Tese Juazeiro Sem Padre Cicero
Tese Juazeiro Sem Padre Cicero
Tese Juazeiro Sem Padre Cicero
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
FORTALEZA
2018
AMANDA TEIXEIRA DA SILVA
FORTALEZA
2018
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós -Graduação
em História, Fortaleza, 2018.
Orientação: Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos.
Aprovada em ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
______________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Ana Paula Sampaio Caldeira
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Douglas Attila Marcelino
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
______________________________________________________________________
Prof. ª Dra. Martine Suzanne Kunz
Universidade Federal do Ceará (UFC)
______________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Meize Regina de Lucena Lucas
Universidade Federal do Ceará (UFC)
A Luiz Heitor, meu pequeno milagre.
AGRADECIMENTOS
The central objective of this study is to investigate, from the vestiges of memory, the
experiences and expectations about the fate of the city of Juazeiro do Norte after the
disappearance of its founder, Father Cícero, in 1934. Juazeiro, after the priest's death,
established itself as a place of remembrance, through changes and permanences in the
play of memories. Newspapers and magazines of national circulation, as well as writings
focused on the city and the biography of Padre Cícero, were the main sources used in the
work at screen. The notebook of memories from the sculptor Agostinho Balmes Odísio,
specifically, became a fundamental document, for discoursing on the acts, gestures and
customs of devotees, pilgrims and workers. Finally, the importance of the monuments
built in honor of Padrinho was examined. Although they were conceived and installed
with the purpose of serving very specific interests, each of them contributed to indicate
important places of Juazeiro and the trajectory of the priest, being seen from different
perspectives by devotees and pilgrims who visited Padre Cícero no more in flesh and
blood, but in spirit, bronze, and concrete. For the development of this work, the reflections
provided by Reinhart Koselleck, a theorist who recommends special attention to the
historical construction of time, were very relevant.
Figura 1 – O centro de Juazeiro visto pela Kodak de Agostinho Balmes Odísio ........ 103
Figura 2 – Retrato de Padre Cícero afixado ao caderno de memórias de Odísio ......... 107
Figura 3 – O Jegue Mucuba .......................................................................................... 108
Figura 4 – Fachada da casa em que Odísio residiu quando chegou em Juazeiro ......... 109
Figura 5 – A rua em que Padre Cícero viveu ............................................................... 110
Figura 6 – A última casa em que Padre Cícero morou ................................................. 111
Figura 7 – A Capela do Perpétuo Socorro .................................................................... 111
Figura 8 – Casa de santos Padre Cícero ....................................................................... 112
Figura 9 – Cacimba Municipal ..................................................................................... 114
Figura 10 – Fornecedor de água ................................................................................... 115
Figura 11 – Transporte de água .................................................................................... 115
Figura 12 - Uma pedinte ............................................................................................... 116
Figura 13 – Venda de esteiras na feira semanal ........................................................... 121
Figura 14 – Comércio de rapadura na feira .................................................................. 121
Figura 15 – Fotografia de Romualdo............................................................................ 131
Figura 16 – Odísio e Romualdo saindo para vender imagens do Padrinho ................. 132
Figura 17 – Romualdo e o almoço................................................................................ 133
Figura 18 – Odísio carregando uma espingarda ........................................................... 134
Figura 29 – Um romeiro que adquiriu busto de Padre Cícero feito por Odísio ........... 135
Figura 20 – Romualdo e a gata Benvinda..................................................................... 136
Figura 21 – Romualdo rezando antes do almoço ......................................................... 138
Figura 22 – A “Sopa” ................................................................................................... 163
Figura 23 – O escultor Laurindo Ramos e sua obra em bronze ................................... 237
Figura 24 – Odísio, a estátua de bronze e a Coluna da Hora ........................................ 245
Figura 25 – Resultado da estátua esculpida por Odísio ................................................ 254
Figura 26 – Romeiros oram e beatos esmolam em Juazeiro ........................................ 256
Figura 27 – Espada que teria pertencido a Floro Bartolomeu. Segundo a reportagem,
Padre Cícero teria abençoado a arma ........................................................................... 257
Figura 28 – Barraca sob a qual moraria Maria Firmina, uma beata de Padre Cícero... 257
Figura 29 – Uma romeira eleva suas preces diante da estátua de Padre Cícero construída
por Odísio ..................................................................................................................... 258
Figura 30 – A estátua de Padre Cícero elaborada por Odísio, ainda em barro ............. 261
Figura 31 – A estátua de Padre Cícero no Horto .......................................................... 274
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12
2 A MORTE DE PADRE CÍCERO: PROBLEMA E SOLUÇÃO .......................... 24
2.1 Um problema: o fim de Juazeiro .......................................................................... 24
2.2 Entre o problema e a solução: o passado e o futuro ............................................ 36
2.3 Uma solução: para o corpo da escultura e do escultor ........................................ 50
3 JUAZEIRO AINDA SERÁ CANUDOS? ................................................................ 61
3.1 O peso do passado ................................................................................................... 61
3.2 A (des)confiança do futuro .................................................................................... 72
3.3 A nova Canudos ...................................................................................................... 83
4 A VIDA APÓS A MORTE ..................................................................................... 101
4.1 A rua e a casa ........................................................................................................ 101
4.2 Cotidiano, lazer e trabalho .................................................................................. 120
4.3 Mulher, negra, trabalhadora e juazeirense ........................................................ 141
4.4 O alimento e a fome .............................................................................................. 147
5 LUGAR DE MEMÓRIA OU LOCAL DE RECORDAÇÃO?............................ 158
5.1 Entre a piedade e a fama: o lugar de Juazeiro.................................................. 158
5.2 Entre a memória e a recordação: a escrita de Odísio ....................................... 170
5.3 Entre a vida e a morte: Padre Cícero encadernado .......................................... 188
6 JUAZEIRO DEPOIS DO PADRE CÍCERO ........................................................ 199
6.1 Amigos e inimigos da memória de Padre Cícero ............................................... 199
6.2 O Juazeiro de Padre Cícero ................................................................................. 207
6.3 PADRE CÍCERO DE JUAZEIRO ..................................................................... 222
7 PADRE CÍCERO NA PRAÇA, NA CAPELA E NO ALTO DA COLINA....... 236
7. 1 Padre Cícero na praça ......................................................................................... 236
7.2 Padre Cícero na capela......................................................................................... 246
7.3 Padre Cícero no alto da colina............................................................................. 268
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 283
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 288
12
1 INTRODUÇÃO
para distinguir Juazeiro dos dois municípios vizinhos e conurbados, Crato e Barbalha.
Para aquele que vem de fora, toda a região parece uma cidade só. Nem sempre, contudo,
foi assim.
Juazeiro era apenas um povoado da cidade de Crato quando lá chegou, em
1872, um capelão chamado Cicero Romão. O Padre Cícero viveria ali, de maneira
discreta, até 1889, quando ocorreu o chamado milagre da hóstia. A beata Maria de Araújo,
ao receber a comunhão das mãos do sacerdote, teria percebido que a partícula sagrada se
transmutara em sangue. A partir daí, começaram a ser realizadas grandes romarias à
localidade. As pessoas desejavam adorar o sangue precioso e conhecer o santo padre.
A Igreja Católica, que à época passava por um processo de disciplinarização,
negou os milagres e puniu Padre Cícero pela divulgação do fenômeno. Com o tempo, a
figura da beata Maria de Araújo, morta em janeiro de 1914, eclipsou-se, enquanto a
imagem do sacerdote foi ganhando maior dimensão. Devotos procuravam o lugarejo não
mais por causa do sangue derramado pela beata, mas pela santidade do Padrinho. Devido
a conflitos políticos, Juazeiro se emancipou, tornando-se cidade em 1911, tendo Padre
Cícero como seu primeiro prefeito. A partir desse momento, despontava o padre político,
que não deixava de ser o padre santo e conselheiro. Ele viveria até 1934, quando tornou
órfã uma cidade que contava com mais de trinta mil habitantes. Sua ausência foi encarada
de maneiras diferentes pelos devotos, romeiros e intelectuais do Nordeste e do Brasil. É
sobre essas diversas expectativas geradas pela morte do Padrinho que se dedica o trabalho
aqui apresentado. Em 1934 começa a nossa história, que fará recuos e avanços no tempo
quando necessário.
Ao se debruçar sobre a bibliografia a respeito de Juazeiro, o pesquisador
perceberá que boa parte dos livros de memórias, das biografias e dos estudos referentes à
cidade e ao seu fundador têm fim em 1934. A impressão é a de que, com a morte de Padre
Cícero, o Juazeiro deixaria de existir. Procuro perceber, por isso, o que imaginavam os
habitantes de Juazeiro sobre o futuro da cidade após a morte de seu Padrinho. Busco
compreender quais eram os temores e as esperanças relacionados a esse inevitável evento.
Dedico-me, também, a tentar demonstrar como a cidade habitada, buscada e amada por
causa de um santo vivo se transformou na cidade visitada apesar de o Padre Cícero estar
morto.
A ideia dessa pesquisa se consolidou a partir do meu encontro, em 2013, com
o caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio, intitulado Memórias sobre Juazeiro
do Padre Cícero. O que me chamou atenção nesse manuscrito, redigido em 1935 e
14
publicado pelo Museu do Ceará em 2006, foi o fato de ele se deter sobre um período
pouco mencionado na história de Juazeiro — aquele que diz respeito ao momento
posterior à morte de Padre Cícero. Além disso, entusiasmava-me o fato de se tratar de
uma obra de caráter memorialístico, autobiográfico. Nesse sentido, era uma produção que
se distinguia de tantas outras que, graças à ampla circulação, ajudaram a fundar os olhares
e interpretações concernentes à cidade.
Para muitos jornalistas da década de 1930, o desaparecimento de Padre Cícero
representava um problema. Seria um problema econômico que levaria à fuga de mão de
obra do Nordeste para o Sudeste e o Norte, causado pelos possíveis acessos de fanatismo
— os quais já não poderiam ser aplacados pelo Padre Cícero — ou um problema político,
já que os devotos, romeiros e retirantes ficavam então sem o apoio espiritual, moral e
material do sacerdote. Para os romeiros, por outro lado, o desaparecimento do Padrinho
significava o fim de uma relação física com um santo que falava a língua dos pobres e
nunca se negava a ouvir e auxiliar os necessitados.
Diferentemente dos jornalistas e escritores daquele período, o escultor
italiano Agostinho Balmes Odísio viu em Juazeiro sem o Padre Cícero não um risco ou
um problema, mas uma grande oportunidade. Ele sabia que o santo morto poderia ser
mais lucrativo do que um padre vivo. Além de esculpir e vender imagens do Padrinho,
imaginou que a mudança para o Ceará seria útil para curar seu reumatismo e atenuar os
problemas do coração. Seu espírito empreendedor o conduziu, já no outono da vida, até
aquela distante e extravagante cidade.
Agostinho Balmes Odísio nasceu em Turim, na Itália. Dedicou-se ao curso de
Belas Artes em sua cidade natal e em Roma. Em 1912, conquistou uma bolsa de estudos
e partiu para a França com o objetivo de estudar Artes e Arquitetura em Paris, onde
chegou a ser aluno de Auguste Rodin. Na Europa, esculpiu bustos e nichos. Trabalhou
em obras sacras. Foi também amante de outras artes: escreveu poemas e peças de teatro.
Em 1913, resolveu partir rumo à América do Sul, decidido a encontrar seu irmão na
promissora cidade de Buenos Aires. Aos 32 anos, órfão de pai há muito tempo, deixou
em terras italianas apenas um elo: sua mãe, Maria Balmes Odísio.
Depois de ondular por muitos dias no mar, o navio que levava Agostinho
aportou em Santos. A viagem demoraria a prosseguir para a Argentina, e o escultor
resolveu buscar hospedagem no Convento de São Bento. Estando há algum tempo em
São Paulo, recebeu a visita de Natale Frateschi, dono de uma marmoraria localizada na
pequena cidade de Franca. O empresário procurava os serviços de um escultor que
15
1
É relevante destacar a observação de Sabrina Costa acerca da trajetória de Odísio, que “[...] por motivos
desconhecidos, decidiu morar na Argentina em 1913, um ano depois de ter conquistado e usufruído uma
bolsa de estudos em Paris, onde teria sido discípulo de Auguste Rodin. Essa informação, além de carecer
de comprovação, é um tanto duvidosa, uma vez que dificilmente um escultor europeu com ambições
artísticas que tivesse sido discípulo de Rodin trocaria Paris, principal centro da vanguarda artística
ocidental da época, por um país na América Latina”. COSTA, Sabrina Albuquerque Araújo. O Artista
Zenon Barreto e a arte pública na cidade de Fortaleza. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-
Graduação em Artes. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. p. 63.
2
SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio
discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 58.
16
excepcional de sua narrativa, contudo, é aquele que remete à etnografia: uma descrição
densa e participativa de uma realidade que até então lhe era desconhecida.
As narrativas de Odísio conseguem dar visibilidade a uma população que,
apesar de constituir o coração da cidade, era amplamente discriminada por grande parte
dos intelectuais. Seu caderno de memórias foi essencial para o desenvolvimento desse
trabalho, pois abordou de perto temas bastante negligenciados a respeito da terra do
Padrinho.
Após iniciar a pesquisa, notei que as afirmações de Odísio sobre o cotidiano
de Juazeiro não representavam apenas sua própria experiência como habitante da cidade,
mas diziam respeito também às coisas que ouviu de outros moradores, assim como às
leituras que fez sobre a cidade e seu fundador. Desse modo, comecei a me interessar por
escritos acerca da “Meca Sertaneja” que também remetessem à discussão sobre aquele
delicado período de luto e pudessem ser cotejados com as informações concedidas por
Odísio.
Examinei matérias jornalísticas de grande circulação, obras de literatura e
estudos que pretenderam explicar quem era o Padre Cícero e por que sua partida seria tão
sentida pelo povo nordestino. Ao longo da investigação, deparei-me com temas
recorrentes, como o temor de que a cidade se esvaziasse após a morte do sacerdote ou o
medo de que o “fanatismo” se tornasse mais intenso, transformando a localidade numa
nova Canudos. Uma pergunta passou, então, a se apresentar para mim: por que Juazeiro,
após a morte de Padre Cícero, continuou a existir? A cidade não pereceu com o fim do
seu fundador. Não chegou nem mesmo a apresentar a decadência econômica e
demográfica prevista por muitos. Pelo contrário: embora o Padrinho não mais existisse,
os romeiros continuavam a visitá-lo.
O objetivo central desta tese é investigar, a partir dos vestígios deixados em
livros, jornais e materiais memorialísticos redigidos entre 1934 e 1969, as diferentes
percepções sobre o que seria Juazeiro após o desaparecimento de seu fundador. A
principal fonte empregada foi o caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio, mas
as demais publicações sobre Juazeiro e Padre Cícero lançadas no período em questão
também foram amplamente observadas. Busquei, além disso, compreender por que as
visitas ao Padrinho não se extinguiram, mas se transformaram, com o tempo, em
migrações e deslocamentos para uma cidade considerada santa. Nesse sentido, a obra de
Odísio surge, ao mesmo tempo, como fonte e objeto de um processo que se daria
justamente em 1934, momento em que o escultor conheceu a cidade de Juazeiro.
17
3
Segundo Assmann, “[...] mesmo quando os locais não têm em si uma memória imanente, ainda assim
fazem parte da construção de espaços culturais de recordação muito significativos. E não apenas porque
solidificam e validam a recordação, na medida em que a ancoram no chão, mas também por
corporificarem uma continuidade da duração que supera a recordação relativamente breve de
indivíduos, épocas e também culturas, que está concretizada em artefatos”. ASSMANN, Aleida.
Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp,
2011. p. 318.
19
ascensão da ideia de que a ausência de Padre Cícero seria ainda mais perigosa que a sua
presença.
Nesse capítulo, foram muito caras as reflexões ensejadas por Reinhart
Koselleck (2006), teórico que recomenda estarmos atentos a termos presentes nas fontes
aqui empregadas, tais como “ainda” e “já”. Essas noções de tempo pretenderam deslocar
diferentes opiniões sobre Juazeiro, indicando atraso e avanço, decadência e modernidade,
fanatismo e progresso4. Pretendi discutir a perspectiva de que Juazeiro ainda não havia
alcançado seu potencial, se encontrando desarticulada do tempo da nação, representando
por isso um empecilho ao progresso e correndo o perigo, mesmo após a morte do Padre
Cícero, de tornar-se uma nova Canudos.
O terceiro capítulo se dedica a explorar, especificamente, o caderno de
memórias de Agostinho Balmes Odísio, enfocando o cotidiano de Juazeiro após a morte
do Padrinho. Acredito que, a partir desse manuscrito, é possível perscrutar a cidade e
seus habitantes, bem como seus costumes e algo da dinâmica social que ali se
desenrolava. Dediquei-me a estudar situações experenciadas pelo escultor durante sua
estadia em Juazeiro, ou seja, eventos que ele vivenciou, viu, ouviu ou conheceu.
Entre outros temas, debati aspectos referentes a moradia, infraestrutura,
alimentação, higiene, saúde, educação, trabalho e lazer. A intenção foi lançar luz sobre
esse lugar habitado pelos inúmeros migrantes que chegaram em busca do amparo
espiritual e material assegurado pelo Padrinho. Pretendi, além disso, perceber a presença
de Padre Cícero entre seus afilhados, a partir da apreciação de hábitos e crenças que
persistiram na cidade após a sua morte.
A partir dos estudos sobre cotidiano, detive-me sobre muitos aspectos
frequentemente negligenciados na historiografia sobre Juazeiro. Assim, pude refletir
sobre as vidas de homens e mulheres comuns, aqueles que urdiram, nas dificuldades do
dia a dia, modos de superar a fome e viver a fé. O caderno de memórias de Odísio se
tornou uma fonte a ser estudada por carregar em si a peculiaridade de não se encerrar
numa tentativa de biografar o Padre Cícero, Floro Bartolomeu ou a Beata Maria de
4
De acordo com Koselleck, “[...] podem-se depreender as noções de progresso, decadência, aceleração
ou retardamento, as noções adverbiais como ‘ainda não’ e ‘não mais’, o ‘mais cedo que’ ou ‘depois de’
o ‘cedo demais’ ou ‘tarde demais’, a situação e a duração, a cujas determinações distintivas devemos
recorrer de modo a tornar visíveis movimentos históricos concretos. Tais diferenciações devem ser
consideradas para toda proposição histórica que parta de premissas teóricas em direção à pesquisa
empírica”. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos Históricos.
Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. p. 122.
21
Araújo, mas estender-se em torno dos atos e gestos de personagens quase sempre
olvidados — ou tratados como massa informe — nas obras que versam sobre Juazeiro.
Enquanto a escrita do terceiro capítulo se deteve sobre as recordações de
Odísio acerca da terra do Padrinho, o quarto capítulo foi elaborado a partir das memórias.
Especificamente, sobre as memórias que o escritor preservou acerca de dois momentos
por ele narrados. O primeiro desses dois acontecimentos foi a viagem do deputado
Antônio Xavier de Oliveira a Juazeiro. O evento se deu em outubro de 1934 e gerou
grande comoção na cidade, pois divulgou-se, entre os devotos, a ideia de que o deputado
pretendia sequestrar a estátua de Nossa Senhora das Dores e os restos mortais de Padre
Cícero. A segunda experiência vivenciada por Odísio e aqui estudada foi a visita às ruínas
da Igreja do Horto. A partir da excursão realizada pelo escultor àquele local, procurei
demonstrar que muitas das memórias registradas na obra de Odísio não dizem respeito a
coisas que ele viveu, mas a informações referentes à cidade que foram absorvidas
indiretamente. Pretendi, além disso, analisar o modo como Agostinho Odísio inventou
para si uma representação, que em quase tudo derivou da imagem que plasmou para o
Padre Cícero.
No quarto capítulo, discuti algumas produções literárias e matérias
jornalísticas publicadas após a morte de Padre Cícero. As obras aqui elencadas se
concentraram, principalmente, sobre a persistência da fé romeira durante as décadas de
1940, 1950 e 1960. A constância da crença no Padrinho parece ficar evidente nesse
período. Por esse motivo surgiram, na ocasião, biografias e diferentes análises que
pretendiam explicar os motivos da permanência dessa devoção que, apesar de ser muito
estudada, era pouco compreendida. Tomando como pontos de partida as noções de
piedade, fama 5 , recordação e memória 6 discutidas por Aleida Assmann em sua obra
Espaços da recordação, pretendi investigar como Juazeiro foi, progressivamente,
transformando-se num local sagrado que guardava a memória de Padre Cícero. Meu
objetivo, ao longo desse capítulo, foi discutir também os elementos que confluíram para
5
Segundo Assmann, “A memoração dos mortos tem uma dimensão religiosa e outra mundana, que se
opõem entre si como pietas e fama. Piedade é a obrigação dos descendentes de perpetuar a memoração
honorífica dos mortos [...]. Já a fama, isto é, a memoração cheia de glórias, cada um pode conquistar
para si mesmo, em certa medida, no tempo de sua própria vida. A fama é uma forma secular da
autoeternização”. ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória
cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011. p. 37. No caso de Padre Cícero, as duas modalidades se
misturam e confundem, pois sua fama o fez santo.
6
Assmann contrapõe memória e recordação, afirmando que “[...] diferentemente do ato de decorar, o ato
de lembrar não é deliberado: ou se recorda ou não se recorda”. ASSMANN, Aleida. Espaços da
recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011. p. 33.
22
que Juazeiro deixasse de ser somente o lugar em que era possível estar com o Padrinho e
passasse a ser também o local em que era possível sentir intensa e intimamente sua
presença.
No quinto capítulo, procurei sondar obras que não tratavam sobre o “ainda”,
mas sobre o “já”. Padre Cícero estava morto. Juazeiro, cada vez mais, deixava de ser um
problema. Aqueles que escreviam sobre o tema após 1934 se preocupavam em discutir as
contribuições do sacerdote para a consolidação da cidade como um local miserável, em
que o fanatismo sobre-existia, ou, ao contrário, como um município que se destacava, em
termos de desenvolvimento, de outras cidades do Nordeste, graças à contribuição do
Padrinho. Suas narrativas começavam com o nascimento de Padre Cícero — ou com sua
chegada em Juazeiro — encerrando-se com sua morte. O fim de sua existência era o fim
de um capítulo na história do povoado, que dali em diante poderia ser, hipoteticamente,
uma cidade como outra qualquer.
Busquei, inicialmente, discorrer sobre as primeiras obras lançadas após o
falecimento de Padre Cícero, geralmente elaboradas por juazeirenses ou por pessoas que
conviveram de perto com o sacerdote e que o defendiam de qualquer acusação que
pudesse receber post-mortem. Posteriormente, dediquei-me a estudar as biografias
lançadas por Edmar Morel e Otacílio Anselmo, responsáveis por cristalizar, no país,
muitas imagens depreciativas sobre Juazeiro e a herança legada por Padre Cícero aos
habitantes da cidade. Nesse capítulo, procurei demonstrar que “amigos” e “inimigos” da
memória do sacerdote defendiam, por meio de diferentes fontes e métodos, pontos de
vista diametralmente opostos, atribuindo o atraso ou o progresso de Juazeiro ao mesmo
personagem, o Padre Cícero.
No sexto capítulo, estudei a importância dos monumentos edificados em
homenagem ao Padrinho, percebendo-os como meios de recordação. A partir de jornais
que discutiam a instalação dos mais importantes marcos simbólicos de Juazeiro, pretendi
demonstrar que as imagens concebidas por Laurindo Ramos, Agostinho Odísio e
Armando Lacerda contribuíram para a consolidação do culto ao sacerdote, embora em
nenhum momento tenham sido as causas determinantes dessa devoção.
A escultura assentada sobre um nicho em frente à Capela do Socorro e o
colossal monumento no alto da Colina do Horto aparecem nesse trabalho não como
lugares de memória instituídos oficialmente com o objetivo de fundar uma rememoração
forçada, mas como meios de recordar — e de interagir com — um homem santo que já
não habitava o espaço sagrado de Juazeiro. Embora tenham sido concebidas e instaladas
23
a partir de interesses muito distintos, cada uma dessas obras contribuiu para indicar
importantes locais da história de Juazeiro e da trajetória do Padrinho, sendo encaradas
com diferentes olhares pelos devotos e romeiros que visitavam o Padre Cícero não mais
em carne e osso, mas em bronze e concreto.
24
7
Jornal de grande circulação, alinhado às ideias da Aliança Liberal, dirigido por Chateaubriand e membro
dos Diários Associados.
8
FALLECEU HONTEM, em Joaseiro, o Padre Cicero Romão Baptista. Diário de São Paulo, São Paulo,
p. 4, 21 jul. 1934.
25
O percurso de Padre Cícero foi observado por boa parte dos articulistas
cariocas e paulistas como uma excentricidade, uma passagem quase folclórica, uma lenda,
ou um mito em que acreditaram somente os ingênuos sertanejos do Brasil. Ridicularizado
por intelectuais, combatido pelas autoridades eclesiásticas, respeitado por cangaceiros e
devotos, ele representava um enigma que envolvia polos dicotômicos da discussão sobre
civilização e barbárie, cultura e ignorância, educação e atraso.
Sua longevidade, bem como a fé a ele devotada por seus seguidores, levaram
a imaginar que permaneceria eternamente em Juazeiro, cuidando de seus afilhados e
aconselhando aqueles que se desviassem do bom caminho. Por esse motivo, seus
seguidores se sentiram devastados quando souberam da inevitável partida. A ilusão de
imortalidade criada em torno do padre se confirmaria durante seu velório. Por volta das
onze horas da manhã do dia 20 de julho de 1934, circulou em Juazeiro a notícia de que
Padre Cícero não estava morto: havia recuperado os sentidos. Houve ruidosas
manifestações de alegria, mas logo se descobriu que fora um alarme falso9.
Conforme as narrativas de testemunhas oculares e memorialistas, diante da
grande afluência de romeiros e devotos que pretendiam velar o corpo e avistar o Padrinho
pela última vez, decidiu-se colocar o caixão na posição vertical junto à janela da casa,
para que a grande massa de pessoas não tivesse que adentrar o prédio. Quando a manobra
foi realizada, o corpo deslizou levemente, simulando um gesto das mãos, provocando,
desta feita, os boatos de que Padre Cícero teria recuperado os sentidos ou,
miraculosamente, ressuscitado.
Acontece que o Padrinho era, para muitos, santo. Para tais homens e
mulheres, portanto, não parecia possível imaginar Juazeiro — ou o mundo — sem ele. A
vida seria insuportável sem o seu auxílio espiritual e material. A morte, destino de toda a
humanidade, parecia estar realizando um ato injusto ao carregar para longe o único santo
que intercedia pelos seus ainda na terra. É preciso lembrar que inúmeros devotos e
seguidores do sacerdote dependiam não apenas de seus conselhos morais, espirituais e
médicos, mas também de seu auxílio financeiro, direta ou indiretamente. Sua morte
representava um retorno ao abandono. Sofriam as almas romeiras, mas também os corpos
famintos.
Parecia impossível crer que a figura extraordinária de Padre Cícero se
submeteria aos desígnios do tempo, esvaindo-se como se fosse um homem qualquer. Ele
9
A MORTE do Padre Cícero. O Povo, Fortaleza, p. 1, 21 jul. 1934.
26
era sagrado. A convicção de sua imortalidade era semelhante àquela que os cristãos
devem manter em seu credo relativo à vida eterna de Jesus Cristo. Segundo as
informações de um correspondente do periódico A Noite10, do Rio de Janeiro,
É que muitas pessoas o julgam santo e não acreditam na sua morte. Aqui era
grande o numero dos que mantinham essa convicção e que se aproximavam do
corpo, para vel-o muito de perto, verificando então a verdade do facto
consumado. Dos que assim pensavam, alguns têm enlouquecido deante da
realidade.11
10
Jornal que foi empastelado em 1930, por ser abertamente contrário à Aliança Liberal. Em 1934, já não
pertencia ao proprietário inicial, Geraldo Rocha, mas a um grupo estrangeiro representado no Brasil por
Guilherme Guinle.
11
O PATRIARCHA de Juazeiro. A Noite. Rio de Janeiro, p. 1, 28 jul. 1934.
12
Os beatos surgiram nos sertões do Nordeste através das missões evangelizadoras de Padre Ibiapina.
Eram leigos e leigas que faziam voto de pobreza e dedicavam suas vidas à oração. Não estavam ligados
a nenhuma Congregação Religiosa e não eram reconhecidos pela Igreja Católica. Para maiores
informações, Cf. BEZERRA, Osicleide de Lima. Trabalho, pobreza e caridade: As ações do Padre
Ibiapina nos sertões do Nordeste. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2010.
27
“[...] encaminhal-os para as coisas virtuosas e uteis. Seria um retardado, como diria, por
exemplo, Euclydes da Cunha, representativo perfeito de um momento histórico de nossa
vida, do meio em que se agitou”13.
Sob essa perspectiva, Padre Cícero se distinguiria de Conselheiro apenas por
ter conseguido manter a ordem em Juazeiro. Mas era, como todos os outros líderes
messiânicos, um retardado, fruto de um meio específico e de um momento histórico que
estava em vias de se acabar. O Diário de São Paulo foi ainda menos condescendente em
seu necrológio, afirmando que as doenças psiquiátricas que acometiam Padre Cícero se
tornaram mais evidentes durante a velhice:
O discurso jornalístico tentava, a todo custo, enquadrar Padre Cícero nas fímbrias
da ciência. Para grande parte dos intelectuais, os pretensos milagres — que tanto traziam
admiração e surpresa aos devotos — facilmente seriam explicáveis pela medicina. Não
satisfeitos com a análise psicológica ou psiquiátrica do santo do Nordeste, também se
dedicaram a perscrutar sob os desígnios da pele alguns sinais das supostas patologias do
sacerdote. A apreciação física pretendia desvelar o corpo mal conformado em que
habitava o esdrúxulo espírito. Numa descrição quase antropológica (provavelmente
influenciada, em certa medida, pelos estudos de Césare Lombroso)15, havia a tentativa de
mapear seus gestos e sua figura, compreendendo a partir da ciência aquilo que a ilusão
mística de seus fiéis não poderia decodificar. Interessante é notar que, três dias depois da
13
PADRE CÍCERO. A Noite, Rio de Janeiro, p. 15, 20 jul. 1934.
14
FALLECEU HONTEM, em Joaseiro, o Padre Cicero Romão Baptista. Diário de São Paulo, São Paulo,
p. 4, 21 jul. 1934.
15
Médico italiano que se consolidou como expoente da Antropologia Criminal. Defendia a existência de
uma predisposição biológica de certos indivíduos à conduta antissocial. Através do estudo de traços
faciais e de compleições corporais, Lombroso pretendeu desenvolver uma ciência que pudesse
identificar o que ele chamou de criminoso nato. A Antropologia Criminal foi amplamente utilizada na
Europa em fins do século XIX e no início do século XX no Brasil. Para maiores informações, cf.
SANTOS, Elaine Maria Geraldo dos. A face criminosa. Neolombrosianismo no Recife na década de
1930. Dissertação de (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2008.
28
publicação desse artigo no Diário de São Paulo, Rubem Braga expôs em sua coluna um
ponto de vista sobre Padre Cícero que em quase tudo diferia daquele inicialmente
publicado no mesmo jornal, afirmando que
16
BRAGA, Rubem. CICERO ROMÃO. Diário de São Paulo, São Paulo, p, 3, 24 jul. 1934.
17
ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Formas e transformações da memória cultural.
Campinas: Editora Unicamp, 2011. p. 48-49.
18
Conhecido como “o jornal da revolução”, o periódico matutino pretendia combater a estrutura
oligárquica da República Velha, apoiando, desse modo, a “Revolução de 1930”. Defendia o trabalhismo
e deu apoio a Getúlio Vargas durante o Governo Provisório, mas foi contrário à sua candidatura à
presidência, pois criticava o continuísmo e temia a possibilidade de estabelecimento de uma ditadura.
Endossou a Revolução Constitucionalista e se colocou, posteriormente, em oposição a Vargas. Essa
postura levaria à prisão de Orlando Dantas em 1937.
29
19
DADOS BIOGRÁFICOS do padre Cicero Romão Baptista, falecido hontem no Ceará. Diário de
Notícias, Rio de Janeiro, p. 3, 21 jul. 1934.
20
Para maiores informações sobre esse tema, cf. NOBRE, Edianne dos Santos. Incêndios da alma: a
beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do Oitocentos. Tese (Doutorado) — Programa
de Pós-graduação em História Social, Rio de Janeiro, 2014.
21
SERTÃO ABANDONADO. Jornal do Recife, Recife, p. 1, 24 nov. 1934.
30
dos sertanejos incultos, no entanto era inaceitável admitir o respeito devotado ao Padre
Cícero pelos doutores das capitais:
Celso Vieira de Matos Melo Pereira, escritor recifense, ocupou desde 1933
uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Poderia ser considerado, portanto, um
“doutor”. Em seu texto, não poupou teorias raciais já criticadas em sua época, afirmando
que a histeria de uma cabocla (a beata Maria de Araújo) explicaria o fenômeno de
Juazeiro. Também acreditava, como tantos outros intelectuais, que as crenças dos
habitantes locais estavam relacionadas à mistura de aspectos do catolicismo à “feitiçaria
das malocas” e ao “fetichismo das senzalas”, acrescentando ainda o totemismo à sua
descrição. Deixava entrever, desse modo, a ideia de que tais mulheres e homens pobres,
negros, indígenas e mestiços, estavam destinados ao fanatismo. O escritor recifense
acreditava que, embora fosse compreensível, por um lado, a devoção dos sertanejos
miseráveis, por outro, seria um disparate imaginar que a “mentalidade superior” tivesse
atribuído ao sacerdote “das brenhas” a força que possuiu, conferindo-lhe o poder político
que garantiu sua sobrevivência mesmo em face dos grandiosos ataques a ele dirigidos
pelos representantes da cultura letrada em geral.
É preciso destacar que os estudiosos do período tinham diferentes
perspectivas sobre a figura do Padre Cícero, mas concordavam quando o tema era a
influência política de sua personalidade e o amor devotado pelo seu povo. Nos anos finais
de sua vida, ele já não exercia papéis de liderança política com grande frequência, mas a
aura de santidade que lhe cobria crescia em medida inversamente proporcional ao
22
VIEIRA, Celso. Rei do Sertão. A Noite, Rio de Janeiro, p. 2, 27 jul. 1934.
31
desaparecimento de suas ações na esfera pública. Por esse motivo, o momento de sua
morte foi visto com certo temor pelas autoridades e pelos jornalistas. A preocupação ficou
registrada, por exemplo, no jornal fortalezense O Povo:
23
A MORTE do Padre Cícero. O Povo, Fortaleza, p. 1, 21 jul. 1934.
24
Em 1934, o jornal se configurava como oposição ao governo de Getúlio Vargas e pertencia à Sociedade
Anônima Correio Paulistano. A tendência editorial era favorável à autonomia dos estados e combatia
as esquerdas.
25
ACCIDENTADO o enterro do padre Cicero. Correio Paulistano, São Paulo, p. 1, 27 jul. 1934.
26
CARVALHO, Jarbas de. Um Santo Moderno. Correio Paulistano, São Paulo, p. 5, 8 nov. 1934.
27
Marx mencionou “o carro de Jagrená” no primeiro volume de O Capital, ao discutir os sacrifícios
impostos pelo capital, inclusive às crianças. As festas de Jagrená, em honra a Vishnu, eram rituais
particularmente faustosos, marcados pela intensa religiosidade e pela autoflagelação. MARX, Karl. O
Capital. Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 1224.
32
28
NÃO QUERIA viver sem o padre Cícero na terra – Impressionante tentativa de suicídio em Joazeiro.
A Noite, Rio de Janeiro, p. 1, 3 ago. 1934.
29
GONÇALVES, Assunção. Faltou pano preto para a missa do Padre Cícero. Disponível em:
<http://blogdeassuncaogoncalves.blogspot.com.br/p/textos .html>. Acesso em: 18 abr. 2018.
33
mais de oitenta anos do acontecimento, é frequente que idosos e demais fiéis nordestinos
se vistam de preto no dia 20 de cada mês.
Flores, ex-votos, chapéus, objetos pessoais e orações passariam a ser
depositados diariamente sobre seu túmulo. As longas distâncias eram vencidas por
romeiros, que, a pé ou montados em animais, viajavam em busca de visitar seu Padrinho,
agora silencioso e de olhos fechados. Em Pernambuco, “[...] a lembrança do Padrinho foi
avivada agora com a sua morte, pelo brim preto, que todo o mundo usa, de luto fechado.
Até duas, três horas da tarde, com o sol a rachar”30. O luto visível nos pesados tecidos
negros era uma maneira de recordar e homenagear aquele que jamais seria esquecido.
Conforme destaca o estudo de Assmann, “[...] não se pode recordar alguma
coisa que esteja presente. E para ser possível recordá-la, é preciso que ela desapareça
temporariamente e se deposite em outro lugar, de onde se possa resgatá-la”31. Os romeiros
compreendiam essa alternância entre a presença e a ausência do Padre Cícero, e
manifestavam isso por meio de símbolos sensíveis, os quais refletiam a dor da perda e,
ao mesmo tempo, a permanência da recordação.
Existiram, contudo, perspectivas menos piedosas. O Monsenhor Francisco
Raimundo da Cunha Pedrosa publicou um artigo no Jornal do Recife 32 em que parecia
não lamentar a perda. Para o recifense, Padre Cícero tinha sua reputação manchada por
ter se envolvido com o mundo político e, ainda pior, por ter fanatizado o povo:
30
O NORDESTE. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, 1937. p. 467.
31
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora Unicamp, 2011. p. 166.
32
O Jornal do Recife circulou durante 79 anos. Fundado ainda em 1859, já se encontrava no final de sua
existência em 1934. Em 1929, o matutino aderiu à campanha da Aliança Liberal, defendendo a
candidatura de Vargas e alinhando-se ao Partido Democrata de Pernambuco. Em 1934, foi dirigido pelo
Coronel Faria e, posteriormente, por seu filho, Aprígio Faria.
33
PEDROSA, Monsenhor Cunha. PADRE CICERO Romão Baptista. Jornal do Recife, p. 1, Recife, 24
ago. 1934.
34
possibilidade de Padre Cícero haver sido sepultado sem os sacramentos finais foram
previamente desmentidos pelo jornal O Povo34, que já havia noticiado, no próprio dia 20
de julho: “Às sete horas da manhã, o enfermo exalava seu último suspiro, tendo recebido
antes todos os sacramentos da Igreja”35, inclusive tendo sido autorizado seu sepultamento
na Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
De acordo com a publicação fortalezense, o sacerdote recebeu todos os
sacramentos. O bispo do Crato autorizou que seu corpo fosse sepultado no templo católico
que o Padrinho escolhera e registrara em testamento. O jornal provavelmente considerou
a importância de dar visibilidade a tais pormenores pela especificidade da situação, já que
muitos rumores apontavam até mesmo a excomunhão de Padre Cícero.
Se por um lado alguns acreditavam que Padre Cícero havia abandonado a
verdadeira religião, e que por isso não mereceria as exéquias da morte, por outro havia
quem imaginasse que ele seria elevado, forçosa e imediatamente, aos altares, graças à fé
dos seus seguidores. Era o caso dos jornalistas que publicavam no Correio de São
Paulo36:
34
Jornal fundado por Demócrito Rocha em 1928. Nasceu como oposição a Moreira da Rocha, então
governador do Ceará. O jornal apoiou a Revolução de 1930 e o governo provisório de Vargas, mas foi
contrário à candidatura dele à presidência da República.
35
A MORTE do Padre Cícero. O Povo, Fortaleza, p. 1, 21 jul. 1934.
36
Jornal fundado na década de 1930. Tinha forte apelo de oposição à Aliança Liberal e defendia as
oligarquias, o empresariado e a classe média de São Paulo. Com a derrota dos paulistas durante a
Revolução Constitucionalista, foi aos poucos perdendo o caráter eminentemente político.
37
PADRE Cícero. Correio de São Paulo, p. 2, São Paulo, 21 jul. 1934.
35
curiosas sobre o evento está uma do Jornal do Recife, que dois meses depois publicou
uma matéria discutindo o estado de espírito dos devotos:
38
O LUCTO pelo Padre Cicero. Jornal do Recife, Recife, p. 3, 13 set. 1934.
39
VOU TOMAR conta do resto do mundo, diz Lampeão. A Noite, Rio de Janeiro, p. 2, 22 ago. 1934.
36
A morte de Padre Cícero era o fim do mundo. E o fim do mundo era o fim de
Juazeiro. O local para onde acorreram milhares de devotos em busca de conforto
espiritual e material parecia perder sua razão de ser. A cidade estava sem o seu patriarca.
Devotos perdiam seu Padrinho. Era um fato inesperado para aqueles que acreditavam em
sua imortalidade ou supunham que ele ainda viveria por mais algum tempo. O advogado
Manoel Dinis, amigo pessoal do sacerdote, escreveu que, por causa do susto, “[...] certo
barbeiro, ao saber que o Padim acabava de expirar, deixou um freguez barbeado só de um
lado, e flechou à toda pressa, para a Rua S. José, onde o grande apóstolo do rosário
começara a dormir seu derradeiro sono”40.
O desaparecimento de Padre Cícero paralisou a cidade41. Sem ele, qual
seria o sentido e o significado da existência de Juazeiro? Os sertanejos pobres, agora
abandonados à própria sorte, eram, paradoxalmente, a riqueza dali. Sua mão de obra e seu
parco poder de consumo sustentavam o município e garantiam a prosperidade dos
pequenos empresários e comerciantes. Uma pergunta ecoava: como seria possível existir
Juazeiro sem Padre Cícero? Essa preocupação havia se apresentado também ao próprio
sacerdote, que manifestou uma súplica em seu testamento:
40
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1935]. p. 229.
41
Ralph Della Cava afirmou que, com a morte do Padrinho, “[...] os pessimistas começaram a cerrar as
portas de suas lojas e a abandonar a cidade, cujos verdes campos eles pensavam que iriam fenecer”.
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985 [1977]. p. 312.
42
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 197.
43
Personagem juazeirense que viria a ocupar o posto de prefeito da cidade durante uma vacância
temporária, entre 1970 e 1971.
37
Catorze anos depois do triste acontecimento, era quase uma vingança mostrar
que Juazeiro permanecia sobrevivendo e, principalmente, crescendo após a morte de seu
pai fundador. Nesse sentido, os aspectos de modernização da cidade também deviam ser
destacados, pois conferiam ao local um ar de superioridade diante do atraso
constantemente relacionado às cidades do sertão. A descrição das ruas alinhadas era
essencial porque distanciava a cidade do aspecto desordeiro, sempre associado às regiões
que possuíam ruas e becos tortuosos e irregulares.
Juazeiro foi acusada diversas vezes de se constituir como um arraial, uma
aldeia de pobres casebres de palha e madeira que poderiam ser destruídos pelo fogo ou
pelo vento a qualquer momento. Os rumores diziam que ali as forças naturais pareciam
se sobrepor à engenharia humana. A existência de ruas perpendiculares permitia imaginar
algo diverso: uma urbe que se inseria nos planos de desenvolvimento nacionais e cujas
avenidas “melhoradas” representavam o avanço, o progresso.
Até 1934, o temor de um possível abandono pode ser percebido em diversos
relatos. Se para alguns a devoção ao Padre Cícero se extinguiria com sua morte, com o
avanço da cultura letrada ou através da interferência da Igreja, para outros a cidade corria
o risco de simplesmente ser abandonada pelos fiéis. Floro Bartolomeu da Costa, numa
perspectiva muito pragmática, afirmou que
44
MACHADO, José Teófilo. Duas palavras. Excertos da vida de Padre Cícero. Juazeiro do Norte:
Tipografia São Francisco, 1948.
45
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 153.
38
46
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 153.
47
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 29.
48
Op. cit., p. 182.
39
pobre que só pôde obter formação em seu país de origem graças à ação caridosa de Dom
João Bosco, que construiu numerosas escolas na Itália49. De acordo com Odísio,
[...] desaparecido o porquê das visitas de romeiros ao lugar, a cidade terá que
forçosamente tomar outro aspecto e o povo outro rumo; ou Juazeiro progride
tornando-se cidade operosa, culta e progressista ou fatalmente retrocederá
ficando a Ítaca do sertão nordestino. 50
49
Na Itália, Dom Bosco criou, em 1854, os chamados Colégios Salesianos, que eram baseados em
princípios franciscanos e procuravam assegurar a educação e a evangelização de crianças e jovens
pobres. Agostinho Balmes Odísio estudou numa escola ligada à Congregação, a Escola
Profissionalizante São Domingos Sávio, em Turim. A mesma ordem religiosa se constituiu como a
maior herdeira de Padre Cícero, instalando-se em Juazeiro em 1939.
50
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p.s.n.
51
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1935]. p. 74.
40
52
KUNZ, Martine. Cordel – A voz do verso. Fortaleza: Museu do Ceará, 2011. p. 27.
53
STINGHEN, Marcela Guasque. Padre Cícero: a canonização popular. 2000. 171 fls. Dissertação
(Mestrado) — Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2000. p. 114.
41
‒ Eu tenho p’ra mim que só com a morte do padre é que esta terra se endireita...
‒ Apois, eu não sou desse pensar. No dia em que a estrada de ferro chegar aqui,
você vae ver: acaba-se cangaço, acaba-se fanatismo, isto aqui se enche de
soldado e tudo entra nos eixos, tudo se endireita!
‒ Preciso ver p’ra entonce crêr! Qual! O Padre Cisso, estando vivo, a estrada
de ferro chegando aqui, nem que inda por riba se puxe um ramal p’ra cada casa
de Joazeiro, Joazeiro não se endireita!56
54
THAUMATURGO e Assumpto. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, p. 2, 2 ago. 1934.
55
NA PERSPECTIVA de um novo Canudos. O Paiz, p. 3, Rio de Janeiro, 6 nov. 1934.
56
INCORRIGÍVEL. Diário Carioca, Rio de Janeiro, p. 6, 4 jan. 1931.
42
57
José Lourenço Gomes da Silva nasceu em 1872, em Pilão de Dentro, estado da Paraíba, e chegou em
Juazeiro quando tinha em torno de vinte anos. No início dos anos 1890 (não se sabe ao certo se 1891,
1892 ou 1894), logo após o fenômeno da hóstia, reuniu-se temporariamente aos beatos da cidade. Ele e
sua família eram agricultores, por isso rapidamente resolveu, após consulta ao Padre Cícero, arrendar
um terreno em Baixa Danta, no município de Crato. Para maiores informações, Cf. LOPES, Régis.
Caldeirão: estudo histórico sobre o Beato José Lourenço e suas comunidades. Fortaleza: Instituto Frei
Tito de Alencar, 2011. p. 43-44.
58
Conforme depoimento de D. Maria de Maio a Francisco Régis Lopes. LOPES, Régis. Caldeirão: estudo
histórico sobre o Beato José Lourenço e suas comunidades. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar,
2011. p. 75.
59
UMA CHANTAGE Curiosa! Diário Carioca, Rio de Janeiro, p. 1, 21 fev. 1935.
60
OS FANÁTICOS do Padre Cícero. Diário Carioca, Rio de Janeiro, p. 6, 13 mai. 1936.
43
No dia posterior, 14 de maio de 1936, o tema foi capa do jornal, com o título:
“A Polícia do Ceará vai acabar com os beatos e beatas de Juazeiro – Ladrões e assassinos
explorando a memória do Padre Cicero para melhor tirar proveito das massas fanáticas”.
A matéria, construída a partir de pareceres oficiais, mas também bastante influenciada
por rumores, afirmava que a morte de Padre Cícero estava sendo utilizada como meio de
enriquecer criminosos e aproveitadores. Na reportagem lê-se:
Ou seja: a crença na santidade de Padre Cícero não feneceu com sua morte.
A permanência dessa fé e a sobrevivência de grande ajuntamento de pessoas irmanadas
em torno de uma mesma ideia pareciam ameaçadoras para as autoridades locais. Mais
uma vez, o fantasma de Canudos rondava o Brasil. É interessante notar, contudo, o fato
de as soluções violentas serem geralmente desestimuladas pelos jornalistas, que
ressaltavam a necessidade de educar os povos do sertão para que a polícia não tivesse,
outra vez, que intervir.
A ideia de que Juazeiro era um antro de fanáticos foi explorada por muitos
cronistas, jornalistas, estudiosos e viajantes. Era, na verdade, o argumento principal de
boa parte das narrativas elaboradas sobre a cidade. Abelardo Montenegro, por exemplo,
publicou na década de 1950 seu História do fanatismo no Ceará, em que dedicava um
longo capítulo à discussão dos milagres de Juazeiro. Montenegro defendia que as
populações sertanejas tinham como principal característica o primarismo e, por esse
motivo, eram incapazes de refletir e assimilar princípios religiosos, exprimindo sua fé de
modo infantil. Para o autor, “[...] o misticismo sertanejo difere do misticismo dos santos.
Enquanto o santo se esforça por elevar a alma a Deus, o sertanejo procura fazer com que
Deus baixe até ele” 62 . Entendimentos semelhantes eram recorrentes nos estudos de
meados do século XX, ensejando preconceitos relativos à fé dos romeiros, devotos e
beatos.
61
A POLÍCIA do Ceará vai acabar com os Beatos e Beatas de Juazeiro – Ladrões e Assassinos Explorando
a memória do Padre Cicero para melhor tirar proveito das massas fanáticas. Diário Carioca, Rio de
Janeiro, p. 1, 14 mai. 1936.
62
MONTENEGRO, Abelardo. História do fanatismo religioso no Ceará. Fortaleza: Editora Batista
Fontenele, 1959. p. 127.
44
Tal descrição, eivada de muitos adjetivos pouco afáveis, deixa entrever algo
do posicionamento das elites acerca dos beatos nordestinos. A existência de tais sujeitos
63
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 120.
64
OLIVEIRA, Xavier de. Beatos e cangaceiros. História real, observação pessoal e impressão
psychologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. Rio de Janeiro: s.n., 1920. p. 39.
45
era considerada uma vergonha para a região. Suas crenças causavam constrangimento aos
membros da cultura letrada, assim como as vestes, rosários e cruzes que carregavam. Por
serem religiosos que não possuíam a tutela da Igreja, incomodavam também os sacerdotes
mais conservadores. O fim da existência de beatos seria, para muitos, o primeiro passo
em direção ao progresso.
De certa forma, as elites juazeirenses eram constituídas por dois grupos: um
deles era representado por “filhos da terra”, que já viviam na localidade muito antes da
emancipação do município; o outro era o grupo de “adventícios” (ou romeiros), que
chegaram após o fenômeno da hóstia, em 1989. De acordo com o Almanaque do Cariri
(1949), a grande concentração demográfica da região teria duas origens: a primeira estaria
relacionada aos “prodígios de Maria de Araújo”, que a partir de 1889 contribuíram para
a atração de pessoas “das Alagôas, Bahia, Pernambuco, Piauí, Goiaz”, bem como do Rio
Grande do Norte e da Paraíba65. A segunda onda de chegada da população local estaria
ligada ao período posterior à independência de Juazeiro e à Revolução de 1914,
consolidando-se com a instalação dos trilhos da estrada de ferro de Baturité, em 1926.
Com efeito, em 1920 a cidade possuía, de acordo com o Censo66, 22.067 pessoas. Em
194067, a população já chegava a 38.145 habitantes. É, no entanto, difícil saber se houve
um processo de emigração após a morte de Padre Cícero, pois não foi realizado nenhum
Censo em 1930.
O estabelecimento de Juazeiro como morada definitiva de Padre Cícero
permitiu que a cidade fosse procurada por muitos viajantes enquanto o sacerdote vivia.
Alguns apenas visitavam o local temporariamente, pediam conselhos e bênçãos ao
Padrinho e retornavam aos seus lares. Outros, contudo, permaneciam. Ali fixavam
residência e criavam suas famílias. Buscavam moradia, sustento e conforto espiritual.
Esses foram os reais fundadores da cidade, e eram justamente os mesmos sujeitos que
poderiam desaparecer após a morte do patriarca de Juazeiro.
65
LEITE, Francisco de Assis; ALVES, Joaquim (Org.). Almanaque do Cariri – 1949. Fortaleza: s.n.,
1949. p. 147.
66
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ministério da Agricultura, Indústria e
Commercio – Directoria Geral de Estatística. Recenseamento do Brazil realizado em 1º de setembro
de 1920. Volume IV (4ª Parte); População. Rio De Janeiro: Typ Da Estatística, 1929.
67
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento geral do brasil (1º de
setembro de 1940): série regional. Parte VI – Ceará – Tomo I – Censo Demográfico. População e
habitação – quadros totais referentes ao estado e de distribuição segundo os municípios. Quadros
sinóticos por município. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1950.
46
68
Cf. MAIA, Janille Campos. Exilados da fome: Seca e migração no Ceará oitocentista. 2015. 167 fls.
Dissertação (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2015.
69
SILVA, Antenor de Andrade. Cartas do Padre Cícero [1877 – 1934]. Salvador: E. P. Salesianas, 1982.
p. 191.
47
70
CARVALHO, Jarbas de. “Um santo moderno”. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 3, 8 nov. 1934.
71
O JOAZEIRO e o Padre Cícero. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 3, 21 jul. 1934.
48
Juazeiro, sem conhecê-la a fundo, a estátua de bronze parece ter sido alvo, desde a sua
criação, de certa rejeição. Segundo o periódico A.B.C.,
Talvez a cor da estátua não fosse o maior problema. Acontece que ela não
lembrava em nada os santos dos altares. Não era uma obra capaz de trazer à tona os
sentimentos mais ternos dos devotos, assim como não refletia a bondade de Padre Cícero.
O caráter cívico da representação acabou desestimulando o culto.
Os devotos amavam o Padrinho que sempre portava uma velha batina
surrada, não aquele que carregava uma toga romana. Além disso, aquele Padre Cícero da
praça estava, como o Padrinho, alijado da Igreja. Tomava chuva e sol, sem apresentar
diferença em relação aos demais homens públicos. Não tinha a proteção da sombra de um
templo ou da abóbada sagrada. Era um político como outro qualquer.
O jornal O Paiz, diante da disputa entre Juarez Távora e os partidários de
Accioly, lembrava que o Padrinho poderia resolver a questão política caso estivesse vivo,
pois certamente daria a vitória a um dos grupos. Discutia também o uso da imagem:
“Quem sabe se a estatua do padre Cicero não vai receber ainda a consulta dos partidos
cearenses, transformada em oraculo de bronze?...”73. Os jornalistas aproveitaram para
destilar sarcasmo ao falarem sobre a possibilidade de aquele monumento substituir o
santo local.
Além da existência de intelectuais e políticos preocupados com a ausência de
Padre Cícero, havia ainda o problema dos devotos que não acreditavam na morte do
sacerdote. O periódico O Observatório Econômico e Financeiro contou, numa de suas
edições, a seguinte história:
Encontramos, num porto [...], um cearense que voltava do sul. Deu-nos, como
tantos outros, a imagem da sua ingenuidade: falando do Padre Cícero, duvidou
que ele estivesse morto, e disse: ‘Quando havia a guerra na Allemanha, o
padrinho padre Cicero subiu numa nuvem afogueada, desceu nos campos da
Europa e acabou com a guerra’. E declarou ter visto, em casa do padre Cicero,
a fotografia ‘ainda com a nuvem cor de fogo’. Como um passageiro duvidasse,
72
O SANTO de Joazeiro. A.B.C., Rio de Janeiro, p. 3, 31 mar. 1934.
73
O MAJOR Távora e a Política do Ceará. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 1, 24 jul. 1934.
49
ele benzeu: ‘T’esconjuro! Você é o bode! Não quero saber de conversa com o
bode!’. Eis a matéria prima da emigração.74
Há vários dias que Joazeiro está coberta de lucto, cheia de romeiros tristes
carpindo o trespasse do santo. Ninguém, entretanto, acredita na sua morte. Para
aquella gente, começou a eternidade de Cicero. E ele continuará a realizar
milagres [...]. Para o Joazeiro, para o sertão, para o Ceará, o que houve foi a
morte de um Deus.75
74
A EMIGRAÇÃO. O Observatório Econômico e Financeiro, Rio de Janeiro, p. 107, fev. 1939.
75
A MORTE de um homem deus. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 2, 25 jul. 1934.
76
Benditos são cânticos religiosos da tradição popular. Numerosos benditos entoados em Juazeiro
possuíam aspectos narrativos e faziam menção à história e à memória de Padre Cícero. É preciso
considerar que muitos desses cânticos foram apropriados e modificados pela Igreja Católica, num
esforço de disciplinarização das práticas religiosas populares. Para maiores informações, cf. PAZ,
Renata Marinho. Para onde sopra o vento. A Igreja Católica e as Romarias de Juazeiro do Norte.
Fortaleza: Editora IMEPH, 2011.
77
Segundo Ramos, o termo “meio” é apropriado para definir Juazeiro por representar o trânsito entre o
Céu e a Terra: “Juazeiro é um meio do mundo. A ambiguidade do termo permite interpretações sobre o
sagrado como algo encarnado: experiência religiosa que é vivência concreta, e não um mero ‘sistema
de crenças’”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo: Território sagrado em Juazeiro do
Padre Cícero. Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 13.
50
exalava a sua santidade por todas as ruas e praças, ganhou grandes proporções. A cidade
deixou de ser somente a morada de Padre Cícero, o lugar em que era possível receber os
conselhos e bênçãos de um santo, e foi se tornando, aos poucos, um espaço sacralizado e
habitado pela sua recordação. Além disso, continuou se configurando como centro
comercial, econômico e de serviços.
ainda, contudo, uma estátua sua, semelhante às dos santos, abrigada sobre um nicho,
protegida e adorada. Nisso, Odísio foi pioneiro, isto é, foi o primeiro a arquitetar a
imagem do santo.
O escultor também redigiu um caderno de memórias com o objetivo de
perenizar sua lembrança sobre a singular terra de Juazeiro 78 . A potência dos
acontecimentos testemunhados por ele foi encarcerada no escrito para que não se perdesse
com o tempo. Num amontoado de folhas sem pauta, ele se pôs afa registrar a experiência
vivida.
O caderno de memórias de sua lavra por vezes parece apresentar pretensões
literárias. Tem, inclusive, as páginas numeradas, tal como um livro79. Foi doado por sua
neta, Vera Siqueira, ao Museu do Ceará, que o publicou, em 2006, como edição fac-
similar. Esse gesto garantiu sobrevida ao nome do escultor, que já caía no esquecimento80.
Mais que isso: forneceu uma valiosa fonte para os historiadores de Juazeiro,
principalmente àqueles que se preocupam com o tempo em que Padre Cícero,
desaparecido da cidade, mostrou-se capaz de manter o poder acumulado sobre seus
devotos e afilhados.
Quando chegou à cidade, Odísio encontrou um mercado de arte sacra
relativamente consolidado. As esculturas de madeira juazeirenses, que até então faziam
certo sucesso, eram feitas, segundo o marmorista italiano, de modo rústico, sem muito
esmero. Ele narrava que na cidade era possível encontrar:
78
Segundo Assmann, “[...] cada mídia descerra um acesso específico à memória cultural. A escrita, que
acompanha a língua, armazena coisas diferentes e de maneira diferente em comparação ao que as
imagens fazem [...]. O corpo também pode funcionar como um meio em si, na medida em que os
processos psíquicos e mentais de recordação são ancorados de maneira tanto somática quanto neuronal
[...]. Por fim, as mídias externalizadas da memória incluem localizações que são convertidas em lugares
de memória, devido a algum acontecimento de relevância religiosa, histórica ou biográfica. Lugares
podem atestar e preservar uma memória, mesmo para além de fases de esquecimento coletivo. Após
intervalos de suspensão da tradição, peregrinos e turistas do passado retornam a locais significativos
para eles, e ali encontram uma paisagem, monumentos ou ruínas. Com isso ocorrem “reanimações”, nas
quais tanto o lugar reativa a recordação quanto a recordação reativa o lugar”. ASSMANN, Aleida.
Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp,
2011. p. 24-25.
79
Odísio insere números na margem superior direita do seu manuscrito, desde o início até a página 107.
Para permitir a correta referenciação, optei por seguir essa numeração, acrescentando os números que
faltavam, entre as páginas 108 e 133.
80
Graças a esse destaque dado a seu nome a partir de 2006, o escultor chegou inclusive a ser nomeado,
em 2013, patrono de uma nova cadeira do Instituto Cultural do Vale Caririense (ICVC), a de número
72. Cf. O ICVC Instituto Cultural do Vale Caririense terá 60 novos patronos. Gazeta de Notícias,
Juazeiro do Norte, p. 6, 15 nov. 2013.
52
a São José feito a machado por ser ele carpinteiro e Nossa Sra. feia como uma
megera, porem tudo bem ‘encarnadinho’ e lustroso (grifo nosso).81
81
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 76.
82
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 92.
83
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 82.
53
designadas pelos devotos de Padre Cícero como “calungas”84. Existem, portanto, indícios
de que Odísio teria lido Os Sertões, embora não mencione o livro em suas memórias85.
A atividade profissional desenvolvida por Agostinho Odísio pode ser
compreendida como a de um “artista-artesão”. Ele dominava toda a produção, desde a
compra da matéria-prima e elaboração do projeto da imagem a ser esculpida até o trabalho
em gesso, concreto ou pedra. É preciso lembrar que a escultura feita nesse sistema
deveria, necessariamente, agradar ao comprador. Não havia espaço para grandes ousadias
e voos artísticos86.
Os artistas da madeira que, na década de 1930, foram desprezados por Odísio,
passaram posteriormente a desdenhar daqueles que fabricam imagens em gesso, pois, sob
o ponto de vista dos artesãos criativos, aqueles que modelam o gesso unicamente sabem
colocar a massa dentro de uma forma e retirar depois de algum tempo. Mesmo a pintura
das obras em gesso costuma ser feita com pouco cuidado, pois a rapidez e a alta
produtividade são elementos mais valorizados que a qualidade. Já o artesão que usa a
madeira costuma dedicar-se a apenas uma peça por vez, trabalhando durante diversos dias
a mesma matéria bruta87.
Quando chegou em Juazeiro, Odísio já atuava no ramo da escultura há muitas
décadas. A região Sudeste era seu campo de trabalho. Lá, era conhecido e respeitado, e
por muito tempo não lhe faltaram encomendas. Segundo sua neta, Vera Siqueira, o artista
italiano decidiu mudar a rota de seu destino ao ler o suplemento do jornal carioca Noite
Ilustrada88 de 1 de agosto de 1934, que anunciava a morte de Padre Cícero:
84
Odísio provavelmente se referia às figuras de maracatus originadas entre os bantos, que lembram
bonecas e encarnam as forças de antepassados dos grupos.
85
O escultor leu, sem dúvida, livros sobre o sertão. Inclusive afirma ter ouvido, ao chegar no Ceará,
notícias sobre as secas que o surpreenderam, “[...] apesar de já ter conhecimento de muitas obras de
valor que descrevem o flagelo”. ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre
Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006. p. 95.
86
Maria Eliza Borges defende que, nesse tipo de organização do trabalho, “[...] o manufaturado artístico
era aprazível pela sua utilidade, pela sua feitura ou pelo significado religioso que possuía” . BORGES,
Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890-1930). Ofício de marmoristas italianos em Ribeirão
Preto. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2002, p. 49.
87
RAMOS, Francisco Régis. O verbo encantado. A construção do Pe. Cícero imaginário dos devotos.
Ijuí: Editora Unijuí, 1998. p. 113-114.
88
Sua neta, Vera Odísio Siqueira, é a responsável pela informação de que a ideia teria surgido com a
leitura de um artigo na revista Noite Ilustrada. Foi possível encontrar essa reportagem na Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Depreende-se que esse é o texto ao qual Vera Odísio se refere.
SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio
discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 68.
54
89
FUNERAES do Padre Cícero. A Noite: Supplemento, Rio de Janeiro, p. 16-17, 1 de agosto de 1934.
90
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 64.
55
Dores, e que só um homem guiado por Deus e milagroso para fazer Padrinho
Cisso tão vivo e com tanta = decência = (beleza).91
O gesso, matéria fluida – e barata –, era utilizado pelo autor para reproduzir
com precisão figuras humanas, especialmente a figura do mais humano de todos os santos,
Padre Cícero Romão Batista. Desse modo, as esculturas de Odísio diferiam das imagens
conhecidas pelos devotos, que geralmente eram fabricadas a partir de uma matéria muito
mais indócil, a madeira, através de instrumentos pouco precisos, como machadinhas,
pranchas, formões e canivetes.
A arte funerária em São Paulo, primeiro local de pouso do italiano, era
exercida majoritariamente por marmoristas estrangeiros. Muitos deles costumavam
buscar seus patrícios e empregá-los no trabalho, pois a mão de obra especializada era
escassa no Brasil de então. Outros chegavam a arregimentar seus aprendizes ainda na
infância. Os pequenos artesãos estudavam a teoria e a prática da técnica escultórica nas
próprias oficinas dos marmoristas. Segundo Borges, o estatuário (ou marmorista) “[...]
rompe o mito da arte pura, abandona o papel de intelectual, transforma-se em um técnico
profissional, aceitando lentamente a tecnologia industrial da produção”92.
Tais marmoristas tiveram amplo campo de trabalho nas regiões em que havia
importante produção de café. A nova burguesia, em sua ânsia de afirmar poder mesmo
após a morte, comprava túmulos, jazigos e estátuas funerárias cujos modelos geralmente
ficavam expostos nas vitrines das oficinas. Havia ainda a opção de escolher diferentes
propostas artísticas em catálogos que traziam imagens de obras realizadas anteriormente.
Depois do projeto inicial, feito em tinta aguada, geralmente o exemplo da escultura era
produzido em gesso, e só posteriormente era cinzelada a obra em mármore. Os escultores
que trabalhavam o mármore sabiam, portanto, lidar bastante bem com o gesso. Odísio era
um desses artífices. Contratado pelo patrício Natale Frateschi – que viria a ser seu sogro
– para fazer um busto em Franca, atuou, ainda, em muitas outras cidades de São Paulo,
bem como de Minas, utilizando diversos materiais, tudo isso antes de se dedicar quase
que exclusivamente àquela matéria-prima maleável, modesta e fartamente disponível em
território brasileiro: o gesso.
91
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 90.
92
BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890-1930). Ofício de marmoristas italianos em
Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2002. p. 55.
56
93
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Introdução”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre
Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p.
21.
57
[...] algum bom serviço vindo do Rio, algum túmulo pequeno em mármore
feito aqui, e o resto de alvenaria e cimento. Há duas fábricas de granito
artificial, porém, não vi serviço deste material no cemitério, por informações
obtidas, parece que os serviços funerários aqui têm pouca saída. 94
94
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Mudança para o ‘Norte’ do Brasil”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De
Dom Bosco a Padre Cícero: a saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza:
IMEPH, 2011. p. 126.
95
BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul. Arte. Sociedade. Ideologia.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 15.
96
Segundo sua neta, Vera Siqueira, Odísio não se sentia bem desde o dia 27 de agosto de 1948, uma sexta-
feira. Era portador de uremia e percebeu que não estava em condições físicas de trabalhar na oficina,
por isso “[...] pediu a seu filho Pedro que levasse o trabalho que estava executando, para que pudesse
concluí-lo em casa. Coincidentemente era o Anjo da Morte [...]”. Odísio faleceu no domingo, 29 de
agosto de 1948. SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor
Agostinho Balmes Odísio, discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 256.
58
público-alvo de sua arte e com as peculiaridades do gosto artístico das elites caririenses,
que pouco se interessavam por imagens do Padrinho:
[...] há quem se ajoelhe e rese a frente de uma peça qualquer; quem pede a =
meu padrinho = para lhe faserma graça de ganhar dinheiro para poder comprar
uma = estauta = ou uma = redoma = (medalhão) e entra uma porção deles,
saem, e entra outros, e não exagero em diser, ser pelo menos uns cinquenta por
dia, e não só romeiros, mas de toda classe e até das cidades visinhas; pena é
que aquelles que dariam a vida por comprar, não podem, e aquelle que
poderiam só se interessam pela obra de arte.97
97
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 90.
98
ODÍSIO apud SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho
Balmes Odísio, discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p.287.
59
99
Como enfatiza Ramos, “[...] Seu corpo, somente seu corpo, obteve permissão para ficar dentro dessa
Igreja, direito adquirido por qualquer funcionário do Vaticano. Sua imagem não pode repousar sobre o
altar das Igrejas: uma regra sem exceção. Afinal, seu estatuto canônico era claro: não se tratava de um
santo”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do Padre
Cícero. Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 398.
100
FIGUEIREDO FILHO, Odílio. Odílio Figueiredo – um juazeirense de expressão. Fortaleza: IMEPH,
2011. p. 44.
101
Segundo depoimento de Renato Dantas concedido à pesquisadora Adriana Botelho, “A Coluna da Hora,
erguida na Praça Padre Cícero. Não foi uma questão de modismo, como acontecia no Brasil. Ela foi
construída em 1934, e a ideia era mostrar pra todo mundo que Juazeiro não ia se acabar, pois havia
pouco tempo o Padre Cicero tinha falecido, então um monte de gente achava que a cidade não ia
sobreviver. O construtor foi o italiano Agostinho Balmes Odísio [ele também é responsável pela
imagem/estatua do Padre Cícero que existe em frente a Capela do Socorro, um dos modelos mais
reproduzidas na cidade. Odísio mudou, totalmente, a arquitetura do Juazeiro, e do Cariri, notadamente
60
a arquitetura religiosa. Nossa arquitetura religiosa tinha características de um Barroco "pobre", onde as
igrejas eram simples. O Odísio mudou tudo isso, inclusive introduziu o gesso aqui. Juazeiro não
trabalhava com gesso. Nós tínhamos imaginários [estátuas de santos] só em madeira”. Disponível em:
<http://www.sitededanielwalker.com/p/referencias.html>. Acesso em: 18 nov. 2016.
61
Quando se trata de Juazeiro sem Padre Cícero, os acontecimentos parecem não ser
irreversíveis: a circunstância de sua morte, embora estabeleça uma ruptura, não modifica
gravemente o arcabouço temporal. O sacerdote era cultuado em vida, e isso não se modifica
com seu desaparecimento. Juazeiro recebia romarias, e não deixa de receber depois da sua
morte. As peculiaridades sociais e urbanas da cidade lembravam Canudos, e a perspectiva de
que ela se tornasse um reduto semelhante ao arraial baiano não desapareceu após 1934.
Compreender tais permanências é exercer uma tentativa de desnaturalização do tempo
histórico: 1934 é um marco não apenas de ruptura. É um marco de continuidade.
A morte de Padre Cícero não se estabelece como um momento de aceleração do
tempo, de fim do “atraso” de Juazeiro, de incorporação da cidade na trama da modernidade. A
nova temporada, iniciada com a morte do Padrinho, tornou-se um tempo velho, tanto pelos seus
eventos quanto pelos prognósticos que ensejou. Contrariando as mais diversas expectativas
acerca do evento, a cidade se modificou, mas não muito. Os cangaceiros não a destruíram, os
devotos não a abandonaram, o culto ao sacerdote não desapareceu.
Entre o final do século XIX e o início do século XX, Crato e Juazeiro do Norte
abraçavam, como tantas outras cidades do Brasil, a ideia de progresso. Crato se apoiaria na
ideia de um passado heroico vocacionado ao futuro de sucesso. Juazeiro do Norte, localidade
por muito tempo pertencente ao município de Crato, não tinha histórias tão gloriosas. O passado
do Crato não lhe pertencia: Bárbara de Alencar, José Martiniano de Alencar, Tristão
Gonçalves102 e outros personagens admiráveis da cidade vizinha não a representavam. O grande
herói de Juazeiro passou a ser o também cratense Padre Cícero, responsável pela fundação,
independência e desenvolvimento da cidade. Outros “grandes homens”, no entanto, viriam a
constituir o panteão juazeirense. Um deles foi o Dr. Floro Bartolomeu. O trabalho de defesa
empreendido por ele era árduo. Os discursos que maculavam a imagem de Juazeiro do Norte se
102
Bárbara de Alencar participou ativamente da Revolução Pernambucana de 1817 (evento que os cratenses por
vezes intitulam como “Revolução Caririense de 1817”, “Revolução Cratense de 1817”, ou mesmo “Revolução
dos Alencar”), assim como seus filhos Tristão Gonçalves de Alencar e José Martiniano de Alencar. A família
tomou parte, também, da Confederação do Equador em 1824. José Martiniano de Alencar ordenou-se padre e
tornou-se senador pelo Ceará em 1932, além de ter sido presidente da província duas vezes.
62
103
Ano de emancipação do município.
104
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 48.
105
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 169.
106
Em edição veiculada em 1909, respondendo às críticas que cratenses costumavam sustentar acerca dos
habitantes de Juazeiro, Alencar Peixoto escreveu: “[...] porque eles, -- esses paralyticos da sympatia, pregados
à cruz de nosso despreso pelos cravos da verdade incorruptível, ameaçam á esta população laboriosa e pacífica,
composta, em sua maioria, de mais de vinte e cinco mil romeiros? Romeiros! Não foram eles que dominaram
por completo a ferocidade de nosso solo e escalaram as nossas serras? [...] E não concorrem eles com a sua
somma de quarenta contos de reis annuaes para as arcas da câmara municipal e do tesouro estadoal? Assim,
pois, essas perseguições porque lhes fasem? Porque tramam à surdina contra eles, e na inconsciência de quem
não mede as consequências?! Porque? Porque vêm n’elles, como por ahi alardeiam, um perigo iminente?!”.
PEIXOTO, Padre Joaquim de Alencar. Onde o Perigo? O Rebate, p. 1, Juazeiro do Norte, 12 set. 1909.
107
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1935]. p. 13-14.
63
Padre Cícero era vivo e, especialmente, quando os fenômenos do milagre, das romarias e do
crescimento urbano amedrontavam ainda mais as autoridades políticas e clericais. Elas
fundaram, de certa maneira, a opinião de muitos sobre a jovem urbe caririense.
O escultor Agostinho Odísio afirma, por exemplo, que estando a caminho da cidade
(em outubro de 1934, logo após a morte de Padre Cícero), conheceu ainda em Fortaleza um
engenheiro químico piemontês que lhe transmitiu a seguinte informação:
E é para um lugar deste que vamos... Isto tudo me fez pensar no caso e tomar as
precauções, porque, como me disseram, lá o culpado é quem morre, em vista disto,
apesar dos meus fundos estarem já bem minguados, hoje vou comprar um revólver e
munições... Homem avisado, meio salvado. 109
108
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Mudança para o ‘Norte’ do Brasil”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco
a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011.
p. 126.
109
Após receber as informações de seu conterrâneo, ponderou: “Enfim agora é tarde, seja o que Deus quiser! É
tarde para retroceder e teremos que aguentar até ver o que dará tudo isto...” (ODÍSIO apud SIQUEIRA, Vera
Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: a saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin.
Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 126).
110
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 177.
64
111
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1970-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 56.
112
Desse modo, “[...] as proibições aos casamentos inter-raciais, as restrições que incidiam sobre “alcoólatras,
epilépticos e alienados”, visavam, segundo essa ótica, a um maior equilíbrio genético, “um aprimoramento das
populações”, ou a identificação precisa “das características físicas que apresentavam grupos sociais
indesejáveis”. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no
Brasil 1970-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 60.
65
incivilizáveis’”113. Tal concepção foi criticada por um dos narradores de Juazeiro, o educador
Lourenço Filho, que afirmava:
Manoel Bergström Lourenço Filho foi o inventor dos “testes ABC” (1928) 115, que
tinham como objetivo verificar a maturidade das crianças para a aprendizagem da leitura e da
escrita e separá-las, criando grupos, em classes diferentes, de acordo com a capacidade
cognitiva. Assim, alguns professores poderiam se dedicar às crianças que aprendiam mais
lentamente, enquanto outros se dedicariam às mais rápidas.
Segundo a proposta de Lourenço Filho, numa mesma sala de aula não deveriam ser
encontrados alunos muito diferentes, mas crianças com o mesmo nível de desenvolvimento.
Interessante é notar que, para ele, bastava que as elites fossem educadas, pois sua influência se
refletiria automaticamente na consciência popular. É preciso ressaltar ainda que seus estudos
sobre educação primária têm como referência o Dr. José Paranhos Fontenelle116, que defendeu
a existência de grandes diferenças cognitivas entre brancos, pardos e pretos (sendo os brancos
e os pardos mais talentosos que os pretos).
Lourenço Filho é, portanto, uma figura controversa. Ao chegar em Juazeiro e
estacionar o carro junto à casa do Padre Cícero, o educador afirmou ter visto uma rua repleta
de pessoas que esperavam pela benção do Padrinho. E começou a descrevê-las: “À primeira
vista, aquela massa apresentava unidade; expressões dos mais díspares caldeamentos de raça
ali se confundiam, no entanto, e apenas um ou outro semblante mais puro ressaltava”. 117
Assim, o autor também se dedicava a descrever os devotos de Padre Cícero partindo
do componente racial. Na aparente homogeneidade mestiça, o autor percebeu, aos poucos, a
heterogeneidade, e alguns semblantes supostamente puros lhe chamaram a atenção. Entre esses,
uma jovem de pele branca despertou curiosidade e admiração especial no escritor, “[...] uma
113
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1970-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 62.
114
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 181.
115
LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. Testes ABC: Para a verificação da maturidade necessária à
aprendizagem da leitura e da escrita. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira, 2008.
116
José Paranhos Fontenelle foi um médico higienista que também se dedicava a estudos de Estatística e Educação.
Era, assim como Lourenço Filho, signatário do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Para dados relativos
às pesquisas sobre cognição realizadas entre brancos, pardos e negros, cf. FONTENELE, J. P. Aplicação dos
testes ABC no Distrito Federal. 1934. (Relatório).
117
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 51.
66
adolescente, cujo perfil quase puro e tez menos tisnada destacavam-na como uma flor de estufa
em campo agreste”118.
Ainda acerca de Juazeiro, o educador afirmou que “[...] sobre a ignorância e o fundo
supersticioso do caboclo, vivem em seu espírito tradições de messianismo e sebastianismo”119,
associando as crenças religiosas heterodoxas a uma forte inclinação natural dos mestiços para
tais convicções. Ao descrever o Nordeste brasileiro, Lourenço Filho defendeu que
A própria evolução etnográfica brasileira quase pode ser estudada numa viagem de
penetração. Na costa, predomina o branco, fato que demonstra a preponderância
ariana da nossa gente até hoje; a breve trecho, surgem, porém, expressões do mais
violento caldeamento das três raças primitivas, com a presença muito rara do prêto
puro; depois, mais extenso e generalizado, o caboclo, tanto quanto o indígena, tanto
quanto o ariano; noutros pontos, tapuias extremes, índios puros, com a só diferença,
junto a seus primitivos, em não usarem tangas, terem idéias cristãs e vestirem calças
de azulão...120
118
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 52.
119
Op. cit., p. 85.
120
Op. cit., p. 28.
121
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 62.
67
Lucien Smith faz parte de uma corrente de teóricos eugenistas que afirmava a
fatalidade do desaparecimento natural de “doentes crônicos”. Para o médico, a criminalidade
era associada à degeneração da raça: tais sujeitos não seriam apenas incivilizáveis, mas
constituíram uma população doente e, portanto, criminosa. O pesquisador norte-americano
defendia, ademais, que a população de Juazeiro se extinguiria naturalmente, pois tais elementos
defeituosos perceptíveis nos homens e mulheres que ali viviam não dariam origem a crianças
saudáveis123.
Juazeiro era, para o Dr. Lucien Smith, um local repleto desses sujeitos anormais,
cuja continuidade genética estaria fadada ao fracasso. Por isso, a violência e o crime seriam,
ali, dados naturais. O médico higienista acreditava que a evolução das espécies proporcionaria
o sucesso aos indivíduos mais fortes e adaptados. Os juazeirenses, portanto, estavam
condenados ao desaparecimento.
Um dos assuntos recorrentes nas descrições de Juazeiro é, como se pode perceber
na citação anterior, a grande quantidade de portadores de doenças psicológicas e psiquiátricas.
Essa peculiaridade da cidade é notada por muitos viajantes e cronistas. Há muitas justificativas
para essa particularidade local. Floro Bartolomeu da Costa tentou explicar, em seu Depoimento
para a História, por que Juazeiro abrigava tantos doentes:
122
SMITH, Lucien C. 14 mar. 1927 Relatório de uma viagem à região de Juazeiro. RAC, RG 1.1., série 305, caixa
19, pasta 155. Apud LOWY, Ilana. “Representação e intervenção em saúde pública: vírus, mosquitos e
especialistas da Fundação Rockefeller no Brasil”. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de
Janeiro, v. 5, n. 3, fev. 1999, p. 212. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0104-59701999000100006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 7 nov. 2013.
123
Conforme Lilia Schwarcz, circulava nesse período a Gazeta Médica da Bahia, cuja edição, publicada também
em 1927, apresentou um artigo que “[...] defendia divisão entre mestiços redimíveis e aqueles absolutamente
enfermos – 'os alcoólatras, loucos, epilepticos e doentes'”. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das
raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1970-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
p. 216.
68
Se elle [o doente mental] é um louco manso, a família ainda o conserva tratando como
se fosse um extranho; se, porém, as exacerbações se repetem, o enviam para o
Juazeiro, afim de que o Padre Cicero o trate e o sustente. Já porque o padre é
extremamente caridoso e se compadece desses infelizes, já porque elle tem um dom
especial de dominar qualquer louco, – por lá se ficam, sustentados por elle, havendo
casos de cura completa.124
124
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 128.
125
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1935]. p. 142.
126
O Dr. Paulo de Moraes e Barros visitou Juazeiro em 1922, acompanhado pelo deputado Ildefonso Simões
Lopes e pelo general Cândido Mariano da Silva Rondon. Os três eram membros de uma comissão a serviço da
Inspetoria Federal de Obras contra a Seca (IFOCS). A viagem tinha como objetivo a fiscalização e a avaliação
das construções de açudes, ferrovias e estradas no Nordeste. Moraes e Barros também era médico sanitarista e
publicou, no Estado de São Paulo, em 1923, suas “Impressões do Nordeste”, que ofereciam uma descrição de
Juazeiro bastante negativa, dando origem ao discurso de Floro Bartolomeu, que pretendia rebater seu texto.
127
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 156.
128
Op. cit., p. 157.
129
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 159.
69
Mais uma vez, é possível notar a influência de Euclides da Cunha nos discursos
sobre Juazeiro. Em Os Sertões, descobrimos a afirmação de que o sertanejo “[...] não tem o
raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”130. O famoso jornalista afirmou
ainda que, embora tais homens parecessem permanentemente fatigados, vítimas de uma
preguiça invencível e de uma atonia muscular perene, a aparência de cansaço seria ilusória, pois
os sertanejos seriam capazes de fazer uso de grandes energias adormecidas quando uma ocasião
de urgência se apresentava.
Floro Bartolomeu, por sua vez, perguntava: “[...] qual a verdadeira causa real da
degenerencia physica de um povo, senão a civilização?”131. É importante notar o paradoxo de
o líder político de Juazeiro ter se tornado médico na Bahia, berço da medicina legal132. Ele
contrariava sua própria escola médica ao afirmar que os sertanejos mestiços eram, com efeito,
mais evoluídos, mais fortes e mais adaptados ao meio que os habitantes do litoral133. Chegava,
inclusive, a criticar determinado professor que tivera na Faculdade de Medicina da Bahia. De
acordo com o Dr. Floro, tal catedrático defendia que “[...] o brasileiro é uma raça degenerada
porque teve origem no maroto ladrão, assassino e peralta e no negro que é raça que não está
sujeita ao progresso” 134 . O principal aliado de Padre Cícero afirmava o contrário: que o
sertanejo, definitivamente, não era um degenerado, mas uma raça mais forte que as demais.
Floro Bartolomeu não era o único a ter um pensamento pouco ortodoxo em relação
às especificidades de Juazeiro. De acordo com Manoel Dinis, Padre Cícero não curava
indivíduos considerados loucos, mas simplesmente os livrava da maconha, que era a verdadeira
responsável pelos delírios, surtos e alucinações de homens e mulheres erroneamente
considerados doentes. O advogado afirmou:
130
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 51.
131
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 166.
132
De acordo com Schwarcz, a medicina legal praticada na Bahia pretendia pensar nas possibilidades de uma
ciência brasileira que estudasse os casos de degeneração racial. Assim, alcoólatras, portadores de doenças
psiquiátricas, epiléticos e criminosos eram vistos como provas de que o darwinismo social estaria correto em
seus pressupostos. A existência de tais exemplares alertava para a “[...] imperfeição da hereditariedade mista”.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1970-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 211.
133
Não se pode atribuir a Floro Bartolomeu, todavia, a criação de uma nova teoria a respeito dos povos sertanejos.
Segundo Nísia Lima, já existia, na obra de Euclides da Cunha e em produções intelectuais anteriores, uma
outra forma de conceber a relação litoral/sertão, “[...] invertendo o sinal positivo atribuído ao litoral e às
tendências modernizantes, Trata-se da leitura do dualismo litoral/sertão à luz da ideia que opõe civilização de
copistas a civilização autêntica”. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. São Paulo: Hucitec,
2013. p. 33.
134
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p.168.
70
[…] muitas pessoas, mesmo das menos simplicias (sic), pensavam que certos tipos,
particularmente pretos ou bem trigueiros, eram realmente doidos ou malucos,
conduzidos, furiosos, à presença do Patriarca, para curá-los. Nem por sonho. Tais
indivíduos que vimos mais de uma vez à porta do Patriarca, contidos por seus
condutores, cavilosos ou não, no dia seguinte estavam bons e proclamando que tinham
sido curados por milagres da benção do Padim Ciço. Quase todos esses tipos eram
apenas liambados e nada mais.135
Assim, o problema deixava de ser genético e passava a ser cultural, mas a culpa
continuou recaindo sobre mestiços e negros, pois a liamba “[...] é cultivada por alguns
indivíduos de origem africana”136, também conhecidos pelo suposto fanatismo. Para Manoel
Dinis, era comum encontrar em Juazeiro “[...] negros e cafusos evidentemente aliambados”137,
que podiam parecer loucos, mas não eram. Muitos deles, segundo o autor, faziam uso da erva
em cultos de matriz africana. A existência desses cultos era negada por Floro Bartolomeu, que
via tais manifestações religiosas como “remedios problematicos para o espírito”. Ao mencionar
ocultistas, cartomantes, adivinhos, “candomblés, macumbas ou cangerês”, o aliado de Padre
Cícero explicou serem práticas religiosas que “[...] não se encontram em Joazeiro, porque lá
não existe esta casta de gente”138. Manoel Dinis, por sua vez, discorreu também sobre doenças
mentais e o uso de drogas naquela cidade:
[...] não inventamos bicho de sete cabeças quando nos referimos ao perigoso uso da
liamba que é um verdadeiro presente de grego que os escravos africanos trouxeram-
nos da África para, pérfida e sutilmente se vingarem de seus senhores, degradando-
os, a ponto de ficarem inferiores aos próprios africanos. Infelizmente os nossos
Governadores do Norte e do Nordeste, onde há os mais perigosos centros de cultura e
uso da liamba, ainda não criaram serviço especial de polícia preventiva contra
entorpecente tão perigoso, que concorre não só para achinesar um povo, como para
africanizar, que é muito pior.139
135
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1935]. p. 195.
136
Op. cit., p. 196.
137
Op. cit., p. 197.
138
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p.191.
139
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011[1935]. p. 194, grifos nossos.
71
140
Irineu Nogueira Pinheiro foi um médico e intelectual cratense que nasceu em 1831. Fundou um jornal, o
Correio do Crato, e foi colaborador de muitos outros. Seu primeiro livro O Joaseiro do Padre Cícero e a
Revolução de 1914, foi publicado em 1938, no Rio de Janeiro, pelos Irmãos Pongetti.
141
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Fortaleza: IMPEH, 2011 [1938]. p.
31.
142
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 41.
143
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 41-42, grifo
nosso.
72
Peixoto prossegue sua descrição concluindo que ela possuía “[...] a pele cor de
azeitona em estado de putrefação” e que “[...] a semelhança do maxilar inferior, desafiando-lhe
a protuberância do frontal, semelha-se ao de um homem de Darwin”. Por fim, afirmava ter feito
cuidadosamente o estudo “[...] dessa cacodemoníaca criatura que deve de ser mulher, que assim
o indica a pênula, a murça, a bata, o vestuário, sobretal, de beata”. Terminava sua explanação
dizendo que “[...] a pintura é por demais mesquinha, apagada e fria em face do original”. A
beata era descrita de maneira racista, e o padre Peixoto pretendia, com isso, destacar que sua
personalidade havia se forjado no seio de uma indesejável “hibridez moral” 144.
As ideias associadas à eugenia foram utilizadas com o objetivo de aplicar um verniz
científico a preconceitos raciais que envolviam os sujeitos pobres que se deslocaram até
Juazeiro em busca do apoio espiritual e material de Padre Cícero. Tais discursos acerca das
especificidades dos devotos de Padre Cícero criaram uma tradição de hostilidades que iria se
cristalizar nas imagens acerca de Juazeiro e, por vezes, determinar prognósticos que envolviam
a extinção futura da cidade e de seus habitantes.
144
Id., Ibid.
145
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 1.
73
O Nordeste não só apresenta estranhos aspectos da terra: faz emergir do seu seio,
candente e adusto, casos sociais dos mais imprevistos e singulares. É que não lhe tem
bastado o martírio secular das secas. Sobre o reflexo inevitável na existência humana
das condições de vida possível nessa atormentada região, há incidido, por anos
continuados, o peso fatal de erros e crimes da República. Um deles, por demais
expressivo, porque não logrará nunca dissimular as responsabilidades dos governos,
o do Estado em que aflorou, e o da União, que o permitiu e insufla, é o do Juazeiro do
Padre Cícero, a Meca dos sertões cearenses – arraial e feira, antro e oficina, centro de
orações e hospício enorme...148
146
Op. cit., p. 39.
147
Essas ideias, muito infundidas por Nina Rodrigues, conduziram a uma tentativa de analisar a suposta loucura
de Antônio Conselheiro através de um exame de seu crânio, realizado na Faculdade de Medicina de Salvador
após a sua morte.
148
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 17.
74
149
Op. cit., p. 121.
150
Segundo Amália Xavier, o governo de Pernambuco teria chegado a ordenar que as autoridades competentes
“[...] prendessem o Padre Cícero como aliciador de bandidos para Antônio Conselheiro”. OLIVEIRA, Amália
Xavier de. O Padre Cícero que eu conheci. Ceará: Premius, 2001 [1969]. p. 115.
151
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 109.
152
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 162.
75
[…] não há o menor termo de comparação entre Canudos e Joaseiro. Canudos era uma
imensa tapera dentro [de] uma furna, em tudo comparado a selvagem areal africano,
sem ruas, sem o primordial princípio de hordem, um amontoado de choças de barro
com barracos para abitações, aonde vivia entocado o jagunço […], reduto nefasto que
envergonho[u] o paiz em armas de lutas para destrui-lo. Joaseiro […] está preparado
para futuro centro cívico, pois as suas ruas são amplas, com vastos largos e praças,
bem alinhado, situado numa posição topográfica magnífica com clima bom, apesar de
quentíssimo, e até salubre si existisse higiene.153
Em pleno século vinte, quando a humanidade parece prestes a chegar à ordem máxima
da Civilização, esta forma grotesca de expansão mística deve, forçosamente,
classificar-se no passado, entre fenômenos mortos na evolução humana, que o
estudioso aprecia, com frieza e carinho, por se tratar de uma reminiscência antiga.
Admiti-la no presente é negar a Civilização, consenti-la nos dias que correm, é tirar o
esforço sadio e patriótico que fazemos, no sentido de elevar o nome do Brasil. 154
153
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 12.
154
BARROS, José Goés Campos de. In: LOPES, Régis. Caldeirão: Estudo histórico sobre o Beato José Lourenço
e suas comunidades. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 127.
76
Dentre os do grupo, uma mulher logo nos chamou a atenção. Com a cabeça coberta
por um pano branco, varias medalhas pendentes do pescoço, estatura mediana, olhos
pretos, penetrantes, faces magras, foi ella abrindo o grupo, empurrando os seus
companheiros de viagem e dizendo:
‒ Espere que eu quero falar com o capitão (promoveu o tenente Cordeiro Neto). E
dele se aproximando, começou a falar das suas “manifestações”. Disse que na primeira
manifestação do ‘Divino Mestre’ (assim chama o padre Cicero), recebeu o nome de
‘Maria Quiteria’ e na segunda o de ‘Esquartelada da Annunciação’. Essa mulher, em
Joazeiro, conseguiu, entre outras igualmente ignorantes, muitos adeptos às suas
crenças esdruxulas. Armadas de espetos, saiam pelas casas, arrebentando quadros e
imagens de santos. Diz a ‘Esquartelada’ – que não devemos adorar imagens, nem
acreditar em ‘coroinhas’. Refere-se aos padres. Perguntamos-lhe, então, se ella era
prostestante, ao que nos respondeu: -- ‘acredite se quiser’... O comandante da escolta
adeantou que a ‘Esquartelada’ não comia e que ella se alimentava apenas de agua. Foi
um momento interessante porque a tal mulher se apressou em declarar que comia
bolachas, não convindo que o soldado adiantasse inverdades... 156
155
A ideia por trás de textos como esse é a de que esse passado de atraso, que envergonhava as elites, deveria ser
sepultado, Conforme indica Michel de Certeau, “diferentemente de outros ‘túmulos” artísticos ou sociais, a
recondução do “morto” ou do passado num lugar simbólico, articula-se [...] com o trabalho que visa a criar, no
presente, um lugar (passado ou futuro) a preencher, um “dever-fazer”. DE CERTEAU, Michel de. A Escrita
da História. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007. p. 108.
156
A POLÍCIA do Ceará vai acabar com os Beatos e Beatas de Juazeiro – Ladrões e Assassinos Explorando a
memória do Padre Cicero para melhor tirar proveito das massas fanáticas. Diário Carioca. Rio de Janeiro, 14
de maio de 1936, p.1.
157
LOPES, Régis. Caldeirão: Estudo histórico sobre o Beato José Lourenço e suas comunidades. Fortaleza:
Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 123.
77
desaparecer graças à evolução natural dos homens — no caso das teorias raciais — ou à
imposição de uma cultura mais avançada (de acordo com os adeptos de teorias culturais).
Assim, para os intelectuais que se preocuparam com o tema, haveria uma época em que “[...]
mal soarão, como evocações de um passado omisso, as lembranças dos males sociais que não
podem ser agora escondidas, como êsse, quase incrível, do Juazeiro do Padre Cícero”158.
Além dos receios associados à constituição de uma segunda Canudos, rondava
sobre Juazeiro a ideia de que seria um antro do cangaço. Em diversas descrições é possível
perceber os temores dos visitantes diante dessa informação. De acordo com alguns narradores
de Juazeiro, como Floro Bartolomeu, tais bandoleiros recorriam à cidade somente em busca de
paz espiritual. Encontravam-se com o Padre Cícero para pedir perdão e procurar a regeneração.
E o padre, através da famosa prédica “quem matou, não mate mais, quem roubou, não roube
mais”, os perdoava e acolhia. Existem, no entanto, outras explicações acerca da grande
concentração de criminosos na região.
Primeiramente, é importante notar que elucubrações acerca do caráter intensamente
violento da população local existiam desde o século XIX. O viajante George Gardner afirmou:
“Aqui foi, e até certo ponto ainda é, embora em menor extensão, um esconderijo de assassinos
e vagabundos de toda a espécie vindos de todos os cantos do país [...]” 159.
O Cariri já possuía, há pelo menos um século, a fama de refúgio de bandidos,
provavelmente por causa de sua distância em relação à capital. Tal imagem, no entanto, em
determinado momento passou a ser propagada especialmente em relação a Juazeiro. Os
forasteiros que chegavam pela devoção ao Padre Cícero foram imediatamente identificados
como salteadores. Alencar Peixoto, por exemplo, afirmou que a cidade era “[...] quase que
exclusivamente composta de romeiros, o que vale o mesmo que dizer – de assassinos, de
desordeiros, de rufiões e de ladrões de cavalo”160.
A passagem de Lampião por Juazeiro, em 1926, reforçou a constância de tais
discursos. Padre Cícero e Floro Bartolomeu teriam convocado o cangaceiro para lutar junto ao
Batalhão Patriótico contra a Coluna Prestes. Lampião atendeu ao chamado graças à promessa
(frustrada) de que receberia em troca um prêmio: a patente de capitão, associada ao perdão de
seus crimes. Esse evento é marcante na história local e acabou reafirmando a hipótese do apoio
de Padre Cícero aos jagunços. Lourenço Filho, por exemplo, defende que “[...] ‘Lampião’ é um
158
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 182.
159
GARDNER, George. Viagens pelo Brasil. Principalmente nas províncias do Norte e nos Distritos do Ouro e
do Diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. p. 94.
160
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 53.
78
expoente, apenas, da malta de celerados que tem feito do Juazeiro o seu quartel-general, como
tem sido abundantemente provado”161.
É importante notar, todavia, que há anos o Padre Cícero vinha desenvolvendo
estratégias para diminuir os embates entre líderes locais (e, consequentemente, entre os diversos
grupos de jagunços). O célebre “Pacto dos Coronéis”, firmado pelo sacerdote em 1911, teve
como um dos objetivos assegurar que “[...] nenhum chefe protegerá criminosos do seu
município nem dará apoio nem guarida aos dos municípios vizinhos, devendo pelo contrário
ajudar a captura destes”162. Conforme a resenha do livro de Reis Vidal publicada no Diário
Carioca por Marcial Dias Pequeno,
Não foi como politico, nem como administrador, que o ‘padrinho’ do sertão chegou a
interessar o paiz. Isso ele conseguiu pelo poder magico da bondade. E como tal fez
authenticos milagres. Pois não dominou alguns milhões de ‘jagunços’ Não corrigiu
numerosos bandidos apenas com alguns conselhos? O próprio ‘Lampeão’ abandonou
o crime por longo espaço de tempo, só voltando ao ‘cangaço’em virtude de novos
erros dos governos.163
161
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 114.
162
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Fortaleza: IMPEH, 2011 [1938]. p.
169.
163
PEQUENO, Marcial Dias. “Padre Cicero”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, p. 6, 7 ago. 1936.
164
BARROSO, Gustavo. O Padre Cicero e o Folk-lore. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 13, 26 out. 1926.
p. 13.
79
de 1922, afirmou que era importante “[...] combater o conceito generalisado pelo povo
brasileiro de que o Padre Cicero exerce malefica inffluencia no povo nordestino; muito pelo
contrario, devemos salientar as suas beneficas e desinteressadas obras humanitárias”165.
O Padrinho era considerado por Luetzelburg como a pessoa mais indicada para
auxiliar e socorrer o povo nordestino. Ele não estava só. Floro Bartolomeu defenderia que o
sacerdote tinha o poder de regenerar criminosos. Mas, para o médico baiano, caso os conselhos
de Padre Cícero não fossem o bastante, a Justiça deveria entrar em cena. Por isso, quando esteve
na liderança política de Juazeiro, assumiu a responsabilidade de eliminar os “elementos
perturbadores da ordem” e assegurar que Juazeiro estivesse “dentro da lei”. Para tanto, utilizou
diversos meios. Em seu Depoimento para a História, em 1923, contou:
Naquele mesmo periodo revolucionario, uma vez fui informado de que um cabra de
nome Domingos, nos arredores da cidade de Iguatu, havia invadido uma casa de
pessoas pobres, espancado os velhos e deflorado uma filha deles. Admirado da
petulancia do cabra e muito mais revoltado contra a crapulice do mesmo, confesso
com a maior sinceridade, mandei imediatamente cinco homens com o fim de verificar
se era exacta a informação, com ordens terminantes de, no caso affirmativo, ser elle
morto, para exemplo dos outros. Felizmente não era verdade, mas sim uma mentira
propalada por desaffectos.166
165
LUETZELBURG, Philipp von. Estudo Botânico do Nordéste. Rio de Janeiro: BNB, [1922]. p. 60.
166
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 58.
167
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 92.
80
arregimentou não somente devotos de Padre Cícero, mas, principalmente, criminosos dispostos
a lutar, mediante recompensa, pela causa dos Accioly.
Ou seja, Juazeiro teria, durante a Guerra de 1914, recebido inúmeros bandos de
jagunços que seriam responsáveis pela luta contra as forças estaduais. Com efeito, ao rebater
os comentários de Moraes e Barros – que afirmava ser o banditismo uma profissão normal em
Juazeiro –, Floro Bartolomeu admitiu que “[...] tanto em nossas hostes como nas do governo,
que nós combatíamos, havia um número relativamente pequeno de indivíduos dignos de
cangaceiros, elemento, alias, indispensável nesses períodos de agitação”168.
O debate sobre a associação entre a população adventícia e a criminalidade era
intenso. Grandes ondas migratórias chegavam diariamente quando a popularidade e a saúde de
Padre Cícero estavam em alta. Muitos autores se dedicaram a descrever tais migrantes. Ao
dissertar sobre as características desses novos habitantes, o advogado juazeirense Manoel Dinis
defendeu:
Já houve quem disse que os romeiros do Juazeiro constituem a escória das populações
do nosso Nordeste, mas não é assim: aqui moram e têm morado romeiros idiotas,
romeiros cretinos, loucos, fanáticos, e romeiros inteligentes e bens (sic) como os mais
legítimos representantes da brasilidade. É exato que no começo muitos criminosos se
fizeram romeiros e penitentes mais ou menos sinceros, vindo residir junto ao Padre
Velho, para cuidarem de sua regeneração e salvação, o que parte deles conseguiu, ao
menos em relação à cadeia.169
Mesmo Manoel Dinis, amigo do sacerdote, admitia que a cidade recebeu, portanto,
romeiros “idiotas, cretinos, loucos, fanáticos e criminosos”. Entre os que se preocupavam com
o fato de Juazeiro ter se transformado em conhecido refúgio para delinquentes, muitos
defendiam que tais indivíduos errantes teriam se fixado definitivamente em Juazeiro após os
combates de 1914. Por esse motivo, alguns temiam que, depois da morte de Padre Cícero, a
criminalidade na cidade se tornasse incontrolável:
Outro perigo não menos temeroso diz respeito à ordem pública. Por emquanto os
cangaceiros estão acorrentados aos gestos complascentes de um homem. É preciso,
porém, não olvidar que esse homem é feito da mesma massa que os outros e conta 79
annos de idade; mais dia, menos dia, cumprindo o seu fado, como os seus semelhantes,
terá de emigrar desta para melhor. […]. Para prevenir o perigo imminente da eventual
liberdade do cangaço, seria preciso cuidar, desde logo, com geitoso tacto, da sucessão
da influencia da actual sotaina, que se assenta em mystica superstição por outra que
se apoia na religião verdadeira, tolerante e arguta. 170
168
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 89.
169
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 54.
170
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 152.
81
171
Odísio, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 27.
172
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 8.
173
Op. cit., p. 11.
82
de palha cobertas, todas são de tijolo ou de taipa e cobertas de telhas” 174. Assim, afirmava a
superioridade da cidade não só diante de outras do sertão, mas inclusive quando comparada às
capitais brasileiras 175 . O importante era garantir que Juazeiro não fosse igualada a um
acampamento. Importa ressaltar que Floro Bartolomeu não foi o único a defender o avanço de
Juazeiro. O naturalista Luetzelburg escreveu:
Deste modo, o botânico alemão admitiu que o centro era bastante organizado, mas
não deixou de observar a existência de uma poeirenta periferia. Outros viriam, alguns anos
depois, reafirmar a existência de importantes problemas urbanos em Juazeiro. Em 1934, apesar
de destacar os aspectos positivos da cidade, Odísio se espantou:
A higiene é pois palavra morta; existe é verdade a ‘Instituição Rockfeller’ com seus
impregados mata mosquitos que todas semanas visitam as casas procurando destruir
as aguas paradas e focos de mosquitos, mas o que vale? Numa só sarjeta aonde se
empoçam as águas que saem das casas destrói o trabalho de todos os mata mosquitos;
e as sarjetas são muitas e com águas paradas dum fedor insuportavel na cidade toda
[…].177
As reflexões dos membros da cultura letrada levam a crer que a cidade de Padre
Cícero deixaria de ser, num futuro breve, o ajuntamento de sujeitos pobres que foi até a morte
do sacerdote. Para alguns, com o progresso material, Juazeiro se tornaria uma cidade culta,
progressista e moderna, eliminando fanáticos, beatos e romeiros. Para outros, esse extermínio
aconteceria de forma natural, pois as características genéticas da população impossibilitariam a
reprodução de novas gerações. Havia, por fim, aqueles que imaginavam apenas a decadência
econômica e social daquela cidade, acompanhada pelo crescimento da violência após a morte
174
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 12.
175
É importante lembrar que “[...] foi [...] sob o prisma das discussões sobre civilização e progresso na virada do
século XIX para o XX, ou em torno do desenvolvimento e, em particular, sob a inspiração da teoria da
modernização nos anos da década de 50 do século XX, que se produziu toda uma literatura sobre as relações
entre sertão e litoral”. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. São Paulo: Hucitec, 2013. p. 18.
176
LUETZELBURG, Philipp von. Estudo Botânico do Nordéste. Rio de Janeiro: BNB, [1922]. p. 58.
177
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 54.
83
do Padrinho. De toda forma, as três perspectivas previam, de um modo ou de outro, o fim dos
romeiros, resultado da ausência do santo a quem costumavam visitar.
178
Para della Cava, inclusive, o fato de o país estar entrando num período de governo caracterizado pelo laicismo
teria contribuído para a perseguição ao Padre Cícero e ao Juazeiro. Segundo o pesquisador norte-americano,
“[...] encontrava-se a Igreja, na época, sob ataques crescentes dos republicanos. Em 1888, o bispo confiara ao
Padre Cícero seus temores de que o problema da ‘liberdade religiosa’ estava se tornando cada vez mais crítico
[...]. Talvez acreditasse dom Joaquim que os milagres de Joaseiro tenham sido enviados por Deus para
confundir os descrentes’”. DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985
[1977]. p. 56.
179
RAMOS, Francisco Régis Lopes. Juazeiro e o Caldeirão: espaços de sagrado e profano. In: SOUZA; Simone
de (Org). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2007. p. 355.
84
principalmente religiosa, já que a vantagem material era parca, pois o líder da comunidade
permitia somente a propriedade pessoal de residências e objetos móveis, garantindo o
compartilhamento absoluto das terras, pastagens e rebanhos. Sob a perspectiva do jornalista,
“[...] os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento do que traziam [...].
Reputavam-se felizes com a migalha restante. Bastava-lhes de sobra”180. A mentalidade urbana
pouco compreendia as necessidades e prioridades daquela população.
Padre Cícero, por sua vez, recebeu devotos vindos de diversas partes do Nordeste.
Ao chegarem em Juazeiro – ou mesmo antes de se se estabelecerem na cidade –, tais homens e
mulheres pediam conselhos ao sacerdote sobre a melhor maneira de desempenhar suas
atividades produtivas, e muitas vezes eram encaminhados por ele para os mais diferentes
serviços.
Nos períodos de seca, principalmente, Juazeiro era vista como um abrigo, e o
Padrinho fazia o possível para assegurar pelo menos a uma refeição diária à população pobre
que buscava a região181. A cidade se transformou, assim, num refúgio alternativo aos campos
de concentração criados pelo governo182. O sítio Caldeirão, por sua vez, vivia um regime de
propriedade semelhante ao de Canudos, atraindo, por isso, a atenção dos intelectuais, das
autoridades policiais e das elites, as quais temiam perder aquela mão de obra barata183.
Canudos, em 1902, era descrita por Euclides da Cunha como um agrupamento
bárbaro, uma urbe selvagem que lembrava ruínas já no momento de seu surgimento, onde não
havia avenidas e era impossível distinguir as ruas. Segundo o escritor, o lugarejo se
caracterizava por possuir
[...] becos estreitíssimos, mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos
ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos, cumeeiras orientando-se para todos
180
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 84.
181
Segundo Barros, “[...] chegada a família no Juazeiro, o padre, após situá-la em alguma propriedade como
rendeira, ou mesmo em terras devolutas, ajudava-a no início, fornecendo-lhe comida (se a pobreza fosse
absoluta), sementes para iniciar o plantio. Quando da colheita, em sinal de gratidão, afluíam para seus paióis
sacas e mais sacas de produtos agrícolas, trazidos pelos novos rendeiros ou proprietários de terras. Esse produto
era distribuído entre os necessitados, aqueles que iriam começar a vida, e ainda sobrava muito para, junto com
a sua própria produção, enriquecer-lhe os cofres. Dessa maneira aconteceu uma verdadeira circulação de
riquezas na região, animando o povinho a migrar para Juazeiro”. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti.
Juazeiro do Padre Cícero – A Terra da Mãe de Deus. Fortaleza: IMEPH, 2008. p. 281.
182
Para maiores informações sobre os campos de concentração, cf. RIOS, Kênia Sousa. Campos de concentração
no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza: Museu do Ceará, 2001.
183
De acordo com Régis Lopes, “[...] em 1932, a organização do Caldeirão já estava tão bem estruturada que não
houve grandes problemas no socorro aos flagelados. O depoimento de José Alves de Figueiredo garante que o
beato chegou a abrigar mais de 500 pessoas: ‘ele gastou grandes depósitos de cereais que tinha em Caldeirão
e toda farinha produzida em 600 tarefas de mandioca de sua cultura na Serra do Araripe (...). Fornecia uma
única refeição diária, mas somente nesse jantar, eram empregadas 5 quartas de farinha, ou sejam, 400 litros’
(Figueiredo, 1934)”. LOPES, Régis. Caldeirão: Estudo histórico sobre o Beato José Lourenço e suas
comunidades. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 79.
85
os rumos, como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma
multidão de loucos... Feitas de pau-a-pique e divididas em três compartimentos
minúsculos, as casas eram paródia grosseira da antiga morada romana: um vestíbulo
exíguo: um atrium servido ao mesmo tempo de cozinha, sala de jantar e de recepção;
e uma alcova lateral, furna escuríssima mal revelada por uma porta estreita e baixa
[...]. Traíam a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa. Se as edificações em
suas modalidades evolutivas objetivam a personalidade humana, o casebre de teto de
argila dos jagunços equiparado ao wigwan dos pele-vermelhas sugeria paralelo
deplorável. O mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza repugnante,
traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça.184
As habitações quase todas se copiam por fora, em muros mal acabados, despidos
ordinariamente de qualquer intenção estética, como se parecem no interior,
pobríssimo e imundo [...]. Por dentro, uma sala, em toda a largura da habitação. Duas
alcovas, as camarinhas, e a cozinha, tudo sem outro piso senão a terra batida, sem
forro nem pintura [...]. Ordinariamente, não há, nas pobres habitações, nem cadeiras,
nem mesas, nem camas. Em nenhuma delas falta, porém, pendurada à parede da sala,
a efígie do Padrinho, em reprodução tipográfica, ou numa oleografia em que ele
aparece miraculosamente rodeado de anjinhos, que tangem harpas celestiais, entre
nuvens de incenso. Junto à gravura, na maioria das casas, ostenta-se um rifle.185
184
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 82.
185
LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. Joazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Edições Melhoramentos,
[1926]. p. 44-46.
186
Conforme destaca Ramos, desde o século XIX, “[...] o motor dessas preocupações era praticamente o mesmo:
avaliar em que medida Juazeiro assumia a condição de ‘cidade rebelde’ diante da ‘ordem social e política’”.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 119.
86
A Nova Jerusalém! ... Ao governo brasileiro cabe o inadiável dever de crear nos
sertões as Jerusalens da Industria, como a Fabrica da Pedra de Delmiro Gouveia, as
Jerusalens do respeito à Lei, da Instrucção, do Trabalho e do Progresso, afim de evitar
as do Fanatismo, da Ignorancia do Abandono, como Canudos e o Joazeiro, embora
estejamos crentes que a centralização de energias levada a efeito pelo padre Cícero,
apezar de defeituosa, é preferível à anarchia completa a que o descaso dos poderes
públicos há mais de um século votou o sertão.187
187
BARROSO, Gustavo. O Padre Cicero e o Folk-lore. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 13, 26 out. 1926.
188
SARASATE apud RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do
Padre Cícero. Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 144.
87
[...] muita cousa interessante e mesmo valiosa a ser apreciada: imagens, cerâmica,
instrumentos de corda bem acabados, calçados admiráveis, molduras, giz, [...], vellas,
objetos de chifres e de flandres e por fim até impermeável para capas, uma
extraordinária realização do sr. João Fontes, o mesmo constructor do balão, talvez
indústria única no ramo em todo o Brasil. Convem salientar aqui também o
beneficiamento do couro, que é indústria própria em Juazeiro devido à capacidade e
arrojo de um sertanejo em surpreender, o sr. José Pedro da Silva. É assim a única
indústria local bem enraizada, isto é, aquella que possue machinas modernas de
confecção. Tudo o mais apesar da maior perfeição, é fabricado por methodos
primitivos, encontrando entre os factores principais apenas a habilidade e a paciência
do caboclo sertanejo.189
Barbosa afirma, em seu já citado livro de memórias, que o próprio sacerdote teria
tomado a iniciativa de promover a feira a fim de mostrar, mormente, as manifestações culturais
presentes em Juazeiro. Segundo o memorialista, Padre Cícero teria dito ao jornalista Pedro
Coutinho Filho que seria interessante aproveitar sua visita para levar ao Rio de Janeiro uma
exposição da arte popular juazeirense. Pedro Coutinho, por sua vez, teria exposto a dificuldade
de transportar grupos de folguedos, considerando a distância entre as duas cidades, mas sugeriu
que fosse realizada uma exposição do artesanato local em que constasse a produção de
ourivesaria, relógios, “[...] artefatos de palha de carnaúba, de ferro, de flandre, de instrumentos
musicais e tantas outras...”190. O objetivo era dar a conhecer uma nova Juazeiro, aquela que
produzia objetos e cultura graças ao trabalho dos muito criticados romeiros.
Com efeito, os jornais anunciavam, em julho de 1934, “Juazeiro e o seu
progresso”191. A exposição foi visitada por autoridades, políticos e representantes de diversas
categorias funcionais. Padre Cícero, inclusive, enviou pessoalmente um regalo a Alzira Vargas,
filha do então presidente Getúlio Vargas. Alzira foi presenteada com um terço confeccionado
em ouro, e o general Góes Monteiro ganhou uma lamparina de prata, ambos fabricados nas
oficinas de Juazeiro.
Àquela época os periódicos cariocas publicavam – e os jornais cearenses
reproduziam – diversas matérias sobre o estabelecimento de Juazeiro como “capital do folclore
e do artesanato”192, conferindo ao Padre Cícero o mérito de ter incentivado tais artes e ofícios
entre seus afilhados e devotos. Era então 1934, e a ideia de mostrar ao mundo uma Juazeiro que
não fosse somente fruto do fanatismo continuava em alta.
189
EXPOSIÇÃO de Artes e Indústrias de Juazeiro. O Nordeste, Fortaleza, p. 5, 10 jul. 1934.
190
BARBOSA, Walter. Padre Cícero – pessoas, fatos e fotos. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1980]. p. 114.
191
JUAZEIRO E SEU progresso. Vida Nova, Rio de Janeiro, 1 de julho de 1934 apud BARBOSA, Walter. Padre
Cícero – pessoas, fatos e fotos. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1980]. p. 115.
192
BARBOSA, Walter. Padre Cícero – pessoas, fatos e fotos. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1980]. p. 115.
88
Joazeiro, o Canudos do Ceará, após a morte do Padre Cícero Romão Batista, tornou-
se insuportável. Nenhum padre poder-se-ia manter, contrariando à dogmática dos
fanáticos – ‘Meu padrinho’ é a primeira pessoa da S. S. Trindade e Cristo Rei é o
Anticristo, etc.; O Padre Juvenal foi açoitado e a polícia, para conter os jagunços,
fuzilou uns dez, empoleirados no altar. O Joazeiro era pois um caso sério. Só mesmo
um homem extraordinário; um sacerdote fora do comum poderia governa-lo
espiritualmente. Este existia, era Mons. Joviniano Barreto! [...]. É na Tribuna Sagrada,
dando a benção à pedra fundamental de uma dessas instituições, que um louco vai
apunhala-lo.193
O texto trata de dois episódios: um, de fundo político, mas associado à devoção a
Padre Cícero; e outro, religioso. O primeiro ocorreu em 1934, quando o deputado Xavier de
Oliveira fora acusado de tentar roubar os ossos do Padre Cícero e a imagem da Mãe das Dores.
Os devotos ocuparam a Matriz de Juazeiro e, durante um embate, o pároco, Padre Juvenal, foi
ferido, o que causou a represália dos policiais, que chacinaram uma dezena de fiéis dentro da
própria igreja. O segundo evento ocorreu em 1950, quando Monsenhor Joviniano foi
assassinado por um rapaz que pretendia obrigar o padre a celebrar seu matrimônio com uma
mulher já casada. Embora o segundo evento não tivesse relação direta com a devoção ao Padre
Cícero, também foi utilizado como exemplo para demonstrar o reino de insanidade e violência
após a morte do Padrinho. Para alguns órgãos de imprensa do período, o homicídio de
Monsenhor Joviniano teria deflagrado uma onda de barbárie, posto que havia despertado uma
multidão disposta a linchar o assassino do vigário, levando mesmo a polícia local a realizar uma
campanha de desarmamento após o evento:
Para muitos articulistas preocupados com a morte de Padre Cícero, a falta de uma
liderança – religiosa ou política – poderia trazer o caos às cidades sertanejas. Segundo teoria
193
HOLANDA, Antônio Guedes de. Mons. Joviniano Barreto. A Cruz, Rio de Janeiro, 15 jan. 1950.
194
ORDENADA UMA CAMPANHA de Desarmamento em Massa na Cidade de Juazeiro – Providência para
Evitar a Invasão do Quartel pela população revoltada ante o Bárbaro e revoltante Assassínio de Mons.
Joviniano Barreto. Diário do Ceará, Fortaleza, p. 4, 9 jan. 1950, p. 4.
89
Já que esse povo não se apercebe da torpe exploração, é tempo dos poderes públicos
competentes exercer-lhe a curadoria protectora, evitando a continuação desse vae e
vem, de todo o ponto de vista, lamentável e contristador. Deste município mesmo
195
BARROSO, Gustavo. Raças do Nordeste. Revista da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, vol. 21, 1926-1927, p. 69.
196
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 78.
90
A análise publicada por Jarbas Peixoto na Revista Fon Fon200 em 1926 refletia boa
parte do pensamento intelectual do período acerca das especificidades do Nordeste. Padre
197
UMA CHANTAGEM Curiosa! Diário Carioca, Rio de Janeiro, p. 12, 21 fev. 1935, p. 12.
198
Segundo Ramos, “[...] além da ‘Guerra de 14’, outros acontecimentos também alimentaram debates acalorados
em torno do Padre Cícero, como a visita de Lampião a Juazeiro. Foram momentos que se transformaram em
um complexo conjunto de imagens, que se excluem e se entrelaçam nas formas pelas quais a espacialidade de
Juazeiro ganha sentido. Neste caso, a questão central não era definir a cidade como ‘centro de fanatismo’ e sim
como ‘núcleo de banditismo’, que, no final das contas, era quase a mesma coisa, pois os ‘fanáticos’ estavam a
um passo do ato criminoso”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. Narrativas em Fogo Cruzado – Padre Cícero,
Lampião e a Guerra de 14. Trajetos - Revista de História da UFC. Fortaleza, v. 2, n. 3, 2002, p. 164.
199
PEIXOTO, Jarbas. Duas Syntheses. Fon Fon, Rio de Janeiro, p. 92, 2 out. 1926.
200
Revista semanal criada em 1907 e extinta em 1958. Tinha a pretensão de ser leve e bem humorada, embora
também apresentasse artigos políticos e críticos. Começou a perder o caráter político em 1930, quando a linha
editorial passou a se voltar para o público feminino, com publicações que envolviam moda, beleza e luxo. A
91
Era Vargas representou também um novo tempo para a revista, que começou a estimular a ideia de um modelo
ideal de mulher.
201
Segundo Albuquerque Jr., no Brasil, esse regionalismo antigo (cujo expoente seria o debate realizado por
Euclides da Cunha em Os Sertões), “[...] inscrito no interior da formação discursiva naturalista, considerava as
diferenças entre os espaços do país como um reflexo imediato da natureza, do meio e da raça. As variações de
clima, de vegetação, de composição racial da população explicavam as diferenças de costumes, hábitos,
práticas sociais e política. Explicavam a psicologia, enfim, dos diferentes tipos regionais”. ALBUQUERQUE
JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: Massangana; São Paulo: Cortez,
2006. p. 41.
202
CANGACEIROS e jaguncismo. Diário do Ceará, Fortaleza, p. 2, 21 jul. 1926.
92
regiões como equivalentes sob o ponto de vista moral e ético, não deixa de estabelecer
comparações sobre as lideranças políticas existentes nessas diferentes espacialidades203.
Em 1924, um artigo anarquista publicado na coluna intitulada “No Meio Operário”,
do jornal carioca O Paiz, dava conta não apenas das “monstruosidades” constituídas por
Canudos e Juazeiro, mas também da possibilidade de que o fanatismo e a ignorância se
espalhassem por outros estados do Nordeste, criando fenômenos semelhantes:
Rio Grande do Norte, o que te mata são os males universaes: a clerezia, o foot-ball, o
funcionalismo, a associação comercial, os circos (círculos) católicos, a literatura
decadente, animada de um falso pantheismo ou de endeixas mal cheirosas. É a
fossilização dos historiadores, é a estreiteza dos institutos, é a apoteose da brutalidade
primitiva symbolizada nos tiros de guerra, é a advocacia burracea e rapineira, são as
agencias de despachos, as confrarias ou irmandades, as gazetas venaes... As secas
dizimam teus sertões e as colectorias tuas cidades. Quando pretenderás extinguir a
escravidão nos engenhos de assucar e rapadura, na descaroçagem de algodão, nas
olarias e padarias, nos campos de criação? O professorado beija as patas da Igreja ou
do Estado. E mandas teus filhos para essas escolas de onde só poderão sair a besta
mysthica ou a besta patrioteira a escoucearem por todos os âmbitos da nação e a
produzirem as monstruosidades como Canudos ou Juazeiro.204
O artigo publicado em O Paiz difere dos demais na medida em que não associa o
misticismo de Juazeiro a causas naturais, psicológicas ou biológicas, mas apenas a ações
políticas e sociais, tais como a exploração dos trabalhadores e a educação católica 205 .
Demonstra, no entanto, mais uma vez, que a cultura letrada do período enxergava a fé em torno
do Padrinho como um indício de atraso que deveria ser combatido (ou prevenido).
Em 1928, o temor de que o Padre Cícero utilizasse sua influência sobre os
cangaceiros e jagunços ainda era uma constante. O sacerdote era considerado especialmente
perigoso por não manter seu domínio apenas sobre uma pequena área, como ocorrera em
Canudos, mas sobre todo o sertão nordestino:
203
Cabe ressaltar que, conforme Nísia Trindade Lima, “[...] sertão e litoral podem ser vistos como imagens
espaciais e simbólicas que guardam estreita relação com esta ideia de dois tipos de ordem social. Aqui, o
contraste ocorreria não entre formas distintas e historicamente sucessivas, mas pela justaposição de épocas
históricas. Desse modo, a análise das relações entre sertão/litoral não pode ser compreendida apenas
sublinhando-se a importância do espaço em nossa formação histórica [...]. Assim, mais do que a espaço, os
significados atribuídos ao sertão e ao contraste enunciado no par sertão/litoral, referem-se fundamentalmente
a temporalidades distintas e coetâneas”. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. São Paulo:
Hucitec, 2013. p. 19.
204
BRAUNA, M. Cyclones e Arco-Íris. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 8 20 mai. 1924.
205
Nos anos de 1923 e 1924, foi concretizada uma aliança entre o Partido Comunista (PCB) e a Confederação
Sindicalista-Cooperativista Brasileira (CSCB), patrocinada pelo jornal O Paiz. Na seção intitulada “No Meio
Operário” foram publicados diversos artigos que tinham como protagonista a classe trabalhadora. Para maiores
informações, cf. PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. A Classe Operária: uma temporada no Paraíso (1923-
1924). Projeto História, n. 7, São Paulo, 7 de fevereiro de 1987, p. 91-126.
93
Esse “elogio” levava em consideração a cultura geral de Padre Cícero, além de sua
autoridade moral. Mas lembrava: o meio em que ele “armou sua tenda” era perigoso. Assim,
era valorizado somente por conseguir garantir a manutenção de uma improvável ordem em
206
O THAUMATURGO do Joazeiro através das Impressões de um Sacerdote. A.B.C., Rio de Janeiro, p. 13, 6
out. 1928.
207
O THAUMATURGO do Joazeiro através das Impressões de um Sacerdote. A.B.C., Rio de Janeiro, p. 13, 6
out. 1928.
208
O ELOGIO do Padre Cícero. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 3, 23 mar. 1934.
94
Juazeiro. Nesse discurso, ele não era a causa do fanatismo, mas sim o freio para as consciências
naturalmente fanáticas. Consequentemente, sua morte, em julho de 1934, deixou os ignorantes
sem breque. Uma nova era se iniciava e tudo poderia acontecer.
Rubem Braga, em publicação do Diário de São Paulo, afirmou, ao escrever o
obituário do santo do sertão, que “[...] si ele desse uma palavra de apoio a Antonio Conselheiro,
seriam necessários vinte Euclydes da Cunha para escrever a epopeia de Canudos209. Cinco dias
após a morte do Padrinho, Antonio Peregrino unia os dois fenômenos messiânicos numa única
análise:
209
BRAGA, Rubens. Cícero Romão. Diário de São Paulo, São Paulo, p. 3, 24 jul. 1934.
210
PEREGRINO, Antonio. A morte de um homem-deus. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 2, 25 jul. 1934.
211
O FANATISMO creador de cidades. Revista da Semana – Número Especial de Urbanismo. Rio de Janeiro,
maio de 1941, p. 64.
95
proteger o arraial, enquanto Padre Cícero viveu relativamente seguro, com o amparo de diversas
lideranças políticas, abandonando a vida somente aos noventa anos, de maneira natural. Os dois
líderes, consequentemente, deixaram seus lugares de atuação em fases diferentes de
desenvolvimento. Canudos foi uma experiência interrompida de maneira violenta. Juazeiro, por
outro lado, contou com discursos que a equipararam a Canudos, mas se manteve sem receber
investidas com vistas à sua destruição. A revista de urbanismo estabelecia distinções entre as
duas experiências, baseando-se nos díspares estágios em que se encontravam as localidades
quando desapareceram suas lideranças. É preciso notar, no entanto, que ambas continuavam
despontando lado a lado, num quadro comparativo sobre “o fanatismo criador de cidades”.
Mesmo em 1969, quando foi construído o grande monumento em homenagem ao
Padre Cícero que hoje enfeita a Colina do Horto e recebe milhares de fiéis, reportagens da
imprensa nacional ainda associavam Juazeiro a Canudos e ao cangaço, então comparado a uma
espécie de crime organizado:
Há 35 anos, morria Cícero Romão Batista, o padre Cícero. Venerado como santo,
impedira que Juazeiro se transformasse em outro Canudos, mas no momento de sua
morte já havia perdido muito do prestígio religioso e todo o prestígio político. O tripé
que sustentara a mitificação do Padim Ciço, como o chama a população rural, era
composto pelos coronéis, jagunços e a miséria da população nordestina. Hoje, o
cangaço é um negócio rendoso e bem organizado. A miséria não se define mais em
função da sêca, mas em função da incapacidade das indústrias nordestinas em
absorver a mão-de-obra existente. Assim, um novo padre Cícero não tem muitas
possibilidades de surgir, embora possam aparecer figuras que desempenhem, hoje, o
papel por ele cumprido na época.212
212
PADRE CÍCERO: o fim de um mito. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 4, 2 ago. 1969.
96
Informam-me que 90 mil pessoas moram na cidade do Padim Ciço, que possui: 17
praças, 77 indústrias e 100 mil visitantes por ano. Contemplo as fábricas alinhadas,
baixas, no triângulo formado por Crato/Juazeiro/Barbalha, na mesma paisagem
antropogeográfica, e não fujo de pensar que essas indústrias elegantes, ricas moradias
de higiene, saúde e progresso em marcha estão ali servindo a um único fim: o romeiro.
Penso que se os caminhões cessassem de chegar não trazendo essas figuras bisonhas
provindas das brenhas de vários Estados, de repente tudo aquilo se esfacelaria, viraria
pó. Quer dizer: é uma floração artificial, tão vívida como uma rosa de plástico, mas
com a diferença que precisa de água mística para sobreviver.213
Boa parte da imprensa nacional ainda acreditava que o município estaria fadado a
conviver com o retrocesso. Desse modo, o fenômeno de crescimento, urbanização e
desenvolvimento encontraria o fracasso caso os romeiros deixassem de procurar o lugar em que
viveu Padre Cícero. A industrialização, conduzida pela ignorância e o fanatismo, parecia
improvável e insustentável. Na mesma reportagem, o repórter afirmou considerar
[...] mais natural a presença sem rodeios de ‘Mestre Nosa’, Inocêncio da Costa Nick,
um pernambucano que vive no Juazeiro desde 1912, talhando e esculpindo os santos
da devoção do povo. Ou então a literatura de cordel de José Bernardo da Silva, o maior
editor de libretos da poesia popular [...]. O que eles fazem sobreviverá sempre, porque
o misticismo é produto do Nordeste e dos problemas da terra, feudalismo, crendice,
ignorância, messianismo e banditismo. Depois de percorrer esta terra árida ao sopé da
Chapada do Araripe, conversar com estes romeiros que abandonam tudo para seguir
uma recordação e uma imagem eu descreio da industrialização no Juazeiro.
213
CARNEIRO, Glauco. Padim Ciço - a estátua do mito. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 8, 21 dez. 1969.
97
Juazeiro podia ter indústrias, estádios de futebol, amplas ruas, praças e comércio,
mas continuaria sendo vista e refletida como reduto eterno da superstição, da ignorância, do
banditismo e da ingênua cultura popular. Nem mesmo a construção de uma grandiosa escultura,
elaborada por competentes profissionais e edificada com esmero pela prefeitura, provaria a
vocação de Juazeiro para o progresso. Mestre Noza, artista popular já famoso àquela época,
parecia ser uma figura mais “adequada” a Juazeiro, pois realizava seu pobre ofício em virtude
da fé (ou crendice) nordestina. Da mesma maneira, os folhetos de cordel, que se tornaram
representativos meios de comunicação entre populações iletradas, sobreviveriam, sob esse
ponto de vista, eternamente, pois os sertanejos de Juazeiro estavam fadados ao analfabetismo e
à apreciação das formas supostamente mais rudimentares da cultura popular.
Para Carneiro, o sentimento que levava nordestinos a abandonarem suas residências
em busca de “uma lembrança”, ou seja, da recordação do Padrinho, era um sintoma do atraso
e do fanatismo que condenariam aquela localidade. A construção da gigantesca “imagem” de
Padre Cícero parecia, nesse sentido, incrementar os atrativos para os rústicos devotos do
Nordeste. Sob a ótica da cultura letrada, tais mentes bárbaras, ignorantes e crédulas seriam
incapazes de colaborar para a industrialização de Juazeiro.
A dimensão cronológica parecia estar suspensa, acorrentada, desativada sob o céu
do Cariri. O tempo de Juazeiro é dotado de uma sucessão diferenciada, em que a morte não
representa o fim. Padre Cícero funcionaria, nesse sentido, como um imã que atrairia para si todo
o atraso. Sua morte representaria um evento que, sem dúvida, modificou as estruturas do
cotidiano em Juazeiro. Ela não simbolizou, contudo, um momento de ruptura brusca e integral
com as práticas recorrentes até então.
Por outro lado, muitos cronistas, intelectuais, jornalistas e memorialistas
defenderam que Juazeiro, ao receber indústrias, trens ou energia elétrica, finalmente
abandonaria o “tempo da natureza”, o ritmo agrário, as crendices de camponeses e indígenas
considerados selvagens, ingressando finalmente na era da técnica, da aceleração, do progresso
e do adiantamento. Só então seria possível que a cidade renunciasse à era “pré-moderna” para
encontrar a modernidade que já invadia o restante do país.
Em muitas das reportagens aqui citadas é possível perceber certa incompreensão
em torno das especificidades de Juazeiro. Diversos foram os jornalistas e observadores
responsáveis por construir a imagem da cidade como uma segunda Canudos. Houve ainda
aqueles que estabeleceram a teoria de que o crescimento econômico da cidade advinha somente
das romarias. Tais articulistas, cronistas e ensaístas negligenciavam as relações comerciais
98
Até quando – interrogo – perdurará esse estado de espírito, dentro do qual se exalta o
nordestino iletrado, pobre, desassistido e periodicamente às voltas com a seca sem
alma, expulso da casinha de taipa e telha para os caminhos – caminhos de terra, de rio
e de mar – que levam ao Paraná, a São Paulo, à Amazônia e, por último, a Brasília?
Ah, nesse estado de espírito, dentro dessa mentalidade, o sertanejo não pode e não
deve esquecer o Pe. Cícero, como na Bahia ainda não foi esquecido o Conselheiro.
Como no Contestado ainda não foi possível extirpar do pensamento de paranaenses e
catarinenses incultos, desnutridos e abandonados à própria sorte, a figura meio
lendária do ‘monge’ João Maria de Jesus. Ainda é tão sensível a presença de Cícero
Romão no Nordeste que as estradas não se despovoam de romeiros – ontem a pé,
agora de caminhão e de ônibus. É tão constante essa presença que frades franciscanos,
apoiados no prestígio descomunal do seu órgão nos sertões, construíram majestoso
templo e o dedicaram àquele poderoso santo, procurando – ah, como procuram –
trocar por esse mesmo santo, na alma e na fé de milhões de nordestinos, o Pe. Cícero
já morto e sepultado.216
214
Conforme destaca Ramos, “[...] imaginar que todos giravam em torno de crenças sobre os poderes do Padre
Cícero seria idealizar uma homogeneidade abstrata”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo.
Território sagrado em Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 139.
215
CARNEIRO, Glauco. Padim Ciço - a estátua do mito. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 8, 21 dez. 1969.
216
CARVALHO, Jáder. Prefácio. In: ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
99
217
Koselleck afirma que a expectativa “[...] é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal, também a
expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o
que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional,
a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem”. KOSELLECK, Reinhart. Futuro
Passado. Contribuição à semântica dos tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.
p. 310.
100
iria expor as contradições e dúvidas existentes naquele período nebuloso em que a morte do
Padrinho ainda não havia sido absolutamente digerida pelos devotos e romeiros em geral.
Os escritos de Odísio permitem entrever uma Juazeiro diversa daquela narrada por
tantos outros visitantes temporários — ou moradores interessados — da cidade. Sua visão de
estrangeiro captou peculiaridades e cenas locais que passariam despercebidas a muitos
observadores. Nas páginas que escreveu, descobrimos não apenas aspectos da biografia de
Padre Cícero, como em tantas outras páginas redigidas sobre Juazeiro, mas também o cotidiano
dos sujeitos anônimos que habitavam a cidade. O próximo capítulo propõe, por esse motivo,
observar Juazeiro sob as lentes de Odísio, mas levando sempre em consideração seu lugar social
e as narrativas que o precederam e, muito provavelmente, o influenciaram.
101
Quem anda nas ruas tem a impressão que todas as casas são habitáveis mas é
engano, pois muitas e muitas é só a frente donde pelas aberturas se enxerga a
palhoça por dentro, fato que veio por uma lei municipal a qual expropriava
todas as casas do centro que não tivessem frente, disto o engano de ver as ruas
do centro completas de casas; é caso de dizer ‘é só fachada’.218
218
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 52.
219
MELO, Rosilene Alves de. Arcanos do verso: Trajetórias da literatura de cordel. Rio de Janeiro: Editora
7 letras, 2010. p. 73.
220
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 12.
102
Na década de 1930, de acordo com Odísio, era possível encontrar apenas “[...]
três ou quatro casas forradas e assoalhadas, mesmo assim só a sala de visita e alguma
dependência, a mais são todas casas sem forro, assoalho de tijolo e, creio, não se encontra
uma com vidraças nem venezianas”221. As folhas de vidro eram, desde meados do século
XIX, sinal de modernidade, e já existiam naquele período nas fachadas de Recife, da
Bahia e do Rio de Janeiro222. Juazeiro, todavia, ainda engatinhava a caminho de moradias
mais dignas e salubres.
Houve, entre Odísio e Juazeiro, um estranhamento. O escultor, para provar o
que via e descrevia, colou ao seu caderno de memórias diversos retratos que identificavam
Juazeiro: a praça em que se localiza a primeira estátua de Padre Cícero, esculpida em
bronze por Laurindo Ramos quando o Padrinho ainda era vivo; uma rua repleta de
pessoas que acompanham a banda de música em dia festivo; a lateral da mesma avenida,
com suas formosas casinhas, todas enfileiradas simetricamente, portando belas fachadas
e sustentando arvorezinhas diante das portas. Os registros seguem representando a
“Pharmacia dos Pobres”, a avenida Padre Cícero, a rua Santa Luzia, por onde passeiam
romeiros vestidos de preto, a estação de trem e o quartel da polícia com a “cavalaria
local”: dois pequeninos e frágeis jumentinhos. A existência de tais fotografias denota o
caráter documental do escrito, que pretendia confirmar com imagens aquilo que era dito
em palavras.
221
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 51.
222
MARINS, Paulo Cesar Garcez. Através da rótula: Sociedade e arquitetura urbana. São Paulo:
Humanitas; FFLCH USP, 2001. p. 55.
103
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 47.
104
[...] o Joazeiro foi uma cidade feita por mim e é constituída por uma população,
na sua maioria, pobre em meio da qual existe uma grande quantidade de
pessoas desvalidas (órfãos, viúvas etc.) que são sustentadas por mim. Seria,
assim, uma calamidade se eu me visse na contingência de abandonar essa
cidade, porque, além de mais, acredito e devo dizer-lhe francamente, o povo
não se conformaria com uma tal medida, que talvez desse lugar a um
movimento de desastrosas consequências.225
No período em que a carta foi enviada, Padre Cícero recorria ao Padre Rota
em virtude da ordem que recebera como condição para ter acesso à sua reabilitação
eclesiástica. A Igreja defendia que o perdão somente seria possível caso o patriarca de
Juazeiro aceitasse se retirar da cidade e passasse a congregar numa ordem religiosa
qualquer. O fundador de Juazeiro escrevia porque esperava que o Pe. Rota fosse seu
procurador em Roma, recorrendo da decisão em virtude de sua frágil saúde e,
principalmente, levando em consideração os pobres e desvalidos que precisavam do seu
apoio.
223
Para maiores informações, cf. Carta do Padre Cícero ao Pe. Lúcio, 18 de julho de 1919. In: SILVA,
Antenor Andrade de. Cartas do Padre Cícero [1877 - 1934]. Salvador: E. P. Salesianas, 1982. p. 48.
224
RAMOS, Francisco Régis Lopes. Papel passado: Cartas entre os devotos e o padre Cícero. Fortaleza:
Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 83.
225
SILVA, Antenor de Andrade. Cartas do Padre Cícero [1877 – 1934]. Salvador: E. P. Salesianas, 1982.
p. 307.
105
226
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 35.
227
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 94.
106
dia de Juazeiro. Ao todo, são oitenta e sete imagens. A primeira foto, que surge logo nas
páginas iniciais, no entanto, não se debruça sobre o cotidiano. É um retrato do patriarca
da cidade. Foi capturado em 1911 e autografado em maio de 1928. É a foto oficial do
Padre Cícero prefeito. Mostra um Padrinho ainda rijo e forte, portador dos cabelos
brancos da experiência e de um olhar sério e compenetrado. É provável que esse retrato
tenha, inclusive, inspirado a estátua concebida pelo escultor, que informa ainda, em sua
legenda, o fato de o sacerdote ter nascido no município de Crato, em 1844, e morrido em
Juazeiro, “do qual foi seu fundador, em 1934” 228 . As indicações iniciais do escultor
permitem entrever o objetivo do diário: discorrer sobre Juazeiro e, consequentemente,
sobre o Padre Cícero, já morto no período em que o texto era escrito.
228
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006.
107
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006.
108
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006.
Uma das fotografias grudadas por Odísio em seu diário mostra o escultor
vestido, dos pés à cabeça, num traje branco. A calça, a camisa, o terno e o chapéu
contrastam com as paredes cor de barro da fachada de sua residência. O retrato faz
perceber que sua primeira moradia em Juazeiro é bastante tosca. É uma típica casa do
109
sertão, feita de pau a pique, com portas de madeira. O telhado, contudo, não é de palha,
mas de telha.
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 6.
229
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 18.
110
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 17.
111
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006, p.17.
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p. 18.
112
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006, p. 19.
A cidade de Joaseiro, que dizem contar mais de quarenta mil habitantes, é ainda
no seu estado embrional; conta oito mil e seiscentas casas, mas só podem assim
ser chamadas perto de dois mil, apesar de só ter umas quinhentas com alguma
ideia arquitetônica, contando com uns vinte sobrados, o quartel, o prédio do
correio e a estação bem regular [...].230
230
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 57.
231
Para maiores informações, Cf. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento
geral do Brasil (1º de setembro de 1940): Série regional. Parte VI – Ceará – Tomo I – Censo
113
Vinte e cinco residências eram compostas por dois pavimentos, e havia uma com três
pavimentos. Como se pode notar, as condições habitacionais também denotavam a
pobreza dos residentes, agora desamparados pelos poderes públicos e desprovidos do
apoio de Padre Cícero.
Embora mesmo antes da partida de Padre Cícero muitos tentassem vender a
ideia de uma cidade moderna, adiantada e desenvolvida, tanto as residências quanto as
próprias ruas da cidade testemunhavam o contrário. Ainda discorrendo sobre sua chegada
em Juazeiro, Odísio lembrou que não havia iluminação nas proximidades de sua nova
casa, pois
[...] a luz gerada por uma caldeira a vapor, velhíssima, com combustível de
caroços de algodão, só existe no centro da cidade e apesar de ser fraquíssima,
encrenca a toda hora, de forma que é mais o tempo que falha que funciona,
sendo apagada toda noite inexoravelmente às onze e meia”232.
Desde 1890, como se sabe, grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo
passavam por processos de ordenamento, disciplinarização e mesmo “desodorização”,
como afirma Margareth Rago em seu Do cabaré ao lar. Os médicos sanitaristas,
preocupados com a higiene e a saúde da população, começaram a determinar condutas e
práticas que deveriam ser seguidas pelos habitantes, assim como pelos gestores. Até a
década de 1930, essas questões foram prementes em algumas das capitais mais
importantes do Brasil. A Juazeiro do Norte de 1935 foi vista a partir dessa lógica
sanitarista:
Na zona das palhoças e taperas a qual conta com oitenta por cento das
habitações e que é toda em roda da cidade, nem é bom procurar sintetizar em
que estado se encontra a higiene; poças dágua fedorenta, agora que já serviu
nas bibocas para lavar roupa, couros, pratos, urina dos porcos, esterco de todos
animais até os racionais; imagina-se que foco de miasmas deve ser esta cloaca
aonde vivem amontoados os habitantes de seis mil e tantas taperas e palhoças,
piorado por o clima quente ao desespero, onde passam às vezes anos sem
chover, sob um sol calcinante.233
da teoria dos fluidos, e afligia também o escultor italiano. Odísio forneceu, além disso,
uma explicação sobre o modo como se dava o abastecimento de água em Juazeiro. Após
informar que não havia água encanada ou esgotos, ele explicava que “[...] a água é
fornecida à cidade por diversas cacimbas municipais, pagando os fornecedores que
vendem a água à porta da casa dez mil reis por mês à prefeitura municipal”. 234
O escultor não menciona a existência de chafarizes e tanques ou o uso das
águas dos rios para finalidades higiênicas ou de lazer. É possível imaginar, portanto, que
existiam muitas pessoas trabalhando nos serviços de fornecimento ou transporte de água.
Odísio dedica alguns retratos de sua lavra ao abastecimento, mostrando “uma cacimba
municipal do Arisco”235, um fornecedor cadastrado para a entrega da água e um jegue
responsável por transportar o líquido precioso.
234
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 52-53.
235
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 52.
115
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 53.
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006, p. 53.
116
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 39.
236
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 39.
118
categoria de adventícios, aquela que buscava a terra do Padrinho justamente por causa da
prosperidade ligada à fé juazeirense, mas que não necessariamente acreditava nos
milagres do sacerdote. Seus escritos abordam aspectos do cotidiano que muitas vezes
passaram despercebidos por sujeitos que possuíam outros interesses — intelectuais,
religiosos, políticos ou econômicos — relacionados a Juazeiro. Entre os temas explorados
por Odísio, o da habitação pode ser situado na discussão sobre o progresso ou o atraso do
recanto de Padre Cícero:
Muitas casas eram cobertas com palha (elemento malvisto por lembrar as
habitações indígenas e “incivilizadas”). A escassez de objetos era habitual em tais
moradas brasileiras, que cultivaram a tradicional penúria mobiliária colonial durante
séculos. O fogão do lado de fora da casa constituía também um uso popular. Em casas
de madeira e palha, era essencial que as cozinhas fossem dispostas desse modo para evitar
o contato do fogo com a matéria inflamável. A pequena criação de animais era uma
estratégia para garantir alimentação em tempos mais duros. Vale lembrar que grande
número de pobres buscou Juazeiro do Padre Cícero para fugir da miséria. Alguns se
mantinham no campo, outros, na zona urbana. Havia, porém, aqueles que só conseguiam
viver de esmolas e restos:
Seis horas da tarde; acaba a feira, todos voltam às suas casas, enquanto legiões
de pobres e aleijados que esmolaram o dia inteiro catam os restos que ficou no
chão, feijão, farinha, sal, fruta podre, guardando tudo em caos dentro de
imunda sacola, sendo eles os únicos varredores dos restos da feira; as
imundícies se amontoam por si nas sarjetas a custa dos pontapés dos
transeuntes e passam assim duma mesma pela outra só destacadas pelas águas
sujas que vertem das casas, as quais ajudam a tudo apodrecer com o auxílio do
sol inclemente, largando um bafo e fedor que não se descreve; apesar disso em
Joaseiro goza-de saúde.238
237
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 21.
238
Op. cit., p. 79-80.
119
239
Floro Bartolomeu chegou a defender, uma década antes, que a “civilização” era a verdadeira causadora
das moléstias: “Enquanto o sertanejo não se civilizar, há de ser uma raça physicamente forte, salvo se
nesse tempo os meios prophylaticos forem de molde a evitar simultaneamente o depauperamento
produzido pela civilização [...]. O que vale a hygiene, neste caso, senão para evitar a total degeneração
do organismo combalido pelo inevitável depauperamento consequente às condições do meio civilizado?
Tanto assim que quanto mais se adeanta um povo, tanto mais são redobradas as medidas hygienicas
pelos Governos, não para manter a resistência primitiva do organismo – o que é impossível – mas para
evitar que o pouco que ainda não foi perdido seja, com dificuldade, conservado. COSTA, Floro
Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições UFC, 2010
[1923]. p. 166-167.
240
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Mudança para o ‘Norte’ do Brasil”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom
Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza:
IMEPH, 2011. p. 122.
241
É o momento que se costuma chamar de “Belle Époque”. Para maiores informações, cf. PONTE,
Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860 – 1930).
Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1999.
120
242
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Mudança para o ‘Norte’ do Brasil”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom
Bosco a Padre Cícero: a saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza:
IMEPH, 2011. p. 127
121
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 67.
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 67.
É no sábado que grande parte desta gente ‘cava’ o sustento pela semana,
fazendo o mediador de negócios, ajudando a carregar mercadorias, armar
barracas, ajudar a vender, guardar animais, roubando aqui e acolá, pedindo
esmola, ajuntando os restos, cavando enfim – o deles de mil formas, que a nós
parecem fúteis, mas que para eles é meio de vida para a semana toda, tempo
que ficam vadiando, armando freges, jogatinas e amolando quem trabalha
[...].243
A maior indústria é dos sapateiros com mais de cinquenta casas que fabricam
alpercatas de toda forma, gênero e preço, sendo aqui o maior ponto de
fornecimento de todo o nordeste deste artigo, o qual não perfuma a cidade ‘à
côté’, mas sim de um fedor rançoso e insuportável de couro mal curtido e grude
azedo. Os salários dos operários são irrisórios, ganhando o melhor dele dois e
quinhentos por dia, trabalhando sem [h]orário, às vezes até dez horas da noite,
sendo a média dos ordenados dois mil réis; poucos são porém afortunados que
ganham tais salários, sendo a grande maioria trabalhadores adventícios,
fornecedores d’água, carregadores e homens de fretes, sendo todos feitos à
cabeça de homem ou lombo de burro os transportes, não existindo uma só
carroça ou carrinho de mão [...].244
243
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 66.
244
Op. cit., p. 65-66.
123
recorrendo a outros expedientes, tais como: “[...] pedir esmolas, improvisar negócios
miúdos nas urdiduras do comércio ambulante, criar galinhas, carneiros e porcos ou
trabalhar em pequenas plantações [...]”245. Como já se sabe, Padre Cícero se preocupava
em manter ocupadas as pessoas que chegavam, pois o regime agrário local não era capaz
de absorver toda a mão de obra camponesa246. Por esse motivo, estimulou a expansão do
artesanato e da manufatura. A distância do Cariri em relação às capitais fez com que a
região desenvolvesse relativa independência, fabricando produtos que demorariam certo
tempo no deslocamento desde Fortaleza até o interior, e cujos preços sofreriam
encarecimento ao longo do percurso. Por esses e outros motivos, em Juazeiro surgiram
pequenas fábricas, principalmente de calçados, mas também de outros utensílios:
Fazem espingardas, primitivas mas que tem alvo certo e matam que é um gosto;
maquinas de costura, barulhentas como fords velhos, mas que servem; muita
variedade de facas e punhais, alguns dos quais bem bonitos [...]. Fazem toda
sorte de bijouteria, primitiva e pouco elegante, anéis, broches, brincos, cruzes
etc fabricados com ouro baixo e prata; fabricam toda sorte de enfeites, alguns
bem engraçados, brinquedos, redes, rendas, chapéus de tecido de algodão, aqui
chamado “de massa”, chapéus de palha, balaios, cestas, esteiras, artigos
grosseiros para cozinha feitos de pau, foices, candeeiro, copos de lata; grande
variedade de artigos de barro, potes, moringas, alguidares, panelas, vasilhas,
etc, tudo fabricado muito primitivamente, mas de óptima qualidade [...]. 247
É possível notar que boa parte dos objetos domésticos, de vestuário e mesmo
dos instrumentos de trabalho eram fabricados na própria cidade. Muitos moradores de
lugarejos mais afastados costumavam viajar para comprá-los em Juazeiro, e o município
passou a ter certo destaque dentro da economia regional. Em 1934, como já foi
mencionado, aconteceu, em Fortaleza, a Exposição de Artes e Indústrias do Joazeiro, que
buscou mostrar a produção manufatureira e fabril da cidade. A descrição do evento no
jornal O Nordeste já indica quais eram os objetos de fabricação local mais comuns:
245
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 116.
246
VITORIANO, Germana Coelho. A invenção da arte popular em Juazeiro do Norte. 2004.
Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Ceará, 2004. p. 39.
247
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 63-64.
124
objetos que pelo seu volume não puderam figurar na exposição, tais como: um
formidável relógio de 4 metros de altura fabricado pelo sr. Pelusio Correia de
Macedo, que marca segundos, minutos, horas, dias, meses, phases da Lua e até
os anos bissextos; uma locomotiva em miniatura confeccionada pelo Sr. José
Martin, bem acabada; [...]; um balão de fabricação do sr. João Fontes, etc.248
248
EXPOSIÇÃO de Artes e Indústrias de Juazeiro. O Nordeste, Fortaleza, p. 4-5, 20 jul. 1934.
249
EXPOSIÇÃO DE ARTES e indústrias do Joazeiro. O Nordeste. Fortaleza, p. 5, 20 jul. 1934.
250
O Censo realizado pelo IBGE em 1940 não apontava a existência de trabalho infantil em Juazeiro. Essa
ausência demonstra a relevância de uma fonte como o caderno de Odísio, que descreve aspectos da vida
cotidiana não captados pelos documentos oficiais. A pesquisa do IBGE, por outro lado, indicava o
predomínio das atividades rurais e do trabalho doméstico e escolar, dados que não aparecem no relato
do escultor.
125
A cidade era, como dizia o próprio Padre Cícero, refúgio para muitos
desvalidos. Havia mulheres e homens pobres. Havia viúvas, órfãos, crianças
abandonadas. Todos deviam trabalhar para garantir o sustento do corpo. A infância não
era poupada. Os pequenos comerciantes, ajudando a família, trabalhavam como homens
grandes. E, geralmente, não frequentavam as escolas, ainda destinadas em boa parte aos
filhos da elite.
Juazeiro não era um município grande do ponto de vista da extensão territorial
e, com o tempo, seu perímetro urbano foi se tornando mais habitado que a zona rural. O
Padrinho passou a incentivar a instrução formal e as atividades artesanais entre seus
devotos. A cidade se tornou uma grande oficina, pois numerosos moradores possuíam
pequenas manufaturas nos próprios quintais e se dedicavam a algum ofício. Manoel Dinis
afirma que Padre Cícero
251
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 118.
252
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 125.
126
e conclamava aqueles que quisessem ajudar a cultivar suas lavouras. Ele pedia que no
primeiro dia da semana viessem, por exemplo, os que carregavam nomes comuns, como
José e Pedro. No próximo dia, iriam os Joaquins e Antônios. Posteriormente, cada Manoel
e João teria a oportunidade de se dedicar ao labor abençoado. Por fim, aqueles que
tivessem nomes menos comuns também se uniriam para colaborar com a benfeitoria253.
Os trabalhadores de Juazeiro recebiam as refeições diárias e, além disso, o
mais importante: a bênção do Padrinho. Aqueles devotos que se esforçavam para ajudar
o Padre Cícero não necessariamente o faziam porque precisavam comer. Geralmente
eram homens que forjavam seus próprios modos de sobrevivência, mesmo que
precariamente. A doação do tempo de trabalho acontecia porque tais sujeitos se
interessavam pela participação numa atividade santa. Essas “[...] empreitadas dos que
labutavam em nome do sagrado encerram-se com a morte do Padre Cícero, em 1934”254.
Juazeiro, contudo, continuou a ser uma cidade viva, que produzia, vendia, fabricava,
crescia.
Odísio chegou à localidade nesse período. Ele pode ser considerado um
sujeito singular: estrangeiro, letrado e artista numa terra repleta de nordestinos
analfabetos ou semianalfabetos, comumente submetidos aos trabalhos manuais e/ou
mecânicos. Estava, no entanto, inserido na vida cotidiana de Juazeiro como qualquer
outro habitante. Embora tenha escrito reflexões repletas de perplexidade em torno de
hábitos que lhe eram estranhos, participava em muitos aspectos da rotina do restante da
população.
Elementos como a organização do trabalho e da vida privada, o lazer, o
descanso e a atividade social são partes orgânicas da vida cotidiana 255 de cada
comunidade. Tais elementos podem ser perscrutados no caderno de memórias do escultor.
Ele afirmava, por exemplo, que na Juazeiro de 1935 era
[...] praxe não prestar o mínimo serviço de graça e da mais pequena coisa
querem tirar lucro, abertamente, sem receio ou vergonha; ‘Menino, me informa
onde é a tal casa?’. Resposta: ‘Quanto ganho?’; ‘Homem, você vai ao Crato,
não é?’ ‘Sim, sinhô’. ‘Pois faça o favor de me comprar tal coisa, custa tanto,
253
Cf. SOBREIRA, 1969, p. 245 apud RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território
sagrado em Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 126.
254
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 129.
255
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra. p. 32.
127
dou-lhe o dinheiro, é um favor que me faz’. Resposta: ‘Pois não, mas quanto o
sr. me dá pelo serviço?’256
Tal comportamento denota não apenas falta de cortesia, mas uma grande
miséria que será descrita ao longo de toda a exposição de Odísio. De acordo com o
escultor, na feira semanal havia “[...] bancas de bugingangas de ferros velhos, aonde se
encontra até pregos já usados e endireitados vendidos a seis um tostão, e agulhas vendidas
a duas um tostão”257. A população de Juazeiro buscava as mais diversas formas de garantir
a subsistência.
Em 1926, o folclorista Leonardo Motta (que costumava assinar como
“Leotta”) publicou, no Diário do Ceará, peculiar descrição das atividades mais comuns
e rentáveis em Juazeiro. Entre elas, descreveu a pujança da indústria de fogos e o grande
número de barbearias alagoanas. Aproveitou para destacar o parco apuro linguístico dos
trabalhadores recém-chegados:
256
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p. 87.
257
Op. cit., p. 77.
258
NA MECA dos Sertões. Diário do Ceará, Fortaleza, p. 3, 30 jun. 1926.
128
todos trazem gravado nas caixas um nome de guerra, isto é, de pássaro, e é por ele que
accodem: este é o CANARIO, esse é o CORRUPIÃO, aquelle é o PAPACU...” 259
Leonardo Motta recebeu, devido à sua atividade como folclorista, diversos
títulos nobiliárquicos: além de membro da Academia Cearense de Letras, foi consagrado
“Príncipe da Poesia Popular, Rondon das Letras Matutas, Bandeirante do Brasil Caboclo,
Embaixador do Sertão e Judeu Errante do Folclore nacional” 260 . Esses títulos o
singularizavam, garantindo seu lugar de honra nos estudos da cultura popular. Conforme
defende Albuquerque Jr., as investigações de Leotta — assim como as dos demais
folcloristas — foram fundamentais para a construção de uma ideia de cultura nordestina.
As elites letradas, preocupadas em produzir conhecimento sobre as mais
diversas expressões do saber regional, buscaram se aproximar das fontes populares para
delas extrair os produtos da “alma rústica e ingênua”. Os estudos de Motta, por exemplo,
procuravam reproduzir a linguagem sertaneja. Ele costumava entrevistar pessoas comuns
em busca não apenas do conteúdo da fala, mas também dos modos de falar. Seus livros
sobre cantadores e violeiros são exemplos desse interesse.
Quase dez anos depois de Leonardo Motta, Odísio também descreveu as
peculiaridades de Juazeiro. Como uma espécie de estudo de caso, ele se dedicou
principalmente a discorrer sobre Romualdo:
259
NA MECA dos Sertões. Diário do Ceará, Fortaleza, p. 3, 30 jun. 1926.
260
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A feira dos mitos – A fabricação do folclore e da cultura
popular (Nordeste 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013.
261
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 86.
129
serviços, pelos quais o escultor lhe pagava um valor irrisório, suficiente para comprar na
feira semanal vinte agulhas ou sessenta pregos “usados e endireitados”, segundo o próprio
Odísio262. O seu ordenado estava bem distante dos dois mil réis diários que supostamente
sustentavam a maioria dos trabalhadores. Odísio, como um folclorista, deu atenção ao
linguajar dele, não para absorver a sua poética popular, mas para denotar a peculiar
ignorância dos sujeitos de Juazeiro.
A relação de trabalho entre Romualdo e Odísio era frouxa, e o salário,
insuficiente para as necessidades básicas. O ajudante se alimentava, como os demais
habitantes da cidade, poucas vezes ao dia. Proteínas de origem animal não faziam parte
de sua dieta. Muitas vezes, inclusive, ele comia as sobras do patrão:
[...] a comida que a pensão manda nas marmitas é muita, mas eu só me sirvo
de alguma coisinha, o resto que fica, mais de três quartos, é devorado pelo
moço que trabalha em casa, o Romualdo, e por ele, que sempre comeu feijão e
farinha uma vez por dia, é muita sorte almoçar e jantar com tanta fartura; é
preciso ver com que entusiasmo esvazia os pratos, lambendo até o último
restinho, revirando os olhos de satisfação, e olhando de esgueio com inveja os
pedacinhos que dou a ‘benvinda’, uma gata que apareceu em casa e que nunca
mais saiu [...].263
262
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 77.
263
Op. cit., p. 87.
264
Op. cit., p. 62.
265
FERNÁNDES-ARMESTO, Felipe. Comida: Uma história. Rio de Janeiro: Record, 2010. p.162.
130
266
FERNÁNDES-ARMESTO, Felipe. Comida: uma história. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 164.
131
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 84.
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p. 128
133
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 128
134
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu
do Ceará, 2006. p. 128.
135
Figura 19 – Um romeiro que adquiriu busto de Padre Cícero feito por Odísio
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006. p.
128.
136
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 130.
137
267
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 87.
138
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 130.
[...] quem conhece o sertão sabe que os sertanejos, nos dias festivos [...], não
dispensam os jogos de roletas, caipiras, jaburus, e tantos outros que podem ser
feitos nas praças publicas, como distracção popular. Só os de cartas não são
permitidos pelas autoridades, nem por eles também são desejados [...]. Esses
jogos [...] constituem nesses dias um divertimento indispensável ao sertanejo,
268
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 103.
269
GARDNER, George. Viagens pelo Brasil. Principalmente nas províncias do Norte e nos Distritos do
Ouro e do Diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. p.
153.
270
BARBOSA, Walter. Padre Cícero – pessoas, fatos e fotos. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1980]. p. 28.
140
que durante o anno não se diverte. Não jogam por vicio, mas tão somente para
se distrahirem.271
A generalidade do povo não bebe álcool; não me refiro à cerveja, a qual tem
preço proibitivo e não é vendida gelada, pois uma garrafa de prateleira custa
três mil réis; falo da ‘branca’ aqui chamada ‘água ardente’ que apesar de ser
barata e boa, não tem adeptos; nunca vi um bêbado e pode-se afirmar que
poucos ou quase ninguém ‘toma’ [...]. O = camarada = beberrão é aqui posto
ao ostracismo, não tem amigos, é considerado um ser perigoso [...]. 272
271
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 16-17.
272
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 105-106.
273
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem de Francisco Freire Alemão: Fortaleza-Crato (1859).
Vol. I. Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006. p. 20.
141
Três dias depois, Mario Trevo publicaria no mesmo jornal sua opinião a
respeito das mulheres que buscavam ocupações “masculinas”. Entre outras afirmações,
dizia que a mulher, “[...] durante toda a existência, deve ocupar-se zelosamente dos cinco
cc: -- casa, costuras, cosinha, creança e cama”276. Afirmava ainda que uma mulher jamais
teria as aptidões do homem para o trabalho. E em seguida reproduzia o discurso do amigo
José Pedro, funcionário público, a saber:
274
O jornalista Nicolau de Assiz possuía uma coluna no Diário do Ceará com o objetivo de discorrer sobre
a vida de mulheres brasileiras que se casaram com sírios e passaram a viver no Oriente. Com o tempo,
contudo, passou a se dedicar sobre diversos temas da vida feminina, inclusive o trabalho.
275
ASSIZ, Nicolau de. Um Perigo para As Mulheres. O Diário do Ceará, p. 2, Fortaleza, 1926.
276
TREVO, Mario.. Os cinco CC... Diário do Ceará, p. 2, Fortaleza, 26 ago. 1926.
142
277
TREVO, Mario.. Os cinco CC... Diario do Ceará. Fortaleza, 26 de agosto de 1926, p. 2.
278
LEITE, Francisco de Assis; ALVES, Joaquim (Org). Almanaque do Cariri – 1949. Fortaleza: 1949. p.
259-260.
279
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 105.
143
fome e a miséria, muitas vezes sustentando seus filhos sem o auxílio de um companheiro.
Algumas trabalhavam nas feiras, outras na indústria. Havia ainda aquelas que se
prostituíam. Floro Bartolomeu já contava em 1923 o caso de uma
[...] rapariga de Alagoas, de dezoito anos de idade, que, prostituida na sua terra,
ali foi parar. Justamente em uma noite em que ella curtia fome, por não possuir
um real siquer, apareceu-lhe um sujeito que, ‘desfructando-a’ não lhe
recompensou e ainda espancou-a. No auge da cólera, valeu-se de uma faca e
matou-o.280
280
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 173.
281
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 23.
144
rígida. Por exemplo: não raramente era possível encontrar mulheres em oficinas de fazer
foguetes”282. Muitas delas se achavam sem o suporte financeiro de uma figura masculina.
Em 1940, existiam na cidade mais de duas mil viúvas, além de centenas de moças casadas
que perderam o contato com seus esposos. Foram contabilizadas, ainda, algumas poucas
separadas, numerosas solteiras e outras com estado conjugal não declarado283. Odísio
descreveu a situação de muitas dessas mulheres:
[...] as mulheres com filhos sem maridos, apesar de casadas, sem ser viúvas,
são legião, encontrando-se uma delas numa casa sim e outra também; muitos
fatores são a causa deste fato; a miséria, indo o marido à procura de trabalho
em outras zonas, as secas, as revoluções e mais de que tudo a ignorância. 284
[...] apesar de ter tantas mulheres em disponibilidade, raro é aquela que cai em
falta, porque aqui o povo desculpa e acha natural ser assassino, cangaceiro,
ladrão, mas não admitem ter na família uma ‘fêmea cadela’ pois é para eles a
maior vergonha; esta não é pois terra para conquistas, e os Dom Joãos são
avisados, si não querem receber cargos de lenha verde o servir de bainha para
‘paraibanas’ (facões de meio metro).285
282
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 132.
283
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento geral do brasil (1º de
setembro de 1940): Série regional. Parte VI – Ceará – Tomo I – Censo Demográfico. População e
habitação – quadros totais referentes ao estado e de distribuição segundo os municípios. Quadros
sinóticos por município. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1950.
284
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 24.
285
Op. cit., p. 105.
145
286
As Casas de Caridade foram criadas pelo padre e missionário José Antônio Pereira Ibiapina. Padre
Ibiapina era cearense, mas percorreu todo o Nordeste em sua missão evangelizadora pelos sertões. Em
muitos dos locais pelos quais passou, fundou Casas de Caridade que pretendiam abrigar os mendigos,
enfermos, mulheres piedosas e órfãs. Em seus trabalhos, era comumente auxiliado por beatas, mulheres
que dedicavam suas vidas à oração e ao cuidado com os necessitados. As Casas de Caridade também
educavam moças de famílias ricas e pobres, alfabetizando-as, ensinando prendas e preparando-as para
o casamento ou para o trabalho. Para maiores informações, Cf. NASCIMENTO, Maria Célia Marinho
do. Filhas e Irmãs do Padre Ibiapina. Educação e devoção na Paraíba (1860-1983). 2009. Dissertação
(Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa,
2009.
287
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento geral do brasil (1º de
setembro de 1940): Série regional. Parte VI – Ceará – Tomo I – Censo Demográfico. População e
habitação – quadros totais referentes ao estado e de distribuição segundo os municípios. Quadros
sinóticos por município. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1950.
288
Para maiores informações, verificar o Censo de 1940.
146
negra, a qual, incrível mas verdade, até entra com os pés dentro da água na
qual lava os pratos [...].289
Ora, se você sabe ler e escrever, não deseja fazer o mesmo trabalho de dois
grandes santos da cristandade que tiveram o nome de João? E continuou: você
vai levar a luz para os que não a têm. Vai abrir uma escola. Eu o ajudarei. São
João Batista preparou o caminho do Senhor, você vai preparar através da
escola, do ensino, o caminho para os padres Salesianos que hão de vir para
Juazeiro. E, quando eles chegarem para abrir as suas escolas profissionais e os
seus colégios, devem encontrar esse povo alfabetizado para facilitar o trabalho
dos discípulos de D. Bosco [...]. Uma coisa eu lhe peço, mesmo quando eu
morrer, você continuará a ensinar a todos que lhe procurarem.292
289
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 82.
290
Op. cit., p. 77.
291
Op. cit., p. 78-79.
292
BARBOSA, Walter. Padre Cícero – pessoas, fatos e fotos. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1980]. p. 76.
147
293
BAPTISTA, Padre Cícero Romão apud LOURENÇO FILHO, Manoel B. Juazeiro do Padre Cícero.
São Paulo: Edições Melhoramentos, [1926], p. 200-201.
148
períodos, talvez pela influência da culinária estrangeira herdada dos imigrantes europeus.
O mesmo não acontece em relação ao Nordeste. Excetuando-se obras de culinária
regional (sem cunho historiográfico) ou pesquisas sobre alimentação brasileira
organizadas por regiões, escassas são as publicações recentes sobre o tema.
O presente tópico não pretende, evidentemente, sanar o problema da falta de
informações sobre a alimentação nordestina, mas discutir alguns temas tratados por
Agostinho Odísio em seu caderno de memórias. O escultor italiano descreveu os hábitos
alimentares dos habitantes de Juazeiro com bastante entusiasmo, e iniciou tal exposição
lembrando a pobreza que conduzia tais pessoas a uma alimentação precária:
Três elementos mencionados por Odísio nessa passagem fazem parte do tripé
culinário do Brasil colonial. Paula Pinto e Silva elenca a farinha, o feijão e a carne seca
— aqui apresentada compondo a paçoca — como os alimentos primordiais da infância do
Brasil, os quais ainda eram amplamente consumidos em 1934. Montanari explica que as
classes subalternas fazem uso de alimentos que são abundantes e baratos, assim como
daqueles que podem ser facilmente preservados. As preferências populares seriam
definidas, principalmente, por alimentos que possuem “[...] capacidade de preencher,
afastando a angustiante mordida da fome. Explica-se assim o gosto alimentar pelos
farináceos [...]” 295 . O viajante Gaspar Barléu afiançou, entre 1637 e 1644, que cada
habitação indígena possuía “ao redor seu mandiocal e seu feijoal” 296 . Tanto o feijão
quanto a farinha de mandioca estavam presentes na alimentação da maior parte da
população do Brasil, inclusive entre as classes mais abastadas. É preciso considerar, no
entanto, que os mais ricos possuíam também outras opções, enquanto os pobres
costumavam se nutrir sobretudo do tripé “feijão, farinha e carne seca”.
294
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 106.
295
MONTANARI, Massimo. Comida como Cultura. São Paulo: Senac. p. 110.
296
ZERON, Carlos Alberto (Org) Fichário Ernani Silva Bruno – Equipamentos, usos e costumes da casa
brasileira: Alimentação. São Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2000. p. 202.
149
[...] existem varias cacimbas privadas nos quintaes mas a única agua que é mais
= potável = é do Arisco, perto da estação, a parte mais alta da cidade, pois as
outras cacimbas dos quintaes correm perigo de ter as aguas inquinadas devido
a cidade não ter esgotos e todas as = sentinas = são buracos, sem fossas nem
primordial cuidado de higiene da desinfecção com cal. Escusado é diser que
297
SILVA, Paula Pinto. Farinha, feijão e carne-seca: Um tripé no Brasil colonial. São Paulo: Senac, 2005.
p. 100.
298
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 74-75.
150
esta agua boa é bebida por a menor parte da população, a = gente que pode =;
o setenta por cento que talvez não disponha de quinhentos reis por dia, ou bebe
a agua das cacimbas infectas ou deve recorrer a agua do brejo, coberta de limo
e quase vermelha de tão turva.299
299
Op. cit., p. 54.
300
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 83.
301
Op. cit., p. 80-81.
151
É sabido que o apreço por determinados tipos alimentares não nasce somente
das condições práticas da vida, sejam elas sociais ou econômicas. Há sempre fatores
culturais e simbólicos envolvidos. O gosto por frutas e verduras, por exemplo, não era
disseminado no Nordeste na década de 1930, pois os trabalhadores de então consumiam
principalmente gêneros ricos em “sustância” (comidas gordurosas ou farináceos). Apesar
disso, em 1935, a feira já apresentava grande variedade de frutos saborosos e baratos, que
eram, segundo Odísio, pouco apreciados pela população:
[...] montes de abacaxi, o rei da fruta do norte, vindo da serra do Araripe, bons
a cem reis, e os de Pernambuco, cheirosos e deliciosos que é verdadeira delícia
a duzentos réis; bastante laranjas, porém de qualidade inferior, montes e mais
montes de cocos da praia cheios de água saborosa a trezentos réis, montes de
mangas rosas e espada, cinco por tostão, melancias, melões, abacates, articuns,
sapotis, buritis, graviolas, catolés, cajus grandes como maçãs, atas-pinhas,
deliciosas, macaúbas, maracujás, pitombas, e mais a fruta elixir do sertão, fruta
silvestre que resiste até o último as secas, o umbu [...].302
302
Op. cit., p. 73-74.
303
MONTANARI, Massimo. A fome a abundância: História da alimentação na Europa. São Paulo:
EDUSC, 2003. p. 116.
152
frutos das árvores eram considerados os mais nobres alimentos, pois estavam mais
próximos do céu. Estabeleceu-se, assim, um “imaginário do gosto”.
Segundo o pensamento comum da Idade Média (associado à teoria galênica
dos humores), cada indivíduo deveria consumir alimentos conforme sua necessidade e
suas atividades. Assim sendo, convencionou-se que os grosseiros estômagos dos pobres
não seriam apropriados para assimilar alimentos refinados, devendo estes preferir
comidas pesadas e gordurosas304. O prazer era associado, mormente, à alimentação dos
ricos, já que os trabalhadores deveriam comer unicamente com o objetivo de suprir as
necessidades vitais.
Aparentemente, boa parte dos habitantes de Juazeiro se satisfazia com
alimentos que cumpriam somente a função primária de assegurar a sobrevivência. Odísio
lamentou o fato de não sentir prazer ao comer, pois na cidade “ninguém sabe cozinhar”.
Mas o que seria “saber cozinhar”? O escultor, ao que parece, referia-se à importância da
variedade de ingredientes e sabores disponíveis na cidade, mas que pareciam ser pouco
explorados pela população. Por muito tempo, saber cozinhar significou “saber temperar”,
ou seja, dar aos alimentos sabores distintos daqueles que eles possuíam originalmente.
Em Juazeiro, Odísio afirmava que não se sabia temperar, e que poucos ingredientes eram
utilizados na alimentação cotidiana. Ele criticava o uso invariável dos mesmos gêneros e
condimentos. A cozinha de sua pensão não era, portanto, suficientemente criativa.
É possível encontrar paralelo com o protesto de Thomaz Davatz, em 1855,
contra a dificuldade de o colono suíço “[...] obter por si só aquilo de que necessite”.
Davatz afirmava que os imigrantes não conseguiriam “[...] apreciar o milho, o arroz e o
feijão sem tempero algum, como sucede com os escravos negros” 305 . O consumo de
alimentos por prazer seria privilégio das elites. Não se pode dizer, no entanto, que os
pobres jamais tiveram direito a certos manjares. De acordo com Odísio, em Juazeiro
304
Op. cit., p. 113.
305
ZERON, Carlos Alberto (Org.) Fichário Ernani Silva Bruno – Equipamentos, usos e costumes da casa
brasileira: Alimentação. São Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2000. p. 110.
306
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 74-75.
153
O mercado dos cereais apresenta os seus produtos no chão aos montes, como
[...] o sal; o feijão chamado de rama, miudinho e redondo nada apreciável, o
arroz pequeno como canjica de cor enferrujada, montanhas de farinha de
mandioca e de sal; o mercado do peixe seco, apresentado no chão com folhas
abertas de fumo seco, fardos de ‘carne de sol’ (carne seca), lascas de toicinhos
magro que vendem em molhos presos a uma embira. Montes de rapaduras em
tijolinhos de quarenta centímetros em quadro, café em pó, torrado, e ainda em
sacas, banha de porco e de coco, mel em garrafas com qualidades de raízes e
plantas e cascas para remédio, vendidas pelo curandeiro que dá consulta em
plena rua.307
307
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 75.
308
Op. cit., p. 75.
154
[...] ontem disse a ele que gostaria de experimentar o afamado peixe ‘cavala’
tão decantado, e que me ensinasse aonde poderia encontra-lo; à noite, já
encontrei na janta o tal peixe, a fruta sapoti, e disse-me que eu podia pedir o
que fosse, que ele aprontaria, a cozinha é boa, de bom tempero e ótimo paladar,
e os macarrões, que todos os dias são servidos, excelentes, pois são feitos com
farinha italiana... Tomara não acabasse esta mina... 309
A comida do interior parecia possuir pouca semelhança com aquela que ele
conheceu na capital do Ceará. É preciso considerar, contudo, que os turistas que visitavam
Fortaleza provavelmente eram mais exigentes que os sertanejos famintos que buscavam
a cidade santa, Juazeiro. De toda maneira, a crítica feita à alimentação que Odísio
consumia diariamente na cidade de Padre Cícero parecia ser inversamente proporcional
aos elogios feitos à comida de Fortaleza, que ele comparava à italiana.
Uma opção comum para os pobres europeus era a massa. Especialmente na
Itália, país de origem de Odísio, o macarrão se tornou alimento típico de pobres. O trigo,
contudo, não é produzido abundantemente no Brasil. Assim, a principal matéria-prima
dos pobres europeus tornava-se dispendiosa no país em que Odísio passou a habitar. A
alimentação brasileira era, mesmo no século XX, baseada no tripé colonial “farinha, feijão
e carne seca”.
O escultor afirma que, embora existissem massas de qualidade, a população
de Juazeiro supostamente não as apreciava ou não sabia cozinhá-las. Mais uma vez,
optava por fazê-la “passar do ponto”, como ocorria com todos os outros alimentos:
309
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Mudança para o ‘Norte’ do Brasil”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom
Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza:
IMEPH, 2011. p. 125.
155
O pão aqui é excelente e o macarrão também pois são feitos com ótima farinha
de trigo americano, mas quando, raras vezes, cozinham o macarrão, o fazem
tão mal feito que fica uma papa – verdura ou legumes nunca aparecem a não
ser batata doce ou mandioca cozinhada nágua – ovos só sabem servi-los duros
ou estrelados na banha, secos e quase queimados. Parece impossível, mas é
assim, e por quanto tenha pedido de fazer esta ou tal comida na forma, aliás
muito simples, que eu desejo, nunca obtive resultado.310
Nessa passagem, o escultor demonstra que tais pensões por vezes variavam seus
alimentos, servindo legumes cozidos, ovos fritos e até mesmo macarrão. Ao que tudo
indica, o macarrão não era um alimento de uso universal na região. A título de ilustração,
é possível transcrever uma anedota publicada no Diário do Ceará quase dez anos antes,
assinada por “Emme”:
310
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p. 81.
311
UMA MUDA de macarrão. Diário do Ceará, Fortaleza, p. 2, 5 jun. 1926.
312
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 81.
156
É uso comum de toda gente aqui assoar o nariz com os dedos, o que também
fazem as cozinheiras em plena função, não se incomodando que assoaram o
apêndice facial, o bife e a carne para deitar à panela. Também é natural de
quem serve a mesa, enquanto com uma mão carrega um prato de comida ao
hóspede, se assoar com a outra, dentro da sala de refeições, quase não virando
a cabeça do prato que tem na mão.314
313
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 76.
314
Op. cit., p. 82.
157
talvez, nas capitais do Brasil ainda não haviam chegado às pensões de romeiros
frequentadas pelo escultor.
Montanari defende que “[...] em todos os níveis sociais, a participação no
convívio à mesa é o primeiro sinal de pertencimento ao grupo”315. Odísio não se sentia
confortável ao dividir a mesa com os romeiros de Juazeiro. Ao contrário, evitava a
companhia de tais pessoas. Desse modo, demarcava certa superioridade em relação
àqueles que comiam os mesmos víveres:
Diz o ditado ‘o que não mata, engorda’, mas eu segui o outro ‘o que olhos não
vê, coração não pena’ (sic) e por isto comprei um porta comida e mando buscar
as refeições; a comida vem pior, porque comendo na mesa sempre a gente é
mais bem servida, mas em compensação tenho a vantagem de não comer
acotovelado com os bandos de romeiros que chegam de longe, suarentos e
catingudos, e não assistir as cenas do ambiente que reviram o estômago até
dum soldado de polícia.316
315
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Senac. p. 159.
316
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 83.
317
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Senac [2013]. p. 162.
158
318
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora Unicamp, 2011. p. 37.
159
apreciadores da arte, cumpriram a função de levar o nome do Padre Cícero para distantes
fronteiras. A imprensa nacional também trabalhou nesse sentido, produzindo notícias e
veiculando telegramas, cartas e outros documentos ligados à atuação do Padrinho. Os
membros da cultura letrada tiveram ainda uma importante participação nesse processo,
produzindo e disseminando representações elogiosas ou reprovadoras de Juazeiro e de
seu patriarca.
Com Padre Cícero, portanto, ocorre o contrário daquilo que acontece com os
homens comuns e públicos em geral, que podem ter relativa fama durante a vida, mas são
esquecidos quando mortos, restando apenas monumentos desprezados e uma memória
que é preservada brevemente por seus familiares. Ele teve certa fama (dessacralizada e
contraposta à sua presumida santidade) durante a vida, principalmente no que diz respeito
à carreira política que desenvolveu. Com sua morte, contudo, cresceu a piedade popular
que acompanha seu nome. Um morto não pode mais pecar. Assim, o desencarne do
sacerdote o arrebatou da convivência com os fiéis, mas também o santificou. Trata-se de
um culto ao grande padrinho morto, portanto, de um culto à vida eterna de um homem
santo.
Em Juazeiro, Padre Cícero foi sepultado, mas nunca repousou. Permanece
ativo e presente. Por isso tanto se fala, tanto se escreve e tanto se crê nele. A fama de
Padre Cícero, no entanto, não é como a dos grandes homens políticos: não precisa ser
armazenada em museus, monumentos ou memoriais para existir. Vive internalizada em
cada um de seus seguidores. Os meios de recordar existem, mas não se constituem apenas
como lugares de memória319. São complementos da recordação.
Os heróis costumam ser eternizados pelos poetas, mas os poetas também
podem ser eternizados por cantarem grandes feitos e heróis. Desse modo, muitos
escritores, jornalistas, pesquisadores, cordelistas e artistas plásticos se tornaram populares
graças às histórias que envolviam o querido santo nordestino. Odísio é um deles: sua
trajetória no Ceará ganhou projeção graças às imagens de Padre Cícero que elaborou,
tanto no gesso quanto no papel.
No período em que Odísio escreveu seu caderno, estudos sociológicos a
respeito do sertão nordestino eram frequentes. Ele é herdeiro dessa tradição e também
pretendeu fazer, através da própria experiência, uma análise da cidade de Juazeiro. À
319
Lugares de Memória, segundo Pierre Nora, são suportes externos da memória, geralmente construídos
com o objetivo de abrigar conhecimento sobre acontecimentos ou sujeitos que seriam esquecidos caso
tais memórias não fossem arquivadas. Cf. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos
lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28.
160
página quarenta e seis, mais ou menos no meio de seu calhamaço, Odísio declarou que
“[...] explicar o fenomeno que fez surgir Juazeiro e dissecar a figura psicologica do seu
fundador, é tarefa par(a) um [h]istoriador psico analítico”320, dando a entender que não
era esse seu propósito. Esse parece um momento de modéstia do autor, que não pretendia
encerrar o assunto sobre o qual escreveu. Mas, ao mesmo tempo em que afirmou não ser
capaz de realizar tal análise, apresentou a estrutura de seu caderno: na primeira parte,
abordaria o fenômeno de Juazeiro, embora sem a pretensão de explicá-lo. Na segunda,
passaria a descrever “o lugar, seu povo e seu meio”321. Desse modo, é revelada certa
composição previamente organizada, o que leva a crer que o manuscrito pode não ter
sido, necessariamente, produzido ao correr da pena, como o autor afirmara anteriormente.
Ao final de seu caderno, dedicou a obra aos seus filhos “[...] para que dela
tirem proveito, aquilatando quanto vale a instrução e a cultura na vida do homem, de um
núcleo, de uma nação”322. Há certa função moral atribuída às suas memórias: ao mesmo
tempo em que analisou Juazeiro e correlacionou a miséria local à carência de instrução,
Odísio ensinou a seus filhos que o saber letrado deveria ser valorizado. O tema apareceu
à página 60:
Eis a situação triste deste lugar a respeito do problema maximo por um povo,
a instrucção, a qual aqui é quase nulla, sendo os analfabetos completos, o
noventa por cento, e não só os velhos, mas moços de vinte anos que não
conhecem siquer os números, completamente brocos, conhecendo em dinheiro
só os niqueis nem as horas do relógio, só sabem o nome de baptismo e quase
nunca o sobrenome, nem a edade certa e ficam espantados a qualquer pergunta
respondendo o infalível = sei não! = [...]323.
Como homem ilustrado que era, tendo vivido na Itália e numa região mais
escolarizada do Brasil, Odísio parecia se espantar com a falta de instrução dos
juazeirenses. Embora a estatística alardeada seja hiperbólica, é preciso mencionar que
nesse trecho o escultor tocou num ponto importante de sua própria trajetória: a
valorização da cultura erudita. Ele mesmo escreveu ensaios e peças teatrais. Fez parte de
um círculo de homens cultos — ou que assim se consideravam. Provavelmente, também
conheceu os relatos de viajantes que circularam pela Europa em fins do século XIX e
início do século XX. Seu próprio caderno, aliás, assemelha-se a um registro de viajante.
320
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 46.
321
Op. cit., p. 26.
322
Op. cit., p. 125.
323
Op. cit., p. 60.
161
Estas memorias [...] não tem valor literário, porque nelas falta forma, língua e
gramatica. Quem aqui escreveu é um simples trabalhador o qual só procuro[u]
fixar impressões e verdades. Quem quer leia e não proteste depois, porque
lealmente avisei. O autor, ilustre desconhecido.327
[...] que depois do almoço tinha que levar um filme no photographo para
revelar; obediente, depois de ter religiosamente lambido as marmitas, veio e
me disse todo lampeiro: = Seu Gustinho, são horas de eu ir dechá o fio para
melá no phrotogo, vou num raio que nem cachorro da moléstia (cão idrophobo)
e falo com o homem para melá logo que o sr está = vexado = (apressado) 328.
324
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 125.
325
Op. cit., p. 81.
326
Op. cit., p. 125.
327
Op. cit., s/p.
328
Op. cit., p. 85.
162
Após escrever essa passagem, Odísio colou uma fotografia de seu ajudante
no canto da página. Esse é um indício de que o texto foi escrito antes e passado a limpo
posteriormente, pois as fotos são dispostas de maneira organizada, sempre representando
o conteúdo de um texto que, aliás, não possui rasuras. Ao reproduzir a hipotética fala de
alguém que sabia menos que ele, que chamava o filme de “fio” e confundia o ato de
revelar com o verbo “melar”, Odísio afirmou a própria superioridade. O autor fez questão
até mesmo de reproduzir em seu manuscrito as peculiaridades e os percalços da
linguagem oral, acrescentando “traduções” quando acreditava que o conteúdo de tais
palavras seria irreconhecível para os leitores desabituados ao falar popular. Tal ato indica
que o escultor, ao mesmo tempo em que admitia não ter o conhecimento da língua
portuguesa adequado a um literato, sabia também que conhecia a língua melhor que
muitos nativos. Além disso, fornece pistas para a existência de leitores que deveriam ser
informados da significação dos termos desconhecidos presentes em sua obra. O caderno
se configura como uma espécie de diário de viagem, sendo iniciado justamente com a
chegada do escultor em Juazeiro:
329
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 1.
330
Op. cit., p. 2.
163
Ao ser conduzido a uma jardineira que os levaria até o hotel, Odísio perguntou
pelo alimento, sendo informado de que já estava nela. A “SOPA” era o meio de transporte
utilizado entre a estação e o centro da cidade. O veículo público, apelidado dessa forma
pelos juazeirenses, foi associado a uma série de elementos que, para Odísio,
caracterizavam o Ceará: “fome, sede, flagelo”. Havia em torno da nova terra um léxico
de palavras que imediatamente era acionado. Palavras que não indicavam a paz e a
prosperidade que o escultor fora buscar.
Figura 22 – A “Sopa”
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 3.
Quem, como nos, vem do sul do paiz, estranha a diferencia da paisagem, pois
não encontra a luxuriante vegetação das nossas verdes campinas e dos nossos
ubérrimos montes, mas sim poucas arvores raquíticas, matto sem verde, e rios
sem agua em cujo leito pastam magras rezez, procurando minguados fios
derva.331
331
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 1.
332
JÜNGER apud ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Formas e transformações da memória
cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011. p. 33.
333
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 4.
334
Op. cit., p. 4.
165
335
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 82.
336
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 20.
337
Militar cearense ligado ao Tenentismo. Em 1934, quando recomendou Odísio às lideranças locais, era
Ministro da Agricultura do Governo Vargas.
166
338
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 8.
339
Op. cit., p. 11.
167
Porem por muito tempo ainda a sua figura será vista com prisma diferente, isto
até que as gerações dos seus romeiros de Joaseiro e de tudo sertão não tenham
desaparecido. Por enquanto os romeiros, que constituem o noventa por cento
do povo do Joaseiro, julgam o padre Cicero como um santo profeta que veio
ao mundo encarnando o espirito de Elias, de São João Baptista e mesmo do
Christo. Por eles, padre Cicero não morreu so = foi embora =, como eles dizem,
mas voltará, e neste lapso de tempo, mesmo de longe aonde foi visitar Nossa
Senhora das Dores, quem determina tudo em Joaseiro é ele, a não ser os factos
maus e trágicos os quaes são atribuídos ao cão (demônio).340
[...] era natural que junto a estas romarias de humildes bem intencionados, se
juntasse a jagunçada, bandoleiros perseguidos e criminosos de tudo quilate, e
também era natural que estes povos dos sertões, incultos e profundamente
crentes, carregassem com o sangue das suas três raças ancestraes o fanatismo
produto mestiço de três crenças, ainda mais porque o Joaseiro representava por
eles não a terra de promissão, mas o lugar de sacrifício, de tudo desconforto,
de amargura, mas de certa preparação para a escalada ao ceu, guiados pela
santidade do padre Cicero.342
340
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 16.
341
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos Históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. p. 121.
342
Op. cit., p. 14.
343
Op. cit., p. 18.
168
frente a essa capela seria erguida talvez a sua obra mais importante: uma estátua em gesso
do Padrinho:
Não há romeiro que não visite pelo menos uma vez por semana o túmulo do P.
Cícero, ainda há peregrinação contínua dos romeiros domiciliados na cidade e
dos de todo sertão que chegam aos magotes, percorrendo a pé até cem léguas
para cumprir a promessa e depositar dinheiro na caixa perto do túmulo.344
[...] si amanhã quisesse levantar este povaréu de romeiros era só dar a voz que
eles eram prontos até morrer, como já muitos e muitos me disseram e eu creio,
por ser eu o = homem que faz padrinho Cisso quase vivo =. Uma coisa lucrei;
a certeza absoluta que não serei roubado, como nunca o fui, não me tendo
faltado um prego apesar de ter entrado e entrar tanta gente.345
344
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 18.
345
Op. cit., p. 91-92.
346
BARBOSA, Francisco Salatiel de Alencar. O Joaseiro celeste: Tempo e paisagem na devoção ao Padre
Cícero. São Paulo: Attar, 2007. p. 90.
347
Id., ibid.
169
A ideia de que o “povaréu de romeiros” estaria pronto para morrer por causa
do escultor pode parecer, contudo, um tanto exagerada. Leva a crer que Padre Cícero
perde por um momento o protagonismo na história, sendo substituído por Odísio, que
afirmou em outra passagem:
Eu; sem querer, tornei-me aqui um homem popular e de muito respeito, sendo
cumprimentado na rua com toda deferência e até muitos vem por me beijar a
mão e tomar a bençam; aparecem bastantes para que eu lhe de remédios para
os seus males, e a minha resposta de não ser medico ficam tristes e dizem que
eu não faço caso porque são pobres porque é impossível que um homem que
faz meu padrinho sem tel-o visto, com tanta = decência = não saiba dar remédio
[...].348
348
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 90-91.
349
Para maiores informações sobre História da Saúde e da Doença no Cariri, Cf. ALEXANDRE, Jucieldo
Ferreira. Quando o “Anjo do Extermínio” se aproxima de nós: Representações sobre o cólera no
Semanário cratense o Araripe (1855-1864). 2010. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2010.
170
saber “fazer” o Padrinho quase vivo. Sua fama não foi construída individualmente, mas
alicerçada na figura de um homem santo.
350
BLANCHOT, Maurice. O Livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 273.
351
Monsenhor Pedro Esmeraldo da Silva foi o primeiro vigário da Paróquia de Nossa Senhora das Dores.
Era cratense e fundou também o Colégio São José. Veio a óbito em outubro de 1934, enquanto celebrava
uma missa. Padre Esmeraldo foi fiel à Igreja até o último momento, combatendo, sempre que possível,
o culto ao Padre Cícero. Não obstante, foi também o responsável por confessar o Padrinho momentos
antes de sua morte.
171
352
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 28-29.
353
PARA TODOS. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, p. 2 7 nov. 1934.
354
Floro Bartolomeu conta que, estando o Padre Cícero doente, uma senhora chamada Hermínia prometeu
a Nossa Senhora do Socorro que construiria uma capela junto ao cemitério caso o sacerdote recobrasse
a saúde. Tendo sua graça atendida, procurou o Dr. Floro com o objetivo de cumprir a promessa. O líder
político procurou Padre Cícero, que optou por não tomar a frente da construção em virtude da proibição
anterior de Dom Joaquim em relação à igreja dedicada ao culto do Sagrado Coração de Jesus no Horto.
Floro Bartolomeu explica que, não querendo tratar pessoalmente do assunto, falou com José Xavier de
172
[...] seus adversários espalharam em Joazeiro que sua ida àquella cidade tinha
três objetivos; 1º substituir a estatua do padre Cicero pela do Christo-Rei, que
é maçom, segundo eles; 2º, roubar a imagem da Virgem das Dores de sua igreja
e; 3º, arrancar de sua sepultura os ossos do padre Cícero. O resultado dessa
manobra eleitoral foi que quando o sr. Xavier de Oliveira chegou a Joazeiro,
cerca das 23 horas, duas mil pessoas estavam reunidas em torno da estatua do
padre Cicero, para impedir o sacrilégio.356
Oliveira, que “[...] entendeu-se com o vigário, que é o atual Bispo do Crato, e obteve a licença, sob a
única exigência do Padre Cicero não ter a menor interferência no trabalho”. COSTA, Floro Bartolomeu
da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições UFC, 2010 [1923]. p. 60-
61.
355
SENSACIONAES AVENTURAS de um candidato a deputado na Joazeiro do Padre Cicero. Diário
Carioca, Rio de Janeiro, p. 11, 24 out. 1934.
356
AS ARENGAS do Major Távora. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, p. 2, 23 out. 1934.
173
357
QUANDO GUARDAVA o túmulo do Padre Cícero. Jornal do Recife, Recife, p. 1, 6 nov. 1934.
358
Odísio teria sido ainda responsável pela reforma da Matriz de Juazeiro. Conforme depoimento concedido
por Renato Dantas em abril de 2013 ao pesquisador Paulo Wendell Alves de Oliveira, “É [...] um grande
artista que morou no Juazeiro, um italiano, não é só porque ele é um italiano, mas é porque ele modificou
totalmente o pensamento das artes no Juazeiro, modificou, influenciou e foi influenciado [...]. Isso já
foi na modernidade da matriz de Juazeiro, porque hoje já é pós-modernidade, a matriz de Juazeiro está
pós-moderna, porque a modernidade foi feita em 1934, com a morte do Padre Cícero, com a intenção
de apagar a memória. Então este artista contribui muito para apagar essa memória e não apagou, pelo
contrário, houve a ressignificação pelo romeiro e a sacralidade permaneceu [...]”. OLIVEIRA, Paulo
Wendell Alves de. Memória da cidade: Transformações e permanências na produção espacial do
núcleo de formação histórico da cidade de Juazeiro do Norte. 2014. Dissertação (Mestrado) - Programa
de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2014. p. 197-198.
359
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 30-31.
174
estavam indo. Como um repórter que devesse observar as ações in loco, o escultor se
apressou com a intenção de verificar o que acontecia. A confusão que se desenrolou não
foi revelada inicialmente pelo olhar, mas pelo ouvido, que escutou tiros e gritos.
Posteriormente, o escultor avistou apenas os fugitivos do confronto, continuando sem
compreender o que houve. Assim, teve que recorrer à narrativa do capitão para descrever
a sequência dos eventos:
Chegada a força à matriz o capitão deu hordem de prisão aos romeiros que
dentro estavam, ao que, eles todos correram atrás da balaústra ao pé do altar,
trincheirando-se, o capitão, sempre intimando-os de se renderem mandou
avançar a força de baioneta calada, mas os romeiros em vez de se render
assaltaram os soldados derrubando um sargento a foiçadas e ferindo uma praça,
ao que o capitão se viu obrigado a ordenar a defesa da qual caíram mortos seis
romeiros e mais de vinte feridos, alguns gravemente a bala e pontaço de
baioneta. A luta passou dentro da capella mor e os mortos ficaram estendidos
ao pé do altar, os feridos leves fugiram pelo mato e os graves levados a
pharmacias para o tratamento, pois aqui não existem [h]ospitais. 360
360
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 31.
175
361
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 32.
362
NOTA oficial. O Nordeste, Fortaleza, p. 1, 5 nov. 1934.
176
no Juazeiro, assegurando que ali reinava completa paz e afirmando serem inteiramente
infundados os “[...] boatos contrários exploradores intuitos facciosos. Inexistem intuitos
agressão deputado Xavier Oliveira, que transitou cidade destino Crato onde permanece
livre vontade” 363 . Assim, notava-se mais uma vez a tentativa de defender a ideia de
civilidade em Juazeiro, embora estivesse clara a fuga do político cearense à cidade ao
lado, onde efetivamente se encontraria a salvo dos devotos de Padre Cícero.
O jornal carioca A Noite publicou em 24 de outubro de 1934 um artigo de
autoria de Humberto de Campos intitulado “O culpado sou eu!”, no qual ele especulava
sobre a suposta fonte do boato que encurralou Xavier de Oliveira. Ao longo do texto,
Campos informava que o deputado era seu médico e amigo próximo e sabia que existiam
duas questões que o afligiam: a debilidade da própria saúde e um problema financeiro.
Humberto de Campos contou que havia comprado uma casa através de
procuração concedida a um amigo. Passou muito tempo, contudo, esperando receber o
imóvel. Procurando descobrir o motivo da demora, soube que a casa havia sido hipotecada
pelo procurador. Xavier de Oliveira conhecia toda a situação, inclusive porque o dito
procurador era seu parceiro de chapa nas eleições. O deputado afirmava querer ajudar
Humberto de Campos de alguma forma. A solução encontrada por Xavier de Oliveira
teria dado origem ao boato. Segue a explicação do escritor:
363
NOTA oficial. O Nordeste, Fortaleza, p. 3, 13 out. 1934.
177
364
O CULPADO sou eu. A Noite, Rio de Janeiro, p. 2, 27 out. 1934.
365
SARASATE, Paulo. Na Casa do Padre Cícero. O Povo, Fortaleza, p. 5, 18 fev. 1931.
178
Barbosa afirma que o evento funesto deu força ao sermão, tendo sido
amplamente comentado entre os romeiros. Além disso, a morte do padre, no altar, passou
a ser vista como uma ação divina. Assim, pela periferia de Juazeiro começou a surgir o
rumor de que os comunistas retirariam a imagem de Nossa Senhora das Dores da Matriz
e a substituiriam por um rei pagão da besta-fera. O memorialista afirma que, por esse
motivo, os devotos foram, aos poucos, reunindo-se no interior da igreja, munidos de
366
A memorialista Amália Xavier afirma que tais homens receberam a alcunha de “Cerca-Igrejas”, e
defende que o estopim para o movimento foi uma ordem do Padre Pedro Esmeraldo para que fosse
derrubada uma das torres da Igreja, que se encontrava deteriorada pelo tempo. Cf. OLIVEIRA, Amália
Xavier de. O Padre Cícero que eu conheci. Rio de Janeiro: [s/n], 1969. p. 266.
367
A incongruência nesse relato é o fato de a Intentona ter ocorrido somente em 1935. A morte do
Monsenhor Pedro Esmeraldo e o evento narrado por Odísio se deram, por outro lado, em 1934. De toda
forma, o teor de anticomunismo da derradeira homilia do padre Esmeraldo é, mais uma vez, assinalado.
BARBOSA, Geraldo Menezes. História do Padre Cícero ao alcance de todos. Juazeiro do Norte:
Edições I.C.V.C., 1992. p. 127.
179
armas brancas como foices, cacetes e punhais. Alojaram-se no local e passaram a cozinhar
e dormir ali mesmo. O padre Juvenal Colares, substituto do vigário falecido, e o prefeito
Geraldo da Cruz começaram a temer o pior. Foi aí que chamaram a polícia e se deu a
tragédia.
É preciso considerar que Barbosa situa o evento em novembro de 1935, ano
da Intentona Comunista, contradizendo os jornais e a versão de Odísio, que narram o
evento em outubro de 1934. O anacronismo, contudo, não invalida a versão do escritor
juazeirense, que é relevante por afirmar a importância do discurso de padre Esmeraldo e
dos temas anticomunistas no período.
Em outubro de 1934, portanto, o sacerdote continuava muito presente entre
seus fiéis. E, em certa medida, aqueles que se preocupavam com a força da ausência de
Padre Cícero estavam certos: as muitas interpretações sobre a palavra do Padrinho tinham
a capacidade de gerar graves conflitos — a exemplo do que envolveu o deputado Xavier
de Oliveira.
Aleida Assmann defende que a memória pode ser armazenada, mas somente
a recordação é ativada de maneira espontânea. Odísio, em seu Memórias de Juazeiro do
Padre Cícero, tenta acionar recordações com o objetivo de apresentar as especificidades
da cidade no período posterior à morte do Padrinho. Um evento vivido e registrado pelo
artista italiano foi a visita às ruínas do templo que Padre Cícero planejara construir no
Horto. O escultor considerou relevante descrever a localidade:
368
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 112.
180
A capella do Coração de Jesus, na serra do Horto, que seria um dos mais belos
templos do paiz, não conseguiu ser concluída, ficando interrompido o serviço
nas proximidades da cobertura, porque, em portaria terminante, o bispo, D.
Joaquim Vieira, prohibio, alegando ser aquella obra o meio mais seguro de
propagar o fanatismo.370
369
Dom José Joaquim Vieira foi o segundo Bispo do Ceará. Desde 1884, momento de sua posse, mostrou
ser um importante representante do processo de romanização promovido pela Igreja Católica. Conforme
lembra Renata Marinho Paz, “[...] a atuação da Igreja romanizada no sentido de restaurar o prestígio do
aparelho eclesiástico, de diminuir a distância entre este e os fiéis fundava-se no princípio de que o
catolicismo popular é uma fonte de fanatismo, desviante da verdadeira religião, algo a ser rejeitado e
combatido”. PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja Católica e as romarias de
Juazeiro do Norte. Fortaleza: IMEPH, 2011, p. 70.
370
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923], p. 57.
371
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O Santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946,
p. 222.
372
A Congregação Salesiana chegou em Juazeiro do Norte somente no ano de 1939. Como herdeira da
maior parte dos bens de Padre Cícero, ela deveria guardar o compromisso com a construção de um
colégio para as crianças pobres e com a continuação da obra da Igreja do Horto.
181
solução (ou prioridade) a instalação de sua própria igreja, em frente ao Colégio Salesiano,
que também fora construído mediante exigência de Padre Cícero em seu testamento.
O Santuário do Sagrado Coração de Jesus, conhecido pelos juazeirenses e
devotos como “Igreja dos Salesianos”, é um templo que não possui conotação afetiva para
os romeiros. Muitos deles, inclusive, preferem ignorá-lo quando estão em Juazeiro.
Apesar disso, o frontispício do edifício ostenta uma placa com o dístico “Padre Cícero
Romão Batista, os Salesianos atenderam ao seu pedido. Tenha sua alma tranquila no céu”,
e há quem costume chamá-lo de “Santuário da Promessa”, em alusão à demanda de Padre
Cícero.
No interior da igreja, uma bela imagem do Senhor Morto repousa dentro de
um mostruário de vidro, sobre um suporte de madeira com as seguintes palavras: “Deixo
para os padres salesianos a imagem em vulto grande do Senhor Morto que me veio de
Lisboa.’ Test. do Padre Cícero”. Todas as afirmações fazem crer que os herdeiros teriam
realizado o desejo do sacerdote. Os fiéis, contudo, não concordam, e lembram que o
Padrinho solicitara, na verdade, a construção do grande templo em outro espaço e com
outra fisionomia. Seu testamento pedia que o Sagrado Coração de Jesus fosse cultuado
no Horto, numa igreja construída conforme planta e maquete preexistentes.
Os salesianos ergueram na Colina do Horto, muitos anos depois, uma igreja
que em nada se parece com a planta original importada de Roma pelo Padrinho. A
construção original, de caráter quase medieval, transformou-se num edifício moderno que
se distancia bastante da estética sertaneja. Odísio apresentou em suas memórias uma
explicação peculiar sobre a decisão da Igreja de proibir a continuidade da primeira
construção:
373
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 113.
182
São José foi encarnado num velho servente, e Nossa Senhora numa mulata
beiçuda e nadeguda com mammas de vacca; os santos e apóstolos foram
facilmente arrumados e a corte celestial estava ao completo para poder, aos
domingos, todos trajados com trapos multicolores [...] pontificar solenemente.
O menino Jesus, negro como um tição, no meio, deitado sobre palha com o boi
sagrado ao lado, toda a corte celestial, fedorenta e catinguda, em roda, e o
profeta Elias, vestido com um camisolão branco sobre um amontoado de pedra
feito de nuvens.375
374
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 114.
375
Op. cit., p. 115.
183
376
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p. 116.
377
Nina Rodrigues realizou a craniometria de Antônio Conselheiro em 1939, afirmando ser possível
perceber na análise do crânio de Conselheiro sua condição de mestiço. Sua pesquisa chegou à seguinte
conclusão: “Pelo próprio estágio evolutivo em que se encontravam, os jagunços eram, religiosamente
falando-se, politeístas. Tais especificidades caracterizavam a crise social e religiosa que atravessavam.
Em ambiente propício, surgiu a loucura de Antônio Conselheiro, decorrente de uma predisposição
hereditária, pois descendia de uma família com recursos, porém belicosa. Sua loucura provocou a
contaminação das massas, geradora de condições para a emergência das qualidades atávicas dos
jagunços, ou seja, o espaço para a satisfação dos instintos guerreiros”. Cf. CHAVES, Evenice Santos.
Nina Rodrigues: sua interpretação do evolucionismo social e da psicologia das massas nos primórdios
da psicologia social brasileira. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n. 2, p. 35.
378
O Pé de Tambor era uma frondosa árvore localizada no Horto, nas proximidades do Cruzeiro e da antiga
capelinha. A tradição oral conta que a árvore foi destruída para dar origem a uma torre de televisão.
Diante da revolta da população, que considerava o pé-de-tambor sagrado por ser o local de repouso e
meditação de Padre Cícero, teria surgido a ideia de construir o grande monumento que atualmente se
encontra no alto da Colina do Horto. Cf. ARAGÃO, Raimundo Freitas. Um estudo geográfico sobre
geopolítica da visibilidade, marcação espacial, conflitos e tensões do patrimônio religioso urbano
184
[...] o typo mais perfeito de fanático que conheço. Nem lhe falta o acidente
sexual [...], tendo abandonado a esposa, em Napoles, para, agora, velho já de
70 anos, prevaricar contra uma virgem em Juazeiro, o que deu motivo ao Pe.
Cicero tirar-lhe a batina de beato e tomar-lhe as chaves da sua egrejinha do
Horto, que lhe tinham sido confiadas havia tantos anos. 380
estátua de Padre Cícero na cidade de Juazeiro do Norte – Ceará – Brasil. Élisée, Rev. Geo. UEG –
Anápolis, v. 4, n. 2, p. 34-58, jul./dez. 2015.
379
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 98-99.
380
OLIVEIRA, Xavier de. Beatos e cangaceiros. História Real, observação pessoal e impressão
psychologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. Rio de Janeiro: s.n., 1920. p. 49.
185
381
OLIVEIRA, Amália Xavier de. O Padre Cícero que eu conheci - Verdadeira história de Juazeiro.
Fortaleza: Premius, 2001 [1969]. p. 268.
382
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 172.
383
Para maiores informações, cf. BEZERRA, Cícera Patrícia Alcântara. Outras histórias: Memórias e
narrativas da Irmandade da Cruz Barbalha/CE. 2010. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.
186
384
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 117.
385
CASIMIRO, Antonio Renato Soares de (Org). Padre Cícero Romão Baptista e os fatos do Joazeiro
– A Questão Religiosa. Fortaleza: Editora Senac Ceará, 2012. p. 713.
187
afirmou que não poderia permitir, porque a continuidade da construção “[...] daria azo à
continuação das tropelias e torpezas dos taes irmãos da Crus, cujas façanhas e escândalos
não lhe são desconhecidos”.386
A passagem acima destacada substitui as Cortes Celestiais mencionadas por
Odísio e identifica os crentes do Horto como Irmãos da Cruz. Somente uma carta do Padre
Quintino a Dom Joaquim esclarece quais seriam as tais “tropelias e torpezas” praticadas
por esse grupo, afirmando que o oratório da serra havia se transformado num Santuário
dedicado ao “Bom Jesus do Horto” e que
[...] o italiano Elias, que conservando ali num casebre, à guisa de oratório, um
quadro do Coração de Jesus e outros, explora largamente, à vista do Padre
Cícero, a crendice de muita gente, que não obstante as instrucções do Parocho
da freguesia, lá se vão cumprir votos [...]. Consta que será transportada para ali
a imagem do Sagrado Coração, vinda de Roma, e que a despeito da proibição
de V. Exc.ª. é exposta à veneração de quem quer; ou uma outra do Senhor
Morto, mandada vir da Europa, e benzida não sei por quem. 387
386
CASIMIRO, Antonio Renato Soares de. (org). Padre Cícero Romão Baptista e os fatos do Joazeiro
– A Questão Religiosa. Fortaleza: Editora Senac Ceará, 2012. p. 780.
387
Op. cit., p. 789.
388
Para maiores informações acerca da resistência da Igreja diante da prática da autoflagelação, cf.
BEZERRA, Cícera Patrícia Alcântara. Outras histórias: Memórias e narrativas da Irmandade da Cruz
Barbalha/CE. 2010. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2010.
188
devotos continuava de pé. Mesmo após as últimas paredes do templo terem sido
derrubadas, a pressão popular permaneceu sobre os salesianos, que se comprometeram
com a construção de um novo santuário no local.
A passagem de um deputado contrário ao fanatismo e a visita a um templo
inconcluso continuavam a lembrar Padre Cícero, o “imorrível”. Por causa dele — ou de
sua lembrança — os devotos arriscavam suas vidas, trazendo à tona mais uma vez o temor
que as autoridades possuíam de que Juazeiro se tornasse uma nova Canudos. Em vida, o
padre controlava seus “fanáticos”. Após sua morte, a fé seria incontrolável.
Agostinho Odísio redigiu suas páginas com o objetivo de representar, para os
leitores, a experiência que viveu na cidade de Juazeiro. Mas o caderno não era apenas um
registro de sua trajetória: também contava com informações e relatos advindos de outras
fontes, configurando-se, simultaneamente, como um diário reflexivo e um apanhado de
narrativas sobre as peculiaridades da exótica cidade de Juazeiro.
Falar sobre Juazeiro não é o mesmo que falar sobre Padre Cícero. É fácil
entender o porquê. Se durante muito tempo o que havia era uma tentativa de desqualificar
aquele pobre refúgio de sertanejos, de situá-lo como abrigo de doentes, fanáticos e
cangaceiros, a situação se transformou com a morte do líder religioso. Já não interessava
tanto saber se a terra santa seria uma cidade moderna ou um amontoado de casas de palha.
O assunto mais premente envolvia aquele que acabara de se despedir da vida.
Após a morte de Padre Cícero, poucas foram as obras literárias que se
dedicaram a examinar os aspectos urbanos de Juazeiro. Já havia passado o tempo em que
a terra santa era comparada a um arraial. Continuaram surgindo, no entanto, numerosas
biografias do Padrinho que tentavam explicar sua influência sobre o cotidiano do
Nordeste. Essas explicações defendiam, geralmente, que o sacerdote teria enfrentado um
período de decadência política e mesmo religiosa nos anos que precederam sua morte.
Otacílio Anselmo, por exemplo, chegou a traçar um “antes” e um “depois”, afirmando
que Padre Cícero foi santo durante um período mais ou menos longo, tornando-se político
daí em diante e perdendo progressivamente, desde então, os aspectos de santidade, até a
morte de Floro Bartolomeu, quando trocou a liderança política pela liderança religiosa
novamente. Para Anselmo, o sacerdote teve alguma relevância na cena pública até
189
meados de 1920, quando teria caído no ostracismo. Em 1934, ano de sua morte, estaria
“reduzido à simples condição de condutor de fanáticos”389.
As notícias publicadas nos jornais do Nordeste, contudo, contradiziam essa
tese. Na década de 1950, eram inúmeras as reportagens acerca das constantes romarias
que deixavam o interior do Nordeste e percorriam longos caminhos até Juazeiro. Em
1951, o jornalista Edmar Morel, estimulado pela ideia de observar o fenômeno, tomou
uma decisão:
389
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
574.
390
ESCOLHIDO o secretariado alagoano. Diário de Pernambuco, Recife, p. 1-3, 14 jan. 1951.
190
Para a cultura letrada, era surpreendente notar que Juazeiro continuava. Mas
logo adiante, o jornalista destacou que “[...] muita gente boa e honesta, matronas
respeitáveis, senhoras de alta linhagem, cavalheiros de fino trato, senhores de engenho,
latifundiários, fazendeiros, comerciantes”392 também acreditava ter sido agraciada pelos
milagres do Padrinho, e acendia velas sobre seu túmulo.
Nesse período, na verdade, as romarias se intensificaram, o que pode ser
observado nos jornais de circulação nacional, que frequentemente comunicavam
acidentes automobilísticos com os caminhões que levavam romeiros até Juazeiro. Em
1969, ano de inauguração do monumento erigido no Horto, houve relatos até mesmo de
um acidente aeronáutico envolvendo romeiros:
391
FIGUEIREDO, Henrique de. Padre Cicero. Diário de Pernambuco, Recife, p. 9, 8 out. 1954.
392
Id., ibid.
393
ROMARIA TEM final trágico. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 6, 5 nov. 1969.
191
394
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: Gênese e lutas. Disponível em: <https://www.marxists.org/por
tugues/faco/1963/03/cangaceiros.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2016.
395
Id., ibid.
396
Segundo Albuquerque Júnior, essa região teria virado tema preferencial das esquerdas brasileiras a partir
da década de 1950. O fim do cangaço e o surgimento das ligas camponesas contribuíram para o
fenômeno, levando intelectuais marxistas a elaborar uma reflexão sobre a ética insubmissa e mesmo
guerreira dos sertanejos. Para o autor de A invenção do Nordeste, “[...] a certeza dos beatos de que o
mundo estava no fim se aproximava [...] da certeza das esquerdas de que o capitalismo estava no fim”.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife:
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 204.
192
Padre Cícero não morreu. Fez uma viagem para interceder pelos seus
romeiros junto a Nossa Senhora e retornará quando chegar o Fim dos Tempos. Cabe
pensar sobre o fato de seu túmulo, supostamente, não ser o local mais visitado pelos
397
MOREL, Edmar. Devassando o arquivo do Padre Cicero – O mais poderoso senhor do Nordeste retardou
uma operação melindrosa por falta de dinheiro. Diário de Pernambuco, Recife, p. 10, 10 set. 1944.
193
398
“Enquanto a morte é uma grande democrata, reservando a todos o mesmo destino, a fama [...] é uma
grande selecionadora e filtradora, eternizando os nomes de alguns e deixando decair os de outros.”
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora Unicamp, 2011. p. 64.
399
MOREL, Edmar. Devassando o arquivo do Padre Cicero – O mais poderoso senhor do Nordeste retardou
uma operação melindrosa por falta de dinheiro. Diário de Pernambuco, Recife, p. 10, 10 set. 1944.
400
Id., ibid.
401
NOMES DE cidades. Diário de Pernambuco, Recife, p. 3, 24 set. 1943.
194
fanáticos que crêm [...] na divindade do padre Cicero”402. O texto dizia que Juazeiro não
podia ser representada pelo atraso, pois se destacava como uma cidade progressista,
moderna e repleta de trabalhadores operosos. Aliás, a prova cabal da evolução econômica
e social da cidade era demonstrada através da observação de que “[...] na época atual, a
classe dos fanáticos está quase extinta e dentro em breve terá desaparecido”403.
Apesar de tais afirmações, como se sabe, o culto ao Padrinho estava longe de
fenecer. Em 1943, um ano antes da afirmação de que o “fanatismo” seria uma
manifestação em processo de extinção, jornais cariocas e pernambucanos anunciavam
que corria uma denúncia no Tribunal de Segurança Nacional envolvendo “[...] o sr. João
Batista da Silva, o qual, diante da estatua do padre Cicero do Juazeiro, atacou a Igreja, os
padres e principalmente os salesianos, classificando-os de falsos herdeiros do Padre
Cícero” 404 . No mesmo período, os tabloides publicavam, na seção de classificados,
numerosos agradecimentos ao Padrinho pelas graças alcançadas. Além disso, noticiavam
as constantes romarias a Juazeiro. Os fiéis sertanejos continuavam a usar caminhões,
carros, animais e, principalmente, os próprios pés, para pedir a bênção ao Padrinho.
As elites do país, preocupadas em encontrar as causas da perseverança do
“fanatismo” em Juazeiro, escreviam e publicavam artigos sobre o tema, especialmente
nas gazetas das capitais. Os repórteres lembravam que o sacerdote havia sido um homem
bom, caridoso, manso, pouco vaidoso e mesmo desinteressado por dinheiro, carregando
somente a culpa de abraçar a carreira política por uma fraqueza psicológica que embaçava
sua racionalidade e o levava a seguir os conselhos das lideranças que pretendiam tirar
proveito de seu carisma. Para tais autores, o humilde sacerdote tomou decisões
imprudentes graças a esses arroubos de megalomania:
402
O PADRE CÍCERO E A evolução de Joazeiro. Diário de Pernambuco, Recife, p. 3, 16 mai. 1944.
403
Id., ibid.
404
DENUNCIADOS AO T.S.N – Atacou a Igreja e os Padres. Diário de Pernambuco, p. 1, Recife, 2 jul.
1943.
405
PRAZERES, Otto. O mistério do Padre Cícero. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 5, 21 fev. 1945.
195
406
A HISTÓRIA DAS SECAS. Diário de Pernambuco, Recife, p. 1-4, 11 jul. 1934.
407
O Padre Antonio Gomes de Araújo tem uma versão diferente: afirma que Padre Cícero foi enganado por
José Marrocos, responsável pelo preparo químico que produzia o efeito de transformação da hóstia em
sangue, e pela beata Maria de Araújo, que agia como sua cúmplice. ARAÚJO, Padre Antonio Gomes
de. Apostolado do embuste. Crato: Edições Itaytera, 1956. p. 5.
196
pela pureza teologal da doutrina católica. Tanto uns quanto outros, no entanto, afirmavam
que ele poderia ter feito mais pela instrução dos juazeirenses.
Um repórter norte-americano afirmava que a permanência de tais devotos na
“cidade santa” se relacionaria à ideia de que Padre Cícero retornaria um dia para Juazeiro.
Segundo Bruce Handler, “[…] many peasants in this region are convinced that Padre
Cicero, who died in 1934 at the age of 90, will return to Earth to settle accounts with his
enemies and nonbelievers – a sort of Brazilian-style Judgment Day”408. Se Padre Cícero
poderia voltar a qualquer momento, os milhares de romeiros queriam estar por perto para
presenciar o maravilhoso momento. Suas relíquias, os objetos em que tocou e os lugares
em que viveu eram considerados sagrados. Causou polêmica, por exemplo, o rumor de
que a cama do Padrinho seria retirada do local em que ele manifestou seu último suspiro:
408
“Muitos camponeses nesta região estão convencidos de que Padre Cícero, que morreu em 1934, aos 90
anos, voltará à Terra para acertar as contas com seus inimigos e incréus – uma espécie de Dia do
Julgamento à brasileira”. HANDLER, Bruce. Dead Priest Continues To Stir Up Memories. Observer-
Reporter. Washington, 18 de agosto de 1973, p. 3. Disponível em: <https://news.google.com/newsp
apers?nid=6w2ZCmoKEM0C&dat=19730818&printsec=frontpage&hl=pt-BR>. Acesso em: 28 set.
2016.
409
A CAMA do Pe. Cicero Ficará. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 1, 11 set. 1949.
197
regularmente, em busca dos conselhos e das graças do sacerdote. Eram pessoas que não
moravam em Juazeiro, mas se deslocavam anualmente, ou em alguns períodos
específicos, à procura de remédios para o corpo e a alma. Após a morte do sacerdote, a
despeito de todas as previsões, tais visitas continuaram.
Em 1951, José Almeida publicou um texto sobre as diversas romarias
brasileiras no Diário de Pernambuco. O jornalista criticou as peregrinações feitas a
Juazeiro e a outras cidades do Nordeste, ressaltando que não se tratava de turismo, mas
de fanatismo:
410
ALMEIDA, José. Notas Matutas. Diário de Pernambuco, Recife, p. 9, 1 dez. 1951.
411
Militar pernambucano conhecido como “caçador de cangaceiros” por ter comandado as forças que
mataram Lampião em 1938.
198
412
GUEIROS, Optato. Memórias de um ex-oficial de Volante – XIV. Padre Cícero Romão Batista,
Patriarca. Diário de Pernambuco, Recife, p. 11, 30 set. 1951.
413
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. p. 122.
199
Em 1936, Lauro Reis Vidal publicou o seu Padre Cícero – O Joaseiro visto
de perto. No livro, reproduziu uma das primeiras notícias acerca da morte do Padrinho.
É uma carta pessoal, enviada em 21 de julho de 1934 pelo radialista Lourival Marques de
Melo ao tabelião Augusto Nicodemos, narrando o momento de tristeza e desespero vivido
em Juazeiro. Essa carta foi publicada no jornal O Semeador, de Maceió. Lourival
Marques era afilhado não de Padre Cícero, como tantos juazeirenses, mas de Floro
Bartolomeu. Era também filho de um dos secretários do sacerdote. Na carta, ele contou:
Entre intelectuais, figuras públicas e demais grupos que não eram compostos
por “fanáticos”, havia também defensores do Padrinho, pessoas que afirmavam sua
bondade e repeliam as ofensas. Tais sujeitos, tendo convivido com o sacerdote, buscaram
reestabelecer sua honra após a morte. Eram os “amigos da memória” do Padrinho415.
Manoel Dinis e Reis Vidal foram, talvez, os maiores representantes da categoria, sendo
seguidos ainda por Teófilo Machado, Tristão Romero e outros escritores juazeirenses que
buscavam se opor às ideias geralmente veiculadas pelas elites cearenses.
Sabe-se que não é de bom tom disseminar os defeitos dos recém-mortos. No
caso do fundador de Juazeiro, especificamente, não se tratava de um morto qualquer, mas
de um homem que, embora fosse considerado como santo por uma multidão, ainda era
malvisto pela imprensa nacional e pela cultura letrada. Após sua morte, começaram a
414
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936, p. 120-121.
415
MACHADO, J. Duas Palavras – excertos da vida do Padre Cícero. Juazeiro do Norte: Tipografia São
Francisco, 1948, p. 3.
200
surgir obras que não se dedicavam mais (somente) a dissertar sobre o fim de Juazeiro e a
possibilidade de que aquele estranho recanto viesse a se tornar uma nova Canudos. Os
livros lançados após 1934 pretendiam falar, especialmente, sobre a vida e a obra do ilustre
padre. Décadas após seu falecimento, alguns temores se atenuavam e sua trajetória —
com qualidades e defeitos — se consolidou como o tema mais explorado. Era um capítulo
da história que havia terminado, e deveria ser registrado. Se durante sua existência tudo
estava em aberto, podendo Padre Cícero ser santo, revolucionário, coronel ou milionário,
a partir de 1934 seria possível colocar tais aspectos na balança e dizer, de fato, quem ele
foi.
O fato de o biografado estar morto possibilitou um distanciamento daqueles
que pretenderam escrever sua história. Já não havia o problema da invasão de privacidade,
e os biógrafos puderam ser menos cautelosos416. De fato, por muito tempo pulularam
divagações acerca do que seria o destino de Juazeiro após o desaparecimento do
sacerdote. Não se ousava, contudo, escrever sobre sua vida como se ela já tivesse se
encerrado. O foco central das narrativas, por muito tempo, foi Juazeiro. Essa tendência,
contudo, sofreu transformação. A partir de 1934 é possível analisar Padre Cícero sem se
deter sobre Juazeiro.
Foram redigidas numerosas obras de cunho biográfico após o
desaparecimento do sacerdote: a primeira delas surgiu já em 1935, quando Manoel Dinis
aproveitou-se da proximidade que tivera com o santo do sertão para lançar seu Mistérios
do Joazeiro, obra de caráter local, mas que obteve certa circulação, sendo citada — apesar
das muitas críticas e reservas — por praticamente todos os biógrafos que vieram a seguir.
Segundo o advogado juazeirense, seu objetivo era elaborar uma “[...] concisa e imparcial
narrativa histórica sobre o Padre Cícero Romão Batista, o Juazeiro do Padre Cícero e algo
de seu folclore”417. É fruto de depoimentos e conversas casuais que tivera pessoalmente
com o sacerdote. Parece ser, na verdade, a biografia de um vivo. Ou de um quase-morto.
Padre Cícero – o Santo do Juazeiro, de autoria de Edmar Morel, foi o
primeiro esforço de elaboração de uma obra de grande circulação, escrita por alguém que
não conheceu pessoalmente o Padrinho, e mais fundada sobre a documentação escrita
que sobre a oralidade. O jornalista a lançou em 1946, após passar algum tempo
416
Conforme Sergio Vilas Boas, a morte é uma parte essencial de qualquer biografia. “Fazer uma biografia
de alguém vivo é algo incompleto, porque o morrer faz parte do viver. À biografia de um vivo falta um
elemento crucial – a morte [...].” BOAS, Sergio Vila. Biografismo: reflexões sobre as escritas da vida.
São Paulo: Editora Unesp, 2008, p.174.
417
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935], p. 13.
201
418
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O Santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
115.
419
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 18.
420
MOREL, Edmar. Op. cit., p. 2.
202
apologistas” 421 . Padre Cícero jamais poderia ser analisado sem que fosse estudado
também o povo que o seguiu e o lugar em que ascendeu à fama. O santo juazeirense,
portanto, é constantemente avaliado em conexão com o meio em que viveu e atuou.
Há de se recordar que, entre 1930 e 1960, havia, como bem notou Durval
Muniz, uma forte literatura regionalista, que abraçava a dicotomia civilização versus
barbárie quando abordava o Nordeste. Os discursos da classe média urbana que escrevia
sobre a região tanto poderiam se mostrar interessados na manutenção da ordem burguesa
quanto na transformação daquela realidade social. Eram, de toda forma, olhares
“civilizados” sobre um Brasil arcaico, rural e tradicional422. Edmar Morel está entre os
intelectuais que observavam esse espaço com uma postura de superioridade — a postura
do cearense que foi morar no Rio de Janeiro, conviveu com grandes personagens, atuou
na imprensa nacional, teve contato com pensadores simpatizantes do marxismo e
lamentava que seus conterrâneos não tivessem a mesma sorte, vivendo na pobreza e
ignorância.
É necessário notar ainda que os biógrafos que publicaram nesse período
parecem se inspirar, em certa medida, na principal tendência literária daquela ocasião, o
Neorrealismo. Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado
dedicavam-se, à época, a falar sobre o Nordeste, numa espécie de literatura em que o
lugar e o homem tinham o mesmo peso. Os aspectos sociais do sertão eram, senão moda,
curiosidades que interessavam a todo o Brasil. Livros e mais livros sobre o tema eram
publicados e vendidos. Entre os biógrafos de Padre Cícero, poderia existir, claro, interesse
por sua personalidade, associado ao fato de serem cearenses e terem, por tanto tempo,
percebido a influência do sacerdote na região. Mas não se pode descartar, ainda, certo
senso de oportunidade, considerando as vendas crescentes de obras sobre o Nordeste, a
seca e os problemas sociais daquela parte do país. Grande parte dos biógrafos de Padre
Cícero, inclusive, cita o grande ícone desse tema, Euclides da Cunha e seu Os Sertões,
tendo, por vezes, admitido explicitamente a inspiração.
421
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
62.
422
Segundo Albuquerque Jr., para esses intelectuais, “[...] os cangaceiros ou as volantes, por exemplo, são
formas violentas e ilegais. Tais discursos tendem a valorizar a sociedade da lei, da disciplina, dos
códigos escritos, da despersonalização dos conflitos, do império dos códigos abstratos, dos conflitos
retirados da esfera do privado para a esfera pública. As ‘revoltas primitivas’ seriam produto da falta de
luzes, de consciência, seriam instintividade, barbárie. Busca-se sempre retirar dessas manifestações as
imagens que mais chocam, que mais ressaltam sua diferença em relação à ordem futura que se quer
criar”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife:
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 194.
203
423
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O Santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
131.
424
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
p.s.n.
425
VIDAL, Reis. Padre Cícero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 18-19.
426
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
s.n.
204
do século XX, de autoria de Tristão Romero (Francisco de Assis Leite), em 1950. Antônio
Gomes de Araújo publicou Um civilizador do Cariri em 1955 e Apostolado do Embuste
em 1956. Rosário, rifle e punhal foi a contribuição de Nertan Macedo em 1965. Por fim,
o Padre Azarias Sobreira mostrou ao mundo seu O patriarca de Juazeiro em 1968. É
possível que algumas publicações ainda tenham ficado de fora da lista aqui mencionada.
Os livros que mais se destacaram acerca do tema, no entanto, são as biografias redigidas
por Edmar Morel, Otacílio Anselmo e Azarias Sobreira, publicadas por editoras de
sucesso — a Civilização Brasileira e a Editora Vozes —, que garantiram a ampla
circulação dos títulos.
A biografia é um gênero que pode trazer uma mistura entre fabulação e
experiência vivida. No caso de Padre Cícero, essa especificidade é levada ao limite, já
que milagres, sonhos premonitórios, bilocações e outros fenômenos extraordinários são
descritos costumeiramente, por vezes sendo negados e, noutros momentos, defendidos
como verdadeiros. Manoel Dinis, por exemplo, parecia acreditar no dom da bilocação de
Padre Cícero. “Queremos crer mesmo, que a maior parte de sua vida foi dirigida por meio
de sonhos e talvez do fenômeno de bilocação a que parece-nos que ele se prestava,
adormecendo momentaneamente, como tivemos ocasião de observar muitas vezes
[...].” 427 Aqui, o biógrafo é testemunha de um fenômeno que considera factível. As
fronteiras entre memória e imaginação são tênues, e isso será notado pelos leitores e
críticos que virão a seguir.
Embora a biografia seja um gênero que não deixa de utilizar o ficcional para
preencher lacunas ou alcançar uma tese central em torno do biografado, há amarras que
a prendem ao acontecido, assim como ocorre com o trabalho do historiador 428 .
Praticamente todos os biógrafos de Padre Cícero eram jornalistas e se apoiaram, senão no
acontecido, na documentação encontrada sobre o que aconteceu. Edmar Morel, por
exemplo, apresenta, no início de sua obra, uma espécie de manifesto: “Nunca, na minha
vida de jornalista, abandonei o fato. A ficção é para o romancista, o poeta, o dramaturgo.
O repórter vive de informação que não admite contestação”429. Como jornalista, apegaria-
427
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 29.
428
Segundo François Dosse, contudo, “[...] o gênero biográfico encerra o interesse fundamental de
promover a absolutização da diferença entre um gênero propriamente literário e uma dimensão
puramente científica – pois, como nenhuma outra forma de expressão, suscita a mescla, o caráter
híbrido, e manifesta assim as tensões e as conivências existentes entre a literatura e as ciências
humanas”. DOSSE, François. O Desafio biográfico – Escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2000. p.
18
429
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O Santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
1.
205
se à defesa da verdade dos fatos, seguindo uma tendência descrita por Boas, que afirma a
ideia jornalística de que “[...] a verdade só poderia estar nos fatos, porque os fatos são o
real, o real concreto; e o real concreto é aquele que se apresenta materialmente à nossa
percepção”430. Nesse jogo, o importante papel simbólico desempenhado pelo biografado
— no caso, Padre Cícero — é negligenciado, por ser impalpável 431 . Algo semelhante
ocorrerá com Otacílio Anselmo, que descreverá seu livro como uma obra repleta de
citações e referências, devendo constituir, segundo sua ambição, “[...] uma retificação
histórica, elaborada sem outro objetivo a não ser a narração da verdade [...]”. Havia em
Anselmo a ânsia de corrigir todos os seus antecessores. Ele não era, porém, o primeiro:
muitos autores escreveram com o mesmo objetivo.
No quesito “transparência”, os biógrafos de Padre Cícero são razoavelmente
honestos; revelam bastante de suas fontes e métodos. Não se sabe, contudo, quais
documentos e narrativas foram descartados na feitura de seus livros, assim como pouco
se sabe sobre o motivo de terem escolhido Padre Cícero, e não qualquer outro
personagem, para biografar. Otacílio Anselmo, por exemplo, encarou um desafio de alta
envergadura. Afirmou, inclusive, que seu livro seria algo imprudente:
[...] porque a verdade – para quem vive à sombra da farsa e da mentira e de sua
exploração – incomoda e dói, irrita e enfurece. Mas foi justamente inspirado
nela – na verdade – que me propus a escrevê-la em termos inacessíveis a
intelectuais prudentes, que há de sobra neste País. Determinado a esse
desiderato, consumi cerca de oito anos de estudos e pesquisas, durante os quais
mergulhei em cartórios e bibliotecas, rebusquei arquivos públicos e
particulares, transcrevi documentos e tomei depoimentos pessoais, resultando
de tamanho esforço um acervo documental abundante e irrefutável.432
430
BOAS, Sergio Vila. Biografismo: Reflexões sobre as escritas da vida. São Paulo: Editora Unesp, 2008.
p. 162.
431
Conforme afirma Albuquerque Jr. sobre aqueles que se dedicaram a estudar o Nordeste, “[...] o discurso
dos intelectuais marxistas tende a abordar fenômenos como o cangaço, o messianismo e o coronelismo
a partir de seus determinantes sociais, reduzindo-se quase sempre a mera explicação econômica”.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife:
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p.196.
432
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
s.n.
206
Para Morel e Anselmo, ele era um exemplar típico do homem sertanejo: rude,
indisciplinado, agressivo, inculto. Seus defensores, por outro lado, o pintavam como
exceção máxima, raro exemplar de homem ilustrado no sertão. O Padre Azarias Sobreira,
por exemplo, afirma ter publicado, em 1968, seu O patriarca de Juazeiro por um
imperativo de consciência, porque Deus assim quis. Declara que, após ter venerado o
Padrinho na infância, foi hostil na adolescência, chegando à maturidade, finalmente, com
o objetivo de ser justo. No balanço geral dos estudos publicados até 1968, Sobreira avalia:
433
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
18.
434
Amália Xavier refuta alguns dados e se mostra extremamente ofendida com informações referentes à
sua família publicadas por Otacílio Anselmo. Segundo Anselmo, em 1926 teria sido elaborado um plano
para assassinar Floro Bartolomeu. Miguel Jordão, romeiro do Padre Cícero, foi contratado para efetivar
o plano. Teria partido para o Rio de Janeiro, recebendo pagamento, armas e dinheiro. Lá chegando,
entregara uma carta de José Xavier de Oliveira para o filho, Antonio Xavier de Oliveira, em que tudo
era explicado. Anselmo afirma que o autor de Beatos e cangaceiros não permitiu que o crime se
realizasse, prevendo ainda que Floro Bartolomeu, pelo estado de saúde em que se encontrava, em breve
morreria. A escritora juazeirense visitou Miguel Jordão da Silva, que lhe concedeu um documento
afirmando que jamais entregara carta alguma. Assim, Amália afirma que Anselmo “[...] publicou no seu
livro a mais negra calúnia que se poderia atribuir a uma pessoa” OLIVEIRA, Amália Xavier de. O
Padre Cícero que eu conheci - Verdadeira história de Juazeiro. Fortaleza: Premius, 2001 [1969]. p.
365. A autora acredita que Otacílio, embora se apoie bastante em documentos oficiais, muitas vezes se
baseia sobre narrativas que podem ser falsas.
207
435
SOBREIRA, Pe. Azarias. O Patriarca de Juazeiro. Petrópolis: Vozes, 1968. p. 11.
436
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 19.
208
437
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
583.
438
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p.174.
439
Op. cit., p. 18.
209
impressão de que Juazeiro seria um “[...] meio infenso à evolução natural das sociedades
hodiernas”440.
Edmar Morel e Otacílio Anselmo acreditavam que a produção intelectual de
Reis Vidal tinha como objetivo a obtenção de vantagens políticas junto ao Padrinho.
Segundo Morel, a morte de Floro Bartolomeu obscureceu a vida de Padre Cícero que, a
cada dia mais velho e doente “é cercado por uns cavalheiros sem profissão definida e
jornalistas com rótulos de escritores, quase todos ambicionando o lugar de deputado
federal, vago com o falecimento daquele médico”441. Otacílio Anselmo também acredita
que, após a morte de Floro Bartolomeu, padre Cícero passou a ser cercado por diversas
personalidades que buscavam apadrinhamento político. O sacerdote, descontente pela
falta de influência política na esfera federal, teria adquirido a ideia fixa de substituí-lo.
Assim, teria sido assediado uma porção de pretendentes ao cargo: “[...] disputavam-no,
em primeiro plano, Raimundo Gomes de Matos e Juvêncio Santana, seguidos de Pedro
Coutinho e Reis Vidal”442.
Tanto Manoel Dinis quanto Reis Vidal construíram narrativas que pretendiam
situar Padre Cícero como fator de progresso para Juazeiro e a região, o oposto do que
havia sido defendido por inúmeros escritores e jornalistas até então. Manoel Dinis, por
exemplo, afirmou que o sacerdote
440
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 22.
441
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
111.
442
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
550.
443
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 33.
210
castigar, até mesmo fisicamente, os “pecadores” 444 . De acordo com as mais diversas
narrativas, no início de sua trajetória, o Padrinho não era um poço de afeto, mas um duro
fiscal dos sertanejos que moravam no povoado445. Segundo os biógrafos mais simpáticos
ao sacerdote, foi desse modo que Juazeiro deixou de ser um local evitado, passando a ser
procurado. O Padrinho já influía positivamente na vida do povoado antes mesmo do
milagre de 1889.
Reis Vidal tentou demonstrar ainda que Padre Cícero não atraía bandidos para
Juazeiro com o objetivo de utilizar a mão de obra criminosa, como faziam os demais
coronéis, mas era responsável, ao contrário, por controlar e converter aqueles que saíam
dos trilhos. Ao defender que Padre Cícero protegeu sua terra do cangaceirismo, por
exemplo, Vidal assegura que Padre Cícero tentara, até o fim, converter Lampião. Aos que
afirmavam ser o Juazeiro uma espécie de inferno na terra, o jornalista afirmava bastar
uma visita ao município para que se percebesse uma cidade que refletia as qualidades de
seu fundador:
444
Otacílio Anselmo afirma que, “[...] de volta ao meio rústico de onde proviera, despontou-lhe a índole
autoritária da qual as primeiras vítimas foram seus alunos [...]”.444 ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero,
mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 44.
445
São narrados, por exemplo, episódios em que Padre Cícero aplicava “bolos” nos casais que haviam
desfrutado os privilégios do matrimônio antes de obterem o sacramento.
446
VIDAL, Reis. Padre Cicero - Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 54
211
a exibição de um filme de sua lavra sobre o sacerdote, foi veiculado no jornal paraibano
O Norte um artigo que apresentava um panorama geral do investimento de Vidal na
metamorfose das opiniões sobre Padre Cícero e Juazeiro:
Mesmo para defender o Padre Cícero, o artigo não deixava, como era comum,
de estabelecer comparações entre Juazeiro e Canudos. Padre Cícero teria feito da cidade
uma experiência que deu certo, uma Canudos bem-sucedida. Seu mérito seria o de
transformar em civilizada uma coletividade considerada primitiva. Desse modo, embora
fosse rústico como o povo que o seguia, Padre Cícero, com seu caráter de patriarca, pôde
colocar em ordem o desalinho mental que era próprio de seus afilhados. Essa era, de fato,
uma tese defendida pelos “amigos da memória” do Padrinho.
Como já se discutiu anteriormente, era muito comum a ideia, entre os
intelectuais do país, de que a população sertaneja, especificamente a do Cariri ou de
Juazeiro, fosse constituída por homens e mulheres selvagens e violentos, de hábitos
morais reprováveis. Eram incivilizados que foram debilmente evangelizados por
sacerdotes igualmente imorais, até que o segundo capelão de Juazeiro chegasse para
transformar a situação. Tristão Romero, por exemplo, afirma, em 1950, que por tradição
e legado de sangue os descendentes dos primeiros povoadores do Cariri eram
beligerantes, conflituosos, nômades e viviam a serviço do crime. Quem teria modificado
essa situação? Padre Cícero, claro:
447
ANTECIPANDO O JULGAMENTO para a posteridade. O Norte, João Pessoa, 26 de maio de 1932.
212
448
ROMERO, Tristão. Vida completa do Padre Cícero Romão Batista – Anchieta do século XX.
Juazeiro do Norte: s.n., 1950. p. 30.
449
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p.125.
213
Isolado da vida trepidante das metrópoles, entregue com devotada atenção aos
estudos geraes e sobretudo ao das reformas políticas operadas no século, o
patriarca do Juazeiro, comunicando-se com o resto do Paiz apenas pelo
telegrafo, tornou-se, dentro de bem curto espaço de tempo, uma espécie de
oraculo, constantemente consultado pelas personalidades mais destacadas do
regimento.450
450
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 47
451
Op. cit., p. 76.
452
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 132.
453
SOBREIRA, Pe. Azarias. O patriarca de Juazeiro. Petrópolis Vozes, 1968. p. 174.
454
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
44
214
povo, negando-se a abrir escolas primárias. Anselmo afirma que o sacerdote perdeu a
oportunidade de, na Europa, “[...] elevar-se no campo da cultura intelectual, ampliar os
conhecimentos trazidos do Seminário e já, àquela hora, diminuídos por força do convívio
diuturno com pessoas ignorantes”455. Segundo a perspectiva de Morel e Anselmo, Padre
Cícero, ao esquivar-se da tarefa de transformar Juazeiro, acabava sendo transformado
pelos juazeirenses.
Aqueles que defendiam Padre Cícero como um civilizador, contudo,
concordavam, em certa medida, com seus detratores quando se tratava de opiniões acerca
dos habitantes mais humildes de Juazeiro. Manoel Dinis, por exemplo, ao tentar
apresentar um indício do nível intelectual dos romeiros, revela que “[...] muitos deles
criam que o Padre Cícero era Deus e que não tinha nascido, não comia, nem morreria:
parecia que comia, mais (sic) era tudo isto só na vista da gente”456. A compaixão do amigo
do sacerdote não se estendia aos seguidores do santo juazeirense:
Cremos que muitos dos que vieram para esta cidade compraram o bonde, como
dizem de um mineiro, porque fizeram negócios para ficarem verdadeiramente
escorchados: não se conta o número de romeiros que aqui chegaram dispondo
de um bom começo de independência econômica e terminaram morrendo de
miséria ou voltando famintos e miseráveis para suas terras natais. Tal ruína em
parte era devida ao doentio fanatismo que infelizmente grassou (já hoje há
poucos tipos genuínos de fanático dominado completamente por paranoia
religiosa) horrivelmente aqui, a ponto de um comerciante ao chegar nesta terra,
perder seus haveres e seu crédito. Este pobre homem que conhecemos,
entregou sua loja de fazendas a caixeiros menores que, pensando que tinham
entrado na terra dos bem aventurados, vendiam fiado a quem queria ou dizia
que os romeiros são irmãos. Os irmãozinhos acabaram com os bens do
comerciante, enquanto ele rezava na capela de Nossa Senhora das Dores,
tentando de se salvar, e dizem que chegou ao ponto de agitar os braços,
experimentando se já tinha criado asas para voar em busca do céu.457
455
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
258.
456
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 56.
457
Op. cit., p. 55.
215
relatada por Odísio, aquela que diz respeito a uma exploração iniciada antes mesmo de o
viajante chegar a Juazeiro, quando os corretores de casas religiosas (também chamadas
de casas de santos) disputavam os romeiros “[...] como artigos de negócio, a ponto de ter
havido por isto conflitos e até morte de corretores”, conduzindo-os à presença de Padre
Cícero somente “[...] quando eles compravam alguns rosários, santinhos, etc., cobrando
ordinariamente, os corretores, certa quantia por cabeça de romeiro que angariavam para
seus patrões”458.
Reis Vidal esteve em Juazeiro, entre outras vezes, em 1925, quando filmou a
inauguração da estátua de Padre Cícero na praça então batizada de “Almirante
Alexandrino”. Esse evento é marcante nas narrativas locais não apenas pela grande festa
ofertada por Floro Bartolomeu aos importantes personagens do estado e da região, mas
porque em torno dela ocorreram eventos que colocariam em xeque a reputação do
sacerdote e fariam Floro romper com aliados: os crimes de rodagem. Tais crimes são
mencionados em toda a bibliografia acerca de Padre Cícero e Juazeiro. São também
recriminados pelos membros da cultura letrada, que os consideraram bárbaros e cruéis.
Otacílio Anselmo afirma que tudo começou com uma tentativa de
embelezamento da cidade para receber o oficialato que viria inaugurar a estátua. Em 1924,
Floro Bartolomeu retornava do Rio de Janeiro, trazendo sob o braço o discurso proferido
na Câmara, ocasião na qual defendera o Padre Cícero e Juazeiro. Otacílio Anselmo
classifica Juazeiro e o Padre Cícero como “[...] apenas o tiro inicial de prodigiosa
campanha de propaganda livresca em torno do velho sacerdote” 459 . Naquele ano, o
Padrinho seria homenageado pelos seus oitenta anos com a inauguração de uma estátua
de bronze. A solenidade se atrasou, no entanto, acontecendo somente em 1925. No longo
período que a precedeu, o médico baiano preparou a chamada “festa da estátua” 460 .
Edmar Morel situa justamente naquela década um período de amplo sucesso da imagem
de Padre Cícero, acrescentando, no entanto, que muitos se aproveitavam dessa fama,
inclusive o jornalista Reis Vidal:
458
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 55-56.
459
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
514.
460
Op. cit., p. 523.
216
461
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
83.
462
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
515.
463
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 106.
464
Id., ibid.
217
[...] ele jamais agiu como Prefeito deste município e sim, como segunda
pessoa do Padre Cícero, sempre que este era Prefeito. Tais períodos de gestão
municipal nunca tiveram arrecadação regular de imposto, nem escrita, nem o
menor melhoramento pago por este Município. Por isto o Dr. Floro fez
compulsoriamente o calçamento das principais ruas desta cidade, sem a menor
formalidade legal, cobrando dos proprietários das casas [...] e pagando aos
empreiteiros apenas a metade das [...] quantias.465
[...] o Padre Cícero não era um fanático [...], como ainda há quem o diga,
porque se o fosse, dispondo do grande prestígio que tinha, teria se aliado a
Antonio Conselheiro que estava em armas no tempo em que o Padre Cícero
recebeu ordens para ir a Roma, defender-se perante o Papa, ou sair do Juazeiro,
sob pena de excomunhão. E de tal aliança, com rebeldia contra a nascente
República e contra as ordens de Roma, que resultaria? Pelo menos inumeráveis
crimes e mortes em todo o nosso Nordeste. E, talvez, em todo o Brasil. Mas tal
não aconteceu.466
É preciso notar que Manoel Dinis, embora não se assuma como seguidor de
Padre Cícero ou mesmo como pessoa que crê no milagre da hóstia — sobre o qual afirma
não estar habilitado a emitir juízo pessoal por não ter presenciado —, assevera que achava
possível ter havido de fato um fenômeno sobrenatural “[...] se admitirmos com a Igreja
Católica, como fenômenos sobrenaturais, o do caso do vigário de Jony, que já citamos e
diversos outros mais ou menos semelhantes”467. Valendo-se da argumentação de que tais
fatos eram considerados verdadeiros no exterior e poderiam ter se passado também no
Brasil, pergunta retoricamente se deveriam ser privilégio de qualquer outro país, para
então concluir: “Pensamos que não, e nem o Brasil é tão santo, que não precise de algum
465
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935], p. 105.
466
Op. cit., p. 23.
467
Op. cit., p. 98.
218
fato extraordinário, para aviventar-lhe a fé, nem tão condenado, que não precise de tais
manifestações”468. Dinis afirma, além disso, acreditar que Padre Cícero poderia estar, ao
mesmo tempo, em dois lugares. Apoiando-se nas argumentações do médium Carmine
Mirabelli, comenta: “Diziam que o Padre tinha o dom de bilocação, mas isto, só por si,
apenas prova uma particularidade individual”. Segue afirmando que Santo Antônio tinha
a mesma habilidade, acrescentando que Padre Cícero teria dado a entender mais de uma
vez que possuía aquele dom, “[...] dizendo que assistiu a mais de um dos combates da
guerra russo-japonesa”469.
Manoel Dinis escreveu uma obra que se situava na fronteira entre a biografia,
a hagiografia e as memórias. Por esse motivo, Edmar Morel o classifica como “[...] um
dos apressados biógrafos do sacerdote, suspeito por ser um dos seus grandes amigos,
escrevendo um livreto para circular unicamente no Cariri...” 470. De fato, era um livro
frágil, tanto do ponto de vista do conteúdo quanto da forma. Foi impresso, inclusive, num
papel pouco resistente, fruto de uma gráfica local. Ele concluiu sua obra indicando
caminhos para o futuro:
468
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935], p. 98.
469
Op. cit., p. 56.
470
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
131.
471
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 262.
472
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
62.
219
grande potencial ao montar pequenas indústrias e fazer surgir uma geração de artistas
especializados. Destaca que em 1946 existiam, em Juazeiro “[...] dezenas de ourivesarias,
ferrarias, fábricas de punhais, de chapéus de palha, de capas para chuva feitas com
maniçoba, de fósforos grosseiros, de sapatos [...], de artigos para montaria, de
mosaicos”473, etc.
Tais aspectos, relacionados ao crescimento urbano e ao potencial econômico
da cidade, eram amplamente discutidos pelos defensores do Padrinho. O Padre Azarias
Sobreira, por exemplo, afirmou: “[...] o misticismo em torno do Padre Cícero, embora
continue muito indelével na alma popular [...], vai aos poucos cedendo espaço às ideias
de renovação material e espiritual”474. A partir desse argumento, defendeu:
Juazeiro já não era o reduto de romeiros que se imaginava. Seu futuro tinha
se adiantado. Se algum misticismo perdurava, não constituía um imã em direção ao
passado. A transformação trazida pela modernidade era, segundo Azarias Sobreira, um
novo fato extraordinário de Juazeiro. Cabe dizer que o crescimento da cidade gerou as
mais diversas impressões. O padre Antônio Gomes de Araujo, em seu Apostolado do
embuste, defendeu que o propalado milagre da hóstia foi, na verdade, uma armação
protagonizada por José Marrocos.
Sob sua perspectiva, Padre Cícero foi também vítima dessa enganação, mas,
ao saber da verdade, teria se calado: “Antonio Luis o censurou pelo fato de não haver
dado divulgação ao embuste de que fora vítima. Defendeu-se, o exprobado, alegando que
a revelação teria entravado o crescimento de Juazeiro”476. Assim, o milagre e a fé no
Padrinho são considerados como elementos centrais para o progresso da recém-nascida
cidade. Por outro lado, Padre Cícero é encarado como uma espécie de marionete, já que
o padre Antônio Gomes defende ter sido José Marrocos “[...] o cérebro do Padre Cícero
473
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
142
474
SOBREIRA, Pe. Azarias. O patriarca de Juazeiro. Petrópolis: Vozes, 1968. p. 289.
475
Op. cit., p. 290.
476
ARAUJO, Antonio Gomes de. Apostolado do Embuste. Revista Itaytera, n. 1, p. 6, Crato, Edições
Itaytera, 1956.
220
Muito discutida, repito, a ação do padre Cícero durante sua vida e depois da
morte. Há os que na larga existência do venerado pastor só enxerguem
gravíssimos defeitos. Faltam-lhes aqueles sentimentos generosos, que geram a
imparcialidade, indispensáveis, portanto, aos que se aventuram a descrever os
sucessos de uma época, ou a traçar a biografia de um homem. Foi ele, o padre
Cícero, o Consolador dos humildes e desprotegidos do Nordeste. Todos os que
o procuravam, desiludidos dos poderosos, nele encontravam invariavelmente
o carinho de uma palavra, ou de um gesto amigo [...]. Foi, na realidade, o
Consolador das gentes abandonadas dos sertões, que sempre tiveram fome e
sede de justiça.480
477
ARAUJO, Antonio Gomes de. Apostolado do Embuste. Revista Itaytera, n. 1, p. 20, Crato, Edições
Itaytera, 1956.
478
ARAUJO, Antonio Gomes de. Apostolado do Embuste. Revista Itaytera, n. 1, p. 21, Crato, Edições
Itaytera, 1956.
479
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Fortaleza: IMPEH, 2011
[1938]. p. 166.
480
Op. cit., p. 166-167.
221
deturpados pela tradição oral”481. Em uma das notas finais do livro, admite que é “[...]
empresa difícil a análise de almas, perscrutar-lhes os recessos mais interiores e ocultos”,
por isso não foi seduzido pela ideia de dissecar a complexa personalidade do patriarca de
Juazeiro. Nota, porém, que em 1938 já eram muitos os biógrafos do Padrinho, pois afirma
que ninguém foi “mais diversamente julgado em vida e depois de morto do que o padre
Cícero. Uns consideram-no digno de figurar o hagiológio cristão e outros julgam-no como
heresiarca sinistro, grotesca caricatura de fanático e megalômano”482. Pinheiro dizia ter
a pretensão de se afastar de tais extremos. Seu intuito era falar sobre um homem que
sobrevivia na estima da gente humilde. O surpreendia o fato de “inda hoje” (em 1938),
continuarem “[...] as visitas ao seu túmulo, na pequenina e modesta igreja de N.S. do
Perpétuo Socorro da cidade que fundou e em que por dilatados anos residiu”483.
Chama a atenção do jornalista cratense — e dos demais intelectuais —, ainda
serem constantes as homenagens feitas pelos afilhados de Padre Cícero, mesmo três anos
após sua morte. Para Pinheiro, essa permanência não denota algo ruim, mas uma
qualidade do sacerdote que permanecia conseguindo mobilizar seus devotos mesmo após
a morte. Era, no entanto, algo surpreendente, inesperado.
Além dos devotos, muitos outros não se esqueceram de Padre Cícero. Os
“amigos de sua memória” viriam a defendê-lo dos muitos ataques sofridos. Segundo Reis
Vidal, “[...] resta-lhe, depois da morte, a justiça dos porvindouros”484. Tristão Romero,
por exemplo, notava que os romeiros continuavam seguindo os conselhos do Padrinho
mesmo após 1934:
481
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Fortaleza: IMPEH, 2011
[1938]. p. 13.
482
Op. cit., p. 149.
483
Op. cit., p. 163.
484
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 69.
485
ROMERO, Tristão. Vida completa do Padre Cícero Romão Batista – Anchieta do século XX.
Juazeiro do Norte, 1950. p. 50.
222
Manoel Dinis, Reis Vidal, Irineu Pinheiro, Tristão Romero e padre Azarias
Sobreira fazem parte de um time que considera Padre Cícero um fator de progresso para
uma região condenada ao abandono. Tais autores elogiam o sacerdote não com base na
discutida santidade de seus atos, mas tomando por princípio a grande e exitosa tarefa
fundar de uma cidade, zelando por ela e por seus habitantes.
Se logo após a morte Padre Cícero recebeu carinhos e afagos de seus
biógrafos amigos, o mesmo não pode ser dito dos trabalhos que vieram a seguir. Parece
que a distância temporal abria espaço não apenas para pesquisas mais densas, mas
também para verdades censuradas e agressões por vezes virulentas. Padre Cícero não foi
poupado. O corpo “esfriara” e já era possível verter sobre ele as mais cortantes palavras.
486
Cabe lembrar que, na época, as biografias faziam bastante sucesso no mercado editorial brasileiro. “Na
década de 1950, a liberdade seria uma conquista política nova no Brasil, o que conformaria, também,
um importante período para a experiência brasileira. Muitas das produções intelectuais expressariam a
necessidade de se pensar sobre a modernização do país em meio às contradições em curso, tentando
romper com os temores vizinhos da guerra, da ditadura e da repressão política. Nesses anos também se
manteria bastante ativo o mercado editor e leitor do gênero biográfico, no Brasil, possivelmente ainda
estimulado pela voga da ‘epidemia biográfica” – expressão atribuída aos escritores Tristão de Athayde
e Osório Borba, sobre os anos 30’.” SILVA, Ana Rosa Clocet da; NICOLAZZI, Fernando; PEREIRA,
Mateus (Org). Contribuições à história da historiografia luso-brasileira. São Paulo: Hucitec Editora
Fapemig, 2013. p. 427.
487
MACHADO, José Teófilo. Duas palavras. Excertos da vida de Padre Cícero. Juazeiro do Norte:
Tipografia São Francisco, 1948. p. 1
488
Os telegramas em questão tratavam da participação e apoio de Padre Cícero a diferentes personagens
políticos em momentos que envolviam revoltas populares.
223
(1930), “[...] o padre estava quase completamente cego de cataratas”489. O livreto tem
apenas 28 páginas, contendo um resumo biográfico e o testamento do sacerdote. Era uma
obra de caráter local, editada em tipografia da própria cidade e patrocinada, entre outros,
por Manoel Dinis, tendo sido publicada dois anos após a divulgação do livro de Edmar
Morel. Os defensores de Padre Cícero, portanto, continuavam vigilantes.
Em janeiro do ano seguinte, 1949, o Correio do Juazeiro apresentou, na
primeira página de sua segunda edição, uma crítica mordaz ao trabalho de Morel. Antes
de se dedicar a perscrutar a vida de Padre Cícero, o biógrafo escreveu sobre Gago
Coutinho e Sacadura Cabral, aviadores portugueses. Também publicou um livro sobre o
explorador Percy Fawcett, e esse foi seu maior sucesso até então. Segundo Chateaubriand,
editor das duas obras490, ambas teriam se esgotado em 30 dias491. A crítica publicada no
jornal de Juazeiro menciona Gago Coutinho e sua vida aventurosa (1941), bem como E
Fawcett não voltou (1944), comparando-os à obra que Edmar Morel publicou sobre o
sacerdote:
489
MACHADO, José Teófilo. Duas palavras. Excertos da vida de Padre Cícero. Juazeiro do Norte:
Tipografia São Francisco, 1948. p. 1.
490
Frederico Chateaubriand era sobrinho do proprietário dos Diários Associados e foi responsável, entre
outras coisas, pela reformulação — e consequente sucesso — da revista O Cruzeiro.
491
CHATEAUBRIAND, Frederico. A época é do repórter. Diário de Pernambuco, Recife, p. 4, 5 abr.
1946.
492
CORNELIO, E. Um repórter apressado. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 1, 23 jan. 1949.
Espedito Cornélio de Miranda era secretário do então prefeito de Juazeiro, Antônio Conserva Feitosa.
Foi radialista na Rádio Iracema, de Juazeiro, e atuou também como professor na Escola Técnica de
Comércio. Foi ainda superintendente da CELCA.
224
493
COOPEREM COM o “Almanaque do Cariri”. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 6, 23 out.
1949.
494
LEITE, Francisco de Assis. Almanaque do Cariri. Cidade: s.n., 1949. p. 242.
495
ROMERO, Tristão. Vida completa do Padre Cícero Romão Batista – Anchieta do século XX.
Juazeiro do Norte, 1950. p. 4.
225
496
ROMERO, Tristão. Vida completa do Padre Cícero Romão Batista – Anchieta do século XX.
Juazeiro do Norte, 1950. p. 6.
497
Conforme lembra Ramos a respeito dos telegramas do município (catalogados por Pelúsio Correia e
repassados a Padre Cícero), que vieram a ser utilizados por alguns biógrafos para justificar a fama de
adivinho de Padre Cícero, é preciso destacar que Edmar Morel tentou desenvolver, a partir de tal fonte
“uma explicação minimamente racional para o prestígio que o padre Cícero gozava. É exatamente por
isso que vários autores vão endossar o ‘segredo dos telegramas’ para ‘revelar a verdade’. Não se admitia
uma via interpretativa que não estivesse pautada nos ‘fatos’, longe de qualquer sentido religioso.”
RAMOS, Francisco Régis Lopes. Papel passado: cartas entre os devotos e o padre Cícero. Fortaleza:
Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 2017-208.
498
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
2.
226
[...] ao primeiro contato com o povo, que o Padre deixara uma cidade
mergulhada nas trevas do analfabetismo e de um profundo misticismo.
Limitou-se, durante longos anos, a proteger a escória do crime. Bandidos
caçados pelas polícias de vários Estados do Nordeste, encontravam em
Juazeiro o refúgio que pediram a Deus, com sombra e água fresca, sob a
proteção de uma batina. Sob o tropel do cangaço, Juazeiro progrediu, porém,
fica cada vez mais pobre no campo da cultura.499
Morel defende que Padre Cícero era fruto de seu meio, além de ter sido
influenciado por aventureiros e aproveitadores. É um dos biógrafos que enxergaram o
local, mesmo depois da morte do sacerdote, como um ignorante e místico reduto de
cangaceiros. Segundo o jornalista, Padre Cícero e o advogado Manoel Dinis conversavam
todas as noites, e o sacerdote contava a ele “[...] todos os seus sonhos e visões, verdadeiras
histórias de Trancoso, contos da Carochinha...”500.
É evidente o caráter de biografia ambiciosa impresso à obra de Morel, que se
inicia com a chegada do Padrinho ao Juazeiro, em 1872, e termina com a sua morte, em
1934. O objetivo do jornalista fortalezense não é dissertar sobre Juazeiro, como fizeram
Alencar Peixoto, Floro Bartolomeu, Lourenço Filho e outros escritores que se dedicaram
ao tema antes da morte do sacerdote. Morel é um dos primeiros escritores de renome a
escrever, a partir de importante documentação, uma biografia sobre Padre Cícero —
segundo Frederico Chateaubriand, “[...] numa linguagem clara e característica para o
povo, o leitor encontrará episódios sensacionais que marcaram a vida do Padre Cícero
[...], como sacerdote, como político e revolucionário” 501. Embora efetivamente utilize
documentos na elaboração de seu livro, Morel não escapa, contudo, à tentação de
construir certas teorias acerca de Juazeiro e seu fundador. A obra escrita por ele traz como
fontes fundamentais os recortes de jornais que Padre Cícero fizera 502 e, por vezes,
comentara.
Os principais eventos colocados em tela por ele são aqueles mesmos que
foram fartamente comentados nos jornais que circularam até então: a emancipação do
município em 1911, a Sedição de Juazeiro em 1914, a passagem de Lampião pela cidade
499
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
1.
500
Op. cit., p. 133.
501
CHATEAUBRIAND, Frederico. A época é do repórter. Diário de Pernambuco, Recife, p. 4, 5 abr.
1946.
502
Para maiores informações sobre o arquivo pessoal de Padre Cícero, Cf. PINHO, Maria de Fátima de
Morais; MENESES, Sônia. No Silêncio Obsequioso, preparo minha própria defesa: Pe. Cícero,
arquivista de si mesmo. Revista Observatório, v. 2, p. 172-196, 2017.
227
503
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O Santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
11.
504
Op. cit., p. 72.
505
Op. cit., p. 73.
228
Já tivemos alguns livros escritos sobre o assunto, como o do sr. Lourenço Filho
e o do sr. Irineu Pinheiro. O primeiro é mais um estudo das condições de vida
do interior e do fenômeno do cangaço, do que mesmo uma biografia. O
segundo é uma justificação da revolução do Cariri, uma espécie de apologia
politica do chefe de cangaceiros, escrita por um homem que tomou partido na
luta, a seu lado. O livro de Edmar Morel se avantaja a ambos, pela riqueza de
detalhes, pela amplitude do retrato, que nos dá do vigário obscuro que
conseguiu, por ser chefe de um bando de fanáticos, constituir-se em um dos
peões do xadrez político nacional.507
506
Conforme recorda Ramos, enquanto a polícia possuía “[...] farto número de carabinas mausers, os
‘rebeldes’ dispunham de reduzida quantidade de rifles [...]. A grande maioria dos combatentes de
Juazeiro não tinha arma de fogo”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. Narrativas em Fogo Cruzado –
Padre Cícero, Lampião e a Guerra de 14. Trajetos Revista de história da UFC, v. 2, n. 3, p. 156,
Fortaleza, 2002.
507
PADRE CÍCERO Romão Batista, etc... Diário de Pernambuco, Recife, p. 2, 11 abr. 1946.
508
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
30.
229
509
Para mais informações sobre o ICC, cf. VIANA, José Italo Bezerra. As muitas artes do Cariri: relações
entre turismo e patrimônio cultural no século XXI. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-
Graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.
510
O jornalista Felipe Teixeira Bueno Caixeta levanta uma curiosa suspeição sobre o livro de Anselmo,
afirmando: “[...] hoje sabe-se que para desmoralizar o Padre Cícero e cessar as romarias em Juazeiro,
ghost writers da Diocese de Crato manipulavam documentos para a imprensa e entregavam livros
completos para publicação por autores como Otacílio Anselmo (Padre Cícero Mito e Realidade),
financiando a impressão e a distribuição de sucessivas tiragens com 20 mil ou mais exemplares.
CAIXETA, Felipe Teixeira Bueno. In: CORDEIRO, Maria Paula Jacinto; PINHEIRO, Mateus;
ALVES, Dosana Dayara de Alcântara (org). Anais do IV Simpósio Simpósio Internacional Padre
Cícero: E... Onde está ele?. Crato: Universidade Regional do Cariri, 2017. p. 201.
511
MOVIMENTO NACIONALISTA Brasileiro. O Semanário, Rio de Janeiro, Semana de 12 a 19 de
dezembro de 1957, p. 8.
512
Sodré, inclusive, lançava também em 1968, pela mesma editora, seu Fundamentos da estética marxista.
513
RÁPIDAS. O Jornal, Rio de Janeiro, p. 14, 3 abr. 1968.
230
Anselmo chega a alegar que toda a literatura que apontava o Padre Cícero
“[...] como semeador de benefícios, pai da pobreza, criador de escolas, orfanatos, etc., é
pura ficção e tem sentido de réplica às duras verdades reveladas pelo Pe. Alencar
Peixoto”517.
Assim como tantos outros, o capitão iniciou seu livro falando sobre a
colonização do Cariri e tentando explicar a composição da população a partir dos pontos
de vista racial e social. Para concluir seu intento, não hesitou em utilizar como referência
uma das mais racistas descrições de Maria de Araújo, elaborada por Peixoto.
O primeiro capítulo de Padre Cícero – Mito e realidade é intitulado “O
Meio”. Como Euclides da Cunha, Anselmo preferiu iniciar sua obra com “A Terra”,
discutindo somente depois “o homem”. Ao final do capítulo inicial, concluiu que o
514
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. p.
s.n.
515
CAVALCANTI, Waldemar. Padre Cícero: o mito e a realidade humana. O Jornal, Rio de Janeiro, p.
2, 7 set. 1968.
516
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
74.
517
Op. cit., p. 211.
231
povoado de Juazeiro havia sido um ponto para o qual convergiram, a partir de 1889, “[...]
os legatários do sebastianismo de Pedra Bonita e alguns remanescentes de Canudos”518,
compreendendo que, dessa forma, teria se cristalizado um fanatismo já presente na região
graças aos penitentes. Afirmou, ainda, que “[...] por mais que se procure negar, o Século
XX encontrou o Juazeiro em condições semelhantes às de Canudos nos meados da última
década do século passado”519. Posteriormente, dedicou-se ao nascimento de Padre Cícero,
não esquecendo de mencionar aspectos genealógicos. Tratou da infância do sacerdote,
bem como de sua estadia no Seminário da Prainha.
Na segunda parte do livro, Anselmo faz uma análise da vida de Padre Cícero
como sacerdote, desde os primeiros passos no ofício. Depois, sobre a trajetória do
Padrinho como fundador de Juazeiro. Anselmo julga que a crença na santidade de Padre
Cícero teria sido mantida e estimulada após a morte do sacerdote graças aos intelectuais
e poetas populares que voltaram a conceber estudos e escritos em geral sobre ele. Para
Anselmo, após a morte, “desfaleceu o chefe político” para fixar-se na memória apenas o
santo. Sua obra parece querer resgatar justamente o padre político, já esquecido pelos
devotos.
Otacílio Anselmo e diversos escritores do mesmo período se propuseram a
produzir análises de caráter supostamente sociológico, fugindo das antigas dicotomias e
disputas entre defensores e acusadores de Padre Cícero, mas os leitores, principalmente
os juazeirenses e aqueles que defendiam a santidade e a dignidade do sacerdote, nunca
deixaram de enquadrar as mais diversas obras nesses dois grupos. Criticá-lo era criticar
Juazeiro e seus habitantes, o que encolerizava as elites locais.
O livro de Otacílio Anselmo foi publicado um ano antes da construção da
grande estátua na Colina do Horto. Em 1969, quando a imagem foi inaugurada, Padre
Cícero – Mito e realidade era a obra mais recente e de maior envergadura sobre o tema.
Numa coluna sobre a inauguração da estátua, a imprensa carioca dissertava sobre Padre
Cícero à luz de Anselmo, afirmando que o sacerdote não fora uma grande personalidade,
mas “[...] uma figura insignificante [...] que adquiriu extraordinário relevo por obra e
graça de condições sociais e paisagem”520. A tese de Anselmo gira em torno da ideia de
que Padre Cícero é um exemplar de seu próprio meio, não podendo se diferenciar dos
humildes fanáticos que o seguiram:
518
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
12.
519
Op. cit., p. 255.
520
CARNEIRO, Glauco. Padim Ciço: a estátua do mito. O Jornal, Rio de Janeiro, p. 5, 30 nov. 1969.
232
O Pe. Cícero não era, certamente, bom pregador; sê-lo-ia, na hipótese de haver-
se dedicado ao cultivo das letras. Contudo, sua voz modulada e firme, em
harmonia com a expressão de um olhar perscrutador, era o bastante para
impressionar a gente simples que o escutava. Voz e olhar – eis o que havia de
excepcional em sua curiosa personalidade.521
Os dons de Padre Cícero seriam naturais. Não eram mérito de sua disciplina e de
seus estudos. Ele não teria sido, como alguns afirmaram, um grande intelectual. De acordo
com Morel, “[...] pasma o fato de não aparecer em parte alguma, um só artigo, um simples
trabalho religioso ou social, um discurso político do patriarca” 522 . Anselmo segue na
mesma linha, defendendo que o sacerdote não se destacara dos demais homens e mulheres
de seu meio. Para ele, o estudante Cícero Romão Batista rendia pouco nas aulas de
Teologia, provavelmente porque privilegiava os estudos de hipnotismo e magnetismo523.
Prossegue dizendo que ele possuía uma “indisposição para o esforço mental”524. Anselmo
atribui tais caracteres a uma índole associada aos habitantes locais. A indisciplina
atribuída ao Padre Cícero seria, assim, uma “tendência ancestral”525. Seu autoritarismo
diante dos seguidores caracterizaria uma certa “violência inata”526. Edmar Morel defendeu
que
Otacílio Anselmo lhe seguiu: “[...] lhe faltavam o equilíbrio mental, a cultura
e a visão de um Ibiapina. Com efeito, para um povo carente de instrução, não fundou
escolas”528. Anteriormente, contudo, vale lembrar a opinião de Reis Vidal, que afirmava
521
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
57.
522
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
126.
523
Op. cit., p. 33.
524
Op. cit., p. 43.
525
Op. cit., p. 44.
526
Op. cit., p. 46.
527
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
125.
528
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
p. 62.
233
529
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 19.
530
PINTO, Luis. Os Coronéis... Diário do Paraná, Curitiba, p. 2, 25 mai. 1972.
531
Sob esse ponto de vista, os intelectuais brasileiros pareciam ignorar a tendência, então em voga, de
compreender o indivíduo como exterior à sociedade, podendo ser estudado pelas suas propriedades
psicológicas inatas. Conforme destaca Marcelino, “[...] o estabelecimento de uma visão de mundo
amparada no indivíduo foi fundamental à constituição da crença na unicidade de uma determinada
trajetória. Esse tipo de concepção, por outro lado, acompanhou o maior distanciamento entre a
historiografia e o processo de composição e biografias do século XIX, tendo em vista a crescente perda
de vigor do sentido de exemplaridade atribuído à escrita da história [...]”.M ARCELINO, Douglas
Attila. O Corpo da Nova República. Funerais presidenciais, representação histórica e imaginário
político. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015. p. 28-29.
234
Ainda hoje, entre a gente simples de consciência ingênua, dos sertões semi-
áridos, do litoral canavieiro e do Cariri, padre Cícero é considerado o profeta
que deve ser obedecido, e a ingenuidade daquela gente lhes permite acreditar
na ‘volta do profeta’. ‘– Ele voltará, os ‘milagres’, as ‘curas’ e as ‘aparições’
estão aí como prova’, pregam os indivíduos pagos pelos comerciantes de
Juazeiro nos sertões e no litoral nordestino. A crença na ressureição do
‘padrinho’ propagou-se enormemente, sendo o messianismo, uma fonte de
renda de Juazeiro do Norte.536
532
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
137.
533
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
504.
534
Id., ibid.
535
SOARES, Douracy. O Cariri - Crato - Juázeiro do Norte. Crato: Faculdade de Filosofia do Crato, 1966.
p. 32
536
Id. ibid.
235
537
“A singularidade dos eventos — principal premissa teórica tanto do historicismo como das teorias do
progresso — não conhece a repetição e, por isso, não permite nenhuma indicação imediata quanto ao
proveito das ações passadas. Neste ponto, a ‘história’ [Geschichte] moderna destronou a velha historia
como magistra vitae. Mas o axioma do princípio da singularidade individual que determina o conceito
moderno de história se refere — estruturalmente falando — menos ao ineditismo efetivo dos eventos
do que à singularidade do conjunto das transformações da modernidade.” KOSELLECK, Reinhart.
Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed.
PUC-Rio, 2006. p. 144.
538
Segundo Koselleck, “A simultaneidade daquilo que não é contemporâneo entre si, de início uma
experiência surgida da expansão para o ultramar, passou a ser o padrão básico para que a crescente
unidade da história universal a partir do século XVIII fosse interpretada como progresso”. Op. cit., p.
293. No caso de Juazeiro, contudo, se trata de um caso em que tempos muito diversos – no país e no
mundo – eram simultâneos. Justamente por isso, a cidade parecia não acompanhar o ritmo do progresso.
236
539
A ESTATUA DO Padre Cicero. A Provincia, Recife, p. 1, 23 nov. 1923.
540
INAUGURA SE no Ceará a estatua do Padre Cícero. O Dia, Curitiba, 27 jan. 1925.
237
Fonte: COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História.
Fortaleza: Edições UFC, 2010 [1923]. p.175.
238
541
Conforme Ramos, na praça Almirante Alexandrino se erguia “[...] um símbolo de modernidade e
civilização construído por Floro Bartholomeu no sentido de redimensionar a imagem de Juazeiro aos
olhos das elites estaduais e nacionais. Sua grande preocupação, enquanto Deputado Federal eleito sob
direta influência de Padre Cícero, era combater os comentários sobre o ‘fanatismo’ e a ‘barbárie’ da
cidade que lhe dava sustentação política. Com efeito, procurava equiparar Juazeiro com representações
do mundo civilizado e sempre que tinha oportunidade realizava discursos na Câmara Federal em defesa
da cidade e do P. Cícero. Assim, mostrava a legitimidade de sua carreira no poder legislativo”. RAMOS,
Francisco Regis Lopes. O verbo encantado. Unijuí: Ijuí, 1998. p. 104.
239
542
A ERECÇÃO da estatua do Padre Cicero. O Sitiá, Quixadá, p. 2, 15 fev. 1935.
543
Provavelmente se tratava de balões. À época, havia fabricantes de fogos que também trabalhavam com
esse tipo de material. Id., ibid.
544
Manoel Correia de Macedo, o padre Macedinho, era filho de Pelúsio Correia de Macêdo, amigo próximo
de Padre Cícero. Foi vigário de Juazeiro, tendo sido nomeado por Dom Quintino para que se
responsabilizasse pela paróquia de Nossa Senhora das Dores. Rompeu com Floro Bartolomeu – e,
consequentemente, com Padre Cícero ‒ em fins de 1924, durante as discussões causadas pelos crimes
de rodagem.
241
[...] o caboclo levou Gavião para mostrar que a estátua do padre Cícero não era
dele: era de Floro... Veja bem doutor – dizia-lhe. A ‘cacunda’ não é do meu
padrinho. É do Floro, que está engabelando o Santo. A cara, veja a cara. É do
Floro! Este malvado pensa que pode mais do que meu padrinho. Tá besta!
Quero ver é na hora de fazer milagre [...].546
No bronze temos um padre Cícero à moda grega, sem a corcunda que o fazia
olhar, constantemente, para o chão, com as suas feições grosseiras, a displasia
plástica acentuada, embora deixasse extravasar no sorriso franco a bondade
transbordante em seu coração de sacerdote para com aquela gente que o
venerava. Por isso, estranhamos a estátua de bronze, na praça principal do
Juazeiro, aonde vai grande número de romeiros. Na terra, fez grandes
benefícios e impôs veneração pelas suas virtudes. Hoje todos falam, naquela
cidade, do Padre Cícero como de um santo de grande poder e não exagerou o
545
Conforme lembra Ramos, “Pe. Cícero raramente é lembrado (ou exaltado) como prefeito, enquanto
Floro recebe com certa frequência esse predicado”. LOPES, Régis. Caldeirão: Estudo histórico sobre
o Beato José Lourenço e suas comunidades. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 49
546
LEMBRANDO O PADRE Cícero. Diário da Tarde, Curitiba, p. 2, 11 jun. 1956.
242
A obra concebida pelo escultor Laurindo Ramos parece ter sido uma das
melhores produções de sua lavra, pois a revista Ilustração Brasileira afirmou, durante
exposição de artes realizada em 1926, que
Laurindo Ramos não está bem representado, os bustos que apresentou não têm
vida e são amaneirados; comparando-os com outras produções do jovem
esculptor deixam muito a desejar. O anno passado, com a estatua do ‘Padre
Cicero’ deixou transparecer muitas esperanças que infelizmente não
appareceram.548
O Salão de Bellas Artes de 1926 pretendia exibir para o público as obras dos
mais importantes artistas brasileiros. A crítica especializada lamentava, no entanto, o fato
de tais artistas seguirem modelos europeus, “[...] enveredando por caminhos bem diversos
dos indicados pelo temperamento tropical, preferindo os atalhos e as modalidades que
nos chegam pelas publicações estrangeiras”549. Deste modo, os trabalhos pouco refletiam
as inspirações pessoais de seus autores. Laurindo Ramos seria um desses talentosos
expositores que se afastaram das brasilidades, criando obras quase sem vida.
Os aspectos estéticos da estátua de bronze foram alvos de apreciação não
apenas da crítica especializada, mas também de jornalistas, como o socialista cearense
Joaquim Pimenta, que publicou no Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), em 1960, um
relato de suas lembranças acerca do Padrinho:
Se eu fosse escultor ainda hoje seria capaz de traçar as linhas mestras em que
se poderia talhar a verdadeira estátua do Padre Cícero, mui diferente da que
existe em Juazeiro: foi quando o observei, após a missa, ainda paramentado,
conversando em pé, meio recostado ao altar, com um grupo humilde de
romeiros. Todo ele estava ali, individualizado, característico, esculpindo o seu
próprio modelo na singeleza de gestos, na familiaridade chã com que os
acolhia; na paciência, na solicitude, no carinho com que ia respondendo a tudo
quanto desejam saber: casos complicados ou simples escrúpulos de
consciência; coisas as mais pueris sobre religião, lavoura, criação, transações
comerciais de êxito incerto; profecias de bons e maus tempos; alveitaria,
medicina, com o seu chernoviz de ervas e orações fortes para todas as
547
OLIVEIRA, José do Patrocinio. Fé e Fanatismo em Juazeiro do Padre Cícero. O Malho, ano 51, n. 156,
p. 23, Rio de Janeiro, janeiro de 1953.
548
O SALÃO de 1926. Ilustração Brasileira, ano 7, n. 73, p. 25, Rio de Janeiro, setembro de 1926.
549
Op. cit., p. 20.
243
Padre Cícero não era um homem público, de toga e livro na mão. Era o
Padrinho, um humilde e receptivo sacerdote que se desdobrava para acolher e auxiliar
seus devotos das mais diferentes maneiras possíveis. Sua representação em bronze,
segundo o jornalista cearense, não o refletia verdadeiramente.
A estátua não parecia familiar e afável, mas imponente e majestosa. Poucos
devotos se inclinavam para admirá-la e faziam um ou dois gestos de oração. Em sua
maioria, os seguidores do Padrinho não enxergavam ali o homem santo que tanto
admiravam. A imagem de bronze não estava tão confortável em seu habitat quanto Padre
Cícero em Juazeiro, com seus pobres afilhados. Os jornais cearenses também deram
notícias sobre a elaboração da escultura, inclusive indicando os aspectos mais dignos de
atenção:
550
Para maiores informações sobre as práticas de cura populares, cf. MEDEIROS, Aline da Silva. Os
Remédios, os livros e os tempos: consumo de remédios e experiência do tempo entre o Lunário
Perpétuo e o Diccionario do Dr. Chernoviz. 2015. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em
História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2015.
551
PIMENTA, Joaquim. Padre Cícero. Diretrizes, Rio de Janeiro, p. 34, fev. 1939.
552
A ESTATUA DO PADRE CICERO. A Ordem, Sobral, p. 2, 12 dez. 1923.
553
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 175.
554
Op. cit., p. 177.
244
No seu ponto mais central há uma bela praça ajardinada, onde um complicado
relógio, inteiramente construído por um mecânico da terra, marca com precisão
absoluta as horas, os mezes, os dias, as phases da lua e até determina para as
senhoras seus dias críticos. Ao pé do relógio, uma estatua do padre com a
legenda: ‘Ao padre Cícero, homenagem do sertão’. Na verdade, deve o
Joazeiro ao seu patrono, sua existência.555
555
BARROS FILHO, Theofilo de. Ainda esperam a ressurreição do Padre Cicero. Diário da Noite, p. 3,
25 nov. 1940.
245
Fonte: Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: a saga do escultor Agostinho Balmes Odísio
discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 140.
556
RAMOS, Francisco Regis Lopes. O verbo encantado. Unijuí: Ijuí, 1998. p. 108.
246
profana. Do mesmo modo, a estátua profana foi julgada com frequência como um foco
de crenças esdrúxulas e fanatismo. Padre Cícero, o político, era também o santo — nessa
simbiose, muitos elementos que diziam respeito à cidade e ao seu fundador se constituíam
e se confundiam.
557
COBIÇADÍSSIMO o dinheiro do Padre Cícero. A Manhã, Rio de Janeiro, p. 2, 29 jun. 1935.
558
MOREL, Edmar. Todo poderoso, senhor absoluto dos sertões e humilhado em Juazeiro. Diário de
Pernambuco, Recife, p. 3, 31 ago. 1944.
247
Estive, por várias vezes, na meca cearense e, na minha derradeira visita, pude
observar sem trabalho: o romeiro desce do caminhão que o traz de muito longe,
do confim dos sertões, e logo se dirige à igreja, isto é, ao túmulo do meu
Padrinho. Ajoelha durante alguns minutos, em seguida tira do bolso da calça
559
MOTA, Alves da. No Roteiro do Cariri. Diário de Pernambuco, Recife, p. 1, 8 fev. 1958.
248
Verifiquei que não somente um romeiro, mas quase todos eles, enfim todos os
habitantes rústicos da cidade lendária, esperam que um milagre devolva ao
mundo a figura estranha do velho sacerdote. Muitos vão até mesmo junto de
sua louza. Levam flores e se não houvesse proibição, levariam presentes,
animaes, comidas, dinheiro para junto das catacumba. Queriam ser os
primeiros a homenagear o ‘padrinho’ quando este, empurrando a tampa de
mármore do sarcófago, surgisse das entranhas da terra para abençoar a
multidão incalculável dos seus devotos e afilhados espalhados por todos os
recantos do imenso nordeste. Quando de sua morte, quase houve revolução no
Juazeiro.
Sem ligar importância ao protesto, os amigos do padre conduziram o caixão
para a igreja e já se dispunham a enterral-o quando a multidão lacrimosa
protestou. Protesto enérgico, a faca de ponta e rifle. De certo, haveria
hecatombe, se a Beata Mocinha e o Beato Lourenço não fizessem uso de boas
maneiras e empregando uma [...] hábil, obtiveram permissão para enterrar o
defunto. Assim mesmo, um rapaz que fechou o nariz ao ilustre insepulto há
dois dias, sofreu o risco de ser lynchado. Os devotos queriam matal-o, dizendo
560
CARVALHO, Jáder. “Prefácio”. In: ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
249
que era mentira, que o corpo não estava exalando mao cheiro. Foi preciso a
policia intervir e garantir a vida do proprietário daquele olfato imprudente...É
assim o Juazeiro. Na singularidade inacreditaval nessa Meca sertaneja. Centro
do maior fanatismo religioso da America Latina, o Joazeiro apresenta aos olhos
do repórter espetáculos tão impressionantes. Lá se colhem narrativas tão
fantásticas, existem motivos tão inéditos que ninguém hesita em considerar
esta cidade como a mais diferente cidade do Brasil.561
561
BARROS FILHO, Theofilo de. Ainda esperam a ressurreição do Padre Cicero. Diário da Noite, Rio de
Janeiro, p. 3, 25 nov. 1940.
562
O IMPONENTE funeral do thaumaturgo. A Noite, Rio de Janeiro, p. 3, 23 jul. 1934.
250
colocada em frente à Capela, em cimento, lembrava um santo vivo, e servia para acalmar
os corações dos fiéis: ali, em frente à Igreja que resguardava o corpo já perecido, Padre
Cícero ainda vivia
Um sujeito não precisa ser considerado santo para que seja homenageado,
após a morte, com uma escultura fúnebre 563 . É curioso notar que Odísio trabalhava
justamente com um público formado pela burguesia que procurava eternizar seus
familiares através da criação de tais imagens. Em Juazeiro, no entanto, o artista encontra
um campo diferente. Poucos são os que possuem capital para a monumentalização do
próprio nome. Muitos, contudo, compram estátuas para rememorar um homem diferente
de todos, a quem a morte supostamente não deveria ter atingido. Odísio continua
trabalhando com um consumo de arte que é “democrático”, mas retrata, repetidamente, o
mesmo homem, distanciando-se do fenômeno de laicização anterior, em que esculturas
sacras lembravam homens comuns; agora, a escultura de um homem lembrava a sua
sacralidade.
O Padrinho já havia feito sua viagem. Desapareceu de Juazeiro. Mas, na
estátua, parecia continuar existindo. Já não era possível visitar o compassivo sacerdote
em sua residência à rua São José, mas os devotos continuavam a procurá-lo em Juazeiro.
Seu espírito passou a habitar toda a cidade, que foi se tornando, aos poucos, um local de
peregrinação e memória. Tomando o pensamento de Aleida Assmann, seria possível
afirmar que, além de local de memória, se configuraria ali um local sagrado.
Assmann desenvolve uma ampla discussão sobre “a memória dos locais”.
Segundo a autora, o uso dessa expressão é confortável porque sugere “[...] uma memória
que se recorda dos locais” e, ao mesmo tempo, uma memória “que está por si só situada
nos locais”, ou seja, também indica a possibilidade de que “[...] os locais possam tornar-
se sujeitos, portadores da recordação e possivelmente dotados de uma memória que
ultrapassa [...] a memória dos seres humanos”564. Ao distinguir os lugares de memória
dos locais de recordação, ela afirma que mesmo quando não possuem intrinsecamente
memórias, tais locais se constituem como espaços culturais de recordação extremamente
significativos. A autora distingue locais geracionais (associados ao parentesco); locais da
recordação, que possuem uma certa magia, sendo muitas vezes considerados sagrados;
563
Na Modernidade há uma “democratização do acesso aos monumentos de eternização da lembrança”.
Cf. MARCELINO, Douglas Attila. Historiografia, morte e imaginário. Estudos sobre racionalidades
e sensibilidades políticas. São Paulo: Alameda, 2017. p. 56.
564
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora Unicamp, 2011. p. 317.
251
Padre Cícero recebia os fiéis em frente à Capela do Socorro. Ele não esperava
pelos romeiros na parte de dentro, como os demais santos, quietos, calmos, tranquilos e
brancos como só numa distante Europa poderiam ser. O Padrinho era como os seus
seguidores: ele sofria sob o sol566. Apesar disso, o oratório que o protegia indicava que
ali não estava um político qualquer, mas um homem santo567.
Renata Marinho Paz transcreve, em sua tese de doutorado, uma circular em
que o então bispo da diocese de Crato, dom Francisco de Assis Pires, orientava os párocos
locais a respeito de um culto que poderia ser iniciar em torno de estátua erigida em 1935
em homenagem ao Padrinho:
565
CARNEIRO, Nelson. Meu padrinho está no céu... Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 5, 28 nov. 1948.
566
Cf. PAZ, Renta Marinho. O santo que fica no sol. Uma leitura etnográfica sobre a devoção ao Padre
Cícero de Juazeiro do Norte. In: Lima, Marinalva Vilar de; Marques, Roberto. (Org.). Estudos
Regionais: limites e possibilidades. Crato: Ceres, 2004.
567
Conforme depoimento da devota Helena Vieira a Francisco Régis Lopes Ramos, “Ninguém reza na
frente de uma estátua assim no meio da praça. Reza quando tem um ‘nincho’. As pessoas rezam,
acendem vela e prestam aquela homenagem assim, pagam promessa sempre quando tem um ‘nincho’
ou uma capelinha, porque aí a gente considera como um oratório. Num é assim? Uma peça assim no
meio da praça é uma estátua. Aquele que tem no Socorro é um santo, não é uma estátua...”. RAMOS,
Francisco Regis Lopes. O verbo encantado. Unijuí: Ijuí, 1998. p.110.
253
O bispo condenava o culto à estátua e lembrava que Padre Cícero não fora
canonizado pela Igreja. O fator agravante da heresia era o fato de haver um nicho ou
oratório protegendo a escultura. Não se sabe ao certo se a circular se refere à estátua
concebida por Odísio e assentada em frente à Capela do Perpétuo Socorro. Embora o
monumento possua uma placa comemorativa indicando inauguração ocorrida em 25 de
dezembro de 1940, parece existir a possibilidade de que dom Fernando se refira, já em
1935, à obra do escultor italiano569. De fato, a data de instalação e inauguração da imagem
é bastante incerta. Segundo anotação em fotografia que consta no acervo de Marconi
Landim, a estátua teria sido instalada em 1939. O mesmo retrato foi publicado na revista
O Cruzeiro:
568
Circular n. 20, de 09 de agosto de 1935 apud PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja
Católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 160-161.
569
Segundo Gilmar de Carvalho, é “[...] curioso que não conste das inscrições quem mandou edificar o
nicho e entronizar a imagem ou vulto de expressão sertaneja, matriz, por sua vez, de toda uma estatutária
que constitui, talvez, a mais florescente das indústrias de conotação religiosa, ainda que, pelos registros,
se possa saber que foi José Geraldo da Cruz, o mesmo líder político que mandou retirar a fotografia do
Padre Cícero da sede da prefeitura, depois da Revolução de 30”. Cf.: CARVALHO, Gilmar de. Madeira
Matriz: cultura e memória. São Paulo: Annablume, 1998. p. 136.
254
Fonte: MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista O Cruzeiro. Rio de
Janeiro, 16 de dezembro de 1944, p. 101.
570
MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 16
de dezembro de 1944, p. 101.
255
pecuarista José Monteiro de Macedo, que também foi prefeito de Juazeiro durante dois
períodos (1947-1948 e 1951-1955); Fausto Guimarães (secretário de Padre Cícero) —
acompanhado de uma filha; o proprietário de engenhos José Bezerra de Melo, que
desempenhou durante trinta e cinco anos a função de tesoureiro da prefeitura de Juazeiro
do Norte; o comerciante Modesto Costa, e o capitalista Odílio Figueiredo, responsável
pela construção da Coluna da Hora571.
É preciso notar que a inscrição no alto da estátua indica sua inauguração em
25 de dezembro de 1940, por José Geraldo da Cruz, embora naquele ano o mandato de
prefeito coubesse ao industrial Antonio Pita. José Geraldo, por sua vez, esteve diversas
vezes à frente da gestão municipal, revezando-se no poder com outros políticos, entre os
períodos de 1930 e 1937, o que pode indicar que a construção da estátua tenha se iniciado
nesse período, sendo inaugurada oficialmente em momento posterior. É preciso destacar
ainda que, no retrato da estátua entre as figuras destacadas de Juazeiro, não aparece
Antonio Pita, prefeito em 1940, quando a imagem supostamente foi inaugurada. Mas é
possível enxergar, conforme foi mencionado, o farmacêutico José Geraldo da Cruz,
prefeito em mandatos anteriores. Esse é, talvez, um indício de que a estátua tenha sido
encomendada por ele, embora a inauguração possa efetivamente ter se dado somente
durante o mandato de seu sucessor. Por fim, a estátua é, sem dúvida, citada na obra de
Irineu Pinheiro, lançada em 1938. O escritor cratense afirma:
571
Segundo Dário Maia Coimbra, Odílio de Figueiredo encomendou a Agostinho Odísio a construção da
Coluna da Hora graças a recursos oriundos do jogo do bicho, então tributado pela prefeitura. Para
maiores informações, Cf. COIMBRA, Dário Maia. Os construtores de Juazeiro. Juazeiro do Norte:
Gráfica Universitária, 2000. p. 167.
572
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Fortaleza: IMPEH, 2011
[1938]. p. 164.
256
Fonte: MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista O Cruzeiro. Rio de
Janeiro, 16 de dezembro de 1944, p.100.
257
Figura 28 – Barraca sob a qual moraria Maria Firmina, uma beata de Padre Cícero
258
Figura 29 – Uma romeira eleva suas preces diante da estátua de Padre Cícero construída
por Odísio
Fonte: MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista O Cruzeiro. Rio de Janeiro,
16 de dezembro de 1944, p. 101.
259
573
MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 16
de dezembro de 1944, p. 101.
574
Conforme Ramos, essa imagem do Padre Cícero está sempre envolta em orações, mas também figura
em meio a “[...] transações comerciais, nas beiradas da Igreja que o negou e no caminho da necrópole”.
RAMOS, Francisco Regis Lopes. O verbo encantado. Unijuí: Ijuí, 1998. p. 110.
260
575
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 18.
261
Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 131.
262
576
PORQUE precisamos... Juazeiro do Norte, p. 5, 25 set. 1949.
577
Jornalista muito admirado por seu estilo e suas ironias. Atuou no Nordeste, diferente de tantos colegas
que transferiram a carreira para a região Sudeste do Brasil.
263
578
FIGUEIREDO, Henrique de. Padre Cicero. Diário de Pernambuco, Recife, p. 9, 8 out. 1954.
579
BARBOSA, J.; ALVES, Coêlho. Avançam ainda os feiticeiros! Correio do Juazeiro, Juazeiro do
Norte, p. 1, 13 mar. 1949.
264
580
FEITICEIRO “bancando” o médico. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 1, 23 out. 1949.
581
Id., ibid.
582
É O QUE conforta. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 6, 6 mar. 1949.
265
583
BARBOSA, Menezes. Taba de Araken. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 2, 16 out. 1949.
584
O INTERVENTOR Moreira Lima imitando Napoleão Bonaparte... Diário Carioca, Rio de Janeiro, p.
6, 3 nov. 1934.
585
CENTENÁRIO do Crato. O Jornal, Rio de Janeiro, p. 2, 28 out. 1952.
266
fotografia, a escultura é identificada como sendo o próprio túmulo do Padrinho, fato que
se repete em numerosas publicações.
Em 1959, foi a vez do Marechal Lott fazer sua visita à estátua e ao túmulo.
Durante esse acontecimento, a imprensa nacional se dividiu. A revista O Cruzeiro fez
uma longa reportagem em que mencionava viagem de Jânio Quadros a Jerusalém e
Nazaré, comparando-a à excursão que naquele momento Lott fazia a Juazeiro. O
jornalista Carlos Castello Branco, em tom elogioso, afirmava que o marechal fora ao
Nordeste para testar a popularidade e treinar o contato com os demais políticos e o povo,
saindo-se bem. Além disso, o Padrinho parecia ter atributos capazes de inspirar o militar:
‒ Ele não veio aqui fazer comício. Veio para uma inauguração da CHESF. Mas
fez muito mal de se ajoelhar e rezar no túmulo do padre Cícero. O povo não
gostou desse exagero do marechal. O povo gosta de uma coisa: que elogiem o
padre Cícero, digam que foi um grande cidadão, um patriarca desta cidade,
homem bom, amigo do povo, de prestígio reconhecido no resto do Brasil, e até
na história do Brasil. Mas ajoelhar-se e rezar, isto só no altar dos santos. Padre
Cícero não é santo da Igreja.587
586
BRANCO, Carlos Castello. Lott sabe falar. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 44, 15 ago. 1959.
587
O POVO é sério. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 9, 10 jun. 1960.
267
nos jornais e revistas do período, inclusive nos anos iniciais da ditadura civil-militar que
se instalou no país.
A escultura de Padre Cícero — assim como o seu túmulo — não eram assunto
para discussões apenas na política nacional. Os boatos e conflitos que envolviam o clero
local também partiam, muitas vezes, do mesmo ponto. Em 1949, por exemplo, boletins
anônimos circulavam na região do Cariri com críticas ao Monsenhor Joviniano Barreto,
que resolveu realizar uma “concentração” com a participação de diversos oradores
engajados em sua defesa. A iniciativa, no entanto, não obteve êxito. Logo depois dessa
tentativa de justificação, novos textos anônimos voltaram a circular, criticando os
oradores e o próprio Monsenhor, que
[...] Não desmentiu que faz campanha contra o amor que os romeiros teem ao
Padre Cicero. Não desmentiu que tem vontade de acabar com a estatua do
Padre Cicero, no Socorro. Não desmentiu que mandou fechar a Capela do
Socorro para não ser celebrada uma missa em homenagem ao Padre Cicero.
[...] Não desmentiu que chamava de Faisca e Tubarão as creanças batizadas
pelo Padre Cicero [...]. Quando o Padre Cicero foi chamado para junto do pai
celeste o Monsenhor Juviniano disse: daqui a 10 anos não se fala mais no nome
do Padre Cicero nem desses tais milagres. 588
588
NOVOS boletins anônimos. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 1, 3 jul. 1949.
268
religioso, especialmente para os romeiros. Até os dias atuais, embora não funcione como
chamariz turístico, recebe diariamente dezenas — ou mesmo centenas — de devotos e
romeiros que ali realizam suas preces, santificam seus pertences e acendem suas velas.
Entre a capela e a rua, entre a fé e a política, Padre Cícero permaneceu vivo, e Juazeiro
prosseguiu sendo sua morada.
589
ROMARIA TEM final trágico. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 6, 5 nov. 1969.
269
590
BORGES, Anderson. O drama das romarias. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 2-3, 20 nov.
1949.
591
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero – A Terra da Mãe de Deus.
Fortaleza: IMEPH, 2008. p. 338.
270
preocupado com o apoio político que perderia junto à população juazeirense, resolveu
construir nas proximidades do local uma grandiosa estátua em homenagem ao Padre
Cícero. A estratégia funcionou. A obra esculpida pelo pernambucano Armando Lacerda
passou a atrair milhares de fiéis anualmente. Conforme lembra Gilmar de Carvalho em
seu Madeira Matriz, a derrubada do Pé de Tambor “[...] serviu muito mais como forma
de erradicar um símbolo que se verticalizava, que era visível e que tinha história, do que
como implantação de uma tecnologia592”. Mauro Sampaio, o prefeito, foi inteligente o
suficiente para notar que precisava corrigir seu ato: resolveu substituir o antigo símbolo
por um novo. O padre passava a ser representado em medidas que correspondiam a sua
real grandeza. A estátua de 27 metros convidava os visitantes a olharem para o céu.
A inauguração da estátua ocorreu em primeiro de novembro, um dia antes
daquele tradicionalmente devotado à lembrança dos mortos. Acreditava-se que o dia de
luto não era apropriado para festejos. A cerimônia foi realizada no centro da cidade, pois
o local em que a estátua fora instalada era ainda de difícil acesso. Compareceram
autoridades e figuras públicas. Oswald Barroso conta que, sob a perspectiva dos devotos,
Um lado da terra ficou penso depois que o Pau de Tambor teve o tronco
apartado do chão. Uma fatia de ar repentina fez balançar a serra do Horto como
a alguém engasgado. Só recuperou o equilíbrio quando as folhas da grande
árvore foram transformadas em chás e as farpas de sua madeira, igualmente,
se consubstanciaram em relíquias, que Maria dos Benditos se pôs a distribuir
entre os devotos [...]. Foi quando o prefeito viu a revolta bater à sua porta.
Pancadas agudas feito choro de cão morto a pauladas. Ele foi até a janela da
frente e pôde observar o mundo se fender em dois, um raio dividindo a terra a
partir do alto do Horto. Era o aviso.593
592
CARVALHO, Gilmar de. Madeira Matriz: Cultura e memória. São Paulo: Annablume, 1998. p. 30.
593
BARROSO, Oswald. Romeiros. Fortaleza: Secretaria de cultura e Turismo; URCA, 1989. p. 35.
594
JUAZEIRO GANHA em novembro estátua gigante de Pe. Cícero. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p.
29, 11 ago. 1969.
271
595
ALCIDES, Jota. Inauguração da estátua do padre Cícero tem presença de 300 mil romeiros do Nordeste.
Diário de Pernambuco, Recife, p. 10, 1 nov. 1969.
272
Padre Cícero e outras que lembrarão o sacerdote, estão sendo realizadas às expensas da
prefeitura e visam um maior fluxo turístico a cidade”596.
Dessa forma, a construção saía da dimensão do “fanatismo” e se instituía
como política pública realizada institucionalmente com um objetivo bem delimitado. A
matéria do jornal carioca não foi a única a destacar o caráter turístico da atração. Ainda
em 1968, o Diário de Pernambuco anunciava que a estátua implantada no cume da serra
seria “[...] circundada por vários jardins, praças, ‘playground’, além de outras atrações”,
constituindo assim um amplo complexo turístico 597 . O Padrinho, que sempre fora
considerado fator de atraso, transformou-se em vetor de progresso.
Um dia após a inauguração, o periódico fortalezense Gazeta de Notícias
anunciava detalhes da cerimônia, enfatizando a presença de importantes autoridades
políticas e militares, bem como do sofisticado aparato tecnológico utilizado na iluminação
da estátua. O jornal deu destaque também à cobertura da imprensa nacional, que se
deslocou até Juazeiro para noticiar o evento:
596
QUADRILHA ARRECADA dinheiro – Estátua do Padre Cícero. A Luta Democrática, Rio de Janeiro,
p. 4, 23 jan. 1969.
597
UMAS e outras. Diário de Pernambuco, Recife, p. 10, 12 mai. 1968.
273
598
MAIS DE 200 mil pessoas assistem inauguração da estátua do Padre Cícero. Gazeta de Notícias,
Fortaleza, 2 de novembro de 1969.
274
Fonte: MOREL, Edmar. Antes de chegar a Juazeiro, distante ainda 300 km, em pleno Rio São Francisco,
já encontro multidões de crentes na santidade do Padre. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 97, 1973.
O articulista afirma, como tantos outros, que diante dos habitantes e visitantes
de Juazeiro seria impossível tecer qualquer crítica ao Padrinho. Reforça, assim, a ideia
de que os devotos eram fanáticos, ignorantes e violentos. A dicotomia entre turistas e
romeiros era nascente, mas se consolidaria ao longo do tempo. Os turistas passariam a ser
valorizados e desejados pelos órgãos municipais e os empresários locais, enquanto os
romeiros e devotos em geral continuavam sendo considerados indesejáveis empecilhos
ao progresso da terra do Padrinho, embora constituíssem o amplo mercado consumidor
de produtos fabricados e comercializados nas ruas de Juazeiro.
A Gazeta de Notícias publicou, em 1 de novembro de 1969, um número
especial voltado somente para a inauguração da estátua em Juazeiro. O jornal cearense
trouxe diversas reportagens sobre a cidade e o monumento, além de inúmeras
propagandas de entes públicos e privados juazeirenses. As longas matérias elogiosas à
iniciativa de Mauro Sampaio dão margem para que se imagine que a prefeitura de
Juazeiro do Norte também foi uma importante financiadora da publicação. Importa
observar que a cidade é apresentada como um centro, primeiramente, de indústria e
comércio, sendo a religião um aspecto meramente secundário:
599
ESTÁTUA DO Padre Cícero com 25 metros de altura. Diário de Pernambuco, Recife, p. 2, 24 out.
1969.
276
vigário da Paróquia de Nossa Senhora das Dores, que ‘Juazeiro pôs o rosário
no pescoço do Nordeste...’.600
600
A CAPITAL da fé. Gazeta de Notícias, Fortaleza, p. 6, 1 nov. 1969.
601
UM SENHOR monumento. Gazeta de Notícias, Fortaleza, p. 2, 1 nov. 1969.
277
mas os turistas, que viriam irrigar a região com suas fartas remunerações, precisavam de
melhores equipamentos de hospedagem602.
João Clímaco Bezerra, em colaboração enviada para diversos jornais do país,
advertia que a obra não seria, de fato, um entretenimento turístico, mas um peculiar
atrativo para aqueles que acreditavam nos milagres de Padre Cícero. Chegava a afirmar,
inclusive, que a crença em torno do Padrinho se fortaleceria graças a essa iniciativa:
602
Para maiores informações sobre o estímulo ao turismo no Cariri, cf. VIANA, José Italo Bezerra. As
muitas artes do Cariri: relações entre turismo e patrimônio cultural no século XXI. 2017. Tese
(Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2017.
603
BEZERRA, João Clímaco. Um apóstolo do Sertão. Diário do Paraná, Curitiba, p. 2, 8 nov. 1969.
278
604
QUEIROZ, Rachel de. A estátua do Padre Cícero. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 4, 9 nov. 1969.
605
MOREL, Edmar. Devassando o arquivo do Padre Cicero – O mais poderoso senhor do Nordeste retardou
uma operação melindrosa por falta de dinheiro. Diário de Pernambuco, Recife, p. 3-10, 10 set. 1944.
279
A igreja “dos Salesianos”, dedicada ao Sagrado Coração, nunca foi plenamente aceita
pelos devotos, ficando até os dias atuais à margem do tradicional itinerário de
peregrinação dos romeiros.
A fé dos devotos, o amor ao Padrinho e a revolta diante da destruição de seus
símbolos, foram os elementos que ensejaram a edificação da grande estátua do Horto.
Walter Barbosa não deixou de notar a contradição: um templo católico que seria,
inicialmente, voltado a uma devoção estimulada pela Igreja Católica em processo de
romanização, deu lugar a um monumento que, se erguido enquanto Padre Cícero era vivo,
transformaria a localidade efetivamente num “reduto de fanáticos”, como temia a diocese:
606
BARBOSA, Walter. Cícero falou... Diário de Pernambuco, p. 10, Recife, 4 nov. 1969.
280
Juazeiro vive, hoje, um dos maiores momentos históricos. Maior, muito maior
do que aquele 11 de janeiro de 1925, quando se erigiu, no coração da Praça
Almirante Alexandrino, o bronze da maior manifestação, já prestada a um
homem, em vida. Aqui, fala a gratidão e o reconhecimento que ainda perdura,
a despeito dos 44 anos que já se foram. Lá, o ilustre homenageado se fazia
presente, pessoalmente. A afetividade e o respeito, a veneração e o desejo de
607
MENEZES, José de Souza. VALOR HISTÓRICO DAS CONSAGRAÇÕES POPULARES – O
MONUMENTO DO PADRE CÍCERO. Gazeta de Notícias, Fortaleza, p. 6, 1 nov. 1969.
281
aparecer podiam atrair desavisados para formar ‘aquele estuário humano que
ali se agitou, avolumou e tomou proporções extraordinárias’. Cá, somente a
amizade, consagração perene do agradecimento. Exaltação viva, apoteótica,
popular, por isso mesmo rica e não financiada, dessa compacta multidão que,
cresce assustadoramente, mesmo depois de 35 anos do desaparecimento de seu
Amigo e Conselheiro [...]. Homenagem do povo juazeirense ao seu Grande
Guia. Resgate de Amizade do Prefeito Mauro Sampaio. Reconhecimento e
Gratidão do povo nordestino. Falará sempre o Monumento da Serra do Horto.
Dirá na rigidez daquelas linhas que passarão muitos sóis até que um dia se
apague do coração desse povo, a verdadeira imagem do patriarca.608
608
BARRETO, Murilo de Sá. Gazeta de Notícias, Fortaleza, p. 5, 1 nov. 1969.
609
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora Unicamp, 2011. p. 347.
282
constituíram, de fato, símbolos da resistência dos mais fracos diante dos mais fortes. Os
mais fortes, finalmente, não impunham símbolos de heróis que deviam ser
homenageados, mas se rendiam ao culto daquele que, por tanto tempo, não pôde ser
cultuado. Conforme afirma Jáder de Carvalho, “Padre Cícero Romão era mortal – e
morreu”. Mas sua morte não era uma morte como outra qualquer, pois “[...] no morto,
começa logo a desfalecer o chefe político, de imediato esquecido no meio místico no qual
se plasmou [...], para fixar-se na memória e no amor de milhões de sertanejos610.
610
CARVALHO, Jáder. “Prefácio”. In: ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
283
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
1934. Não sobreviveu na estátua de bronze da Praça Almirante Alexandrino, como muitos
imaginaram. Sobreviveu nos corações sertanejos, que lhe devotavam velas, flores,
orações e amor. Seu túmulo foi importante objeto de constante visitação, até quando
passou a dividir atenção, por volta de 1935 e 1940, com a estátua elaborada por Agostinho
Balmes Odísio, responsável por enternecer muitos fiéis e gerar diversas práticas de
devoção.
Depois da morte de Padre Cícero, muito se escreveu, não mais sobre o que
seria Juazeiro, mas sobre quem foi o Padrinho. Os jornalistas se surpreendiam com a
permanência do culto ao sacerdote. Houve, de fato, indícios do surgimento de um
messianismo em torno da figura rediviva de Padre Cícero. Todos os sinais de veneração
à sua figura, no entanto, levavam a reprimendas por parte da Igreja Católica. Diversos
escritores se dedicaram a estudar esse fenômeno da permanência.
Entre 1935 e 1969, muitas obras foram lançadas sobre Padre Cícero. Quase
todas possuíam caráter de biografia. As narrativas editadas nesse período geralmente se
encerravam em 1934, como se ali terminasse a história. Intelectuais que conviveram com
o sacerdote ou que estudaram a sua personalidade começaram a fazer balanços sobre as
contribuições – ou prejuízos – que o Padrinho causou aos juazeirenses. Uns advogavam
sua presença como fator de progresso. Outros acreditavam que foi motivo de atraso.
Quase todos, no entanto, se surpreendiam ao notar que a cidade ainda vivia sob os
desígnios de um morto. Curioso é notar que, no âmbito acadêmico, esse período “pós-
Padre Cícero” tenha sido amplamente negligenciado.
Em 1969 foi erguida, na Colina do Horto, a emblemática e gigantesca estátua
do sacerdote. O Padrinho, que vivera humildemente no centro da cidade, agigantava-se
no alto do monte, podendo ser visto a partir de qualquer pedaço do vale do Cariri e
estendendo sua enção sobre toda a região. Antes disso, contudo, já havia se materializado
na escultura entregue por Odísio no final da década de 1930. Entre 1940 e 1969, a imagem
singela de um padre de face rosada e gesto firme e terno foi cultuada por milhares de
devotos, visitada por políticos e reprochada por intelectuais e autoridades religiosas.
A estátua de bronze que figurava desde 1925 na praça Almirante Alexandrino
configurou, por muito tempo, um artificial símbolo de progresso, celebrado entre as
autoridades, mas desdenhado pelos devotos. A estátua da capela, por sua vez,
representava a perseverança de um culto que, embora fosse a causa fundamental de
existência da cidade, continuava envergonhando a muitos. Foi também importante marco
simbólico do município, habilmente utilizado por candidatos que buscavam o apoio dos
285
juazeirenses nas eleições. A estátua da Colina, por fim, delimitava um tempo em que o
sacerdote falecido se tornaria chamariz para o progresso de fato, advindo do turismo e,
consequentemente, do desenvolvimento urbano. A figura perseguida de Padre Cícero,
tanto em vida quanto em morte, transformava-se, mais que nunca, em arma política e
comercial. A partir de 1969, os devotos já deixavam de acreditar no retorno de Padre
Cícero, mas os homens de negócios nunca o quiseram tão vivo.
Ao longo dessa pesquisa, as diversas fontes examinadas me despertaram
para os mais diversos interesses. Lamento não ter conseguido me deter sobre todas as
possibilidades vislumbradas na documentação que consultei. Espero que, futuramente,
outros pesquisadores possam vir a se dedicar sobre aspectos que, embora fossem valiosos,
por questões de viabilidade, tempo e escopo, findaram apenas sendo assinalados no
presente estudo. Por esse motivo, apresento, a seguir, desdobramentos que podem vir a
ser explorados.
Acredito que, a partir da documentação da Fundação Rockefeller, por
exemplo, é possível analisar algumas das teses eugenistas em torno da população que
migrou para Juazeiro. Os viajantes e memorialistas que escreveram sobre a cidade até
1930 também podem apresentar grandes contribuições na discussão desse assunto ainda
ignorado. O racismo que envolve a descrição dos componentes étnicos da população que
buscou Padre Cícero é evidente em grande parte das fontes, embora nunca tenha
encontrado um pesquisador que se dedicasse a estudá-lo.
Do mesmo modo, o protagonismo da mulher trabalhadora — especialmente
da mulher negra — em Juazeiro precisa ser examinado. É um mote ainda inédito. Os
censos do IBGE podem ser fontes iniciais para essa pesquisa, mas é preciso verificar
também os arquivos locais, jornais e demais documentos para perceber a relevância da
participação dessas mulheres na vida social e econômica da cidade.
Os hábitos alimentares da população sertaneja constituem, também, um
objeto pouco investigado. Se considerarmos a fome como principal motivo para a
migração, é urgente compreender não apenas o modo como os nordestinos pobres lidavam
com a miséria, mas principalmente suas experiências — inclusive de classe — em torno
da alimentação, bem como as práticas culinárias e a cultura alimentar da região. Relatos
orais e Censos agropecuários podem vir a ser úteis nesse debate.
As Cortes Celestes do Horto, perseguidas quando Padre Cícero ainda era
vivo, são um tema bastante presente nos jornais de circulação nacional. As histórias em
torno do beato Elias, especificamente, são muitas. Infelizmente, desconheço estudo
286
acerca desse peculiar personagem e dos grupos de beatos reprimidos naquele período. A
destruição das ruínas da igreja do Horto, e o consequente aniquilamento do que já fora
devastado, bem como os sentimentos de tristeza e frustração que giram em torno desse
evento, podem ser também temas ricos para um pesquisador que se preocupe com a
relação entre os desejos de Padre Cícero — até mesmo manifestos em testamento — e o
apagamento de sua obra.
A produção jornalística de Juazeiro, bem como os cordéis lançados após a
morte de Padre Cícero, são fontes ricas em possibilidades, que aqui foram descartadas
porque dariam origem, sem dúvida, a um estudo completamente novo e diverso daquele
que foi inicialmente proposto. Servirão, no entanto, como motes para novos
pesquisadores que vierem a se interessar pelos destinos de Juazeiro após a morte do
sacerdote.
O silêncio em torno da escultura confiada a Agostinho Odísio e colocada à
frente da Capela de Nossa Senhora do Socorro é, também, um tema rico. A estátua de
Odísio, diferentemente das outras, não foi inaugurada. Ela “apareceu”. Surgiu como
milagre. Os jornais não registram nada a seu respeito. Ela não tem idade certa (apresenta
datas contraditórias). Não se sabe quem a encomendou. Não fosse o diário escrito por seu
autor, talvez nem mesmo se soubesse quem era o escultor responsável por tal obra. Esses
mistérios em torno de uma imagem tão querida causam, no mínimo, curiosidade. Seria
importante estudar, ainda, a percepção da Igreja Católica sobre os cultos dedicados a ela
já na década de 1940, poucos anos após a morte do sacerdote, num período em que o clero
ainda buscava apagar a memória de Padre Cícero.
Por fim, os usos políticos da imagem do Padrinho nas campanhas eleitorais
— inclusive nas presidenciais — configuram uma questão que sem dúvida poderia ser
perscrutada por aqueles que se interessam por cultura política. Até os dias atuais, é
comum que candidatos em campanha busquem Juazeiro com o objetivo de pedir a bênção
do Padrinho e, evidentemente, destacar a importância do Nordeste e do Cariri em suas
plataformas eleitorais. Os jornais são fontes que discutem, frequentemente, a percepção
da população local sobre tais eventos, bem como o sucesso ou insucesso da estratégia.
Essa tese pretendeu demonstrar que 1934 não foi o ano do fim da história.
Foi, na verdade, mais um motivo para a santificação popular de Padre Cícero, que passou
a ser visto com olhos mais compreensivos a partir da década de 1960, quando ocorreu o
Concílio Vaticano II. Tomei a morte não como término, mas como ponto de partida da
minha narrativa. Utilizei como fonte principal o caderno de memórias de um homem que
287
não conheceu Juazeiro de Padre Cícero, mas somente Juazeiro sem Padre Cícero. Odísio
chegou nesse momento de suspensão da ordem e não se furtou a escrever sobre o que
viveu e o que não viveu. Sua chegada foi, também, um acontecimento importante do
período. Por esse motivo, utilizei sua obra como meio de acesso à investigação de outros
âmbitos desse estranho momento.
Busquei examinar tanto as perspectivas de pessoas comuns — romeiros,
devotos, trabalhadores — quanto de intelectuais acerca do lutuoso evento. Acontece,
contudo, que os membros da elite, geralmente pertencentes à cultura letrada, como se
sabe, deixam muito mais vestígios de seus modos de pensar que a população iletrada,
detentora somente da oralidade. De toda forma, numa leitura a contrapelo, é possível
perscrutar as diferentes expectativas sobre esse futuro que se imaginava repleto de
progresso ou de atraso.
Boa parte da historiografia sobre Juazeiro se encerra em 1934. Espero que
aqueles que porventura notem esse fato possam enxergar, a partir de agora, novos
caminhos para pesquisa. Padre Cícero não morreu. A lembrança de sua existência,
avivada pela morte, precisa receber a mesma atenção que os estudos sobre a sua trajetória.
O desaparecimento do Padrinho foi apenas o início de um trânsito para a eternidade.
Juazeiro, por outro lado, teve duas emancipações: a primeira se deu em 1911, graças à
ação do sacerdote. E a segunda se deu em 1934, com o seu desaparecimento. Juazeiro e
os romeiros precisaram aprender a independência. E notaram que viver sem Padre Cícero
era continuar vivendo com o Padrinho ainda mais perto, sempre presente nas ruas de uma
terra que se tornou santa. As pesquisas sobre ele e sua cidade permanecem férteis em
possibilidades. Avancemos.
288
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Paulo Estado de São
Paulo
O Jornal Rio de Janeiro – RJ 1952, 1968, 1969 Hemeroteca Digital
Brasileira –
Biblioteca
Nacional
O Malho Rio de Janeiro – RJ 1935 Hemeroteca Digital
Brasileira –
Biblioteca
Nacional
O Nordeste Fortaleza – CE 1934 Hemeroteca da
Biblioteca Pública
Governador
Menezes Pimentel
O Norte João Pessoa – PB 1932 Hemeroteca Digital
Brasileira –
Biblioteca
Nacional
O Observador Rio de Janeiro – RJ 1939 Hemeroteca Digital
Econômico e Brasileira –
Financeiro Biblioteca
Nacional
O Paiz Rio de Janeiro – RJ 1924, 1934 Hemeroteca Digital
Brasileira –
Biblioteca
Nacional
O Povo Fortaleza – CE 1925, 1931, 1934, Arquivo Digital –
1960 O Povo
O Semanário Rio de Janeiro – RJ 1957 Hemeroteca Digital
Brasileira –
Biblioteca
Nacional
O Sitiá Quixadá – CE 1935 Hemeroteca Digital
Brasileira –
Biblioteca
Nacional
Observer-Reporter Washington – DC 1973 Google News
(EUA) Archive
Revista da Semana Rio de Janeiro – RJ 1941 Hemeroteca Digital
– Número Especial Brasileira –
de Urbanismo Biblioteca
Nacional
Revista da Rio de Janeiro – RJ 1926-1927 Hemeroteca Digital
Sociedade de Brasileira –
Geographia do Rio Biblioteca
de Janeiro Nacional
299
Jornais e revistas
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MOREL, Edmar. Todo poderoso, senhor absoluto dos sertões e humilhado em Juazeiro.
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Outras fontes
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em: <http://blogdeassuncaogoncalves.blogspot. com.br/p/textos.html>. Acesso em: 18
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