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História Da Fenomenologia - Marina Massimi

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História da Fenomenologia 1

Marina Massimi2

A ARVORE GENEALÓGICA
Começaremos por uma “história de família”.... Encontramos a árvore genealógica da
fenomenologia num livro muito importante de um autor chamado Spielberg, que elaborou um texto,
justamente, sobre a história da fenomenologia3. Trata-se de um texto muito bem feito, muito
complexo, compondo a história de todo o movimento fenomenológico, inclusive dentro da
psicologia e, antes, dentro da filosofia. A árvore genealógica da fenomenologia mostra como esta
nasceu enquanto movimento intelectual: nasceu de uma rede de relacionamentos entre mestres e
discípulos. É isso que cria um tipo de pensamento diferente! .
Como fica evidente pelo quadro de Spielberg, existem várias fases do movimento
fenomenológico. A originária deu-se, sobretudo, na área germânica (Áustria, Alemanha), onde se
processou todo o trabalho inicial da fenomenologia. É aí que trabalhou Husserl, e posteriomente um
aluno do Husserl que foi o Heidegger (1889 - 1976), o qual cria uma outra corrente junto com outros
pensadores: o Existencialismo. Existe também, uma vertente francesa da fenomenologia, maios
tardia, que é bastante conhecida na Psicologia. Um nome importante dessa vertente é M. Merleau-
Ponty (1908 - 1961), cujos trabalhos abordam assuntos psicológicos, como percepção e
comportamento. Um outro autor importante é o P. Ricoeur (n. 1913). E, por fim, J.P. Sartre (1905 -
1980) e Gabriel Marcel (1889 - 1973).
No Brasil é muito conhecida a Fenomenologia na interpretação fornecida por Sartre. Na
realidade, Sartre não é um fenomenólogo ortodoxo. Ele aproveita da tradição fenomenológica,
assim como do Existencialismo, conjuga isso com o pensamento marxista e constrói um pensamento
próprio. Em se tratando de entender o que é a Fenomenologia na sua origem, sem dúvida, é melhor
ler autores como Husserl, porque assim entende-se o momento originário e mais puro do
pensamento fenomenológico. Sartre é um autor que merece ser estudado por seu pensamento
próprio, mas seria errado considerá-lo um representante puro e simples da fenomenologia, pois ele

1
Palestra proferida em 14/ 03/ 2000 para a Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).
2
Marina Massimi é Doutora em Psicologia, professora associada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto - USP e especialista em História das Idéias Psicológicas.
3
SPIELBERG, H. Phenomenology in Psychology and Psychiatry an Historical Introduction. Evanston: Nortwestern
University Press, 1972.
não é e vários fenomenólogos ressaltam isso. Há muita confusão teórica e intelectual devido, às
vezes, a essa falta de historicidade, inclusive no estudo da própria Filosofia.

BRENTANO, O INICIADOR
O iniciador de todo o percurso intelectual chamado de movimento fenomenológico foi um
autor que nasceu na Áustria, no século passado, chamado Franz Brentano (1838 - 1917). Um
filósofo importante, também um psicólogo muito importante, desconsiderado por muitos autores da
história da Psicologia, mas que, na realidade, foi a pessoa que começou todo o movimento de idéias
que levou à criação desta nova perspectiva de pensamento filosófico e científico que é a
fenomenologia. Como Brentano desenvolvera esse movimento de idéias? Escrevendo livros, mas,
sobretudo, dando aulas nas universidades. Com efeito, ele foi professor em várias universidades da
Áustria e da Alemanha. Logo, teve muitos alunos. E alguns deles foram pessoas muito famosas,
como: Husserl (1859 - 1938), Freud (1856 - 1939) e outros que se tornaram importantes autores hoje
bem conhecidos pela história da Psicologia e da Filosofia, como por exemplo Max Scheler (1874 -
1928), C. Stumpf (1848 - 1936) e Christian von Ehrenfels – os dois iniciadores da Teoria da Gestalt,
antes dos grandes nomes mais conhecidos que são Wertheimer, Koffka e Kohler. Stumpf e
Ehrenfels, a partir do interesse pela música (pois os dois eram músicos) começaram a estudar a
percepção buscando um método adequado, esforço este que posteriormente deu origem à Teoria da
Gestalt. A influência do Brentano na maneira desses dois autores estudarem a percepção foi
determinante.
Outra pessoa que, após Husserl, deu uma importante contribuição à fenomenologia foi Edith
Stein (1891 - 1942), que foi a discípula e deu continuidade ao trabalho do Husserl.
Estudaremos um pouco essas origens: o pensamento do Brentano e a sua continuidade
através daquele que foi o aluno mais importantes: E. Husserl. Husserl, quando freqüentava as aulas
de Brentano não era um filósofo e sim um matemático curioso por aprofundar as origens do
pensamento científico, especialmente da matemática e da lógica. Apaixonou pela filosofia devido às
aulas do Brentano. Daí nascera todo o seu grande trabalho que buscava fundar uma nova maneira de
entender o que é a Filosofia e o que é a Ciência, propondo um novo método de uso da razão: a
Fenomenologia.
Em primeiro lugar, porém, vamos conhecer um pouco mais a posição filosófica de Brentano,
o qual tanto foi importante como professor e que tantos discípulos foi instruindo.
Em primeiro lugar, podemos conhecer Franz Brentano por algumas fotos do álbum de
família.4 Há uma foto antiga na qual vemos Brentano, muito jovem. Há outra foto interessante
porque nos permite dar alguns traços da própria bibliografia do Brentano, o qual, na realidade,
começou o seu trabalho intelectual e a sua vida profissional sendo seminarista e, depois, sacerdote
da Igreja católica. Desempenhou esta função ao longo de vários anos de sua vida. O período de
estudos no seminário foi muito importante na formação intelectual do Brentano, porque alí ele
atingira profundamente as fontes da filosofia aristotélica e da filosofia medieval. Fontes essas que
sempre constituíram-se num núcleo fundamental, originário, de seu pensamento. Depois de alguns
anos, ele deixou o sacerdócio e dedicou-se totalmente ao trabalho de professor, entendendo que esta
seria sua missão. Com efeito, viveu o resto de sua vida lecionando e escrevendo alguns textos muito
importantes, entre os quais, um texto que se chama Psicologia do Ponto de Vista Empírico5,
publicado em 1874. O interesse pela Psicologia, apesar de ele ser principalmente filósofo, é muito
claro por sua própria obra bibliográfica. Algumas fotos do álbum de família mais tardiamente
mostram o Brentano como professor. Ele morou na Itália – durante a última parte de sua vida –
devido à situação política da Áustria e, na última parte da existência, na Suíça, onde faleceu. Seus
retratos e suas biografias revelam uma personalidade muito forte e fascinante.
Delinearemos agora com algumas pinceladas a biografia do Brentano, para entender melhor
as datas que podem ser importantes. Sua formação em Filosofia ocorre em Tubinga, que é uma das
universidades mais famosas da Alemanha. Ordenado sacerdote em 1864, em 1873 deixa o
sacerdócio, sendo já professor em Würzburg, que é outra cidade muito importante para a história da
Psicologia, porque em Würzburg, nesse período, existe um grupo importante que está tentando criar
uma proposta de Psicologia experimental, chefiado por O Kulpe. Posteriormente, Brentano torna-se
professor em Viena onde leciona ao longo de muitos anos (de 1874 a 1880); na última parte da vida,
ele vive na cidade de Florença, na Itália. Transcorre os últimos anos na Suíça, onde falece, pois
devido ao início da Primeira Guerra Mundial (em 1915), Brentano tinha-se lá transferido por ser a
Suíça um país neutro.

Buscaremos a seguir compreender a importância de Brentano para a Filosofia e, sobretudo,


para a Psicologia. Num livro de história da Psicologia recentemente publicado na Itália, História da
Psicologia no Século XX 6, o autor, Luciano Mecacci, cita a afirmação de E.B. Titchener, o mais

4
Marina Massimi apresentou algumas dessas fotos aos participantes da palestra.
5
BRENTANO, Franz Clemens. Psychologie von empirischen standpunkte. Hamburg. Hamburg: Von Felix Meiner,
1955. *
BRENTANO, Franz Clemens. Psychologie du point de vue empirique. 2. ed. Paris: Aubier, 1944. **
6
MECACCI, L. Storia della psicologia nel Novecento. Bari: Laterza, 1992.
importante aluno do W. Wundt: “O psicólogo deverá escolher entre Brentano e Wundt. Não há
caminho intermédio entre Brentano e Wundt.” (apud Mecacci, 1992, p. 47). Trata-se de uma
afirmação muito desafiadora para nós, pois não necessariamente como psicólogos conhecemos quem
é Brentano e sua proposta de Psicologia científica. Põe-se a questão de como poderemos escolher
entre Wundt, que todos nós conhecemos pelos manuais de História da Psicologia, e alguém muito
menos conhecido pela História da Psicologia, que é Franz Brentano? Pois é raro que um manual de
história da psicologia dedique a este autor pouco mais do que alguns parágrafos sucintos e
superficiais. Com efeito, a história clássica da Psicologia, elaborada principalmente pelos
historiadores americanos, censurou quase totalmente Brentano e a importância de sua contribuição.
Exemplo grave dessa censura encontra-se num dos mais importantes manuais de história da
psicologia traduzidos no Brasil, que é o de Schultz, História da Psicologia Moderna8, o qual dedica
apenas poucas linhas ao Brentano! Este é um grande problema para quem dá aula de história da
psicologia! Não encontramos nos manuais de história da Psicologia quase nada sobre este autor. O
que isto significa? Que, para entender o pensamento do Brentano, tem que se fazer um trabalho de
reconstrução de seu pensamento e que ainda deve ser escrita uma História da Psicologia que faça jus
a essa realidade e dê um espaço adequado, legítimo, para esse tipo de produção intelectual. É um
problema historiográfico muito sério o fato de não encontrarmos textos em idioma português que
abordem o estudo de Brentano de maneira digna.
Quais os motivos dessa alternativa? No século XIX, quando colocam-se os alicerces da nova
ciência que seria a Psicologia, há um importante movimento cultural, na Alemanha, que termina na
criação da Psicologia Experimental por W. Wundt. Registra-se uma data muito importante, 1879,
data da fundação do primeiro laboratório de Psicologia Experimental em Leipzig. Ao mesmo tempo,
nos Estados Unidos é instituída a cátedra de Psicologia nas universidades – e aqui destaca-se a
grande figura de William James. Todavia, não há exatamente uma convergência entre esses dois
pensadores acerca do que deva ser uma Psicologia científica, pelo contrário, há vária,s diferentes e
conflitantes propostas. A proposta de Psicologia científica que o Brentano vai elaborar é alternativa,
em certo sentido, à proposta de Psicologia Experimental elaborada por Wundt e a da Psicologia
científica elaborada por James.

7
TITCHENER, Edward Bradford. (1921) Brentano and Wundt: Empirical and Experimental Psychology. Em
Systematic Psychology: Prolegomena. New York: McMillan, 1929, p. 3.
8
SCHULTZ, Duane P. História da psicologia moderna. Tradução de Alvaro Cabral. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1987. *
SCHULTZ, Duane P. História da psicologia moderna. Tradução de Adial Ubirajara Sobra, Maria Stela Gonçalves. 8.
ed. São Paulo: Cultrix, 1996. **
Portanto, Titchener, que tinha clara estas questões por ter sido aluno do Wundt e
sucessivamente transferido para os Estados Unidos, afirmava que haviam dois caminhos possíveis
para a psicologia como ciência, caminhos estes que foram propostos desde sua fundação, desde a
origem e que não havia alternativa nem continuidade entre um e outro. Por serem dois caminhos
totalmente diferentes, colocariam todo psicólogo diante de uma escolha fundamental entre eles. O
que é interessante para nós, psicólogos, porque diz da necessidade de conhecer as opções feitas na
história, no passado da psicologia, mas também de opções que ainda hoje devem ser feitas, para
definir, inclusive, a própria maneira de ser psicólogo, a própria maneira de entender a psicologia.
Por exemplo, Schultz, o autor do livro já citado História da Psicologia Moderna, expressa uma
destas opções, a de colocar-se ao lado de Wundt, atribuindo a Brentano um espaço muito limitado
em seu manual, por ele achar que realmente W.Wundt é o legitimo pai da Psicologia moderna.
A contribuição mais importante de Brentano à Psicologia é o tratado, Psicologia do Ponto de
Vista Empírico, (de que infelizmente não existe ainda uma tradução em idioma português). A data
desse texto é importante: 1874. Por que é importante? Porque é o ano do auge do Positivismo no
Brasil: em 1870 é publicado o primeiro livro positivista, o primeiro manifesto do Positivismo
brasileiro, que é o livro Três Filosofias9, do médico Luis Pereira Barreto. São os anos quentes da
disputa do Positivismo em relação à tradição filosófica anterior. E exatamente em 1874 Wundt
publica o texto que devia tornar-se a ‘bíblia’ da nova Psicologia Experimental: o Tratado de
Psicologia Fisiológica10. Por isso, a coincidência dos dois livros não é casual. O tratado de Wundt é
publicado em data um pouco anterior à fundação do Laboratório de Psicologia Experimental (1979);
neste, Wundt inaugurou uma perspectiva de pesquisa em Psicologia Experimental muito ligada à
Fisiologia. É importante evidenciar também que Wundt era médico de formação, mas que
posteriormente graduou-se também e filosofia.
Abordaremos agora o pensamento de Franz Brentano. Antes de mais nada será importante
compreender o que o Brentano entende por Filosofia e que tipo de Filosofia ele propõe, num clima
tão hostil aos estudos filosóficos como era o clima moldado pelo Positivismo naquele período. Com
efeito, o Positivismo afirmava que a Filosofia não é um saber que conduz à verdade e que o único
saber que leva à verdade é a ciência, ou seja o saber acerca dos fatos definidos ‘positivos’. Há,
portanto, uma recusa de toda a tradição filosófica e, principalmente, das filosofias tradicionais

9
BARRETO, Luis Pereira. Tres philosophias, primeira parte:philosophia theologica. Rio de Janeiro: Ed. Laemmert,
1874. **
BARRETO, Luis Pereira. Tres philosophies: philosophia metaphisica. Jacarehy: Typ. Commercial, 1876. **
10
WUNDT, W. Traite elementaire de phisique medicale. 2. ed. Paris: S.N., 1884. **
(aristotélica, platônica e medieval). Em suma, há uma recusa do corpo originário, que deu origem a
todo o pensamento da filosofia moderna.
Diante disso, Brentano assume uma posição corajosamente ‘contra-corrente’. Antes de mais
nada, ele afirma que o saber filosófico é fundamental para o que ele define de ‘reforma da
humanidade’. Contrapondo-se muito claramente ao positivismo, ele insiste no fato de que Filosofia é
fundamental para que a vida humana seja mais verdadeira. É também importante evidenciar que
Brentano não foi o único pensador que colocou esta posição. Na Alemanha da época, existiu todo
um movimento muito forte contrário ao Positivismo. Há autores que, inclusive, tentaram elaborar
uma Psicologia alternativa à Psicologia positivista ou uma Filosofia que realmente fosse fiel à
tradição especulativa (exemplo, W. Dilthey). Portanto, Brentano não foi o único. Todavia, dentre
esses, Brentano destaca-se por colocar que o saber filosófico é importante não apenas para o saber
acadêmico, mas sobretudo para uma concreta reforma da humanidade. Ao dizer isto, ele retorna ao
significado original da Filosofia que não nascera como pensamento acadêmico mas como
conhecimento visando a reforma da vida concreta. Trata-se de usar a razão para que a vida humana
seja mais verdadeira. Brentano reafirma este ideal originário num período político bastante
dramático da vida da Europa e de seu País: um tempo cheio de guerras (antes das guerras mundiais,
houve outras guerras localizadas e muito freqüentes, entre as nações européias).
Frente ao desafio deste cenário dramático, Brentano insiste no fato de que é fundamental
recuperar a Filosofia, entendida como uso da razão voltado à verdade da existência do homem e da
sociedade. Que tipo de filosofia ele vai propor? Uma filosofia cujo método seja fundado na
experiência. Por isso, Brentano chama-o inicialmente de método ‘empírico’. Esta qualificação de
“empírico” assume porém uma qualificação bastante diferente do conceito de empírico próprio da
Filosofia empirista inglesa dos séculos XVII e XVIII, como discutiremos em breve.
O método da filosofia deve ser baseado na experiência mas, ao mesmo tempo, rigoroso.
Contra o Positivismo, ele recoloca a filosofia como um saber rigoroso. Ele desmente o rotulo
positivista de que a filosofia seria um conjunto de crenças, ilusões, sonhos. Ela não é uma ciência,
mas obedece a um ‘rigor’. O ‘rigor’ é uma palavra que será muito importante na terminologia da
Fenomenologia, pois, depois do Brentano, Husserl insistirá muito nessa palavra. E é uma palavra
muito importante nas ciências humanas.
Brentano pergunta-se por onde atingir o significado dessa verdadeira filosofia. E a resposta é:
olhemos para o passado, consideremos a história da filosofia. Entendamos a diferença do olhar
positivista. Reconheçamos que a filosofia não é um campo de ruínas, um lugar de soluções errôneas;
pelo contrário, é preciso que recuperemos no âmbito de sua história, momentos em que, de fato, a
razão e a racionalidade atuaram de uma forma construtiva.
De fato, Brentano passa a analisar algumas fases importantes na história da filosofia e
identifica a sua fase mais plena (que define como “fase ascendente”) no momento originário, por
utilizar o método realmente racional. Assinala dois autores - Aristóteles e São Tomás – como os
melhores representantes desta fase. Seguindo este método, Descartes e Leibniz também conseguiram
resultados importantes. São estes quatro grandes filósofos que o Brentano coloca na origem do
método racional. Principalmente Aristóteles e São Tomás.
A batalha cultura que Brentano empreende é que o saber ocidental se volte de novo para tais
origens da Filosofia. Assinala a fase decadente da filosofia no momento histórico em que o interesse
puro de uso da razão é substituído por um interesse prático que reduz a razão a puro instrumento de
controle da realidade. É a fase, por exemplo, representada no século XVI, por Francis Bacon,
segundo o qual saber é poder, sendo que a filosofia deveria servir como instrumento desse poder.
Esta virada, segundo Brentano, deu origem a uma terceira fase que é a decadência total do uso da
razão, que leva ao ceticismo. Ocorrem também reações ao ceticismo (quarta fase), que são, por
exemplo, o subjetivismo, o irracionalismo, o recurso a outros métodos que não sejam exatamente
racionais. Trata-se de um juízo histórico muito pertinente também aos nossos dias, que parecem
pertencer ainda à essa quarta fase: a presença de várias formas de irracionalismo, daquela que se
define como ‘filosofia fraca’, ou ‘desconstrução’, uma palavra atualmente muito utilizada, inclusive
entre os psicólogos e que é expressão da falta de confiança que está acontecendo ainda hoje no uso
da razão. Diante desse panorama, Brentano empreende sua tentativa de renovação da Filosofia.
Como parte deste projeto, aborda também o papel da Psicologia.
O aspecto importante do pensamento filosófico de Brentano é a crítica ao Positivismo. Na
discussão acerca dos parâmetros definidores da ciência, Brentano assume uma posição
epistemológica que define como ‘realista’. Esta posição é muito importante para entender a origem
do método fenomenológico: para ele, a verdadeira ciência (e portanto, a Psicologia enquanto
ciência) não deve se preocupar tanto com as medidas e a quantificação das coisas, mas com a
adequação do ‘eu’ que conhece à realidade do objeto. Pois o pensamento realmente conhece as
coisas e o ‘ser’. Trata-se da grande descoberta do seu pensamento: a razão conhece o ‘ser’ das coisas
e não aquilo que ela constrói sobre o ser das coisas. Nisto contrapõe-se, por exemplo, à posição do
subjetivismo empirista do inglês Berkeley. Brentano insiste no fato de que a razão pode conhecer o
‘ser’ da realidade, sendo este conhecimento o objetivo dela: conforme às origens da Filosofia, o
pensamento corresponde ao ‘ser’, à realidade. É possível pensar um real e não apenas uma imagem
nossa do real. O pensamento não é construção, mas é adequação do pensamento humano da razão à
realidade.
Neste contexto, nasce a proposta da Psicologia Empírica. Vejamos diretamente pela leitura
do texto do autor, o que ele entende com isto. Analisaremos a seguir dois trechos retirados da
introdução da Primeira edição do livro em 1874, e do primeiro capítulo, em que Brentano descreve
os objetivos visados na obra:
Brentano coloca na Introdução à Primeira Edição:
O título dessa obra indica seu objeto e seu método. Eu me coloco na psicologia do ponto de vista
empírico. Minha única mestra é a experiência, mesmo que eu acredite que isto seja compatível com
um certo grau de intuição ideal. A obra compreende, em sua diversidade, todos os domínios
essenciais da psicologia. O nosso objetivo é o de realizar, numa certa ordem de idéias, aquilo que
a matemática, a física, a química e a fisiologia já realizaram com mais ou menos atraso, a saber:
encontrar um núcleo de verdades, geralmente reconhecidas. Por volta do qual e através de
diversas contribuições poderão juntar-se todas as partes de um novo domínio do saber. As
psicologias, nós procuraremos substituir uma Psicologia.” (tradução nossa, edição italiana, 1997,
vol. 1, p.61)

Ainda na Introdução da obra, escreve:

“No domínio da ciência, bem como no da política, o acordo dificilmente se realiza sem uma guerra
preliminar. Porém, na luta filosófica, a questão é que triunfe, não a opinião de um ou outro
pesquisador, e sim, unicamente, a verdade. A origem dessas lutas tem que ser, não a vontade de
dominação, mas o ardente desejo de uma submissão comum a uma verdade única e universal.
Portanto, meu interesse não é o de aparecer como um inventor de uma nova doutrina, mas como
um representante de uma doutrina verdadeira e segura. Existem os inícios da psicologia científica.
Em si mesmos, esses são pouco importantes mas representam os sinais certos: que é possível o
desenvolvimento mais completo e fecundo.” (idem, p. 62)

Esse segundo trecho mereceria de estar escrito nas portas das nossas faculdades! Quer dizer,
o objetivo é construir um saber que seja verdadeiro. Esta palavra é muito importante, seja para
Brentano, seja para Husserl. O objetivo do uso da razão é chegar à verdade. E a verdade não é fruto
de opiniões, é um caminho mais profundo, é uma adesão à realidade das coisas. Por isso é
importante a questão da posição do realismo epistemológico que Brentano adota.
Outro aspecto a ressaltar é que a Psicologia Empírica é, ao mesmo tempo, baseada na
experiência e é científica, assim como “as outras ciências”. Brentano afirma a esperança que a
realização deste projeto seja possível e que haja uma convergência dos psicólogos por volta de sua
proposta.
No começo do primeiro capítulo, Brentano aborda a discussão sobre a natureza da
psicologia:

“Noção e Objeto da Ciência Psíquica: “Na origem, alguns fenômenos viventes e bem
conhecidos pareciam explicar realidades misteriosas. A seguir, reconhecidos mais obscuros do que
todos os outros fenômenos, provocaram curiosidade e estupor. Os grandes pensadores da
Antigüidade lhes dedicaram o melhor de suas atividades. Aos nossos dias, é ainda acerca desses
fatos que se mostram o menor acordo e a menor clareza. São exatamente esses fenômenos o objeto
que eu estudo. Eu tentarei esboçar aqui uma síntese mais verdadeira de suas propriedades e de
suas leis. Todo reino da verdade, perdendo essa província, pareceria pobre e desprezível e todas
as outras ciências só pareceriam dignas de estimação somente na medida em que seriam
preparatórias para ela. Na realidade, as outras ciências são suas subestruturas. Esta é como a
conclusão que coroa a obra. Todas as outras tentaram-na, todas as outras a preparam, ela
depende de todas, mas, ao mesmo tempo, é necessário que ela renove toda a vida da humanidade e
torne seguro o seu progresso. Desse modo, por um lado, a psicologia aparece como uma fatia do
bolo, que simboliza as ciências como um todo. Por outro, ela é destinada a tornar-se a base da
sociedade e os seus bens, os mais preciosos, e por isso mesmo o fundamento de todos os anseios
dos que buscam da verdade.” (ed. italiana 1997, p. 67 )

Assinalamos neste texto duas coisas importantes. Primeiro, que o objeto da psicologia é algo
muito importante e muito difícil. Ë uma constatação que podemos fazer nossa – pois é importante
comparar sempre os textos dos autores com a nossa experiência. Brentano coloca que desde a
antigüidade o pensamento humano preocupa-se com este objeto, a razão humana tentando
compreende-lo. O objetivo de Brentano ao fazer estas afirmações é marcar que há uma longa
tradição que não pode ser jogada fora. A psicologia científica não está começando tudo de novo,
existe uma história anterior que deve ser levada em conta. Ao mesmo tempo, como se trata de um
objeto muito difícil, é preciso de paciência. É importante estudar esse objeto porque ele é básico
para toda nossa procura de verdade, para o nosso eu. Segundo Brentano, para nós, homens, não
adiantaria estudar apenas as ciências naturais, se não entendermos também quem somos nós; seria
inútil. Algo semelhante já Santo Agostinho tinha escrito nas Confissões11, num trecho muito bonito.
Não é casual essa coincidência, pois Brentano estudou muito Agostinho e encontramos muitos
elementos do pensamento de Agostinho no trabalho de Brentano. A preocupação com a ciência do
eu do homem é justificada pelo fato de que o eu do homem é a coisa mais importante do mundo.
Não basta se preocupar e se voltar para a natureza, como todos os cientistas grandes da época
faziam, mas é importante olhar para o homem.
Ao abordar a natureza da ciência psicológica, Brentano afirma que se trata de uma psicologia
descritiva e não de uma psicologia que busque dar, antes de mais nada, a explicação causal dos
fenômenos. Nisso, a sua proposta contradiz totalmente a proposta do Wundt, cuja idéia era de que a
base da psicologia científica fosse a explicação e, portanto, a busca das relações causa-efeito dentro
dos fenômenos psíquicos. Brentano, pelo contrário, acha que, antes de explicar, é preciso entender e
olhar do que se trata e, por isso, nós precisamos descrever. Do ponto de vista metodológico, a
descrição é fundamental para que aconteça um olhar, inclusive, científico, que dê conta do

11
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1988. *
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. 18. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2002. **
fenômeno como tal. É a valorização da descrição, do ponto de vista metodológico, como método
científico.
Nós podemos encontrar essa influência, grande nessa época, em autores até da psicologia
experimental. Por exemplo, na própria Teoria da Gestalt há um exemplo assim. No livro A Teoria da
Gestalt de W. Kohler encontra-se um texto muito lindo em que ele fala exatamente disso, de que é
importante, antes de mais nada, descrever. Todavia, este mesmo autor depois se envereda por
caminhos que às vezes acabam sendo ambíguos por esse ponto de vista, buscando uma explicação
causal para os fenômenos psíquicos.
A influência da ênfase brentaniana na importância da descrição, é grande: para conhecer um
fenômeno é preciso, antes de tudo, olhá-lo, observá-lo. Esta posição é uma conseqüência da posição
do realismo epistemológico. Brentano insiste na cientificidade desta posição. Com efeito: o que
aprendemos através da descrição? Damo-nos conta da evidência dos dados empíricos. Por isso se
trata de uma psicologia empírica, ou seja, baseada na experiência.
Falava-se muito naquela época de experiência, porque toda a ciência falava que os dados são
próprios da experiência. Todavia, Brentano dá a essa palavra um significado mais profundo, mais
amplo. Por ser uma psicologia empírica descritiva, ela não é uma psicologia filosófica igual à
psicologia de toda a tradição anterior que o Brentano muito bem conhecia. Não é apenas isso.
Segundo Brentano, existe uma psicologia filosófica, ou seja, uma especulação acerca do que é o eu
do homem, de sua origem, do seu destino, de sua relação com os outros seres, com o mundo, com a
natureza. Mas ele propõe fundar a psicologia na observação dos dados da experiência. Então, não se
trata de uma reflexão que usa o método dedutivo, próprio da filosofia, mas de uma ciência, ou seja,
de um conhecimento baseado, antes de mais nada, na observação da realidade.
Todavia, no caso da psicologia, a observação não é exatamente igual à que se processa nas
ciências naturais. Por exemplo, a experimentação, para o Brentano, não é tão importante para definir
a psicologia como ciência, embora ele não descarte o uso da experimentação. Mas trata-se de um
segundo momento. Neste ponto também, existe uma outra grande diferença em relação ao Wundt o
qual, pelo contrário, acha que, para a psicologia ser ciência, ela só deva e possa ser experimental, ou
seja, basear-se no conhecimento obtido no laboratório fazendo experimentos.
Brentano liberta a psicologia do influxo do modelo epistemológico das ciências
experimentais, a partir da afirmação de que é o objeto (como em toda ciência, mas também na
psicologia) que deve ditar o método adequado para que ele tudo seja conhecido – e não vice-versa. É
um outro aspecto da epistemologia realista que ele está seguindo.
Nesse sentido, o método vai sendo criado na medida em que eu vou conhecendo mais esse
conteúdo. Por isso, no início, trata-se de uma psicologia descritiva que, ao se fazer, vai elaborando
uma metodologia. Isso, nesse texto, é interessante porque se vê que, embora o Brentano não
houvesse feito trabalhos de psicologia aplicada, pois era um filósofo, ele constrói todo um caminho
nessa perspectiva.
Então, o que Brentano define como “psicologia” (uma vez que ela seria uma ciência mas não
exatamente uma ciência igual às ciências naturais)?
A definição que podemos encontrar no primeiro capítulo do texto: “A psicologia é a ciência
dos processos mentais.” (1997, p. 67). Aparentemente a mesma definição que William James
propõe em 1891, no livro Princípios de Psicologia. Porém, apesar dos termos serem os mesmos,
seus significados assumem conotações bastante diferentes nos dois autores.
Essas três palavras definem a Psicologia:
1. Ciência.
2. Processos. (Processos é uma palavra dinâmica. Contrapõe-se à definição do Wundt de
psicologia como uma ciência das estruturas vitais, ou seja, dos elementos da consciência,
entendidos como estáticos; enquanto que a palavra processos quer enfatizar o caráter
dinâmico dos fenômenos.)
3. Mentais (referindo-se à realidade da mente).
Vamos agora ler um outro texto desta obra, que é um pouco mais difícil. Podemos também
encontrá-lo traduzido num manifesto famoso, Textos Básicos de História da Psicologia12 do Edwin
Boring, mas nbós preferimos acompanhar aqui a tradução italiana do texto de Brentano:

“Em conclusão, devemos reunir os resultados de nossa discussão a respeito da diferença


entre o psíquico e o físico. Em primeiro lugar, demonstramos as características dessas duas
classes. Depois designamos, como fenômenos psíquicos, idéias e outros fenômenos que se baseiam
em idéias – tudo mais pertence ao físico. A respeito, falamos do atributo de extensão em que os
psicólogos insistem como uma peculiaridade de todos os fenômenos físicos: tudo que é psíquico
não tem extensão. No entanto, essa afirmação não deixou de ter oponentes e as últimas pesquisas
ainda não chegaram a uma decisão a respeito. Tudo que se estabeleceu é que os fenômenos
psíquicos realmente parecem inteiramente sem extensão. A seguir, verificamos que a peculiaridade
discriminadora de todos os fenômenos psíquicos é sua ‘in-existência intencional’, sua relação a
algo como um objeto. Nada dos acontecimentos físicos mostra qualquer semelhança com isso.
Além disso, afirmamos que os fenômenos psíquicos são os objetos exclusivos da percepção
interior. Só eles são percebidos por dados mediatos. Na verdade, só eles são aceitos como
verdadeiros, no sentido completo dessa palavra. Além disso, mostramos, como diferença final, que
os fenômenos psíquicos, que alguém percebe, sempre lhe parecem, apesar de toda sua
diversificação, comunitários. Enquanto que os fenômenos físicos, talvez se perceba no mesmo

12
HERRNSTEIN, Richard J. & BORING, Edwin G. (orgs.). Textos Básicos de História da Psicologia. Tradução de
Dante Moreira Leite. São Paulo: Herder: Ed. Universidade de São Paulo, 1971.
momento, não se apresentam da mesma maneira mas ocorrem como partes do fenômeno singular.”
(1997, p. 163-164)

Trata-se de um texto difícil, mas vamos tentar entender. Uma vez definido o método, o que o
Brentano vai fazer? Vai definir qual é o objeto da psicologia. Nesse trecho, que é muito sintético, ele
define quais são as características do objeto da psicologia e, ao fazer isso, vai diferenciar esse objeto
da psicologia radicalmente do objeto das ciências naturais, ou seja, dos fenômenos físicos.
Nisso, Brentano se insere numa discussão muito grande – que tem sobretudo como teatro a
Alemanha – entre grupos de filósofos e de cientistas. Uns dizem que existem duas ciências (a
ciência dos fenômenos físicos e a ciência dos fenômenos que eles chamam do espírito, ou seja, dos
fenômenos humanos – as ciências assim chamadas humanas), cujos métodos são diferentes. E outro
grupo de filósofos e cientistas, ligados ao positivismo, diz existir uma única ciência, um único
método, sendo que o fator que define a ciência é a unicidade de método. Portanto, todas as ciências,
sejam as que se interessam pelo homem, pelo animal ou pela matéria, são do mesmo tipo e seus
respectivos objetos também devem ser análogos. Essa discussão muito importante, acontece
principalmente na Alemanha: trata-se de uma questão de tipo epistemológico, ou seja, de teoria de
conhecimento, de como conhecer. E nessa discussão, Brentano se insere decididamente ao lado dos
chamados ‘dualistas metodológicos’, segundo os quais existem dois grupos diferentes de ciências –
as humanas e as naturais - porque tratam de dois objetos radicalmente diferentes. Para eles, o
método não poderia nivelar essa diferença, aliás isto seria mortal para a própria ciência.
Mas qual é essa diferença? O que caracteriza peculiarmente o objeto da psicologia? A
primeira coisa que nós lemos, no texto de Brentano, é que os fenômenos psíquicos, à diferença dos
fenômenos físicos, não têm extensão, ou seja, não são fenômenos colocados no espaço. Aqui não se
fala em comportamento, mas em consciência. E, portanto, os fenômenos da consciência não têm
extensão, ou seja, não podem ser determinados no espaço.
Esse é um problema seríssimo que se coloca na origem da psicologia moderna. Kant se dá
conta – ao ver também o trabalho do filósofo alemão Herbart que estava tentando criar uma
psicologia como ciência – de um grave problema desse tipo de proposta: para podermos fazer
ciência, de verdade, dentro do molde dos fenômenos naturais, precisamos determinar espaço-
temporalmente a posição do objeto, a partícula de matéria que vamos estudar. E, no caso da
psicologia, não existe essa possibilidade pelo simples fato de que o fenômeno psíquico não tem
dimensão espacial, só tem dimensão temporal. Assim, Brentano retoma estas considerações da
filosofia kantiana. É uma das raízes importantes do pensamento do Brentano. Trata-se de uma
objeção grave que Kant faz à toda psicologia – vários teóricos da Psicologia moderna, entre eles J.
Piaget, tentaram responder a ela –, é um problema sério que ele coloca.
A diferenciação entre ciência psicológica e ciências naturais, portanto, não é uma
contribuição original de Brentano, mas deriva de Kant. Segundo este, o fenômeno psíquico
(diferentemente do fenômeno físico) não tem extensão. No texto, Brentano retoma esta afirmação:
“A seguir, verificamos que a peculiaridade discriminadora de todos os fenômenos psíquicos é a sua
‘in-existência intencional’...”, que em português é muito mal traduzido, porque não é inexistência
no sentido de não-existência, mas in-existência, ou seja, existência dentro.
Vamos entender melhor: “... sua relação a algo como um objeto. Nada nos acontecimentos
físicos mostra qualquer semelhança com isso.” É o trecho mais difícil, pelas próprias palavras do
texto, mas o que expressa a contribuição mais original do pensamento do Brentano e que está na
origem, no cerne da Fenomenologia, do conceito de consciência da Fenomenologia. O que significa
isso? O que ele chama de in-existência intencional? Vamos pensar no contexto dos fenômenos
psicológicos, por exemplo, a emoção. Um exemplo de emoção: a tristeza. Quando eu fico triste essa
experiência não é uma experiência no vazio. A tristeza que eu experimento sempre se relaciona a um
objeto presente na minha consciência que é o motivo da tristeza, que desencadeia em mim a tristeza.
No caso do medo, acontece a mesma coisa. Não tenho um medo indeterminado. Tenho medo de
algo, mesmo que esse algo não necessariamente seja uma existência real; mas é uma presença dentro
da minha consciência. Ou seja, a estrutura da consciência humana é sempre abertura a uma presença
que se manifesta dentro dela. Por isso se diz que ela é intencional, é voltada em direção a esse
objeto, seja ele real, seja imaginário. Brentano, inicialmente, coloca que o objeto pode ser
imaginário mas na fase final do seu pensamento admite que sempre o objeto é real. Outro exemplo:
a memória. A memória é de algo, o pensamento é de algo, a percepção é de algo. Não percebo sem
objeto. Toda a estrutura da psique humana, da consciência humana é relacional.
E de onde vem isso? Isso não é algo que Brentano inventa. Nesse sentido, mostrarei a
história desse conceito que ele define como intencionalidade, ou seja, “tensão para”. Sua origem é o
termo latino intentio, o que quer dizer, “tensão para, na direção de algo” (de onde nasceu também a
origem da palavra intenção). O que caracteriza todo o fenômeno psíquico é o que os filósofos
escolásticos da Idade Média chamavam de ‘presença intencional’ e que nós podemos chamar de
‘relação com o conteúdo’, ‘direção para com um objeto’ ou ‘objetividade imanente à consciência’.
Existe na consciência uma objetividade imanente, a consciência não é uma subjetividade vazia,
assim como o empirismo inglês tinha proclamado e como proclama uma das grandes leis da
psicologia moderna e do subjetivismo da psicologia moderna.
Brentano afirma que, dentro da consciência, existe uma objetividade imanente. E continua:

“Todo fenômeno psíquico contém em si alguma coisa a título de objeto, mas cada um a
contém segundo uma modalidade própria. Na representação existe sempre algo que é
representado, no juízo alguma coisa que é reconhecida objetada; no amor alguma coisa que é
amada, no ódio alguma coisa que é odiada, no desejo alguma coisa que é desejada e assim por
diante. Essa ‘presença intencional’ pertence exclusivamente aos fenômenos psíquicos, nenhum
fenômeno físico apresenta algo semelhante. Nós podemos, por isso, definir os fenômenos psíquicos
dizendo que são fenômenos que contêm intencionalidade no objeto.” (1997, p. 164)

Encontra-se essa mesma raiz também no pensamento de S.Freud, que foi aluno do Brentano.
Mais adiante no texto, há uma nota muito interessante, que Brentano coloca, em que relata a história
do conceito, dizendo que sua origem está em Aristóteles (384-322 a. C.), no De Anima, ou Tratado
sobre a Alma13, quando afirma que o objeto é percebido como tal dentro do sujeito que percebe e
que o espírito contém imaterialmente em si o próprio objeto. Brentano cita outros filósofos,
comentadores do Aristóteles, e depois chega a Santo Agostinho, de quem retoma o conceito do
“verbo-mente”, e em São Tomás de Aquino. São Tomás ensina que o objeto pensado é intencional
num sujeito que pensa, o objeto do amor é presente no sujeito que ama, o objeto do desejo é presente
no sujeito que deseja.
Esse conceito já tinha sido utilizado por Santo Agostinho com fins teológicos. Por quê? Ele
utilizara isso para explicar um dogma da teologia cristã muito importante, que é o dogma da
Trindade: a relação entre três Pessoas, cada uma das quais é inerente à outra. É a estrutura relacional
desse dogma que define a própria essência do ser de Deus. Agostinho afirmava que a estrutura
intencional do ser (ou seja, a estrutura relacional) é própria também da divindade. Esse é um
conceito que ele utiliza na Teologia e que, depois, utiliza também no pensamento propriamente dito
da Filosofia. É o conceito de que todo ser é a relação com o objeto, tem nele o objeto com o qual se
relaciona; inclusive o próprio ser de Deus.
Na realidade, o que o Brentano faz? Retoma esse conceito de uma longa tradição. Vemos,
assim, como é importante a história para fundar o pensamento original, pois não existe uma
criatividade no ar, sem raízes. Brentano afirma que essa idéia é genial, porque ela pode explicar o
que é a consciência do homem, pode dar conta de explicar o que é o objeto da psicologia. Assim,
uma idéia que podia ficar perdida na teologia, na escolástica medieval, é retomada em outro
contexto. Brentano reitera que neste conceito há uma intuição que não foi desenvolvida pela
filosofia posterior a estes autores e que pode ser uma das bases mais interessantes para definir o
objeto da nova ciência psicológica.
O que é, portanto, o fenômeno psíquico? é a representação de um objeto. Só que essa
representação não é a reconstrução proporcionada pelas nossas idéias – como sugeria o Idealismo.
No sentido brentaniano e fenomenológico, a representação é o ato de representar – é o ato da
consciência que se debruça na realidade, na direção do objeto, é o objeto que se re-apresenta à
consciência. Nesse sentido, Husserl depois dirá que o fenômeno psíquico é realmente um fenômeno!
A palavra fenômeno vem do grego phainómenon que significa manifestação, isto é, a manifestação
do objeto à consciência. Dessa forma, a representação não é a nossa reconstrução, mas é a
apresentação que o objeto faz de si à consciência e a consciência, por sua vez, colhe o objeto.
Esse ato de representar não é um ato apenas intelectual, mas é um ato unitário da vida
psíquica em que não há uma separação entre sensorial, afetivo e imaginativo. A vida psíquica se
move como uma unidade. Isso contraria a teoria de Wundt, que tinha separado (e por isto sua
psicologia fora definida como ‘elementarista’) as componentes da psique em várias dimensões. Hoje
em dia a psicologia moderna ainda sofre dessa ruptura porque temos que construir a unidade dos
fenômenos psíquicos e da vida psíquica em seu conjunto, a posteriori.
Brentano coloca que é na origem que o fenômeno é unitário. Quando eu vejo alguma coisa,
ao mesmo tempo eu também faço experiência de uma emoção com relação àquela coisa, ou seja, o
meu afeto se move com direção àquela coisa, a minha memória se move com relação àquela coisa.
Inteligência, sensibilidade e afetividade caminham juntas no ato psíquico. O ato psíquico é esse
movimento da consciência. Por isso, a psicologia do Brentano foi chamada Psicologia do Ato.
Assim, o que o psicólogo deve conhecer? O psicólogo deve conhecer esse ato psíquico.
Essa idéia da unidade da consciência também não é uma idéia nova, na realidade isso já está
presente em Santo Agostinho. Agostinho é um autor muito importante, que todo psicólogo deveria
conhecer, independentemente de sua doutrina teológica, porque ele funda a possibilidade da
psicologia. Como já vimos, no Tratado sobre a Trindade14, é que Santo Agostinho – discute o
dogma da Trindade, a partir do homem, imagem-e-semelhança de Deus. O homem – assim como
Deus - teria uma estrutura tridimensional, e por isso o psiquismo humano teria também uma
estrutura tridimensional, funcionando como uma unidade, embora seja composto por dimensões
diferentes. Agostinho coloca que memória, entendimento e afeto funcionam como uma unidade. É
dessa idéia da escolástica medieval que o Brentano vai derivar o conceito de unidade da consciência.
Há uma outra coisa muito importante no trecho que lemos anteriormente, sobre o modo de
conhecer a consciência. Brentano diz que é pela percepção interna ou interior que eu conheço a

13
ARISTÓTELES. De Anima: livros I e II (trechos). Tradução de Lucas Angioni. Campinas: Universidade Estadual de
Campinas, 1999. * / **
14
AGOSTINHO, Santo. A Trindade. Tradução de Frei Agustinho Belmonte. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995. * / **
consciência. Ele havia escrito: “Além disso, afirmamos que os fenômenos psíquicos são os objetos
exclusivos da percepção interior. Só eles são percebidos por dados mediatos. Na verdade, só eles
são aceitos como verdadeiros, no sentido completo dessa palavra.” O que Brentano entende como
percepção? Para ele, a consciência é a percepção interior que eu tenho da experiência. Eu tenho a
percepção da realidade exterior que é, por exemplo, a percepção dos objetos; e a percepção de mim
mesmo, da minha realidade, da minha experiência interior na relação com esses objetos. Eu posso
ver algo, mas eu tenho, imediatamente, a minha percepção do que eu experimento, ao ver esse algo.
Esse é o ponto que diferencia a Psicologia – do ponto de vista metodológico – da Física,
porque esta se baseia na observação da realidade exterior. Brentano diz que em psicologia a
observação é um tanto diferente até porque, se nós observássemos a nossa realidade psicológica do
mesmo jeito que o físico faz, como Wundt pretendia, essa mesma observação modificaria a
percepção interior, ou seja, a experiência psicológica, como já Kant tinha assinalado.
Citamos um exemplo concreto que o próprio Brentano dá. Quando você está bravo com
alguém, encolerizado com alguém ou com algo (com o professor que foi chato e lhe deu uma nota
ruim), pensa: “vou colocar uma bomba na sala dele (do professor)”. Depois do primeiro instante de
raiva, porque você tirou zero e não merecia, você reflete, espera um pouco. Se você se dá conta de
que está com essa raiva muito grande e começa a refletir sobre ela, você modifica essa experiência.
Daí a um minuto, você refletiu e viu que está com raiva, percebeu que está com raiva. O que
acontece? Essa observação que fazemos de nós mesmos modifica a experiência psíquica. Nesse
sentido, a observação não pode ser utilizada em Psicologia da mesma forma como na Física, porque
a observação, desse jeito, modifica a experiência. Esse é um problema complicado do ponto de vista
metodológico.
Então, Brentano vai se perguntar como podemos olhar para essa experiência e podemos fazer
ciência dela. Através de dois recursos: a memória (observar o fato que aconteceu no passado – que já
aconteceu – e me debruçar sobre esse acontecido) e a observação da experiência do outro. Este é
outro recurso que permite que eu possa me debruçar de uma forma rigorosa, sem modificar a própria
experiência..
O que é a percepção interna? É a própria experiência psíquica que se manifesta ao nosso eu.
Toda experiência psíquica é necessariamente consciente e a percepção interior se identifica com a
consciência. É uma evidência que acontece para mim mesmo: isso é o que ele chama de percepção
interna.
E mais, há a idéia de que essa percepção seja uma percepção relacional: dentro dela eu não
percebo apenas a minha raiva, mas a minha raiva e o objeto da minha raiva. A idéia de
personalidade funciona dentro disso. Nossa própria percepção interior revela isso, tanto que nós
fizemos esse exercício e no começo falei da emoção: do medo, da tristeza... Olhando para nós e
olhando para a nossa experiência, vemos que o objeto está junto com a raiva, com o ódio...
Retomemos tais conceitos na leitura do trecho a seguir:
“Mas observem bem: nós falamos em percepção interior, não em observação interior, como
fonte primeira e indispensável da psicologia. Essas duas noções não são idênticas. Aliás,
representa o caráter essencial da percepção interior o fato de que ela nunca poderá transformar-
se em observação interior. O motivo é o seguinte: o objeto daquilo que nós chamamos
normalmente percepção externa, nós podemos observá-lo. Para compreender bem um fenômeno, é
preciso aplicar toda nossa atenção para observá-lo. Todavia, isso é totalmente impossível no caso
do objeto da percepção interior. Esta consideração é clara ao estudarmos alguns fenômenos
psíquicos como a cólera. É suficiente observar o estado de cólera em nós mesmos para que este se
acalme e desapareça. Desta forma, porém, perdemos o objeto da nossa observação. O mesmo vale
para todos os fenômenos psíquicos. Conforme uma lei psicológica constante, nós não podemos
aplicar a nossa atenção ao objeto da percepção interna. A memória dos nossos fenômenos
psíquicos passados pode ser objeto da atenção e, portanto, permite uma efetiva observação.”
(1997, p. 157)

Não se trata, neste caso também, de uma idéia do Brentano. É um problema que Kant, antes
dele, já havia colocado. As duas objeções que Kant faz à criação de uma psicologia como ciência
eram a impossibilidade de definir o objeto da psicologia no espaço (a falta da extensão) e a
modificação do fenômeno psíquico pela observação. Vimos que toda a psicologia moderna, desde o
Behaviorismo até o Piaget, tenta responder a essa dificuldade epistemológica séria que a Filosofia
coloca. Brentano recoloca-a e tenta responder também.
HUSSERL, DISCÍPULO E FUNDADOR
Traçamos aqui algumas pinceladas rápidas da idéia que Brentano propunha em seu livro e
em suas aulas, às quais vários discípulos e vários cientistas assistiram. Entre eles, como já disse, um
matemático que se chamava Edmund Husserl. Esse matemático, que também tinha um interesse
grande pela verdade na ciência, começou a ficar muito provocado por essas lições do Brentano e a
dar-se conta de que, atrás da retomada que o Brentano fazia da tradição filosófica, havia uma
possibilidade de refundação da filosofia moderna.
Como já dissemos, o momento histórico em que eles vivem é um período belo mas também
dramático da história do pensamento europeu, um período que a ciência estava se tornando um
fenômeno abrangente. Por um lado, havia um grande entusiasmo pela ciência e pelo progresso, pela
aplicação dos resultados da ciência em termos de tecnologia na vida cotidiana; por outro, ao mesmo
tempo, havia o drama terrível das guerras que dilaceravam a Europa num brinquedo e ameaçavam se
alastrar mundialmente: via-se o uso da tecnologia e da razão humana a serviço da aniquilação do
homem. Imaginem alguém que estuda numa universidade, por exemplo, dentro de um clima de
guerra em que não se sabe se amanhã estará ali ou não! O que aconteceu nessa época foi isso. Então,
uma pessoa que estudava seriamente, que freqüentava a universidade seriamente, podia se perguntar:
“Para que serve tudo isso? O que eu estou fazendo? Para que matemática pura se isso não me ajuda
a encontrar verdade da vida humana?” Enfim, é um drama que todo mundo sentia.
Foi isso que fez com que o Husserl começasse a se movimentar num certo sentido. Ele
depara-se com um problema sério: Por que o homem chegou a isso? Por que o homem chegou a ter
um grande poder na mão e não sabe usá-lo? É verdade que saber é poder, como o inglês F.Bacon
falara ainda no século XVI, mas se a razão não tem um critério para utilizar esse poder, o poder
também pode ir contra o homem.
Desse modo, Husserl começa a se perguntar sobre a razão do homem; e esse é o ponto.
Como a razão do homem se mexeu nesses últimos séculos para acontecer uma coisa dessas? Alguma
coisa deveria estar errada! Se a razão do homem busca a verdade, como é possível que ela leve
também à morte e à destruição? Husserl começa a se preocupar (a partir também das provocações
das aulas do Brentano, pois era evidente o interesse do Brentano pelo homem) e a sair do mundo
apenas da matemática pura, para aproximar-se da filosofia. E sobretudo, através da filosofia,
começa a repensar a maneira de usar a razão e de usá-la não apenas na filosofia, mas dentro da
própria ciência. Ou seja, o que Husserl vai querer fazer é retomar uma modalidade mais verdadeira,
mais correspondente à realidade, de uso da razão humana, que sirva para fundamentar uma
verdadeira filosofia, mas também uma verdadeira ciência.
Existem muitas coisas que poderíamos ler, produzidos por Husserl, mas algumas obras se
relacionam mais com o trabalho dos psicólogos. Numa de suas obras mais importantes, A Crise das
Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental15, escrita num período chave porque é um
período entre as duas guerras mundiais (entre 1935 e 1936), debruçando-se sobre toda essa crise da
cultura ocidental, Husserl coloca que a psicologia moderna experimental é o sintoma mais grave
desse drama do uso (patológico) da razão. Segundo ele, a psicologia experimental, que identificara
com a psicologia do Wundt, de William James, de Watsons, é um sintoma de doença da razão
moderna. Vamos entender um pouco mais essa acusação, pelas palavras do próprio Husserl:

“Ao longo do nosso trabalho, nós não demoraremos em perceber que o caráter duvidoso da
Psicologia, esta sorte de doença da qual ela sofre não apenas nos nossos dias mas há muitos
séculos – em breve, a crise que a define – possui uma significação central para a determinação de
um certo número de obscuros enigmas sem solução nas ciências modernas, incluindo as ciências
matemáticas, e correlativamente que ela é importante para fazer aparecer uma sorte de enigma do
mundo desconhecido nas épocas anteriores.
Todas estas obscuridades se remetem de fato ao enigma da subjetividade e formam por
conseguinte um conjunto com o enigma da temática e do método da psicologia.” (edição francesa
de 1976 , p. 9-10)

Husserl assinala aqui a dificuldade da psicologia em se definir a si mesma: observa isto em


1935, quando já havia ocorrido todo o movimento de fundação da psicologia moderna, inclusive da
psicanálise. Para ele, essa dificuldade não é casual mas indício de uma crise mais profunda da qual a
Psicologia é sintoma. Por isso, esta não consegue se definir de uma maneira clara.
Qual é a origem da crise, segundo Husserl? Vejamos em seu próprio texto:

“[A origem da crise] é uma reviravolta que aconteceu em meados do século passado no
que diz respeito à atitude frente às ciências.
Essa reviravolta consiste numa maneira geral de estimar as ciências.
O que está em questão não é a sua cientificidade e sim o que as ciências e a ciência em
geral significaram e podem significar para a existência humana.
A maneira exclusiva em que a visão global do mundo, própria do homem moderno, na
segunda metade do século XIX, deixou-se determinar pelas ciências positivas e pela prosperidade
que elas prometiam implicou considerar com indiferença as questões que são decisivas para a
autêntica humanidade. Ciências simples de fatos formam uma simples humanidade de fato.” (ed.
1976, p. 10)

Essa frase é impressionante: “Ciência simples de fato formam uma simples humanidade de
fato”! Ela significa que uma simplificação do saber acerca do homem vai criar um homem

15
HUSSERL, Edmund. La crise des sciences europeennes et la phenomenologie transcendantale. Traduit de l'allemand
et preface par Gerard Granel. Paris: Gallimard, 1976. *
HUSSERL, Edmund. Die Krisis der europaischen Wissenschaften und die transzendentale Phanomenologie: Eine
Einleitung in die phanomenologische Philosophie. Herausgegeben, Eingeleitet und mit Registern versehen von El
Hamburg: Felix Meiner, 1977. **
simplificado, um homem homologado. Pessoalmente, considero a globalização como um exemplo
disso, um exemplo bem atual. O saber sobre o homem – a psicologia, nesse sentido, tem uma grande
responsabilidade – pode reduzir a humanidade a uma simples humanidade, a uma humanidade que é
menos do que ela poderia. E por que isso? Para Husserl: “Toda essa ênfase no progresso e no poder
do progresso, na modernidade colocou uma indiferença com relação às questões que são decisivas
para a autêntica humanidade, um esse esquecimento das questões decisivas para o homem.”
(ibidem).
Não somente para o psicólogo essas questões são importantes, mas também para a ciência
em geral. Husserl coloca sua discussão também no que diz respeito à atuação do cientista que faz o
seu trabalho e esquece de si mesmo. Ao fazê-lo, ele não constrói uma ciência verdadeira. A este
respeito, escreve:

“[Frente ao drama da Europa] essas ciências não têm nada a dizer. As questões que elas
excluem por princípio são exatamente aquelas que são mais urgentes para a nossa época
desgraçada cuja humanidade é abandonada aos altos e paixões do destino: são estas as questões
que dizem respeito ao sentido ou à ausência de sentido de toda esta existência humana. Estas
questões não exigiriam elas também, em sua generalidade e necessidade que se impõe a todos os
homens, que sejam meditadas suficientemente e que se contribua para uma resposta que surgia da
via racional? Acerca da razão e da des-razão, acerca de nós mesmos enquanto homens sujeitos de
liberdade, o que a ciência tem a dizer?” (idem, p. 10)

Trata-se de uma pergunta dramática que também podemos colocar para o nosso saber, para o
tipo de conhecimento que estamos construindo, para a ciência que estamos fazendo. É uma pergunta
que Husserl deixa em aberto para nós, mas para a qual ele tenta dar uma solução. Evidentemente a
dramaticidade da pergunta vai além: a vida inteira Husserl percorreu caminhos em busca da resposta
a essa pergunta e é por isso que ele cria a Fenomenologia. Como dissemos antes, Husserl quer
recuperar esse uso da razão baseando-o num fundamento capaz de dar dignidade à ciência e, ao
mesmo tempo, à filosofia. Um fundamento baseado, retomando a palavra do Brentano, no rigor. O
rigor é uma palavra que deriva da longa tradição da filosofia clássica e da filosofia medieval.
Quais são as características fundamentais dessa proposta de fundamentação que Husserl
coloca?
Em primeiro lugar, ele afirma que deve tratar-se de uma fundamentação a priori, ou seja,
algo que seja o alicerce da construção do saber, algo que seja independente do contingente, algo que
seja para além do momento presente: que o contingente passe, mas que a fundamentação permaneça.
A fundamentação da razão precisa permanecer. Nós temos que pensar para além desse contingente
que nos bombardeia todos os dias. Nesse sentido, Husserl retoma o ideal do cartesianismo, do
“Cogito, ergo sum” (“Penso, portanto existo”): a busca do pensamento que possa dar fundamento à
existência. Este era o programa que Descartes (1596 - 1650) também queria realizar, inclusive
assinanando-o no Discurso sobre o Método16. Husserl retoma essa exigência de que o pensamento
sirva realmente para ajudar a fundamentar a vida e, portanto, seja um fundamento que tenha uma
permanência.
Nesta perspectiva, é preciso se preocupar com outro aspecto importante, que Husserl define
como ausência de pressupostos ou pré-concepções acerca da realidade. Num outro texto muito
importante que chama A Filosofia como Ciência de Rigor17, Husserl afirma: “Não é da filosofia que
deve partir o impulso da investigação; mas sim das coisas e dos problemas.” (p. 72) Para o
pensamento se libertar dos preconceitos – dos juízos pré-concebidos – temos que olhar para as
próprias coisas e para os problemas e se deixar desafiar por eles, deixar-se desafiar pela realidade. O
que soa muito semelhante àquela afirmação de Brentano acerca do realismo, que analisamos no
começo; e isso assinala a relação entre os dois pensadores.
Dessa forma, qual é a preocupação de Husserl? É voltar às próprias coisas. O que significa
voltar à maneira como as coisas se apresentam para nós. Disso deriva o uso da palavra
fenomenologia: voltar à manifestação de presenças às quais a nossa consciência deve ir sempre. O
conhecimento é este processo. Na abordagem da Fenomenologia, a realidade se manifesta ao nosso
conhecimento e o fenômeno é a manifestação. Por isso, este método permite-nos voltar à própria
coisa.
Brentano coloca que este processo só é possível pela estrutura de intencionalidade da
consciência, tal como Brentano a definiu. Nesse ponto, Husserl explicitamente se recoloca como
aluno e discípulo do Brentano. Ele evidencia o conceito de intencionalidade da consciência como
básico para definir o método da fenomenologia: o fenômeno é uma manifestação, a mim, da
realidade. Acerca desse ponto existem dois trechos, os quais são muito interessantes, de um texto18
que o Husserl escreveu em 1928 que é o texto mais importante para a história da Psicologia pois são
congressos que fez em Amsterdã nos quais ele se preocupa em definir uma psicologia
fenomenológica. (Esse texto se refere a aulas, o que torna muito evidente que novamente tudo se
processa num contexto de relações humanas, em salas de aula. Não foi um pensamento feito num
quarto isolado e, nesse sentido, o caminho de elaboração da fenomenologia foi um tanto diferente do
método do Descartes.)

16
DESCARTES, René. Discurso Sobre Método. Tradução de Marcio Pugliesi e Noberto de Paula Lima. São Paulo:
Hemus, 1978. *
DESCARTES, René. Discurso sobre o método. Tradução de Paulo M. de Oliveira. Bauru, SP: EDIPRO, 1996. **
17
HUSSERL, Edmund. A filosofia como ciência de rigor. Tradução de Albin Beau; prefácio de Joaquim de Carvalho.
Coimbra: Atlântida, 1952. * / **
Numa dessas conferências, Husserl afirma acerca da atitude de olhar para as coisas: “Uma
pura experiência significa se manter livres de todos os preconceitos que, sendo originados não
pelas esferas da experiência, já preferidas pela ciência, podem nos tornar cegos com relação àquilo
que a reflexão fenomenológica efetivamente propõe.” (sd, p. 109) Acontece que, às vezes, aquilo
que já foi acumulado pela experiência anterior, cuja origem também é um conhecimento desse tipo,
vai se sedimentando na nossa consciência. Isso pode nos tornar, às vezes, cegos frente à realidade
que, no presente, se propõe a nós novamente. Essa presença que se manifesta no presente é algo
sempre novo, logo eu não posso me deter no antigo, naquilo que já foi construído em mim, na minha
consciência, porque isso pode me tornar cego à manifestação do fenômeno no presente. Assim, o
caminho é aquilo que Husserl define como a ‘redução fenomenológica’, o que significa colocar
entre parênteses essa história anterior, esses pre-conceitos. Eles não são errados – Husserl não
afirma que os conhecimentos pre - concebidos acerca do fenômeno, estejam errados –; mas não
podemos nos deixar determinar por eles, antes de termos feito uma experiência direta do próprio
fenômeno. Precisamos, por exemplo, ler todas as opiniões que os outros autores podem ter sobre um
determinado objeto, mas precisamos, antes de mais nada, fazer a experiência desse objeto (até para
entender melhor essas opiniões).

Essa idéia de Husserl é original com relação a Brentano?19


A idéia de fenômeno, que Brentano também retoma da tradição filosófica a ele anterior, está
embutida na concepção de Husserl, mas porém a desenvolve de modo mais profundo. Na realidade,
a idéia não é totalmente original, porque também está presente em São Tomás de Aquino quando ele
define o conhecimento como adequação do intelecto à coisa. A idéia é semelhante: é preciso se abrir
à realidade. Isso vem de longe: da filosofia grega, das raízes do pensamento filosófico.
No que Husserl inova? Ao afirmar a necessidade de retomar este legado que ao ver dele fora
esquecido pela ciência nos últimos séculos. Se o legado é antigo, porém esta leitura da história da
filosofia é sem dúvida original, pois é original a capacidade cheia de coragem de retomar uma
tradição esquecida, censurada e hostilizada. Precisa de muita originalidade para fazê-lo, porque isso
precisa ser verificado como correspondência à experiência do presente. Contudo, uma originalidade
total nunca existe, porque sempre é dentro de um caminho. Na historiografia se diz que essa palavra
é uma palavra entre aspas.

18
Husserl, E. Conferenze di Amsterdam. Psicologia fenomenologica. (org. P. Polizzi). Roma: Pietro Vittorietti Editore,
sd.
19
Optou-se por manter algumas perguntas feitas pelos participantes da palestra a fim de se facilitar a compreensão do
texto. As perguntas estão em itálico.
Leremos a seguir mais um trecho, que é dessa mesma conferência, em que ele definiu o que é
viver o eu como sujeito:
“Na vida nós sempre estamos ocupados com algo, ora com isso, ora com aquilo e num
nível mais baixo com aquilo que não é psíquico. Por exemplo, percebendo, nós estamos ocupados
em olhar o moinho percebido, voltados para ele e somente para ele; na lembrança, nós estamos
ocupados com o lembrado; no pensar, com o pensamento; na vida sensitiva e avaliativa, com
aquilo que é bonito ou, de qualquer forma, com aquilo que vale; na volição, com os objetivos e os
meios. Tudo aquilo que através da reflexão nos é acessível tem um caráter comum, notável. Aquilo
da consciência de algo, de ter consciente algo ou, correlativamente, de ser algo de consciente, nós
falamos em ‘intencionalidade’. E o caráter é o caráter fundamental da vida psíquica, no seu
significado pleno, e portanto é indivisível dela. Por isso é inseparável da percepção. Na maneira
como a percepção interior se nos revela, o fato é que a percepção é sempre percepção de algo
através do vivido, da recordação. É ela mesma recordação de algo, recordação disto ou daquilo.
Também o pensamento é pensamento disto e daquilo:espantar-se por algo, amar algo, etc. Sempre
quando falamos de fenômenos, nós somos levados a pensar que há sujeitos para os quais algo se
manifesta [isto é uma definição minha do que é a Fenomenologia] e, ao mesmo tempo, nós somos
levados a pensar também que há momentos da vida psíquica nos quais essa manifestação tem
lugar como um manifestar-se de algo. [Toda a vida psíquica é essa manifestação.] Pode-se dizer
que em que cada vivência psíquica se manifesta algo ao eu. De vez em vez, enquanto se torna de
qualquer maneira consciente [tornar-se consciente significa manifestação ao eu de algo], tendo
uma fenomenalidade portanto, como propriedade de se manifestar e no manifesto como tal. Esse é
o caráter fundamental do psíquico.” (sd, p. 104-105)

Percebe-se nestas afirmações relação com o Brentano. Husserl acredita ser este o começo
também da filosofia: a abertura da razão à realidade. Por isso, para filosofar, o filósofo deveria fazer
esse trabalho de suspender o próprio juízo que é já concebido, para procurar de se abrir à
manifestação do fenômeno. Leremos agora mais um trecho, sempre dessa mesma conferência, onde
Husserl aborda o tema da redução:
“Como fenomenólogos temos que, por assim dizer, ser espectadores imparciais da vida da
consciência. Em lugar de viver nela, de estar dentro dela interessados do ponto de vista mundano
(ele usa a palavra mundano não num sentido convencional do termo mundano, mas no sentido da
vida mergulhada no mundo, dentro das próprias coisas do dia-a-dia), nós temos que simplesmente
olhar.” (sd, p. 116)

Esta afirmação é bela e verdadeira, se consideramos, por exemplo, o modo em que vivemos.
No dia-a-dia, vivemos muita coisa automaticamente: sair de casa, ter de ir à aula. Mas se pararmos
um pouco e nos darmos conta (usamos a consciência para nós nos darmos conta daquilo que está
acontecendo), fazemos exatamente o trabalho que Husserl descreve. A primeira atitude que nós
temos, antes de mais nada, é olhar, é contemplar aquilo que nós mesmos estamos vivendo. E a partir
disso, refletimos sobre o dado apreendido pelo nosso olhar e assim tornamo-nos conscientes deste de
outra forma: aquela ação que íamos fazer mecanicamente, se torna mais nossa. Se levantamos de
manhã e fazemos assim, torna-se diferente a maneira de realizar todo o resto, torna-se menos
mecânico. É isso que Husserl está propondo. É sairmos, digamos, de uma realidade em que estamos
mundanamente envolvidos, sem usar a razão de uma forma adequada, para olhar de fato a
experiência: essa é a redução fenomenológica.
Parece difícil a fenomenologia, mas na verdade é muito simples o que ela vai propor. Para
Husserl, em cada consciência, o consciente se evidencia enquanto tal, como um pertencer à sua
própria consistência psíquica. E portanto, entende-se o método próprio da fenomenologia de colocar
entre parênteses, pôr espiritualmente um parênteses. Pois o trabalho de colocar entre parênteses é
importante para perceber que as coisas que estão acontecendo e que a percepção interior nos está
mostrando, são próprias do nosso eu. Conforme Husserl afirma, as coisas pertencem à nossa própria
consistência psíquica, quer dizer, as coisas nos pertencem. Por isso é importante o trabalho da
redução fenomenológica: você se percebe enquanto um sujeito da experiência. Pode parecer o
contrário, contudo. Inicialmente poderíamos dizer: “Puxa, mas parece que temos que nos alienar da
nossa própria experiência porque aí paramos para olhar a vida de fora!” Não. Ele vai dizer que a
redução fenomenológica visa o darmos conta de que as coisas são a nossa consistência, justamente
porque a consciência é essa relação. É um recurso útil para nos darmos conta do que é nossa
consciência.

É como se nisso eu prestasse atenção em experimentar? Com essa coisa de fazer esses parênteses,
eu presto atenção na minha experiência, na novidade que é isso para mim? E até para fazer
comparação?
Exatamente. Essa palavra “novidade” é importante. É por isso que é importante a palavra
grega phainómenon: é a manifestação de algo que é sempre novo. Quando Husserl utiliza o termo
“fenômeno”, afirma que o fenômeno é sempre novo, mesmo que seja sempre o mesmo. Ou seja, se
toda manhã vemos sempre a mesma coisa, mas temos essa abertura, ela sempre é uma experiência
nova. Assim a razão é muito mais razão, do que se fosse tudo automático e você não refletisse sobre
as coisas. A novidade é o ‘prestar atenção’ – outra palavra importante que é colocada – e é
justamente isso a que Husserl se refere quando fala do “simplesmente olhar”.
Husserl se perguntar o que seria então a Fenomenologia. “É uma disciplina puramente
descritiva, que explora pela intuição pura, o campo da consciência transcendental pura.”
(HUSSERL, sd, p.141). Precisamos entender esta expressão assim como ele a definiu e não no
sentido idealista do termo (cfr. Definição de consciência, acima analisada)..
E qual é a relação disso com a psicologia propriamente dita? Isso está nas Idéias para uma
Fenomenologia Transcendental20, uma de suas obras: “Segue-se daqui que a Psicologia descritiva

20
1913.
oferece um ponto de partida característico e natural para elaboração da idéia de fenomenologia. E
de fato foi este o caminho que me levou à fenomenologia.” (p. 313, trad. nossa) Aqui é evidente a
retomada do caminho do Brentano: foi através desse tipo de Psicologia empírica – que Brentano
propunha – que Husserl começou a pensar a possibilidade da Psicologia. Sobre este tema, há ainda
um trecho significativo de Krisis:

“A psicologia é diferente das ciências naturais. [Ele também se coloca do lado dos
dualistas metodológicos.] A oposição entre pesquisa psicológica, no sentido de uma ciência da
natureza, e a pesquisa própria às ciências do espírito consiste no fato de que pela ciência da
natureza e pela ciência do espírito a alma é tomada de forma diferente. Para a ciência da
natureza, ela é considerada como sujeito, localizado anexo ao corpo, no sentido do dualismo
cartesiano, enquanto que a atitude das ciências do espírito é a atitude pessoal, a que se refere,
puramente, à pessoa.” (ed. 1976, p. 242)

Definiu-se, então, o objeto dessa psicologia – “...a que se refere, puramente, à pessoa” –
palavra muito antiga na história da filosofia: Husserl não se envergonha em reutilizá-la para definir
qual é o objeto do nosso saber.

Pessoa em que sentido?


A pessoa, no sentido da tradição clássica. O conceito de pessoa, por exemplo o que foi
elaborado po São Tomás e que define a unidade do eu. Há vários fenômenos psíquicos, mas tudo
isso é experimentado dentro de uma unidade. Isso é a pessoa: esse ser unitário que experimenta e é
consciente. O conceito de pessoa originalmente tem embutido, justamente, o conceito de
consciência; por isso é uma unidade consciente de si mesmo. Nesse aspecto, Husserl retoma essa
palavra da tradição filosófica.
A pessoa se define dentro do mundo como um eu, mas se relaciona com a realidade. Nesse
aspecto, há algo importante que Husserl disse e que aparece nesse texto que eu citei anteriormente, o
Krisis. Nele, Husserl diz que essa naturalização do que é psíquico, inerente à eliminação dessa
dualidade entre esse grupo de ciências, tem uma origem histórica no pensamento do Descartes e no
empirismo inglês:
“Historicamente, estes preconceitos comparecem já nos grandes iniciadores da
psicologia moderna e são expressos mais marcadamente na interpretação ‘tabula rasa’ da ‘Vida
da Consciência’ do John Locke e de David Hume com a consciência como um facho de dados
psíquicos. A geral cegueira pela intencionalidade fora quebrada pelo ensino de Brentano, mas
ainda não foi totalmente superado o naturalismo na psicologia.” (1976, p. 249)

Como se vê, Husserl delineia as raízes desse percurso de naturalização da psicologia e acusa
vários filósofos de tê-la reduzido ao naturalismo, ao passo que o Brentano rompeu com tal processo.
Voltamos ao objeto que Husserl define como objeto da psicologia: a pessoa. Como estuda-
lo? Por exemplo: para estudarmos a luz como físicos temos que abstrair esse fenômeno do contexto
em que ele se apresenta, do mundo em que ele aparece a nós, daquilo que Husserl define como
mundo-da-vida, no qual os fenômenos se dão imediatamente às nossas consciências. Quem trabalha
com acústica, para estudar o som deve abstraí-lo do contexto em que se apresenta, deve abstraí-lo do
mundo que é uma sinfonia, por exemplo, em que ele pode aparecer, para estudá-lo como fenômeno
físico. Ë a operação realizada por quem trabalha com percepção acústica ou percepção visual.
Todavia, ao retirarmos o fenômeno da luz de seu contexto, erramos se queremos estudar a nossa
experiência psíquica da luz. Neste caso, perderíamos o mais importante, que é justamente a relação
nossa com essa luz que está dentro desse contexto. Então, a psicologia, ao contrário das outras
ciências, não pode naturalizar o seu objeto. Naturalização significa colocar o objeto dentro dos
moldes das ciências naturais, ou seja, abstraí-lo de um certo contexto para poder utilizá-lo dentro de
um outro contexto que é o da experimentação e, por isso, eliminar todas as outras variáveis que
podem atrapalhar. Isso é o que o cientista natural faz. Eu, como psicóloga, devo fazer o contrário:
devo olhar essa experiência dentro do mundo em que ela é dada para mim, em que ela se manifesta –
pois o fenômeno é essa manifestação aqui e agora.
Por isso, Husserl coloca um conceito muito importante que é o mundo-da-vida. E o que a
psicologia deve fazer? Estudar esse mundo-da-vida. A nossa consciência não vive no ar – aqui
novamente ele coloca-se contra a visão cartesiana de consciência. Ela não existe antes e depois de
um mundo, mas ela é a relação com o mundo, com esse mundo-da-vida. O fenômeno psíquico se dá
nesse aqui e agora. Se fizermos uma abstração disso, perdemos, justamente, a intencionalidade;
perdemos o fenômeno. Esse é o drama do psicólogo quando busca seguir o modelo das ciências
naturais: ele perde o próprio fenômeno, ou seja, ele não faz mais nada, não faz ciência (acha que faz,
mas na realidade é uma abstração)! Do ponto de vista científico, isso é dramático!

Eu queria tentar entender, a partir daí, a redução fenomenológica porque, quando você está
observando as coisas, quando você está tentando tirar da experiência das coisas na experiência
onde elas estão, na experiência do mundo, como você falou, você está tentando ter uma consciência
mais reflexiva e mais abrangente daquilo. Quando você tira aquilo do mundo dele, da experiência
dele e traz para coisas que são consistentes suas (por exemplo: como é a minha percepção, como é
a minha vivência daquilo) isso é a redução?
Não. Vamos usar o exemplo anterior. Podemos olhar muitas vezes o panorama, sem nos
darmos conta. Por quê? Porque podemos estar preocupados com a hora, com as coisas que temos
que fazer, vemos todo dia esse panorama... Isso não é a redução fenomenológica. A redução é
quando olhamos para ele e nos damos conta do que ele é. É esse instante de suspensão do juízo,
desse mundo que está por volta, desse elemento mundano que atrapalha, em certo sentido, essa
minha experiência imediata de relação, para nos darmos conta desse dado. Aí, o que acontece? Esse
mundo existe!
Uma vez que fazemos isso, podemos depois voltar à nossa realidade, aos horários, às coisas
que temos que fazer, mas com uma consciência diferente, ou seja, esse dado faz parte da nossa
consciência, nos damos conta do nosso eu e dessa relação e de uma forma não automática, usamos a
nossa razão de uma forma que nos torna sujeitos daquele processo. Não significa que depois ficamos
nessa atitude, mas que voltamos para o mundo-da-vida com uma consciência maior do que ele é. Por
quê? Nesse mundo-da-vida, da correria e tudo o mais, existe também o belo panorama. E se não
fizermos essa redução, não nos damos conta da realidade. Aprendermos a estar na realidade olhando
mais para ela, permite-nos olhar mais inclusive para nós mesmos. Pôr quê? O nosso eu é feito não
por pensamentos suspensos no vazio, mas é a consciência da realidade, pensamento de algo. Não
existe uma divisão entre o nosso eu e este instante de relação. Para sermos mais a nós mesmos,
precisamos dessa relação. O pressuposto básico é essa relação.
Enfim, é difícil entender esta posição porque estamos educados numa outra posição em que
as coisas vão se dando em separado. Daí, estamos nós, nosso eu com as nossas preocupações e o
mundo. Todavia, Husserl afirma que nossa consistência original é essa relação, e não é o contrário.
Depois, é que operamos essa divisão, mas temos que recuperar essa relação originária para sermos
mais a nós mesmos. Em tal relação, não existe uma solução de continuidade, num certo sentido,
entre nós e o mundo. Não que nos confundimos com ele nem ele conosco. Não. É uma relação. Isso
é importantíssimo, porque senão podemos imaginar essa redução como um sair da realidade e não
atuar nela. Isso seria totalmente contraditório com essa busca de Husserl, que era uma busca para a
ação, inclusive, e para a vida e a história. Assim, mundo-da-vida é o domínio dos fenômenos, das
evidências que se apresentam a nós originariamente, quer dizer, são dadas. Essa palavra “dado” é
importante: não somos nós que possuímos o fenômeno, mas ele se apresenta, ele se manifesta.
Nesse ponto há algo interessante que não foi o Husserl quem escreveu, mas é uma
fenomenóloga italiana. Ela se chama Angela Ales Bello21, é uma intérprete muito interessante, uma
filósofa muito interessante na interpretação que faz do Husserl e, sobretudo, da relação entre
Husserl, o pensamento do Husserl, a Psicologia e a Psiquiatria. Essa relação é muito forte na
Europa; por exemplo, hoje em dia, a Psiquiatria mais forte na Europa é uma psiquiatria ligada à

21
Psichiatria e psicopatologia fenomenologica, Aquinas, ,XXVI/2, Roma, 1993, pp. 399-404.
Fenomenologia e ao Existencialismo. Temos também que levar em conta que toda origem daquilo
que hoje é a ‘anti-psiquiatria’, vem mesmo do movimento fenomenológico na psiquiatria. Este
processo precisa ser estudado mais em nossas universidades, inclusive para entender melhor o que é
a psiquiatria.
Existem grandes intérpretes, como Binswanger, um grande autor do ponto de vista da
psicopatologia, que tem toda uma leitura nesse sentido. Numa conferência que ela deu num
congresso de psiquiatria, Ales Bello disse uma coisa muito interessante sobre os pontos importantes
de uma análise psicológica de tipo fenomenológico: “Na visão do Husserl, o primeiro ponto
fundamental é subjetividade. A subjetividade pode ser descrita como possuindo diferentes níveis que
correspondem a grupos de vivências de indivíduos diferentes.” (idem, p. 399, trad. nossa)

“Trata-se, então, de evidenciar os diferentes níveis e as contínuas remessas de um para o


outro e isso tudo é reconduzido ao fato de que a subjetividade se apresenta aberta para com o
mundo já dado; que, num certo sentido, ela contribui a constituir e que, ao mesmo tempo, constitui.
A subjetividade do homem se apresenta continuamente aberta em direção a um mundo já dado,
que, num certo sentido, ela constrói, contribui para constituir, mas que também a constitui.”
(ibidem)

Então, esta autora refere-se a diferentes níveis da subjetividade, o que é importante para um
psicólogo, pois significa que o psíquico é um dos níveis do eu, sem ser o único. Deste fato toda a
tradição da filosofia clássica tinha consciência plena, posteriormente esquecida pela psicologia
moderna, incorrendo assim no psicologismo, ou seja a redução de todo o eu e de todo o homem ao
psíquismo. Todavia, o psicologismo é um sonho impossível, pois o homem também é corpo e é mais
do que o anímico, é espírito também. Husserl afirma que a subjetividade é tudo isso: quando
estudamos, precisamos levar em conta que existe um mundo em que aquilo que estudamos faz
sentido e que é um mundo ligado, cada nível é ligado ao outro. Esse é o primeiro aspecto. Ales Bello
coloca, nesse sentido, que a relação entre os níveis da subjetividade é uma relação dinâmica, que
muda ao longo da história, ao longo das culturas. Isso é muito interessante. É preciso ter uma
atenção a essa subjetividade não como um fenômeno invariável, mas como dentro de uma realidade,
uma realidade dinâmica. Portanto, existem mudanças e diferenças na maneira desses níveis se
relacionarem em diferentes culturas e momentos da história.
O segundo ponto que Ales Bello considera importante para uma análise psicológica
fenomenológica é representado pela

“...dimensão dos vividos, como fundamentos do mundo-da-vida que devem ser examinados numa
perspectiva não estática mas dinâmica, pela qual é possível colher um aspecto estrutural. Mas é
uma estrutura que se articula segundo diferentes e várias dimensões. Todo vivido tem um momento
intencional e um momento material, mas se examinamos a intencionalidade que caracteriza os
diversos vividos em diferentes culturas ao longo da história, podemos observar que o momento
intencional se modifica.” (ibidem)

Isso é importante porque mostra toda a dimensão histórica e cultural da análise psicológica.
É impossível fazer uma análise fenomenológica sem levar em conta esse dinamismo, essa
articulação. Embora a intencionalidade seja uma estrutura da consciência, em cada momento, em
cada época da história, ela modula-se de maneiras diferentes; é preciso estarmos atentos a isso. Daí a
autora volta a reiterar conceitos que já vimos em Brentano: trata-se de fazer o caminho de
estabelecer qual método seja coerente com o objeto – não no sentido da construção do objeto em
função do método, mas no sentido de se deixar guiar pelo objeto. É o retorno a essa preocupação
metodológica importante, que é a preocupação da epistemologia realista de Brentano e que também
é muito evidente em Husserl. Tal posição é importante também para a nossa prática de psicólogos e
para a investigação, pois que o vivido tenha um caráter dinâmico exige um dinamismo peculiar do
sujeito que procure conhecê-lo. Não podemos ter uma posição estática na relação com nosso objeto,
dizendo: “Agora eu já sei tudo.” Precisamos viver a relação com o objeto do conhecimento, na nossa
consciência, e nos deixar solicitar e modificar por ele. Nesse sentido, uma condição importante para
o acontecer desse dinamismo é a nossa abertura de querer aprender através da realidade.
Procuramos apresentar brevemente esses dois autores que, ao meu ver, são os autores básicos
para entender os demais fenomenólogos, de modo que se torne mais fácil dar-se conta de que a
prática ou a pesquisa fenomenológica que se fazem em psicologia não nasceram do nada, por uma
mera insatisfação com a psicologia atual, mas é uma abordagem que tem uma raiz filosófica séria e
muito consistente, que foi retomada na nossa época como uma alternativa, conforme disse Titchener,
à psicologia científica de origem wundtiana.
. Nesse sentido, é interessante ver como o próprio percurso histórico faz jus, às vezes. Hegel
afirmava que a história é um tribunal. É verdade. O que é verdadeiro emerge, apesar das censuras. É
verdade que Brentano foi censurado, num certo momento, até pelos manuais de história da
Psicologia, mas é verdade também que a retomada de seu pensamento atualmente é muito evidente.

Husserl vai enfatizar muito a questão da consciência. Como é que fica a relação do seu pensamento
com a psicanálise?
Lembramos que o Freud foi um dos alunos do Brentano. Assim, por exemplo, o conceito de
objeto em Freud tem muito a ver com o conceito de intencionalidade da consciência. Mas o que
aconteceu? A dificuldade estava na própria formação cultural do Freud: pois, ao mesmo tempo que
ele recebeu uma formação filosófica com Brentano e outros filósofos da época (cuja influência é
evidente por exemplo no uso no método clínico do conceito de interpretação), teve também uma
formação científica na área médica, rigidamente positivista, tendo sido aluno da mais famosa escola
positivista de Neuroanatomia que havia na época. Logo o positivismo marcara Freud
profundamente, ao ponto que o postulado do determinismo, básico nas ciências positivistas, é
colocado por ele como base de toda a construção da Psicanálise, notadamente do conceito de
inconsciente.
A grande diferença entre Freud e a Fenomenologia, é justamente, no conceito de
inconsciente – um dos conceitos eixo da Psicanálise – que o Freud fundamenta numa base positivista
e naturalista. Ao passo que para o Brentano e para o Husserl a experiência psíquica é consciente;
esse é um ponto que não dá para eliminar Aqui está é um ponto de diferença, de discordância. Mas,
do ponto de vista metodológico e clínico, há muita convergência.

Você falou que a psicologia empírica, segundo Brentano, deveria ser descritiva e que, a partir
disso, seria possível construir um método aplicativo. E você disse também que o Brentano não
partiu para isso; ele ficou só na teoria. Quem você conhece que já partiu para isso?
O que Brentano faz ao escrever seu texto é colocar exemplos, mas é claro que, por ser
filósofo, objetivamente não vai se propor a praticar uma psicologia; ele lança o desafio, mas não faz.
Husserl retoma-o também, permanecendo no âmbito da construção teórica da possibilidade de uma
psicologia como ciência; assim como Edith Stein, discípula do Husserl, que aprofunda-se muito no
estudo da psicologia (por exemplo, escreveu um livro sobre a empatia22). Trata-se porém ainda de
uma reflexão filosófica acerca das possibilidades de fundamentação de uma psicologia como ciência
fenomenológica.
Do ponto de vista de como a Fenomenologia foi aplicada na prática psicoterapêutica, existem
duas vertentes, que podemos considerar mais antigas, e outras mais modernas. Por um lado, existe
um autor muito importante, médico e filósofo, Karl Jaspers. Ele busca estudar a psicopatologia desse
ponto de vista23, aplicando o método fenomenológico. Posteriormente, teve um contato importante
com o Existencialismo e tentou criar uma psicopatologia, portanto uma prática terapêutica, baseada
nesse caminho. Depois dele, ainda mais ligado à Fenomenologia é L. Binswanger, fundador da
abordagem chamada de Daseinanalyse. Binswanger, fenomenólogo de formação, passa pelo
existencialismo mas posteriormente volta à Fenomenologia. Existem outros autores e é importante
saber que os iniciadores de todo o movimento da anti-psiquiatria façam referências a esstas
abordagens: a Fenomenologia, por um lado, e do Existencialismo, por outro.

22
Stein, Edith. On the problem of empathy. 3. ed. Washington: Kluwer, 1989. **
Do ponto de vista da psicologia experimental, aconteceu o seguinte: há uma abordagem de
Psicologia Experimental, a Teoria da Gestalt, iniciada na Alemanha por autores que foram
inicialmente discípulos do Brentano, - C. Stumpf e C. von Ehrenfels; e depois, por outros autores
(Wertheimer, Koffka e Kohler). A Teoria da Gestalt se propõe a fundar uma nova perspectiva, no
que diz respeito à Psicologia Experimental. Ehrenfels e Stumpf foram, de verdade, fenomenólogos,
na medida em que eles se utilizaram da Fenomenologia para estudar a percepção, principalmente
acústica; inclusive ambos eram músicos, violinistas. Todavia, os demais autores da Teoria da Gestalt
foram muito influenciados, assim como Freud, pelo cientificismo positivista da época. De modo que
eles acabaram utilizando-se do método fenomenológico só parcialmente. Por exemplo, o conceito
fundamental de Gestalt que eles propõem é um conceito que pude ser derivado deviso a uma
abordagem fenonemológica, porque a evidência da percepção é uma evidência unitária; ela se dá,
imediatamente, como dado unitário: trata-se de uma descoberta fenomenológica. Assim como é de
derivação fenomenológica a insistência na importância da descrição, antes da explicação. Ao mesmo
tempo, porém, a necessidade de assumir um esquema de ciência moldado segundo determinados
padrões – por exemplo, deveria ser explicativa – acabou determinadno um afastamento dos
psicólogos gestaltistas, da perspectiva fenomenológica, conforme o próprio Husserl assinala
explicitamente afirmando que a Teoria da Gestalt não era fenomenologia. Trata-se, pois, uma
tentativa importante que foi feita, mas que, por outro lado, distanciou-se de sua matriz.
No entanto, existem hoje em dia alguns pesquisadores que tentam voltar a isso de uma forma
mais pura em termos também de psicologia científica e experimental, no sentido estrito.
Há uma outra tentativa, de aplicação da Fenomenologia à psicologia aplicada: a propsota de
K. Rogers, a Abordagem Centrada na Pessoa. A dificuldade, porém, é a mesma que vimos nos
outros psicólogos: Rogers quer fazer uma psicologia fenomenológica mas, ao mesmo tempo, o fato
de ele ter vivido nos Estados Unidos, num clima cultural muito importante marcado pelo
Behaviorismo e de ele ter que se definir dentro desse contexto, fez com que, na realidade, a sua
proposta tenha alguns conceitos ambíguos, moldados por uma espécie de pacto com os conceitos da
ciência behaviorista. Por isto, não se trata de um modelo ideal, para entender o que seria uma
psicologia fenomenológica.

Notas:
* Acesso à referência pela biblioteca da UFMG.
** Acesso à referência pela biblioteca da USP.

23
Jaspers, Karl. Psicopatologia Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 1985. 2v. **. (Idem, 1987 *)

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