em simultâneo, podem concorrer todas elas em uma “multiplicidade”. Forja-
se deste modo, como projeto, a escolha que não desescolhe nenhuma outra (como diz
contundentemente a camiseta: “não quero poucos e bons, quero muitos e ótimos”), uma
intensidade sem culminância, a ser “recolocada” cada noite (outra camiseta: “carpe night”).
Projeto que sabe de sua “impossibilidade”, e se realiza precisamente no ato de louvá-la;
atribuída a Jean Cocteau, uma outra frase (estampada em camisetas e imãs de geladeira) o
sintetiza: “Contradizer-se… que luxo!”.
70
Site fundado em 2003 por três amigos nova-iorquinos, com o intuito declarado de
proporcionar um veículo para divulgação e discussão de fotos “artísticas”. A afluência dos
brasileiros ao Fotolog.net não tardou a revelar-se incômoda para os idealizadores do
projeto, não apenas pela apropriação diferenciada em termos de uso, mas também pela
imensa e crescente quantidade de usuários, que em pouco tempo representavam a maior
fatia de páginas individuais ali hospedadas. Para se ter uma idéia, cerca de um ano depois
de criado o site, em julho de 2004, os fotologs brasileiros chegavam à casa dos 60 mil. Seis
meses depois, em janeiro de 2005, das mais de 900 mil páginas registradas, o Brasil era o
que detinha a fatia mais gorda, 325 mil. Em uma escala comparativa, os Estados Unidos,
país de origem do site, tinha, neste mesmo janeiro de 2005, 70 mil usuários; o Reino
Unido, 5 mil e a França, 3 mil. A “febre” foi registrada pelos principais jornais e revistas do
país em 2004, e resultou em inúmeras tentativas dos donos do site de vetar ou dificultar o
acesso dos brasileiros, em particular dos que optavam pelo uso gratuito (por quinze reais
mensais, há a alternativa de ser um usuário goldcamera; neste caso, ao invés de uma foto
por dia, é possível carregar até seis, e ao invés de ter direito a no máximo dez comentários
dos amigos, é possível ter até cem). Os fotologs brasileiros, contudo, não pararam e não
param de crescer, e para isso muitos artifícios e jeitinhos são recrutados (Cf. Almeida &
Eugenio, 2006).
131
temporalidade fugaz, por uma ética que faz do instante sua unidade de
medida (e por isso consegue operar no padrão da simultaneidade). Espécie
de “coluna social” com forte carga interativa e autoral - posto que
produzida pelas mesmas pessoas que a protagonizam -, o fotolog
conquistou os adeptos da cena por viabilizar a reprodução (ilustrada por
fotos das mais recentes jogações) do circuito de amigos e amigos de
amigos no espaço “virtual”, funcionando como uma ampliação da superfície
de contato de cada sujeito com seus pares e com o mundo. Maquete
imaterial da geografia da noite, eis o espaço dos fotologs - e também do
Orkut71, site de relacionamentos no qual a proposta é interligar os amigos,
reproduzindo a rede e mesmo conferindo-lhe alargada visibilidade, por
conta da voltagem simultânea, que presentifica, já que através do “catálogo
de amigos” é possível colocar em eqüidistância no espaço pessoas que, na
biografia dos sujeitos, estariam distantes do tempo - o que Weissberg
(ibidem) acredita que conforma antes um espaço real do que um tempo
real, uma vez que na “ubiqüidade tangível” (op.cit.: 126) proporcionada
pela internet instaura-se uma temporalidade espacializada, que suprime a
duração em favor de atalhos que desenham e redesenham geografias
sociais há não muito tempo impensadas. O “virtual”, como nos diz Virilio
(1993b), tem “efeito de real”, neste tempos de visão sintética e de
71
O Orkut começou a funcionar em abril de 2004, e a princípio ofuscou um pouco o reinado
do Fotolog.net, apesar dos serviços oferecidos serem supostamente outros. Trata-se de um
site de relacionamentos que funciona à maneira de um “clube” para o qual só é possível
ingressar através de um email-convite de alguém que já seja membro, e cuja “filosofia” é
justamente a da rede, a de que “só é preciso seis intermediários para se ter acesso a
qualquer pessoa no mundo”. Vale sublinhar que o uso brasileiro do Orkut coloriu de um tom
prosaico o convite necessário para o ingresso de novatos no site, já que não há, digamos,
grande seletividade na escolha dos que serão convidados. Nos Estados Unidos, quando do
surgimento do Orkut, o serviço tinha um tal aspecto de “maçonaria” que emails-convite
eram leiloados no site de comércio eletrônico Ebay, com o atrativo de permitir a compra do
acesso por um eventual sujeito cuja popularidade entre os amigos não tivesse sido
suficiente para ser convidado a participar do clube. Já entre os jovens brasileiros, os
convites abundavam nas caixas postais desde as primeiras semanas de funcionamento do
site, remetidos não só pelos amigos mais próximos, mas mesmo por colegas distantes ou
desconhecidos com quem se trocou uma ou duas palavras pelo messenger. Muitos,
inclusive, por conta de terem recebido convites repetidos, utilizaram-nos na criação de
perfis para seus animais de estimação, e assim há toda uma imensa população de cães e
gatos que também “interagem” vivamente no orkut através do teclado de seus donos - isso
para não falar na criação dos “fakes”, como se diz, um perfil fictício utilizado principalmente
para “espionar” os perfis alheios depois que o site, em abril de 2006, passou a acusar os
visitantes que passam pela página pessoal de cada um. O acúmulo é modo de relação
praticado no Orkut, mas também no uso do Fotolog e de outras ferramentas para a
sociabilidade na internet, como o MSN e o ICQ, serviços de troca instantânea de
mensagens. Remeto à reflexão que empreendi em parceria com Almeida, já que não seria
possível tratar detidamente de todos os aspectos deste fenômeno aqui (Almeida & Eugenio,
2006).
132
72
O próprio movimento de criação de novas comunidades sinaliza o uso que é feito delas -
menos para discutir o que quer que seja, mais para funcionar como proclamações
instantâneas do self. As primeiras comunidades fundadas logo que o site entrou no ar
carregavam mais fortemente o aspecto proposto, o de fórum de discussão. Eram
comunidades dedicadas a temas em torno dos quais se propunha um debate, com efeito,
fossem estes o repertório de uma banda de rock ou uma corrente da filosofia. Não tardou a
aparecer, porém, um marcado movimento de criação de comunidades devotadas a sinalizar
gostos, como as incontáveis nomeadas “Amo X” ou “Odeio Y” (“Amo homem com barriga
tanquinho”; “Odeio acordar cedo”), ou a fazer piada com posturas panfletárias (“Pela
banalização da champanhe”; “Eu exijo um mordomo”; “Hedonistas do mundo, uni-vos”), ou
mesmo dedicadas a amigos tornados celebridades pelo artifício da criação de um tópico
sobre ele (“Eu sou amigo do Chiquinho”; “Simplesmente Flávia”). Há, também, nesta
profusão de temáticas, as comunidades dedicadas a declarar condutas praticadas (“Eu pego
geral”; “Me jogo sim, e daí?”; “Sapiosexuality”) e mesmo as que tematizam o próprio uso
das ferramentas da internet (“Viciados no Messenger”; “O Orkut atrapalha meu namoro”;
“Odeio quando o fotolog dá pau”).
133
máquinas que quase não se podem nominar univocamente, posto que são
ao mesmo tempo celular, câmera, computador, rádio, tv etc), podem ser e
com efeito são acionados para as mesmas funções, mas preserva-se
também a manobra das diferenças entre os meios que proporcionam
(assim como a compra de um “multifuncional” não aposenta
necessariamente os “monofuncionais”; antes, verifica-se um acúmulo de
aparelhos). A fala, a troca de gestos e olhares, a troca de mensagens de
texto, os recados através de sites, são todos meios usados em abundância,
nenhum usado em substituição ao outro, é preciso que se diga, mas em
movimento de contínua adição. Adição transformadora, não mera
incorporação: a cada meio que se torna disponível, rearranjam-se os
demais, afetados. As especificidades de cada ferramenta (o chat, o
telefone, o texto do email ou da mensagem SMS por celular) são
empregadas em um esforço que se pauta pela abundância para produzir
convergência, por uma reincidência no mesmo (fala-se com o mesmo
punhado de pessoas por mil frentes ao mesmo tempo) através do novo (os
lançamentos de aparelhos, ferramentas e recursos). Fabricação permanente
de zonas de interseção, através de procedimentos diversos aproximados
em um mesmo patamar de uso.
Uma tal “entrada em máquina” (Cf. Guattari, 1993) das
subjetividades contemporâneas, ao menos no que tange às pessoas
pesquisadas, se coloca a serviço do reforço e do elogio da coletividade e da
togetherness, da manutenção permanente do canal comunicativo, através
de sua ininterrupta alimentação com inputs de todos os tipos, na deliberada
intenção de reforçar a acessibilidade do sujeito para seus pares e de
ampliar sistematicamente sua “área de cobertura”. “Sempre” encontrável:
quando não “pessoalmente”, pelo celular ou pelo computador.
A importância de suportes “virtuais” cheios de imagens, como o
fotolog, pode ser medida pela presença maciça, nos clubes e festas, dos
flashes das câmeras digitais espocando freneticamente na pista. “Se não
tem foto, não aconteceu”, diz-se freqüentemente. Esta foto que atesta o
quão divertido foi o encontro com os pares tem “destino certo”: mal se
chega em casa após uma festa e logo a foto estará “postada” no fotolog. E
assim como aquilo que não foi fotografado “não aconteceu”, tampouco terá
“acontecido” se faltarem os comentários dos amigos logo abaixo de cada
136
73
“Só quem ‘se acha’ com clareza gosta de coisas borradas”, comenta Viveiros de Castro
(com.pessoal, 2006). Aqui se insinua novamente um dos patamares de reterritorialização a
que este modo de vida conduz: aquele mesmo a que já me referi ao tocar no ponto
nevrálgico da inevitável aporia que se coloca àqueles que não desejam os contornos, mas
137
a adesão grupal, que se processa aos borrões. Com efeito, esta se dará
mais pela preferência por determinados sons eletrônicos - techno, house,
deep house, electro, electrofunk, minimal e outros nomes que nunca param
de surgir e de reesquadrinhar djs e adeptos (nomes demais para as
tendências, de menos para as vivências) - e pela predileção por certas
substâncias, notadamente o ecstasy, mas também a onipresente maconha
(por sua versatilidade, a “calça jeans” das substâncias, segundo Wisnik,
1988), a cocaína (a “droga” por excelência do carão) e outras composições
sintéticas, como o GHB, o special key e versões de LSD carregadas de
anfetaminas. Dá-se, também, pela freqüentação a um mesmo circuito de
lugares, pela verificação permanente de que as redes de amigos sempre se
entrecruzam em algum ponto - e também o “histórico” dos ficantes, envolto
ele é amigo (por outros caminhos) de amigos seus, alguns até nem tão
próximos, mas que então podem vir a aproximar-se por esta outra frente,
retomados, reconquistados.
Ou, ainda um outro jeito de dimensionar e redimensionar a rede: o
chamado “radar” - às vezes também dito “gaydar”, embora não raro
apareçam falas que declinam face ao tom de renovada acusação molar que
ele pode conter. Este é, por suposto, um recurso a que se alude
discursivamente de modo menos explícito e freqüente na fala dos que
rejeitam rótulos com mais veemência, e mais declaradamente na daqueles
que se declaram gays. De todo modo, é preciso elencá-lo, porque é
daqueles dispositivos a que todos vêm a fazer uso, mesmo que envolvendo-
no em brincadeira ou em crítica matizadora. O “radar” seria uma espécie de
skill que não se deixa “explicar”, não se ensina, porém se aprende “por
osmose”, na convivência com a matilha. Conforme a rede envolve o neófito,
ele vai aos poucos desenvolvendo esta abstrata capacidade de reconhecer,
prosaicamente e nos lugares mais insuspeitos ou “neutros” (na rua, no
supermercado, na fila do banco), outros que também compartilham da
rede, que também seriam adeptos da cena. Implícita na noção do radar
está a idéia de que se compartilha um código restrito, dominado por poucos
e portanto viabilizador de uma certa comunicação clandestina ou paralela
(Cf. Pollak, 1989), a desenrolar-se na presença dos outsiders sem que estes
percebam. “É a nossa forma de entrar em um portal de gente maneira sem
ninguém saber!”, diz um rapaz.
A imagem do portal é mesmo muito boa, ela dá a medida da cena
como coexistência de durações, como multiplicidade ou bloco de devir que
pode precipitar-se a qualquer momento, instantânea. Muitas vezes ela me
foi mencionada, tanto quanto uma outra idéia na mesma linha, a de que se
experimenta um “universo paralelo” (expressão que até mesmo nomeia
uma festa itinerante, uma rave de sete dias que costuma acontecer em
“paraísos perdidos” diferentes a cada virada de ano, como comemoração de
reveillon).
Dentro das linhas difusas que ligam os que se identificam com essa
combinação de lugares, músicas, substâncias - difusas porque nunca o
comprometimento é apenas esse, é sempre também esse - encontramos
pessoas que trafegam pelos possíveis de diversos arranjos de pares.
140
74
“Sempre quisemos fazer esse tipo de música para a gente mesmo, e para todos os
homossexuais, bissexuais, lésbicas e outras pessoas modernas como você e eu. E então
fazer uma festa, todos juntos”, diz Danny Mommens, um dos componentes da dupla (I-D
Magazine, trecho citado em www.feirensweb. com/noticiasespeciais.php; tradução minha).
141
pragmatismo).
Geração? Alerta vermelho, se quisermos trabalhar com a idéia. Deve-
se evitar “colocar as circunstâncias de uma época no lugar de uma
mentalidade de geração”, nos alerta Jaide desde seu amarelado texto de
1968 (:21). Ademais, contra a noção de que uma geração seria um
“rebanho conduzido por uma tendência” (op.cit.: 26), o mesmo autor
oferece a mais afinada acepção de que se trata de um complexio
oppositorium, no qual coexistem combinatórias variadas de
comportamentos e tendências, associações e estilos. Eis a aporia inevitável
que caracteriza tanto a idéia de geração como a de juventude, ao mesmo
tempo dotadas de características tributárias de uma configuração sócio-
histórica específica (uma época, por falta de melhor nomenclatura) e de
características mais ou menos permanentes, que as definem como versões
para uma etapa do ciclo de vida comum a todos. A juventude enquanto
“representação”: fatia do tempo biográfico na qual se admite como legítima
a inconsistência das coerências, das certezas e das definições, tijolos de um
porvir em montagem. Contra esta acepção da juventude, como faixa etária
ou fase da vida, acompanhamos contemporaneamente75 o desenhar da
juventude como estilo ou estilos de vida, seu alargamento e sua conversão
em valor e objetivo a ser perseguido, passando assim a abrigar os
mandamentos contraditórios da intensidade e da extensividade (Cf. Viana
Vargas, 1998). Enquanto se tratava predominantemente de uma fase, e de
uma fase de experimentação autorizada, era locus privilegiado da
intensividade, e a extensividade poderia ser preocupação temporariamente
suspensa. Agora não mais - ou, pelo menos, está é a tendência.
75
E remonto as condições de possibilidade deste processo ao fim dos anos 60 e à década
de 70, com o desabrochar do procedimento alegórico operado pela Tropicália e, ainda mais
sintomaticamente, pelo pós-tropicalismo (Cf. Buarque de Hollanda, 1980: 51-87).
76
A referência para a idéia de ethos são os trabalhos de Geertz (1989c) e Bateson (1965).
No modelo geertziano, ethos é noção na qual se congregam aspectos morais, afetivos e
estéticos - aspectos “valorativos” -, em contraposição a visão de mundo, rubrica sob a qual
143
central fossem as histórias de vida: a de, sempre que possível, i.e., sempre
que não houvesse prejuízo para o tópico desenvolvido, “embaralhar as
personagens”. Note-se que - como comenta Heilborn (2004a: 82), que
enfrentou situação similar em seu trabalho - o simples recurso de
“rebatizar” as pessoas não teria sido suficiente para torná-las
irreconhecíveis, e isto por conta mesmo do modo de proceder característico
deste universo, que é daqueles no qual “todos se conhecem, mesmo os que
não se conhecem”, como me disse uma moça que entrevistei.
É claro que o artifício a que recorri para minimizar a exposição da
privacidade de pessoas que generosamente aceitaram figurar em uma
pesquisa deste tipo não é suficiente para sanar esta questão delicada - o
que é inevitável, já que não se tratou aqui de “inventar” nem de “mentir”,
apenas de “misturar” eventos e vivências narradas, não as atribuindo todas
ao seu legítimo “dono”, mas sim a personagens que são, cada qual, uma
sorte de síntese de muitas pessoas. Assim, se nada do que aparece aqui é
“mentira”, as “verdades” sofreram uma redistribuição até certo ponto
ficcional. Decerto eventuais leitores reconhecerão “causos” e saberão quem
os protagonizou; qualquer semelhança com vivências pessoais não é mera
coincidência. Mas é preciso alertar a estes mesmos eventuais leitores que,
aqui, ninguém é alguém em particular. Recorri a este procedimento com
mais ênfase nos relatos etnográfico-analíticos que se seguem (ver 2. Links),
nos quais, além de misturar vivências de diversas pessoas na composição
das personagens, mesclei também eventos diferentes na montagem dos
episódios, tramas com as quais busco investigar investimentos de desejos.
Antes, porém, buscarei aqui neste tópico oferecer uma proposta
alternativa ao duplo esforço de captura que a princípio pretendia fazer,
aquele que seria o de fixar uma “história da cena” com base em relatos
“nativos” de teores diversos (livros, entrevistas, conversas em comunidades
do orkut) e o de desenhar um ethos de grupo com base no que era possível
depreender de uma análise de biografias e círculos de amizade que, por
fim, optei por suprimir em respeito à privacidade dos envolvidos. Como o
leitor já deve ter notado, também um outro recurso foi acionado
seguidamente: sempre que se tratou/trata de mencionar falas, optei (como
o fez Heilborn, 2004a) por não fornecer indicadores quaisquer (a não ser se
o falante era uma moça ou um rapaz). Fosse esta uma pesquisa apenas
146
Assim, o que com efeito optei por não fornecer, exceto quando
estritamente pertinente, foram dados (ligados à conformação da
“identidade”) sobre os falantes/personagens da etnografia tais como:
nome, idade, profissão, local de moradia e outros elementos que pudessem
identificá-los de modo imediato etc. Mas isso não quer dizer que tais
“dados” tenham propriamente desaparecido. É com eles mesmos que a
presente seção lidará, embora não atrelando-os a indivíduos específicos
(com raríssimas exceções), mas sim tentando descrever um “quadro de
referência amplo” - buscando alcançar o tom das subjetividades acionadas
148
renovação dos bandos. Como diz uma moça: “tem essa coisa de que
neguinho se conheceu ontem e hoje já tá deixando scrap dizendo que ama,
que é melhor amigo. Eu detesto isso, mas tem um povo que a cada semana
tem uma galera diferente, muda de melhor amigo assim, ó… você pisca e
quando vê…”.
Ainda assim, no referido texto suprimido sobre o “ethos da cena”,
havia tentado concentrar-me nestes grupos mais “perenes” e fazer deles
uma minuciosa descrição, tendo na seqüência alcançado um “perfil” no qual
grande parte dos freqüentadores da cena encontraria proximidades.
Embora o estabelecimento dos “egos” a partir dos quais rastreei toda uma
rede contivesse uma inevitável dose de arbitrariedade, tratava-se sempre
de pessoas reconhecidamente “habitués” da cena, muitas vezes mais velhas
que os demais que compunham o grupo de amigos, marcado por uma
rotatividade maior de rostos. Contudo, ao falar das histórias de vida de
algumas personagens-chave e de seus amigos, também as diversidades e
dissonâncias presentes saltaram aos olhos - e, ademais, os dados
biográficos proliferavam desnecessariamente (em relação aos interesses
deste estudo). De modo que, por fim, optei aqui por elencar alguns
aspectos que seriam da ordem da “identidade” sem apresentá-los atrelados
a pessoas/biografias específicas, mas sim sob um formato descritivo amplo,
para em seguida deixá-los organizarem-se sob a nomenclatura cunhada por
alguns dos próprios pesquisados no contexto de uma exposição organizada
no Centro Cultural Telemar de 17 de janeiro a 12 de março de 2006:
Geração Eletrônica. Tal movimento, por sua vez, dará passagem tanto ao
divisar de um funcionamento (o do hedonismo competente) quanto à
comparação com um outro funcionamento: aquele que, na década de 70 do
século XX, teria inaugurado em “versão brasileira” um procedimento
alegórico (Cf. Buarque de Hollanda, 1980). Este empreendimento
comparativo, aqui, será oferecido em lugar de uma “história da cena”, e
que adiante haverá momento oportuno para justificar por quê.
O universo pelo qual transitariam os pesquisados - universo das
camadas médias urbanas - já foi seguidamente alvo de problematização,
notadamente por conta dos critérios para sua definição, que o denunciam
antes como uma abstração - ou, como no comentário de Abreu Filho
(1981), como “incômoda metáfora geológica”. Seguindo a pista de Heilborn
150
moradia mais baixo do que o praticado nos bairros onde estão fixadas as
residências da família de origem, e caracterizando regiões não-
exclusivamente residenciais, com vívido comércio e facilidade de transporte:
Botafogo, Flamengo, Glória, Laranjeiras, Humaitá, a parte de Ipanema já
mais próxima à Copacabana etc. Há também um movimento de
“povoamento” de áreas “maculadas” como a Lapa, a Glória e parte do
Centro (notadamente a Av. Beira-Mar). Menos freqüentemente, por ser
considerada mal servida pelo sistema de transporte público (o que
inviabiliza o recebimento constante de visitas, muito valorizado), também
pode ser eleita Santa Teresa.
Quase todos estudaram em colégios particulares, e os que não o
fizeram freqüentaram escolas públicas “de qualidade” como os colégios de
aplicação da UERJ e da UFRJ, ou o Pedro II. São muitos os que estudaram
em escolas de orientação dita “liberal”, como a Escola Parque e a Édem. Há
também ex-alunos de colégios religiosos como São Vicente de Paula, Santo
Inácio, Santo Agostinho etc. Muitos ex-alunos de colégios de elite como o
GIMK e o CEL. A graduação da maior parte foi ou está sendo realizada em
universidades públicas, ou em privadas, notadamente a PUC.
“Morar sozinho” é um valor bastante forte, e por isso é parte da meta
daqueles que ainda moram com os pais. A maior parte deles diz,
entretanto, ter boas relações familiares - mas, se a relação com a família de
origem é dita harmoniosa, é dita tão mais harmoniosa quanto puder ser
mantida à distância, de modo que se busca sempre algum nível de reserva,
mesmo nos casos em que se declara “ter diálogo” franco e aberto com os
pais. As experiências erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo são,
segundo eles, de conhecimento dos pais. Poucos são os que as mantêm em
segredo, e a maior parte dos que o fazem moram sós - muitas vezes, o
mote da mudança foi justamente este, não precisar contar a ninguém e
conquistar espaço para exercer uma intimidade ambígua sem ter de dar
explicações. A experiência mais freqüente, entretanto, é o não-segredo em
relação às vivências homoeróticas. A maior parte dos que explicitaram à
família, o fizeram por “praticidade”, porque gerir um segredo é custoso e
dolorido. A reação dos pais, na quase totalidade dos relatos que me foram
feitos, foi sempre negativa a princípio. Alguns meses de conflitos e de
relações estremecidas. No entanto, aos poucos os pais aceitaram, uma
153
77
Foi também neste grupo que pude registrar um maior número de pessoas que ou não
moram na Zona Sul ou que vêm de fora da cidade, notadamente do interior do Rio de
Janeiro. Nele, rigorosamente todos os amigos já haviam sido namorados(as) uns dos
outros, sendo um círculo bem mais fechado que os demais a novos membros, e havia um
discurso forte de ascensão social como valor, bem como uma recusa mais explícita a
freqüentar lugares “caretas”, a preferência incidindo em lugares “híbridos” ou
156
dito com freqüência, por exemplo, que não querem “ter o direito de casar”
com alguém do mesmo sexo, e que dificilmente o fariam, mesmo que fosse
legal. Em geral, inclusive, só se falou desse assunto porque eu o introduzi
como questão - e, na seqüência, costumava ouvir também que o que
gostariam não era tanto de conquistar “direitos” como “minorias”, mas que
“as pessoas entendessem que não faz o menor sentido colocar carimbos”
ou que “parassem com essa história de ‘vamos ser gente boa e aceitar os
anormais’” ou, ainda, que minha própria pergunta não teria sentido, já que
não se consideravam “minorias”.
As preocupações espontaneamente mencionadas referiam-se
sobremaneira a um exercício de imaginação do futuro profissional e
financeiro (bem menos explícitas, exceto em reuniões com que tomavam
ares de “confessionário”, apareciam também preocupações quanto ao
encontro de um “par ideal”, envolvidas em contradições que ainda voltarei a
tematizar). Tudo aquilo que o dinheiro pode proporcionar é extremamente
valorizado na cena: viagens ao exterior; roupas e acessórios de grife;
exclusivamente “gays”, que não fazem parte da cena senão em momentos em que “aporta”
em lugares considerados “toscos”. Note-se também que este grupo comporta um maior
número de pessoas acima dos 30 anos, cuja carreira de vida as levou a superar em termos
de escolaridade e de renda a geração de seus pais e avós. Aqui, raros são os sujeitos que
se revelaram aos pais, e alguns administram um segredo de anos e anos - colocando-se
muito distantes, portanto, da “praticidade” que orienta as maioria dos freqüentadores da
cena ao contar a seus pais. Os poucos pais que sabem descobriram por conta própria e
foram raros os filhos que optaram por contar ou confirmar suspeitas. Também entre esses
amigos, algumas moças e alguns rapazes têm filhos, ou de relações heterossexuais
pregressas ou de projetos “homoparentais” com seus parceiros atuais (alguns deles me
forneceram entrevista para uma comunicação em que esbocei trabalhar com este tema,
mas que optei por abandonar: Cf. Eugenio, 2005b). Se poucos são filiados explicitamente a
alguma movimentação política, a quase totalidade gostaria de ver aprovada uma lei de
regulamentasse o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Entretanto, este grupo
convive, embora não sem críticas ácidas eventuais, com grupos (que são maioria ostensiva
na cena) nos quais mesmo os personagens que se dizem gays dificilmente envolvem este
dizer em um relato de dor ou de privação. Mais: enquanto neste grupo as manifestações
públicas de afeto são consideradas desaconselháveis, o medo de sofrer preconceito
aparecendo com freqüência como justificativa, em geral, ao contrário, nos demais círculos,
pelo menos as moças (e também alguns rapazes) consideram possível, desejado e
adequado manifestar afeto em qualquer lugar, de clubes e festas aos corredores do
supermercado ou ao ponto de ônibus. Os pontos de intercessão entre este grupo e os
demais são alguns dos lugares que compõem o circuito de lazer noturno (notadamente os
clubes que são “mais gays do que caretas”, e alguns bares e restaurantes). Além da
preferência musical, o modo de vestir também os aproxima, bem como o consumo das
substâncias químicas, embora entre esses amigos predomine o uso de maconha e de
cocaína, e seja bem mais raro o uso dos sintéticos. O trecho de praia freqüentado,
entretanto, os afasta: enquanto este costuma ficar em frente à Farme de Amoedo, a “rua
gay de Ipanema”, os demais grupos costumam ir à praia no Posto 9, na altura da Rua Joana
Angélica, aí se misturando a muitas outras “juventudes” (que ouvem outras músicas, saem
à noite percorrendo outros circuitos, e eventualmente cultivam namoros ou ficantes
exclusivamente “heterossexuais” etc), com as quais entretanto compartilham um nível de
escolaridade e de renda familiar semelhantes.
157
contudo, círculos nos quais ela é usada apenas para “baixar a bola” um
pouco antes de ir para casa depois de uma noitada, enquanto há outros nos
quais o procedimento é aquele sintetizado na conhecida expressão “fumar
um para fumar um”. Por outra, há círculos nos quais a cocaína é preferida
em relação a sintéticos como o ecstasy, enquanto há (a maioria) aqueles
que a rejeitam severamente. Entretanto, como existem sempre
personagens que transitam por diversos círculos de amigos e fazem a ponte
entre eles (aliás, todos são ou podem ser estes mediadores, mesmo que
tenham um grupo predileto de “inseparáveis”), há de se dizer que não se
encontra um grupo no qual o pó fique completamente de fora.
Em relação ao consumo de tabaco, na maior parte dos círculos fuma-
se muito, e qualquer ambiente se faz acompanhar o tempo inteiro por uma
neblina espessa de fumaça, mas há também alguns poucos grupos nos
quais praticamente todos são não-fumantes, e se condena o cigarro com
uma fala que, via de regra, aciona também elementos tais como
“alimentação saudável” e “exercícios físicos”. Entretanto, se há círculos nos
quais academia de ginástica e “malhação” são considerados imprescindíveis
(notadamente os círculos de amigos que se dizem gays), há na mesma
proporção grupos nos quais os exercícios físicos são uma “intencionalidade”
que raras vezes se concretiza, ou ainda aqueles que condenam
veementemente o ambiente das academias, preferindo atividades tais como
ioga, meditação, pilates, caminhadas/corridas ao ar livre, dança, “esportes
radicais” etc. A “alimentação saudável”, no entanto, é uma preocupação
forte e generalizada, havendo inclusive um número significativo de
vegetarianos.
Os grupos de amigos distinguem-se também na intensidade com que
se devotam à “jogação”. Há aqueles mais intensamente notívagos (que
saem todos os dias da semana, ou quase); mas mesmo os círculos nos
quais os próprios integrantes declaram ser “menos jogados”, a freqüência
dos programas noturnos é de pelo menos duas vezes por semana. Em
geral, todos os círculos enfatizam como positiva a recusa à freqüentação de
lugares exclusivamente gays - aos quais só se vai em programas eventuais
que tomam ares de “excursão”. Dentre as casas noturnas, as mais
freqüentadas são o Dama de Ferro (Ipanema), a Fosfobox (Copacabana) e
o 00 (Gávea), mas despontam ainda outros clubes, como o recentemente
160
78
O período de “glória” destes apartamentos geralmente não ultrapassa dois ou três anos.
No caso d’ “o 404”, desconheço os motivos que levaram à sua saída de/da cena. Já a “BR”
enfrenta no momento, depois de três anos como “point” representativo do circuito da cena,
uma fase de “baixa” e “tristeza” - a grande sala vazia; o confortável sofá com chaise-
longue, que já abrigara tantos corpos cansados da “jogação”, agora guardando apenas os
“restos”: manchas de bebidas, buracos provocados por cigarros. Os amigos, desolados,
vêm interpretando as reuniões cada vez mais esporádicas como um fim próximo, e
prevêem que os donos da casa partirão cada qual para morarem sós. Os motivos: afetos
162
recém-descobertos.
Assim como as casas podem vir a funcionar como bases, há outras
locações possíveis para as festas privadas de maior ou menor porte: casas
de campo ou de praia, sítios, fazendas ou mesmo ilhas (particulares ou
alugados) podem vir a sediar privates (como são chamadas), eventos para
os quais só é possível ir como convidado, e cuja divulgação é restrita ao
círculo mais chegado, no máximo a algumas “adjacências”. Por volta de
2004, começou a aparecer, aqui e ali, também o fenômeno das festas
privadas realizadas em motéis: uma suíte ampla, geralmente daquelas com
vista para o mar, é alugada por um grupo de amigos, que leva para lá
bebidas e djs, instalando no lugar um “clube” de ocasião; só os mais
próximos são convidados e geralmente se rateia os custos. Muitos
aniversários são comemorados desta forma. A coisa não fica inteiramente
“secreta”, de todo modo, pois que as fotos são colocadas online nos
fotologs.
De um modo geral, a freqüentação do “corredor cultural” da cidade
(cinemas “de arte”, cineclubes, galerias, museus, palestras, shows de
música, peças de teatro etc) é muito mais valorizada em alguns círculos do
que em outros. Alguns são mesmo formados por protagonistas deste
universo, tais como produtores culturais, atores, músicos, artistas plásticos
e, notadamente, um grande contingente de pessoas que “trabalham com
cinema”79; outros contam com alguns amigos “antenados”, mas que não
79
Um contingente muito grande de estudantes e profissionais de cinema está presente,
com maior ou menor incidência, em todos os grupos que conheci. Em todos eles existem
“piadas internas” que brincam com a associação entre um comportamento afetivo
“permissivo” e o trabalho na área de cinema, ambos envoltos em uma aura romântica de
liberdade, experimentação e glamour. A carreira de cinema, inclusive, vem se convertendo
em uma das mais disputadas entre os jovens “bem-nascidos”, superando não apenas as
carreiras mais “tradicionais” (administração, direito, engenharia etc) como também aquelas
que já eram “tradicionalmente alternativas” (jornalismo, publicidade, teatro etc) desde a
“retomada” do cinema brasileiro, na década de 90. Uma das moças que me deu entrevista,
ela própria estudante de cinema, diz brincando: “Agora tooooodo mundo quer fazer cinema.
Você não vê mais uma alma que diz que vai fazer direito, administração. É inacreditável.
Acho que é porque fazer cinema talvez seja o jeito mais simples de conquistar o direito de
se considerar culto sem muito esforço. O sujeito faz cinema, anda com um roteiro debaixo
do braço, ou um livro de filosofia qualquer, se veste com roupas descombinadas, tem um
óculos incrível, beija um carinha aqui e ali e pronto: virou um cara interessante em
qualquer mesa de bar. Se ainda por cima for dj, pode ‘pegar’ quem ele quiser”. As
brincadeiras sobre o tema incluem, ademais, uma espécie de narrativa de como “tudo teria
começado”: o mito de origem da entrada em uma das faculdades de cinema cariocas de
uma moça já um pouco mais velha, que depois de deixar três outras faculdades inconclusas
resolveu-se a cursar cinema. Hoje formada e bem-sucedida, esta moça teria, no começo
dos anos 2000, dado início à moda de meninas ficarem com meninas dentro dos limites da
universidade. Teria servido como espécie de modelo inspirador, por concentrar em si
164
outro. Embora não sejam muito comuns, tais arranjos encontram sua
condição de possibilidade justamente na postura de ambos os parceiros,
que a despeito da diferença de idade se apresentam no mundo como
“jovens” e se portam do mesmo modo (em termos de trajes, vocabulário,
hábitos de consumo e vida social). Em geral, é justamente o acionar deste
recurso - o aderir a um estilo de vida “jovem” - que permite também, para
a cena como um todo, a convivência como “iguais” de sujeitos pertencentes
a pelo menos duas gerações, resultando em um conjunto que recobre uma
ampla faixa etária, impossível de ser concebido como “grupo de idade”. A
juventude como valor e mandamento aí se revela, bem como na acentuada
freqüência com que os sujeitos pesquisados dizem evitar pensar sobre o
envelhecimento, ou imaginar suas vidas na velhice. A carreira profissional
parece ser o único lugar no qual estes sujeitos permitem-se explicitamente
imaginar o futuro, ou tentar planejá-lo. Os planejamentos em relação à
velhice, quando mencionados, referem-se mais a precauções financeiras,
como fazer um plano de previdência privada, em alguns casos, ou na
tentativa de prolongar uma aparência jovem, como o uso de cosméticos
anti-rugas.80 Mas sempre que tentei instá-los, nas entrevistas, a imaginar se
estarão casados ou se terão filhos e netos, a pergunta parecia lhes causar
repulsa (devo registrar que apareceram algumas exceções, de rapazes gays
que dizem planejar ter filhos com uma amiga, e de algumas moças que
relataram estarem elas próprias surpresas com uma recente “fúria
uterina”). As projeções, em geral, estavam referidas a um futuro imediato
(desejo de morar sozinho, terminar a faculdade logo, ganhar dinheiro,
morar fora do país etc) e não envolviam imaginar para si mais do que os
próximos dez anos de vida.
*
Ao pedir que me descrevessem um dia habitual “de semana” e de
“fim de semana”, os entrevistados geralmente deixavam claro o quanto
80
É notável exemplo, neste sentido, o “Projeto Trinta Tudo” idealizado e posto em prática
por um rapaz, que um ano antes de completar trinta anos decretou para si mesmo uma
ascética rotina de dieta, exercícios e outros cuidados corporais a fim de chegar à nova idade
ostentando um corpo ainda mais “incrível”. A expressão, considerada perspicaz e bem-
humorada, foi incorporada maciçamente, e é largamente empregada por seus amigos.
Note-se que não se tratava tanto de um ato “desesperado” de tentar “remendar” um corpo
considerando fora dos padrões estéticos, mas antes de torná-lo ainda mais “espetacular”,
como se fosse um ato forjar um fundo de crédito, um adicional de boa forma que pudesse
se antecipar à ação “devastadora” do tempo, anestesiando-a de antemão.
171
81
Se instados, porém, a falar sobre isso em entrevistas ou conversas informais, não há
qualquer recusa ou resistência, e revelam-se falas contundentes e articuladas.
82
Há, contudo,na maioria dos grupos, pelo menos uma ou duas personagens que não se
enquadram ostensivamente nos padrões estéticos da “boa forma”, dos músculos
trabalhados, do “peso ideal” - não se caracterizando como “eternos insatisfeitos” (categoria
na qual parecem entrar todos, em maior ou menor nível), mas sim sendo, geralmente,
pessoas “obesas” que deliberadamente não movem esforços para alterar sua situação
corporal. A atitude seria (e às vezes de fato é) considerada amplamente reprovável, não
fosse a capitalização competente que tais pessoas operam em torno de si, sendo bem-
sucedidas em apresentar-se como “excêntricas”, “incríveis”, “talentosas”, “geniais” ou
outros adjetivos que tais.
177
83
Um trecho retirado do catálogo da exposição Geração Eletrônica (2006: 12), que
explorarei adiante, pode dar a medida do que viria a ser este inventar de percepções que
aproximaria pessoas com vivências singulares, um encontro e um reconhecimento tornados
possíveis pelo compartilhar de uma mesma paisagem sensorial, de múltiplos componentes
de subjetividade comuns: “Cresci assistindo a evolução dos videogames que (…) nos
tornaram co-autores de trilhas com o simples andamento do jogo. Cada movimento
implicava um resultado sonoro, e nos familiarizamos com seus princípios. Disparar um tipo,
fazer um desvio, cair em um precipício, resultavam na customização da banda sonora”, diz
André Fischer, “editor do site Mix Brasil, colunista da Folha de S.Paulo, diretor do Festival
Mix Brasil, curador da Mostra Punk 30 anos e dj nas horas vagas”. Com isso Fischer sinaliza
uma sorte de disposição sensível de sua “geração” (entendida como proponho adiante) para
a experiência multisited da música eletrônica, e também para um “faça você mesmo”
tornado possível pelas tecnologias digitais, nas quais o usuário e o produtor tendem a se
tornar indistintos.
179
84
Do mesmo modo que se poderia dizer que em torno da poesia “marginal” e do
mimeógrafo floresceu, em meados dos anos 70, toda uma “invenção de percepção”
condensada no rótulo “geração mimeógrafo”, significativo a despeito de deixar escapar a
singularidade das vivências, ao ponto de ter sido a partir desse atravessamento que
Messeder Pereira se dedicou a traçar seu Retrato de Época (1981). O poder de “coleta” do
rótulo pode ser depreendido deste trecho de Buarque de Hollanda (2001 [1975]: 9):
“Curiosamente, hoje, o artigo do dia é poesia. Nos bares da moda, nas portas de teatro,
nos lançamentos, livrinhos circulam e se esgotam com rapidez. Alguns são mimeografados,
outros, em offset, mostram um trabalho gráfico sabido e diferenciado do que se vê no
design industrializado das editoras comerciais. Mesas-redondas e artigos de imprensa
discutem o acontecimento. O assunto começa - ainda que com alguma resistência - a ser
ventilado nas universidades. Trata-se de um movimento literário ou de mais uma moda? E
se for moda, foi a poesia que entrou na moda ou foram os poetas? O fato é que a poesia
circula, o número de poetas aumenta dia-a-dia e as segundas edições já não são raras”. Ali
também tratava-se de um movimento que tendia a tornar indistintos, a borrar os papéis do
produtor e do usuário, do poeta, do editor e do leitor: “invenção” ou disposição sensível
construída em torno de uma “facilidade técnica”, o mimeógrafo. Tal como, poderíamos
propor a aproximação, as ferramentas da internet propiciam hoje semelhante
desierarquização, semelhante desinvestida do espaço “nobre” e distanciado que caberia aos
“artistas”, tornando possível que cada um faça e exponha sem intermediários (através de
um circuito de produção e distribuição independentes) suas músicas, seus textos, suas
fotografias etc. Aproximam-se “arte e vida” pela “intromissão” da técnica, tanto naquele
movimento “geracional” como agora; confundem-se as figuras, tornadas intercambiáveis,
do artista e do público. A agilidade com que as “novidades” podem circular, desimpedidas
180
Ou, ainda, antes assim se teria passado com o jazz, como aparece
neste trecho de Cortázar (1985, v.1: 86-87):
“(…) nascera a única música universal do século, algo que aproximava mais
os homens, mais e melhor do que o esperanto, a UNESCO ou as companhias de
aviação, uma música bastante primitiva para alcançar a universalidade e
bastante boa para poder fazer a sua própria história com cisões, renúncias e
heresias, com o seu charleston, o seu black bottom, o seu shimmy, o seu
foxtrot, o seu stomp, o seu blues, para admitir as classificações e as etiquetas,
o estilo isto ou aquilo, o swing, o bebop, o cool, ir e vir do romantismo e do
classicismo, hot e jazz cerebral, uma música-homem, uma música com história,
diferentemente da estúpida música animal de baile - a polca, a valsa, a zamba
-, uma música que permita ser reconhecida e admirada em Copenhague, em
Mendoza ou na Cidade do Cabo, uma música que aproximava os adolescentes
uns dos outros, com os seus discos debaixo do braço, que lhes dava nomes de
melodias como cifras para se reconhecerem, se familiarizarem e se sentirem
menos sós, rodeados por chefes de escritório, famílias e amores infinitamente
amargos, uma música que permitia todas as imaginações e gostos (…)”.
86
A questão das relações nem sempre tranqüilas com a polícia, de um certo “pânico
moral” que corre pela associação entre música eletrônica e consumo de substâncias
químicas - bem, esta é uma questão que por si só poderia render uma tese, e portanto aqui
aparecerá apenas de relance. Nesta direção, e dada a proposta deste trabalho, permito-me
apenas apontar que o fato de se saber que o consumo de “drogas” é ilegal gera, claro, uma
camada adicional de cuidados (na compra, no transporte, na hora de ingerir) à lista das
skills requisitadas na administração perita do corpo na festa. A questão é tratada mais de
perto na pesquisa que desenvolvo em parceria com Maria Isabel Mendes de Almeida no
CESAP/UCAM (Cf. Almeida & Eugenio, 2004; 2005a, b).
184
confraternizar.
E ainda que com pequeno atraso em relação à cena européia, focos de artistas e
Djs, baseados nessa nova linguagem eletrônica, foram se formando no Brasil já no final dos
anos 80, a partir de ecos da cultura acid, com Djs basicamente no Rio e em São Paulo. Mas
foi nos anos 90 que a geração eletrônica nacional se formatou. O marco foi o festival LM,
que aconteceu em SP, Curitiba e Porto Alegre (1993), que, num clima meio de rave, trouxe
nomes internacionais como Moby (USA) e Altern-8 (UK) que se apresentaram ao lado de
Djs locais como Renato Lopes e Mau Mau. A partir daí, tivemos por aqui a abertura de
pequenos clubes, as festas de galpão, os afters, as primeiras raves de fato, a fomentação
de uma cultura clubber que trouxe junto a criação dos mercados alternativos de moda e da
cena em si.
Ao longo dos anos 90 essa cultura se firmou no país. Junto com isso apareceram os
Djs que criaram seguidores, os pequenos selos, os produtores e as coletâneas para se
divulgar esses artistas. Nesse ponto, a música eletrônica feita e ouvida aqui era igual a de
qualquer parte do planeta, toda à base de house e de techno, já com o trance se
entranhando. Poucos arriscavam incluir elementos brasileiros no som. Mas logo isso foi
caindo, com nomes como Mau Mau, por exemplo, arriscando a brasilianidade com seu
projeto M4J. E, como havia promovido anos antes com o punk, o Sesc de SP realizou o
festival “Tribos da música eletrônica”, para apresentar essa nova geração/cultura.
Na seqüência, o que parecia ser apenas um mercado de moda alternativa, para
adeptos do piercing e dos cabelos coloridos, o Mercado Mundo Mix, acabou se tornando
também um dos primeiros difusores da música eletrônica local e mundial para um público
não-clubber. Djs e grupos se apresentavam nos locais dos mercados, que começou em
1994 em SP e desde então roda o país regularmente, se tornando um programa familiar. Os
produtores do MMM também chegaram a investir num selo musical, que lançou a primeira
compilação do gênero, a “Eletronic Music Brasil”, que teve distribuição da major Sony Music.
Para fechar o pacote, a mesma turma criou a Parada da Paz, que a partir de 1997 passou a
acontecer uma vez por ano nas ruas de São Paulo e, ao estilo da Love Parade alemã, foi
crescendo a cada ano e resultou numa outra parada, a A.M.E. (Amigos da Música
Eletrônica), mais alternativa.
O Rio chegou a ter uma grande parada, uma versão carioca da Street Parade de
Zurique, na Suíça, mas que teve apenas uma edição em 2003 por conta de problemas com
a prefeitura local, apesar de ter levado mais de dez mil pessoas às ruas e não ter ocorrido
nenhum incidente. Esta parada reuniu diversos lovemobiles (carros de som) com Djs de
todas as partes do planeta, até da China! (…)
Hoje em dia já há toda uma cena/mercado estabelecido com a eletrônica nacional,
centenas de Djs (alguns conhecidos pelo nome, mesmo fora do meio eletrônico), várias
agências, lugares para festas e shows, discos lançados por selos grandes e pequenos.
Enfim, a geração eletrônica também se estabeleceu forte no Brasil e hoje já não é mais só
underground, está na cultura.
Por isso, já está na hora de se deixar de ver a música eletrônica no Brasil como um
E.T., um algo à parte, um animal de zoológico, algo bizarro. A eletrônica como um todo já
185
está circulando nas veias da música mundial há tempos, sendo usada por bandas de pop e
rock, também. Logo, vamos tratar como música e pronto. E como um novo tipo de música
brasileira. Ok?
“E-music in Brasil”, Tom Leão (jornalista) pp. 24-25
Pouco antes de esta exposição começar a ser montada, foi proibida a utilização do
RioCentro (um gigantesco centro de convenções no bairro do Recreio) para festas de
música eletrônica. Isso porque, em dezembro [de 2005], durante um evento chamado Rio
e-Music Festival, 28 pessoas foram presas por porte de drogas no local, enquanto 19. 972
outras dançavam ao som de Infected Mushroom e Wrecked Machine. Os números são
curiosos. Por mais de um motivo.
Primeiro, vamos pensar nas tais prisões. Vinte e oito pessoas dentro de 20 mil, isto
é, 0,14% do público. Não se discute que essas 28 tenham contas a prestar à Justiça. Nem
se deve afirmar que tão somente elas tenham usado alguma substância ilícita durante o
evento. Mas daí a proibir a realização de novas festas por conta de 0,14% do público é um
tanto demais, não? E as milhares de pessoas que foram ali apenas para se entregar àqueles
loops que sentimos no estômago com mais força até que no ouvido, tornando o prazer da
dança automático, inevitável e catártico?
187
Não chega a ser novidade, contudo, essa demonização da cena eletrônica no Rio.
Dependendo de quem lê, “demonização” pode soar como um certo exagero. Ou como um
exagero certo. Em 2003, as autoridades proibiram a realização de raves como “medida
preventiva” para coibir o consumo de drogas. Além de ser uma postura obviamente ineficaz
para combater o tráfico, a mensagem eram as drogas, não a música. O mesmo que dizer
que e-music é não-música. Considerando que muita gente boa (ou doente do pé) ainda
chama a eletrônica de bate-estaca, nem chega a ser surpreendente.
Lembram quando o roquenrou era tido como música do diabo? Pois é.
O outro lado do disco é o outro ponto curioso nas notícias sobre o tal Rio e-Music
Festival: havia 20 mil pessoas lá. Nenhuma atração que toque em rádio ou apareça na TV.
Nenhuma cobertura na grande imprensa. E reuniu 20 mil pessoas. Isso lá é gueto?
Pois bem, em junho de 2003, depois de muitas idas e vindas de desacordos entre
organizadores e as autoridades, aconteceu a primeira e única edição do Rio Parade,
tentativa de trazer para o Rio um festival de rua anual, nos moldes da Love Parade de
Berlim. A imprensa carioca relegou o evento a parcos pés de página. A organização teve
que trocar Copacabana pelo Centro para não atrapalhar o trânsito (o que não seria ilógico,
não fosse a mesma Copacabana aberta regularmente a shows de astros jurássicos do rock).
A parada começava na Av. Presidente Vargas, subia pela Rio Branco, para ter um final
apoteótico na Cinelândia. As estimativas de público variaram entre 80 mil e 200 mil
pessoas. Independente do número, fato é que o público foi subestimado: a Cinelândia não
comportava tanta gente, e virou uma gigantesca lata de sardinha ao ar livre. Mas a noite
correu sem nenhum incidente grave.
O mesmo público, aliás, compareceu a outro evento histórico para a música
eletrônica no Rio: a apresentação do Dj Fatboy Slim num dos mais belos cenários do
mundo, a Praia do Flamengo. Público de 200 mil pessoas. Repito a pergunta: isso lá é
gueto?
Eis a questão. Apesar de as autoridades competentes volta e meia fazerem crer que
a cena eletrônica no Rio é um antro de perdição, na verdade ela nada mais é que um
recorte da cidade. Quando há um grande evento de e-music, as pessoas que por lá circulam
não são muito diferentes do que se vê todo o verão na praia, num bloco de carnaval, no
botequim da esquina. É aquela gente bronzeada que prefere mate de latão. Que tem
micose crônica. Que pega onda. Que mastiga suco de açaí. É o carioca. Não é uma tribo.
Não é um gueto. Não tem mistério.
Nem sempre foi assim, claro. Em março de 1987, quando o Dj LC Ambient
promoveu o que possivelmente foi a primeira festa carioca exclusivamente dedicada à e-
music, a House Party, na boate Barão com Joana, pouco mais de cem pessoas foram ouvir
um som que ainda soava estranho no cenário da época, dominado pelo rock e pelo
tecnopop. Só na virada daquela década para a seguinte, a house music se estabeleceria em
pequenos clubs como Kitschnett e Dr. Smith, até que festas pagas (a começar por
ValDemente e JLC) em lugares inusitados passaram a reunir gente às centenas, depois aos
milhares, e viraram queridinhas da mídia. Lá pelos idos de 1993, 1994, a cena eletrônica
era de fato dos esquisitos, e por isso começou a chamar muita atenção. O Mercado Mundo
188
Mix tornou a moda de vanguarda acessível aos cariocas, e o que se via na época arrepiava
os cabelos dos pais de família. Pós-adolescentes pintavam os cabelos de verde; homens
gays despiam suas camisas para ostentar sua masculinidade e sua sexualidade de forma
hiperbólica; o fetish wear ganhou as páginas dos suplementos de moda. Tudo o que uma
pequena tribo - formada por algumas centenas de pessoas - fazia no sábado à noite era
notícia. E a e-music começou a explodir.
Os freaks da noite ainda existem, benzadeus, pois ninguém é de ferro (só o Dama).
Eles continuam onde sempre estiveram, desafiando normas e lançando tendências na
madrugada, em pequenos clubes. Mas nos últimos 15 anos, a cena eletrônica cresceu em
progressão geométrica no Rio, e os freaks não são mais os donos exclusivos da e-music. A
tintura para cabelos Manic Panic, responsável pelos tons berrantes do início dos anos 90, já
convive com os cabelos discretamente alourados pela parafina das pranchas. A garotada da
praia adotou o trance e o techno. A house tribal criou uma estranha harmonia musical entre
boates gay, aulas de sppining e aniversário s de criança em playground. E o flerto do
drum’n’bass com o samba e a MPB fez com que boêmios da Lapa e do Baixo Gávea
deixassem de torcer o nariz à simples menção de uma música com batida programada.
Não é uma tribo, não é mais um gueto. É coisa de gente comum. E se as
autoridades preferem atentar para a prisão de 0,14% do público de um evento, em vez de
permitir a inserção da música eletrônica na vocação turística da cidade, azar é do Rio.
Apesar de tudo, este ano [2006] dois palcos dedicados a Djs de electro, techno, house e
trance foram montados na praia de Ipanema para o reveillon, com absoluto sucesso. Pode
ser sinal de que, enfim, a capital do carnaval possa dar aquele abraço na música eletrônica,
sem preconceitos. Afinal, no fundo, é tudo bumbumpaticumbum em outro bpm [batidas por
minuto], é a vocação carioca para fazer festa.
“Tribal, mas sem tribos”, João Ximenes Braga
(colunista do jornal O Globo) pp. 32-33
nova) tendem a ser rejeitados. Ainda assim, e apesar disso, os relatos bem
sintetizam um percurso para a cena do qual se desprendem também como
valores fortes a diversão, a noite, a convivência e a mistura de diversos
estilos de vida/estilos de som. Todos convergem em fixar as condições de
possibilidade para a montagem da cena no mundo a partir da década de 70
(em geral, a primeira manifestação é dita, nestas e em outras falas, na
disco music), e em situar sua chegada e instalação no Brasil (primeiro em
São Paulo, depois no Rio de Janeiro, em seguida em outras cidades) entre
fins da década de 80 e princípios da de 90. Há também uma conversa
persistente com o estigma, notável nos textos de Tom Leão e de João
Ximenes Braga, e também perpassando todo o catálogo (aparece, por
exemplo, no objetivo declarado pelos organizadores de “tirar o preconceito
e as referências pejorativas”, tanto os que cercam a “música eletrônica
vista por muitos ainda como ‘não-música’”, quanto em relação a
demonstrar que não se trata de um som “de gueto” e a tentar dissociar o
vínculo entre e-music e substâncias sintéticas. Tudo isso aponta mesmo
para o “mito de origem” da cena em versão brasileira, que é unanimemente
situado no “gueto gay” paulistano, onde primeiro teriam aportado os sons
“estranhos” para os quais - dada a novidade e o teor “ultra-cosmopolita” da
coisa - só os gays teriam tido a “abertura” necessária para acolhê-los (aí
incide notavelmente a persistência do estereótipo romântico do
“homossexual dotado de refinada sensibilidade”, que trabalharei na Parte II
com Costa, 2002; ver Perverter-se).
Mais um texto do catálogo, desta vez do já citado André Fischer,
pode oferecer um breve resumo do percurso experimentado até a abertura
ao eletrônico na era disco dos 70, e dos desdobramentos que estaríamos
experimentando hoje:
“Até a década de 60, sons eletrônicos ainda eram limitados a sintetizadores
de poucos timbres, tinham preço elevado e eram disponíveis para poucos.
Ainda assim, já representavam a música do amanhã em fantasias futuristas e
ficções científicas. Segundo Hollywood, até a comunicação com extraterrestres
seria realizada através da linguagem universal dos sons eletrônicos, como
propôs Spielberg em Contatos Imediatos do Terceiro Grau, no final dos anos
70.
Foi com o rock progressivo que se popularizou experimentos com
sintetizadores fazendo a primeira conexão entre viagens lisérgicas e
manipulações eletrônicas de sons, descartando velhos conceitos de tempo.
Logo depois o punk trouxe o princípio do faça-você-mesmo, aplicado
basicamente à moda e à música, ainda que usando apenas o tradicional
guitarra-baixo-bateria.
Conhecimentos técnicos e de métrica já não eram necessários para compor,
190
Embora, dentre estes, vez por outra se acione a menção aos anos e anos
de acompanhamento da música eletrônica como “critério de antigüidade”
(que os faria mais legítimos do que aqueles que “chegaram agora”), em
geral não se conversa sobre isso - coisa que só vi acontecer motivada por
alguma sorte de solicitação (a pergunta da entrevistadora, a comemoração
de uma data para a qual se prepara um livro rememorativo, o próprio
catálogo de uma primeira exposição sobre o assunto, que se vê na
“obrigação” de apresentar alguma linha do tempo). E, de todo modo, o
recontar da “história” é marcado por elipses, discordâncias entre datas,
recaindo em anedotas pessoais e raramente acentuando aspectos
genéricos. De modo que, se ficarmos apenas com o que é recorrente, não
teríamos de modo algum uma “história da cena” (ela não é uma), pois que
ela é feita da “suculência” destes pequenos fragmentos que ficam das
vivências, e não de um enfileiramento de eventos e lugares que foram
sendo fechados e substituídos por outros - enfileiramento que seria, a
princípio, tudo o que eu poderia fazer aqui. Vejamos; o percurso mais ou
menos repetido em tantos depoimentos (sejam os dos livros ou os obtidos
por entrevista) é o seguinte: em São Paulo, tudo começa no clube Madame
Satã, passando pelo Nation, pelo Massivo, pelo Sra. Krawitz e pelo Hell’s;
depois relata-se o fenômeno das raves, que teria transportado a música
eletrônica para fora do underground e iniciado seu processo de
“devoramento” pelo mainstream; no Rio, em geral se menciona a boate
Papagaio e o Crepúsculo de Cubatão (estas duas mencionadas e tendo sido
freqüentadas apenas pelos que hoje têm acima de 40 anos), a Kitschnett, a
Dr. Smith, a Basement e, quanto às festas itinerantes, a ValDemente
(depois tornada X-Demente, esta acontecendo até hoje) é a mais lembrada.
Não me sinto autorizada a fazer mais do que selecionar, como fiz
mais acima, alguns trechos de depoimentos e textos, pois que trabalhar
com as diversas “versões do mito” (ou com as que eu arrebanhei, que
obviamente não foram todas) é quase como caminhar em campo minado e
“pedir” para cometer alguma gafe, notadamente porque eu mesma não vivi
essas fases pregressas, e não tenho memórias pessoais dos lugares
citados. Ademais, há de se insistir que, como eu, muitas e muitas das
pessoas que vivem a cena não carregam anos e anos de engajamento nos
sons eletrônicos, e ao contar uma “história da cena” estaríamos a deixar de
193
87
No trecho selecionado, não inclui o acompanhamento que Palomino faz da história da
ValDemente, a primeira festa itinerante carioca, que começou com uma dupla de amigos e
194
distinção de quem fala o quê, pois que não é preciso identificar ninguém
para isso) em itálico inseridos ao longo do percurso:
Ponha a culpa na praia. Só pode ser. Graças ao sol e à estonteante natureza da
88
cidade, a cena carioca não é - nem nunca foi - lá essas coisas. Claro: a Papagaio, o
Crepúsculo de Cubatão e a Hippopotamus deixaram marcas - quase tatuagens - em nossas
89
memórias de vida noturna. E a cena gay é a cena gay; o Rio sempre foi bom nisso. (…)
como uma festa “caseira”, ocupou casarões e fábricas desativadas, aportou à Fundição
Progresso, viu desfazer-se a parceria dando lugar à VAL (já extinta) e à X-Demente como
festas separadas, chegou a acontecer em outros estados do Brasil e inspirou o surgimento
de uma série de outras festas nos mesmos moldes (como as já extintas JLC, Mona, Balaco e
Calvin, e a ainda periodicamente realizada B.I.T.C.H. etc). Atualmente, a X-Demente
continua acontecendo, mas durante sua trajetória tornou-se explicitamente devotada a um
público gay, notadamente aquele que ficou conhecido como “barbies” - homens fortes e
musculosos, que exibem o dorso sem camisa e freqüentam as festas para “pegação”. Essas
festas fazem parte da cena, não há dúvida, e praticamente todos os que conheci já foram
em pelo menos alguma, quando não são assíduos freqüentadores (aí entrando apenas gays
homens). Entretanto, é também muito pronunciada a fala que recusa esse tipo de diversão
devotado à “pegação”, ou a reserva apenas para temporadas de “absoluta estragação”
autorizada, como o carnaval. Uma série de outras festas de grande porte continua a “saga”
das festas itinerantes inaugurada pela ValDemente, da Loud (que já tem 7 anos de idade) à
Oops! (surgida no contexto pós-Dr.Smith, nas proximidades do que ficou conhecido como
“verão do techno”, na virada de 1996 para 1997), à mais recente Delírio (que existe há
dois)… os exemplos seriam inumeráveis. E estas seguem o tom que caracterizou as
primeiras ValDementes, que era o da mistura de todos os tipos de público. Ou, como diz
Palomino (1999: 192): “Uma explosão, um fenômeno capaz de juntar de Vera Fischer e
Miguel Falabella aos gays mais bonitos e à mais anônima super-bicha-pobre”, ao que hoje
se poderia acrescentar que também vem atraindo até mesmo os “famigerados” mauricinhos
e playboys.
88
Esta fala que diz o Rio como lugar cujo forte é o dia e o solar, toda uma cultura praiana
erigida em torno das “belezas naturais” da cidade (em particular da orla marítima)
contrasta com uma outra, também bastante forte: a do Rio de Janeiro boêmio e noturno.
Das ruas da cidade como cenografia moderna temos, de partida, os envolventes
relatos que nos chegam pelas crônicas de João do Rio (1997), dando conta do fervilhar
contagioso de diferenças característico de uma “cosmópolis” - fervilhar que motiva a
perseguição do flâneur, este que tem “o vírus da observação ligado ao da vadiagem” (:50).
E por outra, a “gente de bem” acompanha “da janela” convertida em “moldura do novo e
despótico regime visual”, na composição de uma cultura janeleira caracteristicamente
carioca (Antello, 1997: 11). Capital urbanizada no espelho da Paris da Belle-Époque - tour-
de-force de nosso “Haussman tropical” (Cf. Benchimol, 1990), o prefeito Pereira Passos, de
braços dados às medidas médico-sanitaristas comandadas por Oswaldo Cruz - o Rio de
Janeiro, alma da cidade, descortina-se contudo na flagrante dissonância da “musa moderna
européia” com a deambulação heteróclita das populações, cheiros e cores da “musa-povo”
(Antello, op.cit.: 22). “A alma das ruas só é inteiramente sensível a horas tardias”, diz a
crônica de João do Rio (op.cit.: 25). Nestas horas, pontilhado em movimento, desenhavam-
se entrecruzados mapas morais sobre uma superfície citadina quadriculada pelos esforços
de modernização. Movimento devorador que fazia aparecer a rua como espaço de
negociação sempre aberto: “a rua continua, matando substantivos, transformando a
significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão
que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros” (op.cit.: 48). Perambulam os
desocupados, os vagabundos, os tipos suspeitos, as prostitutas, os fumadores de ópio, os
“frescos” e os “fanchonos” (Cf. Green, 2000). Na imagem de Ítalo Calvino (2000: 112), que
aqui vem a calhar: “o espaço é formado por pontos visíveis e pontos sonoros que se
misturam a toda hora e nunca conseguem coincidir direito, e é somente à noite que os sons
encontram seus lugares na escuridão, medem suas distâncias, o silêncio que carregam ao
redor de si descreve o espaço, a lousa da escuridão está marcada por pontos e tracejados
sonoros…”.
89
Green (op.cit.: 33) relata a existência do que chama de “subcultura homossexual” em
vigência já no Rio de Janeiro da virada do século XX, cujo florescimento e propagação
195
O Studio 54 à carioca, por exemplo, era a Papagaio, tempo Disco do midas noturno
Ricardo Amaral. (…) Atores como Luiz Fernando Guimarães, Lauro Corona e Diogo Vilela
eram assíduos e eu mesma tive minha primeira experiência clubber na Papa, onde entrei
uma noite, depois de ter ido ao Roxy Roller, a pista de patinação ao lado. Vi as portas tipo
saloon na entrada, o estrobo e o enorme globo de espelhos, sem falar na incrível energia
sexual do lugar.
Eu acho que 78 foi meu ano da descoberta da pista mesmo, como data. Eu não
morava no Rio ainda, eu vinha passar as férias. Então, como matiné, tinha duas opções: o
Papagaio, ali na Lagoa, naquele complexo Ricardo Amaral, e o New York City, em Ipanema.
Mas no New York City tinha essa idéia da pista pequena, pista central, mezanino para as
pessoas ficarem em volta, apreciando a pista. E o Papagaio não, era aquela pista enorme
no meio com arquibancadas em volta; era “a” boate bacana na época disco. Eu ia à matiné
de domingo, de quatro as nove, uma coisa assim. Eu devia ter uns treze, catorze anos.
Tinha toda aquela euforia disco mesmo. Essa coisa de Embalos de Sábado à Noite, a novela
era Dancing Days, era uma coisa da moda.
As pessoas dançavam separadas, não era mais aquela coisa de dançar colado, mas
tinha que ser frente a frente com uma garota. Nessa época ninguém dançava sozinho, você
tinha que chamar outra garota pra dançar. Não se dançava homem com homem,
principalmente na matiné. Chegava lá, você ficava em volta, paquerando mesmo, e aí
escolhia a menina e disparava mesmo: “você quer dançar comigo?” E era aquela cena, se
você levava um não… Muitas vezes, você via que era uma coisa totalmente dispersa, era
uma coisa que a gente fazia porque era o que se fazia, mas você estava era de olho na
pista. Tinha que ter a companhia, mas você estava dançando com uma pessoa e estava
ligado na pista.
Mas não tinha nada, não passava por aí. Você até via umas pessoas mais pintosas,
mas ninguém estava ali para se expor. Todo mundo tava ali mais produzido, tinha um
visual. Os meninos, era uma coisa muito contida. Os que se mostravam mais eram mais
vistosos mesmo. Foi aí que começou o homem a usar calça de malha, a usar os leggings.
Mas era uma coisa extravagantérrima. Tinha muito essa coisa esportiva, essa coisa de
malha com listra do lado… as listras vieram com a Adidas.
Quando eu vim morar no Rio já era 80. Então as boates já não eram o grande
barato. Estava uma época roller. Que também era disco, mas era roller. Tinha o Roxy
Roller, tinha as noites de segunda-feira no Canecão, que eram as noites mais concorridas, o
Canecão inteiro uma pista, e eram as pessoas mais legais. Todo mundo ia de patins, tinha
uma bolsa para levar os patins, e tinha essa coisa da produção, as sainhas curtinhas com a
calça de lycra, muito shortinho, os rapazes de bermuda. Era muito Michael Jackson, Donna
Summer, essas coisas.
Os primeiros Djs do Cubatão eram o Dudu Caneloti e o Luis Claudio, o Luis Bolinha.
O Luis tocava quinta e sábado e o Dudu tocava quarta e sexta; eram os dois alternando.
Durante um ano, eram eles os residentes, direto. Depois que o Dudu saiu, aí que começou
a ter toda essa renovação de djs lá. O Paulo Futura, o Maurício Valadares… Tinham uns djs
convidados, com certeza tinham, mas não era essa coisa, eles não eram essas estrelas que
são hoje em dia. Eles eram conhecidos, mas não eram esses pop stars. E abria de quarta a
sábado, não existia essa coisa de sair segunda-feira, todo dia, que nem hoje. A coisa dos
djs ainda era mais apagada, porque a banda de rock ainda dominava a cena, nessa época.
Até porque, os djs tocavam a música das bandas; eles eram só “tocadores”.
Eu acho que o Cubatão trouxe essa transformação, que era você poder dançar
sozinho na pista, só com a sua sombra. Era aquela coisa dark mesmo, você está ali com
você mesmo, sozinho na pista. Foi completamente um outro momento. Isso já foi em 84,
85. Essa foi uma grande virada, essa incorporação da possibilidade de se dançar sozinho…
O Tristan que era o dono, mas antes ele teve um bar em Botafogo, o Cochren. Ele
era sócio desse bar com o Cockney, que era um inglês que tinha casado com a Ursula, que
era brasileira. Isso deve ter sido em 83, deve ter durado até 86, porque eu conheci a X. um
197
pouco depois dessa época, eu não estava casado ainda. O Cochren - isso é um dialeto
inglês, um dialeto do porto, aquela língua que eles falam de baixo calão mesmo - era um
bar, era uma hamburgueria, na verdade. Tinha uma turma que ia muito; eu não ia muito
porque eu deixei de beber nessa época, então eu achava chato porque não bebia. Eu
adorava comer hambúrguer lá, mas não ia para aquela coisa que muita gente ia, de fazer
ponto no balcão, paquerando. Ia todo mundo, foi um lugar que abriu um leque, foi o
primeiro lugar moderno da cidade, com esse espírito mais anos 80, muito misturado. Não
era só gay, iam todos os “artistas”.
Com a coisa do Cubatão veio essa coisa de cena mesmo. Foi um fenômeno.
Primeiro, porque tinha uma door que selecionava as pessoas pra entrar, essa figura não
existia antes. Acho que foi uma coisa importada mesmo, americana, ou sei lá. Nos Estados
Unidos todos os clubes já eram seletivos, mesmo desde a época disco. Era assim. Tinha
aquela turminha que era realmente de freqüentadores. O resto que era não era, era
selecionado, tinha o constrangimento na porta, de ser barrado. A Titina foi a primeira door,
ela e o Ricardo. Sabe quem é a Titina? Hoje em dia ela é a chef daquele restaurante ali em
Botafogo, o Madame Vidal.
Precisava estar montado. A montação da época era um look gótico: casacão tipo
sobretudo, sapatos pontudos, cordões, anéis, maquiagem ou roupas de brechó. Usar óculos
tipo vovó era o hype. Para as mulheres, os cabelos eram Chanel ou como os da cantora
Siouxsie. Para os homens, nucas raspadas, a la Ian McCulloch, do Echo and the Bunnymen
(ou outro ídolo do momento), calças justas, sapatos-plataforma. A mídia descobriu a casa e
a transformou em reduto dark.
Muita gente ficava revoltada ao ser barrada. As pessoas tinham que se montar. A
questão era ou você ia todo de preto, para não correr risco, ou ia todo montado. No
Cubatão surgiu essa coisa da androgenia, dos homens usarem saia até o joelho, lá
embaixo. Montadérrimo, mas super elegante. O grande nome dessa época, de estilismo,
eram Os Liquidificadores, que eram a Lena e o… esqueci o nome dele, o marido dela. Hoje
ela tá em Paris, super bem. Mas ela revolucionou a moda, toda a estética. Ela pegava esses
tubos de malha - sempre mais para mulher do que para homem, para homem era mais
camiseta mesmo - e cortava os braços, pintava todo, colocava umas espumas, fazia umas
armações, modificava e fazia uma coisa meio futurista, uma coisa totalmente E.T. Dois
198
amigos meus [cita uma moça e um rapaz que também conheci na cena, ela hoje “estrela”
de Live P.A.s; ele estilista e dj] eram modelos exclusivos, estavam sempre montados, um
luxo.
No Cubatão, Tristan era sócio do cinqüentão inglês Ronald Biggs, o famoso ladrão
do cinematográfico Assalto ao Trem Pagador, que em 1965 fugiu para o Brasil. Alguns
dizem que, depois do fim da Kitschnett, Tristan teria saído do país, após problemas
financeiros. Ao que consta, está sumido até hoje.
A Kitschnett funcionava no mesmo lugar do Cubatão (…). O local era a garagem de
um prédio comercial na rua Barata Ribeiro, entre a Santa Clara e a Figueiredo de
Magalhães.
O lugar era pequeno (a lotação era de 400 pessoas), com teto baixo e os canos do
edifício à mostra, coloridos após a reforma feita na passagem da Cubatão para Kitsch.
Claudio Braz assinou o novo projeto, dentro de uma estética anos 50. (…) Uma cama de
vinil vermelho no meio da pista (onde as pessoas ficavam se esfregando e, dizem,
chegaram a transar) e um palquinho completavam a atmosfera. Nesse palco
ocasionalmente aconteciam algumas peças teatrais antes de o clube abrir. É que o staff da
Kitsch reunia muita gente de teatro e foi de lá que saíram nomes como Márcia Cabrita e
Luiz Salem, atualmente no casting da Rede Globo.
A primeira boate das chamadas “alternativas” que eu conheci foi a Dr. Smith. É
engraçado, porque eu gostei bastante de lá, mas não me chamou taaanta atenção assim.
Não sei por quê… Mas aí, um tempo depois, no dia do aniversário de um amigo, eu fui pra
Kitschnett. E aí sim, quando eu entrei naquele lugar, eu me apeguei realmente à idéia de
um “mundo alternativo”, em termos de música e de estilo. Eu tinha 17 anos, então isso foi
em 92.
A Kitschnett foi o primeiro contato do Rio com os fundamentos da cultura club, onde
a cidade conheceu também outras formas de vida clubber: o lendário Dj paulista
Marquinhos MS tocou lá e o grupo de dance paulistano Que Fim Levou o Robin? de Mauro
Borges e Bebete Indarte também. (…)
A Basement abriu em 93, alguns meses depois da Kitschnett fechar. Era bem a
época do surgimento do movimento grunge. A Basement acolheu os djs das festas das
sextas-feiras da Kitschnett, o Edinho e o Wilson Power (se não me engano ele não era
Power nesse início não). Eles tocavam o som mais alternativo possível, gótico, rock inglês
dos 80, um pouco de eletrônico. Com a chegada do grunge, eles “se entregaram” um pouco
- o Wilson beeem mais - e a Basement era o refúgio da galera gótico-alternativa-pré-indie-
largada-que-até-ia-lá-na-Dr.Smith-aos-sábados-mas-lá-não-era-a-Kitschnett.
A Basement acabou sendo invadida pelos adolescentes - aliás, eu era uma dessas
adolescentes. Acho que é por isso que a galera mais velha não ia tanto, aquilo era o
porãozinho de um monte de pirralhos que “estavam jurando”… Mas também foi invadida
199
pelos metal-grunges, e por muito tempo conviveram lá uma galera de todas as tribos, em
paz, porque sempre foi assim no Rio, eu acho. Foi nessa época que eu conheci a X. [uma
amiga dela até hoje]. Ela era da galera metal-grunge, mas eles eram gente boa [risos].
Lá tinha a festa Rock Power, sempre às sextas e sempre mega lotada. Aos sábados
eram várias festas. Às vezes variavam a cada sábado, às vezes ficava só uma festa por
dois, três meses… Tinha a Interzona, a festa mais gótica do Rio; a Absorto, uma festa
clubber… várias outras. Aos domingos rolava matiné! Mas era o Festival Overdrive de
bandinhas do Rio, de todos os piores e melhores tipos. Começava umas seis horas e ia até
10, acho.
A Basement conquistou seu espaço na Galeria Alaska por uns três anos ou mais. Foi
palco de muitas bebedeiras e doideiras das tribos - odeio essa palavra, mas… -
underground do Rio. Góticos, grunges, rockabillies, indies, clubbers, punks e alternativos
em geral… Além da certeza de bons amigos e de boa música, a gente tinha a “segurança”
da 13a. DP, logo em frente à galeria, e a agradável e engraçada companhia dos Leopardos
logo ali em frente da porta mesmo… E tinha a praia de Copabacana, que sempre acolhia a
galera com auroras maravilhosas no final de cada noitada…
Claro que eu ia à Basement, mas eu não gostava muito. Achava o povo muito
pirralho. Eu era pirralha também, mas era pirralha metida. Achava o lugar feio, as pessoas
também, um pouco. Ter ido antes na Smith fez isso comigo; fiquei mal acostumada! (risos).
Mas eu tinha muito mais amigos que iam na Basement, e eles achavam a Dr. meio
estranha, muito cheia de gente metida. Era assim mesmo que funcionava. O som era muito
parecido nas duas, nas noites de rock. Inclusive, o dj era o mesmo. Mas mesmo assim
rolava essa diferença. Outra diferença é que a Basement era mais barata, a entrada e a
bebida também. Depois que uns amigos que faziam o College Radio - que era um programa
de música alternativa da Fluminense FM - foram tocar lá, eu até fui mais vezes. Mas tinha
essa coisa: às vezes você escorregava num vômito, porque pirralho não sabe beber. O
lugar era meio sujo. Era só um quadrado embaixo de uma galeria trash em Copa. Mas o
som era bom.
O Papagaio virou uma boate gay e nos anos 80 ninguém mais ia, só gay mesmo; a
coisa disco tinha acabado. Até que surgiu o Club New Wave, mas… isso deve ter sido em 82
200
ou 83, com o José Roberto Mahr. O Mahr era um ícone, foi ele quem tocou o primeiro New
Order. Porque não tinha importação, era só tinha vinil. Ele que trouxe tudo, ele era
comissário de bordo, e ele que fez essa apresentação toda das bandas novas. Ele tinha um
programa de rádio, era o Papa Wave, e aí eles incorporaram toda essa coisa decadente do
Papagaio, e o público era completamente outro no sábado à noite, com o new wave. Era
uma febre, porque tinha o programa sábado à tarde e à noite emendava com a festa. Aí
tinha uns visuais mais arrojados mesmo, aquela coisa punk, new wave, começou a
aparecer. Maquiagem, cabelos, roupas rasgadas, aquela coisa toda de calça rasgada. Para
homens e mulheres. Meia arrastão rasgadas, esse visual meio trash, foi ali que começou.
Porque no Roller era uma coisa arrumadinho, você estava com tudo combinando, tudo
bonitinho. Aí começa a ter essa linha-estragação mesmo. Maquiagem borrada. Mas era uma
coisa mais colorida; preto total veio mais no Cubatão.
Nessa época eu virei punk. Mas era uma coisa produzida, hoje dá pra dizer. Eu
conheci uma galera que era punk mesmo, o Satanésio, o Tatu, o Omar [eu digo que lembro
deles do livro da Janice Caiafa, e ele completa:]. Eu só brincava disso. Mas chegava em
casa e tinha danoninho na geladeira; os caras sacolejam no trem. Não era punk mesmo. Os
punks mesmo não iam pra clube, iam pra Lapa, andavam pelo centro. Não tinham grana,
era uma coisa subúrbio, na veia. Eu era hippie, tinha aquele cabelão… até que surgiu uma
coisa que parecia ser ainda mais radical: o punk. Aí eu virei punk. “Virei” quer dizer que eu
cortei o cabelão e fiz um moicano.
Eu não tive moicano; era uma coisa muito radical ter um moicano. Então tinha
aquela coisa do topete, com a lateral raspada, uma mistura de new wave com rockabilly,
uma influência dos anos 50... Mas outro dia eu tava falando sobre isso: nessa época, era
melhor você ser tachado como punk do que ser veado. Tipo assim, já que você queria se
diferenciar, nessa época era foda. Porque realmente, ser veado… Apesar que os coiós que
eu levei foram muito mais por um visual extravagante do que por estar feminino. Foi por
estar chocando. E tinha muita história de levar porrada na rua, e eram até os punks que
davam porrada nos gays que tentavam usar esse visual… Porque eles tinham uma coisa de
marcar que eram heteros, com certeza, mas também muitos respeitavam quando você
tinha um visual bem arrojado. Quem não respeitava e batia mesmo eram os skinheads…
mas aqui não chegou a ter um movimento forte de skinheads… Bom, aqui no Rio de Janeiro
não chegou a ter nada.
(…) Fora isso, o que tinha de lugar para se ir? A gente tinha as opções que eram
Cubatão… aí tinha o Metrópolis, que era ali em São Conrado, onde hoje é a DLR, que tinha
um clima todo high-tech. E tinha o Mistura Fina que fazia uns shows. Porque tinha muito
essa coisa da cena de rock também. Nesse início dos anos 80 tinha uma coisa divertida…
por exemplo, no Circo Voador rolava uns shows também, era outra cena completamente
diferente. O Circo Voador, quando foi para a Lapa, era aquela coisa punk rock mesmo. E o
Morro da Urca, eram as Noites Cariocas… também era rock, mas não era punk, era mais
201
new wave. Eram os grupos mesmo, tipo Blitz… até Legião Urbana, Capital Inicial. Porque o
Rio de Janeiro dominava com essa coisa mais engraçada, tipo Gang 90, Blitz, João Penca e
seus Miquinhos Amestrados… E no rock as bandas fortes eram mesmo de Brasília. No verão
de 85, no Rock in Rio, essas bandas todas já estavam consagradas.
Aí depois abriu, onde era o Roxy Roller… porque a onda roller caiu e sobrou aquele
espaço enorme, aí abriu a primeira “danceteria”, como se chamava. Era o Mamão com
Açúcar, em 84; foi um marco do movimento new wave, mas durou, na verdade, como casa,
só duas semanas - depois de duas semanas ninguém mais foi, virou playboyzada. O Mamão
com Açúcar veio com uma proposta muito legal, porque tinha show, tinha dj, tinha
performance, tinha cabeleireiro, tinha ducha pra você tomar banho… era uma coisa enorme,
as pessoas ficavam… tomavam ducha, voltavam molhadas… tinham vitrines que neguinho
ficava cortando cabelo. E veio toda essa onda dos visuais mais loucos. Era uma experiência,
mas foi bom só assim que abriu mesmo, depois mudou completamente o público. E ainda
teve aquela coisa da menina que morreu, e ela tinha saído da boate com o cara… então
ficou aquela coisa da boate ser tachada de playboy. Mas engraçado, eu tô centralizando
tudo em 84, não sei dizer exatamente quando foi cada coisa. Mas isso aí não era
underground…
De underground, nessa época, era aquele… o Sótão, na Galeria Alaska. O Sótão era
o lugar gay, gay mesmo, mas tinha essa cena bem underground, os junkies mesmo. Era
aonde você ia pra comprar pó. Era um lugar pesado, era um fervor. Nos outros lugares
também rolava droga, muita cocaína. Era “a” droga que mais se consumia. Até tinha essa
coisa do ácido, mas o ácido nunca foi uma coisa muito da noite. E a maconha não era
liberada, nunca foi, mas também não era reprimida, era uma coisa mais liberada nos anos
80. Por exemplo, tinham uns shows que rolavam na Catacumba, que era assim: final de
tarde, todo mundo saía da praia e ia pra lá, e era um fumódromo. E eu acho que se fumava
na praia também; no início dos anos 80 a praia era o Pepino. Mas na cena da noite, com
certeza, a cocaína era o forte.
Ah! Tinha também, nos anos 80, o Mariuzinn, que se chamava Ilha dos Mortos
nessa época! Era uma coisa dark, era uma coisa muuuuito trash. A Ilha dos Mortos acabou
em 85, 86, e aí virou Mariuzinn… E o Cochren e o Cubatão também vieram inovar com essa
coisa dos drinks, dos shots: o kamicase, os drinkezinhos mais elaborados… eu acabei
voltando a beber, realmente. E o Cubatão, que durou até 89, 90, com várias
transformações. Em 90 o Cubatão ficou fechado, e depois reabriu como Kitschnett. Eu acho
que ele deve ter reaberto em 91 como Kitschnett. Mas durou muito pouco tempo. Ficava na
Barata Ribeiro, hoje em dia é uma farmácia ali. Aí logo depois do Kitschnett, ou um tempo
depois, sei lá, abriu a Dr. Smith. Aí já era anos 90 completamente. Mas durou super pouco,
uns três anos, nem sei se tanto. Acho que em 94 já não tinha mais não.
Já a Dr. Smith, aqui, já nasceu com uma coisa fechadinha. Já nasceu com essa
coisa de ter carteirinha, pra facilitar e não pegar fila. Mas não era pra qualquer um. Eu
ganhei a carteira logo que abriu, porque eu tinha um amigo que trabalhava lá. Na Cubatão
eu cheguei a ter também, mas foram várias fases. Mas era só pra quem era daquele
circuito. Porque, na verdade, a Dr. Smith era dos Buarque de Holanda, os três irmãos.
Bom, de cara a coisa era um pouco diferente. Nessa época eu freqüentava o Circo
Voador e umas poucas festas de amigos, que eram lugares todos com uma forte presença
adolescente. E lá não. Na Dr. rolava uma galera mais velha, mais arrumada, todo mundo de
preto. Vi aquelas pessoas passando, muito brancas com aquelas roupas pretas - lembro de
achar lindo e ficar com aquela coisa de “quero ser assim quando crescer”. Tudo muito blasé,
mas muito intrigante. É claro que a gente se sentia de fora, mas queria fazer parte. Ai, que
vergonha dessa fase… O lugar era lindo. Quer dizer, não sei se era, mas pelo menos no
contexto era. Cheio de gente desconhecida. Um outro mundo mesmo. Rock alto, bar na
porta, o povo do bar era lindo - é só perguntar pra quem ia lá sobre o Rodrigo do bar… ui.
Um cara de macacão de vinil, meio The Cramps, make-ups quase góticas Siouxie and The
Banshees, cabelos de cortes assimétricos - tudo isso em 1992! Era “alto nível”
underground, se é que isso existe.
a mesma cara”. “O começo foi careta; havia uma chata política de porta que barrava as
pessoas; caretona mesmo”, lembra André Dumas, que se tornaria light-jóquei da casa a
partir de 1992/1993.
Saído do Crepúsculo de Cubatão (onde chegou a tocar acid house) e das sextas-
feiras da Kitschnett (chamadas Dance Sensation), o jovem diretor de arte Felipe Venancio
era o residente das quartas e quintas. (…) O Dj Edinho assumiu tocando rock na noite de
Electric Boogie, construindo seu público e seu nome. (…)
A primeira vez que eu fui à Dr. eu tinha mais ou menos uns catorze ou quinze anos.
A gente tinha um grupo de amigos que gostava de rock, e eles falavam direto da noite de
sexta-feira lá. O dj era o Edinho, um cara que tinha tocado no Crepúsculo e na Kitschnett, e
que tá aí até hoje, tocando na Matriz, na Fosfobox, na Loud, em mil lugares. Então lá fomos
nós, quatro adolescentes, ver qual era a da Dr. Chegamos e fomos direto por boteco do
lado, o Três Netinhos. Porque, você sabe, todo bom lugar de rock tem que ter um boteco do
lado. É engraçado pensar nisso, porque só agora me dei conta de que lugares de música
eletrônica não seguem a mesma “regra” - tem outras coisas pra tomar, e aí a galera vai
preferir ficar bebendo água depois [refere-se ao ecstasy].
Como todo estrangeiro que não sabe o que fazer, eu entrei e fui direto pro
banheiro, pra dar um tempo e entender o que tava acontecendo. Ai foi outra surpresa,
porque eu entrei na porta e era uma grande sala. Era o que hoje em dia se poderia chamar
de lounge ou pista dois, mas que na época era só um banheiro mesmo. A gente entrava e
dava num espaço amplo, de azulejo branco, com uma pia imensa e com um som rolando,
tipo Smiths, Lloyd Cole, Elvis Costello… À direita ficavam as cabines. Era um banheiro misto.
Só isso já diz tudo sobre o lugar, resume tudo. Mas eu só fui entender isso indo pra pista, e
só quando passei a ir muitos dias da semana lá.
A pista era assim: duas portas de aço com escotilhas isolavam o som pro resto da
boate. Um estrobo forte. Tocava coisas tipo Soft Ceel, Joy Division, Pixies ou qualquer
novidade: porque lá a gente escutava tudo antes, e depois ficava louco atrás da música. Na
pista, tinha de tudo um pouco: góticos, punks, roqueiros, uns poucos adolescentes, um
povo muito estranho, indefinido, andrógino sentados num sofá de vinil preto. No canto
204
direito, no alto, tinha uma jaula, que depois a gente chamava de gaiola da Smith. Nesse
lugar, tinha escadinha e você entrava e dançava lá dentro. Tipo solte a sua fera. Claro que
eu nunca subi!
A Dr. Smith não tinha nada a ver com a Cubatão. Eu acho que o bom do Cubatão é
que ele era despretensioso, não queria ser nada. Não tinha atrativos visuais nele. Já a Dr.
Smith, tinha aquela coisa. Você entrava, tinha aquele salão, e aí a grande inovação: os
banheiros eram uma pista de dança. Na verdade, eu acho que ela não foi criada com essa
intenção, mas se tornou uma segunda pista. Apesar de que eu já soube de uma história de
que o primeiro projeto para a Dr. Smith era uma casa que tinha uma piscina, e que a pista
ia ser dentro da piscina. A Dr. Smith tinha todo um visual, foi tudo planejado. Os anos 80 já
tinham sido a época em que nasce toda a coisa da decoração na boate: o Papagaio já tinha
um visual, tinha um chãozinho quadriculado. Mas nessa época, em Nova Iorque, foi quando
nasceu a Paladium, que era uma mega boate feita por um arquiteto japonês super famoso,
que tinha toda uma estética pós-moderna. Ele era um dos grandes mitos pós-modernos,
que trabalhava a teatralidade na decoração. Eu fui na Paladium em 85, 86. Era outra coisa,
que não tinha aqui, vinha dessa cultura americana de tudo ser imenso. Nessa época, lá,
tinha também o Area, o Limelight, que era dentro de uma igreja, tinha uma coisa gótica. O
X. [um amigo] é que pegou essa coisa toda em Nova Iorque, ele viu o show da Madonna
quando ela tava começando - aquele início dos anos 80, fervido.
Mas a Dr. Smith, o que era? Era um grande galpão. E eles fizeram um banheiro que
fazia uma meia-lua e dividia o ambiente em dois. Em três, na verdade. Porque tinha a sala
na frente com o bar, e tinha a coisa dos banheiros, e um corredor pra chegar na pista. A
pista ficava lá atrás. E era tudo de chapa ondulada, tudo forrado, metalizado. Mas mesmo
assim, não chegou a ser uma coisa clubber. A coisa clubber foi uma coisa mais de São
Paulo, em 93, com o Hell’s. Porque o Madame Satã era punk, era outra coisa; era o
Madame Satã em São Paulo e o Cubatão aqui no Rio. Era uma outra cena, mesmo. Não que
o Cubatão fosse punk; era um punk produzido, mais dark. Em São Paulo é que ficava tudo
dividido, tinha uma coisa mais “podrona”. E tinham as bandas de punk pesado mesmo,
Ratos de Porão, Mercenários, e também outras tipo Ultraje a Rigor, o Ira. Mas também não
era, porque é o que eu falei, os punks mesmo não iam pra clube, eles não tinham grana pra
ir. Os skinheads, os moicanos, não iam. Só iam aqueles que se montavam pra fazer aquela
cena. E na Smith era que nem hoje em dia. Quer dizer, quem tinha a cartela numerada só
pagava o que consumia. A cartela já existia desde o Cubatão, foi lá que surgiu.
O momento de fato coincidiu com a abertura das primeiras lojas de Djs, como a Dj
Megastore e depois a World Music, em Copacabana. Até então, a cultura da compra de
discos (fundamental para o funcionamento da engrenagem dos clubes) baseava-se no
trabalho dos comissários de bordo.
Nesse segundo ano da Smith os proprietários viram que precisavam de “uma coisa
mais aberta”. Começava assim a Até que Enfim é Sexta-Feira, residência semanal de Felipe
205
Venancio que duraria até 1996, a mais sólida da cena carioca até hoje, agora na pista
principal. O nome foi inspirado no filme homônimo com trilha sonora de Donna Summer.
“O som do Felipe era o que todo mundo queria; divertido, pra cima. O público
aceitou de cara, a mídia também. Nem mala direta precisamos fazer”, lembra Hélio
Romero, o Helinho, habitué da casa contratado para promoter dessa noite, numa tentativa
dos donos de investir mais em “pessoas, convidados e decoração”. “O conceito era baseado
na diversão mesmo”, lembra Helinho, que inventou as Fashion Fridays, atraindo um público
de moda. “Havia uns bonecos que colocávamos nas posições mais malucas, eles fizeram
tanta coisa…” Eram quatro festas por mês; ao todo foram 150. “Inventamos uns eventos
sadomasoquistas, em que colocávamos os bonecos vestidos de leather; já nas Fashion
Fridays eles tinham outra cara. Quando convidamos uma dominatrix, o clube recebeu mais
de 1400 pessoas, ninguém podia se mexer lá dentro!”
Achava aquele o melhor lugar do Rio de Janeiro. Eu tenho até hoje as filipetas
guardadas, tipo my precious. Nos sábados as pessoas eram muuuito coloridas,
extravagantes, era muito eletrônico e tinha uma quantidade louca de gays. No começo eu
não gostei, eu era muito rock…
A música acabou por atrair um público gay. Rolou um “o que fazer com isso?” entre
os sócios. “Não queríamos uma noite gay, no entanto eu estava preparado. Era uma
mistura quase perfeita”, admite Betinho. “Metade do público que aparecia lá era gay, que
adorava o lugar e tudo o mais. Além disso, foi musicalmente muito educativo para todo
mundo. Aprendemos a lidar com isso; era questão de aceitar e se adaptar. E o que
aconteceu foi que, mesmo que a Smith nunca tenha levado uma noite gay, era um lugar
cheio de gays”.
Nos anos 90, essa coisa de se vestir de preto se transformou. Não era mais por
montação, virou a coisa do “pretinho básico”. Não era mais a montação da cena dark, em
que o preto vinha de um outro jeito: era esquisito andar todo de preto, era uma montação.
Nos anos 90, já vira instituído. Já tinha uma outra conotação, de minimalismo. Nos anos 90,
as roupas deixam de ser tão extravagantes; elas estão mais voltadas a um corte bem
feito… As turmas ficavam assim muito mais indistintas.
Para Helinho, a Smith tirou a questão gay dos guetos. “Todo mundo ia: careta, gay,
curioso, bofe, mulherzinha; todo mundo queria estar na Smith! E rolava tudo numa boa, em
paz; o astral era sempre alto”. E mesmo as drags queens de lá não tinham o histórico das
drag queens de São Paulo, mas sim um registro da cultura dos travestis de rua.
porque eles dois tavam começando a ficar na época… Bom, essa menina veio e me
perguntou: “que foi? Tá estranhando?” E me tascou um beijo. Estalinho. Claro que tinha
que ser na Dr.! Eu não disse não e dei logo outro.
Eu acho que a Dr. Smith acabou porque não tinha mais público mesmo. Foi uma
coisa que ficou decadente. Ninguém mais ia, só os freqüentadores mesmo, mas era meio
caído. Mas eu não entendo, porque tem gente que chora até hoje. Eu não sei, porque eu
nunca fui de freqüentar muito, e eu tive uma questão lá, que pegaram a minha carteira, e
aí eu também não voltei mais. Me confiscaram!
Em meio a boatos de que o clube fecharia de vez, entre o staff se sabia que isso era
certo de acontecer. “Eu quis terminar, senão no auge, lá em cima”, diz Betinho. A última
sexta-feira foi emocionante. Venancio tocou músicas que se tornaram clássicas em sua
noite e que ele já havia parado de tocar (…). No final, os clubbers emocionados, choravam e
arrancavam pedaços da espuma das pilastras. (…) Era 31 de maio de 1996. (…)
E aí tem um vácuo muito grande, a cena acaba. Depois da Dr. Smith acabou, não
tinha mais lugar para se dançar no Rio de Janeiro. Ficaram uns dois ou três anos sem ter
nada. Porque aí em 94 já é a retomada dessa cena, que volta com a ValDemente. Porque
as festas deles, da Val e do Fábio, é que trouxeram toda a cena da música de volta. Os djs
eram os mesmos da Smith, o Felipe Venancio… Quando acabaram os night clubs,
começaram as festas. E os djs que eram dos clubes fizeram várias noites assim, em festa. E
207
a coisa voltou, de você ter aquele entusiasmo pra sair, com a ValDemente. Porque até teve
umas tentativas, no início da música eletrônica mesmo, com o drum’n’bass, tinha uma
boatezinha ali em Botafogo que tentou… chamava Gueto. Ela foi uma dessas que começou
com a coisa eletrônica mesmo, que nem na Smith era tanto. O Marquinho Mesquita, o
Nepal, esses djs de drum’n’bass, em meados dos anos 90.
Depois que a Smith fechou… nossa! Foi horrível! Surgiram várias outras casas
substituindo, ou tentando substituir… até que deu certo, mas mudava toda hora. Tivemos a
Bang!, a 1910, a Casa da Matriz, quando era na Rua da Matriz mesmo, a Gueto… uma
outra, que era um inferninho ali de Copa, perto da Pussycat, que me fugiu o nome agora…
A Fun House, em Botafogo… A Bunker 94... A galera também começou a buscar
alternativas, lugares diferentes, começou a rolar mais festas independentes, eu acho. O que
vingou mesmo foi o pessoal da Matriz, da Loud! e de outras festas. E a Bunker, por um bom
tempo; hoje, pra ser sincera, eu nem sei o que rola por lá. Hoje a casa alternativa do Rio
mais conhecida continua sendo mesmo a Matriz, né? Muita coisa mudou no cenário da noite
no Rio depois do fechamento da Basement e da Smith, e eu acho que foi também pela
ênfase que o som eletrônico passou a ter logo naquele momento… Isso finalmente parou de
segmentar as tribos numa coisa mundo-alternativo-curtido-por-todos-no-mesmo-lugar… a
gente não tem mais a junção de punks, rockabillies, indies, góticos e grunges todos no
mesmo lugar, mas a questão é também não tem mais a idéia de um mundo à parte, de
alternativo, de underground, essas coisas - isso foi o que acabou. Na verdade, também não
tem mais alguém que seja punk, gótico, rockabillie - ou melhor, que seja “só” uma dessas
coisas. A questão é que hoje ninguém “é” uma coisa só, tipo “fulano é punk” ou “fulano é
gótico”. Os estilos combinam coisas vindas de vários estilos, e isso foi uma coisa que a
cultura do eletrônico trouxe, a cultura de misturar tudo. Ainda existe um pouco o mundo do
rock, do indie, e a única festa que ainda cultiva a idéia de juntar “tribos” é a Paradiso, que
rola na Casa da Matriz, que toca de tudo, mas é um “de tudo” puxado mais pro indie e pro
rock anos 90/00. De qualquer forma, o eletrônico não é nem nunca foi separado do rock,
então você consegue ouvir sets de electro e discopunk…
Fora isso, nos anos 90, o que tinha também era a Bunker. E também, lembrando,
tinha uma cena gay que sempre existiu, com a Le Boy, mas antes também com o Gaivota.
Eu é que não freqüentava, realmente. A cena, a pista, sempre foi associada a uma coisa
gay, mas nunca “foi” gay. Mas tinham lugares que eram só gays, e isso eu não curto. A
coisa mais ambígua era o resto da cena; é a cena. São lugares que tem muito gay, mas não
são lugares gays. É que nem hoje: a Freedom, na Barra, é uma boate gay. Não dá pra dizer
que não role cena lá, mas também não dá pra dizer exatamente que aquilo seja a cena.
Mas o Dama, por exemplo, não [não é um lugar gay]. Claro que para alguém “de fora”, as
pessoas podem dizer que é um lugar gay. A questão é que cada vez tem menos gente que
seja “de fora”… cada vez vai mais gente de tudo quanto é tipo; o troço sai no jornal!
Uma mudança grande que a gente sentiu também foi o Mercado Mundo Mix, quando
veio pro Rio de Janeiro. Isso foi em 94. Foi uma revolução, veio toda a coisa eletrônica
junto. Os djs, os visuais, a cena clubber. Antes dele não dá pra dizer que tivesse alguma
coisa eletrônica aqui. Eles trouxeram tudo isso que já tava forte em São Paulo, e a gente
não tinha mesmo. O Mercado surge do Festival de Cinema Mix Brasil. No começo era só
uma lojinha que o X. e Y. fizeram, e que vendia as coisas pro público do festival. Não existia
lá [em São Paulo] a Galeria Ouro Fino, nenhum centro desse tipo de moda. Então eles
vendiam, eles importavam. Das coisas mais loucas àquela febre que foi a combinação de
cueca Calvin Klein, calça Lévi’s 501 e camiseta branca. Essa estética bem anos 90. Agora a
gente já associa isso muito com roupa de mauricinho, ou então com roupa de barbie.
Porque eles se vestem assim até hoje: aí tiram a camiseta, botam atrás da calça, e é só.
Mas isso era na época da lojinha. Quando virou Mercado, explodiu; era muita informação.
Os óculos eram um escândalo, tinha stands de piercing, de tatuadores. Eu mesmo fiz os
quatro primeiros mercados vendendo móveis, essas cadeiras forradas de pelúcia. Tinha
também uns mega sapatos, umas roupas incríveis… porque tinha essa coisa de associar
tudo: moda, design, comportamento, tatuagem, música, cabelos... Era uma festa, com
música altíssima, ferveção.
Então o resumo, se você quiser um, é que São Paulo veio até nós, e aí começou de
fato a cena eletrônica no Rio. O que é muito engraçado, porque até os 80, São Paulo não
ditava moda nenhuma; quem comandava era o Rio. Imagina! A década de 70 inteira São
Paulo era um nada, o Rio é que era o umbigo do mundo, pelo menos do mundo brasileiro!
Aquela coisa Ipanema dourada… Depois, no final dos anos 80, tudo vai pra São Paulo. Antes
do Hell’s, porque teve também o Nation… O único segmento em que o Rio continua
dominando até hoje é o das artes plásticas, porque muito artista continua morando no Rio.
Mas a moda, o design, tudo se muda pra São Paulo nos anos 80. O que a gente teve de
movimento forte e com a cara do Rio, foi só a ValDemente nos anos 90, porque isso não
tinha em São Paulo. E era uma coisa de muitos gays, todos lindos, e muita exposição. A
coisa de tirar a camisa - até hoje isso ficou na noite do Rio, e é uma coisa carioca, porque
em São Paulo você não vê as bibas tirando camisa… Mas então, a ValDemente: eu não
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cheguei a ir na primeira. Quer dizer, eu fui na porta, com uma galera, mas aí disseram que
tava um forno lá dentro, que tava um inferno, e a gente desistiu de entrar. Foi o aniversário
da Val na casa do Fabinho [Fábio Demente], com o Felipe Venancio botando o som. Isso foi
em 93, a primeira ValDemente. Dizem que as paredes suavam, e neguinho não ia embora.
E aí era house. Era acid house.
É, porque… vamos voltar um pouco: no final dos anos 80, a coisa rock começa a
morrer, com o surgimento da acid house. E não tinha ecstasy ainda, era a coisa do ácido
mesmo. Por isso que é acid house. Eu me lembro, que eu cheguei em 88 em Londres e
fiquei frustrado. Porque as cenas que tinham essa coisa mais dark, ainda rolavam, já era
incorporado. Mas a cena noturna não tinha mais: foi o verão do ácido mesmo, foi aquela
coisa do Smiley. E o ecstasy só vem em meados dos anos 90. Quer dizer, eu acho que em
São Paulo até já tinha antes. Mas eu fui tomar ecstasy mais tarde, só em 97. Nas primeiras
ValDementes já tinha - eu é que não tomava - porque tinha a coisa da euforia. Mas
engraçado, porque o que eu lembro é que tinha ácido mesmo, nesse início. Eu já fui pra X-
Demente tomando ácido. Isso quando virou X, quando o Fabinho brigou com a Val e os dois
se separaram - acho que isso foi em 96, 97, não sei. Ela meio que sumiu, parece que foi
morar no Nordeste. Ele continuou, com a X-Demente.
do mesmo grupo, como as duas edições da festa Real (na extinta The Cube
e na Bunker, já em 2004) e, pouco antes, a única edição da festa Se Joga!
(no “tosco” inferninho Mariuzinn). As primeiras raves afastadas da cidade
foram realizadas como empreendimento da própria Bunker, e eram
chamadas BunkerRaves (quando da tentativa de realização da última
BunkerRave, em 2003, eu já fazia pesquisa e cheguei a pensar em ir, mas a
festa foi embargada pela prefeitura e não aconteceu). Alguns ressaltam que
o atualmente “careta” Caroline Café (no Jardim Botânico) abrigou, nas
tardes de domingo, as primeiras investidas de djs que hoje são
proeminentes, como Jonas Rocha, Gustavo MM, Gustavo Tatá etc.
Movimento semelhante seu deu no pequeno Les Artistes (na Gávea, já
fechado). Ressalta-se que o fim dos anos 90 e princípios dos anos 2000
assistem à consolidação de um movimento das pessoas que se reúnem
antes pela música do que pelas preferências sexuais ou pelo pertencimento
a alguma “tribo”. O que não exclui “os gays que vão pela pegação”.
Aparecem também o Galeria (inicialmente um bar/loja/galeria, depois
convertido em clube, e ainda em funcionamento) e o Restô (ambos em
Ipanema, o segundo um restaurante aberto quando a então dona do
Galeria, que depois será a dona do Dama de Ferro, sai do
empreendimento). O Restô marca com o house, o Dj Gustavo MM
comandando as noites de sexta-feira. Como era um restaurante, o espaço
não era lá muito compatível. O que teria levado ao surgimento do Dama em
2002, também em Ipanema, para o qual o público se teria transferido.
Todos com quem conversei ressaltam que, embora o Galeria fosse (e ainda
seja) uma casa com um perfil mais pronunciadamente gay, o Restô (que já
fechou) nunca o foi, e tampouco o seria o Dama. Do mesmo modo, o 00 (o
nome é por conta de ter inaugurado no ano 2000), na Gávea, tampouco
nasceu como clube, mas sim como um restaurante de cozinha
contemporânea, aos poucos “invadido” pelas festas e pelos djs, a ponto de
vir a reformular o seu “conceito”. Há ainda, tendo comemorado três anos
de existência recentemente, a Fosfobox, em Copacabana, uma espécie de
porão muito apertado e que faz arder os olhos dos que usam lentes de
contato, como eu, mesmo depois de ter passado por uma reforma que
ampliou um pouco o espaço e incorporou um bar no nível da rua.
A fase na qual passei a freqüentar a cena foi aquela na qual, ao
211
mesmo tempo em que se reabilitava o house (que durante anos, por conta
da X-Demente, ficou muito atrelado a um público exclusivamente gay), um
outro som se tornava hype: o electro/electroclash, intenso e “sujo”, com
referências fortes ao funk e todo uma aura de “decadência estilizada” na
composição das vestimentas. O que se acompanha hoje é um movimento
de misturas dos mais variados estilos, os djs preferindo não se fixar em
nenhum em particular e oferecendo sons cujas nomenclaturas se renovam
vertiginosamente, se fundem e se recombinam, tornando quase impossível
a tarefa de fixar diferenças entre os estilos.
Por fim, registre-se que várias casas abriram nos últimos meses,
estes em que, para mergulhar na escrita, parei quase completamente de
acompanhar in loco a vertiginosa produção de “novidades” com que a cena
se estende pela cidade. E, para além, o próprio movimento do fazer cena,
tal como tratado logo na abertura desta tese (ver Escritura Acrobática, item
1), aponta para a impossibilidade da pretensão de capturá-lo todo em um
elenco de lugares, pois que potencialmente qualquer parte pode ser feita (e
seguidamente o é) locação - supermercados, estações de trem, feiras de
moda ou de hortifrutis, museus, shopping centers, centros culturais,
residências etc (além de todos os espaços “virtuais” de encontro). Este
funcionamento do tipo “flash-mob” se sedimentou como característico, ao
que me parece, como uma espécie de agravamento do próprio
procedimento inaugurado na “ressaca” pós-Dr.Smith com as grandes festas
pagas, que adotaram a itinerância. De modo que falar apenas dos clubes e
das festas, hoje, é contemplar apenas uma parte do que pode atender pelo
nome de cena, e buscar (re)contar sua “história”, embora seja movimento
significativo e interessante, só o é na medida em que conservarmo-nos
atentos ao fato de que a cena não faz contorno.
*
Pensar em termos de “como” é, por princípio, conceder que a
contingência não se “explica”. Pode, contudo, ser observada em seus
esforços sempre locais de organizar-se em micro-coerências. Em uma
“época” que se faz pela convocação e pela validação simultânea de todas as
outras - o que Ortiz (1992) chama de reabilitação da tradição, mas não
enquanto tradição (com lastro e referências contextuais) e sim enquanto
estoque de formas - me parece que na busca do contemporâneo “como” da
212
90
Uma sensação que pode também ser experimentada a posteriori, quando uma série de
coisas que vive como singulares vem a condensar-se como registro característico de uma
época, tal como aparece no fragmento de Antonio Candido pinçado por Ítalo Moriconi
(1996: 7): “A certa altura da vida, vai ficando impossível dar balanço no passado sem cair
em autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos,
de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio
diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais que acabam desaparecendo
como indivíduos para se dissolverem nas características gerais de sua época. Então,
registrar o passado não é falar de si; é falar dos que participaram de uma certa ordem de
interesses e de visão de mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar”.
214
91
Não que nobres ou anjos possam ser ditos hippies - havia um ensaio de proximidade
apenas por parte dos anjos, e mesmo assim distanciado. Mas o hippismo é aí paisagem a
informar as condutas, é matéria subjetiva em circulação.
92
Não que os sujeitos não “saibam” dos “riscos” que correm, no que tange ao consumo de
“drogas”: ao contrário, cercam-se de todo um aparato de cuidados. Por um lado, a fim de
gerenciar aquele que seria o risco maior, perder a linha (i.e., perder o controle),
desenvolve-se toda uma expertise corporal, um conhecimento idiossincrático, médico-
matemático, da relação do próprio corpo com as “drogas”, que envolve o cálculo da dose,
dos intervalos entre-doses, da hidratação do corpo, da atenção aos momentos intercalados
de descanso e “ferveção”, além do permanente aperfeiçoamento de um receituário próprio,
no qual podem entrar toda a sorte de combinações. Por outro lado, faz parte deste cálculo
também uma série de medidas para lidar com o fato de que o consumo de certas
substâncias é ilegal: a compra é envolvida em assepsia, o dealer geralmente é “um igual”,
recrutado no grupo de amigos; o transporte da “droga” para a festa é feito nas roupas
íntimas ou mesmo nos genitais; durante o consumo, os pares revezam-se atentos aos
218
seguranças que circulam na pista etc (Cf. Almeida & Eugenio, 2004; 2005a e b).
219
93
O que, via de regra, conformava um percurso no qual a “conciliação” era buscada em
muitos patamares (não apenas o da profissão “criativa”) sem sucesso (pois que a bipartição
entre duas instâncias “puras” se mantinha), e que na seqüência vinha a dar lugar a uma
retomada do “pulso da vida”, a um “reenquadramento” que incorporava “A Mudança” de
visão de mundo, mas não podia habitá-la. “Assim, os vanguardistas-aristocratizantes [os
nobres] têm em suas biografias uma fase de rejeição mais vigorosa de sua origem social,
reinterpretam-na [com a ajuda das “drogas” e da psicanálise], desligam-se da política,
conhecem os tóxicos e estabelecem um estilo de vida ambíguo, em que uma ideologia da
liberação individual aparece misturada a fortes aspirações de bem-estar material e consumo
sofisticado. De certa maneira, oscilam entre dois mundos, o da família de origem,
aristocratizante e próspero, e o de uma contracultura que valoriza o rompimento com a
cultura dominante. A tentativa de conciliar essas duas tendências ou dimensões dá margem
a uma cristalização de fronteiras em que o grupo desenvolve padrões, normas e regras de
participação bastante esotéricas, numa permanente procura de equilíbrio. Assim, as
pessoas podem se sentir muito ameaçadas no seu cotidiano, tendo dificuldade de lidar com
221
94
Contudo, é interessante sublinhar que o tom de tensão e conflito se adere às relações
entre pais e filhos nas décadas de 60 e 70 precisamente porque, neste momento, uma série
224
96
Que hoje se considere ser possível manter-se, em metaestável equilíbrio, na
“indefinição” ou na não-nomeação do que se vive, isto aponta para uma outra sorte de
economia dos afetos, não mais pautada pelo imperativo da “revolução pessoal” (“A
Mudança”) concebida como uma das muitas séries finitas e discretas a compor uma vida,
mas sim pela modulação infinita, ilimitada e contingente que caracteriza a formação
permanente, a conformar uma subjetividade mutante, que faz da transformação seu modo
de agir e de funcionar no mundo, que habita a própria mudança ao invés de concebê-la
como mediação entre estados de ser. Não tanto promover uma mudança pessoal, mas,
antes, ser movediço.
227
“Você não compreende que são dois anos que me roubam! Tenho uma vida
só, eu - disse com raiva. - Ao ouvir você falar, parece que você se acredita
eterno. Um ano perdido, na sua opinião, é coisa que se substitui! - lágrimas
subiram-lhe aos olhos. - Não se substitui. Minha mocidade se esfia e se esfiaria
aos poucos nesses anos. Eu quero viver já, não comecei ainda e não posso
esperar. Já estou velha, tenho vinte e um anos” (: 76-77).
“‘Pronto’, pensou Mathieu, ‘vai me falar de sua mocidade’. Jacque era muito
orgulhoso de sua juventude, era sua garantia, permitia-lhe defender o partido
da ordem em boa consciência. Durante cinco anos macaqueara com aplicação
97
Sobre o existencialismo sartreano terei oportunidade de me deter na Parte II (ver
Perverter-se).
229
“A juventude era para Boris uma qualidade perecível e gratuita de que era
preciso tirar proveito cinicamente e uma virtude moral de que carecia mostrar-
se digno. Era mais ainda: uma justificação. ‘Que importa’, pensou Mathieu, ‘ele
sabe ser moço’. Ele só, talvez, no meio daquela gente toda, estava realmente
ali, naquele dancing, naquela cadeira. ‘No fundo não é tão besta assim viver a
mocidade a fundo até os trinta e estourar. Como quer que seja, depois dos
trinta a gente está morto” (:222).
98
É sintomático que Bivar (2005) comente sobre a “invenção da velocidade” como
componente forte da “rebeldia juvenil” na década de 50, o “viver perigosamente” erigindo-
se forte em torno da figura de James Dean, morto em 1955 em um acidente provocado por
estar “correndo” vertiginosamente com seu Porshe Spyder. Os carros “possantes”
concorrem na montagem do valor de uma “juventude” intensa porém pontual, vivida
velozmente e encerrada de um súbito, impiedosamente, e antes que pudesse ser
esmagada pelo caminhar vagaroso da “decadência” e da “velhice”: “viva rápido, morra
rápido e seja um belo cadáver”.
230
acerca da juventude como fase que escorre sem volta) toda uma paisagem
de angústia, aquela que acompanharia irrevogavelmente o homem como
ser de arbítrio, o homem responsável pelo próprio destino - o homem “da
razão”, que é também o “adulto”.
Na cena, é notável como a coisa se articula de outro modo. Não que
não haja angústia, dor, sofrimento; pelo contrário, elas abundam,
notadamente quando “falha” o projeto da competência, da conciliação entre
as simultâneas frentes de atuação no mundo - situações nas quais por se
trabalhar demais um namoro escoa pelo ralo, ou por se namorar não se
consegue viver intensamente a vida noturna são as mais freqüentemente
relatadas como conflitantes, apesar de serem (e precisamente porque o
são) consideradas “impossíveis” pelo código de comportamento praticado.
Por princípio, não se enfrentaria passagem alguma para a “idade da razão”
quando nunca se foi outra coisa senão razoável, mesmo a intensidade
hedonista da vida tendo sido permanentemente alvo de um
esquadrinhamento de horários, de um cálculo milimétrico das condutas e de
um controle ascético do corpo e de suas reações. Ao mesmo tempo em que
o tom geral da vida que se leva na cena é o hedonista, para produzi-lo
precisa-se contaminá-lo de tudo aquilo que nas colunas opostas do “sistema
de puros” lhe seria excludente: ascetismo, pragmatismo, cálculo. De modo
que não há a sensação de que chega um momento em que a
“responsabilidade” baixa; antes, desejavelmente, nunca se teria
experimentado a vida sem ela. Na “tendência” articulada e vivida pela cena
- a tendência de operar por síntese disjuntiva na produção de um
hedonismo competente - não mais faria sentido imaginar uma “idade da
razão” se erguendo sobre o declínio e o encerramento da fase das
inconciliações autorizadas, a “juventude”.
A “juventude” professada na cena há tempos deixou de ser uma faixa
etária ou uma fase para converter-se em um estilo de vida - o da
extensividade intensa - a demandar, para sua realização, um
funcionamento específico, contaminação recíproca de hedonismo e
ascetismo. Talvez se possa dizer que o Mathieu de Sartre já o suspeitava,
quando, pensativo, perguntara a si mesmo “se o único meio de salvar a
mocidade não será esquecê-la” (op.cit.: 262).
De todo modo, há ainda uma outra ponte que gostaria de
231
afetuosa (Britto, op.cit.: 193) por princípio não poupava ninguém, nem o
próprio movimento. Desconfiança generalizada, não mais dirigida apenas ao
“sistema de poder” e tingida de “marxismos”, mas também à própria
intelligentsia de esquerda, ao tom “ideológico” dos cancionistas engajados,
ao discurso “de época” (que marcou particularmente a primeira metade da
década de 60) da necessária finalidade da obra de arte. Influências e
atravessamentos: da “solar” contracultura norte-americana, do hippismo e
do flower power, da canção de Bob Dylan; mas também da dos Beatles, do
cinema europeu da Nouvelle Vague etc.
Em 1967, Caetano Veloso apresenta Alegria, Alegria no III Festival da
Música Popular Brasileira. “Ela nem sabe, até pensei/ em cantar na
televisão”, canta ele, sinalizando um dos traços fortes do movimento, o
flerte explícito com a comunicação de massa. A crítica é tornada
contaminação. Não a voluntária exclusão do sistema que se rejeita, não a
“bolha de realidade” suspensa e necessariamente temporária, não o desejo
de “tomar o poder”, não o tom apocalíptico e frankfurtiano que via nos
meios de massa e na técnica a decadência e a “morte do homem”. Antes,
tratava-se aí do fincar da bandeira pirata. O procedimento: substituir a
perspectiva finalista para a obra de arte, que a pensava como encarregada
de conduzir a “redenção das massas”, pelo da autonomia do fragmento;
sair do registro do ataque ao “sistema de poder” para, pela via da ironia e
do elogio da ambivalência, dedicar-se à crítica do conservadorismo e da
“caretice” onde quer que se manifestem (da esquerda engajada à família
burguesa). Crítica ao conservadorismo é, diga-se, crítica à totalidade do
símbolo, crítica ao significado compulsório, à naturalização de um unívoco
arbitrário, convencional. Não que fosse este o primeiro movimento a
endereçar críticas deste teor, pois que a estética alegórica que Buarque de
Hollanda considera caracterizar os movimentos do tropicalismo já fora
diagnosticada por Benjamin (1997) como característica da “modernidade”,
motor da poesia apache de Baudelaire, marcada precisamente pela mistura
profana de instâncias que se definiam como impenetráveis, o baixo e o
sublime em concerto. A “tensão” é fundante da “modernidade”, e os
“híbridos” sempre estiveram presentes a despeito de uma “constituição
moderna” que os tornou “invisíveis” (Cf. Latour, 1994); movimentos
dedicados a desatrelar os significantes de seus significados compulsórios (a
233
99
A concomitância do acirramento do “sufoco” e do aceno “solar” de um conjunto de
possibilidades (a música, as “drogas” lisérgicas, a psicanálise, o zen-budismo repaginado
pelo beatnik Alan Watts, o pacifismo, o hedonismo etc) para uma crítica antes aos códigos
de comportamento instituídos que ao sistema político apresentou a um segmento jovem
brasileiro o impasse, sintetizado em duas opções marcadas como radicalmente opostas: a
“guerrilha urbana” ou o “desbunde”. Como diz um dos entrevistados na já referida pesquisa
em parceria com Almeida, um homem hoje com 65 anos, “chegou um momento, em 68,
que a polícia atirou nas pessoas. Então ou você vai armado, ou não vai, porque aí é burrice.
As pessoas decidem. Eu decidi não ir. Outros decidiram ir armados. Mas por isso acabou [o
engajamento político no círculo de amigos dele]. Pelo menos nesse grupo, a discussão
política sumiu do mapa. Éramos todos meio políticos até o aparecimento das drogas.
Ninguém era o dono da armada, mas, enfim, éramos todos meio de esquerda. Mas isso, a
tendência disso, desapareceu completamente”.
236
100
Distante que fosse das movimentações da tropicália e da pós-tropicália, ela estava,
como diz Wally, “transando a mesma loucura”: “de certa forma, a preocupação com a
chamada nova sensibilidade incentivava um tipo de trabalho coletivo e múltiplo, empenhado
fundamentalmente na experimentação radical de linguagens inovadoras como ‘estratégia de
238
realidade espiritual do futuro estava nele indicada. Virá uma época em que
todos serão esse termômetro e trarão em si mesmos esse futuro-presente”
(op.cit.: 347).
2. Links
perseguidos. Mas, como diz Cortázar (1985, v.1: 117), “Oliveira começara a
olhar o que acontecia à sua volta e a verificar que qualquer esquina de
qualquer cidade era a ilustração perfeita daquilo que ele estava pensando e
que quase lhe poupava o trabalho”.
Se o terreno já é, pois, o da arbitrariedade declarada, que a ela se
some mais uma: para dar o tom do que pretendo desdobrar a partir de
cada um dos relatos, convoquei trechos de O jogo da amarelinha, de Julio
Cortázar. Por afinidade com sua escrita, que toca com agudeza em
temáticas similares, e também porque o formato no qual trabalha o autor,
o de uma espécie de “hipertexto avant-la-lettre”, parece-me adequado ao
formato de links aqui empreendido. Sim, a pergunta se coloca: ele escrevia
há cinqüenta anos atrás, então como ainda querer dizer que o que se passa
na cena é uma “tendência” contemporânea? A este respeito pode-se
colocar, pelo menos, duas coisas. Não estou pensando a “tendência” como
uma seqüência na “linha do tempo”, uma “evolução”, um “progresso” ou
uma “culminância”; antes, como uma irrupção sensível que já se deu
muitas vezes e em muitos momentos; o que goes without saying não ficou
sempre no não-dito para apenas vir a ser dito agora, tampouco foi
tentativamente praticado apenas agora. O que considero específico na
“tendência” contemporânea é que ela se organize como mandamento, que
ela venha a se articular como prescrição ampla, e não como o caracterizaria
um comportamento “subversivo”, “desviante”, “questionador” ou algo do
gênero. Ademais, as questões que busco tratar aqui, como se verá, são
links precisamente porque não são o meio, mas sim as pontas, por assim
dizer: lá onde ainda não há, ou já não há, a experiência da multiplicidade,
ou o agir por síntese disjuntiva. Por um lado (link 1), o ingresso no portal
da cena, experiência de “transporte”, de devir, que como tal pode ser
experimentada em muitos outros registros. Por outro lado (link 2), o
rompimento de relacionamentos afetivos, questão “eterna” em muitos dos
seus aspectos, embora aqui venha a revestir-se, na dor que gera nos
envolvidos, das especificidades contemporâneas colocadas pelo
mandamento da competência.
Assim, deixe-me apresentar brevemente o percurso que
empreenderei nos dois links. Primeiro, as circunstâncias que propiciam o
ingresso na faixa de freqüência da cena, discussão que “situarei” em uma
242
fulano que narra em geral aloca como “primeira vez” uma experiência
heteroerótica101) - tanto porque este é um tema recorrente (o ralo) quanto
porque eu mesma o estimulei, em entrevistas. É sempre com uma aura de
“arrebatamento”, de “impossível” que invade e contamina, que aparece a
“segunda primeira vez”. A princípio, contudo, e notadamente porque os
primeiros relatos que colhi eram de pessoas que estavam vivendo a
experiência no momento em que relatavam, supus que se tratasse do calor
da hora, ainda à espera de domesticação definitiva por uma “ilusão
biográfica” (Cf. Bourdieu, 1986) que trataria de converter o
“arrebatamento” em uma sorte de “sempre fui” (Cf. Portinari, 1989). Não
supus isso “sozinha”, vamos dizer assim, mas acompanhada por toda uma
bibliografia que costuma tratar a coisa justamente assim (Cf., por exemplo,
Heilborn, 2004a; Bozon, 1993, 1999; Portinari, 1989; Bourdieu, 1986), e
também porque aí se acionava minha própria “crença nativa” na
“identidade”. Mas que, passados anos e anos da “segunda primeira vez”, a
esta (e a todas as experiências que se seguiram) ainda se concedesse o
estatuto de “arrebatamento”, isto apontava para uma outra economia de
afetos, que tentava, embora sem dispor de outros termos senão os da
coerência e os da unidade do sujeito, dizer-se de outro modo. O eu que fala
tentava ser “vórtice do turbilhão”, ao invés de apoiar-se em “um sistema de
princípios jamais referendados intimamente e que não eram mais do que
uma concessão à palavra, à noção verbal de forças, repulsas e atrações,
avassaladoramente desalojadas e substituídas pelo seu equivalente verbal”,
para repetir as precisas e incríveis palavras de Cortázar. Isto não se faz
101
Esta “segunda perda da virgindade” abre, com efeito, o campo de possibilidades, pois
que “fica muito claro que é inesgotável aquilo em que tu é virgem”. A partir dela, relata-se
freqüentemente, as “estréias” vão se molecularizando, por assim dizer: elenca-se como
“desvirginamento” não apenas a relação com o “mesmo sexo”, mas atos específicos,
detalhados em descrições microscópicas. E este movimento incide não apenas no que se
passa a viver dali em diante, mas é feito também em retrospectiva em relação ao que se
viveu antes desta “ampliação da percepção”. Apenas por este aspecto, já é possível
perceber que esta “segunda primeira vez” se dá de maneira bastante diferente da primeira,
em geral heterossexual. Ademais, as “etapas de aproximação com o tema” caracterizadas
como “curiosidade” de que nos fala Heilborn (1998: 398), aqui se dariam de modo muito
pouco explícito, pois que em geral se relata uma experiência de “arrebatamento”, e se
considera que a “curiosidade” foi desencadeada a posteriori. A busca desenfreada por
informações e mesmo a “socialização nas formas de abordagem dos temas e dos parceiros”
(ibidem), que caracterizariam o processo cuja culminância é a “primeira vez”, aqui
aparecem como seqüenciais ao evento. Um outro aspecto a se registrar é que o tom dos
relatos sobre as “segundas primeiras vezes” homoeróticas tende a enfatizar mais o aspecto
“carnal” entre os rapazes (adiante, esta diferença ficará patente na categoria do “carne
nova”) do que entre as moças, o que sublinha a persistência dos critérios molares de
gênero.
247
rostos… até que “ploft”, como ela diz. Uma das amigas - a que não
namorava o amigo - lhe tasca um beijo na boca, e ela “topa muito”. A festa
pára e assiste, as duas se agarram e “quase se comem” no meio da pista.
Sabem dos olhares, mas é incontrolável. Os outros dois amigos, o casal,
levam-nas embora quando sentem que “o clima ficou pesado”. Olívia diz
que mal se lembra de como chegou em casa. No dia seguinte, o beijo havia
se convertido “no” assunto na universidade. Um clima de tensão pesava;
ninguém disse nada diretamente a ela, mas ela “sentia” que era disso que
falavam o tempo inteiro, que a seguiam com o olhar. Isso tudo aconteceu,
segundo ela, “em uma época super caretinha”. A universidade não teria o
clima que tem hoje, invadida que teria sido pela “moda das meninas”.
No fim de semana seguinte, as três amigas - Olívia, a “do beijo” e a
terceira, que junto com o namorado resgatara as duas da enrascada -
conversam e se arrumam para uma festa. Haviam falado quase nada entre
si do episódio, até então. Estão na casa de uma das três, entre maquiagens
e escolha das roupas; bebem vodca pura e escutam rock. De novo o
imponderável as ataca, conta Olívia. Porque as três “acabam ficando”. Ela
não consegue reconstituir como começou, diz. Só sabe que “transaram a
noite inteira”, e largaram “seus respectivos” esperando na festinha. Como
“terminou” a história? - pergunto eu. Ela namorou alguma das meninas? Ou
o quê? Sim, namorou por uns meses “a do beijo”, ao mesmo tempo em que
prosseguiu com o namoradinho de dois anos - ele sabendo de tudo. Mas
hoje em dia perdeu contato com os dois. Ficaram, amigos até hoje, a
menina e o menino que eram namorados - e que por sinal são atualmente
casados. Olívia, inclusive, imediatamente após o término com “a do beijo” e
com o namorado de dois anos, namorou o menino deste casal por um ano,
e os dois juntos “ficaram” algumas vezes com a menina do casal (então ex-
namorada do cara; atual mulher).
Toda essa seqüência de experiências trouxe questões para Olívia; ela
nunca havia pensado em namorar mulheres e sim se perguntou se “estava
virando” gay, ou se “já era e não sabia”, mas ela não conseguiu decidir por
uma destas falas nem tampouco nominar o que viveu como bissexualidade.
“Porque ao mesmo tempo eu nunca consegui me considerar gay, nem bi,
nem porra nenhuma. Realmente não me entra na cabeça que eu seja isto
102
Todos os nomes que aparecem foram trocados.
249
ou aquilo porque transo com homem ou com mulher. E mesmo que depois
disso eu só tivesse namorado mulheres, ou mesmo que amanhã eu comece
a namorar uma mulher e fique com ela por vinte anos, mesmo assim eu
não iria chamar isso de ‘ser gay’”, ela diz. E na mesa do bar uma das
amigas presentes retruca: “É, isso não teria nada a ver com você. Nada a
ver com ninguém aqui”. O mais significativo para ela, assim, não foi que a
experiência lhe tivesse revelado alguma “verdade oculta”, mas sim que lhe
tivesse aberto as portas para o ingresso em uma outra dimensão possível
da vida, considerada muito mais ampla.
Na mesma direção vai o relato de Vicente. “O buraco é muito mais
embaixo do que um nome. O que eu vivi não tem nome”, a última palavra
proferida com um acento de jocoso desdém. Como é emendado no de
Olívia, o relato de Vicente pontua as diferenças em relação ao dela, ao invés
de propriamente dizer-se detalhadamente. No caso dele, diz, nem havia
qualquer contato com o “mundinho alternativo” antes da experiência
arrebatadora de, pela primeira vez, se relacionar com um homem, aos 18
anos. “O tal” era um homem bem mais velho que Vicente, tinha então 30
anos, boa pinta e super bem vestido, de modo algum tinha “trejeitos de
veado”.
O cara o interceptou na rua, depois de tê-lo seguido por alguns
quarteirões. Namoraram por três anos, e através dele Vicente começou a
freqüentar a cena, e se tornou um exímio conhecedor dos estilos de música
eletrônica, ao ponto de ter-se convertido em dj, embora também trabalhe
na profissão na qual se formou. “Se isso pôde acontecer comigo, bicho, é
porque pode acontecer com qualqueeeer um. Ninguém está imune de ser
tragado, de estar andando na rua relax, na paz, e acontecer. Posso dizer
que eu era o cara mais normal do mundo, o zé-mané mais certinho do
planeta”.
Vicente diz que, na seqüência, aconteceu com ele o que costuma
acontecer com todos os que são “carne nova” em um “mundo gay”
masculino: “Eu podia escolher. Durante um tempo, o tempo em que você é
novidade, é garotinho, você é rei, irmão. É patrão. Vai nas festas e pega
quem você quiser. É uma espécie de turbilhão, porque parece no começo
que a tua relação é com um cara em particular, é uma paixão. Mas depois -
e isso dura um certo tempo; aliás, tem gente que não sai disso - a tua
250
paixão é pela coisa em si, pelo ‘esporte’. Não tem como, acho que todo cara
experimenta essa fissura”.
Vicente voltou a namorar meninas - precisamente, teve uma
namorada, anos depois, com a qual se relacionou por seis meses. Afora ela,
fica com meninas de vez em quando - muitas vezes não chega a transar
com elas, mas beija muito, nas festas. E namorou mais outros dois rapazes
- namoros curtos, de poucos meses cada um, que depois se converteram
em amizades, o mesmo percurso que seguiu também seu primeiro e mais
longo namoro com um homem. Vicente sintetiza com um “provavelmente é
isso, devo ser gay”, e aqui aparece com agudeza a persistência diferencial
entre os gêneros do atravessamento pelas classificações molares. Todos
riem muito, e ele emenda: “não tenho nenhum problema, se for o caso da
coisa ficar sendo assim, e eu namorar mais homens que mulheres na vida.
A questão é que mesmo que isso aconteça, cara, foda-se. Isso não quer
dizer porra nenhuma”.
Parece-me que devemos levar a sério o que se diz, pois que neste
dito que se repete e redunda em muitas das histórias de vida coletadas na
cena há toda a sofreguidão dos que tentam exprimir experiências para as
quais não dispomos de palavras, a despeito de todo o tom jocoso. A via
fácil e apaziguadora de tomar estes relatos como “apenas discurso”, de
declarar que o que se vive é uma experiência dura, a ser amaciada pela
“gradativa aceitação”, é de uma violência ostensiva. Sim, são relatos de
“descobertas íntimas”, i.e., são o modo como foram organizadas as
experiências e não as próprias experiências. Mas daí não decorre que
estejamos autorizados a desvendar as “próprias experiências” à revelia do
que quem as viveu fez com elas. Parece-me que caminho muito mais
prolífico seja pensar sobre esse dito que redunda - este que é, por um lado,
o do arrebatamento permanente, e, por outro, o do nomear impossível.
Nele, temos notícia de que a inauguração de um registro subjetivo,
novo e arrebatador, não implica em migrar todo o “eu” para aquele novo
“nicho” ou “pedaço” de si, ou seja, o trabalho que se demanda não é o de
“descobrir” e “aceitar” uma outra “realidade” (ou pior, “a” realidade que “já
era” a do sujeito, que dormitava escondida, bomba relógio, pronta a impor-
251
103
Digo “pior” porque há poucas questões mais inócuas - e no entanto tanto já se disse em
torno dela - do que aquela que se debate entre declarar algum essencialismo (genético, por
exemplo) ou pender para o extremo oposto do construcionismo radical. É uma escolha ou
algo inevitável? Quando digo que é experiência de arrebatamento, estou longe de
aproximá-la de qualquer precipício incontornável porque escrito “nas estrelas” ou no “código
genético”. Como perguntam - e astutamente não respondem - Deleuze & Guattari: “Não
nos tornamos animal sem um fascínio pela matilha, pela multiplicidade. Fascínio do fora? Ou
a multiplicidade que nos fascina já está em relação com uma multiplicidade que habita
dentro de nós?” (op.cit.: 20). É certo que na cena prevalece a fala do “tornar-se”, mais do
que aquela que proclama fatalidades do tipo “sempre fui sem saber, apenas descobri”. Mais
precisamente, prevalece a fala que declara o que se experimenta como uma “potência”
capaz de “atacar qualquer um, em qualquer momento”. O forte discurso do “todo mundo
tem potencial” permite jogar de outro modo com as “determinações construídas” dos
roteiros sexuais (Cf. Simon & Gagnon, 1986). Como diz Bourdieu (1986), qualquer
articulação de causalidade será trabalho da ilusão biográfica, e haverá de acontecer a
posteriori; encontrar as pegadas do que “já se era” é inevitavelmente forjá-las. Some-se a
isso o que dizem Deleuze & Guattari: não há como prever para onde caminhará um devir.
252
qual as diferenças entre ambos eram dadas por uma escala gradativa,
eram oposições contingentes e não-excludentes, pois que ambos eram
considerados como compostos do mesmo (Cf. Laqueur, 2001). Parece-me
que o que se tenta exprimir nos muitos relatos sobre a experiência que se
acessa e se passa a viver a partir do contato com este “primeiro/a” é algo
como um repaginado modelo do sexo único - é claro que é difícil e quase
inexprimível, pois que dispomos de um pensamento e de uma linguagem
que operam, ambos, pela lógica do duplo sexo.
Há mais. Pois sequer esta aliança precisa envolver um
relacionamento sexual estrito.104 O outro grande relato da noite em questão
foi mesmo o de Clara, que considera que seu ingresso na voltagem da cena
deu-se através da forte aliança que estabeleceu com um novo amigo, um
rapaz gay.
Clara conta que o universo da cena começou a esbarrar com o seu, a
princípio, por conta da convivência acentuada com o irmão de uma grande
amiga sua, que na ocasião, há cinco anos atrás, buscava revelar para a
irmã que vivia experiências homoeróticas. O estreitamento da relação entre
os irmãos fez com que Clara, como melhor amiga da moça, também
começasse a freqüentar algumas festas e clubes do circuito da cena. Mas
não havia aí qualquer arrebatamento; Clara considera que, embora
estivesse de corpo presente no mesmo espaço físico que os demais, não
tinha acessado “o espaço mesmo da cena”. Isto porque não havia
estabelecido ela própria relações ali e, ademais, tampouco havia ingressado
naquela fina e imaterial liga simpática entre os corpos dos dançantes que é
a vibe, da qual já falamos. Até que Clara conheceu Miguel, amigo do irmão
de sua melhor amiga. Miguel é um rapaz que se considera gay, “alegre,
extrovertido, forte, alto, lindo, inteligente… um escândalo, poderosérrimo”,
como ela mesma o descreve. Foi uma paixão imediata, e correspondida. Os
dois se tornaram inseparáveis melhores amigos. Alguns eventos, nas
vizinhanças, contribuíram: sua melhor amiga começou a namorar bem
naquele momento, e a relação de compartilhamento cotidiano que Clara
entretinha com ela sofreu uma interferência e precisou ser reorganizada.
104
“Sexual” é sempre, na medida em que é afeto - mesmo quando vem a ser também
afecção (Cf. Deleuze & Guattari, 1992). Ou seja, é experiência da ordem da intensidade, é
algo de sensual e de sensorial, cujo aporte não se precipita em sentimento, e isso se pode
dizer independentemente de se tais relacionamentos tenham se convertido em “relações de
256
amor”.
257
(dita muito grande), e seria “realmente preciso sentir isso”. Há, também,
um gosto por cultivar a dúvida naqueles que seriam “de fora”, como amigos
de outros círculos, professores ou colegas de trabalho, como me disse uma
moça:
“Gosto de brincar, de nunca deixar claro se isso já me aconteceu ou não. Às
vezes, até gosto que pensem que aconteceu. Só pra confundir mesmo, porque
eu não tenho nenhuma cara de que faria isso, não tenho aquele estereótipo,
mas as minhas amigas que namoram meninas também não têm. Então é bom,
é bom… é bom que a galera se acostume que isso pode aparecer em qualquer
lugar, que não existem mais lugares seguros. Ninguém está a salvo (risos, e
um tom ironicamente sombrio)”.
Por fim, há ainda mais um motivo pelo qual é importante que nos
ocupemos de deixar claro que o se vive aí não se dá a capturar sob o rótulo
de bissexualidade. É importante que coloquemos as coisas nesses termos
também para que entendamos de que modo isso que se experimenta como
multiplicidade na vivência da sexualidade vem a ser difusamente recrutado,
nas entrevistas e em outras falas informais, como contribuindo para a
vivência mais ampla do próprio modelo da competência, em outras
“esferas” da vida (que, como vimos, tendem a não ser vividas como esferas
separadas). Como se o que se vive sexualmente, esse arrastar generalizado
que impõe uma clareza molecular sobre si, que torna impeditivo ao sujeito
considerar-se unívoco, viesse a compor uma disposição sensível mais
ampla, algo que o equipa, o incrementa e o prontifica para viver o regime
da simultaneidade e da conciliação com mais vigor e espontaneísmo.
Há, com efeito, a idéia de uma “sapiosexuality” - tal como é nomeada
em uma comunidade do Orkut que conta com 1.236 membros. Trata-se do
discurso persistente de que “gosto de pessoas; não me importo se elas são
homens ou mulheres, mas sim se são interessantes”. A fala agravada “me
apaixono por uma mente” ou “por uma inteligência” é um pouco alvo de
zombaria afetuosa, mas a que se fixa na idéia (ela mesma infixável) das
pessoas interessantes tem imensa receptividade. Embora chegue como um
pacote pronto, com um tom de “melhor adaptado” que tende a provocar
uma certa desconfiança, a associação entre o praticar desta
“sapiosexuality” e o regime da competência faz sentido.
Não precisamos propriamente “acreditar” que estas pessoas sejam
“mais equipadas” a manejar a competência do que quaisquer outras; antes,
interessa-nos perguntar como essa associação se monta, o que a autoriza.
Dizer que ela faz sentido não é, obviamente, concordar ou “comprar a
258
“Isso era uma porta trancada pra mim. Só que eu não olhei no olho mágico,
destranquei a fechadura e aí abri. A porta foi simplesmente arrombada, saca?
Eu nunca tinha pensado nisso, e agora isso tomou conta de mim, minha vida é
outra e quando eu vi estava totalmente integrado. E eu te digo: é rápido
demais, (…) chega a ser violento.”
O devir, tal com o apresentam Deleuze & Guattari, não é nem uma
correspondência de relações (uma analogia de proporcionalidade da ordem
da estrutura, entre diferenças que se assemelham) nem uma semelhança
(uma analogia de proporção característica da série que liga semelhanças
que se diferenciam). “O devir não produz outra coisa senão ele próprio”,
dizem os autores: “É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos,
ou somos. O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos
supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna” (op.cit.: 18).
A idéia do devir como coexistência de durações (ibidem) vem bem a calhar
para descrever o inominável no qual se debatem os relatos sobre o
“arrebatamento” e o modo de vida que ele instaura.
Se não é nem estrutura nem série, o devir é, no entanto, uma
relação “involutiva”; é “essa forma de evolução que se faz entre
heterogêneos, sobretudo com a condição de que não se confunda involução
com uma regressão. O devir é involutivo, a involução é criadora. Regredir é
ir em direção ao menos diferenciado, mas involuir é formar um bloco que
corre seguindo sua própria linha, ‘entre’ os termos postos em jogo, e sob as
relações assinaláveis” (op.cit.: 19). É interessante que se saliente este
aspecto, pois que precisamente o afeto que se vive e é relatado - não
apenas o primeiro “arrebatamento”, mas também os experimentados a
partir dali - não é marcado pela indiferenciação, por uma suposta
homogeneização que não mais distinguiria entre homens e mulheres; trata-
se justo do contrário: caminha-se para uma distinção de clareza cada vez
mais molecular, para um terreno onde só há heterogeneidade, no qual as
especificidades de cada um com quem se relaciona são o tudo o que
aparece, tornando secundária a diferença molar entre relações hetero ou
homossexuais. Caminha-se em um espaço liso - é ele o heterogêneo,
enquanto o espaço estriado é o que gera homogeneidades, embora de
imediato e superficialmente se pudesse supor o contrário (Cf. Deleuze &
Guattari, 2002c). O bloco de devir pelo qual se entra em relação - relação
comunicativa e contagiosa com um Outro que já é toda a matilha - com
262
105
Que ela siga sendo assinalável em outro plano, isso decerto tem implicações. Ninguém
deixa de se confrontar com a persistência “molar” de preconceitos, diante de outros os mais
diversos, mas eventualmente também no próprio circuito da cena, como já mencionei. Há
uma arena particular na qual sobrevém a apreensão de “um porém muito grande”: muito
freqüentemente se menciona temer que, depois de se relacionar muito tempo só com
pessoas do “mesmo sexo”, um eventual candidato “hetero” a namorado poderia não aceitar
facilmente o discurso sobre uma trajetória de “trânsitos em todas as direções”. Entrevistei
uma moça que vivia precisamente esta apreensão na ocasião em que conversamos: “Fico
achando que arranjar um namorado agora, depois de ter namorado muito tempo uma
mulher… o cara teria que ser cool pra caralho, porque senão ia ficar encucado… ou então, o
que é pior ainda, ia vir com aquele papo de fetiche, de transar com duas”. Por fim, concluiu:
“Acho que a gente teria que importar ele de Madri”. Com os rapazes, a situação é
considerada ainda mais delicada porque “a gente sofre muito mais esse peso da sociedade,
de que o que foi é sido. Atravessou a linha do cu, todo mundo acha que é sem volta. Então
é muito difícil uma mulher que leve na boa quando você dá a notícia”. Entretanto, muitas
moças e rapazes são bem-sucedidos em encontrar parceiros heterossexuais
“suficientemente cools”, e muitos namoros sólidos se estabelecem a despeito de trajetórias
pregressas as mais variadas. Receio na mesma linha, embora diverso, é o de tornar-se
“mulher automática”, i.e., performatizar um “papel de gênero tradicional”, da mulher
submissa e sem iniciativa, “que muda a vida toda pra ir atrás do namorado”. É interessante
notar que as moças que já viveram namoros com mulheres tendem a declarar-se
“imunizadas” quanto a essa possibilidade: “depois que você se dá conta de que pode viver,
e muito bem, sem eles, simplesmente não consegue mais bancar a automática”, conta uma
delas, há seis meses namorando um rapaz. Outra moça acha que a “solução” poderia ser
ter muitos parceiros simultâneos, pois assim “não ia bater a carência estúpida que faz você
virar Amélia”. Pergunto se ela acha que os tais parceiros topariam um regime de
relacionamento deste tipo: “É, provavelmente não. É por isso que a gente tem muitos
amigos, que é pra conseguir não emburacar [em um namoro]. Senão, é a morte. Sua vida
inteira pára pra ficar de namoradinho. Eu não posso, tenho que trabalhar, tenho que sair,
tenho que viver. Isso é só mais uma coisa”.
106
A contradição entre o bando e o solitário, entre o contágio pela matilha e a aliança com
um ente singular, embora efetiva, ingrediente mesmo da próprio arrebatamento que
proporciona (uma vez que não gera estupefato apenas nos eventuais analistas e
pesquisadores, mas nos próprios “neófitos”), caminha para um deslizar conjunto, realiza-se
como pacto-epidemia. Entenda-se: duas variantes de “maldição” incidem sobre a
sexualidade, dizem Deleuze & Guattari, referindo-se ao que teriam professado “os antigos
teólogos”: uma concerne à sexualidade como processo de filiação, a sexualidade maldita
porque através dela se transmite o “pecado original”; a outra concerne à sexualidade como
“potência de aliança, e inspira uniões ilícitas ou amores abomináveis” (op.cit.: 28-29). “Ela
difere da primeira [a da hereditariedade/filiação] mais ainda visto que tende a impedir a
procriação, e visto que o demônio, não tendo ele próprio o poder de procriar, deve passar
por meios indiretos” (op.cit.: 29). Por isso a aliança, mesmo dentro das relações reguladas
de casamento e filiação, “guarda uma potência perigosa e contagiosa” (ibidem). Assim,
“vemos dissolver-se cada vez mais a contradição entre os dois temas ‘contágio com o
263
expressão, para uma infecção ou uma epidemia que são forma de conteúdo” (ibidem).
265
Esta reunião é só mais uma de muitas, quase diárias. Nem todas têm
o tom que esta tomou, decerto. A maior parte é apenas alegre, ruidosa
demais, as vozes disputando com pelo menos duas camadas de música -
uma vinda do aparelho de som da sala; a outra da “Pista 2”, i.e., o mp3
player ou o computador ligado ininterruptamente que toca no quarto. Esta
reunião, contudo, acabou sendo também palco de tematização do “tudo o
que dói” em uma de suas versões - a amorosa. E por isso a escolhi como
relato.
A maior parte das reuniões, e esta também, abriga vários ambientes
simultâneos: dos dois ou três que se agarram no banheiro ou na varanda;
do grupinho que fuma maconha na sala chafurdando em risos e frases de
efeito; dos cinco que batem carreiras de cocaína em cima de uma qualquer
capa de CD; dos outros tantos que procuram a cerveja mais gelada no
tanque da área de serviço; dos vários que se reúnem na luz fria da cozinha
e preparam caipirinhas enquanto inventam a última piada ou brincam de
266
reunião não chega a tomar os ares de ferveção que se ensaiam ali. Se fosse
uma festa, contudo, provavelmente àquela hora já teríamos pelo menos o
dobro de pessoas. Além disso, não é uma festa porque, em grande medida,
o pico duraria pouco tempo. Muitos estavam apenas “dando uma passada”,
e por volta das três da manhã uma nova calmaria daria o tom; teríamos de
novo cerca de dez pessoas espalhadas nos diversos cômodos, os espaços
vazios, a música mais baixa. Os amigos “cheirados” sairiam em grupo.
Alguém sacaria um “tritubarão” (um triturador plástico, cheio de “dentes
afiados”) e começaria a desbelotar um punhado de maconha. Um amigo
prestativo recolheria as latinhas abandonadas pelos cantos em um saco
plástico de supermercado. A conversa, entretanto, se estenderia por pelo
menos mais duas ou três horas.
Mas não ainda. Com a casa cheia, Ana cantarolava feliz e procurava
o saca-rolhas. Sua casa, vale a descrição, conta com a decoração de muitos
dos elementos “interessantes” que geralmente podem ser encontrados
entre os pertences dos sujeitos em questão. Um grande mural de fotos, o
computador ligado, o Ipod (mp3player), as paredes coloridas, “objetos
únicos” trazidos de viagens à Europa, livros de arte sobre a mesa de centro
da sala, lustres e abajures garimpados em antiquários da Rua do Lavradio,
móveis da Tok&Stok misturados com outros estilo “herdados da vovó”, o
sofá forrado com uma estampa de desenhos em quadrinhos, almofadas
(cada qual diferente da outra) espalhadas pelo chão, quadros com
reproduções de telas apreciadas (neste caso, Balthus na sala, Lichtenstein
no banheiro, além de um pequeno Picasso na cozinha), os espelhos dos
interruptores de luz pintados à mão, decorados com fitas ou com recortes
de revista, ou ainda trazendo uma miniatura do cartaz de algum filme cult
(Ana tinha dois desse tipo, comprados nas lojas do Grupo Estação de
Cinema).
Outros pares desfeitos pela “epidemia” estavam presentes, e o
detonador para o tom assumido por esta reunião deu-se com a chegada de
uma outra moça recém-separada do namorado, ainda quando a casa
enfrentava o contingente em pico.
Lívia chegou lindamente vestida, trazendo vinho e um patê de foie
gras, acompanhada por três bees (ou charmosos amigos gays), que depois
planejavam arrastá-la para o Dama de Ferro para “se acabar um
270
Carlos mantém melhor a linha, “não desce do carrossel”. Mesmo que sofra,
ninguém tem notícias disso. Lívia tem raiva - “de mim mesma em primeiro
lugar”, diz - por ser menos bem-sucedida no carão. O ato que acabara de
cometer fora, em seu conceito, uma “chapiscada” das piores. “Joguei
baixo”, decreta sobre si mesma, para em seguida contar que, no meio da
conversa com o ex, percebendo que ele parecia alheio aos seus encantos,
simplesmente abriu a calça dele e começou a “pagar-lhe um boquete”, de
modo a impedi-lo de se esquivar. Transaram no carro, mas foi “medíocre e
tosco”. Ela se sentia “imunda, vil, corrompida” - e, novamente, toda essa
dita “sujeira” era invisível na pele de porcelana e na montação ilesa. Sentia-
se “ridícula”, e compartilhava seu feito gauche com a sala lotada - o que
(assim me pareceu) não lhe parecia mais um ato na mesma linha, mas uma
via mesma de superar o ridículo recém-praticado. Alguém sugeriu que ela
“lavasse a boca e pegasse uma taça”. Outro tentou descontrair e soltou
um: “Ai, que luxo! Perdeu a compostura! Poderosa!”. Mas o clima de
confessionário já havia sido inaugurado.
Claro que nem todos tomaram parte, e nem todos o fizeram da
mesma maneira. Muitos continuaram a dançar, a estar na internet, a
conversar entre si etc. Um amigo que também havia sido vitimado pela
“epidemia”, se sentindo tocado pelo relato, pegou meu braço e,
performático, disse-me: “Babsy, dear, just a line e tudo ficará bem”,
esboçando a idéia de bater umas carreiras, sem no entanto de fato fazê-lo.
“Babsy, só não vá me aparecer morta no jornal de amanhã!”, prosseguiu
ele, brincando com a personagem do filme Christiane F., Drogada e
Prostituída, parte da “adolescência” de quase todos os presentes. Não era
nada daquilo, e a graça estava precisamente aí. Não havia a sujeira
retratada no filme, nem o aspecto “fim de linha” das personagens viciadas
em heroína. Eu não era Babsy, ele não era Christiane. Ele no entanto
também se recuperava do fim de um relacionamento “incrível”, mais um
dos que “padeceu por sua própria genialidade”, e aquela era uma maneira
de “rir da própria desgraça” - afinal não tão desgraciosa. A piada fazia
referência ao que ele vivia, à sujeira não tão suja assim de Lívia e,
ademais, evocava uma outra noite que passei na companhia dele,
circunstância primeira na qual ele havia produzido a associação jocosa
entre nós e as personagens do filme - e, aí sim, por conta do consumo de
272
“drogas” - que, de todo modo, não nos deixou nem de longe com o aspecto
“deplorável” de junkies com o qual foram envolvidas as personagens do
filme (ver o “link-bônus” que fecha esta seção).
Em pouco tempo havia um grupo formado em torno do input
oferecido pelo relato de Lívia. Ana elaborou sua teoria, e a expunha aos
amigos, que a engrossavam. Em conjunto, incorporando a contribuição
analítica de cada um dos presentes que tomaram parte na conversa, se
formulava uma narrativa que amarrava as diferentes histórias de término e
buscava interpretar o que viviam. Era o “cinismo” pelo qual chorou Lívia ao
chegar, o cinismo que os permitia recobrar a “elegância” ao converter tudo
aquilo ao mesmo tempo em peça de humor, em tristeza compartilhada, em
solidão declarada irremediável e portanto aceita e, por fim, como não
poderia deixar de ser, em celebração da amizade. O cinismo era também
clareza - o segundo e molecular perigo de que falam Deleuze & Guattari
(2004b), mas também aquele que permite conter o primeiro e molar, o
medo.
Em linhas gerais, os “ex” daqueles que conversavam foram postos
em uma coluna, enquanto os que conversavam foram eles próprios postos
em outra. Não eram colunas opostas; se diferenciavam (novamente) por
gradação. Os “ex” eram pessoas do tipo “lig-lig”, ou pessoas “carrossel” -
pessoas que, ali se afirmava, não interrompiam jamais e sob nenhuma
circunstância o frenesi hedonista. Não que os que conversavam o fizessem;
pelo menos não na maior parte das vezes. Daí não ocuparem o lugar de
discretos outros. Mas acusavam-se a si mesmos de menos competentes,
porque a circunstância do término os teria afetado mais que aos ex, e os
teria descolado um pouco da festa cotidiana para derramar algumas
lágrimas. Ao mesmo tempo, porém, os presentes identificavam em suas
próprias condutas uma ponderação maior que a dos ex, o que, neste
patamar, tornava-os mais competentes que aqueles seres que apareciam,
agora, como menos dotados eles próprios da gradação adequada a cada
ocasião, como excessivamente intensivos a ponto de padecerem de um
aspecto algo chapado.
A solidão era inevitável para todos, tanto para os “ex” ditos mais
intensivos, quanto para os presentes, ditos intensivos mais ponderados. A
clareza acerca do que viviam os salvava: convertia a lágrima em riso;
273
consigo, não admite ficar com outros sem que o namorado saiba,
secretamente. Desde que começou a namorar, foi “fiel”, ao passo que é dos
presentes o que mais vivamente declara que “é impossível não sentir tesão
por outros”.
Não é uma questão de princípios pois praticamente todos fazem ou já
fizeram. “Só é corno quem é curioso”, piada “sem graça” que corre baixinho
entre duas moças que conheço pouco. Embora todos façam, aqui as
opiniões se dividem fortemente. Por um lado, e este é o lado que conta com
maior coro naquela sala, considera-se que é esta a saída: “simples assim”,
diz-se; “o outro não precisa saber de tudo o que eu faço”. Isto, diga-se nos
casos em que a “infidelidade” é descrita como competindo a quem a
pratica, não tendo “nada a ver” com o relacionamento - nos casos, que são
todos a princípio, em que estar namorando não implica em deixar de
desejar outros e outras, mais uma instância de proclamação do desejo de
escolher sem desescolher. Uma moça, cujo namoro todos concordam ser
exemplarmente harmonioso e feliz, comenta singelamente:
“A vida tem muita coisa boa, cada dia é feito de muitos pequenos prazeres
pra você viver. Por exemplo, hoje: eu passei o dia todo longe do X. (o
namorado). Aí, de manhã, eu acordei e tinha um sol incrível lá fora, tudo de
bom, uma sensação maravilhosa. Depois, de tarde, eu passei em frente ao
Bob’s; fazia o maior tempão que eu não comia um doce, e aí eu pedi um mega
milkshake de Ovomaltine e fiquei lá, quase gozando… Aí, andando pela rua,
passou um cara surreal, lindo, gostosérrimo, e eu fiquei total encarando… Cara,
cada pequeno prazer desses é a mesma coisa. Se eu não contei pro X. como foi
um tesão tomar o milkshake, por que eu precisaria falar que foi um tesão olhar
pro cara gostoso?!? É a mesma coisa! Claro, aí você me diz: olhar é uma coisa,
pegar é outra. Beleza, tem vezes em que até pode ser, porque você pode
decidir pegar o carinha e perturbar completamente a tua relação. Mas aí você
conta, conversa, decide o que faz. Mas se aquilo dali não afetar em nada, se for
que nem o milkshake, pegou tá pegado, e você guarda aquilo pra você. Eu não
quero saber o que o X. faz quando viaja, se fica ou não fica com alguém, desde
que ele volte e continue tudo lindo. Tem coisas que ele não vai poder mesmo
experimentar comigo; seria muito egocentrismo meu achar que eu posso suprir
ele de tudo. Ele tem mais é que experimentar o que der vontade, e eu
também. Senão, daqui a pouco a gente se mata, passa a se odiar, a achar que
o outro atravanca a nossa vida. Agora, se ele experimentar alguma coisa fora
de casa que perturbar as coisas com a gente, aí sim, ele me fala e aí a gente
vê”.
107
Pois os bandos podem ser “minados também por forças muito diferentes que instauram
280
neles centros interiores de tipo conjugal e familiar, ou de tipo estatal, e que os fazem
passar a uma forma de sociabilidade totalmente diferente, substituindo os afectos de
matilha por sentimentos de família ou inteligibilidades de Estado” (op.cit: 28). Este
movimento pode levar a um reconstituído “familialismo de grupo” (ibidem), como no caso
dos “clãs” clubbers mencionados por Palomino (1999), ou no caso do aspecto de chosen
family de que se revestem alguns grupos de amigos exclusivamente gays, grupos de
“solidariedade” pautados no compartilhamento de um “estigma” (Cf. Goffman, 1988). Mas
não parece ser esta a “ameaça” maior à multiplicidade vivida na cena, que na maior parte
das vezes é bem-sucedida em livrar-se das próprias idéias que permitiriam um escoamento
nesta direção: a de estigma, a de minoria, a de que poderiam ser “companheiros de
sofrimento”, como diria Goffman. O perigo que se enfrenta mais cotidianamente é a
persistência de um “modelo romântico” para a operacionalização das trocas entre o casal,
modelo este da ordem das segmentações molares: a conjugalidade “burguesa” é
precisamente o que seria preciso ser bem-sucedido em “abolir”, para a manutenção sem
dolorismos de um modo de vida atravessado pelo coletivo como valor. Pois do mesmo modo
foi através de uma relação de aliança que se veio a acessar o registro da cena, esta mesma
aliança pode ameaçar a sociabilidade intensiva ali praticada, pode roubá-la ou desviá-la - já
não seria então uma relação com um “anômalo”, neste caso, mas antes este teria se
convertido em “bichinho doméstico” (Cf. Deleuze & Guattari, 2002b: 26-27). A aliança faz
passar o “eu” ao bando, mas também ameaça, por vezes, o estar em bando.
281
linguagem de um outro tempo. (…) Esse jeito de amar continua fazendo sendo
bom e fazendo sentido para as mulheres em cuja existência ainda vigora esse
modo de vida. Ruim é insistir numa linguagem quando esta não tem mais a ver
com a experiência vivida pelo corpo. (…) Continuar expressando o desejo do
mesmo modo deixa, então, de fazer sentido. (…) Também não para o homem a
coisa não tem sido fácil. (…) Ora, no corpo da mulher autonomizada, ele capta
uma dupla mensagem: no visível, o que esse corpo continua a lhe dizer é que
ele é o principal senão o único objeto de seu desejo; mas no invisível, o que o
corpo transmite é que se diversificaram os investimentos de seu desejo, e que
o lugar que o macho ocupa não pode ser o mesmo. Diante dessa mulher
transformada, que ainda gagueja uma nova linguagem de fêmea, ele não se
sente sinceramente convocado como macho. (…) Preso, como as mulheres, a
um padrão de erotismo de outro tempo, esse homem se estranha, apavora-se
e fragiliza-se. (…) Sem uma linguagem compatível com aquilo que o corpo está
sentindo em suas novas experiências, o desejo frustra-se” (op.cit.: 69-71).
vou dizer não foi nada, é uma besteira, quando não é… mais merda mal
resolvida pro depósito, lá vamos nós… Ela quer poder sair na hora exata que
ela quer, mesmo que depois se atrase com as seqüelinhas dela, o que SEMPRE
acontece!!! Se ela vai se atrasar de qualquer jeito, qual o problema de eu levar
mais dois minutos pra me arrumar? O meu atraso tb [também] deveria ser
uma besteira, só não é uma besteira por ser MEU. Ela não faz isso quando está
dando carona pros amigos, não fica impaciente buzinando na porta feito uma
louca doente. Ai que raivaaaaa… Esse ‘tratamento especial’ é só pra mim
mesmo… (…) Mas não era assim. Parece uma impaciência, um horror que ela
tomou porque, de repente, alguma coisa aconteceu e deixou muito claro que eu
sou a namorada e os outros são os amigos. Ela está me setorizando, me
colocando à parte… a coisa se rompe. Tenho saudades da época em que eu era
amiga tb, que não existia distinção, ela contava comigo do mesmo jeito que
contava com qq [qualquer] outra das meninas… De repente parece que eu
fiquei sendo menos legal que elas…”
outro; eu também tive que voltar a pegar pesado, porque senão a própria
situação ia me incomodar, não consigo abandonar as coisas assim, a
responsabilidade ficava apitando… Então aconteceu a coisa mais estúpida do
mundo, porque foi a gente mesmo que matou as chances do relacionamento
continuar, a gente foi completamente burra nessa jogada. Porque o
relacionamento começou a, tipo, competir com ele mesmo… nada era mais
incrível do que aquela redomazinha fake que a gente tinha vivido, nada poderia
ser melhor que aquilo… nada era melhor que o meu namoro com ela, nem ele
mesmo! Na verdade, a gente não tinha problemas, não brigava, não se
estressava… nada disso. Só que a coisa era sem graça perto do que tinha sido.
A gente matou tudo sem saber, sem se dar conta, a gente já tinha decretado o
fim logo no começo, inconscientemente… Aí foi isso… durou ao todo um ano e
meio, mas os últimos seis meses já era uma forçação. O tempo todo a gente
querendo entender o que que tava fazendo ficar sem graça, até que um dia eu
comecei a desenvolver essa teoria, de que a gente competia com a gente
mesma, com o nosso passado de brincar de casinha e esquecer da vida! Foi
horrível, porque não tinha nada que pudesse reanimar o bicho, mas ele
também não morria. Alguém teve que tomar uma atitude, e eu tomei: terminei,
mesmo amando ela demais - nossa, demais! - porque senão aquela rotina de
merda ia acabar com a nossa vida toda, nada mais tava funcionando já… Daí,
quando eu conheci a Y., eu pensei: cara, incrível, tô apaixonada, ela também,
isso é lindo, mas péra lá. Aí total me controlei desde o começo… porque no
começo você perde a noção, entra numa. E aí eu adotei total uma política de
‘vamos nos ver sim, mas não todo dia’; de ‘eu não vou parar de dar atenção
pra nada da minha vida pra ficar contigo e também não quero que você pare’…
cara, foi perfeito, tá sendo… pelo menos até agora, a gente vai fazer dois anos
e sete meses”.
O que diz Rolnik, assim, afina-se de algum modo ao que diz Bozon:
as cartilhas dos relacionamentos tendem a “privatizar-se”, reterritorializar-
se na própria desterritorialização, “nomadizando-se”. Mais que isso,
contudo, pois que a própria visibilização da impermanência como tudo o
que há de permanente conduz, neste terreno amoroso, a uma “certeza”, e
em torno dela podemos observar, entre aqueles que pesquisei, que se leva
a efeito algumas tendências: estas partem deste “reterritorializar-se na
desterritorialização” como condição de possibilidade. Algumas nele mesmo
289
mutações remetem a essa máquina, que certamente não tem a guerra por
objeto, mas a emissão de quanta de desterritorialização, a passagem de fluxos
mutantes (…). Mas exatamente quando a máquina de guerra não tem por
objetivo senão a guerra, quando ela substitui assim a mutação pela destruição,
é que ela libera a carga mais catastrófica” (ibidem).
(:348). Ou, como diz a autora em trecho ao qual ainda retornarei na Parte
II, “um além do espelho, onde o outro não seja mais aquilo que delineia
nosso contorno (Ulisses/Penélope), nem uma paisagem fugaz com a qual,
máquinas celibatárias, não criamos coisa alguma” (ibidem). Não se trataria
mais, neste caso, de “viagem desgarrada”, mas antes de viagem
assumidamente solitária, “uma solidão povoada pelos encontros com o
irredutivelmente outro” (ibidem). Embora longo, vale acompanhar o rico
relato de uma moça sobre sua recente trajetória amorosa:
“(…) Porque eu nunca acreditei em casamento, eu tinha uma visão super
trágica da vida, quando eu era adolescente, porque eu assistia a vida da minha
mãe, e era uma merda: ela se separou cedo, e aí arranjou um cara que era um
anti-herói, e aí não tem essa de achar que a vida pode ser boa, você já sabe
que vai ser uma merda, ela meio que garantiu que ia ser uma sofredora, não
tinha nem com o que se preocupar, porque ela já tava na lona, o anti-herói
nunca vai ser gente fina. Então, pra mim era certo que você vai ser traída, vai
ser sacaneada, essas coisas. Quando a minha mãe se separou, pra ela foi um
choque, um pavor, porque era todo um mundo que ia embora, caiu tudo o que
ela entendia que era pra ser. Já quando aconteceu comigo, foi assim: pra
começar, casar era uma coisa completamente que eu não pensava, não achava
que ia rolar. Mas rolou. Eu não acredito em casamento, mas eu acreditava no
meu, porque era um pacto super legal mesmo, a gente era parceiro, amigo, um
ajudava o outro pra vida ficar mais fácil, mais engraçada. Eu poderia ter
continuado ali; o problema é que a gente foi esquecendo de transar. O maior
pavor que eu tenho, até hoje, é de sentir de novo o que eu senti ali. Ou
melhor, o que eu não senti, porque eu fui virando uma frígida, eu não sentia
nada. Aí, me separei. Não foi um drama que nem o da minha mãe. Quando
acabou, eu pensei, ‘mas também, quem disse que era pra durar?’ Eu sempre
soube que as coisas acabam, eu não liguei o gás. Só que eu sofri, é claro. Não
foi relax, foi um luto. Um luto mesmo, por alguns meses. Até que demorou
menos do que eu pensava. Mas o que acontece é que essa coisa de que as
coisas acabam se incorpora em você. É o que eu tava dizendo, na hora, às
vezes durante um bom tempo até, o peso do fim é grande demais. Tudo o que
você pode fazer é se dar uns snacks, sair com os amigos, transar com os
amigos. Ok, sem dramas, curte sua dor, supera. Porque com o fim tem uma
coisa maravilhosa que acontece: a possibilidade de novos começos. Quando
você se dá conta disso, o peso do fim se dilui. Não é uma coisa always look on
the bright side of life [referência a um filme do Monty Pyton], é sério mesmo.
Eu e o X. ficamos amigos, amigos pra sempre, a gente sabe que pode contar
um com o outro, que somos queridos mesmo. E a gente sabe que, se a gente
quisesse, poderia ter remendado a coisa, ficado ali. Eu poderia ter mudado
minhas prioridades, poderia ter decidido que sexo era menos importante, ou
poderia ter tentado mais dar a volta por cima, voltar a transar. Sei lá, mil
coisas. Mas uma coisa é certa, a opção de continuar com ele era a de saber que
a paixão ia estar abolida da minha vida. A gente poderia viver outras fases,
poderia até ficar bem, superar a crise, mas paixão mesmo eu não iria sentir. É
uma escolha, pode até ser que em outro momento eu venha a escolher isso,
talvez mais velha, talvez nunca. Não sei. Mas será que teria sido tão legal
assim ter ficado com ele, mesmo que tudo tivesse se ajeitado? Porque com
cada nova pessoa que você conhece, que você se envolve, você descobre
pedaços de você. Isso é teu. O que a gente tem como patrimônio são as nossas
experiências. Ninguém é de ninguém, nem eu mesma sou minha! Então,
quando acaba, se doer doeu, se chorar chorou, mas o fato é: você segue na
sua solidão, mas segue melhor. Cada um dos dois vai fazer um uso do que
viveu, mas eu acho que eu sou uma pessoa muito mais maneira depois do X.,
porque a gente aprende. Nesse sentido, não é triste. A verdade é que as
pessoas vão embora de qualquer forma. Ninguém tá aqui pra ficar. Mas isso
294
para o qual, acredita Rolnik (1998a: 67), contamos (os brasileiros) com a
prerrogativa de que estamos “habituados a nascer e renascer das misturas,
somos constitutivamente híbridos; borram-se em nós, desde o início, as
fronteiras entre as figuras”.
Aqui, contudo, também se defronta eventualmente com tudo o que
dói. Embora muitos trabalhem “de nove às seis”, o tipo de trabalho mais
valorizado e o mais praticado é aquele que permite ao sujeito fazer seu
próprio horário, trabalhar por si e a seu modo, sem regras fixas, sem hora
certa para dormir ou acordar, sem determinação de dias de semana e dias
de fim de semana - um trabalho que permitiria englobar o “carrossel”. Isso,
contudo, faz com que algumas pessoas sintam, em certos momentos, viver
em um “mundo diferente”, “à parte”, e vez em quando isso é sublinhado
doloridamente. Porque deveria ser possível “desviar do complô” sem viver
em um mundo à parte - e embora se considere que quase sempre isso é
possível, não é o tempo todo. O que dói, pois, é o vez em quando em que
este mundo acontece como “mundo à parte”. Ao mesmo tempo, esta
distância eventual também é dita positiva; permitir-lhes-ia ter melhor
condições de ver o “mundo-mundo”, e assim saber que não desejam
ingressar nele cedendo, mas, no máximo, “fingindo” que cedem.
Entretanto, entrar pela via de “ceder de fato” oferece também
prerrogativas, aplacamento, uma paz considerada “mais sem graça”, mas
também mais perene - e vez em quando se lamenta que não se possa ter
acesso a essa paz. Pois, tal como na proposição de uma “nova suavidade”
amorosa, na proposta de novos mundos (inclusive para que eventualmente
venham estes a ser o “mundo-mundo”) a condição é saber que se tem de
aceitar o não-aplacamento. Estão sozinhos, e não podem pretender estar
de outro modo. Por outra, aparece também a fala argumentativa, que
sublinha que “quem está no mundo-mundo cedendo também não pode
[não pode achar que não está sozinho], mas pode achar que pode”. Há,
decerto, muitas negociações a ser empreendidas a tornar possível uma
reterritorialização no modo “desviar do complô”; persistem interpelamentos
por diversas instâncias duras do “mundo-mundo”, bem como os próprios
sujeitos cobram-se o tempo inteiro. Cobram-se por não terem de fato
conseguido “tudo”, isto é, tanto o aplacamento quanto a errância, tanto a
segurança e a coerência quanto o experimentalismo e a incoerência
297
*
Fábio não está bem com o namorado. Nada inteiramente visível, mas
as farpas aparecem aqui e ali, em um relacionamento que está prestes a
comemorar um ano de duração. O problema: Paulo, o namorado, se joga
além da conta (na conta de Fábio, não da de Paulo). Isso não o torna um
incompetente, mas, o que é pior, torna (por defração) Fábio um
incompetente - eis o nó do problema, embora Fábio não o diga com essas
palavras, que são parte da minha analítica. Paulo é um habitué da cena, e
seu núcleo mais imediato de amigos é formado pela “nata”: os melhores
djs, os estilistas do momento, os jornalistas que editam cadernos sobre a
noite nos principais jornais do Rio e de São Paulo, os donos dos
estabelecimentos mais badalados.
Fábio é mais jovem, tem menos dinheiro, ainda mora com os pais. É
bem-sucedido no que faz, mas o que faz exige uma outra métrica na
relação com a cena que, comparada com a de Paulo, seria mais contida
(mas comparada a outras métricas, como a minha mesma, já é intensa
demais). Fábio tem dois empregos que tomam sua manhã e sua tarde, os
quais concilia estudos de música (toca bateria) e com a escrita em
andamento de uma tese de pós-graduação. Precisa acordar cedo todos os
dias, e precisa “sacrificar” parte dos finais de semana para estudos. Paulo,
por sua vez, é um profissional liberal bem-sucedido, tem apartamento e
escritório próprios, ganha muito bem e seu trabalho, em parte, conta com
os contatos que pode fazer na própria freqüentação da noite. Apesar da
incompatibilidade das agendas cotidianas, os dois saem, juntos ou
separados, quase todos os dias da semana. Fábio gosta, por um lado. Por
outro, sente-se exausto e diz precisar recorrer a remédios para dormir,
para acordar, para manter a produtividade no trabalho e na festa. Além
disso, sente-se não de todo enturmado com o grupo de amigos ultra-glam
de Paulo, e se incomoda por ter seguidamente sua entrada “liberada” em
quase qualquer estabelecimento do circuito por conta dos contatos do
namorado, e não pelos seus próprios - os seus próprios também poderiam
299
beneficiá-lo vez por outra, mas sequer precisam ser acionados, porque os
de Paulo são prontamente mais “quentes”.
Este pequeno panorama inicial dá conta de por que Fábio me telefona
esta noite, recrutando minha companhia. Os amigos de Paulo estão
reunidos em um restaurante japonês “das antigas”, muito caro para o
“nosso bico” (meu e de Fábio). O casal foi convidado, mas Fábio já sabe o
que o espera: será engolfado por assuntos “tão hypes que chegam a dar
enjôo”, e Paulo será arrastado neste turbilhão, ao passo que ele mesmo
não poderá esboçar qualquer protesto, ou será considerado um “chato que
não sabe se divertir”. Por isso ele quer que eu vá junto: eu serei a
companhia de que precisa para que também seus assuntos tenham mínima
relevância na mesa, ou ao menos para que não se sinta sozinho.
Combinamos que não vamos jantar, mas apenas, no máximo, tomar uma
dose de saquê, e assim gastaremos só o que podemos.
Os dois buzinam na minha porta quinze minutos depois do
telefonema, por volta de uma da manhã, e lá vamos nós. Paulo está bem-
humorado e Fábio ligeiramente ácido, como era de se esperar. Mal
entramos no restaurante e já “pressinto” o tom geral da noite que nos
aguarda, pois Paulo conhece grupos espalhados em diversas mesas, e
cumprimenta-os com desenvoltura. São todos personagens que também eu
e Fábio conhecemos, mas, em geral, apenas de vista. Atores, produtores,
músicos, gente que vai aos mesmos lugares que nós, mas que vai também
aos muitos outros que não podemos pagar, ou para os quais não somos
suficientemente insiders para sermos convidados. Os amigos que fizeram o
convite estão reunidos em um daqueles nichos reservados que dispõem de
uma grande mesa baixa, em torno da qual todos se sentam no chão.
Deixamos nossos sapatos diante da cortina de bambu que nos separa do
grupo ruidoso e entramos.
O grupo. Reconheço parte dos amigos de outros eventos na casa de
Paulo, ou apenas da noite; alguns sei quem são, outros nem isso. São sete
pessoas; conosco dez. Uma estilista cuja coleção desfilara aquela tarde em
uma das edições do Fashion Rio - e este era o motivo do jantar - está com
o novo namorado (que fico sem saber o que faz da vida). Duas jornalistas
de São Paulo que editam sua própria revista (“muito hype”), além de
trabalharem para um importante jornal, e que estão na cidade para cobrir o
300
no Caderno Ela, do Jornal O Globo, que também dava conta de que cada
número custaria “singelos” 35 reais.
Se no jantar ainda havíamos nos engajado minimamente no grupo,
na festa éramos decididamente figurantes. Paulo passeava entre os
presentes, e Fábio ficava cada vez mais impaciente. “São todos de plástico”,
ele me disse. Mas acrescentou em seguida que acreditava que também eu e
ele éramos de plástico, só que de plástico vagabundo, daqueles com os
quais se fazem os brinquedos “pirateados” que se vende no camelô.
Comentei que apenas circunstancialmente éramos os piratas, e que ele
tinha sentimentos demais para um boneco de plástico. Rimos os dois e ele
me adotou como Babsy.
Foi então que se acusou subitamente de “Christiane F.”: decidiu
cheirar também, ato em relação ao qual adotava uma postura contraditória.
Não gostava, e não gostava particularmente porque considerava estar
acompanhando o “emburacamento” de Paulo, o namorado -
“emburacamento” particularmente mais incômodo porque não estaria
levando Paulo a “perder o controle” mas, ao contrário, revelando-o
“insuportavelmente adaptado ao meio”. A impaciência de Fábio, nota-se,
era com o que diagnosticava como uma espécie de “competência excessiva”
do namorado, que por contraste “diminuía”, por assim dizer, a dele próprio.
Entretanto, “bancar a Christiane” era a condição de possibilidade para
“suportar” aquela noite entre “metidos”, muitos dos quais poderiam ser
“figurinhas fáceis” na comunidade do Orkut “Gotas de Luxo”, dedicada
explicitamente a fofocas, a denunciar os “podres” de personagens muito
conhecidos da noite (“alvos” que tanto podem ser da old school como da
new school) - o que torna explícita a estranha acomodação que se
processa, na cena, entre tolerância e intolerância, a acusação tendo lugar
persistentemente. O electro “Frank Sinatra” da francesa Miss Kittin pode dar
o tom dos impasses colocados por essa crítica que é também autocrítica,
pois que não é só o “grupo alheio” que é criticável, mas eventualmente
também o próprio. Daí a existência de expressões como “Ai que preguiça!”
ou “Ah, cansei!”, para dar a medida da saturação que vez por outra se
experimenta desse ambiente nas ocasiões em que ele vem a parecer
excessivo, i.e., aquelas nas quais o precioso controle ameaça fugir das
mãos:
303
To be famous is so nice
Suck my dick
Kiss my ass
In limoscenes we have sex
Everynight with my famous friends
Nice.
Suck my dick.
Kiss my ass.
So nice.
Vip area.
Frank Frank Frank Frank Sinatra.
assepsia. Sim, é claro que sei que este ponto da comparação padece da
impossibilidade de se saber como as pessoas que freqüentam a cena hoje
avaliarão este período de suas vidas daqui a vinte ou trinta anos. Não há
como saber se alguma dessas ocasiões se fará uma “parada definitiva”, que
por fim isolará estas vivências como uma fase encerrada da vida.
Quanto a isso, alguns exemplos de entrevistados para a pesquisa em
parceria com Almeida (2005b), hoje com idades entre 45 e 65 anos, podem
ser interessantes, porque recobrem a passagem de uma sensibilidade para
outra (a d’A Mudança como fase ou passagem para a mudança como modo
de vida e de funcionamento). São pessoas que não pararam com o uso de
substâncias ilícitas ou bebidas alcoólicas, porém adequaram seu uso a um
“desempenho competente”, adotando toda uma métrica e uma adequação
situacional para este consumo, tal como a posta em prática pelos mais
jovens freqüentadores da cena. Um dos homens entrevistados, por
exemplo, em nome do que chama de “longevidade etílica”, além de ter
incorporado a natação como atividade diária, quando sai de casa para o
encontro com os amigos no bar leva o dinheiro contado para no máximo
seis cervejas, que toma com gelo, a fim de que possa consumi-las ainda em
temperatura agradável, calculando levar meia hora para cada lata - e
assegurando, deste modo, que ficará no bar por cerca de três horas e não
sairá excessivamente bêbado.
Mas o que quero argumentar vai além desta manutenção controlada
de intensidades características de uma “juventude” como fase da vida, de
modo a precisamente fazê-la estender-se como intensiva, para isso sendo
ao mesmo tempo considerado necessário contaminá-la de procedimentos
que, em um regime de alternância, estariam afilados como atributos do
“adulto”. Precisamente, ainda que as pessoas que freqüentam a cena hoje
venham a encerrar esta “fase” de sua vida, a deixar de trafegar por este
circuito, a estabelecer-se com algum parceiro estável, a se casar, a deixar
de usar “drogas” ou qualquer outro rumo imaginável, isso não isso não
significa que o próprio funcionamento do hedonismo competente seja
compulsoriamente abandonado. Trata-se de um funcionamento que não se
restringe à cena, sendo, ao contrário, o mesmo que se recomenda a todo
“tipo de gente”. Se Fábio, por exemplo, algum dia proferir um “Ah, cansei!”
definitivo, pode com efeito se ausentar da cena, mas isso não quer dizer
306
108
Suspeito até que, talvez, nem então estas “identidades” eram assim de fato “inscritas
em níveis diferentes e relativamente dissociadas dentro do sujeito”. Entretanto, ainda que
esta fosse “apenas” a “maneira de olhar”, é inócuo colocar as coisas nestes termos. As
maneiras de olhar são tudo o que temos. O que diagnosticamos agora também não é outra
coisa senão uma “maneira de olhar”, e - como seria diferente? - através de uma “maneira
de olhar”. De todo modo, ainda admitíssemos que desde “sempre” só o que tivemos, no
plano do invisível, tenha sido contaminação e multiplicidade - e não uma pluralidade de
identidades alternantes -, e ainda que o se passasse então pudesse ser dito um diagnóstico
que fazia uso de “ferramentas coletoras” elas próprias alternantes, isso em si mesmo já
sinaliza que acompanhamos uma transformação. Ademais, há a eficácia: as “ferramentas
coletoras” não estão sozinhas, são afetadas tanto quanto os fenômenos que buscam
analisar; o que nos transporta de volta para a assertiva de que aí “moderno” e “arcaico”
conviviam, mas não se considerava (e portanto não se vivia) sua mútua contaminação.
310
109
Mais que isso, vimos que na própria cena o “e” como estilo de vida - versão hedonismo
competente - nem sempre consegue ser levado a efeito. Nestas ocasiões, contudo, não se
pode dizer exatamente que o que esteja em jogo seja a adoção de uma outra orientação,
pois o que se experimenta é a sensação de incorrer em um desvio - o “fracasso” de ter
procedido por alternância (“ou”) quando se “teria” de agir por simultaneidade (“e”) -,
justamente porque o modo de vida considerado ideal é o do “e” como estilo de vida.
311
110
O uso, por tais movimentos culturais, de conceitos como os de “cultura” e “identidade”,
traz aos próprios movimentos um impasse, pois que o que pleiteiam é antes um “direito à
diferença” do que um “direito à igualdade”, mas este pedido acaba por articular-se como
um “impossível” “direito à igualdade da diferença”. Logo no princípio desta tese (ver
Instantâneo Dionisíaco) tematizei esta questão, apontando que o que vemos acontecer hoje
na cena (mas não apenas nela, claro), embora encontre sua condição de possibilidade na
frente aberta por reivindicações deste tipo - e, precisamente por isto, não se organize como
reivindicação - não pode ser dito como estando em continuidade com tais articulações. Se
se pudesse atribuir alguma espécie de pleito ao que se passa na cena, este seria antes o de
um “direito à diferencialidade da diferença”.
318
111
Vale ficar também com seu alerta, que aqui registro para a dar medida de que, ao
buscar trabalhar com certos autores e tendências, não imagino estar “superando
definitivamente” nada, nem alcançando nenhuma “síntese perfeita”, mas tão somente
tentando afinar meus instrumentais teóricos ao campo da pesquisa, admitindo que não vivo
em outro mundo senão este mesmo no qual vivem também meus “nativos”, e que me vejo
tão afetada quanto eles pelos diversos desdobramentos da “cultura somática” (embora
façamos cada qual coisas diversas com esta afetação): “Recordando que cada teoria social
já vinda à luz acreditou um dia deter a chave da síntese entre os pólos das antinomias da
razão sociológica ocidental, apenas para ser mais tarde acusada de favorecer
escandalosamente um destes pólos, resta ver se as neopragmáticas contemporâneas terão
de fato escapado de serem mais um mero momento da oscilação perene entre nominalismo
subjetivista da societas e o realismo objetivista da universitas” (2002a: 314-315).
319
outro, nos dizem: agora você já não é um bebê; e na escola, aqui você não é
mais como em família; e no exército, lá já não é como na escola… Em sua,
todas as espécies de segmentos bem determinados, em todas as espécies de
direções, que nos recortam em todos os sentidos, pacotes de linhas
segmentarizadas. Ao mesmo tempo, temos linhas de segmentaridade bem
mais flexíveis, de certa maneira moleculares. Não que sejam mais íntimas ou
pessoais, pois elas atravessam tanto as sociedades, os grupos quanto os
indivíduos. Elas traçam pequenas modificações, fazem desvios, delineiam
quedas ou impulsos: não são, entretanto, menos precisas; elas dirigem até
mesmo processos irreversíveis. Mais, porém, do que linhas molares a
segmentos são fluxos moleculares a limiares ou quanta. Um limiar é
ultrapassado, e não coincide, necessariamente, com um segmento das linhas
mais visíveis. Muitas coisas se passam sobre essa segunda espécie de linhas,
devires, micro-devires, que não têm o mesmo ritmo que nossa ‘história’”
(Deleuze & Parnet, 1977: 145).
112
Dos sentimentos à sensorialidade, eis o movimento de ênfase diferencial. Daí, talvez,
que seja o terreno amoroso o mais arredio ao movimento da competência, pois que este
vem informado por um repertório de “amor romântico” no qual a satisfação sensual deve
ser subordinada aos sentimentos - mas, no entanto, é confrontado pelo contemporâneo
mandato de um gozo intensivo, de primazia da sensação. Não se pode conceber um
relacionamento no qual o sexo não seja bom, e menos ainda permanecer nele caso deixe
de ser, “apenas” em nome de “sentimentos”. O movimento que assinalei, no qual a “paixão”
passa a ser considerada a medida da duração cabível a um relacionamento, é um dos
atravessamentos desta “cultura somática”, a colocar em xeque a “educação cívico-
sentimental burguesa”. No entanto, por ser uma “cultura da exterioridade” (aliás,
precisamente, alça ao mesmo plano a interioridade e a exterioridade), a “cultura somática”
parece debater-se, no terreno amoroso, com uma espécie de persistência do vocabulário
“interior” da moral dos sentimentos, que segue sendo o que se dispõe. Diz-se, muitas
vezes, em termos que não lhe cabem, o que gera uma série de descompassos que, como
vimos com Rolnik, só poderiam ser “superados” com a elaboração de uma “nova linguagem”
325
amorosa.
326
113
Ceder à “moral do espetáculo” revela-se, assim, de fato um outro patamar de
“incompetência”, pois que caracteriza uma resposta à “cultura somática” na base do “ou”
como estilo de vida: isto, se quisermos, podemos encontrar no texto do próprio Costa, que
quando enumera as modalidades de “estultícia” começa precisamente com aqueles
“adictos” que “concentram esforços” apenas em uma esfera da vida, preservando, portanto,
as próprias esferas. Outra coisa fará a “moral do auto-governo”, e é a ela que Costa
atribuirá o estatuto de “código de comportamento” caracteristicamente contemporâneo. A
“moral do espetáculo” aparece, assim, como aplicação “desviante” (porque incompetente)
da própria “prescrição” (de um maquinismo, e não de um conteúdo) da “moral do auto-
governo”. O “adepto da moral do espetáculo”, diz o próprio Costa mais adiante, é aquele
que não foi bem sucedido em “renovar a cartografia emocional”, de modo que “quer se
transformar fisicamente para continuar sendo o mesmo do ponto de vista moral e
psicológico” (op.cit.: 238). Por outra, o que aqui venho chamando de tendência aponta em
outra direção: “na renovação ética, o sujeito se apropria das experiências corporais inéditas
para redescrever condutas intelectuais, emocionais, e morais concebidas como naturais e
normais, como sendo historicamente contingentes. (…) cada vez mais, estamos nos
329
“Os cuidados com o corpo, aqui, aparecem como preocupação ética consigo,
se entendermos por ética a capacidade de optar por estilos de existência que
nos façam viver melhor, concedendo ao outro o mesmo direito e o mesmo
poder. Este estilo de viver, embora tenha como referente o bem-estar do
corpo, não sucumbe à moral do espetáculo e se revela perfeitamente
compatível com o apreço pelo bem comum e pelos ideais de autonomia
pessoal. O governo ético de si deriva, de um lado, da resistência ao poder, para
retomar a noção de Foucault, e, de outro, de inovações nas formas de
subjetivação” (op.cit.: 236).
Este arranjo preciso permite que não seja preciso pender para um
lado ou outro, procedendo por alternância. Entre a “moral burguesa de
sentimentos” (voltada ao cultivo do espírito) e a “moral do espetáculo e do
entretenimento” (voltada ao cultivo do corpo), pode-se “ficar com as duas”,
por assim dizer. Ou melhor, pode-se ficar com os dois interesses, os
“espirituais” e os “corporais”, os “elevados e sérios” e os “mundanos”, mas
apenas sob a condição de contaminá-los mutuamente e desfazer os
domínios estanques em que estariam encastelados. Caso contrário,
continuar-se-ia a proceder pelo “ou” como estilo de vida; apenas os sinais
estariam trocados, e o conteúdo valorativo migraria do “espírito” para o
Como diz Rolnik, contudo, este outro sistema que se anuncia carece
de uma “nova linguagem” para dizer-se. No momento, o mais próximo a
que poderíamos chegar seria referirmo-nos a ele como “sistema de
híbridos”, o que vimos que não é o bastante para descrevê-lo com
acuidade. Seria um “sistema a-centrado, rede de autômatos finitos, nos
quais a comunicação se faz de um vizinho a um vizinho qualquer, onde as
hastes ou canais não preexistem, nos quais os indivíduos são todos
intercambiáveis, se definem somente por um estado a tal momento, de tal
maneira que as operações locais se coordenam e o resultado final global se
334
114
Diz Deleuze (1992: 33-34), sobre seu trabalho com Guattari: “Somos puramente
funcionalistas: o que nos interessa é como alguma coisa anda, funciona, qual é a máquina.
(…) O que explica o fracasso do funcionalismo é que tentaram instaurá-lo em domínios que
não são seus - grandes conjuntos estruturados: estes não podem formar-se, não podem
ser formados da mesma maneira que funcionam. Em compensação, o funcionalismo impera
no mundo das micromultiplicidades, das micromáquinas, das máquinas desejantes, das
formações moleculares. (…) [Aí] a única questão é como isso funciona, com intensidades,
335
fluxos, processos, objetos parciais, todas coisas que não querem dizer nada”.
336
sempre se pôde, ainda que fosse preciso pagar o “preço” de aparecer como
“desviante” ou optar por uma “vida dupla”. O que se torna possível
contemporaneamente é vislumbrar que, para além das (e entre as)
categorias de homo, hetero e bissexualidade, o que se experimenta no
plano do vivido são gradações, mil pequenos sexos. Ressalta-se e visibiliza-
se o aspecto de multiplicidade que caracteriza a “vida”, em seu sentido
mais imediato de “sopro vital”.
Por se ater a exemplos referidos às vizinhanças de sua área de
atuação como médico e psicanalista, Costa deixa de vislumbrar o estado de
“adiantada contaminação” em que vivemos: os “mutantes” ou “híbridos”
estão em toda a parte. Justamente, como prescindem de “rótulos na testa”,
e como em nem todos os casos têm uma aparência que os declara “recém-
saídos da cerquinha do desvio” (como no caso de um cego executivo, por
exemplo), senão nos dispusermos a adequar o olhar a esta faixa de
freqüência, não seremos capazes de dimensionar o vulto do fenômeno para
o qual, aqui, elegi como mirada a cena carioca (mas, repito, poderia ter
escolhido uma multidão de outros “objetos de estudo”, e chegar ao mesmo
“estado de coisas”; eis o que há de icônico no grupo estudado: a charada
de O.Velho). A trama da contaminação opera “na surdina”, como já dizia
Caiafa na década de 80: “a qualquer hora, sempre quando menos (se
espere) a invasão já terá começado” (1985: 144). Os “mutantes” que
pesquisei através do circuito da cena sequer atêm-se à própria cena: estão
em toda parte, e não encerrados em um “gueto”. Ocupam cargos em
grandes empresas e universidades, têm carreiras promissoras, freqüentam
almoços de família, estão nas filas dos bancos e dos supermercados, nas
rua e em “um cinema perto de você”, volta e meia têm seus rostos
estampados nos jornais como “jovens talentos” das mais diversas áreas de
atuação etc. “Só os mutantes devem sobreviver”, brinca-se às vezes, em
conversas na cena - e a referência são os quadrinhos do X-men,
recentemente levados às telas dos cinemas.
*
337
PARTE II
338
!Diagrama de Arbitrariedades !
(ou, para tentar desdobrar um evento abdutivo)
Atenção: Degraus!
O trabalho em uma boa prosa tem três degraus:
um musical, em que ela é composta, um arqui-
tetônico, em que ela é construída, e, enfim, um
têxtil, em que ela é tecida.
Walter Benjamin, Rua de Mão Única
115
Tratar-se-ia, aqui, da tarefa de descrever as territorializações, desterritorializações e
reterritorializações que compuseram e compõem, de modo aberto e mutante, a “cultura
ocidental moderna”, este controverso “ente analítico” (Cf. Duarte, 1998) -, observando seus
“processos de objetivação” (Cf. Goldman, 1999c) e acompanhando os movimentos
sucessivos de estriagem e alisamento de determinados espaços sociais. Tudo isso nos
ajudaria a compor ou recompor um “solo” para a mirada do hedonismo competente. Difícil
recortá-lo ou decalcá-lo de um horizonte que parece pretender-se mais e mais “chapado”,
em um momento de revisão das nomenclaturas e das “totalidades” até então construídas
pelos saberes antropológicos (O. Velho, 1997: 140). E no entanto sabemos, com a ajuda de
Merleau-Ponty (1999), que a “identidade” ou “mesmidade” deste objeto estará no horizonte
circundante e não nele próprio, como “coisa-em-si”. Assim, preservar este horizonte nas
periferias do olhar - uma outra maneira de falar do que costumeiramente entendemos por
“contextualização” - é só o que nos permitiria definir (sempre relacionalmente) as
permanências e as mudanças desta “coisa-em-si”, já que “o horizonte é aquilo que
assegura a identidade do objeto no decorrer da exploração” (op.cit.: 105).
340
116
Muitos outros - com formações bem mais sólidas que a minha, e que ademais contam
com a prerrogativa “indígena” de um “critério de antiguidade” - estão pensando estas
mesmas questões, e o que delas se depreende já aponta, como “sinal dos tempos”, para
uma sintonia entre trabalhos a princípio distantes em temática e abordagem, todos
descortinando um certo fundo (ou superfície?) de “semelhança” ou “proximidade” que se
revela no tratamento a que submetem “objetos de estudo” tão diversos (Cf., por exemplo,
O. Velho, 1998; Goldman, 1999a e c; Viveiros de Castro, 2002a e b; Latour, 1994 etc).
Como diz Deleuze nas Conversações (1992: 34), “Não é questão de moda, mas de um “ar
do tempo” mais profundo, em que pesquisas convergentes estão sendo realizadas em
domínios muito diversos”.
341
117
Novamente, condições de possibilidade e não causas ou, como diz Deleuze (1992: 132):
“a história não é experimentação; é apenas o conjunto das condições quase negativas que
342
119
Pensando sobre as distinções freudianas entre processos primários - cujo significado
seria “inconsciente” e inacessível “racionalmente”, uma vez que submetê-lo a uma
mediação-tradução já seria perdê-lo - e secundários - as operações mentais “conscientes” e
“racionais” -, Bateson (1985b) salienta a ênfase que, nos primeiros, é posta na relação,
uma vez que os termos eles próprios delineiam-se relacionalmente, não sendo dados como
termos, por assim dizer. Este caráter relacional dos processos primários caracterizá-los-ia
como comunicação icônica, isto é, aquela na qual as metáforas não estão sinalizadas e esta
ausência de marcações exige que o significado se processe por decifração ou adivinhação.
No ícone, significado e representação do significado andam juntos. Perguntar o que há de
“icônico” em um dado fenômeno, portanto, seria perguntar por suas premissas, perguntar
qual a “ausência” que ele sinaliza com sua “auto-evidência”. Seria lançar-se a uma tentativa
de decifração dos “algoritmos” nos quais, por economia, foram convertidas as premissas
que o norteiam. Decifração de um código relacional, decifração da escolha deste código e
não de outro, aí estará o significado, ele próprio entendido como paradigma, redundância,
padrão. Esta sorte de comunicação icônica, “não-humana” ou “irracional”, que Freud
localiza no domínio não-controlado do sonho, para Bateson não teria de modo algum um
caráter “periférico” ou “residual”, constituindo, ao contrário, a regência do mundo dos
“vivos”.
344
120
Conceitos não são metáforas, nos diz Deleuze (1992:57), e tomo esta proposição na
mesma linha do que já discuti logo no início desta tese (ver Escritura Acrobática) sobre a
“metonímia total” com Baudrillard (1990), e que fica clara na observação deleuziana de que
“conjuntos quaisquer podem e devem ser recortados de diversas maneiras, que só
347
coincidem parcialmente”.
121
Ressalva fundamental, para qual as palavras de Wiener (ibidem) são melhores do que
as minhas: “Se quisermos usar a palavra ‘vida’ para abranger todos os fenômenos que
localmente nadam rio acima, contra a corrente da entropia crescente, temos a liberdade de
fazê-lo. (…) [Entretanto] quando comparo o organismo vivo como tal à máquina, nem por
um momento pretendo dizer que os processos físicos, químicos e espirituais, específicos da
vida, tal como a conhecemos habitualmente, sejam os mesmos que os das máquinas
simuladoras de vida. Quero simplesmente dizer que ambos podem exemplificar localmente
processos antientrópicos, que talvez possam ser exemplificados de muitas outras maneiras
que, naturalmente, não chamaremos nem de biológicas nem de mecânicas” (grifos meus).
122
Nada a ver, também com a metáfora biologicista, da sociedade como organismo vivo,
que moveu os teóricos do livre mercado, ou a antropologia funcionalista. Se fosse o caso de
pensar nestes termos, me adiantaria em afirmar que os sistemas a-centrados dos que
operam a competência não são uma nova metáfora para organismo, assim como as redes
não o são para a circulação sanguínea, embora estes dois (organismo e circulação) tenham
sido usados outrora metaforicamente. A linguagem de sistemas aponta muito mais para um
desorganismo que para um organismo (o corpo sem órgãos de que fala Artaud, tal como
retomado por Deleuze & Guattari, 2004b); não temos aí contornos nem totalidades, os
sistemas processam-se desorganizando e devorando virtuais, atualizando-os. Quando
proponho que podemos pensar proximidades entre operações de computadores e de
pessoas, não se trata de um retorno ao “mecanicismo”. As máquinas que serviram de
modelo às filosofias mecanicistas eram de acionamento analógico. Polias e roldanas
oferecem aqui uma boa imagem; a imagem da fábrica, característica das sociedades
disciplinares - sobreposta, nas sociedades de controle contemporâneas (que não
substituem as disciplinares, mas a elas se somam), pela empresa como figura emblemática
(Deleuze, 1992). A aproximação entre máquinas analógicas e humanos só poderia mesmo
se dar pela via da metáfora, da analogia, porque os humanos, enquanto viventes, nunca se
processaram de maneira analógica. Ao contrário, as máquinas de que falo aqui operam
como sistemas abertos, assim como os humanos, cujos encadeamentos não conformam
uma linha de montagem, mas talvez uma rede, um novelo de montagem - processam-se,
nos termos de Deleuze & Guattari (2002a), de modo rizomático e não arborescente. Não
são máquinas cujas causações se reproduzem linearmente: não se relacionam de modo
analógico, mas digital - ou icônico. Entende-se porque sequer a aproximação entre estas
máquinas e estes humanos pode ser dada como uma analogia ou metáfora. Ao estabelecer
esta proximidade, coloco ambas estas instâncias em comunicação icônica - e isto somente é
possível porque cada qual trava relações com o mundo de modo “digital”, por assim dizer.
“Já se disse que os nativos da década de 40 pareciam todos funcionalistas; hoje, começam
348
*
355
! CULTIVAR-SE !
357
Sujeitos e Predicados !
!
Amor e Sexualidade, do repertório romântico à
individualização radical
eclipsava a percepção de um todo que não era mera soma das partes,
deixava escapar o aspecto relacional dos elementos na totalidade: a co-
presença dos elementos significava e precisava ser recuperada.
A antropologia como “ciência romântica” herdou a questão.123
Podemos vê-la no argumento malinowskiano de que os elementos culturais
devem ser compreendidos em seus contextos, ou mais tarde, no
estruturalismo de Lévi-Strauss, incansável em afirmar a prerrogativa da
relação sobre os termos - e isto apenas para citar alguns exemplos de
abordagens distintas, aparentadas na romântica predileção por “ver a
floresta”. Em nome da dimensão da totalidade, questionou-se então,
também, a idéia de uma humanidade abstrata, baseada na concepção
quantitativa do indivíduo como cidadão - concepção igualitária, mas
também indiferenciada - contra a qual se interpunha o olhar romântico
sobre a singularidade dos entes individuais, qualitativamente diferenciados
(Simmel, 1971a).
A totalidade que se defende toma por vezes o caráter de uma
“primordialidade intrínseca”, estado originário a partir da qual os
fenômenos e os entes teriam se desenvolvido, e neste sentido
freqüentemente assume a conotação de unidade (Duarte, 2004: 9). A
noção de unidade, ademais, responde pela aglutinação progressiva, em
torno da categoria “vida”, de uma ênfase na especificidade dos seres como
“totalidades em si”, que redundou na instituição do conceito de organismo.
Este, por sua vez, teve papel fundamental na edificação da biomedicina do
século XIX, erigida por oposição à “fisiologia” mecanicista responsável pela
“invenção” das concepções de circulação sanguínea e de sistema nervoso
(ibidem).
A concepção de cada ser individual como “totalidade em si” dá a
medida da dimensão da singularidade - o aspecto qualitativamente único e
específico de um sujeito determinado -, por oposição à dimensão da
individualidade, parte do projeto humanista expresso na idéia dos homens
123
Duarte (op.cit.: 16; Cf. também Duarte, 1995) sugere que podemos pensar o
empreendimento antropológico como “universalismo romântico”, uma vez que o trabalho de
campo, ferramenta metodológica fundamental no forjar da identidade da antropologia como
“ciência”, tem como pressuposto fundamental a idéia de que a compreensão só se faz
através de um contato subjetivo e prolongado com o objeto de estudo. A antropologia, pois,
deve fabricar “objetividade” e distanciamento justamente através da assunção clara de que
é impossível despir-se do olhar subjetivo.
364
124
Sahlins (2004a) salienta também o papel do repertório cristão acerca da dor no forjar
da ética hedonista, que se lhe constrói ao mesmo tempo como derivada e oposta.
372
3. Sexo e Verdade
Sobre este desejo é preciso trabalhar, decerto. Contudo, e porque “a
sexualidade não está na superfície do corpo, nem é um epifenômeno de
impulsos mais profundos ou fraquezas mais básicas da alma; torna-se tão
definidora do indivíduo humano que nenhuma renúncia pode fazê-la
desaparecer completamente” (idem: 98), este trabalho não pode ser
compreendido nos moldes de uma repressão. Como bem explicita a fina
análise de Foucault (2001), em sua crítica à “hipótese repressiva”, a
articulação entre poder, saber e sexualidade se dará, a partir do final do
373
125
“A família é o cristal no dispositivo de sexualidade: parece difundir uma sexualidade
que de fato reflete e refrata. Por sua penetrabilidade e sua repercussão voltada para o
exterior, ela é um dos elementos táticos mais preciosos para este dispositivo” (op.cit.:
105). Cf. também Donzelot, 2001, sobre a convocação da família como fundamental agente
376
de polícia.
377
demais: “lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso
mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao
poder”. O “caráter estritamente relacional” do encompassamento entre
poder e resistência, entre discursos e contradiscursos, não estabelece os
segundos como subproduto, decalque em negativo, reverso passivo dos
primeiros. As resistências “são o outro termo nas relações de poder;
inscrevem-se nestas relações como interlocutor irredutível” (op.cit.: 91-92).
“Também são [as resistências], portanto, distribuídas de modo irregular: os
pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos
densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou
indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos
momentos da vida, certos tipos de comportamento. Grandes rupturas radicais,
divisões binárias e maciças? Às vezes. É mais comum, entretanto, serem
pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade
clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos,
percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e remodelando-os, traçando
126
neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis”. (op.cit.: 92)
126
Guardemos bem este trecho a fim de pensar, no próximo capítulo (Perverter-se), as
movimentações românticas de vanguarda, em relação à “ideologia” mais ampla do
individualismo e do universalismo. Entre discursos e contradiscursos, nenhuma
exterioridade.
378
4. Amores Ocidentais
A passagem do dispositivo de aliança para o de sexualidade sinaliza,
ademais, a autonomização do domínio afetivo que, transferindo-se da
alçada da família extensa - que o manobrava no governo de seus interesses
econômicos, fazendo-se personagem político - para a do indivíduo dotado
de autonomia e “poder de escolha”, abre caminho para a solidificação dos
jovens Estados-Nação (Cf. Viveiros de Castro & Benzaquém de Araújo,
1977).
O movimento que acompanhamos aí é também o da passagem das
sociedades de soberania às sociedades disciplinares, do direito de morte
sobre os súditos ao poder sobre a vida dos cidadãos, do castigo pelo
suplício do corpo à vigilância dos internatos visando salvar a alma
(Foucault, 1977; 2001: 127-149). Instaura-se assim uma tecnologia política
do corpo como microfísica do poder, ocupada em produzir corpos dóceis e
úteis e, no mesmo golpe, em corrigir seu duplo, pelo qual justifica-se o
poder sobre a vida dos internamentos, e não mais o direito sobre a morte
das execuções: a alma (Foucault, 1977: 20-31).
É porque este novo sujeito é dual, possuidor de uma interioridade
379
qual este amor se dirige não ama o sujeito em retorno”, diz Simmel
(op.cit.: 245). Toma a forma de um “idealismo intelectual” e dirige-se ao
que, no objeto de amor, é-lhe suprapessoal. Simmel o caracteriza como
uma “paixão altamente racional” (op.cit.: 241), e nem é preciso que
digamos que usa nossos termos - os únicos que temos, para citar mais uma
vez Viveiros de Castro (2002a) - para tornar compreensível os termos
alheios. É na philia grega, segundo Simmel, que encontramos o tipo de
relação mais próxima à nossa idéia de amor: enquanto o eros não
pressupõe ou exige reciprocidade, a amizade, como nosso ideal de amor, é
“baseada na mutualidade e na individualidade” (op.cit.: 240). A philia
sinaliza laços entre iguais, uma comunhão de ser, o encontro de almas
gêmeas. Os laços, entretanto, são simétricos e assentam-se no
compartilhamento do mesmo, daí serem pensados como possíveis apenas
entre cidadãos masculinos adultos, enquanto nosso amor funda-se sobre o
desejo de complementaridade.
Já o eros platônico pode prescindir de reciprocidade e erige-se mais
propriamente como um “desejo de posse” (op.cit.: 245) - se fôssemos
empregar termos modernos para descrevê-lo. O erasto (amante) é um
cidadão masculino adulto; o erômeno (amado), via de regra um jovem
rapaz, eventualmente uma mulher. O elo entre eles parte a priori do
amante, sob a forma de emoção violenta e passageira, dado que se
extingue uma vez consumada esta posse eventual, e isto como uma
“conseqüência lógica”: o sujeito terá então “possuído” o suporte da Idéia
amada, e não ela própria, sempre alheia e inalcançável; a posse, pois, de
pronto reinstalará a busca (op.cit.: 245-246). O amor romântico guarda um
quê deste desconforto com a posse; embora a desejemos, admitimo-la
como impossível: “o amor moderno é o primeiro a reconhecer que há algo
de inatingível no outro: que o caráter absoluto do self individual erige um
muro entre dois seres humanos, o qual mesmo o desejo mais apaixonado
de ambos é incapaz de pôr abaixo, o que torna ilusória qualquer posse
verdadeira que seja algo além do fato e da consciência de ser amado em
retorno” (op.cit.: 246).
Desprovido do elemento intelectual - já que não amamos uma
substância, mas um ser, tornado insubstituível e único pela bênção deste
toque de amor - esta relação entre “duas unicidades” carrega-se de
382
Mas, na verdade, são os dois que precisam tanto do abandono quanto do grude
- pacto simbiótico. Nessa alternância, o que se busca é estar certo de que a
trama desse drama perdura. (…) Ele precisa ir-se para manter Penélope sob a
ameaça de perdê-lo, e nessa ameaça manter vivo seu desejo por ele, desejo no
qual ele se espelha. (…) No desconsolo dela, ele se consola. (…) As agressivas
escapadas dele são condição de existência dela. Penélope precisa, em sua
espera, queixar-se da Outra - todas as mulheres, reais ou imaginárias, tanto
faz. Nessa queixa, ela se indaga: ‘espelho, espelho meu, existe alguém mais
mulher do que eu?’ E o retorno de Ulisses, resposta do espelho, faz dela A
Mulher”. (op.cit.: 344-345)
fio, elas esquecem, se esquecem. Sem identidade, são pura paixão: nascem de
cada estado fugaz de intensidade que consomem. Seu vôo, já longe do
sufocante mundo dos Ulisses e Penélopes, atinge universos insuspeitos. A vida
se expande. Há uma alegria nessa expansão. Grandeza celibatária. No entanto,
há também uma miséria nisso tudo: é que nunca articulam-se os fios, nunca
territórios se organizam. E assim o potencial de expansão contido na recém-
conquistada intimidade com o mundo se desperdiça. Dispersa. Nessa fúria de
tecer com tantos fios, tão rapidamente substituídos, não mais conseguimos nos
deter. O outro, descartável, é a mera paisagem que, quando muito,
mimetizamos. E, almas penadas, viajamos por entre essas paisagens que se
sucedem, assim como nós mesmos. Nunca pousamos em paisagem alguma de
modo a constituir território e, reorganizados prosseguirmos viagem. Miséria
celibatária” (op.cit.: 346).
O trecho nos oferece muitas pistas para seguir adiante com nossa
reflexão. O contemporâneo fenômeno do “ficar”, diagnosticado entre os
jovens brasileiros a partir dos anos noventa - ou seu predecessor, que
tingiu-se dos tons do desbunde dos anos 70 e atravessou a “geração coca-
cola” da década seguinte, a amizade colorida - poderiam ser pensados
como afins à linha de fuga da máquina celibatária. A amizade colorida
carregava uma tentativa de fazer convergir em uma montagem ideal as
prerrogativas de afeto e cuidado das relações de amor e as de simetria e
cortesia das relações de amizade. Havia aí, ainda que tentativamente, um
desejo de tecer, de dar estofo e extensividade à relação, assim como no
“relacionamento aberto”, outra destas instituições surgidas no bojo do que
Singly (2000) classifica como “segunda modernização”. Já o “ficar”, com
sua gramática fisicalista - “chegar” e “pegar” - e sua regência intensiva,
situacionista, investe mais fortemente no colecionar dos fios de que fala
Rolnik. “O primeiro beijo é sempre o último”, diz uma das jovem
entrevistadas por Almeida & Tracy (2003), durante a investigação das
autoras sobre as gramáticas subjetivas juvenis acionadas pelo ficar, esta
“ubiqüidade do ato”.
As máquinas celibatárias contemporâneas, mimetizando o
pragmático comportamento da “pegação” gay, investem no acúmulo, na
velocidade e na aceleração como valores (Cf. Virilio, 1993b),
desterritorializando-se do modelo de conjugalidade burguês. Contudo,
padecem da incapacidade de reterritorializar-se em um novo modelo
relacional. Isto porque sua cartilha para a inteligibilidade do mundo segue
sendo a do amor romântico; não enxergam uma outra possibilidade de
engate com um par que não seja o doloroso encaixe da “simbiose”, do
“espelho”. Tanto que, na eventual possibilidade de um dos fugazes fios -
388
relação amorosa depurada dava-se, via de regra, entre uma “dama de alta
linhagem” e seu amante, proveniente de um extrato social inferior: “a
desigualdade dos sexos era tão grande que a criação de uma igualdade no
amor requeria uma diferença potencial inicial em outro sentido”, argumenta
Bozon (ibidem). Tratava-se, pois, de um amor ideal e sempre adúltero, e
esta representação imprimiu-se de modo duradouro no imaginário
ocidental, estabelecendo um persistente entendimento, mesmo que
subliminar ou organizado em duplo vínculo, de que o casamento faz
extinguir o amor, ou mesmo lhe é excludente. Ademais, o jogo entre os
amantes consistia em uma série de provas estabelecidas pela dama, às
quais o amigo deveria se submeter na condição de vassalo, com o objetivo
de depurar o amor de um desejo sexual que, neste mesmo movimento,
seguidamente se exaltava.
“Do amor cortês, o Ocidente irá reter duplamente essa oposição radical entre
o casamento e o fora do casamento, quadro exclusivo do sentimento amoroso e
do desejo, assim como essa tensão dialética entre o amor-sentimento e o amor
carnal” (op.cit.: 33)
paixão - esta que havia sido até então adúltera, nas narrativas do amor
cortês - proporcionava o alheamento das atividades mundanas, de modo
que se experimentava, sob o jugo de seu arrebatamento, a sensação de
liberdade. Foi, entretanto, precisamente esta “qualidade de encantamento”
do amor apaixonado que o manteve durante longo tempo refratário à
instituição do casamento (op.cit.: 48; 50). Diversamente do amour passion,
que proporcionava uma suspensão irregular e sôfrega da vida social
cotidiana, o amor romântico promove um desligamento outro, uma vez que
“proporciona uma trajetória de vida prolongada, orientada para um futuro
previsto, mas maleável” (op.cit.: 56): a “história a dois”, narrativa
biográfica mútua que é dotada de prioridade especial no conjunto de outros
dizeres de cada sujeito, é o que permite o deslocamento. Se a autonomia
para decidir quê história viver fortaleceu-se no cenário do amor romântico,
tendo o “romance” se tornado “uma via potencial para o controle do futuro”
(op.cit.: 52), ao mesmo tempo foi também aí que os sujeitos tornaram-se
presas dos incontornáveis paradoxos entre determinação e arbítrio que
acompanhamos com Simmel (1971c) e Rolnik (2005).
Para que tenha sido plausível incorporar à norma a perturbadora
liberdade da paixão, foi preciso decantá-la do ardor sexual, o que só pôde
ser viabilizado através do movimento de idealização do ser amado que,
como já vimos, deu-se no bojo da retomada renascentista do platonismo e
produziu a “metafisicalização do amor” (Cf. Simmel, 1971). Com Giddens
(op.cit.: 51), acrescentamos ainda que este processo pode ser
compreendido também a partir da curiosa e inacabada síntese operada, no
amor romântico, entre o componente transcendente do amor sublime e os
desejos da carne. A atração sexual envolvida no interesse pelo outro e na
escolha do parceiro - mesmo no “amor à primeira vista” - foi, nesta nova
gramática, seguidamente englobada pela idealização envolvida no amor
depurado. Convertido em um “encontro de almas”, o amor passou a
envergar um “caráter reparador”; através dele, “o indivíduo fragmentado
torna-se inteiro” (op.cit.: 56). Tomou, assim, a forma de uma busca: “a
auto-identidade espera a sua validação a partir da descoberta do outro”
(op.cit.: 57).
“A idéia do amor romântico é, neste aspecto, tão historicamente rara quanto
os traços que Max Weber encontrou associados na ética protestante. O amor
rompe com a sexualidade, embora a abarque; a ‘virtude’ começa a assumir um
394
novo sentido para ambos os sexos, não mais significando apenas inocência,
mas qualidades de caráter que distinguem outra pessoa como especial”
(ibidem).
127
O termo “homossexual” apareceu pela primeira vez em 1869, na obra do médico
húngaro Karoly Maria Benkert, contemporâneo do também neologismo “uranista”, então
mais amplamente adotado, usado pelo alemão Karl Heinrich Urichs entre 1860 e 1890 (Fry
& McRae, 1991: 62).
405
pessoas como romanticamente belas. Ser gay é ser livre de vergonha, culpa
e remorso por ser homossexual (…) ser gay é vislumbrar sua sexualidade
como o heterossexual sadio enxerga a dele”, diz o médico americano
George Weinberg (apud Fry & McRae, 1991: 77), em manifesto
“progressista” de 1973.
É importante salientar que a paisagem mais ampla dentro da qual
organizou-se essa politização da homossexualidade contava ainda com o
aparecimento do movimento hippie, com o fortalecimento das militâncias
negras e feministas e com a atmosfera romântica da contracultura. Contra
este pano de fundo mais amplo erigiu-se, primeiro nos Estados Unidos e
depois se espalhando pela Europa ocidental, a Frente de Libertação Gay.
Como ressalta Bozon (2002: 54), contudo, este “cenário
homossexual bem vivo” não era propriamente uma novidade: já havia sido
experimentado na Berlim dos anos 30, na França, na Inglaterra e nos
Estados Unidos (notadamente em Nova York) do entre-guerras. A despeito
de em todos estes países, exceto a França, haver uma legislação
explicitamente repressora das práticas homoeróticas, “já se havia difundido
uma sociabilidade e um estilo de vida homossexuais, fundamentados em
uma grande capacidade de adaptação, assim como no uso de linguagens
codificadas e arte para manter uma vida dupla”. O pós-guerra sinalizou o
retorno a uma “certa invisibilidade”, mas coincidiu, como já vimos, com o
início das pesquisas de Kinsey.
Entretanto - e apesar de, como sublinham Fry & McRae (op.cit.: 97),
“os militantes que pretendiam politizar explicitamente a questão
homossexual serem uma minoria” - as movimentações da década de 70
introduziram uma mudança sem precedentes neste cenário. Emergia a
identidade gay. “Chegou até a ser moda o uso de sinais homossexuais tais
como a letra grega λ (lambda) ou botões com dizeres do tipo: ‘como ousa
pensar que eu seja heterossexual?’” (ibidem). Uma transformação no
cenário das cidades acompanhou este processo: a formação de bairros gays
que “deram corpo à idéia de uma comunidade gay, caracterizada por um
certo hedonismo e um modo de vida em que a procura de novos parceiros
sexuais tem um papel central” (Bozon, 2002: 54-55).
A publicização dos estilos de vida homossexuais fez-se acompanhar
por uma “explosão discursiva” em torno desta nova consciência
406
128
Utilizando-se do trabalho Sharman Levinson (1990), Bozon (2002: 132-133) salienta
que, contemporaneamente, “os relacionamentos entre parceiros sexuais já não são mais
espontaneamente associados aos afetos, mas aos tipos de desenrolar”. Ou seja, a histórias
de referência - retiradas do contexto mais amplo da biografia de cada um, como “quando
eu estava começando a faculdade” ou “durante as últimas férias” - que passam a ser
consideradas medidores indicativos dos desdobramentos possíveis de uma relação. Há,
portanto, um “desejo de duração”, mas este é subsumido às condições de possibilidade
dadas pelo momento de vida em que surge o novo parceiro. A relação pode ou não vir a ser
considerada prioridade.
415
! PERVERTER-SE !
417
129
Veremos, contudo, que este projeto de simultaneidade encontrou no dandismo pelo
menos um “antecedente” forte.
419
130
A decadência aparece, na filosofia vitalista de Nietzsche, revestida do caráter de
perigoso artifício. Sua postura diante do espírito da decadência, longe de ser festiva,
carrega um tom de denúncia daquilo que considera uma arte da sedução. Para ele, onde há
decadência há ausência de vontade e ressentimento contra a vida, insatisfação permanente
e miséria moral. É, contudo, possível extrair o gênio deste estado doentio, através de uma
renovação permanente do pensamento e da aceitação mesmo da decadência como aspecto
inevitável da vida e, neste sentido, extramoral. Evita-se assim que o “saudável” venha a
“contagiar-se”. A fraqueza consiste, para ele, em deliberadamente desejar a decadência,
deste modo qualificando-a, na mesma medida em que se ilude o espírito. Conservar a
lucidez de que a verdade é uma ficção, ao contrário, revela-se caminho fecundo e
libertador. De outro modo, tornamo-nos escravos de um dogma. O elogio da decadência,
para Nietzsche, é sintoma da “crise da modernidade”, traduzida, em seu repertório, sob o
significativo nome de teatrocracia.
435
131
O impacto desta literatura que preteria deliberadamente o público que julgava vulgar,
assim como sua calorosa acolhida por aqueles que se pensavam “eleitos”, bem o podemos
dimensionar pela lembrança aqui, de que foi presenteando-lhe com uma obra desta
vertente literária que Lorde Henry arrematou seu projeto de “influenciar” para o “vício” o
belo Dorian Gray, no já citado romance de Wilde. Transcrevo brevemente as impressões da
personagem de Gray sobre o livro que devorara com volúpia, ao encontrá-lo sobre sua
mesa certa manhã: “O estilo do livro era esse curioso cinzelado, cintilante e obscuro, eivado
de gíria e de expressões arcaicas, de expressões técnicas e paráfrases complicadas, que
distingue a obra de certos simbolistas franceses. Havia, nessas páginas, metáforas
semelhantes a orquídeas monstruosas, de colorido sutil. A vida sensual estava descrita em
termos de filosofia mística. Em certas passagens, era difícil discernir se elas expressavam
os êxtases espirituais de algum santo medieval ou as confissões doentias de um pecador
moderno. Era em suma um livro venenoso” (2005 [1891]: 109; grifos meus).
441
132
“De fato, as vanguardas do final do século XIX tentaram criar a arte da nova era dando
continuidade aos métodos da antiga, cujas formas de discurso ainda partilhavam”, diz
Hobsbawm (op.cit.: 324), para quem a transformação significativa, que traria impactos
então inimagináveis para as sensibilidades, pode ser assinalada na “época em que a
tecnologia aprendeu a reproduzir obras de arte”. A reprodutibilidade técnica diagnosticada
por Benjamin (1994b), com efeito, abriu caminho para a fotografia e para o cinema, e
deste, segundo Hobsbawm, viria uma transformação de amplitude e intensidade muito
maiores que a professada pelas artes de vanguarda. “As artes do século XX foram
revolucionadas, mas não por aqueles que assumiram o encargo de fazê-lo” (op.cit.: 337),
argumenta o autor.
443
133
Segundo Hobsbawm, “antes de 1914, as vanguardas artísticas não estavam envolvidas
com o cinema e aparentemente não tiveram interesse por ele”, de modo que “o lazer de
massas industrializado revolucionou as artes do século XX, e o fez separada e
independentemente da avant-garde” (op.cit.: 336). O autor prossegue: “a vanguarda só
levou realmente a sério o veículo no meio da guerra, quando ele já estava praticamente
maduro”. Até então, “a forma típica de show-bussiness de avant-garde” havia sido o balé
russo, “para o qual o grande empresário Diaghilev mobilizou os compositores e pintores
mais exóticos e revolucionários” (ibidem). Wiser (1994) descreve longamente a construção
do Ballet Russes de Diaghilev, esmiuçando detalhes de “bastidores” e as articulações que
fizeram destes espetáculos um lugar de experimentação para os autores de vanguarda - da
música e dos cenários às óperas “infames”, como a lendária Le Boeuf sur le Toit, de
Cocteau, que depois viria a nomear um dos cafés mais freqüentados pela boemia dos anos
20. Diaghilev, contudo, “visava sem hesitação a uma elite de esnobes culturais bem-
nascidos e bem-relacionados”, enquanto o cinema, notadamente o capitaneado pelos
produtores do Star System norte-americano, se pautará justamente pela estratégia oposta,
a de buscar o “mínimo denominador comum”, agradando potencialmente a todos (ibidem).
Este ponto é interessante e ainda retornaremos a ele: segundo Hauser (1995: 982), pelo
menos desde meados do século XVIII, a burguesia fora seguidamente consolidada como o
público das artes; o cinema será a “a primeira tentativa de produzir arte destinada a um
público de massa”. Sabemos que será nesta voltagem para as “massas” e no sublinhar da
exponibilidade das obras que Benjamin (1994b) assentará a transformação do lugar social
444
“É moderno aquilo que todos querem ser, mas também aquilo que
deve ser rejeitado” (op.cit.: 23). Será na complexa injunção entre o
134
E completa, dando a medida deste tempo estendido, consoante com o formato da
experiência como valor: “Em 1839, era elegante levar consigo uma tartaruga ao passear.
Isso dá uma noção do ritmo do flanar nas galerias” (op.cit.: 193).
454
135
A dinâmica da superação que norteia o desfolhar das vanguardas faz-se presente
também aqui. Com o encarnar do último grito da modernidade na figura do dândi, o
romântico passa a nomear a fantasmagoria. E a paisagem “natural” louvada pelos primeiros
românticos atualiza-se. Diz Benjamin (1997: 191): “o antigo sentimento romântico da
paisagem se dissolve e se origina uma nova visão romântica da paisagem, a qual parece
ser, antes, uma paisagem urbana, se, em verdade, a cidade é o autêntico chão sagrado da
flânerie”. É assim que se torna possível todo um conjunto de imagens, coletado por
Benjamin, no qual o urbano emerge como selva, savana, floresta. Alguns exemplos, em sua
eloqüência, nos bastam. “O pátio das Tulherias, imensa savana plantada com bicos de gás
no lugar das bananeiras”, compara Paul-Ernest de Rattier, enquanto Amédée Kermel
456
escreve sobre a Galeria Colbert, em Paris: “o candelabro que a ilumina parece um coqueiro
no meio de uma savana” (op.cit.: 193).
136
Não há, possivelmente, figura mais emblemática do que Rimbaud para nos servir de
exemplo desta “descida aos infernos” (bem mais que Uma temporada no inferno, o título de
suas poesias - Cf. 1981) que pode custar a escolha apaixonada da errância e do ócio. “Que
século das mãos!… jamais entregarei as minhas!”, bradava o jovem Rimbaud, denunciando
o perigo que corre a “mão que escreve” dos eleitos: o perigo de vir a ter de entregar-se
como “mão que lavra”. O poeta resolveu o conflito radicalizando-o, abandonando a própria
escrita em 1875, aos 21 anos, para abraçar a aventura da “fuga” a que intermitentemente
já havia se dedicado tantas vezes, agora em deambulação “definitiva”. Neste movimento,
Hauser (1995: 922) enumera as ocupações - capitulações do vagabundo à “mão que lavra”
- a que ele teria recorrido para viabilizar sua grande viagem, não mais em flânerie pelas
cidades, mas de país em país, a fome de exotismo conduzindo-o por fim à África:
“consegue ganhar a vida como professor de línguas, vendedor ambulante, empregado de
circo, estivador de porto, jornaleiro agrícola, marinheiro, voluntário no exército holandês,
mecânico, explorador, traficante nas colônias e Deus sabe o que mais”.
457
Com efeito, a segunda mulher de Dell, Marie Gage, com quem ele se
casou em 1919 e se mudou para os subúrbios, abandonando o universo do
Village, embora fosse uma intelectual socialista e uma ativista do
feminismo, teria renunciado ao investimento em sua vida pública depois de
casada; aos 23 anos, estava convertida em esposa e mãe. E, segundo
Wilson, não se tratava de um caso isolado: “a insistência masculina em um
papel tradicional para a mulher não era incomum, mesmo na boemia”,
argumenta. Ela prossegue: “eles [os boêmios americanos] tinham
dificuldade em alinhar seus supostos ideais radicais e a crença no
feminismo com seu desejo por relacionamentos amorosos nos quais as
mulheres permanecessem subordinadas” (op.cit.: 123-124). Não apenas
eles, poderíamos dizer; trata-se aí de uma persistente “dificuldade” com a
qual se depararam, sob esta ou outra roupagem, todos os que se
engajaram em alguma sensibilidade de vanguarda.
De certo modo, embora não apenas por isso, é porque esta tensão se
apresenta como insuperável que, seguidamente, os comportamentos “de
vanguarda”, com toda a carga de experimentalismo declarado que os
rodeia, foram e são associados a uma etapa do ciclo de vida considerada
137
transitória: a juventude. Uma lógica da superação compulsória, por assim
dizer, não apenas parece estar em jogo no desfolhar sucessivo de novas
vanguardas a tornar as anteriores obsoletas, mas também no próprio
tempo de vida útil de um investimento identitário ligado a este universo, em
qualquer de suas versões. Se no nível biográfico esta dinâmica pode levar a
137
Vimos como esta concepção das “fases da vida” convive, contemporaneamente, com o
alargamento da idéia de juventude e sua conversão em valor para todas as faixas etárias.
Ao invés de necessariamente transitória, a juventude - contaminada pelo ideal de uma vida
extensamente intensa - vê-se hoje revestida por um mandamento contrário; convertida em
468
e estigma. Vautrin não era um homem comum que, entre outras coisas, amava
outros homens. Era um fora-da-lei, ou melhor, fora-de-série. Um ser de
exceção que, por ser excepcional, era ‘homossexual’” (op.cit.: 46).
eleita, brindado com uma visão de mundo singular, mais feliz que os
“normais” e enquadrados “heteros”. Este, claro, é apenas um dos tipos de
uma vasta e rica galeria. Acompanhamos no Cultivar-se como esta
personagem, o gay, entra em cena com a “consciência homossexual”
defendida pelas militâncias. O combate ao preconceito encerrado nesta
nova personagem, contudo, padece, como argumenta Costa, do
compartilhamento das mesmas premissas e do mesmo vocabulário discreto
acionado pelo ato classificatório que engendrou o próprio preconceito. Ao
pleitear igualdade, “[as militâncias] tornaram-se cúmplices de um sistema
de crenças onde definitivamente não há espaço para dois primeiros
lugares” (op.cit.: 36; grifos do autor). E isto porque
“em todo laço social marcado pelo preconceito não há como escapar da
montagem imaginária da discriminação, guardando o sistema de nominação
responsável pela identificação e fixação dos sujeitos nos lugares prescritos pela
montagem. A maneira que temos de sair da engrenagem é desfazê-la, e não
reformá-la preservando os termos de sua definição e deixando-a intocada na
base” (op.cit.: 35).
138
Esta imagem do homossexual como individualista radical encontra modos de
reprodução os mais diversos e aparentemente contraditórios. Para além de uma
apresentação de si que acione de modo mais explícito um sabor outsider e se reproduza a
partir da sistemática negação dos valores da família burguesa, tive a oportunidade de
analisar em outro lugar (Eugenio, 2003) uma alternativa que caminha na direção oposta, a
do engajamento em projetos de família “homoparental” cuja tônica parece ser o desejo de
produção de uma “hipernormalidade”.
479
dizer como solo para as reflexões propostas nesta tese? Como fazer
comunicar - já que se comunicam, com efeito - esta atmosfera de virada de
século com as questões características do “controle” - o cálculo e a
competência como orientadores das condutas contemporâneas? Precisamos
agora fazer ver a transfusão do valor-ruptura ao valor-mediação.
Dos “anos loucos” (sintetizados por uma literatura que sacralizou a
segunda década do século XX139) à “contracultura” como movimento que
marcou as décadas de 60 e 70, a “história” que se conta é daquelas que
enumeram destronamentos de “novos” sucessivamente desmascarados
como “velhos”. É aquela, também, que nos dá notícias de um mundo (que
ainda é o nosso mas já não é o nosso) esquadrinhado por classificações
discretas no qual o “desvio” até pode ser convertido em valor, romantizado
e tingido de fascínio, mas somente na medida em que segue sendo pensado
como exceção e outro da norma, e isto tanto pelos acusadores quanto pelos
acusados.
Cabe perguntar não por quê, mas como este relato nos pode ser útil,
e em quê medida, portanto, justifica-se acioná-lo. O próprio “desfecho”
desta “história” talvez nos forneça a chave para matar a charada,
apontando ademais para as dobras sucessivas que, “depois do fim” (o “fim
da vanguarda” decretado pelos próprios vanguardistas e seus interlocutores
na década de 60), permitiu sua “continuidade” pelo caminho da
transformação (teria havido algum outro?), sua deglutição sob a forma
híbrida de que falávamos há pouco, no parágrafo final do último bloco.
Ao escrever sobre a “tradição moderna” na poesia, Octavio Paz
problematiza justamente o caráter paradoxal desta “tradição feita de
139
“O ‘século XX’ começa depois da Primeira Guerra Mundial, ou seja, na década de 20,
assim como o ‘século XIX’ só começou por volta de 1830”, nos diz Hauser (1995: 957).
Como exemplos contundentes desta literatura, basta citar Os anos loucos, de Wiser (1994)
e Paris é uma festa, de Hemingway (1964). Neste último, que cobre o período de 1921 a
1926, o teor de uma das declarações do escritor norte-americano, ainda na epígrafe, já
revela o conteúdo de encanto de todo o livro: “Se você teve a sorte de viver em Paris
quando jovem, sua presença continuará a acompanhá-lo por toda a vida, onde quer que
você esteja, porque Paris é uma festa móvel”. No mesmo período, no Brasil, sob a
influência do futurismo italiano - e particularmente de Marinetti, que visita o país em 1926 -
, desenvolvia-se o ideário modernista nas artes brasileiras; realizava-se a Semana de Arte
Moderna de 1922, “faziam-se brasileiros” no movimento de exílio voluntário das viagens a
uma Europa fascinante. O trabalho de Fabris (1994) acompanha este intenso e ativo diálogo
das vanguardas paulistas com o futurismo italiano, ao longo de toda a década de 20, bem
como seu “declínio” e denúncia, seguidos da mudança de rumo - rumo ao “homem social
brasileiro” - que assinala a passagem para a década de 30. Excederia nossa proposta tratar
do modernismo brasileiro aqui.
481
que está interdito na segunda metade do nosso século [XX] não é a noção
de arte, mas a noção de modernidade” (op.cit.: 13). Visibiliza-se como
tendência, aí, a possibilidade de uma outra “constituição” - não “pós-
moderna”, mas “plenamente moderna” (para retomar Cicero, citado na
epígrafe deste capítulo). “Realização máxima da modernidade” que, por
esta via mesmo, vem a espiralar-se em liso, a sinalizar um possível
“sistema de híbridos”.
*
140
“É Picasso quem o descobre, em 1904, quando volta de sua quarta viagem à Espanha.
(…) Um espaço bizarro, num lugar incrível. Uma antiga fábrica de pianos, construída em
1860, que se tornou residência de artistas, graças a um tapume de madeira cercando o
local. O lugar ficava na encosta da colina [de Montmartre] e a entrada era pelo último
andar. Ao descer, ia-se deslizando por corredores escuros, abafados no verão, gelados no
inverno. Os ateliês recebem luz através de amplas janelas que dão para o Montmartre. No
primeiro andar, há uma bica: a única. E os banheiros: os únicos. O teto dos andares
inferiores é o assoalho dos andares superiores. Ouve-se tudo de um cômodo para o outro:
colchões que rangem, pontuados por outros gemidos, cantorias, gritos, barulho de passos.
As frestas do assoalho permitem que nada se ignore sobre os feitos e gestos do vizinho. As
portas mal se fecham. Picasso, entretanto, fica encantado. Olha com avidez para aquela
estranha construção de madeira que não se parece com nada. ele a chama de Maison du
Trappeur. Max Jacob tem outra idéia. A cabana parece com as barcaças de fundo chato
sobre as quais as lavadeiras lavam roupa no Sena. Dá-lhe então o nome que, saindo da rua
484
141
Observamos contemporaneamente, como sintoma característico entre os sujeitos desta
tese, um similar destacamento em relação a projetos políticos de engajamento nos
486
“interesses comuns” à Rousseau, bem como a adoção do projeto individual como voltagem
privilegiada. O “sucesso” compatível com um “comportamento-tendência”, portanto. A
relação de exclusão entre os dois é uma temática recorrente, que assinala tensão
permanente - mas não inviabiliza acomodações possíveis, como assinalamos na faixa de
freqüência deste princípio do século XX, e como também podemos observar
contemporaneamente, na orientação que faz da competência um valor-chave. Se nos é
lícito propor o anacronismo, bem poderíamos ver em Picasso - o gênio “arrogante”,
idiossincrático mas extremamente bem-sucedido, fiel apenas a si mesmo, encarnação
máxima da zombaria à “vontade geral”, desengajado mesmo que não sem conflitos, que
soube conciliar seu projeto “inovador” com o enriquecimento e o reconhecimento - um
sujeito competente nos moldes do que se busca contemporaneamente. É significativo que
Hauser (1995: 963-965) aponte Picasso como “o artista mais representativo da era
presente” (escreve na década de 50), ao mesmo tempo em que sublinhe que ele assim
pode ser considerado justamente por seu “ecletismo” que junta o injuntável e por sua
“deliberada destruição da unidade da personalidade”, congregando através de “formas
híbridas” os estilos opostos que setorizavam, segundo o autor, cubismo e construtivismo,
por um lado (como formais e “retóricos) e expressionismo e surrealismo, por outro (como
destruidores da forma e “terroristas”).
487
142
Também no amplamente conhecido “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade
técnica” (1994b) Benjamin saúda o dadaísmo como injeção de novidade, movimento afim
ao espírito do tempo que transfere o artístico da esfera do “ritual” e do valor de culto para a
da “política” e do valor de exposição. A “tatilidade” da proposta dadaísta, para Benjamin
assim como também para Hobsbawm (veremos adiante), será realizada mais amplamente
pelo cinema. “A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de
arte criada para ser reproduzida”, nos diz ele (op.cit.: 171). O elogio da existência serial da
obra de arte, no dadaísmo; o ataque à autenticidade e à autoria; o procedimento pautado
pela montagem, pela destacabilidade e pela mostrabilidade; tudo isso, aliado à política do
“choque”, responde pelo fascínio de Benjamin pelo movimento (op.cit: 190-192). Podemos
ao mesmo tempo, saliente-se, ver aí continuidade e ruptura: será possível diagnosticar
apenas um dos “sintomas”, alguma vez?
488
143
“É um homem sem importância coletiva, exatamente um indivíduo”, diz a epígrafe de A
Náusea (1970 [1938]).
499
144
Todos os dualismos eliminados, Sartre os engloba em apenas um: finito versus infinito.
Este, sob a roupagem do ser versus parecer, constituirá a base de sua ontologia, tal como
apresentada em O ser e o nada (1943), e depois tornada mais “palatável” na conferência O
existencialismo é um humanismo (1970), resposta às muitas críticas que recebera.
500
ser capaz de “nunca deixar de ser jovem”, este movimento só seria possível
porque “nunca” se teria sido outra coisa que não “razoável” (Ver Abismar-
se, item 1). Gostaria de acrescentar apenas mais uma consonância com a
gramática existencialista: que a contemporânea individualização radical
gere também ela um código de comportamento (o maquinismo da
competência) e não uma completa atomização das escolhas, como talvez se
apressem em afirmar muitos dos autores “pós-modernos”, nada há de
contraditório. Uma analítica possível pode ser encontrada na afirmação de
Sartre da “impossibilidade para o homem de superar a subjetividade
humana”, mesmo que sucessivamente instado a escolher para si.
“Quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um
de nós se escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao
escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens. Com efeito, não há dos
nossos actos um sequer que ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao
mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser. (…) ao
mesmo tempo em que construímos a nossa imagem, esta imagem é válida
para todos e para toda a nossa época” (op.cit.: 219; grifos meus).
145
Como nos diz Burger (1990: 49) a respeito de Andy Warhol e suas latas de sopa
Campbell, “temos aí uma mera duplicação, com todos os direitos do original. O sujeito
cancelou sua habilidade de se expressar na obra de arte. Mas é justamente através desse
gesto de auto-supressão que ele ganha a aura que de longe supera o brilho de um ego
artístico que vive desse poder. No centro da instituição de arte, permanece um sujeito que
prova ser muito mais resistente do que o anúncio de sua própria morte”.
505
(…) O mesmo princípio vale para o presente. Uma forma asiática, para integrar
o universo branco da semiologia pós-moderna, deve ser depurada de seu peso
cultural. A história, que havia sido o fulcro da crítica em relação ao
modernismo, se esvai no formalismo. O espaço reivindicado pelos pós-
modernos nada tem de local, e eu diria, inclusive, de universal: ele é
simplesmente um traço adaptável a seus diferentes usos.” (op.cit.: 142).
146
São estas as palavras de Charles Jenks, citadas por Ortiz (ibidem), para definir o pós-
modernismo na arquitetura como “a combinação de técnicas modernas com alguma coisa a
mais (usualmente edifícios tradicionais), a fim de que a arquitetura se comunique com o
público e com uma minoria interessada, usualmente outros arquitetos”.
507
Mas não nos apressemos. Este elogio das diferenças, elogio que fez
com que Lyotard viesse a ser saudado como o primeiro grande filósofo da
pós-modernidade por conta de sua “teoria das diferenças”, não conduz,
como os “teóricos pós-modernos” tendem a apontar, a uma indiferença
generalizada (como se houvesse vida após a indiferença!). E isto porque o
uso destas diferenças equiparadas não é indiferente; é, ao contrário,
procede produzindo contingentemente distinção. As formas reabilitadas da
“tradição” ou do “popular” são, no jogo com as demais formas que
compõem o leque de possíveis na arte, no comportamento e nas visões de
mundo, reinvestidas de outra carga valorativa. Seguem sinalizando
distinções, ainda que distinções outras, na medida em que são convocadas
por outros agentes e combinadas de maneiras que antes seriam
consideradas improváveis ou mesmo impossíveis. A hierarquia - entre
“passado” e “presente”, entre “alta” e “baixa” cultura, entre “erudito” e
508
147
E é interessante sublinhar o caráter deste novo lugar, que Benjamin chama de político,
justamente quando proliferam os diagnósticos, entre os artistas, de um generalizado
esvaziamento das posturas engajadas em favor de uma ênfase nos projetos pessoais. Não
há o que discordar de Benjamin, muito pelo contrário. Porque é de política ainda assim que
se trata, mas de uma política “singularizada” (micropolítica?), que por isto mesmo se
assentará na exposição e na exponibilidade das obras: a carreira de sucesso deverá ser
negociada junto a um público alargado, pois, como ressaltou o próprio Benjamin, ao
princípio da contemplação individual e do recolhimento contrapõe-se agora a recepção em
massa: “a massa é a matriz da qual emana, no momento atual, toda uma atitude nova com
509
148
“As coisas do espírito nunca são assinaladas por marcos muito nítidos”, nos diz Roszak,
“mas é possível que Howl [O Uivo] de Allen Ginsberg tenha constituído o mais divulgado
anúncio da guerra entre as gerações” (1972: 35). É interessante sublinhar que o autor
coloca lado a lado à influência dos escritores beats o aparecimento da revista MAD, ambos
concorrendo para formar uma geração que viria a contestar o american way of life: “os
meninos que tinham doze anos quando MAD apareceu têm vinte e poucos hoje - e já
trazem consigo uma experiência de dez anos em tratar o conteúdo da vida de seus pais
como objeto de irrisão” (ibidem).
513
149
O que não quer dizer que os Estados Unidos não tenham produzido seus braços de
engajamento político radical, e lembrar das lendárias agitações promovidas pelos yippies
(os integrantes do Youth International Party) no final dos anos 60 basta para esclarecer
este ponto.
514
normas absolutas; a viajar nas imaterialidade das cifras e das senhas, dos
serviços e das ações anônimas; a dividuar os indivíduos, instados a
fazerem-se aos moldes da empresa, e não mais da fábrica (Deleuze, 1992:
219-226).
Constrói-se assim assepticamente a tecnocracia, apoiada em “nossa
mais inelutável mitologia” (op.cit.: 26), as ciências, convencendo-se e
convencendo-nos de “que essa análise formal (e altamente esotérica) de
nossas necessidades acha-se atualmente concluída em 99%” e “que os
especialistas que sondaram nossos recônditos desejos e que são os únicos
capazes de continuar a prover nossas necessidades, os especialistas que
realmente sabem o que dizem, estão todos eles na folha de pagamento
oficial da estrutura estatal e/ou empresarial”, de modo que “os especialistas
importantes são os autorizados e os especialistas autorizados pertencem à
matriz” (op.cit.: 23-24). O texto de Roszak é bem-humorado, bem escrito,
irônico - mais que isso, contudo. Oferece-nos um panorama da cultura
contra a qual organiza-se, justamente, a fala da contracultura. Esta,
projeto juvenil, diz ele. Esta, projeto de ruptura que, pelo menos nos
moldes sonhados pelo próprio Roszak, em seu assumido idealismo, não se
cumpriu.
Contemporaneamente, por mais que possamos ver pontos de contato
com o cenário por ele descrito (no que tange a uma vida normatizada do
cotidiano às grandes questões, atravessada pelo esquadrinhamento
científico em sua cruzada contra o risco e a finitude, e também no que
tange ao esvaziamento do tom político dos investimentos, asseptizado e
substituído pela fala pretensamente neutra das ciências), vemos o time de
especialistas deslocar-se consideravelmente (porque, no limite, cada um
deve tornar-se especialista de si para si, no modelo da individualização
radical que autoriza, mas também obriga, a formulação de um receituário
idiossincrático de vida) apenas para ser também reabilitado (já não
concentrado na “folha de pagamento oficial”, mas espraiado em uma
multiplicidade de falas, todas concorrendo como reveladoras e potenciais
condutoras de uma vida tornada perturbadoramente “livre” pelo recuo das
normas absolutas). Se falta fôlego, há ainda mais: vemos também, e talvez
a mais saliente das mudanças, uma realocação da juventude. Se aquela era
a juventude que encarnava o motor contracultural, gerador da interrogação
516
150
Refletindo sobre as condições que teriam conduzido a esta “passividade”, Roszak
enumera: “A lembrança da derrocada econômica na década dos trinta; a perplexividade e o
cansaço causados pela guerra; a patética, posto que compreensível, busca de segurança e
tranqüilidade no após-guerra; um mero torpor defensivo face ao terror termonuclear e o
prolongado estado de emergência internacional durante o final da década de quarenta e na
de cinqüenta; a perseguição aos comunistas; a caça às bruxas e o barbarismo infrene do
macartismo… sem dúvida tudo isso contribuiu em parte. E houve ainda a rapidez e o ímpeto
519
151
Sennet (1988) já sinalizara que os tempos de “declínio do homem público” são também
os da “tirania da intimidade”.
532
ANEXOS
535
! Sortimento !
O Cd contem:
! Seleção de fotografias da pesquisa
! Amostras de música: techno, electro, house, trance e chill-out
! Amostras de flyers e e-flyers (filipetas-convite de eventos e festas)
536
! Clipping !
Seleção de material jornalístico 2003/2006
! Referências Bibliográficas !
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