O Filho Do Dragao - Sandra Carvalho PDF
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O Filho Do Dragao - Sandra Carvalho PDF
Sobre a obra:
Sobre nós:
***
«Hei de olhar por ti, até que a última partícula de energia abandone a
minha essência.»
— Avó...?
A feiticeira Catelyn da Ilha dos Sonhos acolheu-me ao acordar. Os
seus braços abriram-se e o olhar verde-floresta refletiu o meu, num
entendimento perfeito. Afundei-me no seu peito e estreitei-a com
desespero. Estaria viva ou morta? Não sabia... Só sabia que, se não soltasse
o pranto, haveria de me afogar numa enchente de lágrimas reprimidas.
Por fim, a tranquilidade da sua aura apaziguou o meu tormento. De
alguma forma, a partilha da dor tornava-a menos implacável, mais
suportável. Afastei-me o suficiente para encarar a minha avó e trocámos
um sorriso triste. Depois, os meus olhos gastos fixaram o avô Throst, que
se quedava envolto na luz branda do espaço infinito que nos sustinha,
ostentando a expressão serena que sempre me transmitia confiança.
Respirei fundo e permiti-me descontrair. Se chegara a minha vez de
atravessar a passagem para uma nova existência, era uma honra fazê-lo
sob a proteção de Pequena e de Lobo Cinzento.
— Não estás a morrer, querida — murmurou Catelyn, ciente dos
meus pensamentos. — O teu ataque a Korn deixou Deimos tão receoso que
ordenou que te aprisionassem com correntes de magia negra. Em pouco
tempo, estas consumiram a tua energia... Estás muito fraca! Porém, não te
inquietes. Enquanto acreditarem que és Oriana, ninguém atentará contra a
tua vida.
As recordações trespassaram o véu da placidez que me confortava,
ferindo como lâminas. O rosto de Lysander surgiu na minha mente e as
lágrimas regressaram-me aos olhos. O meu amor... O amor que eu perdera
para sempre!
«Enlouqueces-me, menina-feiticeira... Já não consigo viver sem ti!»
Depois de Deimos invadir a Ilha dos Penhascos e exigir que Oriana
lhe fosse entregue, o príncipe da Gente Bela quisera introduzir-se em
segredo num dos navios da frota inimiga. O seu objetivo era matar o meu
gémeo, convicto de que só assim desfaria a profecia que condenava a Terra
a vergar-se à vontade suprema do Filho do Dragão. Porém, eu resolvera
detê-lo e tomara o lugar da Sacerdotisa. Estava segura de que o meu
sacrifício preservaria Lysander, libertaria os reféns que Deimos ameaçava e
concederia tempo aos líderes do meu povo para organizarem os seus
exércitos. Com Oriana livre de perigo, Thorson não teria de entregar as
Lágrimas do Sol e da Lua a Sigarr. Logo, Halvard seria incapaz de
concretizar a maldição.
«Uma decisora deve decidir», declarara a Senhora da Magia, antes de
me entregar a pedra azul de Aranwen que selara o meu destino. E eu
tomara a decisão correta... Ou não?
— Fiz o que era devido, avó? — indaguei, sufocada. E afligi-me
quando o seu semblante se anuviou.
— Não sei, querida... Sinceramente, não sei.
A réplica atingiu-me como uma bordoada na cabeça.
— Não sabes? — reclamei agoniada. — Mas se consegues perscrutar
o futuro...
— A tua iniciativa alterou os cursos já traçados — atalhou ela
sobriamente. — Neste momento, novos destinos estão a ser delineados... E
muitos pendem das resoluções que tens pela frente.
— Isso não é bom? — arquejei. — Quero dizer, se Sigarr tivesse
capturado Oriana seria o fim...
— A responsável pela sorte da Terra não é Oriana, Kelda... És tu! Ao
interferires na sina da Sacerdotisa dos Penhascos colocaste-te à mercê de
Sigarr. Entregaste aos Feiticeiros a arma mais poderosa que o Homem
possuía.
— Não entreguei nada! — retruquei indignada.
— Eles têm meios de deturpar o teu julgamento — interpôs-se Lobo
Cinzento, afligindo-me ainda mais. — Esqueces que Halvard está do seu
lado?
— Já não confiais em mim? — interpelei. — Hei de impedir a
concretização da profecia!
— Por mais que o almejes, não podes fazê-lo sozinha — contestou
Pequena. — A maldição do Filho do Dragão assenta em três pilares: o
protetor, o decisor e o executor. Só a união dos seus esforços cumprirá, ou
contrariará, a vontade do Guardião da Montanha.
Tentei raciocinar por entre as vagas de pavor que me roubavam o
fôlego, ciente de que todos os esclarecimentos que pudesse obter dos meus
avós seriam preciosos:
— Se eu sou a decisora e Lysander o protetor... Thorson é o
executor?
— As marcas com que nasceu assim o determinam — justificou
Lobo Cinzento.
Com mil ratazanas aduncas, isso queria dizer que eu necessitava do
apoio de Lysander e de Thorson para quebrar a maldição? Sacudi a cabeça e
inquiri, atormentada:
— O que posso fazer agora? É impossível voltar atrás! Além disso,
esta é a minha oportunidade de encontrar o meu irmão... De tocar o seu
coração e chamá-lo à razão! Se eu conseguir provar-lhe que o trilho que
percorre só lhe trará sofrimento, ao invés de glória, Halvard há de insurgir-
se contra Sigarr. E a guerra terminará!
Os meus avós entreolharam-se. Não pareciam minimamente
entusiasmados com a minha afirmação. Havia uma tristeza nos seus olhos;
um profundo pesar, como se desejassem ardentemente dizer algo e
estivessem impossibilitados de fazê-lo. E eu até adivinhava do que se
tratava... Throst e Catelyn duvidavam que Halvard sequer me ouvisse,
quanto mais que mudasse de rumo por minha causa. Porém, melhor do que
ninguém, deviam entender que eu tinha de tentar! Desde o dia em que vira
Sigarr raptar o meu gémeo que vivia para salvá-lo.
Preparava-me para romper o silêncio quando Lobo Cinzento enunciou:
— Nós não podemos interferir nas tuas resoluções...
E Pequena completou:
— Sempre que tiveres de decidir, toma o discernimento como aliado.
Nesta guerra, a precipitação será a tua maior inimiga.
— Então, não devo seguir o coração? — questionei ainda mais
confusa.
De novo hesitaram e foi a minha avó quem respondeu:
— O coração pode salvar-te ou condenar-te.
— Não estou a perceber...
A voz falhou-me ao verificar que os seus corpos perdiam
consistência. Num ápice, o que era sólido desvanecia-se em névoa. Ciente
do que ia acontecer, gritei terrificada:
— Não! Não me deixem sozinha!
— Tens de regressar, Kelda — perfez Throst no seu tom de comando.
E Catelyn concluiu, fenecendo a voz doce com a essência:
— Tu não estás sozinha, meu amor! Nunca estarás sozinha...
***
— Sigarr!
O grito escapou-me dos lábios quando recobrei a consciência. Sentei-
me a esbracejar, como se tentasse empurrar o mestre da Arte Obscura
para longe. Antes de desmaiar, reconhecera o homem que me libertara de
Deimos! Sigarr interferira no nosso confronto e prostrara o pupilo. Depois,
impregna-me de energia curativa... Teria eu delirado? Com mil ratazanas
aturdidas, que motivo escuso levaria um dos meus maiores inimigos a
resgatar-me?
— Sossega, Kelda... Estás segura aqui.
Virei o rosto e deparei com uma mulher. De imediato, recuei, com a
respiração alterada e o coração prestes a saltar pela boca. Encontrava-me
num quarto iluminado por uma luz sadia, no aconchego de uma cama tão
larga que facilmente albergaria uma família numerosa, sobre o colchão
mais confortável que alguma vez experimentara. As mantas que me
envolviam eram extraordinariamente leves... Aliás, tudo o que me rodeava
parecia concebido para desfrute de um rei, desde os reposteiros de seda
que oscilavam ao sabor de uma brisa morna até à jarra de cristal que
enfeitava uma pequena mesa redonda.
Após o primeiro abalo, titubeei de assombro ao verificar que me
mexia sem dificuldade. Levei a mão esquerda ao peito, enquanto abria e
fechava a direita. Estava sarada! Mas como? Mesmo admitindo a
intervenção de Sigarr, a sua energia não era suficientemente forte ou pura
para realizar tamanho prodígio! Abismada, afastei o decote da camisa de
linho que me cobria, para confirmar que não sobrara uma ferida, uma
cicatriz ou mancha na pele para testemunhar o suplício que vivera. E os
meus ossos estavam intactos! Era impossível! A cauda de Deimos
quebrara-me ao meio... Não existia magia capaz de sarar tamanha lesão!
A mulher levantara-se do cadeirão almofadado e fixava-me
atentamente, estudando as minhas reações. O olhar castanho revelava
inquietação, como se espantada pela violência do meu despertar. Era bonita,
graciosa e delicada, com cabelos cor de terra molhada, que lhe cobriam os
ombros e ondulavam até à cintura. Não parecia mais velha do que eu...
Todavia, os seus olhos denunciavam uma sabedoria centenária. Tratava-se,
sem dúvida, de uma feiticeira! No entanto, essa ilação não me trouxe
qualquer receio. Surpreendentemente, o meu instinto de preservação
adormecera como se nada houvesse a temer.
— Onde estou? — indaguei. — Quem sois vós?
Após um gesto de assentimento, enunciou com clareza:
— Estás na Ilha Sagrada e eu sou aquela que responde perante o
Conselho como «Observadora». Mas podes chamar-me Íris, pois é esse o
meu nome.
Agonizei por mais uma migalha de informação, mas a feiticeira
fechou-se num silêncio reflexivo. No entanto, o que declarara era
suficientemente grave! Eu estava na Ilha Sagrada... E diante de uma
Observadora! Lembrei-me dos livros que o meu trisavô Hakon escrevera,
para elucidar os seus descendentes acerca da sua origem. Antes de se
tornar Guardião da Lágrima do Sol, e enquanto membro do Conselho,
também ele fora um Observador, com a missão de estudar os humanos e
descobrir formas de harmonizar as relações das duas raças. Partilharia Íris
da boa vontade de «O Que Tudo Vê»? Não! Os Seres Superiores tinham
declarado guerra ao Homem, o que fazia desta mulher uma inimiga.
Porém... Porque é que não me sentia constrangida na sua presença?
A quietude do quarto oferecia-me o canto primoroso dos pássaros
que repousavam na varanda. Era apaziguador... Trazia-me à memória as
manhãs da minha infância, na Montanha Sagrada, quando acreditava que a
vida era uma dádiva maravilhosa. Apeteceu-me fechar novamente os
olhos... Contudo, não podia! Urgia descobrir porque os meus captores me
tinham trazido para o seu covil. Talvez ciente da minha ansiedade, Íris
ripostou:
— Ainda estás fraca, Kelda. Deves descansar mais um pouco.
Preparava-se para partir, mas detive-a com um gesto aflito.
— Espera! O que foi que me aconteceu?
— As perguntas podem aguardar até que estejas recuperada...
— Exijo saber como cheguei aqui! — cortei, tentando sair da cama.
Todavia, mal os pés tocaram no chão, as pernas vergaram-se como se
fossem feitas de geleia. Apesar de sarada, não possuía um pingo de energia
no corpo! Se a feiticeira não corresse para me amparar, ter-me-ia
estatelado sobre o tapete.
— És mesmo teimosa! — exclamou exasperada.
— Não sabes quanto... — comecei a trincar, mas ela atalhou com
firmeza:
— Sei! Sei muito bem!
A réplica deixou-me perplexa. Estava prostrada nos seus braços, por
isso era tolice contrariá-la. Soprei de frustração, mas permiti que me
deitasse na cama e ajeitasse as cobertas, como se cuidasse de uma
criança. Achei que ia virar costas e ignorar a minha angústia. Porém, após
um longo suspiro de resignação, sentou-se ao meu lado e justificou:
— Foi Sigarr quem te trouxe.
— O quê?
— Depois do que sofreste é natural que não te recordes... Sigarr
salvou-te de Deimos e entregou-te à mercê do Conselho. E o Mestre
Supremo decidiu a teu favor! — Fez uma pausa, como se a complacência
do seu soberano ainda a pasmasse. Depois, prosseguiu: — A tua cura foi
um desafio para os Mestres Doutos. Mesmo com a mais excelsa magia da
Ilha Sagrada ao teu dispor, estou convicta de que só sobreviveste por
milagre.
Arfei e mal encontrei voz para indagar:
— Como foi que Sigarr soube...?
— Eu alertei-o — retorquiu, deixando-me para lá de assombrada. —
Como Observadora, apercebi-me do que estava a acontecer. E, tal como
Erebus, calculei que Sigarr quisesse proteger a irmã de Halvard. Porém, tive
de enfrentar Ingimar...
— Ingimar?
— Suspeito de que foi ele quem ordenou a tua morte. Deimos não
ousaria assentar-te um dedo sem a garantia de que alguém mais influente
haveria de livrá-lo do castigo do seu mestre. — Ao inferir a natureza da
minha interrogação, prosseguiu: — Ingimar é o maior inimigo da causa que
defendes. Foi ele quem convenceu o Conselho a declarar guerra ao Homem.
— Mas... Porquê?
Desta feita, as mãos de Íris envolveram-me os pulsos e exibiram as
tatuagens do Guardião da Montanha, antes de esclarecer:
— Porque Ingimar é irmão de Hakon e, como tal, acha-se herdeiro
legítimo do poder da Lágrima do Sol. Nunca se conformou por o teu trisavô
ter confiado esse legado à tua mãe, ao invés de restituí-lo à Ilha Sagrada.
E, desde então, não se poupa a esforços para reavê-lo.
Por isso eu reconhecera os traços da minha mãe no rosto do
facínora! Como era possível que conspirasse tão vilmente contra a própria
família? Expressara com clareza o seu rancor: «Aberração!», clamara,
assim que me pusera os olhos em cima. Pensar que, graças ao irmão, o
sangue abençoado da sua linhagem se misturara com sangue humano devia
enlouquecê-lo de ódio. Os Feiticeiros sempre tinham visto o Homem como
criaturas inferiores, destinadas a servi-los. Outrora, escravos... Agora,
inimigos. Uma praga que devia ser exterminada!
Engoli em seco e puxei pelas mãos, evitando o contacto com Íris.
Depois, interpelei-a, sem me dar ao trabalho de ocultar a suspeição que me
agitava:
— Porque intercedeste por mim? Sei que os Observadores estão
proibidos de se imiscuírem nos assuntos dos Homens!
A feiticeira empinou o nariz, como se a minha aspereza a ofendesse.
Levantou-se da cama e contraditou friamente:
— Então, é bom que também saibas que nem todos os feiticeiros
têm o Homem como inimigo! Não obstante ser uma Observadora, a
simpatia que sempre dediquei à tua família impediu-me de assistir
impassível, enquanto Deimos te esquartejava. Porque ousei apelar a Sigarr,
fui punida... E o meu castigo é ter-te na minha casa e ser confrontada com
a tua desconfiança, após ter arriscado o pescoço e a honra para te salvar!
Neste momento, não é só o teu destino que está a ser decidido, Kelda... A
minha sorte também pende no gume de uma lâmina.
E saiu do quarto, desembestada.
Após um instante de aturdimento, escorreguei até às almofadas,
perplexa com o que acabara de ouvir. Que um raio me fulminasse e
reduzisse a pó! Nada fazia sentido! Quem era Íris, afinal? Qual a sua
ligação à minha família? E a Sigarr? Porque quebrara as regras impostas
pelo Conselho, para me livrar de uma morte certa?
Com tantas questões a atormentarem-me, ser-me-ia extremamente
difícil adormecer... Mal completara o pensamento, já flutuava rumo ao
mundo dos sonhos.
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Segui Erebus com os dentes a bater, tal a ânsia que me queimava por
dentro. Saímos do palácio a cavalo e atravessámos a cidade nova. Depois,
galopámos ao longo da muralha de pedra, até as casas ficarem para trás. O
vento gélido da noite formava remoinhos de areia, os quais se elevavam à
nossa frente, fustigando-nos como se ordenassem:
«Para trás! Estais a profanar terreno sagrado!»
Não me agradava embrenhar-me na escuridão do deserto, mas faria
o que fosse preciso para encontrar o meu pai. Confiava no meu primo, por
isso não estava assustada. Erebus continuava ao longo da muralha, como se
se guiasse por ela. E o enorme paredão que dividia as cidades e impunha
respeito foi diminuindo de altura à medida que avançávamos. Por fim,
concluí que não era a muralha que se tornava mais pequena, mas o deserto
que reclamava território. Durante centenas, talvez milhares de anos, o
vento fora depositando areia em redor da pedra, longe da influência do
Homem. Inclusive, havia locais onde a muralha fora engolida e a referência
desaparecia sob os cascos dos cavalos. Ainda assim, o «Criador das
Trevas» não hesitava.
O nosso destino parecia ser a duna que se elevava adiante. Quando a
alcançámos, o meu queixo pendeu de assombro ao verificar que não
estávamos perante uma colina de areia, mas de uma construção de pedra
que as forças do deserto também tinham acabado por tragar. No entanto,
apenas a sua superfície estava oculta. Debaixo dos nossos pés, uma laje
destacava-se, terminando em degraus que se afundavam no solo.
— Desmontar — mandou Erebus. E nem me passou pela cabeça
contrariá-lo.
Olhei por cima do ombro. Estávamos tão longe da cidade que as
luzes dos archotes que iluminavam as ruas se fundiam com as estrelas.
Em nosso redor, montanhas e mais montanhas de areia sobrepunham-se,
em contornos pouco precisos. Mesmo apelando à capacidade de enxergar na
noite, sentia dificuldade em rasgar as trevas. Os meus pelos eriçavam-se...
E não devido ao frio! O desconforto que me tolhia era instintivo; gelava os
ossos e arrepiava a essência. Observei a laje com atenção e reparei que
estava repleta de desenhos. A areia disfarçava alguns, mas o símbolo da
flor lacrimosa ressaltava à minha perceção como se incandescente.
— Kelda... — apelou Erebus num sussurro, como se temesse que
alguém nos escutasse. Ou será que receava despertar um espírito maligno?
Descia os degraus e já quase desaparecera de vista. Apressei-me a segui-
lo, com o coração em debandada e a respiração a falhar. Só esperava que
nada espantasse os cavalos! Se eles fugissem, teríamos de regressar a
pé... E esse pensamento era quase tão assustador como o mistério que se
desvendava ao meu olhar.
Comecei a descer, sentindo o cheiro do óleo escondido nos nichos da
pedra, à espera de fogo para iluminar a bruma. Uma chama, ainda que
mísera, seria reconfortante na cerração que me sufocava. Porém, era óbvio
que Erebus não aprovaria a iniciativa, com medo de que alguma consciência
se apercebesse da nossa transgressão. De repente, deparei com um
pequeno átrio... Pela lógica, se a areia tragara a muralha, mais depressa
deveria ter sepultado este lugar! Porém, tudo se sustinha incólume, como
se mãos devotas continuassem a atender à sua conservação.
À nossa frente, erguia-se uma parede de pedra com a flor lacrimosa
em amplo relevo. Seria um altar? De ambos os lados, éramos ensombrados
por estátuas de ouro que pareciam fixar-nos: cabeças de serpente sobre
corpos de feras aladas. Com alguma imaginação confundir-se-iam com
dragões. Decerto, Halvard sentira-se em casa quando aqui chegara!
Lembrei-me da história que me contara. Provavelmente este lugar fora
construído para proveito do feiticeiro que reinara no território, após ser
expulso da Ilha Sagrada. Por isso, encontrar representações de dragões não
era algo excecional. Talvez o monstro dourado que vigiava o meu sono até
já reinasse no quarto que o meu irmão ocupara, antes da sua chegada! Quis
interrogar Erebus... Contudo, a sua urgência era óbvia:
— Apressar! Mestre poder regressar!
Fitei-o com estranheza. Para onde queria ele que eu fosse? Então,
dirigiu-se à parede que se erguia entre as estátuas e pressionou a lágrima
que a flor de pedra chorava. Um som cavo como um trovão ressoou-me
aos ouvidos e o chão estremeceu. Engoli em seco, sentindo-me uma tola.
Afinal, a parede mais não era do que uma porta que se afundava aos
nossos pés, revelando uma passagem. Preparava-me para descarregar uma
saraivada de questões, mas Erebus calou-me com um gesto firme, silvando
tão baixo que mal o consegui entender:
— Túmulo reis nativos. Kelda fechar boca, andar rápido.
E desapareceu nas entranhas da terra.
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Para sobreviver entre as feras não basta vestir a pele de uma... E se,
para vencer esta guerra, Kelda da Montanha Sagrada tinha de renunciar à
consciência e incorporar um animal carniceiro e sanguinário, assim seria!
Estava pronta para enfrentar o meu destino.
De volta ao meu quarto, acabara de tomar um derradeiro fôlego de
resolução quando a trompa que convocava os guerreiros para o início da
ofensiva ao Império do rei Bernard estrondeou. Prestes, Erebus batia à
porta para me escoltar até ao navio. Antes que eu pudesse indagar sobre os
incidentes dessa noite, os seus lábios sibilaram um aviso cortante:
— Silêncio! Falar nada! Nada!
A sua expressão denunciava um sofrimento profundo. Erebus
acompanhara a investida de Halvard, mas não se orgulhava do que fora
obrigado a fazer sob as suas ordens. Aliás, a forma como evitava o meu
olhar revelava a vergonha que sentia, por ter de se expor ao meu juízo.
Acatei as suas instruções e segui-o sem me manifestar. Porém, não
obstante estar ciente de que o ataque de ódio do Filho do Dragão deixara a
cidade bastante ferida, depressa descobri que a realidade se declarava mil
vezes mais abominável do que me atreveria a imaginar.
O meu irmão não se limitara a caçar os guerreiros que, apesar de
lhe terem jurado obediência, haviam continuado a servir o general Mazin. A
sua vingança estendera-se às famílias desses homens, com uma
inexorabilidade cega. Os anciões tinham sido arrancados das suas camas,
arrastados para a rua e chacinados, após assistirem impotentes ao
deflagrar dos incêndios que lhes consumiam as casas, com as mulheres e
as crianças encarceradas no interior. Desse modo, não restava ninguém
para protestar ou reclamar vingança... E, se essa vontade ainda persistisse
num espírito mais afoito, a sorte da família real devia ser suficiente para
forçar a dissuasão.
Os corpos espetados em estacas, à entrada do porto, garantiam que
nenhuma consciência deste território esqueceria a supremacia do Filho do
Dragão. Enquanto conduzia o meu cavalo até ao barco, atrás de Erebus, os
meus olhos eram atraídos para aquela pravidade, o coração acelerava, os
dentes rangiam... O meu gémeo degolara as mulheres de Mazin e empalara
os seus filhos e sobrinhos, sem distinguir rapazes e raparigas. Ao passar
pelos cadáveres, constatei que pelo menos três dos desafortunados jovens
exibiam a marca da flor lacrimosa. Para conseguir usurpar-lhes a magia que
tanto invejava, Halvard teria sido forçado a esperar vários anos, até que
esta amadurecesse... Decerto não quisera correr riscos e preferira eliminá-
la da face da Terra. Eu só esperava que ele se convencesse do seu sucesso,
para minha segurança.
Sigarr passou por nós, também a cavalo. Senti o coração bater mais
forte quando o nosso olhar se cruzou. Continuava sem perceber se aquele
sonho perverso fora obra sua. Se o feiticeiro desenvolvera um interesse
doentio por mim, haveria de tentar quebrar os laços que me uniam a
Lysander, dilacerando a minha confiança para obrigar-me a questionar o
afeto do príncipe... Mesmo assim, custava-me a acreditar que tal fosse
verdade! Não obstante, a noite valera pelos sortilégios que aprendera. E
Lysander teria muito que me explicar acerca das suas omissões quando nos
reencontrássemos!
— Olha por ela — ordenou Sigarr a Erebus, interrompendo as minhas
congeminações.
Ainda mais confusa, vi-o dirigir-se a um grupo de guerreiros, que
reconheci como seus generais. Aparentemente, estes também não iriam
embarcar. O feiticeiro dissera ter assuntos a tratar... Quase de certeza ia
observar a conclusão dos navios que ainda não estavam prontos para
enfrentar o mar, assim como reunir homens para refrescar o Exército do
Dragão, a meio da campanha. Além disso, devido à loucura do pupilo, agora
também teria de apaziguar os ânimos dos nativos e devolver tranquilidade e
alento à cidade destroçada.
Enfim chegámos ao navio. Estava tão chocada que, mesmo que
pudesse cuspir o meu horror na cara de Halvard, não conseguiria. O meu
irmão gémeo aguardava-nos à proa, altivo e soberbo, com as malditas
tatuagens a rutilarem sob a luz do Sol: «Eu ascenderei e o Homem
tombará!» E o dragão parecia prestes a saltar do seu peito nu, fulminando-
me com o olhar ígneo, enquanto rugia:
«Eu sei o teu segredo... E vou denunciar-te! Hei de comer a tua
carne, beber o teu sangue, assimilar o teu conhecimento e deleitar-me com
a tua magia... Não perdes pela demora!»
CAPÍTULO 18
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***
Carreguei Erebus, com a ajuda de dois guerreiros, até uma das casas
do povoado que escapara incólume, enquanto um terceiro corria em busca
de Halvard. Após deitar o meu primo numa cama, ordenei aos homens que
montassem guarda no exterior. Não me contestaram.
Encontrei água fresca na cozinha, dentro de um caldeirão de ferro, e
concentrei-me em limpar os ferimentos do «Criador das Trevas», em
molhar-lhe os lábios e mantê-lo quente sob as mantas, a fim de estimular
a sua prodigiosa capacidade de sarar. Não obstante, sabia que travava uma
luta inglória contra o tempo... O Sol não tardaria a nascer. E com o seu
decisor prostrado, Halvard não abandonaria a cidadela tão cedo. Os
guerreiros do Império que eu varara com a espada mágica iam ressuscitar
para serem novamente mortos. E o meu irmão perceberia que algo de
anormal se passava! Além disso, as mulheres e as crianças deviam estar a
despertar. E a confusão nas suas mentes haveria de fazê-las sair do
esconderijo...
— Kelda bem?
Erebus acabara de recuperar a consciência e fitava-me com uma
expressão atormentada. Engoli a ansiedade e gracejei ternamente:
— Estás todo desfeito e preocupas-te comigo?
— Erebus gostar prima.
A sobriedade da sua réplica desconcertou-me. Mergulhei nos poços
profundos do seu olhar e acariciei-lhe a face com a ponta dos dedos,
enunciando com absoluta sinceridade:
— Tive muito medo de te perder... Lamento que estejas a sofrer por
minha culpa.
Então, ele ergueu a mão trémula para segurar a minha. Julguei que ia
afastar-me e pasmei quando a levou aos lábios e beijou suavemente,
murmurando:
— Prima boa. Erebus aprender. Compreender luz. Gostar luz. Sofrer
boa causa.
Quedei-me, assolada pela comoção. Recordava-me bem do dia em
que o abraçara e ele me repelira, incapaz de suportar o toque, o carinho;
demasiado amargurado para acreditar que alguém pudesse realmente
apreciá-lo, sem se importar com a sua aparência. O beijo que acabara de
me oferecer tinha um valor inestimável! E ouvi-lo confessar que começava
a desfrutar da luz da sua essência era uma conquista extraordinária. Talvez,
um dia, o nosso elo pudesse sarar a sua alma! Debrucei-me e beijei-o na
face, antes de replicar sobriamente:
— Sei que te arrelia contrariar Halvard, mas acredita que estás a
fazer o que é certo.
O meu primo tornou a surpreender-me, ao soltar uma gargalhada:
— Kelda beijar mais... Erebus fazer certo sempre!
O «Criador das Trevas» estava a rir e a brincar! Ri com ele, até que
a dor acabou por vencê-lo, impondo-lhe um ataque de tosse... De repente, a
voz do meu gémeo estrondeou:
— Pelo vómito do dragão, o que foi que te aconteceu, Erebus?
Ensombrou-nos com uma expressão onde a fúria superava
largamente a preocupação. Abri a boca para reclamar, mas o meu primo
antecipou-se, silvando com firmeza:
— Palácio ruir. Ficar preso.
— Preso? Estavas a dormir?
— Foi tudo muito rápido... — comecei a titubear, mas o «Criador das
Trevas» interrompeu-me:
— Kelda cumprir. Erebus culpado.
— Como pudeste ser tão descuidado? — vociferou o Filho do Dragão,
com as faces a arder. Só faltava deitar as mãos à túnica do enfermo,
arrancá-lo da cama e arrojá-lo no chão.
— Halvard! — arrostei-o exprobrada. — Achas que Erebus se feriu de
propósito?
A minha rispidez abalou-lhe um pouco a consciência. Respirou fundo
várias vezes, antes de se debruçar sobre o primo e, enfim, usar o seu
poder para fazer algo válido. Vi a expressão de Erebus amenizar-se, à
medida que a dor o abandonava. E as lágrimas subiram-me aos olhos ao
pensar como o «Criador das Trevas», com toda a sua fealdade, me parecia
muito mais belo do que Halvard, a quem a natureza favorecera com uma
perfeição máscula.
De repente, o olhar do meu irmão fulminou-me. Era óbvio que não
retirava nenhuma satisfação do ato de curar.
— E tu? — mastigou asperamente. — Porque não estás a ajudá-lo?
— Kelda gastar magia libertar Erebus... — justificou o «Criador das
Trevas», adivinhando que a pergunta me intimidaria. Depois acrescentou,
ciente do transtorno de Halvard: — Obrigado, primo. Energia bastar. Erebus
capaz sarar sozinho.
Era verdade que, uma vez apaziguada a dor, ele podia concentrar
todos os seus recursos místicos na recuperação. No entanto, se alguém o
auxiliasse, esta seria muito mais célere! O meu gémeo hesitou... Porém,
acabou por se afastar, como se a invocação da magia benigna lhe
provocasse um desconforto intolerável. Pelos vistos preferia atrasar a
campanha, enquanto aguardava que o primo se refizesse, do que continuar a
curá-lo! Engoli uma interjeição de despeito ante tamanha prova de
insensibilidade... Todavia, quando Halvard tornou a falar, percebi que os seus
pensamentos e intenções eram ainda mais vis do que eu imaginara:
— O pedido de socorro das cornetas da cidadela obteve resposta. Fui
informado de que um exército poderoso atravessa a floresta, a coberto da
noite, para nos surpreender. A minha intenção é intercetá-lo...
— Queres travar outra batalha, num território que desconheces, sem
dar descanso aos homens? — intervim, sacudida pela indignação. Para mim,
se o Exército do Dragão fosse dizimado num só fôlego, melhor! Contudo,
afligia-me por Erebus... E por, mais uma vez, ser obrigada a lutar no lado
errado da contenda.
Halvard franziu o sobrolho, desgostado com a interrupção. No
entanto, tomou-a como uma inquietação pelos seus guerreiros, pois ripostou
autoritário:
— Os homens estão bem treinados. Hão de corresponder! Além
disso, tenciono montar uma emboscada ao Império. Querem apanhar-nos de
surpresa, mas seremos nós a surpreendê-los. — Sem admitir mais refertas,
fixou o primo e indagou: — Quanto tempo demorarás a ficar de pé?
Li no rosto de Erebus que também ele estava incomodado com o
rumo dos acontecimentos. Porém, parecia ter desistido de se impor como
decisor. Mexeu-se, testando os ossos quebrados, antes de silvar:
— Três dias...
— De acordo. Virei buscar-te depois.
— Halvard... — entaramelei, sobressaltada. — Não estás a falar a
sério! Erebus não pode ficar aqui sozinho...
— É óbvio que não! Deixarei homens a guardá-lo...
— Então, ficarei com ele...
A voz falhou-me quando as garras do meu irmão me aprisionaram a
túnica e empuxaram contra o peito, quase me suspendendo no ar. Varou-me
com o olhar ígneo de raiva e fremiu:
— Tu vens comigo! O teu lugar é ao meu lado... — Depois soltou-me,
como se ciente de que se estava a exceder, e anunciou com um entusiasmo
mórbido: — Além disso, é o nosso prezado primo Will quem lidera os
aleivosos. Não queremos perder esta oportunidade de mostrar aos nossos
inimigos o amor que nos une, pois não, querida?
— Ir, Kelda — intrometeu-se Erebus. — Mestre Sigarr chegar breve.
Cuidar Erebus.
Se a sua intenção era apaziguar o meu ânimo, falhou redondamente!
O que era pior? Saber que o feiticeiro estava prestes a reunir-se ao
Exército do Dragão e a usar a sua magia abominável contra o meu povo?
Ou pensar que, atrás dele, vinham centenas de navios e milhares de
homens? Ou descobrir que Will marchava, nesse preciso instante, ao
encontro de uma morte certa? Ou olhar pela janela e ver a manhã a
despontar, quando as ruas estavam pejadas de assassinos? Ou deixar
Erebus para trás, completamente vulnerável?
— Vem, Kelda! — urgiu Halvard, bufando, impaciente. — Não posso
perder mais tempo!
Coagiu-me a sair à sua frente. Fitei o meu primo, angustiada. Até
hoje, ele fora o bordão que me ajudara a superar as provações. O que
sucederia quando os guerreiros que eu prostrara regressassem à vida? Mal
se deparassem com a destruição da cidadela, o «Criador das Trevas»
tornar-se-ia o principal alvo da sua fúria vingativa. E não seriam os homens
que Halvard deixaria para trás que haveriam de detê-los! Engoli em seco,
suspensa no olhar negro. Jamais imaginara que, um dia, me sentiria tão
dividida: de um lado, a lealdade ao meu povo; do outro, o afeto que
devotava a Erebus. Queria avisá-lo... Mas como, se a respiração do meu
gémeo me queimava o pescoço?
— Sol despertar — disse subitamente o «Criador das Trevas», com
uma circunspeção que me cortou o fôlego. — Ir! Erebus ficar bem!
Ele sabia! Sim, ele sabia! Mas como? Será que Sigarr lhe contara? Ou
Erebus descobrira sozinho, porque a genuinidade do laço que partilhávamos
já não admitia segredos?
Não houve tempo para mais considerações, pois Halvard perdeu a
paciência e arrastou-me consigo.
CAPÍTULO 20