Cultura Popular 08
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Cultura Popular 08
Ano I – nº 8 – 3/12/2012
– ao menos das quais se possa três, quatro fitas multicores, compridas, penduradas, quase 30
garantir alguma veracidade. fitas. E a ventania que entrava no bar ia fazendo aquele moinho, as
Entretanto, na Enciclopédia fitas por cima dele, como bandeirolas ao vento. Com óculos bem
Nordeste, Orlando Tejo faz escuros, isso era de tardezinha, paletó azul e um lenço vermelho
dele uma descrição que dis- amarrado no pescoço. Fazia um nó aqui, muito grande, e um anel
pensa imagens: “Estava na desses de feira, pendurado no nó. E nos dedos, negócio de 15 ou
época com 15 anos, mas já mais anéis, pedras de todas as cores. Era um espetáculo visual”.
era piolho de cantoria desde Na matéria do Movimento aqui reproduzida, Assis dá informa-
os 13. Vou passando por uma ções sobre a vida do repentista e aborda as principais característi-
rua, a rua dos antigos cabarés cas da sua obra. E as amplia no texto de abertura, em que também
da cidade, de tardezinha, pas- analisa repente, cantorias e cordel no universo da cultura popular.
seando. E ouço uma voz inusi- Uma verdadeira aula.
tada, eu e um companheiro, a Boa leitura!
gente se aproximando dessa
Zé Limeira (supostamente) voz. Tinha uma viola no meio. Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli
com ele, mas detestava fazer isso; fazia por O cientista Paulo Vanzolini, também au- Chegou na beira do cais
insistência do público, que gostava de ver tor de clássicos da música brasileira, como Onde o navio trefega
os dois em desafio. No dizer de Otacílio, Ronda e Volta por cima, é um apaixonado Comeu o padre Nobrega
Limeira “fazia versos sem pé nem cabeça”, pelos versos do estrambótico cantador Os tempos não voltam mais.
embora perfeitamente dentro da métrica e paraibano. Para ele, “Limeira é o maior”. E
rima: “Ele esculhambava era com a oração”. declama, antes de cair numa risada: E a seu modo, em sextilhas próprias,
Um exemplo: versifica em autoapresentação:
Outro exemplo, esse que tem por mote Outro apaixonado por Limeira é o repen-
o escritor Zé Américo, que dizia ser Limeira tista anarquista – e cordelista –, dos bons,
“um negro forte e alto, parrudo, dono de Allan Sales, autor destes versos ao modo
bela voz que igual nunca existiu”: limeriano:
Assis e Paulo Vanzolini
Zé Américo foi princeso Zé Limeira viu Sayad
No trono da monaiquia O velho Tomé de Souza Certo dia vendo Ensaio
De pareia cum Sansão Governador da Bahia Disse sim é do caraio
Qui guvernava a Bahia Casou-se e no mesmo dia Quando viu sua cumade
Viajaro pra Sapé Passou a pica na esposa Pois Sayad virou pade
Butaro lá um café Ele fez que nem a raposa Mas sem ganhar bom salaro
Só pra vender melancia. Comeu na frente e atrás Mas andava de camaro
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Do timão usando um gorro Porque o cordel é escrito próprios de folheto de cordel. Bom que
Não precisa ser cachorro E o repente é improvisado se diga que antes de ele enveredar pela
Para dar valor ao Faro. O cordel tem de ser lido literatura de cordel, foi cantador repentista
E o repente, cantado. citado em livros de José Carvalho de Brito
O cantador repentista passeia com de- (O matuto cearense e o caboclo do Pará) e
senvoltura pela arte da literatura de cordel, O seu parceiro Sebastião Marinho, da Luís da Câmara Cascudo (Vaqueiros e can-
ao contrário do cordelista – que não domi- Paraíba, na mesma ocasião emendou: tadores), nos 1930.
na a arte da improvisação ao som da viola.
Foram dois os pioneiros na publicação Repentista Respeitado
de versos em folhetos de cordel, no Brasil: Narra, canta e profetiza
Silvino Pirauá de Lima (1848-1913) e Lean- Gera mito, cria lei
dro Gomes de Barros (1865-1918), ambos Forma lenda e faz pesquisa
paraibanos. Os dois disputavam a chancela Cantador faz tudo isso
de Rei do Cordel. Inda canta e improvisa.
No domingo 8 de outubro de 1995, no pro-
grama Flor da Terra, apresentado ao vivo pelo Repentista em beira-mar
mineiro Téo Azevedo na extinta rádio Atual, Canta oceanos e ilhas
o repentista pernambucano José Saturnino Cordelista narra em verso
dos Santos, mais conhecido por Andorinha, O tratado de Tordesilhas Assis, com Patativa do Assaré
explica em versos de improviso a diferença Em décimas e decassílabos
entre o cantador e poeta de bancada: Sete linhas e sextilhas. Em 1997, o Memorial da América Lati-
Patativa do Assaré, de batismo Antônio na acolheu o 1º Campeonato Brasileiro de
Do cordel para o repente Gonçalves da Silva (1909-2002), desen- Poetas Repentistas. Desse campeonato,
É diferente o traçado volveu boa parte da sua obra em versos presidido por mim e vencido por Oli-
Jurados: Mocinha de Passira (esq.), Luís Avelima, Siba, José Nêumanne, Diniz Vitorino, Assis, Marcus Vinicius, Ronaldo Cunha Lima,
Benedito Ruy Barbosa, Luís Nassif, Audálio dantas, Fernando Coelho e Antônio Nóbrega.
Bibliografia
É riquíssima a poesia popular brasileira. E são muitos os poetas Quiria qui os meus verso
iletrados ou semiletrados que criam verdadeiras obras-primas Andasse pelos caminho,
como Juvenal Galeno, Zé da Luz, Patativa do Assaré, Renato Caldas, Consolano os infilizes
Chico Nunes das Alagoas, Alberto Porfírio, Pedro Bandeira – criador E dano pão os pobrezi-
da Missa do vaqueiro, com Luiz nho.
Gonzaga e padre João Câncio
– e tantos e tantos; uns repen- E como fazia Patati-
tistas, como Ernesto Limeira, va do Assaré, Juca da
Agostinho Lopes, Antônio Ma- Angélica compõe cere-
rinho e José Bernardino; outros bralmente e guarda na
não, como Juca da Angélica. memória todos os seus
poemas, que se fosse Ernesto Limeira, Agostinho Lopes,
Juca nasceu em Patos de Antônio Marinho e José Bernardino
Minas e foi batizado com o declamá-los de uma vez
nome cristão de José Joaquim passava dias e dias.
de Sousa, em 1918. Ele ainda Encantado, o violeiro Saulo Alves,
Assis, com Pedro Bandeira, um dos está lúcido e produzindo belos também de Minas, acaba de musicar
mais importantes repentistas do Brasil uma pérola de Juca, Meu amor é uma
(cantou até para o papa João Paulo II) versos como estes, sob o título
Eu queria ter um peito: garça:
Zé Limeira:
“O cantador melhor
que a Paraíba criou-lo”
Assis Ângelo
com admirável talento, a crônica dos vultos Peço licença ao truliso Embora inegável o talento de José
renomados da região em que labutam, os Dos olbus da periféria, Limeira, somente agora o poeta começa
acontecimentos históricos, os fatos sociais Dos chuás das pontulínias, a ser descoberto. Há dois anos, em João
recentes, em desafios que duram noites in- Dos chomotos das matérias, Pessoa (Paraíba), o teatrólogo José Bezerra
teiras”, diz o escritor Orlando Tejo, autor de Das grotas dos veluais, Filho conseguiu lotar, por vários meses,
um livro sobre José Limeira, e acrescenta o Das mimosas deletérias. as dependências do Teatro Santa Rosa, a
folclorista Câmara Cascudo: “Os cantadores principal casa de espetáculos da Capital
independem das cidades e dos cultos; vi- Seu estilo individualíssimo jamais foi paraibana, com a peça “Zé Limeira, o Po-
vem no ambiente limitado, zona de confor- confundido ou imitado por poeta algum; eta do Absurdo”. Alguns compositores e
to restrita, mas real, para primava pela distorção histórica, dava vida intérpretes da música popular brasileira,
uma existência fabulosa a paus e pedras, fazia o papa comer grama, também começam a se interessar pelo
de miséria e de encanto lutar boxe ou beber cachaça consigo num cantador do Teixeira. “Mas é de se crer que
intelectual inconsciente”. boteco: só o tempo poderá definir José Limeira,
Limeira, até hoje, tal- posto que até agora ninguém o situou bem,
vez tenha sido o mais Quando Jesus veio ao mundo pondo-o no lugar de destaque que sempre
inconsciente de todos Foi só pra fazer justiça mereceu”, diz Tejo.
os poetas. Ele cantava Com treze anos de idade Um contista pernambucano, Hugo
disparates, os mais inima- Discutiu com a doutoriça; Pinotti, classificou Limeira como sendo
gináveis; desnorteava os Com trinta anos depois “um poeta rústico abstracionista”. Em
cantadores que ousavam Sentou praça na polícia. Recife, um crítico escreveu num jornal: “O
desafiá-lo: estilo desse cantador é nítido-abstracional-
-impressionista”. E outro disse: “José Limeira riqueza da música, não esquecendo o nexo do sonho”. E José Limeira, segundo o teste-
é um surrealista, ultra-sincretista e futurista das palavras e esmaltando, com as cores munho da época, foi um músico excelente.
nitidista”, que não se sabe o que venha a dos sons, os mais deslumbrantes cenários Dizem que a música natural dos seus ines-
ser esta estranha definição. O fato é que há perados e fabulosos repentes teria sido
interesse em torno do autor destes versos. um prêmio da natureza para compensar a
permanente ausência de sentido poético.
Eu sou um nego moderno: “José Limeira tinha a música tão em si,
Foi não foi, estou pensando. tão sua, que essa sensibilidade foi uma
constante em todos os seus movimentos
E destes: de aedo inculto”, diz Tejo, e acrescenta: “Não
Eu e o mestre da festa é que ele – Limeira – se preocupasse com
Canto até ficar de dia. essa faceta da poesia, porque talvez haja
Na terra só tem tristeza, desaparecido sem saber que foi antes de
No céu só tem alegria tudo músico. Todo músico. E isso não deixa
Se um dia eu fosse chamado de ser uma positiva qualidade poética, pois
Pra cantar no céu, eu ia. o elemento pode ser poeta sem ser músico
e vice-versa, mas não será bom. A sonori-
Para o escritor Orlando Tejo, o bom dade que transbordava na verve do Poeta
cantador, a rigor, “é aquele que, além de do Absurdo é um requisito quase ausente
deter necessárias virtudes artísticas, valor na maioria dos poetas de viola, embora eles
intrínseco, prima pelo ritmo do verso, pela Nordeste: cordel, repente, canção – por J. Borges não aceitem, de bom grado, a realidade
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precisa não; os pé foi feito pra carregar a madrugada, ocorreu o imprevisto maior: E réplicas de parceiros famosos, como
gente”. Dito isso, saia a pé, sempre a pé, com Limeira, com os seus quinze anéis reluzindo Arrudinha da Paraíba:
o inseparável matulão surrado a tiracolo, ao luar, quando findava uma estrofe do
cheio de mantimentos e quinquilharias; beira mar, a viola escorregou de suas mãos Eu jamais ouvi falar
a viola às costas, uma velha espingarda e ele deslizou devagar da cadeira onde Nessa tal de juvenia,
de dois canos nas mãos e muita vontade estava, morto de repente, num repente. Nem tampou em aldiácos
e disposição para cantar. Dessa forma, Dessa sua silencia.
caminhou até os 68 anos. E morreu como “Se um dia eu fosse chamado Limeira, me fale sério:
quis: cantando. prá cantar no céu, eu ia” Que diabo é grodofobia?
Após muitos meses de andanças, Limei-
ra voltava para casa, no dia 23 de dezembro E foi. Mas os seus versos ficaram: E ele “explicava”:
de 1954 – data do aniversário da esposa,
Bela. À noite, um poeta alagoano – Bentevi Peço licença ao prugilo O Mestre ainda não sabia
–, que se encontrava pelas redondezas, Dos quelés da juvenia, Que Jesus grodofobou?
o desafiou para uma cantoria. Imediata- Dos tolfos, dos aldiácos, Apois fique conhecendo
mente, a notícia espalhou-se: Zé Limeira Da baixa da silencia, Que Limeira prugilou
ia cantar. A casa encheu-se de gente, e os Do genuíno da Biblia, E o cipó de seu Pereira
violeiros começaram. Lá para as tantas da Do grau da grodofobia. Também já juvenciou!
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