Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Tese Patricio

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 316

1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ


ESCOLA DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
DOUTORADO EM DIREITO ECONÔMICO E SOCIOAMBIENTAL

JOSÉ PATRICIO PEREIRA MELO

ÍNDIOS CARIRI, IDENTIDADE E DIREITOS NO SÉCULO XXI

CURITIBA
2017
2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ


ESCOLA DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
DOUTORADO EM DIREITO ECONÔMICO E SOCIOAMBIENTAL

JOSÉ PATRICIO PEREIRA MELO

ÍNDIOS CARIRI, IDENTIDADE E DIREITOS NO SÉCULO XXI

CURITIBA
2017
3

JOSÉ PATRICIO PEREIRA MELO

ÍNDIOS CARIRI, IDENTIDADE E DIREITOS NO SÉCULO XXI

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Direito da Escola de Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná, como requisito parcial para obtenção
do título de Doutro em Direito Econômico e
Socioambiental.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Frederico Marés de Souza


Filho

CURITIBA
2017
4
5

JOSÉ PATRICIO PEREIRA MELO

ÍNDIOS KARIRIS, IDENTIDADE E DIREITOS NO SÉCULO XXI

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Escola de Direito da


Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para obtenção do título de
Doutro em Direito Econômico e Socioambiental.

COMISSÃO EXAMINADORA

___________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho – Orientador
PUCPR

___________________________________________________________
Profa. Dra. Cinthia Obladen de Almendra Freitas
PUCPR

___________________________________________________________
Profa. Dra. Claudia Maria Barbosa
PUCPR

___________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Antônio de Carvalho Dantas
UFG

___________________________________________________________
Profa. Dra. Katya Regina Isaguirre
UFPR

Curitiba, Paraná aos 18 de Agosto de 2017


6

Dedico este trabalho a minha família querida, sempre ao meu lado!

Virgínia Suely, Maria Luísa e Anita Pessoa Melo. Esposa e Filhas.

D. Maria Anita (in memoriam), Sr. Manuel Melo (in memoriam), Vânia (in memoriam)
Vângela Pereira, Tânia Sampaio, Demontiê Melo, Mavaniê Pereira,
Edilberto Melo (Beto), Cristina Melo, Vera Marta, Antônio Lopes
Francisco (Nego Chico) e Jesus Pessoa
Todas as sobrinhas e sobrinhos
Todas as cunhadas e cunhados.
7

AGRADECIMENTOS

Aos Professores e amigos do Gabinete da Reitoria da URCA: Francisco Lima Júnior,


Manuela Brito e Germane Pinto pela decisão de apoiar incondicionalmente a jornada de
escrever a tese.

Aos Professores e Coordenadores do Programa em Direito da PUC Paraná: Prof. Dr. Carlos
Frederico Marés de Souza Filho, Prof. Emerson Gabardo, Profa. Márcia Carla Pereira Ribeiro,
Prof. Luiz Alberto Blanchet, Profa. Danielle Anne Pamplona, Prof. José Querino, Profa.
Cláudia Maria Barbosa, Profa. Katya Kozicki, Prof. Vladimir Passos de Freitas, Prof.
Oksandro Osdival Gonçalves, Prof. Marco Antônio César Villatore, Prof. Luiz Alexandre
Carta Winter. Prof. André Parmo Folloni, Profa. Dra. Heline Sivini Ferreira, Prof. Francisco
Micaelson Lacerda (URCA), Pelos ensinamentos e dedicação.

Às secretárias e secretário do Programa de Direito da PUC Paraná: Eva Curelo, Glair Braum,
Artur Cirilo (URCA) e Daiane. Pelo apoio, dedicação e simpatia nas horas difíceis.

Aos Professores e amigos da URCA: Allysson Pinheiro, Otonite Cortez, Fátima Romão,
Francy Lobo, Arlene Pessoa, Egberto Melo, Roberta Piancó, Júlio Brito, Ana Josicleide,
Lourdes Araújo, Sônia Meneses, Álamo Feitosa, Roberto Siebra, Ana Felícia, Karen Alencar,
Ana Amélia, Adriana, Sarah, George Pimentel, Edilma Gomes, Carminha Macedo. Pela
presença, leituras, apoio e torcida durante os quatro anos do Doutorado.

Aos colegas que dividiram comigo seu tempo e seu material de estudo: Rosiane Limaverde
(im memoriam), Rosemberg Cariri, Alemberg Quindins, Heloisa, João Maropo, Pe.
Roserlânio.

Aos colegas de Campo: Dedé Nunes, Vanda Roseno, Tália Juciara, Heloisa, João Maropo,
Renata.

Aos colegas de turma: João Luis Mota, Ana Elisa Linhares, Ligia Melo Casimiro, Edineusa
Pamplona, Ramá Lucas, Roberto Dias, Inaldo Bringel, Alexandre Soares, Adriano Fábio pelo
aprendizado conjunto e amizade que desenvolvemos na jornada.
8

Aos Profs. Dr. Fernando Dantas e Prof. Dr. Martônio Montalverne pelo incentivo e apoio
inestimáveis na realização do DINTER em Direito PUCPR/URCA.

Ao Professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho, orientador, excelente professor e


militante das causas socioambientais e indígenas, pela sua paixão pelo conhecimento.

Aos colegas mexicanos que nos receberam e nos abriram os caminhos para conhecer e
compreender a experiência de autodeterminação dos povos indígenas de Cherán: Dra.
Magadalena Gomes, Dr. Jorge Fernandes e Dr. Orlando Andrade, Mestres do Conselho Maior
de Cherán Vitor Hugo e Pedro Chaves e a Secretária do Conselho Mayor Guadalupe. Meu
agradecimento especial.

Aos colegas do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos Fundamentais da URCA:


pela convivência e ensinamentos mútuos, é com vocês que daremos continuidade aos estudos
em direitos socioambientais no Cariri.

Aos colegas do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade


Hegemônica da PUC/PR, pela convivência e ensinamentos mútuos.

Aos colegas do Gabinete da Reitoria da URCA: Karen, Alex, Dedé, Luiz, Sarah, Adriana,
Luan. Pelo apoio inestimável.

Aos Cariri do Sítio Poço Dantas pelo acolhimento e disposição em conversar sobre suas
identidades e cultura.

A Deus, infinitamente agradecido, por tanto que tenho recebido em graças e bondade.
9

Camaradas! (pondo a mão sobre o peito)


O alvo é este; tiro certeiro que não me deixe sofrer muito!

Inácio Loyola de Albuquerque Melo


Pe. Mororó, na sua execução por ter lutado na Confederação do Equador.
10

Todos os seres são iguais,


pela sua origem, seus direitos naturais e divinos e seu objetivo final.
São Francisco de Assis
11

Vilarejo

1
Há um vilarejo ali
Onde areja um vento bom
Na varanda quem descansa
Vê o horizonte deitar no chão
Pra acalmar o coração
Lá o mundo tem razão

Terra de heróis, lares de mãe


Paraíso se mudou para lá
Por cima das casas cal

Frutas em qualquer quintal


Peitos fartos, filhos fortes
Sonhos semeando o mundo real
Toda a gente cabe lá
Palestina Shangri-lá

Vem andar e voa


Vem andar e voa
Vem andar e voa

Lá o tempo espera
Lá é primavera
Portas e janelas ficam sempre abertas
Pra sorte entrar
Em todas as mesas pão

Flores enfeitando
Os caminhos, os vestidos, os destinos
E essa canção
Tem um verdadeiro amor
Para quando você for

FREITAS, Antonio Carlos Santos. et. All. 2006.2

1
Violeta Arraes presenteou-me com o disco de Marisa Monte, quando lançado em 2006. Não dei muita
importância, hoje me dou conta que era do Sítio Poço Dantas dos Cariri que o Vilarejo falava. Ela já sabia!
2
FREITAS, Antonio Carlos Santos. et. All. Vilarejo. Infinito Particular. Cantora: Marisa Monte. Copyright ©
EMI Music Publishing, Sony/ATV Music Publishing LLC, Universal Music Publishing Group. 2006.
12

RESUMO

Esta tese reúne informações, dados e análises que corroboram o direito à identidade dos índios
Cariri do Sítio Poço Dantas em Crato, Ceará, na região do Cariri. Esta é uma pesquisa do tipo
teórica e empírica em que utilizamos os referenciais do direito socioambiental enquanto liame
jurídico entre o direito constitucional, direito ambiental e os direitos sociais insertos na
constituição federal do Brasil. Os autores citados identificam no processo histórico, social e
jurídico dos grupos étnicos submetidos à colonização, um dos maiores etnocídios da história,
protagonizada pelos espanhóis e portugueses no século XVI; o que nos permitiu uma análise
dialética da relação entre culturas e natureza. Os resultados dessa análise confirmam como as
sociedades originais foram brutalmente atacadas, em grande parte, destruídas em sua
organização social, modo de produção coletiva ou comunal, convivência harmônica com a
natureza, cultura e religiosidade. Esse paradigma da colonização e eurocentrismo segundo
nossa análise faz com que os latino-americanos tenham o direito de agir para superar a cultura
eurocêntrica associada ao processo de desenvolvimento moderno cujo progresso está
submetido, exclusivamente, ao modo de produção capitalista. A Antropologia e a Etnologia
dos estudos dos índios do Nordeste, enquanto categoria característica da “mistura” étnica com
negros e índios mestiços, foram estudados para fins de localizar o grupo étnico dos Cariri do
Sítio Poço Dantas entre as descrições dos elemento de tensão inter-étnica e de fronteira étnica
que caracteriza a etnogênese. Confirmando o processo que se deu no Cariri no final do século
XVIII e século XIX quando os Cariri foram aldeados e em seguida expulsos da Missão do
Miranda. A identidade dos índios Cariri do Sítio Poço Dantas, portanto, é confirmada sob o
enfoque do direito positivo (Constituição Federal, art. 231 e 232, Convenção 169 da OIT,
Estatuto do Índio lei 6001/73) e do direito originário. Os resultados obtidos com a
investigação empírica e análise quantitativa e qualitativa dos dados confirmam: a) a
identidade Cariri e seu processo de etnogênese e da territorialização a que foram submetidos;
b) a invocação da sua memória coletiva à ancestralidade Cariri e a autoafirmação da
identidade como característica predominante no processo de identificação; c) à compreensão e
consciência social de pertencimento ao grupo étnico denominado Cariri; d) os direitos
coletivos socioambiental dessa comunidade à identidade Cariri; e) a comprovação dos traços
culturais ainda presente entre os Cariri do presente que reproduzem a cultura dos Cariri.
Outros estudos são necessários para compor o devido processo legal junto à
FUNAI/Ministério da Justiça. Dentre os direitos que lhes são atribuídos em face do
reconhecimento pelo Estado está: a) a terra indígena do aldeamento da missão do Miranda
cuja doação aos índios Cariú e etnias agregadas, todas da nação Cariri, foi-lhes retirada em
1780 pelo Estado; b) direito e acesso às políticas públicas indigenistas; c) direito à
autodeterminação. A experiência de autodeterminação dos Purépecha de Cherán no México
foi analisada para as inferências que o tema sugere enquanto novo direito para o Século XXI.

PALAVRAS-CHAVES: Índios Cariri. Identidade. Direitos Socioambientais


13

RESUMEN

Esta tesis trae información, datos y análisis que confirman el derecho a la identidad de los
indios Cariri del Sítio Poço Dantas en Crato, Ceará, en la región Noreste de Brasil. Esta es
una encuesta de tipo empírico y teórico que utilizamos las referencias de derecho socio-
ambiental mientras que legalmente obligado entre el derecho constitucional, derecho
ambiental y derechos sociales de la Constitución federal de Brasil. Los autores identifican el
proceso histórico, social y legal de los grupos étnicos sometidos a la colonización, uno de los
etnocídios más grandes de la historia, encabezada por los españoles y portugueses en el siglo
XVI; que permitió un análisis dialéctico de la relación entre culturas y naturaleza. Los
resultados de este análisis confirman cómo las sociedades originales fueron brutalmente
atacadas, destruidos en gran parte en su organización social, producción colectiva o
comunitaria, convivencia armónica con la naturaleza, culturas y religión. Este paradigma de la
colonización y eurocentrismo en el análisis hace que los latinoamericanos tienen el derecho de
actuar para superar la cultura eurocéntrica asociada con el proceso de desarrollo moderno,
cuyo progreso se presenta exclusivamente en el modo de producción capitalista. Antropología
y Etnología de los indios del noreste, mientras que la categoría de "mixtos" origen étnico con
los negros y mestizos, los indios han sido estudiados con el fin de localizar el grupo étnico
Cariri del Sítio Poço Dantas entre las descripciones del elemento de tensión interétnica y
frontera étnica cuenta con la etinogenese. Confirmar el proceso que tuvo lugar en Brasil en
finales del seglo XVIII y el siglo XIX cuando el Cariri quedaron aldeados y los expulsan de la
misión de Miranda. Por lo tanto la identidad del sitio de los indios Cariri del Sítio Poço
Dantas es confirmada bajo el enfoque de derecho positivo (Constitución, art. 231 y 232,
Convenio 169 de la OIT, del estatuto de indio 6001/73) y derechos originarios. Los resultados
obtenidos con la investigación empírica y cuantitativas y análisis cualitativo de los datos
confirma: a) la identidad de Cariri y su proceso de etnogénesis y la territorialización que se
presentaron; b) invocación de la memoria colectiva a su declaración de identidad y
ascendencia Cariri como característica predominante en el proceso de identificación; c)
comprensión y social sentido de pertenencia al grupo étnico llamado Cariri; d) los derechos
colectivos de la comunidad a la identidad social y ambiental Cariri; e) la evidencia de rasgos
culturales que persiste entre el Cariri que reproducen la cultura de Cariri del pasado. Otros
estudios son necesarios para componer el debido proceso legal por el FUNAI y el Ministerio
de Justicia. Entre los derechos que se les asigna ante el reconocimiento por el estado es: a) la
tierra indígena de la misión de la aldea de Miranda cuyo donativo a los Cariú, y indios y
etnias agregados de la nación Cariri, se retiraron en 1780 por el estado; b) derecho y acceso de
los indígenas a las políticas públicas; c) derecho a la autodeterminación. Se analizó la
experiencia de los Purépecha de Cherán en México de la autodeterminación para las
inferencias que el tema sugiere al nuevo derecho para el siglo XXI.

Palabras clave: Indios Cariri. Identidad. Derechos Socioambientales


14

ABSTRACT

This thesis brings information, data and analyses that confirm the right to identity of Indians
Cariri of the Sítio Poço Dantas in Crato, Ceará, in the Northeast region of Brazil. This is a
survey of empirical and theoretical type we use the socio-environmental law references while
bond between the legal constitutional law, environmental law and social rights in the federal
Constitution of Brazil inserts. The authors identify the historical, social and legal process of
ethnic groups subjected to colonization, one of the largest etnocídios of the story, headlined
by the Spanish and Portuguese in the 16th century; which allowed us to a dialectical analysis
of the relationship between cultures and nature. Anthropology and Ethnology of Indians of the
Northeast, while the category "mixed" ethnicity with blacks and mestizos, Indians have been
studied for the purpose of locating the ethnic group of the Cariri of the Sítio Poço Dantas
between element descriptions of interethnic tension and ethnic border featuring ethnogenesis.
Confirming the process that took place in Brazil in the late 18th and the 19th century when the
Cariri were aldeados and then expelled from the Mission of Miranda. The identity of Indians
Cariri of the Sítio Poço Dantas therefore is confirmed under the focus of positive law (Federal
Constitution, art. 231 and 232, Convention 169 of the ILO, the Indian Statute Law 6001/73)
and law originating. The results of this analysis confirm how the original societies were
brutally attacked, largely destroyed in your social organization, collective or communal
production, harmonic coexistence with nature, cultures and religions. This paradigm of
colonization and Eurocentrism in our analysis makes Latin Americans have the right to act to
overcome the Eurocentric culture associated with the process of modern development whose
progress is submitted exclusively to the capitalist mode of production. The results obtained
with empirical research and quantitative and qualitative analysis of the data confirms: a) the
Cariri identity and your process of ethnogenesis and the territorialization that were submitted;
b) invocation of collective memory to your ancestry and identity statement Cariri as
predominant characteristic in the identification process; c) understanding and social
consciousness of belonging to the ethnic group called Cariri; d) the collective rights of the
community to the social and environmental identity Cariri; e) the evidence of cultural traits)
still present between the Cariri indicative that reproduce the culture of Brazil. Other studies
are needed to compose the due process of law by the FUNAI/Ministry of Justice. Among the
rights they are assigned in the face of the recognition by the State is: a) the indigenous land of
the village of Miranda's mission whose donation to the Cariú Indians and ethnicities, all of the
nation's aggregate Cariri, they were withdrawn in 1780 by the State; b) right and access to
indigenous public policies; c) right to self-determination. The experience of the Purépecha of
Cherán in self-determination Mexico was analyzed for the inferences that the theme suggests
while new right for the 21st century.

Key-words: Indians Cariri. Identity. Environmental Rights


15

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Dados da população, área e ano de criação dos Municípios do Cariri..... 31


Figura 2 - Mapa da biorregião do Araripe................................................................ 34
Figura 3 - Mapa da mesorregião do Araripe............................................................. 35
Figura 4 - Rolinha-de-asa-canela (Columbina minuta)............................................ 39
Figura 5 - Floresta Petrificada de Missão Velha. Troncos fósseis............................ 40
Figura 6 - Cachoeira de Missão Velha e Icnofósseis................................................ 41
Figura 7 - Visitantes estudantes e soldadinho do Araripe......................................... 41
Figura 8 - Estátua do Padre Cícero e Colina do Horto............................................. 43
Figuras 9/10 - Igreja de Sra. das Dores, Missa Romeiros, Trilha Sto. Sepulcro...... 43
Figuras 11/12 - Cachoeira Batateiras/ Banda Cabaçal / Pinturas Rupestres........... 44
Figuras 13/14 - Lenda /Expedito Seleiro/Fósseis de Inseto e Vegetal................ 45
Figura 15 - Escavações Parque dos Pterossauros/Museu de Paleontologia.............. 46
Figura 16 - Área de ocupação dos Kariri no interior do Nordeste............................ 70
Figura 17 - Mapa Rodoviário do Ceará.................................................................... 75
Figura 18 - Chegada de Cristóvão Colombo à América.......................................... 105
Figura 19 - Mapa do Globo Terrestre com América Latina em destaque................ 106
Figura 20 - Caminhos possíveis realizados pelos humanos nas Américas............... 107
Figura 21 - Percentual de áreas demarcadas no Brasil............................................. 152
Figura 22 - Presença indígena no Ceará................................................................... 170
Figura 23 - Mapa distância Monte Alverne/Santa Fé............................................... 186
Figura 24 - Foto do abrigo de Santa Fé..................................................................... 188
Figura 25 - Três imagens de gravuras e pinturas no abrigo de Santa Fé.................. 189
Figura 26 - Gravura em baixo-relevo no abrigo de Santa Fé.................................... 190
Figura 27 - Foto da RG de D. M. ............................................................................. 201
Figuras 28 - Estrada Crato ao Caldeirão da Santa Cruz do Deserto......................... 204
Figuras 29/30 - Assentamento do MST “10 de Abril”............................................. 205
Figura 31 - Imagem do caminho para o Sítio Poço Dantas, ao longe.................. 205
Figura 32 - Imagem de Satélite Sítio Poço Dantas, em destaque........................ 206
Figura 33 - Mapa das casas na comunidade Sítio Poço Dantas................................ 207
Figura 34 - Panorâmicas da Chapada do Araripe no percurso de acesso ao Sítio
Poço Dantas, Distrito de Santa Fé....................................................................... 210
Figura 35 - Imagens de acesso a Cherán.................................................................. 256
Figura 36 - Mapa do Estado de Michoacán no mapa do México............................. 257
Figura 37 - Imagens de frases e pinturas com referências à luta pela
autodeterminação de Cheran nas paredes de casas e estabelecimentos.................... 260
Figura 38 - Imagens da cidade de Cherán, barricada................................................ 261
Figura 39 - Imagens da cidade de Cherán, área central............................................ 265
Figura 40 - Banner divulgando o Museu de Sítio e a história de luta de Cherán..... 266
Figura 41 - Imagem de placa de limite de velocidade no centro de Cherán............. 267
Figura 42 - Comunicado do Conselho de Bairro...................................................... 267
Figura 43 - Documentos de Fiscalização............................................................ 268
Figura 44 - Mapa de Cherán com divisão por bairros.............................................. 268
Figura 45 - Plenário do Conselho Maior ainda em construção................................. 269

.
16

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Dados da população do Cariri................................................................ 32


Quadro 2 - Datas, lugares e colonizadores/povoadores do Cariri........................... 52
Quadro 3 - Datas de criação de Freguesias e Vilas do Cariri Colonial.................... 53
Quadro 4 - Tempo provável da chegada do Homem Americano ao Cariri.............. 67
Quadro 5 - Tipologia e localização das tribos do Ceará antes da Colonização........ 72
Quadro 6 - Descrição nominal dos soberanos das nações Kariris/Cariris no 78
Século XVII...........................................................................................................
Quadro 7 - Países que são signatários da convenção sobre o Instituto Indigenista 101
Interamericano .........................................................................................................
Quadro 8 - Países que ratificaram a convenção 169 da OIT.................................... 123
Quadro 9 - Dados da população indígena do MERCOSUL.................................... 131
Quadro 10 - Terras Indígenas no Brasil, Quantidade e Superfície. FUNAI........ 152
Quadro 11 - População Indígena do Ceará, Estágio dos processos junto á 153
FUNAI.......................................................................................................................
Quadro 12 - Comparativo entre o texto constitucional que institui direitos aos
povos indígenas e o Decreto que institui a política nacional de gestão territorial e
157
ambiental das terras indígenas...........................................................................
Quadro 13 - Comparativo entre o texto constitucional que institui direitos aos
povos indígenas, Resolução 169 da OIT e o Decreto que institui a política
158
nacional de gestão territorial e ambiental das terras indígenas................................
Quadro 14 - População Kariri no Ceará em relação à população do Ceará.............. 169
Quadro 15 - Quantidade de Índios auto-idenficados no Cariri e Região 171
Metropolitana do Cariri............................................................................................
Quadro 16 - Perfil dos entrevistados........................................................................ 213
Quadro 17 - Dados e percentuais de Índios Cariri auto-identificados do Sítio Poço 214
Dantas..............................................................................................................
Quadro 18 - Demonstrativo das respostas à pergunta: o que faz você ser índio?.. 216
Quadro 19 - Percentual de entrevistados sobre a geração de direitos advindos da 222
identidade indígena...................................................................................................
Quadro 20 - Demonstrativo das respostas à pergunta: quais direitos você espera 223
ver reconhecido? ...............................................................................................
Quadro 21- Demonstrativo das respostas à pergunta: quem você acha que está em 225
condições de garantir os direitos dos índios no Brasil?....................................
Quadro 22 - Comparativo de hábitos alimentares dos Kariri do passado e dos 238
Cariri do Século XXI.............................................................................................
17

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Percentual de respostas à pergunta: O que faz de você índio?............ 217


Gráfico 2 - Percentual de respostas à pergunta: Quais direitos você espera ver 223
reconhecidos?......................................................................................................
Gráfico 3 - Percentual de respostas à pergunta: quem você acha que está em 225
condições de garantir os direitos dos índios no Brasil?.........................................
18

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................ 22
2 O CARIRI E OS KARIRI..................................................................... 30
2.1 O CARIRI.............................................................................................. 30
2.1.1 O Cariri dos Recursos Naturais............................................................ 35
2.1.1.1 Bacia Sedimentar do Araripe................................................................ 36
2.1.1.2 Recursos Hídricos............................................................................... 36
2.1.1.3 Floresta Nacional do Araripe................................................................ 37
2.1.1.4 APA Chapada do Araripe...................................................................... 38
2.1.2 Geopark Araripe: Cultura, História, Paleontologia e Arqueologia do
Cariri................................................................................................... 39
2.1.3 O Cariri Político .............................................................................. 46
2.1.3.1 A Colonização do Cariri…………………………………………………… 48
2.1.3.2 Do Crato para o Brasil. Movimentos pró-liberdade dos nacionais, 1817,
1822 e 1824 e seus personagens: o jovem José Martiniano de Alencar,
Capitão-Mor José Pereira Filgueiras, Tristão Gonçalves de Alencar, D.
Bárbara de Alencar, Pinto Madeira....................................................... 54
2.1.3.3 Padre Cícero Romão Batista, Beato Zé Lourenço e o Cariri do Século XX 61
2.2 OS KARIRI.......................................................................................... 66
2.2.1 Índios Kariri/Cariri e a Colonização................................................... 74
2.2.1.1 Os Kariri e a mão-de-obra barata.......................................................... 82
2.2.1.2 Guerra dos Bárbaros............................................................................ 85
2.2.2 Expulsão dos Cariri do Cariri (Despatrimonialização)........................ 88
2.3 O ESTADO E AS MISSÕES CATÓLICAS NO CARIRI: A TERRA
COMO PROPRIEDADE.............................................................................. 90
2.4 CARIRI, OS KARIRI E O CAPITAL ................................................... 95
3 DIREITOS E POLITICAS PÚBLICAS INDIGENISTAS NO
BRASIL NO CONTEXTO DA AMÉRICA LATINA............................. 100
3.1 A AMÉRICA LATINA E OS POVOS INDÍGENAS, CONTEXTO.......... 104
3.2 A PROTEÇÃO DOS ÍNDIOS NO DIREITO INTERNACIONAL
LATINO-AMERICANO: NORMAS PROVENIENTES DA OIT, DO
MERCOSUL E DA ONU............................................................................. 118
3.2.1 Convenção nº 169 dos Povos Indígenas e Tribais (1989) e Declaração
sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais (2007).......................... 121
3.2.2 Recomendação nº 202 de Piso de Proteção Social e Recomendação nº
204 da Transição da Informal para Economia Formal ....................... 127
3.2.3 A atuação tardia do Mercado Comum do Sul – MERCOSUL na
defesa dos Direitos Humanos e dos Povos Indígena................................ 129
3.3 A PROTEÇÃO DOS ÍNDIOS NO DIREITO BRASILEIRO 1500 – 1988. 133
3.3.1 Políticas Públicas Indigenistas no Brasil................................................. 135
3.3.2 Políticas Públicas de Proteção ao Índio no Brasil Pós-Constituição de
1988........................................................................................................... 148
3.3.2.1 Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas –
PNGATI e outras políticas públicas entre 2008-2012............................... 156
3.3.2.2 Conselho Nacional de Política Indigenista – CNPI e outras políticas
públicas 2016-2019................................................................................... 161
3.4 POLÍTICAS PÚBLICAS E O DESAFIO DOS NOVOS DIREITOS NO
SÉCULO XXI, UM GIRO DE-COLONIAL?............................. ............ 164
19

4 ÍNDIOS CARIRI DO SÍTIO POÇO DANTAS E AQUISIÇÃO DE


DIREITOS........................................................................................... 169
4.1 COMO SE FORMA UM POVO: IDENTIDADES, CULTURAS, ETNIA. 171
4.1.1 Terra Indígena............................................................................................. 180
4.1.2 Memória Coletiva....................................................................................... 182
4.1.3 Direito Socioambiental................................................................................ 190
4.2 QUEM SÃO E ONDE ESTÃO OS ÍNDIOS CARIRI.............................. 194
4.2.1 Índios Kariri do Cariri............................................................................... 199
4.2.1.1 Os Cariri do Sítio Poço Dantas.................................................................... 202
4.2.1.2 Descobrindo o Sítio Poço Dantas.................................................................. 202
4.2.1.3 Pesquisa de Campo: registro das visitas e pré-teste da entrevista................ 207
4.2.1.3.1 Primeiro dia de entrevistas.......................................................................... 209
4.2.1.3.2 Segundo dia de entrevistas............................................................................ 211
4.2.1.3.3 Terceiro dia de entrevistas........................................................................... 211
4.2.1.3.4 Quarto dia de entrevistas.............................................................................. 212
4.3 RESULTADOS E DISCUSSÃO DA PESQUISA DE CAMPO.................. 212
4.3.1 Auto-identificação e Consciência da identidade indígena sob os
aspectos dos usos e costumes do grupo social em que está inserido.
Perguntas 1, 2 e 3........................................................................................ 213
4.3.2 Sobre a aquisição de direitos para o grupo étnico identificado
Perguntas 4, 5 e 6......................................................................................... 222
4.3.3 Sobre as relações do grupo étnico com o Estado-Nacional. Pergunta 7 224
4.4 ÍNDIOS CARIRI E SEUS DIREITOS ...................................................... 227
4.4.1 Reconhecimento como Povo Indígena, População Tradicional.............. 231
4.4.2 Direito à Identidade................................................................................... 233
4.4.2.1 Costumes e tradições dos índios Kariri do passado e dos Cariri do século
XXI....................................................................................................... 237
4.4.3 Direito à Terra ........................................................................................... 240
4.4.3.1 Direito à Terra Indígena X Direito de Propriedade....................................... 244
4.4.4 Direito de Autodeterminação x Estado Pluriétnico ou Plurinacional... 247
4.5 O CASO DE AUTODETERMINAÇÃO DOS PURÉPECHA DO
MÉXICO...................................................................................................... 254
4.5.1 E quem são os Purépecha?......................................................................... 256
4.5.2 Cherán K’éri e a Experiência de Autodeterminação.............................. 259
4.6 OUTRO DIREITO INDÍGENA É POSSÍVEL?........................................... 271

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÕES..................................... 272


6 REFERÊNCIAS.......................................................................................... 280
7 APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO PARA APLICAÇÃO DE QUESTIONÁRIO............. 298
APÊNDICE B – QUESTIONÁRIO DE ENTREVISTAS....................... 300
APÊNDICE C – MAPAS DA LOCALIZAÇÃO DO SÍTIO POÇO
DANTAS...................................................................................................... 301
8 ANEXO A – COMPROVANTE DE APROVAÇÃO DO COMITÊ
DE ÉTICA EM PESQUISA....................................................................... 303
ANEXO B – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DR. ORLANDO
ARAGÓN ANDRADE................................................................................ 306
ANEXO C – CONVOCATÓRIA A LA FOGATAS DE LA
20

COMUNIDAD............................................................................................. 313
21

1 INTRODUÇÃO

Esta tese é o resultado de um conjunto de pesquisas empreendidos no período de 2015


a 2017, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná- PUCPR realizado em parceria com a Universidade Regional do Cariri –
URCA, no Ceará. O tema central está na identidade dos índios Cariri do Sítio Poço Dantas,
em Crato, uma comunidade que busca o reconhecimento de sua etnia passados 147 anos da
expulsão dos seus ancestrais do território do Cariri cearense.
O estudo dos índios Kariri/Cariri do passado e do presente é relevante para a região
que traz em sua denominação o nome Cariri. Igualmente é relevante para a Universidade
Regional do Cariri – URCA, como nicho de concentração das principais pesquisas históricas
do Cariri, território que passou a integrar o programa de Geoparques Mundiais da UNESCO
desde 2006, tendo como um dos objetivos a proteção da biodiversidade, Geologia,
Paleontologia, Arqueologia e promoção das ações da educação ambiental e do
desenvolvimento do geoturismo, associando patrimônio material e imaterial com forte defesa
das identidades locais. A esta iniciativa se somou a experiência do orientador Prof. Carlos
Mares na temática do direito indígena na América Latina e especialmente no Brasil.
O censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE indicava a
presença de índios autodeclarados no Cariri. Em um contexto local com pouca bibliografia
sobre os remanescentes Kariri/Cariri, os desafios de pesquisar sobre esse tema se tornou um
grande desafio; tratava-se de recompor uns quebra-cabeças, cujos resultados expõe a
identificação dos antigos habitantes do Sul do Cearés através da sua historiografia, etnogênese
e direitos no século XXI. A problemática que enfrentamos para atingir esses resultados
apontavam para as seguintes indagações: quem são os índios Kariri/Cariri?, a
expulsão/extinção dos índios do território do Cariri teve que finalidade?, os índios do Cariri,
atualmente autodenominados, são índios?, que identidade tem esses Índios? E, por último
quais direitos têm esses índios do século XXI?
Para responder a estas questões traçamos as seguintes hipóteses: 1) São Cariri os
índios autodeclarados no Cariri; 2) Os colonizadores buscaram se apropriar da terra dos índios
porque assim eles poderiam dar o tratamento à terra como propriedade; 3) A perspectiva de
extinção dos índios por ato normativo se dá como medida de negar direitos aos índios; 4) A
caracterização da identidade ou a falta dela é uma das dificuldades de implementar direitos
aos povos indígenas, dentre estes direitos: demarcação de terras indígenas.
22

Dentre os direitos emergentes no século XXI a autodeterminação dos povos indígenas


na América Latina, mais especificamente, a experiência dos índios Chéran no México, que se
autodeterminaram desde 2012 ao abolir o modelo político vigente e adotar o governo de “usos
e costumes” nos ajudou a reflexionar sobre o futuro dessa relação Índios x Estado Nacional.
Para a análise desse paradigma utilizamos os autores que acreditam ser necessário um
giro decolonial para a América Latina, ou que enxergam no sistema de acumulação capitalista
um caminho a ser superado por estratégias ecossocialistas. Ou, ainda, outros caminhos de
convivência harmônica entre homem/natureza/culturas, como alternativa para atuar no cenário
de crises sociais e ambientais do século XXI. O contexto da busca pelas identidades dos
povos no Brasil não poderia, por isso, estar desconectada das discussões que se faz em torno
do Direito Indígena nos sistemas normativos da América Latina. No Brasil, o direito
socioambiental tem sido o referencial jurídico de análise das categorias que assistem ao
mesmo tempo os estudos dos direitos que circundam a problemática do direito indígena, ao
mesmo tempo em que subsidia a atua jurisdicional dos atores relevantes que lutam em defesa
desses direitos, seja na seara administrativa, judicial ou executiva. Este referencial é o único
capaz de acessar o olhar das categorias fundantes da etnogênese dos povos indígenas do
Nordeste no direito brasileiro, dentre elas a memórica coletiva.
Ao longo de três capítulos centrais, a tese aborda na seção primaria um, o Cariri e os
Kariri, onde se apresenta a descrição histórica do contexto de formação social do território do
Cariri, no período colonial, e o processo jurídico que resultou na expulsão dos índios Kariri e
a apropriação de suas terras pelos colonizadores. A seção primária dois continua o exercício
de conhecer as origens e ordenamento em que estão inseridos os povos indígenas na América
Latina. Nesta seção fazemos uma releitura das politicas públicas de proteção ao índio no
Brasil, contextualizando a legislação, as Constituições brasileiras. A criação da FUNAI, e o
processo de formatação de políticas nacionais que culmina em 2012 com a instituição da
Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI através do
Decreto nº 7.747, de 5 de junho de 2012.
No plano internacional a emergência da Convenção 169 da OIT e da Declaração da
ONU sobre povos indígenas e tribais, as normas no âmbito do Mercado Comum do Sul –
MERCOSUL e o esforço tardio dos países membros para alcançar essas temáticas; e a
experiência no México, Cherán, constituiram com o Cariri as unidades normativas e
territoriais de referência.
Estas seções um e dois compõe intimamente o processo central da seção primária três
quatro aborda a Identidade dos índios Cariri do Sítio Poço Dantas, em Crato, Ceará e a
23

aquisição de Direitos. Em face de estudo jurídico e histórico, com estudo de caso,


analisamos a etnogênese da identidade do povo Cariri do Sítio Poço Dantas, tendo como
categorias de análise: memória coletiva, direito socioambiental e terra indígena.
Nesta seção trazemos ainda a experiência e os relatos dos Purhépecha índios de
Cherán no México sobre o governo de usos e costumes, resultante da autodeterminação obtida
pelos índios junto ao Poder Juriciário do México.
Para os estudos dessa tese, a metodologia empreendida resultou em uma pesquisa do
tipo teórica e empírica, com análise quantitativa e qualitativa dos resultados da pesquisa de
campo. A tese foi construída seguindo a análise dialética das concepções doutrinárias,
normativas e históricas da temática dos índios Kariri/Cariri no contexto da América Latina,
com especial atenção ao Brasil e as políticas públicas empreendidas, assim como os direitos
coletivos indígenas. Alguns conceitos da Antropologia e Etnografia pertinentes à identidade
étnica, cultura e memória coletiva dos grupos sociais, no contexto da aquisição de direitos
coletivos foram visitados.
O estudo sobre a identidade dos Cariri e a autodeclaração dessa identidade pela
comunidade do Sítio Poço Dantas resultou indispensável uma pesquisa de campo. Realizamos
entrevista guiada para ouvir da comunidade do Sítio Poço Dantas sua etnia. A pesquisa
envolveu também a coleta de informações sobre os costumes e expectativas de direitos da
população. A pesquisa de campo foi registrada e autorizada no Portal Brasil do Ministério da
Saúde CAAE nº 71374217.4.0000.5055 e submetida ao Comitê de Ética da Universidade
Regional do Cariri – URCA cujo parecer favorável permitiu o ingresso em campo.
A entrevista foi guiada por um questionário com sete perguntas e respostas objetivas
de múltipla escolha organizada em três seções, conforme o conteúdo a ser explorado na
resposta, a saber:
1) Auto-identificação e Consciência da identidade indígena sob os aspectos dos usos
e costumes do grupo social em que está inserido. Perguntas 1, 2 e 3.
2) Sobre a aquisição de direitos para o grupo étnico identificado. Perguntas 4, 5 e 6.
3) Sobre as relações do grupo étnico com o Estado-Nacional. Pergunta 7.
Em razão do perfil dos entrevistados que compõe um conglomerado específico dentro
da população cratense, quais sejam, os moradores do Sítio Poço Dantas, portanto o público
alvo da pesquisa de campo passou a ser 100% dos moradores. A amostra, entretanto, foi
escolhida – ao final – tomando-se por unidade pessoal de pesquisa um habitante de cada
residência. Adotamos, por isso, o perfil da amostra não-probabilística, embora em razão do
tamanho da amostra em relação a população – estimada inicialmente em 48 pessoas, os
24

resultados podem ser comparados à de uma pesquisa probabilística, mas como tal, nossos
resultados não contém o objetivo e o alcance da generalização para o Município do Crato.
Para Marcelo Menezes, a amostragem não probabilística é possível em projetos de
pesquisa qualitativa e “se as características da população acessível forem semelhantes às da
população alvo os resultados podem ser equivalentes aos de uma amostragem probabilística,
mas não podem garantir sua confiabilidade” 3.
A escolha do entrevistado foi aleatória e a intenção inicial era pesquisar 10% da
quantidade de pessoas que se autodeclararam índios no Censo de 2010, no município do Crato
– Ceará. De 112 pessoas 10% resultavam em 11,2, 12 entrevistas portanto. Daí algumas
análises tomam esses números como comparativos.
A descoberta do Sítio Poço Dantas e a estrutura do lugar (pequeno, acolhedor,
próximo), fez-nos restringir aos moradores do lugar, especificamente, a amostra. Eram 19
casas, mas apenas 10 estavam ocupadas, eram, portanto, 10 famílias. Para cada residência
uma entrevista, com a contagem da população residente que se denominava Cariri.
Adotamos a análise quantitativa para demonstrar em gráficos e números os resultados
e qualitativa utilizando a análise dialética sobre a relação homem, cultura e natureza sobre os
dados e os possíveis significados que podem revelar de modo a contribuir para a etnogênese, e
identidade jurídica dos índios Cariri do Sítio Poço Dantas, considerando a memória coletiva, a
terra indígena e o direito socioambiental como categorias relevantes nesta análise.
A análise quantitativa, qualitativa e os referenciais teóricos nos ajudam a compreender
o grupo social dos Cariri e sua relação com a sociedade, numa abordagem que pretendeu
recuperar informações e memórias coletivas dos Cariri e prospectar um futuro com dignidade
social como grupo étnico indígena frente ao Estado brasileiro. Incorporando, aleatoriamente,
na análise as categorias da memória coletiva de Maurice Halwachs 4, em que o indivíduo não
se explica isoladamente no grupo social e como linha que conduz a uma ideia de memória do
grupo e recuperação de uma consciência do ser índio; e etnogênese e a identidade jurídica
através do direitos socioambiental como processo social capaz de suscitar a recuperação da
identidade étnica e para a garantia de direitos coletivos para os índios Cariri.

3
MENEZES, Marcelo. Universidade Federal de Santa Catarina. Amostragem. Disponível em:
http://www.inf.ufsc.br/~marcelo.menezes.reis/Cap7.pdf. Acesso em: 23 Jul.2017.
4
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 8ª reimpressão. São Paulo:
Centauro Editora, 2015.
25

Segundo uma releitura marxista da consciência de classe, incorporada por Arruti5, a


consciência de “uma etnia em si para uma etnia para si”. A Complexidade que permite com a
identificação jurídica do grupo étnico atinjam resultados concretos no plano coletivo e no
plano individual, enquanto parte de um todo. Na abordagem Marxista utilizamos os
referenciais teóricos de autores latino-americanos que buscam uma mudança de rota para o
desenvolvimento e as sociedades latino-americanas, o que na prática se traduz por uma
proposta clara de sair o eixo eurocêntrico de compreensão de si e do mundo. E autores que
corroboram da crítica ao sistema de produção capitalista, por considerar, a exemplo de Foster
a “enormidade da crise ecológica planetária só pode ser entendida de um ponto de vista
baseado na crítica marxista ao capitalismo”6; da “acumulação primitiva do capital”7
empreendido no processo de colonização, da destruição da natureza como condicionante para
o desenvolvimento e da negação da civilização dos povos originais, suas culturas, usos e
costumes. Chamamos de capitalismo a “economia política ou sistema de produção e troca
orientado pelo mercado quanto a uma sociedade em que o controle sobre a propriedade
requerida para a produção (capital) esteja concentrado nas mãos de uma pequena parcela da
população, enquanto a maior parte do restante vende seu tempo de trabalho num sistema de
salários.”8 Em geral com o modo de acumulação de capital na América Latina foi predatório e
buscou destruir as instituições sociais básicas das sociedades ameríndias, ingressar no
capitalismo não foi uma escolha e as consequências nós podemos avaliar nesta tese, com
relação aos direitos dos índios.
O capitalismo, portanto, inicia-se como um sistema que usurpa a natureza e usurpa a
riqueza pública9, esta considerada os valores de uso da mercadoria. Toda mercadoria tem um
valor de uso e de troca10. O valor de uso atende as necessidades básicas da população,
enquanto o valor de troca atende ao mercado e tem objetivo de acumular lucro, segundo o
catecismo capitalista. A riqueza privada, por sua vez, demanda escassez da mercadoria,
porque o valor associado era de troca, não de uso. Dependendo das condições da oferta da

5
ARRUTI, José Mauricio. Etnogênese Indígena. Povos Indígenas no Brasil 2001/2005. São Paulo: Instituto
Socioambiental, 2006, p. 31. Disponível em: < https://www.socioambiental.org/pt-br/o-isa/publicacoes/povos-
indigenas-no-brasil-20012005>. Acesso em: 19 Jul.2017.
6
FOSTER, John Bellamy. A Ecologia da Economia Política Marxista. Tradução de Pedro Paulo Bocca. Lutas
Sociais. N. 28. 1º Sem. São Paulo. 2012. 87-104. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/issue/view/1194/showToc>. Acesso em: 22 Jul. 2017. p. 87.
7
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro primeiro. São Paulo: Abril Cultural. 1984.
8
HOWLETT, Michael. RAMESH, M.. PERL, Anthony. Política Pública. Seus Ciclos e subsistemas. Uma
abordagem integral. 3ª Edição. Tradução técnica Francisco G. Heidemann. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier,
2013. p. 60.
9
FOSTER, op., cit., p. 88.
10
Valor de uso e de troca ficou conhecido como o Paradoxo de Lauderlale, este um economista politico clássico
(1759-1839). Essa máxima estava em voga quando Marx faz a crítica do Capitalismo e dela se utilizou.
26

riqueza pública, como água, ar, solo, florestas, cereais etc., era preciso manter o preço de
troca, essa relação é fatalmente contraditória e destruidora no capitalismo, ademais que a
mais-valia é reinvestida no processo para gerar mais mais-valia e assim sucessivamente.
O sujeito histórico índio está condizente com as dimensões do sujeito histórico
marxista, na contemporaneidade, que vai além do universo dos trabalhadores, mas a eles se
somam para interpretar e fazer mudanças no mundo em que atua. Este novo sujeito busca re-
entrelaçar homem e natureza como instituições que não se separam parafraseando o autor da
teoria econômica democrática Polanyi11, o trabalho é parte da vida humana e a terra (natureza)
e trabalho não precisam estar separados. Aí estava a pretensão propositiva de Marx em sua
crítica ao capitalismo utilizando-se da categoria “fenda metabólica”12; seria uma sociedade
socialista/comunista “em que os produtores associados governem o metabolismo humano com
a natureza de uma forma racional... conseguindo isso como menor gasto de energia... em
ciclos metabólicos fechados.”13
Nada é tão simples na natureza ou na vida em sociedade. Os modelos de socialismos
elaborados ou na intenção de serem manifestações do socialismo ao estilo marxista não
conseguiu reproduzir com fidelidade, grosso modo, ser referência para esse ciclo metabólico
fechado, associativo homem/natureza. Há os críticos do marxismo sobre a questão
antropocêntrica e sobre a ideia de progresso como um processo que se pode adaptar aos
socialismo, não nos deteremos aqui nesta análise, que aliás, foi muito bem combatida por
Michael Löwy14. A crítica marxista ao capitalismo está em perfeita sintonia com o nosso olhar
sobre a questão dos danos que o capitalismo causa no nosso tempo. As soluções por ele
propostas é que precisam se ajustar aos anseios das sociedades contemporâneas, para isso não
faltam marxistas. Para Michael Löwy é o ecossocialismo o caminho, porque “implica uma
radicalização da ruptura com a civilização material capitalista. Nesta perspectiva, o projeto
socialista visa não apenas uma nova sociedade e um novo modo de produção, mas também
um novo paradigma de civilização.”15 Foster, a seu turno, fala de uma revolução no tempo

11
POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier.
2000.
12
Fenda metabólica é um conceito produzido a partir da compreensão do metabolismo, tomado de empréstimo
da Biologia. Um recurso natural utilizado para ajustar-se aos desgastes que ocorre nos processos de produção de
energia indispensável para o equilíbrio ecológico. No capitalismo há toda uma desatenção nesse processo quando
explora a natureza, capacidade de recuperação do solo, por exemplo. A este fator destrutivo Marx chama falha
metabólica. Sobre esta categoria repousa a principal crítica marxista ao capitalismo.
13
FOSTER, John Bellamy. A Ecologia da Economia Política Marxista. Tradução de Pedro Paulo Bocca. Lutas
Sociais. N. 28. 1º Sem. São Paulo. 2012. 87-104. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/issue/view/1194/showToc>. Acesso em: 22 Jul. 2017. p. 91.
14
LÖWY, Michael. Ecologia e Socialismo. Coleção questões da nossa época. V. 125. São Paulo: Cortez, 2005.
15
LÖWY, op. cit., p. 40.
27

presente, constituída e significada no “combate à destruição absoluta do sistema do capital


monopolista, substituindo-o por uma sociedade de igualdade substantiva e sustentabilidade
ecológica.”16
O intento que almejou com sucesso o capitalismo, no contexto da colonização foi
transformar a natureza (terra-propriedade) e mão-de-obra humana em mercadoria para atender
ao mercado em expansão. E o Direito foi o suporte formal-técnico indispensável para esse
fim, com a lógica contratual. A este elemento econômico se somou a degradação social sob o
fundamento da ideia de raça inferior imposta aos nativos desde a chegada dos europeus à
América em 1492 como “um modo de outorgar legitimidade às relações de dominação
imposta pela conquista” 17.
No Brasil as conquistas da inclusão dos direitos coletivos na Constituição Federal de
1988, o fortalecimento do movimento socioambiental e a emergência do direito
socioambiental promoveram a denúncia da crise ambiental brasileira e a crise social das
populações indígenas, tradicionais e tribais. Bem como a necessidade de pautar um novo
padrão de desenvolvimento para a sociedade, voltada para a defesa e proteção da natureza e
das populações para uma convivência “sustentável”. Um dos maiores desafios está
exatamente em elabora cenários em que a convivência sustentável seja mesmo viável. Há
opiniões diversas e dentre os principais autores do direito socioambiental que utilizamos as
referências principais desta tese se espelham em Carlos Frederico Marés de Souza Filho e sua
abordagem sobre os direitos culturais, diretos coletivos ou difusos, direito constitucional e
sociedades hegemônicas. Para ele o recorte interno sobre a regulação pode ser uma saída e sua
historiografia não espera as experiências exitosas para arregaçar as mangas em defesa de um
Estado Social inclusivas no Brasil e na América Latina, enquanto espera uma solução mais
viável, ele trabalha para produzir educação jurídica socioambiental para superação da crise em
que estamos imersos. Enrique Dussel18, Edgardo Lander19, Quijano20 propõe outro olhar sobre
o desenvolvimento e a modernidade, eles buscam uma mudança no modo como nós latino-
americanos vemos esse processo conceitual de desenvolvimento e para a superação do mito

16
FOSTER, John Bellamy. A Ecologia da Economia Política Marxista. Tradução de Pedro Paulo Bocca. Lutas
Sociais. N. 28. 1º Sem. São Paulo. 2012. 87-104. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/issue/view/1194/showToc>. Acesso em: 22 Jul. 2017. p. 101.
17
QUIJANO, Aníbal. La Colonialidad del Poder. In: LANDER, Edigard (Org.) La Colonialidad del saber:
eurocentrismo y ciências sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CICCUS. 2011. p. 124.
18
DUSSEL, Enrique. 1492 El Encubrimiento Del Outro. Hacía el origen del “Mito de la modernidade”.
Biblioteca Indígena. Colección pensamento crítico. La Paz – Bolívia. 2008.
19
LANDER, Edgardo. Marxismo, Eurocentrismo y Colonialismo. In: LANDER, Edigard (Org.) La
Colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:
CICCUS. 2011. p. 209-243.
20
QUIJANO, op. cit., 2011.
28

da modernidade imposta pela Europa. Para nos libertar das amarras que nos prende a ideia de
seres inferiores e reabilitar a consciência de quem somos, nossos valores e nosso próprio
processo de desenvolvimento, um “giro decolonial”21, portanto.
Esta tese, enfim, revelou mais que a identidade dos Cariri do Sítio Poço Dantas,
revelou um modo de vida e compreensão do mundo sob o ponto de vista dos vencidos, índios
do Brasil, do Ceará, que foram expulsos de sua terra e que resistiram na esperança de um
retorno. Igualmente esses grupos sociais reencontram o caminho da emergência
socioambiental no momento em que a América Latina reflete sobre seu processo insustentável
de desenvolvimento... É como olhar para dentro e se colocar a questão do ser índio e aprender
com eles a convivência homem/natureza. Erra quem pensa que se trata de um retorno teatral, é
antes, um aprendizado humano sobre nossos limites e sobre entender os limites do planeta.

21
‘Giro decolonial’ é um termo cunhado originalmente por Nelson Maldonado-Torres em 2005 e que
basicamente significa o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da
modernidade/colonialidade. BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc.
Polít., Brasília , n. 11, p. 89-117, Aug. 2013 . Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n11/04.pdf>.
Acesso em: 20 Jul.2017.
29

2 O CARIRI E OS KARIRI

Conhecer, compreender as pessoas e o seu lugar ajudam a construir a sua identidade.


Conhecer e compreender são exercícios descritivos e analíticos. O Cariri e os Kariri22 tem
uma identidade que se entrecruzam no processo de construção daquilo que foram e do que
são. A identidade é o todo que os tornam indivíduos e não se sabe do indivíduo sem saber a
sua história, as suas histórias. A identidade dos Kariri está também no chão Cariri.
A terra, o mundo dos Kariri é o Cariri, os acolhe. Fazem parte de um mesmo tempo.
Um cosmo. Como a Pachamama dos andinos o Cariri não é só o lugar, a terra, ela abrange
muito mais. Ele protege os que nele habitam e lhes permite viver graças a tudo o que dá: água,
alimento e encantamento. Ao Cariri os índios prestam homenagens, alimentam mitos e deles
se alimentam. Um está ligado indissociavelmente ao outro.

2.1 O CARIRI

O Cariri cearense é uma região que ocupa a porção Sul do Ceará, no Nordeste
brasileiro. Uma região cercada pela biodiversidade exuberante da Chapada do Araripe23; esta
integrante da biorregião do Araripe – uma região mais ampla e de integração ambiental e
social que envolve parte dos estados do Pernambuco, Piauí e Ceará. O Cariri na composição
atual envolve um conjunto de 8 municípios: Barbalha, Crato, Jardim, Juazeiro do Norte,
Missão Velha, Nova Olinda, Porteiras e Santana do Cariri. Essa definição territorial e
administrativa foi realizada pelo Governo do Estado do Ceará em 201424. Outrora25 esta

22
A grafia dos nomes indígenas segundo a Convenção para a Grafia de Nomes Tribais estabelecida pela
Associação Brasileira de Antropologia, realizada no Rio de Janeiro em 1953, define o uso do etnônimo no
singular. Há, entretanto, pesquisadores e estudiosos, a exemplo de Júlio Cezar Melatti e Cristhian Teófilo da
Silva que compreendem ser esse um exercício que pode ser percebido como um tratamento dado a espécies
animais e vegetais. Sem adentrar no mérito da questão por não ser Antropólogo, adotamos para esta tese as
recomendações da convecção da ABA, de 1953.
23
Araripe, que em língua Tupi que dizer “lugar das Araras”, rari = arara. LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia
Social Inclusiva: A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio Cultural da Chapada do Araripe. 2105. pp.
442. Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra. 2015.
P. 63.
24
INSTITUTO DE PESQUISAS DO CEARÁ - IPECE. Atlas do Ceará. Disponível em:
http://www2.ipece.ce.gov.br/atlas/lista/. Acesso em: 08 set. 2016.
25
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. Volume I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória,
n.4. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 5. O Cariri naquela época
compreendia 20 Municípios da região sulcearense que juntos somavam aproximadamente 373.851 habitantes.
30

região compreendia “Crato, Barbalha, Juazeiro, Missão Velha, Milagres, Mauriti, Brejo
Santo, Jardim, Santanópole26, São Pedro, hoje Caririaçu e Quixará27, atual Farias Brito” 28.

Figura 1. Mapas da Região Nordeste, Ceará, Região Metropolitana da Cariri e Microrregião do Cariri.

Fonte: Adaptado de Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará - IPECE. 2014. 29

O Cariri ocupa uma porção de terra sob a encosta da Chapada do Araripe e sua borda
superior. A vegetação, clima e águas naturais distinguem esse território dos demais em seu
entorno. A sua estrutura é um complexo geológico-ambiental que se formou desde a era do
Cretáceo, entre 145 a 65 milhões de anos, constituída por arenitos com relevo tabular quase
plano, formando uma extensa mesa. A ausência quase total de escoamento superficial no topo
da chapada está diretamente relacionada às características do solo. No lado cearense da
Chapada persiste a vegetação densa, de médio a grande porte, da Floresta Nacional do Araripe
e sua zona de amortecimento30. O solo é fértil, razão das extensas áreas cultivadas.

26
A cidade de Santana do Cariri teve seu nome alterado para Santanópole pelo Decreto Estadual 448/1938 e
novamente alterado para Santana do Cariri pela lei 1153/1951. Em 1957 através da lei estadual 3.555 o então
distrito de Santana do Cariri, Nova Olinda, passa ao status de Município. Também Quixará integrava o
município de Santana do Cariri até 1926, quando por força da lei estadual 2.359 passou a integrar o município do
Crato. Quixará atualmente Farias Brito. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA -
IBGE. Santana do Cariri. Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/ceara/santanadocariri.pdf. Acesso em 08 set. 2016.
27
Quixará, atualmente Farias Brito. Município pela lei nº 268, de 30.12.1936. Desmembrado de Crato. Pela lei
estadual nº 2 194, de 15.12.1953.
28
PINHEIRO, Irineu. O Cariri. Reedição Fac-Simile da Ed. 1950. Fortaleza: Editora da UFC. 2010. P. 07.
29
INSTITUTO DE PESQUISAS DO CEARÁ - IPECE. Atlas do Ceará. Disponível em:
<http://www2.ipece.ce.gov.br/atlas/lista/>. Acesso em: 08 Set.2016.
30
BRASIL. Sistema Nacional de Unidade de Conservação – SNUC: Lei nº 9.985/2000. Disponível em:
www.planalto.gov.br. Acesso em 12 mar. 2017. Artigo 2º, inciso XVIII: entorno de uma unidade de
conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de
minimizar os impactos negativos sobre a unidade.
31

Um “oásis” no meio do sertão dizem os moradores de hoje e do passado. Historiadores


da década de 1950 como Irineu Pinheiro, definem idilicamente o Cariri como um ambiente
lindo e rico, “não pode ser sertão [...] com fontes que nunca secam”31. A água é abundante,
considerando ser uma região do semiárido nordestino; distinção que aparece no modo como a
população vê a quantidade de água existente, utilizando muitas vezes de modo perdulário.
Desde idos anos o Cariri mantém fontes de água natural, hoje não conseguiu manter intacta e
fluente as fontes/nascentes; em 2016, quando o Cariri ultrapassou uma das maiores secas que
o Ceará assiste, as fontes têm diminuído a sua vazão ou secado totalmente, segundo dados de
monitoramento da Companhia Estadual de Recursos Hídricos no Cariri32.
Longe do litoral de Fortaleza (capital do Ceará) não menos que 400 km e equidistante
de todas as capitais do Nordeste do Brasil o Cariri é sertão, forma uma região central de
entreposto entre o litoral norte e Nordeste, da Amazônia e do Centro-Oeste do Brasil.
Em seu subsolo o Cariri nos reserva ainda o mais precioso dos presentes do tempo,
gerado e guardado ao longo de 145 milhões de anos: o registro do surgimento das plantas com
flores, do boom da diversidade biológica que consequentemente permitiu o surgimento dos
mamíferos, constituindo um livro aberto para o estudo da vida na terra - de valor inestimável -
em fósseis de várias idades geológicas, desde calcificações-fósseis de plantas, insetos, peixes
de água doce e de ambiente marinho, até répteis ancestrais, contemporâneos dos dinossauros
que habitavam a região, como os Pterossauros.
Com uma população estimada pelo IBGE/IPECE em 2016 de 567.407 habitantes, o
Cariri ocupa uma extensa área do Ceará de 4.115,81 Km². Quadro 1.

Quadro 1 - Dados da população, área e ano de criação dos


Municípios do Cariri.

Município Ano de População Área


Criação 2016 Km²
Barbalha 1846 59.343 479,18
Crato 1764 129.662 1.009,20
Jardim 1814 27.074 457,03
Juazeiro do Norte 1911 268.248 248,55
Missão Velha 1864 35.326 651,11
Nova Olinda 1957 15.310 284,40
Porteiras 1889 14.965 217,57
Santana do Cariri 1885 17.479 768,77
Total 567.407 4.115,81

Fonte: o autor, 2107.

31
PINHEIRO, Irineu. O Cariri. Reedição Fac-Simile da Ed. 1950. Fortaleza: Editora da UFC. 2010. p. 08.
32
COMPANHIA DE GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS DO CEARÁ. COGERH. Relatório de Gestão
de 2016. Disponível em: www.cogerh.com.br. Acesso em: 19 fev. 2017: 307 Fontes são monitoradas pela
Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará - COGERH.
32

Para falar das gentes compreende-se indispensável falar dos recursos naturais, da
cultura e da politica do Cariri e dos Kariri, não sem antes tratar da definição do nome dos
primeiros habitantes e dos atuais indígenas33 da região do Cariri. Há registros de inscrição
Kariri com “K” e Cariri com “C”. Adotaremos para os Kariri do presente a inscrição com
“C”, em razão das anotações que estes registraram em sua assinatura. Os ancestrais silvícolas
daqueles filhos das cidades do Cariri, como Crato - antiga Missão do Miranda, eram
chamados por outras raças de Kariri, Kiriri ou Carirí, termo que para eles significava
“calado”. Uma quantidade expressiva de nomes e fonética foram sendo construídos ao longo
dos anos, conforme veremos mais adiante34. Os Kariri integravam uma nação que reunia
várias etnias. Não faltaram relatos dessa conjunção, como nas cartas de Martin Soares
Moreno, ainda no início do século XVII (1611), que descreve existirem 22 nações em três
castas de tapuyas em um raio 70 léguas nas terras do Ceará, sendo uma delas os Kariri35.
Há registros de um catecismo cristão na língua brasílica da nação Kariri36 e uma
gramática Kariri37. Igualmente suportam essa afirmação os relatos de etnias várias com
denominação Kariri ou Kiriri na região do Nordeste do Brasil, distantes do Cariri cearense, ou
cuja descrição física dos índios não se assemelham com as descrições dos Kariri do Cariri, do
passado ou do presente; é o caso dos Tremembé38, cuja compleição física é diversa daqueles
habitantes do Cariri, em hábitos e traços.
O Cariri, para este trabalho, é analisado em um recorte cronológico da sua
sociobiodiversidade, historicidade e da trajetória de alguns de seus personagens destacados na
política, seguindo esses elementos que consideramos fundantes para a identidade dos Cariri:
recursos naturais, cultura – através dos geossítios do Geopark Araripe, e política.

33
Índios é uma expressão utilizada em meados do século XVI para designar os indígenas submetidos (seja
aldeado, seja escravizado), por oposição ao termo mais geral gentio, que designa os índios independentes.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
São Paulo: Editora Claroenigma, 2012. P. 50.
34
PINHEIRO, Irineu. FILHO, J. de Figueiredo. Cidade do Crato. Fac-símile da edição de 1955. Coleção Nossa
Cultura, n. 1, Série memória, n.3. Edições URCA. Fortaleza: Editora da UFC, 2010. P. 84. Somam-se a este
autores: Batista Caetano e Theodoro Sampaio. Diverge apresentando outra hipótese: Thomaz Pompeu Sobrinho,
que aponta “água flui aqui (yquirirí), ou Oh! A água jorra (ycariri) em língua tupi”.
35
SOBRINHO, Thomas Pompeu. Os Tapuias do Nordeste. Fortaleza: Revista do Instituto do Ceará, 1934.p. 8.
36
MAMIANI, P. Luiz Vincencio. Catecismo Kiriri. Edição Fac-Símile. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
1942.
37
ADAM, Lucien. Grammaire Comparée des Dialectes de la Famille Kariri. Paris: J. Maisonneuve, Libraire-
Editeur. 1897. p. 1.
38
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. ABAN. Relatório Circunstanciado de Identificação
e Delimitação. Portaria Fundação Nacional do Índio/FUNAI. Nº 10, de 13.01.1999. Disponível em:
<http://www.abant.org.br/conteudo/001DOCUMENTOS/Laudos/Terras%20Indigenas/Relatorio%20Cristhian.p
df>. Acesso em: 27 Jun.2017.
33

O Cariri como região administrativa se confunde com a porção da biorregião do


Araripe cearense, da qual é parte integrante, Figura 2.

Figura 2 - Mapa da biorregião do Araripe

Fonte: Fundação Araripe, 2004.

A biorregião se constitui como uma faixa de terra entre os Estados do Ceará,


Pernambuco e Piauí, alvo de influência direta da bacia sedimentar do Araripe e espaço de
transumância entre os habitantes do lugar. A vitalidade e dinâmica do Cariri repercutem
decisivamente na economia da região e concentra o polo de desenvolvimento econômico da
Mesorregião da Chapada do Araripe, uma unidade de promoção institucional e investimentos
do Ministério da Integração Nacional criadas pelo Decreto Federal 6.047, de 22 de Fevereiro
de 200739. Esta mesorregião está situada dentro da bioregião do Araripe. O programa teve o
seu auge no governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando dispunha de orçamento
específico dentro da Secretaria de Desenvolvimento Regional, gestor do programa de
Mesorregiões Diferenciadas.
A Mesorregião do Araripe, Figura 03, compreende 103 Municípios do Ceará (38),
Piauí (46), Pernambuco (19). As cidades-polos são respectivamente, Juazeiro do Norte (CE),

39
Institui a Politica Nacional de Desenvolvimento Regional. Com recursos do Orçamento Geral da
União; Fundos Constitucionais de Financiamento das regiões Norte - FNO, Nordeste - FNE e do Centro-Oeste -
FCO; Fundos de Desenvolvimento do Nordeste - FDNE e Fundo de Desenvolvimento da Amazônia - FDA, bem
como outros fundos de desenvolvimento regional que venham a ser criados; outros Fundos especialmente
constituídos pelo Governo Federal com a finalidade de reduzir as desigualdades regionais; recursos dos Agentes
Financeiros Oficiais e Incentivos e Benefícios Fiscais.
34

Picos (PI) e Salgueiro (PE). O grande potencial de crescimento da base econômica regional a
partir de investimentos em setores produtivos tais como a ovinocaprinocultura, apicultura,
turismo e setor mineral, facilitou a identificação deste território com as políticas de
desenvolvimento nacional. Os estudos preliminares, o plano de desenvolvimento para a
Mesorregião do Araripe e a instituição do fórum da mesorregião contou com o apoio técnico
da Universidade Regional do Cariri – URCA, Fundação de Desenvolvimento Tecnológico do
Cariri – FUNDETEC e participação dos setores produtivos, poderes públicos e sociedade
civil.
Figura 03 - Mapa da Mesoregião do Araripe

Fonte: Autarquia de Des.do Araripe, 2007.

2.1.1 O Cariri dos Recursos Naturais

No Cariri a Geologia guarda informações milenares sobre a evolução do continente


sul-americano e, por esse motivo, é utilizado como laboratório pedagógico nos cursos de
Geografia, Geologia e Programas de Paleontologia de várias universidades do Brasil e do
exterior através do Programa de Geoparks Mundiais da UNESCO. A seguir apresentamos
algumas informações sobre o que consideramos os principais dados dos recursos naturais para
o Cariri e o identifica em sua singularidade e universalidade.
35

2.1.1.1 Bacia Sedimentar do Araripe

Alguns aspectos da diversidade ambiental presente em todo o território da biorregião


do Araripe ocorrem em destaque no Cariri: um deles é o complexo geológico da bacia
sedimentar40, que compreende:

Uma zona longilínea, alta, que forma o topo da Chapada, e uma zona baixa, mais
limitada, no sopé das encostas desta Chapada, mais ampla do lado do Ceará e os
sertões, em volta da bacia, e que incluem: ao norte, parte da depressão sertaneja
setentrional; ao sul, parte da depressão sertaneja meridional; a oeste, parte do
complexo Ibiapaba.

A formação geológica da bacia sedimentar do Araripe tem várias idades da era


Paleozóica, do Siluro-devoniano, da era Mesozóica (período Jurássico) e da era do Cretáceo41,
onde está a idade geológica da maior parte do Cariri, com cerca de 145 milhões de anos a sua
formação. O rico subsolo apresenta aquífero que abastecem as principais cidades do Cariri:
Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha; ao norte, as bacias hidrográficas do rio Salgado e do alto
Jaguaribe (Rio Cariús), no Estado do Ceará. Ladeado ao norte pela depressão sertaneja
setentrional, ao sul pela depressão sertaneja meridional e a oeste por parte do complexo
Ibiapaba42.

2.1.1.2 Recursos Hídricos

A maior riqueza hídrica do Cariri não está na superfície, nos rios Batateiras, Carás,
Grangeiro, Salgadinho, Riacho dos Porcos, Salamanca entre outros. É no subsolo que estão os
principais reservatórios de água mineral que abastecem as populações. Abundantes outrora,
hoje as fontes são motivo de preocupação, algumas já secaram, outras diminuíram a vazão.
307 fontes no Cariri foram monitoradas pela Companhia de Gestão de Recursos Hídricos do
Ceará – COGERH, em 2016; 27 tiveram vazão zero para outorga, ou secaram totalmente
neste período43. Em 2005, estudo de caso realizado por pesquisadores do Ceará44 indicaram

40
GERVAISEAU, Pierre Maurice. A Geografia e Meio Ambiente da Biorregião do Araripe. Disponível em:
<http://fundacaoararipe.org.br/>. Acesso em: 22 Fev.2017.
41
BUENO, Franscisco da Silveira. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. 9ª edição. Ministério da
Educação. e Cultura. Rio de Janeiro: FENAME – Fundação Nacional de Material Escolar, 1975.: “CRETÁCEO:
Sistema mais moderno da era mesozóica.,: MEZOZÓICA; Diz-se da era secundária, isto é, entre a paleozóica e a
cenozóica ou terciária.” Na era Terciária surge a predominância dos mamíferos.” p. 851.
42
GERVAISEAU, op., cit, 2017.
43
COMPANHIA DE GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS DO CEARÁ. COGERH. Relatório de
Informações Gerais das Fontes da Bacia do Salgado. Disponível em: <www.cogerh.com.br>. Acesso em: 19
fev. 2017.
36

um número de fontes no Cariri menor, 256, em suma houve um aumento de 24 fontes que
passaram a ser monitoradas pela COGERH, mesmo com este aumento, a capacidade hídrica
da bacia hidrográfica do Salgado está reduzindo ano a ano. Em média 30% nos últimos 5
anos45 em razão da estiagem que sofreu o Ceará. A Bacia do Salgado, da qual fazem partes os
Municípios do Cariri, contudo, ainda é produtora de água superavitária igualando-se à bacia
Metropolitana de Fortaleza (Capital do Estado).
Em águas superficiais, reservatórios, a bacia do Salgado apresenta capacidade de
acumulação de 469,40 hm346, num total de 12 açudes estratégicos, somente um deles está no
Cariri, Açude Tomaz Osterne de Alencar (Crato), sendo um dos menores em capacidade de
acumulação da bacia. As águas do subsolo são destinadas para abastecimento humano,
preferencialmente, seguindo a politica nacional de recursos hídricos. Elas apresentam maior
facilidade de exploração, baixo custo e boa qualidade.

2.1.1.3 Floresta Nacional do Araripe

A Floresta Nacional do Araripe é uma Unidade de Conservação federal47, sob a gestão


do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade foi criada em 02 de maio de
1946; sua denominação FLONA ARARIPE-APODI se dá por se tratar de duas glebas de
áreas em regiões distintas do Ceará, a primeira no Cariri e a segunda na Chapada do Apodi,
extremo leste do Ceará na divisa com o Rio Grande do Norte. A porção caririense foi mais
bem preservada. A FLONA ARARIPE é uma floresta de mata úmida, cerrado, cerradão e
carrasco48 no bioma Caatinga. As florestas nacionais, após a criação do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação – SNUC, pelo Decreto Federal 9.985/2000, passaram a ser

44
HISSA, Inah Abreu. Análise da Realidade da Fonte Batateiras no Cariri – CE. Aspectos Econômicos e
Legais do Mercado de Águas. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente). Universidade
Federal do Ceará – UFC. Fortaleza – Ceará: 2005, p. 63. Relatório de Perícia Técnica Judicial realizada pelo
geólogo Francisco Idalécio de Freitas, no processo n.º 2.000.0147.3912-8 em trâmite na 2.ª Vara do Crato. P. 3
“A precipitação que se infiltra no solo, no sopé da Chapada do Araripe, reaparece na forma de nascentes, num
total de 256 no Estado do Ceará, 43 do Pernambuco e 8 no Piauí”.
45
COMPANHIA DE GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS DO CEARÁ. COGERH. Relatório de
Informações Gerais das Fontes da Bacia do Salgado. Disponível em: <www.cogerh.com.br>. Acesso em: 19
fev. 2017.
46
O acompanhamento da capacidade e volume de água armazenada nos reservatórios do Estado do Ceará é
divulgado pelo site: www.cogerh.com.br. Os principais reservatórios da bacia do Salgado são: Atalho II, Lima
Campos, Rosário, Olho D’água, Quixabinha, Prazeres, Ubaldinho, Cachoeira, Riacho dos Carneiros.
47
Respectivamente criada e regulamentada pelos Dec-Lei nº 9.226 de 02 de maio de 1946/ Dec s/nº, de 05 de
junho de 2012.
48
INSTITUTO CHICO MENDES - ICMBio. Plano de Manejo da FLONA-ARARIPE: Aprovado pela
Portaria No. 81 de 21/11/2005. Disponível em: <www.icmbio.gov.br>. Acesso em: 12 mar. 2017.
37

especificadas como de proteção integral, ou seja, que não admite o uso direto dos recursos
naturais da UC.
Ocupa porção de cinco municípios do Cariri, Crato, Barbalha, Santana do Cariri,
Jardim e uma porção diminuta em Missão Velha, recém-mapeada, por uma extensão de
38.919,47 hectares. Constitui-se como um refúgio natural das espécies animais e vegetais da
caatinga, berço das fontes e nascentes de água do Cariri que é o hábitat de espécies endêmicas
do Cariri como o Soldadinho do Araripe (Antilophia bokermanni), pássaro de plumagem
branca e cabeça vermelha, e do caranguejo Guaja-do-Araripe (Kingsleya attenboroughi),
recém-identificado, assim como celeiro das árvores majestosas e floridas como o Pequi
(Caryocar coriaceum). Dentro da FLONA ainda há mapeado pelo Ministério do Meio
Ambiente um nicho de Mata Atlântica, em Barbalha.

2.1.1.4 APA Chapada do Araripe

Em 1997 a região do Cariri49 através do Governo Federal é incluída na Área de


Proteção Ambiental (APA) Chapada do Araripe, com 972.590,45 hectares, ocupando espaço
central. Um dos motivos para tal está no subsolo de grande reservatório de água (aquíferos),
origem das numerosas fontes supraditas. Essa acumulação se dá a partir da captação de água
das chuvas no solo sedimentar através da infiltração por um período estimado de 30 anos.
Esse ciclo hídrico resulta na emersão de agua em fontes ou nascentes em altitude aproximada
de 700 e 800 metros. Entre os pontos mais altos da chapada há 900 metros de altitude está o
Pontal da Santa Cruz, em Santana do Cariri, donde se vislumbra do mirante toda a
geomorfologia da Área de Proteção Ambiental do Araripe em um ângulo de 360 º.
Dentre os objetivos da APA Araripe destaca-se a proteção da fauna (Figura 4)50 e
flora, especialmente as espécies ameaçadas de extinção; dos sítios cênicos, arqueológicos e
paleontológicos do Cretáceo Inferior, do Complexo do Araripe; incentivo às manifestações
culturais e contribuir para o resgate da diversidade cultural regional.

49
Juazeiro do Norte fica de fora da APA. A falta de informação do tipo de gestão e acesso aos recursos naturais
dentro de uma APA fez com que os gestores temessem pelo desenvolvimento reduzido em razão da criação da
Unidade de Conservação. Temor infundado. Não há registro na APA Chapada do Araripe de processo que
recrudesceu em razão da UC. A UC foi criada e regulamentada pelo Dec nº de 04 de agosto de 1997.
50
INSTITUTO CHICO MENDES - ICMBio. Área de Proteção Ambiental do Araripe. Disponível em:
www.icmbio.gov.br. Acesso em 12 mar. 2017.
38

Figura 4 - Rolinha-de-asa-canela (Columbina minuta)

Fonte: ICMBio, 2017.

2.1.2 Geopark Araripe: Cultura, História, Paleontologia e Arqueologia do Cariri

No intuito de resguardar espaços naturais e geológicos que possuam global valor


Paleontológico, Arqueológico, Histórico e Cultural do Cariri e considerando as estratégias de
desenvolvimento internacional promovidas pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO e a Rede Global de Geoparques (Global
Geoparks Network - GGN), a Universidade Regional do Cariri - URCA propôs em 2005 a
candidatura do território do Cariri para se tornar o primeiro Geopark das Américas e com isso
conscientizar as pessoas da importância, proteção e promoção do patrimônio do Cariri, à
medida que difunde o ideal de desenvolvimento sustentável e inclusivo. Em 2006 a
candidatura foi aceita e o Cariri se tornou um território UNESCO51.
As áreas de maior importância dentro de um Geopark são denominadas Geossítios,
possuem destaque paleontológico, arqueológico além dos aspectos históricos, biológicos,
cultural e paisagístico associado. Nove Geossítios nas cidades de Missão Velha, Barbalha,
Juazeiro do Norte, Crato, Nova Olinda e Santana do Cariri, são espaços de visitação, estudos,
pesquisas e promoção do desenvolvimento regional sustentável tendo como estratégia
econômica o turismo de natureza. Nesta estratégia, a educação ambiental é o caminho para
prevenir a destruição dos ecossistemas e do patrimônio material e imaterial do Cariri,
ressaltando a relação ecológica entre os seres vivos e seu meio52.

51
Para maiores informações: www.geoparkararipe.org.br ou http://www.unesco.org/new/en/natural-
sciences/environment/earth-sciences/unesco-global-geoparks/
52
PENA-VEGA, A. O despertar ecológico: Edgar Morin e a ecologia complexa. Tradução de Renato
Carvalheira do Nascimento e Elimar Pinheiro do Nascimento. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. P20 e p.32.
39

Acerca do conceito de patrimônio consideramos que o ambiente natural e cultural em


que o homem vive constitui seu patrimônio e o patrimônio cultural de um povo expressa as
realizações significativas que caracterizam, de maneira particular, os assentamentos humanos
e as paisagens do seu entorno53. Essa construção está no dia-a-dia.
Às vezes para sobreviver esse “homem transforma a natureza utilizando sua
criatividade e suas técnicas. As criações humanas formam, portanto, os bens culturais, que
vão desde um machado de pedra a um satélite de última geração”54. Sob o ponto de vista
jurídicos o meio ambiente cultural é constituído pelo patrimônio artístico, turístico,
paisagístico, arqueológico, espeleológico e cultural55.
O conceito de cultura passou por intenso debate para consolidar-se, tendo evoluído
significativamente. Inicialmente o termo cultura era identificado como um traço da produção
intelectual humana, traço da erudição humana. Que trazia consigo uma limitação àqueles que
não tinham acesso a tal erudição, Elida Séguin observa que “no século XVIII, cultura
transforma-se no sinônimo de civilização e mais tarde, abrangeu também as relações
humanas, tornando-se sinônimo de História enquanto repositório de aspectos sociojurídicos de
uma comunidade.”56
A seguir apresentamos imagens e a descrição minudente do conjunto do patrimônio
material e imaterial do Cariri que são geossítios do Geopark Araripe. Figuras 5 a 14.

Figura 5 - Imagens da Floresta Petrificada de Missão Velha. Paisagem e troncos fósseis

Patrimônio Cultural Paisagístico e Paleontológico com troncos de uma floresta fóssil silificada e
microfósseis raros com idades aproximadas de 410 milhões de anos.

Fonte: Geopark Araripe, 2017

53
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 9. ed. Revista e atualizada. Revista dos Tribunais. São Paulo. 2014. p.
568.
54
MINC. Ministério da Cultura do Brasil. IPHAN. Roteiro para salvaguarda do patrimônio cultural
imaterial. Fortaleza. 2007.
55
SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental. Nossa casa planetária. Forense. Rio de Janeiro. 2006. p. 38.
56
Ibid., p. 38.
40

A Cachoeira de Missão Velha é outro sítio que tem como destaque o patrimônio
geológico e cultural, através da paisagem formada pela cachoeira e o cânion que se forma a
partir dela; da presença de icnofósseis57 raros e das manifestações da cultura imaterial através
de lendas que teriam origem na cultura indígena, uma vez que o lugar foi território dos índios
Kariris. Figuras 6 e 7.

Figura 6 - Cachoeira de Missão Velha e Icnofósseis

Fonte: Secretaria de Comunicação de Missão Velha. 2012.

No município de Barbalha o sítio de destaque é aquele que está inserido na Floresta


Nacional do Araripe, na localidade denominada Riacho do Meio. Na figura 7, a seguir,
Estudante em visita a fonte dos Marcelinos/FLONA-ARARIPE, habitat do soldadinho do
Araripe, ave endêmica do Cariri.

Figura 7 - Visitantes estudantes/ Soldadinho do Araripe

Fonte: Geopark Araripe/Ciro Albano. 2012.

57
Icnofósseis são registros geológicos de atividade biológica, como rastros fósseis (impressões feitas no
substrato por um organismo). Por exemplo tocas, orifícios originários de bioerosão, urólitos, pegadas e marcas
de alimentação. Wikipedia Dicionário. Icnofósseis. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Vest%C3%ADgio_f%C3%B3ssil. Acesso em: 12 mar. 2017.
41

Juazeiro do Norte concentra a maior população da região do Cariri, 268.248


habitantes58 e os sítios com maior número de visitantes ao ano, em média, 2 milhões59. A
cidade inteira é considerada sagrada pelos milhares de romeiros que visitam a cidade nas
quatro grandes romarias do ano: Candeia (02.02), Romaria do nascimento de Padre Cícero
(24.03), Romaria do falecimento de Padre Cícero (20.07); Romaria da Nossa Senhora das
Dores (15.09) e Romaria de Finados (02.11). Seu conjunto patrimonial engloba o roteiro da
fé, composto pelas igrejas católicas de santos devotadas pelo Padre Cícero, fundador do
Juazeiro do Norte. Integra ainda o patrimônio cultural material e imaterial de Juazeiro do
Norte a paisagem da colina do horto com a estátua de 25 metros do Padre Cícero Romão
Batista, o caminho de peregrinação do santo sepulcro60 e granitos raros.
O cemitério e igreja do socorro, onde está sepultado Padre Cícero e a beata Maria de
Araújo, protagonistas do “Milagre do Juazeiro”61; a Igreja de Nossa Senhora das Dores e o
Mosteiro da ordem dos Franciscanos destacam-se no roteiro da fé.
O artesanato em barro e madeira constitui um capítulo à parte pela miscelânea e
efervescência que demonstram – resultado de mais de um século de miscigenação e trânsito
de pessoas vindas de diversas partes do Brasil. O ritual da entronização do coração de Jesus,
os reisados e danças ocupam, também, papel de destaque na cultura do Cariri, não descritos
neste trabalho pela impossibilidade de registrar em uma única tese tão abrangentes
manifestações. Figuras 8, 9 e 10.

58
INSTITUO DE PESQUISAS ECONÔMICAS DO CEARÁ – IPECE. Perfil Básico dos Municípios 2016.
Disponível em: <www.ipece.ce.gov.br>. Acesso em: 21 fev. 2017.
59
Secretaria de Turismo e Romaria de Juazeiro do Norte. 2012.
60
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcante. Juazeiro do Norte: A Terra da Mãe de Deus. Fortaleza: IMEPH,
2014. p. 345: “Para quem crê, o Juazeiro é um lugar santo – tão santo que perto da ‘fonte milagrosa’ o beato José
da Cruz ‘viu’ o Santo Sepulcro redivivo. Para muitos um lugar encantado, o Santo Sepulcro está plantado na
parte mais agreste da serra do Horto e se constitui no último Sítio histórico de Juazeiro – o único espaço do
mundo dos beatos. Só os iniciados conhecem o caminho ‘tão longo, tão cheio de pedra e areia’ que, pelo túnel do
tempo, nos mergulha no Juazeiro de Maria de Araújo, no mundo de penitência, no universo do catolicismo
popular tão perseguido pela modernidade, pela romanização da Igreja.
61
As histórias política e religiosa de Juazeiro do Norte estão registradas em várias publicações locais, nacionais
e internacionais. Entre defensores e acusadores do perfil político e santo do Padre Cícero, registra-se
inexoravelmente o milagre mais famoso do santo popular, que é a transfiguração da hóstia em sangue na boca da
beata Maria de Araújo.
42

Figura 8 - Estátua do Padre Cícero e Colina do Horto

Fonte: Geopark Araripe/Google, 2017.62

Figura 9 - Igreja de Nossa Sra. das Dores, Missa dos Romeiros

Figura 10 - Trilha do Santo Sepulcro

Fonte: Google, 2017.

Na cidade do Crato, destaca-se o patrimônio paisagístico da encosta da chapada do


Araripe, as Bandas Cabaçais e o patrimônio hídrico das fontes. Há, ainda, registros e imagens

62
GOOGLE. Padre Cícero. Disponível em: www.google.com.br, de autoria não identificada. Acesso em: 26
Jul.2017.
43

registradas por pesquisadores da Fundação Casa Grande, de inscrições rupestres dos índios
Kariri no distrito de Santa Fé. Figura 11 e Figura 12.

Figura 11 - Pedra/Cachoeira da Fonte Batateiras/ Banda Cabaçal / Pinturas Rupestres em Santa Fé.
Foto 1 - A lenda da Pedra da Batateira diz que ela vai rolar e inundar o Crato 63. Foto 2 - A Banda
Cabaçal dos irmãos Aniceto produz seus próprios instrumentos e são considerados Mestres da
Cultura do Ceará.

Fonte: Fundação Casa Grande. 2017.

Figura 12 - Fotos 3 e 4 - As pinturas rupestres do Sítio Santa fé guardam registro de uma cultura
indígena peculiar e única na região do Cariri. Estima-se serem dos mais antigos habitantes do
Cariri.

Fonte: Fundação Casa Grande. 2017.

A cidade de Nova Olinda além do sítio Ponte de Pedra, área representativa do


patrimônio cultural imaterial, por ser descrito pelos historiados e arqueólogos do Museu do
Homem Kariri, da Fundação Casa Grande, como um lugar encantado de lendas dos índios
Kariri, é berço do geossítio Pedra Cariri, que contém registros fósseis importantes pela
diversidade e qualidade de “pedras de peixe”, insetos e vegetais. A Fundação Casa Grande
tem sido guardiã do principal acervo lítico do Cariri, bem como tem sido o irradiador da
cultura para a criação de museus temáticos, como o Museu do Couro do Expedito Seleiro,
Mestre da Cultura do Estado do Ceará. Figuras 13 e 14.

63
“Contam de bôca em boca, que o bravo índio Cariri ao deixar, acossado pelos brancos, as regiões paradisíacas
do lado cearense do Araripe, tapou quanto possível, as nascentes de sopé da serra. Mas algum dia voltará o
antigo dono da terra para vingar-se do usurpador. Abrirá todos os mananciais tapados e Crato será inundado.”
Relato da lenda da fonte da Batateira. PINHEIRO, Irineu. FIGUEIREDO FILHO, J. de. Cidade do Crato. Fac-
símile da edição de 1955. Coleção Nossa Cultura, n. 1, Série memória, n.3. Edições URCA. Fortaleza: UFC,
2010. P. 84.
44

Figura 13 - Lenda da Ponte de Pedra pintada e Mestre Expedito Seleiro, mestre da Cultura da
escrita por crianças. arte em couro

Fonte: Fundação Casa Grande. 2017.

Figura 14 - Fósseis de Inseto e Vegetal

Fonte: Geopark Araripe. 2017.

Em Santana do Cariri, destaca-se o Parque dos Pterossauros, com escavações


paleontológicas de fósseis de Pterossauros, Peixes e o Museu de Paleontologia, fundado em
1985 pelo então Prefeito Plácido Cidade Nuvens e doado à Universidade Regional do Cariri,
que recebe em média 2,5 mil visitantes por mês. Figura 15, a seguir.
45

Figura 15 - Fósseis das escavações no Parque dos Pterossauros/Museu de Paleontologia À direito


réplica em tamanho natural o primeiro dinossáuro descrito no Cariri. Santanna-raptor Placidus. Um
avô, em idade, do T-rex. Mais abaixo fotos de pedra-de-peixe e mandíbula de Pterossauro. A
quantidade de espécies descritas chama a atenção dos especialistas.

Fonte: Acervo do Geopark Araripe,

2.1.3 O Cariri Político

Berço dos índios Cariri, a região foi um dos cenários belicosos da colonização
portuguesa no interior do Nordeste. Revoluções e insurreições colocaram o Cariri em
evidência, através das quais deixaram registro na história do Brasil.
Iniciamos com uma breve nota sobre a historiografia do Cariri. Muitos e importantes
autores do Ceará, da história do Cariri, da colonização, das vilas, das cidades e do patrimônio
cultural, começam suas leituras e estudos com João Brígido através dos “Apontamentos para a
história do Cariri”, concluída a pesquisa em 1858 e publicada em 1861, no Diário de
Pernambuco é o mais antigo registro da história específica do Cariri que se tem conhecimento.
46

As publicações de Dr. Alencar Araripe e Dr. Theberge, contemporâneas, eram mais


abrangentes ao Ceará. Outro registro relevante para compreender o Cariri politico se dá em
1923 com a publicação do discurso do então Deputado Floro Bartolomeu sobre o Juazeiro do
Padre Cícero. O Padre Cícero e sua trajetória política abrem o compasso do Cariri para a
tônica do que ocorreria por todo o século XX: a ascensão de Juazeiro do Norte como polo de
desenvolvimento econômico do Cariri e do Ceará. Seguido por Irineu Nogueira Pinheiro em
1950 e 1954 e José Alves de Figueiredo Filho em 1964, este com a publicação de quatro
volumes de História do Cariri. Outros importantes autores da História do Ceará e dos Cariris,
do Instituto do Ceará, igualmente serviram de bases bibliográficas para esta tese: Thomaz
Pompeu Sobrinho, Carlos Studart Filho e José Honório Rodrigues.
O Cariri é terra de valentes! A história politica está, portanto, entremeada pela ação de
Senhores e Senhoras da guerra e da paz, pessoas que pelo poder econômico, politico, militar,
eclesiástico e líderes nascidos do povo, dos pobres e dos excluídos, estrelam os
acontecimentos e os inscrevem na história, marcando ritos e esperanças de protagonismo da
região para o Ceará e o Brasil. Os historiadores do passado confessam que tiveram delicado
cuidado ao relatar os fatos e pedem venha para dizer o que disseram.64 Outros dirão que aqui é
terra de “assassinos e vagabundos, de toda a espécie vindos de todos os cantos do país”65.
A despeito de terem sido dominados e expulsos do território do Cariri, a historiografia
reputa aos Cariris um tanto de bravura, “Os Cariris eram uma nação em extremo belicosa”,
assevera Brígido66, em constantes combates e enfrentamentos com tribos vizinhas (Cariús,
Calabaças e Inhamuns). A chegada e ocupação pelos colonizadores não se dá de modo único e
harmonioso, durantes muitos anos, antes das Vilas de Índios do Cariri serem oficialmente
criadas e os aldeamentos instituídos, os brancos dispersos pelo Cariri, desde antes de 1700,
tiveram seu momento de enfrentamento e combate com os Cariris. Quando as missões ou
aldeamentos indígenas se oficializaram em Missão Velha - Cachoeira (1725) e Missão do
Mirando (Crato), se deu sem maiores resistências: “a voz evangélica dos missionários se fez
ouvir” relata Brígido.67

64
BRÍGIDO. João. Apontamentos para a História do Cariri. Reimpressão fac-similar da ed. 1861. Fortaleza:
Ed. Expressão Gráfica, 2007. P. 3.
65
GARDNER, George. Viagem ao Interior do Brasil. 1836-1841. São Paulo: Editora da USP, 1975. P. 93-94.
Apud MACÊDO, Heitor Feitosa. In Sertões do Nordeste V. 1: Inhamuns e Cariris Novos. Crato: A província
Edições, 2015. P. 294.
66
BRÍGIDO., op. cit., p. 5. Observe-se que era comum utilizar o nome da etnia quando no plural, com “s”.
67
BRÍGIDO., op. cit., p. 5. 6.
47

Em 1764 o aldeamento indígena da Missão do Miranda Crato é transformado em


68
Vila . Estava em curso o processo final e definitivo de apropriação pelos portugueses das
terras indígenas no Cariri.
Um longo período de invisibilização seguiu-se e os índios do Brasil ressurgem em
maior quantidade em dados do Censo de 2000 e 2010 do IBGE, apontando um crescimento
numérico, sob o influxo de movimentos sociais internacionais e nacionais na América Latina
que recolocam o tema na agenda mundial, com influência sobre a produção de normas
garantidoras de direitos. Para os Cariris os direitos ainda não chegaram.

2.1.3.1 A Colonização do Cariri

Imprecisos os relatos de historiadores sobre a ocupação colonial do Cariri, seus


autores e o período. Podemos, contudo, confirmar entre 1678 e 176269 o início do povoamento
da encosta da Chapada do Araripe, região atual do Cariri.
O Ceará, de modo geral, já tinha sido colonizado por Martin Soares Moreno desde
1611, quando no lugar onde hoje é a capital Fortaleza “fundou o fortim, sinal de posse e
conquista”70. As primeiras incursões no território do Ceará se deram sob a liderança do
Capitão-mor Pero Coelho em 160371 onde deixou na Ibiapaba estabelecida uma base para a
colonização do Ceará. Numa missão de recuperação em 1607, enviada pelo Governador Geral
Diogo Botelho, os jesuítas Francisco Pinto e Luiz Figueira72 voltaram ao Distrito da Ibiapaba
no Ceará, que estava funcionando sem as condições de manutenção e pessoal (fugido ou
desertados)73 por esta falta de condições impostas pelo Governador.

68
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 36.
69
PINHEIRO, Irineu. O Cariri. Reedição Fac-símile da Ed. 1950. Fortaleza: editora da UFC, 2010. P. 12.
70
RODRIGUES, José Honório. Índice Anotado da Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1959. P. 9.
71
SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil (1500-1627). Editores Weiszflog Irmãos. 1918. Prefácio de
Marcos Venicio Ribeiro. Fundação Darcy Ribeiro. Brasília: Editora da UNB, 2014. Edição Digital (PDF). P.
325/326. O Capitão-Mor Pero Coelha conduziu uma bandeira com destino a ocupar a Serra da Ibiapaba no
Ceará em Julho de 1603, acompanhado do soldado Martin Soares Moreno, mais 64 soldados e 200 índios bons
de flecha. Os enfrentamentos foram ferozes em Camocim e Ibiapaba índios bravos estavam acompanhados de
franceses e lutaram para ganhar a guerra até que um dos líderes índios fora capturado e os fez se render. Com
muitas baixas de ambos os lados Pero Coelho montou um distrito na Ibiapaba e fez vários índios cativos.
72
ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará, desde os tempos primitivos até
1850. Recife: Typrografia do Jornal do Recife, 1867. P. 3.: “O primeiro investigador, que penetrou no território
do Ceara, foi Pedro Coelho de Souza, que chegando em 1603 ate a serra da Ibiapaba, d'ali com intento de
reconhecer o paiz, que da cumiada dos montes se lhe antolhava extensamente magestozo, buscou descer por
algum rio ate encontrar as plagas do oceano: o que executou, seguindo o curso do Jaguaribe desde as suas
cabeceiras”. [sic].
73
SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil (1500-1627). Editores Weiszflog Irmãos. 1918. Prefácio de
Marcos Venicio Ribeiro. Fundação Darcy Ribeiro. Brasília: Editora da UNB, 2014. Edição Digital (PDF). p.
48

O plano da colonização da capitania do Ceará envolvia dois aspectos, um econômico e


outro politico: aumento da fronteira pecuária e a incorporação dos gentios à história
portuguesa. O processo se daria “pela doutrina espiritual ou pelas armas”74. Os índios
resistiram no Ceará e no Cariri até a sua dizimação! Quando não havia mais quase nada, em
número e em cultura é que foram aldeados... Dominados.
As datas das primeiras bandeiras ao Cariri causam ainda dúvidas, uma vez que não há
registros documentais, descritos até aqui, que possam confirmar as primeiras entradas, exceto
na tradição memorial dos habitantes que relatam as suas histórias aos pesquisadores e
jornalista que de tudo tomaram nota75: para estes se situa entre 1660 a 1680, tendo como
protagonista um negro escravo da “Casa Torre76”. Tendo sido “este escravo, quem ensinou
aos portugueses o caminho do Cariri e quem para aqui os conduziu por entre as hordas
ferozes, as selvas impenetráveis, e os inumeráveis pântanos e ribeiros” conclui Brígido77:
aventureiros baianos da margem do Rio São Francisco, no chamado ciclo da civilização do
couro.
Os que vieram para habitar o Cariri não eram os sesmeiros ou seus descendentes, já
mestiços vindos da Bahia, Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Rio Grande do Norte, mais da
Bahia (500 batizados registrados no século XVIII78) e Pernambuco. Tem sido aceito pelos
autores dedicados à história do Cariri que o Capitão Manoel Rodrigues de Ariosa (que obteve
sesmaria nas terras da Missão do Miranda) tenha sido o primeiro colonizador do Cariri em
terras que hoje são da cidade de Barbalha79.

348: Pero Coelho voltou à Paraíba para trazer a esposa e família com o intuito de construir residência na
Ibiapaba, deixando guarnição de soldados e índios na Ibiapaba. Martins Soares Moreno agora Capitão do Distrito
da Ibiapaba.
74
SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil (1500-1627). Editores Weiszflog Irmãos. 1918. Prefácio de
Marcos Venicio Ribeiro. Fundação Darcy Ribeiro. Brasília: Editora da UNB, 2014. Edição Digital (PDF). p.
10/11: “Muito sangue correrá ainda até que a terra fique encharcada e o gentio imponha alguma mudança
cultural”.
75
BRÍGICO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição Fac-símile reproduzida do Diário de
Pernambuco, de 1861. Typ. Da Gazera do Norte. 1888. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. P. 7.
76
A Casa da Torre será o empreendimento mais eficiente no Nordeste cujo Capitão-mor é Garcia d’Ávila.
Próximo do Governador Geral do Brasil, com quem veio para o Brasil, no contexto de facilidades que lhe
facultara essa aproximação solicitou e obteve sesmarias no litoral a partir de 1550. A atividade canavieira
(engenho) e a partir daí pelos sertões a fora, até a fronteira do Cariri (Exu) fará de Garcia d’Ávilla “o mais
destacado criador de bovinos em toda a colônia”. LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva. A
Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio Cultural da Chapada do Araripe. 2015. Pp 442. Tese de
Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Coimbra. 2015. p. 22.
77
BRÍGICO, op., cit., p. 07.
78
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela Imprensa
Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições URCA.
Fortaleza: Edições UFC, 2010. p. 24.
79
MACÊDO, Heitor Feitosa. Sertões do Nordeste V. I: Inhamuns e Cariris Novos. Crato: A província Edições,
2015. P. 270.
49

Os sesmeiros cá não vieram, em sua maioria, os primeiros povoadores, vindos do vale


do São Francisco, fixaram residência e foram no varejo comprando terras, apossando-se delas
e adquirindo-as por usucapião e com isso criaram a sua descendência aqui 80. O caminho por
eles realizado seguia pelo rio Salgado, deixando para trás o Jaguaribe, e pelos caminhos do
que hoje é Serra Talhada, do povoado de Cabrobó, Jati, Belmonte, Salgueiro, jardim,
Porteiras, Brejo Santo, Milagres, Mauriti e na Cachoeira81, distante 3 km da sede onde hoje é
a cidade de Missão Velha.
No entorno da Cachoeira também podemos encontrar escombros da moradia de
colonos no século XVII, conhecida como “Casa de Pedra”82. Nesta região de grande valor
cênico, histórico e antropológico, teria sido também a casa dos primeiros habitantes do Cariri,
os índios Kariris. “Existem vestígios de populações indígenas, neste lugar, que remontam a
tempos pré-históricos”83.
As datações não são precisas, como referido antes. Brígido84 aposta no terreno das
conjecturas ao afirmar que “aventureiros bahianos” [sic]85 partidos do Rio S. Francisco foi o
marco da colonização do Cariri e que o escravo da “casa da Torre”, trazido pelos Cariris e
com eles tendo vivido, trouxe os aventureiros para o Cariri. Essa tradição encontra amparo
nos relatos historiográficos de José Honório Rodrigues de que “no sertão abundavam os
mulatos, mestiços e pretos forros, trazidos por vaqueiros dos sertões do Pernambuco e da
Bahia.”86
Os chefes das primeiras entradas ao Cariri teriam sido: João Corrêa Arnaud87, da
família de Diogo Alves Corrêa, o Caramurú, segundo a tradição88 acompanhado por
Medrado89, escravo da casa da Torre, para região onde hoje é Missão Velha (Cachoeira). A
data seria 1590. E em seguida Cel. João Mendes Lobato e seu filho clérigo, entre os anos

80
FIGUEIREDO FILHO, J. de. História do Cariri I. Fac-símile da edição de 1964. Coleção Nossa Cultura, n.1.
Série Memória. N. 4. Coedição Secult/Edições Urca. Fortaleza: Editora da UFC, 2010. P. 23.
81
Ibidem. P. 21.
82
LIMA, Flávia Fernanda. Et. All. Geopark Araripe: Histórias da Terra, do Meio Ambiente e da Cultura.
Crato: Editora da URCA, 2012. P. 86.
83
Ibidem. P. 86.
84
BRÍGICO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição Fac-símile reproduzida do Diário de
Pernambuco, de 1861. Typ. Da Gazera do Norte. 1888. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. P. 7.
85
Interessantíssima a descrição da co-fundação do Cariri pelos colonizadores baianos, anotando sua influência
na cultura e folclore do Cariri. In FIGUEIREDO FILHO, J. de. História do Cariri I. Fac-símile da edição de
1964. Coleção Nossa Cultura, n.1. Série Memória. N. 4. Coedição Secult/Edições Urca. Fortaleza: Editora da
UFC, 2010.P. 21-23.
86
RODRIGUES, José Honório. Índice Anotado da Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1959. P. 14.
87
BRÍGICO, op., cit., p. 8.
88
Tradição é o que se conta pelos descendentes e pessoas do lugar.
89
A sua participação de Medrado teria sido em prestar auxilio aos Kariris em sua contenda com as tribos rivais
Cariú, Calabaça e Inhamuns, com isto intermediar a vinda de colonos para ocupação e enfrentamento.
50

1678 e 1683. Essas datas são contestadas por Brígido90, que entende que a data não traz
precisão e que a ocupação teria se dado mais tarde, entre 1706/07 a 1725.
Em razão de atuação do Pe. Lobato (da família dos sesmeiros de Icó); o bispo D.
Estevão Brioso autoriza a instalação das missões para catequese dos nativos em Missão
Velha, depois Missão Nova (atual Missão Velha) e Miranda (atual Crato. Logo em seguida à
esta incursão de João Correira Arnaud, nos confirma Tristão de Alencar Araripe Júnior91 a
chegada do Cel. João Mendes Lobato. Esses, os Arnauds e os Lobatos, efetivamente, teriam
sido os primeiros a fixar residência no Cariri, Missão Velha. Deste período são os escombros
da humilde casa de Pedra; a primeira moradia de colonos brancos no Cariri:

Que, partindo de Sergipe com 100 pessoas, desceo até o Icó. Procurando captar a
afeição dos selvagens, conseguio xamar muitos ao baptismo, e sob o in fluxo de um
sacerdote, seu filho, estabeleceo como começo da catechese o sitio de Missão-velha
na margem do rio Salgado entre o Icó e Crato. [sic]

Ali fez-se a primeira edificação solida, que n'aquellas paragens ergueram mãos
portuguezas: e ainda hoje mostram-se fracos vestigios d'essa edificação junto a uma
92
caxoeira visinha dê Missão-velha. [sic].

A ocupação colonial do Cariri se concluirá em jardim, em 1792. Ex vi organização


com os nomes dos povoadores, datas e lugares no Quadro 2, a seguir.

90
BRÍGICO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição Fac-símile reproduzida do Diário de
Pernambuco, de 1861. Typ. Da Gazera do Norte. 1888. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007 . p. 8.
91
ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará, desde os tempos primitivos até
1850. Recife: Typrografia do Jornal do Recife, 1867. P. 5.
92
Ibid., p. 19: “Vestígios de uma casa forte tem sido descobertos na Cachoeira. Parece que foi esta a primeira
edificação no solo do Cariri”. [sic].
51

Quadro 2 - Datas e lugares com a indicação dos colonizadores/povoadores do Cariri


Local Colonizador/Povoador Chegada ao Cariri
Riacho dos Porcos Milagres Cel. João Mendes Lobato 1718
Cel. Bento Correia Lima
Missão Velha Cel. Bento Diniz Barbosa
Cel. João Corrêa Arnoud 1706 a 1707
Missão Nova Cel. João Mendes Lobato 1725
Porteira Cel. Manoel Rodrigues de Ariosa
Salamanca (Barbalha)93 Cel. João de Miranda Medeia 1703
Missão do Miranda94 (Crato) Cel. João Mendes Lobato95
Lagôa de Luiz Corrêa Cel. João de Souza Gularte
Jardim João Álvares Coutinho96 1668
Bento Moreira/Sebastiana de 1791
Oliveira
Pe. João Bandeira de Melo 1792
Cel. Simplício Pereira da Silva
Fonte: o autor, 2017.

O início do século XVIII é marcado pela doação de terras no Cariri, entre 1717 e 1718
e as constantes desavenças entre os colonos para fins de fixação de limites, que tiveram cabo
até meados de 1741, resultaram em disputas sangrentas entre líderes coloniais na região Sul
do Ceará, dos Inhamuns ao Cariri, as mais famosas disputas ocorreram entre as famílias
“Montes e Feitosa” e atuação criminosa de “Manoel Pereira Aço”97.

93
Salamanca teve muitos anos ligada ao território da Missão do Miranda. Quando virou Barbalha vai ser
povoada no século XIX, primeira metade, por descendentes do Governador Geral do Brasil Men de Sá. O alferes
Antonio Pinheiro Magalhães e sua esposa Inês de Sá Souto, atualmente é a única que conserva descendentes dos
seus fundadores. FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri volume III. Coleção Nossa Cultura. N.1,
Série Memória, n.4. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC. 2010. P. 78.
94
A origem do nome Miranda também é ponto controverso na historiografia do Cariri. Afirmando alguns serem
referência não a índios do Cariri, mas à descendência do sesmeiro Gil de Miranda, que aparece nas primeiras
datas do Cariri. FIGUEIREDO FILHO, J. de. História do Cariri I. Fac-símile da edição de 1964. Coleção
Nossa Cultura, n.1. Série Memória. N. 4. Coedição Secult/Edições Urca. Fortaleza: Editora da UFC, 2010. P. 33.
95
Uma sucessão de dados: datas e nomes ocorrem na descrição dos primeiros habitantes-colonizadores no Cariri.
Poucos são os consensos entre os autores que se dedicaram a contar essa história. Adotamos, por isso, a
referência descritiva entre os autores, sem assumir uma opção que a tudo só causaria especulação dada a
ausência de fontes primárias acerca das datas. São questões que de certa forma não causam prejuízo à identidade
e a memória do lugar ou dos protagonistas descritos ou citados nestas fontes. No caso em particular da ocupação
de Missão Velha (porta de entrada para a ocupação do Cariri pelos colonizadores) a data mais erma é de 1702,
quando se registra a obtenção de terras que vão desde “Várzea das Crioulas até a Cachoeira” pelos sesmeiros Gil
de Miranda e Antônio Mendes Lobato, e não João Mendes Lobados. Nas terras do Crato, Barbalha, Santana do
Cariri, Jardim e Juazeiro do Norte, que não havia separação naquelas datas, os sesmeiros identificados em 1703:
1) Manuel Rodrigues Ariosa e Manuel Carneiro da Cunha e 2) Bento Correia Lima e João Dantas Aranha
(Riacho dos Porcos e Riacho dos Carás). E em 1716 por José Gomes de Moura, Baltazar da Silva Vieira e
Germano da Silva Saraiva. Atentando-se para o fato de que os sesmeiros não necessariamente vieram cá viver.
Alguns deles não estiveram ocupando as sesmarias, que passaram adiante em outros negócios. Inferências
obtidas com notas de PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963,
publicada pela Imprensa Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição
Secult/Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 19.
96
PEREIRA, Maria Alacoque de Lima. Jardim: sua história e sua gente. Fortaleza: COTRIM. 1986.
97
BRÍGICO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição Fac-símile reproduzida do Diário de
Pernambuco, de 1861. Typ. Da Gazera do Norte. 1888. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. P. 40-
41.
52

Os principais núcleos de poder foram se instalando nesta ordem cronológica em Icó,


Missão Velha (porta de entrada dos colonizadores e sede paroquial das missões católicas –
com poderes de excomunhão e atuação policial e juizado), Crato (seda da primeira comarca) e
Jardim. Icó naquela época era uma das principais e mais importantes rotas das boiadas no
sertão do Ceará, dividindo com Oeiras98, no Piauí e Piancó na Paraíba a terceira mais
importante paragem das boiadas do sertão do Nordeste, o Cariri tendo como ponto de chegada
das duas rotas: Missão Velha e Crato, que serão as portas do povoamento do Cariri no século
XVII/XVIII, sob o impulso do ciclo do couro.
A criação das freguesias e vilas nos municípios do Cariri ocorre conforme indicado no
Quadro 3, respectivamente:

Quadro 3 - Indicativo de datas de criação de Freguesias e Vilas


do Cariri Colonial

Freguesia/Vila Freguesia99 Vila100


Icó 1738
Missão Velha 1748 1864
Crato 1762 1764
Barra do Jardim 1792101 1814102
Barbalha103 1838 1846
Santana do Cariri
(Santana do Brejo 1838105 1885
Grande)104
Porteiras 1889
Juazeiro do Norte 1917 1911
Fonte: o autor, 2017.

98
LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva: A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio
Cultural da Chapada do Araripe. 2015. Pp 442. Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra. Coimbra. 2015. P. 26.
99
Freguesia era uma divisão de um Termo (Comarca Vinculada) composto por povoados servidos por uma
Igreja Paroquial. MAGALHÃES, Célia. Nosso Povo Nossa História: Missão Velha. Crato: Ed. Província, 1994.
P. 27.
100
Elevação à Vila dependia de Ato do Presidente da Província e como consequência se instituía o Senado da
Câmara, durante a colônia. Com a República dissolveu-se as Câmaras Municipais e criaram o Conselho de
Intendência Municipal e as Comarcas viraram também Município. Ibid., p., 27.
101
Seria 1814 a data da freguesia. PINHEIRO, Irineu. O Cariri. Edição Fac-Símile da edição de 1950. Coleção
Nossa Cultura, n.1, série memória, n.1. Coedição Secult/Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 215:
102
Uma confusão de datas. Data de criação, data de ordem de execução, data de inauguração ou instalação.
Ficamos aqui no caso com as datas de criação. Jardim, da qual Porteiras era parte integrante, teve a vila criada
em 1814, a ordem de execução foi expedida em 1815 e a inauguração se dá em 1816.
103
FIGUEIREDO FILHO, J. de Figueiredo. Histórica do Cariri. V. III. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série
Memória, n.4. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza. Edições UFC. 2010. p. 76.
104
Ibid., p. 75.
105
Há uma discordância apontada por Irineu Pinheiro sobre a data da freguesia de Santana do Cariri para este
indicada a data de 1917. PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963,
publicada pela Imprensa Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição
Secult/Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 207.
53

A ocupação de Jardim ocorreu em consequência da seca de 1792, enquanto espaço


geográfico de terras férteis do “ribeiro Jardim”106.
Em 1799 Ceará será desvinculado de Pernambuco oficialmente e um conjunto de
medidas administrativas se vão impor na Capitania.
Em 1814 Jardim quando foi elevada à condição de Vila também se instala a freguesia
vinculada Missão Velha. A presença da igreja católica foi o ponto essencial para instalação da
freguesia, no entorno da igreja de Pe. Bandeira.

2.1.3.2 Do Crato para o Brasil. Movimentos pró-liberdade dos nacionais, 1817, 1822 e 1824 e
seus personagens: O Jovem José Martiniano de Alencar, Capitão-Mor José Pereira Filgueiras,
Tristão Gonçalves de Alencar, D. Bárbara de Alencar, Pinto Madeira.

A colonização do Cariri avança para Vila em Missão Velha e no Crato. Mesmo com o
fervor dos enfrentamentos de guerras entre famílias no Inhamuns e no Cariri houve um
crescimento rápido, essas passaram a ser os maiores centros populacionais da Província do
Ceará, ao lado de Icó, à custa das boas condições de vida que o lugar oferece para os colonos.
Capistrano de Abreu observa que nesse contexto de crimes e violência no sertão, o elemento
de maior importância estava situado na propriedade enquanto a vida ficava em segundo plano,
“reinava maior respeito à propriedade do que à vida”.107 A construção desse perfil social,
analisa José Honório Rodrigues108 está ligado ao processo de destruição cultural, religiosa e
atividade de produção indígena teria impacto direto neste estilo de vida sertaneja, em que
abundaram, no século XIX, também em fenômenos místicos (Antônio Conselheiro, Pe.
Cícero, Beato Zé Lourenço) associados a aspectos políticos.
Desde sua criação a vila do Crato passa a liderar o desenvolvimento da região e sua
proeminência vai encontrar oposição na vila de Jardim através da luta de dois homens (ainda
parentes109): José Pereira Filgueiras e José Alexandre Corrêa Arnoud. A disputa se dá em
nível pessoal pela condenação de uma pessoa ligada a Filgueiras e a proteção dos executantes

106
BRÍGICO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição Fac-símile reproduzida do Diário de
Pernambuco, de 1861. Typ. Da Gazera do Norte. 1888. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. P. 56.
107
RODRIGUES, José Honório. Índice Anotado da Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1959. P. 14.
108
Ibidem. P. 14.
109
José Pereira Filgueiras capitão-mor do Crato e seu cunhado José Alexandre Correia Arnaud, este querendo
subtrair-se à autoridade e influência daquele. PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da
edição de 1963, publicada pela Imprensa Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n.
2. Coedição Secult/Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 395.
54

pelo Corrêa Arnoud110; tal que o resultado politico foi favorável a José Alexandre Corrêa que
obtém em razão de seu prestígio a elevação de Jardim à Vila em 1792 e com isso o posto de
Capitão-mor daquela Vila, consequentemente o enfraquecimento de Filgueiras que viu seu
poder diminuir na região do Cariri e na nova Vila. O que selou doravante a inimizade das
pessoas dos dois lugares, já que o Crato em tudo simpatizava com o Capitão-Mor Pereira
Filgueiras (baiano de nascimento tendo vivido desde quatro anos de idade no Cariri). Essa
admiração se intensificaria em razão da atuação deste na Revolução Pernambucana de 1817
(defendendo os Realistas) e nos anos que se sucederam em defesa da Independência do Brasil
e de D. Pedro I, e na Confederação do Equador - 1824 (contra a Monarquia).
Da Revolução Republicana de 1817, José Martiniano de Alencar foi o emissário para
promover a revolta de 6 de março de 1817 no Ceará. Filho de D. Bárbara de Alencar que
gozava de popularidade na região pela condução da família enquanto viúva.
Tratava-se de libertar o Brasil das mãos dos Portugueses, construir a República e
promover a autonomia e liberdade das pessoas ao melhor padrão europeu-liberal. A estimativa
do gabinete do governo republicano do Pernambuco era de que a revolta se consolidaria em
República, acabando com a Monarquia, que de certa forma andava combalida, mas com os
seus aliados. O jovem Martiniano de Alencar fazia estudos em Pernambuco e ufanista
assumiu a missão de viajar o sertão promovendo a revolta, discretamente, entre os lideres do
lugar. Chegando ao Crato, buscou apoio do Capitão-mor Filgueiras para vencer a empreitada.
A ideia era divulgar os ideais da república aos que quiserem e conhecer aqueles que se opõe a
ela. De Pernambuco a Pombal, depois Icó e Crato, se tudo fora bem passariam a Aracati e
Sobral. Empós isso estão prontos para tomar o poder na Vila de Fortaleza, era esse o cálculo.
A empreitada de Alencar começava, contudo, pela benção de D. Bárbara de Alencar,
natural de Exu, forte em suas convicções e grande em importância para os homens que
trilhariam doravante os destinos do Cariri e do Ceará. A partir dela é que a adesão do Pároco
de Crato, a concordância dos irmãos e o clamor do povo do Crato viriam a ser favoráveis ao
jovem Alencar. Ainda hoje é conhecida como a “heroína de 1817”111.
No percurso supunham contar com a ajuda de eclesiásticos e militares. De Filgueiras,
contudo, obteve somente o compromisso da não intromissão em defesa do Governo
provincial, o que encheu de ânimo os partidários da república.

110
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória, n.4.
Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 52.
111
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V II. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória, n.5.
Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 78.
55

Em três112 de Maio foram à Praça do Crato e em cinco de Maio em Jardim (apoio


concedido sob a influência do pároco local) proclamar o manifesto da Revolução, lido pelo
Jovem Alencar, escrita pelo governo provisório a partir de Recife. No dizer de João Brígido113
calcularam errado a vitória da Revolução os republicanos, e com eles os Alencarinos.
A adesão à Revolução Pernambucana se deu no Crato naquela data, com as
burocracias para instalar o novo viés de poder providenciadas: instalaram uma câmara de
vereadores, presos foram soltos, comunicações expedidas etc..
No dia 10 de maio a contra-revolução se instaurou com a participação obediente de
Pereira Filgueiras, o Capitão-mor, liderando as tropas “realistas” no dia 11. No campo de
enfrentamento no Crato não sobrou nenhum republicano para a batalha – “Alencar e os seus
aderentes estavam completamente a sós. Não tinham número si quer para um piquete”114.
Todos aderiram ao capitão Filgueiras. Alencar e seus irmãos foram presos. Restabeleceram o
poder anterior e comunicaram ao Governador da Província o sequestro dos bens dos
revoltosos.
O ritual de entrega dos filhos de D. Bárbara à prisão em Fortaleza foi seguido de um
cortejo de sevícias e maus-tratos, por Icó, Aracaty até Fortaleza. Separados na prisão o
Governador Sampaio esforçou-se para humilhá-los, sem conseguir. A paciência e altivez de
Tristão foram destacadas por Brígido115. Todos os demais incluindo D. Barbara foram presos
e levados a Fortaleza. A sentença assim como os presos, contudo, foi transferida para a Bahia
num processo que se arrastou por dois anos.
Em 1821, com o impulso de mudanças na política em Portugal, soldados portugueses
na Bahia tomaram o poder e instituíram uma junta provisória, dentre seus feitos tornaram nulo
o processo contra a maioria dos presos da revolução de 1817, pondo-os em liberdade
incontinente.
Passados os humores de 1817 a vida política do Brasil muda com as incursões dos
problemas vividos em Portugal com a assembleia constituinte em Lisboa. O Brasil fica
dividido entre os que querem continuar submetidos à assembleia portuguesa. O Rei D. João
VI retorna a Portugal para garantir seu lugar na Monarquia portuguesa, ao passo que no Brasil
116
o S.A.R. D. Pedro I constrói aos poucos a independência do Brasil de Portugal, com o

112
Há autores que dizem ter sido 5 de maio. FILHO, J. de Figueiredo. Histórica do Cariri. V. II. Fac-símile da
Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 20.
113
BRÍGIDO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição Fac-símile reproduzida do Diário de
Pernambuco, de 1861. Typ. Da Gazera do Norte. 1888. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. P. 69.
114
Ibid., . p. 81.
115
BRÍGIDO, João. Op., cit.. p. 85.
116
Sua Alteza Real Dom Pedro.
56

apoio das câmara municipais e orienta eleições nas províncias para eleger Deputados que
comporão a sua própria assembleia constituinte. Essa iniciativa reascende os ânimos dos
liberais-republicanos em defesa de um Estado Nacional independente, houve adesão imediata
dos lideres de 1817 a D. Pedro I.
Ficaram, pois, do mesmo lado da trincheira os Alencar (José Martiniano - que assumiu
como Deputado eleito, o cada vez mais importante Capitão-Mor Pereira Filgueiras e o
também influente líder Tristão Gonçalves Alencar), contra os monarquistas, que no Cariri
estavam entrincheirados em Icó e Jardim, aliados ao Governo da Província do Ceará. O grupo
do Crato se dirigiu a Icó para garantir a eleição. Em 16 de outubro de 1822 se realizou a
eleição com grandes problemas de insubordinação à decisão da câmara municipal de Icó,
prenderam eleitores e pregaram o terror no dia seguinte à eleição. Ao defender os
encaminhamentos da eleição, unidos e em combate os lideres dos Alencar e Pereira Filgueiras
impuseram uma derrota aos líderes de Icó e Jardim. O Crato se põe na liderança da região
com Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras à frente após destituir a comissão provisória de
Icó e em lugar dela impor outra. No furor das decisões apressaram em marchar para Fortaleza
e com isso anunciar os fatos e propor igualmente que as Câmaras destituam o Governo da
Província e elejam outro até que S.A.R. designe o novo Governo para o Ceará.
Esses fatos ecoaram pelo Ceará inteiro: o Crato em defesa da Independência. Quando
os heróis chegaram a Fortaleza foram conhecedores da independência já consolidada e o
governo local renunciara. Incontinente foi escolhido Pereira Filgueiras Presidente da
Província do Ceará e em seguida após eleição diante dos representantes de Câmaras
Municipais e autoridades fora eleito Comandante das Armas do Ceará. O Cariri
definitivamente protagoniza a partir de então o cenário político do Ceará.
A luta não para tão logo festejaram a vitória Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras são
chamados para defender o povo do Piauí e a unidade do Brasil em batalha que se arrastou
durante o ano de 1823117.
Não durou muito a união e D. Pedro I dissolveu a assembleia constituinte em 1823 e a
impôs uma Carta Constitucional em 1824 e consequentemente fortaleceu o Poder Central, sob
a influência do Sul, em detrimento da autonomia das Províncias do Norte. Em Fortaleza os
líderes cratenses não aceitarão a mudança de rumos imposta pelo Imperador e deporão o

117
Forças leais à coroa portuguesa queriam manter o Brasil ligado a Portugal e tentaram dividir o território
brasileiro do Norte. A Batalha do Jenipapo ocorreu às margens do riacho de mesmo nome em Campo Maior no
Piauí. Foi uma das batalhas mais sangrentas feitas pela Independência do Brasil, ocorreu no dia 13 de
março de 1823, com grande protagonismo dos Cearenses que comandaram um exército de mais de 2 mil
homens. Consistiu na luta de piauienses, maranhenses e cearenses contra as tropas do Major João José da Cunha
Fidié.
57

Presidente imposto, elegendo um Governo Provisório, favorável à Confederação e negando a


Constituição de 1824.
Os fatos promovidos por D. Pedro I fizeram estourar outra e mais grave Revolução nas
terras do Nordeste, com o tom nacionalista e liberal de 1817: a Confederação do Equador –
iniciada em Pernambuco com a eleição do Presidente da província Manuel de Carvalho Paes
de Andrade, o futuro dirigente da Confederação do Equador118. A província do Ceará aliada à
da Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí, Alagoas119 e liderados por Pernambuco, manifestou
todo seu descontentamento com D. Pedro I formalmente em nome da Província.
A Monarquia passa a ser enfrentada no Ceará pelos ex-aliados pela independência: Pe.
Mororó (Quixemobim), José Martiniano de Alencar, Tristão Gonçalves e Pereira Filgueira
(Crato), com apoio de outras lideranças locais do Ceará dentre eles Icó, que não tiveram
dúvidas em apoiar o manifesto que propunha a criação de um novo País, ao norte do Brasil.
No Cariri as minudências dos enfrentamentos vão agudizando o ódio entre as famílias.
Pinto Madeira (Monarquista), natural de Barbalha, Capitão-mor em Jardim, se aproveitará
desse momento para lavar a honra de familiares seus derrotados outrora em combates com
Pereira Filgueira.
A luta na Província do Ceará contra o Império tinha sua versão mais forte e seus
enfrentamentos mais diretos liderados pelos Homens do Cariri. O Deputado deposto José
Martiniano fora direto para Pernambuco acompanhou o lançamento da confederação e depois
seguiu para Fortaleza, onde o clima estava todo ele favorável à Pernambuco. Os mesmos
ideais republicanos e liberais apareceram neste movimento mais amplo e organizado.
Em agosto de 1824 instala-se um Governo Temporário no Ceará e chama uma grande
assembleia composto pela elite, proprietários, representantes de Câmaras Municipais e
pessoas do povo e comerciantes... denominada Grande Conselho. Participaram 455120 pessoas
que deliberaram pela Proclamação da República e de apoio à Confederação do Equador.
Instala-se a partir daí uma nova ordem de Governo liderada pelo Grande Conselho do qual foi
eleito Presidente Tristão Gonçalves de Alencar Araripe que governaria a província. Pe.
Mororó (Pe. Inácio Loyola de Albuquerque Melo) será eleito Secretário do novo Governo e
responsável pelas notícias doravante divulgadas no Ceará em imprensa oficial, inaugurada
pelos rebeldes com ajuda de Pernambuco.

118
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V II. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA.
Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 54. E FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora
Armazém da Cultura, 2015. P. 151.
119
FAUSTO, Bóris. História do Brasil. São Paulo. Edusp. 1995.
120
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 156.
58

José de Alencar é eleito Deputado para compor a nova Assembleia Constituinte


representando o Ceará. Pereira Figueiras continuava sendo o homem de confiança do novo
Presidente Tristão Gonçalves e com isso incumbido de ir a Pernambuco para os passos
seguintes, ao lado de Alencar.
A Confederação será aniquilada pelas forças da Monarquia em Pernambuco, antes
mesmo que os Caririenses pudessem lá chegar. Pernambuco sucumbe ao poderia militar do
Estado em 12 de setembro de 1824121, seus líderes entre eles Frei Caneca viaja ao encontro
dos Cearenses no Cariri e é enfim derrotado em 29.09.1824 em batalha no município de
Missão Velha, após enfrentamentos em todo o percurso, inclusive em Icó.
A luta continuou entre Pereira Filgueiras, Alencar e as tropas monarquistas, reforçada
pelos inimigos de sempre: Jardim e Icó. Pinto Madeira será o algoz de um tio de Alencar em
Jardim. Fato que coloca Jardim contra o Crato seguiram Alencar e Pereira Filgueiras e seu já
pequeno exército para Jardim onde a vingança foi feita contra os do lugar. Neste contexto já
aos pedaços o exército, sem dinheiro, comida ou homens.
O Presidente Tristão Gonçalves percebe a iminente derrota, tendo permanecido em
Fortaleza, ainda consegue em Aracati debelar uma pequena revolta Monarquista. Em
Fortaleza já chegavam forças da Monarquia a 18 de outubro de 1824 e Tristão Gonçalves de
Alencar Araripe segue para o Cariri indo ao encontro do irmão e do Capitão Pereira Filgueira.
O fim se aproxima com a derrota do projeto liberal. Antes mesmo de chegar ao Crato
é violentamente morto Tristão Gonçalves em 31.10.1824... Tristão Gonçalves não era o Sr. da
armas, era o Sr. da politica! Por isso a dupla Tristão e Filgueiras era tão produtiva em
combate. Ao separar-se perderam o melhor de cada um.
Fortaleza se rendeu à Monarquia e a adesão segue em todos os lugares, o exército dos
confederados desertou e os que ficaram foram dispensados por Pereira Filgueiras e Alencar,
nas terras do Cariri. Foram em seguida para Exu. Posteriormente se entregou na Vila do Crato
Pereira Filgueiras e morreu sendo transferido para julgamento no Rio de Janeiro.
Jose Martiniano de Alencar foi preso na Bahia e nesta mesma província é reconhecido
durante a viagem por D. Tomaz de Noronha, Bispo de Olinda122, que o recomendou ao

121
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza. Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 157.
122
Curiosamente, no século XX, um dos mais ilustres membros dos Alencar do Cariri depois de José Martiniano
de Alencar, Miguel Arraes de Alencar é deposto em primeiro de abril de 1964 pelo Golpe que instituiu a ditadura
militar no Brasil, onde o Bispo de Olinda D. Helder Câmara falará pessoalmente com o Presidente Militar
Humberto Castelo Branco (ambos cearenses) em defesa da integridade física dos Arraes. O Governador deposto
ficará 14 anos no exílio na Argélia e parte de seus familiares com D. Violeta Arraes, onde se mantiveram na
França em constante vigília e atenção aos exilados brasileiros na Europa e América Latina, dentre os quais
Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Caetano Veloso, Gilberto Gil dentre tantos. A permanência em Paris só
foi possível em razão de seu esposo Pierre Gervaiseau, francês de nascimento. Em seu retorno à cena política
59

Imperador123. Enviado ao Rio de janeiro onde foi obrigado - para sobreviver - escrever uma
carta a D. Pedro I, em 20.01.1825 na qual nega sua participação na Confederação do Equador
nos seguintes termos: “Beija respeitosamente a imperial mão de V. M. este que é, Senhor, de
V. M. I. desgraçado, fiel e obediente José Martiniano de Alencar.” 124. Devolvido para
julgamento no Ceará foi inocentado de suas acusações. Doravante adotaria a causa da
Monarquia125.
Em 1825 recebe o perdão do Imperador e será nomeado Senador e posteriormente
Presidente da Província do Ceará por duas vezes em 1834 a1837 de 1840-1841.
José Martiniano de Alencar será para a história o mais importante político do Crato
para o Brasil, do Ceará para o Brasil126, mas sem dúvidas Tristão Gonçalves127 e Pereira
Filgueiras foram os mais amados pelos seus contemporâneos. Suas capacidades de executar
sem temor tudo que estava a seu alcance para por os ideais da República e do Cariri
revolucionário falou mais alto. Os nomes de Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras constam
no Panteão dos heróis nacionais do Museu Ipiranga, de São Paulo.
Os demais membros cearenses da Confederação do Equador, a exemplo de Pe. Mororó
foram executados em praça pública, outros degredados.128
Pinto Madeira começa seu reinado de poder e perseguição pelo Cariri. Depois da
derrota dos liberais em 1817 e em 1824, do qual teve atuação direta em favor da Monarquia, é
erigido a Coronel e passa a ser o homem mais forte do interior do Ceará e líder do novo Cariri
Monárquico. A dissidência entre os Alencarinos e Pinto Madeira iniciaria um novo capítulo –
traduzido em guerra civil no Cariri (Crato, Icó, Jardim e Missão Velha) com violência e
sangue129 derramado em enfrentamentos produzidos por Pinto Madeira e seus subordinados
milicianos.

nacional Miguel Arraes era reconhecido das pessoas do sertão de Pernambuco e do Cariri como “Guerreiro do
Povo Brasileiro”.
123
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V II. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA.
Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 78.
124
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela Imprensa
Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições URCA.
Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 87.
125
Ibid., p., 21/160.
126
“Alencar era, incontestavelmente a maior glória da Província do Ceará”. Notícia da imprensa quando de sua
morte. FIGUEIREDO FILHO, op., cit., p. 22.
127
FIGUEIREDO FILHO, op., cit., p. 62: Tristão Gonçalves “Nunca por um instante sequer esmorecera em seu
idealismo... Suas convicções ficaram mais arraigadas e pode guiar com pulso firme e inteligência realizadora, os
acontecimentos que fizeram a independência no Ceará e também a marcha vencedora sobre Caxias, através dos
ínvios caminhos sertanejos, desde Fortaleza até o Maranhão.... Tristão Gonçalves de Alencar Araripe é dos
maiores vultos da história do Nordeste Brasileiro.”
128
FIGUEIREDO FILHO, op., cit., p. 62.
129
MAGALHÃES, Célia. Nosso Povo Nossa História: Missão Velha. Crato: Ed. Província, 1994. P. 160.
60

Em 1831 um fato inesperado toma o Cel. Joaquim Pinto Madeira de sobressalto: a


renúncia do Imperador Pedro I. Inconformado e receoso que este fato resultaria em vingança
politica contra si e certo de que a renúncia poderia ser reconsiderada lutará ferozmente em
defesa da vinculação do Brasil à Portugal. O desfecho será o fuzilamento de Pinto Madeira
no Crato em 28.11.1834, sob as ordens de punição do Estado. Àquelas alturas chefiadas pelo
Presidente da Província José Martiniano de Alencar.
Os reveses da política são inúmeros. Para crer é só olhar a história. Entre 1824 e 1831
o Cariri e o Crato ficaram cabisbaixos sob o domínio da Monarquia e seus aliados.
Humilhações e poder dos “Corcundas”, como eram chamados os apaniguados da Monarquia
se fizeram ver. Em 1831 com a renúncia de D. Pedro I, o governo regente do Brasil será
povoado por liberais, o que faz ascender aos postos políticos os liberais do Ceará, dentre eles
José Martiniano de Alencar.
A certeza de que os ventos da politica lhe seriam desfavoráveis, Joaquim Pinto
Madeira entrará para a história com os episódios de violência conhecido como a “Sedição de
Pinto Madeira”130, que se traduziu em assassinatos e sangue no Cariri como o combate
ocorrido em Missão Velha aos 22 de junho em que foram derrotados os homens de Pinto
Madeira131. O Crato foi alvo preferencial. A posteriori a longa manus do Estado não tardou
em chegar, logo que pode instituíram um tribunal em Crato que o julgou por assassinato e
condenado a pena de morte e executado sem direito a recurso. Alencar, Presidente da
Província do Ceará, sempre negou interferência no resultado desse julgamento.

2.1.3.3 Padre Cícero Romão Batista, Beato Zé Lourenço e o Cariri do Século XX

Ainda na primeira metade do século XIX, 1844, no Crato nasceu o homem que vai
mudar a história do Cariri no início do século XX: Cícero Romão Batista, o “Padim Ciço”.
Missionário, político, padre, líder espiritual, santo. Muitas qualidades se atribuem a Padre
Cícero. O seu lugar de nascimento, o clima da época em que cresceu e exerceu sua vida
sacerdotal sem dúvidas moldaram o ser santo de Cícero. O Cariri viveu seu tempo de guerra
colonizadora e coronelesca (1703 – 1817 – 1822 -1824 - 1834 – 1904 – 1913/1914) como
nenhum outro lugar do Ceará e os protagonistas de tanto sangue derramado estavam dentro
das casas de fazendas, matando, liderando índios e escravos, empunhando suas baionetas,

130
FARIAS, Airton de. História do Ceará. Editora Armazém da Cultura. 7ª Edição. Fortaleza. 2015. P. 162.
131
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela Imprensa
Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições URCA.
Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 109.
61

espingardas e poderio político. Ora, no limiar da República esses senhores serão conhecidos
como Coronéis132. Interferiam nos processo políticos e impunham ao Estado um modo
peculiar de se fazer ouvir: a força. O Nordeste será o nicho dos Coronéis. E o Cariri uma
representação eloquente para o Ceará. Chegando ao absurdo de num raio da mais alta
fraqueza institucional o Governador do Estado do Ceará, Antônio Pinto Nogueira Acióli,
propor e conduziu uma pactuação em que o Estado não era o detentor da gestão da coisa
pública: “O Pacto dos Coronéis” que no Art. 6° está dito: “... nessa hipótese, quando não
puderem resolver pelo fato de igualdade de votos de suas opiniões, ouve-se o governo, cuja
ordem e decisão serão respeitada e restritamente obedecidas”.133
Participaram do referido pacto os chefes de todo o Cariri, municípios do Crato,
Jardim, Santana do Cariri, Barbalha, Missão Velha e Juazeiro do Norte, representado pelo
Padre Cícero, que foi o presidente da referida reunião. Além dos municípios de Araripe,
Aurora, Milagres e Brejo Santo. Esse preâmbulo é para que não pairem dúvidas sobre as
estratégias de sobrevivência politica e social a que esteve submetido Cícero Romão Batista e
como se sagrou vitorioso neste cenário em que a pobreza, a seca e a alienação eram condições
facilmente manipuladoras do destino politico de uma gente.
A história de Padre Cícero é um entrelace de politica e misticismo. Desde a sua
vocação à santidade que teria um chamado de Deus, melhor dizendo: “Do Sagrado Coração
de Jesus” que o convocou à messe nestes termos: “E você, Pe. Cícero, tome conta deles”134.
Como todo o conhecimento teológico não cabe à ciência ou a filosofia distinguir o certo ou o
errado do saber, mas compreender que se trata de uma verdade revelada. Era 1872135.
Para os romeiros de Padre Cícero e a gente crédula do Cariri, hoje do Brasil, nunca
duvidaram da sua santidade e do caráter sagrado de sua grande obra “Juazeiro do Norte”. Os
votos como sacerdote vieram em 1872 e assumiu vários trabalhos eclesiásticos em cidades
vizinhas a Juazeiro do Norte, àquela data, terras do Crato. Em sua missão reunião grupos de
beatos, degredados e pessoas que o buscavam atrás de salvação e paz espiritual, de trabalho e

132
“Os coronéis já eram conhecidos desde o tempo da regência e do Império, reaparece na república, com muita
força”. MAGALHÃES, Célia. Nosso Povo Nossa História: Missão Velha. Ed. Província. Crato. 1994. P. 145.
133
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela Imprensa
Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições URCA.
Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 147.
134
Ibid., p. 153.
135
Outros autores divergem sobre o recado divino e seu mandante. FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª
Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 312. O que deixa de ser importante uma vez que o
objetivo final foi alcançado. A permanência de Pe. Cicero em Juazeiro para o destino que conhecemos.
62

negócios; criado nas entranhas da vida politica do Cariri foi um observador atendo para ser o
protagonista que foi na política136 quando encetou a luta para elevação de Juazeiro a cidade.
Controverso em sua atuação foi se tornando o líder politico que Juazeiro e sua gente
precisavam, em razão dessa atuação se aproximou de todos os tipos de lideranças que havia
no sertão do Ceará: coronéis, cangaceiros, clérigos, messiânicos, artistas, negros, índios e
retirantes. Nada escapou à sua atenção.
Em 1911 a luta pela emancipação de Juazeiro do Norte estava consolidada e Pe.
Cícero o 1º Prefeito do lugar. Dali para ser uma das lideranças do Ceará não tardou. Em 1912
foi eleito Vice-Presidente do Ceará137, ampliando sua influência do Ceará para o Brasil.
Um contra-ataque do Bispo Dom Joaquim (Fortaleza) confirmada pela Santa Sé
(Roma) veio urgente suspender Pe. Cícero de sua missão como Padre - em razão do milagre
ocorrido em Juazeiro no ano de 1889, no qual uma beata negra, Maria de Araújo recebe uma
hóstia das mãos de Pe. Cícero, hóstia que se converte em sangue138. Ele é proibido de
ministrar os sacramentos. Será o desfecho mítico para que a história e os devotos do padrinho
o alçassem à categoria de Santo: perseguido pela igreja139 ele se torna o cordeiro oferecido em
oferenda em defesa daquela sociedade de excluídos e marginalizados. As romarias começam a
ocorrer neste período. Juazeiro do Norte efetivamente passa a ser o ponto de atração
econômica e de negócios do Cariri. Padre Cícero se aproxima da ordem dos Salesianos, não
subordinada ao bispado do Ceará, até os dias de hoje o horto, o museu, a antiga casa do Pe.
Cícero é coordenado pelos Salesianos.
A morte de Pe. Cícero140 em 1934, aos 20 de julho141 não fazem diminuir as romarias
e o processo rápido de desenvolvimento de Juazeiro. Passados 82 anos, em 2016, a Igreja de

136
O ingresso de Padre Cícero na politica teria se dado com o impulso do médico Floro Bartolomeu, que
residindo em “Joazeiro” desde 1908 era amigo e defensor do Pe. Cícero.
137
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 312. Pe.
Cícero não assumiu o cargo permaneceu em Juazeiro do Norte. Ibidem.
138
Ibid., p. 313.
139
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero. Depoimento para a História. Fac-símile da edição
de 1923 publicada pela Imprensa Nacional, Rio de janeiro. Coedição Secult/Edições URCA. Fortaleza. Edições
UFC. 2010. P. 107: “Não só pelas localidades sertanejas de Pernambuco por onde passou, a cavalo, como pelas
da Bahia, á margem da estrada de ferro, recebeu demonstrações de elevado apreço, que lhe causaram surpresa”.
Em Maceió as manifestações foram estrondosas. “Esse prestígio sem o menor esforço de sua parte, todo
espontâneo, apesar da perseguição da sua classe. Quando ele tinha ordens e celebrava, em qualquer logar que
fosse, estivessem presentes outros padres ou bispos, conforme posso dar meu testemunho, não somente a egreja
ficava repleta, como toda a rua.” [sic].
140
Lourival Marques, filho de um dos secretários particulares de Padre Cícero apud DELLA CAVA, 2014:
325:“Que espetáculo horroso, esse de milhares de pessoas alucinadas, correndo pelas ruas afora, chorando,
gritando, arrepelando-se...O padre Cícero faleceu.”
141
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V II. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA.
Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 154: No dia 21, 60 mil pessoas acompanharam o Cortejo Fúnebre de Pe.
Cícero.
63

Roma, por seu Papa Francisco emite carta na qual reconcilia a igreja com Padre Cícero e
libera e reconhece o culto à memoria eclesiástica do Padim Ciço.
Muitas histórias, algumas controvertidas, há da passagem de Pe. Cícero no Nordeste
do Brasil, dentre eles ligados a Lampião – o cangaceiro, Caldeirão da Santa Cruz –
movimento de caráter socialista e comunitário que resultou em aldeamento; os preceitos do
Pe. Cícero para o meio ambiente; os rituais de entronizações do Sagrado Coração de Jesus e
todo ano na mesma data a “Renovação” com rezas, cânticos e comes-e-bebes; as orientação
para os negócios142: empresas e indústrias de velas, de lamparinas, de chapéus etc.
A atmosfera de energia gerada pelo mito Padre Cícero constrói dia-a-dia uma
metrópole no interior do Nordeste do Brasil e a crença inabalável e esperançosa na capacidade
de superação da pobreza e da desigualdade social. Sua estratégia de sobrevivência no
momento de maior crise de sua história, após o milagre e a suspensão pela igreja, foi se aliar
ao sistema politico dominante, junto à Oligarquia Acciolyna e Coronéis da região. Até onde
lhe foi conveniente, fortalecido ele auxiliaria o amigo Floro Bartolomeu na sedição de
Juazeiro em 1914, contra o Governo de Franco Rabelo.
Escolheu um lado na luta de classes, o dos dominantes143. Servir aos humildes, ajuda-
los em seus lamentos e aflições, conseguir lhes empregos, dar moradia etc. aumentou enfim, a
subordinação desses ao sistema vigente àquela época. Sua atuação política nem sempre lhe
favoreceu, contudo.
Aliado ao grupo ligado ao poder federal (Marechal Hermes da Fonseca) e ao oligarca
Accioly, Pe. Cícero e Floro Bartolomeu (Deputado Federal) participaram de alianças e
acordos para realizar uma intervenção federal no Ceará para retirar do poder o Presidente
eleito Franco Rabelo por ilegalidade - dos 16 votos da Assembleia Estadual necessários para
tornar legal a eleição, Rabelo havia obtidos apenas 12. Franco Rabelo por sua vez se aliou à
elite de Fortaleza e investiu contra Crato e Juazeiro destituindo os intendentes dessas cidades
(prefeitos). Dentre eles Pe. Cícero.
A conspiração realizada por Floro Bartolomeu no Rio de Janeiro torna-se pública para
Franco Rabelo ao interceptar uma correspondência de Pe. Cícero. Precipita-se uma ação

142
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero. Depoimento para a História. Fac-símile da edição
de 1923 publicada pela Imprensa Nacional, Rio de janeiro. Coedição Secult/Edições URCA. Fortaleza. Edições
UFC. 2010. P. 90: A vida cabocla em “Joazeiro” é cheia de oportunidade de trabalho. A injunção de Padre
Cícero e seus amigos leais como Dr. Floro Bartolomeu criam um ambiente informal, mas promissor de negócio e
oferta de mão-de-obra que não tem precedentes na história do Cariri. Vide relato de Dr. Floro em discurso da
Câmara Federal no Rio de Janeiro em 23.09.1923: “Anualmente, na época da colheita, seguem para os
municípios de Souza, Cajazeiras, S. João do Rio do Peixe, S. José de Piranhas e outros, cerca de cinco mil
pessoas, na maioria mulheres.” Para a coleta de algodão. [sic].
143
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 322.
64

armada do Estado contra o Cariri, por sua vez ainda em 1923 os aliados de Floro Bartolomeu
e do Pe. Cícero antecipando o cenário da batalha afasta o interventor local e se preparam para
o enfrentamento.
Em Crato os aliados de Rabelo se preparam para invadir Juazeiro e “arrancar a cabeça
de Pe. Cícero”. A investida dá errada e o exército de Rabelo sucumbe ao povo de Juazeiro e
de toda a região que veio em salvaguarda do Padrinho Cícero. Outra tentativa em 22 de
janeiro de 1914 contra Juazeiro também fracassou. Refugiados em Barbalha as tropas de
Rabelo será dispensada. As tropas vitoriosas de Floro Bartolomeu começam a saquear as
cidades vizinhas. Depois de um intenso combate em Iguatu contra forças do Governo chegam
à Fortaleza amedrontando toda a cidade, após saques e pilhagens em paradas do trem por todo
o caminho de Iguatu a Fortaleza.
Enfraquecido o governo de Rabelo o projeto de intervenção federal se configurou com
a renúncia dele em 14 de março de 1914144. Com isso o poder politico de Pe. Cícero e Floro
Bartolomeu se agigantam no Nordeste e no plano nacional. Mais uma vez o Cariri reaparece
na historia do Brasil como protagonista.
O Beato Zé Lourenço compõe, também, um capítulo especial da história do Cariri.
Negro ele acompanhado de seguidores remanescentes de índios, negros e romeiros do Padre
Cícero fundam a comunidade do Caldeirão no sopé da Chapada do Araripe, no Crato a partir
de terreno doado por Padre Cícero. O Beato Zé já fora preso e afastado do Sítio Baixa Dantas,
também no Crato, acusado de fanatismo e adoração ao boi mansinho, episódio combatido
pelos líderes políticos locais e dizimado pelo Deputado Floro Bartolomeu, que mandou matar
o animal, que àquelas alturas, tinha dejetos, urina, casco sendo usado para fazer curas e o boi
sendo idolatrado.
Passado o episódio do boi mansinho, vai Zé Lourenço se acomodar na comunidade do
Caldeirão e lá funda uma comunidade alternativa, com base na capacidade de suporte do
ambiente e comunitarismo. Com trabalho, reja e parcerias a comunidade cresce e se torna
mais uma vez motivo de preocupações para as autoridades. O resultado já era de se esperar. O
exemplo de Canudos: em 1936 aos 11 de setembro ocuparam a residência do beato Zé
Lourenço e dos “fanáticos” que o seguiam 150 policiais, que destruíram casas e expulsaram
os caboclos. Ainda mantiveram guarda para que lá não voltassem pelo menos 80 soldados145.
Zé Lourenço e seus seguidores teriam fugido antes da destruição do lugar. Ainda hoje a

144
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. p. 341.
145
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela Imprensa
Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições URCA.
Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 219.
65

memória do Caldeirão é mantida no lugarejo depois de construída uma capela. Anualmente se


fazem romarias ao lugar.

2.2 OS KARIRI (ORÍGENS)

A existência de índios nos antecedentes da história colonial do Cariri é um fato já


comprovado pela arqueologia e confirmado pela memória registrada no acervo lítico e das
gravuras em rochas da região, as pinturas rupestres. A data da presença do homem no
Nordeste do Brasil, se considerarmos as pinturas rupestres identificadas, está situada em
12.000 anos Before Present (BP), evoluindo segundo Rosiane Limaverde146 durante os
10.000-8.000 anos seguintes. Os registro descritos por Carlos Studart Flho147, indicam a
presença humana no território do que hoje denominamos Ceará por volta de 7 milênios, “um
povo australóide de estatura elevada ou média, dólico ou mesocéfalo, de cultura
rudimentar..., uma segunda entrada se dá a partir do 4 milênios, com a chegada dos
Taramembé e mais tarde os Cariri – “cunha interposta entre Tarairiús e Jés primitivos, já
perfeitamente caracterizados destacados dos Brasílidos estabelecidos no curso médio do Rio
São Francisco”.
No Cariri, cujo registro datado de ambientes de convivência e abrigo, como o sítio
Arqueológico do Olho D’água em Nova Olinda datam de mais de 3 mil anos (BP)148, com
pinturas e gravuras cujo registro de presença humana se situa entre 1170 ± 30 BP.
Essa datação é extremamente recente, graças ao trabalho empedernido dos líderes da
Fundação Casa Grande, de Nova Olinda (CE), que está há mais de 10 anos à frente desta
Organização da Sociedade Civil sem fins econômicos e montaram um equipamento
extraordinário de promoção da cultura e identidade dos povos do Cariri, especialmente os
Kariri/Cariri à custa do Museu do Homem Cariri, com peças e achados líticos, formação de
jovens pesquisadores para a Arqueologia e da parceria com a Universidade Regional do Cariri
– URCA, que em 2016 criaram o Instituto de Arqueologia do Cariri. A tese de doutoramento
da pesquisadora da Fundação Casa Grande/Urca, Rosiane Limaverde, confirmou através de

146
LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva: A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio
Cultural da Chapada do Araripe. 2015. Pp 442. Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra. Coimbra. 2015. p. 344.
147
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura. Fortaleza: Editora Instituto do
Ceará, 1965. Pp. 90/91.
148
LIMAVERDE, op., cit., p. 339.
66

datação de Carbono a idade aproximada de 3 mil anos para a presença dos ancestrais do
homem americano no Ceará, no Cariri. O ineditismo da pesquisa realizada junto à
Universidade do Porto, em Portugal confirma e amplia as datas postas por antigos e
importantes trabalhos realizados no Ceará, a exemplo da monografia de Thomaz Pompeu
Sobrinho sobre a pré-história Cearense, publicado em 1955.
A corrente migratória até então descrita do homem americano era imprecisa em torno
de dois ciclos de migração dentre os vários que vieram à América – que resultaram na
ocupação de terras do Brasil. Alguns consensos merecem atenção: todas elas vindos dos
velhos continentes; não havia povo autóctone nas Américas. Das correntes que cá chegaram
os mais antigos “Australóides do Paleolítico” que na leitura de Pompeu Sobrinho teria
chegado ao Nordeste do Brasil entre 20 e 18 mil anos149. T. Pompeu Sobrinho aponta o Cariri
entre os 7 a 4 mil anos150.
A data pode ser diversa, mas na etnia há certos consensos: desta leva primeira que
chegou ao “maçico da Borborema e as serras que dividem as águas do parnaíba, a oeste, das
do São Francisco, rio Açu e Jaguaribe, a leste” após longo período de adaptação os índios da
“família línguo-cultural tarairiu”, descendentes diretos daqueles pioneiros”151. Os resquícios
da presença desta família primitiva no Nordeste puderam ser analisados por estudiosos em
achados no Brasil (Gruta da Canastra) e nos traços étnicos possivelmente dos Láguidos. A
descoberta dos primeiros habitantes do Cariri feita por Rosiane Limaverde eram,
provavelmente, de povos ancestrais dos Tarairiú e não dos Kariri, como supomos
inicialmente.
Em síntese temos duas correntes que estimam presenças indígenas no Cariri em
tempos que avaliamos distintos e de distintas etnias:

Quadro 4 - Tempo provável da chegada o Homem Americano ao Cariri


Etnia Tempo provável Autor
Láguidos cuja descendência seria 20 a 18 mil anos (BP) T. Pompeu Sobrinho
Tarairiú (Bibliografia Secundária)
3 mil anos (BP) Rosiane Limaverde
Protomalaios Brasílidos (Datação de Carbono)
Chegaram ao Cariri. Os Kariri T. Pompeu Sobrinho
seria descendentes destes. 1,5 mil anos da Era Cristã (Bibliografia Secundária)
T. Pompeu Sobrinho
Kariri Século IX ou X da Era Cristã (Bibliografia Secundária)

Fonte: O autor, 2017.

149
SOBRINHO, Thomaz Pompeu. Pré-História Cearense. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará. 1955. P. 118.
150
Ibid., p., 119.
151
SOBRINHO, op., cit., p. 119
67

Os Kariri, por sua vez, teriam chegado ao Nordeste na segunda leva migratória dos,
originalmente, “Protomalaios Brasílidos”152; muitos séculos depois da primeira leva dos
Láguidos (Tarairiús). Os Kariri vindos “pelos vales do riacho da Brígida e do pajeú, do norte
do S. Francisco e da Borborema ... quase nada se sabe da somatologia, além de sua estatura
baixa e cabeça curta” 153.
A leva de brasílidos dos quais se originaram os Kariri teria ocorrido na quarta corrente
de povoadores das Américas, aí pelo último século do milênio A.C. o que levou T. Pompeu
Sobrinho a “conjecturar que os brasílidos chegaram à margem do rio S. Francisco acerca de
1,5 milênios da era cristã” e os kariri/Cariri ao Cariri por volta do século IX ou X da era
cristão.
Os Kariri não estavam restritos ao território da Chapada do Araripe, ocupavam
“extenso trato do território nacional, de Itapicuru, no Maranhão, ao Paraguaçu, na Bahia”154.
Eram tribos de sertão, Kariri e Jê155, distantes do litoral onde predominavam os tupis.
A chegada dos Kariri ao sul do Ceará se deu pelo caminho das águas156. A presença
dos índios próximos aos rios foi registrada durante a colonização de Norte a Sul do Brasil nas
chamadas veredas que eram seguidas pelos colonizadores157. No Cariri chegaram vindos do
vale do Jaguaribe e do vale do São Francisco, caçadores e coletores em períodos de estiagem

152
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Pré-História Cearense. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará. 1955. p.
81/86: “Os componentes desta corrente migratória chegaram à América em número elevado, já em pleno
Holóceno... por via paramarítima ou mesmo oceânica. Eram braquicéfalos, de baixa estatura e tipo mongoloide,
neolíticos agricultores, ceramistas, tecelões e navegadores.” Sua área de caracterização era “Paleomongolóides
da Ásia Oriental, a interação com as “Velhas populações australóides... teve origem a raça Protomalaia.” “Após
ocuparem a quase totalidade das terras da atual Polinésia e Micronésia, chegaram aos mares da China, do Japão,
das Filipinas... Das costas da China-norte à América... Por mar, às costas asiáticas e os cordões de ilhas, do Japão
ao Kantchatca e desta península pelas Aleutinas, senão também pelo próprio estreito, teriam chegado ao Novo
Continente. [...] Cujas características conformavam: “Compleixão assás robusta, musculatura desenvolvida,
espáduas largas e amplo tórax; mãos e pés grossos e curtos, tronco desenvolvido e membros curtos ” [sic] .
153
Ibid., Pp., 57/121/122.
154
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela Imprensa
Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições URCA.
Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 13.
155
Ibid., p.,13.
156
A ocupação do território brasileiro pelos indígenas exigiu um longo percurso, se considerarmos a chegada ao
continente pelo estreito de Bering. Seguindo esse raciocínio a caminhada dos Kariris/Cariris foi a mais extensa
no território cearense. Sua chegada “às margens do ramo oriental do Rio São Francisco se deu depois de
perambular dramático pelo Rio Amazonas e seu afluente Tocantins... no percurso foram se mudando em razão
do contato com outras tribos. Das margens do São Francisco teriam migrado para o norte pela Borborema até
alcançar o Rio Salgado, afluente do Jaguaribe, no Ceará”. STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará.
Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 70.
157
POMPEU SOBRINHO, Tomaz. A Grandeza Índia do Ceará. Coedição com a Secult. Org. Floriano
Martins. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 14.
68

acentuada e mudanças climáticas no Pleistoceno Final e início do Holoceno158. O Cariri era já


naquele contexto uma exceção climática na semiaridez. Como neolíticos os Kariri
“praticavam a agricultura e usavam uma cerâmica relativamente desenvolvida embora bem
inferior a dos Aruaque e Tupi.”159 Tinham rituais de antropofagia com relação aos seus
mortos.
O registro da passagem destes habitantes no Cariri está refletido em achados
arqueológicos em cerâmica e material lítico, e especialmente as pinturas rupestres. As peças
mais comuns encontradas são compostos de:

Artefatos de pedra lascada e polida, que eram utilizados como armas para caça e
ferramentas utilitárias domésticas, como a mão-de-pilão usada como batedor para
moer... vasilhas decoradas na parte interna com desenhos geométricos coloridos em
preta, branca e vermelha... urnas funenárias, ‘igaçaba’ machadinhas, colares, ossos
160
de animais etc.

As pinturas rupestres mais expressivas, importantes e mais bem conservadas são do


sítio Santa Fé (Crato) e sítio Olho Dágua (Nova Olinda), no raio de vivência onde estão os
Cariri de hoje, no Sítio Poço Dantas, distante poucos quilômetros.161
As pinturas rupestres durante alguns anos foram interpretadas como manifestação
mágica (processo mental pré-lógico), mas o passar do tempo deu a dimensão da realidade e da
racionalidade daqueles que os produziram, embora os motivos nem sempre estejam claros.
Corroboramos, contudo, com a análise de Thomaz Pompeu Sobrinho162

Somente o que é muito sério, muito solene e muito profundo na vida de um povo
pode explicar e justificar o incrível trabalho dos primitivos na confecção destas
curiosas criações, debuxos, por vezes, extensíssimos, talhados profundamente na rija
superfície da rocha comumente granítica, de modo a desafiar milenar fluir dos
tempos.

As gravuras e pinturas de Santa Fé ainda não foram estudadas a miúde, sequer sua
datação, sabendo-se através dessas ilações (fontes indiretas) ser o lugar com maior idade de
ocupação indígena do Cariri. Este sítio, até o momento, constitui-se único pela forma e

158
“O Período Quaternário, engloba o Pleistoceno (1,81 Ma 63) e o Holoceno (que inclui somente os últimos 10
mil anos) o que corresponde a menos de ½. 550 da história da Terra.”. LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia
Social Inclusiva: A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio Cultural da Chapada do Araripe. 2015. Pp.
442. Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Coimbra. 2015.
P. 71.
159
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Pré-História Cearense. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1955. P. 91.
160
LIMA, Flávia Fernanda. Et. All. Geopark Araripe: Histórias da Terra, do Meio Ambiente e da Cultura..
Crato: Editora URCA, 2012. P. 150. “Também são encontrados cachimbos decorados, demonstrando que o fumo
já era praticado entre os indígenas da região.”
161
LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva: A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio
Cultural da Chapada do Araripe. 2015. Pp. 442. Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra. Coimbra. 2015. P. 341.
162
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. A Grandeza Índia do Ceará. Coedição com a Secult. Org. Floriano
Martins. Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 271.
69

qualidade e especialidade em gravuras pintadas no Ceará163; “gravuras de pés impressas no


arenito friável”. De modo geral essas gravuras “apontam para uma autoria social”, conclui a
arqueóloga.
Tudo indica que os habitantes que deixaram seus registros em Santa Fé são os mais
antigos do Cariri e do Ceará, nenhuma outra informação gráfica encontrada é semelhante a
essa. São vários os indicativos, ademais: a geografia e altitude do lugar – os mais altos do
Cariri com cerca e 850m de altitude, a proximidade das fontes de água, a biodiversidade de
modo geral, dentre outros fatores específicos ainda não totalmente estudados pela
arqueologia.
Estima Thomaz Pompeu Sobrinho que no Ceará habitavam, em pontos diversos, três
povos indígenas principais - antes mesmo de chegarem os colonizadores, dentre os quais os
Cariri “que se estendiam pelos sertões da Paraíba e Pernambuco, Rio São Francisco e trechos
das caatingas baianas”164, o que nos permitiu propor esta Figura 16, a seguir:

Figura 16 - Área de ocupação dos Kariri no interior do Nordeste

Trechos ocupados
pelos Kariri

Fonte: Mapa Revista Pangea 2013/


Adaptação do Autor: área Cariris

A conformação tipológica dos índios que habitavam o Ceará e o Cariri, seguindo esta
linha de entendimento, estava dividida em tribos do latin tribu, nome que se dá a um
agrupamento humano unido pela língua, costumes, instituições e tradições e instaladas as
tribos em conjunto de habitações, denominados em tupy-guarani “ocas”; há registro de que
entre os índios do Ceará, os Tapuias habivam “tabas”

163
LIMAVERDE, op., cit., p. 342.
164
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Pré-História Cearense. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1955. P. 90.
70

Habitavam cazas xamadas na lingua geral tabas, nas quaes viviam familias inteiras
sem a minima separação para os individuos de um e outro sexo. Eram essas cazas
feitas de estacas _e cobertas e tapadas de folhas de diversas palmeiras, conpondoge
cada aldeia de varias cazas, conforme era a tribu mais ou menos numeroza. Nas
cazas não havia mobilia : n'ellas apenas viam se redes para dormir, e vazos de barro
para conter os licores embriagantes, de que eram apaixonadíssimos. [sic]. 165

Entre os Kariri um ou outro autor denominação também o uso das “choças” habitações
feitas de barro, cobertas de palha ou folhas de palmeira, com os mesmos fins, usos e padrões
descritos antes. Os conjuntos de oca, choças, tabas eram identificados pelos colonizadores
como Aldeias ou Malocas; essa definição do coletivo será levada pelos portugueses no
momento de constituir aldeias, missões ou reduções de índios. As aldeias, missões ou
reduções, formalmente instituídas pelo governo colonial, terão modos e forma diferente
daquelas instituída pelos nativos, estas na sua totalidade organizadas em regime de
cooperativismo e sem a noção de propriedade.
Algumas etnias conservam rituais diferenciados de iniciação dos jovens para o
casamento ou para jovens caçadores os quais iam à caça e à noite os mesmos dançavam e
cantavam até à exaustão. O resultado da caça era distribuído entre os mais velhos enquanto os
jovens ficavam apenas com um “pouco de milho e ou caça”166. No Ceará identificamos,
conforme Quadro 5 a seguir, as tribos, sua localização e língua predominante no território
cearense.

165
ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará, desde os tempos primitivos até
1850. Recife: Typrografia do Jornal do Recife, 1867. P. 24.
166
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 63.
71

Quadro 5 - Tipologia167 e localização das tribos do Ceará antes da Colonização


Língua169 falada
TRIBO TIPOLOGIA168 LOCALIZAÇÃO
com variações170
Tupis Tabajara/Tabaiaras Tupi (língua boa) Serra da Ibiapaba
Tapuias171 a) Tremembés Tapuias Litoral norte cearense
b) Outras tribos tapuias (língua travada) Litoral leste
Kariri/ Kariris/Cariris/Cariús/ Kiriri/ Ariús/ Kiriri (Tapuias): a) Cariri sul do Ceará e
Kiriri172 Gariús ou Uriús/Alarves/Carirés/ sendo dialetos o imediações da Chapada
Cariuanês/Caratiús/ Curemas ou Kipeia/Quipéa ou do Araripe.
Coremas/Isus/ Inhamuns/Calabaças/ Caitiri, Dzebucuá ou b) Sertões da Paraíba e
Icós/Jucás/jenipapos/Jandiús/ Quiriri, Sabujá ou Pernambuco
Sucurus/Garanhuns/ Chocós/ Dabujá, Camuru174 c) Rio São Francisco
Vouvês/Fulnniês/Acenas/Romarís/173 d) Caatingas baianas
Fonte: o autor, 2017.

Vieram de um lago encantado os Kariri, diz o “Catecismo da Doutrina Cristã na


Língua Brasílica da Nação Cariri”, escrito pelo missionário Pe. L. V. Mamiani. Esse lago
encantado seria no dizer de Capistrano de Abreu o próprio Rio Amazonas.
Tinham os Kariri seus mitos, lendas e práticas de cura, cujo registro pelos missionários
já denota um caráter catolicista nestas práticas:

Curar o doente com o sopro ou cantigas, ou pintar-lhe a pele com tinta de jenipapo
para que não seja conhecido do diabo;

Espalhar cinza à roda da casa do defunto para que o diabo daí não passe a matar os
outros; ou por cinza no caminho, quando se carrega a pessoa doente para que o
diabo não vá atrás dela;

167
A tipologia descrita para os indígenas do Ceará entre tupis, tapuias e kariris não é consenso na historiografia.
Diverge dela STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo
Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 47. Para este autor a divisão entre os nativos do
Ceará seria melhor disposto em: Tupi, Cariri, Tremembé, Tarairiú, Zé (Jé ou Jê).
168
Ibid., p., 71. Dentre os inúmeros autores que contribuíram para essa composição de nações que formaram o
tronco Kariri.
169
A língua tupi, denominada pelos colonizadores como língua geral acabou por influenciar a denominação
toponímica de regiões ou lugares onde a língua falada era o tapuias, ou tapuias-kiriri.
170
POMPEU SOBRINHO, Tomaz. A Grandeza Índia do Ceará. Coedição com a Secult. Org. Floriano
Martins. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 58.
171
O uso da dicotomia tupi e tapuias é bastante criticada, uma vez que os tapuias eram o modo como os tupis
designavam qualquer outra tribo que não fosse tupi. Aqui é utilizado como registro do modo como eram
descritos no período colonial.
172
Lucian Adam, Lourenzo Hervás, Pe. João de Barros, Thomaz Pompeu Sobrinho, estudiosos que defendem a
existência de uma língua Kariri/Kiriri direfenciada do Tupy. Igualmente defendem que os Tapuias não definem
um povo, sendo uma expressão geral. Vide Gramática Kiriri produzidos ainda no século XVII pelo Pe. Luis
Vincêncio Mamiani (jesuíta). POMPEU SOBRINHO, op., cit., p. 195-205. Contribuíram para essa descrição
sobre os dialetos P. Rivet e Louktka In STUDART FILHO, op., cit., p., 70.
173
Há vários povos identificados como Kariri: Caris, Calabaça, Inhamun são os mais conhecidos e referidos na
literatura. Os Tapeba de Caucaia (litoral cearense) e os Kariri de Crateús e São Benedito no Ceará, também
reivindicam serem nações dos Kariri ou deles descentes. Na Bahia há os Kariri-Chocó com denominação
semelhante aos Kariri do Cariri.
174
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Pré-História Cearense. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará. 1955. p. 91.
72

Banhar a criança com aluá para que quando ela for adulta seja bom caçador e bom
175
lutador.

A diversidade de nações indígenas referidas pelos colonizadores e missionários do


século XVII nos aponta para uma população indígena expressiva em quantidade e
diversidade. Para Darcy Ribeiro trata-se de etnias ou microetnias que se formam a partir de
uma vivência em comunidade, em grupo com número de pessoas limitado, que pelos recursos
que podem tirar de seu ambiente migram para outros lugares, próximos, como no caso do
Cariri, “Com o passar do tempo, vão se diferenciando. Em razão de viverem experiências
culturalmente diferentes, acabam por se verem uns aos outros, como gente estranha. Assim se
plasmam as tribos como microetnias”176.
O Cariri por ser uma área de passagem entre o litoral e o sertão, era também refúgio de
nações indígenas que estavam fugindo dos abusos dos colonizadores no litoral, dentre eles
aqueles que vinham fugindo do encontro com Pêro Coelho na Ibiapaba (1606), no dizer de
Carlos Studart Filho o interior era naturalmente o “refúgio preferido dos nativos que as
aperturas da concorrência vital tangiam das vizinhas capitanias”, além dos enfrentamentos
referidos a favor e contra os colonizadores, a exemplo da expulsão dos holandeses e a Guerra
dos Bárbaros.
Estima-se que a população de índios na extensa faixa de terras ocupada pelos Cariris
foi àquele tempo, início do século XVII, de mais de 150 mil: “75 tribos diferentes de tapuias a
maioria dos quais da nação Cariri... cada tribo em média quatro aldeias ou malocas”, dados
anotados dos cronistas Pe. Luis Figueira, Pe. Claudio Aquaviva e do próprio Martins Soares
Moreno. O fundador do Ceará que ainda jovem homem da bandeira de Pêro Coelho anotou
que o Ceará tinha “em 70 léguas de circuito, 22 nações de tapuias de diferentes línguas...
tivemos muita guerra com aqueles índios, que eram infinitos”. Referindo-se às lutas de
conquista da província do Jaguaribe, Siará e Mel Redondo. Pe. Luis Figueira faz a seu turno
revelações que aguçam nossa imaginação:

Do Rio Grande, que é a última povoação dos portugueses, ao Maranhão são


passantes trezentas léguas todas de tapuias selvagens que são tantos que não tem
conta, e andam em magote de 50, 80 e 100 casais correndo sempre os campos,
177
buscando caça de que se sustentam...

175
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 61.
176
RIBEIRO, Darcy. Falando dos Índios. Coleção Darcy no Bolso. Editora UNB: Brasília. 2010. P. 50.
177
STUDART FILHO, op., cit., p. 32-33.
73

Não é, pois de se admirar a quantidade de nações de índios Kariri (Quadro 5) em sua


diversidade pelos quais eram conhecidos ou ficaram registrados na memória e escritos dos
colonizadores. Os mitos, lendas e rituais também não passaram despercebidos dos
colonizadores e missionários.
Um aspecto pouco analisado está na qualidade de sujeito histórico que o índio se
colocou perante os colonizadores, na maioria das vezes não foi vítima: nos primeiros contatos,
nas relações de troca no início da colonização, nos apoios às guerras indígenas e a assunção
ao lados dos colonizadores europeus (portugueses, holandeses, franceses) nas suas guerras.
Agiram com consciência histórica. Outras foi alvejado na sua crença mítica da representação
pessoal que o branco ostentava e suas tecnologias no qual “o homem branco é muitas vezes,
no mito, um mutante indígena” e/ou a confiança excessiva, e portanto, logrado pelo
colonizador, foram “agentes de seu destino” 178.
Os elementos da luta de classe, ao contexto da análise marxista, em tese estão
presentes na síntese desses encontros de povos: o trabalhador (colonizado), o salário
(exploratório), a mais valia (propriedade) e a mão-de-obra mediante ordem e exploração.
Acumulação de capital e mercancia. Aos poucos o sujeito histórico índio foi perdendo espaço
para implantação de um novo sistema produtivo, econômico; uma vez que o social, cultural e
religioso já estava em processo de desconstrução desde a chegada dos colonizadores ao
território do Brasil. Esta análise é rica em conteúdo à medida que nos permite entender que a
sociedade indígena do século XXI não é mais aquela que encontraram os portugueses. Pontua
neste sentido, com acerto, Cunha “O que é hoje o Brasil indígena são fragmentos de um
tecido social cuja trama, muito mais complexa e abrangente, cobria provavelmente o território
como um todo.”179

2.2.1 Índios Kariri/Cariri e a Colonização

A ocupação das terras do Cariri começa na atual cidade de Missão Velha são a porta
de entrada dos colonizadores portugueses e seus serviçais índios ou negros, ou mesmo
mestiços, ao território do Cariri. Seus primeiros contatos e enfrentamentos com os nativos
Kariris se darão nas proximidades da Cachoeira, seguindo “ao arrepio das águas”. Doravante
cantada pelos poetas e artistas do lugar, que, hoje, se orgulham de sua origem indígena:

178
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
São Paulo: Editora Claroenigma, 2012. P. 24/25.
179
Ibid., p., 13.
74

“Missão Velha, Sei que tu és bela, Resolvi falar de ti, Tão pequena e bonita, Parece uma cana
fita, Na porta do Cariri”.180 Irineu Pinheiro181 defenderá que outro caminho simultâneo pode
ter sido utilizado pelos colonizadores para chegar ao Cariri, “através do chapadão do
Araripe”, seguindo aquilo que foi descrito por Thomaz Pompeu Sobrinho como estradas da
ribeira, ou seja, as “veredas dos ameríncolas, sempre abertas ao lado dos rios... só havia água
nos poços e nas pequenas cacimbas que os indígenas abriam com as próprias mãos, no leito
arenoso dos rios e ribeirões”.182 Na Figura 17, a seguir, o mapa do Ceará com destaque para
as principais cidades e o rio Jaguaribe um dos caminhos de ocupação do território pelos
colonizadores.
Figura 17 - Mapa Rodoviário do Ceará

Fonte: Bahia, 2017

Efetivamente, as condições climáticas, águas e vegetação naturais abundantes, foram


os responsáveis pela ocupação indígena do Cariri, mas fora do vale do Cariri as condições
climáticas são da semiaridez do Nordeste. Os mais antigos pré-históricos habitantes já são
datados de mais de 3 mil anos (BP). Os habitantes das migrações do período imediatamente
pré-colonial teriam vindo do litoral após lutas de enfrentamentos com Tipinambás e
Tremembés (Tupis). A fixação deles no vale do Cariri, na Chapada do Araripe se dá pelos
fatores climáticos supraditos.

180
Música Cana Fita, de autoria dos artistas Morais e Cicéu (de saudosa memória).
181
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela Imprensa
Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições URCA.
Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 23.
182
POMPEU SOBRINHO, Tomaz. A Grandeza Índia do Ceará. Coedição com a Secult. Org. Floriano
Martins. Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 15.
75

A data específica e registro definido da chegada dos indígenas não estão na literatura.
“Pouco se sabe sobre o seu modo de vida, costumes e crenças, pois não desenvolveram
nenhuma escrita e foram minimamente descritos ao longo da história.”183. No relato dos
colonizadores no “médio São Francisco” quando aqui chegaram puderam (através dos
cronistas), descrever a existência de algumas tribos em especial: Tapuia, Cariri e Tupinaé,
observa Jacionara Coelho184, que “se não foram bem identificados nos primeiros momentos da
colonização, mais difícil seria fazê-lo tempos depois, quando esses grupos já haviam sido
registrados com denominações tribais muitas vezes substituídas.”. Não podemos esquecer que
como a colonização se dá primeiro no litoral, ocupado por Tupis, o modo de designar os
povos do sertão já trazia consigo um estigma do “outro”, do opositor, que na linguagem tupi
se denominava por “tapuia”.
A chegada de colonizadores, entretanto, está datada entre 1660 a 1680 “povoado por
aventureiros bahianos partidos do Rio S. Francisco”185[sic].
“Uma tribu (sic) selvagem, os Cariris, vivendo da caça e de fructos (sic) silvestres,
desde uma época, que não é possível assignalar.”186 Cariris187 - que ocupa uma faixa de terras
bem mais ampla do que o Cariri cearense, Cariré, Kiriri e até Alarve188. Kiriri-Sabuja189 eram
denominações que se encontram em documentos denominando os índios da região do Cariri.
Ou ainda podendo ser identificados como “Ariús, Cariri, Cariús, Cariuanes, Caratius
(Crateús), Curemas, Isus e Inhamuns”190, ou membros de um mesmo tronco ou família
linguística, como os Cariú e Calabaça191. Capistrano de Abreu incluirá os Cariri, entre os oito
grupos/ramos indígenas do Brasil, sendo os demais: Tupi Guarani, Guaicuru, Nuaruaque,

183
LIMA, Flávia Fernanda. Et. All. Geopark Araripe: Histórias da Terra, do Meio Ambiente e da Cultura.
Crato: Editora URCA, 2012. P. 91.
184
SILVA, Jacionara Coelho. Arqueologia no Médio São Francisco: Indígenas, Vaqueiros e Missionários.
Tese de Doutorado em História. 2003. Universidade Federal de Pernambuco. Recife. 2003. P. 160.
185
BRÍGIDO. João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição reproduzida do Diário de Pernambuco
de 1861 – fac similar. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. P. 7. In verbis: “Sabe-se que um negro,
escravo da casa Torre, residente em uma fazenda de crear, na margem do S. Francisco, pertencente então a
aquella casa, em edade tenra, cahindo em poder dos Cariris, em uma das suas excursões, fora trazido para aqui,
onde os recursos de sua inteligência lhe ganharam a afeição d’esses selvagens, sobre quem tinha o ascendente
dos hábitos contrahidos no commercio dos brancos, e levava vantagem no conhecimento de algumas das artes
mais necessárias á vida. Foi este escravo, que ensinou aos portugueses o caminho do Cariri, e quem para aqui os
conduziu por entre as hordas ferozes, as selvas impenetráveis, e os inumeráveis pântanos e ribeiros.” [sic]
186
Ibidem. p. 4-5.
187
ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará: desde os tempos primitivos até
1850. Recife: Typrografia do Jornal do Recife. 1867. P. 15.
188
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória, n.4.
Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 11.
189
Ibid., p., 6.
190
FIGUEIREDO FILHO, op., cit.,p. 6.
191
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V III. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória, n.6.
Fac-símile da Edição de 1966. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. p. 106.
76

Gês192 ou Tapuia, Caraíba, Pano e Betoia.193 Por sua vez, Thomaz Pompeu Sobrinho194 supõe
que dada a afinidade da língua falada dos Kariri com os demais grupos linguísticos da
América do Sul, terem sido os Kariri resultante de uma miscigenação entre Jê e Tupi.
Quem foram e quem são os índios Kariri/Cariri? Não há fonte primária para responder
esta questão, os inscritos rupestres e o acervo lítico, talvez. As informações sobre diversidade
indígena no Ceará anterior aos colonizadores, como referido antes, ainda é insuficiente para
traçar um perfil claro dos povos do Cariri naquele período.
Somente a partir da colonização que os registros são realizados, distinguindo-se e
dividindo-se segundo a língua que praticavam, em cinco unidades195 1) os Tupi, 2)
Tremembé; 3) Cariri; 4) Tarairiú; 5) Jê/Gê, restando ainda aqueles grupos não identificados
com os grupos anteriores. Na descrição de José de Figueiredo Filho os Cariri integram o
grupo que falavam a língua Kariri, Kipéa/Quipea196, para outros a língua falada pelos Kariri já
seria um dialeto misturado das várias línguas, considerando alguns topônimos do lugar.
A narração dos cronistas portugueses que vieram nos primeiros anos da colonização
descrevem apenas dois tipos de índios, os Tupi (litoral) e os Tapuia (sertões). Os primeiros
contatos foram no litoral. O modo de tratar na linguagem tupi os “outros” índios, povos
indígenas, dentre eles inimigos dos tupis era tapuia (dentre os quais se inclui os Kariris), daí o
nome tapuia197 ter se popularizado como uma tipologia descritiva de um povo, sem o ser.
Senão vejamos a descrição de Frei Vicente de Salvador198:

O que de presente vemos é que todos são de cor castanha e sem barba, e só se
distinguem em serem uns mais bárbaros que outros (posto que todos o são assaz). Os
mais bárbaros se chama in genere Tapuias, dos quais há muitas castas de diversos
nomes, diversas línguas, e inimigos uns dos outros.

192
Alguns autores utilizam com “G” outros com “J”. Mantemos as referências conforme indica cada autor.
193
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V III. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória, n.6.
Fac-símile da Edição de 1966. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. p. 106.
194
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela Imprensa
Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições URCA.
Fortaleza: Edições UFC. 2010. P. 14.
195
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 67.
196
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória, n.4.
Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 7.
197
Não há consenso entre os estudiosos do século XIX sobre a divisão binária tupis e tapuias. Concorda-se,
contudo que a designação tapuia é destinada a identificação daqueles que falam língua diferente do tupi e destes
são desafetos. Igualmente ocorreu a generalização de tipos como Botocudos, em Minas Gerais. a exemplo de
SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1978. P. 37.
198
SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil (1500-1627). Editores Weiszflog Irmãos. 1918. Prefácio
Marcos Venicio Ribeiro. Fundação Darcy Ribeiro. Brasília:Editora da UNB, 2014. Edição Digital (PDF). P. 75.
77

199
O holandês Elias Herckman , apresentam algo novo que não vemos em literatura
comum, o nome dos lideres dos Kariri, da Paraíba. Não chegaram a ser considerados para os
Kariri do Cariri. Quadro 6, a seguir:

Quadro 6 - Descrição nominal dos


soberanos das nações Kariri no Século
XVII

Nação Rei/Soberano200
Carirys Kerioukeiou
Caririwasys Kurupoto
Cariryjouws201 Janduin
Tarairyou Caracará

Fonte: Thomaz Pompeu Sobrinho, 1965.

A classificação entre tupis e tapuias foi aos poucos cedendo lugar ao entendimento,
acertado, de que cada tribo tem com justiça um lugar na história descritiva dos povos. Os
tapuias, generalização de tudo quanto não era tupi, passam a mostrar seus nomes verdadeiros.
Os estudiosos (d’Orbigny, von Martius, Schervin, G. Rauma, Carlso von denSteinen, Paulo
Ehrenreich e os brasileiros Couto Magalhaes, Batista Caetano)202 que pautaram essa questão
estiveram no Brasil, conviveram com tribos desde a Bahia, Amazônia, São Paulo, Minas
Gerais e outros, menos no Ceará. Os Kariri, descritos inicialmente entre os Jé, Guck, Côco,
Nuaruaque ou Maipure, somente em 1904, após estudos conclusivos de Paulo Ehrenreich203
aparecem na descrição e taxonomia acadêmica como um dos grupos principais dos nativos
brasileiros: Cariri ou Quiriri. Doravante, os estudos vão se consolidando no sentido de
decantar os vários Kariri do Brasil.
Em geral os missionários descrevem as primeiras linhas sobre o Brasil, falam de um
perfil social204da liderança dos índios, sem fazer-lhes distinção entre tupi ou tapuia. No qual

199
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 35.
200
HERCKMAN, Elias. Os Costumes Tapuyas. Cronicas do Instituto de Utrech. 1639. Tradução de José Higino
para a Revista do Instituto de Archeologia e Geografia de Pernambuco. Recife. 1886. In POMPEU SOBRINHO,
Thomaz. Os Tapuias do Nordeste. Fortaleza: Revista do Instituto do Ceará, 1934. P. 15.
201
Ibid., p; 15. O autor holandês supõe de suas observações que os Cariryjous estariam divididos uma parte da
nação teria essa denominação e um Rei, a outra se chamaria Tarairyou e o Rei seria outro.
202
SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1978. P. 38-43.
203
Ibid., p., 40.
204
SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil (1500-1627). Editores Weiszflog Irmãos. 1918. Prefácio
Marcos Venicio Ribeiro. Fundação Darcy Ribeiro. Brasília:Editora da UNB, 2014. Edição Digital (PDF). P. 76.
78

descreve uma cultura em que o líder da tribo ou família não exerce poder hierárquico, mas
organiza os combates enquanto elemento forte do grupo.
Os Kariri não eram senhores absolutos das terras hoje compreendidas como Cariri.
Nas áreas em que foram identificados habitavam também tribos Gê, Tupi, Fulniê, Tarairiú,
Calabaça, Curianê, Quixereú, Icosinho, exatamente por falarem dialetos diferentes, se
considerarmos as nações e povos conforme grupos linguísticos diversos. Há autores que
preferem incluir esses povos como variação da mesma nação Kariri, dentre os quais incluem:
Tremembé, Pacajú, Icó, Cariri, Cariú, Jucá, Genipapo, Jandiú, Sucuru, Garanhun, Chocó,
Vouvê, Fulnniê, Acena, Romarí.205
A área em que habita estava dispersa entre os rios São Francisco – BA e Parnaíba – PI,
e do oeste do Pernambuco às quebradas orientais da Borborema206 na Paraíba207. Em geral em
áreas não muito extensas, com água abundante e ambiente com temperatura amena e
vegetação abundante. Os ancestrais silvícolas daqueles filhos das cidades do Cariri, como
Crato - antiga Missão do Miranda, “eram chamados por outras raças de Carirí, termo que
significa calado”208.
Observando a matriz da língua praticada pelos Kariris, o tapuias-kiriri, temos outra
suposição para o nome e o sentido etimológico para os nativos do Cariri. Sua denominação
não seria calado, mas teria relação com o nome do lugar Cariri, que em tupy significa “y
(água) + quí (aqui) + rirí (mana, flui) = água flui aqui. De yquirirí – na dicção própria das
mulheres Ikiriri. Na dicção própria dos homens y + ca + riri = Icariri”209 para se chegar com o
uso e o tempo às expressões comuns Kariri e Cariri. Enquanto Cariré significa peixe diferente:
Carí (peixe) + ré (diferente). Então não teriam sido os índios Kariri a dar nome à região, mas
o nome da região denominar os habitantes do lugar. Em geral os nomes compostos em tupi se
aplicava à terra e não às pessoas, mas não são raros, conclui Thomaz Pompeu Sobrinho, as
“tribos tomarem o nome da terra que habitavam”.

205
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 35.
206
Ibid., p., 58. O autor transcreve relatos do Jesuíta Fernão Cadim sobre a presença de Cariris no sertão da
Bahia, que “chamam Cariris, têm língua diferente”..
207
Na Paraíba há uma região também denominada Cariri, com características bem diferentes em termos
climáticos (caatinga) do Cariri do Ceará. O Cariri da Paraíba mais antigo do que o cearense, razão pela qual se
denominou incialmente Cariris Novos à região do Ceará.
208
PINHEIRO, Irineu. FIGUEIREDO FILHO, J. de. Cidade do Crato. Fac-símile da edição de 1955. Coleção
Nossa Cultura, n. 1, Série memória, n.3. Edições URCA. Fortaleza: Editora da UFC. 2010. P. 84. Somam-se a
estes autores: Batista Caetano e Theodoro Sampaio. Diverge apresentando outra hipótese: Thomaz Pompeu
Sobrinho, que aponta “água flui aqui (yquirirí), ou Oh! A água jorra (ycariri) em língua tupi”.
209
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. A Grandeza Índia do Ceará. Coedição com a Secult. Org. Floriano
Martins. Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 64-66.
79

Quanto ao modo de vida e cultura podemos dizer que os Kariri, “ocupavam-se da caça
e plantavam”210. Havia lugar para o trabalho em colaboração do homem e da mulher, e as
atividades de caça e outros afazeres eram ensinados de pai para filho211:

Os maridos na roça derrubam o mato, queimam-no e dão a terra limpa às mulheres, e


elas plantam, mondam a erva, colhem o fruto e o carregam e levam para casa em uns
cofos mui grandes feitos de palma... E os maridos levam um lenho aos ombros, e na
mão seu arco e flechas, ..., de que são grandes atiradores, porque logo ensinam aos
filhos de pequenos a tirar ao alvo, e poucas vezes atiram a um passarinho que não o
acertem, por pequeno que seja.
Também os ensinam a fazer balaios e outras coisas da mecânica, para as quais têm
grande habilidade, se eles a querem aprender; que, se não querem, não os
constrangem, nem os castigam por erros e crimes que cometam, por mais enormes
que sejam.
As mães ensinam as filhas a fiar algodão e fazer redes de fio e nastros para os
cabelos, dos quais se prezam muito, e os penteiam e untam de azeite de coco bravo,
para que se façam compridos, grossos, e negros.

Outros hábitos eram restritos às tribos, os Kariri/Cariri no dizer de Farias212:


a) Não praticavam a antropofagia, não usavam tacapes nas guerras e Pintavam-se com
urucu ou jenipapo, usando batoques nos lábios e orelhas;
b) Praticavam a poligamia, mas as mulheres exerciam uma espécie de matriarcado213;
c) Não eram altos e tinham cabeça curta, dando origem ao que conhecemos cabeça
chata do cearense214;
d) Praticavam a agricultura e faziam cerâmica, relativamente desenvolvida.215
e) Dormiam em redes feitas de algodão216.
f) Fumo. Utilizavam-se de cachimbos em cerâmica.217
Além da língua diferente das demais tribos indígenas e sendo identificado com tapuia,
depois sendo a própria designação como Kariri ou os outros, querendo significar a
210
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V III. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória, n.6.
Fac-símile da Edição de 1966. Edições URCA. Fortaleza:. Edições UFC, 2010. P. 106.
211
SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil (1500-1627). Editores Weiszflog Irmãos. 1918. Prefácio
Marcos Venicio Ribeiro. Fundação Darcy Ribeiro. Brasília:Editora da UNB, 2014. Edição Digital (PDF). P. 82-
83.
212
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 71.
213
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 63.
214
RODRIGUES, José Honório. Índice Anotado da Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1959. P. 11. Transcrevendo notas de Capistrano de Abreu: “é fácil encontrar o cabeça
chata, talvez proveniente dos Cariri.”
215
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri volume I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória,
n.4. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 7.
216
PINHEIRO, Irineu. O Cariri. Fac-símile da edição de 1950. Coleção Nossa Cultura, n. 1, Série memória,
n.1). Edições URCA. Fortaleza: UFC, 2010. P. 20.
217
LIMA, Flávia Fernanda. Et. All. Geopark Araripe: Histórias da Terra, do Meio Ambiente e da Cultura.
Crato: Editora da URCA, 2012. P. 150. “Também são encontrados cachimbos decorados, demonstrando que o
fumo já era praticado entre os indígenas da região.”
80

generalização das tribos não tupi, foram estigmatizados por alguns missionários e/ou
colonizadores como “tapuia manso” ou “tapuia brabo”, daí serem estes os protagonistas das
ações que resultaram na “Guerra dos Bárbaros”. Seus hábitos218 de guerra também são
diversos dos tupis:
a) respeito aos asilos nas caiçaras ou pessoas em suas residências219;
b) reconhecimento de marcos representados pela cruz.
Os utensílios domésticos, alguns ainda presentes na cultura do Nordeste teriam sido
legado da cultura indígenas, no Cariri, especificamente:
a) Pilão de socar;
b) A urupemba; abano; esteira de palhas de palmeira;
Na culinária:
c) O trato com a mandioca220 e o feijão221, o preparo da farinha (acompanhamento
extremamente popular em todo Ceará) e seus usos;
d) Uso do milho na alimentação222;
e) O uso e aproveitamento do Pequi, dentre outros223.
Na sua crença os Kariri/Cariri obedeciam aos “bisamos”, que seriam os pajés. Para os
missionários “feiticeiros”224
Depois dos enfrentamentos com os colonizadores, foram aldeados225 em Missão
Velha, Crato e depois de expulsos, em Parangaba (Arronches), Caucaia, onde se integrando a
outros índios formam os Tapebas.
A chegada dos colonizadores e suas boiadas, em períodos de maior estiagem,
deixaram o vale do Cariri sem a vegetação de florestas e, consequentemente, sem os olhos
d’água, os índios foram sendo expulsos também por esse fato.

218
SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1978. P. 23.
219
A mudança desse hábito cultural ancestral se dá pela atuação dos fazendeiros definindo aquilo que o autor
chama de “traição guerreira”. SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Editora Cátedra. Rio de Janeiro.
1978. P. 40.
220
Iibd., p., 49: Esse relato, aliás, é da época da chegada dos portugueses ao Brasil. Referido por Pe. Manuel da
Nóbrega em 1549.
221
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 62.
222
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri volume I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória,
n.4. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 8.
223
Ibid., p., 20.
224
SIQUEIRA, op., cit., p. 38.
225
“Aldeia é uma unidade social e religiosa”. ARRUTI, José Maurício P. A. A Produção da Alteridade: o toré
e as conversões missionárias e indígenas. VII Congresso Luso-Brasileiro de Ciências Sociais. A Questão Social
no Novo Milênio. Coimbra, 2004. p. 7. Disponível em:
<http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel47/JoseArruti.pdf>. Acesso em: 18 Jul.2017.
81

Os relatos de pesquisa de Limaverde descreve que no hoje vale “existiram florestas


com árvores de grande porte” no entorno do Sítio Olho D’água de Santa Barbara. “Mas a
colonização sul cearense” (Cariri), “descendo o Rio Jaguaribe com seus comboios de gado,
transformou a extensa floresta em pasto para a pecuária, expulsando os índios de suas terras e
transformando o lugar indígena em estrada das boiadas”226. Ou melhor, em fazendas para a
pecuária. Dados apresentados por Pinheiro227 confirmam que as sesmarias dadas para
Pecuária na Capitania do Ceará entre 1700 e 1780, ano da expulsão dos Cariri do Cariri,
foram 1284, enquanto para agricultura/pecuária foram 139. A atividade econômica escolhida
pela Capitania definia por exclusão da outra opção, em larga medida, a expropriação de terras
dos índios. Durante esse período a resistência dos índios à expansão da fronteira pastoril ou à
escravidão era punido severamente228 pela colônia.
De fato os relatos dos historiadores e colonizadores do Cariri não deixam dúvidas o
reconhecimento da origem indígena da ocupação do território. O tratamento dado a estes
povos não dá a esse reconhecimento nenhuma significação ética, uma vez que foram estes
povos ignorados como nação e sua história e cultura foram se perdendo ao longo do tempo em
um amplo e organizado processo de invisibilização dos povos Cariri. Os objetivos diretos
dessa ação era a apropriação das terras dos Cariri pelos colonizadores em um processo legal a
partir do fato de que não havendo mais “gentis”, toda terra poderia ser dada em sesmarias, por
serem devolutas.
Alguns registros coloniais que chegam á politica no início do processo de formação
das cidades do Cariri é a imagem dos índios nas bandeiras municipais, como a de Missão
Velha que ostenta uma “facie do índio, primeiros habitantes do município”229 como símbolos.

2.2.1.1 Os Kariri/Cariri e a mão-de-obra barata

A ocupação do território do Brasil pelos portugueses não teria ocorrido do litoral ao


sertão sem a ajuda dos nativos e sem a miscigenação gerada entre os europeus e os índios. As

226
SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1978 P.7.
227
PINHEIRO, F. José. Formação Social do Ceará (1680-1820). O Papel do Estado no Processo de
Subordinação da População Livre e Pobre. 2006. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História da UFPE. Recife. 2006. P. 9.
228
MAIA, Lígio de Oliveira. Índios a Serviço D’El Rei: Manutenção da Posse das Terras Indígenas durante o
Avanço da Empresa Pastoril na Capitania do Ceará (C.1680-1720). In PALITOT, Estêvão Martins (org). Na
Mata do Sabiá: Contribuições sobre a presença indígena no Caerá. Secult/Museu do Ceará. Fortaleza: Imopec,
2009. P. 68.
229
MAGALHÃES, Célia. Nosso Povo Nossa História: Missão Velha. Crato: Ed. Província, 1994. P. 165-166.
Transcrição da Lei Municipal nº 34 de 1967, Art. 1º.
82

atividades realizadas pelos índios com os europeus foram essenciais no início da jornada da
colonização e se diferenciavam em qualidade, diversidade e “péssimas remunerações” 230, com
destaque para o corte e transporte do pau-Brasil e atuação dos índios como intermediários
“diplomáticos” para enfrentar ou acalmar as tribos embrenhadas nas matas do Brasil, nas
caatingas do Nordeste e do Ceará. Dentre as atividades destacadas merece atenção esta que,
indiretamente, nos ajudam a consolidar o entendimento da ocupação do território do Cariri ter
se dado com ajuda de Medrado (um negro raptado da casa da Torre por índios Kariris, tendo
com eles vivido por um tempo). Ex vi comentário de Thomaz Pompeu Sobrinho acerca da
importância dessa amizade europeu/índio “A penetração pela hinterland não se fazia sem a
experiência231, os conselhos, as informações e a guarda dos índios amigos”.232
Durante o período da instalação dos aldeamentos e vilas Portugal emitiu ordens
expressas para impedir os índios de saírem das aldeias, e com isso submetê-los ao trabalho
forçado. No Cariri, particularmente em Crato (Missão do Miranda), não foi diferente. Os
índios tiveram que trabalhar por um pagamento de 4$800 (réis) anual para índios entre 15 até
60 anos. “Houve muitos abusos. Alguns índios foram reduzidos à escravidão pela avareza dos
locatários”233. Durante todo o período da colonização a mão-de-obra indígena fora utilizada
para o trabalho de ajuda aos “brancos” seja no trato com os índios indóceis ou em combate de
enfrentamento de outros estrangeiros holandeses e franceses. E até contra os próprios
portugueses, em algumas regiões do Ceará. Nas campanhas vitoriosas e nas derrotas dos
caririenses Pereira Filgueiras e Tristão Gonçalves não faltaram índios em suas milícias e
exércitos; nas sangrentas brigas entre famílias no Cariri também lá estiveram os índios em
defesa dos seus colonizadores. Os indígenas, entretanto, não se enquadravam nessa massiva
de ser trabalhador sob a lógica do capitalismo nascente. Não raro fugiam para a floresta para
seu habitat natural. Para os portugueses, sob a lógica de Marques de Pombal, “Civilizar era
submeter às leis e obrigar ao trabalho”234 os índios.
A descrição do modo de atuar destes é destacada pelo Lord Cochrane, a quem o
Imperador concedeu o encargo de vir ao Ceará conter a revolução de 1824, ao ter com os
índios e/ou seus subordinados nas batalhas observou que os mesmos combinavam em sua

230
POMPEU SOBRINHO, Tomaz. A Grandeza Índia do Ceará. Coedição com a Secult. Org. Floriano
Martins. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 23.
231
No trato com a seca, os índios que margeavam os rios sabiam fazer barragens naturais rudimentares para
guardar água e para caçar os animais que bebiam dessas águas.
232
POMPEU SOBRINHO, op., cit., p. 24.
233
MAGALHÃES, Célia. Nosso Povo Nossa História: Missão Velha. Crato: Ed. Província, 1994. P. 27.
234
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
São Paulo: Editora Claroenigma, 2012. P. 74.
83

estatura física “robustez corporal superior com atividade, energia, docilidade235 e força de
aturar que nunca falhava – formando, com efeito, os melhores padrões da raça, que vira na
América Latina.”236
O pastoreio veio a ser uma atividade realizada por alguns indígenas, vindo estes a
requerem até sesmarias dos colonizadores, pagar impostos etc. Está claro que o trabalho dos
nativos era por si diferente, na lógica do colonizador a mão-de-obra indígena era inferior, por
exemplo, a dos africanos angolanos, numa proporção de 3 para 1237.
A convivência com os colonizadores no Crato será de dominação e submissão dos
índios: “Ahi, os índios, homens e mulheres, trabalhavam por tarefa, debaixo da voz de um
feitor índio, e de um diretor branco.” Brígido (1861/2007: 26).238 Esta descrição da vida dos
índios nas vilas foi radicalmente piorada em razão dos enfrentamentos decorrente da Guerra
dos Bárbaros, entre indígenas e colonizadores, da qual, claro, foram perdedores os índios. O
aldeamento funcionou como ambiente de reclusão, como se estivessem cumprindo pena. Era
ainda o ambiente institucional para despatrimonializar os índios de suas terras. Segundo a
legislação a terra era para ser cultivada e nem sempre os índios assim o faziam e era mais um
dos motivos criados para que colonos reivindicassem à coroa a propriedade dessas terras nos
aldeamentos. Nos aldeamentos indígenas, sob o império dos diretórios dos índios, realizava-se
registros dos habitantes das aldeias, índios ou não, e a designação do contrato de enfiteuse
para os não índios, ou seja, de aforamento com pagamento anual do foro. Os índios em suas
terras – quando produtivas, ficariam com a posse e usufruto desta (em tese239), sem o
pagamento de foro240. Essa política de partilha e gestão da terra dos índios aldeados ou não,
permaneceu como modelo mesmo com o fim dos diretórios241. E mesmo depois da aprovação

235
Esta referência à docilidade não condiz com o espírito para o qual esses indígenas estavam enfrentando o
Lord Cochrane. Mas a escrita é dele e daqui saiu vencedor pode contar o que bem lhe aproveitou.
236
Relatório do inglês Lord Cochrane. Descrito por Eusébio de Souza. História Militar do Ceará, apud.
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri volume I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória, n.4.
Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 10.
237
PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará (1680-1820). Fortaleza: Fundação
Ana Lima, 2008, apud Farias. P. 78.
238
BRÍGICO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição reproduzida do Diário de Pernambuco,
de 1861. Typ. Da Gazera do Norte. 1888. Reedição Fac-símile. Fortaleza: Expressão Gráfic e Editora Ltda,
2007. P. 26.
239
“Os índios tiveram diversas dificuldades para terem seus direitos fundiários atendidos na província do Ceará...
de 1850 até meados da década de 1870.” VALLE, Carlos Guilherme Octaviano. Aldeamentos Indígenas no
Ceará no Século XX: Revendo Argumentos Históricos sobre Desaparecimento Étnico. In PALITOT, Estêvão
Martins (org). Na Mata do Sabiá: Contribuições sobre a presença indígena no Caerá. Secult/Museu do Ceará.
Fortaleza: Imopec, 2009. P. 135.
240
Ibidem. P. 136.
241
VALLE, Carlos Guilherme Octaviano. Aldeamentos Indígenas no Ceará no Século XX: Revendo
Argumentos Históricos sobre Desaparecimento Étnico. In PALITOT, Estêvão Martins (org). Na Mata do Sabiá:
Contribuições sobre a presença indígena no Caerá. Secult/Museu do Ceará. Fortaleza: Imopec, 2009. P. 110.
84

da lei de terras de 1850. Cuja denominação jurídica terras “próprias nacionais” decorrentes
das terras sem uso e sem dono242 dos aldeamentos. A dúvida de natureza jurídica era se a esta
terminologia se entenderia com o “devolutas”, claro que eram. Mas a questão de fundo era
definir-se juridicamente o reconhecimento da existência de índios ou seu desaparecimento
entre os nacionais.
Durante os aldeamentos os nativos eram submetidos a trabalhos compulsórios
requisitados e prestados aos fazendeiros ou autoridades coloniais ou como força militar, cujo
principal exemplo no Ceará o aldeamento da Ibiapaba.243
O processo de aldeamento e de vila já havia à estas alturas imposto aos índios
trabalhos em atividades como pecuária, agricultura, obras públicas, serviços domésticos, além
da tecelagem que servia dentre outras coisas paras as mulheres cobrirem suas “vergonhas” 244.
O uso da mão-de-obra indígena pelos colonizadores era, ainda, um dos elementos de
desconstrução da cultura, do meio social e das atividades produtivas dos nativos, cuja
consequência imediata será a implantação das atividades econômicas do colonizador, do
capitalismo mercantil. Igualmente, a extinção formal dos índios, e a criação de uma sociedade
brasileira mestiça, liberava espaço (para que o gado pudesse pastar livremente245). Como vem
assevera Estêvão Martins, “e mão-de-obra para a ação modernizante promovida pelos grupos
econômicos mais privilegiados”246.

2.2.1.2 Guerra dos Bárbaros

A historiografia colonial registra a “Guerra dos Bárbaros” como um conjunto de


enfrentamentos entre os índios rebeldes do sertão (Tapuia/Bárbaros), que obtiveram em
alguns momentos dos mais de 50 anos de luta entre a segunda metade do século XVII e a
primeira do século XVIII no Nordeste do Brasil. Incluindo-se movimentos e enfrentamentos
com denominações diversas, na Bahia, no Rio Grande do Norte, Pernambuco, Ceará, Paraiba
etc. O motivo está na tônica da colonização do sertão: expansão da fronteira
pastorial/agricultura pelo colonizador, submissão dos índios à cultura da fé católica e o

242
Dói pensar que um povo, vários povos, foram destituídos de sua terra, cultura e tradições e tem que enfrentar
esse debate sobre que é dono do que, quando tudo fora deles, os primeiros!
243
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 85.
244
Ibidem. P. 89.
245
SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1978. P. 39.
246
PALITOT, Estêvão Martins (org). Na Mata do Sabiá: Contribuições sobre a presença indígena no Caerá.
Secult/Museu do Ceará. Fortaleza: Imopec, 2009. P. 22.
85

preconceito pelo estilo de vida e cultura dos índios, designados como “vadios, ociosos”247
pelos colonizadores. Razão pela qual a guerra dos Bárbaros será uma só na lógica régia 248. As
forças mobilizadas para aplacar as revoltas foram inacreditáveis, para a época: entre 1651 e
1678 (Recôncavo Baiano), foram mobilizadas 14 expedições (cada uma delas com centenas
de soldados, índios, mamelucos, milícias etc); uma das expedições (1676) coordenada pelo
Cap. Francisco Dias D’Ávila (Casa da Torre) contou com frecheiros-aldeados da tribo Cariri.
No Açu (Rio Grande do Norte) e vizinhança, entre 1687 a 1720 foram mobilizadas 27
expedições. Uma das quais para enfrentar os Cariri (Icó, Cariri, Cariú, Cratiú) no Rio
Jaguaribe em 1708. Já próximo do desfecho da “guerra do Açu” em 1720, outra expedição
liderada pelo Cap. Bernardo Coelho de Andrade do Ceará seria enviada para conter os
Tapuias249.
No Ceará a rebelião de 1713, que perdurou até 1715, iniciára com a invasão e
pilhagem em Aquiraz, com mortos das pessoas do lugar (200) e expulsão dos sobreviventos
em Fortaleza. O contra-ataque será eficiente, liderado pelo Coronel de Icó, João Barros Brago
e seus capangas, vencido enfrentamento em Choró após um dia intenso de guerra, mortos
muitos dos “bárbaros” e presos outros tantos (400). Os revoltosos não desistiram e pequenos
eventos continuou a ocorrer, com Tapuias de Banabuiú novamente em Aquiraz, em Acaraú
com lideranças que se juntaram a simpatizantes Tupinambá, Tremembé. O desfecho se deu na
Ibiapaba em 1715, quando assaltaram o Aldeamento dos Tupinambás, furtando suas armas...
as forças do Estado, apoiados pelos índios aldeados tupis, submeterá após intensos combates
com mortes dos tapuias, a submissão destes e alocação em aldeamentos dos remanescentes250.
A revolta porém, já tinha tomado proporções maiores do que a Corôa poderia esperar.
Este e outros episódios tiveram o protagonismo dos Cariri, um em particular teria se
destacado: Mandu Ladino, um índio com experiências na vida da colônia, condutor de boiadas
que por conhecer o trato dos colonos contra eles se rebelou ao lado de índios de todo o Ceará,
rio Grande do Norte, Piauí, Paraíba e Pernambuco. Durou aproximadamente 50 anos e foi o
principal enfrentamento entre nativos e colonizadores registrado no Nordeste. Em 1715
registra-se um dos maiores enfrentamentos em que liderados por Manu Ladino índios
bárbaros (Tapuia) atacam sedes das fazendas de colonizadores entre o Ceará até o
247
SOARES, Mª Simone. MOURA FILHA, Mª Berthilde de Barros. O Ordenamento dos Rebeldes: A
Formação das Primeiras Vilas no Sertão de Piranhas e Piancó da capitania da Parahyba na Segunda Metade do
Século XVIII. In. Anais do XVI Enanpur. Belo Horizonte. 2015. P. 4.
248
SILVA, kalina Vanderlei Paiva. Nas Solidões Vastas e Assustadoras. Os Pobres do Açúcar e a Conquista do
Sertão de Pernambuco nos Séculos XVII e XVIII. 2003. Tese de Doutorado em História. UFPE. Recife. 2003. P.
255.
249
Ibid., Pp., 258/263/264.
250
STUDART FILHO, Carlos. A Rebelião de 1713. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1963. p. 10, 14, 15.
86

Maranhão251. Com adesão dos índios da serra da Borborema e do Rio do Peixe em


Pernambuco, no ano 1717. Estendendo-se a revolta do Açu ao Maranhão. Mandu Ladino teria
sido morto na Parnaíba (PI), em confronto. Sua atuação viraria uma espécie de lenda entre os
índios e os sertanejos. O enfrentamento foi vencido ao final pelos colonizadores que tiveram
um alto custo para os enfrentamentos.
O Ceará, o Cariri, foi um das últimas regiões a serem colonizada, e, por conseguinte os
índios fugidos dos mal tratos da colonização nas demais capitanias do Nordeste brasileiro iam
se refugiar no Ceará, e o Cariri pela sua localização e biodiversidade era um refúgio peculiar e
interessante. A “guerra” era na verdade uma revolta dos índios à expulsão dos nativos que os
colonizadores estavam fazendo nas terras do Ceará, para implantar a pecuária. Como tal essa
cultura não dependia de excessiva mão-de-obra, mas precisa de muito pasto e os índios
estavam no meio do caminho desse projeto. Os colonizadores passaram a expulsar os índios
de suas terras e como tal eles se defenderam. Unidos formaram, índios de várias nações e
lufares para enfrentar os colonizadores. Resistiram por quase 50 anos, indo das últimas
décadas do século XVII à segunda década do século XVIII. “Por pouco, os nativos não
destruíram os fundamentos da colonização portuguesa”252. O primeiro grande enfrentamento
da guerra se deu no Rio Grande do Norte em 1683, em que os índios mataram, saquearam e
incendiavam tudo o que aos colonos pertenciam253. No Ceará os colonos foram autorizados a
se defender com armas, pelo Governador da Província.
O impacto da atuação desses índios e os enfrentamentos no Ceará fez com que fosse
necessário trazes os especialistas assassinos e caçadores de índios de São Paulo (São Vicente)
para conduzir o enfrentamento pelos colonos, também a eles se juntaram colonos com mais
experiência em combate com suas tropas de índios-sertanejos armados – João de Barros Braga
das margens do Jaguaribe (CE). Do Sul vieram Domingos Jorge Velha (famoso pela sua
atuação com Palmares) e Manuel Alves Morais Navarro. A batalha final254 teria se dado nas
imediações de Fortaleza, em Aquiraz, quando os índios foram derrotados em combate. Ponto
fim à Guerra dos Bárbaros.

251
SILVA, Jacionara Coelho. Arqueologia no Médio São Francisco. Indígenas, Vaqueiros e Missionários.
2003. Tese de Doutorado em História. Universidade Federal de Pernambuco. Recife. 2003. P. 154.
252
Ibid., p., 154.
253
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 74.
254
Ibid., p. 75.
87

2.2.2 Expulsão dos Cariri do Cariri (Despatrimonialização)

Desde 1708, através do Capitão Bernardo Coelho, que os portugueses intentavam


expulsar os Cariri de suas terras, considerando como justificativa que os índios “se mostravam
pouco dispostos a aceitar a dominação europeia”255. O verdadeiro motivo seria a necessidade
de expandir o território português para o aumento da pecuária. A dita expedição teve o Cap.
Bernardo Coelho com seus homens armadas para destruir as tribos dos Icó, Cariri, Cariú,
Caratiú.
Por volta de 1767 iniciava-se o processo de “extinção” oficial dos índios Cariris. O
processo missionário dos portugueses e, posteriormente de aldeamento submetia os nativos à
tutela de seus amos, recebiam comida, vestuário, dinheiro, “curavam-lhes as moléstias,
ensinavam-lhe a doutrina cristã e faziam-lhes confessarem cinco vezes ao ano”. Alguns índios
foram reduzidos à escravidão, com a criação da villa do Crato. O poder dos amos será
diminuído quando estes índios são espalhados por outras regiões do Ceará, pelo litoral
principalmente, esse processo de expulsão foi executado pelo ouvidor José da Costa Dias e
Barros, desde 1780256.
Durante muitos anos ainda haveria registros na história do Cariri da presença de
índios: Jorge Gardner257 conheceu Humon e Xocó (80 indíviduos), estes em Jardim-CE
(1838-1839).
Relato confirmado pelo Historiador Irineu Pinheiro (2010: 9)258:

Por decisão do governador de Pernambuco, José Cesar de Meneses, foram os índios


do Crato despojados em 1779, injustamente, das terras que lhes doaram, no ano de
1743, o capitão-mór Domingos Álvares de Matos e sua mulher dons Maria Ferreira
da Silva. [...] expulsou os infelizes caboclos do Crato para Parangaba, primeira
aldeia de índios na capitania do Ceará. ‘alaegando por escárneo fazer-lhes grande
bem.’ [sic].

A descrição dos autores supracitados dão conta de uma espoliação infinda das terras
dos Cariri. Os nativos tiveram sua religião alçada de seu peito por uma cultura cristã-católica

255
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. p. 150.
256
PINHEIRO, Irineu. FIGUEIREDO FILHO, J. de. Cidade do Crato. Fac-símile da edição de 1955. Coleção
Nossa Cultura, n. 1, Série memória, n.3). Edições URCA. Fortaleza: Editora daUFC. 2010. P. 30.
257
STUDART FILHO, op., cit., 157.
258
PINHEIRO, Irineu. O Cariri. Fac-símile da edição de 1950. Coleção Nossa Cultura, n. 1, Série memória,
n.1). Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 09.
88

e mais adiante convidada a se retirarem, à força, pela cultura eurocêntrica colonizadora. Que
encontra no relato de Irineu Pinheiro (2010: 14) 259 assentimento:

[...] ate certo limite, se pode justificar o modo de agir naquela época. Ou
dominariam (os colonos) nosso aborígene e o obrigariam a trabalhar á força, ou
fracassariam todos os seus esforços na nova terra.

É para os aldeamentos do litoral260 que os Cariris seguirão, após expulsos do seu


paraíso, o Cariri. Partiram de Missão Velha em 1780.261 Havia índios aldeados em Missão
Velha, Crato e Jardim todos foram expulsos e dados por extinta sua descendência.
Outra questão, entretanto, de maior relevância no projeto de expulsão dos índios: a
apropriação da terra indígena pelos colonizadores e a ilegalidade dessa apropriação. Sob o
ponto de vista do direito temos um ato de doação de terras aos índios “Cariús”262 sob a
responsabilidade do missionário Frei Carlos Maria de Ferrara. Doação realizado pelo Capitão-
mor Domingos Álvares de Matos e sua mulher Maria Ferreira da Silva, filha do Capitão
Antônio Mendes Lobato, datado de 3.12.1743, escritura lavrada pelo tabelião público judicial
Roque Correia Marreiros, Vila do Icó e seus Termos. Na escritura263 lê-se:

Doação... ao Missionário do Gentio Cariú e mais agregados de um pedaço de terra


nas cabeceiras do Miranda dos Cariris-novos... Reverendo Padre Frei Carlos Maria
de Ferrara, como procurador e administrador do Gentio CAriú e mais agregados..

... Reverendo Padre Frei Carlos Maria de Ferrara, como procurador e Missionário do
dito Gentio foi dito que ele aceitava a dita escritura na forma que nela se declara, e
se obrigava nas pessoas dos ditos Gentios em tempo algum não inovar coisa alguma,
nem neles haver arrependimento por serem muito contentes e amigável composição.

A posse se deu no dia seguinte à doação.


A expulsão dos Cariri e outras nações indígenas que se juntaram na missão do
Miranda foi um ato ilegal. Que como todo ano flagrante e ilegal não gera efeitos. O ato
normativo do Governador de Pernambuco José Cesar de Menezes e executado pelo ouvidor
do Ceará José Dias da Costa Barros não foi contestado, cumpriu-se incontinente. O referido

259
PINHEIRO, Irineu. O Cariri. Fac-símile da edição de 1950. Coleção Nossa Cultura, n. 1, Série memória,
n.1). Fortaleza: Edições UFC, 2010. p. 14.
260
BRÍGIDO. João. Apontamentos para a História do Cariri. Reimpressão fac-similar da ed. 1861. Fortaleza: Ed.
Expressão Gráfica, 2007. p. 27.
261
Ibid., p., 27.
262
“Frei Carlos Maria de Ferrara que recebeu terras doadas aos índios do Crato e delas tomou posse em favor
dos mesmos”. PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela
Imprensa Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições
URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 27.
263
MACÊDO, Heitor Feitosa. Sertões do Nordeste I. Inhamuns e Cariris Novos. Crato: A província Edições,
2015. P. 264-265.
89

ato é tratado pela historiografia como “injusta” e “espoliação”. Tal ato seria nulo de pleno
direito se observados os princípios constitucionais e processuais que rezam a espécie hoje.
Os capuchinhos de Pernambuco, Olinda, já não estavam na condução da Missão do
Miranda quando da expulsão dos índios.
Não havendo mais índios nativos entendia os colonizadores que não haveria mais
nenhuma responsabilidade para atuação do Estado Português/Colonial com essas pessoas,
igualmente as terras poderiam ser designadas como devolutas e entregue como sesmarias para
os colonos portugueses ou mamelucos do lugar. Esta prática seria amplamente empregada
quando em 1850 a Monarquia criou a Lei de Terras, assim determinando: terra de índio é dos
índios, terras desocupadas são devolutas, “constituindo a propriedade um título originário”264.
Posteriormente á lei de Terras os Governadores das Províncias, dentre as quais o
265
Ceará, apressou-se em informar da inexistência de “índios aldeados e bravios locais” no
Ceará. Em 1863.
O destino dos índios aldeados expulsos foi se dirigir a aldeamentos no litoral de
Fortaleza, como em Caucaia e na periferia Arronches (Parangaba). “Muitos dos indígenas
roubados de suas terras... preferiram embrenhar-se pela serra do Araripe, ao deus dará”.266.
No Cariri sua extinção foi dada e anunciada. Ainda em 1947, quando da publicação de
artigo na Revista do Instituto do Ceará, Thomaz Pompeu Sobrinho267 assevera que os Cariri,
índios nordestinos, estão completamente extintos e quando de seu aldeamento pelos
eclesiásticos apressaram o processo de aculturamento dos remanescentes.
Em 1955268 ainda havia presença dos Kariris em Alagoas (173 no Município de Porto
Real – AL) e sertões da Bahia (975 em Mirandela – Ribeira do Pombal).

2.3 O ESTADO E AS MISSÕES CATÓLICAS NO CARIRI: A TERRA COMO


PROPRIEDADE

O esforço para recompor o mosaico da várias nações de nativos do Ceará não é tarefa
fácil, já o dissemos. Identificar as missões, vilas e aldeamentos indígenas no Ceará e no Cariri
durante a colonização é possível dado os registros e informações trazidas pelos colonizadores

264
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 79.
265
Ibid., p. 80.
266
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri volume I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória,
n.4. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 39.
267
POMPEU SOBRINHO, Tomaz. A Grandeza Índia do Ceará. Coedição com a Secult. Org. Floriano
Martins. Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 191/192.
268
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Editora Instituto do Ceará. Fortaleza. 1965. p. 71.
90

e clérigos que habitaram o território neste período. Juntando as peças desse quebra-cabeça
construímos um quadro das referências e informações sobre o lugar, as nações, língua e
características principais desses nativos Cariri. Sabemos que a ocupação das terras pelos
Kariri se estendia desde a margem esquerda do Rio São Francisco até a Chapada do Araripe.
No Nordeste, não no Cariri, os índios começaram a ser evangelizados por Frades Capuchinhos
italianos e franceses, além do relato do jesuíta Martin de Nantes sobre os Kariri na Bahia,
Pernambuco e na Paraíba. No Cariri a evangelização dos Kariri terá vários protagonistas, mas
o que se destacou especialmente foi Frei Carlos Maria de Ferrara, capuchinho italiano na
segunda metade do século XVII.
Os clérigos sempre acompanharam as incursões marítimas dos portugueses na
conquista de novos territórios, inclusive a benção papal269. No caso da invasão do Brasil pelos
portugueses os padres jesuítas, sobretudo, tiveram um papel além do conforto espiritual dos
invasores, dominar e render pela fé os nativos. As técnicas utilizadas se deram de duas formas
basicamente: inserção entre os nativos, participação em eventos coletivos e disseminação da
cultura cristã-católica-européia com pregações, danças, procissões, cantos etc, de modo
itinerante. O segundo modo de abordagem, resultante do insucesso da primeira estratégia
eram as missões e aldeamentos270.
No período inicial da colonização do Ceará, depois de 1600, outra questão que merece
destaque, o território do Ceará era conhecido como hostil pela pobreza e agressividade dos
índios e mestiços de cá, o que dificultava a vinda e permanência de eclesiásticos para o Ceará.
Os que aqui chegavam, ficava pouco (um ou dois anos) e buscavam Pernambuco ou Bahia –
centros mais desenvolvidos. Outro fator de indisposição, decorrente desta primeira, era a má
reputação dos portugueses, desde as entradas de Pêro Coelho no território do Ceará, ainda no
princípio do século XVII. Ademais vem da tradição confessa dos missionários portugueses a
estratégia adotada para entrar os sertões e enganar271 aos gentios.

Com estes enganos e com algumas dádivas de roupas e ferramentas que davam aos
principais e resgates que lhes davam pelos que tinham presos em cordas para os
comerem, abalavam aldeias inteiras e em chegando à vista do mar, apartavam os
filhos dos pais, os irmãos dos irmãos e ainda às vezes a mulher do marido, levando

269
Nenhum favor, somente negócio! O sistema de padroado regia a orquestra, “em que o rei de Portugal, por
delegação papal, exercia várias das atribuições da hierarquia religiosa e arcava também com as suas despesas,
conferia um poder excepcional à Coroa em matéria religiosa. Por outro lado, o padroado se justificava pela
obrigação imposta à Coroa de evangelizar suas colônias... Se o padroado criava obrigações para a Coroa, ele
também lhe sujeitava o clero.” CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil. História, Direitos e Cidadania.
Coleção Agenda Brasileira. São Paulo: Editora Claroenigma, 2012. P. 20.
270
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 83-84.
271
SALVADOR, Frei Vicente de, História do Brasil (1500-1627). Editores Weiszflog Irmãos. 1918. Prefácio de
Marcos Venicio Ribeiro. Fundação Darcy Ribeiro. Brasília: Editora da UNB, 2014. Edição Digital (PDF). P.
198.
91

uns o capitão mamaluco, outros os soldados, outros os armadores, outros os que


impetraram a licença, outros quem lha concedeu, e todos se serviam deles em suas
fazendas e alguns os vendiam. [sic]

Nas terras do interior do Nordeste, no avanço para o sertão, defrontavam-se os


colonizadores e jesuítas com os índios, em que sobressaíam os Cariris, acuados entre o São
Francisco e a Ibiapaba. A resistência dos silvícolas foi terrível, por vários fatores, dentre eles
a expansão da fronteira pastoril pelos fazendeiros – que naturalmente já tratava de diminuir as
terras antes ocupadas pelos índios. Talvez a mais persistente que os povoadores encontraram
em todo o país. Sendo atacados no rio São Francisco, no Piranhas, no Jaguaribe, no Parnaíba,
por especialistas em matar e caçar os índios, de São Paulo, da Bahia, de Pernambuco, da
Paraíba, do Ceará. Os Cariris tiveram baixas significativas: foram uns mortos, outros
reduzidos a aldeamentos, outros agregados a fazendas, fundindo-se e confundindo-se com os
colonizadores alienígenas.
A pacificação dos Cariri, mais ou menos completa nos primeiros decênios do século
XVIII, deixou livre uma grande área e por ela alastraram-se numerosas fazendas de gado. Dos
povoadores alguns se corresponderam principalmente com a Bahia ou Minas Gerais, outros
demandaram do Acaraú, do Jaguaribe, do Piancó, através da Borborema e o litoral
pernambucano.272
A colonização do território do Cariri mudou o perfil dos habitantes da região
introduzindo a cultura do europeu. Um traço marcante desse período foi a atuação de missões
religiosas, através das quais alguns dos importantes municípios da região foi fundada. As
missões eram também chamadas de aldeamentos, estas por sua vez tinham o objetivo de
submeter através da fé cristã os nativos, isso incluía “afastá-los de seus hábitos ‘primitivos’ e
dos pajés/bruxos/feiticeiros” consequentemente essa espécie de confinamento submetia os
nativos, dentre outros abusos, à vigilância dos colonizadores. Ao virar cristão, conclui
Farias273, os nativos assumiam “os valores da sociedade europeia, cada vez mais marcada pela
lógica do capitalismo em sua fase mercantilista”. José de Figueiredo Filho274 apud Catunda,
observou que os Cariri quando de sua expulsão não tinham qualquer noção de propriedade,
como bem jurídico.

272
Estudo publicado no “Jornal do Commercio” de 12, 29 de agosto e 10 de setembro de 1899 e reproduzido,
refundido e ampliado na “América Brasileira”, números 32, 33 e 34 de agosto, setembro e outubro de 1924. P.
180. Capistrano de Abreu. Descobrimento do Brasil E Povoamento Leitura Básica. Antonio Paim (Organizador)
Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro.
273
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 85.
274
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri volume I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória,
n.4. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 11.
92

A cultura do colonizador deixou marcas de expulsão e dizimação da cultura indígena,


desde então a região do Cariri só tem conhecimento de sua ancestralidade por meio de peças
arqueológicas, em geral, artesanato em barro e peças em madeira e pedra, encontradas em
escavações esparsas, e em exposição no Museu do Homem Cariri, no município de Nova
Olinda.
A dominação do povo nativo do novo continente, dentre eles os índios e depois os
mamelucos e negros, se deu, como dito, com resistência. O ambiente ameno, com água e
vegetação densa tornava o meio muito disputado, inclusive para outras tribos, não somente
para o colonizador. Daí as constantes disputas pelo território dos Kariri, incluindo os seus
irmãos de outras etnias Kariri275. As missões religiosas, no Cariri cearense não foram
diferentes. Estas, por sua vez, tiveram papel fundamental na organização de povoamentos e
vilas, que hoje constituem importantes cidades brasileiras e do Ceará, destacadamente Missão
Velha e Crato (Missão do Miranda276).
Os índios Cariri tiveram na missão do Miranda (Crato), o maior arraial do Cariri,
cercados por missionários. Embora inicialmente se constituísse o aldeamento277 uma capela,
uma cabana de palha no fundo desta, servindo de aposento ao missionário capuchinho,
dispunha ainda o aldeamento:

Algumas escolas havia em torno da lagoa, e mais ou menos no lugar, onde foi a
antiga ribeira, havia uma longa casa igualmente coberta de palha, com aviamentos
de fazer farinha, aí os índios, homens e mulheres, trabalhavam por tarefa, debaixo da
voz de um feitor, e de um diretor branco. Ora fiavam para se vestirem, ora
manipulavam mandioca.

As aldeias do Cariri tiveram uma organização administrativa praticamente igual, que


sendo coordenadas pelos missionários capuchinhos contava com um “padre, que presidia às
cousas espirituais, o diretor, a quem cabiam as de ordem material (ajustes de salários etc.),
dois juízes, um branco e outro índio”278.
A organização missionária não tardou em incomodar os portugueses que trataram de
afastar os incômodos amigos europeus através de medidas, que ao mesmo tempo definia

275
ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará, desde os tempos primitivos até
1850. Recife: Typrografia do Jornal do Recife, 1867: “Por isso era o vale do Crato incessantemente disputado
pelas hordas vizinhas contra os bellicozos Cariris, que com tanto esforço e denodo defendiam o seu paraizo
terreal” [sic].
276
BRÍGIDO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição reproduzida do Diário de Pernambuco
de 1861 – fac similar. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. P. 24.
277
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri volume III. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória,
n.6. Fac-símile da Edição de 1966. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC,. 2010. P. 107.
278
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela Imprensa
Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições URCA.
Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 27.
93

territórios e espaços administrativos, neutralizava a ação dos missionários. Neste contexto é


que em 1758, informa Valle279 “uma ordem real instituiu o Diretório dos índios no Brasil, o
que interrompeu com a ação missionária, privilegiando a secularização dos indígenas... as
missões foram transformadas em vilas de índios.” Essa atitude ao que tudo indica era o
caminho para delimitar terrar indígenas em espaços administrativos desconhecidos até então
do povo índio. Os missionários foram expulsos da sua função de administrador e inicia-se a
“era Pombalino” (Marques de Pombal) de 1750 a 1777.
Porque as missões do Cariri foram conduzidas por franciscanos e não jesuítas? Não há
registro preciso. Especificamente na missão dos Cariris Novos (Missão Velha/Missão Nova) e
da Missão do Miranda (Crato) dentre os motivos prováveis está280: 1) o grande desgaste que
as incursões portuguesas comandadas por Pero Coelho (1603) tiveram no enfrentamento de
franceses no Maranhão, quando passaram pelo vale do Jaguaribe, com prisões e maus-tratos
de índios que deixaram os nativos com grande indisposição; não conseguiu instituir a
colonização do Ceará e ainda deixou os portugueses malvistos pelos índios. O que dificultou
as missões de jesuítas no Ceará, dos padres Francisco Pinto e Luis Filgueiras (jesuítas), o
primeiro deles assassinado por índios em Ubajara e o segundo quando partia do Brasil morreu
afogado e depois “devorado” por índios na ilha de Marajó281. 2) os capuchinhos, em 1743
quando a ocupação oficial de terras no Cariri, já vinham do Pernambuco, em Olinda – onde
fundaram o Hospício de Olinda282, e o Cariri era parte do território de Pernambuco.
Naquela incursão de Pero Coêlho o Jovem Martim Soares Moreno tem os contatos
iniciais com o povo índio do Ceará. Mais tarde seria o verdadeiro colonizador do Ceará, em
1611/1612283.
Os aldeamentos serão convertidos em Vilas. No Cariri nós temos neste período dois
tipos de Vilas284: dos Índios (Crato em 1764) e dos Brancos (Santo Antônio do Jardim em
1814). Ao tempo do aldeamento missionário na Missão do Miranda já se contabilizavam

279
VALLE. Carlos Guilherme. Aldeamentos Indígenas no Ceará do Século Xix: revendo argumentos históricos
sobre desaparecimento étnico. In PALITOT. Estevão Martins. Na Mata do Sabiá. Contribuições sobre a
presença indígena no Ceará. Fortaleza: SECULT. MUSEU DO CEARÁ. 2009.
280
“Outra ordem religiosa presente no Ceará colonial foi a dos franciscanos, que passaram a entrar casualmente
no Brasil a partir da segunda metade do século XVI... se encarregaram, no século XVIII, da Missão do Miranda
(Crato), onde foram aldeados os índios kariris.” FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza:
Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 91.
281
FIGUEIREDO FILHO, J. de. História do Cariri I. Fac-símile da edição de 1964. Coleção Nossa Cultura,
n.1. Série Memória. N. 4. Coedição Secult/Edições Urca. Fortaleza: Editora da UFC, 2010. P. 16.
282
Ibid., p., 18.
283
FIGUEIREDO FILHO., op., cit., p. 16.
284
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura, 2015. P. 119.
94

poucos índios no Cariri, em Crato os índios da região foram trazidos para compor a aldeia
Cariri, no relato de Roseane Limaverde índios Icó, Quixelô, Cariú, Caratiú, Curuí e Icoá. 285
A Vila Real do Crato teria sido a que mais prosperou na Capitania, sendo vila de
Índios. Enquanto Vila, Crato recebeu índios da missão de Jucás e os da aldeia de Quixelô286.
Mais tarde o Crato se transformaria na primeira Comarca do Interior do Ceará abrangendo
uma extensão do Sul do Ceará até Quixeramobim.
No século XVIII, precisamente em 1759, informa Valle apud Porto Alegre (2009:
287
109) , há registro das primeiras vilas de índios criadas no Ceará.
A vida nestas vilas obedecia ao regime e ordens expressas da corte de Portugal: desde
1764, nenhum índio poderia sair de sua aldeia sem uma licença288. Em 1777, Crato e Arneirós
configuravam também freguesias indígenas. Posteriormente o Rei de Portugal emite Carta
Régia de 12 de maio de 1798, à Capitania do Pará e a do Espírito Santo, instituindo um
regime de “civilização dos índios” que prevê: ordenar e firmar os índios em aldeamentos,
estimular o livre comércio entre os índios e brancos, formar corpos efetivos (milícias),
promover casamentos entre gentios e brancos, inserir os índios como homens em sociedade.
Esta Carta Régia incluía os eclesiásticos a serem remunerados e inseridos como benfeitores
desta causa. Era o desfecho para a aculturação indígena no Brasil.

2.4 CARIRI, OS KARIRI E O CAPITAL

O Brasil é do povo “Índio”. Tudo que havia nesta terra pertencia há um conjunto de
nações de povos nativos. Índios é a denominação dada pelos europeus para designar aqueles
que localizados na “errônea” rota para as Índias, realizada por Espanhóis e posteriormente,
Portugueses, em meados do Século XVI, que buscavam um caminho marítimo alternativo
àquele realizado com destino à Índia e que tinha pela frente o revoltoso mar que circundava o
extremo sul do continente africano. Essa versão literária esculpida e descrita em manuais de

285
LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva. A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio
Cultural da Chapada do Araripe. 2015. 442 pp.Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra. Coimbra. 2015. P. 96.
286
FIGUEIREDO FILHO, op., cit., p.,16.
287
FIGUEIREDO FILHO, op., cit., p.,16.
288
BRÍGIDO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição reproduzida do Diário de Pernambuco de
1861 – fac similar. Expressão Gráfica e Editora Ltda. Fortaleza. 2007. p. 26.
95

ensino fundamental e médio no Brasil encontra a crítica de Enrique Dussel289 (2008: 90), que
trata o episódio como “invasão”:

... el “descubrimiento” como “invención” de la Europa Occidental acontece en el


movimento hegeliano Orinte-Occidente (Asia, médio Oriente, Europa, Océano
Atlántico hacia América) y como reconocimiento y control de un continente situado
en el Atlántico entre Europa y el Asia. [...] Pero lo que no se quiere ver es que en el
movimento Occidente-Oriente (Medio Oriente, Asia, Océano Pacífico hacia
América), que es el de nuestros indígenas, “1492” deviene un acontecer mítico,
metafórico, el de la “Parusía” de dioses desconocidos (primeira figura, Gestalt), que
descubiertos después como humanos se transforman em bestiales “invasores”
(segunda figura, y con ella se suplanta el mito sacrificial azteca, por ejemplo, por el
mito sacrificial de la Modernidad). Desde el “mundo” indígena se comprenderá que
se há consumado el “fin del mundo” (terceira figura).

A dominação portuguesa no Brasil colonial foi explorador e extenso a partir de 1500,


as ordenações do reino, constituía o regime jurídico vigente. Quanto à propriedade de terras o
primeiro ordenamento jurídico foi o “regime de sesmarias”, vigorante até 1822.290
O regime de sesmarias chegou com as capitanias hereditárias, entregues a pessoas da
pequena nobreza portuguesa, entre burocratas e comerciantes, a partir de 1530. Na capitania
do Pernambuco – que se estendia até os domínios do território sulcearense, atualmente o
Cariri, o donatário era o militar Duarte Coelho, que se notabilizaria na História do Brasil pelo
sucesso desenvolvido na capitania de Pernambuco. Os donatários não eram donos da
propriedade, eram possuidores com poderes especiais: como o de arrecadar tributos, instalar
engenhos de açúcar e moinhos de água, atuar como juízes, fundar vilas, doar sesmarias, alistar
colonos para fins militares e formar milícias sob seu comando.291
A propriedade para os índios era somente a terra, mãe dadivosa que na aquisição
colonial se transforma em bem, em propriedade para o mercado. Esta análise fazemos também
em Marx292 através da acumulação primitiva do capital. Semelhantemente, na análise marxista
a terra estava voltada para duas espécies diferentes de propriedade privada: 1) voltada para o
trabalho do produtor e; 2) voltada para a exploração do trabalho alheio. Esta última
compreende a face do modo de produção capitalista.

289
DUSSEL, Enrique. 1492 El Encubrimiento del Outro. Hacía el origen del “Mito de la modernidade”.
Biblioteca Indígena. Colección pensamento crítico. La Paz – Bolívia. 2008.
290
VALLE. Carlos Guilherme. Aldeamentos Indígenas no Ceará do Século Xix: revendo argumentos históricos
sobre desaparecimento étnico. In PALITOT. Estevão Martins. Na Mata do Sabiá. Contribuições sobre a
presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult. Museu do Ceará, 2009. P. 108.
291
FAUSTO, Bóris. História do Brasil. 4ª. Ed. São Paulo: Edusp, 1996. P. 44.
292
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro primeiro. São Paulo: Abril Cultural. 1984.
96

Na análise de Polanyi293 homem e natureza são instituições que não se separam, estão
“entrelaçados”. De igual forma o trabalho é parte da vida humana e a terra (natureza) e
trabalho não são, tradicionalmente, separados.
O intento que almejou com sucesso o capitalismo, no contexto da colonização foi
transformar a natureza (terra-propriedade) e mão-de-obra humana em mercadoria para atender
ao mercado em expansão. E o Direito foi o suporte formal-técnico indispensável para esse
fim, com a lógica contratual. “A lei comum desempenhou um papel positivo no advento do
mercado de trabalho... o trabalho como mercadoria foi apresentado não por economistas, mas
por advogados.” Conclui Polanyi.294
O pré-capitalismo agrário, descrito por Wood295, por sua vez, denota que o capitalismo
não nasceu naturalmente como evolução das práticas de livre mercado, mas teve início na
Inglaterra e na política de cercamento, em razão dos elementos fundantes da expropriação de
terras e exploração do trabalho camponês. Por sua vez, Marx, pontua a violência com que esse
modo de acumulação ocorreu.
O padrão de desenvolvimento do capitalismo não se deu de modo igual em todas as
partes da Europa. Na península Ibérica (Portugal e Espanha), a expansão marítima com a
conquista da América e extermínio de grande parte da população indígena desse território
demonstrou outros aspectos de agressividade, violência e desrespeito à cultura e direito desses
povos, associadas a pratica de acumulação primitiva do capital empreendido e desenvolvido
nos séculos XVI, com consequências em longo prazo nas sociedades latino-americanas e nos
remanescentes dos povos originais.
Na América a ideia de raça, destaca Quijano296, foi “um modo de outorgar
legitimidade às relações de dominação imposta pela conquista”. O povo indígena com seu
modo particular de organização e Direito, foi exterminado e tiveram sua cultura e modos de
viver, negados e reprimidos até bem pouco tempo.
A década de 40 do século XX marcou na América o ressurgimento dos índios no
cenário político e social da América Latina, para o Brasil, os principais avanços de
reconhecimento dos direitos dos índios só vieram com a Constituição de 1988, que tem um
capítulo dedicado ao tema. As normas vigentes que instituíram uma politica nacional ainda

293
POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier.
2000. p. 218.
294
Ibid.,p. 218.
295
WOOD, Ellen Meiksins. As Origens Agrárias do Capitalismo. Revista Crítica Marxista, n° 10. São Paulo:
Boitempo. 2000.
296
QUIJANO, Aníbal. La Colonialidad del Poder. In: LANDER, Edigard (Org.) La Colonialidad del saber:
eurocentrismo y ciências sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CICCUS. 2011. P. 124.
97

carecem de complementação e orçamento próprio para que os direitos ali insertos sejam
alcançados, por enquanto a questão territorial da demarcação tem sido o principal foco do
governo federal.
Na Colômbia, Venezuela, Bolívia, Equador e Brasil, temos significativos avanços de
uma postura constitucional voltada para o reconhecimento dessa matriz populacional original
e de uma participação social no processo constituinte que pauta uma nova ordem no Direito
Constitucional Internacional.
No Brasil a emergência de princípios constitucionais como “função social da
propriedade”, denuncia a seu turno a necessidade de pautar um novo padrão de
desenvolvimento para a sociedade, voltada para a defesa e proteção do meio ambiente e das
populações, a dizer que a propriedade não cumpre sua função somente com a produtividade
que pode oferecer, não resultando da posse e uso, como outrora se registrou em Portugal. No
Brasil pós 1500, a propriedade sempre esteve associada ao modo de produção capitalista,
como elemento de apropriação privada. Essa dinâmica da função social imposta pelo
legislador constituinte de 1988 deve ser traduzida como necessária “submissão da propriedade
privada ao interesse público e social”, aponta Marés297. Em outras palavras, a terra “tem uma
função social a cumprir” para além daquela função que lhe emprestar os seres humanos, para
a própria manutenção da vida no planeta. É, portanto, um “dever do direito, e quem não
cumpre seu dever, perde seu direito”298.
É claro que o Direito tem um papel historicamente construído em defesa do status quo,
ou seja, da ordem dominante, do sistema capitalista, portanto. Através dele se constroem
textos de lei e não se lhes aplicam ou executam, é o caso de parte da legislação brasileira de
defesa dos índios e da função social da propriedade.
O Estado liberal, capitalista, não logrou cumprir com as promessas da modernidade,
do bem estar, com oportunidades para todos a partir do “pleno emprego” e não o fez por
absoluta impossibilidade de conciliar essa superestrutura de acumulação perniciosa de capital
numa conjuntura de população crescente e de recursos ambientais escassos, de um mercado
que produz necessidades nas pessoas através dos meios de comunicação para fomentar o
consumo, no estímulo à divisão de classes, de famílias, de unidades de consumo, gerando
outras consequências, não menos graves que é o adoecimento das pessoas e sua suposta
indiferença para o cenário politico.

297
SOUSA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Sérgio Antonio Fabris Editor. Porto
Alegre. 2003. p. 102.
298
Ibid., p., 117
98

O direito através dos poderes constituídos tem o papel de interpretar a função social da
terra “em garantir os direitos dos trabalhadores, do meio ambiente e da fraternidade”. O
capitalismo no seu estágio atual demonstra estar em crise, após a consumação da natureza
como propriedade para o mercado, busca se metamorfosear em alternativas que transformem
em produtos a conservação da natureza, como a criar novos produtos. Sua eficiência está
sendo colocada em questão.
O Estado e sua organização normativa estão distantes de reconhecer o caráter coletivo
dos direitos das populações e os direitos a elas outorgadas pelas constituições, temática
comum aos países da América Latina. Os cenários das constituições e dos Estados nacionais
não conseguiram dar vazão à cultura e modo de viver das comunidades originárias, o que nos
impele a concluir pela recolocação nos Estados nacionais de uma constituição multicultural e
de um “direito plural”, que contemple efetivamente o “direito diferente” 299.
Não se trata, entretanto, de garantir acesso à justiça tradicional, direito privado, de
matriz econômica capitalista sob o manto da propriedade privada, tampouco através de criar
instâncias judiciais próprias para o processo relativo ao meio ambiente e populações
tradicionais, ou ainda no reconhecimento dos direitos. Os direitos dos povos tradicionais, os
índios, em especial, são compostos de bens e interesses que têm diferenciações e seu
destinatário não se restringe em sua maioria, particularmente ao uso da terra e sua cultura,
como individual, mas coletivo ou comunal. Trata-se de superar o modelo atual de sistema
normativo para incorporar elementos e estratégias capazes e flexíveis para compreender as
diferenciações nos bens postos em conflito e a apropriação desses bens por entes coletivos.
No dizer de Leff300, contrapor a propriedade privada pela propriedade coletiva ou comunal.
Vivemos uma crise de valores em que o capitalismo após reduzir o meio ambiente e o
capital humano da mão-de-obra em mercadoria, não consegue contem os danos irreversíveis
às sociedades humanos e à natureza. No que pese os “direitos coletivos já existirem dentro do
Direito, continuam invisíveis”301, precisamos avançar em compreensão e novas perspectivas
para incorporar os índios à dinâmica da sociedade e do Direito no século XXI.

299
SOUSA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba:
Juruá, 1998. p. 67.
300
LEFF, Enrique. Os direitos ambientais do ser coletivo. In: LEFF, Enrique. Saber ambiental:
sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 369.
301
SOUSA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba:
Juruá, 1998. P. 183.
99

3 DIREITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS INDIGENISTAS NO BRASIL NO


CONTEXTO DA AMÉRICA LATINA

A América Latina e suas instituições302 são a expressão do processo de colonização


que a Europa Ibérica legou: de exploração, submissão, anulação da cultura indígena303,
mudança da matriz econômica, destruição de seus Deuses e religião, expropriação de suas
terras e violação de direitos.
Para os indígenas da América Latina, o atual momento jurídico é de desvelar e
reafirmar identidades. No Brasil contemporâneo se percebe movimentos de mudança de
paradigma para a defesa de direitos ou da luta pela natureza e pelos povos indígenas e tribais
que se intensificam na década de 80 do século XX, que resultará em conquistas como a
aprovação em 1988 da Constituição Federal do Brasil. Essas mudanças tiveram seu início
antes, ainda sob o impulso do Congresso Indigenista Interamericano, realizado em 1940304.

302
Para a teoria das instituições de Douglas North, as instituições determinam as regras do jogo “social-histórico,
politico e econômico”. Para o autor, instituições são idealizações ou restrições humanas que resultam em moldar
as interações humanas. São regramentos sociais de natureza formal-escrita ou informal como as
convenções/costumes. NORTH, Douglas. Institutions, Institutional Change and Economic Performance.
New York: Cambridge, 1990. P. 3.
303
No México a cultura Maya e Nahuatl, a cultura Mexica são exemplos destacados de alta cultura dos povos
americanos de raiz. A cultura Maya e Nahuatl, por exemplo, foram culturas com história, escritura e transmissão
oral. Esta cultura foi descrita e registrada pelos espanhóis colonizadores, a exemplo de Don Antonio de Herrera,
cronista de Felipe II: “Em Yucatán, i en Honduras, havia unos Libros de Hojas, enquadernado, en que teniam
los Indios la distribucion de sus tempos, i conocimento de las Plantas, i Animales, i otras cosas naturales.”
LEÓN-PORTILLA. Visión de Los Vencidos: Relaciones Indígenas de La Conquista. Nueva Edición Corregida
y Aumentada. Universidad Nacional Autónoma de México. Ciudad Universitária. México: Programa Editoral
Coordenación de Humanidades. 2013. P. 12-13.
304
O I Congresso Indigenista Interamericano, ocorrido no dia 19 de Abril de 1940 na cidade de Patzcuaro, no
México, ingressou na agenda mundial ao instituir esta data como dia da celebração dos povos indígenas latino-
americanos e pautar uma agenda latino-americana de atuação que envolvia: a) criação de instituições nacionais
para cuidar da questão indígena; b) combater práticas raciais nacionais e internacionais; c) promover a cultura
dos povos e sua memória, arte e conhecimento tradicional. O envolvimento dos povos indígenas se deu de modo
parcial, sem representações significativas dos povos do Haiti, Canadá e Paraguai. Participaram 55 delegações
oficiais, mas 71 delegados independentes e 47 representantes de grupos indígenas de vários países com objetivo
de debater assuntos relacionados às sociedades indígenas de cada país. Dentre os temas relevantes que foram
protagonizados, as consequências do evento foram também expressivas: a) a instituição de Institutos Nacionais,
a exemplo da Colômbia, Equador e Bolívia, em 1943; o Brasil já tinha o SPI desde 1910. Foram criados depois
outros institutos em todos os países da América Latina; b) o reconhecimento da Antropologia como mediadora
das questões científicas a cargo de mudar o pensamento hierárquico estabelecido pelas correntes teóricas do
evolucionismo científico – que nos colocava em posição inferior aos países do Sul. Essa perspectiva
antropológica cresceu no México e no Brasil, em busca de mudar em nível teórico a “perspectiva do relativismo
cultural”, sem fixar hierarquias; e c) insere a questão indígena como de interesse público e urgente. FARIAS,
Caroline. A Convenção de 1940. Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de
Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3. Disponível em:
<http://anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/Caroline%20Faria%20Gomes.pdf.> Acesso em: 07
Abr 2017. P. 5-7.
100

Esse momento politico mudará as políticas públicas nacionais indigenistas na América Latina,
ou pelo menos atribuindo aos Estados a responsabilidade por essas políticas.
Dentre os principais temas debatidos no referido congresso um deles resultou na
Convenção sobre a criação do Instituto Indigenista Interamericano, órgão internacional de
apoio às politicas nacionais e de integração da agenda interamericana de promoção da cultura
dos povos e da memória, arte e conhecimento tradicional ameríndia. O Brasil fez adesão à
Convenção em 1953 (Decreto Legislativo nº 55). Nem todos os países americanos ratificaram
a convenção. No Quadro 7, a seguir, podemos ver os Países que são signatários da convenção
sobre o Instituto Indigenista Interamericano.

Quadro 7 - Países que são signatários da convenção sobre o Instituto Indigenista


Interamericano

PAÍSES RATIFICAÇÃO/
ASSINATURA DEPÓSITO INFORM.*
SIGNATÁRIOS ADESÃO
Argentina - 10/09/47 01/16/48 AD -
Bolivia 12/18/40 02/09/45 04/28/45 RA -
Brasil - 08/19/53 11/24/53 AD -
Chile - 11/07/61 01/03/68 AD -
Colombia - 02/16/44 04/10/44 AD -
Costa Rica 11/29/40 08/17/43 11/19/44 RA -
Cuba 11/29/40 - - -
Ecuador 11/29/40 10/08/41 12/13/41 RA -
El Salvador 11/29/40 03/18/41 07/30/41 RA -
Estados Unidos 11/29/40 06/06/41 08/01/41 RA -
Guatemala - 10/29/45 08/01/47 AD -
Honduras 11/29/40 02/08/41 07/29/41 RA -
México 11/29/40 04/22/41 05/02/41 RA -
Nicaragua - 04/18/41 03/10/42 AD -
Panamá - 04/30/43 07/27/43 AD -
Paraguay - 06/17/41 06/17/41 AD -
Perú 11/01/40 02/06/43 11/19/43 RA -
República
- 06/12/44 08/10/44 AD Si
Dominicana
Venezuela - 08/25/48 10/04/48 AD -
*DECLARACIONES/RESERVAS/DENUNCIAS/RETIROS : Republica Dominicana:
Denuncia 08/12/53

Fonte: Adaptado de DDI305. 2017.

305
DEPARTAMENTO DE DIREITO INTERNACIONAL - DDI. Países que Ratificaram a convenção sobre o
Instituto Indigenista Interamericano. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/spanish/firmas/b-26.html.>
Acesso em 07 Abr 2017.
101

As políticas públicas caminham a passos lentos na América Latina e no mundo inteiro,


quando o assunto é direitos humanos e aquisição de direitos pela maioria das populações.
Senão vejamos; em setembro de 2015 a Organização das Nações Unidas - ONU lançou as
metas da Agenda 2030 e em 20 de julho de 2016 divulgou um relatório de acompanhamento
dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável - ODS. Segundo o relatório 13% da
população mundial ainda vive em extrema pobreza, muito embora tenha havido uma
diminuição entre 2000 e 2015306, 800 milhões de pessoas passam fome e 2,4 bilhões não tem
acesso a saneamento básico.
Não deixar ninguém para trás!, é um dos princípios da Agenda 2030. Mas quando
falamos de indígenas vemos que a ONU ainda não os incorporou entre os ODS como uma das
questões centrais. Apenas indiretamente se insere a questão indígena nos objetivos a serem
buscados pelos países associados. Ex vi objetivo 8 – trabalho decente para todos307; objetivo
10 – reduzir a desigualdade dos países e entre eles. Este objetivo tem como meta até 2030,
“empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente
da idade, sexo, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra”308;
objetivo 16 – promover sociedades pacíficas e inclusivas para o Desenvolvimento
Sustentável. Proporcionar o acesso à justiça para todos e Construir instituições eficazes,
responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
Ao tratar das populações esparsas e vulneráveis o relatório inclui os indígenas, ou seja,
estamos, portanto, ainda em realizar os objetivos finais do Congresso Indigenista
Interamericano, já decorridos 77 anos de sua realização. A ONU destaca que faltam dados
sobre essas populações e que “os dados constituem um tremendo desafio para todos os países,
exigindo uma geração de informações coordenadas e esforço para construção de estatísticas
envolvendo atores do mundo todo”309.
A ligação entre os povos dos Estados latino-americanos é marcante em sua história de
colonização e a atuação dos Estados em incorporar os íncolas à “civilização” ou “integração”

306
A proporção de crianças sofrendo de nanismo com menos de 5 anos caiu de 33% em 2000 para 24% em 2014.
Mas a ONU aponta dados e pontos críticos a serem combatidos: 5,9 milhões de crianças com menos de 5 anos
morreram em 2015 , a maior parte por causas evitáveis, e 216 mulheres morreram no parto a cada 100 mil
nascimentos. Em 2013, 59 milhões de crianças em idade escolar estavam fora da escola e 26% das mulheres com
idade entre 20 e 24 anos se casaram antes de completar 18 anos. Dados do Relatório. ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS – ONU. BRASIL. ONU divulga 1º relatório de acompanhamento dos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-divulga-1o-relatorio-de-
acompanhamento-dos-objetivos-do-desenvolvimento-sustentavel/. Acesso em: 11 Abr 2017.
307
Grifo nosso.
308
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. BRASIL. Plataforma Agenda 2030. Disponível em:
<http://www.agenda2030.com.br/meta.php?ods=10>. Acesso em: 11 Abr 2017
309
Idem. ONU divulga 1º relatório de acompanhamento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Disponível em: <http://www.agenda2030.com.br/meta.php?ods=10>. Acesso em: 11 Abr 2017.
102

à sociedade uma prática comum; atuação que não se pode aceitar na contemporaneidade. Essa
máxima prevaleceu durante os séculos XVI a XXI de modo tão forte que as teorias jurídicas e
sociais de criação dos Estados Nacionais na América nela beberam. A partir desse
entendimento assimilacionista que supõe uma ideia de nação como o “ponto máximo” do
processo “civilizatório”; projetava-se que após reunir economicamente e socialmente os
povos, as particularidades (identidades) dos grupos internos seriam anexadas e finalmente
dissolvidas na ideia central e única de Estado, “adotando todos uma mesma forma cultural”
310
. Quando isso acontecesse, teríamos então, um Estado que também seria uma nação. A
nação como uma evolução natural, “como um projeto das elites europeias ou europeizadas,
voltado para suas populações internas, as populações nativas ou transplantadas”311, observa
Arruti. Essas teorias levaram o mundo a conclusões equivocadas e genocidas.
Pesquisadores da Antropologia, Sociologia e do Direito tem cada vez mais se colocado
a serviço de reforçar uma nova base de compreensão social, politica e jurídica para os povos
indígenas e comunidades tradicionais; também este envolvimento da academia é fruto de
pressões sociais internas de professores e estudantes, convenhamos. Em resumo, setores
específicos dessas ciências buscam na contemporaneidade expor o mito da invisibilização,
que tinha como objetivo destituir os índios de seus direitos enquanto povo: culturas,
identidades e patrimônio. É, contudo, através das politicas públicas que o Estado afirma seu
lugar neste novo contexto e o Direito tem uma função destacada, em tempos de Judicialização
da democracia e da política, no Brasil e na América Latina. Durante o Fórum Político de Alto
Nível sobre Desenvolvimento Sustentável, realizado pela ONU em 2016 no contexto da
Agenda 2030, em um evento paralelo sobre “direitos e contribuições dos povos indígenas, a
Secretária-executiva da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL),
Alícia Bárcena, destacou que “os indígenas vivem o auge de conflitos socioambientais que
podem desrespeitar seus direitos territoriais”312 e apontou que 235 disputas entre indígenas e
setores empresarias extrativistas da mineração ocorreu na América Latina entre 2009 e 2013,
em territórios indígenas.
A força dos movimentos sociais é grande, mas ainda carente de subsídios na literatura
jurídica que imprimam aos povos indígenas o exercício pleno de suas identidades no século
310
ARRUTI. José Maurício. Mobilizações étnicas na América Latina. Revista Tempo e Presença. Chamas da
liberdade. Multietnicismo. Nº 342. Julho/Agosto de 2005. Disponível em:
https://www.academia.edu/5285140/Mobiliza%C3%A7%C3%B5es_%C3%A9tnicas_na_Am%C3%A9rica_Lati
na_2005_?campaign=upload_email. Acesso em: 12 Nov 2016. p. 07/08.
311
Ibid., p., 08.
312
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. BRASIL. CEPAL critica ‘invisibilidade estatística’
dos povos indígenas na América Latina. Disponível em: https://nacoesunidas.org/cepal-critica-invisibilidade-
estatistica-dos-povos-indigenas-na-america-latina/. Acesso em: 11 Abr 2017.
103

XXI, razão pela qual nesta secção analisaremos alguns dos principais avanços normativos que
resultaram em políticas públicas indigenistas no Brasil. Igualmente trazemos algumas
inovações normativas inseridas em âmbito internacional pela Organização Internacional do
Trabalho – OIT, como a Convenção 169 e a Convenção de Combate ao Trabalho Injusto para
os indígenas; igualmente abordaremos o exemplo internacional latino-americano do Mercado
Comum do Sul – MERCOSUL, do qual o Brasil é integrante, consequentemente, a
implantação tardia de instrumentos legais internacionais para a defesa dos direitos humanos e
da proteção dos indígenas na agenda regional.
Nesta seção tratamos, a seguir, de contextualizar os povos indígenas da América
Latina e o embuste da conquista das Américas pelos colonizadores. Não é possível
entendermos a identidade dos indígenas latino-americanos sem passar por uma análise sobre o
traumatizante processo de colonização a que foram submetidos, assim compreendemos.

3.1 A AMÉRICA LATINA E OS POVOS INDÍGENAS, CONTEXTO

Porque América? O nome descende de Américo Vespúcio italiano que navegou para o
Império de Castela (Espanha) e Reino de Portugal no período de 1497 e 1503. Sua identidade
como descobridor do novo continente está na confirmação em carta de 1503 dirigida a
Lorenzo de Médice, de que chegara a uma quarta porção de terra, diversa dos velhos
continentes da terra “com habitantes muito primitivos e nus”313. Cristóvão Colombo,
navegador espanhol, em 1492, nas Antilhas que hoje é o Caribe, mais especificamente na Ilha
de São Domingos, hoje dividida entre dois países: República Dominicana e o Haiti314
inaugurando um novo tempo histórico denominado pelos europeus de “modernidade”315. Na
ilustração Figura 18, Colombo em contatos com os Taínos, gentílico dos indígenas que ali
313
O nome América será divulgado pela primeira vez em “Cosmographiae Introductio” de Matthias Ringmann y
Martin Waldseemüller (1507), em homenagem a Américo Vespúcio. DUSSEL, Enrique. 1492 El
Encubrimiento del Outro: Hacía el origen del “Mito de la modernidade”. La Paz – Bolívia: Biblioteca
Indígena. Colección pensamento crítico, 2008. Pdf. P. 32/33. Tradução livre do autor.
314
Quando da chegada de Cristóvão Colombo este instalou a primeira colônia da América La navidad, a ilha
entretanto passou a ser conhecida na historiografia como a Espanhola. Era composta por cinco reinos: Magua,
Darien, Maguana, Xaragua e Higuey. Com Reis importantes e Rainhas importantes e dispostos a servir à
Espanha. Todos os reinos foram trucidados e traídos pelos espanhóis, ou Cristãos como diz Las Casas em
guerras injustas e cruéis. A descrição apresentada pelo autor é inacreditável e descrita por ele como “diabólicos”
os massacres a que foram submetidos os indígenas desta ilha. Após tal destruição seguiram os espanhóis para as
ilhas de San Juan (Porto Rico) e Jamaica (colonizada por ingleses no na segunda metate do século XVII), igual
desfecho tiveram. LAS CASAS, Fray Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las Índias. 3ª
Edición. Prólogo: Olga Camps. Fontamara: México. D.F., 2014. Pp. 37-42.
315
A modernidade é um conceito europeu que se propaga na Europa como limite temporal da descoberta desse
novo mundo que é a América. Sob o ponto de vista colonizador iniciam-se igualmente os comparativos entre os
seres civilizados-desenvolvidos e os inferiores que ao serem descobertos e comparados com os europeus foram
encobertos em sua alteridade e processo próprios de desenvolvimento cultural, social e humano.
104

viviam. Nesta ocasião Colombo insiste em ler o requerimento-ordem para tomar posse316 nas
novas terras em presença de oficiais de registro de cartório, em nome do Rei e da Rainha da
Espanha. A plateia de índios nada entendeu.
Em 1500 aporta na costa brasileira a esquadra de Pedro Álvares Cabral, Português. Em
conjunto espanhóis e portugueses inauguraram uma sequencia de exploração e destruição
humana jamais vista no mundo. Esta destruição era menos pelo afã exclusivo de matar os
indígenas e mais pela imposição de um sistema de produção e submissão cultural317. Durante
todo o processo sofreu resistência dos índios. A língua espanhola e portuguesa – natural dos
países que dividiram318 o novo mundo, influenciaram a língua dos povos da América do Sul –
notadamente; acrescida do francês. Essas línguas, por sua vez, tiveram origem derivada do
latim, e esta das línguas românicas, entre 350 a.C. e 150 d.C..

Figura 18 - Chegada de Colombo na Espanhola e


primeiros contatos com os Índios.

Fonte: Theodor de Bry, 1583.

Ocupando uma área de 21.069.501 km², o equivalente a cerca de 3,9% da superfície


da Terra a América Latina tem sua população estimada em mais de 594,67 milhões de
pessoas, dados de 2013-2017319. Sua extensão inclui a América do Sul e América Central,
exceto a Guiana, o Suriname, e a nação centro-americana de Belize, que são países de línguas
saxãs. A América Latina engloba, ainda, alguns países da América Central
Insular como Cuba, Haiti e República Dominicana e da América do Norte, o México. Em
resumo envolve os seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa

316
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone
Moi. Martins Fontes: São Paulo, 1992. PDF. p. 18.
317
Ibid., p. 07.
318
O tratado de Tordesilhas, de 1494, dividia as terras do novo mundo à Oeste para Espanha e Leste para
Portugal. O tratado foi selado em Tordesilhas sob as alces do Papa Alexandre VI.
319
Banco Mundial/ONU/Institutos Nacionais de Estatística no período variável entre 2013 e 2017.
105

Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá,
Paraguai, Peru, Republica Dominicana, Uruguai e Venezuela, 20 países como vemos na
Figura 19320, a seguir:

Figura 19 - Mapa do Globo Terrestre com América


Latina em destaque.

Fonte: Wikimedia, 2008.

Uma imensidão de terra o novo continente! Seus primeiros habitantes seriam asiáticos
Australóides do Paleolítico, entre 20 e 18 mil anos321 a.C., vindos do Norte pelo estreito de
Bering322, conforme descrito na ilustração da Figura 20, ou vindos pelo Mar323. A ocupação se
dá, contudo, em várias correntes de imigração vindos dos velhos continentes. Dentre os
poucos consensos envolvendo o tema observamos que não havia povo autóctone nas
Américas. A origem e a data definitiva da vinda dos primeiros habitantes ainda suscita
debates acadêmicos acalorados. No Nordeste do Brasil, no Piauí Niéd Guidon324 e no Cariri –
CE Rosiane Limarverde325, têm demonstrado com seus estudos que o homem americano

320
WIKIMEDIA. Mapa da América Latina. Por Heraldry - Own work,Este desenho vetorial foi criado com
Inkscape., CC BY-SA 3.0. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=7185231.>
Acesso em: 26 Jul.2017.
321
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Pré-História Cearense. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará. 1955. P. 118.
322
A faixa de terra chamada Beríngia teria assim aflorado (50 m abaixo do nível atual) em vários momentos
desse período de glaciação e permitido a passagem a pé da Ásia para a América entre 35 e 12 mil anos atrás.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira. São
Paulo: Editora Claroenigma, 2012. P. 9.
323
“Se é verdade que a Austrália foi alcançada há uns 50 mil anos por homens que, vindos da Ásia, atravessaram
uns 60 km de mar, nada impediria que outros viessem para a América por navegação costeira”. Meltzer apud
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
São Paulo: Editora Claroenigma, 2012. p. 10.
324
Ibid., p. 10.
325
LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva. A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio
Cultural da Chapada do Araripe. Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra. Coimbra. 2015. P. 341.
106

chegou ao Cariri em, aproximadamente, 3 mil anos (BP). Nichols326 defende, por sua vez, que
a presença do homem na América teria sido iniciada entre 30 mil e 35 mil anos atrás. Leon-
Portilla327 ao concordar com a ocupação das terras americanas entre 30 mil anos, observa que
a ocupação do México é mais recente, “ya que el fóssil humano más antiguo, encontrado em
Tepexpan, cerca de las pirâmides de Teotihuacan, parece remontarse a unos diez mil años
aproximadamente.”

Figura 20 - Caminhos possíveis realizados pelos humanos nas Américas

Fonte: FERREIRA, 2017328.

Quando chegaram os colonizadores em 1492 (Cristóvão Colombo) na costa do


continente americano, além da exuberante natureza, encontraram uma terra com vários
povos329 e culturas, nações: em média 53,57 milhões de pessoas330, tomando como base as
opiniões de oito dos principais estudiosos do tema, cujos dados variam entre 8,4 a 112,55

326
LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva. A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio
Cultural da Chapada do Araripe. Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra. Coimbra. 2015. p. 10.
327
LEÓN-PORTILLA. Visión de Los Vencidos: Relaciones Indígenas de La Conquista. Nueva Edición
Corregida y Aumentada. Universidad Nacional Autónoma de México. Ciudad Universitária. Programa Editoral
Coordenación de Humanidades: México, 2013. P. 257.
328
FERREIRA, José. Chegada do Homem na América. Disponível em:
http://www.coladaweb.com/historia/chegada-do-homem-na-america. Acesso em: 16 Jun.2017.
329
As correntes imigratórias que num total de cinco, vindas dos velhos continentes, teve na quinta corrente os
Protopolinésios. Provavelmente dentro do primeiro milênio antes de Cristo. Os pontos de acesso estariam
situados nas costas ocidentais do norte da América do Sul e de toda a América Central. Vindos pelo pacífico
onde encontraram numerosos habitantes oriundos da Terceira e Quarta corrente migratória. Traziam os
Protopolinésios uma alta cultura... deram nascimento àquela civilização tão curiosa que os europeus encontraram
e selvagemente procuraram destruir no Peru e no México. POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Pré-História
Cearense. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará. 36.
330
SOUSA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba:
Juruá, 1998. p. 34. Dirá que eram 42 milhões.
107

milhões331. “Com o Novo Mundo descobre-se uma Nova Humanidade”.332 Da América dois
casos singulares pela importância em quantidade de indígenas, da cultura ameríndia, cidades-
estados e da extensão e riqueza natural, destacam-se: o México e o Brasil.
No México estava em expansão um império de conquistas ao mesmo tempo em que na
Europa, espanhóis e portugueses dominavam os descobrimentos. Esses dois impérios em
expansão333 se enfrentariam em 1519 no México.
Em 1500 já haviam aportado no Brasil-indígena os Portugueses.
Igualmente populosa as terras que viriam a ser o Brasil, tinha uma população estimada
“de 1,1 a 5,1 milhões de pessoas”334. As populações indígenas eram muitas, mas dispersas,
dificultando a identificação pelos europeus colonizadores. Os costumes e hábitos, a aparência
em tudo se assemelhava, mas a língua falada era diversa, restringindo-se a tribos, aldeias ou
grupos familiares pequenos. Restando a divisão entre línguas batizadas como tupis um povo e
tapuias, a todos os demais. Imprecisa esta determinação.
Na chegada às terras do Brasil, a esquadra de Cabral em seu primeiro contato com
nativos trocaram presentes335 e nenhum agravo. Na chegada de Colombo também. A partir
dessas trocas ficou evidente para os colonizadores o caráter desinteressado dos nativos por
coisas materiais, trocavam tudo por nada. Essa postura dadivosa estimulou a ideia do
336
bonsuvage que se difundiu dos nativos na Europa. No Brasil durante o período colonial,
inúmeros são os momentos em que estiveram combatendo, do mesmo lado, os indígenas com
portugueses, com holandeses e com franceses.

331
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
São Paulo: Editora Claroenigma, 2012. P. 16.
332
Ibidem. P. 40
333333
“la nación mexica que ensanchaba sus domínios y difundía la antigua cultura, iba precisamente a
encontrasse frente a frente con otro movimiento expansionista mucho más poderoso, por poseer armas y
técnicas de destrucción que deben calificarse de superiores. Ese encuentro iniciado, por lo que a los mexicas se
refiere, em 1519, iba a ser interpretado inicialmente en formas bien distintas. Los mexicas creyeron que los
forasteros llegados por las costas del Golfo, eran Quetzalcóatl y los dioses que por fin regresaban. Los
españoles, para los que resultaba difícil valorar la antigua cultura precolombina, tuvieron por bárbaros a los
mexicas y vieron em ellos la possibilidad de adueñarse de sus riquezas, imponiéndoles nuevas formas de vida.”
LEÓN-PORTILLA. Visión de Los Vencidos: Relaciones Indígenas de La Conquista. Nueva Edición Corregida
y Aumentada. Universidad Nacional Autónoma de México. Ciudad Universitária. Programa Editoral
Coordenación de Humanidades: México, 2013. P. 263.
334
STEWART (1949: 666). DENEVAN (1976: 230, 291) apud CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no
Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira. São Paulo: Editora Claroenigma, 2012. P. 16.
335
ABREU. Capistrano. Descobrimento do Brasil e Povoamento. Estudo publicado no Recife: Jornal do
Commercio, de 12, 29 de agosto e 10 de setembro de 1899 e reproduzido, refundido e ampliado na “América
Brasileira”, números 32, 33 e 34 de agosto, setembro e outubro de 1924. Pp. 125-126. PAIM, Antonio (Org.).
Projeto Leitura Básica. Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro. 1982. Salvador: Disponível em:
<http://www.cdpb.org.br/capistrano_de_abreu[1].pdf>. Acesso em: 13 Mar.2017.
336
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone
Moi. Martins Fontes: São Paulo, 1992. PDF. p. 23.
108

Durou pouco esse processo de aproximação amistosa da chegada dos espanhóis na


mesoamérica, de um lado. E do outro também duraram pouco as reflexões sobre o caráter
divino dos espanhóis entre mexicas e incas (Peru), pois logo os índios perceberam que
estavam diante de uma guerra de armas poderosas e resistiram o quanto puderam.
As primeiras cartas e notas no diário de Colombo dão conta do modo ambíguo como
tratava os índios, a destacar a superioridade dos brancos sobre aqueles. Os espanhóis traziam
Deus e a salvação espiritual e em troca recebiam as terras dos índios, uma conquista material
x espiritual, o divino e o humano.
Um traço comum aos indígenas de toda América é a tradição oral para registro de seus
rituais e deuses337. Com a escrita restrita aos registros das experiências e ou ordens, como os
pictogramas dos mexicas, ou a escrita associada a fonemas pouco desenvolvida dos maias de
Yucatan, a tradição oral será determinante para os discursos e práticas religiosas e valores.
Essa distinta comunicação que os indígenas têm com o mundo espiritual e com a terra, com a
natureza é o oposto da comunicação estratégica que os espanhóis utilizaram para vencer os
indígenas, era uma comunicação inter-humana: mentiras, jogo de cena (canhões ao vento)
para amedrontar os chefes e mestres, em batalha – matar primeiro os líderes, identificados
pelas plumas e ornamentos. Todorov observa também que a vitória dos espanhóis no
México cobrará no médio prazo uma resposta de comunicação com o mundo, com a natureza,
que nunca chegou. Os espanhóis serão perseguidos a vida toda por este estigma.
Dados mais otimistas estimam que ¼ da população indígena no Brasil foi aniquilada
com a colonização. Carlos Marés338 observa com propriedade que 24 milhões de índios teriam
sido mortos em St. Domingos, Nicarágua, San Juan, Jamaica, Cuba, México, Honduras,
Guatemala e Peru, denotando os traços comuns ao perfil colonizador nas Américas: violência,
desprezo pelos direitos dos índios e agressividade339.

337
“A religião deles era tola e vã, pois acreditavam que ela podia oferecer-lhes bens que não sabiam defender, e
que lhes eram tomados com tanta facilidade. Responderam-me que era a religião de seus pais. Quarenta ou
cinquenta anos mais tarde ainda ouve a mesma resposta: interroguei alguns velhos acerca da origem de seu saber
no que concerne ao destino dos homens, e eles responderam que os antigos lhes tinham legado e ensinado isso, e
que era tudo o que sabiam... Dão a entender que não adquiriram nada a partir de uma investigação particular.”
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone
Moi. Martins Fontes: São Paulo, 1992. PDF. p. 47.
338
SOUSA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba:
Juruá, 1998. p. 36.
339
Opinião que é dividida com LAS CASAS, Fray Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las
Índias. 3ª Edición. Prólogo: Olga Camps. Fontamara: México. D.F., 2014. Pp. 42/43.
109

No censo brasileiro de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e


Estatística - IBGE, a população brasileira de índios é de 817,967 mil pessoas340,
autodeclarados segundo seus costumes, tradições, cultura e antepassados.
Ao analisar as transformações que resultaram no modelo de capitalismo que temos,
Polanyi341 observa com razão que do mesmo modo que classes sociais são atingidas por
catástrofes culturais; povos de raças diferentes podem ter semelhantes destinos – e tem
habitualmente ocorrido com contatos culturais, resultantes da colonização, como ocorreu na
América e na África. Com isso, observa o autor, não podemos ocultar a catástrofe das
comunidades nativas, que com ênfase na exploração econômica, resultou na degeneração
social e cultural e mais grave, na ruptura rápida e violenta das instituições básicas. Estas
fundadas em valores e culturas diversas daquelas dos europeus. Nas primeiras cartas de
Colombo, datadas de fev/mar de 1493 ele descreve “que não pode saber se os índios possuem
bens privados, mas teve a impressão de que todos tinham direitos sobre o que cada um
possuía.”342 A canoa e o veneno para as flechas eram os bens mais preciosos que possuíam os
índios no Brasil, descreve Martius343, o primeiro por que construído com demora e esforço e o
segundo pela raridade das plantas com o qual era produzido o veneno.
Sobre a chegada dos colonizadores, de tantos substantivos apregoados pelos
estudiosos do tema da “conquista das Américas”, a palavra “encontro”344 no dizer de
Todorov345 é a que melhor define essa relação desde um olhar eurocêntrico: encontros entre
dois mundos. Com percepção distinta do tempo passado346, presente e futuro. Duas
humanidades que podemos representar na figura do colonizador espanhol Cortez e o mexica
Motecuhzoma, a ação indolente do presente sobre o silencio solene do passado no presente
(século XVI) inacreditável para os nativos da nova terra. Pode-se aplicar este exercício em

340
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo Indígena 2010. Disponível
em: http://indigenas.ibge.gov.br/images/indigenas/estudos/indigena_censo2010.pdf. Acesso em 02 Abr.2017.
341
POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Campus-Elsevier: Rio de Janeiro,
2000. p. 193-198.
342
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone
Moi. São Paulo: Martins Fontes. 1992. PDF. p. 23.
343
MARTIUS, Carl F. P. von. O Estado do Direito entre os Autóctones do Brasil. Introdução Max Fleiuss.
Tradução Alberto Löfgren. Revisão de A. C. Miranda Azevedo. Série Reconquista do Brasil. V. 58. Editora
Itatiaia/Universidade de São Paulo: Belo Horizonte/São Paulo, 1982. P. 40.
344
Antes ainda de Todorov abordar o tema do “Encontro” sob o ponto de vistas da alteridade, do outro; Leon-
Portilla, chama a atenção para o lado humano nas narrativas de índios e espanhóis para o violento encontro: “las
imágenes logradas por mesoamericanos y españoles mostrarán grandes variantes. No obstante condenaciones e
incomprensiones mutuas, em el fondo ambos tipos de imágenes son intensamente humanas [...] consecuencia
viviente del encuentro violento de esos dos mundos.” LEÓN-PORTILLA. Visión de Los Vencidos: Relaciones
Indígenas de La Conquista. Nueva Edición Corregida y Aumentada. Universidad Nacional Autónoma de
México. Ciudad Universitária. Programa Editoral Coordenación de Humanidades: México, 2013. P. 13.
345
TODOROV, op., cit., p. 5.
346
TODOROV, op., cit., p. 50.
110

escala para qualquer colonizador e qualquer indígena das Américas. São sistemas religiosos
diferentes que interferiram decisivamente para o sucesso ou fracasso dos sujeitos históricos
em questão, venceu Cortez!
Um encontro que ocorreu em 1492 com a chegada de Colombo e nos anos seguintes
disparou um reset347 na história do mundo, inaugurando a era moderna - que não se
confirmará ao longo do tempo como projeto de desenvolvimento civilizatório348. Sob um
ponto de vista latino-americano esposado por Dussel349 choque ou genocídio serão expressões
mais justas para dizer com precisão as consequências da chegada dos europeus ao novo
mundo.
Os elementos de dominação econômica postos em pratica na América Latina durante
a colonização levaram em consideração a terra como propriedade e a mão-de-obra para
produção de produtos e serviços para a Corte. Esta terra que nas sociedades primitivas
“sempre foi um bem coletivo, generosamente oferecido pelos antepassados que descobriam
seus segredos e legado necessários aos herdeiros que o perpetuariam.”350
Os povos se constituíam em sociedades humanas sem Estado e sem teorias sobre a
propriedade privada. O homem e o trabalho eram elementos conjugados pela natureza e a
terra. A mística contratual e a propriedade privada inserido nas sociedades de negócios trazida
com os europeus e a imposição de um novo sistema em que se separava obrigatoriamente o
homem da terra foi o ponto central para implantar esse sistema de produção fundado no
assalariado e na produção para a mais valia. No seu ambiente de produção homem/terra a
“função econômica é apenas uma entre as muitas funções da terra”351.
Esse período trará consigo muitas incertezas inclusive quanto ao conceito de
“humano” pelos colonizadores. Os europeus projetam nos índios uma imagem, com um perfil
identitário civilizatório determinado, com a qual os índios latino-americanos poderiam, talvez,
chegar algum dia. Imagem que se reflete como em um espelho para os nativos. Na Europa, na
corte espanhola, mais precisamente, durante os primeiros anos da colonização latino-
americana, um dos debates era em torno dos indígenas serem ou não “racionales, es decir, se

347
Termo utilizado em programas de computar parar reinicializar. desligar e religar a programação!
348
Os espanhóis, no dizer de Todorov inauguram a era moderna naquilo que ela pode ter de pior, a barbárie. “A
‘barbárie’ dos espanhóis nada tem de atávico, ou de animal; é bem humana e anuncia a chegada dos tempos
mordernos.” TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de
Beatriz Perrone Moi. São Paulo: Martins Fontes. 1992. PDF. p. 80.
349
DUSSEL, Enrique. 1492 El Encubrimiento del Outro: Hacía el origen del “Mito de la modernidade”. La
Paz – Bolívia: Biblioteca Indígena. Colección pensamento crítico, 2008. PDF. p. 59.
350
SOUZA FILHO, C. F. Marés. A Função Social da Terra. Fabris: Porto Alegre, 2003. p. 50
351
POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Campus-Elsevier: Rio de Janeiro,
2000. p. 214.
111

tenian uma naturaleza humana”352. Nas cartas de Colombro, datadas de 21.12.1492, descritas
por Todorov353, vemos a surpresa do colonizador diante das diferenças entre os nativos e os
europeus: “... que apesar de nus, os índios parecem mais próximos dos homens do que dos
animais”, para Colombo “os índios são desprovidos de qualquer propriedade cultural.”
Nas terras do Brasil, o naturalista Carl F. P. von Martius354 falecido em 1868, após 3
anos (1817-1820) de viagem ao interior do Brasil descreve os nativos brasileiros como “em
grau inferior de humanidade, moralmente, ainda na infância, a civilização não o altera,
nenhum exemplo o excita e nada o impulsiona para um nobre desenvolvimento progressivo”.
Claro está que o conceito de humano e de desenvolvimento empreendido pelo europeu bávaro
diz mais de sua origem do que aquele lugar e gente real que habitavam as terras latino-
americanas. No dizer de Dussel355: “Es el modo como “desapareció” el Otro, el ‘indio’, no
fue descubierto como Otro, sino como “lo Mismo” ya conocido (el asiático) y sólo re-
conocido (negado entonces como Otro): “encubierto”. Quando se fez essa comparação, tem-
se um ser que deveria ser igual, mas é diferente, inferior em humanidade e desenvolvimento.
Forçoso é admitir que assim funcionou e funciona o pensamento europeu acerca da América
Latina.
Dussel, após detida e conscienciosa análise do pensamento europeu, expresso em
Hegel e Kant, observa que a América Latina e a África, em tudo eram considerados territórios
e suas gentes em processo atrasado de desenvolvimento, fora da história, portanto. Dussel
propõe um olhar fora do Eurocentrismo em que estivemos imersos desde 1492. A expressão
“desenvolvimento”, que no dizer de Edgar Morin356, comporta muito de subdesenvolvido,
porque é uma “concepção redutora” que põe no centro de tudo o crescimento econômico e

352
LAS CASAS, Fray Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las Índias. 3ª Edición. Prólogo:
Olga Camps. Fontamara: México. D.F., 2014. p. 16.
353
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone
Moi. São Paulo: Martins Fontes. 1992. PDF. p.. 21.
354
MARTIUS, Carl F. P. von. O Estado do Direito entre os Autóctones do Brasil. Introdução Max Fleiuss.
Tradução Alberto Löfgren. Revisão de A. C. Miranda Azevedo. Série Reconquista do Brasil. V. 58. Editora
Itatiaia/Universidade de São Paulo: Belo Horizonte/São Paulo, 1982. p. 11. Martius olha para os nativos do
Brasil, em sua descrição, como um povo que por sua gênese não evoluiu, está estacionado entre a infância e a
velhice, sem progresso: “Nesta raça unem-se, portanto, como nos sonhos, as imagens mais variadas; traços de
uma vida natural inocente e pura, aí se misturam com outros ainda que refletem a natureza espiritual e elevada
do nosso ser atingindo à consciência perfeita e, quais harmonias de conciliação, nos irmanam com uma raça
decaída, que pelas muitas desgraças quase se desumanizara”.
355
“... os grandes navegantes do mediterrâneo. É o modo como desapareceu o outro, o índio, não foi descoberto
como outro, senão como o mesmo já conhecido (o asiátivo) e só reconhecido (negado então como outro)::
encoberto”. DUSSEL, Enrique. 1492 El Encubrimiento del Outro: Hacía el origen del “Mito de la
modernidade”. La Paz – Bolívia: Biblioteca Indígena. Colección pensamento crítico, 2008. PDF. p. 32.
356
MORIN, Edgar. KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 2003. p. 89. Importante destacar
que a ideia de desenvolvimento como asseguradora do progresso se propõe enquanto mito global atingir o bem
estar. “O mito do desenvolvimento determinou a crença de que era preciso sacrificar tudo por ele.”
112

consequentemente “ignora os problemas humanos da identidade, da comunidade, da


solidariedade e da cultura.”
O tema da humanidade dos indígenas mereceu atenção das bulas papais de Alexandre
VI, Inter Coetera (1943), mas especialmente do Papa Paulo III, na Sublimis Deus (1537), em
que declara inequivocamente serem os povos indígenas das Américas racionais com almas.
Igualmente a bula papal condena a redução desses povos à escravatura e confere o seu direito
à liberdade e à propriedade, além de conclamar os colonizadores à sua evangelização. Gesto
que ultimava, em tese, a discussão sobre se os índios possuíam alma. O Rei Carlos V, por sua
vez, somente em 1550/1551, através das Juntas de Valladolid357 passou a reconhecer nos
índios ser humano358 e consequentemente proibiu as “guerras de conquistas” como
instrumento prévio de evangelização.
A ideia que há povos em inferior estágio de evolução habitou e habita muitas cabeças
desde que se propagaram no século XVI (colonização/escravização) até nossos dias as teorias
de inferioridade da raça ameríndia ou africana, que teve na ciência do século XIX sua
radicalização com os estratagemas da eugenia e do evolucionismo cientifico. Quijano 359 faz
uma importante reflexão sobre essa metáfora do espelho e como fomos levados a nos vermos
como em uma imagem distorcida.
A conquista da América, desde sempre, pôs em descompasso os interesses e ações dos
europeus e nativos. Para os colonizadores que utilizaram o discurso da expansão da fé católica
como fim (Colombo e Cortez), restou como meio as “guerras de conquista” em que
pretenderam transformar a invasão espanhola. Para Las Casas360 “o que eles chamam de
conquista, são invasões violentas de cruéis tiranos”, para Todorov a dizimação dos povos na

357
As Juntas de Valladolid foram instaladas em 1550 na cidade de Valladolid, Espanha e tiveram a participação
de Conselhos Reais e Conselhos de Índios – dos quais o mais árduo defensor fora Fray Bartolomé de Las Casas.
BRAGATO, Fernanda. Raízes históricas dos direitos humanos na conquista da América: o protagonismo de
Bartolomé de Las Casas e da Escola de Salamanca. Revista do Instituto Humanitas. Unisinos. Edição 487 de 13
de junho de 2016. Disponível em:
<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6495&secao=487>.
Acesso em: 06 Abr.2017.
358
Nos Digestos de Justiniano, século IV d.C. a identificação de “homem” e “pessoa” é clara. A principal
divisão do direito das pessoas é esta: que todos os homens são livres, ou servos, explica Gayo (Digesto, 1.5.3).
Todos eles são considerados homens. Pessoas são todos os homens. RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo D.
Princípios Generales del Derecho Latioamericano. 2ª reimpresión. Editora Astrea; Buenos Aires – Bogotá,
2013. p. 138. O tratamento dado aos nativos não será nem de servos dos Reis, posto que a eles não se atribuíam
direitos, nem de homens livres.
359
QUIJANO, Anibal. La colonialidad del poder. In: LANDER, Edigard (Org.). La colonialidad del saber:
eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latinoamericanas. CICCUS: Buenos Aires, 2011. p. 219-260. p.
136.
360
LAS CASAS, Fray Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las Índias. 3ª Edición. Prólogo:
Olga Camps. Fontamara: México. D.F. 2014. p. 56.
113

mesoamérica será um genocídio em sua expressão própria361. Em nenhum momento houve


igualdade no tratamento dado aos índios. Nos primeiros meses Colombo mudará o tratamento
de assimilação dos nativos “à ideologia escravagista e, portanto, à afirmação da inferioridade
dos índios.” 362
A colonização foi exploratória e de submissão, chantagem, espoliação e quando havia
resistência, a morte363; quando não havia resistência, igualmente a morte. Por onde passaram
os cristãos-espanhóis ficou um rastro de morte dos enfrentamentos com armas de ferro, fogo e
canhões. Os colonizadores buscavam conquistar novos territórios, mas, sobretudo as riquezas
minerais364 e naturais que os nativos já conheciam e eram forçados a entregar. Esse processo
de destruição e saques deixou raízes profundas nas desigualdades que vivenciamos desde
então até nossos dias.
A colonização se caracterizou, também, pelo aniquilamento das práticas religiosas dos
indígenas, desconstrução das suas identidades e ainda, e a destruição das cidades-estados365
dos nativos assim como a substituição das sua práticas econômicas pelas práticas do
capitalismo mercantil nascente, o dinheiro enquanto equivalente universal não existia entre os
Tarascos366, entre os Mexicas. Outros povos da Nicarágua e Guatemala utilizavam as favas do
cacueiro como moedas367. O processo colonizador que empreenderam visava transformar o
trabalho368 e a terra em mercadorias369, como observa Polanyi370.

361
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone
Moi. Martins Fontes: São Paulo, 1992. PDF. p. 74.
362
Colombo constrói uma Fortaleza para proteger e instalar seus subordinados espanhóis na nova terra.
5.11.1492, a chegada foi em outubro de 1492.
363
“más de treinta mil hombres, de más de doscientos mil que fueron de la parte de los españoles, como se há
visto; de los mexicanos murieron más de doscientos cuarenta mil, e entre ellos casi toda la nobleza mexicana,
pues que apenas quedaron algunos señores y caballeros, y los más niños, y de poca edad.” Descrição das baixas
humanas no período de 80 dias de cerco à capital do Império mexicano Tenochtitlan em 1521, do qual restou
destruída a cidade por incêndios provocados pelos vencedores espanhóis. LEÓN-PORTILLA. Visión de Los
Vencidos: Relaciones Indígenas de La Conquista. Nueva Edición Corregida y Aumentada. Universidad Nacional
Autónoma de México. Ciudad Universitária. Programa Editoral Coordenación de Humanidades: México, 2013.
p. 165.
364
Esmeraldas, prata, madeira e ouro, este o mais precioso que os espanhóis buscavam. LAS CASAS, Fray
Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las Índias. 3ª Edición. Prólogo: Olga Camps.
Fontamara: México. D.F. 2014. p. 34.
365
“Los templos y palácios, el gran mercado, las escuelas, las casas, todo quedó em ruinas.” Resumo do que
restou ao cerco a Tenochtitlan. LEÓN-PORTILLA. Visión de Los Vencidos: Relaciones Indígenas de La
Conquista. Nueva Edición Corregida y Aumentada. Universidad Nacional Autónoma de México. Ciudad
Universitária. Programa Editoral Coordenación de Humanidades: México, 2013. p. 225.
366
TODOROV, op., cit., p. 56.
367
MARTIUS, Carl F. P. von. O Estado do Direito entre os Autóctones do Brasil. Introdução Max Fleiuss.
Tradução Alberto Löfgren. Revisão de A. C. Miranda Azevedo. Série Reconquista do Brasil. V. 58. Editora
Itatiaia/Universidade de São Paulo: Belo Horizonte/São Paulo, 1982. p. 42.
368
“Desde um principio,los españoles necesitaron emplear a los índios como fuerza de trabajo para explotar las
riquezas de la tierra y obtener metales preciosos; el modo de utilizarla consistió em reducir a los índios a la
esclavitud.” Mesmo com o decreto de proibição emitido pela Rainha Isabel, da Espanha, as práticas de
exploração do trabalho indígena continuaram com uma nova roupagem, típico das contradições e rearranjos do
114

Cristóvão Colombo propõe aos Reis de Espanha levar como escravos índios canibais
para a Europa, em resposta estes “preferem ter vassalos em vez de escravos: súditos que
possam pagar impostos”.

Os transportadores poderiam ser pagos em escravos canibais, gente feroz mas


saudável e de ótimo entendimento, os quais, arrancados de sua desumanidade serão,
cremos, os melhores escravos que há. (Relatório para Antonio de Torres.
371
30.01.1494).

O trabalho praticado pelos indígenas em sua cultura era para sua sobrevivência e
sobrevivência da tribo: em práticas agrícolas – milho, frutas, raízes, pesca, caça, artesanato
em tecidos de algodão, palha, barro, madeira ou com metal, ouro, prata e cobre – além de uma
infinidade de práticas de rara sofisticação, sobretudo nos ameríndios da meso-américa.
Também eram utilizados em rituais. Eram, portanto, práticas coletivas, comunais (usos e
costumes). Como referido, não havia a propriedade da terra, mas uso e posse. Igualdade de
condições era também um traço destacado pelo bávaro Martius ao nativo brasileiro, embora
fosse com ironia depreciativa.

Esta confiança absoluta na probidade dos vizinhos só encontramos igual entre os


povos escandinavos no norte da Europa e constitui um belo traço do caráter do
selvagem americano. O seu merecimento não é diminuído pelo fato de possuir ele
apenas poucos objetos e de fácil aquisição. Armas, ornatos de penas e utensílios
domésticos tem para ele grande valor, pois apesar de ele mesmo os fabricar todos,
custa-lhe trabalho e tempo.

novo sistema capitalista nascente: “encomiendas”. “Esta instituición se basaba en el derecho concedido por
merced real a los españoles de Indias, para cobrar para si, los tributos que devían al rey los índios, que se les
encomendaban por su vida y la de um heredero, com la obligacion de cuidar de ellos em lo espiritual y
material”. LAS CASAS, Fray Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las Índias. 3ª Edición.
Prólogo: Olga Camps. Fontamara: México. D.F., 2014. p. 16.
369
Portugueses e espanhóis deram tratamento diferente ao modo de apropriação das terras, em sentido jurídico.
Os espanhóis através da “guerra de conquista” formalizavam através de um requerimento dirigido aos nativos -
uma ordem de submissão a qual uma vez feita oposição, se seguiriam a tomada da terra e a posse em nome da
coroa. O requerimento comunicava que os espanhóis vinham em nome do Rei. Um Rei poderoso, com a benção
do Papa Alexandre VI, para converter os índios e pregar a fé católica. Mais tarde empreendeu a “encomienda”
outro embuste para submeter os indígenas a trabalhos forçados e escravização. Os portugueses simplesmente
tomaram posse da terra, como se nunca houvera dono. E as sesmarias, os aldeamentos e vilas e a expansão da
fronteira agropecuária foi o caminho para expropriar a terra dos íncolas. Em ambos os casos houve
enfrentamentos e guerras violentas nas quais os nativos defenderam com a própria vida sua terra e sua gente.
370
POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Campus-Elsevier: Rio de Janeiro,
2000. p. 193.
371
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone
Moi. Martins Fontes: São Paulo, 1992. PDF. p. 29.
115

A circunstância, porém, de que todos estão nas mesmas condições para obter o que
precisam e que, aqui não existe como nos países civilizados, ricos e pobres, parece
372
ser o paládio da probidade do índio.

A mudança trazida com a colonização para os indígenas radicalizou a ideia de trabalho


para produção de bens de consumo e mercado, e do próprio trabalho como mercadoria,
instituindo na maioria dos casos a servidão, em outros a escravidão373. Não havia, em tese,
autorização dos Reis da Espanha até que foram instituídas as “encomiendas”374 e a prática
oficial do trabalho mercantil-capitalista se resumiria a trabalhos forçados e sem remuneração,
à semelhança de trabalho escravo. No Brasil o trabalho escravo era combatido pelos Reis
lusitanos, mas sempre praticada pelos sesmeiros. Las Casas ao descrever o suplício a que
foram submetidos os índios e o modo como reagiram, afirma: “não poderia ser chamado de
rebelde se primeiro não é súdito”375. Ora faz todo sentido, a ser súdito há direitos. De sorte
que as guerras justas como diziam os colonizadores não ocorreram, se houve insurgência dos
índios – ainda que se considerasse agressiva, rebelde, não poderia ser de outra forma. Não
havia regras no processo de aniquilamento das populações nativas, sequer regras servis da
coroa espanhola.
Ao fim da invasão do império asteca, tem-se a certeza da substituição de um sistema
produtivo por outro. Dussel376 enfatizará as consequências dessa troca:

A corporalidade subjetiva do índio era ‘subsumida’ na totalidade de um novo


sistema econômico nascente, como mão-de-obra grátis ou barata (a qual se somará o
trabalho do escravo africano)... [ ]

O ‘eu colonizo’ ao outro, à mulher, ao varão vencido, em uma erótica alienante, em


uma econômica capitalista mercantil, segue o rombo do ‘eu conquisto’ até o ‘ego
cogito’ moderno. A ‘civilização’, a ‘modernização’ inicia seu curso ambíguo:
racionalidade contra as explicações míticas ‘primitivas’, por mito ao final que
encobre a violência pacificadora do outro’.

O devotamento do índio à sua tribo, à aldeia é inexorável porque “na sociedade


indígena de antigamente, o indivíduo não representava em si uma totalidade social, é

372
MARTIUS, Carl F. P. von. O Estado do Direito entre os Autóctones do Brasil. Introdução Max Fleiuss.
Tradução Alberto Löfgren. Revisão de A. C. Miranda Azevedo. Série Reconquista do Brasil. V. 58. Editora
Itatiaia/Universidade de São Paulo: Belo Horizonte/São Paulo, 1982. p. 39.
373
Mais de 1 milhão de índios foram escravizados na conquista da América, afirma LAS CASAS, Fray
Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las Índias. 3ª Edición. Prólogo: Olga Camps.
Fontamara: México. D.F., 2014. p.. 69, 93.
374
Ibid., p. 114.
375
LAS CASAS, op., cit., p. 61.
376
DUSSEL, Enrique. 1492 El Encubrimiento del Outro: Hacía el origen del “Mito de la modernidade”. La
Paz – Bolívia: Biblioteca Indígena. Colección pensamento crítico, 2008. p. 51.
116

unicamente o elemento constitutivo de outra totalidade, a coletividade377.” Não há nas


sociedades nativas as ideias fundantes do liberalismo clássico: o individual ou a propriedade.
Embora nessas sociedades houvesse distinções entre os Maias, Incas e Mexicas e os demais
nativos da América Latina quanto à sua organização social, política e tecnologias nas
vestimentas, trabalho com metais, artesania e escrita, sendo aqueles mais organizados de
hábitos que aos europeus pareceram sofisticados.
A colonização também por isso foi desvantajosa para os nativos. Embora para fugir do
estereótipo da vítima, vale ressaltar que os indígenas fizeram escolhas, nem sempre acertadas.
Foram sujeitos de sua história378: sobre Motecuhzoma muito se fala da ambiguidade nos
momentos decisivos do cerco a Tenochtitlan, porque agiu desta ou daquela forma? As dúvidas
sobre sua conduta no cenário da guerra enfraqueceu seu exército e se perpetua na memória
dos mexicanos que tem sido severos com o “senhor da palavra”, guerreiro e sacerdote. 379
O alcance da ideia esposada de Deus pelos nativos era inclusiva, universalista e
igualitária, poderia perfeitamente se comunicar com o Deus cristão, reconciliar as divindades
com o deus cristão parecia a coisa mais adequada a fazer, propôs Motecuhzoma380, mas não
foi aceito pelos cristãos dividir o altar com todos os deuses. Essa visão do mundo e do
sagrado é muito superior nos ameríndios do que nunca será para os europeus, de todos os
tempos.
No México do século XXI nenhum monumento há dedicado à memória de
Motecuhzoma. Festeja-se mais a coragem de Cuauhtemoc, um dos heróis da resistência a
Cortez no México pós-morte de Motecuhzoma. Ainda sobre a México, os Ixtilxúchitl fizeram
alianças com os espanhóis para destruir o império mexica, foram indispensáveis para a vitória
final de Cortez381, os Tarascos ou Purépechas também viraram as costas a Motecuhzoma em

377
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone
Moi. Martins Fontes: São Paulo, 1992. PDF. p. 38.
378
Outro aspecto que merece nota é o fato da crença previamente anunciada em todos os povos da mesoamérica:
incas, maias e mexicas, em datas diferentes, de presságios, augúrios, sinais que anunciavam a chegada de povos
diferentes e que resultaria na vitória desses, para uns deuses, para os maias, bárbaros e estrangeiros. Como se a
derrota fosse indiscutível, estava previsto, então seria assim. Foram também, por isso, senhores de seus destinos
– em alguma medida, aceitaram sua crença, em vida e na morte.
379
LEÓN-PORTILLA. Visión de Los Vencidos: Relaciones Indígenas de La Conquista. Nueva Edición
Corregida y Aumentada. Universidad Nacional Autónoma de México. Ciudad Universitária. Programa Editoral
Coordenación de Humanidades: México, 2013. p. 81.
380
TODOROV, op., cit., p. 60/61.
381
“ao longo de toda a campanha, sabe aproveitar-se das lutas internas entre facções rivais e, nas fase final,
comanda um exército de tlaxcaltecas e outros índios aliados numericamente comparável ao dos mexicanos.. 10
mil combatentes índios a pé... se não fosse pelos tlaxcaltecas, eles teriam sido mortos, quando os expulsaram os
cristãos da cidade do México, os tlaxcaltecas os acolheram.” TODOROV, op., cit., p. 34.
117

sua hora mais delicada382, após os enfrentamentos iniciais no cerco à Tenochtitlan, eles
preferiram negar apoio aos seus iguais, acreditaram ser destino dos mexicas perecer por esses
supostos deuses. Ademais gostaram de ver seus inimigos sofrerem. Em seguida foram eles
assediados pelos espanhóis.
Foi, em geral, uma guerra sem precedentes para os nativos que não compreendiam o
que estava em jogo: a propriedade e a mudança em todo o sistema de produção e mercado.
Acostumados aos enfrentamentos que se concluía com aprisionamentos e tratados em que se
fixavam impostos etc, sacrifícios que fossem. Para os rivais locais dos mexicas, as disputas e a
também violência com que as rivalidades internas se resolviam, em alguma medida, se
assemelhava à violência praticada pelos espanhóis383.
Las Casas384 descreve os primeiros 49 anos da conquista da América como um flagelo
dos espanhóis sobre os nativos. Os anos que seguiram à destruição das populações indígenas
na América foi um período de reorganização do sistema de conquistas, implantando os
sistemas de dominação mercantil-capitalista e cristã-católico, disfarçando o mais que podiam
os massacres pelos Espanhóis e Portugueses. Cada um a seu modo.

3.2 A PROTEÇÃO DOS INDÍOS NO DIREITO INTERNACIONAL LATINO-


AMERICANO: NORMAS PROVENIENTES DA OIT, DO MERCOSUL E DA ONU

As primeiras iniciativas de politicas de proteção aos indígenas para América Latina


em nível Internacional nasceram respectivamente da Organização Internacional do Trabalho -
OIT385, da Organização das Nações Unidas – ONU386, da Organização dos Estados

382
”Deixemos que os estrangeiros matem os mexicanos (III, 22). A outra razão da recusa de opor-se aos
espanhóis é o fato de serem considerados deuses. ‘De onde podem vir, a não se do céu?’ (III, 21). ‘Por que os
estrangeiros viriam sem razão? Foram enviados por um deus por isso vieram!’ (III, 23). Para explicar um fato
surpreendente, recorre-se à hipótese divina: o sobrenatural é filho do determinismo; e esta crença paralisa
qualquer tentativa de resistência: ‘Achando que eles eram deuses, os chefes disseram às mulheres que não os
contrariassem, pois os deus levavam o que lhes pertencia’” (III, 26). Levaram tudo desta vez. TODOROV,
Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone Moi. Martins
Fontes: São Paulo, 1992. PDF. p. 55.
383
Ibid., p. 35.
384
LAS CASAS, Fray Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las Índias. 3ª Edición. Prólogo:
Olga Camps. Fontamara: México. D.F., 2014. p. 32. Tradução livre pelo autor. Quando os índios se dão conta de
que os espanhóis não vieram do céu pelo modo como abusavam deles começaram a reagir e a tentar expulsar os
estrangeiros. Foram derrotados ao final e suas terras e impérios destruídos. “Entraram os espanhóis desde logo
que as conheceram como lobos e tigres e leões crudelíssimos de muitos dias famintos. E outra coisa não tem
feito de quarenta anos a esta parte até hoje e hoje em dia ainda fazem senão despedaça-las, mata-las, angustiá-
las, afligi-las, atormentá-las e destruí-las pelas entranhas e novas e várias e nunca outras tais vistas nem lidas
nem ouvidas maneiras de crueldade”.
385
A OIT foi criada após o fim da Primeira Grande Guerra Mundial, em 1919, como parte do tratado de
Versalhes para promover a paz mundial e prevenir o mundo contra o surgimento de conflitos através da
humanização das condições de trabalho. Em 1946 a OIT foi integrada à ONU, como sua primeira agência
118

Americanos – OEA387 e tardiamente do Mercado Comum do Sul - MERCOSUL. Nesta seção


trataremos dos principais instrumentos normativos internacionais que tem servido de
orientação e ou normas programáticas para os países signatários dessas instituições.
A OEA tem abordado o tema da proteção dos direitos indígenas através da Relatoria
sobre Direitos dos Povos Indígenas, criado em 1990 e através de estímulos à Comissão
Interamericana na defesa dos povos indígenas junto ao sistema de casos, informes de
admissibilidade, informes de solução amistosa, medidas cautelares e demandas de medidas
provisionais junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos.388 A Relatoria atua como um
observatório de atenção internacional para situação de exposição dos povos indígenas a
violações de direitos humanos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos foi criada pela
Resolução AG/Res. 448 de 1.979 e adotada pela OEA no mesmo ano. É uma instituição
judiciária autônoma, consultiva e jurisdicional, com objetivo de aplicar e interpretar a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), conhecido como Pacto de San José da
Costa Rica.
A OIT tem atuado significativamente para promover o acesso a trabalhos decentes
para os cidadãos e cidadãs de todo o mundo. Dentre os destinatários das normas estão as
populações de minorias e escravizados. Os indígenas emergem como grupo de atenção,
mesmo que em alguns casos da América Latina constituam a maioria da população.

especializada. SCABIN, Roseli Fernandes. A Importância dos Organismos Internacionais para a


Internacionalização e Evolução do Direito do Trabalho e dos Direitos Sociais. p. 1-12. In CAVALCANTE,
Jouberto de Quadros Pessoa. VILLATORE, Marco Antonio César. (Coords.). Direito Internacional do
Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho. Um Debate Atual. São Paulo: Atlas, 2015. p. 2-5.
386
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. História da Organização. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/conheca/historia/>. Acesso em 22 Jun.2017. A ONU iniciou suas atividades em 24 de
outubro de 1945. Em abril de 1945, entretanto, 50 Países, voluntariamente, se organizaram para propor
iniciativas e documentos internacionais para a promoção da Paz mundial, o documento fundador denominado
Carta das Nações Unidas expressa os seguintes fins: praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros,
como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacional, e a garantir, pela
aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse
comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os
povos.
387
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. OEA. Quem Somos. Disponível em:
<http://www.oas.org/es/acerca/quienes_somos.asp>. Acesso em: 26. Jul.2017. A Organização dos Estados
Americanos é o organismo regional mais antigo do mundo, cuja origem se remonta à Primeira Conferência
Internacional Americana, celebrada em Washington, D. C., de outubro de 1889 a abril de 1890. Nesta reunião, se
acordou criar a União Internacional de Repúblicas Americanas e se começou a tecer a rede de disposições e
instituições que chegaria a conhecer-se como “sistema interamericano”, o mais antigo sistema institucional
internacional. Oficialmente a OEA foi criada em 1948 quando se subscreveu, em Bogotá, Colômbia, a Carta da
OEA que entrou em vigência em dezembro de 1951. Mantém comissões permanentes junto a OEA: Antígua e
Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba,
Dominica, Equador, El Salvador, Estados Unidos de América, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras,
Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trinidad y Tobago,
Uruguai e Venezuela. Tradução livre do autor.
388
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. OEA. Direito dos Povos Indígenas. Disponível em:
<http://www.oas.org/es/cidh/indigenas/default.asp>. Acesso em: 26 Jul. 2017.
119

As iniciativas da OIT se traduzem na discussão e produção de documentos que servem


de diretrizes e normativas para os países participantes das Assembleias Gerais da Organização
Internacional do Trabalho. A mais recente ocorrida em maio/junho de 2016389 quando
representantes de governo, dos empregadores e dos trabalhadores de 187 Estados-Membros
discutiram uma série de questões dentre as quais: a) trabalho decente para a paz; b) segurança
e resiliência a desastres; c) bem como o impacto da declaração da OIT sobre Justiça Social
para uma globalização justa. As orientações normativas da OIT propõem a organização de
empregados e empregadores em parceria com organizações de defesa dos indígenas para que
todo trabalho seja decente.
Essa perspectiva adotada pela OIT é, em resumo, de combate a qualquer forma
degradante de trabalho, ou seja, aquela atuação que utiliza as pessoas como meio e não como
fim em si mesmo e por isso utiliza uma expressão positiva, não buscando conceituar o
trabalho que se assemelha ao de escravo, em tudo combatida pelas convenções e
recomendações advindas da OIT, a expressão utilizada para tal é ”trabalho decente”, ou seja,
trata-se do trabalho que se reveste com um conjunto mínimo de direitos do trabalhador que
corresponde, segundo Juan Somávia390:

à existência do trabalho, à liberdade de trabalho; à igualdade no trabalho; ao trabalho


em condições justas; incluindo remuneração, e que preservem sua saúde e
segurança; à proibição do trabalho infantil; à liberdade sindical; e à proteção contra
os riscos sociais.

Desde o seu nascedouro, com o Tratado de Versalhes (1919), a OIT atua na fronteira
entre os direitos humanos e o direito social ao trabalho através das inúmeras convenções
internacionais que de modo direito ou indireto influenciou centenas de Estados na busca pela
consolidação desses direitos. Dentre as normas emitidas pela OIT destacamos391, Convenção
nº 11 (1921) – que dispõe sobre o direito de associação e coalizão de trabalhadores rurais;
Convenção nº 14 (1921) – que dispõe sobre o descanso semanal nas indústrias; Convenção nº
19 (1925) – que dispõe sobre a igualdade de tratamento entre trabalhadores estrangeiros e
nacionais em matéria de indenização por acidentes de trabalho; Convenção nº 26 (1928) – que
dispõe sobre métodos para fixação de salários mínimos; Convenção nº 29 (1930) e Convenção

389
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Constuindo um Futuro com Trabalho
Decente. Disponível em: <http://www.ilo.org/ilc/ILCSessions/105/lang--en/index.htm>. Acesso em: 04 Abr
2017. Versão original em inglês. Tradução livre do autor.
390
SACFF, Luma Cavaleiro de Macedo. Sistema de Proteção dos Direitos Humanos e Trabalho Forçado: O
Brasil e a Organização Internacional do Trabalho. Dissertação. Faculdade de Direito da USP: São Paulo. 2010.
143 p. p. 77: Diretor da OIT na 87ª Reunião da Conferência Internacional da OIT em 1999.
391
QUEIROZ, Miron Tafuri. A Integração das Convenções da Organização Internacional do Trabalho à
Ordem Jurídica Brasileira. 2009. 216 fls. Dissertação. Faculdade de Direito da USP. São Paulo. 2009. p. 104.
120

nº 105 (1957) – que dispõem sobre a abolição do trabalho forçado; Convenção nº 87 (1948) –
sobre a liberdade sindical e proteção do direito sindical; Convenção nº 98 (1949) sobre o
direito de organização e de negociação coletiva; Convenção nº 100 (1951) – relativa à
igualdade de remuneração; Convenção 107 (1957) – relativa à proteção e à integração das
populações indígenas e de outras populações tribais ou semitribais nos países independentes.
A Convenção 107 no item 3 do Art. 2º trata as iniciativas dos índios sob uma
perspectiva liberal, tendo como objetivo o desenvolvimento da dignidade do indivíduo. Trata-
se de uma abordagem diferente, portanto, daquela utilizada pelas comunidades indígenas e
povos tribais, cujo regime de produção é comunitário e suas práticas politicas, mesmo que
descaracterizadas em larga medida, são coletivas; excedem a perspectiva da acumulação
individual, senão a sobrevivência do grupo.
Merecem igualmente destaque a Convenção nº 111 (1958) – sobre a discriminação no
acesso ao emprego, nas condições de formação e de trabalho, com fundamento na raça, cor,
sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, bem como a promover
a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e de profissão; a
Convenção nº 138 (1973) – sobre idade mínima de admissão ao emprego que buscou afastar o
perigo do trabalho infantil e a Convenção nº 182 (1999) – sobre proibição e eliminação das
piores formas de trabalho das crianças.
Os documentos que em análise podem servir de exemplos para ilustrar o modo como a
comunidade internacional tem atuado na defesa do trabalho decente para indígenas e povos
tribais, assim como os desafios para a efetivação destes institutos nos países em que foram
adotados.

3.2.1 Convenção nº 169 dos Povos Indígenas e Tribais (1989) e Declaração sobre os
Direitos dos Povos Indígenas e Tribais (2007)

Com atraso de 497 anos a comunidade internacional, através da Organização


Internacional do Trabalho e a ONU, apresenta ao mundo normas e orientações programáticas
para conter os abusos cometidos contra os indígenas e comunidades tribais no âmbito da
relação de trabalho, da sua identidade e direitos humanos. A data referida antes demarca
episódios denunciados por Las Casas392 de mortes e escravização de povos nativos na

392
LAS CASAS, Fray Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las Índias. 3ª Edición. Prólogo:
Olga Camps. Fontamara: México. D.F. 2014. p. 54. Tradução livre do autor.
121

América Latina, como na Nicarágua, “Haverá hoje em toda a dita província de Nicarágua
obra de quatro, ou cinco mil pessoas as quais matam cada dia com os serviços e opressões
quotidianas e pessoais.” A convenção 169 vai, contudo, além de regulamentar as relações de
degradação no trabalho que envolvem indígenas, ela se transformou a principal ferramenta de
luta dos povos indígenas na América Latina, pelo seu conteúdo vasto e inclusivo dos povos
indígenas, assim como a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas e Tribais será um marco
institucional que reproduz a Convenção 169 para os países membros da ONU.
As iniciativas propostas pela Convenção 107 (1957), ainda fincada na integração dos
indígenas ao Estado-nação, dava ao Estado a condução de politicas para os indígenas, sem
tratar de temas importantes para o direito dos povos indígenas, como a autodeterminação. Em
1989 com a aprovação da Convenção 169 da OIT substituiu, porque mais ampla em direitos
para os indígenas, a Convenção 107393. Ficou de fora da convenção 169 a denominação como
“povos” para as comunidades indígenas, postura que segue uma linha de entendimento
normativo da ONU para preservar a autonomia dos Estados Nacionais que são membros da
OIT e da ONU.
Não passou despercebida, entretanto, a questão da identidade dos povos indígenas -
ponto especialmente sensível para comunidades indígenas aculturadas e descaracterizadas no
século XXI. Para a Convenção 169 um dos parâmetros para fixar a identidade é auto
declaração (consciência)394, é indiscutivelmente um avanço significativo para o
fortalecimento e apoio à lutas das populações que buscam se firmar com sua cultura e
identidade a aquisição de direitos, senão vejamos:

A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como


critério fundamental para determinar os grupos que se aplicam. (Art. 1º, 2). É
indígena aquele que descende de populações que habitavam o país ou uma região
geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do
estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação
jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais
e políticas, ou parte delas. (Art. 1º, 1 “b”).

O elemento cognitivo para fixar a identidade os povos indígenas – sobretudo para


aqueles que vivem nas cidades, ao lado do marco temporal fixado na interpretação do
Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro, tem sido um componente de perpetuação da
exclusão dos povos indígenas aos benefícios e direitos instituídos na Constituição Federal do
393
Cuba, El Salvador, Haiti, Panamá e República Dominicana ainda não haviam ratificado o Convenio 169
quando da conclusão desta pesquisa, consequentemente, para eles vige a Convenção 107, a qual havia firmado
adesão.
394
SANTOS, José Aparecido. A Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas. In. SOUZA FILHO,
Carlos Frederico Marés de. BERGOL, Raul Cezar. (Orgs). Os Direitos dos Povos Indígenas no Brasil:
Desafios no Século XXI. Curitiba: Letras da Lei, 2013. p. 35 - 58. p. 41
122

Brasil de 1988. São, em geral, povos que tiveram suas terras expropriadas por gerações e
gerações, que vivem em submissão politica, “debilitação cultural e discriminação”. Corolário
da colonização a que foram submetidos. São povos que foram submetidos a “politicas de
extermínio e assimilação durante todo o século XIX, o integracionismo forçado de meados do
séc. XX e início do séc. XXI”395. Essas práticas não foram em vão, visavam refundar uma
nação sem índios, consequentemente esses povos, que foram a todo custo invisibilizados,
quando pretendem atualmente o seu reconhecimento da identidade, têm posto em questão sua
própria existência como povos, seja pelo órgão estatal, ou o judiciário.
A Convenção 169 revisa as convenções anteriores ao “determinar que os signatários
dispensassem tratamento diferenciado aos povos indígenas”.396, ao mesmo tempo em que
busca romper com os laços integracionistas que pautaram as politicas publicas na América
Latina. No plano normativo a convenção uma vez ratificada gera repercussão normativa
interna, passa a integrar o sistema normativo nacional. Posição diversa das Declarações, que
atuam como recomendações aos Estados nacionais.
A Convenção 169 da OIT entrou em vigor em 05.09.1991 e obteve 22 ratificações,
conforme quadro 8, a seguir:

Quadro 8 - Países que ratificaram a Convenção 169 da OIT.


País Date da Ratificação
Argentina 03 Jul 2000
Bolivia, Plurinational State of 11 Dec 1991
Brazil 25 Jul 2002
Central African Republic 30 Aug 2010
Chile 15 Sep 2008
Colombia 07 Aug 1991
Costa Rica 02 Apr 1993
Denmark 22 Feb 1996
Dominica 25 Jun 2002
Ecuador 15 May 1998
Fiji 03 Mar 1998
Guatemala 05 Jun 1996

395
FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. Aos 20 anos do Convênio 169 da OIT: Balanço e Desafios da
Implementação dos Direitos dos Povos Indígenas na América Latina. In VERDUM, Ricardo. Organizador.
Povos Indígenas: Constituições e Reformas Politicas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos
Socioeconômicos - INESC, 2009. p. 13.
396
DREMISKI, João Luiz. LINI, Priscila. A Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho. In.
FILHO, Carlos Frederico Marés. BERGOL, Raul Cezar. (Orgs). Os Direitos dos Povos Indígenas no Brasil:
Desafios no Século XXI. Curitiva: Letras da Lei, 2013. p. 75-96. p. 76.
123

País Date da Ratificação


Honduras 28 Mar 1995
Mexico 05 Sep 1990
Nepal 14 Sep 2007
Netherlands 02 Feb 1998
Nicaragua 25 Aug 2010
Norway 19 Jun 1990
Paraguay 10 Aug 1993
Peru 02 Feb 1994
Spain 15 Feb 2007
Venezuela, Bolivarian Republic of 22 May 2002
Fonte: Adaptado de OIT397, 2016.

Através da Convenção 169398 os Estados-membros deverão adotar medidas especiais,


conforme apropriado, para a salvaguarda das pessoas, instituições, propriedade, trabalho,
culturas e meio ambiente dos povos indígenas e tribais (Art. 4º), vejamos que as normas
brasileiras que instituiu politicas públicas a partir de então buscam cumprir essas
determinações com destaque para a “demarcação de terras indígenas” e a Política Nacional de
Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI instituída pelo Decreto 7.747
de 05 de Junho de 2012.
As terras ocupadas pelos índios, de acordo com a Convenção 169, devem ter seu
processo de desenvolvimento associado à melhoria das condições de vida e de trabalho e
níveis de saúde e educação dos povos indígenas e tribais, com a sua participação e
cooperação. (Art. 7º, 2).
Em questões trabalhistas devem os governos signatários da Convenção 169 instituir
disposições legislativas e regulamentares, e em cooperação com os povos interessados, para
assegurar a proteção eficaz em matéria de recrutamento e condições do emprego dos
trabalhadores pertencentes a esses povos, na medida em que eles não são efetivamente
protegidos por leis aplicáveis aos trabalhadores em geral. (Art. 20, 1). Dentre os direitos a
serem garantidos está fazer todo o possível para evitar qualquer discriminação entre os

397
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. OIT. Ratifications of C169: Indigenous and Tribal
Peoples Convention, 1989 (No. 169). Date of entry into force: 05 Sep 1991. Disponível em:
<http://ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:11300:0::NO:11300:P11300_INSTRUMENT_ID:312314>. Acesso
em: 07 Jun.2017.
398
ORGANIZAÇÃO INTERNAICONAL DO TRABALHO. OIT. Understanding the Indigenous and Tribal
People Convention, 1989 (No. 169). Handbook for ILO Tripartite Constituents / International Labour standards
Department. Geneva: International Labour Organization, 2013. Disponível em: <www.ilo.org/indigenous>.
Acesso em: 31 Ago.2015. Tradução do autor.
124

trabalhadores pertencentes aos povos em causa e outros trabalhadores, em particular no que se


refere: (a) admissão ao emprego, incluindo empregos qualificados, bem como medidas de
promoção e avanço; (b) igualdade de remuneração por trabalho de igual valor; (c) assistência
médica e social, segurança e saúde ocupacional; todos benefícios da segurança social e
quaisquer outros benefícios relacionados ocupacionalmente, e habitação; (d) o direito de
associação e liberdade sindical para todos e o direito de celebrar acordos coletivos com
organizações de empregadores ou empregadores. (Art. 20, 2).
As iniciativas locais e culturais deverão ser fortalecidas e apoiadas: artesanato,
indústrias rurais e comunitárias e subsistência econômica e atividades tradicionais dos povos
em questão, tais como caça, pesca, captura e recolhimento, deve ser reconhecida como
importante, assim como os fatores da manutenção de suas culturas e em sua auto-suficiência
econômica e desenvolvimento. Os governos devem, com a participação destas pessoas e
sempre que adequado, certifique-se de que essas atividades são reforçadas e promovidas.
Um dos pontos polêmicos da aplicação no Brasil da convenção 169 da OIT é o direito
dos povos indígenas à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado de obras, ações e
ou serviços em território indígena. Os povos indígenas, organizações sociais399 e acadêmicas
analisam os prejuízos do desrespeito à normativa vigente em razão das decisões recentes do
STF, que impõe limitações ao exercício do referido direito. No caso Raposa Serra do Sol o
STF entendeu que não se trata de um direito absoluto, o respeito à consulta, “podendo ser
excepcionado quando estiverem em jogo outros bens constitucionais relevantes, como a
defesa nacional”. Trocando em miúdos, “a decisão final do Poder Público não dependeria da
aquiescência dos indígenas”. Este tema relevante tem ocupado mesas de debates e publicações
especializadas na América Latina e especialmente no Brasil, no Programa de Pós-Graduação
em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em Curitiba, no âmbito do Centro
de Estudos de Direito Socioambiental400, que em geral, discorda desse entendimento.

399
GARZÓN, Biviany Rojas. YAMADA, Erika M. OLIVEIRA, Rodrigo. Direito à Consulta e Consentimento
de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais. DPLF: Washington, D.C./São Paulo, 2016.
P. 11.
400
A Convenção 169 da OIT não sendo o tema central de nossa pesquisa pode ser objeto de estudos mais
detalhados para sua melhor compreensão. Destaque-se, contudo, que os estudiosos do tema tem acompanhado
com preocupação o avanço no Brasil de projetos de lei que podem comprometer e afetar diretamente os povos
indígenas e tribunais e tramitam à revelia do direito à consulta e consentimento prévio livre e informado. São
eles: Projeto de Emenda Constitucional para assegurar aos índios participação nos resultados do aproveitamento
de recursos hídricos em terras indígenas. PEC 76/2011. Projeto de lei sobre mineração em terras indígenas. PLC
1.610/1996. PEC 161/2007. Projeto de lei sobre reconhecimento e demarcação de territórios quilombolas – PDL
44/2007. Projeto de Lei sobre regras de auto identificação quilombola. PL 3.654/2008. PEC que altera regras de
demarcação de terras indígenas 71/2011. Projeto de lei sobre uso de recursos naturais dentro de terras indígenas.
PLC 227/2012. Projeto de Lei sobre mineração com disposições específicas sobre mineração em terras
indígenas, território quilombolas e unidades de conservação. PL 5.807/2013. PL sobre reconhecimento e
125

Neste mesmo intento em 13 de setembro de 2007 a Assembleia Geral das Nações


Unidas aprovou a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais. Documento
que se alia aos mais importantes em termos de avanços internacionais de reconhecimento e
proteção dos povos indígenas. A Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas não é um
instrumento normativo de aplicação direta para os Estados declarantes mas a aprovação da
Declaração pelo Estado brasileiro, em razão do Artigo 5º da constituição nacional, é
imperioso que seja respeitada no direito interno e nas ações e politicas publicas que envolva
no Brasil os temas ali declarados e anuídos.
A Declaração traz em seu bojo direitos individuais e coletivos (à identidade e à
cultura), especialmente, e o vínculo inseparável homem/natureza – que a todo custo o
capitalismo colonial buscou destruir no Brasil. Além de fortalecer o direito de consulta e
informação livre e esclarecido aos povos indígenas, já presente na convenção 169 da OIT,
compreendemos que a grande novidade desta declaração está na previsão dos direitos dos
povos indígenas de autodeterminar-se, ou seja, reconhece o direito de subsistência e o direito
a terras, territórios e recursos, com base em sua cultura, modos de políticos e desenvolvimento
econômico401, ainda que dentro do Estado Nacional (arts. 3º e 4º).
No art. 4º o direito à autonomia ou ao autogoverno é previsto, mas restrito aos
assuntos internos do grupo social, assim como os meios para financiar suas funções
autônomas. No art. 25 aos povos indígenas ficamos assegurados possuir, utilizar, desenvolver
e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional,
ou outra forma tradicional de ocupação ou utilização. Para fazer o autogoverno a legislação
estima ações de planejamento e orçamento, a partir da elaboração de prioridades e estratégias
para o desenvolvimento ou utilização de suas terras, territórios e recursos, é o conteúdo do art.
32.

demarcação de terras indígenas PL 1.216/2015. E a PEC 215/2000 sobre a mudança de competência para
demarcação de terras indígenas, que segundo análise dos movimentos sociais colocaria em risco 228 processos
em tramitação para demarcação, devolvendo ao Congresso Nacional toda a máteria em discussão, seja
administrativa ou judicial. A tramitação, dizem os especialistas, não respeitou o direito de consulta e
consentimento prévio, estabelecida na convenção 169 da OIT.
401
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. UNESCO.
Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil. UNIC-RIO e Instituto Socio-Ambiental. ISA.
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: Perguntas e Respostas. Brasília, 2008.
Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0016/001627/162708POR.pdf. Acesso em 07 Jun.2017. p. 5.
126

3.2.2 Recomendação nº 202 de Piso de Proteção Social e Saúde (2012) e Recomendação


nº 204 da Transição da Informal para Economia Formal (2015)

A situação de escravidão e servidão a que foram submetidos os indígenas durante a


colonização é o ponto de partida para a recomendação 202, ao perceber traços ainda vigentes
de abusos quanto ao trabalho de indígenas. A recomendação 202 reafirma que a segurança
social é um direito humano e uma necessidade social e econômica. Dentre seus objetivos está
assegurar progressivamente níveis de segurança social completos e adequados ao maior
número possível de pessoas. As políticas para a segurança e proteção social deverão ser
aplicadas nacionalmente nos países que adotarem a recomendação e como tal devem avaliar o
nível de prevenção e mitigação da pobreza, vulnerabilidade e exclusão social que essas
políticas obtiverem.
A seguridade social é o instrumento percebido pela OIT para garantir proteção aos
trabalhadores em situação de incapacidade laboral. A ideia era um seguro social ou
seguridade social, querendo significar:

a proteção que a sociedade proporciona aos membros, mediante uma série de


medidas públicas, contra privações econômicas e sociais, as quais derivam do
desaparecimento ou redução de seus ganhos, em razão de uma série de eventos,
como a doença, a maternidade, o acidente do trabalho, o desemprego, a invalidez, a
velhice e a morte... assim como a proteção em forma de assistência médica e ajuda
às famílias com filhos402.

Dentre as normas da OIT com prescrições e recomendações para a seguridade social


destacam-se a Declaração da Filadélfia (1944) – sobre o incentivo aos Estados para que
houvesse mecanismos de acesso e assistência médica integral, incluindo as famílias dos
trabalhadores e de proteção à maternidade; a Convenção 102 (1952) que amplia a matéria
referida anteriormente e acrescenta mecanismos para a seguridade social que envolve:
cobertura para doenças, velhice, acidente de trabalho, doenças profissionais, desemprego,
invalidez e morte; a situação dos imigrantes, muito preocupado neste início do século XXI, já
era tema desde as Convenções 118 (1962), 157 (1982) e 167 (1983), e que instituem dentre

402
PIERDONÁ, Zélia Luiza. A Importância da OIT para a Expansão, a Evolução e o Aprimoramento da
Proteção Social. In CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. VILLATORE, Marco Antonio César.
Coordenadores. Direito Internacional do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho. Um Debate
Atual. Atlas: São Paulo, 2015. p. 13-24. p. 19.
127

outras questões: igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, conservação de


direitos adquiridos, manutenção dos direitos em formação, reciprocidade403 etc..
Faltava ainda um tratamento universal ao tema, que estava sendo aplicado
diversamente entre os Estados-membros da OIT; em alguns casos pela não ratificação de
convênios como o 102 da OIT. Estes impasses vieram a ser, igualmente, a motivação para em
2012 a Conferência Geral da OIT editar a Recomendação 202, que trata do piso de proteção
social para os Estados-membros; iniciativa que vai além da proteção do trabalhador e alcança
a todas as pessoas. Esta recomendação, em seu preâmbulo, reafirma a segurança social como
um direito humano e a reconhece como uma ferramenta importante para prevenir e reduzir a
pobreza, a desigualdade social, a exclusão e a insegurança social, para promover a igualdade
de oportunidades, a igualdade de gênero e a igualdade racial, aí inserido a questão indígena
como paradigma étnico-racial.
No artigo 5º da Recomendação há um conjunto de ordenações que conformam o
conteúdo principal da norma, que deve ser seguida pelos Estados-membros na medida de suas
possibilidades, através de leis, as seguintes garantias básicas de segurança social: (a) acesso a
um conjunto de bens e serviços definidos a nível nacional, que constituam os cuidados de
saúde essenciais, incluindo a assistência à maternidade e que cumpram com os critérios de
disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade; (b) segurança básica de
rendimento para crianças, situando-se pelo menos a um nível mínimo definido no plano
nacional, que proporcione o acesso à alimentação, educação, cuidados e outros bens e
serviços necessários; (c) segurança básica de rendimento, situando-se pelo menos a um nível
mínimo definido no plano nacional, para pessoas em idade ativa sem capacidade para obter
um rendimento suficiente, particularmente nos casos de doença, desemprego, maternidade e
invalidez; (d) segurança básica do rendimento para as pessoas idosas, situando-se pelo menos
a um nível mínimo definido no plano nacional.
Para as comunidades indígenas dos países latino-americanos, que tem uma população
marginalizada de povos indígenas, que lutam por reconhecimento e visibilidade, a seguridade
social ainda é uma meta distante. Considerando que os demais cidadãos não alcançaram a
seguridade social satisfatoriamente, a situação dos índios é mais grave ainda.
A Recomendação 204, por sua vez, vem ao encontro das normativas expressas na
Convenção 169 (1989). As iniciativas laborais em territórios, povos e comunidade indígenas

403
PIERDONÁ, Zélia Luiza. A Importância da OIT para a Expansão, a Evolução e o Aprimoramento da
Proteção Social. In CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. VILLATORE, Marco Antonio César.
Coordenadores. Direito Internacional do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho. Um Debate
Atual. Atlas: São Paulo, 2015. p. 13-24. p. 21.
128

são em sua maioria informais. Ademais que as indicações presentes na Recomendação dão
conta de que mulheres, jovens, imigrantes, idosos, povos indígenas e tribais, as populações
pobres de zonas rurais, populações afetadas pelo HIV ou SIDA e as pessoas portadoras de
deficiência são especialmente vulneráveis aos déficits de trabalho decente.
Igualmente as políticas de promoção do trabalho formal deverão ter em conta a
necessidade de uma atenção especial para as pessoas que estão expostas na economia
informal, incluindo povos indígenas e tribais, criando regras para mudanças e incentivos para
a economia formal, reconhecendo nesta modalidade de trabalho situações de dignidade e
decência.

3.2.3 A atuação tardia do Mercado Comum do Sul – MERCOSUL na defesa dos Direitos
Humanos e dos Povos Indígenas

O Mercosul iniciou sua atuação em 26 de março de 1991, com a assinatura do Tratado


de Assunção pelos governos de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Em 2012 ingressou em
definitivo a Venezuela e em 2015 a Bolívia como Estado-Parte. Um universo populacional
expressivo: 280 milhões de habitantes, mais de 70% da população da América do Sul; PIB de
mais de US$ 3,2 trilhões; e território de 13,79 milhões de km², mais de 72% da área da
América do Sul404.
Nesta sessão a análise se restringe ao Direito de Proteção aos Índios e às politicas
indigenista na América Latina, situando a experiência do Mercosul, na produção normativa,
ainda que programática. Participam como membros fundadores do mercado comum do sul: a
Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai. Desde 2012 a Venezuela passa a integrar como
membro pleno o Mercosul, igualmente, em julho de 2015 o Presidente da Bolívia assinou o
protocolo de adesão do seu país ao Mercosul em reunião ocorrida em Brasília. Entre membros
plenos e associados, atualmente o Mercosul atua com todos os países da América do Sul.
A Argentina tem aproximadamente 40,1 milhões de habitantes, em um território de
2.780.092 km², dados do censo de 2010. Em 2012 estudo realizado em Cambridge indicou o
percentual genético dos argentinos cuja contribuição de indígenas chamou a atenção nos dois
estudos o segundo pelo percentual acentuado de 31% da genética dos argentinos terem
contribuição indígena e o primeiro pelo fato de que somente 1% da população se autodeclarar
descendentes de índios. Senão vejamos no estudo de Cambridge: 65% de contribuição

404
BRASIL. Mercosul. Disponível em: <http://www.mercosul.gov.br/>. Acesso em: 27.Ago.2015.
129

europeia, 31% de contribuição indígena e 4% de contribuição africana para a população


argentina.405 Neste trabalho apenas 1% da população Argentina se auto-identifica como
descendentes de índios.
No Brasil em 2010 a população brasileira estava estimada em 190.732.694 milhões de
pessoas. Em números aproximados a população indígena no Brasil em 2010 era de 762.930
pessoas esses números de indígenas autodeclarados no Brasil conformam 0,4%406 do total da
população. Os demais que compõem o quadro nacional temos ainda autodeclarados: 47,7% de
brancos; 7,6% de pretos; 1,1% de amarelos; 43,1% se declaram pardos em uma extensão
territorial de 8.515.767,049 km2 .
No Paraguai, segundo os resultados do III Censo Nacional de População e Habitações
para povos indígenas de 2012407 existiam 493 comunidades e 218 aldeias ou bairros, que
totalizavam 711 comunidades, aldeias ou bairros. Deste total 357 declararam que possuem
terra própria e 254 comunidades declararam contar com alguma dificuldade que afeta os
recursos naturais dentro de seu território. Para o censo de 2012, 112.848 mil pessoas se
declararam indígenas no Paraguai. A população do País em 2012 era de 6.672.631;
aproximadamente 1,69% da população se dizia indígena. O território do Paraguai é
406.752 km²
O Uruguai tem uma discussão sobre a existência de índios que se reporta à extinção
pela colonização europeia dos espanhóis. Curiosamente é um dos únicos países latino-
americanos que não assinaram a convenção 169 da OIT, temendo a reivindicação de
territórios por remanescentes indígenas. Embora atualmente, Segundo o censo oficial de 2011,
cerca de 160 mil uruguaios408 declararam ter ascendência indígena. Isso representa quase 5%
da população do país, de 3,395 milhões de habitantes. O território do Uruguai compreende
318.413 km².
A Venezuela compreende uma área de 916.445 km². No censo de 2011, conforme
publicação do Instituto Nacional de Estatísticas da Venezuela, a população indígena,
autodeclarada é de 724.592 pessoas, de um total de 27.227.930 milhões; o que corresponde a

405
AVENA S, Via M, Ziv E, Pérez-Stable EJ, Gignoux CR, DEjean C, et al. (2012) Heterogeneidade genética
em Admixture em diferentes regiões da Argentina. Disponível em:
<http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0177103>. Acesso em: 22 Jun.2017.
406
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE. Indígenas. Disponível em:
<http://indigenas.ibge.gov.br/images/indigenas/estudos/indigena_censo2010.pdf>. Acesso em 30 Ago.2015.
407
DIRECCIÓN GENERAL DE ESTADÍSTICA, ENCUESTAS Y CENSOS. DGEEC. Paraguay. Notícias.
Disponível em: <http://www.dgeec.gov.py/newspaper/index87.php>. Acesso em: 30 Ago. 2015.
408
INSTITUTO NACOINAL DE ESTADÍSTICA. INE. Uruguay. Anuário 2014. Disponível em:
<http://www.ine.gub.uy/biblioteca/anuario2014/datos/1.1.3.pdf>. Acesso em: 30 Ago.2015.
130

2,7% da população. Na Cúpula de Caracas, realizada em julho de 2014409, destaca-se a


Reunião de Autoridades de Povos Indígenas. Uma das prioridades da Presidência pró-tempore
do bloco, exercido pela venezuelana desde 2013 foi a realização do foro indígena, responsável
por coordenar discussões, políticas e iniciativas em benefício desses povos.
A Bolívia, o mais recente membro permanente do Mercosul tem uma população
estimada em 2012 de 10.059.856 milhões de habitantes (após conferência final dos dados em
2014) em uma área de 1.098.581 km². A população ameríndia é estimada em 55% da
população410; os restantes 30% são mestiços (entre ameríndios e brancos) e cerca de 15%
são brancos.
A seguir no quadro 9, comparativo da população dos membros permanentes plenos do
Mercosul e a população indígena autodeclarada desses países, de conformidade com os censos
divulgados pelos órgãos de estatísticas e dados de cada Estado.

Quadro 9 - Dados da População indígena do MERCOSUL

Descrição Argentina Brasil Paraguai Uruguai Venezuela Bolívia Total


Censo 2010 2010 2012 2011 2011 2012
População 40.117.096 190.732.694 6.672.631 3.251.654 27.227.930 10.059.856 278.061.861
Total
População
Indígena 955.032 762.930 112.848 159.319 724.592 5.532.920 8.247.641
Percentual %
Indígenas na
2,4 0,4 1,69 5 2,7 55 2,96 %
população.

Fonte: Autor, 2017.411

O objetivo primordial do bloco é a integração dos Estados Partes nos vieses


econômicos, por meio da livre circulação de bens e serviços; do estabelecimento de uma
Tarifa Externa Comum (TEC); da adoção de uma política comercial comum; da coordenação
de políticas macroeconômicas e setoriais e da harmonização de legislações nas áreas
pertinentes; neste sentido um dos principais avanços foi a edição em 2010 do código
aduaneiro do Mercosul.
Na definição dos objetivos é que reside o maior motivo de críticas, uma vez que a
escolha de atuar com fins econômicos, nos termos propostos, excluiu a busca por integrar
ações de defesa de direitos sociais e humanitários que são condição para o exercício do
desenvolvimento humano em bases sustentáveis.

409
BRASIL. Mercosul. Disponível em: <http://www.mercosul.gov.br/>. Acesso em: 27. Ago.2017.
410
Outras fontes indicam que a Bolívia tem uma população de aproximadamente 6,2 milhões de indígenas, ou
seja, o país da América Latina com a maior porcentagem de população autóctone.
411
Institutos de estatísticas de cada País. Colhido através do site oficial e relatórios publicados pelos Governos.
131

A conformação desses objetivos não alcançou pleno êxito e muitos problemas nessa
relação se notabilizaram na década de 1990 e teve uma recaída significativa na década
seguinte, com a constate perda de importância do bloco nas economias dos Países envolvidos.
Em seu histórico alguns fatos e datas merecerem destaque, como a caracterização do
Mercosul como personalidade jurídica de direito internacional do bloco, atribuindo-lhe, assim,
competência para negociar, em nome próprio, acordos com terceiros países, grupos de países
e organismos internacionais, cuja previsão constava do Protocolo de Ouro Preto, de 1994.
Dentre os documentos que conformam a atual estrutura do Mercosul, destacamos:
a) A criação do Instituto Social do Mercosul (2007) e do Instituto de Políticas
Públicas de Direitos Humanos (2009);
b) A aprovação do Plano Estratégico de Ação Social do Mercosul (2010);
No âmbito da atuação do Mercosul em matéria dos direitos humanos e dentre eles do
trabalho, o instituto de políticas públicas de direitos humanos e do Fundo para a Convergência
Estrutural do Mercosul são os principais avanços, com desdobramentos importantes nos anos
que se seguiram sua criação. A partir da criação do fundo, aumentou a escala de contribuição
internacional para a melhoria em setores como habitação, transportes, incentivos à
microempresa, biossegurança, capacitação tecnológica e aspectos sanitários.
Nos documentos fundadores do Mercosul, tratado de Assunção, assinado em 1991 e
no tratado de Montevidéu, de 1980, que institui a Associação Latino-Americana de Integração
(ALADI), nenhuma referência às populações originais da América, tratava-se efetivamente de
uma busca pela integração em aspectos somente econômicos. Igualmente omisso foi o
Tratado de Assunção em questões de ordem social, de modo geral. O mais próximo que
chegamos do tema e de semelhante importância é a questão sindical que teve assento na
Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS)412 e o foro indígenas, como
referido, instituído na reunião de Caracas em 2013. A criação da coordenadoria de certa
maneira atenuou a omissão do Tratado de Assunção sobre atuação do Mercosul em defesa dos
Direitos Sociais, uma vez que estava entre os objetivos da coordenadoria “defender a
democracia e os direitos humanos”413. A partir dessa iniciativa um subgrupo de “Emprego e

412
SCABIN, Roseli Fernandes. A Importância dos Organismos Internacionais para a Internacionalização
e Evolução do Direito do Trabalho e dos Direitos Sociais. In CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa.
VILLATORE, Marco Antonio César. Coordenadores. Direito Internacional do Trabalho e a Organização
Internacional do Trabalho. Um Debate Atual. Atlas. São Paulo. 2015. p. 1-11. p. 6.
413
CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. NETO, Francisco Ferreira Jorge. A Dimensão Social no
Mercosul e os Novos Desafios. In CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. VILLATORE, Marco Antonio
César. Coordenadores. Direito Internacional do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho. Um Debate
Atual. Atlas. São Paulo. 2015. p. 81-106. p. 81.
132

Relações Trabalhistas” foi criado em 1991 através da Resolução Mercosul GMC 11/91, que
teve sua denominação ampliada em 1992 para Subgrupo de Trabalho para Relações
Trabalhistas, Emprego e Seguridade Social e que elegeu em suas análises 34 Convenções da
OIT para que fossem ratificadas pelos membros do Mercosul, dentre elas a Convenção 107 –
das Populações Indígenas e Tribais.

3.3 A PROTEÇÃO DOS ÍNDIOS NO DIREITO BRASILEIRO (1500 – 1988)

No Brasil ao longo do século XIX, XX e XXI, foi criado um conjunto de políticas que
tinham e tem como destinatários os índios. Há políticas indigenistas e políticas indígenas.
Políticas indigenistas são aquelas produzidas pelo Estado português – durante a
colônia ou pelo Estado Brasileiro até nossos dias tendo como destinatários os índios. As
politicas indígenas414, a seu tempo, são aquelas praticadas pelos povos íncolas entre si ou com
outras nações também indígenas, conceitos adotados para esta pesquisa.
Como veremos adiante o Brasil fará o dever de casa sob o ponto de vista da criação
normativa: em 1910 cria o Serviço de Proteção ao Índio – SPI; na década de 50 e 60 buscou o
Estado consolidar a opinião pública para a questão da demarcação de terras indígenas415 e
com a criação em 1967 da Fundação Nacional do Índio – FUNAI ampliar a politica de
demarcação e assistência ao indigenato, bem como ajustar a política indigenista brasileira para
se adequar à Convenção sobre o Instituto Indigenista Interamericano, resultante do Congresso
Indigenista Interamericano, ocorrido em Pátzcuaro no México em 1940. O Brasil aderiu em
1953, através do Decreto Legislativo nº 55. Um dos objetivos era estimular a criação de
institutos indigenistas nacionais, 16 foram criados.
O Instituto Indigenista Interamericano tem sede no México e no século XX perdeu
força, constituindo-se em razão da falta de investimentos, como acervo de documentação para
os institutos nacionais e membros da Organização dos Estados Americanos – OEA. Os
institutos nacionais continuaram com sua jornada, a exemplo da FUNAI no Brasil, que aderiu
em 1953, através do Decreto Legislativo nº 55. Um dos objetivos era estimular a criação de
institutos indigenistas nacionais, 16 foram criados. Outros 10 congressos interamericanos se
realizaram entre os anos de 1949 a 1993, tendo um deles ocorrido em Brasília no ano de 1972.

414
INSTITUTO SÓCIOAMBIENTAL. Povo Indígenas no Brasil na Atualidade. Disponível em:
<https://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/o-que-e-politica-indigenista/na-atualidade>. Acesso
em: 13 Mar.2017.
415
SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. HOFFMANN, Maria Barroso. Questões para uma Política Indigenista:
Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas. Contra Capa: Rio de Janeiro, 2002. P. 12.
133

A referida convenção ainda é vigente e traz no seu preâmbulo as questões macro a serem
desenvolvidas pelos países aderentes:

- Criar instrumentos eficazes de colaboração para a resolução de problemas que lhes


são comuns, e reconhecendo que o problema indígena abrange tôda América; que
convém elucidá-lo e resolvê-lo, pois que apresenta em muitos dos países americanos
características idênticas;

- Esclarecer, estimular e concatenar a política indigenista dos diversos países,


compreendida esta num conjunto de desiderata, normas e medidas que se devem
aplicar para melhorar duma maneira integral a vida dos grupos indígenas da
América, e considerando que o estudo da criação de um Instituto Indigenista
Interamericano foi recomendado pela Oitava Conferência Internacional, reunida em
Lima, em 1938, numa deliberação que diz: - "O Congresso Continental de
Indianistas estudará a conveniência de estabelecer um Instituto Indianista
Interamericano, para cujo caso precisará os têrmos da sua organização, dando os
passos necessários para a sua imediata instalação e funcionamento”

- Os Governos signatários tomam o acôrdo de elucidar os problemas relacionados


com os núcleos indígenas nas suas jurisdições respectivas, cooperando entre si sôbre
a base do respeito mútuo e dos direitos inerentes à sua completa independência para
a resolução do problema indígena na América, por meio de reuniões periódicas, de
um Instituto Indigenista Intermaericano, e de Institutos Indigenistas Nacionais, cuja
organização e funções serão regidas pela presente Convenção.

Lentamente as reflexões e estudos sobre a questão indígena avançavam na América


Latina. Em 1971 em Barbados, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura - UNESCO e a Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais - FLACSO
promovem articulação para analisar os “efeitos etnocidas das políticas
desenvolvimentistas”416. Em 1981, em São José da Costa Rica, outra reunião promovida pelos
mesmos atores resultou em formulação de propostas para um desenvolvimento alternativo, ou
etnodesenvolvimento, uma vez “denunciado o etnocídio a que estavam sendo submetidos os
povos indígenas da América Latina”417. Para o Brasil o ápice das conquistas do movimento
acadêmico e social foi a Constituição de 1988, com um capítulo dedicado aos povos indígenas
e comunidades tradicionais.
A questão indígena é um movimento de autoafirmação e de luta pelo direito à
identidade, à cultura e à terra. Para cada um desses elementos os desafios vão se avolumando,
porque se trata de enfrentar o sistema capitalista, em aspectos sensíveis do conceito de meios
de produção, bens de consumo, natureza, organização e capital. Por outro lado a questão da

416
SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. HOFFMANN, Maria Barroso. Questões para uma Política Indigenista:
Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas. Contra Capa: Rio de Janeiro, 2002. P. 10.
417
VERDUM, Ricardo. Etnodesenvolvimento: A "Pedra de Toque" no Neo-Indigenismo? Anais da 56ª Reunião
Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004. Disponível em:
<http://www.sbpcnet.org.br/livro/56ra/banco_conf_simp/textos/RicardoVerdum.htm>. Acesso em: 07 Jun.2017.
134

identidade transparece como elemento fundante de direitos, em outras palavras, os índios e


comunidades tradicionais devem mostrar quem são verdadeiramente: índios, quilombolas,
ribeirinhos, etc., ser quem são, ou ao menos deveriam ser, ou querer ser. Muito embora há
ainda hoje uma grande dificuldade em querer ser o que não “deve ser”, segundo uma cultura
de exclusão ou marginalização, que gera danos de natureza material e imaterial, ou moral.
Para nossa tese, a identidade (autoreconhecer-se, autoafirmar-se) é a condição para
serem índios Kariris do Cariri, do Sítio Poço Dantas, do Distrito de Santa Fé, do Crato. Para
eles até então invisíveis é reconstituir o caminho de volta, sair da invisibilidade em que
estiveram imersos.
Somente a partir da Constitucional de 1988 e legislação complementar, o Estado
brasileiro avançou nesta seara, no que pese o entendimento obtuso do Supremo Tribunal
Federal418 acerca do marco temporal para fixar o direito à terra dos indígenas. Esses avanços e
questionamentos de ordem doutrinária e jurisprudencial sobre a aplicação da Constituição de
1988 só foram possíveis após mais de 500 anos de resistência.

3.3.1 Políticas Públicas Indigenistas no Brasil

Entre 1500 e 1910 foram 410 anos de exploração extrema. Os elementos de


dominação postos em prática na América e no Brasil levaram em consideração a terra como
propriedade e a mão-de-obra para produção de produtos e serviços para a Corte. Uma
contradição quando comparado ao estilo de vida dos nativos que tinham a terra como “um
bem coletivo, generosamente oferecido pelos antepassados”, uma ligação identitária que,
segundo Carlos Marés419 permitia que índios e natureza fossem elementos inseparáveis em
sua cultura; através dessa estreita relação “descobriam seus segredos e legado necessários aos
herdeiros que o perpetuariam”. Na cultura econômica dos nativos, se se pode dizer, “a
repartição haveria de ser dos frutos da terra, de tal forma que não faltasse ao necessário sem
sobejasse ao indivíduo,” conclui o citado autor. Os indígenas, portanto, não acumulavam
riquezas materiais, “eram paupérrimos e que menos possuíam, nem queriam possuir bens
temporais” e se retirados de sua aldeia, como escravos, logo morriam, confirma Las Casas420.

418
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. Súmula 650: “Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição
Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=1634>. Acesso
em: 02 Abr.2017.
419
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Fabris: Porto Alegre, 2003. p. 50.
420
LAS CASAS, Fray Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las Índias. 3ª Edición. Prólogo:
Olga Camps. Fontamara: México. D.F., 2014. p. 32, 54.
135

Esse processo de mudança ocorrido na terra que passou a ser “propriedade”421 com a
colonização, buscou a todo custo instaurar entre os nativos do Brasil e da América uma mão-
de-obra voltada para o sistema de produção capitalista nascente. Numa conjuntura em que o
homem das Américas era livre e vivia integrado à terra, dela tirando seu sustento, a lógica de
trabalhar para um patrão mediante salário, que fosse, não gerou qualquer interesse. A
violência e os trabalhos forçados foi um dos caminhos adotados por portugueses durante o
período colonial para obrigar os nativos ao trabalho. Com a chegada de Marques de Pombal
(1760-1808) e a implantação da politica de aldeamentos essa premissa do trabalho será
radicalmente imposta, com os índios e com os negros trazidos de várias regiões da África
colonial portuguesa.422
Ainda sobre a análise do elemento territorial na seara econômica do capitalismo
nascente merece atenção as referências de Polanyi423 sobre a relação
homem/natureza/mercado, cujos pressupostos assinalam o homem e natureza como
instituições entrelaçadas, o trabalho como parte da vida humana e a terra/natureza/trabalho
como elementos não separados. E como esses elementos foram sendo atacados pelo sistema
de mercado. Separar o homem da terra foi o ponto central para implantar esse sistema de
produção fundado no assalariado e na produção para a mais valia, no caso português com a
exploração da mão-de-obra dos índios e escravos africanos nem salário se praticava. No seu
ambiente de produção homem/terra a “função econômica é apenas uma entre as muitas
funções da terra”, mas o capitalismo a resumiu a isto somente.
A lógica de criar uma cultura de mercado, produção e acumulação de capital definiu,
aquilo que Marx denominou de “descompasso entre o modo de produção da colônia e o modo
de produção capitalista” que impôs “acessões para forçar o trabalhador a seguir trabalhando
para adquirir a propriedade”424.
O Brasil pós-conquista marchava para se conformar como Estado nacional, para tanto
ainda no Império a Constituição de 1824 foi imposta por D. Pedro I, após deposição do

421
É nesse contexto que Carlos Marés nos ajuda a compreender a distinção entre terra e propriedade. Terra traz
consigo uma designação mais ampla que propriedade, sobretudo está inserida na ideia de bem comum, de um
bem coletivo, para os índios a terra é um elemento sagrado de proteção e que deve ser ao mesmo tempo
protegido. A ideia de propriedade da terra veio com os colonizadores e suas ideias liberais-capitalistas, para
quem a propriedade era um bem contratual para poucos, que deveria ser explorada.
422
Este capítulo sobre a escravidão no Brasil é uma página escrita a sangue pelos negros que não pode ser
esquecida. O Brasil tem em suas raízes a cultura negra; sua mestiçagem índio/negra formou a maioria dos
brasileiros enquanto povo.
423
POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Campus-Elsevier: Rio de Janeiro,
2000. p. 214-218.
424
MARX, Karl. O Capital: Crítica Da Economia Política. Livro primeiro. Abril Cultural: São Paulo, 1984. p.
377.
136

Congresso Constituinte em 1823. A Constituição – esse instrumento de poder desconhecido


da maioria dos brasileiros habitou desde 1821, com os movimentos pró-constituinte de
Portugal425, o imaginário dos sertanejos do interior do Brasil. A Independência em 1822
apressou a necessidade de fundar o Estado brasileiro sob o império normativo de uma
Constituição, era uma espécie de condição internacional para ser reconhecido como Estado.
No tocante à questão indígena foi omissa a Constituição Imperial de 1824.
No ato adicional à Constituição Imperial, em 1834, no artigo 11, parágrafo 5º o poder
central direciona a competência normativa às Assembleias Legislativas estaduais
para “Promover, cumulativamente com a Assembleia e o Governo Geral, a organização da
estatística da Província, a catequese, a civilização dos indígenas e o estabelecimento de
colônias.” Grifo nosso. Havia aqui uma descentralização que serviu somente aos interesses do
Estado, que a bem de proteger aos indígenas esta Constituição serviu, ao Ceará, com pretexto
normativo para extinguir, em 1835, “duas vilas de índios, seguidas de mais algumas em
1839426.”
Em 1845 o Império reedita medidas para regulamentar as missões. “É um documento
administrativo”427 que prolonga os aldeamentos seguindo a linha política de que os índios
precisam ser assimilados, como em uma etapa de transição para civilização.
Neste espaço de tempo entre 1824 até a próxima constituição, que será a republicana
de 1891, a Lei de Terras, de 1850 buscará ser a solução para a questão indígena (indigesta e
inconveniente ao sistema) porque os índios se recusavam a desaparecer e a questão das terras
devolutas tinha que ser consolidada como medida de expropriação das terras dos íncolas
brasileiros. Várias medidas foram tomadas antes mesmo da publicação da lei. O fim da
política de aldeamentos e instalação de Vilas foi um dos passos decisivos para dar por
encerrada a questão da expropriação de terras indígenas no Brasil; doravante foram – diziam
os colonizadores – incorporados ao tipo brasileiro428.
Claro estava que a questão era somente de dar legalidade ao processo de expropriação
da terra como propriedade para o regime de produção imposto, assemelhado ao que Marx

425
Em 1821 quando de sua partida do Brasil para Portugal, D. João VI orienta as Câmara Municipais para que
façam as eleições dos deputados para representarem o Reino do Brasil nas Cortes Gerais Extraordinárias e
Constituintes da Nação Portuguesa em Lisboa. Foram 97 os deputados e suplentes eleitos. Pelo Ceará foram 4
deputados, dentre eles, José Martiniano de Alencar.
426
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
Editora Claroenigma: São Paulo, 2012. p. 65.
427
Ibid., p. 68.
428
VALLE, Carlos Guillherme. Aldeamentos Indígenas no Ceará do Século XIX: Revendo Argumentos
Históricos sobre Desaparecimento Étnico. In PALITOT, Estêvão Martins (org). Na Mata do Sabiá:
Contribuições sobre a presença indígena no Caerá. Secult/Museu do Ceará/Imopec: Fortaleza, 2009. p. 121.
137

chamará de “acumulação primitiva do capital”. Tanto é que os documentos, fartos, da


província do Ceará e do Governo Imperial dão conta de que “a maioria dos índios que viviam
nos antigos aldeamentos não abandonou suas terras, mas foi obrigada a sair delas ou, então,
teve que encontrar certos nichos ou pequenas áreas para viver.”429
No Cariri, em razão dessa herança jurídica, é a grande quantidade de terrenos,
propriedades ainda hoje em regime de aforamento existentes em Crato e Santana do Cariri; é
que as Câmaras começaram – no vazio da lei, a dar títulos de aforamento para as propriedades
locais dos terrenos antes componentes dos aldeamentos, situação que se buscará regularizar
em 1887, corroborando serem devolutas as terras dos aldeamentos.
Durante toda a colônia andaram juntos no sofrimento e na luta, índios e negros. No
pós “libertação” dos escravos (1889), uma quantidade significativa de homens-livres, pobres e
sem apoio do Estado, andavam sem trabalho. Esse foi mais um pretexto para criminalizar no
código penal a vadiagem, ou seja, não trabalhar era uma condição criminosa, a partir de 1930.
O que se pretendia com essa medida era manter em regime de escravidão institucionalizada a
mão-de-obra. O trabalho constituía uma obrigação cuja disposição de vagas estava sob os
caprichos dos senhores com posses, a preço vil.
Marx com a ideia contextual da acumulação do capital primitivo faz uma ilação direta
com a ideia do surgimento do capitalismo e suas consequentes diferenciações em classes
sociais. Uma vez que é difícil imaginar a distinção entre ricos e pobres como um desígnio de
Deus.430
O cenário é de transição, na Europa, de uma sociedade rural predominantemente
agrícola, para uma sociedade mais urbana em processo de implantação do modo de produção
capitalista, clássico. Neste sentido Marx lista algumas das situações que resultaram na
implantação do sistema de produção capitalista e consequentemente situa a transição, dentre
os quais se destaca: “separação do produtor e dos meios de produção”431 como o primeiro
elemento de ruptura de um modo de produção para sobrevivência, sem a característica da
acumulação de capital. Na Europa esse processo se dá a partir do declínio do Feudalismo, em
que o servo deixa o feudo e fica livre para vender sua capacidade de trabalho, uma vez que
não tinha os meios de produção necessários. Estes meios foram-lhe arrancados pelos grandes

429
VALLE, Carlos Guillherme. Aldeamentos Indígenas no Ceará do Século XIX: Revendo Argumentos
Históricos sobre Desaparecimento Étnico. In PALITOT, Estêvão Martins (org). Na Mata do Sabiá:
Contribuições sobre a presença indígena no Caerá. Secult/Museu do Ceará/Imopec: Fortaleza, 2009. p. 144.
430
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro. Abril Cultural: São Paulo, 1984. Pp.
328/329, 342-344, 356.
431
Ibid., p. 328.
138

proprietários através da política de cercamientos432. O ambiente nos centros urbanos, para


onde migraram os expropriados e novos assalariados era hostil, principalmente para aqueles
que não conseguiram trabalho, que passaram a esmolar. Atividade, aliás, combatida com
muita força e repressão pelo Estado. O consequente da atuação do sistema é o aumento do
número de excluídos. Antes produtores, depois consumidores. Esse modelo teve na Inglaterra
o seu clássico exemplo.
Esses processos de produção e mercado, mão-de-obra e trabalho enfim, na relação
natureza x cultura geraram no Brasil do século XIX contradições na política brasileira, com
mudanças da Monarquia à República e na existência jurídica dos índios e suas terras: podia-se
doar em sesmarias em terras de índios, não podia sesmar. Não eram devolutas as terras dos
índios (1819), eram terras próprias nacionais. Finalmente em 1850, com a lei de terras os
direitos dos índios ficam “preservados”: as suas terras são indisponíveis, são “títulos
originários”. Uma questão prática e cruel, entretanto, se lhes impôs neste contexto: Quem
mais era índio para reivindicar essas terras?, depois da diáspora imposta e da expulsão sofrida,
como no caso do Ceará em 1780?
A incorporação dos índios à vida civilizada não era uma realidade fácil de atingir,
tanto quanto não foi fácil respeitar o gozo pleno das terras pelos índios aldeados, conforme
Decreto regulamentar nº 1.318 de 1854. Herança que nos chega ao século XXI no Brasil, de
criar leis bonitas que pouco ou nenhum efeito consegue ter na vida das pessoas interessadas.
A constituição republicana de 1891 ignora a condição do indígena no Brasil, como se
nunca houvera um Brasil indígena. Passa, porém, para os Estados todas as terras que eram das
províncias, entenda-se “as terras das aldeias indígenas extintas”433, no Ceará foram quase
todas, no Cariri os índios já haviam sido expulsos em 1780.
Entre 1891 e 1910, vemos a continuidade de uma política de desrespeito aos direitos
dos povos indígenas. Os conflitos se acentuaram em algumas regiões do Brasil. Neste período
a atuação integracionista do Marechal Rondon em outras ações no interior do Brasil, o
credenciou a dirigir o novo órgão criado sob pressão internacional, o Serviço de Proteção ao
Índio – SPI, que marca um divisor entre atuação do Estado para a proteção leiga do indígena
no Brasil, consideramos que é a primeira tentativa de fazer politica pública indigenista no
Brasil. Embora seja um militar positivista chamado a conduzir uma politica de transição para

432
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro. Abril Cultural: São Paulo, 1984.p.
351.
433
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil. História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
Editora Claroenigma. São Paulo. 2012. P. 80.
139

o que denominavam “Estado civilizatório do índio brasileiro”.434 Esta não é a opinião de


Darcy Ribeiro435, que se considerava discípulo e amigo de Rondon, para quem o SPI e a
atuação criadora do Marechal representou para os índios “o que representou a abolição para
os escravos”.
Em 1910 o Estado brasileiro volta-se para a “proteção” dos índios com a criação do
Serviço de Proteção ao Índio – SPI, após denúncia ocorrida no XVI Congresso de
Americanistas, em Viena (1908), dos maus tratos infligidos aos índios no Brasil. A politica
corrente até então era exclusivamente de expropriação das terras indígenas, escravização,
expulsão e morte dos nativos. O SPI representou o primeiro e principal instrumento normativo
de politica indigenista no Brasil até sua mudança para FUNAI.
Em 1916, data em que foi aprovado o código civil de inspiração em Clóvis Beviláqua,
a proteção aos índios se reduz ao tratamento assemelhado ao dado aos órfãos436: tutela ou
dizer do artigo 6º relativamente incapazes na vida civil a certos atos ou à maneira de os
exercer. As referências ora como silvícolas, entretanto, que o código civil brasileiro de 1916
faz, expressa o tratamento ainda vigente sobre os índios: selvagens 437 e incivilizados. A
análise de Fernando Dantas438 sobre este período é precisa: “os índios eram seres de
passagem, que tão logo domesticados pelo processo civilizatório deixariam de ser índios,
transformando-se em cidadãos comuns, integrados à comunhão nacional.” O novo código
dava tratamento de relativamente incapaz ao indígena/silvícola, tutelado pelo SPI. Igualmente
o eximia de ser criminalizado, semelhante ao que ocorria com os loucos e menores de idade.
Igualmente tornava inalienáveis as terras dos índios por eles mesmos439. Questão que suscita
polêmica ao fato de que as terras dos índios, em sua maioria, já estavam invadidas e ocupadas
pelo Estado e seus apaniguados.
O Serviço de Proteção ao Índio – SPI foi regulamentado pelo Decreto Legislativo nº
5.484, de 27.06.1928, passou a ser o órgão federal com função estratégica de implementar

434
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil. História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
Editora Claroenigma. São Paulo. 2012. p. 121.
435
RIBEIRO, Darcy. Falando dos Índios. Coleção Darcy no Bolso. Editora UNB: Brasília, 2010. P. 39. Sobre
Rondon, acrescenta Darcy: “Rondon não só afirmava o direito de os índios serem e continuarem índios, mas
criava todo um serviço, integrado por jovens oficiais, dedicados à localização e pacificação das tribos arredias e
à proteção dos antigos grupos indígenas dispersos por todo o país”.
436
Carta de Lei de 27.10.1831. Decreto de 3.06.1833. Regulamento 143 de 15.03.1842. Decreto legislativo 5.484
de 27.06.1928 - que elabora a cartilha conceitual e dispõe sobre quem são os índios nômades, aldeados em
promiscuidade com os civilizados etc.. São exemplos de legislação tutelar dos índios neste período referido.
437
DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Humanismo Latino: o Estado brasileiro e a questão indígena. In
MEZZAROBA, Orides (org.) Humanismo Latinoamericano e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2003. p. 480.
438
Ibid., p. 487.
439
RIBEIRO, op., cit., p. 82.
140

uma ocupação territorial do País e assistir aos indígenas em “sentido jurídico e de orientar a
manifestação da vontade”440. De certa forma dando continuidade ao modelo colonial de
expropriação, mas diminuindo os abusos da igreja sobre os indígenas.

Sua criação mudou profundamente o quadro da questão indígena no Brasil, tendo a


Igreja deixado de ter a hegemonia no tocante ao trabalho de assistência junto aos
índios, de modo que a política de catequese passou a coexistir com a política de
proteção por parte do Estado, que passou a ser executada por meio do SPI.

Além disso, estabeleceu-se uma maior centralização da política indigenista com a


criação do órgão federal.441

A constituição federal de 1934 impõe o retorno da questão indígena ao poder central,


definindo ser competência privativa da União legislar sobre a incorporação dos silvícolas à
comunhão nacional (art. 5º, IX, “m”), recepcionando o Decreto-lei 8.072, de 20 de junho de
1910, que criou o SPI e dando continuidade ao projeto colonizador de que os índios são
pessoas a serem civilizados, formar um só povo brasileiro. E aos Estados, em competência
concorrente, por força do Art. 10, promover a sua colonização. Em manifesta contradição, se
se busca a integração, como é que se promove a colonização como política pública?
Associada ao credo liberal a CF de 1934 buscou inspiração na constituição alemã de
Weimar (1919-1933) e na Espanhola (1931-1977); as agitações na Europa também pareciam
agradar ao presidente Getúlio Vargas, que estava no Governo provisoriamente depois da
Revolução de 1930. A postura autoritária, impositiva e populista de Getúlio lhe rendeu o
movimento revolucionário constitucionalista de 1932, liderado por paulistas descontentes com
a intervenção Federal no Governo estadual. Mas a constituição saiu além da vontade do
Presidente Getúlio, liberal demais: estatizante/populista, idealista, utópica e corporativista.
Muitos avanços formais se fizeram sentir na Carta de 1934, dentre eles o voto secreto e
ampliado do voto às mulheres e a defesa dos direitos e garantias individuais:

Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a


inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:

1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo
de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza,
crenças religiosas ou ideias políticas.

No art. 129 vemos a determinação de proteger as terras indígenas e os direitos dos


silvícolas, instituindo ali um marco temporal que se repetirá no entendimento do Supremo

440
DANTAS, op., cit.. p. 488.
441
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI. História do Serviço de Proteção ao Índio. Disponível
em: <http://www.funai.gov.br/quem/historia/spi.htm>. Acesso em: 09 Dez.2013.
141

Tribunal Federal do Brasil ao interpretar a Constituição de 1988. Vide o texto da carta de


1934, Art 129 - Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem
permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.
Após anos de espoliação, o direito constitucional brasileiro iniciava o longo caminho
de retorno ao respeito dos habitantes primeiros do Brasil. A Constituição de 1934 serviu
também para que Getúlio Vargas criasse o ambiente jurídico ideal para sua permanência no
poder, com a eleição que se deu um dia após a promulgação da referida Constituição. Durou
pouco a Constituição e a legalidade do governo de Getúlio.
Uma nova Constituição, alinhada ao fascismo italiano de Mussolini, de inspiração
Polaca foi outorgada em 1937 por Getúlio Vargas, iniciando um estado de Exceção
denominado Estado Novo, com o fechamento do Congresso e o fortalecimento radical do
poder Executivo.
Em matéria de proteção aos índios, reproduz no artigo 154 o mesmo texto da
Constituição anterior, estabelecendo que seja respeitada aos silvícolas a posse das terras em
que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das
mesmas. Restringe, contudo, os direitos antes concedidos pelo art. 113 da carta
constitucional, ao limitar o brocardo, todos são iguais perante a lei. A situação politica
crítica, o crescimento da oposição pugnando por aberturas democráticas e novas eleições, e da
opinião pública manipulada pela imprensa contra o Presidente populista terá um desfecho
previsível com a deposição de Getúlio em outubro de 1945.442
A Constituição de 1946 buscava deixar para trás o período Getulista do Estado Novo.
No artigo 216, entretanto, reproduz em essência, o mesmo texto constitucional de 1937 que
diz que será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente
localizados, com a condição de não a transferirem. A atuação dos irmãos Villas Bôas será
destaque nas décadas seguintes, ao reinserir no Brasil a discussão da proteção do governo
brasileiro sob os povos indígenas443.
Ainda sob a égide da política integracionista, o Brasil marchava novamente para a
tutela do índio, ainda sob a gestão do SPI e a velha certeza: “[...] a civilização ocidental

442
Este mesmo Getúlio ainda seria eleito mais uma vez para um terceiro mandato como Presidente do Brasil,
iniciado em 1951 e encerrado prematuramente em 1954 com seu suicídio, diante de uma forte oposição dos
partidos desalinhados com o seu Governo e da mídia. Em sua carta testamento vê-se um politico perpetuando-se
na cena pública, saindo da política para povoar o imaginário dos saudosos getulistas, que reproduziram uma
militância entre trabalhadores urbanos, com alcance em regiões ermas do Brasil entre trabalhadores rurais e
urbanos, ainda hoje sem precedentes na história do Brasil.
443
O ícone impulsionador desse período foi a incursão dos irmãos Villas Boas no interior do Brasil indigenista
em um misto de coragem, dedicação e neo-colonização. Essa atuação se iniciou em 1943 e culminou com a
criação do Parque Nacional do Xingu em 1961.
142

representaria o estágio mais avançado” a que os índios poderiam chegar. Além do que, não se
reconhecia o caráter coletivo de tais populações.

O SPI demarcava as terras dos índios e evitava que fossem invadidas, protegia-os da
exploração de que eram vítimas por parte de alguns segmentos da sociedade
brasileira (comerciantes, exploradores de produtos naturais etc.). Além disso,
prestava atendimento de saúde, ensinava técnicas de cultivo, de administração de
444
seus bens e vários ofícios e proporcionava educação formal.

A demarcação de terras seria o marca para efetividade aos direitos instituídos na


Constituição. O status das terras e dos proprietários que ocupavam irregularmente as terras
indígenas é e foi um problemas jamais atingido em sua essência, ou seja, quanto mais lento se
aplicam as normas de demarcação de terras indígenas melhor para os proprietários ilegais.
Uma cultura que o Estado brasileiro não conseguiu mudar. Ainda hoje, no século XXI, muitas
terras de índios tem seu processo de demarcação sendo discutido judicialmente e muitos
direitos dos índios sendo prejudicados por interpretações facciosas que reverberam o estágio
de favorecimentos que foi gestado desde a colonização, na legislação nacional e suas
interpretações.
Essa tônica ditou o tipo de atuação estatal no primeiro e segundo quarto do século XX.
As décadas de 50 e 60 serviram ainda para consolidar a opinião pública para a questão da
demarcação de terras indígenas445 e sua imperiosa urgência. Nos anos seguintes o Brasil
entrará em um momento politico catastrófico com a Ditadura Militar, que se inicia em 1964 e
em 1967 impõe, esse mesmo governo, uma nova constituição sob o autoritarismo militar. O
Art.150 § 1º, contrariando as práticas do regime militar imposto, reforçava o caráter libertário
da constituição, a dizer que todos são iguais perante a lei, independente de raça, credo etc. Os
relatórios da Comissão Nacional da Verdade – CNV instituído pela Presidenta Dilma
Roussef446 em 2011 contém os resultados dos crimes e abusos cometidos durante o período
militar de exceção no Brasil. O mandato atribuído à CNV era “esclarecer as mais graves
violações dos direitos humanos, considerando os fatos, as circunstâncias e as

444
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI. História do Serviço de Proteção ao Índio. Disponível
em: http://www.funai.gov.br/quem/historia/spi.htm. Acesso em: 09 Dez.2013.
445
LIMA, Antonio Carlos de Souza. HOFFMANN, Maria Barroso. Questões para uma política indigenista:
Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas. Contra Capa: Rio de Janeiro, 2002. p. 12.
446
A Comissão Nacional da Verdade – CNV foi instituída pela Lei no. 12.528/2011. Em 16 de maio de 2012, a
Presidenta Dilma Roussef inaugurou formalmente as atividades da comissão.
143

responsabilidades institucionais e sociais dessas violações, e – para um certo tipo de casos –


sua autoria.”447
Sem caráter jurisdicional a CNV se restringiu a “esclarecimento em profundidade” 448
da lesão a direitos humanos perpetrados durante a ditadura militar no Brasil e dos crimes
cometidos pelo Estado ou em nome deste. A CNV se propôs à uma investigação neutra e à
uma interpretação também neutra da Lei de Anistia de 1979: não apresentando com esse
trabalho obstáculos à sua aplicação, tampouco obstáculos à sua eventual não-aplicação.
Os relatórios foram concluídos e divulgados aos 10 de dezembro de 2014, o capítulo
14449 dedicado aos mortos, desaparecidos e vítimas na Guerrilha do Araguaia, apresenta um
sub-capítulo sobre os camponeses e indígenas vítimas do regime militar na guerrilha. No
anexo II do Relatório nos textos que sugerem aprofundamento em pesquisas e estudos, os
componentes da CNV dedicam o texto 5 para analisar as “graves violações dos direitos
humanos” perpetrados contra os povos indígenas no Brasil450. O texto faz uma investigação
ampla no período anterior e posterior da ditadura militar (1946 e 1988).
As conclusões a que chegam os investigadores é que as políticas públicas indigenistas
empreendidas nesse período pelo Estado brasileiro provocam graves lesões a direitos
humanos dos índios, de modo reiterado, senão vejamos:

Não são esporádicas nem acidentais essas violações: elas são sistêmicas, na medida
em que resultam diretamente de políticas estruturais de Estado, que respondem por
elas, tanto por suas ações diretas quanto pelas suas omissões.

Omissão e violência direta do Estado sempre conviveram na política indigenista,


mas seus pesos respectivos sofreram variações.

Poder-se-ia assim distinguir dois períodos entre 1946 e 1988, o primeiro em que a
União estabeleceu condições propícias ao esbulho de terras indígenas e se
caracterizou majoritariamente (mas não exclusivamente) pela omissão, acobertando
o poder local, interesses privados e deixando de fiscalizar a corrupção em seus
quadros; no segundo período, o protagonismo da União nas graves violações de
direitos dos índios fica patente, sem que omissões letais, particularmente na área de
saúde e no controle da corrupção, deixem de existir. 451

447
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE – CNV. BRASIL. Observações sobre o Mandato Legal da
CNV do Brasil. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/documentos/Capitulo1/Nota%2025,%2030%20-
%2000092_003099_2014_23.pdf. Acesso em 03 Abr.2017. p. 3
448
Ibidem. p. 3.
449
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE – CNV. BRASIL. Guerrilha do Araguaia. Capítulo 14:.
Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/images/documentos/Capitulo14/Capitulo%2014.pdf>. Acesso em: 03
Abr.2017. p. 699.
450
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE – CNV. BRASIL. Violação de Direitos Humanos dos Povos
Indígenas. Anexo II: Texto 5. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-
%20Texto%205.pdf>. Acesso em: 03 Abr.2017. p. 2.
451
Ibidem. p. 2.
144

Durante o período investigado a CNV concluiu que ao menos 8.350 indígenas foram
mortos e os responsáveis impunes.
Ainda no período da ditadura militar, a partir de 1967 uma nova Constituição e logo
em seguida a mudança do Serviço de Proteção ao Índio - SPI para a Fundação Nacional do
Índio - FUNAI452, outra abordagem é inserida na politica de proteção ao índio no Brasil; com
mais colaboração da academia; na prática pesquisadores passaram a contribuir com projetos
cujos resultados nem sempre eram respeitados pelo governo militar de então. A FUNAI
nasceu com as finalidades de criar novas diretrizes para politicas indigenistas no Brasil e
garantir o seu cumprimento da política indigenista. Definiu nos artigos iniciais da lei que
criou os princípios do respeito à pessoa do índio e as instituições e comunidades tribais, em
tese um grande avanço. O marco temporal permaneceu para a questão da propriedade e posse:
garantia a posse permanente das terras que habitam e ao usufruto exclusivo dos recursos
naturais e de todas as utilidades nela existentes. Definiu ainda como princípios: preservação
do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contacto com a sociedade nacional e
resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma a que sua evolução sócio-econômica se
processe a salvo de mudanças bruscas.
A tutela continuava aos indígenas pelo Estado brasileiro, que incluía, gerir o
patrimônio indígena, no sentido de sua conservação, ampliação e valorização, promover
levantamentos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre o índio e os grupos sociais
indígenas, promover a prestação da assistência médico-sanitária aos índios, a educação de
base apropriada do índio visando à sua progressiva integração na sociedade nacional. Dois
elementos inseridos no texto da lei que criou a FUNAI chama a atenção: despertar, pelos
instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indigenista – que denota uma
intenção de ganhar a opinião pública para a politica indigenista em questão; e exercitar o
poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio – ou seja, o
poder de utilizar a violência do Estado dentro das terras indígenas. Essa politica se mantém
até nossos dias com a autorização dada pelo Estado para o uso de forças de segurança
nacional para Estados, Municípios e na proteção do meio ambiente, para manutenção da
ordem pública, enfim, na prática tem sido utilizada para conter conflitos ambientais em torno
de áreas de conflitos entre indígenas e proprietários de terras. Os riscos de que a fim de
proteger não sejam as forças de segurança algozes dos próprios indígenas é alto, como se
verificou em confrontos ocorridos na terra indígena Raposa Terra do Sol. A FUNAI até a

452
Lei Nº 5.371, de 5.12.1967.
145

Constituição de 1988 exerceu os poderes de representação ou assistência jurídica inerente ao


regime tutelar do índio.
A reunião de Barbados em 1971 da Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura - UNESCO e Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais -
FLACSO dará continuidade aos debates sobre os “efeitos etnocidas das políticas
desenvolvimentistas”453. Em 1972, a igreja retoma a sua participação ao lado dos indígenas,
através da criação do Conselho Indigenista Missionário- CIMI. Desde a criação do SPI em
1910 havia se distanciado. Através do CIMI passou a “promover assembleias indígenas e
dando campo a um tipo de associativismo pan-indígena... como via para a autodeterminação
454
indígena.” . A autodeterminação, que será prevista no Brasil com a Constituição de 1988,
formalmente ainda não conseguimos realizar no Brasil.
Outro marco normativo de natureza integracionista até hoje não superado se deu em
1973, com o Estatuto do Índio455, legislação que buscou consolidar todas as normas existentes
no Brasil acerca da proteção dos indígenas e sua incorporação à nação. Contraditório em sua
natureza conceitual e jurídica, o estatuto trata os índios hora como índio ou silvícola. A tutela
pública diminui e os índios são incorporados em alguns artigos como cidadãos brasileiros e
regidos em sua atuação individual pelo direito privado, “resguardados os usos, costumes e as
tradições indígenas”456. Em seu Art. 1º se propõe a lei em regular a situação jurídica dos
índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, como se tivera sem regulamento até alí.
Propõe a preservar a cultura indígena e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à
comunhão nacional.
Em 1979 com a aprovação da lei da anistia o Brasil se abre à redemocratização. O
período de exceção no Brasil terá entre os nativos remanescentes um capítulo cuja explicação
oficial se fez referência no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, restando já concluído
a certeza de que tivemos muitos indígenas perseguidos e mortos pelo regime autoritário, ainda
sem punição.
A anistia vem na confluência dos movimentos internacionais para a defesa dos direitos
humanos, intensificada pela criação de organizações não governamentais – inclusive no
Brasil, que se destacaram na defesa do Meio Ambiente e Direitos Humanos. Esse ambiente

453
LIMA, Antonio Carlos de Souza. HOFFMANN, Maria Barroso. Questões para uma política indigenista:
Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas. Contra Capa: Rio de Janeiro, 2002. p. 10.
454
Ibid., p. 20.
455
Lei nº 6.001 de 19.12.1973.
456
DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Humanismo Latino: o Estado brasileiro e a questão indígenas. In
MEZZAROBA, Orides (org.) Humanismo Latinoamericano e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2003. p. 489.
146

politico culminará nos avanços, obtidos com a Constituição Federal de 1988. No processo
constituinte brasileiro a questão indígena ocupa espaço na agenda do congresso, pondo em
lados opostos interesses econômicos regionais e o lobby pró-índio. Os primeiros traziam o
discurso que “há muita terra para pouco índio”457.
As perspectivas adotadas pela Constituição de 1988 tiveram inspiração nos
documentos produzidos nos seminários interamericanos e convenções das quais o Brasil havia
participado ativamente, especialmente pelos militantes acadêmicos e movimentos sociais. A
exemplo das discussões que se realizaram em 1981, em São José da Costa Rica, onde a
questão nascente do etnodesenvolvimento foi tema central. O etnodesenvolvimento458 é o
conjunto de ações que fincadas na defesa da identidade indígena em seu território de ação,
modos de vida, usos e costumes, busca se associar aos imperativos do desenvolvimento
econômico e social pautadas pelo Estado e o mercado. Uma alternativa para tirar da miséria
os povos indígenas no contexto do capitalismo global.
Conscientes que há uma luta a ser travada e um longo caminho a ser percorrido em
defesa dos índios, a Constituição Federal de 1988 traz em si o texto mais importante e avanço
normativo de todos os tempos no Brasil. O texto busca reconciliar o passado de exploração
com o reconhecimento às tradições, culturas, identidades, usos, costumes e terras necessárias
à sobrevivência dos indígenas e seus cultos, ex vi Art. 231. Além do referido artigo, merece
destaque o artigo 232.
No Art. 231 está protegido o direito à identidade do povo indígena, à medida que se
reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições. Assim como o direito
de propriedade, vastamente instituído, sobre as terras que tradicionalmente ocupam459. Como

457
LIMA, Antonio Carlos de Souza. HOFFMANN, Maria Barroso. Questões para uma política indigenista:
Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas. Contra Capa: Rio de Janeiro, 2002. p. 14.
458
VERDUM, Ricardo. Etnodesenvolvimento: A "Pedra de Toque" no Neo-Indigenismo? Anais da 56ª
Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004. Disponível em:
<http://www.sbpcnet.org.br/livro/56ra/banco_conf_simp/textos/RicardoVerdum.htm>. Acesso em: 07 Jun.2017.
Em sua comunicação na SBPC Verdum dirá que o Etnodesenvolvimento está pautado “nas diversas mudanças
nas formas de reprodução da vida política, econômica, social e cultural, associadas com o aumento no fluxo
intercultural de informações, idéias e conceitos decorrente dos avanços tecnológicos e da expansão das redes
transporte e de comunicação (estradas, rádio, televisão, telefonia, internet, etc.), que têm levado a reformas na
noção de desenvolvimento e na visão do papel do Estado e do lugar dos índios neste processo. A contestação do
modelo econômico de desenvolvimento verificado no último quarto de século tem ocasionado uma busca de
novas alternativas conceituais, discursivas e políticas que reordenem e re-legitimem o processo de acumulação
de capital em curso. O “etnodesenvolvimento” ou “desenvolvimento com identidade cultural” são tentativas de
reforma/reformulação da ideologia/utopia do desenvolvimento, especialmente da conotação “economicista” que
a impregnou de forma acentuada no pós-Segunda Guerra”.
459
Art. 231. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições. § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
147

referido precedentemente a Súmula 650 do STF fará uma interpretação em desfavor da da


causa indígena, quando fixa um marco temporal entre proteger os direitos de quem estava na
posse da terra em 1988; tal interpretação ignora o modo ilegal como foram destituídos das
terras antes de 1988 os indígenas do Brasil. Mais um duro e repetido golpe nos direitos das
populações e povos indígenas no Brasil. A luta está em curso contra essas medidas em que
foram vencedores os proprietários de terras.
O artigo 232 inova ao dar legitimidade e capacidade processual aos índios. Esse
processo, praticamente extingue a atuação da FUNAI, até então atuante como interveniente
protetora dos interesses dos índios, em juízo e fora dele. Em tese suas comunidades e
organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e
interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

3.3.2 Políticas Públicas de Proteção ao Índio no Brasil Pós-Constituição de 1988

Como visto, esse leque de direitos inscritos na CF/88 são de ordem ampla e
contemplam a garantia às terras (por meio da demarcação) e proteção à cultura com os modos
e usos, sobretudo. A reboque disto houve esforços do Governo Federal com programas
específicos de regularização fundiária e saúde em comunidades indígenas – através da
Fundação Nacional de Saúde - FUNASA, entretanto, não foram suficientes para consolidar
uma politica nacional e cumprir as normas constitucionais vigentes. Em geral, as iniciativas
normativas brasileiras, buscaram integrar os indígenas à nação brasileira, unificando suas
culturas ao tipo nacional, negando suas coletividades, “nesta perspectiva o genocídio
continuou [...] os povos perdiam não só a visibilidade, mas a própria vida.”460

permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º -
O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas
minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as
comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º - As
terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º - É
vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso
de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após
deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o
domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na
forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º - Não se aplica às terras indígenas o
disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
460
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A Liberdade e outros Direitos: ensaios socioambientais. Letra da
Lei: Curitiba, 2011. p. 139.
148

Em 1992 o Brasil ratificaria o Pacto de São José da Costa Rica (1969), cujas
referências à Declaração de Criação da OEA (Protocolo de Buenos Aires) e
consequentemente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pautarão temas, ações e
protagonizarão processos em que figuram lesão a direitos humanos dos indígenas na América
Latina, mantendo vivo constantemente o tema da defesa dos povos indígenas em nível
internacional.
Apesar de todos os esforços do governo brasileiro, falta uma política federal
transparente para os indígenas no Brasil o que gera instabilidade e conflitos, como temos visto
nos noticiários, a exemplo: caso de Belo Monte461 ou da reserva Raposa Serra do Sol462, senão
vejamos:
A demora do Estado brasileiro em reconhecer e demarcar todas as terras indígenas
garantidas pela Constituição Federal de 1988 é responsável pela crescente tensão no
campo entre indígenas e produtores rurais. Este foi um dos pontos de consenso entre
os debatedores presentes no Fórum Soja Brasil realizado na noite desta quinta, dia
29, na Expointer 2013, em Esteio (RS). Com o tema 'Questão Indígena e Justiça
Social', o debate reuniu parlamentares e lideranças de produtores rurais e indígenas
na Casa RBS, com apresentação do jornalista João Batista Olivi. 463

Uma política de apoio aos índios deveria conter segundo Lima 464:

- Planejamento de governo transformado em diretrizes para ação.


- Redistribuição de recursos captados pelo Estado brasileiro.
- Abordagem de diferentes aspectos da vida dos povos indígenas, com interlocução
dos índios, modo de organização e gestão política nativa.

Uma política pública, ademais, deve atender a alguns requisitos que os especialistas
indicam como indispensáveis à sua realização, considerando que estas são um conjunto de
programas, ações e atividades desenvolvidas pelo Estado diretamente ou indiretamente, com a

461
Um dos maiores focos de embate entre ambientalistas e o governo nos últimos anos, a polêmica sobre a
construção da usina Belo Monte, no Pará, se arrasta há mais de três décadas e se acirrou após disputas políticas.
Notícia veiculada no Estadão em 2011.
462
REDE GLOBO DE TELEVISÃO. Entenda o Conflito na Terra Indígena Raposa Terra do Sol.
Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL464471-5598,00-
ENTENDA+O+CONFLITO+NA+TERRA+INDIGENA+RAPOSA+SERRA+DO+SOL.html>. Acesso em 03
Abr.2017: “De acordo com o Ministério da Justiça, o processo de demarcação da reserva começou na década de
70 e "praticamente todos os não-índios que a ocuparam de boa-fé já foram indenizados ou reassentados". A
assessoria do ministério afirma que a resistência se reduz a um pequeno grupo de produtores de arroz que se
instalou no local no início dos anos 90 e ampliou sua área de produção, mesmo sabendo que as terras eram de
propriedade da União. Moradores da região contestam a demarcação da terra indígena e a necessidade da retirada
de não-índios da área”.
463
NEULS, Gisele. Conflito entre Proprietários e Indígenas é Agravado por demora do Governo em
enfrentar a Questão. Disponível em: http://sojabrasil.ruralbr.com.br/noticia/2013/08/conflito-entre-
proprietarios-e-indigenas-e-agravado-por-demora-do-governo-em-enfrentar-a-questao-4251839.html. Acesso
em: 18 Nov 2013.
464
LIMA, Antonio Carlos de Souza. HOFFMANN, Maria Barroso. Questões para uma política indigenista:
Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas. Contra Capa: Rio de Janeiro, 2002. p. 17.
149

participação de entes públicos ou privados, que visam assegurar determinado direito de


cidadania, de forma difusa ou para determinado seguimento social, cultural, étnico ou
econômico465.
O estudo das políticas públicas ou essa forma de análise explicativa das politicas
públicas surge nos EUA como área de conhecimento acadêmico, com ênfase nas ações de
governo; na Europa estes estudos e pesquisas se dirigem a analisar o próprio Estado e suas
instituições e menos na produção do governo, “desta forma surge como um desdobramento
dos trabalhos baseados em teorias explicativas sobre o papel do estado e do governo.”466
As políticas públicas no Brasil nascem de um marco legal e deveriam estar associadas
à elaboração e financiamento de planos, projetos, programas467, ações e metas; não
necessariamente nesta ordem. No Brasil, ao longo dos anos, é possível vermos inserção
normativa de politicas públicas sem qualquer atenção para os mecanismos de implementação,
passando de governo a governo esta tarefa.
Para a construção e implementação de politicas públicas um dos modelos utilizados é
aquele que se desenvolve através do Policy Cycle ou ciclo de politicas públicas. As fases ou
etapas que compõem o processo, segundo Kingdon468constituem-se a partir da

a) determinação da agenda, onde a dinâmica da definição do problema é questão


essencial para a compreensão da política pública;

b) formulação e legitimação da política (seleção de proposta, construção de apoio


político, formalização em lei);

c) implementação de políticas (operacionalização da política em planos, programas e


projetos no âmbito da burocracia pública e sua execução);

d) avaliação de políticas (relato dos resultados alcançados com a implementação das


propostas e programas de governo, avaliação dos impactos dos programas e sugestão
de mudanças).

465
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE - MMA. O Que São Políticas Públicas. Disponível em:
<http://www.meioambiente.pr.gov.br/arquivos/File/coea/pncpr/O_que_sao_PoliticasPublicas.pdf>. Acesso em:
10 Dez.2013.
466
CARVALHO, Maria de Lourdes. Et all. Implementação de Políticas Públicas: Abordagem Teórica e
Crítica. X Colóquio Internacional sobre Gestão Universitário no Sul. Mar Del Plata. 2010.
467
CALDAS, Ricardo Warhendorff. Políticas Públicas: conceitos e práticas. Sebrae: Belo Horizonte, 2008: o
plano delineia as decisões de caráter geral, as suas grandes linhas políticas, suas estratégias e o projeto é o
documento que sistematiza e estabelece o traçado prévio da operação de uma unidade de ação. É, portanto, a
unidade elementar do processo sistemático da racionalização de decisões, suas diretrizes. O programa é,
basicamente um aprofundamento do plano: os objetivos setoriais do plano irão constituir os objetivos gerais do
programa. É o documento que detalha por setor, a política, diretrizes, metas e medidas instrumentais. É a
setorização do plano.
468
KINGDON, John W. Agendas, Alternatives and Public Policies. Addison-Wesley Longman: United States
of America, 1994.
150

Para o Estado brasileiro e seus governantes a questão indígena sempre girou em torno
do direito à propriedade da terra - esta que foi expropriada dos índios, já referido antes. As
politicas públicas foram sendo geridas por governos, que na história recente, não tinham
interesses em garantir os direitos humanos sociais e culturais desses povos, como proposto na
CF/88 e criam interpretações que impeçam o seu cumprimento. A este respeito convém
lembrar a observação do Marés469, “as elites locais sempre imaginam que suas Constituições
podem deixar de ser aplicadas por falta de leis que as regulamente.”.
Precisamos mudar a perspectiva do exercício dos direitos indígenas, para além do
direito individual, conclui acertadamente Marés:

O Direito contemporâneo, além de individualista, é dicotômico: às pessoas –


indivíduos titulares de direitos – corresponde uma coisa – bem jurídico protegido.

A legitimidade desta relação se dá por meio de um contrato – acordo entre duas


pessoas. É evidente que este esquema jurídico não poderia servir aos povos
indígenas da América Latina porque, mesmo que considerasse cada povo uma
individualidade de direito, os bens protegidos (os bens que os povos precisam
proteger) e sua legitimidade não têm nenhuma relação com a disponibilidade
470
individual e com origem contratual.

Ocupando a centralidade das questões indígenas no Brasil, a demarcação de terras


indígenas avançou após 1988. Dados da FUNAI471 a este respeito apontam que 435 áreas
indígenas foram regularizadas472 no Brasil, uma superfície de 105.648.344,8943 Ha. A
maioria no Norte do país, conforme se vê no gráfico apresentado a seguir na figura 21 em que
se vê a distribuição de terras indígenas regularizadas por região administrativas, com destaque
para o Norte, com 54%.

469
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A Liberdade e outros Direitos: Ensaios Socioambientais. Letra da
Lei: Curitiba, 2011. p. 136.
470
Ibid., p. 136.
471
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI. Terras Indígenas: o que é?. Disponível em:
<http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/demarcacao-de-terras-indigenas>. Acesso em: 03 Abr.2017.
472
Regularizadas são as terras que, após o decreto Presidencial de homologação, foram registradas em Cartório
em nome da União e na Secretaria do Patrimônio da União.
151

Figura 21 - Percentual de Áreas Demarcadas pela FUNAI por região

Fonte: FUNAI, 2015.

A Fundação Nacional do Índio – FUNAI mantém em seu sítio na rede mundial de


computadores informações sobre os processos de estudos, delimitação, declaração,
homologação, regularização e interdição de terras indígenas no Brasil e a extensão das terras,
que serão demarcadas, quando aprovados os referidos processos, figura 10, a seguir.

Quadro 10 - Terra Indígenas com processo de


Estudos/Delimitação/Declaração/Homologação/
Regularização e Interdição.

Fase do Processo Qtde Superfície(Ha)

Delimitada 38 5.531.936,6827
Declarada 72 3.415.646,6662
Homologada 17 1.586.696,8980
Regularizada 435 105.648.344,8943
Total 562 116.997.082,2490
Em Estudo 114 5.769,0000
Portaria De Interdição 6 1.084.049,0000

Fonte: FUNAI, 2017473

473
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI. Índios do Brasil: Terras Indígenas. Disponível em:
<http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas>. Acesso em: 03 Abr.2017.
152

A primeira etapa constitui um processo importante: os estudos técnicos para identificar


os povos índios da terra que será demarcada e saber se os índios têm direito ou não as terras e
indicar providências para que possa melhorar as condições daquela comunidade indígena ou
tradicional. São processos de todas as regiões do Brasil.
No Ceará identificamos 10 comunidades indígenas com processos de estudos,
encaminhamentos, delimitações, declarações e regularização junto à FUNAI. Dentre elas
somente uma está regularizada pela União desde 2001: Terra Indígena Córrego João Pereira,
tradicionalmente ocupada por povos da etnia Tremembé, nos municípios de Acaraú e Itarema,
com uma área de 3.162.3901 ha.
O quadro 11, a seguir, é demonstrativo dos demais processos do Ceará em trâmite na
FUNAI.

Quadro 11 - Terras Indígenas no Ceará, estágio dos processos junto à FUNAI

Terra Etnia Município Ha Fase Data Modalidade


Indígena
Córrego João Tremembé Acaraú/ 3.162.3901 Regularizada 2001 Tradicionalmente
Pereira Itarema Ocupada
Pitaguary Pitaguary Maracanaú/ 1.727,8686 Declarada 2006 Tradicionalme
Pacatuba nte Ocupada
Anacé Anacé Caucaia 0,0000 Estudos 2010 Tradicionalme
nte Ocupada
Tapeba Tapeba Caucaia 5.838,0000 Delimitada 2011 Tradicionalme
nte Ocupada
Lagoa Kanidé Aquiraz 1.731,0000 Declarada 2011 Tradicionalme
Encantada nte Ocupada
Tremembé de Tremembé Itarema 4.900,0000 Delimitada 2011 Tradicionalme
Almofala nte Ocupada
Tremembé de Tremembé Acaraú 767,0000 Declarada 2013 Tradicionalme
Queimadas nte Ocupada
Tremembé da Tremembé Itapipoca 3.580,0000 Declarada 2015 Tradicionalme
Barra do nte Ocupada
Mundaú
Mundo Potiguara Monsenhor 0,0000 Estudos 2015 Tradicionalme
Novo/Viração Tabosa/ nte Ocupada
Tamboril
Taba dos Anacé Caucaia/ 543,0000 Encaminhada 2014474 Reserva
Anacés São Gonçalo RI Indígena
do Amarante

Fonte: o autor, 2017.

474
Não conseguimos os dados precisos da portaria de reconhecimento da reserva indígena Taba dos Anacés. Em
2014 o Governo do Ceará e Petrobrás doam um terreno e investimentos de 30 milhões para estruturar a RI.
153

Nenhum pedido de estudos sobre terras indígenas e/ou índios Kariri do território do
Cariri cearense tramita na Funai até a data de defesa desta tese.
Dentre os povos indígenas do Ceará os Tapebas de Caucaia são dos mais conhecidos.
Em 2008 contavam com 5.500 índios e mesmo tendo sido delimitada a área por decisão da
FUNAI, ainda pende decisão judicial sobre a propriedade das terras475. Outras 12 etnias ainda
estão entre estudos preliminares, identificação e delimitação, algumas com visitas já
realizadas pela FUNAI, outras em estudos iniciais por pesquisadores ligados às diversas
Universidades do Brasil ou pesquisadores independentes. Todas em situação de conflito com
o Estado ou iniciativa privada.
Os índios Kariri476 que em 2008 eram 60 indivíduos, localizados no Município de
Crateús, já foram visitados por estudiosos. Em 2010 a população que se declara indígena
neste Município foi para 613 indivíduos, conforme dados do IBGE.
Muito se tem discutido sobre a atuação da FUNAI e a morosidade dos processos de
demarcação de terras indígenas. Este órgão cuja finalidade principal atualmente é a
regularização fundiária em terras indígenas477 não tem conseguido seu intento. No Ceará
nenhum processo durou menos do que três anos. No Censo populacional do Brasil, realizado
pelo IBGE, em 2010 foram contados 896,9 mil índios (autodeclarados); 305 etnias e 274
línguas reconhecidas.478
Em conformidade com relatório do IBGE479, a população indígena no Brasil cresceu
pouco entre 2000 e 2010 mantendo-se em patamares iguais de crescimento 1,1%. Esse índice
quando comparado aos censos de 1991/2000 é nove vezes menor 10,9%.
Em dados absolutos no período de 1991 a 2000 se autodeclararam indígenas 440 mil
pessoas no Brasil, que significou 150% de crescimento aos dados existentes. Entre 2000 a

475
CAMILO, Ana Sinara. SILVEIRA, Brunna Grasiella Matias. A Regularizaçao das Terras Indígenas no
Ceará. Comunicação Oral. Sessão Diálogos 5: XXI Encontro Regional dos Estudantes de Direito. Encontro
Regional de Assessoria Jurídica Universitária. Crato. 2008. Disponível em:
<http://www.urca.br/ered2008/CDAnais/pdf/SD5_files/Ana_CAMILO.pdf>. Acesso em: 07 Set.2015.
476
CAMILO, Ana Sinara. SILVEIRA, Brunna Grasiella Matias. A Regularizaçao das Terras Indígenas no
Ceará. Comunicação Oral. Sessão Diálogos 5: XXI Encontro Regional dos Estudantes de Direito. Encontro
Regional de Assessoria Jurídica Universitária. Crato. 2008. Disponível em:
<http://www.urca.br/ered2008/CDAnais/pdf/SD5_files/Ana_CAMILO.pdf>. Acesso em: 07 Set.2015.
477
A FUNAI desde o Governo Collor de Melo tem sofrido redução em sua atuação. Em 1991 através dos
decretos 23, 24, 25 e 26, de fevereiro daquele ano a FUNAI cedeu aos Ministérios da Saúde, Educação e Meio
Ambiente muitas ações que lhe eram próprias nestes setores. Saúde/Funasa.
478
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Mapa Indigena do Brasil.
Disponível em: http://indigenas.ibge.gov.br/mapas-indigenas-2. Acesso em: 04 Abr 2017.
479
INSTITUTO BRASILEIROO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Os Indígenas no Censo
Demográfico de 2010: primeiras considerações com base no quesito cor e raça. Rio de Janeiro. 2012. Disponível
em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em 19 Jun.2017. p. 7.
154

2010 84 mil brasileiros se autodeclaram indígenas, 11,4% de crescimento. O Nordeste


apresentou maior crescimento480.
Em 2006 a ONU aprovou o texto da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas
e em 2007 a Assembleia Geral da ONU confirmou aprovando por ampla maioria de votos a
favor e somente 4 votos contra e 11 abstenções. Grandes avanços normativos, poucos passos
caminhados. Na Declaração a fixação do princípio da “igual dignidade dos povos”481 é uma
mudança expressiva da lógica da “proteção individual” amplamente corrente no direito
brasileiro. O Brasil foi um dos defensores da Declaração. Trata-se de um texto que amplia os
objetivos centrais da Convenção 169 da OIT e confirma o intento da comunidade
internacional em garantir direitos para povos indígenas. Na Declaração a ONU e,
consequentemente, os países signatários definem com clareza no art. 46 que a
autodeterminação dos povos indígenas não significa direito a formar ou fundar um outro
Estado.
É um documento importante, mas ainda pouco efetivo para os desafios de afirmação
das identidades, usos e costumes dos povos indígenas na América Latina. É uma norma
programática com validade restrita e submetida no Brasil à interpretação e aplicação do
judiciário, no que pese o Art. 5º da Constituição Federal recepciona os documentos
internacionais que defendem direitos humanos, assim como sua aplicação imediata.
Direitos à identidade, à educação, saúde e emprego e direito à língua tradicional dos
povos indígenas, à integridade física e mental, liberdade, segurança, ocupam o centro da
Declaração. A não assimilação forçada, destituição da cultura nativa também está no texto da
Declaração. Igualmente a relação dos povos com a natureza “lembrando que as terras
ancestrais dos povos indígenas constituem o fundamento de suas existências coletivas, sua
cultura e espiritualidade”482. Máximas que estão direta ou indiretamente presentes na
Constituição Federal do Brasil e são desafiantes para o Estado brasileiro que não consegue
alcançar direitos semelhantes para quase nenhum brasileiro.
Há ainda um longo caminho a seguir.

480
INSTITUTUO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE, op., cit., p. 8.
481
FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. Aos 20 anos do Convênio 169 da OIT: Balanço e Desafios da
Implementação dos Direitos dos Povos Indígenas na América Latina. In VERDUM, Ricardo. Organizador.
Povos Indígenas: Constituições e Reformas Politicas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos
Socioeconômicos - INESC, 2009. P. 23.
482
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. UNESCO.
Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil. UNIC-RIO e Instituto Socio-Ambiental. ISA.
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: Perguntas e Respostas. Brasília, 2008.
Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0016/001627/162708POR.pdf>. Acesso em 07 Jun.2017.
155

3.3.2.1 Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI e


outras politicas públicas entre 2008-2012.

O governo federal e a FUNAI483 comemoraram a redução do desmatamento em terras


indígenas no Brasil entre 2008 e 2012, que em termos comparativos com terras de unidades
de conservação diminuiu entre 2011/2012. Na terra indígena Maraiwatscédé e Awá/MA
houve uma redução de 70% do desmatamento. O maior estimado para o período. Essa
diminuição é um dos resultados do projeto de monitoramento do desflorestamento na
Amazônia Legal – PRODES e das ações de fiscalização e desintrusão da FUNAI.
Há um entrelaçamento dos temas da questão indígena com a demarcação de terras, é
extraordinário pensar na evolução que esse direito representou em termos formais para o
reconhecimento dos povos indígenas no Brasil e frustrante imaginar que ainda é um futuro
distante, por várias razões, dentre as quais a falta de reconhecimento e respeito das pessoas
sobre esse direito. Na legislação vigente compete à União a demarcação, sendo esta uma
politica que se arrasta a perder de vista no Brasil. Para fazer melhor gestão desse processo em
2012 o Governo Federal implanta a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de
Terras Indígenas no âmbito da FUNAI e Ministério da Justiça. Incluindo no tema da
demarcação todos os bens inseridos na terra demarcada, direito que também está previsto na
CF e ao poder público federal compete “fazer respeitar”.
A demarcação é um processo duplamente difícil e burocrático e algumas vezes
oneroso; primeiro é uma condição se constituir como povo indígena e acessar esse
reconhecimento com a demarcação junto aos órgãos públicos federais, segundo defender a
contestação em juízo quando os proprietários interpõem processos, que em geral se arrastam
até o STF. Não esqueçamos que esses povos vêm de lutas que destruíram suas existências,
propriamente falando.
O Decreto 7.747 de 05 de junho de 2012 que instituiu a Politica Nacional de Gestão
Territorial e Ambiental de Terras Indígenas - PNGATI, objetiva também no plano formal,
regulamentar no direito interno a Convenção nº 169 da Organização Internacional do
Trabalho – OIT e a Declaração da ONU sobre os Povos Indígenas, promulgada pelo Decreto
no 5.051, de 19 de abril de 2004 e no plano axiológico:

483
FUNAI. Fundação Nacional do Índio. Brasil. Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas. PPA
FUNAI 2016-2019. Ministério da Justiça: Brasília – DF, 2016. P. 22.
156

Garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável


dos recursos naturais das terras e territórios indígenas, assegurando a integridade do
patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de
reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas,
respeitando sua autonomia sociocultural, nos termos da legislação vigente.484

Em uma apertada análise comparativa e colocando em paralelo a norma constitucional


e o texto do decreto que instituiu a PNGATI podemos visualizar, no Quadro 12, as limitações
e extensão do alinhamento normativo da referida politica, em sua finalidade, com a
Constituição Federal, artigos 231 e 232. Esta análise nos permite confirmar o que temos
observado na realidade: a distância entre o que o texto da lei apregoa e a ação do Estado, ou a
omissão.

Quadro 12 - Comparativo entre o texto constitucional que institui direitos aos povos indígenas e o Decreto que
institui a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas

CF/88 DECRETO 7.747 de 05 de junho de 2012


o
Art. 231. São reconhecidos aos índios Art. 1 Fica instituída a Política Nacional de Gestão Territorial e
sua organização social, costumes, Ambiental de Terras Indígenas - PNGATI, com o objetivo de
línguas, crenças e tradições, e os garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o
direitos originários sobre as terras que uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios
tradicionalmente ocupam, competindo indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a
à União demarcá-las, proteger e fazer melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução
respeitar todos os seus bens. física e cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas,
respeitando sua autonomia sociocultural, nos termos da legislação
vigente.
Análise
Trecho do Art. 231 que ficou de fora PNGAT: Regulamenta parcialmente o Art. 231 CF/88. Está adstrito
da regulamentação: o reconhecimento aos direitos originários sobre as terras. Ao nosso entender não
aos índios da sua organização social, alcança o reconhecimento formal do Estado quanto à organização
costumes, línguas, crenças e social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas.
tradições, devendo à União fazer Ademais que o STF pôs um limite temporal à aquisição das terras
respeitá-los como bens. indígenas que foi ignorado pelo referido Decreto.

Fonte: o autor, 2017.

Na PNGATI temos a priorização da questão territorial indígena traduzida na prática


pela desapropriação, mas em termos práticos esse direito não é suficiente para alcançar o
reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Na
constituição os direitos coletivos são centrais. Na CF/88 temos uma agenda a ser empreendida
quanto aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

484
PNGATI – Artigo 1º.
157

Ainda em termos comparativos vejamos a mesma relação quanto à Resolução 169 da


OIT. Em análise os Art. 231 (CF/88), Art. 2º (169\OIT), Art. 1º (PNGATI), no Quadro 13, a
seguir.

Quadro 13 - Comparativo entre o texto constitucional que institui direitos aos povos indígenas, Resolução 169 da
OIT e o Decreto que institui a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas

CF/88 Convenção 169/OIT DECRETO 7.747 de 05 de junho


de 2012
Art. 231. São Artigo 2o Art. 1o Fica instituída a Política
reconhecidos aos 1. Os governos deverão assumir a responsabilidade Nacional de Gestão Territorial e
índios sua de desenvolver, com a participação dos povos Ambiental de Terras Indígenas -
interessados, uma ação coordenada e sistemática com
organização social, PNGATI, com o objetivo de
vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir
costumes, línguas, o respeito pela sua integridade. garantir e promover a proteção, a
crenças e tradições, 2. Essa ação deverá incluir medidas: recuperação, a conservação e o uso
e os direitos a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, sustentável dos recursos naturais
originários sobre as em condições de igualdade, dos direitos e das terras e territórios indígenas,
terras que oportunidades que a legislação nacional outorga aos assegurando a integridade do
tradicionalmente demais membros da população; patrimônio indígena, a melhoria da
b) que promovam a plena efetividade dos direitos
ocupam, qualidade de vida e as condições
sociais, econômicos e culturais desses povos,
competindo à respeitando a sua identidade social e cultural, os seus plenas de reprodução física e
União demarcá-las, costumes e tradições, e as suas instituições; cultural das atuais e futuras
proteger e fazer c) que ajudem os membros dos povos interessados a gerações dos povos indígenas,
respeitar todos os eliminar as diferenças sócio - econômicas que respeitando sua autonomia
seus bens. possam existir entre os membros indígenas e os sociocultural, nos termos da
demais membros da comunidade nacional, de legislação vigente.
maneira compatível com suas aspirações e formas de
vida.
Análise
Trecho do Art. 231: A Resolução sequer especifica os direitos à Destaque do Art. 231 CF/88 objeto
o reconhecimento propriedade, à terra, embora esteja incluídos nos da regulamentação alcançado: os
aos índios da sua direitos sociais – considerando que a moradia é uma direitos originários sobre as
organização condição de dignidade humana e, portanto, direito terras que tradicionalmente
social, costumes, humano e neste caso em especial, um direito social, ocupam.
línguas, crenças e econômico e cultural. Ainda que não seja da essência
tradições, devendo da cultura indígena o apego à terra como bem Vemos que nem em parte o decreto
à União fazer econômico. que cria a PNGATI atende aos
respeitá-los como proclamos da Resolução 169 da
bens. OIT, ratificada pelo direito interno
através do Decreto 5.051/2004 –
cujo Art. 1º declara: A Convenção
no 169 da OIT, “será executada e
cumprida tão inteiramente como
nela se contém.”.
Fonte: o autor, 2017.

A normatização que cria a PNGATI alcança “a proteção, a recuperação, a conservação


e o uso dos recursos naturais das terras e territórios indígenas” e prospecta esse direito como
caminho para alcançar a integridade do patrimônio indígena. Essa generalização resulta em
158

baixa efetividade por falta de instrumentos administrativos e legais. Sobretudo quando se trata
de direitos gerais como: a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução
física e cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas, respeitando sua autonomia
sociocultural.
Em todos os instrumentos normativos analisados neste e no quadro 9, anteriores, há
uma benevolência e previsão de direitos destinados aos indígenas, mesmo que haja descarado
descumprimento dessas normas. As diretrizes gerais da PNGATI são textos expressivos que
ampliam o conteúdo inserto na CF/88, mas sofrem a limitação de ser uma política para a
gestão das Terras Indígena sem adentrar as questões temáticas relevantes, previstas da
Convenção 169 da OIT referidas no quadro 16, que dizem respeito ao modo de atuação do
Estado e Governo e a participação dos indígenas no processo de decisão sobre as ações que
impactam o patrimônio socioambiental da terra indígena, assim como lesão a direitos
coletivos socioambientais.
Dentre as diretrizes da PNGAT analisamos aquelas com maior potencial de
dificuldade executiva:
a) Protagonismo e autonomia sociocultural dos povos indígenas. Deixou de fora a
autodeterminação. Somente através desse mecanismo os povos indígenas poderão viver
plenamente sua autonomia sociocultural. A primeira conferência nacional de política
indigenista se realizou em 2015 mas as politicas públicas para a autodeterminação não
avançaram.
b) Proteção e fortalecimento dos saberes, práticas e conhecimentos dos povos
indígenas e de seus sistemas de manejo e conservação dos recursos naturais. Este ponto é
sensível porque sugere algo que na prática não tem sido respeitado pelo Estado, o direito
coletivo desses povos, a relação anímica deles com a terra e o autogoverno de usos e
costumes.
Os objetivos da PNGATI foram estruturados em eixos temáticos, a saber: Eixo 1 -
proteção territorial e dos recursos naturais; Eixo 2 - governança e participação indígena; Eixo
3 - áreas protegidas, unidades de conservação e terras indígenas; Eixo 4 - prevenção e
recuperação de danos ambientais; Eixo 5 - uso sustentável de recursos naturais e iniciativas
produtivas indígenas; Eixo 6 - propriedade intelectual e patrimônio genético; Eixo 7 -
capacitação, formação, intercâmbio e educação ambiental.
Seguindo a lógica esposada antes, de que uma politica publica indigenista deveria ser
elaborada e executada com: planejamento de governo transformado em diretrizes para ação,
redistribuição de recursos captados pelo Estado brasileiro e abordagem de diferentes
159

aspectos da vida dos povos indígenas, com interlocução dos índios, modo de organização e
gestão política nativa. Podemos considerar que a PNGATI contempla dois destes elementos
formadores, uma vez que a redistribuição de recursos depende de dotações orçamentárias não
expressos no contexto de execução da referida politica. Deixando no vácuo a definição de
ações e recursos para sua implementação. A novidade está em que pela primeira vez em 2015
se inseriu no PPA 2016/2019 da FUNAI as ações e metas precisas para a implantação de
alguns elementos da PNGATI, o documento produzido pela FUNAI485 para divulgar esta
ação, não indica os valores expressos para alcançar as metas. Em termos de politicas públicas
falta neste elemento a transparência pública, condição para avaliação dos resultados no curto,
médio e longo prazos.
Por outro lado os objetivos da política de gestão territorial para as terras indígenas,
conforme as regras do direito e do Estado brasileiro vigente, não conseguem dialogar com um
autogoverno de usos e costumes das populações originais e com os meios de produção
comunal, de não acumulação de bens e/ou capital. Os caminhos para superar essas
contradições dentro da politica não foram indicados pelo Estado. A realização da primeira
conferência em setembro de 2015 colocou algumas destas questões em pauta.
Na cerimônia de instalação do Comitê Gestor da PNGATI486, em outubro de 2013,
mais de um ano da edição do decreto de criação, se pode perceber do relato das autoridades e
membros do referido comitê, presente, algumas informações relevantes: a primeira delas é a
declaração pública do caráter dialógico da construção do instrumento normativo, um
importante avanço no planejamento de ações que envolvem comunidades indígenas, e a
segunda é a falta de recursos expressamente destinados para a implementação da referida
política, que compromete a sua realização e contraria a essência do que é formalmente uma
política pública.
Politicas públicas para enfrentar questões indígenas estão no rol dos direitos que o
Estado Brasileiro se comprometeu em assegurar desde a aprovação pelo Brasil do Congresso
Indigenista Interamericano, em 1940, enquanto signatário com o Decreto 55 de 1953, as
discussões e registros do congresso apontam a questão indígena como de interesse público e

485
FUNAI. Fundação Nacional do Índio. Brasil. Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas. PPA
FUNAI 2016-2019. Ministério da Justiça: Brasília – DF, 2016.
486
Previsto no Art. 6o O Comitê Gestor da PNGATI é responsável pela coordenação da execução da política,
será integrado por representantes governamentais e representantes indígenas, conforme ato conjunto dos
Ministros de Estado da Justiça e do Meio Ambiente com funções, dentre outras de propor ações, programas e
recursos necessários à implementação da PNGATI no âmbito do plano plurianual, das diretrizes orçamentárias e
do orçamento anual.
160

urgente487. Sendo, pois de interesse público relevante a PNGATI, assim compreendido como
prioridade dos investimentos públicos para essa politica, ou politicas. O tema não passou
despercebido pelas autoridades presentes na instalação do referido comitê, vejamos:

O Secretário também pontuou as iniciativas já consolidadas pelo ministério e a


Funai em âmbito de formação em PNGATI e apontou algumas possibilidades de
financiamento para as ações de implementação da Política via PPTAL, Fundo
Clima, Fundo Amazônia e outros488. Grifamos.

Conforme referido antes, dentre os resultados de planejamento realizado após 2013


com a instalação do comitê gestor da PNGATI, merecem elogios a realização do
etnomapeamento e etnozoneamento489 de terras indígenas, previsto no Art. 2º do decreto de
criação da PNGATI. Alguns mapeamentos já estão disponíveis no site da FUNAI, a exemplo
da terra indígena da comunidade de entre-serras de Pankararu, constante de um documento
produzido com a participação dos indígenas que resulta em fortalecimento da identidade e
cultura indígenas e atua como elemento de planejamento e gestão. Ambos são ferramentas
que tem fornecido bases de diálogo para a elaboração de outro instrumento que consiste nos
planos de gestão territorial e ambiental das terras indígenas – PGTAs, alguns já estão à
disposição do público em geral no site da FUNAI490.

3.3.2.2 Conselho Nacional de Politica Indigenista – CNPI e outras politicas públicas 2016-
2019.

A criação do Conselho Nacional de Politica Indigenista pelo Decreto nº 8.593, de


17.12.2015 foi mais uma ação interposta pelo Governo Federal para aproximar a gestão da
politica indigenista nacional dos membros das comunidades indígenas, órgãos não
governamentais e Poder Executivo.

487
FARIAS, Caroline. A Convenção de 1940. Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 –
Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3. Disponível em:
<http://anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/Caroline%20Faria%20Gomes.pdf>. Acesso em: 07
Abr.2017. p. 05.
488
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – MPF. Boletim de Notícias. Edição n° 199/ 2013 Brasília, 4 de
novembro de 2013. Disponível em: <http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/institucional/clipping/04_11_2013.pdf>. Acesso
em: 10 Dez.2013.
489
FUNAI. Fundação Nacional do Índio. Etnomapeamento de Terras Indígenas. Disponível em:
<http://cggamgati.funai.gov.br/files/1714/8776/9858/Etnomapeamento_TI_Entre_Serras_de_Pankararu.pdf>.
Acesso em: 20 Jun.2017.
490
FUNAI. Fundação Nacional do Índio. Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas.
Disponível em: <www.funai.gov.br>. Acesso em: 20 Jun.2017.
161

Desde as primeiras medidas para implementar politicas indigenistas no Brasil, após a


criação do SPI (1910) essa participação tem sido buscada mas não alcançada
satisfatoriamente. Os canais abertos para essa participação tiveram interrompidos durante a
ditadura militar no Brasil (1964) até o final da década de 70. Durante o governo da Presidenta
Dilma Roussef (2012-2016) os esforços tomaram impulso, que resultou pouco antes do seu
Impeachment (31.08.2016) na instalação do CNPI. Composto paritariamente por
representações indígenas o conselho tem papel relevante na promoção, proposição,
acompanhamento e fiscalização da politica indigenista nacional.
Entre 2012 e 2015 o governo brasileiro aumentou a quantidade de pessoal da FUNAI e
implantou o centro de formação indigenista em Brasília para o pessoal que trabalha
diretamente em núcleos da FUNAI nacional e núcleos regionais. As ações de educação e
saúde continuaram sob o encargo dos Ministérios respectivos, sendo que a criação da
Secretaria Especial de Saúde Indígena, ligada ao SUS, chamou mais cuidados e atenção para
o setor, que em geral está passando por crises sucessivas no Brasil como todo e para todos os
brasileiros. A politica de educação ainda tem desafios enormes para vencer, dentre eles a
produção de acervo bibliográfico de conteúdo regional sobre povos indígenas e suas culturas,
em parte vencido pelas ações da PNGAT.
O CNPI é um órgão colegiado consultivo ligado ao Ministério da Justiça do Brasil,
composto por 45 membros, sendo 15 representantes do Poder Executivo federal, todos com
direito a voto; 28 representantes dos povos e organizações indígenas, sendo 13 com direito a
voto; e dois representantes de entidades indigenistas, com direito a voto. Uma de suas missões
é propor a realização das conferências nacionais de politicas indigenistas; acompanhar a
elaboração e a execução do orçamento da União, no âmbito das políticas públicas voltadas aos
povos indígenas; contribuir para a construção de um sistema de informações que integre em
uma plataforma única e de fácil acesso as diversas bases de dados existentes sobre população,
saúde, educação, territorialidade e outras questões relevantes dos povos indígenas do País;
monitorar e, eventualmente, receber e encaminhar aos órgãos competentes, denúncias de
ameaça ou violação dos direitos de comunidade ou povo indígena, recomendando
providências; e acompanhar propostas normativas, decisões administrativas e judiciais que
possam afetar os direitos dos povos indígenas.
É indiscutível e relevante o bom funcionamento desse conselho para os avanços que
estão almejando as comunidades indígenas em processo de luta pelo reconhecimento de suas
culturas, identidades e direitos e aquelas comunidades já reconhecidas em processo de
consolidação de seus usos e costumes. No curto período em que funciona oficialmente o
162

CNPI aprovou Resoluções importantes para as politicas públicas indigenistas no Brasil:


Resolução 01/2016 - Pela revogação da Portaria AGU 303/2012 – que altera o entendimento
do Estado sobre a fixação do marco temporal e restringe a interpretação dos artigos 231 e 232
da CF/88; Resolução 02/2016 - Pela suspensão da tramitação da PLS 169/2016; Resolução
03/2016 - Pela demarcação de todas as Terras Indígenas; Resolução 04/2016 - Pela refutação
da tese do Marco Temporal; Resolução 05/2016 - Pela legitimidade dos Povos Indígenas para
ingressar em juízo. Manifestando discordância quanto à atuação do STF por entender que
houve limitação ao exercício deste direito no MS 29.087 em que os povos Guarany Kaiowá
de Mato Grosso do Sul, vê frustrada sua atuação como parte nesse processo que resultou por
anular o processo de demarcação de terras indígenas para esta comunidade indígena. A
decisão do STF é da 2ª turma recursal; Resolução 06/2016 – Contra as medidas encetadas
pelo Governo Federal que altera a estruturação da Funai e fere a convenção 169 da OIT
acerca da consulta livre, prévia e informada. No site do Conselho, www.funai.gov.br não há
agenda de funcionamento do referido conselho em 2017.
No ciclo PPA 2016-2019 da FUNAI há quatro eixos de atuação e de financiamento
para a ampliação neste período de ações e politicas públicas, além daquelas em curso, para as
questões indígenas no Brasil, quais sejam491: promover e proteger os direitos sociais e
culturais e o direito à cidadania dos povos indígenas, asseguradas suas especificidades nas
politicas públicas e:

Promover a gestão territorial e ambiental das terras indígenas;

Garantir aos povos indígenas a posse plena sobre suas terras, por meio de ações de
proteção dos povos indígenas isolados, demarcação, regularização fundiária e
proteção territorial;

Preservar e promover o patrimônio cultural dos povos indígenas por meio de


pesquisa, documentação e divulgação de suas línguas, culturas e acervos,
prioritariamente daqueles em situação de vulnerabilidade.

As ações, ainda que tímidas, do governo brasileiro para a proteção dos povos
indígenas, considerando a demora em processos de demarcação e a opção clara do atual
Governo brasileiro, através do Judiciário, Congresso Nacional e Poder Executivo em proteger
o agronegócio e os interesses dos proprietários de terras, avançaram em conhecimento e
visibilização dos povos indígenas, ainda que estes estejam como nunca antes na história pós-
colonial desse país em luta para manter a visibilidade, ampliar e manter direitos.

491
FUNAI. Fundação Nacional do Índio. Brasil. Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas. PPA
FUNAI 2016-2019. Ministério da Justiça: Brasília – DF, 2016. p. 6.
163

Um destaque a mais surge nos relatórios de planejamento do poder executivo do Brasil


registrado através da FUNAI492 a referência em 2016 de 26 povos indígenas isolados e mais
25 em estudo e mais de 50 informações sobre a presença desses povos. Um recorde mundial.
Informações que só faz aumentar a responsabilidade do Brasil sobre as questões indígenas no
Brasil. O próximo passo é identificar, respeitar e garantir seus direitos como povos.
O PPA 2016/2019 da FUNAI inclui objetivos, metas, iniciativas e ações orçamentárias
previstas em todos os setores de interesse dos povos indígenas, descritos acima. Infelizmente
o corte de recursos em todos os ministérios estimados em R$ 20,1 bilhões em março de
2017493, impactou na execução do PPA pelo Governo Federal do Vice-Presidente Michel
Temer, que assumiu interinamente o Governo em substituição à Presidenta Dilma Roussef.
Notícias494 veiculadas na imprensa nacional falam de cortes de pessoal e comprometimento da
atuação da FUNAI, questões que fazem aumentar a tensão nos conflitos já existentes entre
proprietários, comunidades indígenas e poderes públicos. Consequentemente, coloca em risco
a execução do planejamento e planos plurianuais da FUNAI. Os movimentos sociais, povos
indígenas e o Conselho nacional de Políticas Indigenistas estão em luta constante para não
permitir retrocessos e manobras nas politicas públicas indigenistas.

3.4 POLITICAS PÚBLICAS E O DESAFIO DOS NOVOS DIREITOS NO SÉCULO XXI,


UM GIRO DE-COLONIAL?

O século XXI tem se caracterizado por crises politicas, econômicas, sociais e


humanitárias constantes. De um lado o esgotamento do modelo de Estado fundado na
manutenção de privilégios das classes dominantes e exploração das classes desfavorecidas e
alijadas do processo de desenvolvimento capitalista que cada vez mais os deixam
marginalizadas e segregadas nas periferias, sem acesso a serviços e bens e direitos
substantivos à sua sobrevivência. Do outro uma emergente crise civilizacional enfatizada pela
crise do modelo de Estado – associado à corrupção no serviço público, e a incapacidade do

492
FUNAI. Fundação Nacional do Índio. Brasil. Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas. PPA
FUNAI 2016-2019. Ministério da Justiça: Brasília – DF, 2016. p. 24.
493
BRASIL. Governo Anuncia Corte de 42,1 Bilhões em Despesas. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2017/03/governo-anuncia-corte-de-r-42-1-bilhoes-em-
despesas>. Acesso em: 21 Jun.2017.
494
CORREIIO BRASILEIENSE. Exoneração de Presidente e Corte de Verba: FUNAI Ameaçada de
Extinção. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2017/05/06/internas_polbraeco,593395/exoneracao-
de-presidente-e-corte-de-verba-funai-esta-ameacada-de-exti.shtml>. Acesso em 21 Jun.2017.
164

Estado de garantir a paz social; as migrações de povos que foram durante séculos explorados
em seus territórios, seja pela colonização europeia, seja pelo avanço do capitalismo financeiro
que adveio com a globalização; o terrorismo e a cada vez mais influente onda de poder dos
grupos econômicos empresariais multinacionais, outro avanço que veio com a globalização.
Esta que é igualmente, um padrão de poder do capitalismo colonial/moderno, eurocentrado495.
Outro indicador que corrobora esta crise do Estado-Nacional é a revolução da informática,
como assevera Fritjof Capra496, esta revolução fez mudar as relações de poder antes fincada
no Estado, em torno da ideia de soberania. A era da informática obriga uma atuação em rede e
“a participação nessas redes é uma fonte crítica de poder”. Todos os setores que integram o
Estado e fora dele estão imersos em redes: economia, segurança, politica, criminalidade.
Não é com surpresa que assistimos a desconstrução da ideia unificadora do Estado
moderno. Também na Europa o Estado em substituição às gens-famílias já era anunciada por
Engels497 em 1884 como um projeto de poder central exploratório que tem sua gênese nos
conflitos sociais e econômicos existentes que não visava a igualdade social e a desigualdade
fatalmente resultará em precarização de direitos. Para Engels:

O Estado não é ... uma realidade da ideia ética, nem a imagem e a realidade da
razão, como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando essa chega a
um determinado grau de desenvolvimento. É o reconhecimento de que essa
sociedade está enredada numa irremediável contradição com ela própria, que está
dividida em oposições inconciliáveis de que ela não é capaz de se livrar. Mas para
que essas oposições, classes com interesses econômicos em conflito não se devorem
e não consumam a sociedade numa luta estéril, tornou-se necessário um poder
situado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a
mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. Esse poder, surgido da sociedade, mas que
se coloca acima dela e que se aliena cada vez mais dela, é o Estado.

Tendo nascido da sociedade e suas divisões de classes, o Estado não teve em sua
origem a legitimidade para se estabelecer, exceto pelo uso da força. De modo que os
elementos fundantes, além do território, da imposição de impostos, nasceu com o Estado a

495
QUIJANO, Anibal. La colonialidad del poder. In: LANDER, Edigard (Org.). La colonialidad del saber:
eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CICCUS. 2011. 264. (p. 219-
260).
496
CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 141-167. Para o autor “A ascensão da
sociedade em rede foi acompanhada pelo declínio do Estado nacional como entidade soberana. Metidos em redes
globais de turbulentos fluxos financeiros, os governos são cada vez menos capazes de controlar a politica
econômica nacional; já não podem dar à seus cidadãos as vantagens tradicionais do estado de bem-estar social;
perdendo a guerra contra uma nova economia globalizada do crime; e sua autoridade e legitimidade são cada vez
mais postas em questão.”
497
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 1ª Edição 1884.
Tradução de Ciro Mioranza. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal. 2.a Edição Revisada. Editora
Escala: São Paulo. S.d. p. 185.
165

força pública e a força de polícia498. A América Latina, neste cenário de crise do Estado tem
que administrar em conjunto a crise étnica e social – legado da colonização.
É no alvorecer do século XXI que surgem reflexões em torno das possibilidades de um
giro de-colonial, que de um lado garanta direitos para os povos indígenas e tradicionais
“encobertos” desde 1492, do outro construa direitos e/ou uma perspectiva de Estado
Plurinacional499, que ampare a etnodiversidade, no dizer de Fernando Dantas que tenha o
desenho “do mosaico social brasileiro”500, ou seja, o multiculturalismo como princípio
constitucional. As razões para pensar e agir dessa forma está na construção do projeto de
modernidade e de Estado que foi imposto pelo colonizador e que tem como um dos eixos
fundamentais a ideia de raça, que associada a uma classificação social gerou no caso em
questão a colonização da raça inferior (índio, negro, mestiço) em contraposição à
superioridade (europeu, branco), servindo a dominação como uma justificativa de
inferiorização. A expansão do colonialismo europeu resultou na perspectiva eurocêntrica
também do conhecimento.501
Sob o ponto de vista econômico, a razão mais expressiva da colonização na América
inseriu na relação capital-salário novos elementos: a escravidão (indígena e posteriormente
africana), servidão e pequena produção mercantil. Com a distribuição geográfica-racial do
controle do trabalho centralizado na Europa, esta se consagrou como o centro do mundo,
ainda hoje de certa forma, vigente. A Europa já está vivendo sua própria crise do Estado-
nação: conflitos de classes e entre grupos radicais ultra territoriais se agudizaram, resultando
em terrorismos, mortes e invasões migratórias.
A América Latina busca mudanças capazes de refundar a ideia de Estado, civilização e
desenvolvimento fundados na igualdade. Uma sociedade comunista, ausente a ideia de Estado
como a que conhecemos e das diferenças de classes, em que a sociedade, “reorganizará a
produção na base da associação livre e igual dos produtores”502 parece ser a proposta de

498
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 1ª Edição 1884.
Tradução de Ciro Mioranza. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal. 2.a Edição Revisada. Editora
Escala: São Paulo. S.d. p 185.
499
Como alternativa ao Estado Nacional e ao Estado Plurinacional Fritjof Capra apresenta o “Estado em rede
(network state)... em que todos os membros são independentes... sendo a União Europeia a manifestação mais
clara de uma rede desse tipo”. CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas. São Paulo: Cultrix, 2006. P. 141-167.
500
DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Humanismo Latino: o Estado brasileiro e a questão indígenas. In
MEZZAROBA, Orides (org.) Humanismo Latinoamericano e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2003. P. 494.
501
QUIJANO, Anibal. La colonialidad del poder. In: LANDER, Edigard (Org.). La colonialidad del saber:
eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CICCUS. 2011. 264. (p. 219-
260). p. 123.
502
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 1ª Edição 1884.
Tradução de Ciro Mioranza. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal. 2.a Edição Revisada. Editora
166

Engels, nos idos de 1884. Em substituição ao Estado como síntese do sistema introduzido
para a exploração das classes dominadas, e consequentemente de mazelas que criticamos nas
sociedades do século XXI, como o machismo, perdas de direitos e aumento de deveres pelos
cidadãos pobres do mundo em afirmação de desigualdades, repressão das forças policiais a
movimentos democráticos, expansão do capital internacional etc:

A forma de família que corresponde à civilização e vence definitivamente


com ela é a monogamia, a supremacia do homem sobre a mulher, e a família
individual como unidade econômica da sociedade. O Estado é o resumo da
sociedade civilizada, sendo, sem exceção, em todos os períodos que podem
servir como modelo, o Estado da classe dominante e, de qualquer modo,
essencialmente máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada.
503

O cidadão latino-americano que emerge da colonização, tem um padrão de


desenvolvimento diferente do europeu recolocando uma ideia de modernidade como um
fenômeno de todas as culturas. Embora o modo como a questão racial permaneceu na
identidade dos povos da América Latina está disfarçada em uma Democracia Racial, que
mascara a verdadeira discriminação e dominação colonial dos índios e negros, a exemplo do
Brasil.504
Um olhar mais autêntico nos chega com Quijano505 que nos indaga sobre questões
próprias à formação de Estados-nações na América Latina: a raça seria uma resposta possível,
ou a discriminação de raça?, o fato é que a colonialidade do poder estabelecida sobre a ideia
de raça deve ser admitida como um fator básico na questão nacional, para compreendê-la e
superá-la? Talvez.
Quijano506, após avaliar o caráter politico de uma descolonização, propõe a
“socialização do poder” após afastar os supostos de uma sociedade capitalista homogênea
para um Socialismo com a estatização de todos e cada âmbito do poder. Em sua tese central o
autor latino-americano defende a “descolonização do poder” como ponto de partida para

Escala: São Paulo. S.d. p. 188. Engels enfatiza que nem sempre existiu Estado e “Em todos os estágios anteriores
de sociedade, a produção era essencialmente coletiva e o consumo se realizava também por distribuição direta
dos produtos no interior das comunidades comunistas, maiores ou menores. Esse caráter comum da produção
verificava-se dentro dos mais estreitos limites, mas trazia consigo a dominação dos produtores sobre seu
processo de produção e seu produtos. Sabiam o que era feito do produto: consumiam-no, ele não saía de suas
mãos. E, enquanto a produção se processa nessa base, não pode gerar poderes fantasmas estranhos a eles, como
ocorre regular e inevitavelmente na civilização.”
503
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 1ª Edição 1884.
Tradução de Ciro Mioranza. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal. 2.a Edição Revisada. Editora
Escala: São Paulo. S.d. p. 190.
504
QUIJANO, Anibal. La colonialidad del poder. In: LANDER, Edigard (Org.). La colonialidad del saber:
eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CICCUS. 2011. p., 144.
505
QUIJANO, op., cit., p. 144.
506
QUIJANO, op., cit., p. 146.
167

“avançar e conquistar direitos políticos e civis”. Sem esquecer de conter o controle politico no
capitalismo mundial, será que é possível? Quijano propõe que a América Latina deve se livrar
do espelho eurocêntrico que nos deforma.
No século XXI os desafios que precisamos enfrentar na ordem dos direitos indígenas
são em verdade, a continuidade de um debate sobre direitos que se arrastam há mais de 500
anos, com pontuações bem específicas em conteúdo e nas datas. Infelizmente.
Descolonizar é romper com o padrão do Estado e, consequentemente, dos Direitos que
resultam em exploração e destruição continuada dos povos e nações indígenas e povos
tradicionais na América Latina. Esse processo histórico que impôs restrição da existência de
práticas, saberes e existires dos povos e nações de indígenas e povos tradicionais na América
Latina. Dizem, a maioria dos povos nativos na América Latina, que não se trata de fundar
outros Estados dentro do Estado, mas não podemos negar que se trata de conviver várias
nações dentro de um Estado, se é que é possível essa convivência sem ferir a ideia nascente de
Estado, como temos hoje no ocidente. A nosso ver é impossível!, a menos que tenhamos
como ponto de partida não a ideia de Estado, mas a paz social como objetivo último da
politica e do direito. Isso implica em partir da realidade atual em que há excluídos e
exclusores507 – a partir dos quais, ambos têm direito à busca dessa paz social; faz sentido se
pensarmos que a nação existe como um dado da realidade, com seu existir social, com seu
direito próprio, com seus usos e costumes, ainda assim seria construir um diálogo intestino
entre Estado Indígena e Estado não-Indígena.

507
VARGAS, Idón Moisés Chivi. Os Caminhos da Descolonização na América Latina: os Povos Indígenas e o
Igualitarismo Jurisdicional na Bolívia. In. VERDUM, Ricardo. (Org). Povos Indígenas: Constituições e
Reformas Politicas na América Latina. Brasília: Instituo de Estudos Socioeconômicos - INESC, 2009. p. 164.
168

4 ÍNDIOS CARIRI DO POÇO DANTAS E AQUISIÇÃO DE DIREITOS

Em 2010, dados do Ministério da Saúde508 registram a presença de 118 índios “Kariri”


no Ceará. Em 2013 a Secretaria Especial de Saúde Indígena509510 mostra que esse número
aumentou para 123 indivíduos, e em 2014 os profissionais de saúde cadastraram 159 índios
Kariri autodeclarados no Ceará. Em geral os dados do censo brasileiro de 2010 511 como
descrito no Quadro 14, a seguir, demonstra um percentual ainda baixo de indígenas, se
compararmos outros países da América Latina, como a Bolívia, que tem mais de 55% de sua
população indígena. Quando o percentual é de índios Kariri o percentual, ainda pequeno, é
mais do que o percentual do Ceará e do Brasil, proporcionalmente:

Quadro 14 - População Indígena Kariri do Ceará,


percentual em relação a população do Ceará e do Brasil.

Censo 2010 População População Percentual Observação


total indígena
Brasil 190.732.694 817.963 0,42 %
Ceará 8.452.381 19.336 0,22 %
Total em
relação a
Kariri -- 118 0,61 %
população
do Ceará.
Fonte: Autor, 2017.

508
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil. Quadro Geral. Disponível em:
<http://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral>. Acesso em: 11 Dez.2013.
509
MINISTÉRIO DA SAUDE. Conheça a Secretaria SESAI. Disponível em:
<http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/conheca-a-secretaria-sesai>. Acesso em: 23 Jun.2017: A Secretaria
Especial de Saúde Indígena (Sesai) é a área do Ministério da Saúde responsável por coordenar a Política
Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à
Saúde Indígena (SasiSUS), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Criada em outubro de 2010, a Sesai
surgiu a partir da necessidade de reformulação da gestão da saúde indígena no país, demanda reivindicada pelos
próprios indígenas durante as Conferências Nacionais de Saúde Indígena. A missão da secretaria é implementar
um novo modelo de gestão e de atenção no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, articulado com
o SUS (SasiSUS), descentralizado, com autonomia administrativa, orçamentária, financeira e responsabilidade
sanitária dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Entre as atribuições da Sesai destacam-se:
Desenvolver ações de atenção integral à saúde indígena e educação em saúde, em consonância com as políticas e
os programas do SUS e observando as práticas de saúde tradicionais indígenas; Planejar e coordenar as ações de
saneamento e edificações de saúde indígena; Promover o fortalecimento do Controle Social no Subsistema de
Atenção à Saúde Indígena. Para executar essas ações, a estrutura administrativa da Sesai conta com: 3
departamentos: Departamento de Gestão da Saúde Indígena (DGESI), Departamento de Atenção à Saúde
Indígena (DASI), Departamento de Saneamento e Edificações de Saúde (DSESI). Além dos DSEIs, há, ainda,
os Polos Base, Casas de Saúde Indígena (Casais) e postos de saúde.
510
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil. Quadro Geral. Disponível em:
<https://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral>. Acesso em 23 Jun.2017.
511
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE. Censo Demográfico 2010.
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 24
Jun.2017.
169

Um lapso temporal de 200 anos desde 1780 foi o tempo que indígenas retomassem sua
luta pública pelo reconhecimento de suas identidades no Ceará. Estêvão Martins marca essa
retomada em 1980, com a igreja católica através da ação da Pastoral Indígena em Crateús e
Fortaleza e da Associação Missão Tremembé e Movimento de Apoio aos índios Pitaguary.
Em 2010 o referido autor observa que somente uma reserva foi regularizada.512
Em 2008 havia no Ceará 20 etnias conhecidas e divulgadas por ocasião da XIV
Assembleia Estadual dos Povos Indígenas do Ceará513, dentre as quais: Tremembé já
homologada a demarcação de terras no município de Acaraú; Pitaguary em processo de
demarcação nos municípios de Maracanaú e Pacatuba. E em estudos preliminares pela
FUNAI os: Tremembé nos municípios de Acaraú e Itapipoca; Potyguara, Tabajara, Gavião e
Tubiba/Tapuia nos municípios de Monsenhor Tabosa e Tamboril. Em situação de
identificadas estão: Jenipapo Kanidé no município de Aquiraz; e Tremembé no município de
Itarema.
Todas as demais etnias emergentes estão sem reconhecimento pelo Estado: os Kariri
(Tapuya-Kariri) do município de São Benedito; os Kariri do município de Crateús, estimado
em 116 pessoas (34 famílias e 29 casas). Os Cariri no município do Crato, que é objeto desta
tese, não foi apresentada na XIV Assembleia Estadual dos Povos Indígenas do Ceará. A
figura 22514, a seguir, demonstra a presença indígena no Ceará.
Figura 22 - Presença indígena no Ceará

Fonte: Adaptado de Estêvão Martins, 2009.

512
PALITOT, Estêvão Martins (org). Na Mata do Sabiá: Contribuições sobre a presença indígena no Ceará.
Fortaleza: Secult/Museu do Ceará/Imopec, 2009. p. 39/42.
513
Ibid., p. 39/42.
514
PALITOT, op., cit., p. 38.
170

A quantidade de índios autodeclarados no censo de 2010515 para o Cariri mostra uma


quantidade expressiva quando comparada aos números de etnias mapeadas no Ceará. Nos
municípios que compreende a Região Metropolitana do Cariri e o Cariri, como região
administrativa de planejamento do Ceará, 760 pessoas se declararam índios, conforme
podemos observar no Quadro 15, a seguir. Proporcionalmente 4 vezes menor516 do que a
porcentagem nacional que é de 0,4% o número de indígenas autodeclarados, em relação à
população brasileira.

Quadro 15 - Quantidade de Índios Auto-identificados no Cariri e Região Metropolitana

Cidade/Censo 2010 Índios Território População 2014517


km²
Juazeiro do Norte 355 248,8 263.704
Crato 122 1.176,5 127.657
Barbalha 91 569,5 58.347
Missão Velha 29 645,7 35.150
Jardim 01 552,4 27.069
Nova Olinda 33 284,4 15.048
Santana do Cariri 05 855,6 17.457
Total/Cariri 636 4.332,9 544.432
Caririaçu 102 623,6 26.840
Farias Brito 10 503,6 18.937
Assaré 12 1.116,3 23.058
Total/Região Metropolitana 760 6.576,4 613.267
Fonte: Autor, 2016.518

Esta tese é o resultado de informações, dados e análises que buscam identificar o


grupo social comunidade sítio Poço Dantas, no Distrito de Monte Alverne em Crato, como
índios da etnia Kariri/Cariri. Esta comunidade, ainda que seja conhecida de especialistas, não
foi estudada pela Funai.

4.1 COMO SE FORMA UM POVO: IDENTIDADES, CULTURAS, ETNIA

A Etnografia519 (do grego έθνο̋, ethno - nação, povo e γράφειν, graphein - escrever),
área a qual este tema da identidade está mais afeita, é para o Direito um terreno perigoso. Não

515
INSTITUO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Mapas Indígenas. Disponível em:
http://indigenas.ibge.gov.br/mapas-indigenas-2. Acesso em: 07 Set. 2015.
516
O percentual de pessoas que se autodeclararam índios em 2010, comparado com os dados da população de
2014 na região metropolitana do Cariri Quadro 15, é de 0,123%.
517
INSTITUTO DE PESQUISA E ESTRATÉGIA ECONÔMICA DO CEARÁ – IPECE. Perfil Regional.
Disponível em: <http://www2.ipece.ce.gov.br>. Acesso em: 07 Set.2015.
518
Serviram de referência os dados do censo demográfico do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística -
IBGE, 2010 e do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará - IPECE, Perfil Básico dos Municípios
do Ceará 2014.
171

será, contudo, sob o ponto de vista etnográfico que defendemos a tese de que os indivíduos da
comunidade do Sítio Poço Dantas são da etnia Kariri, é sob o ponto de vista do direito
socioambiental que o defendemos. Se o gesto de compreender as identidades dos povos
indígenas é, principalmente, um diálogo intercultural e social, porque não multidisciplinar?
Não há nessa afirmação, tampouco, o compromisso com o método utilizado
pela antropologia na coleta de dados, que se baseia, na maioria das vezes, no contato
intersubjetivo entre o pesquisador e o seu objeto.
Identificar um povo é caracterizar quem são essas pessoas e o que as tornam iguais
e/ou diferentes dos demais. Em sentido etimológico520 identidade descende do Latin
identitate, ou seja, qualidade de ser igual a outro, identificar é reconhecer como idêntico,
tornar idêntico, fazer de duas ou mais coisas uma só; transubstanciar-se uma coisa noutra.
Adotamos, contudo, para esta tese o conceito das ciências sociais, em Castells 521, que
denomina identidades para descrever as sociedades em rede em seus múltiplos significados.
Ao situar o conceito de identidades na multiplicidade e na atuação em rede a partir de uma
construção social processual, contextual e relacional de legitimação, resistência ou de um
novo projeto para a sociedade. A matéria-prima para a construção das identidades é fornecida
pela “história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória
coletiva e pelas fantasias pessoais, pelas pompas do poder e por revelações de cunho
religioso”522 e defendemos, pelo direito socioambiental. As identidades e seus elementos
significantes constituem a base da cultura de um povo.
As identidades, como base das culturas e, consequentemente, das sociedades são por
isso “fontes de sentido mais fortes que os papéis devido as processo de autodefinição e
individualização... os papéis organizam as funções, as identidades organizam o sentido”523. As
identidades na sociedade de rede podem ser de três tipos: identidade de legitimação, de
519
FETTERMAN, david d. Ethnography: Step-By-Step. A Wilderness Guide. ed. 3. David M. Fetterman -
Fetterman & Associates. California: Stanford University. Vol. 17. Serie Applied Social Research Methods, 2010.
p. 33.
520
FONTINHA, Rodrigo. Novo Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Revisto pelo Dr. Joaquim
Ferreira. Reimpressão. Porto: Editorial Domingos Barreira, 2002. p. 965.
521
CASTELLS, Manuel. La Era de la Información: Economia, Sociedad y Cultura. Volumen 2. El Poder de La
Identidad. Traducción de Carmen Martinez Gimeno. México D.F. Delegación Coyoacán: Siglo Veintiuno
Editores. 1999. p. 23. “La revolución de las tecnologias de la información y la reestruturación del capitalismo
han inducido uma nueva forma de sociedad, la sociedad red, que se caracteriza por la globalización de las
actividades económicas decisivas desde el punto de vista estratégico, por su forma de organización en redes, por
la flexibilidad e inestabilidad del trabajo y su individualización, por una cultura de la virtualidad real construída
mediante um sistema de médios de comunicación omnipresentes, interconectados y diversificados, y por la
transformación de los cimientos materiales de la vida, el espacio y el tiempo, mediante la constitución de un
espacio de flujos y del tiempo atemporal, como expresiones de las atividades dominantes y de las elites
governantes”.
522
Ibid., p. 29.
523
CASTELLS, op. cit., p. 29. Tradução livre do autor.
172

resistência e identidade projeto. Em que o primeiro tipo ligado à manutenção impositiva do


status quo que os Estados Nacionais engendram, está em declínio pela natureza hierarquizada
e excludente. A identidade resistência é resultado de um conjunto de sentidos que resultam na
resistência e forma de lutas contra o Estado e as suas opressões. Uma identidade que pode
migrar para o terceiro tipo, identidade projeto, em que resulta da construção de sujeitos
sociais capazes de mudar o perfil da sociedade e do Estado, “uma nova identidade que
redefine sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, buscam a transformação de toda a estrutura
social”. 524 A identidade projeto produz sujeitos capazes de mudar sua trajetória, protagonistas
ou mesmo atores sociais coletivos525, em sentido holístico.
Esta definição de identidade projeto se adequa àquilo que a comunidade indígena do
Sítio Poço Dantas busca em sua construção, um novo começo em outras bases sociais.
Também se assemelha à identidade resistência, mas com ela não guarda os elementos da luta
direta contra o sistema capitalista. Senão em sua discreta sobrevivência e preservação de suas
culturas e nomes. O que em si já é uma resistência, porque significa ser uma ilha entre
membros de outra cultura, que se lhes impõe um tipo de vida e sociedades que os oprime.
Identificar uma comunidade indígena é, por isso, apresentar e caracterizar os
elementos de conexão que une os indivíduos dessa comunidade em razão do exercício da
cultura que praticam, sua auto-identificação e o reconhecimento dessa identidade pelos
526
demais, no exercício social. Mas o que é cultura? Compreende-se cultura como um
527
processo , não podendo por isso ser estática a ideia de cultura que caracteriza a identidade
para fins do reconhecimento de uma comunidade indígena ou povo indígena.

524
CASTELLS, Manuel. La Era de la Información: Economia, Sociedad y Cultura. Volumen 2. El Poder de La
Identidad. Traducción de Carmen Martinez Gimeno. México D.F. Delegación Coyoacán: Siglo Veintiuno
Editores. 1999. p. 30. Tradução livre do autor.
525
CASTELLS, op. cit., p. 32. Neste caso, a construção da identidade é um projeto de uma vida diferente, talvez
baseada em uma identidade oprimida, mas que se expande até a transformação da sociedade como o
prolongamento deste projeto de identidade. Tradução livre do autor.
526
Não é intenção da tese fixar um conceito de cultura. Utilizamos elementos das definições clássicas de cultura
segundo os autores da Antropoliga e Etnografia. Para nós faz sentido compreender a cultura como o conjunto de
saberes e práticas acumuladas ao longo do tempo pelos membros de uma sociedade (Y. Taylor). Os saberes e
práticas que se incorporam em esquemas de adaptação e relativização da cultura de uma ou outra sociedade, sem
hierarquizar essas culturas em razão da acumulação (Franz Buenas) e observando os saberes e as práticas como
normas (programas) pelas quais os indivíduos em sociedade aceitam ser regrados (Clifford Geertz). As
informações conceituais podemos encontrar em: PERICO, Rafael Echeverri. Identidade e Território no Brasil.
IICA. Disponível em:
<http://www.iica.org.br/Docs/Publicacoes/PublicacoesIICA/IdentidadeTerritorioBrasil.pdf>. Acesso em: 03
Jul.2017. pp. 35/36.
527
“Processos inconscientes”, afirma Hall apud VERAS, Marcos Flávio Portela. DE BRITO, Guimarães.
Identidade Étnica. A Dimensão Politica de um Processo de Reconhecimento. Revista Antropólogos ISSN
1982-IC. Ano 4. Vol. 5. Maio 2012. Disponível em:
<http://revista.antropos.com.br/downloads/maio2012/Artigo4-IdentidadeEtnica.pdf>. Acesso em: 30 Jun.2017.
p. 109.
173

A cultura e a ancestralidade (conexão com os povos pré-colombianos), referido na


legislação, não pode ser interpretado como a transcrição da cultura do passado no presente,
obrigatoriamente. A cultura é um critério satisfatório à medida que deixa de ser uma
característica primária para o processo de identificação étnica, ela deve ser vista como
consequência da organização de um grupo étnico e não o contrário, propõe Manuela Carneiro
da Cunha528. Para a solução desta questão a memória coletiva faz as conexões com o universo
dos índios originários e sua cultura. Esses elementos de conexão não são fáceis no caso dos
indígenas ditos aculturados do século XXI porque a sua cultura tem se modificado na sua
originalidade, ao longo do tempo, restam fragmentos que são colacionados para recompor, ao
lado das mudanças naturais que ocorre nos processos sociais a identidade dos coletivos
populacionais ou grupo social, ou ainda grupo étnico.
O conceito de grupo étnico, como grupo social que em grande parte tem a capacidade
de biologicamente se autoperpetuar; compartilha valores culturais fundamentais, realizados
em unidade evidente em formas culturais; tornar-se um campo de comunicação e interação;
possuir uma associação que se identifica e é identificada por outros, como constituindo uma
categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem; é o objeto da crítica de Barth e
pela pertinência de sua abordagem nos ajuda a compreender a construção que no Direito
positivo no Brasil se faz, acerca da interpretação desses elementos que em tese qualificam a
identidade de grupos étnicos indígenas. A crítica de Barth, a qual nos filiamos, é que essa
formulação limita a compreensão do conceito de cultura e compromete sua caracterização
como elemento de construção das identidades a um, porque coloca a cultura sob parâmetros
estáticos, ignora a miscigenação que no caso brasileiro foi a regra no período da
colonização529, além de trazer “implícita uma visão preconcebida de quais são os fatores
significativos para a gênese, a estrutura e a função de tais grupos.”530
Compreende-se melhor o conceito de grupos étnicos sob o ponto de vista de
organizações sociais efetivas que tem ritos, modos, que por serem promovidos pelos membros
do grupo e em interação com outros grupos, são por eles percebidos. Resolvendo, ademais, a
questão da continuidade no tempo de um grupo de identidade em situações ecológicas

528
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
São Paulo: Editora Claroenigma, 2012. p. 106.
529
Inclusive como política de formação do Estado-nação o casamento inter-étnico foi previsto textualmente na
Carta Régia de 19.02.1696.
530
BARTH, Fredrik. Ethnic BARTH, Fredrik. Ethnic Groups and Boundaries: the Social Organizations of
Culture Difference. Long Grove, Illinois: Waveland. 1998. Pp. 9/12.
174

diferentes, concordando com Manuela Carneiro da Cunha531 e Veras, para quem o que é
mesmo relevante para caracterizar um grupo étnico “é compreender o que leva esse mesmo
grupo a se identificar dessa forma.” 532
A identidade de um grupo, por sua vez, delimita as fronteiras entre um e outro grupo
étnico533 diferente, entendimento descrito por Roberto Cardoso de Oliveira como identidade
contrastiva534. Esses limites ajudam a criar modos de organização dos grupos, daí Barth
afirmar que “grupo étnico é um tipo organizacional” 535. A identidade, com isso, é resultado
da identificação (processo em que se afirma a identidade contrastiva em exercício social com
outro grupo étnico) de duas dimensões que dialogam para formar a identidade étnica: a
dimensão pessoal ou social, individual ou coletiva do grupo. A pesquisa da identidade étnica é
vista nestes casos, em particular, como pesquisa da identidade social, sem contudo desprezar a
dimensão individual uma vez que a identidade social é reflexo da individual.536
Os povos originais da América Latina, já o temos demonstrado amiúde, na seção
primeira e segunda desta tese, têm uma identidade que os distingue dos europeus e esse
choque de identidades resultou na morte de milhões de índios que foram extintos por se
constituírem em povos diferenciados.
Garantir o reconhecimento e direitos dos povos indígenas significa identifica-los, dotá-
los de identidade indígena. A partir de meados da década 1990, afirma Arruti537, a proteção
dos indígenas que assumia certa “volta ao passado, uma resistência à modernidade”, passa a
“apresentar um caráter modernizador e integrador, em que o apelo identitário e comunitário se
apresentam como meio e não como fim” dos movimentos indígenas. Em termos práticos as

531
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
São Paulo: Editora Claroenigma, 2012. p. 107.
532
VERAS, Marcos Flávio Portela. DE BRITO, Guimarães. Identidade Étnica. A Dimensão Politica de um
Processo de Reconhecimento. Revista Antropólogos ISSN 1982-IC. Ano 4. Vol. 5. Maio 2012. Disponível em:
<http://revista.antropos.com.br/downloads/maio2012/Artigo4-IdentidadeEtnica.pdf>. Acesso em: 30 Jun.2017.,
p. 111.
533
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade Étnica, identificação e Manipulação. Revista Sociedade
e Cultura, vol. 6. Núm. 2, julho-dezembro, 2003, pp. 117-131. Pdf. Universidade Federal de Goiás. Goiania,
Brasil. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=70360202>. Acesso em: 30 Jun.2017. O artigo é
a transcrição do texto publicado pelo mesmo autor no livro: Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo:
Pioneira. 1976. p. 2. Grupo étnico é um conceito explorado pela Antropologia e Etnologia que se reporta a
comunidades humanas portadoras de cultura.
534
Ibid., p. 5. Acesso em: 30 Jun.2017. O conceito de identidade contrastiva não é utilizado primeiramente por
Cardoso de Oliveira, embora ocupe uma centralidade em sua argumentação teórica, diversa de Harth.
535
BARTH, Fredrik. Ethnic BARTH, Fredrik. Ethnic Groups and Boundaries: the Social Organizations of
Culture Difference. Long Grove, Illinois: Waveland. 1998. p. 9. Tradução livre do autor.
536
CARDOSO DE OLIVEIRA, op., cit., p. 4.
537
ARRUTI. José Maurício. Mobilizações étnicas na América Latina. Revista Tempo e Presença. Chamas da
liberdade. Multietnicismo. Nº 342. Julho/Agosto de 2005. Disponível em:
https://www.academia.edu/5285140/Mobiliza%C3%A7%C3%B5es_%C3%A9tnicas_na_Am%C3%A9rica_Lati
na_2005_?campaign=upload_email. Acesso em: 12 Nov 2016. p. 10.
175

defesas dos movimentos indígenas mudam o foco para a luta por sobrevivência nos cenários
das sociedades em que vivem, ou seja, mais educação, saúde, terra, respeito etc. isto implica,
como conclui Arruti538 que “o direito à diferença se apresenta mais como rejeição de uma
marginalidade ou de um domínio brutal do que como desejo de virar as costas à sociedade
nacional”, ou se apresentar com a cultura dos índios pré-colombianos, ou seja, os índios de
hoje não necessariamente se vestem de penas e vivem isolados; uns e outros fazem jus à
dignidade e existência plena, de conformidade com sua identidade coletiva indicar. Portanto,
“não se pode definir etnicamente um grupo partindo do pressuposto biológico, cultural ou
linguístico, mas pela forma como se identificam ou são identificados por outros. A cultura, a
língua e os aspectos físicos de um povo são dinâmicos, podem sofrer muitas mudanças.”539.
E para o direito quem é indígena?
Conforme o estatuto do índio brasileiro em sua dupla denominação Índio ou Silvícola,
é todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado
como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade
nacional. No mesmo sentido a lei concebeu como Comunidade Indígena ou Grupo Tribal um
conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento
em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou
permanentes, sem contudo estarem neles integrados.
Esses conceitos do estatuto do índio, lei 6.001/1973, traz algumas ponderações, que
em geral estão atacadas pela legislação internacional, especialmente a convenção 169/1989
(OIT), que passamos a analisar: se identifica e é identificado, uma dupla asserção que se
refere ao se perceber índio – ou se autodeclarar índio e ter essa declaração reconhecida e
identificada, sugerindo que pelo próprio Estado. Outro ponto já em questão é o tipo de
características culturais preservadas pela comunidade indígena que o identifica como
membros de uma comunidade indígena, no dizer do estatuto, os índios isolados são aqueles
que vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através
de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional. Índios em vias de integração,
aqueles que vivem em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, mas
conservam em menor ou maior parte as condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas
538
ARRUTI. José Maurício. Mobilizações étnicas na América Latina. Revista Tempo e Presença. Chamas da
liberdade. Multietnicismo. Nº 342. Julho/Agosto de 2005. Disponível em:
https://www.academia.edu/5285140/Mobiliza%C3%A7%C3%B5es_%C3%A9tnicas_na_Am%C3%A9rica_Lati
na_2005_?campaign=upload_email. Acesso em: 12 Nov 2016. p. 10.
539
VERAS, Marcos Flávio Portela. DE BRITO, Guimarães. Identidade Étnica. A Dimensão Politica de um
Processo de Reconhecimento. Revista Antropólogos ISSN 1982-IC. Ano 4. Vol. 5. Maio 2012. Disponível em:
<http://revista.antropos.com.br/downloads/maio2012/Artigo4-IdentidadeEtnica.pdf>. Acesso em: 30 Jun.2017.
p. 111.
176

práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão
necessitando cada vez mais para o próprio sustento. Índios Integrados são aqueles que
incorporados à comunhão nacional são reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis,
ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.
Já analisamos quão prejudicial podem ser esses conceitos para os índios que ainda
resistem em sua identidade no século XXI; uma vez que nem todos se conservam em
isolamento ou têm as condições para sobrevivência em meio à natureza degradada. Os índios
do presente não necessariamente usam cocares e penachos. O ser índio no Brasil ainda hoje é
um estigma que carregam quantos utilizam esse nome.
A memória coletiva, para muitos dos povos indígenas do Brasil, é a única razão de sua
existência e somente o Estado pode desatar os nós que sua história criou em torno da questão
indígena, há que ter uma inversão do ônus da prova, já que estamos diante de um conjunto
populacional em amplo desfavor financeiro e vulnerabilidade, a exemplo que ocorre em
outros direitos difusos e sociais, como o consumidor em relação ao grande empresário, o
Estado é que deve produzir prova em contrário da afirmação e autodeclaração do ser indígena
no Brasil.
A definição de índio para o estatuto, traz em si uma ideia preconceituosa que associa
esses povos à imagem do selvagem ao denomina-los silvícola, da selva. Quando em verdade
trata-se de povos da natureza, esta mesma natureza, que vemos ser um paradigma insuperável
para a sobrevivência humana porque dela provém a água, o ar e a maioria dos alimentos que
consumimos.
Com mais frequência se tem, hoje em dia, a certeza de que a civilidade que a
modernidade inculcou no imaginário dos brasileiros se assemelha mais à convivência
biocêntrica dos indígenas à natureza do que da exploração dos recursos naturais, consumo
desenfreado e acumulação capitalista. O conceito é ainda falho porque insiste em propor aos
indígenas um processo de integração à vida nacional/brasileira, máxima já superada na
dinâmica e compreensão dos indígenas como pessoas e povos detentores de direitos e
autonomia cultural, politica e autogoverno; compreensão presente nas interpretações
realizadas amiúde sobre a convenção 169/OIT e sua difusão internacional540. No que pese
esse entendimento o estatuto do índio ainda é vigente e tem na realidade jurídica brasileira,

540
“A Convenção 169/OIT deve ser compreendida a partir de seu contexto internacional de reconhecimento
formal da necessidade dos Estados superarem ideários assimilacionista e de colonização de povos culturalmente
diferenciados”. GARZÓN, Biviany Rojas. YAMADA, Erika M. OLIVEIRA, Rodrigo. Direito à Consulta e
Consentimento de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais. DPLF: Washington,
D.C./São Paulo, 2016. p. 37.
177

ditado o modo como o direito e as instituições do Estado conduzem o reconhecimento da


identidade indígena. Uma vez que o processo para a demarcação da terra indígena tem como
pressuposto o reconhecimento da identidade étnica, esse processo passa pelo seguinte
caminho:
a) Estudo antropológico de identificação que conterá estudo etno-histórico,
sociológico, jurídico, cartográfico, ambiental e o levantamento fundiário
necessários à delimita, Art. 2º do Decreto 1.775541, de 8.01.1996;
b) A participação dos índios é estimulada, na forma e conveniência que os índios
indicarem em seus hábitos. Um relatório é produzido e encaminhado para o órgão
oficial, no caso a FUNAI, para os encaminhamentos burocráticos e em caso de
aprovação do relatório pelos técnicos do Estado, há a demarcação da terra indígena
e o precedente reconhecimento da condição de povo indígena pelo Ministério da
Justiça do Brasil.
Um dado curioso e preocupante é que tanto no Art. 65 do estatuto do índio, de 1973,
quanto no Art. 67 do ato das disposições constitucionais transitórias da constituição federal,
de 1988, determinam o prazo de 5 anos para concluir os processos de demarcação de terras
indígenas no Brasil, e como nos referimos antes, não se demarca terra de não índio, por
conseguinte, o reconhecimento da identidade dos índios está no processo, como condição
para a demarcação da terra indígena. Nenhuma das duas legislações foi cumprida, passados
mais de 28 anos da constituição federal e a questão indígena se arrasta indefinidamente no
Brasil.
A necessidade dessa tese se faz premente, portanto. Trata-se de oferecer caminhos
para efetivar o reconhecimento da identidade indígena e quiçá da demarcação da terra
indígena.
Na legislação internacional, convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em
25.07.2002 e recepcionada pelo Decreto 5.051, de 19.04.2004, o conceito de povos indígenas
remete à descendência dos povos que habitavam o país à época da colonização e que mantém
vivas suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas (art.
1.1.b da Convenção 169/OIT). Ademais disto o elemento principal agregado ao tema da
identidade indígena pela referida convenção é a auto-identificação ou a consciência de sua
identidade indígena, como critério de reconhecimento da identidade pelo Estado associado
aos indicadores de pertença dos povos indígenas através da memória coletiva, da terra que

541
Dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas e dá outras providências.
178

ocupam ou ocuparam, da cultura, em sentido amplo e dinâmico. Entendimento fundante nos


critérios antropológicos expressos nos relatórios circunstanciados de identificação e
delimitação de povos e terras indígenas para fins de demarcação, a exemplo da terra indígena
Tremembé Córrego do João Pereira, no Ceará542; expresso em votos dos ministros do STF543 e
na convenção 169 da OIT, art. 1.1.a, 2544. São esses os critérios jurídicos e os fundamentos
dos direitos coletivos dos índios no ordenamento jurídico brasileiro. Critérios que o Estado no
artigo 1º do decreto supracitado anuiu integralmente nos seguintes termos: será executada e
cumprida a convenção 169/OIT, tão inteiramente como nela se contém. Para que não pairem
dúvidas a convenção se aplica:

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de


descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica
pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento
das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam
todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou
parte delas.

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como


critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da
presente Convenção. (grifo nosso)

Sobre a auto-identificação, fundada nos elementos comunitários ou da coletividade,


podemos agregar a categoria comunidade politica, defendida por Weber como fundamento
para o reconhecimento pelo Estado da identidade de uma comunidade indígena, senão
vejamos:
A partir do momento em que um grupo se organiza social e politicamente como
distinto da sociedade nacional, que existe um sentimento que os une para um ideal
politico, submetendo-se todos os preconceitos e estigmas relegados aos grupos
étnicos por se afirmarem diferentes, tem o fundamento necessário para ser
reconhecido.545

542
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. ABAN. Relatório Circunstanciado de
Identificação e Delimitação. Portaria Fundaçao Nacional do Índio/FUNAI. Nº 10, de 13.01.1999. Disponível
em:
<http://www.abant.org.br/conteudo/001DOCUMENTOS/Laudos/Terras%20Indigenas/Relatorio%20Cristhian.p
df>. Acesso em: 27 Jun.2017. p. 65.
543
GARZÓN, Biviany Rojas. YAMADA, Erika M. OLIVEIRA, Rodrigo. Direito à Consulta e Consentimento
de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais. DPLF: Washington, D.C./São Paulo, 2016. p.
19. Ministra Rosa Weber: “nenhum Estado tem o direito de negar a identidade de um povo indígena ou tribal que
se reconheça como tal”.
544
BRASIL. Convenção 169 da OIT: Decreto 5.051/2004. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 27 Jun.2017.
545
VERAS, Marcos Flávio Portela. DE BRITO, Guimarães. Identidade Étnica. A Dimensão Politica de um
Processo de Reconhecimento. Revista Antropólogos ISSN 1982-IC. Ano 4. Vol. 5. Maio 2012. Disponível em:
<http://revista.antropos.com.br/downloads/maio2012/Artigo4-IdentidadeEtnica.pdf>. Acesso em: 30 Jun.2017.
p. 119.
179

Para esta tese analisamos também as categorias de terra indígena, memória coletiva e
direito socioambiental para caracterizar a identidade coletiva dos índios Cariri do sítio Poço
Dantas.

4.1.1 Terra Indígena

A terra para os indígenas se insere no conceito de natureza, terra-mãe. A relação dos


indígenas com a terra é umbilical, sendo por isso traço de sua identidade. Oliveira observa que
a terra, denominada por ele de território546 é um elemento essencial para a “construção da
identidade coletiva singularizada”547. A relação dos povos indígenas com a sua terra é
indissociável. Terra para os índios é o conjunto natural dos espaços de vida e morte e é o lugar
onde se constrói e reconstrói sua existência, no passado, presente e futuro. É na terra, na
natureza que estão os elementos que conectam as várias gerações, religare, onde está fundada
sua religiosidade. Isto só é possível porque para esses povos eles são parte da natureza em
físico, psíquico e espiritual. A terra é o habitus548 dos indígenas, o espaço em que ele atua
como gente, como ser humano, como sujeito cultural de direitos.
Em sentido jurídico a terra indígena é objeto de dupla proteção: o direito a terra como
direito originário549 e elementar aos povos indígenas e o direito à proteção do Estado sobre
estas terras. O artigo 231 atribui esses direitos ao povo indígena, além de garantir dentro das
terras indígenas a manutenção da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições

546
A territorialização é uma categoria explorada por João Pacheco de Oliveira como um dos elementos de
afirmação da identidade uma vez que para esse conceito converge uma ideia de “reorganização social que
implica: 1) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica
diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social
sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o passado.” PACHECO DE
OLIVEIRA, João. Uma Etnologia dos Índios Misturados? Situação Colonial, Territorialização e Fluxos
Culturais. Mana [online]. 1998, vol.4, n.1, pp.47-77. ISSN 0104-9313. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
93131998000100003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426.pdf >. Acesso em: 30
Jun.2017. p.. 55.
547
OLIVERIA, João Pacheco. Ação Indigenista e Utopia Milenarista. As Múltiplas Faces de um Processo de
Territorialização entre os Ticuna. In: ALBERT, B. & RAMOS, Alcida Rita. (Orgs.). Pacificando o Branco:
Cosmologias no contato no Norte-amazônico. São Paulo: UNESP, 2002. pp. 277-303. apud VERAS, Marcos
Flávio Portela. DE BRITO, Guimarães. Identidade Étnica. A Dimensão Politica de um Processo de
Reconhecimento. Revista Antropólogos ISSN 1982-IC. Ano 4. Vol. 5. Maio 2012. Disponível em:
<http://revista.antropos.com.br/downloads/maio2012/Artigo4-IdentidadeEtnica.pdf>. Acesso em: 30 Jun.2017.
p. 118.
548
No sentido que empresta Pierre Bourdieu, habitus é uma expressão que relaciona o sujeito e a capacidade de
incorporar uma determinada estrutura social por meio de disposições para sentir, pensar e agir em determinado
contexto social. O território é a terra dos índios que em razão do seu modo de vida conhece a natureza do lugar e
em razão disso é reconhecida por todos, que o mundo social desenha, ao se tornar um habitus vira uma lei social
incorporada. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2003. p
64.
549
O seu reconhecimento se dá ato declaratório de direito e não constitutivo de direito.
180

desses povos. Neste artigo o legislador constituinte atribuiu competência à União para a
demarcação das terras indígenas e a proteção de todos os seus bens.
As terras indígenas para fins de demarcação são àquelas tradicionalmente ocupadas550
pelos índios, aquelas terras por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a
seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes
e tradições.
A propriedade das terras indígenas é da União, restando aos índios a ocupação e posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos
nelas existentes. A União e os indígenas, nos termos da CF não podem alienar ou dispor das
terras indígenas. São também imprescritíveis. Para a FUNAI, a Terra Indígena, ou
simplesmente TI “é uma porção do território nacional, de propriedade da União, habitada por
um ou mais povos indígenas [...]. Trata-se de um tipo específico de posse, de natureza
originária e coletiva, que não se confunde com o conceito civilista de propriedade privada”551.
As comunidades indígenas através deste reconhecimento e posse são caracterizadas
como “coletividades organizadas de forma distinta do restante da população nacional” e,
consequentemente, assegurados a estes povos, direitos estabelecidos e administrados no
âmbito do Estado.552 A garantia do direito à terra é a principal garantia que o Estado está
obrigado a partir do momento em que estabelece a relação povos indígenas/Estado-nação.553
Adotamos a categoria jurídica terra indígena para esta tese como unidade geográfica de
habitação, de atuação política, religiosa e de integração com a natureza.
Para a Antropologia o conceito território seria mais adequado para os povos indígenas
como espaço de atuação que envolve a terra e os sujeitos em uma atuação para além da

550
CENTRO BRASILEIRO DE ANÁLISE E PLANEJAMENTO. CEBRAP. Direitos Indígenas. Debate com
Dalmo Dallari, Sérgio Leitão, Paulo de Bessa Antunes e Paula Monteiro. Novos Estudos. Nº 69, Julho de 2004.
Pp. 49-56. Disponível em: <http://novosestudos.uol.com.br/produto/edicao-69/>. Acesso em: 19 Jul.2017. p. 58.
Sobre o novo conceito de ocupação para o direito indígena: “No direito sempre fez diferenciação entre
propriedade e posse, mas no caso do índio se utilizou uma figura nova: a ocupação. O direito de ocupação não se
confunde nem com o direito de propriedade nem com o de posse. A ocupação pelo índio não significa o contato
físico permanente, imediato, com toda a área, mas um histórico de utilização da terra. Por isso se optou pela
expressão ‘terras que tradicionalmente ocupam’.”
551
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI. Terra Indígena o que é?. Disponível em:
<http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-24-32>. Acesso em: 11 Jul.2017.
552
VERAS, Marcos Flávio Portela. DE BRITO, Guimarães. Identidade Étnica. A Dimensão Politica de um
Processo de Reconhecimento. Revista Antropólogos ISSN 1982-IC. Ano 4. Vol. 5. Maio 2012. Disponível em:
<http://revista.antropos.com.br/downloads/maio2012/Artigo4-IdentidadeEtnica.pdf>. Acesso em: 30 Jun.2017.
p. 114.
553
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma Etnologia dos Índios Misturados? Situação Colonial,
Territorialização e Fluxos Culturais. Mana [online]. 1998, vol.4, n.1, pp.47-77. ISSN 0104-9313.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426.pdf >. Acesso em: 30 Jun.2017. p.. 55.
181

identidade, como espaço determinado em que atua uma organização social. Para esta tese
utilizamos os dois conceitos como essenciais para a compreensão do nosso objetivo central:
os índios Cariri do Cariri, do sítio Poço Dantas. Mesmo utilizando a categoria “terra de
índio”, como referido, estendemos esse conceito ao de território – fundado na tratamento dado
ao tema pelo Direito Socioambiental em Carlos Marés554 e ao conceito de territorialização,
assim defendido por João Pacheco de Oliveira555 e Rafael Echeverri Perico556.
Muito embora, seja a terra indígena o mais burocrático dos direitos a ser entregue e
garantido pelo Estado brasileiro, porque para o sistema jurídico nacional a terra é vista como
propriedade, sob um regime jurídico civil e não como à terra-natureza. Em matéria de
demarcação de terras indígenas cabe à FUNAI557, ações de regularização, monitoramento e
fiscalização das terras indígenas, bem como proteger os povos indígenas isolados e de recente
contato. Para tanto, a instituição conduz os estudos necessários à identificação e delimitação
de terras indígenas, com base no artigo 231 da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, Lei 6.001/73, Decreto 1.775/96, Portaria MJ 14/96 e Portaria MJ 2498/2011.
Os estudos realizados pela FUNAI, nos termos da legislação em vigor Decreto
1.775/96, devem ser multidisciplinares e o reconhecimento acompanhado pelo Ministério da
Justiça do Brasil até a expedição de Decreto da Presidência da República com a demarcação
de terras respectivas.

4.1.2 Memória Coletiva

A memória coletiva dos kariri do Sítio Poço Dantas é um dos elementos formadores
da sua identidade coletiva como indígena a partir do conceito de Maurice Halbwachs 558, que
se constitui como uma reconstrução social fundada nos “contextos sociais reais” vivenciados
por um grupo que mantêm constantes vínculos de pertencimento dos seus membros ao longo
554
SOUSA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2003. p. 49.
555
PACHECO DE OLIVEIRA, João. Uma Etnologia dos Índios Misturados? Situação Colonial,
Territorialização e Fluxos Culturais. Mana [online]. 1998, vol.4, n.1, pp.47-77. ISSN 0104-9313.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426.pdf >. Acesso em: 30 Jun.2017. p.. 56.
556
A territorialidade é entendida como esforço coletivo de um grupo social que ocupa, usa, controla e se
identifica como parte específica de seu espaço biofísico, convertendo-o, dessa forma, em seu ―território ou
homeland. PERICO, Rafael Echeverri. Identidade e Território no Brasil. IICA. Disponível em:
<http://www.iica.org.br/Docs/Publicacoes/PublicacoesIICA/IdentidadeTerritorioBrasil.pdf>. Acesso em: 03
Jul.2017.
557
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI. Terra Indígena o que é?. Disponível em:
<http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-24-32>. Acesso em: 11 Jul.2017.
558
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 8ª reimpressão. São Paulo:
Centauro Editora, 2015. p. 7.
182

do tempo, ainda que não haja convivência ou que as lembranças individuais tenham se
perdido para uns e outros membros do grupo. A memória coletiva não é a composição de
lembranças individuais; é uma expressão da convivência de grupos sociais que se mantém por
traços de uma existência coletiva.
Para Maurice Halbwachs é possível se reconstruir a memória coletiva de um grupo
desde que essa reconstrução estabeleça pontes entre noções comuns do espírito dos membros
da coletividade ao longo do tempo.

Não basta reconstruir pedaço a pedaço a imagem de um acontecimento passado para


obter uma lembrança. É preciso que esta reconstrução funcione a partir de dados ou
de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque
elas estão sempre passando destes para aquele e vice-versa, o que será possível
somente se tiverem feito parte e continuarem fazendo parte de uma mesma
sociedade, de um mesmo grupo.559

Essa teoria dialoga com a psicologia, mas não é decorrente dela, é da sociologia que
nasce o entendimento sobre a memória coletiva, no que pese a experiência pessoal/individual
e os objetivos que nos movem diante dos fatos sejam, também, importantes para construir as
memórias coletivas. As lembranças individuais sobre o ponto de vista linear e temporal
seriam as fontes da memória coletiva, mas não é assim que estas se processam; assim como na
vida não há precisão, também na construção e reconstrução da memória coletiva não há uma
linearidade e as lembranças individuais têm elementos de construção que interagem com o
ambiente social e o grupo em que foram produzidos; dando relevância muitas vezes a
situações construídas pelo sentimento e experiências que não traduzem os fatos reais
vivenciados e, portanto, a memória coletiva emerge não somente das lembranças individuais.
A construção da memória coletiva é difusa e não necessariamente linear, se fixa no conjunto e
pode deixar lembranças no individual ou impregnado no modo de agir coletivamente, ou em
situações que se recupera em novas situações em que o coletivo é exigido como grupo. A
“memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”560. A memória coletiva
não é a memória histórica de um indivíduo ou sociedade, ou seja, o registro dos eventos que a
história conserva. A memória coletiva comporta imagens parciais e lembranças impessoais.

559
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 8ª reimpressão. São Paulo:
Centauro Editora, 2015. p. 39.
560
Ibid., p. 69.
183

As memórias da primeira infância, por exemplo, “não nos lembramos porque nossas
impressões não se ligam a nenhuma base enquanto ainda não nos tornamos um ser social”561
conclui Maurice. Ela se conforma, portanto, no exercício da crítica histórica562 e social.
Na reconstrução do fenômeno humano, a memória enfrenta o tempo para dizer que ele
não é o único meio estável em que os homens interagem, mas só o tempo recheado de
conteúdo é capaz de evocar lembranças e memórias. Os depoimentos de testemunhas de fatos
vivenciados em grupo são alguns exemplos de Maurice que fazem pressupor eventos reais
vividos outrora em comum563. Esses depoimentos tem sentido em relação a um grupo do qual
a testemunha faz parte. No presente a memoria coletiva se faz apresentar, vamos dizer assim,
através desses eventos e dependendo do contexto de referência no qual atualmente transitam o
grupo e o indivíduo que o atesta.
Na comunidade do Sítio Poço Dantas em Crato, colhemos depoimentos de pessoas que
declaram no presente manifestações de um passado comum. Sua autodenominação, e os
elementos de consciência coletiva que os move, faz esse testemunho membros de um grupo
Cariri dos índios Kariri/Cariri. Para Maurice “o tempo e só o tempo têm o poder de
desempenhar este papel de modo que podemos encontrar o ontem no hoje." 564 Esse fenômeno
do tempo como meio onde se estrai a memória é o que Maurice denomina de tempo social, ou
seja aquele extraído da essência de ideias de um grupo, ele tem um papel importante na
recuperação da lembrança que subsidia a memória coletiva.
Sabemos que a memória coletiva não é a soma de lembranças individuais; para
recuperar essa memória coletiva tampouco é indispensável a presença dos indivíduos com
quem essa memória foi construída. A memória coletiva nos ajuda a afirmar a identidade de
um povo porque podemos, segundo esse raciocínio, continuar no presente sofrendo influência
do grupo ao qual pertencemos ainda que seja de outra geração. As ações inscritas no tempo se
forem importantes para o grupo transformam-se em significados e são esses que ultrapassam a
barreira do tempo porque se incorporaram ao conjunto, ao grupo, tornando-se mais estáveis
do que um pensamento, lembrança ou memória individual. Tampouco “o recurso à memória

561
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 8ª reimpressão. São Paulo:
Centauro Editora, 2015. p., 43/59. “Quando dizemos que a recordação de certas lembranças não depende da
nossa vontade, é porque a nossa vontade não é forte o suficiente. A lembrança está ali, fora de nós, talvez
dispersa entre muitos ambientes. Se a reconhecemos quando reaparece inesperadamente, o que reconhecemos
são as forças que a fazem reaparecer e com as quais sempre mantivemos contato”. É no meio e em contato com o
grupo que a memória coletiva existe e pode emergir.
562
A memória coletiva não é a memória histórica de um indivíduo ou sociedade, ou seja, o registro dos eventos
que a história conserva. A memória coletiva comporta imagens parciais e lembranças impessoais.
563
HALBWACHS, op., cit., p. 12.
564
HALBWACHS, op., cit., p. 146.
184

coletiva não pode ser imaginado como uma resposta imediata às lacunas de informação”565,
pondera Arruti.
Para Maurice “o tempo não passa. O tempo dura, subsiste e é necessário, senão como
poderia a memória retroceder no tempo?... Sim, o pensamento ainda atua na memória: ela se
desloca, está em movimento... E se move no tempo. Sem memória e fora de momentos em
que nos lembramos, como teríamos a consciência de estar no tempo?" 566
Neste contexto, igualmente, o espaço ocupa um local de referência para a identidade
dos grupos étnicos, já o dissemos. Opinião que é assente à teoria da memória coletiva de
Maurice. Segundo este autor “as imagens habituais do mundo exterior são parte inseparáveis
de nosso eu... Nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros.”567
E vai mais além:

Nossa cultura e nossos gostos aparentes na escolha e na disposição desses objetos


em grande medida se explicam pelos laços que sempre nos ligam a um número
enorme de sociedades sensíveis e invisíveis... e também nos recordam os costumes e
as antigas distinções sociais.568

A relação dos grupos sociais com o espaço e as coisas inanimadas que ocupam o
espaço gera uma linguagem para além do seu tempo, traduzindo uma espécie de linguagem ou
comunicação, que se vai aprimorando quando os ocupantes deste espaço resolvem utilizar
pinturas e marcam os espaços com cores, inscrições que remontam a animais, rituais, mitos
etc., que são estudo da Arqueologia. E ao remontar peças e seus lugares, vamos redescobrindo
um tipo de sociedade, de povos e sua forma de vida. Os espaços guardam lembranças.
Não por acaso a região do Cariri é cheia de espaços onde se localizam pinturas
rupestres e outros grafismos que remontam aos primeiros moradores do Cariri, da Chapada do
Araripe. A comunidade Sítio Poço Dantas, cuja identidade Cariri é objeto de nossa tese, está
localizada nas imediações da sede do distrito de Monte Alverne. Não mais que 6 km de
distância está o Distrito de Santa Fé, onde foi localizado um abrigo com pinturas rupestres de
várias gerações de humanos que habitaram a região do Cariri, com datação ainda não
determinada pela ciência, mas não inferior a 3 mil anos (BP). Na Figura 23 podemos ver a
distância, a altitude entre um ponto e outro, aproximadamente.

565
ARRUTI, José Maurício. Mocambo. Antropologia e história do processo de formação quilombola. São
Paulo: Edusc, 2006. p. 211.
566
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 8ª reimpressão. São Paulo:
Centauro Editora, 2015. p. 154.
567
Ibid., p. 157.
568
HALBWACHS, op., cit., p. 158.
185

Segundo relatos de especialistas, em razão da conformação espacial do abrigo, do


acesso de densa vegetação – na maioria babaçuais, e da altitude de 850 metros, possivelmente
seria um lugar de culto, como um “santuário”. A religiosidade está intimamente ligada ao
espaço em que é praticada, quanto mais para os indígenas cujo elemento terra é componente
de um todo que os acolhe e com eles interage.

Figura 23 - Mapa com distância entre a sede dos Distritos de Santa Fé e Monte Alverne,
no Crato.

569
Fonte: GoogleMaps, 2017.

No espaço como elemento estável da memória coletiva, ficam registradas ações do


grupo social e como tal é espelho de seus costumes, hábitos e, em alguns casos, ininteligível
para a maioria de nós. Enquanto memória coletiva “cada aspecto, cada detalhe desse lugar
tem um sentido que só é inteligível para os membros do grupo, porque todas as partes do
espaço que ele ocupou correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida
de sua sociedade.”570
O lugar, o espaço e para a contemporaneidade território, é também um viés de
resistência. Os povos resistem em deixar seu lugar e por ele guerreiam. Quando seu espaço é
destruído procuram construir no mesmo lugar, ou próximo dali, sua morada. E através da

569
GOOGLE. Maps. Disponível em: <https://www.google.com.br/maps/dir/monte+alverne/Santa+Fe,+Crato+-
+CE/@-7.1428323,-
39.548984,14z/data=!3m1!4b1!4m14!4m13!1m5!1m1!1s0x7a1883187c8ae8f:0x77fdee980b0e379!2m2!1d-
39.5213618!2d-7.1233344!1m5!1m1!1s0x7a1891ed7998d05:0xf5c7d7a21c57d9c0!2m2!1d-39.5342904!2d-
7.1630431!3e2?hl=pt-BR>. Acesso em: 17 Jul.2017.
570
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 8ª reimpressão. São Paulo:
Centauro Editora, 2015. p. 160.
186

memória se reconstroem espaços sociais coletivos, novamente, aquela semente fressurgindo


na cabeça, nem sempre com a lembrança individual do porquê; mas uma imanência que se
constitui em luta pela sua permanência como grupo, do qual ele ainda faz parte. Porque estão
próximos, os grupos constroem relações sociais, por isso a terra indígena é tão importante
para esses grupos sociais. Nesse sentido andou bem a legislação brasileira quando atrela a
declaração de terra indígena ao processo de reconhecimento da etnia, através da demarcação.
Pena que este direito não tem avançado em garantias de efetivação pelo Estado de modo
geral. Executivo e Judiciário, principalmente, têm protagonizado abusos na demora nos
processos e decisões que afetam o direito coletivo dos povos indígenas, a exemplo do marco
temporal imposto pelo STF para que os índios comprovem a posse da terra retroativa ao ano
de 1988. Esse entendimento, aliás, nega a memória coletiva dos povos indígenas, como vemos
aqui.
A categoria da memória coletiva, portanto, é a que melhor nos ajuda a defender a tese
da identidade jurídica dos Cariri do Sítio Poço Dantas. Este grupo que passadas gerações de
exploração e destruição de suas características primitivas chegam ao século XXI destroçados,
mas resistem e essa resistência encontra amparo no direito socioambiental como caminho para
garantia desses direitos. A lembrança dos antepassados está rala, quase desapareceu, exceto
nos elementos constantes da memória coletiva dessa comunidade. Fato que tem amparo nesta
tese em que a memória coletiva quando associada ao espaço, por exemplo, nos ajuda a
compreender esses lapsos de esquecimento de lembranças individuais, senão vejamos:

Quando tocamos na época em que já não conseguimos imaginar os lugares, nem


mesmo confusamente, chegamos também a regiões do passado que nossa memória
não atinge. Portanto, não é exato dizer que, para lembrar, é preciso que nos
transportemos em pensamento fora do espaço, pois ao contrário é justamente a
imagem do espaço que, em função de sua estabilidade, nos dá a ilusão de não mudar
pelo tempo afora e encontrar o passado no presente – mas é exatamente assim que
podemos definir a memória e somente o espaço é estável o bastante para durar sem
envelhecer e sem perder nenhuma de suas partes. 571

Não é igualmente o caso dos Cariri do Poço Dantas, a memória coletiva do lugar está
preservado no tempo, há poucos quilômetros do lugar onde hoje habitam. As imagens do
abrigo de Santa Fé, não se trata de uma gruta ou caverna, são exemplos magníficos de uma
cultura e sociedade, senão vejas as figuras 24 e 25, suas formas associadas a animais ou cores,
raras e destacadas de outras pinturas encontradas por todo o interior do Nordeste do Brasil. A

571
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 8ª reimpressão. São Paulo:
Centauro Editora, 2015. p. 189.
187

maioria delas ainda em estudos arqueológicos pela Fundação Casa Grande, em Nova Olinda e
do Instituto de Arqueologia do Cariri, da Universidade Regional do Cariri.

Figura 24 - Abrigo de Santa Fé. Tamanho do abrigo onde se situa as inscrições e


pinturas rupestres, uma (de muitas) em destaque.

Fonte: o autor, 2017.

Na figura acima, temos uma dimensão do tamanho do abrigo pequeno, portanto. A


pessoa da imagem, pesquisadora Heloisa da Fundação Casa Grande está suportada por uma
base de não mais que 3 metros do abrido que compõe um paredão de mais de 10 metros de
altura. A rocha colorida é da formação geológica Exu572, cuja idade aproximada está entre 95
e 110 milhões de anos573. A visão que ela tem do ponto em que está é de todo o vale da
Chapada do Araripe, não estivesse encoberta por babaçuais. Como que o lugar fosse
protegido, oculto dos passantes.
Na figura 25 vemos um conjunto de imagens de pinturas rupestres e/ou gravuras em
baixo relevo que são representações de pássaros que teriam habitado a região em tempos

572
A Formação Exu é formada por arenitos grossos e argilosos, muito friáveis, com estratificação cruzada,
intercalada por níveis de arenitos conglomeráticos, apresentando predominantemente cores roxas e amareladas.
Foi redefinida por Ponte & Appi (1990) como a parte superior da Formação Exu de Beurlen (1963). É tida com
de origem fluvial (Ponte & Ponte Filho, 1996). Ponte, F.C. & Appi C.J. 1990. Proposta de revisão da coluna
litoestratigráfica da Bacia do Araripe. 36º Congresso Brasileiro de Geologia. Natal, Brasil, p. 211-226.
BEURLEN, K. 1963. Geologia e estratigrafia da Chapada do Araripe. In: Congresso Brasileiro de Geologia,
17, Recife, SBG, p.1-47. PONTE, F.C. & Ponte Filho, F.C. 1996. Estrutura geológica e evolução tectônica da
Bacia do Araripe. Departamento Nacional da Produção Mineral, Recife, 68p
573
DOURADO, Nick B. O. Estudo da Proveniência dos Arenitos da Formação Exu, Bacia do Araripe. Rio
de Janeiro, 2012. Xvi, 91p. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Gradução em Geologia. Departamento
de Geologia, Instituto de Geociências. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Disponível
em: <http://ppgl.geologia.ufrj.br/media/pdfs/Nick_Oliveira_Mestrado.pdf>. Acesso em: 17 Jul.2017.
188

antigos, Tuiuiús, dizem uns574. Há quem afirme tratar-se de desenhos de armas de guerras,
com flechas apontadas e propulsor575. Na foto 3 vemos o desgaste da rocha pela erosão, o que
denota a fragilidade do ambiente e a necessidade de sua preservação. O local em que se
encontra o abrigo é uma propriedade privada e o acesso só foi possível acompanhado pelo
proprietário do terreno, cujo local é cercado do acesso público.

Figura 25 - Três imagens de gravuras e pinturas no abrigo de Santa Fé, em Crato.

Foto 3

Foto 1 Foto 2

Fonte: o autor, 2017.

Na figura 26, a seguir, vemos outro tipo de grafismo ou gravura, com imagens de pés
pequeninos e setas, sem pinturas (foto 1) e na imagem seguinte (foto 2) temos um conjunto de
gravuras em baixo-relevo, uma em desenho de cobra (destaque), traduzido pelos relatos dos
caboclos, descritos na Arqueologia Social de Rosiane576, como o mito da serpente Iara. É
possivelmente de datação diferente daquelas apresentadas acima, figura 28. Possivelmente são
registros antigos, os mais antigas do Cariri e o espaço foi visitado por diferentes gerações,
cujos habitantes não destruíram os registros anteriores, ao contrário acrescentou outras
imagens.

574
LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva: A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio
Cultural da Chapada do Araripe. 2105. pp. 442. Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, Coimbra. 2015. p. 210.
575
Ibid., p. 212.
576
LIMAVERDE, op., cit., pp. 217/218.
189

Figura 26 - Imagens, Foto 1 e Foto 2, de gravura em baixo-relevo no abrigo de Santa Fé

Foto 1 Foto 2

Fonte: o autor, 2017.

Segundo Rosiane Limaverde:

Os autores das gravuras pintadas deixaram sua arte no suporte. Esse grupo dominava
uma sofisticada técnica de pintar gravuras causando aos nossos olhos contemporâneos
um efeito ‘impressionista’. O sítio não era um local de habitação, mas de algum tipo
de ritual, um Santuário pré-histórico, onde foi repetido de forma sistemática em quase
todo o paredão um único símbolo, importante para o grupo. Esse símbolo podia ter a
função de ser um marcador de memória para perpetuar a tradição cultural do grupo,
contendo dessa forma uma narrativa mítica... isso o que ocorreu no paredão: com o
tempo, o símbolo repetido foi passando por transformações, até chegar a uma forma
‘tosca’ de gravado, sem pintura, na periferia do supor rupestre. 577

A memória coletiva e a terra indígena conjugam os elementos materiais e imateriais


(culturais) que aplicados em associação caracterizam a identidade jurídica dos Cariri do Sítio
Poço Dantas. O filtro que nos autoriza a defender essa tese é o olhar jurídico do Direito
Socioambiental.

4.1.3 Direito Socioambiental

O direito socioambiental578, compreende-se como o conjunto de normas de proteção


da natureza e das gentes, analisadas sob o método pedagógico da crítica dialética da

577
LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva: A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio
Cultural da Chapada do Araripe. 2105. pp. 442. Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, Coimbra. 2015. p. 217/218.
578
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Liberdade e outros Direitos. Ensaios Socioambientais.
Letra da Lei. Curitiba. 2011. p. 9/10. O termo socioambiental “significa a relação estreita e indissolúvel entre a
natureza e a cultura ou entre a biodiversidade e sociodiversidade, tendo como base a certeza de que a
sociodiversidade não sobrevive sem a biodiversidade”. O termo foi popularizado no Brasil pelo Instituto
Socioambiental – ISA, uma organização não governamental fundada em 1994. O Socioambientalismo,
190

sociedade, do Estado, e da relação dialética entre culturas e natureza579; que envolve o debate
sobre sociedades hegemônicas, povos indígenas, tribais e comunidades tradicionais e suas
relações com a natureza. Objetiva empreender o direito socioambiental a práxis do direito e a
norma jurídica para os fins da justiça social, ai compreendido a redução das desigualdades, o
respeito aos povos e nações indígenas, tribais e comunidades tradicionais, justiça de transição
em ambiente de participação, democracia e liberdade. Ao pretender construir um direito e não
uma luta politica somente, as correntes que lutam pelo direito socioambiental no Brasil
fizeram uma escolha-saída para a essa “guerra que se estabeleceu entre a humanidade e a
natureza”580: atuar no campo da regulação e promover mudanças internas no sistema.
De natureza multidisciplinar o direito socioambiental se associa fortemente ao direito
constitucional e influencia e modifica outros ramos do direito, como o penal, civil, agrário,
tributário e o direito ambiental sob o enfoque biocêntrico. Algumas vezes se confunde com o
direito ambiental. Na sua abordagem estão estudos e pesquisas sobre sociedades sem Estado,
a emergência de Estados comunitários, Plurinacionais e/ou Pluriétnicos. A superação da ideia
de progresso associada ao crescimento econômico, medidos pelo Produto Interno Bruto como
indicador preferencial de desenvolvimento, ou ainda a ideia de que o desenvolvimento
econômico é um fim e não meio para alcançar progresso, ainda que esse termo comporte
duras críticas. O termo socioambiental, por sua vez, põe em questão o conceito de
desenvolvimento sustentável, como a síntese do progresso conciliado com o uso racional dos
recursos ambientais, uma vez que está em sua agenda a análise desta relação e a crítica do
próprio desenvolvimento581.
O direito socioambiental nasce da necessidade de trabalhar conjuntamente duas
questões essenciais para a preservação das espécies e ecossistemas: o social/cultural e o
ambiental. Há uma crise nesses dois pilares e entre eles promovida pela ação dos seres
humanos no uso irresponsável da natureza. São problemáticas que estão presentes no nosso
dia-a-dia, tais como: a fome, a superlotação das cidades, “a iníqua distribuição de riquezas

igualmente importante, “é um movimento muito amplo que tem como convicção a necessidade de encontrar um
caminho de superação do desenvolvimento econômico sem limites para que seja possível a manutenção mais
próxima da integridade da sociodiversidade e da biodiversidade do planeta e de cada uma de suas partes.”
579
VEIGA. José Eli. A Emergência Socioambiental. São Paulo: Senac, 2010. p. 129.
580
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Liberdade e outros Direitos. Ensaios Socioambientais.
Letra da Lei. Curitiba. 2011.p. 12. Aqui o autor propõe em sua análise três saídas para o impasse homem x
natureza: “1) promover mudanças internas no sistema por meio de regulação; 2) uma revolução social profunda
que inverta totalmente a lógica capitalista; 3) uma catástrofe generalizada que destrua ou chegue muito perto de
destruir a humanidade”.
581
VEIGA. José Eli. A Emergência Socioambiental. São Paulo: Senac, 2010. p., 65.
191

produzidas ao esgotamento das fontes de matéria-prima”582, a destruição dos povos nativos da


América Latina e a tentativa de invisibilizar os povos e suas identidades étnicas. Igualmente
se entrelaçam no direito socioambiental aqueles direitos reconhecidos ou não na legislação,
atinentes aos direitos dos povos indígenas, o direito de todos à natureza sadia e a preservação
da cultura e do patrimônio cultural583.
Consequentemente o objeto fundante do direito socioambiental está nas questões
sociais e ambientais que os processos de desenvolvimento podem legar, aí incluídos os doze
desafios da agenda ambiental listadas por Veiga584 dividido em grupos, a) destruições ou
perdas de recursos naturais: 1 – habitat; 2 – fontes proteicas; 3 – biodiversidade; 4 – solos, b)
limites naturais: 1 – energia; 2 – água doce; 3 – capacidade fotossintética, c) artifícios
nocivos: 1 – químicos tóxicos; 2 – espécies exóticas; 3 – gases do efeito estufa ou danosos à
camada de ozônio, d) populações humanas: 1 – crescimento; 2 – aspirações de consumo. O
autor aponta para a problemática dos recursos hídricos o ponto mais próximo de eclodir em
crise nacional.
A sua inserção no ordenamento jurídico nasce colado à inclusão no texto da
constituição de 1988 dos direitos coletivos: dos indígenas (art. 231 e 232), ao meio ambiente
sadio (art. 225), à preservação do patrimônio cultural brasileiro (art. 215 e 216) e à função
social da propriedade (art. 182 e 186); e a partir daí a Judicialização para que o direito ali
inscrito não virasse quimera. Houve uma luta que não foi simples e está em curso. A
constituição de 1988 foi o passo mais significativo e se deve a grupos distintos os resultados,
na descrição de Carlos Marés se pode observar:

Um grupo de índios de diversas nações e regiões se mobilizou para garantir que ali
estivessem inscritos os direitos de todos os povos que vivem no território clamado
Brasil. Não havia deputados indígenas... mas a participação dos índios e seus
aliados, antropólogos, advogados, filósofos, historiadores foi marcante. O processo
de pressão e esclarecimento a cada deputado esteve aliado a uma discussão
permanente com as comunidades indígenas e com a sociedade civil. [...]

Em outra trincheira, não muito distante, os ambientalistas tentavam convencer os


deputados de que a preservação e proteção ambiental era necessária e imperiosa. O
momento oportuno (a Conferência de Estocolomo de já havia alertado a humanidade
para os problemas da poluição e já havia um crescente clamor pela proteção
ambiental) e a perseverança de deputados como Fábio Feldmann fizesse com que
outro capítulo fosse escrito garantindo o meio ambiente ecologicamente equilibrado
como direito de todos, protegido para as presentes e futuras gerações. [...]

582
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Liberdade e outros Direitos. Ensaios Socioambientais.
Letra da Lei. Curitiba. 2011. p. 9.
583
Ibid., p., 9.
584
VEIGA. José Eli. A Emergência Socioambiental. São Paulo: Senac, 2010. Pp. 67/68.
192

A preservação do patrimônio cultural brasileiro foi outro tema introduzido na


Constituição de 1988 após pressão da vontade popular, garantindo não só a proteção
dos bens materiais como dos imateriais portadores de referência à identidade, à ação,
à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.... A partir de
1988 os bens são objetivamente integrantes do patrimônio cultural,
independentemente da vontade do Governo. [...]

O tema mais disputado, mais renhido, foi o da reforma agrária que envolvia a
questão da função social da propriedade: de um lado a questão social ... e do outro a
velha propriedade do século XIX, absoluta, protegida a qualquer preço... Esta
disputa gerou um texto que permite uma intepretação ambígua... a propriedade
privada tornou-se um tema de direito público.585

É a partir da inclusão desses direitos coletivos, de temática socioambiental, no


ordenamento jurídico nacional que o exercício desses direitos se tornou uma realidade mais
concreta, ou seja, as questões passaram a ser judicializadas com esse novo conteúdo e as
decisões surgiram, a favor ou contra, mas fizeram girar uma roda virtuosa em torno do tema,
que estimulou novos estudiosos e pesquisadores do direito socioambiental, e militantes da
questão socioambiental.
Os bens considerados socioambientais são todos aqueles considerados essenciais para
a proteção da vida, das culturas e da natureza. E a exemplo do direito coletivo ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, Art. 225 da CF, esse bem, ou macrobem586 como diria
Morato Leite, vai além da categoria privado ou público, é um bem de uso comum587, cuja
restrição do seu uso pode recair sobre um proprietário privado ou ao Estado. Igualmente a
proteção de um bem socioambiental pode recair sobre o patrimônio588 com valor econômico
definido pela legislação, ou não, como o ar. De natureza material ou imaterial. Essa
característica do bem socioambiental e bem coletivo se justifica pela natureza difusa de seu
titular. O proprietário de bem privado, de uso comum ou que tenha sobre ele a identificação
de bem socioambiental segundo a lei; que contenha, no todo ou em parte, bem socioambiental
ou coletivo ainda que disponha da parte que seja disponível, há no componente
socioambiental do bem uma indisponibilidade, que acompanha o bem aonde ele for e sobre
ele paira a proteção, preservação ou restrição de uso, para quem o adquirir.

585
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Liberdade e outros Direitos. Ensaios Socioambientais.
Letra da Lei. Curitiba. 2011. p. 165/166.
586
LEITE, José Rubens Morato. Introdução ao Conceito Jurídico de Meio Ambiente. In: VARELLA,
Marcelo Dias. BORGES, Roxana Cardoso B. O Novo em Direito Ambiental. Belo Horizonte: Del Rei, 1998, p.
51-69.
587
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 87.: Para
alguns autores trata-se de bens de interesse público, somente, é o caso de SILVA, José Afonso da. Direito
Ambiental Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 87.
588
SOUZA FILHO, op., cit., p. 179: “É o conjunto de bens agregados por valores especiais (socioambientais)
que se compõe e se integram por bens de diversos patrimônios individuais (públicos e privados)”.
193

Dentre os bens socioambientais temos o direito à identidade, inscrito na Constituição


através dos art. 231, art. 232 e dos bens culturais intangíveis589 art. 215 e art. 216590. De
natureza imaterial o direito à identidade é evocado através da memória e da cultura de um
povo para garantir-lhes direitos coletivos. O direito socioambiental é a terceira categoria de
análise que empreendemos nesta tese e é a lente através da qual a identidade jurídica dos
índios Cariri do Sítio Poço Dantas se vê.

4.2 QUEM SÃO E ONDE ESTÃO OS ÍNDIOS CARIRI

Os índios Cariri do Cariri descendem de um processo de mistura étnica que teve sua
ligação mais recente no século XVIII e século XIX, a partir dos aldeamentos missionários a
que foram submetidos. Esses índios já eram resultantes de uma mistura de várias etnias que
foram aldeados na missão dos Cariris Novos – em Missão Nova (atual Missão Velha) e
posteriormente Missão do Miranda (atual cidade de Crato), esta coordenada pelo missionário
capuchino Frei Carlos Maria de Ferrara, cujas terras foram doadas em 1743 aos índios Cariú e
outros povos indígenas agregados. A etnia Cariú que estava descrita neste ato jurídico de
doação, representava um conjunto de várias etnias, algumas vindas de outras regiões do que
hoje compreendemos como Cariri, eram índios que sobreviveram ao processo de escravização
e espoliação territorial submetido pelos colonizadores.
Os índios Cariri do Sítio Poço Dantas são descendentes desse processo de aldeamento
registrado no Cariri e que ocorreu semelhantemente em outras regiões do Nordeste brasileiro
e gerou identidades e modos organizativos sociais, que no dizer de João Pacheco de
Oliveira591, é resultante de outro processo de territorialização diverso da colonização europeia,
ou seja, eram mestiços e misturados formando outras etnias. Diversa, portanto, daqueles
descendentes das primeiras migrações que chegaram ao território da chapada do Araripe, cujo

589
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3 ed. Curitiba: Juruá,
2006. p. 53.: “Num bem socioambiental existe sempre um direito de propriedade material e outro imaterial, da
coletividade, fica claro que o sentido da preservação não é pela materialidade existente, mas pela representação,
evocação ou memória que lhe é inerente. Todo bem cultural contém uma parte imaterial, intangível que
justamente lhe dá esta característica.”
590
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de
criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios
de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
591
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma Etnologia dos Índios Misturados? Situação Colonial,
Territorialização e Fluxos Culturais. Mana [online]. 1998, vol.4, n.1, pp.47-77. ISSN 0104-9313.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426.pdf >. Acesso em: 30 Jun.2017. p. 57.
194

registro datado de mais de 3 mil anos (BP)592, com pinturas e gravuras com registro de
presença humana entre 1170 ± 30 BP no sítio Arqueológico do Olho D’água em Nova Olinda
e no abrigo da Santa Fé, no Crato, para citar apenas os mais importantes.
A politica indigenista de demarcação no Brasil, no Nordeste, em que os povos
indígenas em geral já estão misturados à dinâmica regional constitui outro processo de
territorialização, seguindo entendimento de João Pacheco de Oliveira. Caso no qual se insere
a identidade Cariri da comunidade do Sítio Poço Dantas, que necessita renascer de sua
invisibilidade e retomar seu lugar no território do Cariri. A territorialização a que foram
submetidos os Kariri em 1743 se caracterizou com o aldeamento e depois com o diretório
indígena, que permitiu neste caso, a inserção de negros e brancos nos aldeamentos, gerando
outra mestiçagem; claro está que a cultura que esses povos legaram é também mestiça, mais
precisamente católico-cristã, sincrética com o negro e da cultura dos povos da natureza, dos
ancestrais dos indígenas.
Essa matriz étnica que teve influencia da territorialização e da mestiçagem cultural
está presente nos Cariri do Sítio Poço Dantas, como veremos nas seções seguintes. A
territorialização não é condição exclusiva para a identificação da etnia dos Cariri, mas no caso
da região do Cariri tem um apelo maior ainda, o nome que o identifica está na etnia dos povos
tradicionais que aqui habitaram e habitam a região: Cariri dos Kariri/Cariri. O nome que a
identifica trás em si uma referência identitária da presença inconteste da etnia Kariri/Cariri no
Sul do Ceará, compreendemos. Talvez por isso a politica indigenista nacional tenha se
dedicado a expulsar e dar por extintos os índios Kariri no Cariri. Sua expulsão para o litoral,
Parangaba (Arronches) e Caucaia, ocasionou outro processo de etnogênese, onde se
integraram a outros índios e formaram os Tapeba – etnia que busca seu reconhecimento e
demarcação de terras frente ao Estado e que tem encontrado resistência exatamente por essa
questão da miscigenação e traços de aculturação a que estiveram submetidos em toda sua
existência. A expulsão dos Kariri se deu em 1780 pelo Governo do Estado do Pernambuco, a
quem o Ceará e o Cariri estavam ligados593.
Os Cariri que permaneceram no Cariri ficaram invisibilizados, alguns mudaram até o
sobrenome para não serem identificados. Mas em sua consciência, ainda que tênue, eram
Cariri. Durante muitos anos essa identidade ficou silenciada, temendo represálias e

592
LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva: A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio
Cultural da Chapada do Araripe. 2105. pp. 442. Tese de Doutoramento em Arqueologia. Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, Coimbra. 2015. p. 339.
593
Em 1680 o Siará passa a ser Capitania subalterna da de Pernambuco até 1799 quando em 17 de janeiro se
torna Capitania autônoma.
195

constrangimentos que associavam ao “ser índio” uma cultura atrasada, em estágio de evolução
menor ou simplesmente selvagem. A emergência das questões ambientais e indígenas no
Brasil da década de 1980 deu o subsídio necessário para a emergência também do orgulho de
ser Cariri para os membros do grupo étnico do Sítio Poço Dantas, que vai eclodir somente na
década de 2010, quando a comunidade foi visitada por uma índia militante do sul do Brasil. E
com ela renasceu o desejo de existir como grupo social.
Antes disso os Cariri eram índios autodeclarados no senso do IBGE, somente. Sem
etnia definida. Os dados de crescimento dos povos indígenas autodeclarados do Brasil
transcritos no relatório IBGE 2012594 confirmam o crescimento de 1,1% a.a. um crescimento
abaixo daquele experimentado entre 1991 e 2000, que foi de 10,8% a.a. o que implica dizer,
não houve retrocesso, continua havendo crescimento da quantidade de índios autodeclarados
no Brasil. A expectativa outrora era de desaparecimento natural dos indígenas. O
ressurgimento do interesse dos remanescentes em retornar á sua etnia original, segundo a
estimativa desse relatório é resultante de melhorias das populações indígenas em
consequência das politicas governamentais em curso até 2010. No mesmo período a
quantidade de municípios do Brasil com pelo menos um residente indígena autodeclarado
subiu de 34,5% para 63,5%. No censo de 2010 esse percentual aumentou para 80,5%. Os
estudiosos estão estimando esse crescimento em razão da etnogênese595, fator de identidade
étnica a partir da reinvenção de etnias já identificadas, processo comum que se iniciou no
Nordeste da década de 1920. É o caso dos índios Cariri do Sítio Poço Dantas, em Monte
Alverne, Crato, Ceará. E tantos outros descritos sob o mesmo perfil por Arruti 596 e João
Pacheco de Oliveira597 sobre os índios do Nordeste.

594
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE. Indígenas no Censo Demográfico
2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso
em: 24 Jun.2017. p. 4.
595
ARRUTI, José Maurício P. A. A Produção da Alteridade: o toré e as conversões missionárias e indígenas.
VII Congresso Luso-Brasileiro de Ciências Sociais. A Questão Social no Novo Milênio. Coimbra, 2004. p. 1.
Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel47/JoseArruti.pdf>. Acesso em: 18 Jul.2017.
______. Etnogênese Indígena. Povos Indígenas no Brasil 2001/2005. São Paulo: Instituto Socioambiental,
2006, p. 50. Disponível em: < https://www.socioambiental.org/pt-br/o-isa/publicacoes/povos-indigenas-no-
brasil-20012005>. Acesso em: 19 Jul.2017. Etnogênese é o processo de auto-atribuição do rótulo de índios por
grupos que, até determinado momento, eram tomados indistintamente como sertanejos ou caboclos, com a
ressalva de que esse termo deve ser entendido como um processo social e não categoria de identificação; de tal
modo que se busca com esse entendimento afastar divisões entre um grupo étnico e outro mais isolado cuja
cultura está preservada e sofreu processos diferentes de aculturação.
596
ARRUTI, José Maurício P. A. A Produção da Alteridade: o toré e as conversões missionárias e indígenas.
VII Congresso Luso-Brasileiro de Ciências Sociais. A Questão Social no Novo Milênio. Coimbra, 2004. p. 1.
Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel47/JoseArruti.pdf>. Acesso em: 18 Jul.2017.
597
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma Etnologia dos Índios Misturados? Situação Colonial,
Territorialização e Fluxos Culturais. Mana [online]. 1998, vol.4, n.1, pp.47-77. ISSN 0104-9313.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426.pdf >. Acesso em: 30 Jun.2017.
196

A pesquisa bibliográfica empreendida para a tese demonstrou, todavia, que a etnia


Kariri é de alcance mais largo do que os habitantes do Sítio Poço Dantas, do Cariri no Ceará,
se estendem pelo Nordeste. No Ceará há duas comunidades Kariri, nenhuma ainda com
processo junto à FUNAI: em Crateús com 116 Kariri cadastrados na Fundação Nacional de
Saúde598 e em São Benedito, alguns estudos afirmam a existência de Kariri599. da FUNAI, em
Crateús 116 índios e em São Benedito600. Há outros ao longo das margens do rio São
601
Francisco, em Alagoas (Xukuru-Kariri e Kariri-Xocó) , Bahia (Kariri602 e Kiriri)603 e
através da etnogênese esses povos recuperaram além da identidade, rituais religiosos como o
Toré604, determinante para legitimar a indianidade frente aos órgãos do Estado.
Após a Convenção 169 da OIT e ratificação do Estado brasileiro à referida convenção,
elaborou-se o entendimento que o processo de auto-atribuição e consciência de “ser índio”
pelos grupos sociais tem sido a condição principal para o reconhecimento do Estado. Esse
entendimento está registrado em documentos oficiais como o I Encontro Nacional dos Povos
Indígenas (2003)605 e assembleias de índios Brasil a fora; buscam com isso abolir os laudos de
identificação étnica da FUNAI, para tanto não houve alteração na legislação nacional,
portanto, continua havendo laudo técnico para tal reconhecimento.606

598
CIARLINI, Alyne Almeida. Territorialidade, Saudade, Ressignificação: índios tabajara do olho d’água dos
canutos. In PALITOT, Estevão Martins. (Org.). Na Mata do Ceará: contribuições sobre a presença indígena no
Ceará. Fortaleza: Secult/Museu do Ceará/IMOPEC, 2009. 151-270. p. 274.
599
ARAUJO, Danielle. Agouros de um Espelho Partido. Luta e resistência no processo de afirmação étnica dos
índios do Nordeste. O caso dos Tapuia-Kariris de São Benedito. Revista Espaço Ameríndio. Vol. 10. Nº 1.
2016. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/EspacoAmerindio/article/view/65039/37847>. Acesso em:
21 Jul.2017.
600
Não há registro na literatura da quantidade de índios Kariri.
601
ARRUTI, José Maurício P. A. A Produção da Alteridade: o toré e as conversões missionárias e indígenas.
Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel47/JoseArruti.pdf>. Acesso em: 18 Jul.2017.
p. 4.: Os Kariri-Chocó pela descrição do autor possivelmente ligado aos Kariri do aldeamento no Cariri.
602
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Os Kariris de Mirandela: um Grupo Indígena Integrado. Estudos Baianos.
Nº 6. Salvador: Universidade Federal da Bahia. 1972. p. 31. A autora fez registros da presença de Caboclos
Kariri em Mirandela. Bahia.
603
OLIVEIRA, Carlos Alfredo Ferraz de. Et. All. A Experiência do Projeto GATI em Terras Indígenas.
Núcleo Regional Nordeste I e II da FUNAI. Brasília – DF: IEB, 2016. p. 91.
604
ARRUTI, op., cit., p. 6: “O toré é uma dança coletiva que pode contar com um número indefinido de
participantes, que se apresentam em parte pintados de branco, segundo motivos gráficos muito simples e em
parte mascarados... o mascarado é um Encantado, e os mascarados formam um conjunto denominado Praiá. Um
conjunto de Praiás formam um batalhão e fica sob a guarda de um Xamã, designado como Zelador. Cada Praiá
corresponde a um Encantado (está em oposição a morrer) do panteão daquele terreno e a soma destes forma o
panteão da ‘aldeia’ (o próprio grupo étnico).”
605
ARRUTI, José Maurício. Etnogênese Indígena. Povos Indígenas no Brasil 2001/2005. São Paulo: Instituto
Socioambiental, 2006, p. 53. Disponível em: < https://www.socioambiental.org/pt-br/o-isa/publicacoes/povos-
indigenas-no-brasil-20012005>. Acesso em: 19 Jul.2017.
606
Este tema, aliás, está em discussão no âmbito do Governo Federal. Por pressão da bancada ruralista no
congresso nacional o governo instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar denúncia de
irregularidade em laudos emitidos para a FUNAI. O relatório final foi indicando o indiciamento de técnicos
sobre laudos considerados irregulares. A Associação Brasileira de Antropologia emitiu manifesto de apoio aos
197

Estes povos que certamente outrora integraram um conjunto de povos próximos,


algumas da mesma nação e etnias diferentes, antes da expulsão oficial, segundo estudos
realizados por Carlos Estevão, descritos em Arruti607, formaram uma corrente de grupos
étnicos que foram sendo identificados com semelhança em rituais religiosos do Toré, alguns a
exemplo dos Kariri-Xocó com histórico de expulsão no mesmo período relatada dos índios
Kariri do Cariri.
Expulsos, esses grupos étnicos acabam constituindo-se como outra etnia ou
recuperando a mesma etnia de outrora como uma identidade histórica608, ou ‘pontas de rama’
descritos por Arruti609 para caracterizar grupos que trabalham sua etnogênese como
remanescentes de antigos aldeamentos, ainda que sem vínculo territorial expresso ou
documentado, mas apenas genealógico e em rituais com grupos já plenamente legitimados.
Há semelhança do processo de etnogênese do grupo étnico Kariri-Xocó, segundo
descrição de Arruti, com os Cariri do Sítio Poço Dantas. Os Kariri-Xocó eram “caboclos que
objetivamente (conforme a história indígena) ‘remanescentes xocó’, ou seja a etnia era um
dado material, sendo necessário então torna-la também um dado da consciência.”610 Trata-se
efetivamente de um processo semelhante ao que visualizamos na comunidade tradicional dos
índios Cariri no Sítio Poço Dantas, que vivem em minoria distante das comunidades étnicas
do Nordeste e do Ceará e foram perdendo ao longo do tempo as lembranças individuais do ser
índios Kariri, exceto pelo nome que trazem em seus documentos e a memória coletiva que se
traduz na segura auto-afirmação de serem índios Cariri, apesar de tudo. Essa denominação de
caboclos, agricultores é ademais de tudo um outro embate desse grupo minoritário com a
comunidade regional, porque tem o componente da submissão e hierarquização das relações
de classe, como em um novo colonialismo, só que interno, como assevera Roberto Cardoso de
Oliveira611.

pesquisadores, considerando ser o episódio resultante do retrocesso nas políticas públicas indigenistas que o
Estado brasileiro vem sofrendo após o Impeachment da Presidenta Dilma Roussef em 2016.
607
ARRUTI, José Maurício P. A. A Produção da Alteridade: o toré e as conversões missionárias e indígenas.
VII Congresso Luso-Brasileiro de Ciências Sociais. A Questão Social no Novo Milênio. Coimbra, 2004. p. 5.
Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel47/JoseArruti.pdf>. Acesso em: 18 Jul.2017.
608
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade Étnica, identificação e Manipulação. Revista Sociedade
e Cultura, vol. 6. Núm. 2, julho-dezembro, 2003, pp. 117-131. Universidade Federal de Goiás. Goiania, Brasil.
Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=70360202>. Acesso em: 30 Jun.2017. p. 8-9. Utilizou a
expressão “identidade histórica” para referir-se a extratos de referências que uma etnia utiliza para distinguir o
conceito de identidade étnica e grupo étnico. Associando-os ao conceito de minoria étnica diante de grupos em
maior número. Essa etnia fica latente e a qualquer momento retorna á superfície.
609
ARRUTI, op., cit., p. 6.
610
ARRUTI, op., cit., p. 9.
611
CARDOSO DE OLIVEIRA, op., cit., p. 10.
198

4.2.1 Índios Kariri do Cariri

A etnia Kariri já conhecida do Brasil se fez referência em documentos de 1611 por


Soares Moreno, o colonizador do Ceará, na sua “Relação do Ceará” descrita no obra os
Tapuias do Nordeste de T. Pompeu Sobrinho612, em sua descrição “diz que em 70 leguas de
circuito (estava no Ceará) existiam 22 nações, porém, nada esclarece quanto aos costumes
destes amerícolas. Do mesmo mal se argue a quase totalidade dos documentos coevos que se
referem aos Cariri ou em geral aos tapuias.”
São negros em sua maioria os Cariri do Sítio Poço Dantas, resultante da miscigenação
em parte por decisão politica do Estado através da Carta Régia de 19.02.1696 que estimulou
casamentos entre portugueses e índios e entre negros e índios; as razões aparecem na
descrição de Manuela Cunha:

Foi corrente também, a partir do século XVII, o casamento, estimulado pelos


senhores de escravos, entre escravas negras e índios das aldeias temporariamente
cedidos para serviço, no intuito de atrair os índios para fora das aldeias em que
haviam sido estabelecidos após terem sido “descidos” dos sertões. Tentava-se,
assim, escravizar de fato os índios que estavam sob a jurisdição dos missionários. 613

Os Kariri ocuparam o território do Cariri desde mais de 3 mil anos (BP), já o


dissemos, e o processo de colonização documentada se dá tardiamente no século XVIII entre
1703 e 1792, considerando os padrões das demais regiões do Nordeste. Por ser uma região de
passagem de vários correntes migratórias do vale do São Francisco, do Norte e do litoral; o
Cariri tinha em sua conformação indígena vários grupos étnicos além dos Kariri, some-se a
isto o fato que também vieram índios fugidos de outras regiões do Nordeste do Brasil, índios
já misturados com negros e índios com brancos. A bibliografia sobre os índios do Cariri
apontam várias tipologias614, dentre as quais: Kariri, Cariri, Cariú, Kiriri, Ariú, Gariú ou Uriú,
Alarve, Cariré, Cariuanê, Caratiú, Curema ou Corema, Isu, Inhamun, Calabaça, Icó, Jucá,
Jenipapo, Jandiú, Sucuru, Garanhun, Chocó, Vouvê, Fulnniê, Acena, Romarí.615

612
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Tapuias do Nordeste. Revista do Instituto do Ceará. Tomo XLVII.
Fortaleza. 1934. p. 8. Disponível em: <http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Apompeu-1934-
tapuias/pompeu_sobrinho_1934_tapuias.pdf>. Acesso em: 02 Jul.2017. Descrito com “C” e com “s” no final
significando plural: Cariris.
613
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira.
São Paulo: Editora Claroenigma, 2012. p. 105.
614
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. p. 71. ARAÚJO, Antonio Gomes de. A Cidade de Frei
Carlos. Coleção Estudos e Pesquisas. Volume V. Crato: Faculdade de Filosofia do Crato/UFC, 1971. pp. 69 e
125.
615
Há vários povos identificados como Kariris: Cariús, Calabaças, Inhamuns são os mais conhecidos e referidos
na literatura. Os Tapebas de Caucaia (litoral cearense) e os Kariris de Crateús e São Benedito no Ceará, também
199

O aldeamento dos Cariris Novos na missão do Miranda se oficializou depois de haver


um período de funcionamento não registrado entre 1741 e 1743, essas datas estão registradas
em documentos da paróquia de Icó com a atuação de Frei Carlos Maria de Ferrara como
clérigo. A doação das terras para o aldeamento dos Kariri será oficializada somente em
1743616, em nome dos índios Cariú, maior família Kariri dentre os aldeados. O local em que
se instalou a missão do Miranda617 e da qual compõe as terras doadas aos Kariri é
precisamente na margem direita do atual rio Grangeiro, onde se ergue a Praça da Sé, frente à
Sé-Catedral. Dedicada à nossa Senhora da Penha, em Crato.
Quando o processo de aldeamento foi dissipado havia ainda no Crato índios isolados
(puros) e misturados, fato que se confirma quando em 1838 George Gardner618 em sua viagem
ao Crato se refere ao topônimo Cariri com “C” e descreve haver índios “puros e misturados”
naquela Vila. Curiosa esta descrição uma vez que desde 1758 se iniciou o processo de
expulsão e extinção dos índios do Cariri com a instalação do Diretório dos índios 619, em tese
acabaram os aldeamentos e os capuchinhos viraram párocos do lugar, somente. Esse processo
se formaliza ainda mais com a transformação da missão do Miranda em Villa Real do Crato
em 1762 e sua instalação em 1764. Os índios ainda puderam ver um dos juízes da Vila ser
nomeado um índio José Amorim620.
O próximo passo na extinção dos índios Kariri do Cariri, que para os colonizadores era
integração e dissolução na comunidade nacional, foi a expulsão da Vila do Crato em razão do
fim do aldeamento, do diretório e da missão do Miranda. Na Villa Real do Crato, não havia
mais índios! Determinou o Estado naquele contexto. Por trás desta proclamação normativa
estavam os reais interesses: apropriar-se das terras doadas aos Cariú621 e definir uma mão-de-

reivindicam serem nações dos Kariris ou deles descentes. Na Bahia há os Kariris-Chocós com denominação
semelhante aos Kariris do Cariri.
616
A Cidade de Frei Carlos. Coleção Estudos e Pesquisas. Volume V. Crato: Faculdade de Filosofia do
Crato/UFC, 1971. p., 74..
617
BRÍGIDO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição reproduzida do Diário de Pernambuco,
de 1861. Typ. Da Gazeta do Norte, 1888. Reeditado em Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda. 2007. p.
25.
618
GARDNER, George.Viagens pelo Brasil. Principalmente nas províncias do Norte e nos Distritos do Ouro e
do Diamante durante os anos de 1836-1841. Tradução de Albertino Pinheiro. 1ª edição. Brasiliana, Vol. 227. São
Paulo: Companhia Editora Nacional. 1942. p. 152.
619
ARAÚJO, Antonio Gomes de. A Cidade de Frei Carlos. Coleção Estudos e Pesquisas. Volume V. Crato:
Faculdade de Filosofia do Crato/UFC, 1971. p., 71.
620
Ibid., pp., 75/163.
621
ARAÚJO, op. cit., p., 77.: “Resolvidos a usurpar essas terras aos Cariú, os brancos imaginaram, com omeio
de o conseguir, a deportação dos donos. Os instrumento fácil encontraram na pessoa do ouvidor José da Costa
Dias e Barros, de quem obtiveram que representasse contra as vítimas junto ao Governador de Pernambuco, José
César Meneses, que, certamente mal informado, autorizou, ao mesmo Ouvidor, em carta de 23 de março de
1779, a transferência, para Parangaba, dos ex-catecúmenos de frei Carlos e beneficiários do capitão-mor
Domingos Álvares de Matos”.
200

obra mal-paga ou escrava para os fazendeiros de gado e senhores de engenho do Cariri, ou


para servir às famílias tradicionais da ascendente Villa Real do Crato. As datas precisas da
ordem de expulsão e extinção se deu em 1779, ordem que foi executada pelo ouvidor José da
Costa Dias e Barros a partir 1780622.
O fato é que ainda hoje, 237 anos depois, os Cariri ainda resistem! Vivem no Cariri, na
cidade do Crato, no sítio Poço Dantas. Esses índios herdaram o nome Cariri em sua
documentação original-oficial registrado em cartório. Como é cediço, todos os brasileiros para
serem contabilizados e acessar os benefícios do Estado tem que ser registrados o seu
nascimento e para benefícios de seus descendentes e gestão do espólio o registro de óbito. O
Estatuto do índio, de 1973 especifica que os registros da vida civil dos indígenas serão
anotados conforme a legislação comum, atendidas as peculiaridades de sua condição quanto à
qualificação do nome, prenome e filiação (Art. 12). O registro civil será feito a pedido do
interessado ou da autoridade administrativa competente em livros próprios (Art. 13), no órgão
competente de assistência, para o registro administrativo de nascimentos e óbitos dos índios,
da cessação de sua incapacidade e dos casamentos contraídos segundo os costumes tribais. É
o registro civil um dos documentos comprobatórios da cidadania para o Estado brasileiro.
Todos os Cariri do Sítio Poço Dantas têm registro civil com o sobrenome Cariri. Esse
fato é relevante para fins de comprovação da ascendência de uma família de origem étnica
Kariri ou Cariri com “C” que por si já confirma a autoafirmação da sua identidade. Neste caso
consta de seu registro geral no documento de identificação no Brasil. Vide Figura 27, a seguir,
foto da RG de D. M623, matriarca e líder dos Cariri do Sitio Poço Dantas.
Figura 27 – Foto da RG de D. M

Fonte: o Autor, 2017.


622
PINHEIRO, Irineu. FILHO, J. de Figueiredo. Cidade do Crato. Fac-símile da edição de 1955. Coleção
Nossa Cultura, n. 1, Série memória, n.3). Edições URCA. Fortaleza: Editora da UFC. 2010. p. 30.
623
O nome foi suprimido para não identificar a entrevistada
201

Esse tipo de registro não é comum no Brasil, não há registrado na bibliografia que
subsidiou esta tese nenhum caso em que a identidade de uma etnia obteve provas documentais
do nome registrado em cartório. Que prova maior de sua auto-atribuição para fins de
reconhecimento do Estado como índio? Prova ao mesmo tempo sua origem étnica e prova a
resistência desse grupo. Será também o início de um processo que resultará em mais
indivíduos da etnia Cariri no Cariri, uma vez que segundo relatos dos moradores do Sítio
Poço Dantas, muitos habitantes retiraram de seu nome o sobrenome Cariri e muitos estão
espalhados em cidades próximas do Crato com sobrenome Cariri, que a partir da conformação
pelo Estado da identidade dos Cariri do Poço Dantas passarão a se reconhecer membro desse
grupo étnico.

4.2.1.1 Os Cariri do Sítio Poço Dantas

Os Cariri do Cariri!
Em Crato uma comunidade conhecida como “tradicional” habitando um pequeno
morro chamado Sítio Poço Dantas, na zona rural, distante 20 km da sede do Município, se
autodenominam Cariri. Índios Cariri. É nesta comunidade que a pesquisa de campo, que
subsidiou a defesa da identidade jurídica dessas pessoas tal qual elas se veem, se definem, e
são conhecidos na comunidade do Distrito de Monte Alverne e Santa Fé: Cariri.
Como uma região tão próspera como o Cariri, conhecida pela sua ancestralidade
indígena de igual nome, constituindo-se como um território com identidade, mas sem um
povo Kariri? Essa indagação tem resposta: em sentido jurídico do termo, porque em sentido
sociológico não há dúvidas de que vivemos entre Cariri. O desafio que esta tese se propôs é
buscar uma identificação conforme os aspectos normativos e jurídicos do Estado brasileiro e
abrir os caminhos para o reconhecimento e exercício de direitos indígenas para esta
coletividade.

3.2.1.2 Descobrindo o Sítio Poço Dantas

Como ponto de partida uma única pista sobre o lugar onde moram os Cariri: Sítio
Baixa Dantas. Uma indicação no googlemaps apontava uma rodovia perpendicular à Rodovia
estadual conhecida como Estrada do Algodão que liga o Crato à Fortaleza. Antes de chegar à
entrada para a rodovia uma pergunta a uma moradora das imediações e a descoberta primeira:
202

há dois sítios Baixa Dantas, mas nenhum deles há registro de presença de índios, nos
informou. Paramos o carro e refletimos sobre que caminhos seguir e chegamos à conclusão de
que os estudiosos da Fundação Casa Grande624, de Nova Olinda, poderiam nos ajudar na
identificação do lugar e assim fizemos. Por telefone confirmamos que o local não era o sítio
baixa Dantas, mas uma comunidade próxima ao Distrito de Santa Fé e Distrito Monte
Alverne, em Crato, seguindo pelo caminho do caldeirão da santa cruz do deserto.
A localização exata de endereço diverso daquele pensado inicialmente criou certa
apreensão: mudar o lugar pensado inicialmente no projeto de pesquisa e sem as garantias de
que se encontraria o referido lugar. Seguimos viagem ao desconhecido, até então não
estávamos ligando ao fato de que no Distrito de Santa Fé, haviam sido mapeadas pinturas
rupestres, de antigos habitantes do Cariri, provavelmente dos índios Kariri.
O acesso por estrada carroçável mudou a paisagem da rodovia principal e nos
mergulhou na paisagem característica do interior do Nordeste, neste caso, um Nordeste não
tão seco, não tão árido. Uma vegetação relativamente verde e em alguns trechos em floração,
seguimos para o caminho do Caldeirão e a partir de lá Monte Alverne e Santa Fé, fazendo o
caminho de retorno para a sede do Crato.
Devagar fomos alcançando vilarejos e casas isoladas, às vezes sem nenhum pé-de-
pessoa... em silêncio por 15 minutos de viagem, até encontrarmos uma casa e um carro
estacionado e obtivemos a informação de que estávamos no caminho certo, bastava seguir em
frente, dobrar à direita no próximo entroncamento e sempre à esquerda em frente. O lugar
indicado era mais exatamente, o Caldeirão. A figura 28 a seguir, foi colhida no percurso, na
data em que iniciamos a viagem.

624
A Fundação Casa Grande é gestora do Memorial do Homem Cariri, com rico acervo lítico e arqueológico dos
primeiros habitantes do Cariri. Na sua sede mantém um centro de Arqueologia Inclusiva para crianças, o Teatro
Violeta Arraes, uma Escola de Comunicação com rádio e tv comunitária, Biblioteca, Videoteca e Gibiteca e
sedia o Instituto de Arqueologia da Universidade Regional do Cariri URCA. Para visitar o site acessar
www.fundacaocasagrade.org.br.
203

Figuras 28 - Estrada carroçável que liga o Crato ao Caldeirão da Santa Cruz do Deserto

Fonte: o autor, 2017.

Próxima parada, assentamento 10 de abril de assentados da reforma agrária,


coordenados pelo Movimento dos Sem Terra - MST. Uma comunidade organizada muito
conhecida pelos educadores e políticos do Crato. Na entrada do assentamento (não se sabia
ainda que se tratava do assentamento), parou-se para pedir informação em uma casa com
curral, em que dois homens jovens trabalhadores nos recepcionaram e informaram que ali era
o assentamento 10 de abril e com ele uma informação animadora e precisa, os Cariri ficam
próximo ao Distrito de Santa Fé, no Sítio Poço Dantas. A confirmação, enfim, de havia um
engano sobre o nome do lugar onde habitavam os novos Cariri.
Animados com a indicação seguimos viagem, até chegar ao centro do assentamento e
nos deparar com a bandeira hasteada no MST e uma creche com a fachada colorida: creche
Santo Inácio, vizinha à sede da associação do lugar figuras 29 e 30, a seguir. No percurso até
lá, novas informações.
A recepção na creche foi festiva pelas crianças e a professora. A turma de ensino
infantil contava com aproximadamente 15 crianças de 4 anos, bonitas e falantes. Em verdade
uma visão encorajadora das possibilidades que o ensino pode fornecer. Um ambiente humilde
de estrutura, mas uma vitalidade indiscutível. Ali se estava fazendo ensino-aprendizagem.
204

Figuras 29 e 30 – Assentamento do MST “10 de Abril”.


Primeiras informações.

Fonte: o autor, 2017.

As informações colhidas com a professora foram mais animadores, ela saiu no terreiro
de calçamento e apontou o lugar (Figuras 31 e 32, a seguir), ali onde estão aquelas manilhas
do projeto Cinturão das águas do Governo do Ceará, aquele vilarejo ao lado, de casas brancas,
é lá. E imediatamente se viu o caminho que nos conduziria ao referido lugarejo. Estava tudo
se encaminhando bem.
Figura 31 – Imagem do caminho para o Sítio Poço Dantas, ao longe .

Fonte: o autor, 2017.


205

Figura 32 – Imagem de Satélite Sítio Poço Dantas, em destaque.

Fonte: Adaptado de Google, 2017.625

À medida que havia mais aproximação as pessoas no caminho indicavam com mais
precisão o lugar. Até que se chegou à entrada da comunidade e sermos recebidos por
moradores que nos indicaram uma Sra. M626 que liderava a comunidade. Elas nos ajudaria a
entender os atuais Cariri.
Já era manhã alta, 10 horas, com sol intenso, quando chegamos ao Sítio Poço
Dantas627. Encontramos uma comunidade de 25 casas, construída de forma aleatória, sem
respeitar a ideia urbana de quarteirões ou ruas, umas de frente a outra, outras que a frente dá
para os fundos da outra casa. Há habitações de alvenaria, mais novas, e outras de taipa, mais
antigas. Dispostas de modo quase circular. A casa da moradora indicada fica no centro da
comunidade. Inicialmenete houve a apresentação dos pesquisadores aos moradores, bem
como apresentação da instituição, os objetivos da visita e agendamento de outra visita para as
entrevistas, mediante questionário aprovado pelo comitê de ética da Universidade Regional do
Cariri. A conversa foi amistosa e extremamente empolgante. Debaixo de um pé de cajá no
quintal da cozinha. Enquanto ela cuidava do almoço. Umas pessoas, filhas e netas se
aproximaram moradores vizinhos, familiares todos.
Estava cada vez mais evidente tratar-se de uma comunidade tradicional, indígenas
misturados com negros, cujos traços de um processo secular de destruição da identidade sob
uma matriz de resistência silenciosa esta nos rosto das pessoas, sofridas, envelhecidas,
socialmente frágeis. Falavam de quem eram, do quanto bom seria ter educação, água e uma
instituição que fosse representativa da comunidade. Era emocionante estar ali. Surpreendente
625
GOOGLE MAPS. Monte Alverne 50 m. Adaptação Sítio Poço Dantas. Disponível em:
<https://www.google.com.br/maps/@-7.1204535,-39.5161695,382m/data=!3m1!1e3?hl=pt-BR>. Acesso em: 05
Jul.2017.
626
Em razão do sigilo das informações originais utilizaremos a letra “R” para indicar a líder dos Kariri do Sítio
Poço Dantas. Igualmente as pessoas entrevistadas receberão nominação em código com legras.
627
Em apêndice “D” fotografia e mapas da localização do Sítio Poço Dantas
206

também. Tão próximos de todos e tão distante de todos do lugar. A partir deste encontro
preliminar seguiu-se uma agenda de entrevistas para o dia seguinte.

4.2.1.3 Pesquisa de Campo: registro das visitas e pré-teste da entrevista

No segundo dia, antes de se dirigir à comunidade, após realizar uma breve pesquisa ao
googlemaps pode-se localizar a comunidade, com suas habitações, a partir da qual se
desenhou o mapa com o lugar e identificação precisamente, Figura 32, que serviu de base para
a construção do mapa com as residências fincadas e a disposição das casas. Uma disposição
que compõe uma organização diferente daquela praticada em bairros e distritos da região,
com formato retangular ou aquadradado, vide imagem de satélite, Figura 33.

Figura 33 – Mapa com descrição das casas na comunidade Poço Dantas.

Fonte: João Paulo Maropo, 2017.

Identificou-se, inicialmente, quinze residências que no mapa enumeramos no sentido


horário para fins metodológicos. Depois em constatação no local percebeu-se que havia
207

dezenove residências, nove das quais estavam desabitadas, em sua maioria porque os
proprietário haviam construído outras casas de alvenaria, substituindo antigas residências de
pau-a-pique ou taipa, como é comum denominar aqui na região. Esse mapa norteou o
caminho das entrevistas por residência.
No terceiro dia de visitas uma decisão se consolidou para a metodologia, seria ali o
núcleo central da tese e da pesquisa de campo, havíamos encontrado um núcleo homogêneo
de identidades dos índios Cariri. Havia certa excitação em nossa conquista, e uma grande
alegria, é como se estivéssemos descobrindo os índios Cariri. Em verdade estávamos mesmo!
As visitas serviram para apresentar o projeto de pesquisa, de modo simples em uma
conversa com grupos pequenos, no quintal da casa de “M”, debaixo de uma árvore.
Apresentar também o pesquisador e aproveitamos para fazer um pré-teste da entrevista.
Em mãos o questionário com sete perguntas. Resolvemos que o melhor caminho é
fazer o pré-teste com a pessoa indicada como líder da comunidade. Uma mulher negra de
mais de 50 anos, hábitos singelos de dona de casa, mãos molhadas da cozinha, que ao nos
receber apontou o quintal, sob a sombra de uma árvore, onde tinha três cadeiras de plástico,
uma sem encosto, onde sentamos para conversar, aos poucos se chegaram outras três
mulheres que acompanharam nossa conversa.
A apresentação, em poucas palavras, do conteúdo e objetivos do projeto de pesquisa se
seguiu a outiva dos relatos de quem eles eram, os passos que deu a comunidade a partir da
chegada de outros pesquisadores ao lugar, da visita de uma índia a 10 anos, de outra parte do
Brasil – não souberam identificar qual, apenas um nome “Rosi”, que fez despertar neles o
desejo de se firmar como Cariri.
Após 30 minutos de conversa, com apartes das colegas, colhemos a permissão para
fazer um pré-teste da entrevista. Ao final se observou a necessidade de ampliar o
detalhamento da questão 3 pertinente aos hábitos alimentares da comunidade. As entrevistas
protocolares só se realizaram no dia seguinte e explicamos como seria o processo de coleta de
dados, os termos de consentimento que precisamos colher dos entrevistados e os
esclarecimentos devidos em torno do projeto e os aspectos éticos da pesquisa de campo.
Desta abordagem, duas novas questões foram referidas pelos membros da comunidade
que precisariam ser observadas, uma delas consideramos de alta relevância: 1) todos os
moradores principais do Sítio Poço Dantas tinham em seu registro de nascimento e, portanto,
em RG o nome Cariri. 2) que havia muitos outros na cidade do Crato e Juazeiro do Norte com
nome Cariri em seu registro, todos ancestrais dos antigos Kariri. E que o cartório onde se
208

podia saber o registro oficial era o da sede da cidade Cartório Maria Júlia e do Cartório de
registro civil do Distrito de Santa Fé, em Crato Ceará.
Essa informação provocou um choque, uma surpresa, que não se sabia dessa
informação e que gerou reflexões sobre a origem dessa prática do registro? Seria essa
informação suficiente para firmar juridicamente a identidade dos Cariri? Sem resposta
imediata para tais perguntas, um conjunto de decisões metodológicas nasceu daquele
momento:
- Tomaríamos como referência para a entrevista, os Cariri registrados.
- Buscaríamos uma contagem dos habitantes Cariris do Sítio Poço Dantas.
- Visitaríamos os cartórios referidos para colher informações sobre o processo de
registro dos Cariri.

4.2.1.3.1 Primeiro dia de entrevistas

Na manhã seguinte outro caminho foi o percurso para chegar ao Sítio Poço Dantas,
pela rodovia federal que liga Crato ao Estado do Pernambuco, passando pela Floresta
Nacional do Araripe. O acesso à estrada para o Distrito de Santa Fé está em reforma para
asfaltamento e, portanto, havia máquinas na pista e vários desvios. Até a sede do distrito a
paisagem varia entre a Floresta e uma região com babaçuais e da terra vermelha. Inicialmente
na rodovia passamos para uma terra-arisco, cinza e esbranquiçada.
Antes de chegar ao Sítio Poço Dantas e depois do Distrito de Santa Fé, a vegetação
muda e se abre à vista o vale do Cariri, com suas bordas da chapada do Araripe. Figura 34
com fotos panorâmicas da Chapada do Araripe.
209

Figura 34 - Foto 1 (Babaçuais), Foto 2 (Vale do Cariri), Foto 3 (Chapada do Araripe ao fundo), panorâmicas da
Chapada do Araripe no percurso de acesso ao Sítio Poço Dantas, Distrito de Santa Fé.

Foto 1 Foto 2

Foto 3

Fonte: Autor, 2017.

Já na comunidade fomos recebidos pela líder D. M, que nos conduziu para a sombra
da mesma árvore, no quintal. Desta vez se aproximou alguns homens do lugar, um mais
velho, outro mais jovem. Cariris de nome e registro. Após a apresentação dos documentos
para captura da entrevista que foi preenchida pelo pesquisador, após assinatura do TCLE, no
tempo e conforme a vontade dos entrevistados, seguindo-se o roteiro pensado, em cada
residência, começando pela ordem indicada no mapa, colheu-se naquele dia quatro
entrevistas.
Outra questão foi suscitada pela comunidade que exigiu adequação ao plano inicial.
Eles queriam orientação sobre como formar uma associação de moradores. Sem a qual
entendiam que a luta para fortalecer a comunidade não seria conseguida. Combinamos de,
separadamente, conversar a respeito e prestar os esclarecimentos jurídicos para o tema. A
partir desse momento entendemos que se estava ampliando o tipo de abordagem com a
comunidade e inserindo aspectos próprios da pesquisa-ação à pesquisa; como retorno aos
moradores do lugar estabeleceu-se o compromisso de prestar esclarecimentos sobre os temas
jurídicos pertinentes ao associativismo.
210

4.2.1.3.2 Segundo dia de entrevistas

Cresceu-se em empolgação a partir do primeiro dia. Havia um sentimento de que se


estava reconstruindo a historia dessas pessoas e dada a fragilidade social em que se encontram
nos despertou ainda mais a necessidade de realizar a pesquisa e contribuir efetivamente para o
desvelamento dessa população tradicional dos Cariri e consequentemente contribuir também
para aquisição dos direitos a eles pertinentes.
Uma tempestade de ideias começam a surgir na cabeça, como inserir a Funai no
processo? Ainda não se sabe... Seguiu-se com as entrevistas. Outros esclarecimentos e o
pedido de um encontro para falar com a comunidade sobre a associação. Assim fizemos em
data próxima para dar continuidade ao tema. Realizou-se uma pesquisa primária sobre o
processo de associativismo e fizemos a impressão de um pequeno texto explicando o que é e
como fazer uma associação.

4.2.1.3.3 Terceiro dia de entrevistas

O encontro estava previsto para conversar sobre a associação, mas como havia
trabalhos domésticos na comunidade, enquanto se aglomeram um grupo de até dez pessoas,
não concomitante, fomos falando para os que se aproximavam sobre o projeto de pesquisa.
A meta era alcançar 10% dos perfil autodeclarado índios no censo 2010 para a cidade
do Crato, entre moradores da comunidade do Sítio Poço Dantas.
Enquanto as mulheres trabalhavam na lida do lar, cozinhar, limpar a casa, pegar água,
os homens, jovens e outros com meia idade, transitavam de um lado para outro, de dentro de
casa e fora, bebendo, ouvindo música e conversando. De hora em hora alguém saia numa
moto, voltava em seguida. Alguns moradores e líderes indicados para a conversa não puderam
estar ali, porque estavam em serviço, na construção civil.
Ficou marcante neste dia de conversa e entrevistas observar o aspecto físico daquelas
pessoas. Homens com aparência descuidada, dentes danificados ou sem dentes frontais.
Mulheres também com aparência cansada e com poucos dentes. Alguns analfabetos, ou sem
instrução acima do 4º ano de estudo, ou menos. Alguns só assinam o nome, ou desenham o
nome, conforme treinamento aprenderam a desenhar o próprio nome. Não estão instruídos na
cultura letrada. Tampouco trazem outro idioma que não o português. São pessoas arrasadas
pela sua vida. Somente os mais jovens demonstram ler com domínio do vernáculo. Até o
terceiro encontro, somente um dos Cariri.
211

Entre os jovens, neste pequeno espaço de tempo em que se visitou a comunidade


observamos consumo de bebida alcóolica – cerveja, músicas populares de artistas sertanejos,
brega e fank. Os mais jovens mais arredios em responder à pesquisa, não se aproximaram das
rodas de conserva, um somente se dispôs a conversar fornecer entrevista. Alguns com
tatuagem e em cada casa uma motocicleta. O transporte mais comum do sítio Poço Dantas,
pilotados por homens. As mulheres, na garupa ou relegadas ao trabalho doméstico. Neste dia,
estavam transportando água em garrafões de 18 litros da cisterna para os potes de barros,
presente na cozinha de cada casa. A água é coada em pano de algodão branco, reutilizado de
sacos de açúcar, comprados na feira do Crato às segundas-feiras.
Nítido o processo de desumanização e iniquidade em que vivem. Não se pode olvidar
que o processo de extinção e expulsão dos Kariri do Cariri data de 1780. Há 237 anos esse
grupo vem resistindo através de gerações.

4.2.1.3.4 Quarto dia de entrevistas

Foi-se direto às residências e recolheu-se mais entrevistas. Duas residências estavam


ocupadas por pessoas que não tinham registro Cariri em seu nome, foram dispensadas de
responder à entrevista.
Das vinte e cinco residências pesquisadas, dezoito estavam habitadas, ou seja, sete
eram casas de taipa agregadas à casa de alvenaria em dois casos, dez casas habitadas por
pessoas que não tem registro como Cariri. Oito casas habitadas por Cariri, com registro
anotado em cartório. A contagem foi realizada com ajuda de um dos líderes da comunidade.
Treze pessoas, de treze residências diferentes aceitaram participar da entrevista. Doze
residências estavam fechadas no momento da coleta da entrevista.

4.3 RESULTADOS E DISCUSSÃO DA PESQUISA DE CAMPO

A pesquisa de campo guiada por um questionário com sete perguntas e respostas


objetivas de múltipla escolha estava organizada em três seções conforme o conteúdo a ser
explorado na resposta.
1) Auto-identificação e Consciência da identidade indígena sob os aspectos dos usos e
costumes do grupo social em que está inserido. Perguntas 1, 2 e 3.
2) Sobre a aquisição de direitos para o grupo étnico identificado. Perguntas 4, 5 e 6.
3) Sobre as relações do grupo étnico com o Estado-Nacional. Pergunta 7.
212

A escolha do entrevistado era aleatória e a intenção era pesquisar 10% da quantidade


de pessoas que se autodeclararam índios no Censo de 2010, no município do Crato – Ceará.
De 122 pessoas 10% resultavam em 12,2, nossa estimativa era até 12 entrevistas.
Eram dezenove casas, mas apenas dez estavam ocupadas por famílias. O plano inicial
de fazer entrevista com uma pessoa de cada casa restou frustrado em razão da manifestação
espontânea de participar da pesquisa. Ao todo foram entrevistadas treze pessoas. Dois dos
quais teve o nome alterado pela certidão de casamento quando adotou o nome do consorte,
retirando o sobrenome Cariri. Ultrapassamos em uma entrevista a meta prevista inicialmente.

4.3.1 Auto-identificação e Consciência da identidade indígena sob os aspectos dos usos


e costumes do grupo social em que está inserido. Perguntas 1, 2 e 3.

Os primeiros dados do questionário definia um perfil dos entrevistados segundo a


idade, sexo e o nome. Sendo que para esta pesquisa a divulgação dos nomes está proibida por
questões éticas. O Quadro 16 dá-nos um perfil dos entrevistados sobre o aspecto etário e de
gênero. Destaque para o perfil das mulheres do grupo em idade maior do que dos homens. Na
comunidade uma das lideranças é mulher.

Quadro 16 - Perfil dos entrevistados.


Gênero Entrevistas Idade dos Percentual
entrevistados
20-33
Mulheres 07 40-42-48-57 53,84 %
73
17-22-27 46,16%
Homens 06
45-46-55
Total 13 --- 100%
Fonte: o autor, 2017.

A primeira pergunta do questionário é sobre a origem étnica do entrevistado, 100% da


amostra autodeclararam serem índios.
A segunda pergunta é sobre a etnia e só seria respondida se a resposta à primeira
pergunta fosse afirmativa. O objetivo dessa pergunta era ir além da contagem racial feita pelo
IGBE, ou seja, perscrutar sobre a identidade étnica dos entrevistados. Como alternativas o
questionário trazia as opções Cariri ou outros.
O primeiro dado relevante é o da contagem da população, setenta e sete (77) pessoas
habitam a comunidade tradicional do Sítio Poço Dantas, distrito de Monte Alverne, município
213

do Crato – Ceará. O que resulta em média 3,08 pessoas por habitação. São vinte e cinco
habitações.
No quadro 17, a seguir, tem-se uma visão geral dos percentuais de índios audo-
declarados no Censo de 2010 para o município de Crato – Ceará. O percentual de pessoas que
aderiram à entrevista considerando a amostra inicial pretendida de 10% atingimos com sobra
o objetivo. O percentual entre os entrevistados de índios autodeclarados é de 100% e dentre
estes apenas 1,78% não tem em seu sobrenome o patronímico “Cariri”. A etnia com a qual os
entrevistados auto-atribuem é Cariri. A contagem da população ultrapassa a expectativa
inicial, 48 índios autodeclarados Cariri se podem contar nas residências que foram visitadas,
que resulta em um percentual com relação às entrevistas realizadas de 369,23%.

Quadro 17 - Dados e Percentuais de Índios Cariri auto-identificados do Sítio Poço Dantas

Coluna 1 Coluna 2 Coluna 3 Coluna 4 Coluna 5 Coluna 6 Coluna 7


Censo Contagem Contagem Pessoas Pessoas Pessoas Autode-
Indígena população população entrevista entrevista- entrevista- clarados
IBGE/2010 Sítio Poço Sítio Poço das das com das sem Índios Etnia
Mun. do Dantas Dantas com Sítio Poço Sobrenome sobrenome Na
Crato (a) Sobrenome Cariri
(b) Cariri
Dantas (c) Cariri entrevista
122 77 39 13 11 02 13 --
Percentual: -- 50,64% 10,65% 9,01% 2,59% 16,88% Cariri
colunas 3, 6 e
7/b; colunas 4
e 5/a;
Percentual (c) -- -- -- 84,61% 15,38% 100% Cariri

Fonte: Autor, 2017.

A primeira marca que a autoidentificação empresta a essa comunidade, a esse povo é a


autoafirmação da identidade Cariri. O Estado brasileiro, constituído sob os ditames da
Constituição Federal de 1988 avançou em garantias de direitos coletivos para os povos
indígenas, mas não introduziu o Estado plurinacional em nosso território ex vi Art. 215 § 1º,
Art. 231 e Art. 210, § 2º628, o que implica dizer ser um ato de bravura, coragem e resistência
se autodeclarar um povo diverso daquele que compõe a “nação” brasileira. Das vinte e cinco
(25) habitações, treze (13) habitações foram visitadas para fins da entrevista. Onze (11) eram
registrados Cariri. Mas 13 responderam que são Cariri. Como referido pela crônica do século
XIX e XX, eles integram a nação Cariri, de tal modo que é imperioso exigir do Estado
Nacional o reconhecimento e a etnogênese dos Cariri do Sítio Poço Dantas, considerando:

628
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer Dos Povos Indígenas Para O Direito. Curitiba:
Juruá, 1998. P. 158. “Estes três dispositivos elevam à categoria de direitos a diferença cultural e linguística dos
povos indígenas, mas não reconhecem claramente a diversidade cultural e étnica da nação brasileira.”
214

a) O direito ou interesse629 que assiste ao povo Cariri do Sitio Poço Dantas de ser
declarado “índio” com fundamento na situação de fato autoidentificada e como tal do Estado
Brasileiro, considerando ser esse fundamento de direito socioambiental inscrito na
Constituição Federal que outorgam direitos culturais (art. 215); direitos à sua organização
social, costumes, língua, crenças e tradições como índios (art. 231); e direitos à educação em
processos próprios de aprendizagem (art. 210), se assim preferirem.
Com espeque nesse entendimento há de se observar que os direitos socioambientais e
coletivos em questão são aplicáveis diretamente por imposição normativa aos casos por ele
previstos porque é “função abstrata da lei que se concretiza independentemente da
consciência ou vontade do sujeito.”630
b) Igualmente fundamentam o acesso a este direito a aplicação direta da
Convenção 169 da OIT, art. 1º, 2, acerca da autodeclaração como critério fundamental, senão
vejamos: “A autoidentificação como indígena ou tribal deverá ser considerada um critério
fundamental para a definição dos grupos aos quais se aplicam as disposições da presente
convenção.” Esta alínea quando associada à condição inscrito no art. 1.º 1, b, consolida o
conceito jurídico de povo indígena segundo a Constituição Federal do Brasil e da Legislação
Internacional para proteção dos povos indígenas em vigor. A condição referida para ser o
povo indígena destinatário dos direito e garantias da norma convencional (169/OIT)é ser esse
povo ocupante de território em países independentes e que descenderam de populações que
viviam no país ou região geográfica na qual o país estava inserido no momento da sua
conquista ou colonização ou do estabelecimento de suas fronteiras atuais e que, independente
de sua condição jurídica, mantêm algumas de suas próprias instituições sociais, econômicas,
culturais e políticas ou todas elas.
O estatuto do índio (lei 6.001/73), no que pese está bastante aquém da realidade
jurídica socioambiental, já trazia no art. 3º o caráter da autoidentificação como componente
do conceito jurídico índio, senão vejamos: ficam estabelecidas as definições a seguir
discriminadas, Índio é todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se
identifica. A segunda parte do artigo, referente ao condicionante critério que para ser índio
deve também ser identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características
culturais o distinguem da sociedade nacional, fere a Convenção 169 da OIT, cuja

629
SOUZA FILHO, op., cit., p. 176: Tão mais importante do que a diferença que alguns autores fazem do ser o
direito coletivo ou socioambiental com simples é reconhecer a importância do seu conteúdo e o caráter
atribuição de direitos que pode resultar esse fundamento jurídico. Entendimento semelhante em.
630
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer Dos Povos Indígenas Para O Direito. Curitiba:
Juruá, 1998. P. 176.
215

regulamentação já se encontra vigente no Brasil e tem sido objeto de manifestação dos


indígenas pelo Brasil, em Assembleias e Congressos para que não seja mais um condicionante
sequer os laudos exigidos pela FUNAI, considerando que a autoidentificação é um elemento
fundante da sua etnia. Atualmente o laudo continua sendo uma exigência para o processo de
demarcação da terra indígena, conforme rito estabelecido no Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro
de 1996.
A pergunta três do questionário se reporta as razões de se reconhecerem índios Cariri,
mais precisamente: o que faz você ser índio?
O intento desta pergunta é entender como está fundamentada na memória coletiva dos
Cariri, as suas instituições sociais, econômica, culturais e políticas. Havia na resposta um
conjunto de onze assertivas em que o entrevistado poderia firmar todas ou nenhuma. Os
resultados seguem a ordem em que as assertivas aparecem no questionário de entrevista vide
quadro 18, a seguir:

Quadro 18 - Demonstrativo das respostas à pergunta: o que faz você ser índio?

Assertiva Quantidade de Percentual considerando


respostas 100% a quantidade de 13
Obtidas entrevistas realizadas
O território em que vive 07 53,84%
Aparência, traços físicos 05 38,46%
A cor da sua pele 03 23,07%
Seus antepassados; avós, pais 13 100%
Sua memória ou imaginário 03 23,07%
Alimentação (pão-de-milho, 10 76,92%
mucunzá, xerém, tiú, comida
meio crua)
Usos e costumes: caça-do- 10 76,92%
mato, pesca, músicas, danças
Hábitos pessoais 02 15,38%
Hábitos coletivos 04 30,76%
Direcionamentos pessoais e 03 23,07%
políticos
Tipo de organização social em 04 30,76%
que vive
Fonte: Autor, 2017.

Os dados demonstram claramente que o indicador que obteve 100% de respostas


iguais, ou seja, a totalidade dos entrevistados se refere à origem étnica, sua ancestralidade
com os índios Cariri através de seus avós e pais, ou seja, de sua ascendência. Vejamos esses
dados em outra perspectiva, Gráfico 01.
216

Gráfico 1 - Percentual de respostas á pergunta. O que faz de você índio?

120 o território em que vive

aparência, traços físicos


100
a cor da sua pele

seus antepassados; avós, pais


80
sua memória ou imaginário

60 alimentação (pão-de-milho, mucunzá,


xerém, tiú, comida meio crua
usos e costumes: caça-do-mato, pesca,
40 músicas, danças
hábitos pessoais

hábitos coletivos
20
direcionamentos pessoais e políticos

0 tipo de organização social em que vive


o que faz de você índio

Fonte: o autor, 2017.

A resposta conjunta acerca da ancestralidade, superlativa, diz muito sobre a


consciência desse povo sobre sua origem indígena, e reforça o critério da autoidentificação
como índios Cariri. Para além de se declarar índio Cariri, eles apontam como elemento de
consciência e crença dessa etnia a vinculação familiar ancestral. Nesse sentido essa crença
comum atua como responsável pela “propagação das relações comunitárias” 631, observa
Alyne Almeida. Além de atuar como característica distinta ao parentesco biológico direto,
dada a dificuldade de recompor tão eficiente trabalho dos colonizadores em invisibilizar os
índios no Brasil e na América Latina, destaque-se que há entre os membros da comunidade
Sítio Poço Dantas um laço de parentesco. Em laudo antropológico da comunidade Kalancó632
realizada para a FUNAI, Andrade633 destaca semelhante estigma do coletivo fundamentado no
parentesco, que constitui uma base e “liame afetivo”, cuja memória coletiva mescla elementos
identitário intra-locais – como este referido, e extra-locais, que se dá no contato com outros

631
CIARLINI, Alyne Almeida. Territorialidade, Saudade, Ressignificação: índios tabajara do olho d’água dos
canutos. In PALITOT, Estevão Martins. (Org.). Na Mata do Ceará: contribuições sobre a presença indígena no
Ceará. Fortaleza: Secult/Museu do Ceará/IMOPEC, 2009. 151-270. p. 252.
632
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. FUNAI. Processo administrativo 0736/1998. Relatório de
identificação Étnica do Grupo Kalancó (AL). Ainda em estudo. Disponível em:
<http://www.funai.gov.br/terra_indigena_2/mapa/index.php?cod_ti=73201>. Acesso em: 23 Jul.2017.
633
ANDRADE, Ugo Maia. Dos Estigmas aos Emblemas de Identidades. Revista de Estudos e Pesquisas.
FUNAI, Brasilia, vol 1. Nº 1, p. 99-139. Jul. 2004. Disponível em: <www.funai.gov.br>. Acesso em: 22
Jul.2017. p. 118/119.
217

povos, situados como conclui Andrade “enquanto processo social em um contexto de diáspora
indígena e tensão inter-étnica que faz emergir no momento em que os repertórios domésticos
de memórias puderam convergir para formar, então, algo como uma ‘comunidade de
identidade indígena’”.
A busca por este reconhecimento identitário é a busca, em ultima ratio pelos direitos
coletivos dele decorrentes. A necessidade do processo identitário é também o modo de
enfrentar o desrespeito aos indígenas, consequentemente a identidade traz consigo uma
motivação moral “para a mobilização contra tal desrespeito”634.
Importante destacar que o reconhecimento da ancestralidade pelo Estado é um dos
elementos constantes do estatuto do índio já referido. Há que se produzirem provas de tal
elemento significante; a exemplo do entendimento de Arruti, “na falta das tais ‘evidências
históricas’, a memória passa figurar como ‘prova’.”635 Neste caso a memória coletiva, que
tem o papel de evocar uma lembrança social do grupo, a sua ancestralidade comum, como
fato significante e marcante para os entrevistados. É o que se pode subsumir das respostas
uníssonas ao questionário quanto à ancestralidade.
A identidade para esses povos é o resultado da resistência e força antes adormecida.
Através da afirmação de sua identidade podem reivindicar novos direitos. Essa identidade,
como afirma Leff tem uma força que presumíamos morta, mas que hoje expressa uma vontade
de recuperação cultural e reapropriação de sua história. Como sujeitos dessa história.

Trata-se de poder ler a essas identidades silenciadas, iletradas, sem voz e sem rosto,
que hoje voltam a falar, reconfigurando suas identidades na convulsão e reencontro
dos tempos onde se produz uma resistência, confrontação e diálogo com a
modernidade e com a globalização; donde se produz uma atualização – 500 anos
depois -, dos valores, princípios e culturas que caíram adormecidas na história como
sementes que esperam invernando a que o tempo as traga da chuva para voltar a
germinar.636

O segundo maior índice percentual de respostas, 76,92%, está no indicador social


“usos, costumes e alimentação dos membros da comunidade”, nesta resposta estão incluídos
participação em atividades de pesca, caça, em atividades musicais, danças e alimentos de
animais próprios à cultura local: pão-de-milho, mucunzá, xerém, caça (tiú), comidas com
cozimento diferente, meio cru.

634
ARRUTI, José Maurício. Mocambo. Antropologia e história do processo de formação quilombola. São
Paulo: Edusc, 2006. p. 201.
635
Ibid., p. 218.
636
LEFF, Enrique. Los Derechos del Ser Coletivo y la Reapropriación Social de la Naturaleza. In CUNHA,
Belinda Pereira da. Et. All. Os Saberes Ambientais Sustentabilidade e olhar jurídico: visitando a obra de Enrique
Leff. Caxias do Sul, RS: Edus. 2015. Pp. 12-31. p. 18. Tradução livre do autor.
218

Esses traços são importantes porque falam do modo de vida integrada com a
biodiversidade da caatinga, uma adaptabilidade que se soma aos referenciais explorados nesta
tese que remontam ao habitus indígena de integração homem/natureza e que se perpetuou no
modo caboclo de sobrevivência no Nordeste. Impossível não referir que para a comunidade
local esses traços são ancestrais indígenas e são também hábitos incorporados às comunidades
caboclas de todo o Nordeste brasileiro. Sobre este tema interessante a observação de Andrade
sobre os hábitos alimentares da comunidade dos Kalancó, em tudo semelhante aos Cariri:

Essas experiências demonstram habilidades de exploração de recursos em


determinados ecossistemas, mas que também estão profundamente associados a
contextos de tensão interétnica. .[...] comedores de calango e transgressores de tabus
alimentares, posteriormente eficaz como signo de identidade coletiva, valeu-se da
adoção de valores positivos para estas práticas alimentares que passaram a refletir
uma moralidade cabocla ligada à honestidade e ao respeito à propriedade alheia. 637

A comunidade Sítio Poço Dantas dos Cariri está próxima ao principal açude público
federal no município do Crato, Tomaz Osterne de Alencar, atualmente gerenciado pela
Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará. Os Cariri podem ir a pé para o açude
em uma caminhada. Claro está que a localização de sua morada a exemplo dos primeiros
Kariri que ocuparam a chapada do Araripe, e que deixaram suas inscrições no abrigo de Santa
Fé, são semelhantes.
Acrescentando à entrevista, uma das lideres da comunidade sobre as danças e músicas,
descreve que praticam o “toré sempre que tem encontros com o povo de Crateús e São
Benedito”, comunidades Kariri em processo de etnogênese. E que praticam também “dança
do coco e o forró regional”. Descreve ainda que o toré foi resgatado dos colegas índios que lá
estiveram visitando a comunidade Poço Dantas, desde dez anos atrás. Conforme descrição de
Arruti638, esse processo significante esteve presente na maioria dos grupos indígenas do
interior do Nordeste em etnogênese e atua como elemento de ressignificação e
conscientização do ser índio a partir do resgate da memória coletiva do grupo social.
O terceiro maior índice de concordância na entrevista foi para o indicador de
identidade que está associado ao território em que vive os Cariri do Sítio Poço Dantas,
53,84%. Alguns elementos merecem destaque nesta afirmação. O primeiro deles é ser Cariri e

637
ANDRADE, Ugo Maia. Dos Estigmas aos Emblemas de Identidades. Revista de Estudos e Pesquisas.
FUNAI, Brasilia, vol 1. Nº 1, p. 99-139. Jul. 2004. Disponível em: <www.funai.gov.br>. Acesso em: 22
Jul.2017. p.p 114/115/116.
638
ARRUTI, José Maurício. A Produção da Alteridade: o toré e as conversões missionárias e indígenas. VII
Congresso Luso-Brasileiro de Ciências Sociais. A Questão Social no Novo Milênio. Coimbra, 2004. p. 1.
Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel47/JoseArruti.pdf>. Acesso em: 18 Jul.2017.
219

morar na região denominada Cariri, que é público e notório ser uma referência aos primeiros
habitantes indígenas da região, os Kariri. O segundo é entender que esta terra é um elemento
sagrado integrador de sua identidade, porque religa o ser índio à natureza. Outro elemento que
distingue essa informação em grau de importância é o fato reconhecido pela legislação
nacional vigente que o território é elemento identitário, ex vi Art. 231 da CF, Estatuto do
Índio, art. 2º, IX; considerando ainda que a principal politica pública indigenista do Brasil, de
todos os tempos, desde 1500, está associada à demarcação de terras indígenas.
A referência dos Cariri à terra é um elemento de identidade que os faz índios. As terras
que ocupam hoje são de sua propriedade, pequenos lotes individuais, mas que em razão do
parentesco da maioria das pessoas da comunidade atuam como uma aldeia; ajudam-se
mutuamente e se interessam uns pelos outros.
Dentre as preocupações destacaram o avanço de uma obra do projeto Cinturão das
Águas - obra de segurança hídrica que interliga a sub-bacia hidrográfica do Rio Salgado no
Cariri aos reservatório de captação de águas advindas do projeto de interligação de bacias do
nordeste Setentrional - Rio São Francisco, ao Ceará; é uma obra do Governo do Estado do
Ceará que já desapropriou algumas áreas de pessoas da comunidade, mas que a maioria vê
com preocupação essa obra, quanto mais pela escassez de água que estão enfrentando. Suas
fontes são cisternas de placas, e em períodos de seca, há 5 anos o Ceará esta em seca639,
precisam ser abastecidas por caminhão-pipa.
Na questão territorial terra indígena não registraram conflitos pelo uso da terra.
Parecem viver em paz e suas terras ficam não mais que um quilômetro distante do centro do
distrito de Monte Alverne, núcleo populacional mais próximo; de certa forma estão isolados.
O tipo de organização social em que vivem e hábitos coletivos, e a aparência e traços
físicos obtiveram entre 30% e 40% das respostas como indicador identitário para os
entrevistados. Indicador que não se confunde com a cor da pele, uma vez que esta informação
constava em outra alternativa que obteve 23,07 % das respostas.

639
FUNDAÇÃO CEARENSE DE METEREOLOGIA E RECURSOS HÍDRICOS. FUNCEME. Seca no Ceará
está menos grave em 2017, mas ainda preocupa. Segundo o Monitor de Secas do Nordeste, em junho do ano
passado, Estado tinha 100% do território com alguma condição de seca. Em junho de 2017, esse número caiu
para 64%. Após cinco anos com sucessivas quadras chuvosas abaixo da média histórica, em 2017 o período
principal de precipitações no Ceará (fevereiro a maio) foi encerrado em torno da média, com desvio percentual
de -7,7%, equivalente aos 554,5mm que caíram no Estado durante o quadrimestre. Ainda que não tenha sido uma
excelente quadra chuvosa, alguns impactos positivos podem ser percebidos no Monitor de Secas do Nordeste
(MSNE), cujo mapa mais atual, de junho de 2017, elaborado pela Fundação Cearense de Meteorologia e
Recursos Hídricos (Funceme) aponta redução de severidade da seca na comparação com junho de
2016. Disponível em: < http://www.funceme.br/index.php/comunicacao/noticias/807-seca-no-cear%C3%A1-
est%C3%A1-menos-grave-que-em-2016,-mas-ainda-preocupa#site>. Acesso em: 23 Jul.2017.
220

Essa organização referida e hábitos coletivos não se reportam a uma organização


jurídica, uma vez que eles não estão associados a nenhuma organização indígena. A pergunta
e os esclarecimentos eram sobre o tipo de vida em comum que eles praticavam. A cor da pele
não foi tão importante quanto o quesito mestiçagem, concluímos. É como se esse grupo social
se visse dentro da “mistura étnica” dos índios do Nordeste e um dos elementos desta mistura
fosse inexoravelmente indígena. Na comunidade tem negros com cabelo liso e pardos
(morenos claros e mais escuros), de cabelo liso ou cacheado. No seu processo de organização
consta a participação outrora do sindicado de trabalhadores rurais a assistir alguns membros
da comunidade que resultou em filiação a esta entidade e criação de uma associação de
trabalhadores rurais; de quem reclamam o total abandono e abuso das contribuições que
fizeram a esta associação.
Os aspectos relativos à memória e o imaginário, e os direcionamentos pessoais e
políticos, merecerecam cada um 23,07% das respostas como indicador dos motivos pelos
quais fazem deles índios da etnia Cariri. Como a resposta era individual temos aqui
informações sobre a disposição e predisposição individual para o pertencimento dos membros
da comunidade ao coletivo ser membro de uma comunidade indígena. Essa baixa adesão ao
que nossas observações indicam tem relação com o longo processo de distância no tempo que
a identidade Cariri esteve invisibilizada. E os mais jovens pouco adediram até aqui ao
universo psicológico de se assumir índios. Iguamente como ocorreu em todos os relatos de
etnogênese de índios do Nordeste, referidos nesta tese descritos por Arruti acerca dos Xocó de
Porto da Folha, em Sergipe, como “ethos do silêncio”640, um vazio informacinal das
experiência coletivas interposta entre uma geração e outra, ou seja: “a transmissão de
heranças materiais, místicas ou rituais, sofria fortes censuras plenamente interiorizadas”.
Esta pergunta também buscava uma informação cerca das influências politicas dos
partidos locais. Não há nos relatos ou informações que atestem qualquer envolvimento de
politicos ou lideranças locais no processo de etnogênese dos Cariri. Um movimento
endógeno, portanto, estimulado por outros índios visitantes.
Em último lugar com índices de 15,38% está a resposta pertinente aos hábitos pessoais
como indicador das motivações para ser índio da etnia Cariri. Ausente, portanto, qualquer
vínculo não coletivo identitário ao processo de etnogênese experimentado pelos Cariri do
Sítio Poço Dantas.

640
ARRUTI, José Mauricio. Da Memória Cabocla à História Indígena: o processo de mediação entre conflito
e reconhecimento étnico (Xocó, Porto da Folha – SE). In: Rachel Soihet, Maria R. C. de Almeida, Cecília
Azevedo e Rebeca Contijo. (Org.). Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. 1ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, v. 1, p. 249-270. PDF. p. 9.
221

4.3.2 Sobre a aquisição de direitos para o grupo étnico identificado. Perguntas 4, 5 e 6.

As expectativas da comunidade de índios Cariri do Sítio Poço Dantas em Crato acerca


das consequências de sua identidade Cariri, quando reconhecida pelo Estado foi objeto de
nossas indagações neste conjunto de perguntas que passamos a analisar. A primeira delas é
sobre a associação do processo de aquisição da identidade e a geração de direitos para o
entrevistado e sua família. Conforme descrito no quadro 19, os percentuais de respostas para
essa indagação.

Quadro 19 - Percentual de entrevistados sobre a geração


de direitos advindas da identidade indígena.

Entrevista
Sim Não Total
Perguntas 4 e 6
A identidade
Cariri é geradora
de direitos para
os índios e suas
famílias 12 01 13
Total em
92,30% 7,70% 100%
Percentuais
A constituição
Brasileira protege
os direitos 12 01 13
indígenas?
Total em
92,30% 7,70% 100%
Percentuais

Fonte: Autor, 2017.

Essas perguntas buscavam medir o nível de expectativa e confiança nas políticas do


estado brasileiro para com os índios. O percentual de 92,30% é alto, há muita expectativa de
que o reconhecimento da identidade Cariri traga como consequência um conjunto de direitos
para a comunidade e consequentemente suas famílias. Igualmente para o conhecimento da
Constituição Federal sobre o direito indígena e sua proteção jurídica. Não deixa de causar
surpresa o registro de pessoas na comunidade que não acreditam que esse processo identitário
gere direitos.
Na pergunta cinco da entrevista indaga-se sobre quais direitos o entrevistado espera
ver reconhecido. Em termos gerais. A pergunta continha 5 assertivas que poderiam ser
escolhidas concomitantemente; uma delas, sobre autodeterminação traz uma explicação sobre
ser autodeterminação o direito de se organizar politicamente, administrativamente,
juridicamente e territorialmente como de interesse do seu povo. Ainda assim, uma opção dizia
não entendo o que é autodeterminação. As assertivas estão dispostas no quadro 20 em ordem
222

igual à que estava no questionário. Os resultados em percentuais estão dispostos no quadro


20, a seguir.

Quadro 20 - Demonstrativo das respostas à pergunta: quais direitos você espera


ver reconhecido?

Assertiva Quantidade de Percentual considerando


respostas 100% a quantidade de 13
Obtidas de 13 entrevistas realizadas
Posse da terra 06 46,15%
Propriedade da terra 08 61,53%
Reconhecimento da 11 84,61%
Identidade Kariri/Cariri
Autodeterminação 04 30,76%
Não entendo o que é 06 46,15%
autodeterminação.
Fonte: Autor, 2017.

Os dados demonstram claramente que o indicador que obteve 61,53% de respostas


iguais dos entrevistados se refere à propriedade da terra indígena. Uma categoria que em si
faz justiça às análises teóricas acerca da estreita identidade existente entre povo indígena e a
natureza, sendo a terra indígena uma categoria forte e representativa de direitos.
Vejamos esses dados em outra perspectiva, Gráfico 02, a seguir.

Gráfico 2 - Percentual de respostas á pergunta. Quais direitos você espera ver reconhecidos?

90
Posse da terra
80

70
Propriedade da terra
60

50
Reconhecimento da Identidade
40 Kariri/Cariri

30
Autodeterminação
20

10
Não entendo o que é
0 autodeterminação
Quais direitos você espera ver reconhecidos?

Fonte: Autor, 2017.


223

Dois temas merecem atenção, o reconhecimento da identidade Kariri/Cariri como um


direito. Esse dado se associa ao indicador sobre confiabilidade do direito socioambiental
indígena inscrito na Constituição, art. 231, que foi questionado na pergunta seis, em que a
92,30% dos entrevistados acreditam garantir direitos aos povos indígenas. Aqui 84,61% dos
entrevistados colocou o direito à identidade como o mais importante, superando o direito à
terra indígena, aqui traduzido como propriedade da terra, com 61,53% dos entrevistados.
Outros 46,15% estão satisfeitos com a posse da terra indígena.
A assertiva acerca da autodeterminação, uma vez reconhecida juridicamente a
identidade indígena revela um desconhecimento sobre o instituto da autodeterminação ou
autogoverno; 46,15 dos entrevistados não sabem o que é autodeterminação, enquanto 30,76%
espera ver esse direito reconhecido pelo Estado brasileiro.

4.3.3 Sobre as relações do grupo étnico com o Estado-Nacional. Pergunta 7.

Consequência da análise teórica do direito socioambiental para a América Latina e da


abordagem marxista realizada nesta tese há um direcionamento claro na literatura para a
reflexão sobre a necessidade de superação do Estado Nacional construído sob as bases da
colonização e destruição dos nativos na América Latina. Esse processo resultou em uma
sociedade ensimesmada de suas limitações entre possibilidades de alcançar o
desenvolvimento social que o capitalismo construiu na Europa e mesmo em termos de
conhecimento e autoconhecimento há, no dizer, da corrente teórica de-colonial, uma imagem
distorcida de quem somos se continuarmos nos olhando sob o prisma da imagem construída
pelos europeus e que está grudada na maioria dos latino-americanos como uma tatuagem. É
necessário, portanto, a superação desse olhar colonizado e eurocêntrico para que possa ser
capaz de ver o processo de desenvolvimento não somente sob a lógica do sistema capitalista
de produtividade, de uso abusivo da natureza para construção do progresso e da exploração do
trabalho como mercadoria de valor de troca e não de valor de uso, enquanto riqueza pública.
Esse ideal, pelo menos em tese, não está tão distante. Em vários países da América
Latina, a exemplo de Bolívia, Venezuela, Equador, Colômbia, México já está em suas
Constituições a sua essência plurinacional ou pluriétnica, e na maioria dos casos, incluindo o
Brasil: o caráter multicultural de sua nação. Estas Constituições se somam aos regramentos
internacionais da OIT, ONU e OEA.
A pergunta sete indaga sobre quem o entrevistado acha que está em condições de
garantir os direitos dos índios no Brasil. As respostas constavam de cinco alternativas,
224

portanto, múltipla escolha, as quais o entrevistado poderia marcar mais de uma assertiva e na
última assertiva um espaço em branco para caso o entrevistado tivesse uma sugestão a fazer.
No quadro 21, a seguir, temos os resultados percentuais das respostas.

Quadro 21 - Demonstrativo das respostas à pergunta: quem você acha que está
em condições de garantir os direitos dos índios no Brasil?

Assertiva Quantidade de Percentual considerando


respostas 100% a quantidade de 13
Obtidas entrevistas realizadas
Você e seu povo 02 15,38%
Estado (Executivo, 05 38,46%
Legislativo ou Judiciário)
Ministério Público 01 07,69%
FUNAI 07 53,84%
Associação Indígena 03 23,07%
Outra instituição
Fonte: Autor, 2017.

Vejamos esses dados em outra perspectiva, Gráfico 03, a seguir.

Gráfico 3: Percentual de respostas à pergunta. quem você acha que está em condições de garantir
os direitos dos índios no Brasil?

60
Você e seu povo

50
Estado (Executivo, Legislativo ou
40 Judiciário

Ministério Público
30

FUNAI
20

10 Associação Indígena

0 Outra Entidade
Quem você acha que está em condições de garantir os
direitos dos índios no Brasil?

Fonte: Autor, 2017.

Como referido antes, esta seção objetivava ouvir os entrevistados acerca do modo
como eles veem a relação do Estado com a demanda levantada pelas comunidades para fins
225

de reconhecimento da identidade Cariri. E inserir esses dados no tema mais amplo que o
movimento socioambientalista está levando a efeito sobre a superação do modelo de Estado
Nacional brasileiro.
No resultado da questão sete, tem-se claramente uma propensão dos entrevistados em
reconhecer no Estado o caminho para a garantia dos seus direitos coletivos à identidade e à
terra indígena. A única resposta que ultrapassou o limite de 53,84% indica a FUNAI como
órgão capaz de garantir os direitos dos índios no Brasil, segundo o grupo étnico dos Cariri do
Sítio Poço Dantas. Em segundo lugar, com 38,46% temos o Estado através de suas funções
executivo, legislativo ou judiciário como aquela instância que pode atuar para a garantia de
direitos coletivos aos indígenas, conforme vimos pelos dados percentuais.
Em terceiro lugar a associação indígena desponta como uma referência de garantia de
direitos, 23,07%, embora seja no momento uma das solicitações mais emergentes das
lideranças dos Cariri do Sítio Poço Dantas, ajuda para criar e operacionalizar uma associação
indígena para reivindicar seus direitos. Esse índice somado ao quarto mais citado, que
remonta à autonomia da comunidade sobre a luta em defesa de seus direitos, somente 15,38%
das respostas reivindicou a primazia na capacidade de garantir direitos aos povos indígenas à
luta dos próprios índios. Somando-se os dois indicadores temos 38,45% de confiança na luta
dos povos indígenas (os povos por si mesmos e associados). É um indicador que denota o
quão descrentes estão os povos indígenas do Cariri, “cansados de guerra” como diria Jorge
Amado. Estão como tigres mosqueados! Afinal foi um longo tempo passado na invisibilidade.
Outro dado interessante, talvez inesperado, é a ausência quase total do Ministério Público
nesta resposta, apenas 7,69% dos entrevistados acreditam no Ministério Público como órgão
em condições de garantir os direitos indígenas, no que pese ser este o órgão demandante
quase por excelência das ações que envolvem interesses difusos e coletivos no Ceará porque o
artigo 129, V da CF/88 atribui ao Ministério Público a defesa judicial dos direitos e interesses
das populações indígenas e dos direitos e interesses coletivos ou difuso.
Para este terceiro ciclo de resultados e análise das entrevistas concluímos que a
comunidade étnica indígena Cariri do Sítio Poço Dantas identifica o Estado através da FUNAI
como órgão em melhores condições de garantir direitos indígenas constitucionais à
identidade, aos usos e costumes, à cultura e terra indígenas e todos os benefícios dela
resultantes.
226

4.4 ÍNDIOS CARIRI E SEUS DIREITOS

Diante do quadro analítico que vimos construindo e dos dados colhidos na pesquisa de
campo podemos afirmar que os membros da comunidade tradicional do Sítio Poço Dantas, em
Crato Ceará, reúnem as condições jurídicas de ser identificados como Índios da etnia Cariri. A
identidade jurídica a qual nos referimos nesta tese é reunião dos elementos de composição
segundo o direito socioambiental da identidade étnica. Considerando o cumprimento segundo
interpretação realizada no corpo desta tese de que os mesmos são remanescentes dos Índios
Kariri/Cariri do Cariri e ocupavam o território ancestral preservando parte de sua cultura e
modos de vida.
Concluímos ainda preliminarmente:
1) Que os Cariri do Sítio Poço Dantas em etnogênese, descendem dos índios
Kariri/Cariri que habitaram as terras do Cariri, porção Sul do Ceará e sua territorialidade está
associada aos processos de aldeamentos realizados no Cariri, em Missão Nova (Missão
Velha) e Missão do Miranda (Crato) no período aproximado de 1741 a 1780, quando
oficialmente os colonizadores/sesmeiros e seus descendentes ou proprietários de terras e
autoridades que o sucederam, pretenderam expulsar todos os Cariri do seu vasto território na
encosta da Chapada do Araripe.
A reminiscência que traz essa identidade quando analisada sobre o fato que a gerou dá
conta de que não foi tão simples assim a pretensa extinção e expulsão dos Kariri/Cariri do
Cariri. Além das referências de Gardner641 já citada nesta tese, em que afirma a existência de
mais de 2 mil entre índios e mestiços morando na vila do Crato em 1838.
Igualmente Valle642 anota documentos oficiais emitidos pelo presidente da província
do Ceará em 1863 aos ministérios imperiais do Brasil confirmando que “os descendentes das
antigas raças ainda se encontram em grande número localizados nos aldeamentos já extintos,
se bem que misturados na massa geral da população”.

641
GARDNER, George. Viagens pelo Brasil. Principalmente nas províncias do Norte e nos Distritos do Ouro e
do Diamante durante os anos de 1836-1841. Tradução de Albertino Pinheiro. 1ª edição. Brasiliana, Vol. 227. São
Paulo: Companhia Editora Nacional. 1942. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/obras/viagens-pelo-
brasil-principalmente-nas-provincias-do-norte-e-nos-distritos-do-ouro-e-do-diamante-durante-os-anos-de-1836-
1841/pagina/153/texto>. Acesso em: 05 Jul.2017.
642
VALLE, Carlos Guilherme Octaviano. Aldeamentos Indígenas no Ceará do Século XIX: revendo
argumentos históricos sobre desaparecimento étnico. In PALITOT, Estevão Martins. (Org.). Na Mata do Ceará:
contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult/Museu do Ceará/IMOPEC, 2009. 107-154.
p. 142. Conclui o referido autor observando que esses “documentos mostram como a maioria dos índios que
viviam nos antigos aldeamentos não abandonou suas terras, mas foi obrigada a sair delas ou, então, teve que
encontrar certos nichos ou pequenas áreas para viver”.
227

A etnogênese dos índios do Nordeste, tão semelhantes entre si, expressam a mistura
étnica como uma constante no processo de identificação dos índios não isolados do Brasil, ou
seja, daqueles que foram retirados, expropriados ou expulsos de suas terras para se
transformar em um nacional, ou somente, com fins de implantar o sistema de produção
capitalista nascente que tinha na expansão da pecuária e agricultura o seu principal horizonte
nas terras do Cariri.
A etnogênese, entendemos ser um processo social que o direito socioambiental está
defendendo como relevante na “construção da identidade de um povo. É um processo lento
que se cria e se recria, fundado na tradição e com raízes fincadas na cultura enquanto práticas
sociais em movimento”643, aí incluídas as comunidades que foram se descaracterizando com o
passar do tempo.
2) Que os Cariri, fugidos dos aldeamentos ou da expulsão, resistiram e formaram
comunidade tradicional no Sítio Poço Dantas, distrito de Monte Alverne, no Crato.
Essa nova comunidade é também uma nova identidade que exige do Estado o
reconhecimento e direitos, um novo direito, que a Constituição prevê, mas ainda encontra
dificuldade nos tribunais para ver efetivado. Para esses índios do século XXI o que o Estado
propõe é um desafio novo, a nosso ver descrito por Leff como:

A abertura a um mundo onde cabem muitos mundos; não de mundos diversos


separados, senão um mundo que seja a criação de muitos mundos, um mundo
construído pela hibridação de identidades diversas, na interculturalidade e através de
um diálogo de saberes, de um mundo aberto a heterogêneses, à diversidade e à
diferença.

Isto implica construir novos direitos e novos procedimentos jurídicos que


reconheçam ao ser coletivo, a diversidade cultural e as identidades diferenciadas;
que legitime o direito à diferença e que permita dirimir civilizadamente os conflitos
gerados pela confrontação dessas diferenças. 644

O processo de identificação de um povo, assim aceito pela FUNAI, leva em conta a


condição do grupo étnico de identidade indígena, em alguns casos desconsiderando o caráter
individual de suas histórias e lembranças, ou a asuência destas; considerando “famílias que

643
DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. A Noção de Pessoa e sua Ficção Jurídica: a pessoa indígena no
direito brasileiro. Hileia. Revista de Direito Ambiental da Amazônia. Ano 3. Nº 5. Manaus: Edições Governo do
Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura/Universidade do Estado do Amazonas, 2005. 121-146. p.
644
LEFF, Enrique. Los Derechos del Ser Coletivo y la Reapropriación Social de la Naturaleza. In CUNHA,
Belinda Pereira da. Et. All. Os Saberes Ambientais Sustentabilidade e olhar jurídico: visitando a obra de Enrique
Leff. Caxias do Sul, RS: Edus. 2015. Pp. 12-31. p. 30. Tradução livre do autor.
228

possuem repertórios não idênticos de memórias e significados sobre suas relações históricas
com o aldeamento.”645
3) Que o processo de territorialização e etnogênese dos Cariri do Sítio Poço Dantas
tem características de mestiçagem, ou seja, são índios misturados com povos de descendência
africana de escravos da Casa da Torre que migraram para o Cariri, ou escravos trazidos pelos
fazendeiros de gado, ou de mineração (Missão Velha)646 e/ou senhores de engenho, muito
comuns no vale da Salamanca, atual município de Barbalha no Cariri. Não podendo neste
estudo precisar a origem exata dos negros.
Esse processo de mestiçagem tem registros, contudo, desde o século XX no SPI,
através de relatórios de casos de índios mestiços ou caboclos, remanescentes e compõe
entendimento assente entre os pesquisadores dedicados aos estudos dos índios do Nordeste647.
Nos relatórios veem-se citações de mestiços de índios Pancaraús-Xocó com brancos e
negros648 no total de 2.488. Os postos indígenas, do SPI, com relação aos índios misturados
tinham uma postura a favor e noutro momento contra, com fundamento no mesmo fato de ser
misturado, o que poderia resultar em reconhecimento ou não desses índios misturados e o
envolvimento em politicas públicas.
Esse processo se dá igualmente entre os Kariri de Mirandela, na Bahia. Bandeira
observa que “os caboclos Kariri, [...] são hoje grupo de caracteres físicos heterogêneos e
altamente diferenciados... os traços negroides são mais comuns.” 649 Essa mistura étnica era
uma política empreendida nos aldeamentos para miscigenar e com isso procurar chegar a um
tipo nacional, mas, sobretudo, uma estratégia também para se apropriar novamente das terras
que ainda estavam em poder dos índios, após a lei de terras de 1850; de saldo criava o
ambiente e mão-de-obra pobre a preço vil. Na prática, conclui Arruti era “a reordenação dos

645
ANDRADE, Ugo Maia. Dos Estigmas aos Emblemas de Identidades. Revista de Estudos e Pesquisas.
FUNAI, Brasilia, vol 1. Nº 1, p. 99-139. Jul. 2004. P. 107. Disponível em: <www.funai.gov.br>. Acesso em: 22
Jul.2017.
646
BRÍGICO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição Fac-símile reproduzida do Diário de
Pernambuco, de 1861. Typ. Da Gazera do Norte. 1888. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007.
647
ARRUTI, José Mauricio. Agenciamentos Políticos da “Mistura”: Identificação Étnica e Segmentação
Negro-Indígena entre os Pankararú e os Xocó. Estudos Afro-Asiáricos. Ano 23. Nº 2. 2001. Pp. 215-254.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/eaa/v23n2/a01v23n2.pdf>. Acesso em: 21 Jul.2017. p. 6. “No inicio
do século XIX, o governo imperial voltaria a incentivar a ocupação não-indígena das terras das antigas missões e
aldeamentos, como forma de criar uma população finalmente homogênea”.
648
Ibid., p. 227.
649
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Os Kariris de Mirandela: um Grupo Indígena Integrado. Estudos Baianos.
Nº 6. Salvador: Universidade Federal da Bahia. 1972. p. 31.
229

padrões de intervenção e controle sobre a população rural pobre nordestina num momento de
transição das relações de trabalho para o capitalismo.” 650
4) Os direitos coletivos socioambientais dos indígenas inscritos na Constituição
brasileira, art. 231 e 232 e o conjunto normativo complementar, regulamentador, ou ordinário
nela recepcionado, constitui arcabouço jurídico capaz de realizar e garantir os direitos à
identidade dos autoidentificados índios Cariri do Sítio Poço Dantas, em Crato. Assim
considerado sob o nível de confiabilidade que os membros do grupo social demonstrou no
ordenamento jurídico nacional e suas instituições.
5) A autodeterminação é um instituto desconhecido pela maioria dos índios
Cariri do Sítio Poço Dantas, sendo necessário um processo educativo nacional para colocar
esse tema na agenda das comunidades indígenas. A exemplo do que ocorre com as práticas
rituais e culturais, que os índios do Nordeste tem criado uma rotina de diálogos inter-étnico,
também o tema da organização politica e administrativa deve permear as temáticas abordadas
em seminários e assembleias indígenas para divulgar práticas de autodeterminação de
comunidades indígenas.
Esta necessidade confirma a hipótese levantada inicialmente em nosso projeto de
pesquisa necessidade de conhecer a título de observação a experiência dos Cherán no México,
como exercício politico e jurídico de autodeterminação.
6) Os resultados desta seção também nos impõe uma conclusão sobre a
convivência das comunidades indígenas no Estado Nacional e a superação do modelo de
Estado previsto da Constituição do Brasil. A população entrevistada indicou dentro das não
prioridades a autodeterminação, com 30,76%, o menor índice dentre as assertivas escolhidas.
Essa questão, como indicada na conclusão anterior pode ser resultado da baixa educação
sobre o tema, uma vez que 46,15% declarou não saber o significado de autodeterminação,
ainda que a explicação estivesse na assertiva que antecedeu esta resposta. Ou a comunidade
está compreendendo que ainda não é o caso de deixar o Estado Nacional como protetor dos
direitos indígenas. É o nosso entendimento dos fatos.
Para cada um o seu direito, para cada grupo étnico indígena identificado os seus
direitos coletivos, ou no dizer de W. H. Goodenough, para cada povo indígena identificado
um status, que representa um conjunto de direitos e deveres651. O primeiro deles à identidade

650
ARRUTI, José Mauricio. Agenciamentos Políticos da “Mistura”: Identificação Étnica e Segmentação
Negro-Indígena entre os Pankararú e os Xocó. Estudos Afro-Asiáricos. Ano 23. Nº 2. 2001. Pp. 215-254.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/eaa/v23n2/a01v23n2.pdf>. Acesso em: 21 Jul.2017. p. 220.
651
W. H. Goodenough apud CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade Étnica, identificação e
Manipulação. Revista Sociedade e Cultura, vol. 6. Núm. 2, julho-dezembro, 2003, pp. 117-131. PDF.
230

e em consequência dos elementos culturais, como o nome, o modo de organização social usos
e costumes, igualmente o acesso a politicas públicas indigenistas.
Os Cariri estão com as presas cerradas, não são beligerantes, não querem
enfrentamentos, mas pedem direitos e reconhecimento, e esperam do Estado essa atenção.
Foram comunidade invisibilizada e tantos outros Cariri há no Cariri, com registro de
nascimento inscrito Cariri que se colocaram “de fora” para se integrar à sociedade regional.
Prevaleceu em alguns a identidade negativa652 de sua etnia quando desde crianças aprenderam
que ser Cariri em nada agregava em sua busca por sobrevivência e assim se conservaram até
hoje. Como ficarão esses “de fora” após a identificação e reconhecimento dos povos da etnia
Cariri no Cariri? Certamente emergirão de seu esquecimento intencional, identidade histórica,
para se apresentar como Cariri, novamente. O crescente aumento dos autodeclarados índios
no Censo de 2010, do IBGE, nos ajuda a crê nesta assertiva.
A partir desse estudo que aponta para a confirmação da identidade jurídica dos Cariri
do Cariri, do Sítio Poço Dantas, é o momento de renovar as energias para dar vasão à luta
contida em busca de novos direitos.

4.4.1 Reconhecimento como Povo Indígena, População Tradicional

Os elementos jurídicos identitários para o reconhecimento como povo indígena já o


apresentamos. São também os membros da comunidade étnica Cariri do Sítio Poço Dantas,
povos e/ou comunidades tradicionais? Vejamos.
Seguindo a dinâmica conceitual do Decreto nº 6.040 de 2007, há povos e/ou
comunidades tradicionais. Nessa premissa vemos de partida que sendo povos reconhecidos
como índios, já o são povos tradicionais uma vez que atuam como grupos culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais. A eles, segundo os benefícios que lhes faculta a
legislação são sujeitos coletivos que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural,
social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas
gerados e transmitidos pela tradição.
As comunidades tradicionais, por sua vez, passam igualmente por processo de
reconhecimento de sua identidade que em tudo se inspiram nos processo identitário de povos

Universidade Federal de Goiás. Goiania, Brasil. Disponível em:


<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=70360202>. Acesso em: 30 Jun.2017. p. 7.
652
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade Étnica, identificação e Manipulação. Revista Sociedade
e Cultura, vol. 6. Núm. 2, julho-dezembro, 2003, p. 12.
231

indígenas, a exemplo dos quilombolas. A legislação, entretanto, é bastante severa no


cumprimento dos princípios exigidos no Art. 1º do anexo único do supracitado decreto, que
detalha o conteúdo do documento de identificação da comunidade:

a) Definição de etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação


sexual e atividades laborais, entre outros e a relação desses em cada comunidade ou
povo. Essa definição não pode, contudo, desrespeitar, subsumir ou negligenciar as
diferenças dos mesmos grupos, comunidades ou povos ou, instaurar ou reforçar
qualquer relação de desigualdade;

b) Ter visibilidade como povos e/ou comunidades tradicional. Expressando-se as


pessoas por meio do pleno e efetivo exercício da cidadania;

c) A atuação do poder público deve atuar para que a base social respeite a
diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente
sustentáveis no que pertine a segurança alimentar e nutricional.

d) Agir com transparência pública a comunidade e o Estado, com acesso em


linguagem acessível à informação e ao conhecimento dos documentos produzidos e
utilizados.

e) Respeito aos modos de vida e as tradições da comunidade ou povo tradicional;

f) O reconhecimento e a consolidação dos direitos dos povos e comunidades


tradicionais;

g) A participação dos Povos e Comunidades Tradicionais nas instâncias de controle


social e nos processos decisórios relacionados aos seus direitos e interesses junto ao
Estado;

h) A contribuição para a formação de uma sensibilização coletiva por parte dos


órgãos públicos sobre a importância dos direitos humanos, econômicos, sociais,
culturais, ambientais e do controle social para a garantia dos direitos dos povos e
comunidades tradicionais;

i) A erradicação de todas as formas de discriminação, incluindo o combate à


intolerância religiosa; e

j) A preservação dos direitos culturais, o exercício de práticas comunitárias, a


memória cultural e a identidade racial e étnica.

O sistema de proteção às comunidades tradicionais e o regime de uso de suas terras foi


instituído para regulamentar a presença de comunidades tradicionais e seu saber tradicional
dentro de unidades de conservação, espaços territorialmente protegidos de modo geral, e
limitar o acesso do mercado ao saber que pode resultar em produtos para este mercado. Por
isso há referências ao regime de permanência ou exclusão de populações na lei 9.985/2000
que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC. Felizmente não há no
nosso caso de estudo relação direta da terra ocupada pela comunidade dos Cariri no sítio Poço
Dantas com Unidades de Conservação, no que pese está próximo, mas fora da zona de
amortecimento da Área de Proteção Ambiental da Chapada do Araripe e da Floresta Nacional
232

do Araripe; zona de amortecimento, nos termos da lei do SNUC é o entorno de uma unidade
de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas,
com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade. Mas dada a
proximidade com estas unidades, há uma provável incursão destes em áreas de encostas que
são naturalmente protegidas como área de preservação permanente. De sorte que um dos
primeiros direitos dos povos indígenas Cariri do Sítio Poço Dantas, neste contexto, é ser
reconhecido como população tradicional nos termos desta legislação nacional, Art. 5º inciso
X, que define como diretriz do sistema nacional de unidades de conservação a garantia às
populações tradicionais cuja subsistência dependa da utilização de recursos naturais existentes
no interior das unidades de conservação, meios de subsistência alternativos ou a justa
indenização pelos recursos perdidos.
A comunidade a seu turno, assume o compromisso e obrigação de participar da
preservação, recuperação, defesa e manutenção da unidade de conservação observando-se que
o uso dos recursos naturais pelas populações de que trata este artigo obedecerá às seguintes
normas: a) proibição do uso de espécies localmente ameaçadas de extinção ou de práticas que
danifiquem os seus habitats; b) proibição de práticas ou atividades que impeçam a
regeneração natural dos ecossistemas; c) demais normas estabelecidas na legislação, no Plano
de Manejo da unidade de conservação. D) direito a estabelecer contrato de concessão de
direito real de uso.

4.4.2 Direito à Identidade

O processo social de etnogênese, conforme descrito nesta tese e a análise do direito


socioambiental nos permite afirmar a identidade jurídica dos membros da comunidade Poço
Dantas da etnia Cariri e consequentemente seus direitos, dentre os quais a identidade e as terra
que tradicionalmente ocupam, sendo que o conceito de tradicional e ocupação é uma questão
que enfrentamos como um processo a ser vencido de esclarecimento e criação cultural dado o
estado de aculturação a que estão e submetidos os Cariri, só sendo possível sua identificação
pela etnogênese. A auto-identificação é a condição que os identifica no contexto do Direito
Socioambiental e no entendimento vasto da antropologia, etnografia e sociologia. Para o
direito nem sempre foi assim. Somente em 1975 quando antropólogos da Universidade
Federal da Bahia reunidos em Salvador abraçaram a causa de estudar ao lado da FUNAI os
índios do Nordeste. Quase em sua totalidade os índios do Nordeste são aculturados, o
233

primeiro grupo de trabalho dessa ação resultou em estudos para fins de demarcação e
“proteção” dos índios Pataxó e Kiriri, afirma João Pacheco de Oliveira.653
A denominação Índios do Nordeste, referido por Dantas, Sampaio e Carvalho apud
João Pacheco de Oliveira654 introduzirá a ideia de um denominador comum para os povos
indígenas da região, como diz o autor um “conjunto étnico e histórico”, cuja característica de
terem tido igual processo colonizador e de submissão aos missionários os distingue em sua
igual diáspora pela caatinga. Pari passu, os índios do Nordeste também desde a colonização
eram chamados em sua maioria de índios misturados, outra denominação que se traduz em
índios que estão integrados a economia e à sociedade regional655. Os índios do Nordeste na
década de 1970 já eram definidos como tais na literatura, “sertanejos pobres e sem acesso à
terra, bem como desprovidos de forte constrastividade cultural”656 No caso dos Cariri do Sítio
Poço Dantas temos uma comunidade de índios misturados, índios do nordeste, já o dissemos.
Qual seria o papel da FUNAI neste contexto? Para fugir das estratégias de
“manipulação”, a que se refere Teófilo da Silva, as bases seriam entender identificação étnica
como “manifestação sucessiva de multiplas estabilizações contrastivas de grupos que
vivenciaram e vivenciam situações de ‘diáspora’ e ‘mistura’.”657 O papel do pesquisador,
estudioso ou técnico seria neste caso categorizar essas pessoas, grupos sociais e seus recursos
materiais e/ou simbólicos com que constróem essas vivências, propondo o citado autor 658 que
os sujeitos é que estariam em melhores condições de fazer essa categorização enquanto o
papel do analista seria apenas reconhecer essas categorizações.
Esse tema é um dos mais delicados no momento nacional em que se discute a
invenção de etnias indígenas como processo de apropriação indevida de terras privadas. Há
Comissão Parlamentar de Inquérito que propõe indiciamentos de servidores de órgãos do
estado ou prestadores de serviços para esse fim e há pesquisadores já indiciados, cujas
referências já realizamos nesta tese. De sorte que essa problemática ao nosso ver, é mais um
processo de exclusão a que estão submetidos os povos indígenas no Nordeste, cuja

653
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma Etnologia dos Índios Misturados? Situação Colonial,
Territorialização e Fluxos Culturais. Mana [online]. 1998, vol.4, n.1, pp.47-77. ISSN 0104-9313.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426.pdf >. Acesso em: 30 Jun.2017. p. 51.
654
Ibid., p. 51.
655
OLIVEIRA, op., cit., p. 52.: “O órgão indigenista, sempre manifestou seu incômodo e hesitação em atuar
junto aos índios do nordeste, justamente por seu alto grau de incorporação na economia e na sociedade
regionais”.
656
OLIVEIRA, op., cit., p. 52.
657
SILVA, Cristhian Teófilo da. Identidade Étnica, Territorialização e Fronteiras. Revista de Estudos e
Pesquisas. FUNAI. Brasília. V. 1. Nº 1. P. 113-140. Jul. 2005. p. 120. Disponível em: <www.funai.gov.br>.
Acesso em: 24 Jul.2017.
658
SILVA, op., cit., p. 121.
234

característica de índios misturados os distinguem em cultura e ancestralidade, pelo menos,


quanto à prova dessas culturas e ancestralidade, dos índios isolados do Norte do Brasil, por
exemplo. Sob esse ponto de vista é relevante a reflesão de Silva659 quando propõe a
necessidade de uma metodlogia de identificação que não busca auferir o quanto de índios
ainda resta desta mistura, mas como descrever o processo que resultou na perda parcial das
cuturas e dessa ancestralidade. O liame que propõe o autor é o do território. Questão já
enfrentada por João Pacheco e sob a qual, entendemos, está situada a etnogênese dos povos
indigenas do Nordeste como processo social que se desenvolve em territorios determinados.
Não necessariamente no território em que deve permanecer o grupo social, como condição,
mas como se deu o processo de exclusão, expropriação, acomponesamente, proletarização,
enfim.
O direito à identidade é, por conseguinte, o direito coletivo socioambiental que está no
cerne da proposição desta tese. Falemos então daquilo que pode ser impedimento (a ser
superado) para a aquisição efetivo desses direitos no século XXI. Observando-se casos e
exemplos de experiências por outras comunidades indígenas no Ceará e no Brasil, temos o
caso emblemático dos Tapeba de Caucaia, mesmo sendo assistidos pela FUNAI há mais de 20
anos tem sua legitimidade e identidade étnica contestada660 porque é uma comunidade de
caboclos, próximo à zona urbana da capital do Estado e falam o idioma português-brasileiro.
É preciso estar vigilante.
A intenção do colonizador era implantar outra identidade. Para Valle seria como
“desubstancialização étnica”661, definida como “cabocla” em algumas regiões do país,
especialmente o Nordeste, que nada mais era do que “a mistura” e portanto são índios Cariri
que foram submetidos ao processo de extinção e apropriação indevida de suas terras. Este
mais um dos fatores elementares de destruição da identidade dos originais povos primitivos
do Cariri. Os novos Cariri e suas culturas de resistência se interligam aos originais na
memória coletiva do grupo como coletivo, conforme demonstrado alhures: a religiosidade, as
atividade produtivas comunal e modo de vida comunal-associativa. Negar identidade a estes
Cariri seria uma nova derrota dos índios.

659
SILVA, Cristhian Teófilo da. Identidade Étnica, Territorialização e Fronteiras. Revista de Estudos e
Pesquisas. FUNAI. Brasília. V. 1. Nº 1. P. 113-140. Jul. 2005. p. 131. Disponível em: <www.funai.gov.br>.
Acesso em: 24 Jul.2017.
660
TÓFOLI, Ana Lúcia Farah de. Retomadas de Terras Tapeba: entre a Afirmação Étnica, os Descaminhos da
Demarcação Territorial e o Controle dos Espaços. In PALITOT. Estevão Martins (Org.). Na Mata do Sabiá.
Contribuições sobre a presença indígena no Ceará. SECULT. MUSEU DO CEARÁ. Fortaleza. 2009. P. 214.
661
VALLE. Carlos Guilherme. Aldeamentos Indígenas no Ceará do Século Xix: revendo argumentos
históricos sobre desaparecimento étnico. In PALITOT. Estevão Martins (Org.). Na Mata do Sabiá. Contribuições
sobre a presença indígena no Ceará. SECULT. MUSEU DO CEARÁ. Fortaleza. 2009. P. 145.
235

A constituição de 1988 busca redimir os erros do passado colonial brasileiro a respeito


da identidade como direitos coletivos socioambientais dos índios. No Art. 231 está protegido
o direito à identidade do povo indígena na medida em que se reconhece sua organização
social, costumes, línguas, crenças, tradições. Igualmente a Convenção 169 da OIT caracteriza
a auto-identificação como elemento distintivo a ser considerado no processo de identificação
étnica.
A ancestralidade recuperada pela memória coletiva expressa através: a) registros
oficiais em cartório do sobrenome Cariri; b) ao imaginário que associa o território do Cariri,
seus mitos e lendas, e a linguagem milenar dos sítios arqueológicos; c) com a memória
coletiva dos povos Cariri do Sítio Poço Dantas é outro elemento que os Cariri; atribuem a sua
identidade. A este respeito para caso semelhante, João Pacheco de Oliveira662 destaca os
elementos que considerou para o reconhecimento dos índios da etnia Caxicó: Os membros
desse grupo entendem a si mesmos como etnicamente distintos e atribuem isso a uma origem
étnica comum, existem relações de parentesco que lhes permitem interagir entre si e até
incorporar pessoas de fora do grupo, a existência de sítios arqueológicos, a manutenção de um
vínculo histórico com povos de origem pré-colombiana, sem contar com o estabelecimento de
uma auto-identificação como indígenas por intermédio dos membros mais influentes da
comunidade. Entre os antropólogos663 o auto-identificação é determinante em um processo de
identificação da etnia indígena.
Atualmente, no Brasil, buscamos reafirmar a memoria coletiva dos povos que buscam
sua identidade. Os elementos memoriais são os principais elementos que norteiam a história
fragmentada dos povos indígenas no Brasil e no Cariri. A memória coletiva está entre aquelas
lembranças que provisoriamente escapam à História, como afirma Halbwachs664. Igualmente
como ocorreu com a memória judia sobre o holocausto, a memoria dos antigos colonizados
despertou bruscamente665 na América Latina, na Bolívia, especialmente.
Para grupos que historicamente tiveram que se inserir na sociedade, recuperar sua
identidade significa recompor fragmentos de sua história. Não há outro caminho a seguir.

662
OLIVEIRA, João Pacheco de. Os Caxixós do Capão do Zezinho: uma Comunidade Indígena distante de
Imagens da Primitividade e do Índio Genérico. Relatório encaminhado á FUNAI. Disponível em:
<http://www.anai.org.br/arquivos/Laudo_Antropologico_Caxixos_Capao.pdf>. Acesso em: 01 Jul.2017. p. 36.
663
VERAS, Marcos Flávio Portela. DE BRITO, Guimarães. Identidade Étnica. A Dimensão Politica de um
Processo de Reconhecimento. Revista Antropólogos ISSN 1982-IC. Ano 4. Vol. 5. Maio 2012. Disponível em:
<http://revista.antropos.com.br/downloads/maio2012/Artigo4-IdentidadeEtnica.pdf>. Acesso em: 30 Jun.2017.
p. 120.
664
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 8ª reimpressão. São Paulo:
Centauro Editora, 2015. p. 13.
665
ZIEGLER. Jean. Ódio ao Ocidente. Tradução Marcelo Mori, Maria Helena Trylinski, Mariclara de Oliveira.
Cortez Editora: São Paulo, 2011. P. 43.
236

Neste contexto de garantias de direitos, comunidades que foram envolvidos nas ações do
Estado são, como afirma Veras, “levados a situacionalmente reorganizar seus símbolos
culturais, lançando mão de sua identidade étnica e reivindicar seus direitos, sem contar com as
evidências empíricas da natureza de sua distintividade”. Para Oliveira, a única continuidade
que talvez seja possível, a exemplos dos índios do Nordeste semelhante ao que ocorre com os
Cariri do Sítio Poço Dantas, é “recuperando o processo histórico vivido por este grupo,
mostrar como ele refabricou constantemente sua unidade e diferença frente a outros com os
quais esteve em interação”. 666
Destes direitos reconhecidos, o papel da União é sem dúvida essencial para consolidar
sua proteção, através da demarcação de terras, ponto de partida para o leque de direitos a
serem protegidos. Razão dos maiores conflitos atuais, uma vez que o Brasil pouco avançou
nesta seara.
Reconhecer a identidade dos Cariri é reconhecer nessa comunidade um povo indígena
“misturado”, e ao fazê-lo estará o Estado desnaturalizando a mistura, que no dizer de João
Pacheco de Oliveira667, é a única política pública que o Estado pode fazer pelos índios do
Nordeste para garantir sua sobrevivência e cidadania. Esse processo é denominado pela
Antropologia como etnogênese668, que abrange desde a emergência de novas identidades
como a reinvenção de etnias já reconhecidas.

4.4.2.1 Costumes e tradições dos índios Kariri do passado e dos Cariri do século XXI

Alguns hábitos alimentares atribuídos aos povos Kariri, no passado, apresentamos no


quadro 22 análise comparativa dos hábitos identificados em nossa pesquisa de campo. O
objetivo é conformar uma ideia de como evoluíram esses hábitos distantes várias gerações e
séculos.

666
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma Etnologia dos Índios Misturados? Situação Colonial,
Territorialização e Fluxos Culturais. Mana [online]. 1998, vol.4, n.1, pp.47-77. ISSN 0104-9313.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426.pdf >. Acesso em: 30 Jun.2017.
667
Ibid., p.. 53.
668
OLIVEIRA, op., cit., p. 53.
237

Quadro 22 - Comparativo de hábitos alimentares dos Kariri do passado e dos Cariri do Século
XXI.

Hábitos indígenas do passados Hábitos Século XXI


Língua: língua Kariri, Kipéa/Quipea669 Português brasileiro
Lider religioso: Na sua crença os Kariris/Cariris Há relato não investigado de uma das mulheres da
obedeciam aos “bisamos”, que seriam os pajés. Para os comunidade que faz as rezas e bênçãos, seria a pajé.
missionários “feiticeiros”670
Habitação: “choças”671 habitações feitas de barro, Casa de taipa e de alvenaria dispostos no território de
cobertas de palha ou folhas de palmeira modo aleatório, contrário ao modelo de ruas e vilas das
cidades pequenas e médias do Brasil.
Modos de vida: Ocupavam-se da caça e Ocupam-se da caça e da agricultura. Costumes que se
plantavam”672. mantém. O território em que habitam não dispõe
contudo da extensão que permite a sobrevivência
Havia lugar para o trabalho em colaboração do homem exclusiva da comunidade das atividades de caça e
e da mulher, e as atividades de caça e outros afazeres agricultura. Alguns dos membros masculinos
eram ensinados de pai para filho673: trabalham em empresa de construção civil para manter
as condições básicas de sobrevivência.
Os maridos na roça derrubam o mato, queimam-no e
dão a terra limpa às mulheres, e elas plantam, mondam As mulheres, em sua maioria, vivem das atividades
a erva, colhem o fruto e o carregam e levam para casa domésticas e ajudam na agricultura, em colaboração
em uns cofos mui grandes feitos de palma... com o marido. Uma mulher da comunidade é
E os maridos levam um lenho aos ombros, e na mão professora.
seu arco e flechas, ..., de que são grandes atiradores,
porque logo ensinam aos filhos de pequenos a tirar ao Não há o uso de armas indígenas como arco e flexa.
alvo, e poucas vezes atiram a um passarinho que não o O artesanato em palha permanece como atividade de
acertem, por pequeno que seja. uns poucos membros da comunidade.

Também os ensinam a fazer balaios e outras coisas da Dormem em redes de algodão.


mecânica, para as quais têm grande habilidade, se eles
a querem aprender; que, se não querem, não os Utensílios domésticos como uso de pilão, arupemba,
constrangem, nem os castigam por erros e crimes que abano, esteira de palha, continua em uso.
cometam, por mais enormes que sejam.
Na culinária, mantém os hábitos semelhantes do trato
As mães ensinam as filhas a fiar algodão e fazer redes com a mandioca, o uso do feijão, o preparo da farinho
de fio e nastros para os cabelos, dos quais se prezam de mandioca utilizada na farofa e na tapioca; o uso de
muito, e os penteiam e untam de azeite de coco bravo, milho em várias formas, dentre eles pão-de-milho etc.
para que se façam compridos, grossos, e negros.
Os Cariri fazem a dança ritual do toré em momentos
a) Não praticavam a antropofagia, não usavam tacapes de celebração com outras tribos Kariri visitantes, de
nas guerras e Pintavam-se com urucu ou jenipapo, São Benedito e Crateús.
usando batoques nos lábios e orelhas;
b) Praticavam a poligamia, mas as mulheres exerciam Fazem a dança do coco, em festividades locais e
uma espécie de matriarcado674; dançam o forró regional.
d) Praticavam a agricultura e faziam cerâmica,
relativamente desenvolvida.675 Outros hábitos em comparação não foram

669
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória, n.4.
Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 7.
670
SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1978. P. 38.
671
ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará, desde os tempos primitivos até
1850. Recife: Typrografia do Jornal do Recife, 1867. P. 24.
672
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. V III. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória, n.6.
Fac-símile da Edição de 1966. Edições URCA. Fortaleza:. Edições UFC, 2010. P. 106.
673
SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil (1500-1627). Editores Weiszflog Irmãos. 1918. Prefácio
Marcos Venicio Ribeiro. Fundação Darcy Ribeiro. Brasília:Editora da UNB, 2014. Edição Digital (PDF). P. 82-
83.
674
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 63.
238

e) Dormiam em redes feitas de algodão676. investigados.


f) Fumo. Utilizavam-se de cachimbos em cerâmica.677

Os utensílios domésticos, alguns ainda presentes na


cultura do Nordeste teriam sido legado da cultura
indígenas, no Cariri, especificamente:
a) Pilão de socar;
b) A urupemba; abano; esteira de palhas de palmeira;

Na culinária:
c) O trato com a mandioca678 e o feijão679, o preparo da
farinha
d) Uso do milho na alimentação680;
e) O uso e aproveitamento do Pequi681.
Algodão: Os indígenas do Cariri, pertencentes todos Não investigado
ao grupo do mesmo nome... plantavam algodão e
fiavam... Havia até a cerimônia de iniciação da moça
aborígene na profissão de tecer fibras.682
Mitos e lendas: Não investigado
a) Curar o doente com o sopro ou cantigas, ou pintar-
lhe a pele com tinta de jenipapo para que não seja
conhecido do diabo;
b) Espalhar cinza à roda da casa do defunto para que o
diabo daí não passe a matar os outros; ou por cinza no
caminho, quando se carrega a pessoa doente para que o
diabo não vá atrás dela;
c) Banhar a criança com aluá para que quando ela for
adulta seja bom caçador e bom lutador.683
Em guerra: Não foi investigado
a) Respeito aos asilos nas caiçaras ou pessoas em suas
residências684;
b) Reconhecimento de marcos representados pela cruz.

Fonte: o autor, 2017.

675
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri volume I. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória,
n.4. Fac-símile da Edição de 1964. Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 7.
676
PINHEIRO, Irineu. O Cariri. Fac-símile da edição de 1950. Coleção Nossa Cultura, n. 1, Série memória,
n.1). Edições URCA. Fortaleza: UFC, 2010. P. 20.
677
LIMA, Flávia Fernanda. Et. All. Geopark Araripe: Histórias da Terra, do Meio Ambiente e da Cultura.
Crato: Editora da URCA, 2012. P. 150. “Também são encontrados cachimbos decorados, demonstrando que o
fumo já era praticado entre os indígenas da região.”
678
Iibd., p. 49: Esse relato, aliás, é da época da chegada dos portugueses ao Brasil. Referido por Pe. Manuel da
Nóbrega em 1549.
679
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 62.
680
FIGUEIREDO FILHO, op., cit., p. 8.
681
FIGUEIREDO FILHO , op., cit., p. 20.
682
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. volume III. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória,
n.6. Fac-símile da Edição de 1966. Edições URCA. Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 106.
683
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo Instituto do
Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965. P. 61.
684
SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Editora Cátedra. Rio de Janeiro. 1978. P. 40.: A mudança desse
hábito cultural ancestral se dá pela atuação dos fazendeiros definindo aquilo que o autor chama de “traição
guerreira”. SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Editora Cátedra. Rio de Janeiro. 1978. P. 40.
239

A historiografia do Cariri registra que pelo menos duas culturas já se percebia


transmitidas para as comunidades nascentes no Crato, quando da aldeia e missão do Miranda,
advindas dos índios Kariri/Cariri: o manejo da mandioca, do algodão e a fibra de caroá685.
O uso da mandioca e o tratamento dado ao tubérculo para fazer farinha tinha na
cultura dos índios uma tecnologia social dominada especialmente pelas mulheres que se
resumia em “raspar com quicé de osso ou de pedra, a raiz da mandioca, ralar, peneirar e em
seguida cozinhar a massa em depósito plano de cerâmica”686. A tapioca era um dos produtos
feitos da farinha de mandioca, depois que os índios retiravam e secavam a farinha. Essa
tradição foi passada de gerações por gerações de sertanejos no Nordeste. Ainda hoje é uma
tradição no interior. Tradição feita por mulheres. As casas de farinha como se popularizaram
eram ambiente de troca de informações, conversar, brincadeiras, alegrias compartilhadas,
histórias das famílias, integração entre os vizinhos e amigos, interação para as crianças que
acompanhavam as mães. Enfim era um exercício de coletivismo e comunitarismo. Ao final
elas dividiam em partes proporcionais a farinha.

4.4.3 Direito à Terra

A propriedade das terras doadas para a Vila dos Índios, sob os cuidados do Frei Carlo
Maria de Ferrara, juridicamente falando, aos Cariú dos Kariri/Cariri pertenciam. O processo
de fim dos aldeamentos ocorridos com a edição da Lei de Terras (nº 601 de 1850),
resguardava as terras dos índios aldeados ou isolados para si e seus descendentes. Por serem
indispensáveis à sua sobrevivência ocupavam as terras e por isso não poderiam ser
incorporadas às terras “próprias nacionais”, na verdade terras devolutas.
A expulsão, “a bem dos índios” promovida pelo Presidente da Província de
Pernambuco e executada pelo Ouvidor Geral do Ceará José da Costa Dias e Barros em 1780,
denota uma fraude promovida pelo Estado contra os índios das Missões do Cariri, que merece
reparação. Foram expulsos para, em verdade, se apropriar das terras dos índios, duplamente a
eles reconhecidas: 1) pela aquisição extraordinária: permanente, mansa, pacífica, posse como
proprietário originário; 2) Doação687 realizado pelo Capitão-mor Domingos Álvares de Matos

685
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. volume III. Coleção Nossa Cultura. N.1, Série Memória,
n.6. Fac-símile da Edição de 1966. Edições URCA. Fortaleza. Edições UFC. 2010. p. 107/108.
686
Ibid., p., 107/108.
687
PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Edição Fac-símile da edição de 1963, publicada pela Imprensa
Universitária do Ceará. Coleção Nossa Cultura, n. 1., Série memória, n. 2. Coedição Secult/Edições URCA.
Fortaleza: Edições UFC, 2010. P. 27: “Frei Carlos Maria de Ferrara que recebeu terras doadas aos índios do
Crato e delas tomou posse em favor dos mesmos”.
240

e sua mulher Maria Ferreira da Silva, filha do Capitão Antônio Mendes Lobato, datado de
3.12.1743, escritura lavrada pelo tabelião público judicial Roque Correia Marreiros, Vila do
Icó688.
Como trazer ao reconhecimento público esse direito decorridos tantos anos de seu
ultrajante ataque? Não há resposta simples ou fácil para esta questão; talvez não haja resposta
sustentável juridicamente em tribunal para garantir o direito coletivo à terra indígena aos seus
verdadeiros proprietários, para usar um termo contratual.
A Constituição Federal de 1988, sobre o direito de propriedade em terras indígenas
instituiu: “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam689”. Cabendo à
União demarcar as referidas terras, protege-las e “fazer respeitar” os bens nela inseridos.
É extraordinário pensar na evolução que esse instituto representou em termos formais
para o reconhecimento dos povos indígenas no Brasil. Vejamos se o Estado é capaz de reparar
no caso dos índios Cariri do Cariri as consequências da expulsão enquanto ato ilegal, nulo de
pleno direito se observados os princípios constitucionais e processuais que rezam a espécie
hoje690, conforme interpretação pelo STF. O ato normativo do Governador de Pernambuco
José Cesar de Menezes foi executado pelo ouvidor do Ceará José Dias da Costa Barros. O
referido ato é tratado pela historiografia como “injusta” e “espoliação”.

688
MACÊDO, Heitor Feitosa. Sertões do Nordeste I. Inhamuns e Cariris Novos. A província Edições. Crato.
2015. P. 264-265.
689
Art. 231. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o
usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das
riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas
as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional,
em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após
deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o
domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na
forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
690
FIGUEIREDO, Leandro Mitidieri. Populações Tradicionais e Meio Ambiente: Espaços territoriais
especialmente protegidos com dupla afetação. PDF. p. 5. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-
tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/artigos/docs/artigos/docs_artigos/populacoes-tradicionais-e-meio-
ambiente-espacos-territoriais-especialmente-protegidos-com-dupla-afetacao-leandro-mitidieri. Acesso em: 23
Jul.2017.
241

O Cariri, para os fins de politicas de território do Estado do Ceará, compreende oito


Municípios, denominada microrregião do Cariri. A princesinha do Cariri é o Crato! E na sua
porção serrana da Chapada do Araripe está o Sítio Poço Dantas, terras dos Cariri, do Cariri. O
Cariri, o Crato e o sítio poço Dantas compreendem o território como elemento indispensável
para a questão indígena em torno da identidade étnica.
O estatuto dos índios trata a questão da terra indígena dividindo em terras ocupadas ou
habitadas pelos índios, sugerindo índios isolados e conhecidos, e terra a serem demarcadas,
reservadas ou protegidas (art. 17). Destaque-se que o artigo referido traz citação de artigos da
constituição de 1967. Compreendemos que o estatuto foi recepcionado pela carta
constitucional de 1988 naquilo que não confronta a nova norma. Com uma nova constituição
se repactua os direitos em torno da formação do Estado e das garantias individuais e coletivas,
não há, portanto, ainda que fosse o caso, falar de direitos garantidos frente à nova ordem
constitucional.
São terras da União, ademais, previstas no Art. 20 da CF/88. Sobre as terras indígenas,
qualquer de suas modalidades recaem os benefícios dos direitos humanos fundamentais
quando à indisponibilidade, imprescritibilidade e nenhum gravame de natureza contratual do
direito civil pode vingar perante ela. E a exploração dos recursos dentro da terra indígena tem
um regime de uso próprio, quando coincide com unidade de conservação federal (lei
9.985/200), para fins de exploração de recursos hídricos – reservado à União com a
necessidade premente do conhecimento e consentimento das populações indígenas impactadas
com o projeto (Convenção 169/OIT). Podendo os índios explorarem suas riquezas naturais
conforme seus usos e costumes, para sua sobrevivência e da comunidade ou grupo étnico
indígena, exclusivamente.
As terras indígenas no regime constitucional e normativo vigente, quando não
identificada e reservada precisa ser identificada a etnia do grupo indígena através da
declaração e em consequência a demarcação e/ou reserva; que resultará, em tese, em
planejamento, assistência técnica e proteção do Estado contra o direito individual dos
cidadãos em conflitos com esta normativa e exigindo igualmente do próprio Estado o dever de
respeito a suas próprias normas constitucionais, complementares, ordinárias e administrativas.
O processo de demarcação de terras indígenas está exaustivamente claro no Decreto
nº 1.775, de 8 de Janeiro de 1996 e tramitará na FUNAI, Ministério da Justiça e se concluirá
mediante decreto presidencial. Não vamos adentrar no tema da ocupação de forças de
segurança nacional determinada por ordem do Governo Federal em terras indígenas e para
proteção da segurança nacional, que tem gerado grande descontentamento das comunidades e
242

autoridade indígenas nacionais e internacionais; fator que pode estar contribuindo para a
violência e conflitos entre proprietários de terras e indígenas. Igualmente preocupante é o
avanço de medidas administrativas e judiciais que tem colocado sob suspeição os estudos para
demarcação de terras indígenas, ou mesmo a reversão de terras já demarcadas pelo poder
judiciário. São tantas as questões preocupantes neste cenário controverso do Brasil do século
XXI que um dos mais inesperados golpes pode vir do poder legislativo, com os fins de alterar
a constituição quanto ao poder de demarcação de terras indígenas pela União, devolvendo ao
Congresso a prerrogativa, tornando mais burocrático o processo, além do que já é. Mais grave
é saber que esse processo se dá por atuação direta da bancada ruralista no Congresso
Nacional.
As terras indígenas reservadas são áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios,
onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao usufruto e utilização das
riquezas naturais e dos bens nelas existentes, respeitadas as restrições legais. Estas áreas não
se confundem com as de posse imemorial das tribos indígenas, podendo organizar-se sob uma
das seguintes modalidades: reserva indígena, parque indígena e colônia agrícola indígena. A
conceituação está descrita individualmente no estatuto do índio, sendo reserva indígena uma
área destinada a servir de habitat a grupo indígena, com os meios suficientes à sua
subsistência. Parque indígena é a área contida em terra na posse de índios, cujo grau de
integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em
que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região. Na
administração dos parques serão respeitados a liberdade, usos, costumes e tradições dos
índios. A colônia agrícola indígena é a área destinada à exploração agropecuária, administrada
pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos aculturadas e membros da
comunidade nacional.
No caso dos Cariri do Sítio Poço Dantas há três questões preliminares a resolver em
matéria de terra indígena: a) definir a extensão da terra indígena necessária à sobrevivência do
grupo étnico; b) resolver a questão da área do assentamento missão do Miranda usurpado
com a expulsão dos Kariri. Questão que pode ser remediada com desapropriação de área
territorial semelhante pelo Estado; e c) definir o regime de uso coletivo e de superação da
propriedade privada da terra que hoje ocupam, considerando que no local a propriedade está
sob a posse e em alguns casos propriedade dos Cariri, mas em extensão que não atende às
necessidades da coletividade; d) avaliar se há necessidade de extrusão.
243

4.4.3.1 Direito à Terra Indígena X Direito de Propriedade

Dentre os elementos que precisam ser enfrentados em bases normativas


socioambientais está o direito de propriedade. No Brasil pós 1500, a propriedade sempre
esteve associada ao modo de produção capitalista. As mudanças introduzidas pelo legislador
constituinte de 1988 sobre a dinâmica da função social e submissão da propriedade privada ao
interesse público e social, ou seja, a função social da terra que passou a se constitui como um
dever do direito, e quem não cumpre seu dever, corre o risco de perde esse direito, como
lembra Carlos Marés.691
O direito à função social da terra quando utilizados pelos poderes constituídos tem o
papel de garantir aos trabalhadores um meio ambiente sadio em comunhão com os povos. O
capitalismo no seu estágio atual demonstra estar em crise, após a consumação exagerada da
natureza como propriedade para o mercado, busca se metamorfosear em alternativas que
transformem em produtos a conservação da natureza, como a criar novos produtos. Sua
eficiência está sendo colocada em questão.
O direito de propriedade não é uma instituição que os indígenas utilizavam igualmente
os brancos. Havia terra, não há propriedade para os índios de modo geral, tampouco para os
índios Kariri. A terra é um elemento sagrado na estrutura de viver e morrer dos índios. Ela
mantinha sua existência e se constituía como um elemento mítico de conexão com os
antepassados. Dela brotavam todas as condições para sua existência, uma existência que era
para os índios: coletiva. Só havia um ser quando conectado ao todo. O ser supremo dos índios
estava na natureza, na Terra.
A análise realizada pela historiografia do Cariri dá conta de que o sistema proprietário
empreendido pelos índios Kariri era tribal, ou seja:

Em toda a extensão em que as famílias de uma horda ocupam certa região é esse
território considerado propriedade da comunidade. Esta ideia está clara e viva na
alma do índio e ele compreende a propriedade comum como coisa inteiriça da qual
692
porção alguma pode pertencer a um indivíduo só. (grifo nosso).

Von Martius J. de Figueiredo Filho em suas anotações observa ainda que:

691
MARÉS, Carlos F.. A Função Social da Terra. Sérgio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 2003. p.
102/117.
692
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Apud Von Martius. In Histórica do Cariri volume III. Coleção Nossa Cultura.
N.1, Série Memória, n.6. Fac-símile da Edição de 1966. Edições URCA. Fortaleza. Edições UFC. 2010. P. 106.
244

... o Silvícola considera como propriedade da tribo o terreno que ela cultiva, mas em
sentido estrito torna-se imóvel privado tal como acontece com a cabana, sendo estes
dois imóveis considerados mais como propriedade de toda a família ou famílias que
moram nela, do que propriedade individual exclusiva. ... Tais bens de raiz são
somente em comum e por isso, com mais direito, direito ainda, considerados
693
propriedades de todos. (Grifo nosso)

Denota, portanto, no olhar do visitante estrangeiro ao Brasil no início do século XIX


(1817), uma particularidade que se soma ao pensamento hodierno do que seja um regime
dominial diverso o praticado pelos índios, daquele que conhecemos no Direito Civil brasileiro
com o direito de propriedade.
O Direito Civil, enquanto ramo do direito privado, embora tenha como berço a
proteção dos interesses plebeus da Roma antiga, inegavelmente restringiu-se ao longo do
tempo a tutelar interesses de classes dominantes das sociedades.
A ideia romana de um direito de propriedade absoluto influenciou profundamente a
codificação europeia oitocentista, a qual imiscuída de uma intuição individualista legou-nos
uma legislação civil editada sob as hostes de uma sociedade liberal. O Código Civil de
Napoleão de 1804 e o Bürgerliches Gesetzbuch694 Alemão de 1900 demonstram
explicitamente os valores preponderantes à época, os quais mais interessados em proteger o
patrimônio do que à pessoa, serviram de supedâneo para a criação da primeira codificação
privada do Brasil, o Código Civil de 1916. Tal diploma legal brasileiro não somente
reproduziu a concepção eurocêntrica e liberal de sua era, como também se calcou em
apresentar o absolutismo e rigidez romana, quanto ao direito de propriedade.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a fixação de fundamentos que
norteiam a atividade do Estado Democrático de Direito, especialmente, a dignidade da pessoa
humana, o reconhecimento das populações indígenas/tradicionais e seus direitos, passaram a
ostentar posição superior dentro do ordenamento jurídico, pelo menos em tese, uma vez que o
Direito de Propriedade abriu as portas de uma verdadeira (des)patrimonialização e
(re)personalização de suas bases, se atingirmos aquilo que a Constituição considera “função
social da propriedade”. Senão vejamos.
A Carta Magna de 1988 com o princípio da função social da propriedade ratifica a
noção de que a propriedade deve ser analisada para além de uma visão individualista e
subjetivista, ou seja, como direito social. Esta visão pluralista da propriedade deita raízes na
doutrina italiana, que a compreende não como um instituto único, mas acima de tudo, dotado

693
MARÉS, Carlos F.. A Função Social da Terra. Sérgio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 2003. p. 106.
694
Código Civil.
245

de uma variabilidade que decorre dos diversos tipos de bens e seus respectivos titulares.
Entendemos que é nesta fonte que o artigo 5º da Constituição Federal Brasileira vai beber;
mas com referências em outros dispositivos constitucionais e até mesmos em outros diplomas
legais, o termo mais apropriado não seria “propriedade”, mas, “propriedades”.

a propriedade assegurada em nossa Constituição como um direito individual (art.


153, § 22), cuja função social é declarada como um dos princípios da Justiça Social
(art. 160, III), apresenta-se como instituição diferenciada, no sentido de poder variar
de conteúdo, conforme o tipo de bem que lhe serve de objeto e a natureza do titular,
695
exatamente por ser uma função social e um dos instrumentos da Justiça Social .

Com isto não se quer afirmar que a propriedade privada está desprovida de conteúdo
particular. Pelo contrário, a Constituição confirma o direito de propriedade como garantia
individual e direito subjetivo. Vige, portanto a regra do Código Civil, artigo 1.228696, em que
ao proprietário é dado o direito de usar, gozar, dispor da coisa e ainda de reivindicar de quem
injustamente a possua. Este conceito conserva a essência do direito de propriedade como
atributo privado, impedindo sua desconfiguração. Havemos de convir, contudo que a
incidência constitucional da função social da propriedade como princípio altera o eixo do
direito patrimonial, posto que, ao proteger o direito de propriedade, o legislador não o fará
levando em linha de conta apenas o bem per si e seu dono, mas os valores constitucionais de
justiça social, tutelando como meta a dignidade da pessoa humana.
Sob um olhar subjetivista, o direito de propriedade é entendido como a vinculação do
proprietário a uma coisa, mas que ensejaria a figuração dos demais indivíduos da sociedade
em posição passiva, com um dever de abstenção de violar os atributos do dono, constituindo
inclusive uma relação jurídica entre o proprietário e as demais pessoas, uma vez que estes têm
o dever jurídico de se absterem da realização de qualquer espécie de ato que fira aquele
direito.
O direito subjetivo representa, em Vicente Rao697, a faculdade concedida a
determinados indivíduos de agirem conforme os preceitos da norma garantidora, pois, esta
tem como finalidade a preservação dos fins e interesses, podendo exigir de outrem, o que lhes
for devido segundo a lei. Ao analisarmos a questão jurídica posta em defesa dos índios Cariri
e sua Terra, se considerada propriedade, falta o título desta propriedade, ou seja, o contrato,

695
LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 161.
696
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de
quem quer que injustamente a possua ou detenha.
697
RAO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5 ed. Anot. e atual. por Ovídio Rocha Barros. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1999.
246

mas temos o registro de doação das terras do aldeamento da missão do Miranda aos Cariú.
Temos a controvérsia assinalada.
Voltamos, por momento, à conclusão de que só é possível analisar o direito à terra
indígena dos índios cariri em paralelo ao direito de propriedade pelo foco da função social da
propriedade e não pode ser de outra forma no regime Constitucional vigente, corroborando
com o entendimento de que a “propriedade não é direito subjetivo do proprietário, mas função
698
social de quem a possui”. Visto assim, a função social da propriedade mitiga o
individualismo que marcou o tratamento do direito de propriedade na codificação
oitocentista699, no entanto, não altera sua natureza jurídica de direito subjetivo tutelado pelo
ordenamento jurídico. Embora tenha provocado modificações na estrutura e regime jurídico
do direito de propriedade, alterando seu conceito e o seu conteúdo, para a faculdade que seu
titular possui de usar, gozar e dispor de certos bens, desde que o faça de modo a promover sua
função social, bem como a dignidade da pessoa humana. Eis o novo conceito de propriedade.
Tal concepção se coaduna com a tese proposta pelo Direito Civil Constitucional, em
que o direito a propriedade é inserido como direito individual fundamental e, logo em seguida
como interesse público, devendo se adequar aos fins sociais, orientando, portanto, o seu
exercício bem como o aproveitamento da propriedade.
Neste contexto, o melhor entendimento é aquele que retrata que o princípio da função
social da propriedade busca equilibrar o interesse público e o privado, sendo que este se
sujeita aquele. É, consequentemente um enquadramento do direito privado à custa da
sustentabilidade do ser humano neste planeta. Todo o direito positivo brasileiro atual é
antropocêntrico, neste caso em particular ao trazer o interesse coletivo para dialogar com
direitos privados está-se fazendo realmente o papel que o Estado-Poder deve realizar na
contemporaneidade. Quem está em verdade pautando essas grandes temáticas é a realidade e
reflexão em torno da sustentabilidade do planeta.

4.4.4 Direito de Autodeterminação x Estado Pluriétnico ou Plurinacional

A autodeterminação ou livre determinação, como superação inclusive da ideia de


Estado-nação é o ponto mais sensível neste debate da identidade indígena e organização social

698
RODRIGUES, Rosalinda P. C. A questão agrária e a Justiça. In: A teoria da função social da propriedade
rural e seus reflexos na acepção clássica da propriedade. (Org.) Juvelino José Strozake. São Paulo:Editora
Revista dos Tribunais, 2000. p. 97.
699
GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas
de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 397-433.
247

própria, porque abre um rol de possibilidades jamais explorado satisfatoriamente pelos índios
e pela sociedade contemporânea no Brasil. Os caminhos para implementar tal direito
concentra as dúvidas centrais, que no dizer de Consuelo Sánchez700: “precisa se concretizar...
os diversos caminhos vão desde a) conformação de entes autônomos sob o marco de um
Estado pré-existente até, b) a independência e a constituição de um Estado nacional próprio.”
Esse direito põe em questão os estados-nacionais advindos da colonização na América
Latina, cada um com sua Constituição, prenhe de direitos globalizantes e excludentes dos
direitos dos nativos701.
Ao mesmo tempo a autodeterminação, ou com mais precisão a livre-determinação, é
um passo além nos processos constitucionais experimentados na Bolívia (2009)702 e no
Equador (2008), enquanto Estados plurinacionais ou “constitucionalismo plurinacional
comunitário”703. Dentre as muitas dúvidas que o tema sugere um consenso: o
constitucionalismo tradicional não tem dado conta da realidade dos países colonizados,704
porque é ao mesmo tempo um misto de direitos sem garantias que o amparem. Na prática
direitos que não se convertem em direitos.705
Há um fator que pode ser o determinante destas escolhas, porque tipo de
autodeterminação lutar: a falta de compreensão pelos indígenas do próprio conceito jurídico
que esta autodeterminação significa e suas consequências e responsabilidades.
Autodeterminação no século XXI pode significar uma estrutura burocrática e a estrutura
burocrática é demasiado pesada para os tempos atuais se pensarmos que estes povos não
viverão isolados do resto do mundo e com eles podem dialogar, há que se organizar estruturas
intermediárias entre um regime, por exemplo, de usos e costumes e o Estado, nos moldes

700
SÁNCHEZ, Consuelo. Autonomia, Estados Pluriétnicos e Plurinacionais. In VERDUM, Ricardo.
Organizador. Povos Indígenas: Constituições e Reformas Politicas na América Latina. Brasília: Instituto de
Estudos Socioeconômicos - INESC, 2009. P. 65.
701
Neste sentido: “Essas constituições, que se assentam em direitos de abrangência universal, foram incapazes
de abarcar questões como o respeito genuíno pelas diferenças e a preservação da identidade.” RAMIREZ,
Silvina. Sete problemas do Novo Constitucionalismo Indigenista: As Matrizes Constitucionais Latino-
Americanas são Capazes de Garantir os Direitos dos Povos Indígenas?. In VERDUM, Ricardo. Organizador.
Povos Indígenas: Constituições e Reformas Politicas na América Latina. Brasília: Instituo de Estudos
Socioeconômicos - INESC, 2009. P. 216.
702
No Art. 2º da Constituição da Bolívia vê-se a opção por uma livre determinação dentro do Estado, cuja
definição é “Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário... intercultural, pluralismo jurídico e
linguístico”, além de outras coisas.
703
VARGAS, Idón Moisés Chivi. Os Caminhos da Descolonização na América Latina: os Povos Indígenas e o
Igualitarismo Jurisdicional na Bolívia. In. VERDUM, Ricardo. Organizador. Povos Indígenas: Constituições e
Reformas Politicas na América Latina. Brasília: Instituo de Estudos Socioeconômicos - INESC, 2009. P. 155.
704
Ibid., p. 158.
705
RAMIREZ, Silvina. Sete problemas do Novo Constitucionalismo Indigenista: As Matrizes Constitucionais
Latino-Americanas são Capazes de Garantir os Direitos dos Povos Indígenas?. In VERDUM, Ricardo.
Organizador. Povos Indígenas: Constituições e Reformas Politicas na América Latina. Brasília: Instituo de
Estudos Socioeconômicos - INESC, 2009. P. 217.
248

como há hoje em dia. O processo secular de maus-tratos com a educação para os indígenas
legou uma sociedade além de excluídos, mal-educados, no sentido de acesso à educação que
chamamos de formal.
As experiências de autodeterminação em Cherán, no México, constituem um diálogo
entre Estado de usos e costumes e Estado-nacional. Recheado dos problemas que para além da
ideia de Estado é comum às pessoas: violência, corrupção, transparência no trato da gestão,
planejamento para execução de obras e serviços, são exemplos.
Consuelo Sanchéz706 apresenta uma distinção entre autonomia indígena e Estado
Pluriétnico ou Plurinacional, sendo a primeira o exercício da autodeterminação no âmbito do
Estado Nacional sem status de Estado através do “autogoverno, configurado por um governo
próprio com capacidade de tomar decisões sobre a vida interna e a administração de seus
assuntos”. Com os ajustes que o Estado precisa fazer na legislação para adequar-se ao
governo de “usos e costumes”. O território delimitado, definido é também um dos elementos
que, a exemplo do Estado-Nacional707 é condição para o exercício da autonomia e
autogoverno. Não podendo se restringir à posse territorial somente dos indígenas
individualmente considerados, mas à propriedade coletiva. Igualmente a competência é um
dos elementos indicados por Consuelo Sanchéz, que inclui ir além das práticas comuns aos
indígenas e agregar o financeiro, “administrar os próprios recursos e acessar os fundos
nacionais”708, além de exercer jurisdição.
A autodeterminação, como um conceito ligado à nação, não foi uma invenção
indígena, claro, mas do próprio modelo de gestão dos Estados-Nacionais europeus, no direito
internacional709 nascido do Congresso de Viena710 em 1814 e seus desdobramentos através da

706
SÁNCHEZ, Consuelo. Autonomia, Estados Pluriétnicos e Plurinacionais. In VERDUM, Ricardo.
Organizador. Povos Indígenas: Constituições e Reformas Politicas na América Latina. Brasília: Instituto de
Estudos Socioeconômicos - INESC, 2009. p. 69-72.
707
Ou Estado-Nação, aquele sob o manto de uma só nacionalidade.
708
SÁNCHEZ, Consuelo. Autonomia, Estados Pluriétnicos e Plurinacionais. In VERDUM, Ricardo.
Organizador. Povos Indígenas: Constituições e Reformas Politicas na América Latina. Brasília: Instituto de
Estudos Socioeconômicos - INESC, 2009. P. 73.
709
Anaya (2015. P. 49) apud NOGUEIRA, Carolina Barbosa Contente. A Autodeterminação dos Povos
Indígenas frente ao Estado. 2016. Ps 223. Tese de Doutorado em Direito Econômico e Socioambiental da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba. 2016. P. 91: Apontará o Tratado de Vestfália, de 1648,
como iniciativa nascente do direito internacional e consequentemente do diálogo diplomático entre as nações
autônomas.
710
O Congresso de Viena (Áustria) ocorreu entre 11.11.1814 e 9.06.1815. Participaram os representantes de
todos os Estados envolvidos nas guerras napoleónicas. Foi um marco na história da diplomacia internacional e ao
contrário do que o nome sugere não ocorreu em plenárias de um congresso, mas com reuniões bilaterais em
torno de temas determinados cujo objetivo geral era um acordo de paz que resultou em vários tratados, acordos,
regulamentos e concordâncias que nem sempre foram cumpridas. O Tratado de Paris, em 30 de Maio de 1815,
onde se estabeleciam, entre outras questões, as indenizações a pagar pela França aos países vencedores foi um
dos destacados acordos impositivos resultante do Congresso de Viena. O tema da autodeterminação no
249

Conferência de Paris em 1919, que resultou no Tratado de Versalhes711, um acordo de paz que
puniu severamente a Alemanha como responsável pela primeira guerra mundial. A liga das
Nações foi instituída nesta conferência e atuaria como associação internacional das nações. E
posteriormente a criação da ONU em 1945, que em seu seio acolhe as manifestações formais
dos Estados participantes da conferência das nações unidas em São Francisco – EUA e
definem como propósitos, dentre outras coisas: manter a paz e a segurança internacionais;
Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de
igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas
ao fortalecimento da paz universal.
Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de
caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos
direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua
ou religião também estavam entre os objetivos dos novos Estados. Ao tempo em que
resguarda a ONU, ou outro qualquer membro, de intervirem em assuntos que dependam
essencialmente da jurisdição de qualquer Estado. Art. 1º e 2º da Declaração. E posteriormente
na Declaração Universal dos Direitos dos Homens, de 1948, em seu preâmbulo e artigos 1º, 2º
e 3º quanto ao reconhecimento dos direitos humanos para todos os povos, dentro do Estado ou
dos Estados entre si. A Declaração dos Direitos Humanos não se refere expressamente à
autodeterminação, mas liberdade de povos de modo geral, vedada a escravidão.

Congresso de Viena está associado aos critérios e privilégios das casas reais e domínios na Europa, definindo
territorialidades e poderios reais. O Ato final do Congresso de Viena foi assinado em 9 de Junho de 1815, por
todos os representantes, com excepção da Espanha, por causa da restituição do território de Olivença a Portugal.
O Congresso de Viena consagrou vários princípios fundamentais: o princípio da legitimidade, defendido
sobretudo por Talleyrand, a partir do qual se consideravam legítimos os governos e fronteiras que vigoravam
antes de 1789, garantindo assim o retorno dos Bourbons; O princípio da restauração das monarquias reinantes
antes da Revolução Francesa, incluindo se necessário intervenções militares sempre que estas estivessem em
perigo (“Santa Aliança”) nos seus territórios metropolitanos e ultramarinos; o princípio do equilíbrio de poder na
Europa e das “fronteiras geográficas” estabelecidas juntamente para evitar que qualquer potência adquirisse
capacidade para romper o equilíbrio. A carta de Direito Público da Europa criada em Viena viria a conhecer
alguns ajustamentos e contingências ao longo do século XIX, mas até 1914 mantiveram-se no quadro das
relações internacionais certos princípios: (1) a necessidade de consentimento de todos os Estados para alterações
fronteiriças no palco europeu; (2) neutralidade da Suíça; (3) livre navegação dos grandes rios; (4) papel dos
agentes diplomáticos que foram considerados “parte integrante” das decisões do Congresso. PORTUGAL.
Instituto da Defesa Nacional. Congresso de Viena. Relações Diplomáticas. Disponível em:
https://idi.mne.pt/pt/relacoesdiplomaticas/2-uncategorised/702-congresso-de-viena.html. Acesso em: 17
Jun.2017.
711
Um tratado de paz assinado pelas potências europeias que encerrou oficialmente a Primeira Guerra
Mundial. A Alemanha foi obrigada a aceitar todas as responsabilidades por causar a guerra incluindo reparações.
A Alemanha, inclusive, aceitou reconhecer a independência da Áustria. O ministro alemão do exterior, Hermann
Müller, assinou o tratado em 28 de Junho de 1919. O tratado foi ratificado pela Liga das Nações em 10 de
Janeiro de 1920. Na Alemanha o tratado causou choque e humilhação na população, o que contribuiu para a
queda da República de Weimar em 1933 e a ascensão do Nazismo. Tratado de Versalhes. Wikipedia.
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedade_das_Na%C3%A7%C3%B5es. Acesso em 17 Jun.2017..
250

A autoderminação, como princípio, passou pela modernidade como uma afirmação


dos direitos humanos nos legados da Revolução Francesa enquanto ideal de liberdade e de
nações, desde que – é necessário entender os critérios europeus para tanto: com condições
objetivas, positivas, cristãs e civilizacionais para suportar o Estado. Afastado, portanto, a ideia
que negava a colonização das índias (América Latina) e/ou valorizava os “selvagens” como
povo ou nação. No dizer de Carolina Nogueira712 está em tudo associada aos elementos
conceituais do Estado moderno ou Estado-Nacional.
Ainda no século XXI a questão da convivência com o Estado e seus poderes/funções
não é simples ainda para um Estado que se proclama constitucionalmente plurinacional e de
livre-determinação como a Bolívia. Uma das leis complementares aguardada naquele país foi
aprovada em 29.12.2010, a Lei nº 073 de Deslinde Jurisdicional, na qual excluem da
competência da jurisdição indígena quase todos os temas relevantes para o Direito, restando
as questões afeitos aos delitos e causas de pequeno impacto social, ou como se diz no Brasil,
crimes de bagatela ou fofocas, fato que autores bolivianos, como o Advogado indígena Idón
Vargas previam que não deveria acontecer: “Uma Lei de Deslinde Jurisdicional... tem a
missão de assegurar os direitos dos povos indígenas, e não de recortá-los.”713 Será que é
possível descolonizar o Estado a partir do Estado?
A questão que parece ser óbvia é que o sistema vigente se insurge contra esse tipo de
autonomia sob a justificativa de não se tratar de um sistema propriamente indígena, mas
formal, constitucional, estatal. Há que se admitir que estamos diante de uma contradição:
pode-se ser indígena, preservar a cultura e identidade ancestral714 e ao ser reconhecida essa
identidade ser incorporados ao sistema nacional? A participação e assento dos espaços de
decisão politica e de poder é uma quarta questão associada ao exercício da autonomia que
aponta Carolina Nogueira. Nesta participação busca-se atenuar os efeitos de anos de exclusão
do processo decisório que favorece ao poder dominante. Os partidos políticos, neste contexto,
são os mais distantes dos arranjos políticos das comunidades indígenas. Em Cherán os
partidos políticos foram abolidos e a justiça eleitoral do México concordante com esta

712
NOGUEIRA, Carolina Barbosa Contente. A Autodeterminação dos Povos Indígenas frente ao Estado.
2016. Ps 223. Tese de Doutorado em Direito Econômico e Socioambiental da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná. Curitiba. 2016. P. 90.
713
VARGAS, Idón Moisés Chivi. Op. Cit., 2009. P. 165.
714
Havemos de por um bemol na temporalidade que a identidade pode exigir para ser reconhecida como
indígena. Associamo-nos à corrente expressa por Joaquim Herrera Flores que afirma a multiculturalismo crítico
ou de resistência como traço de identidade, considerando que as mudanças culturais associadas à resistência e
autoafirmação podem resultar em afirmação da cultura de um povo. DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho.
Humanismo Latino: o Estado brasileiro e a questão indígenas. In MEZZAROBA, Orides (org.) Humanismo
Latinoamericano e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003. P. 498.
251

medida, após processo judicial interposto pelo Conselho Comunal de Cherán, em defesa do
governo de usos e costumes.
Em contraposição a esse tipo de autonomia que se insere dentro do Estado-nação sem
feri-lo; Consuelo Sanchéz descreve que no Estado Pluriétnico ou Plurinacional há mais de
uma nacionalidade715, quantas houver em seu seio, referindo-se aos indígenas e suas culturas e
identidades. Novamente esse exercício esbarra na forma como os Estados implementarão
essas culturas. Trata-se de mudar o Estado para incorporar em suas instituições as
multiculturas com respeito às autonomias referidas antes e não de fundar dois ou mais
Estados. Ademais, querem as sociedades indígenas fundar outro Estado-nacional? A resposta
que indica os estudos das culturas sociais indígenas do Brasil é não!. Os indígenas constituem
sociedades sem estado-nacional716. Ou mudamos o conceito de Estado, como o conhecemos,
para adotá-lo às sociedades indígenas. Já que a fusão desses mundos culturais comporta
distinções até aqui inconciliáveis: o modo e sistema de vida social e econômica do
liberalismo-capitalismo e do coletivismo e colaboração do modelo de usos e costumes dos
indígenas.
As experiências de multiculturalismo no ambiente liberal parecem sobreviver com os
ajustes institucionais e normativos que permitem conviver idiomas diferentes e modelos
educacionais e cultural como o Canadá e a Bélgica, mas em modelos de sistemas produtivo e
econômico semelhante os interesses acabam por serem convergentes.
O reconhecimento a autodeterminação dos povos indígenas foi tema para os Espanhóis
nas juntas de Valladolid, de 1550-1551, tratava-se de pensar a sociedade política, como
resultado de uma criação humana e não como decorrência da vontade divina, e o governo e as
leis como produtos do consenso dos homens unidos em sociedade, colocou dúvidas reais
sobre o movimentos de dominação divulgados de conquista da América e das guerras contra
os índios. A legitimidade do título de conquista, representado principalmente pela Bula Inter
Coetera, foi abalada pela nova verdade proposta pelos juristas e teólogos espanhóis que, ao
menos em tese, reconheceram nos índios um igual e, após, reconheceram a sua capacidade e
autonomia para formar sua própria sociedade política, sendo ilegítimo qualquer poder que não
decorresse diretamente de sua vontade. Como sabemos, esse discurso não foi capaz de conter
a exploração política e econômica do Novo Mundo e tampouco o maior genocídio da história,
ele constituiu uma tentativa de amenizar as práticas abusivas contra os índios, proscrevendo-

715
SÁNCHEZ, Consuelo. Op. Cit., 2009. P. 83.
716
Opinião esposada por DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho e por Pierre Clastres. Humanismo Latino: o
Estado brasileiro e a questão indígenas. In MEZZAROBA, Orides (org.) Humanismo Latinoamericano e
Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003. P. 505.
252

se, de modo geral, os abusos e a exploração, com a não aceitação de guerras injustas e
escravidão717.
Claro está que o Brasil não cultivou a formação de um Estado inclusivo, ao contrário,
a identidade promovida pela elite brasileira, considerada branca, definiu a identidade
brasileira associada ao padrão português-europeu, “não queriam ser indígena, negro,
republicano, latino-americano e não católico”718. Daí ser a legislação brasileira
intencionalmente omissa aos verdadeiros “brasileiros”: mestiços, negros e índios.
Pensar um novo direito para o Brasil , um direito que envolve a inclusão social de
negros e índios, é ao mesmo tempo pensar um direito que dialoga com as demais inquietações
jurídicas latino-americanas em ascensão na Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela, dentre
outros. Igualmente trata-se de pensar um novo Estado ou a superação deste, integrado ao
pensamento dos povos e Estados latino-americanos. Um novo pacto social, de inspiração
comum para América Latina719, não para buscar uma unidade, mas para reforçar a diversidade
frente ao Estado-nacional. Ao mesmo tempo em que os vários povos nativos e tradicionais do
Brasil reivindicam com fundamento na Constituição Federal720, Convenção 169 da OIT e
Declaração da ONU sobre os Povos Indígenas e Tribais, um país Plurinacional, em
substituição ao Brasil que nasceu sob a ideia equivocada de universalidade e unidade
nacional, que foi imposta – a exemplo dos índios Kariri declarados extintos e tiveram sua
propriedade incorporada ao regime nacional colonial, mas não deixaram de existir, foram
invisibilizados.
Uma mudança na perspectiva constitucional de soberania nacional excludente dos
povos diferenciados em nome da inclusão individual, como afirma Carlos Marés721, da

717
BRAGATO, Fernanda. Raízes históricas dos direitos humanos na conquista da América: o protagonismo
de Bartolomé de Las Casas e da Escola de Salamanca. Revista do Instituto Humanitas. Unisinos. Edição 487 de
13 de junho de 2016. Disponível em:
<.http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6495&secao=487>.
Acesso em: 06 Abr.2017.
718
REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p.
31/32.
719
SANTIAGO, Eduardo Girão. Brasilidades: Ensaios Socioeconômicos. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora,
2016.p. 131.
720
Ao considerar os indígenas, a sua organização social, a diversidade cultural e consequentemente o
reconhecimento e proteção desses direitos o Art. 231 e Art. 216 da CF de 1988 insere formalmente as
comunidades indígenas como parte integrante do Estado brasileiro em termos diferentes em todos os tempos da
legislação brasileira. Sob o ponto de vista do reconhecimento como coletividade a integrar um estado
plurinacional, embora ainda não alcançado formalmente. Análise que dialoga com o pensamento de DANTAS,
Fernando Antonio de Carvalho. Humanismo Latino: o Estado brasileiro e a questão indígenas. In
MEZZAROBA, Orides (org.) Humanismo Latinoamericano e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2003. P. 496.
721
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Soberania do povo, poder do Estado. In MEZZAROBA, Orides
(org.) Humanismo Latinoamericano e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003. P. 108.
253

negação dos direitos coletivos, que reclama correção no século XXI em nome da recuperação
daquilo que os teóricos denominaram soberania popular722, emprestada ao Estado ao
constituí-lo, mas não alienada, não transferida definitivamente até porque “se o Estado
descumprir o mandato de soberania que lhe é outorgado, é legítimo ao povo reivindicá-lo de
volta, insurgir-se contra a tirania usurpadora”, se não garante os direitos ao povo igualmente
considerado, ricos e pobres, proprietários e trabalhadores, homens e mulheres, brancos e
negros, também.
O caminho para a mudança é a participação popular, cuja ideia central corroboramos
com Carlos Marés, o sentido da soberania do Estado contemporâneo, Estado Plurinacional,
está ligado à ideia da democracia ou participação. Esta opção contrasta com a perda
sistemática da soberania dos Estados contemporâneos para o sistema financeiro nacional e
internacional, e sua inserção nos mecanismos de financiamento politico e corrupção eleitoral,
que tem comprometido a legitimidade dos respectivos Estados.
Na América Latina o exercício constitucional de estado pluriétnicos e plurinacionais a
exemplo da Nicarágua e da Bolívia resultou em resistência e mudança de rumo na execução
das normas constitucionais, tornando sem efetividade as autonomias ali previstas. Não vemos
um retrocesso, precisamos estar conscientes, mas não se pode esmorecer na luta. Em uma
abordagem pedagógica do direito, Fernando Dantas723 nos traz com precisão o primado da
luta pelo direito de Hering, clássico da estudantada, ao comparar que esta luta, dos indígenas é
um referencial prático do direito se considerarmos que “a luta pelo direito é próprio direito”, e
que a participação política é o exercício da luta, exercício da cidadania, portanto. Estamos
longe de alcançar a igualdade de autonomias seja dentro do Estado ou seja em Estados
Plurinacionais. Quanto mais em um cenário onde os Estados como Argentina, Brasil e México
fazem um giro em que as lideranças estão mais conservadoras e no polo da direita de seus
países.

4.5 O CASO DE AUTODETERMINAÇÃO DOS PURÉPECHA DO MÉXICO

Índios, e agora? Essa interrogação habitou as perguntas-problemas que nos fizemos


para construir o projeto de estudo que resultou nesta tese. Traduzindo a inquietação: para que

722
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Soberania do povo, poder do Estado. In MEZZAROBA, Orides
(org.) Humanismo Latinoamericano e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003. p. 111.
723723
DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Humanismo Latino: o Estado brasileiro e a questão
indígenas. In MEZZAROBA, Orides (org.) Humanismo Latinoamericano e Estado no Brasil. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2003. P. 507.
254

obter identidade indígena no Brasil? A esta altura do trabalho podemos fazer ilações mais
conscienciosas, dentre elas que no plano dos direitos coletivos da comunidade Cariri do Sítio
Poço Dantas o direito à identidade já é tem sua relevância e em consequência dela o direito à
terra indígena, seja ela demarcada ou em regime de colônia, o Estado dirá. Além do acesso a
politicas públicas que podem impactar as condições de educação, saúde, moradia, cultura,
geração de negócios associativos, enfim uma vida de resgate e afirmação das identidades e
culturas.
Sob o ponto de vista da organização institucional e política o direito à
autodeterminação724 surge como um paladino para concluir em definitivo a transição entre o
ser índios em terra estrangeira, que se tornou a América Latina. Mas não foi assim que os
Cariri pensaram sobre o Estado brasileiro e a possiblidade da autodeterminação. Em nossa
pequena pesquisa de campo demonstraram não entender o que é autodeterminação e/ou
preferir a atuação do Estado conforme reza a Constituição do Brasil, nos artigos 231 e 232.
Como referido no início desta seção ainda não havíamos realizado a pesquisa de
campo com os Cariri mas entendemos que esse tema seria relevante para ouvir deles o que
pensam a respeito e concomitante a isto visitar no México a experiência de autodeterminação
jurídica, política e administrativa no pequeno município de Cheran. As conclusões a que
chegamos com a pesquisa de campo confirmam a necessidade de trazer mais informações
sobre o direito de autodeterminação na prática, de modo mais claro, ou seja, precisamos nos
educar para esse tema, para tratar dele com os movimentos sociais indígenas, ambientalistas
ou na academia.
Definimos um plano de trabalho para a visita de campo que contou com a indicação e
intermediação do Prof. Dr. Carlos Marés. Longe de realizar uma pesquisa internacional sobre
índios mexicanos, nosso objetivo era mesmo visitar e conviver um pouco com o povo de
Cheran e relatar nesta tese, a partir de uma análise qualitativa, os resultados dessa visita e
como esta experiência pode ser útil para o direito socioambiental à autodeterminação dos
povos indígenas.
A metodologia foi de observação não participante, através do acompanhamento da
vida cotidiana de membros do conselho maior, ou seja, o núcleo politico-administrativo gestor
da cidade; investigação em documentos públicos disponíveis em bancos de dados oficiais ou
em internet e imagens colhidas em ambientes públicos que ajudassem a contar a experiência
como vimos. Os resultados esperados e alcançados são relatos de viagem e observação de

724
Autodeterminação, livre determinação ou auto-governo.
255

vivências como a que assistimos uma reunião-assembleia de um dos quatro bairros que
formam a grande assembleia comunal de Cheran e análise seguindo referencial teórica da
tese, dos de estudos sobre o caso Cheran.
Ainda em terras do Brasil conversamos a conversar com os advogados militantes
Magdalena e Jorge Fernandes, ambos indicados pelo Prof. Carlos Marés que nos foi
introduzindo na temática regional do território mexicano e Michoacán, Estado em que está
ligado o município de Cheran.
A viagem se deu em Janeiro de 2016 com passagem pela Cidade do México, Mérida,
Cheran e Yucatán. Dois dias visitando Cheran e conversando com as pessoas do lugar. Na
figura 35, a seguir, fotos da chegada a Cheran e imagem da floresta de pinheiros, objeto de
proteção dos Purépecha.

Figura 35 - Imagens de acesso a Cheran (Foto 1: pesquisador e Foto 2: Floresta de


Pinheiros)

Fonte: o autor, 2016.

4.5.1 E quem são os Purépecha?

Cherán (Cherán K’eri) é uma cidade de indígenas da etnia Purépecha localizada nas
montanhas de pinheiros do Centro-Oeste do México, distante 352 Km da capital mexicana.
Uma comunidade de aproximadamente 20 mil habitantes no Estado de Michoacán. Na figura
36 podemos ver a localização do Estado de Michoacán no México725.

725
BLOGSPOT. Mapa Estado de Michoacán. Disponível em:
http://programacontactoconlacreacion.blogspot.com.br/2014/12/ante-la-inoperancia-del-gobierno.html. Acesso
em: 25 Jul.2017.
256

Figura 36: Mapa do Estado de Michoacán no mapa do México

Fonte: Programa Contato com a Criação. 2017.

Michoacán (lugar de pescadores) foi colonizado pelos espanhóis no século XVI.


Contava com aproximadamente 30 mil habitantes. Conhecidos como Purépecha, Purépecha
ou Michuacano ou ainda Michuacas, ou ainda Tarascos (expressão que teria origem a partir da
colonização). Teriam migrado da América do Sul726, de terras donde hoje é o Brasil,
Amazônia. Mesmo com imprecisão alguns historiadores buscam semelhanças entre as
culturas de índios sulamericanos para aproximá-los daqueles mexicanos, sem, contudo dar-
lhes definição concreta. Essa migração teria se dado em 1200 da nossa era. Estenderam seus
domínios por um território em que hoje é ocupado por vários Estados mexicanos, como o
Galisco, Tarítaro, Guerrero. Sua principal cidade-estado era Tzintzuntzan727 (lugar dos
colibris) ou Tariaran (casa do vento). Hoje ainda se podem ver os achados arequeológicos da
antiga cidade, que rivalizou com Tenochtitlan, dos Mexicas, de quem nunca se aliaram, nem
no infortúnio da colonização e extermínio Espanhol.
A religião dos Purépecha era politeísta, semelhante a de outros povos mexicanos,
como os Mexicas; para aqueles o mito da criação se conformava por uma figura masculina
(sol) e uma feminina (lua) que geraram vênus. O cosmos estava formado por 3 mundos728: o
dos mortos – situado abaixo da terra; o mundo dos vivos – situado na superfície; o mundo dos
deuses criadores – situado no céu.

726
QUEZADA, Alfredo Gasca. Cultura Purépecha. Material de estudo da Escola Miguel Cervet. Vídeo.
Publicado em outubro de 2013 no site https://www.facebook.com/dissertiartpub Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=k3BgPEVEchI&t=110s. Acesso em 01 Abr 2017.
727
Ibid.
728
QUEZADA, op., cit., p..
257

O idioma era o P’orhé ou Purépecha729, sem qualquer vinculação com os idiomas


falados por outras nações mexicanas. Viviam da pesca, da agricultura, do trato com a madeira,
tecelagem e artesanato que hoje ainda exsurge na confecção de trajes típicos. No passado
manejavam metais como ouro, prata e cobre – dos quais eram os únicos representantes,
motivo pelo qual – segundo os estudiosos – justificou a duração do seu povo e poderio de seu
império no século XV e início do século XVI. Rivalizavam com os Mexicas, seus vizinhos.
Com a chegada dos espanhóis em 1519 com estes buscaram aliança de paz, que não foi
respeitado pelos colonizadores.
Os Mexicas por sua vez, tinham um vasto império e conseguiram as alianças politicas
e militares que quiseram, restando aos Purépechas/tarascos, huastecas, tlaxcaaltecas 730, a triste
missão de quando em guerra servir como prisioneiros aos rituais Mexicas, em Tenochtitlan.
No Império Asteca (Mexica), supõe-se que nos demais, havia uma organização
administrativa com rituais severos, em que a hierarquia devia ser observada sob penas de
severas punições.731 Havia leis expressas, como é exemplo a codificação de Monctezuma 1,
são 14 prescrições dentre as quais 10 são cerimoniais, de etiqueta, sobre o uso de insígnias,
roupas, adornos etc.732
Em Michoacán, terras dos purépechas ou tarascos, a família era um valor a ser
cultivado, o pai e a mãe respondiam pelos maus-feitos dos filhos, mas o bem maior, o coletivo
vinha sempre a frente733. Inclusive na morte, embora não fosse consenso de todos, esse
princípio, a morte não era vista como uma catástrofe, numa perspectiva estritamente
individual. Quando um preso era submetido a um sacrifício não podia estar triste, que era
considerado mau presságio.
Em comparação as sociedades meso-américanas e os espanhóis Todorov fala de uma
comunicação que se apresenta diferentes não só no idioma, mas de uma comunicação em que
os primeiros estabelecem com a natureza (através das leituras do tempo, das estrelas, do
calendário, da ordem determinada das coisas e do papel determinante que tem a leituras dos
sinais, dos presságios e augúrios)734, o todo e que os espanhóis só conseguem entre si, entre os

729
QUEZADA, Alfredo Gasca. Cultura Purépecha. Material de estudo da Escola Miguel Cervet. Vídeo.
Publicado em outubro de 2013 no site https://www.facebook.com/dissertiartpub Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=k3BgPEVEchI&t=110s. Acesso em 01 Abr 2017.
730
Todorov, p.42.
731
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone
Moi. Martins Fontes: São Paulo, 1992. PDF. p. 39.
732
Ibid., pp. 39.
733
TODOROV, op. cit., p. 38.
734
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a Questão do Outro. 2ª edição. Tradução de Beatriz Perrone
Moi. Martins Fontes: São Paulo, 1992. PDF. P. 39.: Para os indígenas mexicanos aceitar o que está determinado
para cada um é menos em “função de seu conteúdo concreto, individual e único, do que em função de uma
258

humanos. Esse seria, indubitavelmente, o sentido de aderir direitos à natureza, como agora em
2017 a Constituição da Cidade do México estabelece.
Desde a ocupação e vitória dos espanhóis sobre os Purépecha, a religião predominante
é a católica, superada a religião de origem politeísta; legado da colonização e aldeamento pelo
bispo Dom Vasco de Quiroga após os conflitos encetados pelo espanhol Nuño de Gusmán que
em 1530, ano em que foi assassinou o rei Purépecha e destruídos os templos em busca de
ouro.
Cherán K´eri se encontra localizado no centro do estado de Michoacán, na região
denominada como a “Meseta Purépecha”735. Esse povo “se considera como uma das
principais zonas habitadas pelo povo Purépecha”.

4.5.2 Cherán K’éri e a Experiência de Autodeterminação

Atualmente alegam os estudiosos que há descendentes de origem Purépecha em


muitos Estados mexicanos e fora do México, nos Estados Unidos e Canádá. Na bandeira dos
povos de Cherán K’eri está a expressão “juchari Vinapukua”, que significa nossa força, uma
expressão que se popularizou nas lutas de resistência de povos Purépecha de outros
municípios na imensidão das terras indígenas no México.
Em 2011 o momento de maior tensão após três anos de confrontos e enfrentamentos
entre comunitários e narcotraficantes e exploradores de madeira da região, foram refundados
o município como território indígena e implantado um modelo de organização social,
comunitário de usos de costumes. O movimento foi liderado por mulheres e trabalhadores
que, como dito, se insurgiram contra a destruição de sua floresta nativa de pinus e o
desaparecimento de lideranças locais para o narcotráfico. Estas lideranças denunciavam a
destruição das florestas e a atuação do narcotráfico na cidade. Ainda hoje há lideres
desaparecidos nesse período. Nas ruas e paredes da cidade as marcas da luta ainda estão
presentes como se pode ver nas imagens da Figura 37, a seguir:

ordem preestabelecida e a ser restabelecida, da harmonia universal. Seria forçar o sentido da palavra
“comunicação” dizer, a partir disso, que há duas grandes formas de comunicação, uma entre os homens, e outras
entre o homem e o mundo, e constatar que os índios cultivam principalmente esta última, ao passo que os
espanhóis cultivam principalmente a primeira? Estamos habituados a conceber somente a comunicação inter-
humana, pois, o ‘mundo’ não sendo um sujeito, o diálogo com ele é bastante assimétrico (se é que há diálogo).”
735
CONSELHO MAIOR. Disponível em: <http://www.concejomayor.gob.mx/>. Acesso em 01 Abr.2017.
259

Figura 37 - imagens de frases e pinturas com referência à luta pela autodeterminação


de Cheran nas paredes de casas e estabelecimentos não oficiais na cidade. 736

Fonte: Autor, 2016.

A iniciativa não visava em objetivos gerais implantar um modelo organizativo de


autodeterminação dos povos indígenas e a instalação de um governo de usos e costumes.
Foram escolhas que foram sendo construídas no processo de luta e enfrentamentos políticos
contra o Estado de Michoacán e o Estado federal mexicano, no contexto da eleição de 2011.
Considerando o desaparecimento de militantes ambientalistas com a exploração da floresta
pelo narcotráfico. A policia passou a proteger os narcotraficantes, razão pela qual a população
se reuniu e resolver resistir ao narcotráfico e ao poder politico.
Em cada rua montaram uma fogata de um total de 189. As fogatas passaram a ser
unidades politicas locais, de cada trecho que reunia em média 40 pessoas, homens e mulheres.
As fogatas constituíram as lideranças comunitárias que lideram os 4 bairros da cidade, que
juntos formaram o novo governo. A partir das fogatas criaram sistemas comunitários de
debates e decisões em assembleias locais, os pontos de consenso eram levados para as
assembleias de bairros, as decisões dos bairros levadas à assembleia geral, denominada “junta
geral”. As fogatas eram grupos de resistência durante a luta, eram compostas de pessoas da

736
Foto 3: Pensa: não esqueça a causa. Território Cheran. Foto 1 e 2: Enquanto não houver justiça para a
natureza, não haverá entre os seres humanos.
260

comunidade que vigiavam as ruas para não ceder ao cerco, dia e noite. Nas entradas da cidade
montaram barricadas. A cidade ficou limitada o acesso a pessoas de fora da comunidade. Na
figura 38 imagens de um carro queimados que funcionou como barricada e imagem de
pessoas do lugar em torno da fogueira, nas fogatas.

Figura 38 - Imagens de barricada e pintura de uma “fogata” na parede de residências


na cidade

Fonte: Autor, 2016.

Os debates e luta em Cherán tiveram repercussão entre os pesquisadores e


ambientalistas no México que apoiaram o movimento e tiveram papel destacado na definição
dos rumos jurídicos a tomar, eram advogados militantes e pesquisadores do direito a exemplo
de Dr. Orlando Aragón Andrade, da Escola Nacional de Estudos Superiores de Morelia, da
Universidade Nacional Autónoma de México, que atuou como assessor jurídico das
comunidades nos processos intentados contra o Estado de Michoacán e dos recursos à Corte
Judicial Superior do Mexico. Em entrevista de junho de 2014737, Dr. Orlando Aragón
historicisa os caminhos jurídicos empreendidos para obter a vitória na Corte Suprema do
México.
Em termos jurídicos uma demanda foi apresentada pela população de São Francisco
de Cherán ao Instituto Eleitoral de Michoacán - IEM para uma “eleição por usos e costumes”,
uma prática que tinha precedentes em outros Estados da Federação. Em 9 de setembro de

737
ANDRADE, Orlando Aragón. Resumo do Caso Cherán. Entrevista fornecida ao programa de rádio
EscúchaTE, producido por el Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación de México. (TEPJF).
Disponível em:
http://portal.te.gob.mx/prensa/sites/portal.te.gob.mx.prensa/files/Entrevista%20Orlando%20Arag%C3%B3n%20
Andrade%20-%20Esc%C3%BAchateTE%20-%209%20de%20junio%20de%202014.docx. Acesso em: 24
Jul.2017. A entrevista na íntegra está em anexo à tese.
261

2011, o conselho geral do IEM se declarou incompetente para atender à solicitação. O


fundamento no pedido realizado estava no art. 2º da Constituição Mexicana, cujo teor diz:

Art. 2º A Nação Mexicana é única e indivisível. [...]

A consciência de sua identidade indígena deverá ser critério fundamental para


determinar a quem se aplicam as disposições sobre povos indígenas. [...]

O direito dos povos indígenas à livre determinação se exercerá em um marco


constitucional de autonomia que assegure a unidade nacional. O reconhecimento dos
povos e comunidades indígenas se fará nas constituições de leis das entidades
federativas, as que deverão tomar em conta, ademais dos princípios gerais
estabelecidos nos parágrafos anteriores deste artigo, critérios etnolinguísticos e de
descapacidade física.

A. Esta Constituição reconhece e garante o direito dos povos e das comunidades


indígenas à livre determinação e, em consequência, a autonomia para:
I. Decidir suas formas internas de convivências e organização social, econômica,
politica e cultural. [...].
III. Eleger de acordo com suas normas, procedimentos e práticas tradicionais,
às autoridades ou representares para o exercício de suas formas próprias de
governo interno, garantindo que as mulheres e os homens indígenas disfrutarão e
exercerão seu direito de vota e ser votado em condições de igualdade; assim como a
ascender e desempenhar os cargos públicos e de eleição popular para os que tenham
sido eleitos ou designados, em um marco que respeite o pacto federal e a soberania
dos estados. Em nenhum caso as práticas comunitárias poderão limitar os direitos
políticos eleitorais dos e das cidadãs na eleição de suas autoridades municipais. 738
Destaque nosso.

Passamos à descrição em resumo dos principais trechos da entrevista do Dr. Orlando


Aragón de Andrade, os trechos entre aspas são transcrições ipsis litteris.
O entrevistado chama a atenção para o fato de que na primeira solicitação não se
estava pedindo um novo governo de usos e costumes, apenas uma eleição de usos e costumes.
Ou seja, “transcender de uma eleição de partidos políticos a uma regida ou dirigida pelos usos
e costumes da comunidade”.739
Ao chegar na instância do Tribunal Superior Eleitoral o recurso pedia:

738
Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. Actualizada con el Decreto por el que se reforman,
adicionan y derogan diversas disposiciones de la Constitución Politica de los Estados Unidos Mexicanos, en
materia de combate a la corrupción. Puclicado en el Diario Oficial de la Federación en 27 de mayo de 2015.
Tradução livre do autor.
739
ANDRADE, Orlando Aragón. Resumo do Caso Cherán. Entrevista fornecida ao programa de rádio
EscúchaTE, producido por el Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación de México. (TEPJF).
Disponível em:
http://portal.te.gob.mx/prensa/sites/portal.te.gob.mx.prensa/files/Entrevista%20Orlando%20Arag%C3%B3n%20
Andrade%20-%20Esc%C3%BAchateTE%20-%209%20de%20junio%20de%202014.docx. Acesso em: 24
Jul.2017.
262

a possibilidade de organizar uma eleição por usos e costumes e de contar com um


governo por usos e costumes, uma coisa que até o momento não se havia
apresentado ao País... se solicitava não somente o procedimento da jornada eleitoral
por usos e costumes, senão a possibilidade de contar com um Governo Municipal,
com estruturas próprias de acordo com os usos e costumes de uma comunidade. 740

Juridicamente o recurso para instalar um governo de usos e costumes só foi possível


pelo entendimento que a inclusão dos tratados e convenções internacionais no Estado
mexicano integra um bloco de constitucionalidade, efetivo portanto o exercício dele como
norma constitucional, neste caso a Convenção 169 da OIT, a declaração dos povos indígenas
e tribais das nações unidas e a jurisprudência da corte interamericana.
A corte Superior Eleitoral dá ganho de causa para a comunidade de Cherán em
novembro de 2011. Segundo os usos e costumes de Cheran o novo governo seria formado
“por um conselho de anciãos que em Cherán é conhecido como Conselho Maior de Governo
Comunal, integrado por duas pessoas.”
A sentença determinou que a comunidade elegesse qual seria a estrutura de governo.

A forma de governo a partir de distintos conselhos coletivos e encabeçados por um


conselho maior de governo comunal, que está composto por 12 pessoas, e uma série
de conselhos operativos. É um governo de caráter coletivo. A responsabilidade está
dividida em várias pessoas, todos eles, todos os funcionários foram eleitos em
assembleias, é uma democracia direta, onde as assembleias tomam as determinações
em relação a eleição e as responsabilidades da administração publica. 741

O Conselho maior de Governo comunal, como os demais conselhos operativos, foram


eleitos pelos comuneros de foram direta por bulto, por acumulação de gente: quando votam as
pessoas vão para trás do eleito formando uma fila, quem fica com a fila maior é quem ganha.
Em reação o Estado de Michoacán resolve produzir uma norma às presas que não inclui a
eleição e tampouco o governo de usos e costumes, essa lei afrontava a decisão do tribunal
superior eleitoral mexicano. A solução foi interpor um recurso na Corte Constitucional
Mexicana, uma controvérsia constitucional. Após anos o pleno da suprema corte decidiu em
favor de Cherán, tornando sem efeito e inconstitucional a lei de Michoacán, o que fez
restabelecer a decisão do Supremo Tribunal Eleitoral.

740
ANDRADE, Orlando Aragón. Resumo do Caso Cherán. Entrevista fornecida ao programa de rádio
EscúchaTE, producido por el Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación de México. (TEPJF).
Disponível em:
http://portal.te.gob.mx/prensa/sites/portal.te.gob.mx.prensa/files/Entrevista%20Orlando%20Arag%C3%B3n%20
Andrade%20-%20Esc%C3%BAchateTE%20-%209%20de%20junio%20de%202014.docx. Acesso em: 24
Jul.2017.
741
Ibid.
263

A Suprema Corte de Justiça Mexicana então com sua sentença reconheceu o direito
dos povos indígenas a serem consultados através de suas instituições representativas em casos
de produção normativa que as afeta.
Os Purépecha são os ascendentes dos atuais índios de Cherán. Na região noroeste do
estado mexicano de Michoacán, principalmente na área das cidades de Cherán K’eri.742 Esta
decisão referida acima na entrevista do Assessor Jurídico da comunidade continua sendo
desde 2014 o Único exemplo de autonomia eleitoral indígena no século XXI com repercussão
na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral e da Suprema Corte de Justiça da Nação
mexicana.743
O acolhimento da controvérsia interposto pelo Conselho Maior de Cherán junto à
Suprema Corte de Justiça da Nação obteve decisão do colegiado pleno em 2014 com
sentença registrada sob o nº 25285744. Na decisão o Estado mexicano reconhece direito à
autodeterminação dos índios, nos termos do Art. 2º da Constituição mexicana, conforme se
depreende do voto do ministro Arturo Zaldívar Lelo de Larrea que sustentou: “Los pueblos y
comunidades indígenas tienen derecho a organizarse de las formas que mejor les acomode,
incluidos los municipios indígenas”745. O Ministro José Ramón Cossío Díaz fez notar que os
“pueblos indígenas tienen derecho a la autodeterminación, y por lo tanto a todo tipo de
organización, como la municipal”.746
Desde 2012 Cherán vive a experiência da autodeterminação.
É uma cidade simples, do interior. A exemplo das pequenas e humildes cidades do
Brasil. São trabalhadores do campo agricultores e pecuaristas e na cidade atuam no comércio
e serviços, tudo muito simples. A figura 39 algumas imagens da cidade e sua área central,
comércio e administração sede do Conselho Maior.

742
QUEZADA, Alfredo Gasca. Cultura Purépecha. Material de estudo da Escola Miguel Cervet. Vídeo.
Publicado em outubro de 2013 no site https://www.facebook.com/dissertiartpub Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=k3BgPEVEchI&t=110s. Acesso em 01 Abr 2017.
743
VENTURA PATINO, María del Carmen. Proceso de autonomía en Cherán: Movilizar el derecho. Espiral
(Guadalaj.), Guadalajara , v. 19, n. 55, p. 157-176, dic. 2012 . Disponível em:
<http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1665-05652012000300006&lng=es&nrm=iso>.
Acesso em 02 abr. 2017.
744
SUPREMA CORTE JUDICIAL DA NAÇÃO. Decisão 25285 de 2014. Controversia Constitucional
32/2012. Municipio De Cherán, Estado De Michoacán. 29 De Mayo De 2014. Ponente: Margarita Beatriz Luna
Ramos. Secretaria: Guadalupe M. Ortiz Blanco. Disponível em;
http://sjf.scjn.gob.mx/sjfsist/Paginas/Reportes/ReporteDE.aspx?idius=25285&Tipo=2&Tema=0. Acesso em: 02
Abr 2017.
745
“Os povos e comunidades indígenas tem direito a organizar-se das formas que melhor os acomode, incluídos
os municípios indigenas.” Tradução livre do autor.
746
SUPREMA CORTE JUDICIAL DA NAÇÃO. Controvérsia. Disponível em:
http://www.animalpolitico.com/2014/05/scjn-equipara-al-gobierno-comunal-de-cheran-con-un-ayuntamiento-y-
acepta-controversia/. Acesso em 02 Abr 2017.
264

Figura 39: Imagens da cidade de Cherán, área central.

Fonte: o autor, 2016.

Na praça central um museu foi dedicado ao sítio de 15 de abril de 2011, data oficial da
luta. No banner a explicação dos motivos do início da luta e um chamado para que as pessoas
estejam alerta. Figura 40, banner de divulgação do museu de sitio.
265

Figura 40: Banner divulgando o Museu de Sítio e a


história de luta de Cherán

Fonte: o autor, 2016.

O governo de usos e costumes atua em área da politica, administração, planejamento,


educação, saúde, segurança e judicial em causas que não envolvam a Federação ou o Estado
de Michoacán. As matérias que são próprias aos interesses do município foram repassadas à
gestão de usos e costumes. Matérias como direito penal ou questões jurídicas da alçada
estadual ou da federação continuam sendo regido por estes entes. O diário oficial utilizado é o
do Estado de Michoacán. A seguir, na figura 41, um painel de advertência para o limite de
velocidade no centro de Cherán, sob a reponsabilidade do Conselho Maior de Cherán.
O orçamento e financeiro é repassado para Cheran igualmente o é para os demais
municípios do País. Não há universidades na cidade, mas na cidade próxima, uma
Universidade para indígenas, com cursos de Licenciatura.
266

Figura 41 - Imagem de placa de limite de velocidade


no centro de Cheran

Fonte: o autor, 2016.

A comunicação dos atos administrativos ou comunicados educativos se dá de modo


simples em cartazes, como este na figura 42, cuja transcrição em português informa: “Evita a
multa, não jogue lixo, cuida da água e do bosque. Trabalhemos juntos por um Cherán limpo.
Conselho Maior. Conselho de Bairro. 2015-2108”.

Figura 41: Comunicado do Conselho de Bairro

Fonte: o autor, 2016.


267

A fiscalização sobre o uso de recursos públicos é objeto de acompanhamento pelo


Estado. Na figura 43, uma comunicação de fiscalização do Estado de Michoacán na
companhia de água de Cherán e uma autorização de instalação sanitária do Governo estadual.

Figura 43: Documentos de atual do Estado em Cherán.

Fonte: Autor, 2016.

O Munícipio está dividido em 4 bairro conforme descrição no mapa a seguir, figura


44.
Figura 44 - Mapa de Cheran com divisão por bairros

Fonte: Autor, 2016.


268

Chegamos no final do dia à Cheran, fomos de carro alugado. O único hotel da cidade
era afastado um pouco do centro da cidade, na verdade uma pousada como das mais simples
que temos aqui no Brasil. O frio da montanha contrastava com o fato de não ter aquecedor no
hotel e as portas não tinham vedação contra o frio. As mantas feitas à mão não estavam
conseguindo conter o frio. Para jantar, o único lugar acessível era uma lanchonete com
sanduiches e frutas.
No escritório do conselho comunal. Fomos recebidos em uma sala simples com dois
ambientes separados por uma divisória com vidros. Na primeira sala a secretária que escreve
em um computador all in one, acompanhado de uma impressora com xérox. Em cima da
pequena mesa de trabalho uma máquina de escrever elétrica em funcionamento. Há uma mesa
de trabalho com cinco cadeiras repleta de documentos e processos – parece ser a mesa de
despacho do conselho, nem todos os membros estavam presentes. A porta de acesso aberta, os
que chegam são recebidos pela secretária, sentam-se quando querem e bebem água. Em
construção na sala seguinte um plenário simples de madeira. As paredes já estão pintadas com
motivos da luta. É onde registramos uma foto com um dos conselheiros. Figura 45, a seguir.

Figura 45 - plenário do Conselho Maior ainda em


construção

Fonte: o autor, 2016.

Tivemos oportunidade de conversar com dois conselheiros e a partir deles fomos


convidados a acompanhar uma reunião do bairro sede, na sala de reuniões do conselho maior,
no térreo do prédio, uma sala média com portas e janelas simples, abertas ao público, mas
269

constituía uma assembleia do bairro, só podia votar pessoas com 18 anos ou mais. na reunião
havia aproximadamente 80 pessoas. A reunião foi às 18 horas. Cada bairro tem um
coordenador que é funcionário remunerado pelo Conselho Maior, a qualquer tempo ele pode
ser destituído pela assembleia, mediante votação. Cada bairro como referido antes é composto
por fogatas que se reúnem mediante convocatória para indicar representantes para os
conselhos operativos que compõe a estrutura de governo comunal. Anexo C, juntamos uma
cópia de uma convocatória na íntegra. No ato convocatório eles se denominam Comunidad
P’urhepecha de Cherán. A reunião tratou sobre temas previamente divulgado e as discussões
seguiram o estilo de democracia direta, conduzido por uma mesa composta de conselheiros do
Conselho Maior, coordenadores de Bairro e outros membros de conselhos operativos. A
discussão em nada destoa de nossas reuniões de associação nem no tom da voz. Alto e
agressivo quando convém. Dentre os temas abordados estava a apreciação de solicitação de
uma empresa de telecomunicação para instalar uma antena para captar sinal para celular, que
não foi aprovada, considerando os riscos à saúde. Dentre as denúncias realizadas pela
assembleia chamou a atenção as falas de duas pessoas, mais exaltadas: a primeira uma
senhora que cobrou transparência no uso do dinheiro da cidade, reclamou de contratação de
familiares dos coordenadores de bairro para empregos públicos, da falta de presença do
coordenador no mercado público, como quando em campanha; a segunda reclamava do
sistema de usos e costumes, que não era bom, que sentia falta do modelo antigo, reclamou,
reclamou, reclamou... ninguém respondeu ou deu atenção, até que a reunião se esvaziou e
foram todos embora. Pareceu ser alguém ligado ao governo anterior queixoso de ver iguais
problemas nos dois governos.
Sob a responsabilidade do Conselho Maior está a atuação do judiciário, e polícia
comunitária. Nos casos mais graves ou em crimes, ou em casos de interesse do Estado ou da
Federação assim determinado na Constituição a competência passa para o Estado ou para a
Federação. A estrutura é suportada pelo Conselho Maior. Ao todo são 270 funcionários.
Quando o regime foi aprovado se formou um conselho interino para a transição.
As assembleias gerais costumam ter até 700 pessoas. Podem participar pessoas de 16 anos,
mas só com 18 ou mais podem votar.
Sobre os projetos educativos coletivos destacaram o projeto contexto e o desfile de 15
de abril – de comum acordo com a comunidade, comemorativo municipal. Todos os atos do
conselho são publicados.
Os povos de Cherán se denominam povos originários, índios e mestiços Purépecha.
tem aspecto naturais comuns aos mexicanos. Os trabalhos são coletivos e atuam com respeito
270

aos mais velhos. Nas conversas com os conselheiros eles se dizem otimistas com o futuro pelo
modo como estão vendo as pessoas que vem ao Conselho Maior. Um dos conselheiros com
que conversamos respondeu que leu Marx e outros autores de esquerda, mas que Cherán não é
igual a outros modelos de governo, não há réplica. Perguntado se é um regime comunista ele
respondeu que é um governo de usos e costumes, não tem outro nome.

4.6. OUTRO DIREITO INDÍGENA É POSSÍVEL?

A luta pela reforma agrária e valorização da cultura indígena é o ponto de partida que
desencadeou no México uma revolução que culminou com um movimento constitucional
inédito na América Latina. E consequentemente inaugura o discurso dos direitos humanos
sociais à igualdade, à propriedade, ao trabalho, direitos das mulheres e das crianças e
adolescentes na Constituição de 1917.
Esse mesmo povo, sob o influxo de lutas populares, legam ao mundo o primeiro
exercício jurídico e politico de autodeterminação, com todas as cores da realidade de um país
latino-americano.
A trajetória histórica por sua vez nos remete a tramas perpassadas por lutas, revoltas,
conquistas revezes, permeado pela fragilidade humana em seu contorno político e social. Das
batalhas vencidas e das traições à vontade do povo.
Um roteiro que nos inspira a pensar sobre o momento político e social da
contemporaneidade, sobretudo latino-americana e a mensagem derradeira de que vale a pena
lutar mesmo diante de consequências tão danosas para a vida de seus líderes no caso da
Revolução Mexicana e das dificuldades que enfrentaram os Purépecha de Cherán.
Em linhas gerais a atuação dos países do Sul ainda quando atuam em bloco,
repercutem em sua legislação aquilo que Jean Ziegler chama de ódio ao ocidente, um ódio
racional que busca uma justiça restauradora na medida em que renovam a memória em torno
da colonização como elemento destruidor da sociedade primitiva e inaugural dos tempos em
que a memória não se aniquilou, provocando na contemporaneidade a resistência dos povos
indígenas que buscam reafirmar sua identidade.
271

CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÕES

Índios é a denominação dada pelos europeus para designar aqueles que localizados na
“errônea” rota para as Índias, realizada por espanhóis e portugueses, em meados do Século
XVI, que buscavam um caminho marítimo alternativo àquele realizado como destino à Índia e
que tinha pela frente o revoltoso mar que circundava o extremo sul do continente africano.
Essa versão literária esculpida e descrita em manuais de ensino fundamental e médio no
Brasil já não se deve aceitar. Houve um processo jamais visto na história mundial de
destruição de culturas originais antecedidas pelo extermínio de milhões de pessoas no
território compreendido atualmente como América Latina. Os objetivos traçados por
espanhóis e portugueses estava claro: apropriação das terras para instalação de um novo
processo de colonização fundado na exploração da natureza e escravização da mão-de-obra
indo-americana.
Esse infeliz episódio reinaugura um novo tempo na história do antigo continente
europeu, e sela o início da modernidade que nasce com a descoberta desse novo mundo e com
ele uma nova humanidade tão diversa do europeu tradicional que por ele foi negado como
gente. Para os indígenas todo o processo foi um misto que envolveu técnica e armas de guerra
obsoletas pelos nativos e a crença desde em seu destino previsto, mitificação do europeu
como deuses que retornaram para ocupar seu mundo, sua terra. E o que se seguiu foi a
edificação de uma cristandade mestiça e sincrética com as poucas almas que restou viva após
a invasão e mortes.
A nova dinâmica imposta aos povos originários gerou uma sociedade dividida em
classes sociais para exploração do trabalho e dos bens apropriados e comercializados em uma
dinâmica de capitalismo-mercantil nascente que resultou em sociedades de capitalismo
subdesenvolvido e periférico que continua sem assistir às condições básicas sociais do seu
povo, ainda no século XXI. Sem um regime politico em que seus representados confiem,
vivem em constante efusão social e marginalização de suas classes menos favorecidas, que
são alijadas dos bens essenciais à sua sobrevivência.
Neste cenário uma população tradicional no Sítio Poço Dantas, em Crato-CE,
reivindica sua identidade como índios Cariri. A tese intitulada Identidade Índios Cariri,
Identidade e Direitos no século XXI confirma a identidade jurídica desses índios
considerando a sua etnogênese como processo social capaz de afirmar a identidade étnica do
grupo social a partir de uma identidade já conhecida, como em um movimento de retorno à
272

identidade original e legitimamente reconhecida pelo Estado brasileira e perdida ou alterada


ao longo do tempo em associação a pertinência dos institutos normativos do Direito
Constitucional brasileiro, normas internacionais, normas complementares e ordinárias e
decretos normativos aplicáveis à espécie; sob o enfoque teórico do Direito Socioambiental.
Este processo de etnogênese é muito comum no Nordeste do Brasil desde os anos
1970 e se caracteriza por comunidades tradicionais ou aculturadas, com território definido e
documentado de aldeamentos extintos, com referências religiosas e culturais marcantes ou
comunidades de camponeses e agricultores, alguns negros e negras resultante da mestiçagem
vivenciada no processo de colonização, sem registro de territorialidade decorrente dos
aldeamentos, ou religiosidade e cultura perpetuada.
A etnogênese, como processo social, resultou em empoderamento e recuperação da
capacidade de se pensar e ser índios. Incluindo a desvelamento da identidade, da realidade, de
tomada de consciência a partir de elementos de integração entre povos indígenas de regiões
próximas ou distantes, mas com cultura e etnias que se aproximaram seja pela genealogia ou
pelos rituais, dentre os quais se destaca o toré, esse ritual religioso comum para identificação
de grupos indígenas do Nordeste.
A tese traduz movimentos distintos de investigação, cujos resultados procuramos
resumir nesta conclusão. O primeiro e importante título é aquele referente a caracterização da
região do Cariri e dos Kariris com elementos indissociável da identidade dos Cariri do Sítio
Poço Dantas, sua ancestralidade, sua memórica coletiva, sua cultura e direitos.
O segundo e não menos importante título se reporta à análise do direitos
socioambiental no Brasil desde 1500, em rápidas análises, com destaque para as instituições
normativas que influenciaram a sociedade direta ou indiretamente os Cariri do Sítio Poço
Dantas na reivindicação de sua identidade e consequentemente dos direitos que fazem jus.
O terceiro título intrinsecamente ligados aos dois anteriores conforma o conjunto
conceitual, normativo e socioambiental do direito à identidade dos Cariri. Em linhas gerais,
Conclui-se:
a) Sobre a proteção jurídica dos índios no direito brasileiro:
A proteção dos indígenas no direito brasileiro, podemos concluir, passou por avanços
significativos que se traduziu na luta e na conquista dos artigos 225, 187, 231 e 232 e os
artigos 115 e 116 da constituição federal de 1988. São direitos coletivos ao meio ambiente
sadio, à função social e ambiental da propriedade, do direito à identidade e à terra indígena e
os direitos culturais dos povos que compõe o mosaica cultural brasileiro. Com o ingresso
273

desses direitos na constituição, foram eles positivados e permitiram o exercício no plano


judicial desses direitos socioambientais.
As políticas públicas traçam caminho para o diálogo politico-administrativo do Estado
com a Sociedade. Em matéria de direitos indígenas às politicas públicas desde a criação do
Serviço de Proteção ao Índio posteriormente da sua mudança para Fundação Nacional do
Índio. É no pós-constituição que as políticas públicas ganham caráter democrático em sua
construção, no que pese as idas e vindas das liberdades e restrições dessa liberdade no diálogo
com o Estado. Dentre as politicas que foram analisadas nesta tese merece destaque conclusivo
os avanços e limitações da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras
Indígenas – PNGATI, em razão do alcance pretendido pela norma à proteção, a recuperação, a
conservação e o uso dos recursos naturais das terras e territórios indígenas, que amplia o
conteúdo inserto na CF/88. Entre as limitações, contudo que essa politica enfrenta, como a
falta do protagonismo e autonomia sociocultural dos povos indígenas, em termos gerais não
está na agenda principal do indígenas no Brasil, a exemplo do que confirma nossa pesquisa de
campo, em que os Cariri do Sítio Poço Dantas preferem o acesso a direitos através do
Estado/FUNAI.
Como pontos positivos dessa politica vimos avanços entre a implementação parcial dos
objetivos da PNGATI, constante do eixo dois: governança e participação indígena, quando o
Governo realiza planejamento participativo em terras indígenas, focando no planejamento e
orçamento da União para 2016/2019 e no eixo sete: capacitação, formação, intercâmbio e
educação ambiental alcançado em parte no processo de planejamento e participação dessas
comunidades no zoneamento das terras indígenas. Infelizmente antes mesmo que esta tese
fosse concluída vemos estes avanços comprometidos, os recursos para cumprir o plano
orçamentário (PPA) da FUNAI estão sendo contingenciados pelo governo federal.
Outros eixos, como o três, relativas às áreas protegidas, unidades de conservação e
terras indígenas; eixo quatro, relativos à prevenção e recuperação de danos ambientais e eixo
cinco, seis e sete e um, relativos ao uso sustentável de recursos naturais e iniciativas
produtivas indígenas; propriedade intelectual, patrimônio genético, proteção territorial e dos
recursos naturais, sequer registrou-se avanços.
Os resultados, contudo da realização do etnomapeamento e etnozoneamento de terras
indígenas, previsto no art. 2º do decreto de criação da PNGATI estão disponíveis no site da
FUNAI, são ferramentas que tem fornecido bases de diálogo para a elaboração de outro
instrumento que consiste nos planos de gestão territorial e ambiental das terras indígenas –
PGTAs. Sobretudo no contexto de desmonte dos pequenos avanços esses documentos servem
274

de norte para luta dos povos indígenas e para o exercício da cobrança frente ao judiciário do
cumprimento desses direitos.
b) Sobre a identidade dos índios Cariri do Sítio Poço Dantas:
Antes da tese os Cariri eram índios autodeclarados no censo do IBGE, somente. Sem
etnia definida. A pesquisa bibliográfica empreendida para a tese demonstrou, todavia, que a
etnia Kariri é de alcance mais largo do que os habitantes do Sítio Poço Dantas, do Cariri no
Ceará, se estendem pelo Nordeste. No Ceará há duas comunidades Kariri, nenhuma ainda
com processo junto à FUNAI, em Crateús e São Benedito.
Após a Convenção 169 da OIT e ratificação do Estado brasileiro à referida convenção,
elaborou-se o entendimento que o processo de auto-atribuição e consciência de “ser índio”
pelos grupos sociais tem sido a condição principal para o reconhecimento do Estado. À auto-
atribuição de ser da etnia Cariri constatada na pesquisa de campo, soma-se ao fato a
consciência e memória coletiva dos Cariri em se identificar índios Cariri e ter esse processo
traduzido em práticas coletivas da cultura, da religiosidade, da relação com a terra Cariri
presentes no seu dia-a-dia. Um destaque a mais nessa identificação que merece relevância é a
documentação original-oficial registrado em cartório do sobrenome “Cariri” em seus
documentos de registro de identificação pessoal.
Diante do quadro analítico que vimos construindo e dos dados colhidos na pesquisa de
campo podemos afirmar que os membros da comunidade tradicional do Sítio Poço Dantas, em
Crato Ceará, reúnem as condições jurídicas de ser identificados como Índios da etnia Cariri. A
identidade jurídica a qual nos referimos nesta tese é reunião dos elementos de composição
segundo o direito socioambiental da identidade étnica. Considerando o cumprimento segundo
interpretação realizada no corpo desta tese de que os mesmos são remanescentes dos Índios
Kariri/Cariri do Cariri e ocupavam o território ancestral preservando parte de sua cultura e
modos de vida.
Que os Cariri do Sítio Poço Dantas em etnogênese, descendem dos índios Kariri/Cariri
que habitaram as terras do Cariri, porção Sul do Ceará e sua territorialidade está associada aos
processos de aldeamentos realizados no Cariri, em Missão Nova (Missão Velha) e Missão do
Miranda (Crato) no período aproximado de 1741 a 1780, quando oficialmente os
colonizadores/sesmeiros e seus descendentes ou proprietários de terras e autoridades que o
sucederam, pretenderam expulsar todos os Cariri do seu vasto território na encosta da
Chapada do Araripe.
A reminiscência que traz essa identidade quando analisada sobre o fato que a gerou, dá
conta de que não foi tão simples assim a pretensa extinção e expulsão dos Kariri/Cariri do
275

Cariri. Além das referências citada nesta tese, em que afirma a existência de mais de 2 mil
entre índios e mestiços morando na vila do Crato ainda em 1838. Estes espalharam
descendentes que chegaram ao tempo presente.
Os documentos oficiais analisados em relatos bibliográficos emitidos pelo presidente
da província do Ceará em 1863 aos ministérios imperiais do Brasil confirmam o caráter
miscigenado das populações de índios aldeados, ou seja, que os descendentes das antigas
raças ainda se encontram em grande número localizados nos aldeamentos já extintos, se bem
que misturados na massa geral da população. A etnogênese dos índios do Nordeste,
expressam, por isso, a mistura étnica como uma constante no processo de identificação dos
índios não isolados do Brasil.
A etnogênese, entendemos ser um processo social que o direito socioambiental está
defendendo como relevante na construção da identidade de um povo. Por ser um processo
lento que se cria e se recria, fundado na tradição e com raízes fincadas na cultura, precisa
dedicado estudo para encontrar as particularidades que resultam no reconhecimento das
identidades de grupos sociais, a exemplo dos Cariri que foram se descaracterizando com o
passar do tempo.
Conclui-se também que os Cariri, fugidos dos aldeamentos ou da expulsão, resistiram
e formaram comunidade tradicional no Sítio Poço Dantas, distrito de Monte Alverne, no
Crato. Essa nova comunidade é também uma nova identidade que exige do Estado o
reconhecimento e direitos, um novo direito, previsto sua substância jurídica inserto na
Constituição, art. 231 e art. 232.
Na identificação dos Cariri deve-se levar em conta a condição do grupo étnico de
identidade indígena desconsiderando as famílias que possuem repertórios não idênticos de
memórias e significados sobre suas relações históricas com o território que os envolve.
Considerando também que o processo de territorialização e etnogênese dos Cariri do
Sítio Poço Dantas tem características de mestiçagem, ou seja, são índios misturados com
povos de descendência africana de escravos da Casa da Torre que migraram para o Cariri, ou
escravos trazidos pelos fazendeiros de gado, ou de mineração (Missão Velha) e/ou senhores
de engenho, muito comuns no vale da Salamanca, atual município de Barbalha no Cariri. Não
podendo neste estudo precisar a origem exata dos negros. E que esse processo de mestiçagem
tem registros tem correlação com documentos e provas de igual aceitação pelo SPI, como no
caso de mestiços índios Pancaraús-Xocó.
Como referenciais normativos balizadores concluimos por reconhecer a positividade e
vinculação das teses levantadas com os direitos que os ampara. Especialmente:
276

Os direitos coletivos socioambientais dos indígenas inscritos na Constituição


brasileira, art. 231 e 232 e o conjunto normativo complementar, regulamentador, ou ordinário
nela recepcionado, constitui arcabouço jurídico capaz de realizar e garantir os direitos à
identidade dos autoidentificados índios Cariri do Sítio Poço Dantas, em Crato. Assim
considerado sob o nível de confiabilidade que os membros do grupo social demonstrou no
ordenamento jurídico nacional e suas instituições.
Para cada um o seu direito, para cada grupo étnico indígena identificado os seus
direitos coletivos, o que representa um conjunto de direitos e deveres. O primeiro deles à
identidade e à terra indígena e em consequência dos elementos culturais, como o nome, o
modo de organização social usos e costumes, igualmente o acesso a politicas públicas
indigenistas.
A respeito da terra indígena concluímos que no caso dos Cariri do Sítio Poço Dantas
há questões a resolver: a) definir a extensão da terra indígena necessária à sobrevivência do
grupo étnico; b) resolver a questão da área do assentamento missão do Miranda usurpado
com a expulsão dos Kariri. Questão que pode ser remediada com desapropriação de área
territorial semelhante pelo Estado; e c) definir o regime de uso coletivo e de superação da
propriedade privada da terra que hoje ocupam, considerando que no local a propriedade está
sob a posse e em alguns casos propriedade dos Cariri, mas em extensão que não atende às
necessidades da coletividade; d) avaliar se há necessidade de extrusão.
c) Sobre a proteção jurídica dos índios no cenário politico de novos direitos no
século XXI:
Vivemos uma crise civilizacional e do direito fundando no padrão liberal e tradicional
do Estado-Nação, fundado na manutenção de privilégios das classes dominantes e exploração
das classes desfavorecidas e alijadas do processo de desenvolvimento capitalista que cada vez
mais os deixam marginalizadas e segregadas nas periferias, sem acesso a serviços e bens e
direitos substantivos à sua sobrevivência.
Tendo nascido da sociedade e suas divisões de classes, o Estado não teve em sua
origem a legitimidade para se estabelecer, exceto pelo uso da força. A América Latina, neste
cenário de crise do Estado tem que administrar em conjunto a crise étnica e social – legado da
colonização. As reflexões em torno das possibilidades de um giro de-colonial, que de um lado
garanta direitos para os povos indígenas e tradicionais “encobertos” desde 1492, do outro
construa direitos e/ou uma perspectiva de Estado Plurinacional, que ampare a etnodiversidade,
o multiculturalismo nasce como alternativas. Seu ponto de tensão é a socialização do poder,
afastados os supostos de uma sociedade capitalista homogênea para um Socialismo com a
277

estatização de todos e cada âmbito do poder; o objetivo dessa proposta alternativa é promover
igualdades em bases sociais justas com garantias de direitos políticos e civis, dentre eles o
direito à identidade. Esta tese conclui, a partir do confronto teórico desta análise e o olhar
empírico sobre os Cariris mediar com o Estado nacional os direitos insertos na Constituição,
como medida preferencial.
A título de considerações finais podemos acrescentar que nos inspira pensar sobre o
momento político e social da contemporaneidade na América Latina a mensagem em forma
de experiência de que a luta vale a pena, mesmo diante de consequências tão danosas para a
vida de seus líderes no caso da Revolução Mexicana e das dificuldades que enfrentaram os
Purépecha de Cherán, eles construíram experiências exemplo para o mundo ao pautar no
primeiro caso os direitos sociais na agenda dos direitos humanos e no segundo caso a
autodeterminação no modelo de governo de usos e costumes, provar para todos que é possível
recuperar a capacidade dos povos originários, já adaptados ao tempo presente, de fazer um
governo em bases diversas daquela imposta pelo ocidente.
Acerca do papel do Estado-Nacional na dinâmica dos direitos indígenas no Brasil
concluímos:
A convivência das comunidades indígenas no Estado Nacional e a superação do
modelo de Estado previsto da Constituição do Brasil, conforme indicou esta tese não é
prioridades a autodeterminação, seja porque é contrário à autodeterminação ou por
desconhecer o seu significado. Ou, ainda, a comunidade está compreendendo que ainda não é
o caso de deixar o Estado Nacional como protetor dos direitos indígenas.
Em qualquer cenário de solução dos problemas enfrentados perante o Estado, O
caminho para a mudança é a participação popular, cuja ideia central corroboramos com Carlos
Marés, o sentido da soberania do Estado contemporâneo, Estado Plurinacional, está ligado à
ideia da democracia ou participação. Esta opção contrasta com a perda sistemática da
soberania dos Estados contemporâneos para o sistema financeiro nacional e internacional, e
sua inserção nos mecanismos de financiamento politico e corrupção eleitoral, que tem
comprometido a legitimidade dos respectivos Estados.
Como proposição final no caso dos Cariri do Sítio Poço Dantas espera-se com este
estudo apoiar a comunidade indígena do Sítio Poço Dantas para ingressar com processo de
reconhecimento e identificação formal dos índios Cariri do Sítio Poço Dantas pela
comunidade organizada em Associação, com a informação à FUNAI dos dados constantes
dessa tese. Observando especialmente a definição da extensão da terra indígena necessária à
sobrevivência do grupo étnico, a resolução da questão da área do assentamento missão do
278

Miranda usurpado com a expulsão dos Kariri. Questão que pode ser remediada com
desapropriação de área territorial semelhante pelo Estado e a definição o regime de uso
coletivo e de superação da propriedade privada da terra que hoje ocupam, considerando que
no local a propriedade está sob a posse e em alguns casos propriedade dos Cariri, mas em
extensão que não atende às necessidades da coletividade.
279

REFERÊNCIAS

ABREU. Capistrano. Descobrimento do Brasil e Povoamento. Estudo publicado no Recife:


Jornal do Commercio, de 12, 29 de agosto e 10 de setembro de 1899 e reproduzido, refundido
e ampliado na “América Brasileira”, números 32, 33 e 34 de agosto, setembro e outubro de
1924. P. 180. PAIM, Antonio (Org.). Projeto Leitura Básica. Centro de Documentação do
Pensamento Brasileiro. 1982. Salvador: Disponível em:
http://www.cdpb.org.br/capistrano_de_abreu[1].pdf. Acesso em: 13 mar. 2017.
ADAM, Lucien. Grammaire Comparée des Dialectes de la Famille Kariri. Paris: J.
Maisonneuve, Libraire-Editeur. 1897.
ALICIA, Sagra. A Mulher na Revolução Mexicana. Tradução: Marcos Margarido.
Disponível em:
http://www.litci.org/pt/index.php?option=com_content&view=category&id=732:revista-
correio-internacional&layout=blog&I. Acesso em 15 Jun 2015.
ALTMAN, Max. Hoje na História: 1917 - É proclamada a Constituição mexicana.
Disponível em: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/9397/conteudo+opera.shtml.
Acesso em: 16 Jun 2015.
ALVES, Henrique Napoleão. Considerações acerca da importância histórica da
Constituição do México de 1917. Revista Jus Navigandi: Teresina, ano 11, n.
1272, 25 dez. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9324>. Acesso em: 15 jun
2015.
AMORIM, Celso. O complexo de vira-lata. Carta Capital. 2011. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/politica/a-obsessao-e-o-complexo-de-vira-lata. Acesso em:
05 Abr 2017.
ANDRADE, Orlando Aragón. Resumo do Caso Cherán. Entrevista fornecida ao programa
de rádio EscúchaTE, producido por el Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación
de México. (TEPJF). Disponível em:
http://portal.te.gob.mx/prensa/sites/portal.te.gob.mx.prensa/files/Entrevista%20Orlando%20A
rag%C3%B3n%20Andrade%20-%20Esc%C3%BAchateTE%20-
%209%20de%20junio%20de%202014.docx. Acesso em: 24 Jul.2017.

ANDRADE, Ugo Maia. Dos Estigmas aos Emblemas de Identidades. Revista de Estudos e
Pesquisas. FUNAI, Brasilia, vol 1. Nº 1, p. 99-139. Jul. 2004. Disponível em:
<www.funai.gov.br>. Acesso em: 22 Jul.2017.
ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará: Desde os tempos
primitivos até 1850. Recife: Typrografia do Jornal do Recife, 1867.
ARAÚJO, Antonio Gomes de. A Cidade de Frei Carlos. Coleção Estudos e Pesquisas.
Volume V. Crato: Faculdade de Filosofia do Crato/UFC, 1971.
ARAUJO, Danielle. Agouros de um Espelho Partido. Luta e resistência no processo de
afirmação étnica dos índios do Nordeste. O caso dos Tapuia-Kariris de São Benedito.
Revista Espaço Ameríndio. Vol. 10. Nº 1. 2016. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/index.php/EspacoAmerindio/article/view/65039/37847>. Acesso em: 21
Jul.2017.
280

ARGENTINA. Instituto Nacional de Estatística y Censos Censo nacional de población,


hogares y viviendas 2010: Censo del Bicentenario: resultados definitivos, Serie B nº 2. - 1a
ed. - Buenos Aires: Instituto Nacional de Estatística y Censos - INDEC, 2012. v. 1, 378 p. ;
23x32 cm.
ARRUTI, José Mauricio P. A. Etnogênese Indígena. Povos Indígenas no Brasil 2001/2005.
São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006, p. 31. Disponível em: <
https://www.socioambiental.org/pt-br/o-isa/publicacoes/povos-indigenas-no-brasil-
20012005>. Acesso em: 19 Jul.2017.
________. A Produção da Alteridade: o toré e as conversões missionárias e indígenas. VII
Congresso Luso-Brasileiro de Ciências Sociais. A Questão Social no Novo Milênio. Coimbra,
2004. p. 4. Disponível em:
<http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel47/JoseArruti.pdf>. Acesso em: 18
Jul.2017.
________. Mobilizações étnicas na América Latina. Revista Tempo e Presença. Chamas da
liberdade. Multietnicismo. Nº 342. Julho/Agosto de 2005. Disponível em:
https://www.academia.edu/5285140/Mobiliza%C3%A7%C3%B5es_%C3%A9tnicas_na_Am
%C3%A9rica_Latina_2005_?campaign=upload_email. Acesso em: 12 Nov 2016. P. 07/08.
_______. Agenciamentos Políticos da “Mistura”: Identificação Étnica e Segmentação
Negro-Indígena entre os Pankararú e os Xocó. Estudos Afro-Asiáricos. Ano 23. Nº 2. 2001.
Pp. 215-254. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/eaa/v23n2/a01v23n2.pdf>. Acesso
em: 21 Jul.2017.
_______. Da Memória Cabocla à História Indígena: o processo de mediação entre conflito e
reconhecimento étnico (Xocó, Porto da Folha – SE). In: Rachel Soihet, Maria R. C. de
Almeida, Cecília Azevedo e Rebeca Contijo. (Org.). Mitos, projetos e práticas políticas:
memória e historiografia. 1ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, v. 1, p. 249-270.

_______. Mocambo. Antropologia e história do processo de formação quilombola. São


Paulo: Edusc, 2006.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. ABAN. Relatório Circunstanciado


de Identificação e Delimitação. Portaria Fundação Nacional do Índio/FUNAI. Nº 10, de
13.01.1999. Disponível em:
<http://www.abant.org.br/conteudo/001DOCUMENTOS/Laudos/Terras%20Indigenas/Relato
rio%20Cristhian.pdf>. Acesso em: 27 Jun.2017.

________. Manifesto de Repúdio ao Relatório Final da CPI FUNAI-INCRA 2 e de apoio


aos indiciados. Disponível em: <www.aban.org.br>. Acesso em: 19 Jul.2017.
AVENA S, Via M, Ziv E, Pérez-Stable EJ, Gignoux CR, DEjean C, et al. (2012)
Heterogeneidade genética em Admixture em diferentes regiões da Argentina. Disponível
em: <http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0177103>. Acesso em:
22 Jun.2017.
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc.
Polít., Brasília, n. 11, p. 89-117, Aug. 2013. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n11/04.pdf>. Acesso em: 20 Jul.2017.
281

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Natureza Jurídica do Zoneamento: Efeitos. Revista


Trimestral de Direito Público 61 – Jan./Mar. de 1982.
______. Novos Aspectos da Função Social da Propriedade no Direito Público. Revista
Trimestral de Direito Público 84 – Out./Dez. de 1987.
______. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
______. Curso de Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Os Kariris de Mirandela: um Grupo Indígena Integrado.
Estudos Baianos. Nº 6. Salvador: Universidade Federal da Bahia. 1972.
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcante. Juazeiro do Norte: A Terra da Mãe de Deus.
Fortaleza: IMEPH, 2014.
BEURLEN, K. 1963. Geologia e estratigrafia da Chapada do Araripe. In: Congresso
Brasileiro De Geologia, 17, Recife, SBG, p.1-47.
BLOGSPOT. Mapa Estado de Michoacán. Disponível em:
http://programacontactoconlacreacion.blogspot.com.br/2014/12/ante-la-inoperancia-del-
gobierno.html. Acesso em: 25 Jul.2017.
BRAGATO, Fernanda. Raízes históricas dos direitos humanos na conquista da América:
o protagonismo de Bartolomé de Las Casas e da Escola de Salamanca. Revista do Instituto
Humanitas. Unisinos. Edição 487 de 13 de junho de 2016. Disponível em:
.http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6495&s
ecao=487. Acesso em: 06 Abr 2017.
BRASIL. Governo Anuncia Corte de 42,1 Bilhões em Despesas. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2017/03/governo-anuncia-corte-de-r-42-1-
bilhoes-em-despesas>. Acesso em: 21 Jun.2017.
BRASIL. Mercosul. Disponível em: <http://www.mercosul.gov.br/>. Acesso em: 27
Ago.2017.
BRASIL. População Indígena no Brasil em 2015. Portal Brasil. Disponível em:
http://www.brasil.gov.br/governo/2015/04/populacao-indigena-no-brasil-e-de-896-9-mil.
Acesso em: 02 Abr 2017.
BRASIL. Sistema Nacional de Unidade de Conservação – SNUC: Lei nº 9.985/2000.
Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 12 mar. 2107.
BRASIL. Convenção 169 da OIT: Decreto 5.051/2004. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em:
27 Jun.2017.
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil,
2003.

BRÍGIDO, João. Apontamentos para a História do Cariri. Edição reproduzida do Diário de


Pernambuco, de 1861. Typ. Da Gazeta do Norte, 1888. Reeditado em Fortaleza: Expressão
Gráfica e Editora Ltda. 2007.
282

BUENO, Franscisco da Silveira. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. 9ª edição.


Ministério da Educação. e Cultura. Rio de Janeiro: FENAME – Fundação Nacional de
Material Escolar, 1975.
CALDAS, Ricardo Warhendorff. Políticas Públicas: conceitos e práticas. Sebrae. MG. Belo
Horizonte. 2008.
CAMILO, Ana Sinara. SILVEIRA, Brunna Grasiella Matias. A Regularizaçao Das Terras
Indigenas No Ceará. Comunicação Oral. Sessão Diálogos 5: XXI Encontro Regional dos
Estudantes de Direito. Encontro Regional de Assessoria Jurídica Universitária. Crato. 2008.
Disponível em: http://www.urca.br/ered2008/CDAnais/pdf/SD5_files/Ana_CAMILO.pdf.
Acesso em: 07 Set 2015.
CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas. São Paulo: Cultrix, 2006.
CARDOSO, Isabela. Mudanças nas Políticas Públicas: a perspectiva do ciclo de política. In
Revista de Politicas Públicas. P 27-36. São Luiz. 2008. Disponível em:
www.revistapoliticaspublicas.ufma.br/site/download.php?id_publicacao. Acesso em 10 dez.
2013.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade Étnica, identificação e Manipulação.


Revista Sociedade e Cultura, vol. 6. Núm. 2, julho-dezembro, 2003, pp. 117-131.
Universidade Federal de Goiás. Goiania, Brasil. Disponível em:
<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=70360202>. Acesso em: 30 Jun.2017.

CARVALHO, Leandro. História da América. Disponível em:


http://www.mundoeducacao.com/historia-america/revolucao-mexicana-
1910.htm#comentarios. Acesso em: 15 Jun 2015.
CARVALHO, Maria de Lourdes. Et all. Implementação de Políticas Públicas. Abordagem
Teórica e Crítica. X Colóquio Internacional sobre Gestão Universitário no Sul. Mar Del Plata.
2010. Disponível em:
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/97020/IMPLEMENTA%C7%C3O%2
0DE%20POL%CDTICA%20P%DABLICA%20UMA%20ABORDAGEM%20TE%D3RICA
%20E%20CR.pdf?sequence=1. Acesso em 13 mar. 2017.

CASTELLS, Manuel. La Era de la Información: Economia, Sociedad y Cultura. Volumen


2. El Poder de La Identidad. Traducción de Carmen Martinez Gimeno. México D.F.
Delegación Coyoacán: Siglo Veintiuno Editores. 1999.
CASTRO, Sonia Rabelo. Tombamento e proteção aos bens culturais. In: PESSOA, Álvaro.
Direito do urbanismo uma visão sócio-jurídica. Rio de Janeiro: Livros técnicos e
científicos, 1981.
CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. VILLATORE, Marco Antonio César.
Coordenadores. Direito Internacional do Trabalho e a Organização Internacional do
Trabalho: Um Debate Atual. São Paulo: Atlas, 2015.
CIARLINI, Alyne Almeida. Territorialidade, Saudade, Ressignificação: índios tabajara do
olho d’água dos canutos. In PALITOT, Estevão Martins. (Org.). Na Mata do Ceará:
contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult/Museu do
Ceará/IMOPEC, 2009. 151-270.
283

COGERH. Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará - COGERH. Relatório de


Gestão de 2016. Disponível em: www.cogerh.com.br. Acesso em 19 fev. 2017.
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE – CNV. BRASIL. Guerrilha do Araguaia.
Capítulo 14:. Disponível em:
http://www.cnv.gov.br/images/documentos/Capitulo14/Capitulo%2014.pdf. Acesso em: 03
Abr 2017.

________, BRASIL. Violação de Direitos Humanos dos Povos Indígenas. Anexo II: Texto
5. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-
%20Texto%205.pdf. Acesso em: 03 Abr 2017.
________, BRASIL. Observações sobre o Mandato Legal da CNV do Brasil. Disponível
em: http://www.cnv.gov.br/images/documentos/Capitulo1/Nota%2025,%2030%20-
%2000092_003099_2014_23.pdf. Acesso em 03 Abr 2017.

COMPARATO, Fabio Konder. Função Social da Propriedade dos bens de produção. In:
Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 63. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1986.
CORREIIO BRASILEIENSE. Exoneração de Presidente e Corte de Verba: FUNAI
Ameaçada de Extinção. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2017/05/06/internas_polbraeco,59
3395/exoneracao-de-presidente-e-corte-de-verba-funai-esta-ameacada-de-exti.shtml>. Acesso
em 21 Jun.2017.

COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fac-
símile da edição de 1923 publicada pela Imprensa Nacional, Rio de janeiro. Coedição
Secult/Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
COTRIM, Gilberto. FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. São Paulo. Saraiva.
2010.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. Coleção
Agenda Brasileira. São Paulo: Editora Claroenigma, 2012.
DABIN, JEAN. Le droit subjectif. Paris, 1952.
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Tradução Maira Yeda Linhares. 3ª Edição.
Companhia das Letras: São Paulo, 2014.
DEPARTAMENTO DE DIREICHO INTERNACIONAL - DDI. Países que Ratificaram a
Convenção sobre o Instituto Indigenista Interamericano. Disponível em:
http://www.oas.org/juridico/spanish/firmas/b-26.html. Acesso em 07 Abr 2017.
DOURADO, Nick B. O. Estudo da Proveniência dos Arenitos da Formação Exu, Bacia
do Araripe. Rio de Janeiro, 2012. Xvi, 91p. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Gradução em Geologia. Departamento de Geologia, Instituto de Geociências. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em:
<http://ppgl.geologia.ufrj.br/media/pdfs/Nick_Oliveira_Mestrado.pdf>. Acesso em: 17
Jul.2017.
284

DIÁRIO DO NORDESTE. Falta de demarcação das terras indígenas gera crimes e


violência. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1172000.
Acesso em: 14 Ago 2013.
DUSSEL, Enrique. 1492 El Encubrimiento Del Outro. Hacía el origen del “Mito de la
modernidade”. Biblioteca Indígena. Colección pensamento crítico. La Paz – Bolívia. 2008.

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 1ª


Edição 1884. Tradução de Ciro Mioranza. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal.
2.a Edição Revisada. Editora Escala: São Paulo. S.d.

FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. 1ª ed. 5ª
tiragem. Malheiros. São Paulo. 2010.
FARIAS, Airton de. História do Ceará. 7ª Edição. Fortaleza: Editora Armazém da Cultura,
2015.
FARIAS, Caroline. A Convenção de 1940. Anais do XI Encontro Internacional da
ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3. Disponível em:
http://anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/Caroline%20Faria%20Gomes.pdf.
Acesso em: 07 Abr 2017.
FAUSTO, Bóris. História do Brasil. 4ª. Ed. Edusp. São Paulo. 1996.
FERNANDES, Dennys. Imagens da Chapada do Araripe. Slideshare. Disponível em:
http://www.slideshare.net/dennysfernande/imagens-da-chapada-do-araripe. Acesso em 09 Dez
2013.
FERNADES, Edésio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a
trajetória do Direito Urbanístico no Brasil, in : MATTOS, Liana Portilho de (Org.). Estatuto
da Cidade Comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
FETTERMAN, David d. Ethnography: Step-By-Step. A Wilderness Guide. ed. 3. David M.
Fetterman - Fetterman & Associates. California: Stanford University. Vol. 17. Serie Applied
Social Research Methods, 2010.
FERREIRA, José. Chegada do Homem na América. Disponível em:
http://www.coladaweb.com/historia/chegada-do-homem-na-america. Acesso em: 16
Jun.2017.

FIGUEIREDO, Leandro Mitidieri. Populações Tradicionais e Meio Ambiente: Espaços


territoriais especialmente protegidos com dupla afetação. PDF. 35p. Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-
publicacoes/artigos/docs/artigos/docs_artigos/populacoes-tradicionais-e-meio-ambiente-
espacos-territoriais-especialmente-protegidos-com-dupla-afetacao-leandro-mitidieri. Acesso
em: 23 Jul.2017.

FIGUEIREDO FILHO, J. de. Histórica do Cariri. Volume II. Fac-símile da Edição de 1964.
Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
285

FONTINHA, Rodrigo. Novo Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Revisto pelo


Dr. Joaquim Ferreira. Reimpressão. Porto: Editorial Domingos Barreira, 2002.
FOSTER, John Bellamy. O Conceito de Natureza em Marx: Materialismo E Natureza. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
FUNDAÇÃO CEARENSE DE METEREOLOGIA E RECURSOS HÍDRICOS. FUNCEME.
Seca no Ceará está menos grave em 2017, mas ainda preocupa. Disponível em: <
http://www.funceme.br/index.php/comunicacao/noticias/807-seca-no-cear%C3%A1-
est%C3%A1-menos-grave-que-em-2016,-mas-ainda-preocupa#site>. Acesso em: 23 Jul.2017.
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. FUNAI. Hitória do Serviço de Proteção ao Índio.
Disponível em: <http://www.funai.gov.br/quem/historia/spi.htm>. Acesso em: 09 Dez.2013.
________. Índios do Brasil: Terras Indígenas. Disponível em:
http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas. Acesso em: 03 Abr
2017.
________. Terras Indígenas: o que é?. Disponível em:
http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/demarcacao-de-terras-indigenas. Acesso em:
03 Abr 2017.
________. Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas. PPA FUNAI 2016-
2019. Ministério da Justiça: Brasília – DF, 2016.

GARDNER, George. Viagens pelo Brasil. Principalmente nas províncias do Norte e nos
Distritos do Ouro e do Diamante durante os anos de 1836-1841. Tradução de Albertino
Pinheiro. 1ª edição. Brasiliana, Vol. 227. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1942.
Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/obras/viagens-pelo-brasil-principalmente-nas-
provincias-do-norte-e-nos-distritos-do-ouro-e-do-diamante-durante-os-anos-de-1836-
1841/pagina/153/texto>. Acesso em: 05 Jul.2017.

GARZÓN, Biviany Rojas. YAMADA, Erika M. OLIVEIRA, Rodrigo. Direito à Consulta e


Consentimento de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais. DPLF:
Washington, D.C./São Paulo, 2016.
GERVAISEAU, Pierre Maurice. A Geografia e Meio Ambiente da Biorregião do Araripe.
Disponível em: <http://fundacaoararipe.org.br/>. Acesso em: 22 fev. 2017.

GOOGLE MAPS. Monte Alverne 50 m. Adaptação Sítio Poço Dantas. Disponível em:
<https://www.google.com.br/maps/@-7.1204535,-39.5161695,382m/data=!3m1!1e3?hl=pt-
BR>. Acesso em: 05 Jul.2017.

________. Disponível em:


<https://www.google.com.br/maps/dir/monte+alverne/Santa+Fe,+Crato+-+CE/@-7.1428323,-
39.548984,14z/data=!3m1!4b1!4m14!4m13!1m5!1m1!1s0x7a1883187c8ae8f:0x77fdee980b0
e379!2m2!1d-39.5213618!2d-
7.1233344!1m5!1m1!1s0x7a1891ed7998d05:0xf5c7d7a21c57d9c0!2m2!1d-39.5342904!2d-
7.1630431!3e2?hl=pt-BR>. Acesso em: 17 Jul.2017
GOBIERNO DEL ESTADO DE MÉXICO. Constitución Política de Los Estados Unidos
Mexicanos 1917. TREVIÑO, V. Humberto Benítez. Estudio Introductorio. 1ª Edición. Toluza
de Lerdo, Estado de México: Programa Editorial Compromisso, 2008.
286

GUIMARÃES, Maria Etelvina B. Função Social da cidade e da propriedade urbana.


Disponível em:
http://www.ibdu.org.br/imagens/FuncaosocialdaCidadeedaPropriedadeUrbana.pdf. Acesso
em: 21 jun.2012.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 8ª reimpressão.
São Paulo: Centauro Editora, 2015.
HERCKMAN, Elias. Os Costumes Tapuyas: Cronicas do Instituto de Utrech. 1639. Tradução
de José Higino para a Revista do Instituto de Archeologia e Geografia de Pernambuco.
Recife. 1886. In SOBRINHO, Thomaz Pompeu. Os Tapuias do Nordeste. Fortaleza: Revista
do Instituto do Ceará, 1934.
HISSA, Inah Abreu. Análise da Realidade da Fonte Batateiras no Cariri – CE: Aspectos
Econômicos e Legais do Mercado de Águas. Dissertação Mestrado em Desenvolvimento e
Meio Ambiente da Universidade Federal do Ceará – UFC. 2005. Fortaleza, 2005.
HOWLETT, Michael. RAMESH, M.. PERL, Anthony. Política Pública. Seus Ciclos e
subsistemas. Uma abordagem integral. 3ª Edição. Tradução técnica Francisco G. Heidemann.
2ª tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Santana do
Cariri. Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/ceara/santanadocariri.pdf. Acesso em 08 set.
2016.
________. Mapas Indígenas. Disponível em: http://indigenas.ibge.gov.br/mapas-indigenas-
2. Acesso em: 07 Set 2015.
________. Censo Indígena 2010. Disponível em:
http://indigenas.ibge.gov.br/images/indigenas/estudos/indigena_censo2010.pdf. Acesso em 02
Abr 2017.
________. IBGE divulga as estimativas populacionais dos municípios em 2015.
Disponível em:
http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=2972.
________. Os Indígenas no Censo Demográfico de 2010: primeiras considerações com
base no quesito cor e raça. Rio de Janeiro. 2012. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso
em 19 Jun.2017.
INSTITUTO CHICO MENDES - ICMBio. Plano de Manejo da FLONA-ARARIPE:
Aprovado pela Portaria No. 81 de 21/11/2005. Disponível em: www.ibama.gov.br. Acesso em
12 mar. 2017.
INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTRATÉGIA ECONÔMICA DO CEARÁ - IPECE.
Ceará em Mapas: 2007. Disponível em:
http://www2.ipece.ce.gov.br/atlas/capitulo1/11/130x.htm. Acesso em: 08 Dez 2013.
________. Perfil Regional. Cariri. Disponível em:
http://www2.ipece.ce.gov.br/estatistica/perfil_regional/Perfil_Regional_R8_Cariri_Centro_Su
l_2014.pdf. Acesso em 07 Set 2015.
287

________. Atlas. Disponível em: http://www2.ipece.ce.gov.br/atlas/lista/. Acesso em: 08 Set


2016.
________. Atlas do Ceará. Disponível em http://www2.ipece.ce.gov.br/atlas/lista/. Acesso
em: 08 set. 2016.
INSTITUTO NACOINAL DE ESTADÍSTICA. INE. Uruguay. Anuário 2014. Disponível
em: <http://www.ine.gub.uy/biblioteca/anuario2014/datos/1.1.3.pdf>. Acesso em: 30
Ago.2015.

INSTITUTO SÓCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil na Atualidade. Disponível


em: https://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/o-que-e-politica-indigenista/na-
atualidade. Acesso em: 13 mar. 2017.
________. Quadro Geral dos Povos Indígenas no Brasil. Socioambiental. Disponível em:
http://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral. Acesso em: 11 Dez 2013.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3 ed. Trad. Luís Carlos Borges. São
Paulo: Martins Fontes Editores, 2000.
KINGDON, John W. Agendas, Alternatives and Public Policies. Addison-Wesley
Longman: United States of America, 1994.
LANDER, Edgardo. Marxismo, Eurocentrismo y Colonialismo. In: LANDER, Edigard
(Org.) La Colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales, perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: CICCUS. 2011. p. 209-243.
LAS CASAS, Fray Bartolomé. Brevíssima Relacion de la Destrucción de las Índias. 3ª
Edición. Prólogo: Olga Camps. Fontamara: México. D.F. 2014.
LEFF, Enrique. Saber Ambiental: Sustentabilidade, Racionalidade, Complexidade, Poder.
Rio de Janeiro: Vozes, 2001.
______. (Org.). A Complexidade Ambiental. São Paulo: Cortez, 2003.
______. Los Derechos del Ser Coletivo y la Reapropriación Social de la Naturaleza. In
CUNHA, Belinda Pereira da. Et. All. Os Saberes Ambientais Sustentabilidade e olhar
jurídico: visitando a obra de Enrique Leff. Caxias do Sul, RS: Edus. 2015. Pp. 12-31.
LEITE, José Rubens Morato. Introdução ao Conceito Jurídico de Meio Ambiente. In:
VARELLA, Marcelo Dias. BORGES, Roxana Cardoso B. O Novo em Direito Ambiental.
Belo Horizonte: Del Rei, 1998, p. 51-69.

LEÓN-PORTILLA. Visión de Los Vencidos: Relaciones Indígenas de La Conquista. Nueva


Edición Corregida y Aumentada. Universidad Nacional Autónoma de México. Ciudad
Universitária. México: Programa Editoral Coordenación de Humanidades. 2013.

LIMA, Antonio Carlos de Souza. HOFFMANN, Maria Barroso. Questões para uma política
indigenista: Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: Contra Capa. 2002.
LIMA, Flávia Fernanda. Et. All. Geopark Araripe: Histórias da Terra, do Meio Ambiente e
da Cultura. Crato: Editora URCA, 2012.
288

LIMA, Jonatas Pinto. COSTA, Iasmine Carolina Barbosa Ferrari. Cherán: Movimento de
Luta e Sua Experiência de Autogoverno. In
file:///C:/Users/Patr%C3%ADcio%20Melo/Downloads/26-75-1-PB.pdf Acesso em 07 Set.
2015.

LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva: A Fundação Casa Grande e a Gestão


do Patrimônio Cultural da Chapada do Araripe. 2105. pp. 442. Tese de Doutoramento em
Arqueologia. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra. 2015.

LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

LOUREIRO, Francisco Eduardo. A Propriedade Como Relação Jurídica Complexa.


Dissertação de Mestrado. 2001. Pp. Mestrado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2001.

LÖWY, Michael. Ecologia e Socialismo. Coleção questões da nossa época. V. 125. São
Paulo: Cortez, 2005.
LUGON, C. A República Comunista Cristã dos Guaranis. 1610-1768. Tradução de Álvaro
Cabral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

MACÊDO, Heitor Feitosa. Sertões do Nordeste I: Inhamuns e Cariris Novos. Crato: A


província Edições, 2015.

MAMIANI, P. Luiz Vincencio. Catecismo Kiriri. Edição Fac-Símile. Rio de Janeiro:


Imprensa Nacional. 1942.

MARX, Karl. O Capital: Crítica Da Economia Política. Livro primeiro. São Paulo: Abril
Cultural, 1984.

_______. O Capital: Crítica Da Economia Política. Livro terceiro. São Paulo: Abril cultural,
1985.

MARTIUS, Carl F. P. von. O Estado do Direito entre os Autóctones do Brasil. Introdução


Max Fleiuss. Tradução Alberto Löfgren. Revisão de A. C. Miranda Azevedo. Série
Reconquista do Brasil. V. 58. Editora Itatiaia/Universidade de São Paulo: Belo Horizonte/São
Paulo, 1982.

MELO, José Patrício Pereira. A Efetividade das Normas de Proteção do Meio Ambiente.
2007. Pp. 173. Dissertação de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza. 2007.

MENEZES, Marcelo. Universidade Federal de Santa Catarina. Amostragem. Disponível em:


http://www.inf.ufsc.br/~marcelo.menezes.reis/Cap7.pdf. Acesso em: 23 Jul.2017.
MERCADO COMUM DO SUL – MERCOSUL. Histórico. Disponível em:
http://www.mercosul.gov.br/. Acesso em 02 Abr 2017.
MESTRE, Achille. Remarques sur la notion de propriété d'après DUGUIT. In: Archives de
Philosophie du Droit, ns. 1 e 2, 1932.
MEZZAROBA, Orides (org.) Humanismo Latinoamericano e Estado no Brasil.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003.
289

MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 9. ed. Revista e atualizada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014.
MINISTÉRIO DA CULTURA DO BRASIL – MINC. IPHAN: Roteiro para salvaguarda do
patrimônio cultural imaterial. Fortaleza, 2007.
MINISTÉRIO DA SAUDE. Conheça a Secretaria SESAI. Disponível em:
<http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/conheca-a-secretaria-sesai>. Acesso em 23
Jun.2017.

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE - MMA. O Que São Políticas Públicas. Disponível


em:
http://www.meioambiente.pr.gov.br/arquivos/File/coea/pncpr/O_que_sao_PoliticasPublicas.p
df. Acesso em: 10 Dez 2013.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – MPF. Boletim de Notícias. Edição n° 199/ 2013
Brasília, 4 de novembro de 2013. Disponível em:
http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/institucional/clipping/04_11_2013.pdf. Acesso em: 10 Dez 2013.
MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Função Social. Propriedade e as Modalidades
Sociais de Usucapião. In Revista Autônoma de Direito Privado no 2. Arruda Alvim e
Angélica Arruda Alvim (Coord.). Curitiba: Editora Juruá: Jan./Mar.2007.
MONTEIRO, Yara Police. A Função Social da Propriedade e os Instrumentos de
Intervenção Urbanística. Dissertação de Mestrado em Direito. Pp.. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2002
MONREAL, Eduardo Novoa. El derecho de propriedad privada. Bogotá: Temis, 1979.

MORIN, Edgar. KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 2003.
NEULS, Gisele. Conflito entre proprietários e indígenas é agravado por demora do
governo em enfrentar a questão. Disponível em:
http://sojabrasil.ruralbr.com.br/noticia/2013/08/conflito-entre-proprietarios-e-indigenas-e-
agravado-por-demora-do-governo-em-enfrentar-a-questao-4251839.html. Acesso em: 18 Nov
2013.
NOGUEIRA, Carolina Barbosa Contente. A Autodeterminação dos Povos Indígenas frente
ao Estado. 2016. Ps 223. Tese de Doutorado em Direito Econômico e Socioambiental da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba. 2016.
NORTH, Douglas. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. New
York: Cambridge, 1990. P. 3 – 35.
OLIVEIRA, Silvio Luiz de. Metodologia Científica Aplicada ao Direito. Thomson. São
Paulo. 2002.

OLIVEIRA, Carlos Alfredo Ferraz de. Et. All. A Experiência do Projeto GATI em Terras
Indígenas. Núcleo Regional Nordeste I e II da FUNAI. Brasília – DF: IEB, 2016.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Os Caxixós do Capão do Zezinho: uma Comunidade


Indígena distante de Imagens da Primitividade e do Índio Genérico. Relatório encaminhado á
FUNAI. Disponível em:
290

<http://www.anai.org.br/arquivos/Laudo_Antropologico_Caxixos_Capao.pdf>. Acesso em:


01 Jul.2017.

_______. Uma Etnologia dos Índios Misturados? Situação Colonial, Territorialização e


Fluxos Culturais. Mana [online]. 1998, vol.4, n.1, pp.47-77. ISSN 0104-9313.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426.pdf >. Acesso em: 30 Jun.2017.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. BRASIL. ONU divulga 1º relatório de
acompanhamento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Disponível em:
https://nacoesunidas.org/onu-divulga-1o-relatorio-de-acompanhamento-dos-objetivos-do-
desenvolvimento-sustentavel/. Acesso em: 11 Abr 2017.
________. Plataforma Agenda 2030. Disponível em:
http://www.agenda2030.com.br/meta.php?ods=10. Acesso em: 11 Abr 2017.

________. História da Organização. Disponível em:


<https://nacoesunidas.org/conheca/historia/>. Acesso em 22 Jun.2017.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A


CULTURA. UNESCO. Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil. UNIC-RIO e
Instituto Socio-Ambiental. ISA. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos
Povos Indígenas: Perguntas e Respostas. Brasília, 2008. Disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0016/001627/162708POR.pdf. Acesso em 07 Jun. 2017.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. OEA. Quem Somos. Disponível em:


<http://www.oas.org/es/acerca/quienes_somos.asp>. Acesso em: 26. Jul.2017.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – ILO. Understanding the


Indigenous and Tribal People Convention: 1989 (No. 169). Handbook for ILO Tripartite
Constituents/International Labour standards Department. International Labour Organization.
Geneva, 2013. Disponível em: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---
normes/documents/publication/wcms_205225.pdf. Acesso em 13 mar. 2017.
________. Normas Internacionais do Trabalho. Disponível em:
http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/html/portugal_visita_guiada_03b_pt.
htm. Acesso em: 02 Abr 2017.
________. Indigenous and Tribal Peoples. Disponível em: www.ilo.org/indigenous.
Acesso em: 02 Abr 2017.
________. Recomendação da OIT Relativa aos Pisos Nacionais de Proteção Social.
Disponível em:
http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/html/portugal_recomendacao_202_pt
.htm. Acesso em: 02 Abr 2017.
________. Ratifications of C169: Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169).
Date of entry into force: 05 Sep 1991. Disponível em:
http://ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:11300:0::NO:11300:P11300_INSTRUMENT_ID:312
314. Acesso em: 07 Jun.2017.
291

________. Construindo um Futuro com Trabalho Decente. Disponível em:


http://www.ilo.org/ilc/ILCSessions/105/lang--en/index.htm. Acesso em: 04 Abr 2017. Versão
original em inglês. Tradução livre do autor.

OLIVEIRA, Silvio Luiz de. Metodologia Científica Aplicada ao Direito. São Paulo:
Thomson, 2002.

PALITOT, Estêvão Martins (org). Na Mata do Sabiá: Contribuições sobre a presença


indígena no Caerá. Fortaleza: Secult/Museu do Ceará/Imopec, 2009.
PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. SOUZA, José Washington Nascimento de.
Organizadores. Direito Econômico e Socioambiental. GZ Editora. Rio de Janeiro. 2014.
PARAGUAI. Dirección General de Estadística, Encuestas y Censos – DGEEC. Censo
Populacional. Disponível em: http://www.dgeec.gov.py/newspaper/index87.php. Acesso em:
02 Abr 2017.
PAULA, João Antonio de. Crise Econômica e Reiteração do Capitalismo Dependente no
Brasil. In ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. El al. Capitalismo Globalizado e Recursos
Territoriais: Fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina,
2010.
PENA-VEGA, A. O despertar ecológico: Edgar Morin e a ecologia complexa. Tradução de
Renato Carvalheira do Nascimento e Elimar Pinheiro do Nascimento. Rio de Janeiro:
Garamond, 2010.

PEREIRA, Maria Alacoque de Lima. Jardim: sua história e sua gente. Fortaleza: COTRIM.
1986.
PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Coisas, Atualizado conforme o Código Civil
2002. Atual. por Ricardo Rodrigues Gama, 1 ed. Campinas: Russell, 2003.
PERICO, Rafael Echeverri. Identidade e Território no Brasil. IICA. Brasília, 2004-2007.
Disponível em:
<http://www.iica.org.br/Docs/Publicacoes/PublicacoesIICA/IdentidadeTerritorioBrasil.pdf>.
Acesso em: 03 Jul.2017.
PERLINGIERI, Pietro. Introduzione alla problematica della proprietà. Nápoles: Scuola di
Perfezionamento in Diritto Civile, 1982.
PINHEIRO, Irineu. FILHO, J. de Figueiredo. Cidade do Crato. Fac-símile da edição de
1955. Coleção Nossa Cultura, n. 1, Série Memória, n.3. Fortaleza: Edições URCA. UFC,
2010.
PINHEIRO, Irineu. O Cariri. Fac-símile da edição de 1950. Coleção Nossa Cultura, n. 1,
Série memória, n.1). Edições UFC. Fortaleza. 2010.
PINHEIRO, F. José. Formação Social do Ceará (1680-1820): O Papel do Estado no
Processo de Subordinação da População Livre e Pobre. 2006. Tese de Doutorado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
2006.
292

POLANYI, Karl. A Grande Transformação: As Origens De Nossa Época. Rio de Janeiro:


Campus-Elsevier, 2000.
PONTE, F.C. & Appi C.J. 1990. Proposta de revisão da coluna litoestratigráfica da
Bacia do Araripe. 36º Congresso Brasileiro de Geologia. Natal, Brasil, p. 211-226.
PONTE, F.C. & Ponte Filho, F.C. 1996. Estrutura geológica e evolução tectônica da Bacia
do Araripe. Departamento Nacional da Produção Mineral, Recife, 68p.
PORTUGAL. Instituto da Defesa Nacional. Congresso de Viena. Relações Diplomáticas.
Disponível em: https://idi.mne.pt/pt/relacoesdiplomaticas/2-uncategorised/702-congresso-de-
viena.html. Acesso em: 17 Jun.2017.
QUEIROZ, Miron Tafuri. A Integração das Convenções da Organização Internacional do
Trabalho à Ordem Jurídica Brasileira. Dissertação de Mestrado em Direito da Faculdade
de Direito da USP. 2009. Pp. 216. São Paulo. 2009.
QUEZADA, Alfredo Gasca. Cultura Purépecha. Material de estudo da Escola Miguel
Cervet. Vídeo. Publicado em outubro de 2013 no site
https://www.facebook.com/dissertiartpub Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=k3BgPEVEchI&t=110s. Acesso em 01 Abr 2017.
QUIJANO, Anibal. La Colonialidad Del Poder. In: LANDER, Edigard (Org.). La
Colonialidad Del Saber: Eurocentrismo Y Ciencias Sociales, Perspectivas Latinoamericanas.
Buenos Aires: CICCUS. 2011. 264 p.
RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo D. Princípios Generales del Derecho
Latioamericano. 2ª reimpresión. Editora Astrea: Buenos Aires – Bogotá, 2013.
RAO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5 ed. Anot. e atual. por Ovídio Rocha Barros.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2001.
REVISTA EXAME. Uruguai Rejeita Mito de País sem Índios. Disponível em:
http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/uruguai-rejeita-mito-de-pais-sem-indios. Acesso em
13 Dez 2013.
REDE GLOBO DE TELEVISÃO. Entenda o Conflito na Terra Indígena Raposa Terra
do Sol. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL464471-5598,00-
ENTENDA+O+CONFLITO+NA+TERRA+INDIGENA+RAPOSA+SERRA+DO+SOL.html
. Acesso em 03 Abr 2017.
RIBEIRO, Darcy. Falando dos Índios. Coleção Darcy no Bolso. Editora UNB: Brasília,
2010.
ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Função Social da Propriedade Pública. São Paulo:
Malheiros, 2005.
RODRIGUES, José Honório. Índice Anotado da Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Imprensa Universitária do Ceará, 1959.
293

RODRIGUES, Rosalinda P. C. A questão agrária e a Justiça. In: A teoria da função social


da propriedade rural e seus reflexos na acepção clássica da propriedade. (Org.) Juvelino
José Strozake. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
SACFF, Luma Cavaleiro de Macedo. Sistema de Proteção dos Direitos Humanos e
Trabalho Forçado: O Brasil e a Organização Internacional do Trabalho. Dissertação em
Direito Faculdade de Direito da USP. São Paulo. 2010. Pp. 143.
SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil (1500-1627). Editores Weiszflog Irmãos.
1918. Prefácio de Marcos Venicio Ribeiro. Fundação Darcy Ribeiro. Brasília: Editora da
UNB. Edição Digital (PDF), 2014.
SANTIAGO, Eduardo Girão. Brasilidades: Ensaios Socioeconômicos. Fortaleza: Expressão
Gráfica Editora, 2016.
SANTOS, Edmar Victor Rodrigues. Revolução Mexicana e o Tempo Histórico da
Modernidade: ‘Horizonte de Expectativas’ na Constituição de 1917. Disponível
em:
http://www.tempopresente.org/index.php?option=com_content&view=article&id=5595:revol
ucao-mexicana-e-o-tempo-historico-da-modernidade-horizonte-de-expectativas-na-
constituicao-de-1917&catid=36&Itemid=127. Acesso em: 16 Jun 2015.
SANTOS, Emanuelle. FERREIRA, Juliana. JUVENAL, Valmira. A Revolução Mexicana:
reforma agrária e luta pelo direito de retornar a um passado usurpado. Disponível em:
http://www.historia.uff.br/nec/revolucao-mexicana-reforma-agraria-e-luta-pelo-direito-de-
retornar-um-passado-usurpado. Acesso em: 15 Jun 2015.
SARNO, Daniela Campos Libório di. Elementos de Direito Urbanístico. Barueri - SP:
Manole, 2004.
SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental: Nossa casa planetária. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
SERRANO, Pablo Jiménez. Compêndio De Metodologia da Ciência do Direito. São Paulo:
Catálise, 2004.

SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. 23ª Ed. Cortez


Editora. São Paulo 2007.
SILVA, Cristhian Teófilo da. Identidade Étnica, Territorialização e Fronteiras. Revista de
Estudos e Pesquisas. FUNAI. Brasília. V. 1. Nº 1. P. 113-140. Jul. 2005. p. 120. Disponível
em: <www.funai.gov.br>. Acesso em: 24 Jul.2017.

SILVA, Jacionara Coelho. Arqueologia no Médio São Francisco: Indígenas, Vaqueiros e


Missionários. 2003. Tese de Doutorado em História. Universidade Federal de Pernambuco,
Recife. 2003.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2001.
______. Direito Urbanístico Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
______. Direito Ambiental Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
294

SILVA, kalina Vanderlei Paiva. Nas Solidões Vastas e Assustadoras: Os Pobres do Açúcar
e a Conquista do Sertão de Pernambuco nos Séculos XVII e XVIII. 2003. Tese de Doutorado
em História. Universidade Federal do Pernambuco, Recife. 2003.
SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1978.
SLIDESHARE. Imagens da Chapada do Araripe. Disponível em:
<http://www.slideshare.net/dennysfernande/imagens-da-chapada-do-araripe>. Acesso em: 09
Dez.2013.
SOARES, Mª Simone. MOURA FILHA, Mª Berthilde de Barros. O Ordenamento dos
Rebeldes: A Formação das Primeiras Vilas no Sertão de Piranhas e Piancó da capitania da
Parahyba na Segunda Metade do Século XVIII. In Anais do XVI Enanpur. Belo Horizonte.
2015.
SOBRINHO, Tomaz Pompeu. MARTINS, Floriano (Org.) A Grandeza Índia do Ceará.
Reedição. Coedição com a Secult. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
SOBRINHO, Thomaz Pompeu. Pré-História Cearense. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará.
1955.
__________. Os Tapuias do Nordeste. Fortaleza: Revista do Instituto do Ceará, 1934.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Liberdade e outros Direitos. Ensaios
Socioambientais. Letra da Lei. Curitiba. 2011
_____________. O Renascer Dos Povos Indígenas Para O Direito. Curitiba: Juruá, 1998.
_____________. A Função Social Da Terra. Fabris: Porto Alegre, 2003.
_____________. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2006.
_____________. Multiculturalismo e direitos coletivos. In SANTOS, B. S. Reconhecer
Para Libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 71-111.
_____________. BERGOL, Raul Cezar. (Orgs). Os Direitos dos Povos Indígenas no Brasil:
Desafios no Século XXI. Curitiba: Letras da Lei, 2013.
SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. .HOFFMANN, Maria Barroso. Questões para uma
Política Indigenista: Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas. Contra Capa: Rio de Janeiro,
2002.
SOUZA, Rainer. Revolução Mexicana de 1910.
http://www.brasilescola.com/historiag/revolucao-mexina.htm. Acesso em 15 Jun. 2015.
STUDART FILHO, Carlos. Aborígines do Ceará. Coleção História e Cultura dirigida pelo
Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1965.
______. A Rebelião de 1713. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1963.
SUNDFELD, Carlos Ari. Função Social da Propriedade. In DALLARI, Adilson e
FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coords.), Temas de Direito Urbanístico 1. São Paulo: RT,
1987.
295

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. Súmula 650: “Os incisos I e XI do art. 20 da


Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por
indígenas em passado remoto”. Disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=1634. Acesso
em 02 Abr 2017.
SUPREMA CORTE JUDICIAL DA NAÇÃO. Decisão 25285 de 2014. Controversia
Constitucional 32/2012. Municipio De Cherán, Estado De Michoacán. 29 De Mayo De 2014.
Ponente: Margarita Beatriz Luna Ramos. Secretaria: Guadalupe M. Ortiz Blanco. Disponível
em;
http://sjf.scjn.gob.mx/sjfsist/Paginas/Reportes/ReporteDE.aspx?idius=25285&Tipo=2&Tema
=0. Acesso em: 02 Abr 2017.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América. A Questão do Outro. 2ª edição. Tradução
de Beatriz Perrone Moi. Martins Fontes: São Paulo, 1992. PDF.
TOBEÑAS, José Castán. La Propriedad y sus Problemas Actuales. Madri: Instituto
Editorial Réus, 1963.
TÓFOLI, Ana Lúcia Farah de. Retomadas de Terras Tapeba: entre a Afirmação Étnica, os
Descaminhos da Demarcação Territorial e o Controle dos Espaços. In PALITOT. Estevão
Martins (Org.). Na Mata do Sabiá. Contribuições sobre a presença indígena no Ceará.
SECULT. MUSEU DO CEARÁ. Fortaleza. 2009. P. 214.
URUGUAY. Instituto Nacional de Estadística – INE. Anuário 2014. Disponível em:
http://www.ine.gub.uy/biblioteca/anuario2014/datos/1.1.3.pdf. Acesso em: 13 Dez 2013.

VALLE, Carlos Guillherme. Aldeamentos Indígenas no Ceará do Século XIX: Revendo


Argumentos Históricos sobre Desaparecimento Étnico. In PALITOT, Estêvão Martins (org).
Na Mata do Sabiá: Contribuições sobre a presença indígena no Caerá. Secult/Museu do
Ceará/Imopec: Fortaleza, 2009.

VEIGA. José Eli. A Emergência Socioambiental. Senac: São Paulo, 2010.


VENTURA PATINO, María del Carmen. Processo de autonomía en Cherán: Movilizar el
derecho. Espiral (Guadalaj.), Guadalajara , v. 19, n. 55, p. 157-176, dic. 2012 . Disponível
em: <http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1665-
05652012000300006&lng=es&nrm=iso>. Acesso em 02 abr. 2017.
VERAS, Marcos Flávio Portela. DE BRITO, Guimarães. Identidade Étnica. A Dimensão
Politica de um Processo de Reconhecimento. Revista Antropólogos ISSN 1982-IC. Ano 4.
Vol. 5. Maio 2012. Disponível em:
<http://revista.antropos.com.br/downloads/maio2012/Artigo4-IdentidadeEtnica.pdf>. Acesso
em: 30 Jun.2017.
VERDUM, Ricardo. Organizador. Povos Indígenas: Constituições e Reformas Politicas na
América Latina. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos - INESC, 2009.
VERDUM, Ricardo. Etnodesenvolvimento: A "Pedra de Toque" no Neo-Indigenismo? Anais
da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004. Disponível em:
http://www.sbpcnet.org.br/livro/56ra/banco_conf_simp/textos/RicardoVerdum.htm. Acesso
em: 07 Jun.2017.
296

WOOD, Ellen Meiksins. As Origens Agrárias Do Capitalismo. Revista “Crítica Marxista”


n. 10, ano 2000. São Paulo: Boitempo. Fls. 12-30.
WIKIPEDIA DICIONÁRIO. Cariris. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cariris
Cariris. Acesso em: 14 Ago 2013.
_________. Farias Brito. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Farias_Brito#Hist.C3.B3ria. Acesso em: 08 Set 2016.
WIKIMEDIA. Mapa da América Latina. Por Heraldry - Own work,Este desenho vetorial
foi criado com Inkscape., CC BY-SA 3.0. Disponível em:
<https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=7185231.> Acesso em: 26 Jul.2017.
ZIEGLER. Jean. Ódio ao Ocidente. Tradução Marcelo Mori, Maria Helena Trylinski,
Mariclara de Oliveira. Cortez Editora: São Paulo, 2011
297

APÊNDICE A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA


APLICAÇÃO DE QUESTIONÁRIO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

JOSÉ PATRICIO PEREIRA MELO, RG 178290989, Professor, Pesquisador da


Universidade Regional do Cariri (URCA), neste momento realizando pesquisa de
doutoramento junto à Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC) está realizando a
pesquisa intitulada COMUNIDADE SÍTIO POÇO DANTAS, HISTÓRIA DE AUTO-
IDENTIFICAÇÃO ÉTNICA, que tem como objetivo GERAL “IDENTIFICAR A
COMUNIDADE DO SÍTIO POÇO DANTAS A PARTIR DE SUA AUTO-AFIRMAÇÃO
ETNICA. Para isso, está desenvolvendo um estudo que consta das seguintes etapas:, 1) Visita
a comunidade Sítio Poço Dantaspara apresentar o pesquisador, o projeto e a metodologia. 2)
Entrevista guiado com questionário com pessoas da comunidade Sítio Poço Dantas em Crato.
Por essa razão, o(a) Sr.(a)
_____________________________________________________ está sendo convidado(a) a
participar da pesquisa. Sua participação consistirá em responder às perguntas do questionário
anexo de modo objetivo. O(s) procedimento(s) utilizado(s) entrevista guiada só será realizada
com sua expressa autorização do entrevistado. O tipo de procedimento apresenta um risco
MÍNIMO; que será reduzido mediante opção de não participar da entrevista. Nos casos em
que os procedimentos utilizados no estudo tragam algum desconforto ou sejam detectadas
alterações que necessitem de assistência imediata ou tardia, eu JOSE PATRICIO PEREIRA
MELO serei o responsável pelo encaminhamento ao Conselho de Ética ou ao Juizado
Especial Cível. Os benefícios esperados com o estudo são no sentido de contribuir com outros
estudos sobre a identidade étnica das pessoas da comunidade do Sítio Poço Dantas.
Toda as informações que o(a) Sr.(a)
______________________________________________ nos fornecer será utilizada somente
para esta pesquisa. Seus(Suas) RESPOSTAS e DADOS PESSOAIS, serão confidenciais e seu
nome não aparecerá nos(as) QUESTIONÁRIOS e nem quando os resultados forem
apresentados.
A sua participação em qualquer tipo de pesquisa é voluntária. Caso o(a) Sr.(a) aceite
participar, não receberá nenhuma compensação financeira. Também não sofrerá qualquer
prejuízo se não aceitar ou se desistir após ter iniciado a ENTREVISTA.
Se tiver alguma dúvida a respeito dos objetivos da pesquisa e/ou dos métodos utilizados
na mesma, pode procurar JOSÉ PATRICIO PEREIRA MELO, RUA VALDIR DE SOUZA
LEITE 29, MIRANDÃO, CRATO, CEARÁ, CEP 63125.020. TEL. 88-999631678.
Se desejar obter informações sobre os seus direitos e os aspectos éticos envolvidos na
pesquisa poderá consultar o Comitê de Ética em Pesquisa - CEP, da Universidade Regional do
Cariri, localizado à Rua Coronel Antonio Luiz, 1161, 1º andar, Bairro Pimenta, CEP 63.105-
000, telefone (88)3102.1212 ramal 2424, Crato CE
Se o(a) Sr.(a) estiver de acordo em participar deverá preencher e assinar o Termo de
Consentimento Pós-esclarecido que se segue, e receberá uma cópia deste Termo.
298

TERMO DE CONSENTIMENTO PÓS-ESCLARECIDO

Pelo presente instrumento que atende às exigências legais, o


Sr.(a)__________________________________________________________, portador(a) da
cédula de identidade__________________________, declara que, após leitura minuciosa do
TCLE, teve oportunidade de fazer perguntas, esclarecer dúvidas que foram devidamente
explicadas pelo pesquisador, ciente dos serviços e procedimentos aos quais será submetido e,
não restando quaisquer dúvidas a respeito do lido e explicado, firma seu CONSENTIMENTO
LIVRE E ESCLARECIDO em participar voluntariamente desta pesquisa.
E, por estar de acordo, assina o presente termo.

Crato-Ce., _______ de ________________ de _____.

______________________________
Assinatura do participante

______________________________

ou Representante legal

Impressão dactiloscópica
______________________________
José Patrício Pereira Melo
Assinatura do Pesquisador
299

APÊNDICE B - QUESTIONÁRIO DE ENTREVISTA


QUESTIONÁRIO ENTREVISTA PROJETO COMUNIDADE SÍTIO POÇO
DANTAS, HISTÓRIA DE AUTO-IDENTIFICAÇÃO ÉTNICA

Nome: __________________________________________________________________

Idade: _____________________ Sexo: ____________________

1) Você é índio? ( ) Sim ( ) Não

2. A identidade índio que você preserva é de qual povo?

( ) Kariri
( ) Outro

3) O que faz você ser índio?


( ) O território em que vive
( ) Aparência, traços físicos
( ) A cor da sua pele
( ) Seus antepassados; avós, pais.
( ) Sua memória ou imaginário
( ) alimentação (pão-de-milho, mucunzá, cerém, tiú, comida meio crua)
( ) Usos e Costumes: caça-do-mato, pesca, , músicas, danças,
( ) hábitos pessoais;
( ) hábitos coletivos;
( ) direcionamentos pessoais e políticos
( ) tipo de organização social em que vive

4. A identidade Kariri gera direitos para você e sus família? ( ) Sim ( ) Não

5. Quais direitos você espera ser reconhecido?

( ) Posse da terra
( ) Propriedade da terra
( ) Reconhecimento da Identidade Kariri
( ) Autodeterminação (se organizar politicamente, administrativamente,
juridicamente, e territorialmente como de interesse do seu povo).
( ) Não entendo o que é autodeterminação.

6. A Constituição Brasileira protege os direitos dos índios? ( ) Sim ( ) Não

7. Quem você acha que está em condições de garantir os direitos dos índios no Brasil?

( ) Você e seu povo


( ) O Estado (Executivo, Legislativo ou Judiciário)
( ) O Ministério Pùblico
( ) A Funai
( ) Outra Identidade: Associação ( ), ( )_____________________
300

APÊNDICE C - MAPAS DA LOCALIZAÇÃO DO SÍTIO POÇO DANTAS E


IMAGENS DE SATÉLITE
301
302

ANEXO A - COMPROVANTE DE ENTREGA DO PROJETO AO COMITÊ DE


ÉTICA EM PESQUISA DA URCA ATRAVÉS DA PLATAFORMA BRASIL
303
304
305

ANEXO B - TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DO DR. ORLANDO ARAGÓN


ANDRADE, ORLANDO ARAGÓN. RESUMO DO CASO CHERÁN. ENTREVISTA
FORNECIDA AO PROGRAMA DE RÁDIO ESCÚCHATE, PRODUCIDO POR EL
TRIBUNAL ELECTORAL DEL PODER JUDICIAL DE LA FEDERACIÓN DE
MÉXICO. (TEPJF).

México D. F., a 9 de junio de 2014.

Entrevista a Orlando Aragón Andrade, especialista mexicano en Derecho de los Pueblos


Indígenas, adscrito al Centro de Estudios Sociales en la Universidad de Coimbra,
Portugal, en EscúchaTE, programa radiofónico producido por el Tribunal Electoral del
Poder Judicial de la Federación (TEPJF).

Carlos Jaime López: Daniela, qué gusto tener en la línea telefónica al doctor Orlando
Aragón Andrade, el especialista mexicano en derechos de los pueblos indígenas adscrito al
Centro de Estudios Sociales en la Universidad de Coimbra, en Portugal.

Conductora: Así es.

Le damos la bienvenida,

Doctor Orlando, muy buen día. ¿Cómo está?

Dr. Orlando Aragón Andrade: Muy bien, muchas gracias.

Aquí, con el gusto de saludarlos.

Carlos Jaime López: Gracias, doctor, el gusto es nuestro.

Y bueno, el tema, reitera la Suprema Corte de Justicia mexicana el derecho de los pueblos
indígenas a ser consultados.

Y si no tiene inconveniente, doctor, entramos inmediatamente a la entrevista.

Dr. Orlando Aragón Andrade: Claro, con todo gusto.

Conductora: Doctor, el histórico caso Cherán, toma fuerza cuando el 9 de septiembre de


2011, el Consejo General del Instituto Electoral de Michoacán, se declaró incompetente para
atender la solicitud de esa comunidad indígena.

¿Nos podría decir, en resumen, en qué consistió esa solicitud y en general los antecedentes del
caso?

Dr. Orlando Aragón Andrade: Bueno, en Cherán o digamos, venía presentándose una
problemática muy fuerte de inseguridad y de despojo de sus recursos naturales, aunado a la
inacción del Gobierno Municipal para atender la problemática, y entonces, eso ocasionó una
conflictividad interna que decantó por el desconocimiento de los pobladores de Cherán del
Gobierno Municipal en turno y la solicitud justamente de que pudiesen regirse o tener un
306

gobierno por usos y costumbres, ya que se percibía por parte de los pobladores de Cherán, que
las autoridades provenientes de los partidos políticos pues no estaban atendiendo sus
problemáticas.

Eso llevó justamente, como lo comentan, a que en la fecha señalada se presentara una
solicitud ante el IEM, ante el Instituto Electoral de Michoacán, solicitando la posibilidad de
hacer una elección por usos y costumbres.

Es importante decir que en este momento la comunidad solamente presentó esa solicitud en
función de que se hiciera una elección por usos y costumbres, no así un gobierno por usos y
costumbres que ya fue una solicitud posterior que se hizo, pero a esa altura lo que se estaba
solicitando al IEM, justamente era que pudieran, digamos, trascender de una elección de
partidos políticos a una regida o dirigida por los usos y costumbres de la comunidad.

Carlos Jaime López: Doctor, y en concreto, qué es lo que se solicita cuando el caso Cherán
llega al Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación.

Dr. Orlando Aragón Andrade: Ahí hay un cambio y lo mencionaba antes, porque es muy
importante y creo que ahí radica justamente o desde aquí se puede empezar a mostrar la
importancia del asunto de Cherán y sobre todo la resolución que dio la Sala Superior del
Tribunal Electoral, en el sentido de que a diferencia del escrito que se presenta al IEM en
donde se solicitaba la posibilidad de organizar una elección por usos y costumbres, y que
como ya también se planteaba el IEM se declara incompetente para dar una respuesta a este
tema, en el escrito de demanda que ya presenta la comunidad indígena de San Francisco
Cherán ante el Tribunal Electoral, ya no solamente pide la posibilidad de organizar una
elección por usos y costumbres, sino que en atención al cambio que recientemente había
sufrido la Constitución en el artículo Primero, el tema de los derechos humanos, de los
tratados institucionales, el bloque de constitucionalidad que todos sabemos más o menos
cómo funciona, es decir, la aplicación directa de los Tratados Internacionales, en el escrito de
demanda se presenta ante el Tribunal Electoral en el JDC, se solicita además ya la posibilidad
de contar con un gobierno por usos y costumbres, una cosa que hasta ese momento no se
había presentado en el país; es decir, el Tribunal por ejemplo, Electoral, ya tiene una larga
tradición en asuntos de municipios con elecciones por usos y costumbres en Oaxaca, pero no
se había presentado un caso en el cual se solicitara no solamente el procedimiento de la
Jornada Electoral por usos y costumbres, sino la posibilidad de contar con un Gobierno
Municipal, con estructuras propias de acuerdo a los usos y costumbres de una comunidad.

Entonces, en concreto eso fue lo que se pide, que se hiciera una elección por usos y
costumbres y que se pudiese permitir un gobierno con una estructura municipal distinta a la de
Presidente Municipal, síndico, etcétera, sino que estuviese ajustada también a los usos y
costumbres.

Todo eso, por supuesto, fundamentado en derecho, con la reforma al artículo Primero que
permitió justamente darle entrada directa a documentos fundamentales para los pueblos
indígenas en el derecho internacional de los derechos humanos, como el Convenio 169, de la
307

Organización Internacional del Trabajo, la declaración de derechos de pueblos indígenas de


las Naciones Unidas, y una serie de jurisprudencias de la Corte Interamericana en el sentido.

Eso fue lo que se solicitó ante el Tribunal Electoral.

Carlos Jaime López: Ésta es una charla con el doctor Orlando Aragón Andrade.

Él es especialista mexicano en derechos de los pueblos indígenas, pero actualmente adscrito al


Centro de Estudios Sociales en la Universidad de Coimbra, en Portugal.

De hecho esta llamada, y se le tiene que decir al público, porque siempre así lo hacemos todo
lo que sucede, esta llamada está siendo hecha hasta Portugal, precisamente.

Conductora: Doctor Orlando Aragón, qué resuelve el Tribunal Electoral del Poder Judicial
de la Federación y en qué punto se estriba la gran trascendencia del caso Cherán.

Dr. Orlando Aragón Andrade: Bueno, la Sala Superior del Tribunal Electoral resuelve el 2
de noviembre de 2011 justamente darle la razón a la comunidad de Cherán.

Es decir, en su argumentación, en su reflexión que hacen los Magistrados de la Sala Superior,


llegan a la conclusión de que efectivamente y con el cambio constitucional que se había
sufrido en el artículo Primero y la aplicación de los tratados internacionales, Cherán tenía el
derecho, a pesar de que en la Constitución de Michoacán y en el Código Electoral de
Michoacán no estaban contempladas las elecciones por usos y costumbres, Cherán tenía el
derecho de solicitar una elección por usos y costumbres, pero no sólo eso.

Y aquí es donde creo yo la Sala Superior dio un paso adelante, gigantesco, en materia de
derechos políticos de los pueblos indígenas, gigantesco me refiero a toda América Latina, no
solamente a México, que autorizó que pudiese tener una estructura de gobierno municipal
diferente a la que ordinariamente manejan, digámoslo así, los municipios, es decir, un
Presidente Municipal, un síndico, y posibilitó que en Cherán hubiera una estructura del
Gobierno que ahora es conocida o que es, digamos, dirigida en lugar de por una persona que
es el Presidente Municipal, por un Consejo de ancianos que en Cherán es conocido como el
Consejo Mayor del Gobierno Comunal y que está integrado por dos personas.

Este último punto, digamos, llevó los derechos políticos de los pueblos indígenas a un nivel
completamente distinto, obviamente de acuerdo a la nueva realidad jurídica ocasionada o
generada por la reforma al artículo Primero, en la aplicación de los derechos humanos de los
pueblos indígenas.

En ese sentido, la Sala Superior creó un precedente y una realidad jurídica, pues bastante
nueva; efectivizó el derecho internacional de los pueblos de los derechos humanos de los
pueblos indígenas, en un sentido que hasta ese momento no se había registrado en la historia
de nuestro país.
308

Entonces, ahí es donde yo encontraría, digamos, una de las importancias o trascendencias de


este caso, y otra quizás en términos más abstractos, más generales, creó un precedente el
Tribunal Electoral, digamos, para la aplicación de los derechos humanos fundamental.

Yo creo que el caso Cherán, en la Sala Superior ha sido uno de los juicios en donde un
Tribunal de carácter constitucional, como es el caso de la Sala Superior, ha aplicado con
mayor, digamos, con una mirada más progresista los derechos humanos en un conflicto
judicial.

En este juicio, la Sala Superior atendió a los estándares internacionales más altos de derechos
humanos de los pueblos indígenas, que no solamente se quedó en los Tratados
Internacionales, sino en las declaraciones, en las jurisprudencias de la Corte Interamericana,
es decir, fue un proceso de interpretación de los derechos humanos, del derecho internacional
de los derechos humanos bastante alto, bastante progresista, para la historia judicial en
México.

Carlos Jaime López: Eso es, doctor.

El doctor Orlando Aragón Andrade.

Doctor, y ahora actualmente cómo elige la comunidad de Cherán a sus dirigentes. Su sistema
tradicional de gobierno basado en asambleas generales, les proporciona solución a sus
problemas, al hablar usted hace un momento de sus recursos, me parece que son madereros y
son muy importantes para ellos.

Cuéntenos, doctor, cómo están ahora en esas comunidades indígenas.

Dr. Orlando Aragón Andrade: Sí. Ahora lo que se hizo fue que gracias a la sentencia
justamente que emitió la Sala Superior, lo primero que se vio fue la facultad para que la
comunidad eligiera cuál iba a ser su estructura de gobierno.

Entonces, lo que la comunidad exhibió en relación a eso, fue darse una forma de gobierno a
partir de distintos consejos colectivos y encabezados, como ya les comentaba, por un Consejo
mayor de gobierno comunal, que está compuesto por 12 personas, y una serie de consejos
operativos, digamos, tienen distintas funciones, alrededor del gobierno.

Lo primero que hay que decir es que es un gobierno de carácter colectivo. La responsabilidad
está dividida en varias personas, todos ellos, todos estos funcionarios fueron electos en
Asamblea, justamente, y lo que se ha intentado hacer en Cherán, digamos, en la forma de
gobierno que se ha puesto en práctica, es una forma de democracia directa, vamos a decirlo
así, en donde en las Asambleas se toman de las determinaciones en relación a la elección de
los responsables de la administración pública.

Entonces, todos los representantes que conforman, tanto el Consejo Mayor de Gobierno
Comunal, como los demás consejos operativos, fueron electos por los comuneros de forma
directa en Asambleas a Manuel Sada o como se llama de forma coloquial, por bulto, es decir
309

por acumulación de la gente, cuando vota toda una persona su arma detrás de ella, quien tiene
fila más larga es quien gana.

También se debe comentar que actualmente se realizan con cierta periodicidad, ciertas
asambleas, en donde justamente las personas encargadas de la Administración Pública en
Cherán, ya sean los consejos mayor de gobierno o los otros consejos, rinden periódicamente
informes de cómo está gobernando el municipio, y la comunidad, incluyendo justamente el
tema de sus recursos forestales, el tema de programas educativos, distintas agendas de
gobierno municipal que se están manejando actualmente en Cherán.

Así es como se gobiernan actualmente.

Conductora: Hace unos días, Orlando, el pasado 29 de mayo, la Suprema Corte de Justicia
de la Nación, invalidó reformas a la Constitución del estado de Michoacán, en materia de
derechos indígenas.

Orlando, nos podrías explicar en qué consistió esta invalidez de reformas.

Dr. Orlando Aragón Andrade: Sí, con todo gusto.

Bueno, este caso está entrelazado justamente con la resolución que emite la Sala Superior en
2011, porque una de las cosas que la Sala Superior advierte a la hora de resolver este caso, es
que en Michoacán no se habían realizado las adecuaciones y las actualizaciones
constitucionales en materia de derechos indígenas.

Al momento en que Cherán interpone el juicio en 2011, para esta cuestión de la elección por
usos y costumbres y del gobierno por usos y costumbres, en Michoacán se tenía un marco
constitucional que estaba vigente desde 1997, si no mal recuerdo, ’98; es decir, Michoacán era
uno de los estados que contaba con un marco constitucional local más retrasado en materia de
derechos indígenas.

La Sala Superior del Tribunal Electoral, se da cuenta de esto, lo advierte y en la sentencia


invita al Congreso a que legislen ya en esa materia, porque estaba dejando en un estado de
indefensión a las comunidades y pueblos indígenas de Michoacán desde hace bastante tiempo.

Lo que ocurre es que al poco tiempo que en la Sala Superior emite su fallo, reconoce el
derecho de Cherán para tener elecciones y un gobierno por usos y costumbres, el Congreso
Local de Michoacán legisla de una forma exprés, en 15 días una reforma constitucional que a
nadie le consulta y que lo más grave de todo no incluye ni la elección por usos y costumbres,
ni el gobierno por usos y costumbres.

Y de esta manera, digamos, neutraliza el triunfo que había obtenido la comunidad de Cherán
en la Sala Superior.

Al no incluirla está en un vacío legal el triunfo que recién había obtenido la comunidad.
310

Al percatarnos de esta situación, nosotros intentamos dialogar con los diputados de


Michoacán, se intentó establecer un diálogo, para comentarles que se tenía que consultar a las
comunidades indígenas, éstos no estuvieron de acuerdo y se publicó la Reforma, se aprobó y
se publicó.

Entonces, a los meses se impugnó mediante un juicio de controversia constitucional, alegando


justamente que no se había consultado ni a Cherán, ni a las demás comunidades indígenas ese
texto constitucional, pero sobre todo con el fondo de que no se había reconocido justamente lo
que la Sala Superior había reconocido en 2011, mediante su resolución, es decir, que en el
texto constitucional aprobado no estaba ni la elección por usos y costumbres, ni los gobiernos
por usos y costumbres.

Y entonces, este camino iniciado a inicios de 2011, llevó dos años hasta que el Pleno de la
Suprema Corte, decidió ya discutirlo y pues fue justamente lo que tuvimos en tres sesiones
largas, intensas, debatidas, a veces confusas en la Suprema Corte sobre el caso de Cherán, que
a final de cuentas termina resolviéndose en un precedente histórico a nivel continental, hasta
donde yo tengo conocimiento, nunca un pueblo o una comunidad indígena había logrado que
una Corte Constitucional declara inválida una Reforma por no consultarlo, y entonces, en este
caso se convierte también en un precedente histórico.

Sin embargo, creo que está a diferencia de la Sala Superior, hubo una interpretación más
restrictiva de derechos humanos por el tema de los efectos, justamente que se le ha dado a la
resolución en la Suprema Corte, a diferencia, me parece que lo que hizo la Sala Superior en su
momento, dar una interpretación, digamos, máxima de los derechos humanos, creo que hubo
una interpretación un poco más dirigida de los derechos humanos de los pueblos indígenas, de
las comunidades indígenas, pero sin embargo, se sigue sentando un precedente mediante el
cual ahora esta reforma constitucional queda invalidada y se tendrá que legislar nuevamente
en materia de derechos indígenas, consultando ahora sí a los pueblos y comunidades
indígenas de Michoacán, y especialmente a Cherán que es quien interpuso el juicio de
controversia constitucional.

Carlos Jaime López: Orlando, por tu respuesta, notamos que tú has estado cerca y tal vez al
lado de estas comunidades.

¿Cuál es el papel que tú has desempeñado, qué has desarrollado?

Dr. Orlando Aragón Andrade: Bueno, yo he contribuido en la asesoría jurídica de estas


comunidades en los dos procesos judiciales.

Carlos Jaime López: Exacto.

Orlando, ya finalmente, ¿se puede decir que la Suprema Corte de Justicia mexicana, entonces,
con su sentencia al respecto, ha reconocido el derecho de los pueblos indígenas a ser
consultados a través de sus instituciones representativas?

Dr. Orlando Aragón Andrade: Así es.


311

Digamos que aún habría que esperar el engrose final de la sentencia, porque lo que hemos
visto es la discusión pública. Todavía faltaría la parte más fina, más técnica de la sentencia de
lo que se disponga, pero indiscutiblemente ha reconocido el derecho a la consulta de las
comunidades indígenas, cada vez que se legisle en esta materia y lo que estaría por verse, que
yo creo que aquí la Suprema Corte tendrá que ver como un precedente importante justamente
el proceso que se hizo en el juicio de la Sala Superior del Tribunal Electoral, la manera de
cómo se debe consultar a las comunidades indígenas.

Es decir, ya en el 2011 la Sala Superior del Tribunal Electoral, fue muy clara en el sentido de
que las consultas se tenían que hacer, vuelvo a los usos y costumbres de las comunidades.

Acá creo que lo que está por verse, es que la Suprema Corte, ya en el documento final de la
sentencia, es decir, después del engrose de los agregados que se hagan de la discusión que
hubo la semana pasada, refleje esa parte también que debe de hacerse conforme a los usos y
costumbres de Cherán.

Conductora: Agradecemos, Orlando, pues esta charla que tuvimos contigo sobre este caso,
pues como tú lo dijiste, es un precedente histórico a nivel continental, tanto la resolución del
Tribunal Electoral como también la declaración de la Suprema Corte de Justicia de la Nación
al declarar inválido en este tema, a favor de este pueblo de Cherán en Michoacán.

Dr. Orlando Aragón Andrade: Pues yo les agradezco mucho el espacio.

Carlos Jaime López: Orlando, que estés muy bien, que te vaya muy bien, y gracias por tus
palabras.

Dr. Orlando Aragón Andrade: Bueno, hasta luego, un placer. Y que estén también muy
bien.

Buenos días para allá.

- - -o0o- - -
312

ANEXO C - CONVOCATÓRIA A LA FOGATAS DE LA COMUNIDAD

CONVOCATORIA A LAS FOGATAS DE LA COMUNIDAD

Conforme a nuestra autonomía y libre determinación que nos otorga la Constitución


Mexicana, Convenios y Pactos internacionales sobre los derechos y cultura de pueblos
originarios, y teniendo en cuenta; Qué; como siempre han guiado a la comunidad los usos y
costumbres.

Ahora, como fruto de la lucha y de los derechos alcanzados; Y cumpliendo com el mandato
recibido de las pláticas informativas desarrolladas el día 15 y la consulta a la comunidad el dia
18 de diciembre de 2011. Se aprobó nombrar a la autoridad P'urhepecha de Cherán, por el
sistema de los usos y costumbres. Por lotanto.

Se invita amablemente a las fogatas de cada Barrio de la Comunidad P'urhepecha de Cherán


por parte de la coordinación de barrios.

A nombrar a la comunera o comunero, que participara para ocupar un lugar em los concejos
que compone la estructura de gobierno comunal P'urhepecha de Cherán, como es: Concejo
Mayor, Concejo de Bienes Comunales, Concejo de Justicia, Concejo de Barrio, Concejo de lo
Civil, Concejo de lo Local, Concejo de las Mujeres, Concejo de Programas Sociales, Concejo
de Jóvenes,

De acuerdo al siguiente:

CONSIDERANDO.

Que es necesario cumplir con nuestro deber de comunera y comunero a participar con la
palabra y asistencia activa para acordar en los hechos la construcción desde abajo con todos,
por todos y para todos, el buen destino de la comunidad.

Haciendo posible que las comuneras y comuneros, sin importar preparación académica,
posición social, modo de hablar o vestir, hagan escuchar su voz y, hagamos sentir el peso en
las grandes decisiones de la comunidad como el 15 de abril del 2011.

Que, las reuniones y asambleas tienen en la comunidad antecedentes ricos em experiencias y


lecciones de organización y ejecución de trabajos. Por lo que, es un derecho de todas las
comuneras y comuneros a participar libre y voluntariamente en diversos procesos de
reuniones y asambleas con el fin de buscar soluciones a todos los problemas que afectan a la
comunidad. Por lo tanto,se

CONVOCA

Capítulo I
De las Fogatas

Primero. A las comuneras y comuneros, jóvenes, adultos y grandes de la comunidad


P'urhepecha de Cherán, a participar en las reuniones o asambleas a realizarse en el lugar que
dio nacimiento a la fogata.
313

Para platicar, analizar, decidir y proponer a un comunero o comunera, a participar en el


nombramiento de un consejero autoridad para formar parte de la estrutura de gobierno
comunal y presentarlo el dia de la asamblea de barrio.

Tomando en cuenta que, como comunera o comunero originario y que viva en la comunidad,
debe cumplir con el deber.

Y que el deber es:

Haber participado y cum encomendado en reuniones, asambleas permanen conveniencia y


oportunismo.

Ser trabajador o trabajadora para sostén de su familia y en acciones comunitarias, faenas,


comisiones tradicionales, sociales, políticas y culturales.

No haber incurrido en faltas graves: Como en robo y saqueo de bosque. En actividades


contrarias a la comunidad como engaños, traiciones y fraudes. En sospecha de participar con
el crimen organizado y narcotráfico.

En la apropiación ilegal de terrenos comunales No haber incurrido actualmente en promoción


a favor personal, de partidos políticos ni otras que afecten la tranquilidad de la comunidad.

Quien haya participado en otros tiempos como autoridades presentar su carta de finiqurto de
su gestión por la autoridad competente.

Serán sancionados con la cancelación de ser nombrados a ocupar un cargo em la estructura de


gobierno comunal, todas aquellas comuneras y comuneros que hagan proselitismo en las
fogatas al modo de las organizaciones políticas.

No reelección. incluyendo aquellos comuneros que no concluyeron el período actual de


gobierno.

Para la revocación de mandato en caso de incurrir en faltas que lesionen y perjudiquen al


proyecto y a la comunidad por parte de cualquier integrante de la estructura de gobierno será
sancionado por la asamblea de barrio que va desde la llamada de atención, primera, segunda y
destitución del cargo}

Para ocupar el cargo de:

CONCEJO MAYOR.

La integraran tres por barrio. Una de las cuales debe ser mujer. Originario y que viva en la
comunidad, tener mayoria de edad, tiempo completo, conocer la cultura y sistemas
normativos P'urhepecha de la Comunidad.

Experiencia en trabajos colectivos. Que sea respetuoso, con tiempo “completo, sencillo,
humilde, responsable y honrar el gran valor a la palabra para guiar, orientar y aconsejar el
buen camino de la comunidad. De servir y no servirse y mandar obedeciendo.

CONCEJO DE JUSTICIA. /
314

La integrara uno por barrio. Originario y que viva en la comunidad, tener mayoría de edad,
con tempo completo, con conocimientos y saberes en la cultura P'urhepecha, con capacidade
grande para escuchar, analizar, reflexionar y ser justo desde la casa, fogata, barrio y en el
territorio de la comunidad.

CONCEJO DE BIENES COMUNALES

La integrara uno por barrio. yoria de edad, con tempo Originario y que viva en la Comunidad,
tener ma p'urhepecha, sobre todo del completo, con conocimiento y saberes en la cultura
territorio, bienes comunes y memoria histórica.

CONCEJO DE BARRIO. 0/

La integrara dos por barrio. Originario y que viva en la comunidad, tener mayoria de edad,
tiempo completo, con el conocimiento y saberes en la cultura P'urhepecha, socio político,
idioma y artes. generar las condiciones para compartir los conocimientos y Con ia tarea de
¡dad a modo de usos saberes de nuestros abuelos desde la fogata, barrio y comum y
costumbres.

CONSEJO DE LO CIVIL.

La integrara uno por barrio. Originario y que viva en la comunidad, tener mayoría de edad,
con tempo completo, con el conocimiento y saberes en la cultura P'urhepecha, con el
compromiso de proyectar nuestra medicina tradicional, educación, deporte, saludcomunitaria,
artes y cultura informática.

CONSEJO DE LO LOCAL.

La integrara uno por barrio. Originario y que viva en la comunidad, tener mayoría de edad,
con tempo completo, con .el conocimiento y saberes en la cultura P'urhepecha, educación,
cultura informática, contaduria, ingenieria y arquitectura.

CONCEJO DE PROGRAMAS SOCIALES.

La integrara uno por barrio. munidad, tener mayoría de edad, con tempo bares de la cultura
P'urhepecha, educación, ntaduría, sociología, antropologia, psicologia Originario y que viva
en la com completo, con el conocimiento y as trabajo social, cultura informática, co y cultura
médica.

CONSEJO DE JÓVENES.

La integrara uno por barrio. os en adelante, con tempo a en la comunidad, de 18 añenfienda


cimiento y saberes de la cultura P'urhepecha, que dad. Originario y que viv completo, con el
cono el significado de defender el territorio de la comunie reflexión de los jóvenes para la
Con la tarea de recuperar el espacio dión, saberes, idioma, música y artes. formación en los
juegos tradicionales, educac

CONCEJO DE LAS MUJERES.


315

Una por barrio. omunidad, tener mayoria de edad, con tempo bares en la cultura P'urhepecha,
que entienda torio. Educación, cultura informática, Originaria y que viva en la o completo,
con el conocimiento y as el significado de la familia, comunidad y terri contaduría, sociología,
antropologia, psicología y cultura médica.

Capitulo ll

Las asambleas. mente, el Concejo Mayor de Gobierno, en las

Segundo. Se nombrara, primera el 19 de abril de 2015, a las 12:00 horas, en los asambleas que
se llevaran a cabo lugares de costumbre. - Barrio primero; en la Esc. Prim. Casimiro Leco
López Barrio segundo; en la Esc. Sec. Fed. Lázaro Cárdenas Barrio tercero; en la Esc. Prim.
José Ma. Morelos Barrio cuarto; en la Esc. Prim. Federico Hernández Tapia.

Tercero. La Coordinación de Barrios designara con un dia de anticipación a la comrsron para


la mesa de registro, escrutadora y auxiliar para la realización de las asambleas de
nombramiento.

Cuarto. En cada lugar se instalaran mesas de registro para elaborar un listado de comuneras y
comuneros.

Quinto. Para ejercer el derecho en el proceso de nombramiento no se requerirá identificación,


ya que será suficiente que se registre en el listado de asistencia al que se refiere el punto
anterior y que sea identificado por las personas del barrio y su coordinador de barrio.

Sexto. El dia del nombramiento, una vez instalada la asamblea se nombrara uma mesa de los
debates. La mesa pedirá que la asamblea proponga a los contendientes al concejo mayor de
gobierno comunal. la edad señalada en los puntos anteriores. s, con el deber de servir y no
servirse, con el tar a la comunidad y mandar Quienes deberán cumplir com Honestos,
humildes, trabajadore tiempo completo para todos los cargos para represen obedeciendo.

Séptimo. Continuando, se pedirá a asistentes que se formen delante de ellos y se procederá al


conteo respectivo por parte de los integrantes de la mesa y los auxiliares designados.

Las comuneras o comuneros propuestos con mayor número de comuneras y - comuneros


serán las y lOs que integren los consejos en representación al barrio al que pertenecen.

Oitvao. Asamblea se procederá a levantar el acta Una vez realizado el conteo en caran las
hojas Que será requisitada por los integrantes de la mesa y a ella se anexa del registro de
asistencia. tos y propuestas de cada una de las se en uno de los concejos, serán de la estructura
de gobierno y Octavo. Las comuneras y comuneros propues fogatas que no obtengan lugar
para integrar considerados en ocupar un lugar en las comissiones se ubicaran, validados todos
en asamblea de barrio.

Noveno. Para que haya vigilancia, validez y den fe del nombramiento en las asambleas será la
mesa de los debates y coordinadores de barrio.

Décimo. Para las fechas de nombramiento de los siguientes concejos, será de acuerdo a lo que
determine la asamblea.
316

Mayores informes con los coordinadores y comisión de enlace de cada barrio. Atentamente:

POR LA SEGURIDAD, JUSTICIA Y RECONST/TUC/ON DE NUESTRO TERRITORIO.

COORDINADORES DE BARRIO
Chera'n, Michoacán, México, Abril de 2015

Você também pode gostar