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Cultura Popular 08

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Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo

Ano I – nº 8 – 3/12/2012

Zé Limeira, o poeta do absurdo


Nesta edição nº 8 de J&Cia Memória da Cultura Popular, Assis Aí houve o alumbra-
Ângelo foi buscar no acervo de seu Instituto Memória Brasil ma- mento: a figura mais
téria que fez sobre o repentista e cordelista Zé Limeira, falecido estranha que eu já vi
em 1954, conhecido como “O poeta do absurdo” por seus versos no mundo. Tinha um
surrealistas, nonsense e recheados de neologismos esdrúxulos – cantador normal, que
e, não raramente, pornográficos. A matéria de Assis, intitulada O se chamava Cícero
cantador melhor que a Paraíba criou-lo, foi publicada na edição de Vieira, mais conheci-
5/12/1977 do jornal Movimento. do como Mocó, e o
São poucas as referências que se tem desse repentista, a maioria outro era o próprio
trazida a público pelo advogado, poeta, ensaísta, jornalista, folclo- Zé Limeira. O primei-
rista e professor Orlando Tejo, paraibano de Campina Grande, que ro momento foi de Assis, com matéria que integra o acervo do Instituto
sobre ele publicou, em 1980, o livro Zé Limeira, poeta do absurdo susto. Naquela época, Memória Brasil, sobre Zé Limeira e cultura popular,
publicada no extinto suplemento dominical Folhetim,
(1980). Mas Zé Limeira, que morreu cantando em 1954, sempre 1950, o sujeito com da Folha de S.Paulo, em 2/7/1978 – Foto Darlan Ferreira
foi personagem na cultura popular nordestina. uma viola psicodéli-
Fotos dele também não há ca, verde, azul, amarela, branca, de toda cor, as 12 clavículas tinham
http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br

– ao menos das quais se possa três, quatro fitas multicores, compridas, penduradas, quase 30
garantir alguma veracidade. fitas. E a ventania que entrava no bar ia fazendo aquele moinho, as
Entretanto, na Enciclopédia fitas por cima dele, como bandeirolas ao vento. Com óculos bem
Nordeste, Orlando Tejo faz escuros, isso era de tardezinha, paletó azul e um lenço vermelho
dele uma descrição que dis- amarrado no pescoço. Fazia um nó aqui, muito grande, e um anel
pensa imagens: “Estava na desses de feira, pendurado no nó. E nos dedos, negócio de 15 ou
época com 15 anos, mas já mais anéis, pedras de todas as cores. Era um espetáculo visual”.
era piolho de cantoria desde Na matéria do Movimento aqui reproduzida, Assis dá informa-
os 13. Vou passando por uma ções sobre a vida do repentista e aborda as principais característi-
rua, a rua dos antigos cabarés cas da sua obra. E as amplia no texto de abertura, em que também
da cidade, de tardezinha, pas- analisa repente, cantorias e cordel no universo da cultura popular.
seando. E ouço uma voz inusi- Uma verdadeira aula.
tada, eu e um companheiro, a Boa leitura!
gente se aproximando dessa
Zé Limeira (supostamente) voz. Tinha uma viola no meio. Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli

A cultura popular é a digital de um povo


Por Assis Ângelo
Uma vez perguntei ao estudioso Luis da a partir de motes que lhes dão espontane-
Câmara Cascudo o que é cultura popular amente.
– verbete que não consta de seu famoso Numa ocasião, em plena função, o Cego
Dicionário do Folclore Brasileiro – e ele me Aderaldo respondeu a uma provocação de
respondeu dizendo que “é a que vivemos, seu parceiro Rogaciano Leite em sextilha,
a tradicional e milenar que aprendemos na que é a modalidade mais comum no dito
convivência doméstica”; e que a outra, a Reino da Cantoria:
erudita, “é a que estudamos nas escolas, na
universidade e nas culturas convencionais Andei procurando um besta
pragmáticas da vida” (confira em http:// Um besta que fosse capaz
migre.me/c9ce6). Ele disse também que De tanto procurar um besta Assis com os repentistas João Furiba, Minervina
Ferreira, Mocinha de Passira e Sebastião Marinho
cultura popular “é aquela que até certo Eu achei esse rapaz
ponto nós nascemos sabendo”. Que nem pra besta serve Louro e Otacílio eram como sereias:
No universo da cultura popular – o berço Porque é besta demais! encantavam a todos, ao cantar na toada
da alma do povo – estão as brincadeiras de suas violas. Os três chegaram a ser enal-
infantis, os folguedos natalinos, joaninos E o que dizer de tiradas como esta, de tecidos por Manuel Bandeira num festival
e carnavalescos, as rezas e os ditos, os Romano do Teixeira? de violeiros no Rio de Janeiro, em 1959.
contos, as lorotas e adivinhações, os mitos A homenagem em versos de Bandeira
e lendas; os seres encantados, as rendeiras, Eu já suspendi um raio foi originalmente publicada no Jornal do
os artesãos, os poetas de bancada, que são E fiz o vento parar Brasil, onde ele tinha coluna, sob o título de
aqueles que publicam versos em folhetos, Já fiz estrela correr Violeiros do Nordeste. O poema está no livro
revividos hoje nas livrarias, nas ruas e esco- Já fiz o sol quente esfriar Estrela da vida inteira (Poesias Reunidas;
las de quase todo o País. Já segurei uma onça Livraria José Olympio Editora).
Os cantadores Para um moleque mamar Em 1992, o cantor alagoano Djavan mu-
violeiros também sicou os dez primeiros versos de Violeiros do
se acham nesse Eu cresci escutando, abestalhado, as Nordeste, omitiu o nome do autor e cortou
universo, rico e contendas intermináveis desses artistas. o título pela metade. A música pode ser
belo. Muitos deles, embora já desaparecidos, ouvida no LP Coisa de Acender (Sony Music
Os repentistas, continuam vivos na minha memória. Entertainment).
co m o t a m b é m Dimas Batista, por exemplo, que conheci Os versos de Bandeira são estes:
nós chamamos numa cantoria no centenário Teatro Santa
os cantadores, Rosa, na capital paraibana, não dá para Anteontem, minha gente,
são os poetas que esquecer. Ele pertencia a uma linhagem Fui juiz numa função
improvisam ver- de gênios da qual faziam parte Pinto do De violeiros do Nordeste
sos em ritmos e Monteiro, Diniz Vitorino, José Alves da Cruz, Cantando em competição,
gêneros diversos Manuel Xudu, Fabião das Queimadas, Cego Vi cantar Dimas Batista
ao som de violas, Aderaldo, Louro do Pajeú e Otacílio Batista, E Otacílio, seu irmão.
Rogaciano Leite contando histórias os dois últimos, seus irmãos. Ouvi um tal de Ferreira,
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Ouvi um tal de João. E Otacílio, seu irmão; arrematou: “Seus dedos


Um, a quem faltava um braço, Como faz qualquer violeiro, eram grossos de anéis”.
Tocava cuma só mão; Bom cantador do sertão, Quinze, para ser exato.
Mas como ele mesmo disse, A todos os quais, humilde, Átila Augusto F. de
Cantando com perfeição, Mando a minha saudação. Almeida e José Alves
Para cantar afinado, Sobrinho definem num
Para cantar com paixão, Otacílio Batista chegou a varar noites verbete do Dicionário
A força não está no braço: em porfia com grandes cantadores, como Bio-Bibliográfico de Re-
Ela está no coração. o legendário Zé Limeira (1886-1954). pentistas e Poetas de
Ou puxando uma sextilha, Não conheci Limeira. Eu tinha dois anos Bancada (Editora Uni-
Ou uma oitava em quadrão, de idade quando ele morreu cantando versitária/João Pessoa
Quer a rima fosse em inha numa roda de violeiros. e Centro de Ciências e
Quer a rima fosse em ão, O escritor José Américo de Almeida Tecnologia/Campina
Caíam rimas do céu, (1887-1980), sim, o conheceu de perto. Grande, 1978), à página 166, que “Limeira
Saltavam rimas do chão! Zé Américo, criador do romance regio- era infenso ao deboche, ao emprego de
Tudo muito bem medido nalista (A Bagaceira) e político respeitado e termos chulos, à imoralidade”. E o des-
No galope do sertão. famoso – chegou a ser ministro de Getúlio crevem como tendo sido “alto, preto, de
A Eneida estava boba, Vargas e governador da Paraíba, além de dentadura perfeita, viola enfeitada, boa
O Cavalcanti bobão, personagem do próprio Limeira –, instiga- rima, boa métrica, pouca concatenação
O Lúcio, o Renato Almeida; do pelo jornalista e escritor campinense lógica nos versos”.
Enfim, toda a Comissão. Orlando Tejo, à guisa de prefácio ao livro O Os dois garantem que a Zé Limeira
Saí dali convencido poeta do absurdo, escreveu dizendo, entre são atribuídos versos que não fez, e que
Que não sou poeta não; outras coisas, que Zé Limeira era “andarilho se acham no livro O poeta do absurdo. E
Que poeta é quem inventa de sete fôlegos” e “meio carnavalesco”, que apresentam exemplos, como este de José
Em boa improvisação, “usava roupa de mescla com um lenço Pedro de Gouveia, que pode ser conferido
Como faz Dimas Batista encarnado no pescoço”. E, num detalhe, à página 110 de Repentistas e Glosadores
(Poesia Popular do Nordeste Brasileiro), Outra sextilha do mesmo Pedro, em faço/Igualzinho a Zé Limeira”, aqui exem-
de Francisco Coutinho Filho, publicado de resposta à pergunta de um padre de São plificado por Clodomiro Paes numa noite
modo independente no ano de 1937: José do Egito (PE) sobre se era coveiro ou de cantoria na capital paulista, em 1995,
cantador, se acha no livro de Coutinho durante peleja com Otacílio Batista:
Filho, à página 111:
São Paulo virou sertão
José Pedro de Gouveia Doutor analfabeto
Cantor que não é pilhérico Padre virou atleta
Tem sofrido de alguns males Na primeira comunhão
Foi atacado de histérico Eu abracei o trovão
Chame logo a junta médica São Paulo deu uma carreira
Faça o exame cadavérico! Ana Nery foi enfermeira
Que se criou no meu braço
O tipo costumava andar armado de Eu querendo também faço
faca-peixeira e pistola e uma viola pen- Do jeito de Zé Limeira.
durada às costas.
Zé limeira foi poeta provocador, de voca- Zé Limeira, segundo a lenda, cantava
bulário inovador e raro. Ele não rebuscava direitinho, igualzinho a todo mundo; só que
José Pedro de Gouveia palavras para se expressar; ele as inventava diferentemente na forma e no conteúdo de
Cantor de força vulcânica quando lhe fugiam. tudo o que se cantava até então. Os seus
Prodologicadamente Limeira fez escola e não há ainda hoje, versos eram ousados e quase sempre des-
Cantor sem nenhuma pânica entre os cantadores, quem não conheça a conjuntados, sem sentido lógico, escalafo-
Só não pode apreciá-lo sua fama e seus repentes. Prova disso é o béticos, como ele próprio haveria de dizer.
Pessoa servergonônica mote heptassílabo “Eu querendo também Otacílio Batista cantou muitas vezes

com ele, mas detestava fazer isso; fazia por O cientista Paulo Vanzolini, também au- Chegou na beira do cais
insistência do público, que gostava de ver tor de clássicos da música brasileira, como Onde o navio trefega
os dois em desafio. No dizer de Otacílio, Ronda e Volta por cima, é um apaixonado Comeu o padre Nobrega
Limeira “fazia versos sem pé nem cabeça”, pelos versos do estrambótico cantador Os tempos não voltam mais.
embora perfeitamente dentro da métrica e paraibano. Para ele, “Limeira é o maior”. E
rima: “Ele esculhambava era com a oração”. declama, antes de cair numa risada: E a seu modo, em sextilhas próprias,
Um exemplo: versifica em autoapresentação:

Eu me chamo Zé Limeira Eu sou Paulo Vanzolini


Cantador qui num é tolo Animal de muita fama
Sei tirar coro de bode Que tanto corre no seco
Sei impaiolar tijolo Como na vage de lama
Sô o cantador milhor Mas quando o marido chega
Qui a Paraíba criou-lo. Corre pra debaixo da cama

Outro exemplo, esse que tem por mote Outro apaixonado por Limeira é o repen-
o escritor Zé Américo, que dizia ser Limeira tista anarquista – e cordelista –, dos bons,
“um negro forte e alto, parrudo, dono de Allan Sales, autor destes versos ao modo
bela voz que igual nunca existiu”: limeriano:
Assis e Paulo Vanzolini
Zé Américo foi princeso Zé Limeira viu Sayad
No trono da monaiquia O velho Tomé de Souza Certo dia vendo Ensaio
De pareia cum Sansão Governador da Bahia Disse sim é do caraio
Qui guvernava a Bahia Casou-se e no mesmo dia Quando viu sua cumade
Viajaro pra Sapé Passou a pica na esposa Pois Sayad virou pade
Butaro lá um café Ele fez que nem a raposa Mas sem ganhar bom salaro
Só pra vender melancia. Comeu na frente e atrás Mas andava de camaro
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Do timão usando um gorro Porque o cordel é escrito próprios de folheto de cordel. Bom que
Não precisa ser cachorro E o repente é improvisado se diga que antes de ele enveredar pela
Para dar valor ao Faro. O cordel tem de ser lido literatura de cordel, foi cantador repentista
E o repente, cantado. citado em livros de José Carvalho de Brito
O cantador repentista passeia com de- (O matuto cearense e o caboclo do Pará) e
senvoltura pela arte da literatura de cordel, O seu parceiro Sebastião Marinho, da Luís da Câmara Cascudo (Vaqueiros e can-
ao contrário do cordelista – que não domi- Paraíba, na mesma ocasião emendou: tadores), nos 1930.
na a arte da improvisação ao som da viola.
Foram dois os pioneiros na publicação Repentista Respeitado
de versos em folhetos de cordel, no Brasil: Narra, canta e profetiza
Silvino Pirauá de Lima (1848-1913) e Lean- Gera mito, cria lei
dro Gomes de Barros (1865-1918), ambos Forma lenda e faz pesquisa
paraibanos. Os dois disputavam a chancela Cantador faz tudo isso
de Rei do Cordel. Inda canta e improvisa.
No domingo 8 de outubro de 1995, no pro-
grama Flor da Terra, apresentado ao vivo pelo Repentista em beira-mar
mineiro Téo Azevedo na extinta rádio Atual, Canta oceanos e ilhas
o repentista pernambucano José Saturnino Cordelista narra em verso
dos Santos, mais conhecido por Andorinha, O tratado de Tordesilhas Assis, com Patativa do Assaré
explica em versos de improviso a diferença Em décimas e decassílabos
entre o cantador e poeta de bancada: Sete linhas e sextilhas. Em 1997, o Memorial da América Lati-
Patativa do Assaré, de batismo Antônio na acolheu o 1º Campeonato Brasileiro de
Do cordel para o repente Gonçalves da Silva (1909-2002), desen- Poetas Repentistas. Desse campeonato,
É diferente o traçado volveu boa parte da sua obra em versos presidido por mim e vencido por Oli-

veira de Panelas, de Passira e Siba (ex-mestre Ambrósio), o Dentre os cantores/compositores mais


participaram 108 escritor e tradutor Luís Avelima, os jorna- afinados com o repentismo se acha Zé
profissionais do listas José Nêumanne Pinto, Luís Nassif, Ramalho, autor com Otacílio Batista de Mu-
improviso ao som Audálio Dantas e Fernando Coelho; o lher nova, bonita e carinhosa/Faz o homem
de violas de várias brincante Antônio Nóbrega, o novelista gemer sem sentir dor, lançada em disco LP
partes do Nordeste Benedito Ruy Barbosa, o senador Ronaldo por Amelinha, em 1982 (ouça em http://
(confira em http:// Cunha Lima (1936-2012) e o produtor mu- migre.me/c9eWk).
migre.me/c9eyE). sical Marcus Vinicius, representando o selo Zé Ramalho é um apaixonado por de-
A banca julgado- CPC/Umes, que lançaria um álbum duplo cassílabos, o que pode ser constatado em
ra foi constituída registrando o melhor do melhor apresen- http://migre.me/c9f4j.
por especialistas tado no campeonato.
CD 1º Campeonato Brasileiro do naipe de Diniz A música brasileira está recheada de
de Poetas Repentistas
Vitorino, Mocinha bons versos de repentistas e cordelistas.

Jurados: Mocinha de Passira (esq.), Luís Avelima, Siba, José Nêumanne, Diniz Vitorino, Assis, Marcus Vinicius, Ronaldo Cunha Lima,
Benedito Ruy Barbosa, Luís Nassif, Audálio dantas, Fernando Coelho e Antônio Nóbrega.

Bibliografia
É riquíssima a poesia popular brasileira. E são muitos os poetas Quiria qui os meus verso
iletrados ou semiletrados que criam verdadeiras obras-primas Andasse pelos caminho,
como Juvenal Galeno, Zé da Luz, Patativa do Assaré, Renato Caldas, Consolano os infilizes
Chico Nunes das Alagoas, Alberto Porfírio, Pedro Bandeira – criador E dano pão os pobrezi-
da Missa do vaqueiro, com Luiz nho.
Gonzaga e padre João Câncio
– e tantos e tantos; uns repen- E como fazia Patati-
tistas, como Ernesto Limeira, va do Assaré, Juca da
Agostinho Lopes, Antônio Ma- Angélica compõe cere-
rinho e José Bernardino; outros bralmente e guarda na
não, como Juca da Angélica. memória todos os seus
poemas, que se fosse Ernesto Limeira, Agostinho Lopes,
Juca nasceu em Patos de Antônio Marinho e José Bernardino
Minas e foi batizado com o declamá-los de uma vez
nome cristão de José Joaquim passava dias e dias.
de Sousa, em 1918. Ele ainda Encantado, o violeiro Saulo Alves,
Assis, com Pedro Bandeira, um dos está lúcido e produzindo belos também de Minas, acaba de musicar
mais importantes repentistas do Brasil uma pérola de Juca, Meu amor é uma
(cantou até para o papa João Paulo II) versos como estes, sob o título
Eu queria ter um peito: garça:

Eu queria ter um peito Meu amor é uma garça na beirada


Forgado como um salão, da lagoa
Brilhando de oro e prata, De longe ela é mansinha
Cheinho de inspiração, Chega de perto ela avoa
Qui quando eu desse um suspiro Na igreja ela não vai
Caísse verso no chão. Nóis tá namorando à toa.
nº 8
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(íntegra da reportagem publicada na edição de 5/12/1977 do jornal Movimento)

Zé Limeira:
“O cantador melhor
que a Paraíba criou-lo”
Assis Ângelo

Carnavalesco, irônico, ele cantava disparates,


distorcia a História e suas personagens,
desnorteava os ouvintes
“Sou nego um bocado esbagaçado,
Sou o vate da glória desta terra,
Sou a febre que chama berra - berra.
Mastigando, eu sou cobra de veado,
Sou jumento por fora do cercado,
Sou tabefe que deram em seu Lameu;
Se tiver bom guardado bote n’eu.
Seu caminho de bonde ruim, estreito, povo simples do sertão, do Nordeste: “Sou grossos de anéis. Cantando, com uma
Você hoje me paga o que tem feito o cantador melhor/que a Paraíba criou-lo”. bonita voz, erguia, desdenhoso, o rosto
Com os poetas mais fracos do que eu” No gênero, ninguém jamais duvidou. guarnecido de grandes óculos escuros”.
José Américo de Almeida fala dele: “Esse A cantoria, ato de versejar de improviso,
Zé, José Limeira, cantador de voz trove- José Limeira, chamado o poeta do Absurdo, peleja entre dois ou mais poetas, também
jante, nascido em fins do século passado era doido ou um vidente. A figura humana polêmica rimada e metrificada, surgiu nos
nas serras do Teixeira (Paraíba); caboclo for- encarnava um misto de excentricidade e primeiros anos do século XIX em Teixeira,
te, troncudo, “macho até debaixo d’água”; simpatia. Alto, forte, sorridente, impressio- município paraibano a 70 quilômetros da
ora malicioso, ora ingênuo, de um lirismo nava pelo físico e maneiras destabocadas. Capital. O primeiro expoente dessa nova
rudimentar (“No dia qu’eu me zangar, Andarilho de sete fôlegos, trazia o matulão arte foi Francisco Romano Caluete, o Ro-
mato você de carinho”), hoje está morto. a tiracolo e não largava a bengala de aro- mano da Mãe D’Água.
Seus ditos, porém, feitos de repente, ao eira, feita um bordão. Meio carnavalesco, “São os titulares da cantoria os mais
som da viola e em noites claras de luar, usava roupa de mescla com um lenço autênticos representantes de todos os
permanecem bem vivos na memória do encarnado no pescoço. Seus dedos eram bardos, dizendo pelo canto improvisado,

com admirável talento, a crônica dos vultos Peço licença ao truliso Embora inegável o talento de José
renomados da região em que labutam, os Dos olbus da periféria, Limeira, somente agora o poeta começa
acontecimentos históricos, os fatos sociais Dos chuás das pontulínias, a ser descoberto. Há dois anos, em João
recentes, em desafios que duram noites in- Dos chomotos das matérias, Pessoa (Paraíba), o teatrólogo José Bezerra
teiras”, diz o escritor Orlando Tejo, autor de Das grotas dos veluais, Filho conseguiu lotar, por vários meses,
um livro sobre José Limeira, e acrescenta o Das mimosas deletérias. as dependências do Teatro Santa Rosa, a
folclorista Câmara Cascudo: “Os cantadores principal casa de espetáculos da Capital
independem das cidades e dos cultos; vi- Seu estilo individualíssimo jamais foi paraibana, com a peça “Zé Limeira, o Po-
vem no ambiente limitado, zona de confor- confundido ou imitado por poeta algum; eta do Absurdo”. Alguns compositores e
to restrita, mas real, para primava pela distorção histórica, dava vida intérpretes da música popular brasileira,
uma existência fabulosa a paus e pedras, fazia o papa comer grama, também começam a se interessar pelo
de miséria e de encanto lutar boxe ou beber cachaça consigo num cantador do Teixeira. “Mas é de se crer que
intelectual inconsciente”. boteco: só o tempo poderá definir José Limeira,
Limeira, até hoje, tal- posto que até agora ninguém o situou bem,
vez tenha sido o mais Quando Jesus veio ao mundo pondo-o no lugar de destaque que sempre
inconsciente de todos Foi só pra fazer justiça mereceu”, diz Tejo.
os poetas. Ele cantava Com treze anos de idade Um contista pernambucano, Hugo
disparates, os mais inima- Discutiu com a doutoriça; Pinotti, classificou Limeira como sendo
gináveis; desnorteava os Com trinta anos depois “um poeta rústico abstracionista”. Em
cantadores que ousavam Sentou praça na polícia. Recife, um crítico escreveu num jornal: “O
desafiá-lo: estilo desse cantador é nítido-abstracional-
-impressionista”. E outro disse: “José Limeira riqueza da música, não esquecendo o nexo do sonho”. E José Limeira, segundo o teste-
é um surrealista, ultra-sincretista e futurista das palavras e esmaltando, com as cores munho da época, foi um músico excelente.
nitidista”, que não se sabe o que venha a dos sons, os mais deslumbrantes cenários Dizem que a música natural dos seus ines-
ser esta estranha definição. O fato é que há perados e fabulosos repentes teria sido
interesse em torno do autor destes versos. um prêmio da natureza para compensar a
permanente ausência de sentido poético.
Eu sou um nego moderno: “José Limeira tinha a música tão em si,
Foi não foi, estou pensando. tão sua, que essa sensibilidade foi uma
constante em todos os seus movimentos
E destes: de aedo inculto”, diz Tejo, e acrescenta: “Não
Eu e o mestre da festa é que ele – Limeira – se preocupasse com
Canto até ficar de dia. essa faceta da poesia, porque talvez haja
Na terra só tem tristeza, desaparecido sem saber que foi antes de
No céu só tem alegria tudo músico. Todo músico. E isso não deixa
Se um dia eu fosse chamado de ser uma positiva qualidade poética, pois
Pra cantar no céu, eu ia. o elemento pode ser poeta sem ser músico
e vice-versa, mas não será bom. A sonori-
Para o escritor Orlando Tejo, o bom dade que transbordava na verve do Poeta
cantador, a rigor, “é aquele que, além de do Absurdo é um requisito quase ausente
deter necessárias virtudes artísticas, valor na maioria dos poetas de viola, embora eles
intrínseco, prima pelo ritmo do verso, pela Nordeste: cordel, repente, canção – por J. Borges não aceitem, de bom grado, a realidade
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desta observação (...) Indubitavelmente, A santa filosomia Eu sou corisco pastando


falta à maioria dos nossos cantadores o Descreve os peixes do mar, No vergel da ventania,
senso de responsabilidade artística que os As sereias do sertão, Oceano desdobrado
leve a penetrar no âmago da técnica, para Mula preta e mangangá, No véu da pilogamia.
a plenitude do canto. Esse pecado Limeira Mulher de saia rendada, No dia trinta de maio
não cometeu, em toda sua vasta e intensa Moça branca misturada, Pelei trinta papagaio;
trajetória de nômade da viola. E é por força Carro de boi jatobá. Santo Deus, Ave Maria.
do talento musical que ele poderá fixar-se
no próprio tempo, eternizando toda uma Zé Limeira, quando canta, José Limeira jamais se utilizou de qual-
obra divinamente aberratória”. Credo em cruz, Ave Maria. quer meio de transporte para chegar ao Rio
Em 1951, no então distrito campinense Canto debaixo da terra Grande do Norte, atravessar a Paraíba – do
(Paraíba) de Lagoa Seca, durante uma Na santa filanlumia, litoral ao sertão, do agreste ao curimataú –,
cantoria, Limeira criou termos até hoje Nos arrecife ou na roca. Ceará ou Alagoas. E quando alguém sugeria
ainda desconhecidos: Filosomia, Filanlumia, Três mulher de perna grossa, um Jeep, uma camioneta ou mesmo um
Pilogamia etc.. Três bigode, três luzia. carro de boi para leva-lo aonde pretendia,
ele simplesmente dizia: “Oxente, mestre,
Zé Limeira na literatura de cordel

precisa não; os pé foi feito pra carregar a madrugada, ocorreu o imprevisto maior: E réplicas de parceiros famosos, como
gente”. Dito isso, saia a pé, sempre a pé, com Limeira, com os seus quinze anéis reluzindo Arrudinha da Paraíba:
o inseparável matulão surrado a tiracolo, ao luar, quando findava uma estrofe do
cheio de mantimentos e quinquilharias; beira mar, a viola escorregou de suas mãos Eu jamais ouvi falar
a viola às costas, uma velha espingarda e ele deslizou devagar da cadeira onde Nessa tal de juvenia,
de dois canos nas mãos e muita vontade estava, morto de repente, num repente. Nem tampou em aldiácos
e disposição para cantar. Dessa forma, Dessa sua silencia.
caminhou até os 68 anos. E morreu como “Se um dia eu fosse chamado Limeira, me fale sério:
quis: cantando. prá cantar no céu, eu ia” Que diabo é grodofobia?
Após muitos meses de andanças, Limei-
ra voltava para casa, no dia 23 de dezembro E foi. Mas os seus versos ficaram: E ele “explicava”:
de 1954 – data do aniversário da esposa,
Bela. À noite, um poeta alagoano – Bentevi Peço licença ao prugilo O Mestre ainda não sabia
–, que se encontrava pelas redondezas, Dos quelés da juvenia, Que Jesus grodofobou?
o desafiou para uma cantoria. Imediata- Dos tolfos, dos aldiácos, Apois fique conhecendo
mente, a notícia espalhou-se: Zé Limeira Da baixa da silencia, Que Limeira prugilou
ia cantar. A casa encheu-se de gente, e os Do genuíno da Biblia, E o cipó de seu Pereira
violeiros começaram. Lá para as tantas da Do grau da grodofobia. Também já juvenciou!

Você sabia? Que o acervo do Instituto Memória


Brasil abriga mais de 150 mil itens,
Que o acervo do Instituto Memória
Que o jornalista e estudioso da cul- Brasil vem sendo formado há 40 anos
entre discos de todos os formatos, e que nele há peças raríssimas que seu
tura popular Assis Ângelo é presidente partituras, fotos, livros, jornais e revis-
do Instituto Memória Brasil, criado presidente, Assis Ângelo, adquire nas
tas antigas? viagens que faz pelo País e Exterior?
em 2011 para preservar e divulgar o
seu acervo?
Que saiu do acervo do Instituto Que o Instituto Memória Brasil, por
Memória Brasil a exposição multimí- meio de seu presidente Assis Ângelo,
dia Roteiro Musical da Cidade de São cedeu informações e material sobre o
Paulo, que o Sesc Santana instalou na Rei do Baião para o documentário e
sua área de Convivência II? filme Gonzaga, de Pai pra filho?

Expediente – Jornalistas&Cia Especial Memórias da Cultura Popular é uma publicação mensal da Jornalistas Editora Ltda. (Tel. 11-3861-
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mação visual: Paulo Sant’Ana (pr-santana@uol.com.br). É permitida a reprodução desde que citada a fonte.

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