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Tese Juazeiro Sem Padre Cicero

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

AMANDA TEIXEIRA DA SILVA

JUAZEIRO SEM PADRE CÍCERO:


UMA CIDADE QUE NÃO SE ESQUECEU (1934-1969)

FORTALEZA
2018
AMANDA TEIXEIRA DA SILVA

JUAZEIRO SEM PADRE CÍCERO:


UMA CIDADE QUE NÃO SE ESQUECEU (1934-1969)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade
Federal do Ceará, como parte dos
requisitos para obtenção do título de
Doutor em História. Área de
concentração: História Social.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Régis
Lopes Ramos.

FORTALEZA
2018
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

S578j Silva, Amanda Teixeira da.


Juazeiro sem Padre Cícero : uma cidade que não se esqueceu (1934-1969) / Amanda Teixeira da Silva. –
2018.
298 f. : il.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós -Graduação
em História, Fortaleza, 2018.
Orientação: Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos.

1. Juazeiro do Norte. 2. Padre Cícero. 3. Escrita. 4. Memória. 5. Temporalidade. I. Título.


CDD 900
AMANDA TEIXEIRA DA SILVA

JUAZEIRO SEM PADRE CÍCERO:


UMA CIDADE QUE NÃO SE ESQUECEU (1934-1969)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade
Federal do Ceará, como parte dos
requisitos para obtenção do título de
Doutor em História. Área de
concentração: História Social.

Aprovada em ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Ana Paula Sampaio Caldeira
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Douglas Attila Marcelino
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

______________________________________________________________________
Prof. ª Dra. Martine Suzanne Kunz
Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Meize Regina de Lucena Lucas
Universidade Federal do Ceará (UFC)
A Luiz Heitor, meu pequeno milagre.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, ao meu orientador, Francisco Régis Lopes Ramos.


Quando iniciei o doutorado, não o conhecia. Admirava sua obra acadêmica, e isso foi o
suficiente para que, após a aprovação na seleção de doutorado, eu buscasse a sua
supervisão. Foi uma grata surpresa descobrir que, além de ser um grande profissional, ele
possui muita empatia e generosidade. Todas as qualidades desse trabalho derivam das
numerosas leituras, correções, indicações, orientações e insights que ele me ofereceu. Os
defeitos, contudo, são frutos de minhas próprias debilidades.
Os colegas que trabalharam comigo na Universidade Regional do Cariri
foram extremamente compreensivos com os meus deslocamentos semanais para
Fortaleza, ajustando os horários para que eu pudesse lecionar no Cariri e cursar as
disciplinas da pós-graduação na capital sem prejuízo a nenhuma das atividades. Agradeço
a todos eles, mas devo meu reconhecimento especial a Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez,
que, como coordenadora, fez o possível para que essa grande aventura desse certo.
Agradeço aos professores que me acompanharam ao longo das disciplinas e
que contribuíram, com suas observações e conselhos, para os ajustes nos rumos desse
trabalho. Eurípedes Funes, Antônio Luiz Macêdo e Clóvis Ramiro Jucá: nossos diálogos
foram essenciais. Minha gratidão especial ao professor Gilberto Ramos, sempre arguto,
correto e bondoso. As conversas travadas com os colegas de turma também foram
extremamente importantes para a concretização dessa pesquisa. Por isso, sou grata a
Adriel Fontenele, Dhenis Maciel, Raquel Caminha, Reginaldo Alves, Walter Braga, Eylo
Fagner, Hamilton Rodrigues e Idelmar Júnior.
Devo também o meu “muito obrigada” às professoras que contribuíram com
novas e valiosas ideias durante o exame de qualificação, Martine Suzanne Kunz e Meize
Regina de Lucena Lucas. Espero ter conseguido incorporar seus importantes conselhos
na versão definitiva deste trabalho. Agradeço, por fim, à secretária do programa, Luciana
Cavalcante, por sua permanente diligência.
Ao longo do processo de pesquisa, foi essencial o auxílio dos profissionais de
arquivos os quais visitei. Agradeço ao padre Roserlândio e a Tânia Peixoto, pela
hospitalidade no Departamento Histórico Diocesano Padre Antonio Gomes de Araújo.
Ao bibliotecário Emanuel G. Ferreira Guedes, da Hemeroteca da Biblioteca Mário de
Andrade, agradeço pela solicitude e pelo cuidado em buscar e disponibilizar periódicos
referentes ao meu tema de pesquisa. Agradeço também aos servidores da
Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel, que me receberam, mesmo sem
agendamento, inúmeras vezes. Por fim, agradeço a Victor Emmanuel Farias Gomes, por
ter me auxiliado nas consultas ao jornal O Estado de São Paulo.
Devo aos meus colegas de trabalho na Universidade Federal do Cariri –
UFCA – um grande agradecimento, por terem tornado possível meu afastamento durante
parte do curso de doutorado. Sem esse tempo tudo teria se tornado mais difícil. Agradeço
sobretudo a Jucieldo Alexandre, Priscilla Queiroz, Rodrigo Capistrano e João Adolfo
Ribeiro, pela amizade e por terem tornado o processo de escrita menos desesperador.
Ao longo desses anos, a parceria dos amigos foi fundamental. Agradeço ao
Italo Bezerra, pelo acolhimento, pelos conselhos, pela ajuda prática em tudo que foi
necessário e pelos muitos cafés. Agradeço a Patrícia Alcântara, Darlan Reis, Simone
Pereira, Leonardo Cândido Rolim e Aryana Santos, por terem, muitas vezes, me ajudado
mesmo sem que notassem. A Ana Lígia Casimiro, Elandia Duarte e Elvis Pinheiro sou
grata por muitas vezes terem me tirado das amarras da vida acadêmica, jogando-me no
meio do mundo.
Agradeço à minha família, sempre presente e companheira. Sem o apoio de
meus pais, José Pequeno e Maria Rosicleide, esse trabalho não teria sido impossível, mas
seria, sem dúvida, muito mais difícil. Obrigada ao meu irmão Pedro, que sempre me
ajudou no vai e vem da vida. Aos tios, tias, avós, sogra, sogro, cunhada: cada um teve sua
participação na realização desse intento. A tia Fanka, contudo, precisa ser especialmente
lembrada, pois cuidou com todo o carinho do meu filho para que eu pudesse me dedicar
aos últimos capítulos da tese.
Ao meu companheiro, Sávio Samuel, pelo amor e apoio constante. Por estar
ao meu lado, de fato, em todos os passos importantes que dei nos últimos cinco anos. À
minha enteada, Clarice, pela alegria e pelo estímulo. Ao perguntar, a cada dia, quantas
páginas eu havia escrito, ela me fazia perceber que – todos os dias – era necessário
escrever. Ao meu filho, Luiz Heitor, por dar sentido a tudo.
Por fim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – CAPES –, por ter financiado parte desta pesquisa.
RESUMO

O objetivo central deste estudo é investigar, a partir dos vestígios da memória, as


experiências e expectativas sobre o destino da cidade de Juazeiro do Norte após o
desaparecimento de seu fundador, Padre Cícero, em 1934. Juazeiro, após a morte do
sacerdote, estabeleceu-se como um local de recordação, por meio de mudanças e
permanências no jogo das memórias. Jornais e revistas de circulação nacional, bem como
escritas que enfocavam a cidade e a biografia de Padre Cícero, foram as principais fontes
utilizadas no trabalho em tela. O caderno de memórias do escultor Agostinho Balmes
Odísio, especificamente, tornou-se um documento fundamental, por discorrer sobre os
atos, gestos e costumes de devotos, romeiros e trabalhadores. Por fim, foi examinada a
importância dos monumentos edificados em homenagem ao Padrinho. Embora tenham
sido concebidos e instalados com o objetivo de servir a interesses muito específicos, cada
um deles contribuiu para indicar importantes locais de Juazeiro e da trajetória
do sacerdote, sendo enxergados a partir de diferentes perspectivas pelos devotos e
romeiros que visitavam o Padre Cícero não mais em carne e osso, mas em espírito, bronze
e concreto. Para o desenvolvimento deste trabalho, foram muito caras as reflexões
ensejadas por Reinhart Koselleck, teórico que recomenda especial atenção para a
construção histórica do tempo.

Palavras-chave: Juazeiro do Norte. Padre Cícero. Escrita. Memória. Temporalidade.


ABSTRACT

The central objective of this study is to investigate, from the vestiges of memory, the
experiences and expectations about the fate of the city of Juazeiro do Norte after the
disappearance of its founder, Father Cícero, in 1934. Juazeiro, after the priest's death,
established itself as a place of remembrance, through changes and permanences in the
play of memories. Newspapers and magazines of national circulation, as well as writings
focused on the city and the biography of Padre Cícero, were the main sources used in the
work at screen. The notebook of memories from the sculptor Agostinho Balmes Odísio,
specifically, became a fundamental document, for discoursing on the acts, gestures and
customs of devotees, pilgrims and workers. Finally, the importance of the monuments
built in honor of Padrinho was examined. Although they were conceived and installed
with the purpose of serving very specific interests, each of them contributed to indicate
important places of Juazeiro and the trajectory of the priest, being seen from different
perspectives by devotees and pilgrims who visited Padre Cícero no more in flesh and
blood, but in spirit, bronze, and concrete. For the development of this work, the reflections
provided by Reinhart Koselleck, a theorist who recommends special attention to the
historical construction of time, were very relevant.

Keywords: Juazeiro do Norte. Father Cicero. Writing. Memory. Temporality.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – O centro de Juazeiro visto pela Kodak de Agostinho Balmes Odísio ........ 103
Figura 2 – Retrato de Padre Cícero afixado ao caderno de memórias de Odísio ......... 107
Figura 3 – O Jegue Mucuba .......................................................................................... 108
Figura 4 – Fachada da casa em que Odísio residiu quando chegou em Juazeiro ......... 109
Figura 5 – A rua em que Padre Cícero viveu ............................................................... 110
Figura 6 – A última casa em que Padre Cícero morou ................................................. 111
Figura 7 – A Capela do Perpétuo Socorro .................................................................... 111
Figura 8 – Casa de santos Padre Cícero ....................................................................... 112
Figura 9 – Cacimba Municipal ..................................................................................... 114
Figura 10 – Fornecedor de água ................................................................................... 115
Figura 11 – Transporte de água .................................................................................... 115
Figura 12 - Uma pedinte ............................................................................................... 116
Figura 13 – Venda de esteiras na feira semanal ........................................................... 121
Figura 14 – Comércio de rapadura na feira .................................................................. 121
Figura 15 – Fotografia de Romualdo............................................................................ 131
Figura 16 – Odísio e Romualdo saindo para vender imagens do Padrinho ................. 132
Figura 17 – Romualdo e o almoço................................................................................ 133
Figura 18 – Odísio carregando uma espingarda ........................................................... 134
Figura 29 – Um romeiro que adquiriu busto de Padre Cícero feito por Odísio ........... 135
Figura 20 – Romualdo e a gata Benvinda..................................................................... 136
Figura 21 – Romualdo rezando antes do almoço ......................................................... 138
Figura 22 – A “Sopa” ................................................................................................... 163
Figura 23 – O escultor Laurindo Ramos e sua obra em bronze ................................... 237
Figura 24 – Odísio, a estátua de bronze e a Coluna da Hora ........................................ 245
Figura 25 – Resultado da estátua esculpida por Odísio ................................................ 254
Figura 26 – Romeiros oram e beatos esmolam em Juazeiro ........................................ 256
Figura 27 – Espada que teria pertencido a Floro Bartolomeu. Segundo a reportagem,
Padre Cícero teria abençoado a arma ........................................................................... 257
Figura 28 – Barraca sob a qual moraria Maria Firmina, uma beata de Padre Cícero... 257
Figura 29 – Uma romeira eleva suas preces diante da estátua de Padre Cícero construída
por Odísio ..................................................................................................................... 258
Figura 30 – A estátua de Padre Cícero elaborada por Odísio, ainda em barro ............. 261
Figura 31 – A estátua de Padre Cícero no Horto .......................................................... 274
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12
2 A MORTE DE PADRE CÍCERO: PROBLEMA E SOLUÇÃO .......................... 24
2.1 Um problema: o fim de Juazeiro .......................................................................... 24
2.2 Entre o problema e a solução: o passado e o futuro ............................................ 36
2.3 Uma solução: para o corpo da escultura e do escultor ........................................ 50
3 JUAZEIRO AINDA SERÁ CANUDOS? ................................................................ 61
3.1 O peso do passado ................................................................................................... 61
3.2 A (des)confiança do futuro .................................................................................... 72
3.3 A nova Canudos ...................................................................................................... 83
4 A VIDA APÓS A MORTE ..................................................................................... 101
4.1 A rua e a casa ........................................................................................................ 101
4.2 Cotidiano, lazer e trabalho .................................................................................. 120
4.3 Mulher, negra, trabalhadora e juazeirense ........................................................ 141
4.4 O alimento e a fome .............................................................................................. 147
5 LUGAR DE MEMÓRIA OU LOCAL DE RECORDAÇÃO?............................ 158
5.1 Entre a piedade e a fama: o lugar de Juazeiro.................................................. 158
5.2 Entre a memória e a recordação: a escrita de Odísio ....................................... 170
5.3 Entre a vida e a morte: Padre Cícero encadernado .......................................... 188
6 JUAZEIRO DEPOIS DO PADRE CÍCERO ........................................................ 199
6.1 Amigos e inimigos da memória de Padre Cícero ............................................... 199
6.2 O Juazeiro de Padre Cícero ................................................................................. 207
6.3 PADRE CÍCERO DE JUAZEIRO ..................................................................... 222
7 PADRE CÍCERO NA PRAÇA, NA CAPELA E NO ALTO DA COLINA....... 236
7. 1 Padre Cícero na praça ......................................................................................... 236
7.2 Padre Cícero na capela......................................................................................... 246
7.3 Padre Cícero no alto da colina............................................................................. 268
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 283
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 288
12

1 INTRODUÇÃO

Em palestra proferida durante o V Simpósio Internacional do Padre Cícero,


realizado em Juazeiro do Norte em março de 2017, Dona Rosinha do Horto, romeira e
devota do sacerdote, afirmou: “Ele não chamava ninguém para o Juazeiro. O povo é que
pedia a ele”. Ela se referia às súplicas que tantos sertanejos — como ela e sua família —
fizeram para que o Padrinho permitisse que passassem a residir na cidade. Esse
movimento migratório, segundo a devota, não era fruto de um convite, mas de um desejo
íntimo daqueles que tinham fé nos milagres atribuídos ao sacerdote. O papel requerido –
e desempenhado – pelo sacerdote no acolhimento desses romeiros, no entanto, não era
insignificante. Segundo Dona Rosinha, ele teria advertido: “Quem vier morar no Juazeiro,
tenha paciência, que a dificuldade é muita”. Padre Cícero não prometia o paraíso terreal.
Era um local de muitas dificuldades, onde os devotos precisariam construir novas
trajetórias de vida, auxiliados, sempre que possível, pelos gestos e conselhos do querido
Padrinho, responsável por providenciar terras para o trabalho, casas para a moradia,
alimento para a fome e conselhos para as almas sedentas de consolo.
Sou, como Dona Rosinha do Horto e tantos outros habitantes de Juazeiro,
uma migrante. Tive um bisavô romeiro que se aconselhava com Padre Cícero e chegou a
transformar um de seus filhos em afilhado do sacerdote. Filha de cearenses, vivi em São
Paulo de 1987 a 1999, quando me transferi com minha família para o Ceará. Meus pais
eram filhos de Cedro (CE) e viveram na capital paulista durante muitos anos, como tantos
outros nordestinos. Em 1999, graças a novas oportunidades de emprego e à qualidade de
vida dos municípios do Cariri, resolveram voltar para o Ceará, fugindo da região Centro-
Sul e se instalando mais perto da terra do Padrinho. Minha história é a história de
inúmeros nordestinos que, tendo origem em regiões mais áridas e pobres, enxergam no
Padre Cícero — vivo ou morto — um fator de atração e progresso para Juazeiro.
Juazeiro do Norte é, atualmente, uma cidade de médio porte. Conta com mais
de 260.000 moradores e possui um modesto distrito industrial. É a cidade mais populosa
da Região Metropolitana do Cariri, recebendo não apenas romeiros e turistas que buscam
conhecer a terra do Padrinho, mas também visitantes que buscam os seus serviços. O
município se destaca na região por possuir um importante centro comercial, além de
estabelecimentos de lazer, instituições de ensino superior e atendimento médico-
hospitalar de média complexidade. O forasteiro, ao chegar à região, encontra dificuldades
13

para distinguir Juazeiro dos dois municípios vizinhos e conurbados, Crato e Barbalha.
Para aquele que vem de fora, toda a região parece uma cidade só. Nem sempre, contudo,
foi assim.
Juazeiro era apenas um povoado da cidade de Crato quando lá chegou, em
1872, um capelão chamado Cicero Romão. O Padre Cícero viveria ali, de maneira
discreta, até 1889, quando ocorreu o chamado milagre da hóstia. A beata Maria de Araújo,
ao receber a comunhão das mãos do sacerdote, teria percebido que a partícula sagrada se
transmutara em sangue. A partir daí, começaram a ser realizadas grandes romarias à
localidade. As pessoas desejavam adorar o sangue precioso e conhecer o santo padre.
A Igreja Católica, que à época passava por um processo de disciplinarização,
negou os milagres e puniu Padre Cícero pela divulgação do fenômeno. Com o tempo, a
figura da beata Maria de Araújo, morta em janeiro de 1914, eclipsou-se, enquanto a
imagem do sacerdote foi ganhando maior dimensão. Devotos procuravam o lugarejo não
mais por causa do sangue derramado pela beata, mas pela santidade do Padrinho. Devido
a conflitos políticos, Juazeiro se emancipou, tornando-se cidade em 1911, tendo Padre
Cícero como seu primeiro prefeito. A partir desse momento, despontava o padre político,
que não deixava de ser o padre santo e conselheiro. Ele viveria até 1934, quando tornou
órfã uma cidade que contava com mais de trinta mil habitantes. Sua ausência foi encarada
de maneiras diferentes pelos devotos, romeiros e intelectuais do Nordeste e do Brasil. É
sobre essas diversas expectativas geradas pela morte do Padrinho que se dedica o trabalho
aqui apresentado. Em 1934 começa a nossa história, que fará recuos e avanços no tempo
quando necessário.
Ao se debruçar sobre a bibliografia a respeito de Juazeiro, o pesquisador
perceberá que boa parte dos livros de memórias, das biografias e dos estudos referentes à
cidade e ao seu fundador têm fim em 1934. A impressão é a de que, com a morte de Padre
Cícero, o Juazeiro deixaria de existir. Procuro perceber, por isso, o que imaginavam os
habitantes de Juazeiro sobre o futuro da cidade após a morte de seu Padrinho. Busco
compreender quais eram os temores e as esperanças relacionados a esse inevitável evento.
Dedico-me, também, a tentar demonstrar como a cidade habitada, buscada e amada por
causa de um santo vivo se transformou na cidade visitada apesar de o Padre Cícero estar
morto.
A ideia dessa pesquisa se consolidou a partir do meu encontro, em 2013, com
o caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio, intitulado Memórias sobre Juazeiro
do Padre Cícero. O que me chamou atenção nesse manuscrito, redigido em 1935 e
14

publicado pelo Museu do Ceará em 2006, foi o fato de ele se deter sobre um período
pouco mencionado na história de Juazeiro — aquele que diz respeito ao momento
posterior à morte de Padre Cícero. Além disso, entusiasmava-me o fato de se tratar de
uma obra de caráter memorialístico, autobiográfico. Nesse sentido, era uma produção que
se distinguia de tantas outras que, graças à ampla circulação, ajudaram a fundar os olhares
e interpretações concernentes à cidade.
Para muitos jornalistas da década de 1930, o desaparecimento de Padre Cícero
representava um problema. Seria um problema econômico que levaria à fuga de mão de
obra do Nordeste para o Sudeste e o Norte, causado pelos possíveis acessos de fanatismo
— os quais já não poderiam ser aplacados pelo Padre Cícero — ou um problema político,
já que os devotos, romeiros e retirantes ficavam então sem o apoio espiritual, moral e
material do sacerdote. Para os romeiros, por outro lado, o desaparecimento do Padrinho
significava o fim de uma relação física com um santo que falava a língua dos pobres e
nunca se negava a ouvir e auxiliar os necessitados.
Diferentemente dos jornalistas e escritores daquele período, o escultor
italiano Agostinho Balmes Odísio viu em Juazeiro sem o Padre Cícero não um risco ou
um problema, mas uma grande oportunidade. Ele sabia que o santo morto poderia ser
mais lucrativo do que um padre vivo. Além de esculpir e vender imagens do Padrinho,
imaginou que a mudança para o Ceará seria útil para curar seu reumatismo e atenuar os
problemas do coração. Seu espírito empreendedor o conduziu, já no outono da vida, até
aquela distante e extravagante cidade.
Agostinho Balmes Odísio nasceu em Turim, na Itália. Dedicou-se ao curso de
Belas Artes em sua cidade natal e em Roma. Em 1912, conquistou uma bolsa de estudos
e partiu para a França com o objetivo de estudar Artes e Arquitetura em Paris, onde
chegou a ser aluno de Auguste Rodin. Na Europa, esculpiu bustos e nichos. Trabalhou
em obras sacras. Foi também amante de outras artes: escreveu poemas e peças de teatro.
Em 1913, resolveu partir rumo à América do Sul, decidido a encontrar seu irmão na
promissora cidade de Buenos Aires. Aos 32 anos, órfão de pai há muito tempo, deixou
em terras italianas apenas um elo: sua mãe, Maria Balmes Odísio.
Depois de ondular por muitos dias no mar, o navio que levava Agostinho
aportou em Santos. A viagem demoraria a prosseguir para a Argentina, e o escultor
resolveu buscar hospedagem no Convento de São Bento. Estando há algum tempo em
São Paulo, recebeu a visita de Natale Frateschi, dono de uma marmoraria localizada na
pequena cidade de Franca. O empresário procurava os serviços de um escultor que
15

pudesse lavrar o busto do Coronel Francisco Martins. Agostinho resolveu abraçar a


oportunidade1.
Durante sua estadia em São Paulo, Odísio começou a nutrir interesse por
Dosolina, uma das filhas de Frateschi. Logo casou-se com ela e fixou residência no Brasil.
O sogro do escultor possuía então uma empresa dedicada à arte funerária, e construía
túmulos, capelas, estátuas e escadas de mármore. Além disso, tinha “[...] grande
sortimento e depósito de corôas, grinaldas, flores e todos os pormenores funerários”2.
Administrava duas lojas: a sede ficava em Franca, no interior de São Paulo, e a filial se
localizava no em Minas Gerais, onde Odísio passaria a morar com o objetivo de cuidar
dos negócios da família. Além de ganhar um jovem administrador e escultor, a empresa
foi dotada de novo nome, passando a se chamar Marmoraria e Artes Plásticas Odísio e
Frateschi Ltda.
Odísio trabalhou, entre 1913 e 1934, como produtor de obras sacras para
igrejas de São Paulo e Minas Gerais. Também se dedicou à elaboração de bustos e outras
estátuas honoríficas, assim como à concepção de túmulos para os cemitérios locais. Aos
53 anos de idade, em 1934, devido a problemas de saúde e à oportunidade de novo
mercado de trabalho propiciada pela morte de Padre Cícero, tomou a decisão iniciar uma
nova trajetória profissional em Juazeiro do Norte. Chegando à cidade, escreveu um
caderno de memórias sobre o singular cotidiano local, afixando também fotografias
acerca dos mais diversos aspectos do lugar. Odísio abriu, assim, uma fresta na porta do
tempo, permitindo que espiássemos, através de seus olhos, o dia a dia de Juazeiro do
Norte em 1935.
É preciso notar que a Juazeiro de 1935 e a Juazeiro de Odísio são coisas
diferentes. Aqui, o objetivo é estudar as diversas Juazeiros existentes (e imaginadas) nos
textos e esculturas que tiveram, entre 1934 e 1969, Padre Cícero como inspiração. O
caderno de memórias de um escultor estrangeiro se insere nesse conjunto de obras acerca
de uma cidade que parecia estranha ao intelectual brasileiro do período. Um aspecto

1
É relevante destacar a observação de Sabrina Costa acerca da trajetória de Odísio, que “[...] por motivos
desconhecidos, decidiu morar na Argentina em 1913, um ano depois de ter conquistado e usufruído uma
bolsa de estudos em Paris, onde teria sido discípulo de Auguste Rodin. Essa informação, além de carecer
de comprovação, é um tanto duvidosa, uma vez que dificilmente um escultor europeu com ambições
artísticas que tivesse sido discípulo de Rodin trocaria Paris, principal centro da vanguarda artística
ocidental da época, por um país na América Latina”. COSTA, Sabrina Albuquerque Araújo. O Artista
Zenon Barreto e a arte pública na cidade de Fortaleza. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-
Graduação em Artes. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. p. 63.
2
SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio
discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 58.
16

excepcional de sua narrativa, contudo, é aquele que remete à etnografia: uma descrição
densa e participativa de uma realidade que até então lhe era desconhecida.
As narrativas de Odísio conseguem dar visibilidade a uma população que,
apesar de constituir o coração da cidade, era amplamente discriminada por grande parte
dos intelectuais. Seu caderno de memórias foi essencial para o desenvolvimento desse
trabalho, pois abordou de perto temas bastante negligenciados a respeito da terra do
Padrinho.
Após iniciar a pesquisa, notei que as afirmações de Odísio sobre o cotidiano
de Juazeiro não representavam apenas sua própria experiência como habitante da cidade,
mas diziam respeito também às coisas que ouviu de outros moradores, assim como às
leituras que fez sobre a cidade e seu fundador. Desse modo, comecei a me interessar por
escritos acerca da “Meca Sertaneja” que também remetessem à discussão sobre aquele
delicado período de luto e pudessem ser cotejados com as informações concedidas por
Odísio.
Examinei matérias jornalísticas de grande circulação, obras de literatura e
estudos que pretenderam explicar quem era o Padre Cícero e por que sua partida seria tão
sentida pelo povo nordestino. Ao longo da investigação, deparei-me com temas
recorrentes, como o temor de que a cidade se esvaziasse após a morte do sacerdote ou o
medo de que o “fanatismo” se tornasse mais intenso, transformando a localidade numa
nova Canudos. Uma pergunta passou, então, a se apresentar para mim: por que Juazeiro,
após a morte de Padre Cícero, continuou a existir? A cidade não pereceu com o fim do
seu fundador. Não chegou nem mesmo a apresentar a decadência econômica e
demográfica prevista por muitos. Pelo contrário: embora o Padrinho não mais existisse,
os romeiros continuavam a visitá-lo.
O objetivo central desta tese é investigar, a partir dos vestígios deixados em
livros, jornais e materiais memorialísticos redigidos entre 1934 e 1969, as diferentes
percepções sobre o que seria Juazeiro após o desaparecimento de seu fundador. A
principal fonte empregada foi o caderno de memórias de Agostinho Balmes Odísio, mas
as demais publicações sobre Juazeiro e Padre Cícero lançadas no período em questão
também foram amplamente observadas. Busquei, além disso, compreender por que as
visitas ao Padrinho não se extinguiram, mas se transformaram, com o tempo, em
migrações e deslocamentos para uma cidade considerada santa. Nesse sentido, a obra de
Odísio surge, ao mesmo tempo, como fonte e objeto de um processo que se daria
justamente em 1934, momento em que o escultor conheceu a cidade de Juazeiro.
17

Essa pesquisa está inserida na linha de pesquisa “Memória e Temporalidade”,


por tratar de um objeto que, além de viver na fronteira entre o acontecido e o não
acontecido, situa-se na margem entre a memória e o esquecimento: a morte de Padre
Cícero. Pretendi compreender o modo como foram elaboradas, a partir desse evento,
noções acerca de Juazeiro que ora a colocavam como reduto do atraso, ora a aclamavam
como a cidade mais progressista do Cariri cearense. Foram estabelecidos, em torno da
terra de Padre Cícero, sentidos para o passado com o objetivo de interferir em
prognósticos futuros para a cidade, fossem estes favoráveis ou não. A morte do sacerdote
é um marco nessa relação entre os devotos e a cidade, que, embora fosse delimitada por
um “antes e depois”, arvorava-se, principalmente, na esfera do “sempre”. Outro objetivo
deste trabalho foi perceber a edificação de monumentos e estátuas em homenagem ao
Padrinho como meio de mantê-lo vivo entre seu povo. Eram artefatos da memória que
evocavam a sua presença, embora isso não significasse que o santo juazeirense
dependesse de tais objetos para ser lembrado.
Juazeiro permaneceu com seus moradores, os muitos devotos que ali foram
habitar graças à reverência ao Sangue Precioso ou aos milagres do Padre Cícero.
Prosseguiu, além disso, recebendo os romeiros, que já não podiam visitá-lo pessoalmente
para pedir conselhos, bênçãos e auxílios materiais, mas continuavam considerando-o vivo
em suas mentes e corações. Percebi, desse modo, que a cidade deixou de ser apenas a
morada do Padrinho Cícero, passando a contemplar em si diversos outros significados.
Transformou-se, com o tempo, num local de recordação, de onde emanava a presença do
sacerdote mesmo após a sua morte. Era uma terra santa, uma urbe sagrada.
A partida do Padrinho para o Céu representou o desaparecimento de um
grande líder político, respeitado conselheiro e carismático pastor. Para os seus seguidores,
a perda era irreparável, mas se configurou como um conveniente mote para muitos
jornalistas, escritores e artistas que se inspiraram no evento para conceber suas obras.
Odísio faz parte do segundo grupo. A morte de Padre Cícero foi o marco fundante de sua
ascensão artística, dando a ele a oportunidade de se destacar como escultor.
De certo modo, a persistência de Padre Cícero nos corações dos devotos
surpreendeu aos intelectuais e autoridades religiosas que planejavam dar fim à sua
memória. A morte não foi capaz de eliminar o Padrinho. Juazeiro sem Padre Cícero
passou a ser Juazeiro com mais Padre Cícero do que se imaginava. Por muito tempo,
contudo, houve uma tentativa (fracassada) de apagar os vestígios de seus passos pela
cidade.
18

Minha hipótese principal é a de que Juazeiro, após a morte de Padre Cícero,


estabeleceu-se como um local de recordação, onde a aura de santidade conferida ao
Padrinho continuou a ser observada e sentida pelos seus devotos e romeiros. Embora
muitos marcos simbólicos tenham sido estabelecidos em homenagem ao sacerdote,
considero que a cidade não se transformou num “lugar de memória” semelhante àqueles
analisados por Pierre Nora, mas em um local de recordação, conforme a conceituação
elaborada por Aleida Assmann3. Noto, ainda, que havia, em relação a Juazeiro, opiniões
quase sempre polarizadas, as quais apregoavam a expectativa do atraso eterno,
ocasionando uma possível extinção ou até mesmo a perspectiva do extraordinário
adiantamento do progresso. Tais percepções tinham íntima relação com o que os
intelectuais do período pensavam acerca da influência de Padre Cícero sobre a região.
O recorte temporal da pesquisa vai de 1934 — ano da morte de Padre Cícero
— a 1969, quando a construção da grande estátua sobre a Colina do Horto ressignificou
a fé romeira. O monumento, edificado com a pretensão de atrair turistas, reconciliou, de
certa forma, o poder público, os intelectuais e as elites com a devoção ao Padrinho.
Começou a se consolidar a ideia de que o sacerdote é mais sinônimo de progresso do que
de atraso.
No primeiro capítulo deste trabalho, pretendi investigar as diversas
expectativas sobre a morte de Padre Cícero, assim como os temores e esperanças
relacionados a esse acontecimento. Utilizei jornais e revistas de grande circulação como
fontes. Optei pelo uso de periódicos de abrangência nacional por compreender que foram
responsáveis pelo estabelecimento de imagens que os habitantes de Juazeiro buscavam,
constantemente, combater.
Para alguns articulistas do período, o funesto evento significava um grande
problema, pois abria margem para o esvaziamento do município, a fuga da mão de obra
e a invasão de cangaceiros. Havia quem acreditasse, ainda, numa perigosa ascensão do
fanatismo, causada por uma forçosa santificação do homem morto. Por outro lado, muitos
enxergaram esse evento como o fim de um exótico capítulo na história local. Os
defensores dessa ideia acreditavam que a ausência do sacerdote finalmente permitiria o

3
Segundo Assmann, “[...] mesmo quando os locais não têm em si uma memória imanente, ainda assim
fazem parte da construção de espaços culturais de recordação muito significativos. E não apenas porque
solidificam e validam a recordação, na medida em que a ancoram no chão, mas também por
corporificarem uma continuidade da duração que supera a recordação relativamente breve de
indivíduos, épocas e também culturas, que está concretizada em artefatos”. ASSMANN, Aleida.
Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp,
2011. p. 318.
19

progresso de Juazeiro, pois seus habitantes abandonariam a ignorante fé estimulada por


ele. A morte de Padre Cícero, por conseguinte, tanto poderia representar um problema
quanto uma solução.
Para Odísio, escultor italiano radicado em Minas Gerais, o desaparecimento
do Padrinho significou uma solução. Após ter se instalado em Juazeiro com o objetivo
de produzir imagens do novo santo nordestino, o artista conseguiu alcançar um destaque
jamais atingido quando habitara os estados da região Sudeste. Seu nome passou a ser
enaltecido com frequência nos jornais locais, suas encomendas foram constantes, seus
lucros se tornaram profícuos e, rapidamente, pôde se fixar em Fortaleza, capital que
recebeu com generosidade seus trabalhos.
Analisei, também, ao longo do primeiro capítulo, temores e esperanças
apresentados por Floro Bartolomeu da Costa, Alencar Peixoto, Lourenço Filho, Manoel
Dinis e outros importantes personagens que tentaram explicar o fenômeno de Juazeiro e
a excepcionalidade da liderança de Padre Cícero. Tais intelectuais, políticos e escritores
forjaram, quando Padre Cícero ainda era vivo, diferentes interpretações sobre a cidade,
lançando também seus olhares sobre o rumo que Juazeiro tomaria após o desaparecimento
do sacerdote.
No segundo capítulo, meu objetivo foi discutir a ideia de que Juazeiro, após
a morte de Padre Cícero, transformar-se-ia numa segunda Canudos. Partindo da produção
de autores que escreveram quando o sacerdote ainda vivia e atuava na região, busquei
demonstrar que tais receios possuíam raízes em períodos anteriores, muito calcadas sobre
ideias eugenistas e sobre a influência da obra de Euclides da Cunha. Ressalto que tais
discursos, embora hegemônicos, foram criticados por lideranças políticas e representantes
da cultura letrada de Juazeiro, que se esforçaram para transmitir ao restante do país a
imagem de uma cidade civilizada, ordeira e progressista. Também dei atenção, portanto,
às práticas e aos discursos que tentaram rebater as acusações de atraso, fanatismo e
banditismo associadas a Juazeiro.
Compreendo que a passagem de Lampião pela região, em 1926, trouxe à tona
os mais diversos relatos acerca do banditismo existente na cidade, bem como sobre a
suposta proteção que Padre Cícero provia aos bandos criminosos. Desse modo, temia-se
que, após a sua morte, o cangaceirismo se tornasse incontrolável, gerando novos combates
entre as autoridades oficiais e uma milícia de sertanejos fanáticos e guerreiros. Destaco
ainda a experiência do Caldeirão — e as matérias jornalísticas a ela associadas — na
20

ascensão da ideia de que a ausência de Padre Cícero seria ainda mais perigosa que a sua
presença.
Nesse capítulo, foram muito caras as reflexões ensejadas por Reinhart
Koselleck (2006), teórico que recomenda estarmos atentos a termos presentes nas fontes
aqui empregadas, tais como “ainda” e “já”. Essas noções de tempo pretenderam deslocar
diferentes opiniões sobre Juazeiro, indicando atraso e avanço, decadência e modernidade,
fanatismo e progresso4. Pretendi discutir a perspectiva de que Juazeiro ainda não havia
alcançado seu potencial, se encontrando desarticulada do tempo da nação, representando
por isso um empecilho ao progresso e correndo o perigo, mesmo após a morte do Padre
Cícero, de tornar-se uma nova Canudos.
O terceiro capítulo se dedica a explorar, especificamente, o caderno de
memórias de Agostinho Balmes Odísio, enfocando o cotidiano de Juazeiro após a morte
do Padrinho. Acredito que, a partir desse manuscrito, é possível perscrutar a cidade e
seus habitantes, bem como seus costumes e algo da dinâmica social que ali se
desenrolava. Dediquei-me a estudar situações experenciadas pelo escultor durante sua
estadia em Juazeiro, ou seja, eventos que ele vivenciou, viu, ouviu ou conheceu.
Entre outros temas, debati aspectos referentes a moradia, infraestrutura,
alimentação, higiene, saúde, educação, trabalho e lazer. A intenção foi lançar luz sobre
esse lugar habitado pelos inúmeros migrantes que chegaram em busca do amparo
espiritual e material assegurado pelo Padrinho. Pretendi, além disso, perceber a presença
de Padre Cícero entre seus afilhados, a partir da apreciação de hábitos e crenças que
persistiram na cidade após a sua morte.
A partir dos estudos sobre cotidiano, detive-me sobre muitos aspectos
frequentemente negligenciados na historiografia sobre Juazeiro. Assim, pude refletir
sobre as vidas de homens e mulheres comuns, aqueles que urdiram, nas dificuldades do
dia a dia, modos de superar a fome e viver a fé. O caderno de memórias de Odísio se
tornou uma fonte a ser estudada por carregar em si a peculiaridade de não se encerrar
numa tentativa de biografar o Padre Cícero, Floro Bartolomeu ou a Beata Maria de

4
De acordo com Koselleck, “[...] podem-se depreender as noções de progresso, decadência, aceleração
ou retardamento, as noções adverbiais como ‘ainda não’ e ‘não mais’, o ‘mais cedo que’ ou ‘depois de’
o ‘cedo demais’ ou ‘tarde demais’, a situação e a duração, a cujas determinações distintivas devemos
recorrer de modo a tornar visíveis movimentos históricos concretos. Tais diferenciações devem ser
consideradas para toda proposição histórica que parta de premissas teóricas em direção à pesquisa
empírica”. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos Históricos.
Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. p. 122.
21

Araújo, mas estender-se em torno dos atos e gestos de personagens quase sempre
olvidados — ou tratados como massa informe — nas obras que versam sobre Juazeiro.
Enquanto a escrita do terceiro capítulo se deteve sobre as recordações de
Odísio acerca da terra do Padrinho, o quarto capítulo foi elaborado a partir das memórias.
Especificamente, sobre as memórias que o escritor preservou acerca de dois momentos
por ele narrados. O primeiro desses dois acontecimentos foi a viagem do deputado
Antônio Xavier de Oliveira a Juazeiro. O evento se deu em outubro de 1934 e gerou
grande comoção na cidade, pois divulgou-se, entre os devotos, a ideia de que o deputado
pretendia sequestrar a estátua de Nossa Senhora das Dores e os restos mortais de Padre
Cícero. A segunda experiência vivenciada por Odísio e aqui estudada foi a visita às ruínas
da Igreja do Horto. A partir da excursão realizada pelo escultor àquele local, procurei
demonstrar que muitas das memórias registradas na obra de Odísio não dizem respeito a
coisas que ele viveu, mas a informações referentes à cidade que foram absorvidas
indiretamente. Pretendi, além disso, analisar o modo como Agostinho Odísio inventou
para si uma representação, que em quase tudo derivou da imagem que plasmou para o
Padre Cícero.
No quarto capítulo, discuti algumas produções literárias e matérias
jornalísticas publicadas após a morte de Padre Cícero. As obras aqui elencadas se
concentraram, principalmente, sobre a persistência da fé romeira durante as décadas de
1940, 1950 e 1960. A constância da crença no Padrinho parece ficar evidente nesse
período. Por esse motivo surgiram, na ocasião, biografias e diferentes análises que
pretendiam explicar os motivos da permanência dessa devoção que, apesar de ser muito
estudada, era pouco compreendida. Tomando como pontos de partida as noções de
piedade, fama 5 , recordação e memória 6 discutidas por Aleida Assmann em sua obra
Espaços da recordação, pretendi investigar como Juazeiro foi, progressivamente,
transformando-se num local sagrado que guardava a memória de Padre Cícero. Meu
objetivo, ao longo desse capítulo, foi discutir também os elementos que confluíram para

5
Segundo Assmann, “A memoração dos mortos tem uma dimensão religiosa e outra mundana, que se
opõem entre si como pietas e fama. Piedade é a obrigação dos descendentes de perpetuar a memoração
honorífica dos mortos [...]. Já a fama, isto é, a memoração cheia de glórias, cada um pode conquistar
para si mesmo, em certa medida, no tempo de sua própria vida. A fama é uma forma secular da
autoeternização”. ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória
cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011. p. 37. No caso de Padre Cícero, as duas modalidades se
misturam e confundem, pois sua fama o fez santo.
6
Assmann contrapõe memória e recordação, afirmando que “[...] diferentemente do ato de decorar, o ato
de lembrar não é deliberado: ou se recorda ou não se recorda”. ASSMANN, Aleida. Espaços da
recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011. p. 33.
22

que Juazeiro deixasse de ser somente o lugar em que era possível estar com o Padrinho e
passasse a ser também o local em que era possível sentir intensa e intimamente sua
presença.
No quinto capítulo, procurei sondar obras que não tratavam sobre o “ainda”,
mas sobre o “já”. Padre Cícero estava morto. Juazeiro, cada vez mais, deixava de ser um
problema. Aqueles que escreviam sobre o tema após 1934 se preocupavam em discutir as
contribuições do sacerdote para a consolidação da cidade como um local miserável, em
que o fanatismo sobre-existia, ou, ao contrário, como um município que se destacava, em
termos de desenvolvimento, de outras cidades do Nordeste, graças à contribuição do
Padrinho. Suas narrativas começavam com o nascimento de Padre Cícero — ou com sua
chegada em Juazeiro — encerrando-se com sua morte. O fim de sua existência era o fim
de um capítulo na história do povoado, que dali em diante poderia ser, hipoteticamente,
uma cidade como outra qualquer.
Busquei, inicialmente, discorrer sobre as primeiras obras lançadas após o
falecimento de Padre Cícero, geralmente elaboradas por juazeirenses ou por pessoas que
conviveram de perto com o sacerdote e que o defendiam de qualquer acusação que
pudesse receber post-mortem. Posteriormente, dediquei-me a estudar as biografias
lançadas por Edmar Morel e Otacílio Anselmo, responsáveis por cristalizar, no país,
muitas imagens depreciativas sobre Juazeiro e a herança legada por Padre Cícero aos
habitantes da cidade. Nesse capítulo, procurei demonstrar que “amigos” e “inimigos” da
memória do sacerdote defendiam, por meio de diferentes fontes e métodos, pontos de
vista diametralmente opostos, atribuindo o atraso ou o progresso de Juazeiro ao mesmo
personagem, o Padre Cícero.
No sexto capítulo, estudei a importância dos monumentos edificados em
homenagem ao Padrinho, percebendo-os como meios de recordação. A partir de jornais
que discutiam a instalação dos mais importantes marcos simbólicos de Juazeiro, pretendi
demonstrar que as imagens concebidas por Laurindo Ramos, Agostinho Odísio e
Armando Lacerda contribuíram para a consolidação do culto ao sacerdote, embora em
nenhum momento tenham sido as causas determinantes dessa devoção.
A escultura assentada sobre um nicho em frente à Capela do Socorro e o
colossal monumento no alto da Colina do Horto aparecem nesse trabalho não como
lugares de memória instituídos oficialmente com o objetivo de fundar uma rememoração
forçada, mas como meios de recordar — e de interagir com — um homem santo que já
não habitava o espaço sagrado de Juazeiro. Embora tenham sido concebidas e instaladas
23

a partir de interesses muito distintos, cada uma dessas obras contribuiu para indicar
importantes locais da história de Juazeiro e da trajetória do Padrinho, sendo encaradas
com diferentes olhares pelos devotos e romeiros que visitavam o Padre Cícero não mais
em carne e osso, mas em bronze e concreto.
24

2 A MORTE DE PADRE CÍCERO: PROBLEMA E SOLUÇÃO

2.1 Um problema: o fim de Juazeiro

Na tarde do dia 20 de julho já corriam os boatos da morte de Padre Cícero.


Após a confirmação do acontecimento, as notícias passaram a ser divulgadas em jornais
de todo o Brasil. O impacto do evento sobre Juazeiro era inegável. O comércio fechou;
faltavam comida e serviços essenciais. Apenas os Correios continuavam funcionando —
freneticamente —, pois tinham a função de transmitir a notícia para os mais diversos
recantos. Telegramas foram enviados, e os devotos que moravam em lugarejos próximos
começaram a se encaminhar para a cidade. Os jornais lançaram reportagens, entrevistas
e diversos outros materiais biográficos, ansiando discutir a importância do sacerdote nos
contextos políticos, sociais e religiosos do Nordeste e do Brasil. Um deles, o Diário de
São Paulo7, apresentou um panorama desse debate:

Protector de cangaceiros, defensor da ordem, esteio da republica, santo ou


charlatão, louco ou genial, explorado ou explorador, o Padre Cicero ganhou
celebridade ilimitada. Os estudiosos de sociologia, de religião, de psychiatria
e de politica interessaram-se vivamente por ele. Escreveu-se tudo a seu
respeito. Seu nome entrou para a eternidade no ‘folk-lore’ do Nordeste e se
inscreveu definitivamente na historia do paiz. Ridicularizado e temido, Padre
Cicero Romão Baptista ia atravessando os anos em uma longevidade que
chegou a crear o dogma de sua imortalidade...8

De fato, desde o evento que fundou sua aura de santidade — a transformação da


hóstia em sangue na boca da Beata Maria de Araújo, em 1889 —, Padre Cícero foi
protagonista de inúmeras matérias jornalísticas. A atuação que teve no cenário político
apenas intensificou a curiosidade em torno de sua figura. Discursos que o pintavam como
um personagem que contribuía para o atraso do Nordeste foram veiculados com
frequência. Juazeiro recebeu visitas de jornalistas, intelectuais e curiosos que pretendiam
elaborar análises sobre o fenômeno. Comparações entre Canudos e a cidade fundada pelo
Padrinho grassavam nos periódicos em geral.

7
Jornal de grande circulação, alinhado às ideias da Aliança Liberal, dirigido por Chateaubriand e membro
dos Diários Associados.
8
FALLECEU HONTEM, em Joaseiro, o Padre Cicero Romão Baptista. Diário de São Paulo, São Paulo,
p. 4, 21 jul. 1934.
25

O percurso de Padre Cícero foi observado por boa parte dos articulistas
cariocas e paulistas como uma excentricidade, uma passagem quase folclórica, uma lenda,
ou um mito em que acreditaram somente os ingênuos sertanejos do Brasil. Ridicularizado
por intelectuais, combatido pelas autoridades eclesiásticas, respeitado por cangaceiros e
devotos, ele representava um enigma que envolvia polos dicotômicos da discussão sobre
civilização e barbárie, cultura e ignorância, educação e atraso.
Sua longevidade, bem como a fé a ele devotada por seus seguidores, levaram
a imaginar que permaneceria eternamente em Juazeiro, cuidando de seus afilhados e
aconselhando aqueles que se desviassem do bom caminho. Por esse motivo, seus
seguidores se sentiram devastados quando souberam da inevitável partida. A ilusão de
imortalidade criada em torno do padre se confirmaria durante seu velório. Por volta das
onze horas da manhã do dia 20 de julho de 1934, circulou em Juazeiro a notícia de que
Padre Cícero não estava morto: havia recuperado os sentidos. Houve ruidosas
manifestações de alegria, mas logo se descobriu que fora um alarme falso9.
Conforme as narrativas de testemunhas oculares e memorialistas, diante da
grande afluência de romeiros e devotos que pretendiam velar o corpo e avistar o Padrinho
pela última vez, decidiu-se colocar o caixão na posição vertical junto à janela da casa,
para que a grande massa de pessoas não tivesse que adentrar o prédio. Quando a manobra
foi realizada, o corpo deslizou levemente, simulando um gesto das mãos, provocando,
desta feita, os boatos de que Padre Cícero teria recuperado os sentidos ou,
miraculosamente, ressuscitado.
Acontece que o Padrinho era, para muitos, santo. Para tais homens e
mulheres, portanto, não parecia possível imaginar Juazeiro — ou o mundo — sem ele. A
vida seria insuportável sem o seu auxílio espiritual e material. A morte, destino de toda a
humanidade, parecia estar realizando um ato injusto ao carregar para longe o único santo
que intercedia pelos seus ainda na terra. É preciso lembrar que inúmeros devotos e
seguidores do sacerdote dependiam não apenas de seus conselhos morais, espirituais e
médicos, mas também de seu auxílio financeiro, direta ou indiretamente. Sua morte
representava um retorno ao abandono. Sofriam as almas romeiras, mas também os corpos
famintos.
Parecia impossível crer que a figura extraordinária de Padre Cícero se
submeteria aos desígnios do tempo, esvaindo-se como se fosse um homem qualquer. Ele

9
A MORTE do Padre Cícero. O Povo, Fortaleza, p. 1, 21 jul. 1934.
26

era sagrado. A convicção de sua imortalidade era semelhante àquela que os cristãos
devem manter em seu credo relativo à vida eterna de Jesus Cristo. Segundo as
informações de um correspondente do periódico A Noite10, do Rio de Janeiro,

É que muitas pessoas o julgam santo e não acreditam na sua morte. Aqui era
grande o numero dos que mantinham essa convicção e que se aproximavam do
corpo, para vel-o muito de perto, verificando então a verdade do facto
consumado. Dos que assim pensavam, alguns têm enlouquecido deante da
realidade.11

Os devotos do Padrinho eram frequentemente considerados fanáticos,


lunáticos, ignorantes. A população sertaneja que o seguia era julgada por muitos como
uma massa de incapazes que não compreendia os dogmas da Igreja Católica, por isso se
apegando a um falso profeta. Tais homens e mulheres, migrantes que saíram de várias
partes do país em busca de apoio na vida ou de salvação após a morte, comumente eram
negros e mestiços famintos e abandonados, desprovidos de terras e bens. As condições
sociais em que viviam e as especificidades culturais e raciais que representavam
constituíam elementos que ensejavam críticas e preconceitos entre as camadas letradas.
Os cangaceiros e jagunços que respeitavam Padre Cícero eram enxergados
como perigosos criminosos que se aproveitavam de sua bondade para viver em liberdade.
Os beatos12 que ele protegia eram percebidos como tristes maníacos, que sofriam com
doenças mentais e se encontravam desligados da vida real. Mas não eram alvos de
julgamento apenas aqueles que criam no caráter santo de Padre Cícero. Em alguns
momentos, a saúde mental do próprio sacerdote foi também posta em xeque. Seguindo as
observações de Euclides da Cunha sobre as raças constituídas nos sertões, muitos eram
os autores que viam o sacerdote como uma espécie de erro da natureza. A comparação
entre o criador de Juazeiro e o fundador de Canudos, Antônio Conselheiro, foi relembrada
pelo jornal A Noite do dia 20 de julho de 1934. O periódico afirmava que, embora
estivesse no mesmo nível de seus fervorosos adeptos, o Padrinho soube, frequentemente,

10
Jornal que foi empastelado em 1930, por ser abertamente contrário à Aliança Liberal. Em 1934, já não
pertencia ao proprietário inicial, Geraldo Rocha, mas a um grupo estrangeiro representado no Brasil por
Guilherme Guinle.
11
O PATRIARCHA de Juazeiro. A Noite. Rio de Janeiro, p. 1, 28 jul. 1934.
12
Os beatos surgiram nos sertões do Nordeste através das missões evangelizadoras de Padre Ibiapina.
Eram leigos e leigas que faziam voto de pobreza e dedicavam suas vidas à oração. Não estavam ligados
a nenhuma Congregação Religiosa e não eram reconhecidos pela Igreja Católica. Para maiores
informações, Cf. BEZERRA, Osicleide de Lima. Trabalho, pobreza e caridade: As ações do Padre
Ibiapina nos sertões do Nordeste. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2010.
27

“[...] encaminhal-os para as coisas virtuosas e uteis. Seria um retardado, como diria, por
exemplo, Euclydes da Cunha, representativo perfeito de um momento histórico de nossa
vida, do meio em que se agitou”13.
Sob essa perspectiva, Padre Cícero se distinguiria de Conselheiro apenas por
ter conseguido manter a ordem em Juazeiro. Mas era, como todos os outros líderes
messiânicos, um retardado, fruto de um meio específico e de um momento histórico que
estava em vias de se acabar. O Diário de São Paulo foi ainda menos condescendente em
seu necrológio, afirmando que as doenças psiquiátricas que acometiam Padre Cícero se
tornaram mais evidentes durante a velhice:

Com a velhice a sua discutida psychose foi se afirmando: os estudiosos falaram


em megalomania, mythomania, paranoia etc [...]. Os últimos retratos do padre
Cicero apresentam uma physionomia de traços duros e angulosos, molares
salientes, ligeiro prognatismo, orelhas largas, em leque, cabeça achatada, nariz
recurvo, olhos irrequietos e pescoço curto e cheio. A velhice devastara seu
corpo mal conformado e seu extranho espirito. Sua voz era secca e brusca, e
ele falava com esgares surpreendentes e gestos curtos. Apoiado a um velho
bastão, os cabelos brancos sempre crescidos, o padre Cicero, embora em uma
infinita decadência, continuava praticando milagres noite e dia, até que a morte
veio roubar ao Brasil a sua extravagante e curiosíssima figura.14

O discurso jornalístico tentava, a todo custo, enquadrar Padre Cícero nas fímbrias
da ciência. Para grande parte dos intelectuais, os pretensos milagres — que tanto traziam
admiração e surpresa aos devotos — facilmente seriam explicáveis pela medicina. Não
satisfeitos com a análise psicológica ou psiquiátrica do santo do Nordeste, também se
dedicaram a perscrutar sob os desígnios da pele alguns sinais das supostas patologias do
sacerdote. A apreciação física pretendia desvelar o corpo mal conformado em que
habitava o esdrúxulo espírito. Numa descrição quase antropológica (provavelmente
influenciada, em certa medida, pelos estudos de Césare Lombroso)15, havia a tentativa de
mapear seus gestos e sua figura, compreendendo a partir da ciência aquilo que a ilusão
mística de seus fiéis não poderia decodificar. Interessante é notar que, três dias depois da

13
PADRE CÍCERO. A Noite, Rio de Janeiro, p. 15, 20 jul. 1934.
14
FALLECEU HONTEM, em Joaseiro, o Padre Cicero Romão Baptista. Diário de São Paulo, São Paulo,
p. 4, 21 jul. 1934.
15
Médico italiano que se consolidou como expoente da Antropologia Criminal. Defendia a existência de
uma predisposição biológica de certos indivíduos à conduta antissocial. Através do estudo de traços
faciais e de compleições corporais, Lombroso pretendeu desenvolver uma ciência que pudesse
identificar o que ele chamou de criminoso nato. A Antropologia Criminal foi amplamente utilizada na
Europa em fins do século XIX e no início do século XX no Brasil. Para maiores informações, cf.
SANTOS, Elaine Maria Geraldo dos. A face criminosa. Neolombrosianismo no Recife na década de
1930. Dissertação de (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2008.
28

publicação desse artigo no Diário de São Paulo, Rubem Braga expôs em sua coluna um
ponto de vista sobre Padre Cícero que em quase tudo diferia daquele inicialmente
publicado no mesmo jornal, afirmando que

Cicero era padre há 54 annos e nunca chegou a bispo. De padre, através de um


diminutivo que o elevava sobre as turbas, desceu a padrinho. Seus afilhados
eram milhões. Cicero era padrinho de um povo e muitos presidentes desta
Santíssima Repúbica disputavam sua bênção [...]. Nosso padrinho Cícero
Romão nunca excomungou ninguém. Um papa e um cangaceiro teriam para
ele o mesmo valor. O Sagrado Collegio que o absolveu fez um acto de
sabedoria. Cicero, para se dirigir a Deus, já não precisava transitar pelos
cannaes competentes. Era quase de potencia a potencia [...]. Como padre, ele
era tão inferior que não tinha ao menos uma igreja para rezar. Mas transformou
em púlpito o batente da janela do seu casebre. E nunca nenhum templo do
Brasil teve devotos mais fervorosos que o terreiro da casinha de Padre Cicero.
Fieis de todas as parochias do Brasil chegavam ali, carregando seus aleijados,
seus leprosos, seus desesperos e suas esperanças. Prefeito municipal, vice-
presidente estadual, deputado federal, Cicero Romão foi o chefe politico mais
definitivo do Brasil. Seu prestigio não estava em discursos, nem em promessas,
nem em amizades, nem em força, nem em posições: estava agarrado no fundo
da alma de seus homens.16

“A forma mais elevada da fama não está em templos glorificadores nem em


memoriais, mas na memória corporificada e internalizada que há em cada um”17, disse
Aleida Assmann em seu estudo sobre os espaços de recordação. A memória dos feitos de
Padre Cícero não dependia de monumentos honoríficos e lugares consagrados
institucionalmente a ele, mas do lugar em que viveu e atuou: a cidade de Juazeiro. Depois
de sua morte, o Padrinho continuou ensejando percepções (e publicações) diversas sobre
a trajetória em vida. O Diário de Notícias, por exemplo, elaborou um texto que tocava
nas críticas mais comuns ao sacerdote. No obituário do jornal carioca fundado por
Orlando Vilar Ribeiro Dantas18, Padre Cícero sobrevinha como alguém que se aproveitou
da ingenuidade de seu povo para conquistar e manter o poder. Para o redator dos “dados
biográficos” do falecido, somente o domínio na esfera política não lhe foi suficiente:

16
BRAGA, Rubem. CICERO ROMÃO. Diário de São Paulo, São Paulo, p, 3, 24 jul. 1934.
17
ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Formas e transformações da memória cultural.
Campinas: Editora Unicamp, 2011. p. 48-49.
18
Conhecido como “o jornal da revolução”, o periódico matutino pretendia combater a estrutura
oligárquica da República Velha, apoiando, desse modo, a “Revolução de 1930”. Defendia o trabalhismo
e deu apoio a Getúlio Vargas durante o Governo Provisório, mas foi contrário à sua candidatura à
presidência, pois criticava o continuísmo e temia a possibilidade de estabelecimento de uma ditadura.
Endossou a Revolução Constitucionalista e se colocou, posteriormente, em oposição a Vargas. Essa
postura levaria à prisão de Orlando Dantas em 1937.
29

Politico por instincto, o sacerdote catholico buscou na ingenuidade sertaneja a


fonte principal do prestigio que conquistou e manteve até os últimos dias de
sua existência. Mas o seu prestigio não se limitou apenas às raias da politica.
Foi muito além. Um dia, a alma sentimental e ingênua do matuto, descobriu no
prestigioso chefe politico o dom sobrenatural e o nome do padre Cicero, em
breve, corria de boca em boca, pronunciado como verdadeira unção.
Proclamaram-no santo e não faltaram as provas de veracidade dessa
afirmação.19

O obituário publicado no Diário de Notícias contradizia a ordem de


importância — e mesmo a ordem cronológica — dos fatos. Padre Cícero, antes de ser
político, já era santo. As crenças em torno de seus milagres surgiram em 1889, com o
culto ao Sangue Precioso derramado por Maria de Araújo 20. Sua carreira política, por
outro lado, colocou-se em marcha somente após 1911, quando conquistou a emancipação
de Juazeiro e foi eleito para o cargo de prefeito.
Diversos jornais do Nordeste, especialmente de Recife e Fortaleza,
propalavam visões semelhantes à do periódico paulista, afirmando que a vulnerabilidade
dos sertanejos à crença na santidade do Padrinho advinha da falta de instrução e do
desconhecimento da verdadeira religião. Para a cultura letrada, somente esses fatores
explicariam a fé que um número tão grande de pessoas nutria pela estranha figura de
Padre Cícero. No entanto, essa mesma fé era julgada com certa clemência pelos
“civilizados”, que afirmavam a necessidade de compreender o atraso:

O sertanejo, em matéria de religião faz lembrar o povo ingênuo das épocas


medievais. Não há em rigor nestas paragens incultas, uma religião
propriamente dita. Há uma estranha mistura de catholicismo, superstição
barbara e fanatismo, que faz deste nosso patrício o mais intransigente e ao
mesmo tempo o mais tolerável de todos os crentes, pelo inabalável da fé que o
empolga e pela infantilidade de certas idéas que ele aceita e que fazem sorrir
ao homem civilizado.21

A crença na santidade do Padre Cícero, contudo, somente era tolerada entre


os pobres sertanejos que não receberam educação formal. Homens e mulheres instruídos
seriam censurados caso defendessem, como os humildes interioranos, a mesma fé herege.
Um artigo publicado no periódico carioca A Noite, intitulado “Rei do Sertão” e assinado
por Celso Vieira, defendeu que seria possível compreender o fenômeno quando se tratava

19
DADOS BIOGRÁFICOS do padre Cicero Romão Baptista, falecido hontem no Ceará. Diário de
Notícias, Rio de Janeiro, p. 3, 21 jul. 1934.
20
Para maiores informações sobre esse tema, cf. NOBRE, Edianne dos Santos. Incêndios da alma: a
beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do Oitocentos. Tese (Doutorado) — Programa
de Pós-graduação em História Social, Rio de Janeiro, 2014.
21
SERTÃO ABANDONADO. Jornal do Recife, Recife, p. 1, 24 nov. 1934.
30

dos sertanejos incultos, no entanto era inaceitável admitir o respeito devotado ao Padre
Cícero pelos doutores das capitais:

O escândalo maior, comtudo, para as almas civilizadas, é a incrustação desse


barbarismo no corpo dos institutos políticos, na vida republicana-federativa da
nacionalidade. Comprehende-se que o missionário-bem feitor da secca de 77,
por influencia do meio e do sangue, por desvio da liturgia catholica ou desfecho
de uma psychose mystica, se revelasse [...] o thaumaturgo da hóstia sangrenta,
das curas intantaneas, das ordens de exilio ou despejo contra os demônios
agasalhados no seio de uma cabocla mais ou menos hysterica. Ainda se
explica, bem ou mal, por degenerescência de formulas rituais da Egreja,
misturadas à feitiçaria das malocas e ao fetichismo das senzalas, o reino
theocratico e totemista do Joazeiro, com os seus penitentes e beatos [...]. O
assombro decorre de outro fenômeno. Com efeito, assombroso é que o nosso
mecanismo eleitoral-administrativo e a nossa mentalidade superior, doutorada
por vinte escolas em direito, lograssem fazer do monarca religioso das brenhas
[...], prefeito do Ceará, deputado federal, que não veio ao Rio, chefe de partido,
cujo exercito foi com os rifles e punhaes da jagunçada, sob laços vermelhos e
chapéos de couro, até as portas de Fortaleza para derribar o governo local.22

Celso Vieira de Matos Melo Pereira, escritor recifense, ocupou desde 1933
uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Poderia ser considerado, portanto, um
“doutor”. Em seu texto, não poupou teorias raciais já criticadas em sua época, afirmando
que a histeria de uma cabocla (a beata Maria de Araújo) explicaria o fenômeno de
Juazeiro. Também acreditava, como tantos outros intelectuais, que as crenças dos
habitantes locais estavam relacionadas à mistura de aspectos do catolicismo à “feitiçaria
das malocas” e ao “fetichismo das senzalas”, acrescentando ainda o totemismo à sua
descrição. Deixava entrever, desse modo, a ideia de que tais mulheres e homens pobres,
negros, indígenas e mestiços, estavam destinados ao fanatismo. O escritor recifense
acreditava que, embora fosse compreensível, por um lado, a devoção dos sertanejos
miseráveis, por outro, seria um disparate imaginar que a “mentalidade superior” tivesse
atribuído ao sacerdote “das brenhas” a força que possuiu, conferindo-lhe o poder político
que garantiu sua sobrevivência mesmo em face dos grandiosos ataques a ele dirigidos
pelos representantes da cultura letrada em geral.
É preciso destacar que os estudiosos do período tinham diferentes
perspectivas sobre a figura do Padre Cícero, mas concordavam quando o tema era a
influência política de sua personalidade e o amor devotado pelo seu povo. Nos anos finais
de sua vida, ele já não exercia papéis de liderança política com grande frequência, mas a
aura de santidade que lhe cobria crescia em medida inversamente proporcional ao

22
VIEIRA, Celso. Rei do Sertão. A Noite, Rio de Janeiro, p. 2, 27 jul. 1934.
31

desaparecimento de suas ações na esfera pública. Por esse motivo, o momento de sua
morte foi visto com certo temor pelas autoridades e pelos jornalistas. A preocupação ficou
registrada, por exemplo, no jornal fortalezense O Povo:

O delegado regional está agindo de acordo com as demais autoridades no


sentido de manter a calma e a ordem na cidade, sendo auxiliado de perto pelos
vultos de destaque da sociedade joazeirense. As associações operárias locais
convidaram suas congêneres das cidades vizinhas para comparecer ao
enterramento do Padre Cicero, que foi marcado para amanhã, às sete horas.
Não houve, até agora, para manutenção da ordem, necessidade de policiamento
militar, tudo indicando o respeito do povo em torno do querido morto. Tem
sido batidas inúmeras chapas fotográficas e estão sendo filmados vários
aspectos e passagens do lutuoso acontecimento.23

Embora, de acordo com os jornais locais, a sentinela parecesse correr sem


maiores dificuldades, posteriormente surgiram notícias surpreendentes nos tabloides das
capitais de outras regiões. O Correio Paulistano24 informou, em 27 de julho de 1934, que
as impressões chegadas da distante cidade de Juazeiro não eram as melhores: por ocasião
dos funerais de Padre Cícero, teriam sido verificadas 13 mortes e numerosas síncopes,
além de 4 casos de loucura. O jornal afirmava que a consternação era geral, e a
aglomeração de pessoas causava ainda mais acidentes e problemas de saúde aos
presentes25. Assim, a morte de Padre Cícero parecia acarretar outros desastres correlatos.
De acordo com o mesmo periódico, em análise publicada meses depois, enquanto alguns
perderam os sentidos e desmaiaram, outros foram pisoteados pela multidão ou
enlouqueceram. Segundo Jarbas de Carvalho, “[...] os fanáticos e idolatras – muitos se
recusaram a acreditar no trespasse de um santo authentico – fizeram-lhe uma dessas
apoteoses como só se vê na India ao deus Vichnow”26.
Dizia-se que no culto a uma das encarnações de Vishnu, era carregada uma
grande estátua da deidade Jagrená. Durante esse evento, era comum o suicídio ritual —
os seguidores da deidade se jogavam sob as rodas do carro que carregava a estátua 27.
Jornalistas brasileiros faziam a comparação entre essa cerimônia e o culto a Padre Cícero

23
A MORTE do Padre Cícero. O Povo, Fortaleza, p. 1, 21 jul. 1934.
24
Em 1934, o jornal se configurava como oposição ao governo de Getúlio Vargas e pertencia à Sociedade
Anônima Correio Paulistano. A tendência editorial era favorável à autonomia dos estados e combatia
as esquerdas.
25
ACCIDENTADO o enterro do padre Cicero. Correio Paulistano, São Paulo, p. 1, 27 jul. 1934.
26
CARVALHO, Jarbas de. Um Santo Moderno. Correio Paulistano, São Paulo, p. 5, 8 nov. 1934.
27
Marx mencionou “o carro de Jagrená” no primeiro volume de O Capital, ao discutir os sacrifícios
impostos pelo capital, inclusive às crianças. As festas de Jagrená, em honra a Vishnu, eram rituais
particularmente faustosos, marcados pela intensa religiosidade e pela autoflagelação. MARX, Karl. O
Capital. Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 1224.
32

com o objetivo de seguir os passos dos colonizadores da Índia, reprovando as


manifestações de fé consideradas exageradas e atribuindo um caráter de idolatria à crença
nele. Para tais mentes ilustradas, o sacerdote seria considerado, em Juazeiro, tão
responsável pela manutenção do universo quanto Vishnu o era na Índia. O Padrinho era
uma espécie de deus exótico, que recebia homenagens ainda mais estranhas. A recusa em
acreditar na morte de Padre Cícero seria, para alguns, a causa de tais manifestações de
idolatria.
Os acontecimentos relacionados a esse evento atraíam a atenção da imprensa
nacional, que parecia ansiosa pelos novos — e talvez últimos — fatos em torno de uma
figura que já havia perecido. No dia 3 de agosto de 1934, o periódico carioca A Noite
publicou um caso capaz de impressionar leitores e leitoras:

Sabbado ultimo, uma mulher, cujo nome a reportagem não conseguiu


identificar, ateou fogo às vestes, utilizando-se de kerozene, para pôr termo à
existência. Dizem que o gesto da tresloucada se prende à morte do Padre
Cicero. Houve quem a ouvisse dizer que não queria viver sem o padre na terra.
A capella do Perpetuo não comporta o numero de visitantes, que é
ininterruptamente considerável.28

Pouco se sabe sobre a tentativa de suicídio veiculada pelo periódico carioca.


Era, sem dúvida, um espetáculo digno de nota, mesmo que não fossem conhecidas as
causas do acontecimento. Evidentemente, a tragédia logo foi associada ao evento mais
dramático e relevante da cidade de Juazeiro naquele período. A ação poderia ser
comparada a uma crise passional. A distância de Padre Cícero causaria dores e aflições
aos devotos. Sofrer a morte na própria carne pareceria, assim, a única saída viável. Os
boatos de que a moça talvez tivesse afirmado não querer viver sem o Padre Cícero foram
utilizados como fonte segura para a notícia de um periódico conhecido e respeitado na
capital do país. Nada mais se sabe sobre esse evento.
A memorialista juazeirense Assunção Gonçalves conta que, no dia da morte
de Padre Cícero, os comerciantes da cidade venderam todo o tecido preto disponível. Os
devotos passaram a tingir as próprias roupas com uma mistura de lama do Rio Salgadinho
e sementes de jucá, para assim manterem o luto29. As portas e janelas das casas e pontos
comerciais também ostentavam cortinas e fitas pretas. Mesmo nos dias atuais, decorridos

28
NÃO QUERIA viver sem o padre Cícero na terra – Impressionante tentativa de suicídio em Joazeiro.
A Noite, Rio de Janeiro, p. 1, 3 ago. 1934.
29
GONÇALVES, Assunção. Faltou pano preto para a missa do Padre Cícero. Disponível em:
<http://blogdeassuncaogoncalves.blogspot.com.br/p/textos .html>. Acesso em: 18 abr. 2018.
33

mais de oitenta anos do acontecimento, é frequente que idosos e demais fiéis nordestinos
se vistam de preto no dia 20 de cada mês.
Flores, ex-votos, chapéus, objetos pessoais e orações passariam a ser
depositados diariamente sobre seu túmulo. As longas distâncias eram vencidas por
romeiros, que, a pé ou montados em animais, viajavam em busca de visitar seu Padrinho,
agora silencioso e de olhos fechados. Em Pernambuco, “[...] a lembrança do Padrinho foi
avivada agora com a sua morte, pelo brim preto, que todo o mundo usa, de luto fechado.
Até duas, três horas da tarde, com o sol a rachar”30. O luto visível nos pesados tecidos
negros era uma maneira de recordar e homenagear aquele que jamais seria esquecido.
Conforme destaca o estudo de Assmann, “[...] não se pode recordar alguma
coisa que esteja presente. E para ser possível recordá-la, é preciso que ela desapareça
temporariamente e se deposite em outro lugar, de onde se possa resgatá-la”31. Os romeiros
compreendiam essa alternância entre a presença e a ausência do Padre Cícero, e
manifestavam isso por meio de símbolos sensíveis, os quais refletiam a dor da perda e,
ao mesmo tempo, a permanência da recordação.
Existiram, contudo, perspectivas menos piedosas. O Monsenhor Francisco
Raimundo da Cunha Pedrosa publicou um artigo no Jornal do Recife 32 em que parecia
não lamentar a perda. Para o recifense, Padre Cícero tinha sua reputação manchada por
ter se envolvido com o mundo político e, ainda pior, por ter fanatizado o povo:

Meteu-se de corpo e alma na Politica e acabou afinal de baixar à sepultura


talvez sem os Sacramentos da última hora, pois os jornais falam em tudo,
menos da sua conversão completa a Nosso Senhor que misericordioso lhe
prolongou a vida para bem arrepender-se do grande mal que fez à Igreja
Catholica fanatizando o nosso povo!33

É preciso ressaltar que muitos são os debates em torno da atuação política de


Padre Cícero, e é frequente observar narradores que usam, como meio de afirmar sua
distância da santidade, o argumento de que um homem político não pode ser santo. O
articulista do Jornal do Recife era dessa opinião. Seus comentários acerca da

30
O NORDESTE. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, 1937. p. 467.
31
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora Unicamp, 2011. p. 166.
32
O Jornal do Recife circulou durante 79 anos. Fundado ainda em 1859, já se encontrava no final de sua
existência em 1934. Em 1929, o matutino aderiu à campanha da Aliança Liberal, defendendo a
candidatura de Vargas e alinhando-se ao Partido Democrata de Pernambuco. Em 1934, foi dirigido pelo
Coronel Faria e, posteriormente, por seu filho, Aprígio Faria.
33
PEDROSA, Monsenhor Cunha. PADRE CICERO Romão Baptista. Jornal do Recife, p. 1, Recife, 24
ago. 1934.
34

possibilidade de Padre Cícero haver sido sepultado sem os sacramentos finais foram
previamente desmentidos pelo jornal O Povo34, que já havia noticiado, no próprio dia 20
de julho: “Às sete horas da manhã, o enfermo exalava seu último suspiro, tendo recebido
antes todos os sacramentos da Igreja”35, inclusive tendo sido autorizado seu sepultamento
na Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
De acordo com a publicação fortalezense, o sacerdote recebeu todos os
sacramentos. O bispo do Crato autorizou que seu corpo fosse sepultado no templo católico
que o Padrinho escolhera e registrara em testamento. O jornal provavelmente considerou
a importância de dar visibilidade a tais pormenores pela especificidade da situação, já que
muitos rumores apontavam até mesmo a excomunhão de Padre Cícero.
Se por um lado alguns acreditavam que Padre Cícero havia abandonado a
verdadeira religião, e que por isso não mereceria as exéquias da morte, por outro havia
quem imaginasse que ele seria elevado, forçosa e imediatamente, aos altares, graças à fé
dos seus seguidores. Era o caso dos jornalistas que publicavam no Correio de São
Paulo36:

Nessa cidade cearense, hoje grande centro comercial da zona cariryense, há


uma estátua em bronze, do padre Cicero Romão Batista. E não será de
extranhar que, neste momento, o povo todo, consternado e profundamente
pesaroso com a morte do homem que foi amado durante mais de meio século
e que já estava santificado em vida, continue ainda mais, de agora em diante,
adorando-o, sendo capaz de elevar-lhe, até, um altar na igreja; porque altares
domésticos já existem em toda a cidade de Joazeiro e mesmo noutras cidades.37

Assim, a perspectiva de que o patriarca de Juazeiro fosse santificado à revelia


da Igreja Católica existia desde então. As autoridades eclesiásticas não lhe concediam
espaço em altares, mas os devotos pouco se importavam com isso. Nos lares sertanejos,
imagens de Padre Cícero já dividiam espaço com quadrinhos de São José, Santa Luzia,
Santo Antônio e dos demais santos devidamente canonizados.
A morte do Padrinho permanecia fértil em possibilidades. Jornalistas se
empenhavam em procurar e escrever novidades sobre o tema. Entre as narrativas mais

34
Jornal fundado por Demócrito Rocha em 1928. Nasceu como oposição a Moreira da Rocha, então
governador do Ceará. O jornal apoiou a Revolução de 1930 e o governo provisório de Vargas, mas foi
contrário à candidatura dele à presidência da República.
35
A MORTE do Padre Cícero. O Povo, Fortaleza, p. 1, 21 jul. 1934.
36
Jornal fundado na década de 1930. Tinha forte apelo de oposição à Aliança Liberal e defendia as
oligarquias, o empresariado e a classe média de São Paulo. Com a derrota dos paulistas durante a
Revolução Constitucionalista, foi aos poucos perdendo o caráter eminentemente político.
37
PADRE Cícero. Correio de São Paulo, p. 2, São Paulo, 21 jul. 1934.
35

curiosas sobre o evento está uma do Jornal do Recife, que dois meses depois publicou
uma matéria discutindo o estado de espírito dos devotos:

Certa vez, espalhara-se pelos sertões a noticia irrisória de que o


desaparecimento do vigário do Joazeiro marcaria o fim do mundo... E pelas
brenhas, há muitos anos, homens, mulheres e creanças debulhavam os seus
rosários, pedindo a Deus que o padrinho Cicero não morresse nunca... [...].
Agora, quando o bom pastor de almas [...] fecha os olhos e se despede do
mundo, é de causar pena o estado d’alma em que se encontram aquelles em
quem o fanatismo se tornava uma grave psychose. Imagine-se que pelos
sertões existem criaturas que, na sua ingenuidade, há mezes se despedem da
vida, esperando que os quatro anjos da profecia venham atear fogo ao
mundo...38

A matéria reafirma a possibilidade de a fé (ou o fanatismo) se tornar uma


doença. De acordo com outros pontos de vista, menos pessimistas e mais ponderados, não
seria o fim do mundo, mas certamente o fim de Juazeiro. A cidade dependia de Padre
Cícero não apenas para garantir o crescimento e o progresso, mas para assegurar a própria
existência enquanto porto de repouso para os corações desamparados. Um informante
teria garantido, por exemplo, que Lampião, ao ser informado sobre a morte do Padrinho,
insinuou que finalmente estenderia seu domínio pelas terras do Ceará:

Referiu-nos ainda o entrevistado que Lampeão, informado da morte do seu


padrinho, o padre Cícero, de Joazeiro, não acreditou na veracidade da notícia.
E, sem demora, improvisou um de seus comandados em emissário espresso a
Joazeiro, afim de inteirar-se da certeza da má informação. O rei do cangaço
aguarda o regresso do seu ‘cabra’ para, no caso afirmativo, intensificar sua
ação devastadora.39

Após a morte de Padre Cícero, aumentaram as especulações. Intelectuais,


jornalistas e a população local se perguntavam se a cidade ainda cresceria ou enfrentaria
um momento de conflitos, miséria, estagnação e declínio. Também não se sabia se o culto
à personalidade do Padrinho resistiria por muito tempo ou se extinguiria com sua morte.
Acreditava-se que alguns seguidores protegidos por ele passaram a se sentir abandonados,
o que gerava expectativas referentes à permanência – ou não – do povo romeiro na cidade
em que viveu o santo sacerdote. Por fim, era geral o temor de que Juazeiro fosse tomada
por cangaceiros, ladrões e assassinos.

38
O LUCTO pelo Padre Cicero. Jornal do Recife, Recife, p. 3, 13 set. 1934.
39
VOU TOMAR conta do resto do mundo, diz Lampeão. A Noite, Rio de Janeiro, p. 2, 22 ago. 1934.
36

2.2 Entre o problema e a solução: o passado e o futuro

A morte de Padre Cícero era o fim do mundo. E o fim do mundo era o fim de
Juazeiro. O local para onde acorreram milhares de devotos em busca de conforto
espiritual e material parecia perder sua razão de ser. A cidade estava sem o seu patriarca.
Devotos perdiam seu Padrinho. Era um fato inesperado para aqueles que acreditavam em
sua imortalidade ou supunham que ele ainda viveria por mais algum tempo. O advogado
Manoel Dinis, amigo pessoal do sacerdote, escreveu que, por causa do susto, “[...] certo
barbeiro, ao saber que o Padim acabava de expirar, deixou um freguez barbeado só de um
lado, e flechou à toda pressa, para a Rua S. José, onde o grande apóstolo do rosário
começara a dormir seu derradeiro sono”40.
O desaparecimento de Padre Cícero paralisou a cidade41. Sem ele, qual
seria o sentido e o significado da existência de Juazeiro? Os sertanejos pobres, agora
abandonados à própria sorte, eram, paradoxalmente, a riqueza dali. Sua mão de obra e seu
parco poder de consumo sustentavam o município e garantiam a prosperidade dos
pequenos empresários e comerciantes. Uma pergunta ecoava: como seria possível existir
Juazeiro sem Padre Cícero? Essa preocupação havia se apresentado também ao próprio
sacerdote, que manifestou uma súplica em seu testamento:

Aproveito o ensejo para pedir a todos os moradores desta terra, o Juazeiro,


muito especialmente aos romeiros, que depois da minha morte não se retirem
daqui nem o abandonem, que continuem domiciliados aqui, no Juazeiro,
venerando e amando sempre a Santíssima Virgem Mãe de Deus […].42

Numerosos críticos e acusadores do Padre Cícero e de Juazeiro aventavam a


possibilidade de que a cidade deixasse de ter destaque político após o ocorrido. A
manifestação dessa preocupação no início do testamento faz crer que o fundador da cidade
também temia seu posterior esvaziamento. Ainda não se sabia, àquela época, que
futuramente a aura de santidade do Padre revestiria todo o espaço de Juazeiro, fazendo
dela uma cidade sagrada. José Teófilo Machado 43 , ao publicar em 1948 seu Duas
palavras, escreveu, em tom altivo

40
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1935]. p. 229.
41
Ralph Della Cava afirmou que, com a morte do Padrinho, “[...] os pessimistas começaram a cerrar as
portas de suas lojas e a abandonar a cidade, cujos verdes campos eles pensavam que iriam fenecer”.
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985 [1977]. p. 312.
42
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 197.
43
Personagem juazeirense que viria a ocupar o posto de prefeito da cidade durante uma vacância
temporária, entre 1970 e 1971.
37

Ao contrário do que propalavam em 1934, quando faleceu o Padre Cícero,


dizendo que esta cidade ia se reduzir a ruínas e o melão de S. Caetano, cobrir
todas as casas, o Joazeiro continua, cada vez mais em progresso, a ponto de ter
atualmente cerca de 50 mil habitantes, ruas em constantes remodelações,
alinhadas e melhoradas […].44

Catorze anos depois do triste acontecimento, era quase uma vingança mostrar
que Juazeiro permanecia sobrevivendo e, principalmente, crescendo após a morte de seu
pai fundador. Nesse sentido, os aspectos de modernização da cidade também deviam ser
destacados, pois conferiam ao local um ar de superioridade diante do atraso
constantemente relacionado às cidades do sertão. A descrição das ruas alinhadas era
essencial porque distanciava a cidade do aspecto desordeiro, sempre associado às regiões
que possuíam ruas e becos tortuosos e irregulares.
Juazeiro foi acusada diversas vezes de se constituir como um arraial, uma
aldeia de pobres casebres de palha e madeira que poderiam ser destruídos pelo fogo ou
pelo vento a qualquer momento. Os rumores diziam que ali as forças naturais pareciam
se sobrepor à engenharia humana. A existência de ruas perpendiculares permitia imaginar
algo diverso: uma urbe que se inseria nos planos de desenvolvimento nacionais e cujas
avenidas “melhoradas” representavam o avanço, o progresso.
Até 1934, o temor de um possível abandono pode ser percebido em diversos
relatos. Se para alguns a devoção ao Padre Cícero se extinguiria com sua morte, com o
avanço da cultura letrada ou através da interferência da Igreja, para outros a cidade corria
o risco de simplesmente ser abandonada pelos fiéis. Floro Bartolomeu da Costa, numa
perspectiva muito pragmática, afirmou que

[…] o único a se temer depois da morte daquelle sacerdote, é grande parte


daquella população, coagida por perseguições ou desolada pela sua falta,
abandonar o logar, dando avultado prejuizo ao Estado, pela diminuição da
lavoura, reducção do commercio e falta de braços para o trabalho util e
compensador.45

Floro Bartolomeu, médico baiano que passou a residir na região do Cariri em


1908, rapidamente se transformou no maior aliado de Padre Cícero. Foi o grande defensor
da cidade, tentando constantemente desmantelar os discursos que pretendiam afirmar a
semelhança de Juazeiro com um acampamento, um hospício ou Canudos. Afirmou

44
MACHADO, José Teófilo. Duas palavras. Excertos da vida de Padre Cícero. Juazeiro do Norte:
Tipografia São Francisco, 1948.
45
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 153.
38

publicamente, repetidas vezes, que o município se constituía como um importante centro,


desenvolvido e civilizado, podendo ser comparado a Fortaleza, Rio de Janeiro ou São
Paulo. Sua preocupação com a cidade era eminentemente política, embora tenha
ininterruptamente defendido Padre Cícero em todas as esferas. No livro que reproduzia
seu discurso de defesa de Juazeiro, lançado em 1923, ele afiançava que ninguém deveria
ter receio de um suposto “dilúvio de cangaço” quando Padre Cícero desaparecesse46.
O educador paulista Lourenço Filho também se interessou pelos prognósticos
acerca da morte de Padre Cícero e traçou, ao mesmo tempo, possíveis estratégias para
combater o “fanatismo”. Ele havia sido convocado, pelo governo estadual, para
reorganizar o ensino público cearense. Visitou Juazeiro durante essa tarefa. Numa série
de artigos depois reunidos na obra intitulada Juazeiro do Padre Cícero, ele apresentou o
município como uma cidade insana, grotesca, repleta de romeiros pobres e ignorantes.
Segundo o autor, todo o atraso dos sertões teria se condensado ali “[...] para condicionar
maior retrocesso e estabelecer condições propícias de desajustamentos, em que repontam
mentalidades atrasadas por séculos”. 47 Seus escritos defendiam a formação das elites
juazeirenses como solução para os problemas locais. O ensino primário viria em segundo
plano, pois “[...] a ação das elites formadas no cadinho dos centros superiores de cultura
refletir-se-ia na consciência popular”48.
Diversos outros representantes da cultura letrada demonstravam grande
preocupação com o futuro dos sertões após o desaparecimento de Padre Cícero. O medo
era um sentimento constante: as classes favorecidas tinham pavor de revoltas populares,
saques e assassinatos. Eram assombradas também pela possível fuga da mão de obra e de
consumidores. A Igreja receava que o sacerdote fosse definitivamente santificado por
seus fiéis. Os devotos, por sua vez, temiam o abandono, a fome, a miséria, as doenças e
a morte.
O escultor italiano Agostinho Balmes Odísio, em seu caderno de memórias,
apresentou ideias semelhantes àquelas defendidas por Lourenço Filho na década anterior.
Para os membros da elite de então, a fé em Padre Cícero provavelmente se extinguiria, e
a educação seria o único meio de suplantar o fanatismo. Odísio, contudo, defendia que a
escolarização deveria ser destinada a toda a população local, não somente aos filhos das
famílias abastadas. O escultor refletia, inclusive, sobre sua própria trajetória de menino

46
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 153.
47
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 29.
48
Op. cit., p. 182.
39

pobre que só pôde obter formação em seu país de origem graças à ação caridosa de Dom
João Bosco, que construiu numerosas escolas na Itália49. De acordo com Odísio,

[...] desaparecido o porquê das visitas de romeiros ao lugar, a cidade terá que
forçosamente tomar outro aspecto e o povo outro rumo; ou Juazeiro progride
tornando-se cidade operosa, culta e progressista ou fatalmente retrocederá
ficando a Ítaca do sertão nordestino. 50

O perigo de Juazeiro, após o abandono de seu patriarca, transformar-se


numa cidade fantasma era discutido ainda durante a vida do Padrinho. Acreditava-se que,
se o município não progredisse, a população local passaria a eternidade esperando o
retorno de Padre Cícero, como em Ítaca se esperava por Ulisses. Juazeiro corria o risco
de se transformar numa ilha de atraso, numa urbe em que o passado se cristalizava,
transformando-se em eterno presente.
O retorno do romeiro à sua terra natal, a diminuição do número de
visitantes, a paralisia do comércio e o desaparecimento das pequenas manufaturas eram
temas que surgiam frequentemente nas discussões daqueles que lucravam com as
romarias e os romeiros, mas não necessariamente acreditavam na imortalidade do Padre
Cícero. Manoel Dinis, diante da oportunidade de discutir sobre o assunto com o
protagonista dessa história, lançou uma questão ao sacerdote: “E, se V. Revdma. morrer
logo, não haverá uma grande diminuição nesta cidade?” A resposta foi a seguinte: “Não
morrerei logo. Só deixarei este mundo, quando completar cento e cinquenta anos, porque
ainda tenho muita coisa que fazer”.51
Mesmo Manoel Dinis, conhecido amigo do patriarca, teria perguntado ao
próprio Padre Cícero qual seria o destino de Juazeiro após a sua morte. O advogado, que
publicou Mistérios do Joazeiro em 1935, pode ser elencado como um dos defensores de
Padre Cícero e de Juazeiro. Sua preocupação com os rumos da cidade representaria os
temores das elites letradas, dos profissionais liberais e dos detentores de poder em geral.
Obviamente, Padre Cícero não chegou a completar os tais cento e cinquenta
anos. Faleceu aos noventa. E aquilo que muitos vaticinavam, no fim, não aconteceu. A

49
Na Itália, Dom Bosco criou, em 1854, os chamados Colégios Salesianos, que eram baseados em
princípios franciscanos e procuravam assegurar a educação e a evangelização de crianças e jovens
pobres. Agostinho Balmes Odísio estudou numa escola ligada à Congregação, a Escola
Profissionalizante São Domingos Sávio, em Turim. A mesma ordem religiosa se constituiu como a
maior herdeira de Padre Cícero, instalando-se em Juazeiro em 1939.
50
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p.s.n.
51
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1935]. p. 74.
40

cidade continuou a receber numerosas visitas de fiéis, e não necessariamente se


transformou numa urbe culta e progressista, mas também não retrocedeu. Já possuía então
comércio desenvolvido, numerosas oficinas e algumas fábricas. Assim, manteve seu
destaque econômico entre os municípios da região e continuou a crescer mesmo após o
desaparecimento de seu fundador.
Jornalistas e autores de cordéis prosseguiram escrevendo sobre Padre Cícero.
Surgiram numerosas biografias acerca de sua trajetória. Os folhetos populares,
estimulados pelas notícias de repercussão nacional e pelos fatos que envolviam o
Padrinho, não deixaram de considerar que ele continuava sendo um personagem atraente
e poderoso. Conforme destaca a pesquisadora Martine Kunz, “[...] inúmeros folhetos
traduzem as profecias post-mortem de Padre Cícero, os aparecimentos, seus conselhos,
sermões, palavras”52. O sacerdote, portanto, continuava vivo, e talvez mais do que nunca.
Marcela Stinghen afirmou, em sua dissertação intitulada Padre Cícero: a
canonização popular, que “[...] a morte do padrinho [...] parece ativar uma série de
53
mecanismos canônicos de representação que já vinham sendo gestados” . A
pesquisadora tomou como fontes os folhetos populares e chegou à conclusão de que o
desaparecimento do personagem histórico possibilitou o estabelecimento pleno da
imagem do sacerdote como santo. É preciso ressaltar, no entanto, que tais mecanismos de
representação da santidade do padre não podem ser considerados canônicos, pois sua
santidade jamais foi reconhecida pela Igreja Católica.
O Padrinho e seus devotos eram, além disso, personagens mais ou menos
constantes nos jornais locais e nacionais. Desde os fenômenos miraculosos, em 1889, até
a sua morte, em 1934, passando pela sua carreira política a partir de 1911 e seu encontro
com Lampião, em 1926, o sacerdote de Juazeiro foi figura frequente nos periódicos do
país. Um jornalista chegou, inclusive, a lamentar, com certa ironia, o fato de os
hebdomadários terem perdido, com a sua morte, um tema sempre estimulante:
Com o desaparecimento do padre Cícero Romão Baptista, o Joazeiro perdeu
um thaumaturgo e a imprensa de todo o Brasil perdeu um assumpto. É difícil
saber qual foi a perda maior. O mago do Cariry, herói a seu modo, vivia
cercado de uma tal legenda de fantasmagoria mystica, que os seus menores
actos eram sempre objeto de discussões e commentarios jornalísticos. A vida
e os feitos do papa sertanejo, ou, antes, do profeta que fez do Joazeiro uma
nova Mecca milagrosa, estão escriptos vivos e palpitantes, nas columnas dos
jornais de todo o paiz. Era um assumpto de permanente actualidade e de

52
KUNZ, Martine. Cordel – A voz do verso. Fortaleza: Museu do Ceará, 2011. p. 27.
53
STINGHEN, Marcela Guasque. Padre Cícero: a canonização popular. 2000. 171 fls. Dissertação
(Mestrado) — Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2000. p. 114.
41

incomparável sabor local. Mas acabou-se. Só nos resta prantear a irreparável


perda.54

A morte foi sentida por todos. Se os jornalistas lamentavam o fato de


perderem um assunto, uma pauta, uma inspiração, os devotos pranteavam a perda de um
conselheiro, um padrinho, um santo. Em 6 de novembro de 1934, o jornal Carioca O Paiz
alertava para o perigo iminente em que se encontraria o sertão cearense após a morte de
Padre Cícero:

A morte do padre Cícero deixou ao abandono o povo do sertão cearense. Todos


aquelles fanáticos do velho clérigo ficaram sem o seu caudilho e estão agora à
mercê dos próprios impulsos, em véspera de provocar uma agitação perigosa
e de consequências imprevisíveis [...]. As nossas autoridades precisam não
esquecer as origens do drama de Canudos e comparal-a, com o caso de Joazeiro
em tudo semelhante, apesar da diferenciação da época [...]. E sob certos pontos
de vista este de agora é muito mais grave do que aquelle. Os jagunços de
Canudos tinham a dirigil-os um homem, os do Ceará são comandados pelo
prestigio sobrenatural de um phantasma. O seu ímpeto póde tornar-se mais
violento e crear para o paiz uma situação alarmante. 55

O fim de Juazeiro viria através do seu esvaziamento, da fúria popular que


levaria seus habitantes à loucura, do progresso, que eliminaria o fanatismo, ou mesmo por
meio da intervenção das Forças Armadas. Essa era a perspectiva apresentada por boa
parte dos ensaístas que refletiam sobre a morte de Padre Cícero. Em 4 de janeiro de 1931,
o Diário Carioca reproduziu uma suposta conversa entre dois adversários políticos do
sacerdote:

‒ Eu tenho p’ra mim que só com a morte do padre é que esta terra se endireita...
‒ Apois, eu não sou desse pensar. No dia em que a estrada de ferro chegar aqui,
você vae ver: acaba-se cangaço, acaba-se fanatismo, isto aqui se enche de
soldado e tudo entra nos eixos, tudo se endireita!
‒ Preciso ver p’ra entonce crêr! Qual! O Padre Cisso, estando vivo, a estrada
de ferro chegando aqui, nem que inda por riba se puxe um ramal p’ra cada casa
de Joazeiro, Joazeiro não se endireita!56

Para alguns, a estrada de ferro libertaria Juazeiro do Padre Cícero e de seus


seguidores. O transporte facilitaria a chegada do poder armado, que eliminaria o cangaço.
Permitiria ainda o acesso de padres, juízes, professores, médicos e outros profissionais
liberais, que até aquele momento preferiam habitar as cidades do litoral. A população

54
THAUMATURGO e Assumpto. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, p. 2, 2 ago. 1934.
55
NA PERSPECTIVA de um novo Canudos. O Paiz, p. 3, Rio de Janeiro, 6 nov. 1934.
56
INCORRIGÍVEL. Diário Carioca, Rio de Janeiro, p. 6, 4 jan. 1931.
42

finalmente se educaria e passaria a respeitar os dogmas católicos. Para outros, no entanto,


nem mesmo a estrada de ferro, símbolo máximo da modernidade, seria capaz de tirar
Juazeiro da situação em que se encontrava, pois a presença de Padre Cícero estimularia
uma idolatria incontrolável. Apenas sua morte poderia dar fim ao fanatismo. Imaginava-
se, portanto, que em 1934 tudo teria fim: o Padre Cícero, o Juazeiro e a crença dos
habitantes daquela cidade em Padre Cícero. Não foi o que ocorreu.
O Diário Carioca publicou, entre 1935 e 1936, numerosas reportagens sobre
o Caldeirão, geralmente encaminhadas diretamente de Fortaleza pelo correspondente
local, a Gazeta de Notícias. O Caldeirão era uma comunidade de agricultores surgida em
1926 que se organizou numa terra cedida pelo Padre Cícero no atual distrito de Santa Fé,
sediado no munícipio de Crato. Ali viveram pessoas pobres de todo o Nordeste que
chegavam a Juazeiro sem bens, emprego e destino. O grupo que ali vivia foi liderado pelo
beato José Lourenço57, responsável por organizar os moradores, de maneira produtiva,
em uma espécie de cooperativa. No Caldeirão, “tudo era de todos e nada era de ninguém”.
O que era de um, era de todos 58 . Em 1935, o periódico publicava, numa coluna da
primeira página, pequena reportagem afirmando que “[...] explorando a memória do
Padre Cicero, dois espertalhões arrebanham multidões de fanáticos para o plantio do
campo, prometendo-lhes a salvação e a vida eterna!”. Acrescentava que “[...] um deles
finge-se de Menino Jesus para receber carinho das mulheres fanatizadas!”59.
A persistência da comunidade fundada por Padre Cícero, guiada pelo beato
José Lourenço e divulgada, em todo o Nordeste, pelo beato Severino Tavares preocupou
as autoridades. Em 13 de maio de 1936, o jornal carioca lembrou em seu editorial que,
com o desaparecimento do Padre Cícero, todos pensavam “[...] que aquellas
manifestações mysticas viriam a se acabar. Mas a alma simples e rude da gente estava tão
impregnada daquele fetichismo que tudo continuou como estava” 60.

57
José Lourenço Gomes da Silva nasceu em 1872, em Pilão de Dentro, estado da Paraíba, e chegou em
Juazeiro quando tinha em torno de vinte anos. No início dos anos 1890 (não se sabe ao certo se 1891,
1892 ou 1894), logo após o fenômeno da hóstia, reuniu-se temporariamente aos beatos da cidade. Ele e
sua família eram agricultores, por isso rapidamente resolveu, após consulta ao Padre Cícero, arrendar
um terreno em Baixa Danta, no município de Crato. Para maiores informações, Cf. LOPES, Régis.
Caldeirão: estudo histórico sobre o Beato José Lourenço e suas comunidades. Fortaleza: Instituto Frei
Tito de Alencar, 2011. p. 43-44.
58
Conforme depoimento de D. Maria de Maio a Francisco Régis Lopes. LOPES, Régis. Caldeirão: estudo
histórico sobre o Beato José Lourenço e suas comunidades. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar,
2011. p. 75.
59
UMA CHANTAGE Curiosa! Diário Carioca, Rio de Janeiro, p. 1, 21 fev. 1935.
60
OS FANÁTICOS do Padre Cícero. Diário Carioca, Rio de Janeiro, p. 6, 13 mai. 1936.
43

No dia posterior, 14 de maio de 1936, o tema foi capa do jornal, com o título:
“A Polícia do Ceará vai acabar com os beatos e beatas de Juazeiro – Ladrões e assassinos
explorando a memória do Padre Cicero para melhor tirar proveito das massas fanáticas”.
A matéria, construída a partir de pareceres oficiais, mas também bastante influenciada
por rumores, afirmava que a morte de Padre Cícero estava sendo utilizada como meio de
enriquecer criminosos e aproveitadores. Na reportagem lê-se:

Muita gente pensava, nós inclusive, que com o desaparecimento daquele


sacerdote, tivesse fim também as manifestações de baixa crendice e exagerada
fé, filha da ignorância da maioria daqueles que a manifestavam. Puro engano.
Joazeiro ainda hoje ostenta os seus focos de beatos e beatas ignorantes. 61

Ou seja: a crença na santidade de Padre Cícero não feneceu com sua morte.
A permanência dessa fé e a sobrevivência de grande ajuntamento de pessoas irmanadas
em torno de uma mesma ideia pareciam ameaçadoras para as autoridades locais. Mais
uma vez, o fantasma de Canudos rondava o Brasil. É interessante notar, contudo, o fato
de as soluções violentas serem geralmente desestimuladas pelos jornalistas, que
ressaltavam a necessidade de educar os povos do sertão para que a polícia não tivesse,
outra vez, que intervir.
A ideia de que Juazeiro era um antro de fanáticos foi explorada por muitos
cronistas, jornalistas, estudiosos e viajantes. Era, na verdade, o argumento principal de
boa parte das narrativas elaboradas sobre a cidade. Abelardo Montenegro, por exemplo,
publicou na década de 1950 seu História do fanatismo no Ceará, em que dedicava um
longo capítulo à discussão dos milagres de Juazeiro. Montenegro defendia que as
populações sertanejas tinham como principal característica o primarismo e, por esse
motivo, eram incapazes de refletir e assimilar princípios religiosos, exprimindo sua fé de
modo infantil. Para o autor, “[...] o misticismo sertanejo difere do misticismo dos santos.
Enquanto o santo se esforça por elevar a alma a Deus, o sertanejo procura fazer com que
Deus baixe até ele” 62 . Entendimentos semelhantes eram recorrentes nos estudos de
meados do século XX, ensejando preconceitos relativos à fé dos romeiros, devotos e
beatos.

61
A POLÍCIA do Ceará vai acabar com os Beatos e Beatas de Juazeiro – Ladrões e Assassinos Explorando
a memória do Padre Cicero para melhor tirar proveito das massas fanáticas. Diário Carioca, Rio de
Janeiro, p. 1, 14 mai. 1936.
62
MONTENEGRO, Abelardo. História do fanatismo religioso no Ceará. Fortaleza: Editora Batista
Fontenele, 1959. p. 127.
44

Entre os críticos de Juazeiro, havia há muito tempo uma forte tendência a


depreciar a existência dos beatos e beatas. Tais homens e mulheres eram leigos,
geralmente pobres e poucos escolarizados, que viviam para a oração e o trabalho e usavam
vestes específicas (“camisolões” para os homens e vestidos negros para as mulheres). A
cultura letrada enxergava a presença desses sujeitos como um indício de atraso cultural e
fanatismo, que deveria ser eliminado. Para o escritor e psiquiatra juazeirense radicado no
Rio de Janeiro, Antônio Xavier de Oliveira, os beatos haviam surgido na terra do Padre
Cícero, dispersando-se, posteriormente, pelas demais cidades do Nordeste.
Xavier de Oliveira dedicou muito tempo ao estudo das psicoses de feitio
religioso, defendendo que seriam doenças capazes de constituir, em terrenos férteis,
verdadeiras epidemias. No Pavilhão de Assistência aos Psicopatas da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, debruçou-se exclusivamente sobre o estudo de distúrbios
mentais dos autodenominados profetas. Foi considerado pelos juazeirenses como um
detrator de Padre Cícero, por ter escrito um libelo que, em 1920, gerou bastante mal-estar.
Em seu livro Beatos e cangaceiros, descreveu as duas categorias que mais perturbavam
a concepção de uma Juazeiro moderna, ordenada e racional. A obra foi muito criticada
entre as lideranças locais. Floro Bartolomeu, depois de tecer longa crítica, afirmou que as
narrativas do livro eram contos “[...] inverídicos e mal descriptos”63. Xavier de Oliveira
delineou em seu livro aquelas que considerava serem as principais características dos
beatos:

O que é um beato lá no meio religioso de Juazeiro do Padre Cicero? É um


sujeito celibatário, que faz votos de castidade (real ou aparentemente), que não
tem profissão, porque deixou de trabalhar, e que vive da caridade dos bons e
das explorações aos crentes. Passa o dia a rezar nas egrejas, a visitar os
enfermos, a enterrar os mortos, a ensinar orações aos crédulos, tudo de acordo
com os preceitos do catecismo! Veste à maneira de um frade: uma batina de
algodão tinto de preto, uma cruz às costas, um cordão de São Francisco
amarrado à cintura, uma dezena de rosários, uma centena de bentinhos de São
Bento, uns saquinhos com breves religiosos e com orações poderosas, tudo
pendurado no pescoço. São, geralmente, indivíduos vagabundos, hypocritas,
delirantes religiosos, ou bandidos!64

Tal descrição, eivada de muitos adjetivos pouco afáveis, deixa entrever algo
do posicionamento das elites acerca dos beatos nordestinos. A existência de tais sujeitos

63
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 120.
64
OLIVEIRA, Xavier de. Beatos e cangaceiros. História real, observação pessoal e impressão
psychologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. Rio de Janeiro: s.n., 1920. p. 39.
45

era considerada uma vergonha para a região. Suas crenças causavam constrangimento aos
membros da cultura letrada, assim como as vestes, rosários e cruzes que carregavam. Por
serem religiosos que não possuíam a tutela da Igreja, incomodavam também os sacerdotes
mais conservadores. O fim da existência de beatos seria, para muitos, o primeiro passo
em direção ao progresso.
De certa forma, as elites juazeirenses eram constituídas por dois grupos: um
deles era representado por “filhos da terra”, que já viviam na localidade muito antes da
emancipação do município; o outro era o grupo de “adventícios” (ou romeiros), que
chegaram após o fenômeno da hóstia, em 1989. De acordo com o Almanaque do Cariri
(1949), a grande concentração demográfica da região teria duas origens: a primeira estaria
relacionada aos “prodígios de Maria de Araújo”, que a partir de 1889 contribuíram para
a atração de pessoas “das Alagôas, Bahia, Pernambuco, Piauí, Goiaz”, bem como do Rio
Grande do Norte e da Paraíba65. A segunda onda de chegada da população local estaria
ligada ao período posterior à independência de Juazeiro e à Revolução de 1914,
consolidando-se com a instalação dos trilhos da estrada de ferro de Baturité, em 1926.
Com efeito, em 1920 a cidade possuía, de acordo com o Censo66, 22.067 pessoas. Em
194067, a população já chegava a 38.145 habitantes. É, no entanto, difícil saber se houve
um processo de emigração após a morte de Padre Cícero, pois não foi realizado nenhum
Censo em 1930.
O estabelecimento de Juazeiro como morada definitiva de Padre Cícero
permitiu que a cidade fosse procurada por muitos viajantes enquanto o sacerdote vivia.
Alguns apenas visitavam o local temporariamente, pediam conselhos e bênçãos ao
Padrinho e retornavam aos seus lares. Outros, contudo, permaneciam. Ali fixavam
residência e criavam suas famílias. Buscavam moradia, sustento e conforto espiritual.
Esses foram os reais fundadores da cidade, e eram justamente os mesmos sujeitos que
poderiam desaparecer após a morte do patriarca de Juazeiro.

65
LEITE, Francisco de Assis; ALVES, Joaquim (Org.). Almanaque do Cariri – 1949. Fortaleza: s.n.,
1949. p. 147.
66
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ministério da Agricultura, Indústria e
Commercio – Directoria Geral de Estatística. Recenseamento do Brazil realizado em 1º de setembro
de 1920. Volume IV (4ª Parte); População. Rio De Janeiro: Typ Da Estatística, 1929.
67
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento geral do brasil (1º de
setembro de 1940): série regional. Parte VI – Ceará – Tomo I – Censo Demográfico. População e
habitação – quadros totais referentes ao estado e de distribuição segundo os municípios. Quadros
sinóticos por município. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1950.
46

É preciso considerar que, tradicionalmente, muitos retirantes procuravam a


região do Cariri pela presença das numerosas fontes de água da Chapada do Araripe. As
famílias sertanejas buscavam um clima mais ameno e propício para a agricultura e a
pecuária. Esse fenômeno não se iniciou com a devoção ao Padre Cícero. Os períodos de
seca já moviam, há muito tempo, grupos que fugiam das condições climáticas, sociais e
econômicas do semiárido nordestino, especialmente dos estados que guardam
proximidade com a região do Cariri, como Pernambuco, Paraíba e Piauí68.
Como se sabe, a seca de 1877 trouxe terror aos sertões. A falência da cultura
do algodão, a crise da agricultura de subsistência e a ausência de uma estrutura patriarcal
que protegesse os trabalhadores nos períodos de seca foram problemas gravemente
sentidos pela população. Os serviços públicos, além disso, ainda não estavam preparados
para lidar com desastres climáticos em grandes proporções. Essa população, abandonada,
procurou as mais diversas maneiras de sobreviver durante o período, embora muito
frequentemente tenha encontrado apenas a miséria e a morte. Em 1915, uma nova seca
trouxe prejuízos semelhantes ao Nordeste. Padre Cícero, recordando esse período,
afirmou, em carta ao Frei Syrilo:

Temos atravessado um período tão cheio de aflições e o flagelo da fome tão


grande que quase se despovoam os nossos sertões, morria-se de pura fome em
todo estado e estados vizinhos. Quase morro de aflição, acabei a que tinha e
ainda fiquei devendo quantias que só Deus me dará jeito remir-me. 69

Com a morte de Padre Cícero, as classes dominantes locais começaram a se


preocupar: já não haveria bom samaritano disposto a salvar os sertanejos que procuravam
refúgio em tempos de seca. Os miseráveis não encontrariam sacerdotes, santos ou
prefeitos dispostos a garantir terra e alimento para as vítimas da fome. Não existiriam
mais a beata Maria de Araújo, os milagres, o Padrinho que a todos acolhia. Os migrantes
se dissipariam. Com isso, seria sentido o preço da escassez de mão de obra. Alguns
imaginavam ainda que os romeiros de Juazeiro buscariam o Sudeste e o Norte após a
morte do Padrinho. Em certa medida, pode-se afirmar que isso de fato ocorreu. Os
sertanejos migrantes se tornaram um problema (ou uma solução) para questões
relacionadas ao desenvolvimento do país.

68
Cf. MAIA, Janille Campos. Exilados da fome: Seca e migração no Ceará oitocentista. 2015. 167 fls.
Dissertação (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2015.
69
SILVA, Antenor de Andrade. Cartas do Padre Cícero [1877 – 1934]. Salvador: E. P. Salesianas, 1982.
p. 191.
47

No calor do momento da partida do Padre Cícero, em novembro de 1934, o


jornalista Jarbas de Carvalho resumia, em seu artigo intitulado “O santo moderno”,
publicado no jornal O Paiz, o sentimento geral e os temores acerca das possíveis agitações
em Juazeiro após a morte de Padre Cícero:

Morto o padre Cícero, acreditou-se que a situação se modificasse no Joaseiro.


Realmente, ella se modificou – mas, não como acreditavam as autoridades do
Estado. Modificou-se para peor. Porque, o fanatismo e a idolatria – que fariam
com que o povo fosse capaz de desatinos, – em vida de Cicero tinham o freio
formidável da sua palavra. Mas, agora? Quem o dirige é a sua lembrança, ou o
seu espírito – é um duende que estende sua larga mão de sombra sobre o
Joazeiro, e o gesto, sem eloquência própria, não terá o complemento da
palavra. Todos querem e hão de interpretar o desejo pairante do thaumaturgo,
sempre presente em espírito, cada um a seu modo. Eis o perigo. 70

Alguns, no entanto, especulavam sobre a possível permuta de Padre Cícero


por outra liderança. Imaginava-se que os devotos, como tábulas rasas, tivessem propensão
a aceitar a palavra de um substituto qualquer. Diante da inexistência de tal substituto
imediato, afirmavam que sua santidade provavelmente seria corporificada pela estátua de
bronze presente na praça Almirante Alexandrino:

Um telegrama comunica-nos o falecimento do padre Cicero. Estamos de longe


a adivinhar o espetáculo. O Juazeiro todo em lagrimas, em clamores, em
procissões. A romaria dos fiéis de todos os quadrantes do Ceará em direção à
cidade em que ele era tudo, o poder espiritual e o poder temporal. Aquella
gente mystica e fanática, à espera de milagres, talvez acreditando na
ressureição do vigário morto. Quem irá substituil-o? Provavelmente ninguém,
porque tão cedo a memória dos seus actos não deixará Joazeiro. Lá existe a sua
estatua. Diante dela irão ajoelhar-se milhares de crentes. E ele governará a sua
cidade através daquele bronze... 71

Havia quem admitisse a singularidade do Padrinho, ressaltando que a forte


ligação entre ele e seus romeiros não seria facilmente rompida. A ideia de que seus
seguidores e devotos se voltariam para a estátua de bronze, prestando cultos como se nela
habitasse o sacerdote morto, aparece em diversas especulações levantadas durante esse
período.
Imaginava-se que, morto o homem, algo deveria ocupar seu lugar, fosse gente
ou objeto. Os sertanejos, ainda um pouco selvagens, careciam de um líder e de um ícone.
Ao contrário do que supuseram os jornalistas que apenas imaginavam a devoção em

70
CARVALHO, Jarbas de. “Um santo moderno”. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 3, 8 nov. 1934.
71
O JOAZEIRO e o Padre Cícero. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 3, 21 jul. 1934.
48

Juazeiro, sem conhecê-la a fundo, a estátua de bronze parece ter sido alvo, desde a sua
criação, de certa rejeição. Segundo o periódico A.B.C.,

Os beatos quando viram na praça aquelle vulto escuro em bronze,


revoltararam-se. O Padrim não era negro... E para que o monumento não fosse
arrancado pelos extranhos iconoclastas, foi preciso que o próprio padre lhes
explicasse que aquillo era assim mesmo, que era a côr do bronze, e que a figura
não podia ser como a dos santos dos altares, porque do contrario a chuva a
estragaria.72

Talvez a cor da estátua não fosse o maior problema. Acontece que ela não
lembrava em nada os santos dos altares. Não era uma obra capaz de trazer à tona os
sentimentos mais ternos dos devotos, assim como não refletia a bondade de Padre Cícero.
O caráter cívico da representação acabou desestimulando o culto.
Os devotos amavam o Padrinho que sempre portava uma velha batina
surrada, não aquele que carregava uma toga romana. Além disso, aquele Padre Cícero da
praça estava, como o Padrinho, alijado da Igreja. Tomava chuva e sol, sem apresentar
diferença em relação aos demais homens públicos. Não tinha a proteção da sombra de um
templo ou da abóbada sagrada. Era um político como outro qualquer.
O jornal O Paiz, diante da disputa entre Juarez Távora e os partidários de
Accioly, lembrava que o Padrinho poderia resolver a questão política caso estivesse vivo,
pois certamente daria a vitória a um dos grupos. Discutia também o uso da imagem:
“Quem sabe se a estatua do padre Cicero não vai receber ainda a consulta dos partidos
cearenses, transformada em oraculo de bronze?...”73. Os jornalistas aproveitaram para
destilar sarcasmo ao falarem sobre a possibilidade de aquele monumento substituir o
santo local.
Além da existência de intelectuais e políticos preocupados com a ausência de
Padre Cícero, havia ainda o problema dos devotos que não acreditavam na morte do
sacerdote. O periódico O Observatório Econômico e Financeiro contou, numa de suas
edições, a seguinte história:

Encontramos, num porto [...], um cearense que voltava do sul. Deu-nos, como
tantos outros, a imagem da sua ingenuidade: falando do Padre Cícero, duvidou
que ele estivesse morto, e disse: ‘Quando havia a guerra na Allemanha, o
padrinho padre Cicero subiu numa nuvem afogueada, desceu nos campos da
Europa e acabou com a guerra’. E declarou ter visto, em casa do padre Cicero,
a fotografia ‘ainda com a nuvem cor de fogo’. Como um passageiro duvidasse,

72
O SANTO de Joazeiro. A.B.C., Rio de Janeiro, p. 3, 31 mar. 1934.
73
O MAJOR Távora e a Política do Ceará. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 1, 24 jul. 1934.
49

ele benzeu: ‘T’esconjuro! Você é o bode! Não quero saber de conversa com o
bode!’. Eis a matéria prima da emigração.74

A reportagem tratava especificamente do problema da emigração, alegando


que os cearenses que tentaram a vida no Sul eram, geralmente, incultos, ingênuos e/ou
ignorantes. A religiosidade foi utilizada como meio de convencer o leitor da precária
condição intelectual de tais sujeitos. Com efeito, em matéria publicada pelo jornal O Paiz
cinco dias após a morte do Padrinho, afirmou-se:

Há vários dias que Joazeiro está coberta de lucto, cheia de romeiros tristes
carpindo o trespasse do santo. Ninguém, entretanto, acredita na sua morte. Para
aquella gente, começou a eternidade de Cicero. E ele continuará a realizar
milagres [...]. Para o Joazeiro, para o sertão, para o Ceará, o que houve foi a
morte de um Deus.75

A ausência física de Padre Cícero inquietava aqueles que se preocupavam


com o futuro. Para muitos, a cidade seria tomada por cangaceiros. Havia quem imaginasse
que os devotos enlouqueceriam e protagonizariam cenas de revolta e violência diante da
morte do Padrinho. Muitos, por fim, preocupavam-se com os rumos políticos do Ceará.
Mas os santos, como se sabe, não morrem.
Os romeiros acreditavam que Padre Cícero não os abandonou
definitivamente: apenas fez uma viagem. As estátuas que o representavam, os folhetos de
cordel, os benditos de Juazeiro76, os recortes de jornal e os livros lançados após sua morte
contribuíram para avivar sua recordação, ressaltar sua santidade ou relembrar sua
importância política. Assim, constituíram-se em meios de memória utilizados pelos
devotos, romeiros e seguidores saudosos do Padrinho.
Após o desaparecimento de Padre Cícero, as visitas ao município fundado por
ele tomaram outro caráter. O sacerdote já não podia ser visto e ouvido, mas continuava a
ser amado. A ideia de que Juazeiro era o “Meio do Mundo”77, um território sagrado que

74
A EMIGRAÇÃO. O Observatório Econômico e Financeiro, Rio de Janeiro, p. 107, fev. 1939.
75
A MORTE de um homem deus. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 2, 25 jul. 1934.
76
Benditos são cânticos religiosos da tradição popular. Numerosos benditos entoados em Juazeiro
possuíam aspectos narrativos e faziam menção à história e à memória de Padre Cícero. É preciso
considerar que muitos desses cânticos foram apropriados e modificados pela Igreja Católica, num
esforço de disciplinarização das práticas religiosas populares. Para maiores informações, cf. PAZ,
Renata Marinho. Para onde sopra o vento. A Igreja Católica e as Romarias de Juazeiro do Norte.
Fortaleza: Editora IMEPH, 2011.
77
Segundo Ramos, o termo “meio” é apropriado para definir Juazeiro por representar o trânsito entre o
Céu e a Terra: “Juazeiro é um meio do mundo. A ambiguidade do termo permite interpretações sobre o
sagrado como algo encarnado: experiência religiosa que é vivência concreta, e não um mero ‘sistema
de crenças’”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo: Território sagrado em Juazeiro do
Padre Cícero. Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 13.
50

exalava a sua santidade por todas as ruas e praças, ganhou grandes proporções. A cidade
deixou de ser somente a morada de Padre Cícero, o lugar em que era possível receber os
conselhos e bênçãos de um santo, e foi se tornando, aos poucos, um espaço sacralizado e
habitado pela sua recordação. Além disso, continuou se configurando como centro
comercial, econômico e de serviços.

2.3 Uma solução: para o corpo da escultura e do escultor

Em 1934, o escultor Agostinho Balmes Odísio possuía 53 anos e um coração


que começava a falhar. Além disso, sofria com o terrível reumatismo. Seu médico
recomendou mudança brusca: o escultor deveria deixar as terras frias do Sudeste do Brasil
e buscar um local quente. Somente assim suas dores seriam sanadas. Surgiu o dilema:
para onde ir? Soube então que havia, num lugar distante e desconhecido, uma terra de sol
inclemente em que residiam quarenta mil almas devotas de um só homem, Padre Cícero.
Odísio logo imaginou que aquele seria um excelente terreno para se curar dos males do
corpo e lucrar com sua arte. Um povo tão intensamente religioso certamente se
interessaria não apenas por estátuas de santos já tradicionais, mas também por imagens
do novo santo que acabava de partir para os céus.
O escultor tomou sua decisão e, em 28 de setembro de 1934, partiu do porto
do Rio de Janeiro rumo a Fortaleza. Levava consigo um ajudante, Paulino. A bordo do
navio Comandante Ripper iniciou um diário. Descreveu nessas páginas o encanto que
teve ao conhecer Salvador, Recife, Cabedelo, Natal e Fortaleza. Mas seu destino não era
uma dessas belas, frescas e desenvolvidas cidades litorâneas: em breve, um alquebrado
comboio o conduziria ao lugar final, Juazeiro do Norte.
Agostinho Odísio se deslocou até o Nordeste com o objetivo de alavancar a
carreira, produzindo objetos que representassem o Padrinho. Essas “lembranças” que os
romeiros levavam de volta para seus locais de origem, e que os comerciantes e
empresários da cidade utilizavam para abençoar seus negócios e fazer propaganda,
constituíram-se como meios de vida para Odísio e meios de recordação para os devotos
de Padre Cícero.
Odísio se apropriou do corpo (morto) de Padre Cícero. Foi, de certa forma, o
primeiro a esculpir o santo Padrinho. Claro que já existiam outras esculturas do sacerdote,
tanto dentro das casas dos romeiros quanto na praça Almirante Alexandrino. Não havia
51

ainda, contudo, uma estátua sua, semelhante às dos santos, abrigada sobre um nicho,
protegida e adorada. Nisso, Odísio foi pioneiro, isto é, foi o primeiro a arquitetar a
imagem do santo.
O escultor também redigiu um caderno de memórias com o objetivo de
perenizar sua lembrança sobre a singular terra de Juazeiro 78 . A potência dos
acontecimentos testemunhados por ele foi encarcerada no escrito para que não se perdesse
com o tempo. Num amontoado de folhas sem pauta, ele se pôs afa registrar a experiência
vivida.
O caderno de memórias de sua lavra por vezes parece apresentar pretensões
literárias. Tem, inclusive, as páginas numeradas, tal como um livro79. Foi doado por sua
neta, Vera Siqueira, ao Museu do Ceará, que o publicou, em 2006, como edição fac-
similar. Esse gesto garantiu sobrevida ao nome do escultor, que já caía no esquecimento80.
Mais que isso: forneceu uma valiosa fonte para os historiadores de Juazeiro,
principalmente àqueles que se preocupam com o tempo em que Padre Cícero,
desaparecido da cidade, mostrou-se capaz de manter o poder acumulado sobre seus
devotos e afilhados.
Quando chegou à cidade, Odísio encontrou um mercado de arte sacra
relativamente consolidado. As esculturas de madeira juazeirenses, que até então faziam
certo sucesso, eram feitas, segundo o marmorista italiano, de modo rústico, sem muito
esmero. Ele narrava que na cidade era possível encontrar:

[...] bancas de santos, quadros religiosos, rosários, terços, bentinhos, medalhas,


orações, imagens de pao (sic) desde Sant. Onófrio barbado como um troglodita

78
Segundo Assmann, “[...] cada mídia descerra um acesso específico à memória cultural. A escrita, que
acompanha a língua, armazena coisas diferentes e de maneira diferente em comparação ao que as
imagens fazem [...]. O corpo também pode funcionar como um meio em si, na medida em que os
processos psíquicos e mentais de recordação são ancorados de maneira tanto somática quanto neuronal
[...]. Por fim, as mídias externalizadas da memória incluem localizações que são convertidas em lugares
de memória, devido a algum acontecimento de relevância religiosa, histórica ou biográfica. Lugares
podem atestar e preservar uma memória, mesmo para além de fases de esquecimento coletivo. Após
intervalos de suspensão da tradição, peregrinos e turistas do passado retornam a locais significativos
para eles, e ali encontram uma paisagem, monumentos ou ruínas. Com isso ocorrem “reanimações”, nas
quais tanto o lugar reativa a recordação quanto a recordação reativa o lugar”. ASSMANN, Aleida.
Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp,
2011. p. 24-25.
79
Odísio insere números na margem superior direita do seu manuscrito, desde o início até a página 107.
Para permitir a correta referenciação, optei por seguir essa numeração, acrescentando os números que
faltavam, entre as páginas 108 e 133.
80
Graças a esse destaque dado a seu nome a partir de 2006, o escultor chegou inclusive a ser nomeado,
em 2013, patrono de uma nova cadeira do Instituto Cultural do Vale Caririense (ICVC), a de número
72. Cf. O ICVC Instituto Cultural do Vale Caririense terá 60 novos patronos. Gazeta de Notícias,
Juazeiro do Norte, p. 6, 15 nov. 2013.
52

a São José feito a machado por ser ele carpinteiro e Nossa Sra. feia como uma
megera, porem tudo bem ‘encarnadinho’ e lustroso (grifo nosso).81

Odísio analisava, nesse trecho de seu caderno de memórias, um pouco do


“estado da arte” dos objetos religiosos de Juazeiro, dando atenção especial à qualidade
das esculturas então produzidas ali. Os artesãos locais, como Mestre Noza, utilizavam
“pau”, ou seja, madeira para esculpir. Embora a umburana, principal matéria-prima
dessas obras, fosse flexível o suficiente para ser esculpida com instrumentos
relativamente delicados, o visitante italiano notava que o uso de ferramentas brutas e
rudimentares levava a resultados que pouco lembravam imagens mais realistas.
A população local se afeiçoou ao realismo do trabalho de Odísio, “[...] rindo-
se e debochando agora as outras imagens de pau dos artistas da terra, as quais tratam de
= calungas = e ninguém mais compra” 82 . A chegada do escultor italiano parece ter
transformado o consumo de arte religiosa na cidade. Além disso, ele se dedicou
esporadicamente à arte funerária, tendo recebido encomendas para produzir os túmulos
de personagens importantes da região.
Talvez seja relevante destacar que Euclides da Cunha, em Os Sertões, ao
descrever a mobília e os objetos típicos de uma habitação de Canudos, afirmou haver em
todas as pequeninas residências um quarto que abrigava o oratório familiar. De acordo
com a descrição do jornalista, havia nessas casas típicas,

[...] ao fundo do único quarto, um oratório tosco. Neste, copiando a mesma


feição achamboada do conjunto, santos mal acabados, imagens de linhas duras,
a objetivarem a religião mestiça em traços incisivos de manipansos: Santos
Antônios proteiformes e africanizados, de aspecto bronco, de fetiches; Marias
Santíssimas, feias como megeras... (grifo nosso). 83

A comparação utilizada por Odísio para descrever as imagens da Virgem


Maria era a mesma já mencionada na narrativa de Euclides da Cunha. Tais esculturas
eram, em suas palavras, “feias como megeras”. Mesmo a referência aos aspectos
“africanizados” das estátuas em madeira se repetirá no caderno de memórias, quando o
escultor italiano afirma que as peças de madeira fabricadas em Juazeiro passaram a ser

81
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 76.
82
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 92.
83
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 82.
53

designadas pelos devotos de Padre Cícero como “calungas”84. Existem, portanto, indícios
de que Odísio teria lido Os Sertões, embora não mencione o livro em suas memórias85.
A atividade profissional desenvolvida por Agostinho Odísio pode ser
compreendida como a de um “artista-artesão”. Ele dominava toda a produção, desde a
compra da matéria-prima e elaboração do projeto da imagem a ser esculpida até o trabalho
em gesso, concreto ou pedra. É preciso lembrar que a escultura feita nesse sistema
deveria, necessariamente, agradar ao comprador. Não havia espaço para grandes ousadias
e voos artísticos86.
Os artistas da madeira que, na década de 1930, foram desprezados por Odísio,
passaram posteriormente a desdenhar daqueles que fabricam imagens em gesso, pois, sob
o ponto de vista dos artesãos criativos, aqueles que modelam o gesso unicamente sabem
colocar a massa dentro de uma forma e retirar depois de algum tempo. Mesmo a pintura
das obras em gesso costuma ser feita com pouco cuidado, pois a rapidez e a alta
produtividade são elementos mais valorizados que a qualidade. Já o artesão que usa a
madeira costuma dedicar-se a apenas uma peça por vez, trabalhando durante diversos dias
a mesma matéria bruta87.
Quando chegou em Juazeiro, Odísio já atuava no ramo da escultura há muitas
décadas. A região Sudeste era seu campo de trabalho. Lá, era conhecido e respeitado, e
por muito tempo não lhe faltaram encomendas. Segundo sua neta, Vera Siqueira, o artista
italiano decidiu mudar a rota de seu destino ao ler o suplemento do jornal carioca Noite
Ilustrada88 de 1 de agosto de 1934, que anunciava a morte de Padre Cícero:

Abaixo de Deus, para os nordestinos, estava aquelle velhinho, franzino de


corpo, mas de espírito poderoso. Companheiro e chefe de todas as horas, cujo
braço e cujas palavras lhes traziam a paz nos momentos aflictivos, o consolo e

84
Odísio provavelmente se referia às figuras de maracatus originadas entre os bantos, que lembram
bonecas e encarnam as forças de antepassados dos grupos.
85
O escultor leu, sem dúvida, livros sobre o sertão. Inclusive afirma ter ouvido, ao chegar no Ceará,
notícias sobre as secas que o surpreenderam, “[...] apesar de já ter conhecimento de muitas obras de
valor que descrevem o flagelo”. ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre
Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006. p. 95.
86
Maria Eliza Borges defende que, nesse tipo de organização do trabalho, “[...] o manufaturado artístico
era aprazível pela sua utilidade, pela sua feitura ou pelo significado religioso que possuía” . BORGES,
Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890-1930). Ofício de marmoristas italianos em Ribeirão
Preto. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2002, p. 49.
87
RAMOS, Francisco Régis. O verbo encantado. A construção do Pe. Cícero imaginário dos devotos.
Ijuí: Editora Unijuí, 1998. p. 113-114.
88
Sua neta, Vera Odísio Siqueira, é a responsável pela informação de que a ideia teria surgido com a
leitura de um artigo na revista Noite Ilustrada. Foi possível encontrar essa reportagem na Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Depreende-se que esse é o texto ao qual Vera Odísio se refere.
SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio
discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 68.
54

a orientação nos dias desesperadores. Para a sua compreensão rudimentar,


castigada e exaltada numa vida de luta constante, sob clima inclemente, aquele
homem milagroso, que fundara uma cidade de quarenta mil almas, que vencera
todos os adversários, não podia ser feito da mesma massa de que fizeram as
demais criaturas89.

Em Juazeiro, àquela época, já existiam outros artistas-artesãos que


fabricavam estátuas voltadas ao culto religioso. Talvez tais imagens não correspondessem
a uma perfeita representação da figura humana, mas cumpriam a função a qual se
propunham. Segundo Odísio, havia escultores que optavam por usar o machado como
ferramenta para esculpir, por exemplo, São José. Conforme sua descrição, esses
“fabricantes de imagens de madeira” eram apenas “[...] artistas primitivos, mas que
preenchem toda e qualquer exigência dos fregueses, pois por o romeiro tudo é santo,
desde que seje barato e encarnado”90.
Tais esculturas rústicas, geralmente elaboradas em madeira, tornaram-se
marca da arte e do artesanato em Juazeiro do Norte. Até os dias atuais, dezenas de
santeiros continuam a esculpir figuras na umburana. Algumas dessas obras são também
pintadas com tinta a óleo ou, mais recentemente, com tintas foscas. Os santos muitas
vezes dão lugar a personagens mitológicos, animais híbridos e invenções totêmicas. São
objetos admirados e vendidos nos mercados de arte local, nacional e internacional, e é
justamente o aspecto rude, ou até mesmo tosco, que interessa àqueles que se sentem
fascinados por uma arte considerada mais primitiva, ou naïf.
Odísio não apreciava esse tipo de trabalho. Formado pela Escola de Belas
Artes de Turim, ele vinha de uma tradição diferente. Acostumado a esculpir bustos de
figuras políticas e autoridades em geral, bem como a se dedicar à arte funerária e sacra,
ele buscava imprimir o maior realismo possível em suas peças. Em seu caderno de
memórias, o escultor se mostrou orgulhoso com os elogios feitos pelos juazeirenses à sua
arte:

Entram e ficam tempão, olhando admirados as esculpturas do padre Cícero, de


todo tamanho, bem encarnados e, seja dita a verdade, bastante bem feitos;
olham e ficam pasmos, perguntando si eu nunca tinha visto padre Cícero, e a
minha resposta negativa disem que eu fui mandado por Nossa Senhora das

89
FUNERAES do Padre Cícero. A Noite: Supplemento, Rio de Janeiro, p. 16-17, 1 de agosto de 1934.
90
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 64.
55

Dores, e que só um homem guiado por Deus e milagroso para fazer Padrinho
Cisso tão vivo e com tanta = decência = (beleza).91

O gesso, matéria fluida – e barata –, era utilizado pelo autor para reproduzir
com precisão figuras humanas, especialmente a figura do mais humano de todos os santos,
Padre Cícero Romão Batista. Desse modo, as esculturas de Odísio diferiam das imagens
conhecidas pelos devotos, que geralmente eram fabricadas a partir de uma matéria muito
mais indócil, a madeira, através de instrumentos pouco precisos, como machadinhas,
pranchas, formões e canivetes.
A arte funerária em São Paulo, primeiro local de pouso do italiano, era
exercida majoritariamente por marmoristas estrangeiros. Muitos deles costumavam
buscar seus patrícios e empregá-los no trabalho, pois a mão de obra especializada era
escassa no Brasil de então. Outros chegavam a arregimentar seus aprendizes ainda na
infância. Os pequenos artesãos estudavam a teoria e a prática da técnica escultórica nas
próprias oficinas dos marmoristas. Segundo Borges, o estatuário (ou marmorista) “[...]
rompe o mito da arte pura, abandona o papel de intelectual, transforma-se em um técnico
profissional, aceitando lentamente a tecnologia industrial da produção”92.
Tais marmoristas tiveram amplo campo de trabalho nas regiões em que havia
importante produção de café. A nova burguesia, em sua ânsia de afirmar poder mesmo
após a morte, comprava túmulos, jazigos e estátuas funerárias cujos modelos geralmente
ficavam expostos nas vitrines das oficinas. Havia ainda a opção de escolher diferentes
propostas artísticas em catálogos que traziam imagens de obras realizadas anteriormente.
Depois do projeto inicial, feito em tinta aguada, geralmente o exemplo da escultura era
produzido em gesso, e só posteriormente era cinzelada a obra em mármore. Os escultores
que trabalhavam o mármore sabiam, portanto, lidar bastante bem com o gesso. Odísio era
um desses artífices. Contratado pelo patrício Natale Frateschi – que viria a ser seu sogro
– para fazer um busto em Franca, atuou, ainda, em muitas outras cidades de São Paulo,
bem como de Minas, utilizando diversos materiais, tudo isso antes de se dedicar quase
que exclusivamente àquela matéria-prima maleável, modesta e fartamente disponível em
território brasileiro: o gesso.

91
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 90.
92
BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890-1930). Ofício de marmoristas italianos em
Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2002. p. 55.
56

As marmorarias funcionavam como empresas que navegavam na tênue linha


entre arte, artesanato, indústria e comércio. Os trabalhos desempenhados por tais firmas
geralmente não eram originais, mas cópias. Os artistas-artesãos enfrentavam, além disso,
algumas práticas comuns nas antigas corporações, sendo admitidos como aprendizes que
deveriam passar longos anos no serviço para que pudessem, finalmente, merecer maior
remuneração e subir na hierarquia.
É preciso salientar que, além da fabricação de estátuas, tais companhias
também se dedicavam à produção arquitetônica. Odísio, por exemplo, apresentava-se
como escultor e arquiteto. Ele vinha, contudo, de uma situação peculiar: chegou ao Brasil
com uma carreira relativamente consolidada, tendo estudado em Turim, Roma e Paris, e
possuindo longa experiência adquirida na Escola Profissional Domingos Sávio. Sendo
assim, já era um artista de formação, que desempenhou diversos trabalhos por encomenda
imediatamente após aportar no país. Essa contradição o levou a admitir, em ensaio
dedicado a seu filho Pedro, que as tarefas às quais se dedicou no Brasil jamais o fizeram
plenamente feliz:

Na já minha longa existência, plasmei muito barro, criei muitas formas e


risquei muito papel. Infelizmente, vicissitudes da vida e erros meus me
forçaram a abandonar meu ideal de arte, para ganhar o amargo pão de todo dia.
Quase sempre tive que mercadejar o meu trabalho, me curvar à vontade dos
outros, e ao círculo fechado do dogma pelo qual quase sempre trabalhei. 93

O labor criativo ficava, portanto, em segundo plano, especialmente quando se


tratava de obras sacras e/ou funerárias. De toda forma, Odísio declarava se sentir aliviado
por saber que ao menos foi honesto em sua arte, procurando sempre difundir sentimento.
É preciso notar, contudo, que a margem para a liberdade criativa era estreita, limitando-
se principalmente a esculturas celebrativas, as quais figurariam em praças e outros
espaços públicos.
Antes de chegar em Juazeiro, Odísio passou uma curta temporada em
Fortaleza, enquanto esperava receber a matéria-prima que deveria ser levada para o
interior. A encomenda de gesso se atrasou e ele aproveitou aquele tempo para passear
pela cidade. Ali, fez questão de conhecer o cemitério e, consequentemente, o mercado de
trabalho local, constatando que havia

93
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Introdução”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre
Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p.
21.
57

[...] algum bom serviço vindo do Rio, algum túmulo pequeno em mármore
feito aqui, e o resto de alvenaria e cimento. Há duas fábricas de granito
artificial, porém, não vi serviço deste material no cemitério, por informações
obtidas, parece que os serviços funerários aqui têm pouca saída. 94

Era comum que as encomendas funerárias se concentrassem em obras de três


categorias: sacras, alegóricas e/ou celebrativas95. Os escultores que se dedicavam a esse
setor do mercado de arte geralmente seguiam a corrente neoclássica, sobretudo quando
projetavam estátuas de Cristo ou de santos católicos. O próprio Odísio possui, inclusive,
diversos Cristos Redentores de sua lavra, espalhados por diferentes cidades e regiões do
Brasil. Todos seguem essa tendência. Outra encomenda muito comum era a de anjos, que
podiam ser figuras infantis ou adultas. Os anjos adultos geralmente encarnavam alegorias,
como o Anjo da Morte que Odísio esculpia quando veio a óbito96. Por fim, as esculturas
celebrativas encarnavam pessoas públicas ou figuras de destaque econômico e cultural.
Essa modalidade também era comum nos serviços encomendados por entes públicos ou
privados, não possuindo necessariamente caráter fúnebre.
Por muito tempo, Odísio se dedicou a elaborar esculturas para os mortos. Tais
imagens não eram, necessariamente, dedicadas a eles. Eram encomendadas por suas
famílias e deviam marcar o fim de uma história. Padre Cícero deu a Odísio a oportunidade
de elaborar uma escultura para os vivos. A representação do Padrinho elaborada por ele
já não marcava o fim de uma história, mas o começo de outra.
Em Juazeiro, o trabalho de Odísio encampou diferentes possibilidades. Ele
criou medalhões de Nossa Senhora das Dores e de Padre Cícero. Esculpiu figuras
políticas, bispos, padres, e realizou serviços funerários para os filhos das nobres famílias
caririenses. A fidelidade com que reproduzia a imagem do santo local o levou a surgir
como figura destacada na região, e suas obras passaram a ser procuradas e vistas por
dezenas de pessoas diariamente. Odísio se decepcionava, contudo, com a miséria do

94
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Mudança para o ‘Norte’ do Brasil”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De
Dom Bosco a Padre Cícero: a saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza:
IMEPH, 2011. p. 126.
95
BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul. Arte. Sociedade. Ideologia.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 15.
96
Segundo sua neta, Vera Siqueira, Odísio não se sentia bem desde o dia 27 de agosto de 1948, uma sexta-
feira. Era portador de uremia e percebeu que não estava em condições físicas de trabalhar na oficina,
por isso “[...] pediu a seu filho Pedro que levasse o trabalho que estava executando, para que pudesse
concluí-lo em casa. Coincidentemente era o Anjo da Morte [...]”. Odísio faleceu no domingo, 29 de
agosto de 1948. SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor
Agostinho Balmes Odísio, discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 256.
58

público-alvo de sua arte e com as peculiaridades do gosto artístico das elites caririenses,
que pouco se interessavam por imagens do Padrinho:

[...] há quem se ajoelhe e rese a frente de uma peça qualquer; quem pede a =
meu padrinho = para lhe faserma graça de ganhar dinheiro para poder comprar
uma = estauta = ou uma = redoma = (medalhão) e entra uma porção deles,
saem, e entra outros, e não exagero em diser, ser pelo menos uns cinquenta por
dia, e não só romeiros, mas de toda classe e até das cidades visinhas; pena é
que aquelles que dariam a vida por comprar, não podem, e aquelle que
poderiam só se interessam pela obra de arte.97

Em breve, os romeiros já não precisariam buscar sua oficina para ver o


Padrinho. A imagem colocada sobre um nicho em frente à Capela do Socorro, onde Padre
Cícero foi sepultado, teria livre visitação. Não seria necessário fazer filas ou recorrer aos
corretores de casas de santos, como quando ele era vivo. Após a morte, seria ainda mais
acessível.
Quando buscou moradia no Cariri, Odísio provavelmente não esperava
encontrar uma elite que desprezava o culto ao Padre Cícero. Percebeu, então, que seus
clientes em potencial eram os pobres devotos que mal tinham o suficiente para o sustento
do corpo. O realismo empregado por ele nos trabalhos funerários foi importante, no
entanto, para que se estabelecesse como artista de relevo na cidade de Juazeiro.
Odísio trabalhou em diversas igrejas cearenses, além de receber encomendas
para a realização de bustos, hermas e esculturas celebrativas. A certa altura da vida,
porém, resolveu diversificar seus serviços, abrindo uma firma de mosaicos que teve ampla
atuação, desde o Cariri cearense até o oeste da Paraíba.
Ele defendia que as obras de arte deveriam estar impregnadas pelos
sentimentos e pensamentos dos artistas, embora essa não fosse uma constante em seu
próprio trabalho98. Se, por vezes, dedicava-se mais demoradamente à idealização de um
santo ou uma personalidade pública, é preciso destacar que isso ocorria como exceção,
pois na maior parte do tempo produzia bustos, estátuas e medalhões de Padre Cícero em
série. Sua obra em gesso, apesar da fragilidade e do baixo valor comercial, teve um grande
mérito: serviu de inspiração para as numerosas estátuas fabricadas, vendidas e apreciadas
pelos atuais devotos de Padre Cícero.

97
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 90.
98
ODÍSIO apud SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho
Balmes Odísio, discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p.287.
59

É necessário lembrar que, antes da estátua pública produzida por Odísio e


colocada em frente à Capela do Socorro, já existia na cidade uma outra, erigida quando o
Padrinho ainda era vivo. Era a estátua da Praça Almirante Alexandrino (atual Praça Padre
Cícero), esculpida em bronze por Laurindo Ramos e inaugurada em 1925. Assim como a
estátua de Odísio, ela possui um caráter bastante realista, mas representa uma concepção
cívica de Padre Cícero. É uma imagem moderna, política. Os romeiros e devotos não se
aproximam dela com lágrimas nos olhos. Raramente fazem orações ou se ajoelham diante
do Padre Cícero de bronze.
A escultura erguida por Odísio, no entanto, ganhou características diferentes.
O sacerdote parece mais terno e compreensivo, e enverga a negra batina que
habitualmente carregava, lembrando efetivamente as esculturas de santos. A imagem
repousa do lado de fora da capela em que foi sepultado Padre Cícero, mas se encontra à
sombra, tão protegido das intempéries da natureza quanto os santos do altar. 99
O Padre Cícero levantado em cimento por Odísio foi instalado num nicho em
frente à igreja em que repousava o corpo do Padrinho, tendo sido inaugurado
provavelmente em 1940 por José Geraldo da Cruz, então prefeito de Juazeiro. Além desse
serviço, Odísio também elaborou, logo após ter chegado à cidade, em 1935, um
importante apetrecho para a principal praça da cidade. Odílio Figueiredo, prefeito de
então, teve a iniciativa de colocar, junto à estátua em bronze de Padre Cícero, uma
“Coluna da Hora”, que foi encimada por um relógio fabricado pelo Mestre Pelúsio
Correia de Macedo e entregue como presente ao Padre Cícero quando ele ainda era vivo.
O relógio marcava, além das horas, as fases da lua100. Odísio foi o responsável por essa
grande obra, que pretendia trazer uma imagem de progresso e modernidade à cidade,
reservando espaço para uma pequena placa em que se relembra o longínquo passado em
que aquele fora apenas um humilde lugarejo101.

99
Como enfatiza Ramos, “[...] Seu corpo, somente seu corpo, obteve permissão para ficar dentro dessa
Igreja, direito adquirido por qualquer funcionário do Vaticano. Sua imagem não pode repousar sobre o
altar das Igrejas: uma regra sem exceção. Afinal, seu estatuto canônico era claro: não se tratava de um
santo”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do Padre
Cícero. Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 398.
100
FIGUEIREDO FILHO, Odílio. Odílio Figueiredo – um juazeirense de expressão. Fortaleza: IMEPH,
2011. p. 44.
101
Segundo depoimento de Renato Dantas concedido à pesquisadora Adriana Botelho, “A Coluna da Hora,
erguida na Praça Padre Cícero. Não foi uma questão de modismo, como acontecia no Brasil. Ela foi
construída em 1934, e a ideia era mostrar pra todo mundo que Juazeiro não ia se acabar, pois havia
pouco tempo o Padre Cicero tinha falecido, então um monte de gente achava que a cidade não ia
sobreviver. O construtor foi o italiano Agostinho Balmes Odísio [ele também é responsável pela
imagem/estatua do Padre Cícero que existe em frente a Capela do Socorro, um dos modelos mais
reproduzidas na cidade. Odísio mudou, totalmente, a arquitetura do Juazeiro, e do Cariri, notadamente
60

Seu Memórias de Juazeiro do Padre Cícero, ao mesmo tempo em que


imprime caráter sui generis às obras até então escritas sobre a cidade, não deixa de se
enquadrar numa literatura muito comum no período, que aliava a experiência de
repórter/informante em viagem por terras exóticas ao ensaio sociológico ou
antropológico. Como tantos outros escritores de sua época, Odísio partiu do que viu e
ouviu para escrever uma obra que, embora tivesse caráter supostamente íntimo,
destinando-se aos membros da família, não deixava de elaborar ideias mais sofisticadas
sobre o cotidiano de Juazeiro, inserindo-se inclusive numa tradição explicativa que, se
não fora iniciada por Euclides da Cunha, pelo menos tinha nele o seu ícone.
Embora Odísio se detenha principalmente sobre as narrativas de sua própria
experiência na cidade, ficam evidentes, ao longo de seu manuscrito, as marcas de
trabalhos anteriores, os quais edificaram as mais diversas visões sobre Juazeiro,
frequentemente comparando a cidade de Padre Cícero com o arraial de Antônio
Conselheiro. O próximo capítulo pretende discorrer sobre tais aproximações entre
Juazeiro e Canudos, que refletiam uma visão bastante estereotipada acerca das
especificidades do Nordeste, do sertão e de seus personagens.

a arquitetura religiosa. Nossa arquitetura religiosa tinha características de um Barroco "pobre", onde as
igrejas eram simples. O Odísio mudou tudo isso, inclusive introduziu o gesso aqui. Juazeiro não
trabalhava com gesso. Nós tínhamos imaginários [estátuas de santos] só em madeira”. Disponível em:
<http://www.sitededanielwalker.com/p/referencias.html>. Acesso em: 18 nov. 2016.
61

3 JUAZEIRO AINDA SERÁ CANUDOS?

3.1 O peso do passado

Quando se trata de Juazeiro sem Padre Cícero, os acontecimentos parecem não ser
irreversíveis: a circunstância de sua morte, embora estabeleça uma ruptura, não modifica
gravemente o arcabouço temporal. O sacerdote era cultuado em vida, e isso não se modifica
com seu desaparecimento. Juazeiro recebia romarias, e não deixa de receber depois da sua
morte. As peculiaridades sociais e urbanas da cidade lembravam Canudos, e a perspectiva de
que ela se tornasse um reduto semelhante ao arraial baiano não desapareceu após 1934.
Compreender tais permanências é exercer uma tentativa de desnaturalização do tempo
histórico: 1934 é um marco não apenas de ruptura. É um marco de continuidade.
A morte de Padre Cícero não se estabelece como um momento de aceleração do
tempo, de fim do “atraso” de Juazeiro, de incorporação da cidade na trama da modernidade. A
nova temporada, iniciada com a morte do Padrinho, tornou-se um tempo velho, tanto pelos seus
eventos quanto pelos prognósticos que ensejou. Contrariando as mais diversas expectativas
acerca do evento, a cidade se modificou, mas não muito. Os cangaceiros não a destruíram, os
devotos não a abandonaram, o culto ao sacerdote não desapareceu.
Entre o final do século XIX e o início do século XX, Crato e Juazeiro do Norte
abraçavam, como tantas outras cidades do Brasil, a ideia de progresso. Crato se apoiaria na
ideia de um passado heroico vocacionado ao futuro de sucesso. Juazeiro do Norte, localidade
por muito tempo pertencente ao município de Crato, não tinha histórias tão gloriosas. O passado
do Crato não lhe pertencia: Bárbara de Alencar, José Martiniano de Alencar, Tristão
Gonçalves102 e outros personagens admiráveis da cidade vizinha não a representavam. O grande
herói de Juazeiro passou a ser o também cratense Padre Cícero, responsável pela fundação,
independência e desenvolvimento da cidade. Outros “grandes homens”, no entanto, viriam a
constituir o panteão juazeirense. Um deles foi o Dr. Floro Bartolomeu. O trabalho de defesa
empreendido por ele era árduo. Os discursos que maculavam a imagem de Juazeiro do Norte se

102
Bárbara de Alencar participou ativamente da Revolução Pernambucana de 1817 (evento que os cratenses por
vezes intitulam como “Revolução Caririense de 1817”, “Revolução Cratense de 1817”, ou mesmo “Revolução
dos Alencar”), assim como seus filhos Tristão Gonçalves de Alencar e José Martiniano de Alencar. A família
tomou parte, também, da Confederação do Equador em 1824. José Martiniano de Alencar ordenou-se padre e
tornou-se senador pelo Ceará em 1932, além de ter sido presidente da província duas vezes.
62

multiplicavam diariamente. Escritores, jornalistas e viajantes contribuíram, desde 1911103, para


disseminar a ideia de que a cidade era um antro de fanáticos e cangaceiros.
A obra do padre Alencar Peixoto e os escritos de Lourenço Filho são exemplos de
publicações que afirmavam o atraso cultural, moral e urbano de Juazeiro do Norte. Padre
Alencar Peixoto, ilustre inimigo político de Padre Cícero, lançou em 1913 o livro intitulado
Joazeiro do Cariry, em que afirmava ser Juazeiro um “[...] desgraçado recanto do sul do
Ceará” 104 . Padre Cícero foi apresentado por ele como “[…] um complexo indefinível de
orgulho, de presunção, de vanglória, de fanatismo e superstição, arrematado em um formidável
monstro de ambição e avareza”. 105
Paradoxalmente, o padre Joaquim de Alencar Peixoto defendeu com veemência os
romeiros de Juazeiro, permanecendo como aliado de Padre Cícero por bastante tempo, mesmo
diante das pressões da Igreja. Foi, inclusive, redator-chefe de O Rebate, primeiro jornal
juazeirense106, e grande companheiro de Floro Bartolomeu nas lutas pela independência do
povoado. Tornou-se inimigo de Padre Cícero após a emancipação do município, quando teve
seus planos de poder frustrados. Os juízos propagados por Alencar Peixoto após esse
rompimento não eram exceção, mas a opinião corrente, tanto entre os próprios caririenses
quanto entre os visitantes da região.
Discursos depreciativos como os de Peixoto, no entanto, tinham seus críticos.
Manoel Dinis, advogado e amigo pessoal de Padre Cícero, afirmou, na introdução de seu
Mistérios do Joazeiro, o desejo de escrever uma narrativa imparcial. Quando elencava os
objetivos de sua obra, no entanto, deixou clara sua crítica específica a Alencar Peixoto: “[...] o
Patriarca jamais foi alvo de verrina tão grosseira e injusta, como a que consta que contra ele
escreveu [...] o padre Joaquim de Alencar Peixoto [...]107
Padre Cícero não enfrentou, portanto, somente as disputas religiosas com o alto
clero católico. Foi vítima também de duros combates no campo político e entre os membros da
cultura letrada. Representações depreciativas sobre Juazeiro foram comuns no período em que

103
Ano de emancipação do município.
104
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 48.
105
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 169.
106
Em edição veiculada em 1909, respondendo às críticas que cratenses costumavam sustentar acerca dos
habitantes de Juazeiro, Alencar Peixoto escreveu: “[...] porque eles, -- esses paralyticos da sympatia, pregados
à cruz de nosso despreso pelos cravos da verdade incorruptível, ameaçam á esta população laboriosa e pacífica,
composta, em sua maioria, de mais de vinte e cinco mil romeiros? Romeiros! Não foram eles que dominaram
por completo a ferocidade de nosso solo e escalaram as nossas serras? [...] E não concorrem eles com a sua
somma de quarenta contos de reis annuaes para as arcas da câmara municipal e do tesouro estadoal? Assim,
pois, essas perseguições porque lhes fasem? Porque tramam à surdina contra eles, e na inconsciência de quem
não mede as consequências?! Porque? Porque vêm n’elles, como por ahi alardeiam, um perigo iminente?!”.
PEIXOTO, Padre Joaquim de Alencar. Onde o Perigo? O Rebate, p. 1, Juazeiro do Norte, 12 set. 1909.
107
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1935]. p. 13-14.
63

Padre Cícero era vivo e, especialmente, quando os fenômenos do milagre, das romarias e do
crescimento urbano amedrontavam ainda mais as autoridades políticas e clericais. Elas
fundaram, de certa maneira, a opinião de muitos sobre a jovem urbe caririense.
O escultor Agostinho Odísio afirma, por exemplo, que estando a caminho da cidade
(em outubro de 1934, logo após a morte de Padre Cícero), conheceu ainda em Fortaleza um
engenheiro químico piemontês que lhe transmitiu a seguinte informação:

Juazeiro é um lugar formado por elementos de todo o norte, pessoas foragidas,


cangaceiro fugido da polícia, toda sorte de aventureiros e sertanejos, à sombra do
Padre Cícero, o qual, sendo uma força que nenhum governo podia atacar, gozavam de
completa segurança... O lema deles é ‘Juazeiro é nosso e forasteiro não conta
prosa’.108

O retrato reproduzido pelo engenheiro lembra as narrativas estampadas em jornais


do período: Juazeiro seria uma cidade repleta de criminosos, por isso era conveniente que o
escultor estrangeiro estivesse atento. Se para os romeiros a viagem a Juazeiro era uma dádiva,
para o artista letrado parecia um castigo. A nova empreitada numa terra distante se mostrava
cada vez mais arriscada. Odísio, ao receber tais informações, lamentou não poder voltar atrás:

E é para um lugar deste que vamos... Isto tudo me fez pensar no caso e tomar as
precauções, porque, como me disseram, lá o culpado é quem morre, em vista disto,
apesar dos meus fundos estarem já bem minguados, hoje vou comprar um revólver e
munições... Homem avisado, meio salvado. 109

Os discursos de cidadãos cratenses (intelectuais geralmente respeitados, porém


rivais de Juazeiro do Norte) e de viajantes e estrangeiros eram os que imperavam entre
intelectuais do Ceará, tendo se propagado pelo Brasil. A religiosidade popular era enxergada
como fanatismo, e havia certo imaginário de terror ligado ao fenômeno do cangaço. Juazeiro
assustava e intrigava os possíveis visitantes vindos da “estreita orla de civilização litorânea”,
que buscavam explicações científicas para compreender a esdrúxula realidade110.

108
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Mudança para o ‘Norte’ do Brasil”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom Bosco
a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011.
p. 126.
109
Após receber as informações de seu conterrâneo, ponderou: “Enfim agora é tarde, seja o que Deus quiser! É
tarde para retroceder e teremos que aguentar até ver o que dará tudo isto...” (ODÍSIO apud SIQUEIRA, Vera
Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: a saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin.
Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 126).
110
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 177.
64

As narrativas sobre Juazeiro publicadas entre o final do século XIX e o início do


século XX estão impregnadas por teorias raciais. O pensamento de Charles Darwin teve
impacto sobre diversos intelectuais ocidentais dedicados ao estudo da evolução. Os visitantes
da terra de Padre Cícero seguiam essa tendência, sentindo-se irmanados com a cultura letrada
nacional.
De acordo com Lilia Schwarcz, o darwinismo foi introduzido no cenário brasileiro
a partir de 1870. No mesmo período, entraram no país teorias como o positivismo e o
evolucionismo. De acordo com a autora, a obra de Darwin, publicada e divulgada em 1859, foi
apropriada pelo pensamento social da época, que iria se preocupar então com temas como a
seleção natural e a mestiçagem racial.111
Na disputa nascente acerca de tais discussões destacavam-se duas correntes: a dos
evolucionistas e a do darwinismo social. Os primeiros eram, de acordo com Schwarcz,
“otimistas”, pois acreditavam que toda a humanidade passaria pelos mesmos estágios de
evolução. Dessa maneira, o progresso seria obrigatório e certamente chegaria para todos,
mesmo que em períodos diferentes. Os darwinistas sociais, por outro lado, afirmavam que as
raças tinham caracteres específicos que jamais se misturariam. Portanto, todo cruzamento de
raças seria um erro. Os tipos puros foram exaltados por esse grupo, e os miscigenados passaram
a ser considerados degenerados. Sob essa perspectiva, assim como animais de diferentes
espécies não deveriam procriar, também os indivíduos de raças diferentes precisariam se manter
puros.
Desse debate nasceu a “eugenia”, teoria criada pelo cientista britânico Francis
Galton. Em 1869, ele publicou um trabalho procurando provar que a evolução humana estaria
associada à hereditariedade, e não à cultura. A eugenia tinha como finalidade compreender as
leis da hereditariedade humana, estimular nascimentos saudáveis e evitar uniões consideradas
nocivas a toda a sociedade.112
Por meio da eugenia, a hipótese evolucionista iria por terra. A humanidade,
portanto, não estaria fadada à evolução e corria ainda o risco da degeneração, do desvio do
progresso. Para Joseph Ernest Renan, por exemplo, os “[...] grupos negros, amarelos e
miscigenados 'seriam povos inferiores não por serem incivilizados, mas por serem

111
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1970-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 56.
112
Desse modo, “[...] as proibições aos casamentos inter-raciais, as restrições que incidiam sobre “alcoólatras,
epilépticos e alienados”, visavam, segundo essa ótica, a um maior equilíbrio genético, “um aprimoramento das
populações”, ou a identificação precisa “das características físicas que apresentavam grupos sociais
indesejáveis”. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no
Brasil 1970-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 60.
65

incivilizáveis’”113. Tal concepção foi criticada por um dos narradores de Juazeiro, o educador
Lourenço Filho, que afirmava:

Precisamos, já, urgentemente, imediatamente, – enquanto é tempo! – de aparelhos de


verdadeira cultura […]. Lampejos dessa verdadeira cultura, no sentido normal da
palavra, tem produzido, com o mesmo homem rude dos sertões, com o mesmo mestiço
que os pseudoletrados desabonam – maravilhas de vida e progresso […]. 114

Manoel Bergström Lourenço Filho foi o inventor dos “testes ABC” (1928) 115, que
tinham como objetivo verificar a maturidade das crianças para a aprendizagem da leitura e da
escrita e separá-las, criando grupos, em classes diferentes, de acordo com a capacidade
cognitiva. Assim, alguns professores poderiam se dedicar às crianças que aprendiam mais
lentamente, enquanto outros se dedicariam às mais rápidas.
Segundo a proposta de Lourenço Filho, numa mesma sala de aula não deveriam ser
encontrados alunos muito diferentes, mas crianças com o mesmo nível de desenvolvimento.
Interessante é notar que, para ele, bastava que as elites fossem educadas, pois sua influência se
refletiria automaticamente na consciência popular. É preciso ressaltar ainda que seus estudos
sobre educação primária têm como referência o Dr. José Paranhos Fontenelle116, que defendeu
a existência de grandes diferenças cognitivas entre brancos, pardos e pretos (sendo os brancos
e os pardos mais talentosos que os pretos).
Lourenço Filho é, portanto, uma figura controversa. Ao chegar em Juazeiro e
estacionar o carro junto à casa do Padre Cícero, o educador afirmou ter visto uma rua repleta
de pessoas que esperavam pela benção do Padrinho. E começou a descrevê-las: “À primeira
vista, aquela massa apresentava unidade; expressões dos mais díspares caldeamentos de raça
ali se confundiam, no entanto, e apenas um ou outro semblante mais puro ressaltava”. 117
Assim, o autor também se dedicava a descrever os devotos de Padre Cícero partindo
do componente racial. Na aparente homogeneidade mestiça, o autor percebeu, aos poucos, a
heterogeneidade, e alguns semblantes supostamente puros lhe chamaram a atenção. Entre esses,
uma jovem de pele branca despertou curiosidade e admiração especial no escritor, “[...] uma

113
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1970-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 62.
114
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 181.
115
LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. Testes ABC: Para a verificação da maturidade necessária à
aprendizagem da leitura e da escrita. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira, 2008.
116
José Paranhos Fontenelle foi um médico higienista que também se dedicava a estudos de Estatística e Educação.
Era, assim como Lourenço Filho, signatário do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Para dados relativos
às pesquisas sobre cognição realizadas entre brancos, pardos e negros, cf. FONTENELE, J. P. Aplicação dos
testes ABC no Distrito Federal. 1934. (Relatório).
117
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 51.
66

adolescente, cujo perfil quase puro e tez menos tisnada destacavam-na como uma flor de estufa
em campo agreste”118.
Ainda acerca de Juazeiro, o educador afirmou que “[...] sobre a ignorância e o fundo
supersticioso do caboclo, vivem em seu espírito tradições de messianismo e sebastianismo”119,
associando as crenças religiosas heterodoxas a uma forte inclinação natural dos mestiços para
tais convicções. Ao descrever o Nordeste brasileiro, Lourenço Filho defendeu que

A própria evolução etnográfica brasileira quase pode ser estudada numa viagem de
penetração. Na costa, predomina o branco, fato que demonstra a preponderância
ariana da nossa gente até hoje; a breve trecho, surgem, porém, expressões do mais
violento caldeamento das três raças primitivas, com a presença muito rara do prêto
puro; depois, mais extenso e generalizado, o caboclo, tanto quanto o indígena, tanto
quanto o ariano; noutros pontos, tapuias extremes, índios puros, com a só diferença,
junto a seus primitivos, em não usarem tangas, terem idéias cristãs e vestirem calças
de azulão...120

Desse modo, no início do século XX, o educador paulista praticamente


negligenciava a existência de negros no Brasil, preferindo destacar a alegada preponderância
da população branca e de sua miscigenação com os nativos e descendentes de africanos
escravizados. Essas declarações aparecem em seus textos por serem consideradas relevantes no
estudo sobre o fanatismo sertanejo.
É preciso notar que tais afirmações parecem guardar relação com a discussão
anteriormente promovida por Euclides da Cunha em Os Sertões. O jornalista, ao dissertar sobre
o caráter “mestiço” da religião praticada em Canudos, afirmou que no sertão é possível
encontrar o “[...] antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio
aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização” 121 ,
estabelecendo, assim, graus de hierarquia entre as raças e religiões dos povos autóctones, dos
sujeitos escravizados e dos brancos colonizadores.
Lourenço Filho não foi o único, no entanto, a analisar as especificidades culturais e
religiosas de Juazeiro a partir das teorias raciais e de uma concepção quase estratigráfica acerca
das diferentes etnias do Brasil. Alguns estudiosos foram, inclusive, mais incisivos que ele. O
Dr. Lucian Smith, responsável pela campanha de erradicação da febre amarela no Ceará, esteve
em Juazeiro em 1927, a serviço da Fundação Rockefeller, e escreveu:

118
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 52.
119
Op. cit., p. 85.
120
Op. cit., p. 28.
121
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 62.
67

A fama do padre de curandeiro miraculoso espalhou-se por todos os quadrantes. Os


aleijados, os coxos, os cegos rumavam em bandos para ele, como se fosse um
santuário. Alguns retornavam a seus lares, se tivessem um, mas muitos permaneciam
na cidade, contribuindo com sua quota de ignorância, criminalidade e fanatismo,
pobreza, doença e depauperação física e moral generalizada para a constituição social
e econômica de Juazeiro no período de sua formação. Eles, os seus filhos e netos e
outros da mesma laia compuseram a comunidade social hoje existente em Juazeiro.
Não surpreende que o tipo de cidadão numericamente predominante no lugar exiba
deficiências mentais tão marcadas, tamanho insucesso na adaptação ao ambiente, tão
notáveis estigmas de degeneração física, resistência tão diminuída e tal suscetibilidade
a doenças. O processo de eliminação em curso lá é, a um só tempo, o remédio e a
punição da natureza para a assustadora aberração.122

Lucien Smith faz parte de uma corrente de teóricos eugenistas que afirmava a
fatalidade do desaparecimento natural de “doentes crônicos”. Para o médico, a criminalidade
era associada à degeneração da raça: tais sujeitos não seriam apenas incivilizáveis, mas
constituíram uma população doente e, portanto, criminosa. O pesquisador norte-americano
defendia, ademais, que a população de Juazeiro se extinguiria naturalmente, pois tais elementos
defeituosos perceptíveis nos homens e mulheres que ali viviam não dariam origem a crianças
saudáveis123.
Juazeiro era, para o Dr. Lucien Smith, um local repleto desses sujeitos anormais,
cuja continuidade genética estaria fadada ao fracasso. Por isso, a violência e o crime seriam,
ali, dados naturais. O médico higienista acreditava que a evolução das espécies proporcionaria
o sucesso aos indivíduos mais fortes e adaptados. Os juazeirenses, portanto, estavam
condenados ao desaparecimento.
Um dos assuntos recorrentes nas descrições de Juazeiro é, como se pode perceber
na citação anterior, a grande quantidade de portadores de doenças psicológicas e psiquiátricas.
Essa peculiaridade da cidade é notada por muitos viajantes e cronistas. Há muitas justificativas
para essa particularidade local. Floro Bartolomeu da Costa tentou explicar, em seu Depoimento
para a História, por que Juazeiro abrigava tantos doentes:

122
SMITH, Lucien C. 14 mar. 1927 Relatório de uma viagem à região de Juazeiro. RAC, RG 1.1., série 305, caixa
19, pasta 155. Apud LOWY, Ilana. “Representação e intervenção em saúde pública: vírus, mosquitos e
especialistas da Fundação Rockefeller no Brasil”. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de
Janeiro, v. 5, n. 3, fev. 1999, p. 212. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0104-59701999000100006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 7 nov. 2013.
123
Conforme Lilia Schwarcz, circulava nesse período a Gazeta Médica da Bahia, cuja edição, publicada também
em 1927, apresentou um artigo que “[...] defendia divisão entre mestiços redimíveis e aqueles absolutamente
enfermos – 'os alcoólatras, loucos, epilepticos e doentes'”. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das
raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1970-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
p. 216.
68

Se elle [o doente mental] é um louco manso, a família ainda o conserva tratando como
se fosse um extranho; se, porém, as exacerbações se repetem, o enviam para o
Juazeiro, afim de que o Padre Cicero o trate e o sustente. Já porque o padre é
extremamente caridoso e se compadece desses infelizes, já porque elle tem um dom
especial de dominar qualquer louco, – por lá se ficam, sustentados por elle, havendo
casos de cura completa.124

Na falta de um sistema de saúde que amparasse tais pessoas, o Padrinho se


encarregava da acolhida e dos possíveis cuidados. Para Floro Bartolomeu, no entanto, a
presença de tais sujeitos na cidade não significava a degeneração da raça. Eles estampavam, na
verdade, a generosidade do Padrinho, que a todos acolhia e auxiliava. De acordo com Manoel
Dinis, essa caótica situação se modificou somente após 1930, quando delegados “[...] fizeram
ao Padre Cícero e aos vizinhos de sua casa, o benefício de exportarem, só de uma vez, 20 doidos
ou malucos, para o hospital de Parangaba”125.
O inspetor de obras contra a seca Paulo de Moraes e Barros126 afirmou, em artigo
publicado no jornal O Estado de São Paulo, que o sertanejo cearense era “[...] extremamente
degenerado não só pelo lado physico como pelo moral” 127 , assertiva rebatida por Floro
Bartolomeu da Costa, que em seu discurso – posteriormente transformado em livro –, afiançou:
“[...] o sertanejo cearense é do mesmo typo, tem os mesmos hábitos, possui os mesmos
característicos physicos e moraes do dos demais Estados do Norte do paiz”128. Mais adiante,
apoiando-se em Euclides da Cunha, o aliado de Padre Cícero afirmou que o sertanejo era um
forte:
O indivíduo do littoral, especialmente o civilizado, ou tido como tal, é um eterno
escravo da magnesia bizurada, do bicarbonato de sodio, da casacara sacra, dos tonicos,
do mercurio, do soro hormônico e outros; da agua filtrada para evitar infecções
intestinaes, do automovel para não se fatigar; dos capotes para não se resfriar, e de
todos os cuidados capazes de evitar e corrigir incommodos e males. Entretanto, o
sertanejo vive ao desabrigo de todos esses meios de defesa e, relativamente, gosa de
melhor saude e é mais forte.129

124
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 128.
125
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1935]. p. 142.
126
O Dr. Paulo de Moraes e Barros visitou Juazeiro em 1922, acompanhado pelo deputado Ildefonso Simões
Lopes e pelo general Cândido Mariano da Silva Rondon. Os três eram membros de uma comissão a serviço da
Inspetoria Federal de Obras contra a Seca (IFOCS). A viagem tinha como objetivo a fiscalização e a avaliação
das construções de açudes, ferrovias e estradas no Nordeste. Moraes e Barros também era médico sanitarista e
publicou, no Estado de São Paulo, em 1923, suas “Impressões do Nordeste”, que ofereciam uma descrição de
Juazeiro bastante negativa, dando origem ao discurso de Floro Bartolomeu, que pretendia rebater seu texto.
127
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 156.
128
Op. cit., p. 157.
129
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 159.
69

Mais uma vez, é possível notar a influência de Euclides da Cunha nos discursos
sobre Juazeiro. Em Os Sertões, descobrimos a afirmação de que o sertanejo “[...] não tem o
raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”130. O famoso jornalista afirmou
ainda que, embora tais homens parecessem permanentemente fatigados, vítimas de uma
preguiça invencível e de uma atonia muscular perene, a aparência de cansaço seria ilusória, pois
os sertanejos seriam capazes de fazer uso de grandes energias adormecidas quando uma ocasião
de urgência se apresentava.
Floro Bartolomeu, por sua vez, perguntava: “[...] qual a verdadeira causa real da
degenerencia physica de um povo, senão a civilização?”131. É importante notar o paradoxo de
o líder político de Juazeiro ter se tornado médico na Bahia, berço da medicina legal132. Ele
contrariava sua própria escola médica ao afirmar que os sertanejos mestiços eram, com efeito,
mais evoluídos, mais fortes e mais adaptados ao meio que os habitantes do litoral133. Chegava,
inclusive, a criticar determinado professor que tivera na Faculdade de Medicina da Bahia. De
acordo com o Dr. Floro, tal catedrático defendia que “[...] o brasileiro é uma raça degenerada
porque teve origem no maroto ladrão, assassino e peralta e no negro que é raça que não está
sujeita ao progresso” 134 . O principal aliado de Padre Cícero afirmava o contrário: que o
sertanejo, definitivamente, não era um degenerado, mas uma raça mais forte que as demais.
Floro Bartolomeu não era o único a ter um pensamento pouco ortodoxo em relação
às especificidades de Juazeiro. De acordo com Manoel Dinis, Padre Cícero não curava
indivíduos considerados loucos, mas simplesmente os livrava da maconha, que era a verdadeira
responsável pelos delírios, surtos e alucinações de homens e mulheres erroneamente
considerados doentes. O advogado afirmou:

130
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 51.
131
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 166.
132
De acordo com Schwarcz, a medicina legal praticada na Bahia pretendia pensar nas possibilidades de uma
ciência brasileira que estudasse os casos de degeneração racial. Assim, alcoólatras, portadores de doenças
psiquiátricas, epiléticos e criminosos eram vistos como provas de que o darwinismo social estaria correto em
seus pressupostos. A existência de tais exemplares alertava para a “[...] imperfeição da hereditariedade mista”.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1970-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 211.
133
Não se pode atribuir a Floro Bartolomeu, todavia, a criação de uma nova teoria a respeito dos povos sertanejos.
Segundo Nísia Lima, já existia, na obra de Euclides da Cunha e em produções intelectuais anteriores, uma
outra forma de conceber a relação litoral/sertão, “[...] invertendo o sinal positivo atribuído ao litoral e às
tendências modernizantes, Trata-se da leitura do dualismo litoral/sertão à luz da ideia que opõe civilização de
copistas a civilização autêntica”. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. São Paulo: Hucitec,
2013. p. 33.
134
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p.168.
70

[…] muitas pessoas, mesmo das menos simplicias (sic), pensavam que certos tipos,
particularmente pretos ou bem trigueiros, eram realmente doidos ou malucos,
conduzidos, furiosos, à presença do Patriarca, para curá-los. Nem por sonho. Tais
indivíduos que vimos mais de uma vez à porta do Patriarca, contidos por seus
condutores, cavilosos ou não, no dia seguinte estavam bons e proclamando que tinham
sido curados por milagres da benção do Padim Ciço. Quase todos esses tipos eram
apenas liambados e nada mais.135

Assim, o problema deixava de ser genético e passava a ser cultural, mas a culpa
continuou recaindo sobre mestiços e negros, pois a liamba “[...] é cultivada por alguns
indivíduos de origem africana”136, também conhecidos pelo suposto fanatismo. Para Manoel
Dinis, era comum encontrar em Juazeiro “[...] negros e cafusos evidentemente aliambados”137,
que podiam parecer loucos, mas não eram. Muitos deles, segundo o autor, faziam uso da erva
em cultos de matriz africana. A existência desses cultos era negada por Floro Bartolomeu, que
via tais manifestações religiosas como “remedios problematicos para o espírito”. Ao mencionar
ocultistas, cartomantes, adivinhos, “candomblés, macumbas ou cangerês”, o aliado de Padre
Cícero explicou serem práticas religiosas que “[...] não se encontram em Joazeiro, porque lá
não existe esta casta de gente”138. Manoel Dinis, por sua vez, discorreu também sobre doenças
mentais e o uso de drogas naquela cidade:

[...] não inventamos bicho de sete cabeças quando nos referimos ao perigoso uso da
liamba que é um verdadeiro presente de grego que os escravos africanos trouxeram-
nos da África para, pérfida e sutilmente se vingarem de seus senhores, degradando-
os, a ponto de ficarem inferiores aos próprios africanos. Infelizmente os nossos
Governadores do Norte e do Nordeste, onde há os mais perigosos centros de cultura e
uso da liamba, ainda não criaram serviço especial de polícia preventiva contra
entorpecente tão perigoso, que concorre não só para achinesar um povo, como para
africanizar, que é muito pior.139

O advogado juazeirense, ao combater o uso da maconha, estabelecia também uma


hierarquia racial em que orientais e africanos eram considerados elementos de degeneração
racial. Os males da cidade do Padre Cícero, desta feita, seriam frutos da existência de tais
indivíduos e do uso que faziam da erva. Manoel Dinis chegou mesmo a indicar a necessidade
de haver uma polícia específica para combater o uso de entorpecentes, evitando a
“degeneração” dos brasileiros.

135
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1935]. p. 195.
136
Op. cit., p. 196.
137
Op. cit., p. 197.
138
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p.191.
139
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011[1935]. p. 194, grifos nossos.
71

A elite cratense não se apropriou da discussão sobre o uso da maconha entre os


habitantes juazeirenses, mas também aderiu a teorias que pretendiam explicar a relação entre
raça, comportamento e religião. Segundo o médico Irineu Pinheiro140,

Em todo o Cariri eram as classes inferiores compostas de elementos ignorantes,


analfabéticos, em que predominavam os cabras, mestiços do negro e do branco ou
originários do cruzamento dessas duas raças com o elemento indígena. Eram os
cabras, em geral, rixosos, turbulentos. 141

Pinheiro justificava a presença de criminosos e cangaceiros através de uma


explicação supostamente genética. O cruzamento de brancos, negros e indígenas seria o
elemento explicativo do caráter violento dos habitantes locais. O auge de tais determinismos e
descrições pejorativas de negros e mestiços pode ser encontrado em Joazeiro do Cariry, de
Alencar Peixoto. No livro, a beata Maria de Araújo é representada como alguém que “[...]
nasceu e criou-se em um dos aros mais surrentos e miseráveis” de Juazeiro, sendo seu pai um
homem “[...] que andava quase sempre em tremulência; um negro”, e sua mãe “[...] uma cabra
de cabelo ulótrico e mastigado”. Após a descrição física, Peixoto destacava que a genitora de
Maria de Araújo “[...] servia fora de casa, mas muitas vezes não podia trabalhar e ficava de
cama por causa das sovas que [...] lhe dava o macho, o marido”142.
Em vista disso, o pai de Maria de Araújo aparecia na narrativa como um homem
negro que possuía os vícios da violência e do alcoolismo, enquanto sua mãe era uma mestiça
de cabelo crespo que trabalhava fora e apanhava do esposo. Tais detalhes seriam relevantes na
descrição dos caracteres genéticos herdados pela beata, assim identificada no suposto diálogo
travado entre um amigo e o padre:

— A mulher de que falamos, se, como me dizes, e eu creio, é um produto, um


cruzamento das duas raças mais detestáveis, não pode deixar de ser, em todos os
sentidos, uma hibridez horrível.
— De fato, amigo, e tão horrível como talvez não imagineis. […] Maria de Araújo
deve orçar hoje pelos seus cinquenta anos, é de estatura regular; brunduzia, triste,
vagarosa, estanguida, essencialmente caquética, porque tem ela ascendente de
caquéticos ou tuberculosos.143

140
Irineu Nogueira Pinheiro foi um médico e intelectual cratense que nasceu em 1831. Fundou um jornal, o
Correio do Crato, e foi colaborador de muitos outros. Seu primeiro livro O Joaseiro do Padre Cícero e a
Revolução de 1914, foi publicado em 1938, no Rio de Janeiro, pelos Irmãos Pongetti.
141
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Fortaleza: IMPEH, 2011 [1938]. p.
31.
142
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 41.
143
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 41-42, grifo
nosso.
72

Peixoto prossegue sua descrição concluindo que ela possuía “[...] a pele cor de
azeitona em estado de putrefação” e que “[...] a semelhança do maxilar inferior, desafiando-lhe
a protuberância do frontal, semelha-se ao de um homem de Darwin”. Por fim, afirmava ter feito
cuidadosamente o estudo “[...] dessa cacodemoníaca criatura que deve de ser mulher, que assim
o indica a pênula, a murça, a bata, o vestuário, sobretal, de beata”. Terminava sua explanação
dizendo que “[...] a pintura é por demais mesquinha, apagada e fria em face do original”. A
beata era descrita de maneira racista, e o padre Peixoto pretendia, com isso, destacar que sua
personalidade havia se forjado no seio de uma indesejável “hibridez moral” 144.
As ideias associadas à eugenia foram utilizadas com o objetivo de aplicar um verniz
científico a preconceitos raciais que envolviam os sujeitos pobres que se deslocaram até
Juazeiro em busca do apoio espiritual e material de Padre Cícero. Tais discursos acerca das
especificidades dos devotos de Padre Cícero criaram uma tradição de hostilidades que iria se
cristalizar nas imagens acerca de Juazeiro e, por vezes, determinar prognósticos que envolviam
a extinção futura da cidade e de seus habitantes.

3.2 A (des)confiança do futuro

Euclides da Cunha afirmou que as raças fortes suplantariam as raças fracas do


sertão. Para o escritor, isso não justificava, contudo, o massacre de Canudos, qualificado por
ele como um crime. Sob seu ponto de vista, tal cruzada se deu em nome de valores estrangeiros,
de um conceito de civilização importado da Europa e, acima de tudo, ocorreu porque os
brasileiros desconheciam as peculiaridades daquela parte recôndita do Brasil. Desse modo, a
campanha era nada menos que o Brasil avançado e moderno a combater o Brasil atrasado, que
ficara esquecido e abandonado na poeira do tempo. O jornalista afirmou, na “Nota preliminar”
(1901) ao livro Os Sertões, que sua obra tinha o objetivo de

[…] esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços


atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a sua
instabilidade de complexos de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada
às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez
efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da
civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam
a invadir profundamente a nossa terra. O jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o
caipira simplório serão em breve tipos relegados às tradições evanescentes, ou
extintas.145

144
Id., Ibid.
145
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 1.
73

Euclides da Cunha pretendia, portanto, elencar e analisar as “sub-raças” em vias de


desaparecimento. Para o escritor, o meio não seria responsável, a priori, pela formação das
raças. No caso brasileiro, contudo, diversas novas raças se constituíram a partir daquelas três
primeiras que vieram a habitar o território (índios, brancos e negros).
Para o escritor, as condições externas, na medida em que impulsionavam migrações
e novos cruzamentos em todo o mundo, costumam influenciar a formação das raças num longo
espaço de tempo. No Brasil, ao contrário, tudo ocorreu de maneira muito rápida. Por esse
motivo, a (con)fusão de características das diferentes raças coincidiria com uma transfusão de
tendências que não se dava numa longa temporalidade, como era o costume nas demais nações.
Euclides da Cunha acreditava que esses grupos raciais “provisórios” que se formaram no Brasil
experimentariam um “[...] período de fraqueza, nas capacidades das raças que se cruzam,
alterando o valor relativo da influência do meio”146. Dessa forma, as transformações bruscas
forçariam um rápido processo de adaptação que levaria, necessariamente, à fraqueza das sub-
raças formadas há pouco tempo. Essas novas distribuições étnicas, rápidas e forçadas, dariam
origem a sujeitos que estampariam nos próprios rostos e compleições físicas a fraqueza147. Tais
homens e mulheres não teriam qualidades uniformes, tampouco constituiriam um “tipo
brasileiro”; seriam apenas exercícios da natureza no rumo da composição de uma nova raça.
Essas ideias — e suas interpretações errôneas — tiveram impacto sobre o
jornalismo, a literatura e o pensamento intelectual de todo o país acerca do sertão. Euclides da
Cunha seria, daí em diante, uma influente referência sobre o tema. Suas ideias e seu livro
inspiraram numerosos autores. Muitos narradores de Juazeiro, por exemplo, pareciam descrever
também um lugar desconhecido, pitoresco, surpreendente e fadado à extinção. De acordo com
Lourenço Filho,

O Nordeste não só apresenta estranhos aspectos da terra: faz emergir do seu seio,
candente e adusto, casos sociais dos mais imprevistos e singulares. É que não lhe tem
bastado o martírio secular das secas. Sobre o reflexo inevitável na existência humana
das condições de vida possível nessa atormentada região, há incidido, por anos
continuados, o peso fatal de erros e crimes da República. Um deles, por demais
expressivo, porque não logrará nunca dissimular as responsabilidades dos governos,
o do Estado em que aflorou, e o da União, que o permitiu e insufla, é o do Juazeiro do
Padre Cícero, a Meca dos sertões cearenses – arraial e feira, antro e oficina, centro de
orações e hospício enorme...148

146
Op. cit., p. 39.
147
Essas ideias, muito infundidas por Nina Rodrigues, conduziram a uma tentativa de analisar a suposta loucura
de Antônio Conselheiro através de um exame de seu crânio, realizado na Faculdade de Medicina de Salvador
após a sua morte.
148
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 17.
74

Desde o início do trecho, espera-se que a qualquer momento se revele uma


descrição de Canudos, mas o objeto da exposição é, na verdade, Juazeiro. Ao fazer menção à
cidade como um “arraial”, o autor remeteu claramente ao reduto de Antônio Conselheiro. Mais
adiante, afirmou explicitamente que a Sedição de Juazeiro lembraria, “[...] no preparo militar
da expedição, uma caricatura grotesca da luta do arraial do ‘Conselheiro’”149.
Tais descrições de Juazeiro tornaram-se mais frequentes após 1914, quando aliados
e devotos do Padre Cícero defenderam, durante o evento conhecido como “Sedição” ou
“Revolta” de Juazeiro, o poder da oligarquia Nogueira Accioly no Ceará. Com o apoio de Floro
Bartolomeu, romeiros, devotos e jagunços conduziram uma “revolução” em que buscavam
depor Franco Rabelo, então governador do estado. A tropa de Juazeiro obteve êxito e “os
jagunços” de Padre Cícero passaram a ter suas façanhas divulgadas em jornais de todo o país.
Notícias que associavam a figura do sacerdote de Juazeiro ao fanatismo e ao
banditismo já eram comuns àquela época. Foi divulgado o boato de que Padre Cícero auxiliaria
Conselheiro, quando, em agosto de 1897, foi obrigado a passar uma temporada no município
de Salgueiro, interior de Pernambuco150. Imediatamente, começaram a correr rumores de que o
sacerdote estaria ali com o objetivo de aliciar cangaceiros para fortalecer a resistência de
Canudos. O temor se espalhou e precisou ser aplacado por líderes de Salgueiro, Leopoldina,
Granito, Ouricuri e Cabrobró, além do próprio governador do estado. Através de telegramas, os
chefes locais afirmaram “[...] ser absolutamente falsa [a] notícia [de] padre Cícero deixar
Joazeiro do Crato, procurando Canudos para prestar auxilio [a] Antônio Conselheiro”151. O
próprio Euclides da Cunha escreveu que “[...] em Juazeiro, no Ceará, um heresiarca sinistro, o
padre Cícero, conglobava multidões de novos cismáticos em prol do Conselheiro”152.
Embora Padre Cícero utilizasse com eficiência seu prestígio político para assegurar
a subsistência de Juazeiro, a imagem da cidade como um reduto de cangaceiros que poderia dar
origem a uma segunda Canudos se manteve viva por muito tempo. A Sedição de Juazeiro foi
um evento importante para a cristalização dessa impressão, pois muitos cangaceiros foram, de
fato, participantes do combate. Em 1934, passadas duas décadas do conflito, Agostinho Odísio
se viu motivado a esclarecer que

149
Op. cit., p. 121.
150
Segundo Amália Xavier, o governo de Pernambuco teria chegado a ordenar que as autoridades competentes
“[...] prendessem o Padre Cícero como aliciador de bandidos para Antônio Conselheiro”. OLIVEIRA, Amália
Xavier de. O Padre Cícero que eu conheci. Ceará: Premius, 2001 [1969]. p. 115.
151
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 109.
152
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 162.
75

[…] não há o menor termo de comparação entre Canudos e Joaseiro. Canudos era uma
imensa tapera dentro [de] uma furna, em tudo comparado a selvagem areal africano,
sem ruas, sem o primordial princípio de hordem, um amontoado de choças de barro
com barracos para abitações, aonde vivia entocado o jagunço […], reduto nefasto que
envergonho[u] o paiz em armas de lutas para destrui-lo. Joaseiro […] está preparado
para futuro centro cívico, pois as suas ruas são amplas, com vastos largos e praças,
bem alinhado, situado numa posição topográfica magnífica com clima bom, apesar de
quentíssimo, e até salubre si existisse higiene.153

Como é possível perceber, as ideias de urbanização, ordem, salubridade e


civilização eram essenciais para distinguir Juazeiro de Canudos. Talvez por esse motivo Floro
Bartolomeu tenha se aplicado tanto na tarefa de gestão urbana e moral de Juazeiro. Seu objetivo
era, como se sabe, transformá-la em cidade progressista, com fortes características modernas.
Esse projeto aparece claramente em seu já citado Juazeiro e o Padre Cícero – Depoimento para
a História.
Em 1935, com a “Intentona Comunista”, intensificou-se a preocupação das elites
nordestinas com o fantasma do comunismo. As autoridades começam a dispensar maior atenção
ao Caldeirão, imaginando que o beato — capaz de reunir centenas de homens para o trabalho
— também poderia organizar os mesmos homens para uma revolução. Em 1936, a comunidade
foi destruída. Os oficiais justificaram a destruição do Caldeirão afirmando que ali estaria se
constituindo uma segunda Canudos, um símbolo de atraso para a nação ou um possível antro
de revoltosos. De acordo com o relatório do comandante José Góes Campos de Barros,

Em pleno século vinte, quando a humanidade parece prestes a chegar à ordem máxima
da Civilização, esta forma grotesca de expansão mística deve, forçosamente,
classificar-se no passado, entre fenômenos mortos na evolução humana, que o
estudioso aprecia, com frieza e carinho, por se tratar de uma reminiscência antiga.
Admiti-la no presente é negar a Civilização, consenti-la nos dias que correm, é tirar o
esforço sadio e patriótico que fazemos, no sentido de elevar o nome do Brasil. 154

As esdrúxulas práticas dos habitantes do Caldeirão deveriam, segundo as elites


cearenses, ser somente matéria de estudo histórico ou arqueológico. Não poderiam fazer parte
do presente. Era inadmissível, para as camadas letradas, que tais hábitos permanecessem vivos

153
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 12.
154
BARROS, José Goés Campos de. In: LOPES, Régis. Caldeirão: Estudo histórico sobre o Beato José Lourenço
e suas comunidades. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 127.
76

em 1936. Trazer os religiosos da comunidade à civilização seria atribuição do Estado, e a


destruição do agrupamento se estabelecia como um serviço patriótico155.
As narrativas veiculadas acerca dos seguidores de José Lourenço eram as mais
diversas. O Diário Carioca reproduziu, em matéria de capa, no ano de 1936, uma reportagem
publicada originalmente na Gazeta de Notícias (periódico fortalezense) sobre a captura dos
beatos do Caldeirão:

Dentre os do grupo, uma mulher logo nos chamou a atenção. Com a cabeça coberta
por um pano branco, varias medalhas pendentes do pescoço, estatura mediana, olhos
pretos, penetrantes, faces magras, foi ella abrindo o grupo, empurrando os seus
companheiros de viagem e dizendo:
‒ Espere que eu quero falar com o capitão (promoveu o tenente Cordeiro Neto). E
dele se aproximando, começou a falar das suas “manifestações”. Disse que na primeira
manifestação do ‘Divino Mestre’ (assim chama o padre Cicero), recebeu o nome de
‘Maria Quiteria’ e na segunda o de ‘Esquartelada da Annunciação’. Essa mulher, em
Joazeiro, conseguiu, entre outras igualmente ignorantes, muitos adeptos às suas
crenças esdruxulas. Armadas de espetos, saiam pelas casas, arrebentando quadros e
imagens de santos. Diz a ‘Esquartelada’ – que não devemos adorar imagens, nem
acreditar em ‘coroinhas’. Refere-se aos padres. Perguntamos-lhe, então, se ella era
prostestante, ao que nos respondeu: -- ‘acredite se quiser’... O comandante da escolta
adeantou que a ‘Esquartelada’ não comia e que ella se alimentava apenas de agua. Foi
um momento interessante porque a tal mulher se apressou em declarar que comia
bolachas, não convindo que o soldado adiantasse inverdades... 156

A reportagem é peculiar, pois retrata uma mulher autodenominada protestante,


mas que era, supostamente, afetada por manifestações espirituais do Padre Cícero. De acordo
com o jornal, ela e outras pessoas da comunidade saíam às ruas armadas de espetos, com o
objetivo de destruir imagens sacras. As histórias relativas aos devotos do Padrinho eram
bastante excêntricas e teriam dado ao comandante a possibilidade de fantasiar, afirmando que
a “Esquartelada” se alimentava somente de água.
Como afirma Régis Lopes, “[...] a destruição foi um ato preventivo, pois pensavam
as autoridades que o Caldeirão causaria mais um episódio de ‘retrocesso e sangue’ como
ocorrera em Canudos [...]”157. Tanto o Caldeirão quanto Juazeiro são representados, muitas
vezes, como elementos fora de ordem, contrários à República e à civilização, fadados a

155
A ideia por trás de textos como esse é a de que esse passado de atraso, que envergonhava as elites, deveria ser
sepultado, Conforme indica Michel de Certeau, “diferentemente de outros ‘túmulos” artísticos ou sociais, a
recondução do “morto” ou do passado num lugar simbólico, articula-se [...] com o trabalho que visa a criar, no
presente, um lugar (passado ou futuro) a preencher, um “dever-fazer”. DE CERTEAU, Michel de. A Escrita
da História. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007. p. 108.
156
A POLÍCIA do Ceará vai acabar com os Beatos e Beatas de Juazeiro – Ladrões e Assassinos Explorando a
memória do Padre Cicero para melhor tirar proveito das massas fanáticas. Diário Carioca. Rio de Janeiro, 14
de maio de 1936, p.1.
157
LOPES, Régis. Caldeirão: Estudo histórico sobre o Beato José Lourenço e suas comunidades. Fortaleza:
Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 123.
77

desaparecer graças à evolução natural dos homens — no caso das teorias raciais — ou à
imposição de uma cultura mais avançada (de acordo com os adeptos de teorias culturais).
Assim, para os intelectuais que se preocuparam com o tema, haveria uma época em que “[...]
mal soarão, como evocações de um passado omisso, as lembranças dos males sociais que não
podem ser agora escondidas, como êsse, quase incrível, do Juazeiro do Padre Cícero”158.
Além dos receios associados à constituição de uma segunda Canudos, rondava
sobre Juazeiro a ideia de que seria um antro do cangaço. Em diversas descrições é possível
perceber os temores dos visitantes diante dessa informação. De acordo com alguns narradores
de Juazeiro, como Floro Bartolomeu, tais bandoleiros recorriam à cidade somente em busca de
paz espiritual. Encontravam-se com o Padre Cícero para pedir perdão e procurar a regeneração.
E o padre, através da famosa prédica “quem matou, não mate mais, quem roubou, não roube
mais”, os perdoava e acolhia. Existem, no entanto, outras explicações acerca da grande
concentração de criminosos na região.
Primeiramente, é importante notar que elucubrações acerca do caráter intensamente
violento da população local existiam desde o século XIX. O viajante George Gardner afirmou:
“Aqui foi, e até certo ponto ainda é, embora em menor extensão, um esconderijo de assassinos
e vagabundos de toda a espécie vindos de todos os cantos do país [...]” 159.
O Cariri já possuía, há pelo menos um século, a fama de refúgio de bandidos,
provavelmente por causa de sua distância em relação à capital. Tal imagem, no entanto, em
determinado momento passou a ser propagada especialmente em relação a Juazeiro. Os
forasteiros que chegavam pela devoção ao Padre Cícero foram imediatamente identificados
como salteadores. Alencar Peixoto, por exemplo, afirmou que a cidade era “[...] quase que
exclusivamente composta de romeiros, o que vale o mesmo que dizer – de assassinos, de
desordeiros, de rufiões e de ladrões de cavalo”160.
A passagem de Lampião por Juazeiro, em 1926, reforçou a constância de tais
discursos. Padre Cícero e Floro Bartolomeu teriam convocado o cangaceiro para lutar junto ao
Batalhão Patriótico contra a Coluna Prestes. Lampião atendeu ao chamado graças à promessa
(frustrada) de que receberia em troca um prêmio: a patente de capitão, associada ao perdão de
seus crimes. Esse evento é marcante na história local e acabou reafirmando a hipótese do apoio
de Padre Cícero aos jagunços. Lourenço Filho, por exemplo, defende que “[...] ‘Lampião’ é um

158
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 182.
159
GARDNER, George. Viagens pelo Brasil. Principalmente nas províncias do Norte e nos Distritos do Ouro e
do Diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. p. 94.
160
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 53.
78

expoente, apenas, da malta de celerados que tem feito do Juazeiro o seu quartel-general, como
tem sido abundantemente provado”161.
É importante notar, todavia, que há anos o Padre Cícero vinha desenvolvendo
estratégias para diminuir os embates entre líderes locais (e, consequentemente, entre os diversos
grupos de jagunços). O célebre “Pacto dos Coronéis”, firmado pelo sacerdote em 1911, teve
como um dos objetivos assegurar que “[...] nenhum chefe protegerá criminosos do seu
município nem dará apoio nem guarida aos dos municípios vizinhos, devendo pelo contrário
ajudar a captura destes”162. Conforme a resenha do livro de Reis Vidal publicada no Diário
Carioca por Marcial Dias Pequeno,

Não foi como politico, nem como administrador, que o ‘padrinho’ do sertão chegou a
interessar o paiz. Isso ele conseguiu pelo poder magico da bondade. E como tal fez
authenticos milagres. Pois não dominou alguns milhões de ‘jagunços’ Não corrigiu
numerosos bandidos apenas com alguns conselhos? O próprio ‘Lampeão’ abandonou
o crime por longo espaço de tempo, só voltando ao ‘cangaço’em virtude de novos
erros dos governos.163

A ideia de que Padre Cícero protegia criminosos vinha frequentemente atrelada à


opinião de que ele os dominava, chegando inclusive a converter alguns. Entre críticas mordazes
e defesas apaixonadas do sacerdote, surgiram diferentes narrativas acerca de sua influência
sobre os criminosos locais. Em artigo publicado por Gustavo Barroso em 1926 no Correio da
Manhã, o Padrinho aparecia como uma influência importante para os povos ignorantes,
incultos, místicos e revoltosos do Nordeste: “A sociedade anarchica e semifeudal dos sertões
do Nordéste, cujas energias se perdem sem estimulo ou conduzem os indivíduos ao crime e à
revolta, tem necessidade de centralizadores 164 ”. Desse modo, o povo sertanejo precisaria
sempre de um guia que o comandasse. Em Canudos, Conselheiro representou essa liderança.
Em Juazeiro, o papel foi desempenhado por Padre Cícero, que assegurou, por isso, a ordem e a
paz da cidade. Mas os folcloristas e articulistas de jornais não eram os únicos a desenvolver
hipóteses sobre a importância do sacerdote nos sertões nordestinos.
O naturalista alemão Philip von Luetzelburg trabalhou durante vinte e cinco anos
no Brasil. Foi, assim como Paulo de Moraes e Barros, membro da Inspetoria Federal de Obras
contra as Secas, onde teve oportunidade de conhecer Juazeiro e o Padre Cícero. Em seu relatório

161
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 114.
162
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Fortaleza: IMPEH, 2011 [1938]. p.
169.
163
PEQUENO, Marcial Dias. “Padre Cicero”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, p. 6, 7 ago. 1936.
164
BARROSO, Gustavo. O Padre Cicero e o Folk-lore. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 13, 26 out. 1926.
p. 13.
79

de 1922, afirmou que era importante “[...] combater o conceito generalisado pelo povo
brasileiro de que o Padre Cicero exerce malefica inffluencia no povo nordestino; muito pelo
contrario, devemos salientar as suas beneficas e desinteressadas obras humanitárias”165.
O Padrinho era considerado por Luetzelburg como a pessoa mais indicada para
auxiliar e socorrer o povo nordestino. Ele não estava só. Floro Bartolomeu defenderia que o
sacerdote tinha o poder de regenerar criminosos. Mas, para o médico baiano, caso os conselhos
de Padre Cícero não fossem o bastante, a Justiça deveria entrar em cena. Por isso, quando esteve
na liderança política de Juazeiro, assumiu a responsabilidade de eliminar os “elementos
perturbadores da ordem” e assegurar que Juazeiro estivesse “dentro da lei”. Para tanto, utilizou
diversos meios. Em seu Depoimento para a História, em 1923, contou:

Naquele mesmo periodo revolucionario, uma vez fui informado de que um cabra de
nome Domingos, nos arredores da cidade de Iguatu, havia invadido uma casa de
pessoas pobres, espancado os velhos e deflorado uma filha deles. Admirado da
petulancia do cabra e muito mais revoltado contra a crapulice do mesmo, confesso
com a maior sinceridade, mandei imediatamente cinco homens com o fim de verificar
se era exacta a informação, com ordens terminantes de, no caso affirmativo, ser elle
morto, para exemplo dos outros. Felizmente não era verdade, mas sim uma mentira
propalada por desaffectos.166

Floro Bartolomeu sabia que, ao afirmar publicamente sua decisão de mandar


eliminar tal homem, não sofreria censuras. Esta seria, a seu ver, uma medida saneadora167. Na
região, o líder baiano seria futuramente responsável pelos famosos “crimes de rodagem”, ou
seja, extermínios de infratores realizados na estrada que ligava Crato a Juazeiro. Através de seu
discurso, é possível perceber que as tentativas de expurgar, moralizar, modernizar e “civilizar”
Juazeiro seriam levadas às últimas consequências. Os delinquentes, antes convenientes aliados
em diversas situações, seriam, daí em diante, eliminados a qualquer custo.
Havia uma perspectiva que afirmava a hipótese de os jagunços e cangaceiros não
terem procurado a cidade em busca de perdão, mas de serviços, como mercenários de uma
missão específica durante o período da Revolta ou Sedição de Juazeiro. De fato, o combate ao
governo de Franco Rabelo só se tornou possível graças à iniciativa de Floro Bartolomeu, que

165
LUETZELBURG, Philipp von. Estudo Botânico do Nordéste. Rio de Janeiro: BNB, [1922]. p. 60.
166
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 58.
167
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 92.
80

arregimentou não somente devotos de Padre Cícero, mas, principalmente, criminosos dispostos
a lutar, mediante recompensa, pela causa dos Accioly.
Ou seja, Juazeiro teria, durante a Guerra de 1914, recebido inúmeros bandos de
jagunços que seriam responsáveis pela luta contra as forças estaduais. Com efeito, ao rebater
os comentários de Moraes e Barros – que afirmava ser o banditismo uma profissão normal em
Juazeiro –, Floro Bartolomeu admitiu que “[...] tanto em nossas hostes como nas do governo,
que nós combatíamos, havia um número relativamente pequeno de indivíduos dignos de
cangaceiros, elemento, alias, indispensável nesses períodos de agitação”168.
O debate sobre a associação entre a população adventícia e a criminalidade era
intenso. Grandes ondas migratórias chegavam diariamente quando a popularidade e a saúde de
Padre Cícero estavam em alta. Muitos autores se dedicaram a descrever tais migrantes. Ao
dissertar sobre as características desses novos habitantes, o advogado juazeirense Manoel Dinis
defendeu:

Já houve quem disse que os romeiros do Juazeiro constituem a escória das populações
do nosso Nordeste, mas não é assim: aqui moram e têm morado romeiros idiotas,
romeiros cretinos, loucos, fanáticos, e romeiros inteligentes e bens (sic) como os mais
legítimos representantes da brasilidade. É exato que no começo muitos criminosos se
fizeram romeiros e penitentes mais ou menos sinceros, vindo residir junto ao Padre
Velho, para cuidarem de sua regeneração e salvação, o que parte deles conseguiu, ao
menos em relação à cadeia.169

Mesmo Manoel Dinis, amigo do sacerdote, admitia que a cidade recebeu, portanto,
romeiros “idiotas, cretinos, loucos, fanáticos e criminosos”. Entre os que se preocupavam com
o fato de Juazeiro ter se transformado em conhecido refúgio para delinquentes, muitos
defendiam que tais indivíduos errantes teriam se fixado definitivamente em Juazeiro após os
combates de 1914. Por esse motivo, alguns temiam que, depois da morte de Padre Cícero, a
criminalidade na cidade se tornasse incontrolável:

Outro perigo não menos temeroso diz respeito à ordem pública. Por emquanto os
cangaceiros estão acorrentados aos gestos complascentes de um homem. É preciso,
porém, não olvidar que esse homem é feito da mesma massa que os outros e conta 79
annos de idade; mais dia, menos dia, cumprindo o seu fado, como os seus semelhantes,
terá de emigrar desta para melhor. […]. Para prevenir o perigo imminente da eventual
liberdade do cangaço, seria preciso cuidar, desde logo, com geitoso tacto, da sucessão
da influencia da actual sotaina, que se assenta em mystica superstição por outra que
se apoia na religião verdadeira, tolerante e arguta. 170

168
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 89.
169
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 54.
170
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 152.
81

O inspetor Moraes e Barros defendeu a necessidade de forjar um novo líder capaz


de substituir Padre Cícero na tarefa moralizadora. Tal líder, no entanto, não deveria ter sua
autoridade pautada na “superstição”, mas no catolicismo oficial. Aparentemente, Barros não
acreditava no poder das autoridades políticas sobre o cangaço, afirmando que somente o temor
a uma liderança religiosa poderia garantir segurança à cidade. Odísio também descreveu, onze
anos depois, as histórias que ouvira sobre bandoleiros apoiados pelas lideranças políticas locais:

[…] para Joaseiro vieram os desamparados do Norte, restos de Canudos, doentes de


toda espécie, alejões, loucos em quantidade e o peior de tudo, bandoleiros, ladrões,
assassinos, que aqui ficaram a sombra do padre que a todos perdoava, porquanto
prometessem de não incidir no erro, promessa que faziam jurando, mas nunca
cumpriam, ficando assim este lugar o campo de acção de todos quantos eram fora da
lei e precisavam fugir ao rigor das autoridades, a qual sempre foi barrada em Joazeiro
por políticos interesseiros que se serviam do nome do padre Cicero para ter cabras
armados a disposição.171

Para Odísio, no entanto, esse tempo já havia passado, e em 1934 Juazeiro se


mostrava uma cidade operosa e preparada para o progresso. Com efeito, desde o início da
década de 1920, Floro Bartolomeu da Costa fez esforços para implementar a remodelação
urbana, a modernização da cidade e a moralização de seus habitantes. Exaltado com as
acusações propagadas por Paulo Moraes de Barros, ele publicou, em 1923, um discurso que
havia proferido, como já foi mencionado, na Câmara Federal.
Na preleção, apresentou Juazeiro a seu modo e contestou as informações divulgadas
por Barros, que a teria descrito como: uma cidade cuja “[...] peripheria, só de casebres e
mocambos de meia agua, é de ingrata apparencia, mais semelhando colossal e disforme
acampamento [...]” 172
. Floro Bartolomeu desmentiu tais afirmações com veemência,
defendendo: “Sua edificação, na parte central, é de predios regulares, alguns sobrados […] e na
peripheria, de casas na maioria de taipa, mas todas cobertas de telhas”173.
Apoiado pelos deputados que assistiam ao seu discurso, o Dr. Floro lembrou que,
tanto no interior quanto nas capitais do país, era comum que as casas da periferia fossem de
taipa, porém “[...] o que ha de mais singular é que só em Joazeiro as casas não são de palha nem

171
Odísio, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 27.
172
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 8.
173
Op. cit., p. 11.
82

de palha cobertas, todas são de tijolo ou de taipa e cobertas de telhas” 174. Assim, afirmava a
superioridade da cidade não só diante de outras do sertão, mas inclusive quando comparada às
capitais brasileiras 175 . O importante era garantir que Juazeiro não fosse igualada a um
acampamento. Importa ressaltar que Floro Bartolomeu não foi o único a defender o avanço de
Juazeiro. O naturalista Luetzelburg escreveu:

O interior da cidade espaçosa, com a praça avultadamente larga, orlada de casas de


negocio bem sortidas, ruas em parte calçadas e bem conservadas, constitue o Joazeiro
propriamente dito; satisfaz pela sua limpeza e construcção solida, causando
extranheza tal edificação em paragem erma, secca e desprovida d'agua. Deste centro
commercial partem diversas ruas irregulares e poeirentas de 4 kms. De extensão em
todas as direcções, margeadas de casas de pau a pique, de apecto pobre e rude,
formando os suburbios da cidade […].176

Deste modo, o botânico alemão admitiu que o centro era bastante organizado, mas
não deixou de observar a existência de uma poeirenta periferia. Outros viriam, alguns anos
depois, reafirmar a existência de importantes problemas urbanos em Juazeiro. Em 1934, apesar
de destacar os aspectos positivos da cidade, Odísio se espantou:

A higiene é pois palavra morta; existe é verdade a ‘Instituição Rockfeller’ com seus
impregados mata mosquitos que todas semanas visitam as casas procurando destruir
as aguas paradas e focos de mosquitos, mas o que vale? Numa só sarjeta aonde se
empoçam as águas que saem das casas destrói o trabalho de todos os mata mosquitos;
e as sarjetas são muitas e com águas paradas dum fedor insuportavel na cidade toda
[…].177

As reflexões dos membros da cultura letrada levam a crer que a cidade de Padre
Cícero deixaria de ser, num futuro breve, o ajuntamento de sujeitos pobres que foi até a morte
do sacerdote. Para alguns, com o progresso material, Juazeiro se tornaria uma cidade culta,
progressista e moderna, eliminando fanáticos, beatos e romeiros. Para outros, esse extermínio
aconteceria de forma natural, pois as características genéticas da população impossibilitariam a
reprodução de novas gerações. Havia, por fim, aqueles que imaginavam apenas a decadência
econômica e social daquela cidade, acompanhada pelo crescimento da violência após a morte

174
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições
UFC, 2010 [1923]. p. 12.
175
É importante lembrar que “[...] foi [...] sob o prisma das discussões sobre civilização e progresso na virada do
século XIX para o XX, ou em torno do desenvolvimento e, em particular, sob a inspiração da teoria da
modernização nos anos da década de 50 do século XX, que se produziu toda uma literatura sobre as relações
entre sertão e litoral”. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. São Paulo: Hucitec, 2013. p. 18.
176
LUETZELBURG, Philipp von. Estudo Botânico do Nordéste. Rio de Janeiro: BNB, [1922]. p. 58.
177
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 54.
83

do Padrinho. De toda forma, as três perspectivas previam, de um modo ou de outro, o fim dos
romeiros, resultado da ausência do santo a quem costumavam visitar.

3.3 A nova Canudos

Juazeiro e Canudos foram fenômenos que irromperam na fronteira temporal situada


entre a Monarquia e a República. O reduto baiano parece carregar uma ligação mais evidente
com o advento do regime republicano, mas é preciso lembrar que o prestígio de Padre Cícero
cresceu justamente após 1889, quando teria ocorrido a transformação da hóstia em sangue na
boca da beata Maria de Araújo178.
Tanto Canudos quanto Juazeiro atraíram milhares de sertanejos pobres, tolhidos
pela fome, a sede e a seca. Naquele período, o Sudeste do Brasil dirigia boa parte de suas forças
produtivas para a exportação do café e a industrialização ainda embrionária. O Norte, por sua
vez, via a ascensão do chamado ciclo da borracha. No Nordeste, com a decadência da cultura
do algodão, já havia um forte movimento migratório, que se intensificaria durante os períodos
de seca. Canudos e Juazeiro se transformam, entre os séculos XIX e XX, em lugares de destaque
para esses deslocamentos179.
Canudos e Juazeiro tinham, de fato, muitas semelhanças. Eram lugarejos pobres do
Nordeste, contavam com lideranças fortes cujos discursos estavam amparados na religião e
repetidas vezes receberam e abrigaram inúmeros sertanejos que buscavam conforto material e
espiritual. Desde 1850, com a Lei de Terras, as classes desfavorecidas já não conseguiam nem
mesmo garantir o acesso à agricultura de subsistência. Por esse motivo, locais que contassem
com um regime de distribuição de terras distinto (como Canudos e o Caldeirão) ou
assegurassem condições mínimas de vida foram considerados refúgios importantes.
Tanto Padre Cícero quanto Antônio Conselheiro eram cearenses, embora este
último tenha atuado na Bahia. Ambos garantiram, por algum tempo, paz e conforto aos seus
seguidores. Segundo Euclides da Cunha, os sertanejos buscavam Canudos com uma intenção

178
Para della Cava, inclusive, o fato de o país estar entrando num período de governo caracterizado pelo laicismo
teria contribuído para a perseguição ao Padre Cícero e ao Juazeiro. Segundo o pesquisador norte-americano,
“[...] encontrava-se a Igreja, na época, sob ataques crescentes dos republicanos. Em 1888, o bispo confiara ao
Padre Cícero seus temores de que o problema da ‘liberdade religiosa’ estava se tornando cada vez mais crítico
[...]. Talvez acreditasse dom Joaquim que os milagres de Joaseiro tenham sido enviados por Deus para
confundir os descrentes’”. DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985
[1977]. p. 56.
179
RAMOS, Francisco Régis Lopes. Juazeiro e o Caldeirão: espaços de sagrado e profano. In: SOUZA; Simone
de (Org). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2007. p. 355.
84

principalmente religiosa, já que a vantagem material era parca, pois o líder da comunidade
permitia somente a propriedade pessoal de residências e objetos móveis, garantindo o
compartilhamento absoluto das terras, pastagens e rebanhos. Sob a perspectiva do jornalista,
“[...] os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento do que traziam [...].
Reputavam-se felizes com a migalha restante. Bastava-lhes de sobra”180. A mentalidade urbana
pouco compreendia as necessidades e prioridades daquela população.
Padre Cícero, por sua vez, recebeu devotos vindos de diversas partes do Nordeste.
Ao chegarem em Juazeiro – ou mesmo antes de se se estabelecerem na cidade –, tais homens e
mulheres pediam conselhos ao sacerdote sobre a melhor maneira de desempenhar suas
atividades produtivas, e muitas vezes eram encaminhados por ele para os mais diferentes
serviços.
Nos períodos de seca, principalmente, Juazeiro era vista como um abrigo, e o
Padrinho fazia o possível para assegurar pelo menos a uma refeição diária à população pobre
que buscava a região181. A cidade se transformou, assim, num refúgio alternativo aos campos
de concentração criados pelo governo182. O sítio Caldeirão, por sua vez, vivia um regime de
propriedade semelhante ao de Canudos, atraindo, por isso, a atenção dos intelectuais, das
autoridades policiais e das elites, as quais temiam perder aquela mão de obra barata183.
Canudos, em 1902, era descrita por Euclides da Cunha como um agrupamento
bárbaro, uma urbe selvagem que lembrava ruínas já no momento de seu surgimento, onde não
havia avenidas e era impossível distinguir as ruas. Segundo o escritor, o lugarejo se
caracterizava por possuir

[...] becos estreitíssimos, mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos
ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos, cumeeiras orientando-se para todos

180
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 84.
181
Segundo Barros, “[...] chegada a família no Juazeiro, o padre, após situá-la em alguma propriedade como
rendeira, ou mesmo em terras devolutas, ajudava-a no início, fornecendo-lhe comida (se a pobreza fosse
absoluta), sementes para iniciar o plantio. Quando da colheita, em sinal de gratidão, afluíam para seus paióis
sacas e mais sacas de produtos agrícolas, trazidos pelos novos rendeiros ou proprietários de terras. Esse produto
era distribuído entre os necessitados, aqueles que iriam começar a vida, e ainda sobrava muito para, junto com
a sua própria produção, enriquecer-lhe os cofres. Dessa maneira aconteceu uma verdadeira circulação de
riquezas na região, animando o povinho a migrar para Juazeiro”. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti.
Juazeiro do Padre Cícero – A Terra da Mãe de Deus. Fortaleza: IMEPH, 2008. p. 281.
182
Para maiores informações sobre os campos de concentração, cf. RIOS, Kênia Sousa. Campos de concentração
no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza: Museu do Ceará, 2001.
183
De acordo com Régis Lopes, “[...] em 1932, a organização do Caldeirão já estava tão bem estruturada que não
houve grandes problemas no socorro aos flagelados. O depoimento de José Alves de Figueiredo garante que o
beato chegou a abrigar mais de 500 pessoas: ‘ele gastou grandes depósitos de cereais que tinha em Caldeirão
e toda farinha produzida em 600 tarefas de mandioca de sua cultura na Serra do Araripe (...). Fornecia uma
única refeição diária, mas somente nesse jantar, eram empregadas 5 quartas de farinha, ou sejam, 400 litros’
(Figueiredo, 1934)”. LOPES, Régis. Caldeirão: Estudo histórico sobre o Beato José Lourenço e suas
comunidades. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 79.
85

os rumos, como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma
multidão de loucos... Feitas de pau-a-pique e divididas em três compartimentos
minúsculos, as casas eram paródia grosseira da antiga morada romana: um vestíbulo
exíguo: um atrium servido ao mesmo tempo de cozinha, sala de jantar e de recepção;
e uma alcova lateral, furna escuríssima mal revelada por uma porta estreita e baixa
[...]. Traíam a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa. Se as edificações em
suas modalidades evolutivas objetivam a personalidade humana, o casebre de teto de
argila dos jagunços equiparado ao wigwan dos pele-vermelhas sugeria paralelo
deplorável. O mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza repugnante,
traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça.184

As características das residências espelhavam, segundo o texto de Euclides da


Cunha, o reflexo das faces e personalidades de seus moradores. Eram pobres, miseráveis e
degeneradas como os habitantes de Canudos. Lourenço Filho, em sua passagem por Juazeiro,
mais de vinte anos depois da publicação de Os Sertões, descreveria o recanto do Padre Cícero
com alguma semelhança:

As habitações quase todas se copiam por fora, em muros mal acabados, despidos
ordinariamente de qualquer intenção estética, como se parecem no interior,
pobríssimo e imundo [...]. Por dentro, uma sala, em toda a largura da habitação. Duas
alcovas, as camarinhas, e a cozinha, tudo sem outro piso senão a terra batida, sem
forro nem pintura [...]. Ordinariamente, não há, nas pobres habitações, nem cadeiras,
nem mesas, nem camas. Em nenhuma delas falta, porém, pendurada à parede da sala,
a efígie do Padrinho, em reprodução tipográfica, ou numa oleografia em que ele
aparece miraculosamente rodeado de anjinhos, que tangem harpas celestiais, entre
nuvens de incenso. Junto à gravura, na maioria das casas, ostenta-se um rifle.185

Euclides da Cunha também começou descrevendo o arraial para, em seguida,


especificar as residências e seus objetos, dando destaque às imagens religiosas e,
posteriormente, às armas. Embora Lourenço Filho mude a intensidade da atenção dedicada a
cada um desses itens, continua seguindo a mesma ordem em sua narrativa. O educador paulista,
ao publicar seus escritos no jornal O Estado de São Paulo ao longo de várias edições de 1925,
contribuiu para consolidar a ideia de que Juazeiro seria uma segunda Canudos.186.
Na década de 1920, Floro Bartolomeu trabalhou para dar visibilidade a aspectos até
então pouco explorados quando se falava do município fundado pelo Padre Cícero. Seus planos
de urbanização, moralização e mesmo sua perseguição em relação a sujeitos considerados
criminosos ou “atrasados” contribuíram, de alguma forma, para que as reportagens sobre

184
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 82.
185
LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. Joazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Edições Melhoramentos,
[1926]. p. 44-46.
186
Conforme destaca Ramos, desde o século XIX, “[...] o motor dessas preocupações era praticamente o mesmo:
avaliar em que medida Juazeiro assumia a condição de ‘cidade rebelde’ diante da ‘ordem social e política’”.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 119.
86

Juazeiro, por vezes, levassem em consideração a imponência da cidade quando comparada a


outros municípios interioranos. Para a cultura letrada do período, a “ordem” implantada pelo
Padrinho e seu aliado não era o suficiente para denotar o progresso, mas era preferível ao caos
em que parecia viver o restante do sertão. Em 1926, Gustavo Barroso publicou:

A Nova Jerusalém! ... Ao governo brasileiro cabe o inadiável dever de crear nos
sertões as Jerusalens da Industria, como a Fabrica da Pedra de Delmiro Gouveia, as
Jerusalens do respeito à Lei, da Instrucção, do Trabalho e do Progresso, afim de evitar
as do Fanatismo, da Ignorancia do Abandono, como Canudos e o Joazeiro, embora
estejamos crentes que a centralização de energias levada a efeito pelo padre Cícero,
apezar de defeituosa, é preferível à anarchia completa a que o descaso dos poderes
públicos há mais de um século votou o sertão.187

Em 1931, Paulo Sarasate, em matéria publicada no jornal fortalezense O Povo, já


apresentava as contradições da cidade. O jornalista avaliava a existência de duas Juazeiros: a
primeira, agitada, dinâmica e promissora; a segunda, inculta, ignorante, atrasada, muito
semelhante a Canudos:

Ao aproximar-se da residência do Padre Cícero, Joaseiro como se transforma


subitamente. Toma outro aspecto. De cidade movimentada e alegre, empório
comercial dos mais florescentes do sul do Estado, como se apresenta nas demais
artérias públicas – transfigura-se ali, nas cercanias da mansão, patriarcal, num
verdadeiro fóro de fanatismo. Não é mais a cidade clara e sorridente do Cariry,
agitada pelo lufa-lufa quotidiano dos que trabalham: é o vilarejo inculto e retardado,
a nova e pacífica Canudos dos sertões nordestinos, com a figura tradicionalmente
discutida do padre e a ignorância contristadora dos romeiros.188

Com o objetivo de resistir a observações que narravam somente o atraso de


Juazeiro, muitas vezes foram veiculadas, pelas lideranças políticas locais, publicações sobre as
indústrias da cidade, bem como sobre os estabelecimentos de educação. Provavelmente com o
objetivo de combater as muitas visões depreciativas acerca do município, realizou-se, em 1934,
a “Exposição de Artes e Indústrias de Juazeiro”.
Walter Barbosa afirma, em seu Padre Cícero – Pessoas, Fatos e Fotos, que o
empreendimento, inicialmente, tinha a finalidade de apresentar ao restante do Brasil as tradições
culturais nordestinas que se encontraram em Juazeiro graças às romarias. Contudo, os planos
mudaram, e a feira acabou, por problemas de logística, substituindo a participação dos
brincantes de folguedos populares pela exposição de objetos fabricados nas oficinas e indústrias
da cidade:

187
BARROSO, Gustavo. O Padre Cicero e o Folk-lore. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 13, 26 out. 1926.
188
SARASATE apud RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do
Padre Cícero. Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 144.
87

[...] muita cousa interessante e mesmo valiosa a ser apreciada: imagens, cerâmica,
instrumentos de corda bem acabados, calçados admiráveis, molduras, giz, [...], vellas,
objetos de chifres e de flandres e por fim até impermeável para capas, uma
extraordinária realização do sr. João Fontes, o mesmo constructor do balão, talvez
indústria única no ramo em todo o Brasil. Convem salientar aqui também o
beneficiamento do couro, que é indústria própria em Juazeiro devido à capacidade e
arrojo de um sertanejo em surpreender, o sr. José Pedro da Silva. É assim a única
indústria local bem enraizada, isto é, aquella que possue machinas modernas de
confecção. Tudo o mais apesar da maior perfeição, é fabricado por methodos
primitivos, encontrando entre os factores principais apenas a habilidade e a paciência
do caboclo sertanejo.189

Barbosa afirma, em seu já citado livro de memórias, que o próprio sacerdote teria
tomado a iniciativa de promover a feira a fim de mostrar, mormente, as manifestações culturais
presentes em Juazeiro. Segundo o memorialista, Padre Cícero teria dito ao jornalista Pedro
Coutinho Filho que seria interessante aproveitar sua visita para levar ao Rio de Janeiro uma
exposição da arte popular juazeirense. Pedro Coutinho, por sua vez, teria exposto a dificuldade
de transportar grupos de folguedos, considerando a distância entre as duas cidades, mas sugeriu
que fosse realizada uma exposição do artesanato local em que constasse a produção de
ourivesaria, relógios, “[...] artefatos de palha de carnaúba, de ferro, de flandre, de instrumentos
musicais e tantas outras...”190. O objetivo era dar a conhecer uma nova Juazeiro, aquela que
produzia objetos e cultura graças ao trabalho dos muito criticados romeiros.
Com efeito, os jornais anunciavam, em julho de 1934, “Juazeiro e o seu
progresso”191. A exposição foi visitada por autoridades, políticos e representantes de diversas
categorias funcionais. Padre Cícero, inclusive, enviou pessoalmente um regalo a Alzira Vargas,
filha do então presidente Getúlio Vargas. Alzira foi presenteada com um terço confeccionado
em ouro, e o general Góes Monteiro ganhou uma lamparina de prata, ambos fabricados nas
oficinas de Juazeiro.
Àquela época os periódicos cariocas publicavam – e os jornais cearenses
reproduziam – diversas matérias sobre o estabelecimento de Juazeiro como “capital do folclore
e do artesanato”192, conferindo ao Padre Cícero o mérito de ter incentivado tais artes e ofícios
entre seus afilhados e devotos. Era então 1934, e a ideia de mostrar ao mundo uma Juazeiro que
não fosse somente fruto do fanatismo continuava em alta.

189
EXPOSIÇÃO de Artes e Indústrias de Juazeiro. O Nordeste, Fortaleza, p. 5, 10 jul. 1934.
190
BARBOSA, Walter. Padre Cícero – pessoas, fatos e fotos. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1980]. p. 114.
191
JUAZEIRO E SEU progresso. Vida Nova, Rio de Janeiro, 1 de julho de 1934 apud BARBOSA, Walter. Padre
Cícero – pessoas, fatos e fotos. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1980]. p. 115.
192
BARBOSA, Walter. Padre Cícero – pessoas, fatos e fotos. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1980]. p. 115.
88

Conforme boa parte dos meios de comunicação, no entanto, mesmo o crescimento


demográfico da cidade, a industrialização da produção e a morte de Padre Cícero não teriam
livrado Juazeiro do risco de tornar-se uma nova Canudos. Segundo o texto publicado por
Antônio Guedes de Holanda, em 1950, no periódico católico A Cruz,

Joazeiro, o Canudos do Ceará, após a morte do Padre Cícero Romão Batista, tornou-
se insuportável. Nenhum padre poder-se-ia manter, contrariando à dogmática dos
fanáticos – ‘Meu padrinho’ é a primeira pessoa da S. S. Trindade e Cristo Rei é o
Anticristo, etc.; O Padre Juvenal foi açoitado e a polícia, para conter os jagunços,
fuzilou uns dez, empoleirados no altar. O Joazeiro era pois um caso sério. Só mesmo
um homem extraordinário; um sacerdote fora do comum poderia governa-lo
espiritualmente. Este existia, era Mons. Joviniano Barreto! [...]. É na Tribuna Sagrada,
dando a benção à pedra fundamental de uma dessas instituições, que um louco vai
apunhala-lo.193

O texto trata de dois episódios: um, de fundo político, mas associado à devoção a
Padre Cícero; e outro, religioso. O primeiro ocorreu em 1934, quando o deputado Xavier de
Oliveira fora acusado de tentar roubar os ossos do Padre Cícero e a imagem da Mãe das Dores.
Os devotos ocuparam a Matriz de Juazeiro e, durante um embate, o pároco, Padre Juvenal, foi
ferido, o que causou a represália dos policiais, que chacinaram uma dezena de fiéis dentro da
própria igreja. O segundo evento ocorreu em 1950, quando Monsenhor Joviniano foi
assassinado por um rapaz que pretendia obrigar o padre a celebrar seu matrimônio com uma
mulher já casada. Embora o segundo evento não tivesse relação direta com a devoção ao Padre
Cícero, também foi utilizado como exemplo para demonstrar o reino de insanidade e violência
após a morte do Padrinho. Para alguns órgãos de imprensa do período, o homicídio de
Monsenhor Joviniano teria deflagrado uma onda de barbárie, posto que havia despertado uma
multidão disposta a linchar o assassino do vigário, levando mesmo a polícia local a realizar uma
campanha de desarmamento após o evento:

Passados os primeiros instantes, o povo, indignado contra tamanho atentado, queria


por força, linchar o criminoso. A polícia, porém, o garantiu. A multidão o acompanhou
até onde se encontrava trancafiado. Mesmo assim, o povo, exaltado, ameaçou invadir
a cadeia, sendo adotadas medidas acauteladoras afim de evitar vingança por parte dos
paroquianos que, ao derredor da mesma, investiam de quando em vez contra as grades.
A muito custo, as autoridades policiais conseguiram dispersar os populares.194

Para muitos articulistas preocupados com a morte de Padre Cícero, a falta de uma
liderança – religiosa ou política – poderia trazer o caos às cidades sertanejas. Segundo teoria

193
HOLANDA, Antônio Guedes de. Mons. Joviniano Barreto. A Cruz, Rio de Janeiro, 15 jan. 1950.
194
ORDENADA UMA CAMPANHA de Desarmamento em Massa na Cidade de Juazeiro – Providência para
Evitar a Invasão do Quartel pela população revoltada ante o Bárbaro e revoltante Assassínio de Mons.
Joviniano Barreto. Diário do Ceará, Fortaleza, p. 4, 9 jan. 1950, p. 4.
89

levantada por Gustavo Barroso em artigo do periódico da Sociedade Brasileira de Geografia,


no final da década de 1920, os habitantes do (então) Norte do país apresentavam uma
peculiaridade psicológica que os levava a buscar a submissão a qualquer líder forte, fosse ele
religioso, político ou bandido:

[Para os nordestinos], no fenômeno religioso, só existem as fórmulas e as fórmas. Sua


mentalidade não poderia alcançar o exame espiritual do fundo. Corre parelhas com
esse estado psychologico digno de nota a necessidade de abdicar da sua vontade, de
ter um guia espiritual, necessidade fatal, naturalíssima, de crear alguém visível ou
invisível, que raciocine por ele, que do alto dirija a sua vida, que o proteja [...]. Dessa
necessidade de centralização de forças e de volições, dessa necessidade de espíritos e
guias e dominadores nasce o alto prestigio de que chegam a gozar no sertão,
determinadas individualidades. Alicerçado na bravura criminosa, esse prestigio
produz Antônio Silvino ou Jesuíno Brilhante; baseado no fanatismo ignaro e no
mysticismo rude, cria os Conselheiros e o padre Cícero; inundado no amor da
liberdade, dá o Zumba e o Gagazuma, no quilombo dos Palmares; nascido da força de
vontade e do progresso, mostra um assombroso Delmiro de Gouvêa, creador em torno
da sua fabrica da Pedra, à beira da cachoeira de Paulo Affonso, duma Jerusalem da
riqueza, do bem estar e da indústria, em contraposição às Jerusalens de taipa e de
fanatismo do Cariry e do Vasa-Barris.195

Euclides da Cunha, em Os Sertões, apelidou Canudos de “Jerusalém de Taipa”.


Para o escritor, Antônio Conselheiro “[...] arrastava o povo sertanejo não porque o dominasse,
mas porque o dominavam as aberrações daquele [...]. Obedecia à finalidade irresistível de
velhos impulsos ancestrais”196. O texto de Gustavo Barroso faz referência evidente – embora
velada – à obra de Euclides da Cunha. Juazeiro seria, talvez, uma segunda fazenda Vaza-Barris,
propensa a dar origem a uma nova Canudos.
Era comum que os articulistas, em geral influenciados pela obra de Euclides da
Cunha, imaginassem que, diante do vazio estabelecido pela ausência de Padre Cícero, os
nordestinos — já tão habituados a lideranças personalistas — precisariam criar novos líderes.
De fato, as comparações entre Juazeiro e Canudos não cessaram com a morte do sacerdote.
Chegaram, inclusive, a se intensificar com a perseguição aos seguidores do beato José Lourenço
e à comunidade do Caldeirão. Em 1935 e 1936, era comum observar reportagens que
recomendavam a destruição do aglomerado de pessoas, justificando esse posicionamento com
o caso de Canudos. O Diário Carioca, por exemplo, afirmou:

Já que esse povo não se apercebe da torpe exploração, é tempo dos poderes públicos
competentes exercer-lhe a curadoria protectora, evitando a continuação desse vae e
vem, de todo o ponto de vista, lamentável e contristador. Deste município mesmo

195
BARROSO, Gustavo. Raças do Nordeste. Revista da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, vol. 21, 1926-1927, p. 69.
196
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 78.
90

[Petrolina], tem havido grande êxodo de fanáticos, a convite do sócio Severino.


Prevenir é melhor que remediar. Canudos é uma lição recente.197

É possível notar que as reportagens sobre semelhanças entre Juazeiro e Canudos se


multiplicaram em três ocasiões: a primeira é aquela da Sedição de Juazeiro, em 1914; o segundo
momento é quando Lampião passa pela cidade, em 1926198. O terceiro período diz respeito à
destruição do Caldeirão, em 1936. Em todos os eventos de repercussão nacional, tais
comparações afluíam e inundavam os jornais.
Em 1926, a passagem da Coluna Prestes pelo Ceará — e o combate travado pelo
governo federal contra ela — levou ao peculiar acontecimento que conduziria o famoso
cangaceiro Lampião à cidade do Padre Cícero. O sacerdote, sempre diplomático, intermediou
o aliciamento dos cangaceiros para que combatessem o exército de tenentistas que se
movimentava pelo interior do país. O evento levou a imprensa nacional a afirmar que o
sacerdote teria a capacidade de reunir uma porção de jagunços e edificar, desse modo, uma
nova Canudos:

Estiveram em evidencia, faz pouco, duas figuras altamente interessantes: ‘Lampeão e


o Padre Cicero...’. Representam ambas, o índice mais perfeito da ideologia bárbara do
sertão. O resumo avançado das suas virtudes e das suas depressões. Uma, é a bravura
ardilosa e guerreira do jagunço; outra é a remanescente atávica do fanatismo,
construindo cidadelas, provocando romarias e trazendo numa inquietude permanente
a fragilidade temporária dos governos. Chama-se a primeira, Antônio Silvino ou
‘Lampeão’ e é o protesto violento do caipira ao abandono que lhe vóta a gente que
governa; a segunda, Santa Dica, Padre Cícero ou Conselheiro, e é o castigo bárbaro
que desfaz, no laconismo dum despacho telegráfico, toda a pôze de paiz civilizado da
nação que a abandona e entrega à fermentação perigosa das suas próprias tendências
desencontradas. Ambas são u’a mancha. E trazem, ambas, na sua configuração
chocante, a idiossincrasia de um caldeamento desastrado. Padre Cicero e ‘Lampeão’
podem muito bem representar toda essa longa teoria sociológica da formação cabocla.
E da resultante anarchica de uma infinidade de causas preexistentes.199

A análise publicada por Jarbas Peixoto na Revista Fon Fon200 em 1926 refletia boa
parte do pensamento intelectual do período acerca das especificidades do Nordeste. Padre

197
UMA CHANTAGEM Curiosa! Diário Carioca, Rio de Janeiro, p. 12, 21 fev. 1935, p. 12.
198
Segundo Ramos, “[...] além da ‘Guerra de 14’, outros acontecimentos também alimentaram debates acalorados
em torno do Padre Cícero, como a visita de Lampião a Juazeiro. Foram momentos que se transformaram em
um complexo conjunto de imagens, que se excluem e se entrelaçam nas formas pelas quais a espacialidade de
Juazeiro ganha sentido. Neste caso, a questão central não era definir a cidade como ‘centro de fanatismo’ e sim
como ‘núcleo de banditismo’, que, no final das contas, era quase a mesma coisa, pois os ‘fanáticos’ estavam a
um passo do ato criminoso”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. Narrativas em Fogo Cruzado – Padre Cícero,
Lampião e a Guerra de 14. Trajetos - Revista de História da UFC. Fortaleza, v. 2, n. 3, 2002, p. 164.
199
PEIXOTO, Jarbas. Duas Syntheses. Fon Fon, Rio de Janeiro, p. 92, 2 out. 1926.
200
Revista semanal criada em 1907 e extinta em 1958. Tinha a pretensão de ser leve e bem humorada, embora
também apresentasse artigos políticos e críticos. Começou a perder o caráter político em 1930, quando a linha
editorial passou a se voltar para o público feminino, com publicações que envolviam moda, beleza e luxo. A
91

Cícero (ou Conselheiro) e Lampeão se equivaliam, representando manchas no projeto de


progresso e de civilização da nação. Eram, ambos, frutos do abandono em que as instituições
políticas deixaram a região, mas não só isso. Para a cultura letrada, afeita às teorias da eugenia,
tais personagens se constituíam também como consequências do “caldeamento de raças” e do
“atavismo caboclo”. O texto de Jarbas Peixoto mostra um pensamento regionalista que era
calcado no naturalismo e já se encontrava em decadência na década de 1920201.
Tais opiniões não eram observáveis somente nos jornais e revistas das capitais
distantes. O Diário do Ceará veiculou, também em 1926, uma entrevista originalmente
realizada pelo jornal carioca A Folha com o Dr. Luiz Vianna, “[...] um espírito lúcido e um
estudioso benedictino”, em que este atribuía à omissão da política local a existência de
cangaceiros e de jagunços, ao mesmo tempo em que associava, mais uma vez, Padre Cícero a
Conselheiro e Juazeiro a Canudos:

Duas individualidades oferecem mão forte ao banditismo ou cangaceirismo. Uma está


no litoral, consciente de seus deveres para com a sociedade e para com o semelhante:
é o chefe político que habita a capital; a outra está no sertão, é o chefe do interior,
inculto, cioso de mando, absorvente: é o ‘coronel’. Primeiramente – continuou – o
‘coronel’ é um fator anti-civilizante. Ignorante, imbuído de praxes antiquadas, pleno
de amor próprio, cioso do mando, não quer ele abaixar-se ao império da lei. Por outro
lado, a política da capital, com o fim de captar a sua sympathia e apoio, é de uma
complacência criminosa, deixando que as coisas no sertão sigam ao critério ou
vontade de tal individualidade. De sorte tal que, no ponto de vista ethico, não
divergem fundamentalmente sertão e praia [...]. O banditismo, ou melhor, o
cangaceirismo, impenitente, firma-se, graças a múltiplos factores, sendo, porém, o da
impunidade consciente, protegida por methodos politicos postos em prática, um fator
de grande valia. Ao lado da impunidade, como elementos catalysantes, se perfiliam
as individualidades dos fanáticos revolucionários, taes como foram Antônio Maciel
(Antônio Conselheiro), na Bahia, José Maria, no contestado, Paraná; Campello e
padre Romão Baptista, no momento actual.202

As diferenças entre sertão e litoral são simbolizadas pelo coronel inculto e


“anticivilizante” e pelo chefe político consciente da capital. Embora o autor apresente as duas

Era Vargas representou também um novo tempo para a revista, que começou a estimular a ideia de um modelo
ideal de mulher.
201
Segundo Albuquerque Jr., no Brasil, esse regionalismo antigo (cujo expoente seria o debate realizado por
Euclides da Cunha em Os Sertões), “[...] inscrito no interior da formação discursiva naturalista, considerava as
diferenças entre os espaços do país como um reflexo imediato da natureza, do meio e da raça. As variações de
clima, de vegetação, de composição racial da população explicavam as diferenças de costumes, hábitos,
práticas sociais e política. Explicavam a psicologia, enfim, dos diferentes tipos regionais”. ALBUQUERQUE
JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: Massangana; São Paulo: Cortez,
2006. p. 41.
202
CANGACEIROS e jaguncismo. Diário do Ceará, Fortaleza, p. 2, 21 jul. 1926.
92

regiões como equivalentes sob o ponto de vista moral e ético, não deixa de estabelecer
comparações sobre as lideranças políticas existentes nessas diferentes espacialidades203.
Em 1924, um artigo anarquista publicado na coluna intitulada “No Meio Operário”,
do jornal carioca O Paiz, dava conta não apenas das “monstruosidades” constituídas por
Canudos e Juazeiro, mas também da possibilidade de que o fanatismo e a ignorância se
espalhassem por outros estados do Nordeste, criando fenômenos semelhantes:

Rio Grande do Norte, o que te mata são os males universaes: a clerezia, o foot-ball, o
funcionalismo, a associação comercial, os circos (círculos) católicos, a literatura
decadente, animada de um falso pantheismo ou de endeixas mal cheirosas. É a
fossilização dos historiadores, é a estreiteza dos institutos, é a apoteose da brutalidade
primitiva symbolizada nos tiros de guerra, é a advocacia burracea e rapineira, são as
agencias de despachos, as confrarias ou irmandades, as gazetas venaes... As secas
dizimam teus sertões e as colectorias tuas cidades. Quando pretenderás extinguir a
escravidão nos engenhos de assucar e rapadura, na descaroçagem de algodão, nas
olarias e padarias, nos campos de criação? O professorado beija as patas da Igreja ou
do Estado. E mandas teus filhos para essas escolas de onde só poderão sair a besta
mysthica ou a besta patrioteira a escoucearem por todos os âmbitos da nação e a
produzirem as monstruosidades como Canudos ou Juazeiro.204

O artigo publicado em O Paiz difere dos demais na medida em que não associa o
misticismo de Juazeiro a causas naturais, psicológicas ou biológicas, mas apenas a ações
políticas e sociais, tais como a exploração dos trabalhadores e a educação católica 205 .
Demonstra, no entanto, mais uma vez, que a cultura letrada do período enxergava a fé em torno
do Padrinho como um indício de atraso que deveria ser combatido (ou prevenido).
Em 1928, o temor de que o Padre Cícero utilizasse sua influência sobre os
cangaceiros e jagunços ainda era uma constante. O sacerdote era considerado especialmente
perigoso por não manter seu domínio apenas sobre uma pequena área, como ocorrera em
Canudos, mas sobre todo o sertão nordestino:

203
Cabe ressaltar que, conforme Nísia Trindade Lima, “[...] sertão e litoral podem ser vistos como imagens
espaciais e simbólicas que guardam estreita relação com esta ideia de dois tipos de ordem social. Aqui, o
contraste ocorreria não entre formas distintas e historicamente sucessivas, mas pela justaposição de épocas
históricas. Desse modo, a análise das relações entre sertão/litoral não pode ser compreendida apenas
sublinhando-se a importância do espaço em nossa formação histórica [...]. Assim, mais do que a espaço, os
significados atribuídos ao sertão e ao contraste enunciado no par sertão/litoral, referem-se fundamentalmente
a temporalidades distintas e coetâneas”. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. São Paulo:
Hucitec, 2013. p. 19.
204
BRAUNA, M. Cyclones e Arco-Íris. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 8 20 mai. 1924.
205
Nos anos de 1923 e 1924, foi concretizada uma aliança entre o Partido Comunista (PCB) e a Confederação
Sindicalista-Cooperativista Brasileira (CSCB), patrocinada pelo jornal O Paiz. Na seção intitulada “No Meio
Operário” foram publicados diversos artigos que tinham como protagonista a classe trabalhadora. Para maiores
informações, cf. PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. A Classe Operária: uma temporada no Paraíso (1923-
1924). Projeto História, n. 7, São Paulo, 7 de fevereiro de 1987, p. 91-126.
93

Um movimento, chefiado pelo padre Cicero, faria vibrar, no Norte, todos os


elementos, que nada tem que perder, baixas camadas sociaes, esses peiores são
capazes dos maiores desatinos. Basta que surja um explorador desse mulador humano,
para crear serias dificuldades de ordem política. Exemplo já o tivemos, quando da
deposição do presidente Franco Rabello. Não há situação politica capaz de manter-se
contra as hostes do Joazeiro. É um Canudos novo e mais perigoso, porque não está
restricto a uma zona, podendo chamar de muitos Estados verdadeiros exércitos de
fanáticos. Urge que os governos se preocupem do Joazeiro [...]. A morte do padre não
modificará no povo esse estado de espírito; ao invés disso, fará recrudescer o
fanatismo, que há de estalar, uma vez que não se empreguem as medidas aconselhadas
pelo bom senso.206

O reverendo Nunes, ao tratar sobre a questão de Juazeiro na entrevista concedida


ao periódico A. B. C., não mediu palavras para falar do perigo representado pelo Padre Cícero,
afirmando ser Juazeiro uma cidade “onde o rifle é a suprema corte de apelação”207. Embora em
1928 Lampião já tivesse passado por Juazeiro sem maiores problemas, a impressão de que o
sacerdote havia se aliado ao cangaceiro – e poderia se aliar ainda a muitos outros – continuava
a povoar a imaginação de exegetas de Juazeiro.
A morte de Padre Cícero renovou todos esses temores. Em 1934, os jornais
começaram a publicar novamente reportagens acerca do futuro de Juazeiro e dos perigos de que
a cidade, sem o Padrinho, se tornasse uma Canudos maior e mais perigosa. Em março de 1934,
o jornal O Paiz publicou um elogio, não assinado, em homenagem aos noventa anos de Padre
Cícero, destoando dos artigos mais comuns em relação a Juazeiro, destacando o trabalho
empreendido pelo sacerdote:

Há quem, de longe, combata o padre Cícero, julgando-o um fanático do typo de


Antônio Conselheiro e mais feliz do que o herói de Canudos. É um erro. Porque esse
austero subjugador de consciências é um homem culto e inteligente que tem os seus
methodos de fascínio. Antes de fixar-se na zona dos Carirys, ele andou pela Italia,
conheceu Leão XIII, trouxe de Roma e de Veneza impressões de arte e de governo, e
acompanhou a marcha dos acontecimentos do mundo através da leitura constante dos
livros que enchem sua biblioteca. Aliás, mesmo que ignorassem essas suas qualidades,
seríamos constrangidos a admittir-lhe a superioridade, porque não é qualquer
medíocre que consegue imperar sem contraste tanto tempo num meio perigoso como
o em que o padre Cícero Romão Baptista armou a sua tenda. E talvez daqui a duzentos
anos o seu papel social naquele ambiente mereça ser comparado ao dos apóstolos da
selva no alvorecer da nacionalidade.208

Esse “elogio” levava em consideração a cultura geral de Padre Cícero, além de sua
autoridade moral. Mas lembrava: o meio em que ele “armou sua tenda” era perigoso. Assim,
era valorizado somente por conseguir garantir a manutenção de uma improvável ordem em

206
O THAUMATURGO do Joazeiro através das Impressões de um Sacerdote. A.B.C., Rio de Janeiro, p. 13, 6
out. 1928.
207
O THAUMATURGO do Joazeiro através das Impressões de um Sacerdote. A.B.C., Rio de Janeiro, p. 13, 6
out. 1928.
208
O ELOGIO do Padre Cícero. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 3, 23 mar. 1934.
94

Juazeiro. Nesse discurso, ele não era a causa do fanatismo, mas sim o freio para as consciências
naturalmente fanáticas. Consequentemente, sua morte, em julho de 1934, deixou os ignorantes
sem breque. Uma nova era se iniciava e tudo poderia acontecer.
Rubem Braga, em publicação do Diário de São Paulo, afirmou, ao escrever o
obituário do santo do sertão, que “[...] si ele desse uma palavra de apoio a Antonio Conselheiro,
seriam necessários vinte Euclydes da Cunha para escrever a epopeia de Canudos209. Cinco dias
após a morte do Padrinho, Antonio Peregrino unia os dois fenômenos messiânicos numa única
análise:

Canudos foi um arraial de fanáticos. Joazeiro é também um arraial de fanáticos. Se


Antonio Conselheiro era um mystico, o padre Cicero não o era menos, apesar da sua
inteligência lucida, do seu senso politico, da sua cultura. O reducto que a civilização
destruiu a tiros de canhão e a golpes de bayoneta, teve uma origem igual à da cidade
cujos alicerces foram lançados pelo vigário cearense. Os rumos dos dois caudilhos é
que se modificaram com o tempo [...]. Antonio Conselheiro atirou em Canudos a
semente do fanatismo do Joazeiro.210

Conselheiro seria, sob essa perspectiva, iniciador de uma tradição de crendice e


banditismo que iria se consolidar e dar origem a Juazeiro. Padre Cícero, embora carregasse
alguns ornamentos de cultura, seria tão fanático quanto o líder de Canudos. Entre o arraial
baiano e a cidade cearense haveria um salto, mas que não era dado em direção à diferença.
Juazeiro seria, portanto, uma espécie de Canudos aprimorada.
Em 1941, sete anos após a morte de Padre Cícero e cinco anos depois da destruição
do Caldeirão, era de se imaginar que estaria superada a ideia de que Juazeiro poderia vir a ser
uma nova Canudos. Seu progresso econômico e seu intenso crescimento urbano e demográfico
lhe concederam, inclusive, reportagem especial em revista dedicada à temática do urbanismo:

Joazeiro e Canudos, como centros populares, foram creações do fanatismo. Tiveram


sua época de crescimento. O padre Cícero, ao morrer, deixou Joazeiro no esplendor;
Antônio Conselheiro, ao ser morto, deixou Canudos em ruínas. Se a origem foi
semelhante, o fim foi imensamente diferente. Hoje, Joazeiro é a cidade maior e mais
populosa do interior do Ceará, e Canudos começa a ensaiar os passos para ressurgir
no sertão da Bahia.211

Embora as duas localidades nordestinas tivessem semelhanças, era possível


estabelecer diferenças. Antônio Conselheiro foi assassinado durante uma batalha que pretendia

209
BRAGA, Rubens. Cícero Romão. Diário de São Paulo, São Paulo, p. 3, 24 jul. 1934.
210
PEREGRINO, Antonio. A morte de um homem-deus. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 2, 25 jul. 1934.
211
O FANATISMO creador de cidades. Revista da Semana – Número Especial de Urbanismo. Rio de Janeiro,
maio de 1941, p. 64.
95

proteger o arraial, enquanto Padre Cícero viveu relativamente seguro, com o amparo de diversas
lideranças políticas, abandonando a vida somente aos noventa anos, de maneira natural. Os dois
líderes, consequentemente, deixaram seus lugares de atuação em fases diferentes de
desenvolvimento. Canudos foi uma experiência interrompida de maneira violenta. Juazeiro, por
outro lado, contou com discursos que a equipararam a Canudos, mas se manteve sem receber
investidas com vistas à sua destruição. A revista de urbanismo estabelecia distinções entre as
duas experiências, baseando-se nos díspares estágios em que se encontravam as localidades
quando desapareceram suas lideranças. É preciso notar, no entanto, que ambas continuavam
despontando lado a lado, num quadro comparativo sobre “o fanatismo criador de cidades”.
Mesmo em 1969, quando foi construído o grande monumento em homenagem ao
Padre Cícero que hoje enfeita a Colina do Horto e recebe milhares de fiéis, reportagens da
imprensa nacional ainda associavam Juazeiro a Canudos e ao cangaço, então comparado a uma
espécie de crime organizado:

Há 35 anos, morria Cícero Romão Batista, o padre Cícero. Venerado como santo,
impedira que Juazeiro se transformasse em outro Canudos, mas no momento de sua
morte já havia perdido muito do prestígio religioso e todo o prestígio político. O tripé
que sustentara a mitificação do Padim Ciço, como o chama a população rural, era
composto pelos coronéis, jagunços e a miséria da população nordestina. Hoje, o
cangaço é um negócio rendoso e bem organizado. A miséria não se define mais em
função da sêca, mas em função da incapacidade das indústrias nordestinas em
absorver a mão-de-obra existente. Assim, um novo padre Cícero não tem muitas
possibilidades de surgir, embora possam aparecer figuras que desempenhem, hoje, o
papel por ele cumprido na época.212

O banditismo tinha se transformado, a miséria era outra, e apenas a mitificação em


torno do sacerdote se mantinha. A distância temporal permitiu que o Padrinho passasse a ser
visto não como um novo Antônio Conselheiro, fanatizador das massas e chefe de cangaceiros,
mas como um espírito iluminado e forte, capaz de conter os instintos mais selvagens dos
sertanejos. O sacerdote se transformou, desse modo, num “anti-Conselheiro”. Recebeu louvores
por ter garantido a ordem em Juazeiro e por ter feito dela algo mais que um acampamento. Mas
décadas depois surgiram novas dificuldades, bastante distintas daquelas que atacaram as
populações rurais auxiliadas nos tempos áureos do Padrinho.
A industrialização do Nordeste, segundo o articulista, corria em velocidade mais
lenta do que seria necessário. Os problemas da falta de terras e da seca já não eram os únicos a
enfrentar. Assim, em 1969, as fábricas da região não pareciam capazes de empregar toda a mão

212
PADRE CÍCERO: o fim de um mito. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 4, 2 ago. 1969.
96

de obra existente. Era então o período da ditadura civil-militar no Brasil, e o incentivo à


migração desses pobres sertanejos para o trabalho nas indústrias da região Sudeste era intenso
e frequente.
O repórter Glauco Carneiro, enviado dos Diários Associados para uma reportagem
sobre o monumento ao Padre Cícero recém-inaugurado em Juazeiro, apresentou, em 1969, sua
descrença em relação ao suposto progresso da região. De acordo com sua análise, tudo aquilo
que simbolizava o avanço no Cariri era fruto, na realidade, do grande atraso representado pelos
romeiros. O jornalista, que viajou ao Nordeste com o objetivo de elaborar essa matéria, não
conseguia enxergar vantagens no fato de tais devotos terem efetivamente se fixado no Cariri,
formando uma mão de obra e um universo de consumidores que atraíam, por sua vez, mais
investimentos. Segundo seu ponto de vista, essa migração era responsável somente por trazer
mais retrocesso à cidade:

Informam-me que 90 mil pessoas moram na cidade do Padim Ciço, que possui: 17
praças, 77 indústrias e 100 mil visitantes por ano. Contemplo as fábricas alinhadas,
baixas, no triângulo formado por Crato/Juazeiro/Barbalha, na mesma paisagem
antropogeográfica, e não fujo de pensar que essas indústrias elegantes, ricas moradias
de higiene, saúde e progresso em marcha estão ali servindo a um único fim: o romeiro.
Penso que se os caminhões cessassem de chegar não trazendo essas figuras bisonhas
provindas das brenhas de vários Estados, de repente tudo aquilo se esfacelaria, viraria
pó. Quer dizer: é uma floração artificial, tão vívida como uma rosa de plástico, mas
com a diferença que precisa de água mística para sobreviver.213

Boa parte da imprensa nacional ainda acreditava que o município estaria fadado a
conviver com o retrocesso. Desse modo, o fenômeno de crescimento, urbanização e
desenvolvimento encontraria o fracasso caso os romeiros deixassem de procurar o lugar em que
viveu Padre Cícero. A industrialização, conduzida pela ignorância e o fanatismo, parecia
improvável e insustentável. Na mesma reportagem, o repórter afirmou considerar

[...] mais natural a presença sem rodeios de ‘Mestre Nosa’, Inocêncio da Costa Nick,
um pernambucano que vive no Juazeiro desde 1912, talhando e esculpindo os santos
da devoção do povo. Ou então a literatura de cordel de José Bernardo da Silva, o maior
editor de libretos da poesia popular [...]. O que eles fazem sobreviverá sempre, porque
o misticismo é produto do Nordeste e dos problemas da terra, feudalismo, crendice,
ignorância, messianismo e banditismo. Depois de percorrer esta terra árida ao sopé da
Chapada do Araripe, conversar com estes romeiros que abandonam tudo para seguir
uma recordação e uma imagem eu descreio da industrialização no Juazeiro.

213
CARNEIRO, Glauco. Padim Ciço - a estátua do mito. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 8, 21 dez. 1969.
97

Juazeiro podia ter indústrias, estádios de futebol, amplas ruas, praças e comércio,
mas continuaria sendo vista e refletida como reduto eterno da superstição, da ignorância, do
banditismo e da ingênua cultura popular. Nem mesmo a construção de uma grandiosa escultura,
elaborada por competentes profissionais e edificada com esmero pela prefeitura, provaria a
vocação de Juazeiro para o progresso. Mestre Noza, artista popular já famoso àquela época,
parecia ser uma figura mais “adequada” a Juazeiro, pois realizava seu pobre ofício em virtude
da fé (ou crendice) nordestina. Da mesma maneira, os folhetos de cordel, que se tornaram
representativos meios de comunicação entre populações iletradas, sobreviveriam, sob esse
ponto de vista, eternamente, pois os sertanejos de Juazeiro estavam fadados ao analfabetismo e
à apreciação das formas supostamente mais rudimentares da cultura popular.
Para Carneiro, o sentimento que levava nordestinos a abandonarem suas residências
em busca de “uma lembrança”, ou seja, da recordação do Padrinho, era um sintoma do atraso
e do fanatismo que condenariam aquela localidade. A construção da gigantesca “imagem” de
Padre Cícero parecia, nesse sentido, incrementar os atrativos para os rústicos devotos do
Nordeste. Sob a ótica da cultura letrada, tais mentes bárbaras, ignorantes e crédulas seriam
incapazes de colaborar para a industrialização de Juazeiro.
A dimensão cronológica parecia estar suspensa, acorrentada, desativada sob o céu
do Cariri. O tempo de Juazeiro é dotado de uma sucessão diferenciada, em que a morte não
representa o fim. Padre Cícero funcionaria, nesse sentido, como um imã que atrairia para si todo
o atraso. Sua morte representaria um evento que, sem dúvida, modificou as estruturas do
cotidiano em Juazeiro. Ela não simbolizou, contudo, um momento de ruptura brusca e integral
com as práticas recorrentes até então.
Por outro lado, muitos cronistas, intelectuais, jornalistas e memorialistas
defenderam que Juazeiro, ao receber indústrias, trens ou energia elétrica, finalmente
abandonaria o “tempo da natureza”, o ritmo agrário, as crendices de camponeses e indígenas
considerados selvagens, ingressando finalmente na era da técnica, da aceleração, do progresso
e do adiantamento. Só então seria possível que a cidade renunciasse à era “pré-moderna” para
encontrar a modernidade que já invadia o restante do país.
Em muitas das reportagens aqui citadas é possível perceber certa incompreensão
em torno das especificidades de Juazeiro. Diversos foram os jornalistas e observadores
responsáveis por construir a imagem da cidade como uma segunda Canudos. Houve ainda
aqueles que estabeleceram a teoria de que o crescimento econômico da cidade advinha somente
das romarias. Tais articulistas, cronistas e ensaístas negligenciavam as relações comerciais
98

travadas entre as oficinas e indústrias de Juazeiro e o mundo da produção e do consumo de


diversas outras cidades214.
De fato, Juazeiro não era uma segunda Canudos, mas também não seria jamais uma
cidade como qualquer outra. Para a imprensa nacional, o padre que encima a Colina do Horto,
carregando seu cajado e seu chapéu, “[...] retém na sua imobilidade de pedra o sentimento e o
atraso de todo o Nordeste” 215 . Sua escultura, erguida em concreto, serviria apenas para
solidificar uma representação do retrocesso de Juazeiro.

Até quando – interrogo – perdurará esse estado de espírito, dentro do qual se exalta o
nordestino iletrado, pobre, desassistido e periodicamente às voltas com a seca sem
alma, expulso da casinha de taipa e telha para os caminhos – caminhos de terra, de rio
e de mar – que levam ao Paraná, a São Paulo, à Amazônia e, por último, a Brasília?
Ah, nesse estado de espírito, dentro dessa mentalidade, o sertanejo não pode e não
deve esquecer o Pe. Cícero, como na Bahia ainda não foi esquecido o Conselheiro.
Como no Contestado ainda não foi possível extirpar do pensamento de paranaenses e
catarinenses incultos, desnutridos e abandonados à própria sorte, a figura meio
lendária do ‘monge’ João Maria de Jesus. Ainda é tão sensível a presença de Cícero
Romão no Nordeste que as estradas não se despovoam de romeiros – ontem a pé,
agora de caminhão e de ônibus. É tão constante essa presença que frades franciscanos,
apoiados no prestígio descomunal do seu órgão nos sertões, construíram majestoso
templo e o dedicaram àquele poderoso santo, procurando – ah, como procuram –
trocar por esse mesmo santo, na alma e na fé de milhões de nordestinos, o Pe. Cícero
já morto e sepultado.216

Jáder de Carvalho lembra as condições sociais dos sertanejos que impulsionaram


os processos de migração. A pobreza, a fome, a seca, as precárias condições de vida, enfim,
tangeram para Juazeiro do Padre Cícero milhares de pessoas, assim como levaram tantas outras,
em diferentes partes do país, a buscar Canudos e Contestado. O articulista leva a crer que a falta
de assistência do governo emprestou terreno fértil para o surgimento de lideranças que
prometiam a tais homens e mulheres o vislumbre de uma vida melhor, nessa terra e além dela.
Desse modo, tais sertanejos, ainda na década de 1960, abandonados pelas
instituições e autoridades locais e nacionais, continuavam a buscar em Padre Cícero um amparo.
Não passou despercebida ao escritor a tentativa de substituir a crença no sacerdote pela devoção
a outro santo querido dos pobres, São Francisco. Apesar disso, o Padrinho, mesmo morto, ainda
atraía mais gente que o afamado santo europeu. Como se sabe, as lembranças, assim como os
lugares em que são praticadas, não podem ser tão facilmente deslocados. A criação de um

214
Conforme destaca Ramos, “[...] imaginar que todos giravam em torno de crenças sobre os poderes do Padre
Cícero seria idealizar uma homogeneidade abstrata”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo.
Território sagrado em Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 139.
215
CARNEIRO, Glauco. Padim Ciço - a estátua do mito. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 8, 21 dez. 1969.
216
CARVALHO, Jáder. Prefácio. In: ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
99

espaço de culto dedicado a um santo estrangeiro apenas reverberou em ressignificações


elaboradas pelos romeiros em torno desse novo espaço, mas sempre tendo o Padrinho em
mente.
“Juazeiro ainda será Canudos?” A pergunta se avulta nas fontes examinadas. Em
1968, acreditava-se que “[...] o sertanejo não pode e não deve esquecer o Pe. Cícero, como na
Bahia ainda não foi esquecido o Conselheiro”. O uso do termo “ainda” indica, como já notou
Koselleck, uma relação de continuidade entre dois tempos, ou mesmo a reprodução de
acontecimentos que retornam através da repetição de uma mesma constelação de eventos (as
romarias, o cangaço, o culto ao Padre Cícero). O fato de o sertanejo não “poder” esquecer o
sacerdote indica impotência, fraqueza, dependência em relação àquela liderança.
Para os intelectuais daquele tempo, o passado não deveria ser permanência. Existia
somente para ser superado. O futuro representava um desejo de mudança que, no entanto,
parecia impossível de se concretizar em Juazeiro. Koselleck fala sobre o “já” e “ainda”, termos
presentes em boa parte das narrativas aqui estudadas, e importantes na ideia de temporalização.
O “já” indica que no passado havia indícios de futuro. O “ainda” leva a crer que no presente
permaneceram vestígios do passado.
As expectativas se baseiam na experiência (embora, na Modernidade, a experiência
diga uma coisa e a expectativa mostre outra)217. A experiência em Juazeiro era extraordinária.
Uma cidade cuja trajetória era repleta de revoltas, crimes e milagres não poderia, de uma hora
para outra, pegar o bonde e entrar nos trilhos da história.
É sabido que, na Modernidade, o presente é diferente do passado, assim como o
futuro é diferente do presente. Koselleck lembra que na vida cotidiana e nas práticas populares,
contudo, os regimes de temporalização são diferentes. Para a elite letrada de Juazeiro, há um
temor relacionado à ideia do eterno “ainda”, à permanência da miséria e à imortalidade do santo
Padrinho. Para os devotos, contudo, mais importante é o “sempre”, que assinala a proteção
perene garantida pela devoção a um santo.
Foi justamente essa sobrevivência do Padre Cícero nas mentes e corações de seus
afilhados que levou Agostinho Odísio a se deslocar até Juazeiro e ali iniciar uma nova fase em
sua carreira profissional. Seu encontro com a cidade deu origem a um caderno de memórias que

217
Koselleck afirma que a expectativa “[...] é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal, também a
expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o
que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional,
a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem”. KOSELLECK, Reinhart. Futuro
Passado. Contribuição à semântica dos tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.
p. 310.
100

iria expor as contradições e dúvidas existentes naquele período nebuloso em que a morte do
Padrinho ainda não havia sido absolutamente digerida pelos devotos e romeiros em geral.
Os escritos de Odísio permitem entrever uma Juazeiro diversa daquela narrada por
tantos outros visitantes temporários — ou moradores interessados — da cidade. Sua visão de
estrangeiro captou peculiaridades e cenas locais que passariam despercebidas a muitos
observadores. Nas páginas que escreveu, descobrimos não apenas aspectos da biografia de
Padre Cícero, como em tantas outras páginas redigidas sobre Juazeiro, mas também o cotidiano
dos sujeitos anônimos que habitavam a cidade. O próximo capítulo propõe, por esse motivo,
observar Juazeiro sob as lentes de Odísio, mas levando sempre em consideração seu lugar social
e as narrativas que o precederam e, muito provavelmente, o influenciaram.
101

4 A VIDA APÓS A MORTE

4.1 A rua e a casa

Muitas narrativas que descreviam o Juazeiro do Padre Cícero em livros e


jornais concediam atenção aos modos de habitar. Enquanto os detratores procuravam
demonstrar a existência de um aglomerado de casebres e palhoças semelhantes às de
Canudos, os discursos elogiosos afirmavam que Juazeiro era uma cidade moderna,
desenvolvida, com ruas largas e linhas retas. Agostinho Odísio entrou nessa discussão:

Quem anda nas ruas tem a impressão que todas as casas são habitáveis mas é
engano, pois muitas e muitas é só a frente donde pelas aberturas se enxerga a
palhoça por dentro, fato que veio por uma lei municipal a qual expropriava
todas as casas do centro que não tivessem frente, disto o engano de ver as ruas
do centro completas de casas; é caso de dizer ‘é só fachada’.218

A lei municipal mencionada por Odísio faz entrever a urgência de a cidade


assegurar ao menos uma imagem de desenvolvimento, mesmo que tal vulto exterior não
correspondesse à vida levada entre quatro paredes. A título de exemplo, José Bernardo da
Silva, futuro dono da Tipografia São Francisco, comprou em 1936 seu primeiro imóvel
em Juazeiro, uma casa na Rua Santa Luzia, que “[...] de acordo com a escritura de compra
e venda do imóvel [...] ainda estava em construção quando foi adquirida e apenas a
fachada era de tijolos, o restante era de taipa deteriorada”219.
É importante lembrar que, em discurso realizado em 1923, Floro Bartolomeu
assegurava a inexistência de palhoças em Juazeiro, afirmando, inclusive, que tais
moradias não existiam porque a cidade era carente de vegetação que proporcionasse
matéria-prima para esse tipo de construção. Segundo o político juazeirense, “[...] por isso
mesmo destôa, por completo, das demais localidades, até da de Crato, que é a mais
importante da zona, que tem uma rua chamada ‘Rua da Palha’”220.

218
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 52.
219
MELO, Rosilene Alves de. Arcanos do verso: Trajetórias da literatura de cordel. Rio de Janeiro: Editora
7 letras, 2010. p. 73.
220
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 12.
102

Na década de 1930, de acordo com Odísio, era possível encontrar apenas “[...]
três ou quatro casas forradas e assoalhadas, mesmo assim só a sala de visita e alguma
dependência, a mais são todas casas sem forro, assoalho de tijolo e, creio, não se encontra
uma com vidraças nem venezianas”221. As folhas de vidro eram, desde meados do século
XIX, sinal de modernidade, e já existiam naquele período nas fachadas de Recife, da
Bahia e do Rio de Janeiro222. Juazeiro, todavia, ainda engatinhava a caminho de moradias
mais dignas e salubres.
Houve, entre Odísio e Juazeiro, um estranhamento. O escultor, para provar o
que via e descrevia, colou ao seu caderno de memórias diversos retratos que identificavam
Juazeiro: a praça em que se localiza a primeira estátua de Padre Cícero, esculpida em
bronze por Laurindo Ramos quando o Padrinho ainda era vivo; uma rua repleta de
pessoas que acompanham a banda de música em dia festivo; a lateral da mesma avenida,
com suas formosas casinhas, todas enfileiradas simetricamente, portando belas fachadas
e sustentando arvorezinhas diante das portas. Os registros seguem representando a
“Pharmacia dos Pobres”, a avenida Padre Cícero, a rua Santa Luzia, por onde passeiam
romeiros vestidos de preto, a estação de trem e o quartel da polícia com a “cavalaria
local”: dois pequeninos e frágeis jumentinhos. A existência de tais fotografias denota o
caráter documental do escrito, que pretendia confirmar com imagens aquilo que era dito
em palavras.

221
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 51.
222
MARINS, Paulo Cesar Garcez. Através da rótula: Sociedade e arquitetura urbana. São Paulo:
Humanitas; FFLCH USP, 2001. p. 55.
103

Figura 1 – O centro de Juazeiro visto pela Kodak de Agostinho Balmes Odísio

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 47.
104

A necessidade de produzir afirmações sobre o progresso de Juazeiro – já


debatida nos capítulos anteriores – não era mero capricho: poderia ser um meio de garantir
a sobrevivência da cidade. Por isso, os discursos pareciam interessar mais que as
experiências vividas no dia a dia. Por outro lado, percebe-se que, no caderno de Odísio,
é possível perscrutar o cotidiano, as habitações juazeirenses, as dimensões das casas, a
quantidade de cômodos e o mobiliário mais utilizado pelos moradores dali.
De acordo com o próprio Padre Cícero, a cidade se transformou em “refúgio
para os náufragos da vida” 223 . Por esse motivo, muitos devotos perguntavam,
principalmente em cartas, se o padrinho aconselhava e permitia que se mudassem para o
perto dele. Juazeiro era, no início do século XX, um asilo para “aqueles que viam a vida
desandar”224. Nas missivas aparecem, inclusive, numerosos pedidos para que o sacerdote
providenciasse abrigo e trabalho. Com efeito, o Padrinho afirmou em carta enviada em
1926 ao Pe. Rota:

[...] o Joazeiro foi uma cidade feita por mim e é constituída por uma população,
na sua maioria, pobre em meio da qual existe uma grande quantidade de
pessoas desvalidas (órfãos, viúvas etc.) que são sustentadas por mim. Seria,
assim, uma calamidade se eu me visse na contingência de abandonar essa
cidade, porque, além de mais, acredito e devo dizer-lhe francamente, o povo
não se conformaria com uma tal medida, que talvez desse lugar a um
movimento de desastrosas consequências.225

No período em que a carta foi enviada, Padre Cícero recorria ao Padre Rota
em virtude da ordem que recebera como condição para ter acesso à sua reabilitação
eclesiástica. A Igreja defendia que o perdão somente seria possível caso o patriarca de
Juazeiro aceitasse se retirar da cidade e passasse a congregar numa ordem religiosa
qualquer. O fundador de Juazeiro escrevia porque esperava que o Pe. Rota fosse seu
procurador em Roma, recorrendo da decisão em virtude de sua frágil saúde e,
principalmente, levando em consideração os pobres e desvalidos que precisavam do seu
apoio.

223
Para maiores informações, cf. Carta do Padre Cícero ao Pe. Lúcio, 18 de julho de 1919. In: SILVA,
Antenor Andrade de. Cartas do Padre Cícero [1877 - 1934]. Salvador: E. P. Salesianas, 1982. p. 48.
224
RAMOS, Francisco Régis Lopes. Papel passado: Cartas entre os devotos e o padre Cícero. Fortaleza:
Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 83.
225
SILVA, Antenor de Andrade. Cartas do Padre Cícero [1877 – 1934]. Salvador: E. P. Salesianas, 1982.
p. 307.
105

Como se sabe, a reabilitação não foi alcançada, e o Padrinho abandonou a


cidade somente em 1934, com a sua morte. É relevante destacar, contudo, a consciência
que ele possuía de seu carisma pessoal, afirmando (quase advertindo) que seu afastamento
poderia causar revolta na população. De fato, o auxílio material que o sacerdote provia
aos seus afilhados não era pouco. Odísio, anos depois, notaria que os devotos não eram
gratos apenas pelos conselhos espirituais que receberam do santo padre: “[Padre Cícero]
construiu diversas [...] casinhas que dava para habitar de graça, sustentou por dezenas de
anos famílias inteiras com uma pensão desde cinco a vinte mil réis por dia, não havia
miséria que não socorresse, nem esperto que não o lograsse”226.
Odísio defendeu veementemente o Padrinho – embora não o tenha conhecido
–, sustentando que ele era caridoso a ponto de garantir teto e comida para os mais pobres.
De fato, o fundador de Juazeiro deixou em seu testamento grande número de propriedades
para a Congregação dos Salesianos e para Nossa Senhora das Dores. Algumas delas
ficariam sob a tutela dos moradores – afilhados, parentes de Padre Cícero e beatas – até
as datas de suas mortes, passando, posteriormente, a pertencer às organizações religiosas
que figuravam como herdeiras.
Os adversários de Padre Cícero o acusavam de tirar proveito da pobreza e da
ingenuidade dos devotos. Em 1913, Alencar Peixoto, por exemplo, asseverou, em seu
Joazeiro do Cariry, que o Padrinho alugava casinhas às beatas e depois expulsava as
moradoras das habitações quando bem entendia. Peixoto afirmou ainda que o Padre tinha
o costume de comprar terrenos e casas de romeiros e devotos a preços muito baixos,
conduzindo os vendedores à miséria227.
Embora os rumores sobre os empreendimentos imobiliários de Padre Cícero
sejam muitos, só se sabe ao certo o destino dos seus protegidos mais próximos, que
herdaram pequenas propriedades ou puderam continuar morando nas habitações cedidas
até o fim da vida. Pouco se conhece, contudo, sobre o rumo do restante da população: os
romeiros, retirantes e migrantes em geral que buscaram repouso em Juazeiro durante a
vida de Padre Cícero e ficaram desamparados após o seu desaparecimento. O caderno de
memórias de Odísio pode oferecer pistas sobre o tema.
As Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero foram adornadas por
fotografias feitas pelo escultor, que costumavam levar legendas bem-humoradas do dia a

226
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 35.
227
PEIXOTO, Joaquim Marques Alencar. Joaseiro do Cariry. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1913]. p. 94.
106

dia de Juazeiro. Ao todo, são oitenta e sete imagens. A primeira foto, que surge logo nas
páginas iniciais, no entanto, não se debruça sobre o cotidiano. É um retrato do patriarca
da cidade. Foi capturado em 1911 e autografado em maio de 1928. É a foto oficial do
Padre Cícero prefeito. Mostra um Padrinho ainda rijo e forte, portador dos cabelos
brancos da experiência e de um olhar sério e compenetrado. É provável que esse retrato
tenha, inclusive, inspirado a estátua concebida pelo escultor, que informa ainda, em sua
legenda, o fato de o sacerdote ter nascido no município de Crato, em 1844, e morrido em
Juazeiro, “do qual foi seu fundador, em 1934” 228 . As indicações iniciais do escultor
permitem entrever o objetivo do diário: discorrer sobre Juazeiro e, consequentemente,
sobre o Padre Cícero, já morto no período em que o texto era escrito.

228
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006.
107

Figura 2 – Retrato de Padre Cícero afixado ao caderno de memórias de Odísio

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006.
108

Posteriormente, Odísio escreve sobre os jegues que pastam alegremente nos


canteiros urbanos. Também se dedica a falar sobre o meio de transporte que leva os
viajantes da estação de trem até o centro da cidade. Mas não são só as vias públicas e a
mobilidade que interessam ao escultor. Diferente de tantos outros autores, que só
conheciam certos espaços públicos de Juazeiro, ele irá mostrar como eram, em detalhes,
as casas dos juazeirenses.

Figura 3 – O Jegue Mucuba

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006.

Uma das fotografias grudadas por Odísio em seu diário mostra o escultor
vestido, dos pés à cabeça, num traje branco. A calça, a camisa, o terno e o chapéu
contrastam com as paredes cor de barro da fachada de sua residência. O retrato faz
perceber que sua primeira moradia em Juazeiro é bastante tosca. É uma típica casa do
109

sertão, feita de pau a pique, com portas de madeira. O telhado, contudo, não é de palha,
mas de telha.

Figura 4 – Fachada da casa em que Odísio residiu quando chegou em Juazeiro

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 6.

Daí em diante, o texto e as fotografias voltam a retratar a cidade de Juazeiro


propriamente dita, mas sempre em relação com o seu patriarca, como a rua em que se
localizava a casa em que Padre Cícero morreu e a fachada do prédio, já encimada por um
“medalhão” elaborado por Odísio; as casas de santos que recebem os romeiros; a Capela
do Socorro, onde está enterrado o Padre Cícero. O escultor destaca que ali “[...] não existe
nem uma lapide que o recorde porque o clero diocesano e o Bispo não permitem”229.

229
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 18.
110

Figura 5 – A rua em que Padre Cícero viveu

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 17.
111

Figura 6 – A última casa em que Padre Cícero morou

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006, p.17.

Figura 7 – A Capela do Perpétuo Socorro

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p. 18.
112

Figura 8 – Casa de santos Padre Cícero

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006, p. 19.

Além dos retratos, o escultor recém-chegado em Juazeiro utilizou estatísticas


para evidenciar as informações concedidas ao longo do texto. Os números apresentados
— admitindo-se o hiato de cinco ou seis anos entre a escrita do caderno e o Censo
realizado em 1940 — são curiosamente próximos aos indicados pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE):

A cidade de Joaseiro, que dizem contar mais de quarenta mil habitantes, é ainda
no seu estado embrional; conta oito mil e seiscentas casas, mas só podem assim
ser chamadas perto de dois mil, apesar de só ter umas quinhentas com alguma
ideia arquitetônica, contando com uns vinte sobrados, o quartel, o prédio do
correio e a estação bem regular [...].230

Com efeito, ainda em 1940, o Censo registrava a existência de pouco mais de


doze mil unidades prediais e domiciliárias em que viviam trinta e oito mil moradores231.

230
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 57.
231
Para maiores informações, Cf. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento
geral do Brasil (1º de setembro de 1940): Série regional. Parte VI – Ceará – Tomo I – Censo
113

Vinte e cinco residências eram compostas por dois pavimentos, e havia uma com três
pavimentos. Como se pode notar, as condições habitacionais também denotavam a
pobreza dos residentes, agora desamparados pelos poderes públicos e desprovidos do
apoio de Padre Cícero.
Embora mesmo antes da partida de Padre Cícero muitos tentassem vender a
ideia de uma cidade moderna, adiantada e desenvolvida, tanto as residências quanto as
próprias ruas da cidade testemunhavam o contrário. Ainda discorrendo sobre sua chegada
em Juazeiro, Odísio lembrou que não havia iluminação nas proximidades de sua nova
casa, pois
[...] a luz gerada por uma caldeira a vapor, velhíssima, com combustível de
caroços de algodão, só existe no centro da cidade e apesar de ser fraquíssima,
encrenca a toda hora, de forma que é mais o tempo que falha que funciona,
sendo apagada toda noite inexoravelmente às onze e meia”232.

Desde 1890, como se sabe, grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo
passavam por processos de ordenamento, disciplinarização e mesmo “desodorização”,
como afirma Margareth Rago em seu Do cabaré ao lar. Os médicos sanitaristas,
preocupados com a higiene e a saúde da população, começaram a determinar condutas e
práticas que deveriam ser seguidas pelos habitantes, assim como pelos gestores. Até a
década de 1930, essas questões foram prementes em algumas das capitais mais
importantes do Brasil. A Juazeiro do Norte de 1935 foi vista a partir dessa lógica
sanitarista:

Na zona das palhoças e taperas a qual conta com oitenta por cento das
habitações e que é toda em roda da cidade, nem é bom procurar sintetizar em
que estado se encontra a higiene; poças dágua fedorenta, agora que já serviu
nas bibocas para lavar roupa, couros, pratos, urina dos porcos, esterco de todos
animais até os racionais; imagina-se que foco de miasmas deve ser esta cloaca
aonde vivem amontoados os habitantes de seis mil e tantas taperas e palhoças,
piorado por o clima quente ao desespero, onde passam às vezes anos sem
chover, sob um sol calcinante.233

A preocupação com os miasmas — emanações transmitidas pela água e pelo


ar, causadoras de doenças — era uma constante, desde o século XVIII, entre os defensores

Demográfico. População e habitação – quadros totais referentes ao estado e de distribuição segundo os


municípios. Quadros sinóticos por município. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, 1950, p. 286.
232
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 7.
233
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 53-54.
114

da teoria dos fluidos, e afligia também o escultor italiano. Odísio forneceu, além disso,
uma explicação sobre o modo como se dava o abastecimento de água em Juazeiro. Após
informar que não havia água encanada ou esgotos, ele explicava que “[...] a água é
fornecida à cidade por diversas cacimbas municipais, pagando os fornecedores que
vendem a água à porta da casa dez mil reis por mês à prefeitura municipal”. 234
O escultor não menciona a existência de chafarizes e tanques ou o uso das
águas dos rios para finalidades higiênicas ou de lazer. É possível imaginar, portanto, que
existiam muitas pessoas trabalhando nos serviços de fornecimento ou transporte de água.
Odísio dedica alguns retratos de sua lavra ao abastecimento, mostrando “uma cacimba
municipal do Arisco”235, um fornecedor cadastrado para a entrega da água e um jegue
responsável por transportar o líquido precioso.

Figura 9 – Cacimba Municipal

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre


Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006.
p. 52.

234
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 52-53.
235
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 52.
115

Figura 10 – Fornecedor de água

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 53.

Figura 11 – Transporte de água

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006, p. 53.
116

O caderno de memórias é um meio de lembrar a Juazeiro do Padre Cícero,


mas não apenas isso: é um meio de provar a existência daquele estranho lugarejo, com os
seus pormenores. Apenas o texto não basta. As imagens pretendem capturar
peculiaridades de uma cidade que caminhava, teoricamente, para uma intensa
transformação após a morte de seu fundador. Desse modo, as fotografias de Odísio,
afixadas ao suporte que pretendia fazer circular entre seus familiares, exibiam tudo aquilo
que existia de mais característico ou peculiar — a décima quinta e a décima sexta fotos
do diário, por exemplo, já não mostram localidades de Juazeiro ou fachadas de prédios,
mas tipos populares que transitavam pela cidade.

Figura 12 - Uma pedinte

ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935.


Fortaleza: Museu do Ceará, 2006. p. 39.
117

ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 39.

Odísio fotografou uma pedinte cega e “[...] um profeta de esquina trovejando


ao seu povo ajoelhado, tendo como tribuna da verdade um caixão”236. Tais retratos, feitos
sempre em locais públicos, com temas específicos, pretendem apresentar aquele que era
o novo campo de trabalho de Odísio: o Juazeiro de/sem Padre Cícero.
A cidade já foi apresentada aqui sob os olhares de diversos narradores da elite
letrada: era um antro de fanatismo ou um adiantado centro do Nordeste, a depender das
inclinações daquele que a descrevia. Odísio não se identificava como um defensor ou
detrator da cidade, um nativo ou um visitante esporádico, mas como alguém que ali se
instalou com esperanças de lucrar e progredir. Ele acabou fazendo parte de uma nova

236
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 39.
118

categoria de adventícios, aquela que buscava a terra do Padrinho justamente por causa da
prosperidade ligada à fé juazeirense, mas que não necessariamente acreditava nos
milagres do sacerdote. Seus escritos abordam aspectos do cotidiano que muitas vezes
passaram despercebidos por sujeitos que possuíam outros interesses — intelectuais,
religiosos, políticos ou econômicos — relacionados a Juazeiro. Entre os temas explorados
por Odísio, o da habitação pode ser situado na discussão sobre o progresso ou o atraso do
recanto de Padre Cícero:

As taperas e palhoças desta gente tem, sem variar, o mesmo mobilliario; as


redes para os velhos e casais e esteiras para os moços e pequenos, banquinhos
toscos, mesas de caixões, com pé de pau, um girau, latas velhas e alguma
panela de barro por cozinhar no fogão de barro fora de casa, no pequeno quintal
onde há o jegue, porcos, galinhas, carneiros etc. 237

Muitas casas eram cobertas com palha (elemento malvisto por lembrar as
habitações indígenas e “incivilizadas”). A escassez de objetos era habitual em tais
moradas brasileiras, que cultivaram a tradicional penúria mobiliária colonial durante
séculos. O fogão do lado de fora da casa constituía também um uso popular. Em casas
de madeira e palha, era essencial que as cozinhas fossem dispostas desse modo para evitar
o contato do fogo com a matéria inflamável. A pequena criação de animais era uma
estratégia para garantir alimentação em tempos mais duros. Vale lembrar que grande
número de pobres buscou Juazeiro do Padre Cícero para fugir da miséria. Alguns se
mantinham no campo, outros, na zona urbana. Havia, porém, aqueles que só conseguiam
viver de esmolas e restos:

Seis horas da tarde; acaba a feira, todos voltam às suas casas, enquanto legiões
de pobres e aleijados que esmolaram o dia inteiro catam os restos que ficou no
chão, feijão, farinha, sal, fruta podre, guardando tudo em caos dentro de
imunda sacola, sendo eles os únicos varredores dos restos da feira; as
imundícies se amontoam por si nas sarjetas a custa dos pontapés dos
transeuntes e passam assim duma mesma pela outra só destacadas pelas águas
sujas que vertem das casas, as quais ajudam a tudo apodrecer com o auxílio do
sol inclemente, largando um bafo e fedor que não se descreve; apesar disso em
Joaseiro goza-de saúde.238

237
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 21.
238
Op. cit., p. 79-80.
119

O fato de os juazeirenses não adoecerem mesmo diante de um ambiente


precariamente higienizado 239 , embora surpreendesse Odísio, não deixava de afetá-lo,
causando uma evidente decepção. Como homem letrado, vindo da Europa, conhecendo
os benefícios e o conforto promovidos pela urbanização, o escultor italiano descreveu
severamente as condições sanitárias da cidade. Bem diferente, no entanto, foi a opinião
que teceu sobre Fortaleza:

Há o [mercado] da carne e do peixe, amplíssimo, todo de mármore, limpíssimo,


com jatos de água e toda higiene, e o dos cereais, frutas e outros gêneros,
mercado todo de cimento armado, amplíssimo e muito limpo; na hora que
visitamos os mercados, é de mais movimento, muita gente, mas tudo em
ordem, sem confusão, nem gritos. Noto muita fartura e preços se não caros,
pelo menos iguais a São Paulo. Muitas rendas, redes, objetos variadíssimos, e
fora do mercado, em pátio de propósito, muitos jumentinhos, bonitos,
pequenos, todos filosoficamente carregados com duas cestas [...]; pessoal todo
alinhado, quase todos de branco, mulheres chics, e gente do povo, modestos,
mas limpos; mesmo os carregadores, todos fardados, e até os pobres que pedem
esmola, pobres sim, mas limpos.240

A passagem acima transcrita está no livro de autoria de Vera Odísio Siqueira,


neta de Odísio, e se refere ao dia 7 de outubro de 1934, quando o escultor italiano passou
por Fortaleza a caminho de Juazeiro. Suas memórias ásperas, sarcásticas e por vezes
cruéis acerca da terra do Padre Cícero talvez possam ser melhor compreendidas caso
observemos o encanto que Fortaleza exerceu anteriormente. Sem dúvida, há também certa
ilusão, pois os espaços descritos em seu diário eram principalmente aqueles pertencentes
às elites. É preciso lembrar, ademais, que a capital havia passado por uma remodelação
recente 241 , que a cobriu de jardins e obras de embelezamento. De todo modo, certos
aspectos causam surpresa: mesmo os jumentos enfileirados são “filosóficos”, e os pobres
não fogem à higiene que parece emanar de toda a cidade: “pobres sim, mas limpos”.

239
Floro Bartolomeu chegou a defender, uma década antes, que a “civilização” era a verdadeira causadora
das moléstias: “Enquanto o sertanejo não se civilizar, há de ser uma raça physicamente forte, salvo se
nesse tempo os meios prophylaticos forem de molde a evitar simultaneamente o depauperamento
produzido pela civilização [...]. O que vale a hygiene, neste caso, senão para evitar a total degeneração
do organismo combalido pelo inevitável depauperamento consequente às condições do meio civilizado?
Tanto assim que quanto mais se adeanta um povo, tanto mais são redobradas as medidas hygienicas
pelos Governos, não para manter a resistência primitiva do organismo – o que é impossível – mas para
evitar que o pouco que ainda não foi perdido seja, com dificuldade, conservado. COSTA, Floro
Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições UFC, 2010
[1923]. p. 166-167.
240
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Mudança para o ‘Norte’ do Brasil”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom
Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza:
IMEPH, 2011. p. 122.
241
É o momento que se costuma chamar de “Belle Époque”. Para maiores informações, cf. PONTE,
Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860 – 1930).
Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1999.
120

Ao concluir seu diário de viagem, redigido a bordo do navio e


complementado nos portos e cidades por onde passou ao longo do percurso, Odísio não
poupou o leitor das inquietações acerca de seu novo destino: “Confesso que não vou
satisfeito, estou muito triste e parece-me que alguma coisa se quebrou dentro de mim,
enfim, vamos ver o que será, o nosso destino é este”242. Chegando em Juazeiro, Odísio
começaria a se dedicar à composição de outro caderno. Suas memórias sobre a nova terra,
impregnadas de surpresa, medo, decepção, desalento, humor e saudade, transformam-se
aqui em importante fonte sobre o período em que o Padrinho desapareceu.

4.2 Cotidiano, lazer e trabalho

Em Juazeiro, Odísio descreveu as feiras dos sábados, com seus vendedores


de rapaduras, carne seca, peixe salgado, cereais, farinha, frutas e sal. As barracas de
“gelada”, assim como o comércio de café e alimentos, não foram esquecidos. As vendas
de calçados, objetos de barro, artigos de palha, redes, aves, ovos e bugigangas também
estão presentes. O memorialista aproveitou para fotografar todos esses aspectos do
comércio, não deixando de lado as bancas de jogos e roletas. Nos retratos capturados por
ele, as ruas de Juazeiro em 1935 parecem repletas de gente, e são também contempladas
algumas edificações mencionadas no texto: o posto de saúde que não funciona e o Club
Rádio onde os “engravatados” da cidade buscam diversão, por exemplo.

242
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Mudança para o ‘Norte’ do Brasil”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom
Bosco a Padre Cícero: a saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza:
IMEPH, 2011. p. 127
121

Figura 13 – Venda de esteiras na feira semanal

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 67.

Figura 14 – Comércio de rapadura na feira

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 67.

Um dos objetivos desse tópico é apresentar os meios de vida descritos por


Odísio. Ele se dedica a descrever não apenas o trabalho masculino, mas também as
atividades exercidas por mulheres e crianças que habitavam Juazeiro do Norte durante
1934 e 1935. Suas memórias elencam ofícios que garantiam não necessariamente o
sustento do mês, mas ao menos o sustento da semana ou do dia:
122

É no sábado que grande parte desta gente ‘cava’ o sustento pela semana,
fazendo o mediador de negócios, ajudando a carregar mercadorias, armar
barracas, ajudar a vender, guardar animais, roubando aqui e acolá, pedindo
esmola, ajuntando os restos, cavando enfim – o deles de mil formas, que a nós
parecem fúteis, mas que para eles é meio de vida para a semana toda, tempo
que ficam vadiando, armando freges, jogatinas e amolando quem trabalha
[...].243

Segundo o escultor, a feira semanal era o espaço em que a maior parte da


população buscava a manutenção da vida. Este aspecto remete à ainda atual inclinação da
cidade para os serviços relacionados ao comércio. A passagem acima também demonstra
certo juízo de valor do autor, que sugere a vadiagem de tais trabalhadores ao longo do
restante da semana.
É interessante notar que a feira não é percebida apenas como local de trabalho,
mas também como oportunidade de tirar proveito dos produtos remanescentes, pedir
esmolas e até mesmo roubar. São alternativas que configuram soluções menos ortodoxas
— ou mais reprováveis — para a pobreza em que vivia grande parte da população.
Contudo, nem todos os homens e mulheres pobres de Juazeiro buscavam sustento na feira.
As pequenas indústrias e manufaturas também garantiam a vida de muitos:

A maior indústria é dos sapateiros com mais de cinquenta casas que fabricam
alpercatas de toda forma, gênero e preço, sendo aqui o maior ponto de
fornecimento de todo o nordeste deste artigo, o qual não perfuma a cidade ‘à
côté’, mas sim de um fedor rançoso e insuportável de couro mal curtido e grude
azedo. Os salários dos operários são irrisórios, ganhando o melhor dele dois e
quinhentos por dia, trabalhando sem [h]orário, às vezes até dez horas da noite,
sendo a média dos ordenados dois mil réis; poucos são porém afortunados que
ganham tais salários, sendo a grande maioria trabalhadores adventícios,
fornecedores d’água, carregadores e homens de fretes, sendo todos feitos à
cabeça de homem ou lombo de burro os transportes, não existindo uma só
carroça ou carrinho de mão [...].244

Além de se submeter a uma jornada de trabalho que não era previamente


delimitada, o operário passava o dia todo exposto à cruel lida com o couro, geralmente a
céu aberto. A atividade nos curtumes da cidade era bastante insalubre. De acordo com o
autor, no entanto, era um privilégio possuir uma função que pagasse tão generosamente,
pois grande parte da população vivia em penúria.
É necessário considerar que muitos dos devotos estabelecidos em Juazeiro
não conseguiam encontrar trabalho fixo, vivendo, portanto, de atividades temporárias ou

243
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 66.
244
Op. cit., p. 65-66.
123

recorrendo a outros expedientes, tais como: “[...] pedir esmolas, improvisar negócios
miúdos nas urdiduras do comércio ambulante, criar galinhas, carneiros e porcos ou
trabalhar em pequenas plantações [...]”245. Como já se sabe, Padre Cícero se preocupava
em manter ocupadas as pessoas que chegavam, pois o regime agrário local não era capaz
de absorver toda a mão de obra camponesa246. Por esse motivo, estimulou a expansão do
artesanato e da manufatura. A distância do Cariri em relação às capitais fez com que a
região desenvolvesse relativa independência, fabricando produtos que demorariam certo
tempo no deslocamento desde Fortaleza até o interior, e cujos preços sofreriam
encarecimento ao longo do percurso. Por esses e outros motivos, em Juazeiro surgiram
pequenas fábricas, principalmente de calçados, mas também de outros utensílios:

Fazem espingardas, primitivas mas que tem alvo certo e matam que é um gosto;
maquinas de costura, barulhentas como fords velhos, mas que servem; muita
variedade de facas e punhais, alguns dos quais bem bonitos [...]. Fazem toda
sorte de bijouteria, primitiva e pouco elegante, anéis, broches, brincos, cruzes
etc fabricados com ouro baixo e prata; fabricam toda sorte de enfeites, alguns
bem engraçados, brinquedos, redes, rendas, chapéus de tecido de algodão, aqui
chamado “de massa”, chapéus de palha, balaios, cestas, esteiras, artigos
grosseiros para cozinha feitos de pau, foices, candeeiro, copos de lata; grande
variedade de artigos de barro, potes, moringas, alguidares, panelas, vasilhas,
etc, tudo fabricado muito primitivamente, mas de óptima qualidade [...]. 247

É possível notar que boa parte dos objetos domésticos, de vestuário e mesmo
dos instrumentos de trabalho eram fabricados na própria cidade. Muitos moradores de
lugarejos mais afastados costumavam viajar para comprá-los em Juazeiro, e o município
passou a ter certo destaque dentro da economia regional. Em 1934, como já foi
mencionado, aconteceu, em Fortaleza, a Exposição de Artes e Indústrias do Joazeiro, que
buscou mostrar a produção manufatureira e fabril da cidade. A descrição do evento no
jornal O Nordeste já indica quais eram os objetos de fabricação local mais comuns:

Alguns objetos chamaram a atenção dos industriaes e comerciantes que se


interessaram por detalhes [...]. Assim aconteceu com a indústria das facas,
redes, selas, chapéus de palha de carnaúba [...], vinhos de caju e jurubebas, etc.
No terreno das curiosidades foram muito apreciadas as fotografias da cidade
de Juazeiro, a sua já avultada coleção de jornaes, entre os quaes um diário, o
que é de admirar numa cidade do interior do Nordeste, as fotografias de alguns

245
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 116.
246
VITORIANO, Germana Coelho. A invenção da arte popular em Juazeiro do Norte. 2004.
Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Ceará, 2004. p. 39.
247
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 63-64.
124

objetos que pelo seu volume não puderam figurar na exposição, tais como: um
formidável relógio de 4 metros de altura fabricado pelo sr. Pelusio Correia de
Macedo, que marca segundos, minutos, horas, dias, meses, phases da Lua e até
os anos bissextos; uma locomotiva em miniatura confeccionada pelo Sr. José
Martin, bem acabada; [...]; um balão de fabricação do sr. João Fontes, etc.248

De um lado, havia a produção artesanal de objetos que eram fabricados


com matérias-primas naturais, como metal, algodão, palha e couro. Por outro, existiam
elementos que apontavam para a “civilidade” de Juazeiro, tais como os jornais, à época
pouco comuns em cidades pequenas — que geralmente possuíam grande número de
analfabetos. Por fim, havia criações de grandes inventores, sendo Pelúsio Correia,
fabricante do relógio que encima a Coluna da Hora de Juazeiro, o mais famoso deles.
A exposição provavelmente pretendeu apresentar Juazeiro como uma cidade
ordeira, trabalhadora, moderna e repleta de indivíduos talentosos. Com efeito, a
reportagem d’O Nordeste (publicada, curiosamente, no dia da morte de Padre Cícero)
nota que em Fortaleza não se conhecia verdadeiramente o laborioso recanto caririense,
pois geralmente as descrições envolviam lendas e crendices, mas ninguém “[...] teria
ouvido falar no Joazeiro moderno, Joazeiro industrial, na collectividade fabril,
trabalhadora, inteligente, habilidosa, bastando-se, a bem dizer, a si própria?”249. O que
mais surpreendia os visitantes, portanto, era a relativa autonomia produtiva desenvolvida
pela cidade ao longo dos anos.
Na cidade de Juazeiro já havia também, em 1934, grande quantidade de
artesãos que se dedicava a fabricar produtos relacionados à religiosidade, como
medalhinhas, estampas e esculturas de madeira. Basta observar que, quando Odísio
chegou ao Ceará, já existiam estátuas do Padrinho elaboradas na imburana pelos artesões
locais. No desenvolvimento de sua atividade de artista e comerciante, o autor de
Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero conviveu com pessoas das mais diversas
camadas sociais. Comumente passava os dias em sua oficina, mas também costumava
caminhar pela cidade com o objetivo de realizar trabalhos de arquitetura e vender as
esculturas fabricadas. Ele lembra que nessas caminhadas era comum ver não apenas
adultos trabalhando nas ruas de Juazeiro, mas também crianças250:

248
EXPOSIÇÃO de Artes e Indústrias de Juazeiro. O Nordeste, Fortaleza, p. 4-5, 20 jul. 1934.
249
EXPOSIÇÃO DE ARTES e indústrias do Joazeiro. O Nordeste. Fortaleza, p. 5, 20 jul. 1934.
250
O Censo realizado pelo IBGE em 1940 não apontava a existência de trabalho infantil em Juazeiro. Essa
ausência demonstra a relevância de uma fonte como o caderno de Odísio, que descreve aspectos da vida
cotidiana não captados pelos documentos oficiais. A pesquisa do IBGE, por outro lado, indicava o
predomínio das atividades rurais e do trabalho doméstico e escolar, dados que não aparecem no relato
do escultor.
125

Continuamente ve-se nas ruas meninas e meninos esfarrapados, quase nus, só


cobertos de trapos imundos reduzidos a tiras, carregando na cabeça feixes de
lenha, balaios de frutas e toda qualidade de gêneros, andando o dia inteiro nessa
soalheira que torra e cega, oferecendo de porta em porta as suas mercadorias à
venda, havendo entre eles criancinhas pequenas de cinco ou seis anos no
máximo.251

A cidade era, como dizia o próprio Padre Cícero, refúgio para muitos
desvalidos. Havia mulheres e homens pobres. Havia viúvas, órfãos, crianças
abandonadas. Todos deviam trabalhar para garantir o sustento do corpo. A infância não
era poupada. Os pequenos comerciantes, ajudando a família, trabalhavam como homens
grandes. E, geralmente, não frequentavam as escolas, ainda destinadas em boa parte aos
filhos da elite.
Juazeiro não era um município grande do ponto de vista da extensão territorial
e, com o tempo, seu perímetro urbano foi se tornando mais habitado que a zona rural. O
Padrinho passou a incentivar a instrução formal e as atividades artesanais entre seus
devotos. A cidade se tornou uma grande oficina, pois numerosos moradores possuíam
pequenas manufaturas nos próprios quintais e se dedicavam a algum ofício. Manoel Dinis
afirma que Padre Cícero

Mandava que os meninos fossem para as poucas escolas primárias particulares


ou públicas existentes, auxiliando a muitos meninos pobres com o pagamento
das despesas necessárias. Entretanto, encarando o lado prático da vida,
determinava que os pais colocassem seus filhos nas oficinas de sapateiros,
ourives, funileiros, ferreiros, etc. Desta forma se habilitaram muitos que
atualmente aqui e nos sertões vizinhos têm nas suas artes, meios de viverem
ao menos com modesta independência. 252

Desse modo, Juazeiro se transformou num grande mercado de produtos


elaborados manualmente. Os trabalhadores do comércio e da manufatura eram,
frequentemente, devotos de Padre Cícero e migrantes que se deslocaram até a cidade em
busca de um guia espiritual que, além de assegurar conforto à alma, provia também alento
para o corpo.
Diversos memorialistas contam que Padre Cícero tinha o hábito de convocar
a população para o trabalho em mutirões através de um mecanismo peculiar: saía à janela

251
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 118.
252
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 125.
126

e conclamava aqueles que quisessem ajudar a cultivar suas lavouras. Ele pedia que no
primeiro dia da semana viessem, por exemplo, os que carregavam nomes comuns, como
José e Pedro. No próximo dia, iriam os Joaquins e Antônios. Posteriormente, cada Manoel
e João teria a oportunidade de se dedicar ao labor abençoado. Por fim, aqueles que
tivessem nomes menos comuns também se uniriam para colaborar com a benfeitoria253.
Os trabalhadores de Juazeiro recebiam as refeições diárias e, além disso, o
mais importante: a bênção do Padrinho. Aqueles devotos que se esforçavam para ajudar
o Padre Cícero não necessariamente o faziam porque precisavam comer. Geralmente
eram homens que forjavam seus próprios modos de sobrevivência, mesmo que
precariamente. A doação do tempo de trabalho acontecia porque tais sujeitos se
interessavam pela participação numa atividade santa. Essas “[...] empreitadas dos que
labutavam em nome do sagrado encerram-se com a morte do Padre Cícero, em 1934”254.
Juazeiro, contudo, continuou a ser uma cidade viva, que produzia, vendia, fabricava,
crescia.
Odísio chegou à localidade nesse período. Ele pode ser considerado um
sujeito singular: estrangeiro, letrado e artista numa terra repleta de nordestinos
analfabetos ou semianalfabetos, comumente submetidos aos trabalhos manuais e/ou
mecânicos. Estava, no entanto, inserido na vida cotidiana de Juazeiro como qualquer
outro habitante. Embora tenha escrito reflexões repletas de perplexidade em torno de
hábitos que lhe eram estranhos, participava em muitos aspectos da rotina do restante da
população.
Elementos como a organização do trabalho e da vida privada, o lazer, o
descanso e a atividade social são partes orgânicas da vida cotidiana 255 de cada
comunidade. Tais elementos podem ser perscrutados no caderno de memórias do escultor.
Ele afirmava, por exemplo, que na Juazeiro de 1935 era

[...] praxe não prestar o mínimo serviço de graça e da mais pequena coisa
querem tirar lucro, abertamente, sem receio ou vergonha; ‘Menino, me informa
onde é a tal casa?’. Resposta: ‘Quanto ganho?’; ‘Homem, você vai ao Crato,
não é?’ ‘Sim, sinhô’. ‘Pois faça o favor de me comprar tal coisa, custa tanto,

253
Cf. SOBREIRA, 1969, p. 245 apud RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território
sagrado em Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 126.
254
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 129.
255
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra. p. 32.
127

dou-lhe o dinheiro, é um favor que me faz’. Resposta: ‘Pois não, mas quanto o
sr. me dá pelo serviço?’256

Tal comportamento denota não apenas falta de cortesia, mas uma grande
miséria que será descrita ao longo de toda a exposição de Odísio. De acordo com o
escultor, na feira semanal havia “[...] bancas de bugingangas de ferros velhos, aonde se
encontra até pregos já usados e endireitados vendidos a seis um tostão, e agulhas vendidas
a duas um tostão”257. A população de Juazeiro buscava as mais diversas formas de garantir
a subsistência.
Em 1926, o folclorista Leonardo Motta (que costumava assinar como
“Leotta”) publicou, no Diário do Ceará, peculiar descrição das atividades mais comuns
e rentáveis em Juazeiro. Entre elas, descreveu a pujança da indústria de fogos e o grande
número de barbearias alagoanas. Aproveitou para destacar o parco apuro linguístico dos
trabalhadores recém-chegados:

Ninguém ignora que a população de Juazeiro é, em grande parte, adventícia.


As levas de romeiros se sucedem diariamente, anunciadas as respectivas
chegadas pelo espoucar de foguetes. Dia e noite, se queimam gyrandolas. Por
isso, a pyrotechnica é ali negocio dos mais rendosos. Se fossem multados,
como em Fortaleza, os que soltam foguetes, o município pagaria, em pouco
tempo, a divida externa do Estado...
A maior colônia domiciliada em Juazeiro é a de gente provinda de Alagôas.
‘Barbearias alagoanas’ existem muitas. Numa delas anotei este letreiro vistoso
e nada lacônico nem gramatical:
‘Barbearia Alagoana
Peço a Deus bôa freguezia
Aseita chamados de seus bons freguez...’258

Assim, Leotta apontava, num único parágrafo, o vigor da indústria de


foguetes e a falta de instrução dos romeiros alagoanos que se dedicavam à barbearia.
Outra atividade apresentada por Leotta em seu artigo “A Mecca dos sertões” era a de
engraxate. Como se sabe, essa atividade é desempenhada majoritariamente pelas classes
menos favorecidas. Em Juazeiro não era diferente; no entanto, uma peculiaridade se
destacava. As alcunhas desses trabalhadores sempre remetiam a nomes de pássaros,
talvez pela agilidade ou, ainda, pela liberdade evocada por esses animais: “Coisa original:

256
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p. 87.
257
Op. cit., p. 77.
258
NA MECA dos Sertões. Diário do Ceará, Fortaleza, p. 3, 30 jun. 1926.
128

todos trazem gravado nas caixas um nome de guerra, isto é, de pássaro, e é por ele que
accodem: este é o CANARIO, esse é o CORRUPIÃO, aquelle é o PAPACU...” 259
Leonardo Motta recebeu, devido à sua atividade como folclorista, diversos
títulos nobiliárquicos: além de membro da Academia Cearense de Letras, foi consagrado
“Príncipe da Poesia Popular, Rondon das Letras Matutas, Bandeirante do Brasil Caboclo,
Embaixador do Sertão e Judeu Errante do Folclore nacional” 260 . Esses títulos o
singularizavam, garantindo seu lugar de honra nos estudos da cultura popular. Conforme
defende Albuquerque Jr., as investigações de Leotta — assim como as dos demais
folcloristas — foram fundamentais para a construção de uma ideia de cultura nordestina.
As elites letradas, preocupadas em produzir conhecimento sobre as mais
diversas expressões do saber regional, buscaram se aproximar das fontes populares para
delas extrair os produtos da “alma rústica e ingênua”. Os estudos de Motta, por exemplo,
procuravam reproduzir a linguagem sertaneja. Ele costumava entrevistar pessoas comuns
em busca não apenas do conteúdo da fala, mas também dos modos de falar. Seus livros
sobre cantadores e violeiros são exemplos desse interesse.
Quase dez anos depois de Leonardo Motta, Odísio também descreveu as
peculiaridades de Juazeiro. Como uma espécie de estudo de caso, ele se dedicou
principalmente a discorrer sobre Romualdo:

O Romualdo, moço de vinte anos presumíveis [...] me foi apresentado e


recomendado por o relojoeiro Sr. Pelúsio, como bom moço, sério e inteligente;
empreguei-o ganhando dez tostões por dia, e dele estou contente pois é de facto
bom moço, muito fiel e obediente, activo mais inculto e completamente
analfabeto, como aliás são todos os da sua classe [...]. Outra vez ao contarmos
níqueis para comprar fructas no mercado, atrapalhou-se na conta na qual
chegava até dois cruzados (oitocentos réis) e devendo somar oito com nove
ficou embasbacado ao que eu disse que ignorância assim era demais pela sua
idade, e ele me respondeu para desculpar-se, mortificado ‘Ih! Chenti!
Probrema assim dirfici só é pra dotô’.261

Numa sociedade em que o analfabetismo predominava, Romualdo


representava apenas o exemplo corriqueiro de alguém que mal sabia fazer contas. O
ajudante de Odísio não conhecia o próprio sobrenome, tampouco lia ou escrevia. Além
disso, ignorava quantos anos tinha vivido. Garantia a subsistência realizando pequenos

259
NA MECA dos Sertões. Diário do Ceará, Fortaleza, p. 3, 30 jun. 1926.
260
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A feira dos mitos – A fabricação do folclore e da cultura
popular (Nordeste 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013.
261
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 86.
129

serviços, pelos quais o escultor lhe pagava um valor irrisório, suficiente para comprar na
feira semanal vinte agulhas ou sessenta pregos “usados e endireitados”, segundo o próprio
Odísio262. O seu ordenado estava bem distante dos dois mil réis diários que supostamente
sustentavam a maioria dos trabalhadores. Odísio, como um folclorista, deu atenção ao
linguajar dele, não para absorver a sua poética popular, mas para denotar a peculiar
ignorância dos sujeitos de Juazeiro.
A relação de trabalho entre Romualdo e Odísio era frouxa, e o salário,
insuficiente para as necessidades básicas. O ajudante se alimentava, como os demais
habitantes da cidade, poucas vezes ao dia. Proteínas de origem animal não faziam parte
de sua dieta. Muitas vezes, inclusive, ele comia as sobras do patrão:

[...] a comida que a pensão manda nas marmitas é muita, mas eu só me sirvo
de alguma coisinha, o resto que fica, mais de três quartos, é devorado pelo
moço que trabalha em casa, o Romualdo, e por ele, que sempre comeu feijão e
farinha uma vez por dia, é muita sorte almoçar e jantar com tanta fartura; é
preciso ver com que entusiasmo esvazia os pratos, lambendo até o último
restinho, revirando os olhos de satisfação, e olhando de esgueio com inveja os
pedacinhos que dou a ‘benvinda’, uma gata que apareceu em casa e que nunca
mais saiu [...].263

É possível notar, por meio do linguajar e da alimentação, a hierarquia que


se estabelece entre Odísio e seu ajudante. Romualdo pleiteava as sobras da comida
ofertadas à gata do patrão. Essa disputa faz lembrar que a miséria grassava entre os
trabalhadores de Juazeiro. Odísio chegou a afirmar que a alimentação típica dos
habitantes da cidade era composta apenas por uma refeição diária, constituída de “[...]
feijão cozido na água e sal, sem tempero, com um punhado de farinha de mandioca” 264.
O cronista destacou ainda que tais hábitos alimentares pioravam durante períodos de seca,
quando os produtos agrícolas passavam a ter preços exorbitantes e a cidade recebia grande
número de retirantes.
Conforme afirma Fernández-Armesto, desde o Paleolítico “[...] a comida já
desempenhava um papel diferenciador” 265 . Durante muitos séculos, a quantidade
consumida por um indivíduo denotava seu prestígio social. Com o passar do tempo, no
entanto, foram surgindo hábitos responsáveis por diferenciar os alimentos de ricos e
pobres. Condimentos raros ou modos de preparo complexos começaram a caracterizar os

262
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 77.
263
Op. cit., p. 87.
264
Op. cit., p. 62.
265
FERNÁNDES-ARMESTO, Felipe. Comida: Uma história. Rio de Janeiro: Record, 2010. p.162.
130

pratos mais sofisticados. A apresentação quase artística de refeições elaboradas com


ingredientes caros e vistosos também passou a ser um fator de distinção.
O consumo de iguarias e acepipes só se torna distintivo, no entanto, caso seja
feito em público, com alguma visibilidade. Por esse motivo, os ricos passaram a promover
banquetes ou festas que permitem ostentar luxo e riqueza. Os pobres, contudo, também
fazem parte do jogo. De acordo com Fernández-Armesto, compartilhar alimento é uma
maneira de trocar presentes, e constitui uma espécie de cimento em diversas sociedades.
Para o estudioso, as práticas de distribuição de comida “[...] são algemas sociais. Elas
criam relacionamentos de dependência, sufocam revoluções e mantêm as classes
dependentes em seu devido lugar”266.
É possível que Odísio não tivesse consciência de tais dimensões sociais
quando compartilhava seu alimento com um empregado. Mas nos momentos em que agia
dessa forma, estava, sem dúvida, consciente de sua superioridade: não apenas não passava
fome, mas ainda tinha a oportunidade de distribuir comida a alguém mais pobre ou a um
animal indefeso. Finalmente, o escultor italiano não se contentava apenas em
compartilhar, por falta de fome ou excesso de solidariedade, sua refeição diária, mas
também cria ser necessário dar publicidade a tal ato em seu caderno de memórias.
Romualdo, o ajudante, ganhou, nesse suporte de papel, um iluminado retrato.
Na fotografia, veste camisa e calça, protege-se do sol com um pequeno boné e carrega a
marmita em uma das mãos. A sua imagem é a última a ilustrar uma passagem escrita do
diário.

266
FERNÁNDES-ARMESTO, Felipe. Comida: uma história. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 164.
131

Figura 15 – Fotografia de Romualdo

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 84.

Nas páginas seguintes, é possível encontrar Odísio e Romualdo “prontos para


sair a negócio na cidade”, “Romualdo alegre chegando com o almoço”, o “traje de viagem
para o sertão” (chapéu de couro e espingarda), “um romeiro que comprou o seu padrinho”,
a gata Benvinda e Romualdo brincando, Romualdo rezando antes de almoçar. São cenas
do cotidiano de Odísio.
132

Figura 16 – Odísio e Romualdo saindo para vender imagens do Padrinho

ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p. 128
133

Figura 17 – Romualdo e o almoço

ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 128
134

Figura 18 – Odísio carregando uma espingarda

ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu
do Ceará, 2006. p. 128.
135

Figura 19 – Um romeiro que adquiriu busto de Padre Cícero feito por Odísio

ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006. p.
128.
136

Figura 20 – Romualdo e a gata Benvinda

ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 130.
137

O escultor parecia considerar extremamente relevante a descrição da pobreza


e da ignorância comuns na cidade. Por isso, dedicou algum tempo de seu relato à
explicitação das condições de vida de seu ajudante por meio de fotos e texto. Descreveu,
por exemplo, uma conversa que teve com Romualdo acerca de seus possíveis planos e
sonhos para o futuro:

Perguntando-lhe um dia qual era o seu desejo de ficar na vida, se operário,


artista, etc, ele cismava e fechando os olhos respondeu sério ‘Sei não, só se
então for ter banca de gelada nas feiras e casá com murena mucufa e aranjá
famia’.267

Odísio tentou, nesse diálogo, demonstrar que as expectativas dos


trabalhadores de Juazeiro eram consideravelmente limitadas: ter uma barraca na feira (e
adquirir certa independência, passando a viver sem patrão), contrair matrimônio com uma
bela morena e constituir família eram os sonhos mais gananciosos que Romualdo poderia
ter. Numa sociedade com pouca mobilidade social, a possibilidade de cumprir as típicas
funções associadas à masculinidade – sustentar a casa, ter esposa e filhos – era uma das
poucas que restavam.

267
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 87.
138

Figura 21 – Romualdo rezando antes do almoço

ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 130.

Em Juazeiro havia um forte componente moral e religioso a nortear boa parte


das práticas cotidianas. Essa especificidade tornava certas atividades de diversão pouco
aceitas, especialmente entre as classes populares. Os juazeirenses remediados, que
geralmente tinham acesso à educação formal e costumavam ser menos devotos de Padre
Cícero, aparentemente tinham maior liberdade e possuíam opções mais diversificadas:
139

Enquanto as beatas e os romeiros santificam o tempo, os ‘de gravata’ procuram


ter um pouco de vida social, se divertem, tem um club denominado ‘Radio
Club’ (sem radio porém), jogam, dançam, dando a nota mundana do lugar,
sendo estes divertimentos execrados pelos romeiros que os chamam de ‘festas
e pagodes do cão’.268

Embora o relato de Odísio afirme que beatas e romeiros condenavam os


chamados “pagodes do cão”, é preciso destacar que outros vícios comumente condenados
pelos católicos, em geral, eram exercitados em Juazeiro sem grandes barreiras. Os jogos
de azar, por exemplo, sempre foram bastante aceitos e praticados por todas as camadas
sociais — desde os mais poderosos até os mais pobres. Não somente os “de gravata” se
dedicavam com paixão a essa atividade: o viajante George Gardner já havia observado,
ainda em 1839, o grande apreço dos caririenses pelos jogos, como podemos observar no
trecho a seguir.

A moral dos habitantes de Crato é, em geral, baixa. E o jogo de cartas sua


ocupação principal. Durante o dia, quando faz bom tempo, veem-se grupos de
todas as classes, desde os que se chamam gente boa até os de ínfima condição
social, sentados nos passeios à sombra das casas, profundamente absorvidos
no jogo. Os mais respeitáveis jogam dólares, os pobres ou jogam moedas de
cobre ou usam grãos de feijão como tentos. Levantam-se então frequentes
brigas que muitas vezes se resolvem a ponta de faca. 269

Se a dança era malvista e o alcoolismo, praticamente interditado, restava


somente a oportunidade de ter experiências emocionantes e lúdicas nos jogos, os quais
não necessariamente envolviam dinheiro. Essa prática, no entanto, rotineiramente levava
a brigas e agressões. Walter Barbosa afirma que o jogo de baralho, especialmente, foi
combatido com muita atenção por Padre Cícero, pois “[...] naquele tempo, a morte
imperava nos lugares aonde se organizavam as bancas”270. Conforme Floro Bartolomeu,

[...] quem conhece o sertão sabe que os sertanejos, nos dias festivos [...], não
dispensam os jogos de roletas, caipiras, jaburus, e tantos outros que podem ser
feitos nas praças publicas, como distracção popular. Só os de cartas não são
permitidos pelas autoridades, nem por eles também são desejados [...]. Esses
jogos [...] constituem nesses dias um divertimento indispensável ao sertanejo,

268
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 103.
269
GARDNER, George. Viagens pelo Brasil. Principalmente nas províncias do Norte e nos Distritos do
Ouro e do Diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. p.
153.
270
BARBOSA, Walter. Padre Cícero – pessoas, fatos e fotos. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1980]. p. 28.
140

que durante o anno não se diverte. Não jogam por vicio, mas tão somente para
se distrahirem.271

É importante observar que, de acordo com numerosos memorialistas, Floro


Bartolomeu foi proprietário de muitas casas de jogos em Juazeiro. A negação do político
juazeirense no que concerne às jogatinas — afirmando que elas só ocorriam em períodos
de festas — leva a crer que eram comuns e traziam certos transtornos à cidade. Mesmo
nos dias atuais, há romeiros que, não raro, procuram casas de jogos quando visitam a terra
do Padrinho.
Clandestinamente, no entanto, as cartas também eram objetos de lazer dos
juazeirenses e adventícios desde quando Padre Cícero habitava a cidade. O aspecto
peculiar a ser notado na narrativa de Odísio é que, segundo suas observações, o jogo em
Juazeiro não costumava envolver, concomitantemente, o consumo de álcool, pois:

A generalidade do povo não bebe álcool; não me refiro à cerveja, a qual tem
preço proibitivo e não é vendida gelada, pois uma garrafa de prateleira custa
três mil réis; falo da ‘branca’ aqui chamada ‘água ardente’ que apesar de ser
barata e boa, não tem adeptos; nunca vi um bêbado e pode-se afirmar que
poucos ou quase ninguém ‘toma’ [...]. O = camarada = beberrão é aqui posto
ao ostracismo, não tem amigos, é considerado um ser perigoso [...]. 272

Odísio acreditava que o alcoolismo havia sido condenado e atenuado na


região graças à postura moralizadora de Padre Cícero, contudo Freire Alemão já
observara fenômeno semelhante quando esteve no Cariri em meados do século XIX:
“Coisa notável: não se vê um bêbado; é isto observação que temos feito desde a capital.
Raríssima é a pessoa do povo que se vê bêbada pelas praças e ruas; o mesmo temos
observado pelo sertão”273. É difícil precisar o motivo de o consumo de álcool, comum
especialmente entre os homens, ser supostamente pouco cultivado no Ceará. Faz-se
necessário destacar, todavia, que os processos criminais do período já elencavam
numerosos casos de delitos praticados durante bebedeiras.
Os escritos de Odísio revelam, portanto, a precariedade da vida do trabalhador
urbano durante a década de 1930 em Juazeiro do Norte. Seu caderno de memórias traz
certas informações pouco discutidas nas demais fontes sobre a localidade, tais como a

271
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 16-17.
272
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 105-106.
273
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem de Francisco Freire Alemão: Fortaleza-Crato (1859).
Vol. I. Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006. p. 20.
141

importante presença do trabalho infantil. Além disso, nota-se a grande participação


feminina na economia de Juazeiro.

4.3 Mulher, negra, trabalhadora e juazeirense

Em 1926, Nicolau de Assiz274 publicava, no Diário do Ceará, um artigo em


que descrevia o trabalho comercial como um perigo para as mulheres. Apoiava-se, para
isso, em dois argumentos: o primeiro dizia respeito à suposta falta de habilidade com os
cálculos; o segundo alertava para o perigo de as belas moças perderem, ao longo do
exercício do trabalho, seus mais valiosos atributos:

As que de parecerem belas, para prenderem os olhares do rapazio elegante


fazem cuidado constante; as que de serem delicadas de feição e frágeis de talha
se envaidecem, não imaginam que perigo tremendo corre o sexo disputando ao
homem na vida comum os lugares, os empregos, nas repartições de governo e
nas casas de commercio, etc. [...]. O emprego comercial, por exemplo, é
próprio de homem, porque o calculo é trabalho improprio de mulher que, não
tendo um cérebro capaz de executa lo sem perda enorme de reservas orgânicas
a eles persiste em dedicar-se [...]. O organismo da mulher sofre em tal
atividade, vae-se aos poucos adaptando, perdendo a fragilidade, a delicadeza,
as feições gracis, tomando feições grosseiras, em termo, masculinizando-se
[...]. Não se temerão as mulheres de perderem a sua beleza?275

Três dias depois, Mario Trevo publicaria no mesmo jornal sua opinião a
respeito das mulheres que buscavam ocupações “masculinas”. Entre outras afirmações,
dizia que a mulher, “[...] durante toda a existência, deve ocupar-se zelosamente dos cinco
cc: -- casa, costuras, cosinha, creança e cama”276. Afirmava ainda que uma mulher jamais
teria as aptidões do homem para o trabalho. E em seguida reproduzia o discurso do amigo
José Pedro, funcionário público, a saber:

-- Mulher em repartição não dá certo. Você vê, antes de se inscreverem nos


concursos, são expoentes maximes de sabedoria que assombram os pobres
funcionários antigos. Recommendações e pistolões não faltam. A gente chega
mesmo a depositar confiança no reclame que trazem. Inscrevem-se; e
começam os aperreios para acquisição dos pontos. Algumas, mais inteligentes,
não querem os pontos; mas o ponto a ser sorteado. E justificam-se: nos
concursos ninguém mostra preparo, mas felicidade, porque exame é loteria.
Depois de nomeadas, quando assumem o exercício do cargo, é que a decepção

274
O jornalista Nicolau de Assiz possuía uma coluna no Diário do Ceará com o objetivo de discorrer sobre
a vida de mulheres brasileiras que se casaram com sírios e passaram a viver no Oriente. Com o tempo,
contudo, passou a se dedicar sobre diversos temas da vida feminina, inclusive o trabalho.
275
ASSIZ, Nicolau de. Um Perigo para As Mulheres. O Diário do Ceará, p. 2, Fortaleza, 1926.
276
TREVO, Mario.. Os cinco CC... Diário do Ceará, p. 2, Fortaleza, 26 ago. 1926.
142

chega. A maioria delas não sabe redigir um officio; de aritmética, mal


conhecem as quatro operações, são incapazes de resolver de prompto, sem
consultarem, uma regra de três ou de cambio; traduzem com dificuldade o
francês. Eu é que não as quero trabalhando commigo; prefiro um rapaz
relativamente analfabeto...277

Em 1926, portanto, intelectuais proferiam abertamente sua predileção por


dividir postos de trabalho com rapazes, mesmo que menos escolarizados que as mulheres.
Se negavam a dividir espaço com moças instruídas, alegando que, mesmo quando
concursadas, elas teriam menor capacidade intelectual. É comum imaginar que, diante
desse cenário, as mulheres vivessem ainda prioritariamente como “rainhas do lar”,
devendo se dedicar somente às atividades domésticas e aos cuidados com a casa, a
costura, as crianças, a cozinha e a cama.
Em parte, essa observação faz sentido. Em Juazeiro, por exemplo, o Ginásio
Santa Terezinha, que se destinava à educação da “juventude feminina”, preparava, desde
1935, as moças de elite para o curso Normal Rural de Juazeiro, mas posteriormente, em
1943, transformou-se numa escola doméstica, conferindo diplomas de “donas de casa” às
alunas que concluíam os estudos. Ali, as garotas aprendiam técnicas de primeiros-
socorros, “educação social” (civilidade, polidez e bom comportamento, educação
religiosa e artes domésticas — como bordados, tapetes, labirintos, pinturas, flores, bolos
confeitados etc.)278. Odísio afirma que essas moças da elite caririense tinham um modus
vivendi todo especial:

As moças das famílias da ‘gente de gravata’ exibem algum luxo, fazem o


passeio na Avenida e são algo espevitadas e faceiras, caçando o peixe marido,
animal raro de se pescar aqui, aonde o percentual é de sete mulheres para um
homem. As solteironas abundam, conservando até os vinte e cinco anos
esperança de encontrar a vítima, para depois serem postas a lado do torneio
casamenteiro, nada restando que abraçar definitivamente a vida mística,
dizendo não ter-se casado para servir a Deus com mais amor e liberdade.279

Odísio comete certo exagero estatístico ao afirmar a grande desproporção entre os


dois sexos, mas o importante é destacar que existiam, efetivamente, muitas mulheres
pobres e solitárias, e suas preocupações na vida eram bem diferentes daquelas que
recaíam sobre as moças de classes remediadas. Elas travavam uma dura peleja contra a

277
TREVO, Mario.. Os cinco CC... Diario do Ceará. Fortaleza, 26 de agosto de 1926, p. 2.
278
LEITE, Francisco de Assis; ALVES, Joaquim (Org). Almanaque do Cariri – 1949. Fortaleza: 1949. p.
259-260.
279
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 105.
143

fome e a miséria, muitas vezes sustentando seus filhos sem o auxílio de um companheiro.
Algumas trabalhavam nas feiras, outras na indústria. Havia ainda aquelas que se
prostituíam. Floro Bartolomeu já contava em 1923 o caso de uma

[...] rapariga de Alagoas, de dezoito anos de idade, que, prostituida na sua terra,
ali foi parar. Justamente em uma noite em que ella curtia fome, por não possuir
um real siquer, apareceu-lhe um sujeito que, ‘desfructando-a’ não lhe
recompensou e ainda espancou-a. No auge da cólera, valeu-se de uma faca e
matou-o.280

As adolescentes da elite juazeirense buscavam maridos e, se não os


encontravam, passavam a se dedicar à vida religiosa. Moças pobres, porém, não tinham
opções tão honrosas. Jovens migrantes, negras, brancas ou mestiças, solteiras ou casadas,
com ou sem filhos, precisavam garantir o próprio sustento e o da família. Nesse combate,
todas as alternativas e armas eram válidas.
Odísio apresentou as mulheres da cidade com certo humor cruel que
atualmente poderia ser, talvez, classificado como misoginia. Partindo do aspecto físico,
generalizou em sua descrição o uso de roupas pretas, que possivelmente ainda eram
comuns por causa do luto em respeito à morte de Padre Cícero: “As mulheres, quase
todas, vestem preto, saias varrendo o chão, desajeitada blusa matinê e grande xale preto
na cabeça escondendo a cara, o que é caridade, pois aos trinta anos já são velhas e aos
quarenta viragos com caras de megeras [...]”281.
As mulheres pobres de Juazeiro envelheciam cedo. Com a saúde debilitada,
trabalhando sob o sol, dedicando-se a atividades religiosas ou ensinando nas escolas da
cidade, eram presença constante na vida cotidiana. Não havia, entre elas, a tradição de
reclusão comum às habitantes do sertão profundo que viviam sob a tutela dos pais ou
esposos. Era necessário construir autonomia e independência para resistir à vida que
levavam. Mesmo considerando o dado que afirma a superioridade numérica da população
feminina, é importante recordar que nesse período as atividades remuneradas eram
eminentemente reservadas aos homens.
Em Juazeiro, no entanto, era grande a quantidade de mulheres envolvidas em
atividades domésticas, escolares, comerciais e na indústria de transformação. Conforme
afirma Francisco Régis Lopes Ramos, “[...] a divisão entre sexo no trabalho não era muito

280
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 173.
281
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 23.
144

rígida. Por exemplo: não raramente era possível encontrar mulheres em oficinas de fazer
foguetes”282. Muitas delas se achavam sem o suporte financeiro de uma figura masculina.
Em 1940, existiam na cidade mais de duas mil viúvas, além de centenas de moças casadas
que perderam o contato com seus esposos. Foram contabilizadas, ainda, algumas poucas
separadas, numerosas solteiras e outras com estado conjugal não declarado283. Odísio
descreveu a situação de muitas dessas mulheres:

[...] as mulheres com filhos sem maridos, apesar de casadas, sem ser viúvas,
são legião, encontrando-se uma delas numa casa sim e outra também; muitos
fatores são a causa deste fato; a miséria, indo o marido à procura de trabalho
em outras zonas, as secas, as revoluções e mais de que tudo a ignorância. 284

Segundo o escultor italiano, essas mulheres, mesmo que fossem abandonadas


pelos seus esposos e exercessem isoladamente as atividades remuneradas que garantiam
o sustento da casa, não possuíam o direito de estabelecer elos com novos companheiros.
Elas mantinham suas reputações de mulheres casadas ilibadas, pois havia um forte
componente de coerção moral na cidade. Ele contava que

[...] apesar de ter tantas mulheres em disponibilidade, raro é aquela que cai em
falta, porque aqui o povo desculpa e acha natural ser assassino, cangaceiro,
ladrão, mas não admitem ter na família uma ‘fêmea cadela’ pois é para eles a
maior vergonha; esta não é pois terra para conquistas, e os Dom Joãos são
avisados, si não querem receber cargos de lenha verde o servir de bainha para
‘paraibanas’ (facões de meio metro).285

Os homens da cidade, segundo Odísio, não permitiam que as mulheres


solteiras ou “casadas sem marido” se envolvessem com “galanteadores”. Elas estavam
proibidas de aceitar os favores de estranhos. Eram obrigadas a adotar um ofício e
incentivavam seus filhos a “cavar o sustento” através do trabalho ou da mendicância. Seu
destino era bastante diverso daquele assegurado às moças da elite juazeirense, ou mesmo

282
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Meio do Mundo. Território sagrado em Juazeiro do Padre Cícero.
Fortaleza: Edições UFC, 2012. p. 132.
283
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento geral do brasil (1º de
setembro de 1940): Série regional. Parte VI – Ceará – Tomo I – Censo Demográfico. População e
habitação – quadros totais referentes ao estado e de distribuição segundo os municípios. Quadros
sinóticos por município. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1950.
284
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 24.
285
Op. cit., p. 105.
145

àquelas amparadas pelas Casas de Caridade286. Eram mães e trabalhadoras independentes


que tinham suas liberdades cerceadas pela comunidade local.
Em 1940, a população da cidade era constituída por mais de 38.000 pessoas
— as mulheres em maior número. De acordo com o Censo, a distribuição racial de tais
habitantes contava maioria de negros, havendo ainda pardos, amarelos e habitantes de cor
não declarada. Havia uma diferença referente à quantidade de homens e mulheres que
saltava aos olhos: 4.263 mulheres excediam o número de homens. Um elemento peculiar
dessa pesquisa, além da indicação de uma população majoritariamente negra, é o grande
volume de operárias trabalhando na “indústria de transformação”, ou seja, nas
manufaturas. Existiam praticamente duas mil mulheres a mais que homens nessas
atividades. Aliás, em Juazeiro havia um número bastante pequeno de mulheres em
condição inativa ou economicamente improdutiva 287.
Através do Censo de 1940 e de narrativas de cronistas do período, é possível
saber que eram muitas as mulheres negras que exerciam, em Juazeiro, atividades
remuneradas relacionadas aos “serviços do lar”: cozinhavam, limpavam, lavavam roupa,
engomavam288. Como se sabe, no Ceará (e especialmente no Cariri) o trabalho escravo
era eminentemente doméstico. Esse tipo de atividade parece ter sido passado de mãe para
filha, principalmente nas classes mais pobres e menos escolarizadas — sabe-se, ademais,
que isso era ainda mais comum entre as mulheres negras. Odísio descreve, por exemplo,
a atuação daquelas que trabalhavam na pensão que lhe provia alimentação:

[...] cozinheiras desgrenhadas e imundas cozinhando no escuro em panellas


velhas e gordurentas, no meio do enchame de moscas que pretejam o ambiente;
os pratos são lavados dentro de um cocho de pau, feito canoa, por uma velha

286
As Casas de Caridade foram criadas pelo padre e missionário José Antônio Pereira Ibiapina. Padre
Ibiapina era cearense, mas percorreu todo o Nordeste em sua missão evangelizadora pelos sertões. Em
muitos dos locais pelos quais passou, fundou Casas de Caridade que pretendiam abrigar os mendigos,
enfermos, mulheres piedosas e órfãs. Em seus trabalhos, era comumente auxiliado por beatas, mulheres
que dedicavam suas vidas à oração e ao cuidado com os necessitados. As Casas de Caridade também
educavam moças de famílias ricas e pobres, alfabetizando-as, ensinando prendas e preparando-as para
o casamento ou para o trabalho. Para maiores informações, Cf. NASCIMENTO, Maria Célia Marinho
do. Filhas e Irmãs do Padre Ibiapina. Educação e devoção na Paraíba (1860-1983). 2009. Dissertação
(Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa,
2009.
287
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento geral do brasil (1º de
setembro de 1940): Série regional. Parte VI – Ceará – Tomo I – Censo Demográfico. População e
habitação – quadros totais referentes ao estado e de distribuição segundo os municípios. Quadros
sinóticos por município. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1950.
288
Para maiores informações, verificar o Censo de 1940.
146

negra, a qual, incrível mas verdade, até entra com os pés dentro da água na
qual lava os pratos [...].289

As trabalhadoras de Juazeiro eram, muitas vezes, mulheres que não tiveram


acesso à educação formal, mas é preciso considerar que hábitos pouco higiênicos foram
também atribuídos a gente de classes sociais mais elevadas. O que interessa é ressaltar a
existência de grande participação feminina nas atividades remuneradas, inclusive no que
tangia ao trabalho associado a atividades domésticas.
As trabalhadoras juazeirenses se dedicavam usualmente, também, às tarefas
comerciais. Segundo Agostinho Odísio, na feira era possível encontrar “[...] fósforos a
cem réis a caixa, feitos aqui por mulheres as quais se servem de caixas servidas que
moleques apanham na rua e a ellas vendem a duzentos réis a dúzia”290. Muitas fabricavam
e vendiam doces, assim como suas ancestrais escravizadas o faziam com frequência. As
pobres idosas, descritas com certa crueldade por Odísio, também procuravam garantir o
sustento da casa: “[...] velhas sórdidas e desgueladas, sentadas no chão com a frente uma
cesta, vendem amendoim, castanhas de caju assadas (boas), catolés enfiados como contas
e doces de fructa feito tijolinhos, sobre os quais banqueteam enchames de moscas [...]”291.
Um elemento que deve ser considerado, no entanto, é o número relativamente alto
de mulheres alfabetizadas. Provavelmente isso — e o fato de as atividades relacionadas à
instrução serem associadas principalmente às mulheres remediadas — explique a grande
quantidade de trabalhadoras atuantes nos estabelecimentos educacionais de Juazeiro. Mas
havia também homens que se dedicavam a essa tarefa. Walter Barbosa conta a história de
João Alves Melo, que, tendo procurado Padre Cícero em busca de trabalho, teria recebido
dele a incumbência de alfabetizar as crianças juazeirenses:

Ora, se você sabe ler e escrever, não deseja fazer o mesmo trabalho de dois
grandes santos da cristandade que tiveram o nome de João? E continuou: você
vai levar a luz para os que não a têm. Vai abrir uma escola. Eu o ajudarei. São
João Batista preparou o caminho do Senhor, você vai preparar através da
escola, do ensino, o caminho para os padres Salesianos que hão de vir para
Juazeiro. E, quando eles chegarem para abrir as suas escolas profissionais e os
seus colégios, devem encontrar esse povo alfabetizado para facilitar o trabalho
dos discípulos de D. Bosco [...]. Uma coisa eu lhe peço, mesmo quando eu
morrer, você continuará a ensinar a todos que lhe procurarem.292

289
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 82.
290
Op. cit., p. 77.
291
Op. cit., p. 78-79.
292
BARBOSA, Walter. Padre Cícero – pessoas, fatos e fotos. Fortaleza: IMEPH, 2011 [1980]. p. 76.
147

No trecho acima, é possível entrever a preocupação de Padre Cícero não


apenas com os devotos que o buscavam em vida, mas também com a população de
Juazeiro que permaneceria carente de trabalho e estudo após a sua morte. O patriarca de
Juazeiro planejava instruir os habitantes em artes e ofícios por intermédio da educação
salesiana. Por esse motivo, boa parte de sua herança foi dedicada a essa congregação. Ele
imaginava que tal aprendizado asseguraria a manutenção da vida entre seus devotos.
É possível perceber que as mulheres de Juazeiro, desprovidas do comum
suporte financeiro masculino, buscavam meios de vida na manufatura, no comércio, nos
serviços e onde mais pudessem atuar. O trabalho as tornava feias. Ainda na juventude, já
pareciam velhas. Eram também reprimidas moralmente pela comunidade local, que via
com maus olhos aquelas que, mesmo viúvas ou abandonadas, estabelecessem novas
relações amorosas.
Muitas das habitantes da cidade eram devotas que escolhiam viver como
beatas, orando e realizando pequenos serviços para garantir o próprio sustento. Padre
Cícero, inclusive, amparou algumas delas em seu testamento, deixando um sítio e
quinhentos mil réis para as beatas Maria das Malvas, Maria de Jesus (vulgo Babá), Teresa
Maria de Jesus (Teresinha do Padre), Jerônima (vulgo Geluca) e Maria Eudóxia da
Assunção293. Elas, assim como muitos outros, ficaram quase desamparadas após a morte
do Padrinho.

4.4 O alimento e a fome

A alimentação de um povo configura importante fator cultural que costuma,


no entanto, ser negligenciado nas pesquisas dos historiadores. Quando se trata da
historiografia do Nordeste, o problema é ainda mais flagrante, pois numerosas migrações
se deram nessa região justamente por causa da escassez, da desigualdade social e da fome.
A busca da abundância, da prosperidade ou da sobrevivência levou nordestinos a grandes
movimentos, seja para as regiões Sudeste e Norte, seja para áreas mais úmidas do próprio
Nordeste.
Quando se discute sobre o Nordeste e suas migrações, costuma-se falar da
seca e da fome como problemas mais ou menos genéricos. Na região Sul do Brasil há
grande número de pesquisas acerca dos hábitos alimentares da população em diversos

293
BAPTISTA, Padre Cícero Romão apud LOURENÇO FILHO, Manoel B. Juazeiro do Padre Cícero.
São Paulo: Edições Melhoramentos, [1926], p. 200-201.
148

períodos, talvez pela influência da culinária estrangeira herdada dos imigrantes europeus.
O mesmo não acontece em relação ao Nordeste. Excetuando-se obras de culinária
regional (sem cunho historiográfico) ou pesquisas sobre alimentação brasileira
organizadas por regiões, escassas são as publicações recentes sobre o tema.
O presente tópico não pretende, evidentemente, sanar o problema da falta de
informações sobre a alimentação nordestina, mas discutir alguns temas tratados por
Agostinho Odísio em seu caderno de memórias. O escultor italiano descreveu os hábitos
alimentares dos habitantes de Juazeiro com bastante entusiasmo, e iniciou tal exposição
lembrando a pobreza que conduzia tais pessoas a uma alimentação precária:

No alimento o sertanejo é sóbrio, duma frugalidade espartana, apesar de ser


robusto, resistentíssimo, feixe de ossos e nervos; um punhado de farinha e
paçoca de carne ou virado de feijão, peixe seco e mandioca, jerimum com leite
ou um naquinho de carne de sol assada é o seu alimento; com a maior
naturalidade, pessoal daqui, vendedores ambulantes de bugingangas,
empreendem viagens através dos sertões, carregados de mercadoria, a rede, a
cabaça da água e o embornal de mantimentos a tiracolo.294

Três elementos mencionados por Odísio nessa passagem fazem parte do tripé
culinário do Brasil colonial. Paula Pinto e Silva elenca a farinha, o feijão e a carne seca
— aqui apresentada compondo a paçoca — como os alimentos primordiais da infância do
Brasil, os quais ainda eram amplamente consumidos em 1934. Montanari explica que as
classes subalternas fazem uso de alimentos que são abundantes e baratos, assim como
daqueles que podem ser facilmente preservados. As preferências populares seriam
definidas, principalmente, por alimentos que possuem “[...] capacidade de preencher,
afastando a angustiante mordida da fome. Explica-se assim o gosto alimentar pelos
farináceos [...]” 295 . O viajante Gaspar Barléu afiançou, entre 1637 e 1644, que cada
habitação indígena possuía “ao redor seu mandiocal e seu feijoal” 296 . Tanto o feijão
quanto a farinha de mandioca estavam presentes na alimentação da maior parte da
população do Brasil, inclusive entre as classes mais abastadas. É preciso considerar, no
entanto, que os mais ricos possuíam também outras opções, enquanto os pobres
costumavam se nutrir sobretudo do tripé “feijão, farinha e carne seca”.

294
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 106.
295
MONTANARI, Massimo. Comida como Cultura. São Paulo: Senac. p. 110.
296
ZERON, Carlos Alberto (Org) Fichário Ernani Silva Bruno – Equipamentos, usos e costumes da casa
brasileira: Alimentação. São Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2000. p. 202.
149

Como se sabe, a criação de gado foi responsável pela ocupação do interior da


colônia, inclusive de boa parte do Nordeste. Os rebanhos eram, no entanto, geralmente
mal alimentados. O produto final, consequentemente, tinha má qualidade. O clima
também não favorecia e a carne costumava entrar em estado de putrefação em pouco
tempo. A solução encontrada para o problema da conservação foi a produção de carne
seca, que além de tudo era de fácil transporte. O ambiente pouco úmido do sertão garantia
que a carne, seca ao sol, mesmo não sendo salgada, pudesse ser consumida por mais
tempo. Nas épocas de estiagem, no entanto, mesmo essa carne desidratada se tornava rara.
Desse modo, boa parte da população passava longos períodos sem consumir nenhum tipo
de proteína de origem animal.
Paula Pinto e Silva lembra que, no Brasil colonial, os alimentos eram
preparados costumeiramente ao modo indígena, ou seja, “[...] no que diz respeito ao seu
ponto de cozimento: sempre cozidas ‘a mais’, ou, em termos culinários, ‘passadas do
ponto’, com todo o seu caldo quase seco”297. A autora afirma que isso não se dava de
maneira aleatória, mas com o objetivo de garantir que a comida não se estragasse com
facilidade. A questão não era somente de sabor e textura, mas de conservação. As carnes
fritas, por exemplo, geralmente eram banhadas em óleo e levadas até o ponto máximo,
ficando ressecadas e aproximando-se da possibilidade de queimar.
Odísio consumiu em Juazeiro alimentos com as características próprias da
cozinha sertaneja. Seus pratos eram constituídos por arroz, farinha, feijão e carne
abundantes, mas o escultor afirmava que tudo era seco e mal temperado. O feijão, por
exemplo, era cozido somente com água e sal, sem grande variedade de temperos. Talvez
essa prática tivesse relação com o fato de os habitantes da cidade não apreciarem legumes
e verduras “[...] porque têm medo de infecções [...], sendo também esta cultura não
própria para este clima, requerendo muito trabalho e cuidado”298. Com efeito, tais temores
de infecções, caso existissem, não seriam infundados. A higiene parecia ser rudimentar
àquela época. O memorialista destaca, por exemplo, os problemas de distribuição de água:

[...] existem varias cacimbas privadas nos quintaes mas a única agua que é mais
= potável = é do Arisco, perto da estação, a parte mais alta da cidade, pois as
outras cacimbas dos quintaes correm perigo de ter as aguas inquinadas devido
a cidade não ter esgotos e todas as = sentinas = são buracos, sem fossas nem
primordial cuidado de higiene da desinfecção com cal. Escusado é diser que

297
SILVA, Paula Pinto. Farinha, feijão e carne-seca: Um tripé no Brasil colonial. São Paulo: Senac, 2005.
p. 100.
298
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 74-75.
150

esta agua boa é bebida por a menor parte da população, a = gente que pode =;
o setenta por cento que talvez não disponha de quinhentos reis por dia, ou bebe
a agua das cacimbas infectas ou deve recorrer a agua do brejo, coberta de limo
e quase vermelha de tão turva.299

As condições de saneamento e distribuição de água eram duvidosas em toda


a cidade. Mas existiam ainda distinções de classe: a água de qualidade servia somente à
população mais abastada, estabelecendo uma situação paradoxal, qual seja, a população
da periferia habitava o local em que era possível encontrar água de qualidade, mas o
líquido precioso se destinava somente aos privilegiados que moravam no centro. A água
potável, essencial à higiene e à alimentação, passava a ser regalia de poucos.
Nos estabelecimentos públicos que comercializavam alimentos, a situação
não era muito melhor. Odísio garantiu que na pensão em que adquiria suas refeições
diárias,
A água é servida, com muita parcimônia e a custa de repetidos pedidos, em
copos mal lavados aonde se notam as impressões digitais sobre o vidro, dentro
e fora; a água de beber é guardada em potes descobertos, aonde o homem do
jegue verte a água das latas todos os dias, passando meses sem lavar o fundo
dos potes, aonde ficam camadas de barro, baratas, e, duma vez, vi botar fora
um ratículo morto afogado.300

Ao longo do caderno de memórias de Odísio há muitas referências à mesma


pensão e à qualidade dos alimentos servidos. O estabelecimento era o que atualmente se
classifica, em Juazeiro, como “rancho”, visto que também servia de pouso para os
romeiros. O restaurante se constituía como um espaço auxiliar desse alojamento,
garantindo a alimentação dos visitantes da cidade:

[...] a quantidade e variedade dos alimentos é bastante, baratíssimo tudo, de


forma que numa casinha aonde houvesse quem saiba cozinhar, poderia-se
passar, se não lautamente, pelo menos bem, com pratos variados e sustanciais.
Ao contrário, aqui isto não se passa, porque ninguém sabe cozinhar; na pensão
aonde tomamos alimento, a qual é sem dúvida a primeira da cidade, apesar de
apresentar em cada refeição mesa abundante, a comida é intragável, sendo
todos os dias, mês passa mês, igual, desesperadamente igual, no almoço e na
janta.301

299
Op. cit., p. 54.
300
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 83.
301
Op. cit., p. 80-81.
151

É sabido que o apreço por determinados tipos alimentares não nasce somente
das condições práticas da vida, sejam elas sociais ou econômicas. Há sempre fatores
culturais e simbólicos envolvidos. O gosto por frutas e verduras, por exemplo, não era
disseminado no Nordeste na década de 1930, pois os trabalhadores de então consumiam
principalmente gêneros ricos em “sustância” (comidas gordurosas ou farináceos). Apesar
disso, em 1935, a feira já apresentava grande variedade de frutos saborosos e baratos, que
eram, segundo Odísio, pouco apreciados pela população:

[...] montes de abacaxi, o rei da fruta do norte, vindo da serra do Araripe, bons
a cem reis, e os de Pernambuco, cheirosos e deliciosos que é verdadeira delícia
a duzentos réis; bastante laranjas, porém de qualidade inferior, montes e mais
montes de cocos da praia cheios de água saborosa a trezentos réis, montes de
mangas rosas e espada, cinco por tostão, melancias, melões, abacates, articuns,
sapotis, buritis, graviolas, catolés, cajus grandes como maçãs, atas-pinhas,
deliciosas, macaúbas, maracujás, pitombas, e mais a fruta elixir do sertão, fruta
silvestre que resiste até o último as secas, o umbu [...].302

É possível imaginar que o juazeirense comum preferisse optar pelo tripé


“farinha-feijão-carne seca” a gastar seus míseros cobres com frutas que, embora fossem
saborosas, não proveriam energia suficiente durante a jornada de trabalho. Para Odísio,
que era economicamente privilegiado e exercia um trabalho mais intelectual que
mecânico, parecia estranho que tais dádivas da natureza fossem preteridas. Duas culturas
alimentares bastante diversas se confrontavam naquele momento: a dos nordestinos
pobres e a do escultor italiano.
Há um consenso entre os historiadores da alimentação: por muito tempo a
diferença entre a alimentação dos ricos e a dos pobres esteve intrinsecamente ligada à
quantidade. Ao longo dos últimos séculos, no entanto, essa distinção passou a ser
associada ao que convencionamos chamar de qualidade. No decorrer desse processo,
certas crenças determinaram os diferentes regimes alimentares que seriam próprios das
várias classes sociais.
Montanari lembra que já no século XV havia um paralelismo entre as
hierarquias dos alimentos e dos homens. Deste modo, “[...] bulbos e raízes, estando em
contato mais estreito com o elemento terra [...] ocupavam posições mais baixas”303. Os

302
Op. cit., p. 73-74.
303
MONTANARI, Massimo. A fome a abundância: História da alimentação na Europa. São Paulo:
EDUSC, 2003. p. 116.
152

frutos das árvores eram considerados os mais nobres alimentos, pois estavam mais
próximos do céu. Estabeleceu-se, assim, um “imaginário do gosto”.
Segundo o pensamento comum da Idade Média (associado à teoria galênica
dos humores), cada indivíduo deveria consumir alimentos conforme sua necessidade e
suas atividades. Assim sendo, convencionou-se que os grosseiros estômagos dos pobres
não seriam apropriados para assimilar alimentos refinados, devendo estes preferir
comidas pesadas e gordurosas304. O prazer era associado, mormente, à alimentação dos
ricos, já que os trabalhadores deveriam comer unicamente com o objetivo de suprir as
necessidades vitais.
Aparentemente, boa parte dos habitantes de Juazeiro se satisfazia com
alimentos que cumpriam somente a função primária de assegurar a sobrevivência. Odísio
lamentou o fato de não sentir prazer ao comer, pois na cidade “ninguém sabe cozinhar”.
Mas o que seria “saber cozinhar”? O escultor, ao que parece, referia-se à importância da
variedade de ingredientes e sabores disponíveis na cidade, mas que pareciam ser pouco
explorados pela população. Por muito tempo, saber cozinhar significou “saber temperar”,
ou seja, dar aos alimentos sabores distintos daqueles que eles possuíam originalmente.
Em Juazeiro, Odísio afirmava que não se sabia temperar, e que poucos ingredientes eram
utilizados na alimentação cotidiana. Ele criticava o uso invariável dos mesmos gêneros e
condimentos. A cozinha de sua pensão não era, portanto, suficientemente criativa.
É possível encontrar paralelo com o protesto de Thomaz Davatz, em 1855,
contra a dificuldade de o colono suíço “[...] obter por si só aquilo de que necessite”.
Davatz afirmava que os imigrantes não conseguiriam “[...] apreciar o milho, o arroz e o
feijão sem tempero algum, como sucede com os escravos negros” 305 . O consumo de
alimentos por prazer seria privilégio das elites. Não se pode dizer, no entanto, que os
pobres jamais tiveram direito a certos manjares. De acordo com Odísio, em Juazeiro

Há também alguma verdura e legumes, mandioca e aipim em penca, jerimum


(abóbora como o nosso morango) mastodônticos, os quais fervidos formam o
prato cobiçado desta gente que se abandona com suprema delícia ao seu quitute
predileto do qual falam com agua na boca – jerimum cozido com leite; poucos
tomates, quiabos e algum raro pé murcho de alface, cebolinha miúda e alhos
pequenos, batata doce e nada [de] batata inglesa da qual nunca mais comi
depois do Rio – repolhos, couves, selga, seralha, e outras verduras nem são
conhecidas [...].306

304
Op. cit., p. 113.
305
ZERON, Carlos Alberto (Org.) Fichário Ernani Silva Bruno – Equipamentos, usos e costumes da casa
brasileira: Alimentação. São Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2000. p. 110.
306
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 74-75.
153

Os cereais foram considerados, durante a Idade Média, comidas típicas dos


pobres. A sensação de saciedade produzida por eles era essencial aos trabalhadores, mas
pouco indicada aos senhores, que supostamente seriam capazes de sentir satisfação
somente com alimentos mais delicados. Na Juazeiro de 1935, apenas três cereais se
destacavam entre as classes populares: o arroz, o feijão e a farinha de mandioca. Eram
ingredientes que estavam nas mesas de todo o Brasil, possuindo destaque ainda maior
entre pessoas que raramente comiam carne:

O mercado dos cereais apresenta os seus produtos no chão aos montes, como
[...] o sal; o feijão chamado de rama, miudinho e redondo nada apreciável, o
arroz pequeno como canjica de cor enferrujada, montanhas de farinha de
mandioca e de sal; o mercado do peixe seco, apresentado no chão com folhas
abertas de fumo seco, fardos de ‘carne de sol’ (carne seca), lascas de toicinhos
magro que vendem em molhos presos a uma embira. Montes de rapaduras em
tijolinhos de quarenta centímetros em quadro, café em pó, torrado, e ainda em
sacas, banha de porco e de coco, mel em garrafas com qualidades de raízes e
plantas e cascas para remédio, vendidas pelo curandeiro que dá consulta em
plena rua.307

Os relatos acerca da alimentação nordestina citam menos frequentemente o


arroz, talvez por ele ser produzido em menor escala na região, ou ainda por causa do sabor
peculiar da variedade selvagem mencionada pelo escultor italiano. As fontes indicam que
os sertanejos mais carentes se alimentavam, nesse período, prioritariamente de feijão e
farinha de mandioca. Um “tempero” já comum nessa época, no entanto, era o pequi: “[...]
fruta de arvore parecida com a mangueira cujo caroço de um sabor esquisito e cheiro
activo a queijo é muito empregado como tempero do arroz”308. A carne de sol e o peixe
seco eram, por outro lado, opções de proteínas mais acessíveis, inclusive devido à
durabilidade garantida no processo de desidratação utilizado em ambas as carnes.
Mas o juazeirense não vivia apenas de feijão, farinha e carne seca. O café era,
segundo Odísio, a bebida mais consumida, sendo geralmente adoçado com a rapadura.
Como se sabe, o processo de branqueamento do açúcar é caro e dispendioso. O interior
do Nordeste substituía então o açúcar refinado pela rapadura, que servia à feitura de
diversos doces.

307
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 75.
308
Op. cit., p. 75.
154

Certos alimentos eram também vistos como aliados da saúde. As ervas,


plantas e raízes, acrescidas do mel, misturavam-se e distinguiam-se de outros ingredientes
por suas propriedades curativas. Algumas ervas aromáticas, tais como manjericão,
alecrim e hortelã, eram pouco apreciadas na alimentação, mas bastante utilizadas no
preparo de chás medicinais.
Odísio não descreveu somente os alimentos consumidos em Juazeiro. Ele
também lembrou aqueles que consumiu ao longo de sua viagem entre Minas e o Ceará,
especialmente nas capitais do Nordeste. Sua mais longa estadia foi em Fortaleza, onde
teceu numerosos elogios ao dono da pensão em que ele e seu ajudante, Paulino, estiveram
hospedados:

[...] ontem disse a ele que gostaria de experimentar o afamado peixe ‘cavala’
tão decantado, e que me ensinasse aonde poderia encontra-lo; à noite, já
encontrei na janta o tal peixe, a fruta sapoti, e disse-me que eu podia pedir o
que fosse, que ele aprontaria, a cozinha é boa, de bom tempero e ótimo paladar,
e os macarrões, que todos os dias são servidos, excelentes, pois são feitos com
farinha italiana... Tomara não acabasse esta mina... 309

A comida do interior parecia possuir pouca semelhança com aquela que ele
conheceu na capital do Ceará. É preciso considerar, contudo, que os turistas que visitavam
Fortaleza provavelmente eram mais exigentes que os sertanejos famintos que buscavam
a cidade santa, Juazeiro. De toda maneira, a crítica feita à alimentação que Odísio
consumia diariamente na cidade de Padre Cícero parecia ser inversamente proporcional
aos elogios feitos à comida de Fortaleza, que ele comparava à italiana.
Uma opção comum para os pobres europeus era a massa. Especialmente na
Itália, país de origem de Odísio, o macarrão se tornou alimento típico de pobres. O trigo,
contudo, não é produzido abundantemente no Brasil. Assim, a principal matéria-prima
dos pobres europeus tornava-se dispendiosa no país em que Odísio passou a habitar. A
alimentação brasileira era, mesmo no século XX, baseada no tripé colonial “farinha, feijão
e carne seca”.
O escultor afirma que, embora existissem massas de qualidade, a população
de Juazeiro supostamente não as apreciava ou não sabia cozinhá-las. Mais uma vez,
optava por fazê-la “passar do ponto”, como ocorria com todos os outros alimentos:

309
ODÍSIO, Agostinho Balmes. “Mudança para o ‘Norte’ do Brasil”. In: SIQUEIRA, Vera Odísio. De Dom
Bosco a Padre Cícero: A saga do escultor Agostinho Balmes Odísio discípulo de Rodin. Fortaleza:
IMEPH, 2011. p. 125.
155

O pão aqui é excelente e o macarrão também pois são feitos com ótima farinha
de trigo americano, mas quando, raras vezes, cozinham o macarrão, o fazem
tão mal feito que fica uma papa – verdura ou legumes nunca aparecem a não
ser batata doce ou mandioca cozinhada nágua – ovos só sabem servi-los duros
ou estrelados na banha, secos e quase queimados. Parece impossível, mas é
assim, e por quanto tenha pedido de fazer esta ou tal comida na forma, aliás
muito simples, que eu desejo, nunca obtive resultado.310

Nessa passagem, o escultor demonstra que tais pensões por vezes variavam seus
alimentos, servindo legumes cozidos, ovos fritos e até mesmo macarrão. Ao que tudo
indica, o macarrão não era um alimento de uso universal na região. A título de ilustração,
é possível transcrever uma anedota publicada no Diário do Ceará quase dez anos antes,
assinada por “Emme”:

Conhecido coronel cariryense, em visita a Fortaleza, foi hospedar-se em nossa


casa. Parente, íntimo portanto, era exigente nas refeições. Café a toda hora e
peixe no almoço e no jantar. Queria voltar para sua terra suficientemente cheio
de peixe do mar, visto que dagua doce já se enfartara. Lá um dia servimos-lhe
suculento macarrão à italiana, coisa que via pela primeira vez, e uma farófia
de xarque. O hospede mostrou-se-nos um verdadeiro gastrônomo. E ao
regressar, levava comsigo três kilos de macarrão e outros tantos de xarque,
para mostrar o que era bom a seu povo. Certo dia, mandava-nos as suas
impressões, em longa carta:
<< Meu amigo. O povo teve receio de comer o xarque, porque dizem
que é de carne de jumento fabricada na Argentina. Agora do macarrão foi caso
serio: vegetal ninguém estranhou. Não chegou p’ra quem quis. Logo que você
receber esta, me despache na estrada 10 kilos de carne velha e uma arroba de
macarrão. Tome cuidado na escolha dele, pois os vizinhos estão me pedindo
uma porção de mudas, e eu quero plantar pelo menos a metade no nosso sitio.
Com quanto tempo fica botando?>>
E foi obedecido o seu pedido... 311

“Emme” depreciava a cultura alimentar interiorana, assim como Odísio, que


demarcou diferenças sociais e culturais a partir do gosto. O escultor italiano pretendeu
estabelecer seu lugar de poder a partir da crítica ao modo juazeirenses de cozinhar. A
alimentação da pensão lhe parecia pouco atraente, sendo descrita da seguinte maneira:

Feijão [h]horrível, de péssima qualidade e mal temperado; arroz mofado,


cozinhado até ficar um bolo de grude, o resto, carne, carne, carne, sempre carne
mal preparada, nadando em banha e colorau, sem gosto algum; sopa, algumas
vezes, mas feita dos restos do arroz e feijão, com gordura demasiada 312.

310
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p. 81.
311
UMA MUDA de macarrão. Diário do Ceará, Fortaleza, p. 2, 5 jun. 1926.
312
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 81.
156

Apesar da falta de sabor relatada, o escultor se nutria lautamente, pois sua


alimentação sempre envolvia “carne, carne, carne”, produto escasso e extremamente caro
para boa parte da população. A comida muito gordurosa, criticada por ele, é típica de
comunidades que precisam de refeições pesadas para suportar o trabalho e experimentar
a sensação de saciedade. A banha de porco era a gordura mais utilizada em Juazeiro, tendo
preponderância sobre a manteiga, de preparo mais lento, dependente de bom gado e bom
pasto. O alimento produzido na pensão tinha coerência com as condições sociais dos
consumidores, assim como possuía relação com as especificidades climáticas da região.
As carnes abundantes nos pratos de Odísio — frequentemente distribuídas
entre seu empregado e a gata Benvinda — eram geralmente comercializadas na feira de
Juazeiro. Num passeio por esse importante evento semanal, o escultor indicou algumas
opções e seus valores. Após descrever as aves (frangos e galinhas) e seus derivados (os
ovos), o escultor elencou ainda “[...] perus, leitões, bodes e carneiros, pois aqui não se
come o cabritinho nem o cordeirinho mas o ‘bode’ em toda a sua plenitude, e o carneiro
de um ano, sendo a carne macia e saborosa”. 313
Havia proteínas relativamente diversificadas e saborosas no sertão, mas a
existência de bons ingredientes não assegurava a boa cozinha. Era também preciso saber
criar, preparar e temperar os alimentos. Tais ações realizadas ao pé do fogão, no entanto,
ainda não seriam o bastante para garantir prazer durante a refeição. Odísio irá, a seguir,
narrar o momento sagrado do consumo de alimentos e sua dificuldade em tolerar os
comportamentos daqueles que serviam sua comida:

É uso comum de toda gente aqui assoar o nariz com os dedos, o que também
fazem as cozinheiras em plena função, não se incomodando que assoaram o
apêndice facial, o bife e a carne para deitar à panela. Também é natural de
quem serve a mesa, enquanto com uma mão carrega um prato de comida ao
hóspede, se assoar com a outra, dentro da sala de refeições, quase não virando
a cabeça do prato que tem na mão.314

Tais atividades, consideradas pouco higiênicas, causavam repugnância em


Odísio, que passou a solicitar que a comida fosse entregue em casa, evitando, assim,
presenciar o modo como ela era preparada. As lições de etiqueta difundidas na Europa e,

313
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 76.
314
Op. cit., p. 82.
157

talvez, nas capitais do Brasil ainda não haviam chegado às pensões de romeiros
frequentadas pelo escultor.
Montanari defende que “[...] em todos os níveis sociais, a participação no
convívio à mesa é o primeiro sinal de pertencimento ao grupo”315. Odísio não se sentia
confortável ao dividir a mesa com os romeiros de Juazeiro. Ao contrário, evitava a
companhia de tais pessoas. Desse modo, demarcava certa superioridade em relação
àqueles que comiam os mesmos víveres:

Diz o ditado ‘o que não mata, engorda’, mas eu segui o outro ‘o que olhos não
vê, coração não pena’ (sic) e por isto comprei um porta comida e mando buscar
as refeições; a comida vem pior, porque comendo na mesa sempre a gente é
mais bem servida, mas em compensação tenho a vantagem de não comer
acotovelado com os bandos de romeiros que chegam de longe, suarentos e
catingudos, e não assistir as cenas do ambiente que reviram o estômago até
dum soldado de polícia.316

A escolha pela alimentação solitária envolvia o temor de observar a falta de


higiene da cozinha, mas também a compreensão de que “[...] no ritualismo convivial, o
significado dos gestos é confiado à definição das regras que servem para delimitar o
campo de ação, excluindo quem não as conhece”317. Não tendo a possibilidade de excluir
todos os romeiros do local destinado a eles, Odísio preferia se retirar.

315
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Senac. p. 159.
316
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 83.
317
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Senac [2013]. p. 162.
158

5 LUGAR DE MEMÓRIA OU LOCAL DE RECORDAÇÃO?

5.1 Entre a piedade e a fama: o lugar de Juazeiro

Em Juazeiro, os locais são sujeitos da História. Eles corporificam uma


continuidade da duração. São úteis para a fixação afetiva da presença de Padre Cícero.
Como um deus das religiões politeístas, tudo indica que o sacerdote quer ser procurado e
adorado em seu lugar. As primeiras romarias a Juazeiro após a morte dele, inclusive, já
não tinham como destino apenas sua casa, mas também seu túmulo. O Padrinho havia
morrido, mas continuava ligado àquela terra, agora eternamente.
A piedade é o sentimento fundamental diante do morto. Ela obriga os vivos a
celebrarem sua memória através de preces e visitas ao túmulo. Todos os defuntos têm
direito a esses momentos de reverência e rememoração, não somente aqueles que
adquiriram fama ao longo da vida. A tradição católica diz que os familiares devem velar
seus mortos, orar pelas almas e visitar os falecidos pelo menos uma vez por ano. No caso
do Padre Cícero, no entanto, essa piedade cresce e se renova diariamente. Sua vida e seu
desaparecimento são celebrados e relembrados por devotos e afilhados.
De acordo com Aleida Assmann, “[...] a memoração dos mortos tem uma
dimensão religiosa e outra mundana, que se opõem entre si como pietas e fama”318. O
Padrinho de Juazeiro consegue unir essas duas facetas da memoração: a recordação de
sua morte possui sentido de devoção, mas a fama política que construiu ao longo da vida
também está ligada à sua santidade e às visitas que seu corpo atraiu e atrai até os dias
atuais. Em Padre Cícero, pietas e fama se conectam, se comunicam e se confundem.
A Fama, contudo, não se constitui sozinha. Atos grandiosos, fenômenos
misteriosos, milagres, batalhas, vitórias, perseguições, execução de importantes papéis
políticos: nada disso garante imortalidade. Para que um nome seja lembrado, é necessário
que existam meios de recordar. Assmann propõe o estudo de cinco diferentes meios:
metáforas, escrita, imagem, corpo e locais. A autora lembra que, quando se trata de uma
cultura não letrada, a escrita pode ser substituída pela oralidade. No caso do fenômeno de
Juazeiro, por exemplo, os cordéis, lidos em voz alta e recitados por cantadores e

318
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora Unicamp, 2011. p. 37.
159

apreciadores da arte, cumpriram a função de levar o nome do Padre Cícero para distantes
fronteiras. A imprensa nacional também trabalhou nesse sentido, produzindo notícias e
veiculando telegramas, cartas e outros documentos ligados à atuação do Padrinho. Os
membros da cultura letrada tiveram ainda uma importante participação nesse processo,
produzindo e disseminando representações elogiosas ou reprovadoras de Juazeiro e de
seu patriarca.
Com Padre Cícero, portanto, ocorre o contrário daquilo que acontece com os
homens comuns e públicos em geral, que podem ter relativa fama durante a vida, mas são
esquecidos quando mortos, restando apenas monumentos desprezados e uma memória
que é preservada brevemente por seus familiares. Ele teve certa fama (dessacralizada e
contraposta à sua presumida santidade) durante a vida, principalmente no que diz respeito
à carreira política que desenvolveu. Com sua morte, contudo, cresceu a piedade popular
que acompanha seu nome. Um morto não pode mais pecar. Assim, o desencarne do
sacerdote o arrebatou da convivência com os fiéis, mas também o santificou. Trata-se de
um culto ao grande padrinho morto, portanto, de um culto à vida eterna de um homem
santo.
Em Juazeiro, Padre Cícero foi sepultado, mas nunca repousou. Permanece
ativo e presente. Por isso tanto se fala, tanto se escreve e tanto se crê nele. A fama de
Padre Cícero, no entanto, não é como a dos grandes homens políticos: não precisa ser
armazenada em museus, monumentos ou memoriais para existir. Vive internalizada em
cada um de seus seguidores. Os meios de recordar existem, mas não se constituem apenas
como lugares de memória319. São complementos da recordação.
Os heróis costumam ser eternizados pelos poetas, mas os poetas também
podem ser eternizados por cantarem grandes feitos e heróis. Desse modo, muitos
escritores, jornalistas, pesquisadores, cordelistas e artistas plásticos se tornaram populares
graças às histórias que envolviam o querido santo nordestino. Odísio é um deles: sua
trajetória no Ceará ganhou projeção graças às imagens de Padre Cícero que elaborou,
tanto no gesso quanto no papel.
No período em que Odísio escreveu seu caderno, estudos sociológicos a
respeito do sertão nordestino eram frequentes. Ele é herdeiro dessa tradição e também
pretendeu fazer, através da própria experiência, uma análise da cidade de Juazeiro. À

319
Lugares de Memória, segundo Pierre Nora, são suportes externos da memória, geralmente construídos
com o objetivo de abrigar conhecimento sobre acontecimentos ou sujeitos que seriam esquecidos caso
tais memórias não fossem arquivadas. Cf. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos
lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28.
160

página quarenta e seis, mais ou menos no meio de seu calhamaço, Odísio declarou que
“[...] explicar o fenomeno que fez surgir Juazeiro e dissecar a figura psicologica do seu
fundador, é tarefa par(a) um [h]istoriador psico analítico”320, dando a entender que não
era esse seu propósito. Esse parece um momento de modéstia do autor, que não pretendia
encerrar o assunto sobre o qual escreveu. Mas, ao mesmo tempo em que afirmou não ser
capaz de realizar tal análise, apresentou a estrutura de seu caderno: na primeira parte,
abordaria o fenômeno de Juazeiro, embora sem a pretensão de explicá-lo. Na segunda,
passaria a descrever “o lugar, seu povo e seu meio”321. Desse modo, é revelada certa
composição previamente organizada, o que leva a crer que o manuscrito pode não ter
sido, necessariamente, produzido ao correr da pena, como o autor afirmara anteriormente.
Ao final de seu caderno, dedicou a obra aos seus filhos “[...] para que dela
tirem proveito, aquilatando quanto vale a instrução e a cultura na vida do homem, de um
núcleo, de uma nação”322. Há certa função moral atribuída às suas memórias: ao mesmo
tempo em que analisou Juazeiro e correlacionou a miséria local à carência de instrução,
Odísio ensinou a seus filhos que o saber letrado deveria ser valorizado. O tema apareceu
à página 60:

Eis a situação triste deste lugar a respeito do problema maximo por um povo,
a instrucção, a qual aqui é quase nulla, sendo os analfabetos completos, o
noventa por cento, e não só os velhos, mas moços de vinte anos que não
conhecem siquer os números, completamente brocos, conhecendo em dinheiro
só os niqueis nem as horas do relógio, só sabem o nome de baptismo e quase
nunca o sobrenome, nem a edade certa e ficam espantados a qualquer pergunta
respondendo o infalível = sei não! = [...]323.

Como homem ilustrado que era, tendo vivido na Itália e numa região mais
escolarizada do Brasil, Odísio parecia se espantar com a falta de instrução dos
juazeirenses. Embora a estatística alardeada seja hiperbólica, é preciso mencionar que
nesse trecho o escultor tocou num ponto importante de sua própria trajetória: a
valorização da cultura erudita. Ele mesmo escreveu ensaios e peças teatrais. Fez parte de
um círculo de homens cultos — ou que assim se consideravam. Provavelmente, também
conheceu os relatos de viajantes que circularam pela Europa em fins do século XIX e
início do século XX. Seu próprio caderno, aliás, assemelha-se a um registro de viajante.

320
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 46.
321
Op. cit., p. 26.
322
Op. cit., p. 125.
323
Op. cit., p. 60.
161

Odísio afirmou que a escrita de seu calhamaço ajudou a passar o tempo e a


atenuar a saudade que sentia dos seus, “[...] saudade que continuamente me morde a
alma”324. Teceu também elogios à esposa, possível leitora, quando falou sobre sua relação
com os alimentos de Juazeiro: “Quantas vezes falei com esta gente que si estivesse aqui
a minha Dosolina eles iam ver quantos pratos bons e variados saiam das suas mãos
[...]”325. Odísio possuía consciência, contudo, de que aquilo que chamou de “mais que
humilde obra” era, na verdade, um livro, com pretensões de descrição e interpretação de
Juazeiro326. O escultor, inclusive, abriu seu manuscrito afirmando:

Estas memorias [...] não tem valor literário, porque nelas falta forma, língua e
gramatica. Quem aqui escreveu é um simples trabalhador o qual só procuro[u]
fixar impressões e verdades. Quem quer leia e não proteste depois, porque
lealmente avisei. O autor, ilustre desconhecido.327

A ausência de caráter literário em sua obra, portanto, apareceria


relacionada à falta de conhecimento do idioma. O conteúdo, em si, não é mencionado
nesse aviso. Talvez, à vista disso, a análise da cidade e de sua relação com Padre Cícero
seja a maior contribuição do escrito, segundo o esquema de valoração proposto pelo
próprio autor. Odísio imaginava a possibilidade de que seu texto fosse desfrutado por
pessoas de fora do seu círculo familiar. Essa perspectiva fica mais ou menos evidente ao
assinar o manuscrito como um “ilustre desconhecido”. Ora, se a obra se destinava a
pessoas próximas, quem seriam os que não o conheciam?
O fato de Odísio ignorar a norma culta da língua portuguesa não o impediu,
inclusive, de criticar aqueles que cometiam tropeços no âmbito da oralidade. Seu ajudante
Romualdo foi, com frequência, vítima de tais censuras pouco veladas. O escultor
comentou, por exemplo, que certo dia lhe fez um pedido não muito complexo:

[...] que depois do almoço tinha que levar um filme no photographo para
revelar; obediente, depois de ter religiosamente lambido as marmitas, veio e
me disse todo lampeiro: = Seu Gustinho, são horas de eu ir dechá o fio para
melá no phrotogo, vou num raio que nem cachorro da moléstia (cão idrophobo)
e falo com o homem para melá logo que o sr está = vexado = (apressado) 328.

324
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 125.
325
Op. cit., p. 81.
326
Op. cit., p. 125.
327
Op. cit., s/p.
328
Op. cit., p. 85.
162

Após escrever essa passagem, Odísio colou uma fotografia de seu ajudante
no canto da página. Esse é um indício de que o texto foi escrito antes e passado a limpo
posteriormente, pois as fotos são dispostas de maneira organizada, sempre representando
o conteúdo de um texto que, aliás, não possui rasuras. Ao reproduzir a hipotética fala de
alguém que sabia menos que ele, que chamava o filme de “fio” e confundia o ato de
revelar com o verbo “melar”, Odísio afirmou a própria superioridade. O autor fez questão
até mesmo de reproduzir em seu manuscrito as peculiaridades e os percalços da
linguagem oral, acrescentando “traduções” quando acreditava que o conteúdo de tais
palavras seria irreconhecível para os leitores desabituados ao falar popular. Tal ato indica
que o escultor, ao mesmo tempo em que admitia não ter o conhecimento da língua
portuguesa adequado a um literato, sabia também que conhecia a língua melhor que
muitos nativos. Além disso, fornece pistas para a existência de leitores que deveriam ser
informados da significação dos termos desconhecidos presentes em sua obra. O caderno
se configura como uma espécie de diário de viagem, sendo iniciado justamente com a
chegada do escultor em Juazeiro:

Em outubro de 1934, eu e o meu companheiro Paulino, causa imprevistos da


vida, deixamos o nosso Juiz de Fora de Minas, com rumo ao Ceará. O vapor =
Comte Ripper do Loid = nos levou do Rio de Janeiro a Fortaleza, e num
trenzinho algo primitivo vencemos as cem léguas que separam a bela capital
do Ceará ao Joaseiro, nosso ponto de destino, numa viagem estafante devido
ao calor e a poeira que em nuvens invadia o carro.329

Ao descer do comboio, Odísio buscou a “sopa” que o dono da pensão


Guarany havia prometido quando o trem passava ainda pela cidade de Missão Velha. O
escultor conta que, ao ser abordado pelo sujeito que lhe oferecia hospedagem em Juazeiro,
perguntou se a hospedaria ficava muito distante do local em que o trem aportaria,
recebendo de Olegário Brasileiro a resposta de que não era necessário se preocupar com
isso, pois a sopa os esperaria pronta na estação. Estranhando o fato, Odísio começou a
refletir: “[...] é verdade que estávamos no Ceará, a clássica terra da fome e da sede, mas
nunca teria imaginado que tal flagelo chegasse ao ponto [...] de fazer encontrar a sopa na
estação para logo alimentar os passageiros”330.

329
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 1.
330
Op. cit., p. 2.
163

Ao ser conduzido a uma jardineira que os levaria até o hotel, Odísio perguntou
pelo alimento, sendo informado de que já estava nela. A “SOPA” era o meio de transporte
utilizado entre a estação e o centro da cidade. O veículo público, apelidado dessa forma
pelos juazeirenses, foi associado a uma série de elementos que, para Odísio,
caracterizavam o Ceará: “fome, sede, flagelo”. Havia em torno da nova terra um léxico
de palavras que imediatamente era acionado. Palavras que não indicavam a paz e a
prosperidade que o escultor fora buscar.

Figura 22 – A “Sopa”

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 3.

Odísio era duplamente estrangeiro: vinha de um país do Hemisfério Norte, a


Itália, e, ao mesmo tempo, do Sudeste brasileiro, um ambiente em quase tudo diferente
daquele lugar em que agora iria habitar. O impacto da sua chegada ao Brasil não foi
registrado em escritos, mas algo diferente ocorreu quando aportou em Juazeiro. A
necessidade de aprisionar as recordações o fez escrever. Talvez houvesse, entre Turim e
Juiz de Fora, menos distância que entre Juiz de Fora e Juazeiro:
164

Quem, como nos, vem do sul do paiz, estranha a diferencia da paisagem, pois
não encontra a luxuriante vegetação das nossas verdes campinas e dos nossos
ubérrimos montes, mas sim poucas arvores raquíticas, matto sem verde, e rios
sem agua em cujo leito pastam magras rezez, procurando minguados fios
derva.331

A paisagem é o primeiro choque da viagem. Nada lembrava fartura ou


fortuna. A vegetação e os rios secos só remetiam ao sofrimento e à morte, opostos daquilo
que se procura numa mudança de vida. O verde de uma região sempre fértil e
razoavelmente fria já era familiar ao escultor italiano, que falava das “nossas verdes
campinas e ubérrimos montes” como se brasileiro fosse.
Odísio retirou-se para Juazeiro graças à morte de Padre Cícero. Em outubro
de 1934, quando chegou ao Nordeste, já eram celebrados três meses da partida do
Padrinho. Seu caderno, contudo, incluiu numerosas menções ao sacerdote. Quanto a isso,
é preciso lembrar que o manuscrito se propõe a registrar memórias, e não recordações.
Segundo Friedrich Jünger, os conteúdos da memória podem ser adquiridos sozinhos ou
aprendidos, “[...] mas as recordações, não posso nem aprender por mim mesmo nem
ninguém pode me ensinar”332. Memórias podem ser armazenadas numa máquina ou num
caderno, mas só aos homens é reservado o privilégio de recordar. Muitas das supostas
lembranças de Odísio foram, no entanto, aprendidas. Suas opiniões sobre Padre Cícero,
sobre a Guerra de 14 e sobre o cangaço não são opiniões de quem viveu e conheceu, mas
de quem escutou, julgou e estudou.
Ao chegar em Juazeiro, ele foi acomodado num quarto escuro de pensão que
continha a típica mobília sertaneja: duas redes e um tamborete. O escultor solicitou um
cabide para dependurar as roupas e rapidamente foi atendido com “uns pedaços de paus
desconjuntados” 333 . Também foi apresentado ao banheiro do estabelecimento, que
descreveu como “um rancho com uma lata dagua turva e uma cuia” 334. A pensão era,
como tantas outras, destinada aos romeiros. O escasso conjunto de móveis chegava a
lembrar a mobília descoberta por Euclides da Cunha em visita às residências de Canudos:

Quando o olhar se acomodava à penumbra daqueles cômodos exíguos,


lobrigava, invariavelmente, trastes raros e grosseiros: um banco tosco; dois ou

331
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 1.
332
JÜNGER apud ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Formas e transformações da memória
cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011. p. 33.
333
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 4.
334
Op. cit., p. 4.
165

três banquinhos com a forma de escabelos; igual úmero de caixas de cedro, ou


canastras; um jirau pendido do teto; e as redes. Eram toda a mobília. Nem
camas, nem mesas [...].335

Em Juazeiro existiam muitas hospedarias semelhantes àquela que abrigou


Odísio. Funcionavam como lojas de santos, ranchos para romeiros, restaurantes para os
visitantes. Ofereciam um pouso não muito requintado, e assim ganhavam consumidores,
que adquiriam as peças ali vendidas e pagavam pela alimentação. Geralmente, os
dormitórios eram compartilhados. O escultor italiano parece ter encontrado, pelo menos,
a opção de uma hospedagem com quarto individual. Odísio apresenta tais pensões da
seguinte maneira:

Toda a hierarquia de santos é encontrada nestas casas, as quais tem ranchos de


propósito para fornecer pouso aos romeiros, os quais são esperados e
disputados por agenciadores de negócio pagos pelos santeiros para ir cercar os
romeiros de fora, até dez léguas antes de chegar à cidade. Nestas casas tudo é
vendido; santos, comida, flores murchadas sobre o túmulo do padre, relíquias,
orações e até fios das barbas do padre, vendidas ou ‘trocadas’ aos romeiros,
que tem a obrigação de comprar em virtude de ter recebido o pouso grátis.336

Outra opção para os visitantes era garantir pouso na residência de um bom e


hospitaleiro juazeirense ou alugar um domicílio temporariamente. Odísio elegeu a
segunda opção. O escultor havia sido recomendado ao prefeito de Juazeiro pelo major
Juarez Távora 337 . Após um breve descanso, teve a oportunidade de sair sob o sol
causticante para conhecer a cidade. Sua primeira impressão não foi boa. Graças à amizade
influente, contudo, o chefe do Poder Executivo Municipal lhe ofereceu um guia que, em
apenas um dia, encontrou lugar para o escultor morar e trabalhar. Ao mencionar esse fato,
Odísio afixou ao caderno uma fotografia sua junto à nova residência. No retrato, vestia
calça, terno e chapéu brancos que contrastavam com a parede de taipa e as rústicas portas
de madeira do edifício. A casa era de pau a pique, o forro não existia, havia muitos buracos
nas paredes e o chão era de terra batida. As portas não tinham fechaduras ou escoras. O
escultor explicou que todos os domicílios disponíveis para aluguel eram desse tipo,
enquanto os melhores, de tijolos, seriam reservados aos proprietários. Após improvisar a
mobília juntamente com seu ajudante, Paulino, chegou a hora da mudança:

335
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 82.
336
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 20.
337
Militar cearense ligado ao Tenentismo. Em 1934, quando recomendou Odísio às lideranças locais, era
Ministro da Agricultura do Governo Vargas.
166

Assim, as nove e meia da noite deixamos a pensão e afundando no escuro e no


areião, carregando as nossas malas de mãos, marchamos rumo ao nosso
‘chateaux’ onde dois enormes sapos, convidados de honra, nos esperavam a
porta de casa, fidalgamente recebidos por mim a valentes pontapez; primeiro
cuidado, depois de se iluminar feericamente a casa por poder do nosso magico
candeeiro, foi revistar todos os cantos e atraz das malas por se acertar se não
havia novidades e cobras que aqui são muitas e venenosas e entram a vontade
nas casas a procura de fresco e agua; quantas delas não matamos depois,
encontradas passeando em casa ou escondidas atraz do pote da agua! 338

A descrição de sua mudança apresenta a visão de mundo de um homem


citadino, de classe média, acostumado às comodidades modernas, agora confrontado com
o sertão que se revelava uma selva: ali não existia água encanada, não era possível acender
a luz elétrica, não se encontrava calçamento; o conforto urbano não existia, sendo comum
descobrir sapos e cobras. Além disso, era necessário enfrentar os perigos da natureza
mesmo dentro do próprio lar.
Odísio registrou que a primeira noite após a mudança foi passada em branco
graças às fortes emoções do longo deslocamento e aos cantos de animais — sapos e jegues
— existentes nas proximidades. E assim começou a trajetória do escultor italiano na terra
de Padre Cícero. Suas impressões iniciais são as seguintes:

Os que aclamam Joaseiro como centro cívico adiantado e progressista, criado


por um homem de valor extraordinário, julgo que assim escreveram, ou por
cabotinismo ou por deferência e servilidade a políticos e ao mesmo Padre
Cicero, que continuamente era assaltado por jornalistas cabotinos e dos quaes
com muita ingenuidade se deixava iludir, pagando caras as bajulações
exageradas, porque, apesar de não se poder distruir o feito do Padre Cicero, ele
demonstrou de não ter sido o perfeito e iluminado espirito decantado, porque
Joaseiro teria surgido melhor e com mais critério.339

Recém-chegado em Juazeiro, Odísio já se sentia suficientemente seguro para


defender algumas ideias sobre a cidade e seu patriarca, inclusive a teoria racial que
atribuía aos mestiços o pendor para o fanatismo, como Euclides da Cunha já fizera
anteriormente. Outra hipótese tecida pelo escultor apreendeu Juazeiro não como
Jerusalém prometida, mas como terra de sacrifícios. Talvez esse fosse o modo como o
próprio escultor encarava sua passagem pela cidade sertaneja:

338
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 8.
339
Op. cit., p. 11.
167

Porem por muito tempo ainda a sua figura será vista com prisma diferente, isto
até que as gerações dos seus romeiros de Joaseiro e de tudo sertão não tenham
desaparecido. Por enquanto os romeiros, que constituem o noventa por cento
do povo do Joaseiro, julgam o padre Cicero como um santo profeta que veio
ao mundo encarnando o espirito de Elias, de São João Baptista e mesmo do
Christo. Por eles, padre Cicero não morreu so = foi embora =, como eles dizem,
mas voltará, e neste lapso de tempo, mesmo de longe aonde foi visitar Nossa
Senhora das Dores, quem determina tudo em Joaseiro é ele, a não ser os factos
maus e trágicos os quaes são atribuídos ao cão (demônio).340

É relevante destacar que o uso do advérbio de tempo “ainda” indica, como já


se enfatizou, uma situação de continuidade que torna possível entrever certo sentido
histórico341. Algo que existiu insiste, teimosamente, em permanecer, embora não se saiba
até quando. A figura de Padre Cícero, por muito tempo, receberia olhares
condescendentes. Para Odísio, contudo,

[...] era natural que junto a estas romarias de humildes bem intencionados, se
juntasse a jagunçada, bandoleiros perseguidos e criminosos de tudo quilate, e
também era natural que estes povos dos sertões, incultos e profundamente
crentes, carregassem com o sangue das suas três raças ancestraes o fanatismo
produto mestiço de três crenças, ainda mais porque o Joaseiro representava por
eles não a terra de promissão, mas o lugar de sacrifício, de tudo desconforto,
de amargura, mas de certa preparação para a escalada ao ceu, guiados pela
santidade do padre Cicero.342

Sob a perspectiva do autor, o cangaço em Juazeiro não era


responsabilidade do Padre Cícero, mas uma consequência do movimento migratório. Tais
criminosos aproveitariam o anonimato na nova e populosa cidade para encontrar refúgio.
O suposto fanatismo, por sua vez, seria fruto de uma peculiar junção entre três diferentes
crenças advindas de três miscigenadas raças, reunidas sob o atraso do sertão. Suas
observações, como é possível notar, pouco destoavam das demais teorias que buscavam
explicar as peculiaridades de Juazeiro e do culto ao seu patriarca.
Entre outras fotografias do caderno de memórias, é possível observar, à
página dezoito, dois registros da Capela do Perpétuo Socorro, apresentada por Odísio
como “lugar em que está sepultado Padre Cicero aos pés do altar”343, acrescentando não
haver ali nenhum monumento que indicasse a presença do corpo santo. Justamente em

340
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 16.
341
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos Históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. p. 121.
342
Op. cit., p. 14.
343
Op. cit., p. 18.
168

frente a essa capela seria erguida talvez a sua obra mais importante: uma estátua em gesso
do Padrinho:

Não há romeiro que não visite pelo menos uma vez por semana o túmulo do P.
Cícero, ainda há peregrinação contínua dos romeiros domiciliados na cidade e
dos de todo sertão que chegam aos magotes, percorrendo a pé até cem léguas
para cumprir a promessa e depositar dinheiro na caixa perto do túmulo.344

O fato de “ainda” haver peregrinação mesmo após o falecimento do sacerdote


denotaria uma conexão temporal peculiar que surpreendia a muitos. A construção de uma
estátua que efetivamente recordasse o Padrinho no local em que ele fora sepultado foi
uma ideia muito bem recebida pelos romeiros e fiéis do Padre Cícero. Odísio conta que
sua obra foi imediatamente acolhida pelos devotos, conferindo ao próprio escultor uma
inesperada aura de proteção:

[...] si amanhã quisesse levantar este povaréu de romeiros era só dar a voz que
eles eram prontos até morrer, como já muitos e muitos me disseram e eu creio,
por ser eu o = homem que faz padrinho Cisso quase vivo =. Uma coisa lucrei;
a certeza absoluta que não serei roubado, como nunca o fui, não me tendo
faltado um prego apesar de ter entrado e entrar tanta gente.345

Conforme revela Salatiel Barbosa em sua pesquisa intitulada Joaseiro


Celeste, os romeiros costumam depositar chapéus, fitas, cordões de São Francisco, flores
e muitos outros objetos sobre o túmulo do Padrinho, mas objeto de igual ou até maior
veneração é o nicho que guarda a escultura em frente à Igreja de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro. Conforme o pesquisador, “[...] o que chama mais a atenção dos
romeiros é a vivacidade dos olhos esverdeados do Padrinho, de cuja mão direita – a do
cajado – pende uma penca de fitinhas multicoloridas”346. Salatiel lembra ainda que é esse
o espaço em que se queimam as velas, proibidas de arderem dentro da igreja. Quem vê
de fora, portanto, observa que a estátua parece mais enfeitada e florida que o próprio
túmulo, frequentemente nu ou coberto de objetos que são retirados imediatamente após
terem sido “abençoados”347.

344
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 18.
345
Op. cit., p. 91-92.
346
BARBOSA, Francisco Salatiel de Alencar. O Joaseiro celeste: Tempo e paisagem na devoção ao Padre
Cícero. São Paulo: Attar, 2007. p. 90.
347
Id., ibid.
169

A ideia de que o “povaréu de romeiros” estaria pronto para morrer por causa
do escultor pode parecer, contudo, um tanto exagerada. Leva a crer que Padre Cícero
perde por um momento o protagonismo na história, sendo substituído por Odísio, que
afirmou em outra passagem:

Eu; sem querer, tornei-me aqui um homem popular e de muito respeito, sendo
cumprimentado na rua com toda deferência e até muitos vem por me beijar a
mão e tomar a bençam; aparecem bastantes para que eu lhe de remédios para
os seus males, e a minha resposta de não ser medico ficam tristes e dizem que
eu não faço caso porque são pobres porque é impossível que um homem que
faz meu padrinho sem tel-o visto, com tanta = decência = não saiba dar remédio
[...].348

Odísio, de certa forma, integrou-se à vida da elite juazeirense. Era respeitado


e adquiriu alguma fama. A população, carente de cuidados médicos, chegou a procurá-lo
acreditando que estava apto a prescrever medicamentos. Essa situação era comum no
sertão, e os habitantes locais frequentemente imaginavam que todo homem letrado era
doutor, podendo, desse modo, socorrer os doentes349. De acordo com Odísio, esse voto
de confiança lhe era depositado graças ao seu talento artístico. Saber “fazer o padrinho”
era algo reservado a poucos. O escultor italiano, portanto, tirava certos proveitos de sua
fama e de seu dom.
A fama é diferente da pietas. Enquanto a primeira se ergue como
autoeternização e autoencenação, a piedade envolve a verdadeira recordação. Por isso
Odísio foi, aos poucos, esquecido pela população de Juazeiro, embora em certo momento
houvesse, segundo o escultor, gente disposta a dar a própria vida para defendê-lo. Hoje,
ninguém busca o túmulo de Odísio para fazer romarias. O Padrinho, por outro lado,
continua a abençoar seus devotos diariamente, através de seu corpo sepultado, de suas
imagens esculpidas, ou de sua alma eternizada nos céus.
Odísio, ao construir um meio de recordação — ou dois, se considerarmos a
estátua do padrinho e o caderno de memórias —,vê-se com uma estatura semelhante à do
herói recordado. O escultor, por outro lado, tornou-se famoso em Juazeiro justamente por

348
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 90-91.
349
Para maiores informações sobre História da Saúde e da Doença no Cariri, Cf. ALEXANDRE, Jucieldo
Ferreira. Quando o “Anjo do Extermínio” se aproxima de nós: Representações sobre o cólera no
Semanário cratense o Araripe (1855-1864). 2010. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2010.
170

saber “fazer” o Padrinho quase vivo. Sua fama não foi construída individualmente, mas
alicerçada na figura de um homem santo.

5.2 Entre a memória e a recordação: a escrita de Odísio

Segundo Blanchot, “[...] o interesse do diário é sua insignificância” 350 . O


diarista costuma escrever com certa regularidade, mesmo quando coisas aparentemente
pouco significativas ocorrem. Seu objetivo é salvar os dias, pouco importando o conteúdo
dos acontecimentos. O caderno de Odísio se diferencia dos diários na medida em que
tenta registrar somente eventos considerados relevantes para a tarefa de oferecer um
panorama da cidade de Juazeiro. Existe, no entanto, um forte aspecto de diário nesse
suporte: a datação que ocorre esporadicamente.
O presente tópico pretende discorrer sobre eventos vividos por Odísio e
escritos no “quente das horas” em seu caderno de memórias. Tais trechos do caderno
configuram o que mais se assemelha à experiência de um diário. Dentre esses eventos,
destaca-se um que teve ampla repercussão nos jornais estaduais, regionais e nacionais: a
visita do deputado Antônio Xavier de Oliveira a Juazeiro, que surtiu grande revolta na
população local, gerando inclusive um intenso confronto no qual morreram alguns
devotos de Padre Cícero. Odísio testemunhou o acontecimento e o narrou:

A última explosão de fanatismo eu assisti em outubro de 1934, três meses


depois da morte do padre Cicero, poucos dias depois da nossa chegada. Já fazia
mais de um mês que um grupo de romeiros estava em polvorosa guardando
armados a matriz, dia e noite, sempre aumentando, brutalmente ameaçadores
a quem se encontrasse ao altar de Nssa Sra. Esta atitude dos romeiros foi por
ter mal interpretado um sermão do padre Esmeraldo 351, vigário já falecido, o
qual disse do púlpito que a época era triste, que não esmorecessem de rezar e
pedir a Nssa Sra das Dores, padroeira do Joaseiro, a fim que o comunismo não
vingasse, porque corriam o perigo de ver os lares destruídos, as imagens santas
derrubadas e as igrejas confiscadas, como aconteceu na Rússia comunista; os
romeiros ficaram de atalaia e, insuflados por alguns mais fanáticos e
turbulentos, começaram a vigiar por turno a matriz a fim que o tal homem
chamado = comuniz = (que diziam ser alto dois metros e meio) não viesse
derrubar a imagem de Nssa Sra da Dores que está num nicho sobre o altar mor,

350
BLANCHOT, Maurice. O Livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 273.
351
Monsenhor Pedro Esmeraldo da Silva foi o primeiro vigário da Paróquia de Nossa Senhora das Dores.
Era cratense e fundou também o Colégio São José. Veio a óbito em outubro de 1934, enquanto celebrava
uma missa. Padre Esmeraldo foi fiel à Igreja até o último momento, combatendo, sempre que possível,
o culto ao Padre Cícero. Não obstante, foi também o responsável por confessar o Padrinho momentos
antes de sua morte.
171

sempre de sentinela em roda da igreja e do altar, impedindo a livre entrada aos


fiéis, podendo só o vigário funcionar quando eles queriam. 352

O jornal carioca Diário de Notícias publicou, em 6 de novembro de 1934, um


artigo sobre a passagem do deputado Xavier de Oliveira pelo Juazeiro, quando teria se
espalhado o boato de que ele seria o “comuniz” encarregado de roubar os restos mortais
de Padre Cícero e a imagem de Nossa Senhora das Dores. Os devotos se uniram para
impedir tal acontecimento, promovendo um conflito que levou a diversas mortes dentro
da Igreja da Matriz:

Houve o diabo em Joazeiro do Ceará, o reducto fanático do padre Cicero


Romão Baptista, redivivo ou ‘immorrível’. Meteram na cabeça do povo que os
comunistas iam roubar a padroeira dos Carirys e a ossada do padre, e essa
maldade bastou para amotinar a população da zona, contra a qual interviu
brutalmente a policia, travando-se conflito, de que resultaram mortes. Já houve
quem lembrasse o precedente de Canudos, que começou assim. Em vez de
soldados, mande o governo mestres, médicos, juízes, progresso para o
Joazeiro.353

Segundo o jornal, Padre Cícero, o “imorrível”, continuava vivo através de


seus devotos, que fariam o que fosse necessário para protegê-lo. Mas essa religiosidade
sui generis não deveria ser punida com a violência dos soldados. Somente o progresso,
representado pela educação, a justiça, a higiene e a saúde, seria capaz de libertar Juazeiro
do destino infeliz já experimentado por Canudos.
Antônio Xavier de Oliveira, professor de Clínica Psiquiátrica na Faculdade
de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, não era comunista, mas um árduo
defensor da Igreja Católica. Foi, inclusive, deputado federal pela Liga Eleitoral Católica
entre 1933 e 1937. Interessante é notar que seu pai havia intercedido anteriormente junto
ao clero do Crato para que, a pedido de Floro Bartolomeu, Padre Cícero pudesse continuar
a edificação da Capela do Socorro. A permissão foi concedida com a condição de que o
sacerdote não atuasse junto à construção354.

352
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 28-29.
353
PARA TODOS. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, p. 2 7 nov. 1934.
354
Floro Bartolomeu conta que, estando o Padre Cícero doente, uma senhora chamada Hermínia prometeu
a Nossa Senhora do Socorro que construiria uma capela junto ao cemitério caso o sacerdote recobrasse
a saúde. Tendo sua graça atendida, procurou o Dr. Floro com o objetivo de cumprir a promessa. O líder
político procurou Padre Cícero, que optou por não tomar a frente da construção em virtude da proibição
anterior de Dom Joaquim em relação à igreja dedicada ao culto do Sagrado Coração de Jesus no Horto.
Floro Bartolomeu explica que, não querendo tratar pessoalmente do assunto, falou com José Xavier de
172

O médico e deputado juazeirense contou, em entrevista concedida ao Diário


Carioca, que durante sua visita — em campanha política — ao Ceará, adversários teriam
espalhado boatos a seu respeito. Ele atribuiu ao deputado Fernandes Távora, ao prefeito
de Juazeiro do Norte, José Geraldo da Cruz, e a um jornalista e militante do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), Pedro Coutinho Filho, um plano que poderia arrancar-lhe a
vida no momento de sua passagem pela cidade:

O caso foi simples: partidários do deputado Fernandes Távora, guiados pelo


prefeito de Juazeiro, o sr. José Geraldo e, por um desclassificado [...] o sr.
Coutinho Filho, tramaram meu assassínio por ocasião de minha chegada
naquela cidade. O plano foi engenhoso e interessante. Esse desclassificado
(Pedro Coutinho), que se diz engenheiro sem ser engenheiro, e que se diz
professor do Collegio Pedro II, do Rio, sem o ser, tendo vindo antes de mim,
espalhou e fez espalhar entre os bons romeiros de Juazeiro que eu sou
comunista e que ia àquella cidade para realizar três cousas:
1ª – Substituir a estatua do padre Cicero pela de Christo-Rei ‘que é maçon’ –
acrescentava ele aos romeiros.
2ª – Roubar a imagem da Virgem das Dores de seu altar na matriz de que é
milagrosa padroeira.
3ª – Roubar os ossos do padre Cicero de sua sepultura.355

Xavier de Oliveira comentou no mesmo texto que já estava informado das


movimentações em sua cidade natal há algum tempo e tinha consciência de que sua
chegada traria conturbações. Recebeu conselhos e indicações de amigos, parentes e
correligionários, que pediam que se mantivesse distante de Juazeiro, mas resolveu
continuar em campanha, deslocando-se até o Cariri. Ao chegar no município, a confusão
efetivamente se instalou. O evento também foi noticiado pelo Diário de Notícias, que
afirmou:

[...] seus adversários espalharam em Joazeiro que sua ida àquella cidade tinha
três objetivos; 1º substituir a estatua do padre Cicero pela do Christo-Rei, que
é maçom, segundo eles; 2º, roubar a imagem da Virgem das Dores de sua igreja
e; 3º, arrancar de sua sepultura os ossos do padre Cícero. O resultado dessa
manobra eleitoral foi que quando o sr. Xavier de Oliveira chegou a Joazeiro,
cerca das 23 horas, duas mil pessoas estavam reunidas em torno da estatua do
padre Cicero, para impedir o sacrilégio.356

Oliveira, que “[...] entendeu-se com o vigário, que é o atual Bispo do Crato, e obteve a licença, sob a
única exigência do Padre Cicero não ter a menor interferência no trabalho”. COSTA, Floro Bartolomeu
da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza: Edições UFC, 2010 [1923]. p. 60-
61.
355
SENSACIONAES AVENTURAS de um candidato a deputado na Joazeiro do Padre Cicero. Diário
Carioca, Rio de Janeiro, p. 11, 24 out. 1934.
356
AS ARENGAS do Major Távora. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, p. 2, 23 out. 1934.
173

O periódico carioca concedeu uma informação delicada: a de que existiriam


milhares de devotos resguardando a escultura. De acordo com outros noticiários, o
número de fiéis não chegava a uma centena, e se concentravam na Matriz, não junto à
estátua do Padre Cícero. Durante esse evento, segundo o Jornal do Recife, o vigário, padre
Juvenal Colares, teria estimulado os devotos a abandonarem a igreja, mas “[...] os
fanáticos se opuseram, pelo que foi pedido o concurso da polícia, a qual também não
conseguiu afastal-os facilmente, travando-se seria lucta da qual resultou a morte de 9
fanáticos” 357 . Restaram ainda alguns feridos, inclusive o próprio vigário. Em suas
memórias, Odísio lembrou, inclusive, ter sido contratado pelos católicos da cidade para
construir uma imagem com o objetivo de expiar a mácula provocada pela morte de tantas
pessoas dentro de um templo sagrado. Atualmente, tal estátua, que representa Nossa
Senhora das Dores, permanece encimando a torre da matriz358. Conforme o testemunho
de Odísio,

A nada serviu as palavras e conselhos de paz do prefeito e das pessoas mais


conceituadas e as exortações do próprio vigário explicando no erro que eles
estavam; a barafunda continuou em procissões com cânticos dia e noite,
sermões feitos por eles, incitando a resistir, sempre armados, cismados que o
mesmo vigário fosse de acordo com o tal de = comuniz = para roubar a imagem
e leva-la ao Crato aonde seria destruída; já tinham várias vezes ameaçado o
padre de não se encostar ao altar, e em sabendo que o vigário estava
confessando, o arrancaram incontinenti da igreja; eu vi passar da porta da nossa
choça a força correndo e como já tinha algum conhecimento com o capitão o
qual me fora apresentado pelo prefeito, perguntei-lhe da porta o que havia de
novo, ao que ele respondeu correndo que iam para a matriz; como já estava
interessado com o que se passava vesti-me as pressas e fui para ver o que tinha
acontecido, quando, já perto da matriz, faltando uns cem metros, ouvi medonho
estrondo de tiros vindo de dentro da igreja, barulho e gritos, e logo depois gente
fugir a precipício e soldados de baioneta calada crescendo as portas [...].359

O trecho acima remete à experiência pessoal de Odísio, que viu os policiais


passarem correndo e perguntou o que ocorria, escutando o capitão informar para onde

357
QUANDO GUARDAVA o túmulo do Padre Cícero. Jornal do Recife, Recife, p. 1, 6 nov. 1934.
358
Odísio teria sido ainda responsável pela reforma da Matriz de Juazeiro. Conforme depoimento concedido
por Renato Dantas em abril de 2013 ao pesquisador Paulo Wendell Alves de Oliveira, “É [...] um grande
artista que morou no Juazeiro, um italiano, não é só porque ele é um italiano, mas é porque ele modificou
totalmente o pensamento das artes no Juazeiro, modificou, influenciou e foi influenciado [...]. Isso já
foi na modernidade da matriz de Juazeiro, porque hoje já é pós-modernidade, a matriz de Juazeiro está
pós-moderna, porque a modernidade foi feita em 1934, com a morte do Padre Cícero, com a intenção
de apagar a memória. Então este artista contribui muito para apagar essa memória e não apagou, pelo
contrário, houve a ressignificação pelo romeiro e a sacralidade permaneceu [...]”. OLIVEIRA, Paulo
Wendell Alves de. Memória da cidade: Transformações e permanências na produção espacial do
núcleo de formação histórico da cidade de Juazeiro do Norte. 2014. Dissertação (Mestrado) - Programa
de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2014. p. 197-198.
359
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 30-31.
174

estavam indo. Como um repórter que devesse observar as ações in loco, o escultor se
apressou com a intenção de verificar o que acontecia. A confusão que se desenrolou não
foi revelada inicialmente pelo olhar, mas pelo ouvido, que escutou tiros e gritos.
Posteriormente, o escultor avistou apenas os fugitivos do confronto, continuando sem
compreender o que houve. Assim, teve que recorrer à narrativa do capitão para descrever
a sequência dos eventos:

Chegada a força à matriz o capitão deu hordem de prisão aos romeiros que
dentro estavam, ao que, eles todos correram atrás da balaústra ao pé do altar,
trincheirando-se, o capitão, sempre intimando-os de se renderem mandou
avançar a força de baioneta calada, mas os romeiros em vez de se render
assaltaram os soldados derrubando um sargento a foiçadas e ferindo uma praça,
ao que o capitão se viu obrigado a ordenar a defesa da qual caíram mortos seis
romeiros e mais de vinte feridos, alguns gravemente a bala e pontaço de
baioneta. A luta passou dentro da capella mor e os mortos ficaram estendidos
ao pé do altar, os feridos leves fugiram pelo mato e os graves levados a
pharmacias para o tratamento, pois aqui não existem [h]ospitais. 360

Na ânsia de apresentar um panorama do acontecimento, Odísio mesclou o


próprio testemunho às informações colhidas de fontes oficiais, que possuíam interesses
muito bem demarcados. Desse modo, abdicou da narrativa pessoal, autoral, optando por
uma versão que repetia a explicação das autoridades policiais sobre o tema. O evento
presenciado pelo escritor aparece em seu caderno de memórias com uma interpretação
que não é de sua própria lavra e que contribui para a fixação da imagem de Juazeiro como
uma terra repleta de bandidos e fanáticos ignorantes, perigosos, selvagens e
incontroláveis.
Odísio deixou de ser testemunha e passou a repetir a variante do capitão,
afirmando que os romeiros iniciaram a batalha, “obrigando” o oficial a tomar medidas
mais rígidas. Após reproduzir o discurso sem apresentar dúvidas sobre o que havia
ocorrido no interior da capela, o escultor aproveitou o ensejo para informar que os feridos
não foram levados a hospitais porque tais estabelecimentos não existiam na cidade.
Seguindo ainda a narrativa do capitão, informou:

Parte foram presos e levados ao quartel aonde ficaram encarcerados,


confessando depois que já haviam feito o plano: no sábado da tragédia estava
marcado para expulsar o vigário e tomar conta da igreja, na quinta-feira assaltar
as casas comerciais e no sábado seguinte matar as filhas de Maria porque
estavam de acordo com o comuniz. Eu fiquei horrorizado quando entrando na

360
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 31.
175

igreja com o capitão logo depois do acontecido, vi o pavimento cheio de


sangue, os mortos estendidos e os feridos gemendo e berrando; porém logo
depois me convenci que estas scenas e factos em Joaseiro devem ser comuns,
porque a mesma noite numa casa perto da igreja, aonde ainda jaziam os
cadáveres, dançavam alegremente ao som de uma sanfona por uma festa de
aniversário.361

Em que situação tais confissões teriam acontecido (isto é, se de fato


aconteceram), é difícil saber. De todo modo, Odísio afirmou, sem contestar, a existência
de um plano macabro que teria sido admitido pelos detentos, incluindo assaltos e
assassinatos. O que o impressionou, no entanto, não foi o tal plano, mas a banalidade da
violência, já que não presenciou grande consternação na cidade diante da tragédia. Pelo
contrário: enquanto muitos jaziam mortos, alguns celebravam, desinibida e alegremente,
a vida.
Outra era, no entanto, a versão oficial do caso. Segundo nota publicada no
jornal católico O Nordeste em 5 de novembro de 1934, o vigário Juvenal Colares Maia
teria sido agredido por “fanáticos”. Após o incidente, a guarda municipal teria
comparecido à matriz com o objetivo estabelecer a ordem, mas foi atacada pelos devotos
de Padre Cícero e, posteriormente, sentiu-se “obrigada” a fazer uso das armas. A versão
oficial não menciona os nomes dos mortos, provavelmente devotos humildes de Padre
Cícero. Foram citados nominalmente somente o vigário, o prefeito e os membros da elite
civil e da força policial feridos durante o confronto. De acordo com a Nota Oficial da
Interventoria Federal no Estado do Ceará,

O Exmo. Sr. Cel. Interventor Federal recebeu, hontem, um telegrama do


Prefeito Municipal de Joazeiro, comunicando-lhe que, no dia 3, às 17 horas,
havia sido agredido, a cacetadas, por um grupo de cerca de 50 fanaticos, o
vigário da freguesia, padre Juvenal Collares Maia. Tendo a força comparecido
à matriz, onde ocorrera o incidente, afim de restabelecer a ordem, foi agredida
pelos fanáticos, sendo obrigada a fazer uso das armas. Do confflicto, em que a
polícia foi auxiliada espontaneamente por numerosos populares, resultaram
seis mortes e ferimentos em varias pessôas, entre ellas, o comerciante Antonio
Cruz, Capitão Firmino Araujo, Cicero Ferreira, 3º Sargento Raymundo
Marques e soldado Ananias Pereira. A ordem foi restabelecida, effectuando-se
15 prisões.362

É interessante notar que, dias antes, em 13 de outubro de 1934, o prefeito


municipal tinha desmentido, em telegrama ao interventor federal, os rumores de conflitos

361
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 32.
362
NOTA oficial. O Nordeste, Fortaleza, p. 1, 5 nov. 1934.
176

no Juazeiro, assegurando que ali reinava completa paz e afirmando serem inteiramente
infundados os “[...] boatos contrários exploradores intuitos facciosos. Inexistem intuitos
agressão deputado Xavier Oliveira, que transitou cidade destino Crato onde permanece
livre vontade” 363 . Assim, notava-se mais uma vez a tentativa de defender a ideia de
civilidade em Juazeiro, embora estivesse clara a fuga do político cearense à cidade ao
lado, onde efetivamente se encontraria a salvo dos devotos de Padre Cícero.
O jornal carioca A Noite publicou em 24 de outubro de 1934 um artigo de
autoria de Humberto de Campos intitulado “O culpado sou eu!”, no qual ele especulava
sobre a suposta fonte do boato que encurralou Xavier de Oliveira. Ao longo do texto,
Campos informava que o deputado era seu médico e amigo próximo e sabia que existiam
duas questões que o afligiam: a debilidade da própria saúde e um problema financeiro.
Humberto de Campos contou que havia comprado uma casa através de
procuração concedida a um amigo. Passou muito tempo, contudo, esperando receber o
imóvel. Procurando descobrir o motivo da demora, soube que a casa havia sido hipotecada
pelo procurador. Xavier de Oliveira conhecia toda a situação, inclusive porque o dito
procurador era seu parceiro de chapa nas eleições. O deputado afirmava querer ajudar
Humberto de Campos de alguma forma. A solução encontrada por Xavier de Oliveira
teria dado origem ao boato. Segue a explicação do escritor:

Xavier de Oliveira conhecia essa situação quando, há quatro ou cinco mezes,


foi informado de que o meu antigo procurador seria seu companheiro na chapa
como candidato da Liga Eleitoral Catholica a deputado federal pelo Ceará.
Tendo de seguir para aquele Estado, veio despedir-se de mim. Falei-lhe, ainda
uma vez, da minha casa e da minha saúde. Elle coçou a cabeça enorme, de
nordestino inteligente, e opinou:
‒ Homem, eu quero muito bem a você, e, por você, estou disposto a todos os
sacrificios. A sciencia tem feito o impossível para que você se restabeleça, ou
melhore, e inutilmente. Por que você não recorre a Nossa Senhora das Dôres,
de Joazeiro?
‒ Recorrer, como, Xavier? Eu não posso ir lá...
‒ Eu trago a santa aqui.
‒ Você?
‒ Eu, mesmo. É perigoso, vou por a minha vida em perigo, mas não relutarei.
Irei a Joazeiro, metterei a santa na mala, e, dentro de algumas semanas, você a
terá no Rio de Janeiro.
‒ Mas, depois, você leva... – aventurei.
‒ Ah, com certeza! E você pode estar certo que ficará bem.
Xavier estava sentado. Puz-me de pé e, comovido, ensopei a sua cabeça de
lagrimas [...]. E aventurei:
‒ Xavier, a Senhora das Dôres do Joazeiro não fará também o milagre de
obrigar aquelle nosso amigo a prestar-me contas da procuração que lhe passei?
Elle vae ser deputado, e deputado catholico... A Senhora das Dores não terá
influencia sobre ele?

363
NOTA oficial. O Nordeste, Fortaleza, p. 3, 13 out. 1934.
177

Xavier de Oliveira fez uma careta:


‒ Não, não acredito que tenha, não. Com aquelle, em matéria de negócios, não
há santo que possa.
De repente, acendeu os olhos miúdos. O rosto se iluminou:
‒ Mas, tenho uma idéa! Eu posso lhe arranjar uma relíquia capaz de obrigar
aquelle camarada a prestar contas a você!
‒ Uma relíquia, Xavier?
‒ Uma relíquia, sim! Os ossos da mão direita do padre Cicero!
‒ E você me arranja isso, Xavier? – gritei, chorando de novo, e beijando-o
outra vez.
‒ Trago. Você terá aqui os ossos da mão direita do padre Cicero juntamente
com a imagem da Senhora das Dores. [...]
E embarcou para o Ceará. Semanas depois, veio dali o telegrama insidioso,
dizendo que Xavier de Oliveira queria roubar o esqueleto do padre Cicero, por
inteiro, e mais a imagem da Senhora das Dores. Era, evidentemente, um
exagero, pois como se viu, ele pretendia trazer e levar outra vez a santa, e não
queria senão os ossos da mão direita do piedoso fundador de Joazeiro.364

A história, em seu absurdo, tem algum grau de verossimilhança, embora seja,


evidentemente, apenas um exercício de inventividade do escritor. De toda forma, o
ficcionista deixa evidente, em tom de gracejo, a possibilidade de interpretações extremas
— e consequências perigosas — sobre qualquer informação que envolvesse a figura do
Padrinho.
O Padrinho foi entrevistado em 1931, portanto poucos anos antes de sua
morte, por Paulo Sarasate, redator do jornal fortalezense O Povo. Durante a conferência,
o repórter fez diversas perguntas sobre aspectos políticos do país, concluindo com uma
questão sobre o comunismo, à qual Padre Cícero respondeu de maneira bastante
combativa. É possível que tais ideias anticomunistas tenham influenciado os devotos, que
pretenderam proteger a Igreja arriscando suas próprias vidas.

Para encerrar a palestra, que já se prolongava, interrogamos o thaumaturgo de


Joaseiro sobre o comunismo. E foi com extraordinária vontade de rir que lhe
escutamos a opinião:
‒ ‘O Comunismo’ ‒ afirmou empaticamente o Padre Cicero – foi fundado pelo
demônio. Lucifer é o seu chefe e a disseminação de sua doutrina é a guerra do
diabo contra Deus. Conheço o comunismo e sei que é diabólico. É a
continuação da guerra dos anjos maus contra o Creador e seus filhos.
Tomou alento e prosseguiu mais pathetico:
‒ ‘Conheço a Russia desde a minha meninice e sei que ella é um campo imenso
de assassinatos, cometidos por governos que querem destruir moral e
materialmente a nação. Lenine foi um sargento do exercito e nada mais. Era,
além disso, um judeu pelo espirito e pelo sangue. Só os seus discípulos
consideram-no um grande homem. Os espíritos sensatos não pensam desse
modo. O partido de Lenine é o partido do Anti-Christo, dito e anunciado por
S.João, no Apocalypse. E chegará a governar o mundo, quando faltarem três
anos para o incêndio final, porque tudo isso está escripto nos livros santos’...365

364
O CULPADO sou eu. A Noite, Rio de Janeiro, p. 2, 27 out. 1934.
365
SARASATE, Paulo. Na Casa do Padre Cícero. O Povo, Fortaleza, p. 5, 18 fev. 1931.
178

Desse modo, é possível notar que o ódio (ou o temor) da implementação de


um suposto regime comunista no país não havia brotado naturalmente nos devotos do
Padrinho, mas era fruto de longos e intensos discursos proferidos entre religiosos,
políticos e a imprensa católica com o objetivo de minimizar a influência dessa postura
política no Nordeste e no Brasil, tendo sido absorvido pelos afilhados de Padre Cícero
durante as homilias do próprio sacerdote.
O memorialista Geraldo Menezes de Barbosa possui uma versão reveladora
dos mesmos acontecimentos, que ele chama de “Tragédia dos Caceteiros”366. Segundo o
professor juazeirense, o evento se deu somente em consequência de um sermão de Padre
Esmeraldo. A visita de Xavier de Oliveira não chega a ser mencionada em seu relato. De
acordo com o cronista,

O vigário, Mons. Pedro Esmeraldo, ocupava o sermão da missa para transmitir


aos fieis o horror da intentona comunista rebentada no País, onde foram
assassinados soldados inocentes que dormiam nos quarteis do Exército e do
banho de sangue que os insurretos prometiam continuar, atacando as igrejas,
eliminando padres e freiras com a implantação do regime escravo. Na sua
justificada angústia, o celebrante alertava o povo católico a preparar-se para o
pior, antevendo a possibilidade dos comunistas entrarem em Juazeiro. E
proclamou em alto brado:
‒ É chegada a hora. Os inimigos da Igreja já se aproximam. Agora é que eu
quero ver se existe romeiro com coragem de dar seu sangue em defesa da Santa
Madre Igreja.
Ao fim da frase o Padre levou a mão à cabeça como se tivesse explodido algo
no seu cérebro e caiu ao pé do altar. O povo acorreu apenas para escutar-lhe os
últimos suspiros. Morreu celebrando.367

Barbosa afirma que o evento funesto deu força ao sermão, tendo sido
amplamente comentado entre os romeiros. Além disso, a morte do padre, no altar, passou
a ser vista como uma ação divina. Assim, pela periferia de Juazeiro começou a surgir o
rumor de que os comunistas retirariam a imagem de Nossa Senhora das Dores da Matriz
e a substituiriam por um rei pagão da besta-fera. O memorialista afirma que, por esse
motivo, os devotos foram, aos poucos, reunindo-se no interior da igreja, munidos de

366
A memorialista Amália Xavier afirma que tais homens receberam a alcunha de “Cerca-Igrejas”, e
defende que o estopim para o movimento foi uma ordem do Padre Pedro Esmeraldo para que fosse
derrubada uma das torres da Igreja, que se encontrava deteriorada pelo tempo. Cf. OLIVEIRA, Amália
Xavier de. O Padre Cícero que eu conheci. Rio de Janeiro: [s/n], 1969. p. 266.
367
A incongruência nesse relato é o fato de a Intentona ter ocorrido somente em 1935. A morte do
Monsenhor Pedro Esmeraldo e o evento narrado por Odísio se deram, por outro lado, em 1934. De toda
forma, o teor de anticomunismo da derradeira homilia do padre Esmeraldo é, mais uma vez, assinalado.
BARBOSA, Geraldo Menezes. História do Padre Cícero ao alcance de todos. Juazeiro do Norte:
Edições I.C.V.C., 1992. p. 127.
179

armas brancas como foices, cacetes e punhais. Alojaram-se no local e passaram a cozinhar
e dormir ali mesmo. O padre Juvenal Colares, substituto do vigário falecido, e o prefeito
Geraldo da Cruz começaram a temer o pior. Foi aí que chamaram a polícia e se deu a
tragédia.
É preciso considerar que Barbosa situa o evento em novembro de 1935, ano
da Intentona Comunista, contradizendo os jornais e a versão de Odísio, que narram o
evento em outubro de 1934. O anacronismo, contudo, não invalida a versão do escritor
juazeirense, que é relevante por afirmar a importância do discurso de padre Esmeraldo e
dos temas anticomunistas no período.
Em outubro de 1934, portanto, o sacerdote continuava muito presente entre
seus fiéis. E, em certa medida, aqueles que se preocupavam com a força da ausência de
Padre Cícero estavam certos: as muitas interpretações sobre a palavra do Padrinho tinham
a capacidade de gerar graves conflitos — a exemplo do que envolveu o deputado Xavier
de Oliveira.
Aleida Assmann defende que a memória pode ser armazenada, mas somente
a recordação é ativada de maneira espontânea. Odísio, em seu Memórias de Juazeiro do
Padre Cícero, tenta acionar recordações com o objetivo de apresentar as especificidades
da cidade no período posterior à morte do Padrinho. Um evento vivido e registrado pelo
artista italiano foi a visita às ruínas do templo que Padre Cícero planejara construir no
Horto. O escultor considerou relevante descrever a localidade:

Ao norte de Juazeiro, longe três quilômetros da cidade existe uma pequena


serra sobre a qual, no ponto mais culminante, o padre iniciou a vasta construção
de um templo, ao qual baptizou de ‘Horto’; ainda existem os paredões,
colossais, largos metro e meio, levantados até poucos metros da terra; esta obra
devia coroar a missão de templário do padre Cícero, mas infelizmente não pode
ter fim. Domingo passado fui visitar este lugar de onde se descortina magnifica
vista de todo o Cariri.368

Com efeito, a construção do santuário voltado à devoção do Sagrado Coração


de Jesus foi interrompida em 1896 pelo bispo diocesano, que acreditava estar sendo
erigido ali mais um elemento de fomento ao fanatismo. O sonho acalentado por Padre
Cícero desde 1889 — período de grande seca no Nordeste — foi, como de costume,
cerceado pela Igreja Católica. Segundo Floro Bartolomeu, a ideia da construção surgiu

368
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 112.
180

quando os padres Felix de Moura, Alexandrino de Alencar e Cícero Romão Batista


vislumbraram a seca que se aproximava do Cariri. Era o mês de março, e nenhuma gota
d’água havia caído no sertão. Assim, prometeram construir uma igreja na Colina do Horto
caso houvesse bom inverno. Logo depois, miraculosamente, a chuva caiu. Padre Cícero
precisava cumprir a promessa e, após obter a doação de um terreno, buscou a
concordância do bispo Joaquim Vieira para iniciar a construção de uma capela no alto da
serra dedicada ao Coração de Jesus369. Conforme a narrativa de Floro Bartolomeu,

A capella do Coração de Jesus, na serra do Horto, que seria um dos mais belos
templos do paiz, não conseguiu ser concluída, ficando interrompido o serviço
nas proximidades da cobertura, porque, em portaria terminante, o bispo, D.
Joaquim Vieira, prohibio, alegando ser aquella obra o meio mais seguro de
propagar o fanatismo.370

Conforme é possível notar na narrativa de Odísio, o fato de os paredões


“ainda” existirem ao final de 1934 era curioso e digno de menção, mas deixava entrever
a possibilidade de um dia “não-mais” permanecerem de pé. De fato, em 1944, as ruínas
daquele sonho seriam também destruídas. A mudança nessa situação temporal era
prevista por Odísio, e ocorreu num curto espaço de tempo. Ali, uma história foi
interrompida. Uma história que se materializava em ruínas. As paredes da igreja eram
vestígios; representavam sobras do que deixou de existir. Para que aquela história fosse
definitivamente esquecida, os paredões abandonados também foram destruídos.
As dificuldades que envolveram todo o processo de construção da Igreja do
Horto continuam constituindo, até os dias atuais, eventos que ferem a sensibilidade dos
devotos. Em seu testamento, Padre Cícero suplicou “[...] aos mesmos Padres Salesianos
que terminem a construção da Capela do Horto” 371 . Com a chegada da Congregação
Salesiana na região372, o sonho voltou a parecer viável. Mas os Salesianos viram como

369
Dom José Joaquim Vieira foi o segundo Bispo do Ceará. Desde 1884, momento de sua posse, mostrou
ser um importante representante do processo de romanização promovido pela Igreja Católica. Conforme
lembra Renata Marinho Paz, “[...] a atuação da Igreja romanizada no sentido de restaurar o prestígio do
aparelho eclesiástico, de diminuir a distância entre este e os fiéis fundava-se no princípio de que o
catolicismo popular é uma fonte de fanatismo, desviante da verdadeira religião, algo a ser rejeitado e
combatido”. PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja Católica e as romarias de
Juazeiro do Norte. Fortaleza: IMEPH, 2011, p. 70.
370
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923], p. 57.
371
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O Santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946,
p. 222.
372
A Congregação Salesiana chegou em Juazeiro do Norte somente no ano de 1939. Como herdeira da
maior parte dos bens de Padre Cícero, ela deveria guardar o compromisso com a construção de um
colégio para as crianças pobres e com a continuação da obra da Igreja do Horto.
181

solução (ou prioridade) a instalação de sua própria igreja, em frente ao Colégio Salesiano,
que também fora construído mediante exigência de Padre Cícero em seu testamento.
O Santuário do Sagrado Coração de Jesus, conhecido pelos juazeirenses e
devotos como “Igreja dos Salesianos”, é um templo que não possui conotação afetiva para
os romeiros. Muitos deles, inclusive, preferem ignorá-lo quando estão em Juazeiro.
Apesar disso, o frontispício do edifício ostenta uma placa com o dístico “Padre Cícero
Romão Batista, os Salesianos atenderam ao seu pedido. Tenha sua alma tranquila no céu”,
e há quem costume chamá-lo de “Santuário da Promessa”, em alusão à demanda de Padre
Cícero.
No interior da igreja, uma bela imagem do Senhor Morto repousa dentro de
um mostruário de vidro, sobre um suporte de madeira com as seguintes palavras: “Deixo
para os padres salesianos a imagem em vulto grande do Senhor Morto que me veio de
Lisboa.’ Test. do Padre Cícero”. Todas as afirmações fazem crer que os herdeiros teriam
realizado o desejo do sacerdote. Os fiéis, contudo, não concordam, e lembram que o
Padrinho solicitara, na verdade, a construção do grande templo em outro espaço e com
outra fisionomia. Seu testamento pedia que o Sagrado Coração de Jesus fosse cultuado
no Horto, numa igreja construída conforme planta e maquete preexistentes.
Os salesianos ergueram na Colina do Horto, muitos anos depois, uma igreja
que em nada se parece com a planta original importada de Roma pelo Padrinho. A
construção original, de caráter quase medieval, transformou-se num edifício moderno que
se distancia bastante da estética sertaneja. Odísio apresentou em suas memórias uma
explicação peculiar sobre a decisão da Igreja de proibir a continuidade da primeira
construção:

Trabalhava nas obras da igreja um mestre de pedreiro já entrado em anos, o


qual um bello dia ficou convencido de ele ser o profeta Elias. Este coitado era
sifilítico; sua bossa mística talvez tivesse uma origem microorganica. Há gente
impulsionada pelas spirochetas, como há talentos sublimes e assassinos
sadistas resultados mórbidos do traponema. O tal pedreiro, alias profeta Elias,
logo teve adeptos ao seu novo credo espiritual, o qual devia, no dizer dele,
acabar com a religião catholica que era uma porcaria podre e safada, e voltar a
fé primitiva dos antigos patriarcas e profetas.373

O psiquiatra e político Xavier de Oliveira explicava a fé juazeirense através


do conceito de misticopatia. Odísio, por sua vez, apegava-se à possibilidade de que

373
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 113.
182

crenças peculiares surgissem de maneira secundária, derivando de doenças fisiológicas.


Após uma exposição fortemente cerebral, supostamente elevada e marcadamente
moderna, que procurava racionalizar e elucidar por meio da ciência quaisquer práticas ou
comportamentos considerados desviantes, Odísio descreveu o estranho fenômeno. Na
versão do escritor italiano, o tal mestre de obras, portador de sífilis, provavelmente teria
desenvolvido um misticismo proveniente de certo desequilíbrio físico e/ou microrgânico.
A partir de sua doença, teria inventado uma seita que chegou a contar com dezenas de
seguidores.
De acordo com Odísio, o grupo de adeptos se organizou elegendo diáconos,
sacerdotes e mesmo santos. Segundo seu relato, os santos foram criados “não de gesso
como em qualquer igreja católica, mas sim de carne e osso”374:

São José foi encarnado num velho servente, e Nossa Senhora numa mulata
beiçuda e nadeguda com mammas de vacca; os santos e apóstolos foram
facilmente arrumados e a corte celestial estava ao completo para poder, aos
domingos, todos trajados com trapos multicolores [...] pontificar solenemente.
O menino Jesus, negro como um tição, no meio, deitado sobre palha com o boi
sagrado ao lado, toda a corte celestial, fedorenta e catinguda, em roda, e o
profeta Elias, vestido com um camisolão branco sobre um amontoado de pedra
feito de nuvens.375

A descrição se desenvolve como se Odísio tivesse conhecido o próprio beato


e sua corte. Há detalhes físicos sobre Nossa Senhora (“mulata beiçuda e nadeguda”) que
denotam forte teor de discriminação racial. É certo que Floro Bartolomeu espalhara, num
tempo mais remoto, histórias semelhantes na cidade, com o objetivo de justificar a
destruição de qualquer grupo heterodoxo. Não fica explícita, no entanto, a fonte de onde
o escultor retirou qualitativos tão violentos. Ao descrever o menino Jesus “negro como
um tição”, mais um elemento de racismo se impõe, demonstrando que o problema com
tais homens e mulheres não era referente apenas à possível quebra do dogma católico,
mas também à cor da pele dos praticantes desse suposto credo. O comentário é finalizado
com a descrição da corte celestial como “fedorenta e catinguda”. Os predicados
agressivos poderiam indicar que Odísio testemunhou tal agrupamento de pessoas, o que
se revela não ser verdade. Desse modo, mais uma vez, descreve algo que viu — as ruínas
da Igreja — a partir de uma narrativa que escutou e que optou por tomar como sua.

374
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 114.
375
Op. cit., p. 115.
183

O escultor e memorialista afirmou ainda que tais seguidores subvertiam a


moral, transformando o concubinato em ordem do dia. De acordo com Odísio, a diocese,
ao tomar conhecimento do fato, resolveu interditar a obra da igreja com o objetivo de
dissolver o grupo. Segundo sua narrativa, porém, as pessoas permaneceram no local e se
apossaram do templo inconcluso. Assim, o bispo, Dom Quintino, teria solicitado o auxílio
de Floro Bartolomeu para reestabelecer a ordem. A versão de Odísio defende que o líder
político juazeirense subiu ao Horto acompanhado de homens armados. Durante a
perseguição, “[...] o menino Jesus apanhou uma sova valente, Nossa Senhora e São José
conseguiram fugir (talvez não ao Egipto)” 376. Conforme Odísio, o beato Elias teria lutado
até a morte. Alguns discípulos escaparam, outros foram presos.
É importante observar que Xavier de Oliveira estudou, em seu Espiritismo e
Loucura, a figura do beato Elias, afirmando ser ele um misticopata. Sua tese era a de que
a misticopatia não possuía relação alguma com a miscigenação. Desse modo, subvertia a
perspectiva de Nina Rodrigues377 acerca da relação entre as diversas doenças mentais e a
mistura de etnias. Além disso, lançava um novo olhar sobre Antônio Conselheiro e a
influência do “caldeamento racial” sobre doenças psiquiátricas. Estudando um homem
branco, italiano, portador da mesma (presumida) enfermidade, distanciava-se de
explicações eugênicas e aproximava-se de discussões sociológicas. Sua contribuição
nesse sentido foi importante, embora tenha disseminado os peculiares rumores sobre o
beato Elias.
Na década de 1940, as ruínas da Capela do Sagrado Coração de Jesus que
ainda permaneciam de pé no Horto foram destruídas. Quando a centenária Timbaúba de
Padre Cícero (ou “Pé de Tambor”378) foi retirada para que a Colina recebesse uma antena

376
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006, p. 116.
377
Nina Rodrigues realizou a craniometria de Antônio Conselheiro em 1939, afirmando ser possível
perceber na análise do crânio de Conselheiro sua condição de mestiço. Sua pesquisa chegou à seguinte
conclusão: “Pelo próprio estágio evolutivo em que se encontravam, os jagunços eram, religiosamente
falando-se, politeístas. Tais especificidades caracterizavam a crise social e religiosa que atravessavam.
Em ambiente propício, surgiu a loucura de Antônio Conselheiro, decorrente de uma predisposição
hereditária, pois descendia de uma família com recursos, porém belicosa. Sua loucura provocou a
contaminação das massas, geradora de condições para a emergência das qualidades atávicas dos
jagunços, ou seja, o espaço para a satisfação dos instintos guerreiros”. Cf. CHAVES, Evenice Santos.
Nina Rodrigues: sua interpretação do evolucionismo social e da psicologia das massas nos primórdios
da psicologia social brasileira. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n. 2, p. 35.
378
O Pé de Tambor era uma frondosa árvore localizada no Horto, nas proximidades do Cruzeiro e da antiga
capelinha. A tradição oral conta que a árvore foi destruída para dar origem a uma torre de televisão.
Diante da revolta da população, que considerava o pé-de-tambor sagrado por ser o local de repouso e
meditação de Padre Cícero, teria surgido a ideia de construir o grande monumento que atualmente se
encontra no alto da Colina do Horto. Cf. ARAGÃO, Raimundo Freitas. Um estudo geográfico sobre
geopolítica da visibilidade, marcação espacial, conflitos e tensões do patrimônio religioso urbano
184

de televisão, na década de 1960, a capelinha do Beato Elias também foi aniquilada. A


versão de Floro Bartolomeu sobre o grupo do beato Elias conta somente que

[...] na ladeira do Hôrto se deu um conflito entre um doido e alguns indivíduos


conhecidos por ‘Penitentes’ e o inspetor policial do quarteirão. Havendo
ferimentos, foram presos os implicados por crime de natureza leve. De acordo
com o padre Cicero, procurei, por meios brandos, conseguir acabar com a
pratica dos actos dos ‘Penitentes’ [...]. Eles me informaram que, às vezes,
praticavam aquelle ritual pelo habito de suas terras, com o consentimento dos
vigários e na intenção de sufragarem as almas do Purgatorio, o que realmente
não me era estranho.379

O beato Elias Gilli possuía origem italiana. Segundo os rumores populares,


atuou no Nordeste por muito tempo como pistoleiro. Antes de ser beato, era conhecido
pela alcunha de “Mané Tiro Certo”. Costumava acompanhar, no entanto, as pregações de
Frei Damião. Diz-se que se tornou beato após um momento crucial de sua vida, quando
flagrou a traição de sua esposa com seu chefe em sua própria casa. Depois de atravessar
dias vagando sem rumo, passou a aderir a um discurso místico. O homem que tomou sua
esposa, contudo, alimentava grande temor de uma possível vingança. Assim, ordenou a
morte de “Mané Tiro Certo” que, com efeito, morreu com um tiro nas costas. O caixão
foi encomendado e o pistoleiro foi enterrado numa cova rasa. Segundo a tradição popular,
ele teria ressuscitado poucos dias depois, tendo sido visto pulando o muro do cemitério
vestido num estranho camisolão. A partir desse retorno à vida, tornou-se beato e começou
a pregar. Não teve dificuldades em encontrar discípulos. Diz-se que ele era muito amado
entre os devotos de Padre Cícero, e se tornou o responsável pelos cuidados da capela
erguida junto ao casarão do Padrinho localizado no Horto. Xavier de Oliveira o descreveu
como

[...] o typo mais perfeito de fanático que conheço. Nem lhe falta o acidente
sexual [...], tendo abandonado a esposa, em Napoles, para, agora, velho já de
70 anos, prevaricar contra uma virgem em Juazeiro, o que deu motivo ao Pe.
Cicero tirar-lhe a batina de beato e tomar-lhe as chaves da sua egrejinha do
Horto, que lhe tinham sido confiadas havia tantos anos. 380

estátua de Padre Cícero na cidade de Juazeiro do Norte – Ceará – Brasil. Élisée, Rev. Geo. UEG –
Anápolis, v. 4, n. 2, p. 34-58, jul./dez. 2015.
379
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 98-99.
380
OLIVEIRA, Xavier de. Beatos e cangaceiros. História Real, observação pessoal e impressão
psychologica de alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. Rio de Janeiro: s.n., 1920. p. 49.
185

A versão da escritora juazeirense Amália Xavier — neta de Xavier de


Oliveira — situa no início da década de 1920 os eventos narrados por Odísio. Ao elaborar
uma hierarquia de beatos, estabelecendo a superioridade daqueles que se dedicavam a
atividades agrícolas, ela critica os penitentes que não trabalhavam, sustentando-se apenas
de esmolas e ficando entregues à “ociosidade”:

Lá pelos anos de 1920 e 1921, reuniu-se um grupo destes ociosos, bastante


numeroso, instalando-se numa grota no Caminho do Horto, perto de uma Cruz,
colocada numa pedra sobre uma ligeira elevação de terreno que chamavam
‘Monte Sinai’. Logo deram a este grupo de falsos penitentes, o nome de ‘Corte
Celeste’ porque eram conhecidos pelos nomes de Santos como: São José, São
João, Santa Filomena, etc. etc. foi esta Corte Celeste que o Dr. Floro mandou
dissolver pela polícia comandada pelo delegado especial, Manoel Temóteo. Os
santos reagiram contra o delegado e a polícia atirando pedras e manejando o
pau, causando alguns ferimentos leves. Foi necessário um aumento de soldados
para prender os componentes da Corte, que tiveram raspadas as cabeças e as
barbas; as vestes e as cruzes foram queimadas e os ‘Santos’ presos por algum
tempo. Depois foram dispensados com a promessa de não mais se reunirem
nas grotas, sob pena de sofrerem castigos mais rigorosos. Alguns voltaram as
suas terras e outros entregaram-se aos trabalhos; corrigida a ociosidade, acabou
o vício.381

As narrativas de Xavier de Oliveira e de memorialistas locais carecem de


verossimilhança e coerência. São muitos os rumores em torno da figura do beato Elias.
Segundo Lourenço Filho, ele era um penitente que arregimentava grande quantidade de
homens caracterizados por compridas barbas e longas túnicas. Seus seguidores viviam
longe dos povoados e costumavam se reunir junto aos cemitérios e cruzes para rezar pela
alma dos defuntos. As orações eram “[...] intercaladas com atos de ‘disciplina’, isto é, de
castigos físicos produzidos por chicote e cilício”382. Como é sabido, o hábito da penitência
era visto com maus olhos na região do Cariri383. Talvez esse tenha sido o motivo maior
da perseguição ao beato.
A versão contada por Odísio remete ainda à história do Boi Mansinho,
geralmente associada ao sítio Baixa Danta, administrado pelo beato José Lourenço. O
escultor afirma que o boi, morto no matadouro público da cidade, era considerado sagrado
pela população local, que guardou suas relíquias e se recusou a comer outros animais
mortos no mesmo lugar. Assim, a compra de carne caiu drasticamente e foi necessário

381
OLIVEIRA, Amália Xavier de. O Padre Cícero que eu conheci - Verdadeira história de Juazeiro.
Fortaleza: Premius, 2001 [1969]. p. 268.
382
LOURENÇO FILHO, M. B. Juazeiro do Padre Cícero. São Paulo: Melhoramentos, [1926]. p. 172.
383
Para maiores informações, cf. BEZERRA, Cícera Patrícia Alcântara. Outras histórias: Memórias e
narrativas da Irmandade da Cruz Barbalha/CE. 2010. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.
186

construir um novo matadouro no prédio de propriedade da Beata Mocinha. Odísio termina


sua narração afirmando:

Sabedor de toda esta istoria, contemplando os paredões mofados da igreja que


não pôde ser, fiquei sismando: Não é só em Roma que as pedras das antigas
Ruínas falam a istória; também em Joaseiro, na igreja do Horto, as paredes
abandonadas e as casinhas humildes contam a sua tragédia.384

Odísio faz uso da cultura material — e de uma modalidade de patrimônio


ainda pouco discutida nos dias atuais, as ruínas — como fonte para elaborar uma narrativa
a respeito de Juazeiro. É relevante destacar que o escultor chega a comparar Juazeiro a
Roma: ambas são cidades santas, cujos antigos destroços, grandiosos ou humildes,
contam uma história.
De acordo com a versão oficial dessa mesma história, o bispo Dom Joaquim
José Vieira teria informado ao Padre Antônio Alexandrino de Alencar, em 1896, que o
Padre Cícero continuava a estimular a crença nos milagres de Maria de Araújo, recebendo
inclusive dinheiro de fiéis ingênuos. A punição para essa teimosia seria o impedimento
de celebrar missas no bispado e a proibição de continuidade da construção:

Outrossim: constando-nos que o mesmo Sacerdote está construindo uma Igreja


ou Capella nas imediações de Joazeiro, sem previa autorização nossa in scriptis
e sem as condições exigidas pelo Direito Canonico, haja V. Rma., de declarar-
lhe que nós não consentimos na continuação dessa obra irregularmente
iniciada, como não consentimos que o mesmo Rdo. faça reunião na Capella do
Joazeiro sob qualquer pretexto que seja; pois que seus actos e palavras
revestem-se sempre do espírito de revolta contra os ensinamentos da Santa
Egreja [...].385

Dessa forma, a proibição surgia como mais um elemento entre as punições ao


Padre Cícero, não mencionando nenhuma das informações concedidas por Odísio acerca
dos estranhos cultos supostamente conduzidos pelo beato Elias. Foi justamente esse
conjunto de punições que levou Padre Cícero a apresentar sua versão dos fatos em Roma.
Em 8 de julho de 1903, Padre Cícero pediu que o Padre Quintino intercedesse
pela causa da construção da Igreja, alegando já ter sido dispendida uma grande soma de
dinheiro. Para evitar o desperdício, o Padrinho chegou a introduzir a possibilidade de que
o edifício fosse destinado a outro fim, como uma casa para doentes. Em resposta, o bispo

384
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006. p. 117.
385
CASIMIRO, Antonio Renato Soares de (Org). Padre Cícero Romão Baptista e os fatos do Joazeiro
– A Questão Religiosa. Fortaleza: Editora Senac Ceará, 2012. p. 713.
187

afirmou que não poderia permitir, porque a continuidade da construção “[...] daria azo à
continuação das tropelias e torpezas dos taes irmãos da Crus, cujas façanhas e escândalos
não lhe são desconhecidos”.386
A passagem acima destacada substitui as Cortes Celestiais mencionadas por
Odísio e identifica os crentes do Horto como Irmãos da Cruz. Somente uma carta do Padre
Quintino a Dom Joaquim esclarece quais seriam as tais “tropelias e torpezas” praticadas
por esse grupo, afirmando que o oratório da serra havia se transformado num Santuário
dedicado ao “Bom Jesus do Horto” e que

[...] o italiano Elias, que conservando ali num casebre, à guisa de oratório, um
quadro do Coração de Jesus e outros, explora largamente, à vista do Padre
Cícero, a crendice de muita gente, que não obstante as instrucções do Parocho
da freguesia, lá se vão cumprir votos [...]. Consta que será transportada para ali
a imagem do Sagrado Coração, vinda de Roma, e que a despeito da proibição
de V. Exc.ª. é exposta à veneração de quem quer; ou uma outra do Senhor
Morto, mandada vir da Europa, e benzida não sei por quem. 387

De acordo com numerosos periódicos da época, o beato Elias e os


membros dos Irmãos da Cruz eram basicamente penitentes que acreditavam na salvação
pela prática da autoflagelação. O hábito era malvisto pela Igreja, que, como se sabe,
passava à época por um processo de disciplinarização do clero e dos fiéis388. Assim sendo,
a versão oficial dos fatos ocorridos no Horto ficava num meio-termo entre a versão de
Odísio e a variante que compreende a paralisação da construção como mais um elemento
na suspensão das ordens do Padre Cícero. Embora os beatos não fossem necessariamente
protagonistas dos desregramentos descritos pelo escultor, foram responsáveis por práticas
de cunho popular já bastante criticadas pelo clero. Além disso, o beato Elias se
transformou num concorrente do pároco (única autoridade eclesiástica efetivamente
reconhecida pela Igreja Católica), na medida em que muitos devotos procuravam sua
igrejinha para os votos.
As ruínas da igreja do Horto e a persistência de cultos ali realizados mesmo
após a morte de Padre Cícero levam a crer, mais uma vez, que os sonhos do Padrinho
continuavam vivos através de seus fiéis. A Igreja estava em escombros, mas a fé dos

386
CASIMIRO, Antonio Renato Soares de. (org). Padre Cícero Romão Baptista e os fatos do Joazeiro
– A Questão Religiosa. Fortaleza: Editora Senac Ceará, 2012. p. 780.
387
Op. cit., p. 789.
388
Para maiores informações acerca da resistência da Igreja diante da prática da autoflagelação, cf.
BEZERRA, Cícera Patrícia Alcântara. Outras histórias: Memórias e narrativas da Irmandade da Cruz
Barbalha/CE. 2010. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2010.
188

devotos continuava de pé. Mesmo após as últimas paredes do templo terem sido
derrubadas, a pressão popular permaneceu sobre os salesianos, que se comprometeram
com a construção de um novo santuário no local.
A passagem de um deputado contrário ao fanatismo e a visita a um templo
inconcluso continuavam a lembrar Padre Cícero, o “imorrível”. Por causa dele — ou de
sua lembrança — os devotos arriscavam suas vidas, trazendo à tona mais uma vez o temor
que as autoridades possuíam de que Juazeiro se tornasse uma nova Canudos. Em vida, o
padre controlava seus “fanáticos”. Após sua morte, a fé seria incontrolável.
Agostinho Odísio redigiu suas páginas com o objetivo de representar, para os
leitores, a experiência que viveu na cidade de Juazeiro. Mas o caderno não era apenas um
registro de sua trajetória: também contava com informações e relatos advindos de outras
fontes, configurando-se, simultaneamente, como um diário reflexivo e um apanhado de
narrativas sobre as peculiaridades da exótica cidade de Juazeiro.

5.3 Entre a vida e a morte: Padre Cícero encadernado

Falar sobre Juazeiro não é o mesmo que falar sobre Padre Cícero. É fácil
entender o porquê. Se durante muito tempo o que havia era uma tentativa de desqualificar
aquele pobre refúgio de sertanejos, de situá-lo como abrigo de doentes, fanáticos e
cangaceiros, a situação se transformou com a morte do líder religioso. Já não interessava
tanto saber se a terra santa seria uma cidade moderna ou um amontoado de casas de palha.
O assunto mais premente envolvia aquele que acabara de se despedir da vida.
Após a morte de Padre Cícero, poucas foram as obras literárias que se
dedicaram a examinar os aspectos urbanos de Juazeiro. Já havia passado o tempo em que
a terra santa era comparada a um arraial. Continuaram surgindo, no entanto, numerosas
biografias do Padrinho que tentavam explicar sua influência sobre o cotidiano do
Nordeste. Essas explicações defendiam, geralmente, que o sacerdote teria enfrentado um
período de decadência política e mesmo religiosa nos anos que precederam sua morte.
Otacílio Anselmo, por exemplo, chegou a traçar um “antes” e um “depois”, afirmando
que Padre Cícero foi santo durante um período mais ou menos longo, tornando-se político
daí em diante e perdendo progressivamente, desde então, os aspectos de santidade, até a
morte de Floro Bartolomeu, quando trocou a liderança política pela liderança religiosa
novamente. Para Anselmo, o sacerdote teve alguma relevância na cena pública até
189

meados de 1920, quando teria caído no ostracismo. Em 1934, ano de sua morte, estaria
“reduzido à simples condição de condutor de fanáticos”389.
As notícias publicadas nos jornais do Nordeste, contudo, contradiziam essa
tese. Na década de 1950, eram inúmeras as reportagens acerca das constantes romarias
que deixavam o interior do Nordeste e percorriam longos caminhos até Juazeiro. Em
1951, o jornalista Edmar Morel, estimulado pela ideia de observar o fenômeno, tomou
uma decisão:

De Fortaleza, aproveitando o dia de Finados, fui até Juazeiro, onde deparei


uma multidão de romeiros em peregrinação ao tumulo do padre Cicero. Eu
diria melhor, em visita ao padre Cícero, porque, apezar de falecido em 1936
(sic), a maioria deles o tem ainda como vivo. Sua casa continua arrumada para
recebe-los e frequentada, como se ele ainda lá residisse.
A uma senhora que cuida de uma ave deixada pelo padre, perguntei se havia
sido mesmo dele.
– Havia sido, não; é – respondeu-me secamente.
De outra, que viera de muito longe, ouvi contar que quase sempre o meu
padrinho padre Cícero vai visita-la em sua palhoça longingua. E assisti logo
cedo a uma procissão de fieis carregando à cabeça pedras para um novo
templo.390

O Dia de Finados rapidamente se consolidou como um momento importante


de romaria a Juazeiro, em que devotos frequentam, com muita ternura, o túmulo do morto
mais querido do Nordeste. No entanto, havia algo estranho: não parecia uma rotineira
ação de honra ao morto, mas uma visitação a alguém que ainda vivia. As palavras dos
devotos confirmavam essa aparência, asseverando que o Padrinho continuava vivo e
ativo, inclusive frequentando os seus.
Os jornalistas brasileiros lamentaram a perda de um assunto quando Padre
Cícero morreu e, ao mesmo tempo, pareceram satisfeitos com a sua sobrevivência nos
corações sertanejos. Alguns empreenderam viagens a Juazeiro com o objetivo de
descrever as romarias. Trinta anos após o desaparecimento do Padrinho, era possível
constatar a consolidação de tais peregrinações. No jornal O Diário de Pernambuco,
Henrique de Figueiredo descreveu o que viu em sua visita à cidade:

Em Joazeiro ainda continua a pulular, como em vida o Padre Cícero, agora, ao


redor do seu sepulcro, uma palpitante multidão, nômade e erradia de fanáticos;

389
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
574.
390
ESCOLHIDO o secretariado alagoano. Diário de Pernambuco, Recife, p. 1-3, 14 jan. 1951.
190

de cangaceiros; de libertos de cadeia, após o cumprimento da sentença, de


mulheres perdidas; de espoliados; de mulheres adulteras; dos fracassados do
amor; de doentes, de chegados, de obsedados, de possessos, de paranoicos, de
parias sociais, de rebotalhos humanos, que ali se vai acantonar, dois ou três
dias, mansa e pacificamente. Afirmam que o Padre Cícero não morreu. Foi
fazer uma viagem para pedir a Deus proteção para os romeiros.
A sua volta se fará, não como a de Jesus para julgar os vivos e os mortos, mas
para que a vida continue com a felicidade que ele foi buscar no Céu para
distribuir com os seus devotos...391

Para a cultura letrada, era surpreendente notar que Juazeiro continuava. Mas
logo adiante, o jornalista destacou que “[...] muita gente boa e honesta, matronas
respeitáveis, senhoras de alta linhagem, cavalheiros de fino trato, senhores de engenho,
latifundiários, fazendeiros, comerciantes”392 também acreditava ter sido agraciada pelos
milagres do Padrinho, e acendia velas sobre seu túmulo.
Nesse período, na verdade, as romarias se intensificaram, o que pode ser
observado nos jornais de circulação nacional, que frequentemente comunicavam
acidentes automobilísticos com os caminhões que levavam romeiros até Juazeiro. Em
1969, ano de inauguração do monumento erigido no Horto, houve relatos até mesmo de
um acidente aeronáutico envolvendo romeiros:

Uma avaria no sistema hidráulico do trem de pouso do Avro que procedia de


Juazeiro do Norte, transportando romeiros que tinham participado dos festejos
ao padre Cicero, quase provoca sério acidente em Fortaleza, ontem. A falha foi
constatada após a decolagem em Juazeiro e o piloto do avião preferiu seguir
viagem para Fortaleza, onde a pista do aeroporto oferecia melhores condições
para um pouso forçado. Na aterrissagem, a Avro percorreu mais de 2 mil
metros de pista, sem maiores consequências. Segundo frei Ambrosio Maria, de
Fortaleza, o perigo foi afastado porque, quando pressentiu o desastre, começou
a rezar em intenção do padre Cícero. Outras pessoas acompanharam a devoção
do religioso.393

Na década de 1960, tomou força a tese que pretendia explicar o fenômeno de


Padre Cícero e de Juazeiro sob o ponto de vista econômico. O grande precursor dessa
tradição foi Rui Facó. Sua obra Cangaceiros e fanáticos: gêneses e lutas divulgou
amplamente a ideia de que o Padrinho teria sido, de fato, um coronel. O autor afirmava
que Padre Cícero, bem como os outros proprietários de terra da região, “[...] tinham

391
FIGUEIREDO, Henrique de. Padre Cicero. Diário de Pernambuco, Recife, p. 9, 8 out. 1954.
392
Id., ibid.
393
ROMARIA TEM final trágico. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 6, 5 nov. 1969.
191

interesse na concentração de ‘fanáticos’ em Juazeiro, precisamente como reserva de mão-


de-obra barata”394.

Nascido aí, vivendo aí, desfrutando aí de enorme popularidade, dispondo de


tudo quanto fazia de alguém um coronel, por que não seria ele um coronel?
Apenas por que vestia batina, ordenara-se padre, fazia ‘milagres’? Na verdade,
nada diferenciava o Padre Cícero Romão Batista de qualquer dos latifundiários
da zona. Utilizava, e em enorme escala, os mesmos métodos familiares
àqueles, como dar abrigo a capangas e cangaceiros e aproveitá-los ou permitir
que outrem os aproveitassem para a consecução de objetivos políticos que
também eram os seus.395

Padre Cícero era, segundo o marxismo de Rui Facó, uma liderança


identificada com as classes dominantes, não com os despossuídos. As características de
um regime concentrador de propriedade da terra, a distância em relação às grandes
cidades, a influência do clero missionário e retrógrado, aliados ao suposto atraso cultural,
teriam efetuado uma equação que deu origem ao tal fanatismo de Juazeiro. Para Facó, a
religião seria a única ideologia possível para aquela população miserável e inculta. Por
esse motivo, o autor defendia que a principal experiência positiva relacionada ao
fenômeno do Padre Cícero seria a existência do Caldeirão. O chamado “misticismo” de
seus fiéis, contudo, foi visto como uma força revolucionária, que resistia ao poder
econômico e político dos potentados locais. Dessa forma, o fanatismo poderia ser,
conforme Facó, uma força impulsionadora da emancipação”396.
Rui Facó é o ícone de uma geração que pretendeu explicar o fenômeno de
Juazeiro por uma vertente marxista, muitas vezes compreendendo o Padre Cícero como
alguém que tirou proveito dos miseráveis devotos nordestinos. Por muito tempo, a ideia
de que o sacerdote era um “coronel de batina” prevaleceu, havendo adeptos ainda nos
dias atuais. Embora o autor admitisse que Padre Cícero provavelmente não possuía
ambição pessoal, defendeu que os presentes e bens adquiridos em doação constituíram
uma riqueza muito maior que qualquer ganho com o sacerdócio e os sacramentos.

394
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: Gênese e lutas. Disponível em: <https://www.marxists.org/por
tugues/faco/1963/03/cangaceiros.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2016.
395
Id., ibid.
396
Segundo Albuquerque Júnior, essa região teria virado tema preferencial das esquerdas brasileiras a partir
da década de 1950. O fim do cangaço e o surgimento das ligas camponesas contribuíram para o
fenômeno, levando intelectuais marxistas a elaborar uma reflexão sobre a ética insubmissa e mesmo
guerreira dos sertanejos. Para o autor de A invenção do Nordeste, “[...] a certeza dos beatos de que o
mundo estava no fim se aproximava [...] da certeza das esquerdas de que o capitalismo estava no fim”.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife:
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 204.
192

Segundo o estudioso, o Padrinho acumulou, com isso, grande quantidade de terras e de


reses, tornando-se mais rico que numerosas famílias tradicionais da região. Essa
discussão retirava a centralidade do debate religioso, que foi reduzido a um debate
econômico. Os cangaceiros, nesse contexto, foram concebidos como membros de uma
classe desafortunada que se rebelava contra seus exploradores, mas simultaneamente era
cerceada em seus desejos de revolta pelo Padre Cícero, que agia como um conciliador
entre as classes.
A imortalidade do Padrinho se confirmava nas elaborações teóricas acerca de
sua influência sobre o povo nordestino, e estas não se encerraram com sua morte.
Biógrafos e estudiosos do patriarca continuavam surgindo, assim como jornalistas que se
dedicavam a analisar a permanência do culto em Juazeiro. Ao contrário do que se
imaginara, as perseguições e tentativas de apagamento de sua memória jamais surtiram o
efeito desejado.
Em 1944, dez anos após a morte de Padre Cícero, o jornalista Edmar Morel
visitou Juazeiro e, em uma de suas reportagens, considerou que o patriarca não parecia
estar morto. Entre outras coisas, observou que seu túmulo era pouco visitado. Sob seu
ponto de vista, os principais locais de culto e lembrança eram a cama em que ele passou
seus últimos dias e a estátua esculpida por Odísio e colocada em frente à Igreja do
Perpétuo Socorro:

Em Joazeiro tudo ainda é misticismo. O tumulo do padre quase não é visitado


pelos romeiros. A cama onde o sacerdote morreu continua enfeitada com
corôas. Num altar armado diante da igreja de Nossa Senhora do Perpetuo
Socorro, mãos piedosas colocaram uma estatua do padre do tamanho natural.
E neste local homens e mulheres vindos de todos os recantos do nordeste,
afluem em massa, venerando a figura do sacerdote, entre choro e lamentações
que entram pela madrugada.
‒ Meu ‘padim’, tenha piedade de mim!
Aproximei-me de uma velha suja e faminta e perguntei se ela acreditava que o
padre Cicero tinha morrido.
‒ Moço, você já viu um santo morrer.. Ele está junto de Nossa Senhora. O meu
‘padim’ vai voltar no ‘Dia do Juízo’...397

Padre Cícero não morreu. Fez uma viagem para interceder pelos seus
romeiros junto a Nossa Senhora e retornará quando chegar o Fim dos Tempos. Cabe
pensar sobre o fato de seu túmulo, supostamente, não ser o local mais visitado pelos

397
MOREL, Edmar. Devassando o arquivo do Padre Cicero – O mais poderoso senhor do Nordeste retardou
uma operação melindrosa por falta de dinheiro. Diário de Pernambuco, Recife, p. 10, 10 set. 1944.
193

devotos. Conforme lembra Aleida Assmann, a sepultura é sempre um espaço de


veneração nos casos em que o morto angaria alguma fama 398 . Por qual razão, então,
muitos romeiros pareciam preferir visitar a estátua que reproduzia sua imagem, ou a cama
em que o Padrinho costumava repousar? Esses parecem ter sido objetos que se acoplaram
à memória coletiva, produzindo uma espécie de memória social.
O túmulo seria a morte? Conforme Edmar Morel, “[...] para os fanáticos, a
pedra de mármore não quer dizer nada. Para eles, o ‘padim Ciço’ não morreu”399. O autor
considerava, no entanto, que a situação em breve se modificaria, pois, “[...] para a geração
que surge em Joazeiro, o mármore indica que o sacerdote não era santo. Era um homem
de carne e osso, igualzinho aos outros homens”400. Morel considerava que a pedra sobre
o corpo do Padrinho o sepultaria definitivamente. Era só uma questão de tempo.
Enquanto essa transformação não ocorria, os devotos e romeiros tentariam negar a morte
do sacerdote.
Apesar de tais expectativas, o culto ao Padre Cícero prosseguiu nos anos
seguintes. A relevância de sua figura para a história de Juazeiro conduziu, inclusive, a um
processo que pretendia modificar o nome da cidade, transformando-a em “Cicerópolis”
ou “Joazeiro do Padre Cícero”. Existiam, no entanto, forças opostas a essa medida. Um
artigo do Diário de Pernambuco, por exemplo, afirmava:

É uma infantilidade dar a Joazeiro o nome de Ciceropolis [...]. Aliás, pesados


os prós e os contras, não há razão para que Juazeiro fique tão arraigado à
tradição do padre Cicero, que estava longe de ser um padre Ibiapina. No
primeiro, prevalecia o fanatismo, puro e simples; no outro havia a preocupação
do social, do humano. Todos os depoimentos publicados sobre o padre Cicero
lhe são desfavoráveis. Os próprios bispos sempre o tiveram à distância.401

O artigo do Diário de Pernambuco tentava minimizar a importância da


liderança de Padre Cícero para Juazeiro. Essa tentativa de provocar uma dissociação entre
a cidade de Juazeiro e o protagonismo do Padre Cícero foram constantes após a sua morte.
Em 1944, outra matéria do mesmo jornal afirmava ser “[...] lamentável [...]
que mesmo no Ceará ainda haja quem pense que o Joazeiro é uma cidade só habitada por

398
“Enquanto a morte é uma grande democrata, reservando a todos o mesmo destino, a fama [...] é uma
grande selecionadora e filtradora, eternizando os nomes de alguns e deixando decair os de outros.”
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora Unicamp, 2011. p. 64.
399
MOREL, Edmar. Devassando o arquivo do Padre Cicero – O mais poderoso senhor do Nordeste retardou
uma operação melindrosa por falta de dinheiro. Diário de Pernambuco, Recife, p. 10, 10 set. 1944.
400
Id., ibid.
401
NOMES DE cidades. Diário de Pernambuco, Recife, p. 3, 24 set. 1943.
194

fanáticos que crêm [...] na divindade do padre Cicero”402. O texto dizia que Juazeiro não
podia ser representada pelo atraso, pois se destacava como uma cidade progressista,
moderna e repleta de trabalhadores operosos. Aliás, a prova cabal da evolução econômica
e social da cidade era demonstrada através da observação de que “[...] na época atual, a
classe dos fanáticos está quase extinta e dentro em breve terá desaparecido”403.
Apesar de tais afirmações, como se sabe, o culto ao Padrinho estava longe de
fenecer. Em 1943, um ano antes da afirmação de que o “fanatismo” seria uma
manifestação em processo de extinção, jornais cariocas e pernambucanos anunciavam
que corria uma denúncia no Tribunal de Segurança Nacional envolvendo “[...] o sr. João
Batista da Silva, o qual, diante da estatua do padre Cicero do Juazeiro, atacou a Igreja, os
padres e principalmente os salesianos, classificando-os de falsos herdeiros do Padre
Cícero” 404 . No mesmo período, os tabloides publicavam, na seção de classificados,
numerosos agradecimentos ao Padrinho pelas graças alcançadas. Além disso, noticiavam
as constantes romarias a Juazeiro. Os fiéis sertanejos continuavam a usar caminhões,
carros, animais e, principalmente, os próprios pés, para pedir a bênção ao Padrinho.
As elites do país, preocupadas em encontrar as causas da perseverança do
“fanatismo” em Juazeiro, escreviam e publicavam artigos sobre o tema, especialmente
nas gazetas das capitais. Os repórteres lembravam que o sacerdote havia sido um homem
bom, caridoso, manso, pouco vaidoso e mesmo desinteressado por dinheiro, carregando
somente a culpa de abraçar a carreira política por uma fraqueza psicológica que embaçava
sua racionalidade e o levava a seguir os conselhos das lideranças que pretendiam tirar
proveito de seu carisma. Para tais autores, o humilde sacerdote tomou decisões
imprudentes graças a esses arroubos de megalomania:

O seu caso pessoal era, no entanto, de clínica psiquiátrica, perfeitamente


sentido e descrito, classificado com todas as suas minucias. Os fatos aí estavam
confirmando. Quando se deu uma grande batalha ou perseguição contra os
judeus, na Russia, telegrafou ao Czar e mandou suspender toda e qualquer ação
anti-judaica. E, contava, risonho, o Czar providenciou imediatamente. Durante
a guerra dos Balcãs – narrava – telegrafou ao Imperador Francisco José e
mandou por fim à luta, sendo logo atendido. Esses seus pedidos poderiam
partir de quem se julgasse humilde; mas, tal não aconteceu. O tom era de igual
para igual ou até mesmo de superior, tanto assim que não deixava de fazer ver
que fora obedecido imediatamente, como se o seu pedido houvesse descido
dos céus.. Seria uma ordem do Senhor...405

402
O PADRE CÍCERO E A evolução de Joazeiro. Diário de Pernambuco, Recife, p. 3, 16 mai. 1944.
403
Id., ibid.
404
DENUNCIADOS AO T.S.N – Atacou a Igreja e os Padres. Diário de Pernambuco, p. 1, Recife, 2 jul.
1943.
405
PRAZERES, Otto. O mistério do Padre Cícero. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 5, 21 fev. 1945.
195

O sacerdote, mesmo após morrer, continuava sendo analisado e diagnosticado


com doenças psicológicas ou psiquiátricas. A ciência desejava compreender e explicar o
envolvimento de um carismático e modesto líder religioso com o profano e arriscado
mundo político. A explicação científica pretendia dar conta dessa peculiaridade,
afirmando que o Padrinho não conseguia resistir ao próprio narcisismo. Ao mirar o
espelho, o Patriarca via um enviado de Deus, e passava a se comportar como tal. Não era
mais um simples padre, um prefeito ou deputado: era um arauto da vontade do Senhor, e
tinha estatura suficiente para agir, de igual para igual, entre líderes de diversas nações.
Com o passar dos anos, contudo, começou a ser menos frequente o questionamento sobre
sua postura política, ganhando relevo a discussão sobre a intensificação do culto religioso
devotado a ele.
Entre 1934 e 1944, havia jornalistas que apostavam em atribuir as
excentricidades do sacerdote às suas supostas doenças psiquiátricas, mas também
existiam aqueles que defendiam ter sido ele mais uma vítima da ignorância.
Frequentemente, o seu conhecimento de teologia e filosofia, adquirido no Seminário da
Prainha, era questionado. Para o Diário Pernambucano,

[...] poder-se-ia interrogar: seria o Padre Cícero Romão Batista um animador,


um fomentador desse fanatismo irrompido em Juazeiro? Ou seria ele, por
razões atávicas ainda não suficientemente investigadas, também um fanático?
Não o favorecia, na defesa dessa hipótese, uma formação cultural e científica
capaz de defende-lo dos perigos de uma crença deturpada. Apesar de
inteligente não possuía o patriarca de Juazeiro sólida formação teológica ou
científica, mesmo porque o Seminário do seu tempo ressentia-se das
possibilidades de fornecer tais elementos aos seus educandos.406

Por outro lado, muitos argumentaram a favor da cultura e da ciência de Padre


Cícero, inclusive com o objetivo de afirmar que ele conheceria os compostos capazes de
elaborar uma reação química que simulasse a transformação da hóstia em sangue 407 .
Também existiam aqueles, por outro lado, que o enxergavam como um sacerdote
inteligente, porém com rala educação, muito mais seduzido pelo misticismo popular que

406
A HISTÓRIA DAS SECAS. Diário de Pernambuco, Recife, p. 1-4, 11 jul. 1934.
407
O Padre Antonio Gomes de Araújo tem uma versão diferente: afirma que Padre Cícero foi enganado por
José Marrocos, responsável pelo preparo químico que produzia o efeito de transformação da hóstia em
sangue, e pela beata Maria de Araújo, que agia como sua cúmplice. ARAÚJO, Padre Antonio Gomes
de. Apostolado do embuste. Crato: Edições Itaytera, 1956. p. 5.
196

pela pureza teologal da doutrina católica. Tanto uns quanto outros, no entanto, afirmavam
que ele poderia ter feito mais pela instrução dos juazeirenses.
Um repórter norte-americano afirmava que a permanência de tais devotos na
“cidade santa” se relacionaria à ideia de que Padre Cícero retornaria um dia para Juazeiro.
Segundo Bruce Handler, “[…] many peasants in this region are convinced that Padre
Cicero, who died in 1934 at the age of 90, will return to Earth to settle accounts with his
enemies and nonbelievers – a sort of Brazilian-style Judgment Day”408. Se Padre Cícero
poderia voltar a qualquer momento, os milhares de romeiros queriam estar por perto para
presenciar o maravilhoso momento. Suas relíquias, os objetos em que tocou e os lugares
em que viveu eram considerados sagrados. Causou polêmica, por exemplo, o rumor de
que a cama do Padrinho seria retirada do local em que ele manifestou seu último suspiro:

Em dias desta semana, como se fosse um raio correu célere a noticia


desagradável de que se tencionava retirar da Casa antiga de morada do Ver.
Pe. Cicero, a sua cama pequena, aonde expirou os últimos instantes. Varias
pessoas da terra, sem procurar entender-se cuidadosamente sobre a noticia,
sentiu-se revoltada (sic) pela possibilidade deste acontecimento, causando na
cidade um farto comentário de protesto justo. [...]. Ao que apuramos, os
dirigentes da Ordem Salesiana tencionam fazer um museu histórico, com
armário e secções dividamente cuidadas afim de que o povo não só veja a cama
em questão, como também muitas outras preciosidades pertencentes ao Pe.
Cicero, como livros, cartas históricas, documentos, batinas, rosários, etc.,
dando uma expressão de maior carinho pelas lembranças deixadas por ele.409

Os salesianos, ao se instalarem em Juazeiro, tentaram organizar o acervo


deixado pelo Padrinho. Todavia, como se sabe, todo elemento relacionado à sua
existência era venerado pelos romeiros. A cama, especialmente, é alvo de cultos,
promessas e práticas diversas até os dias atuais. Portanto, nada mais compreensível que a
vigilância assegurada pelos devotos em torno de tais objetos.
Efetivamente, havia quem acreditasse no retorno do Padrinho, assim como
havia quem estimulasse essa crença. Mas a categoria dos romeiros e devotos não era
formada somente por aqueles que permaneceram esperando reencontrar Padre Cícero na
cidade. Ela era representada, principalmente, por aqueles que visitavam Juazeiro

408
“Muitos camponeses nesta região estão convencidos de que Padre Cícero, que morreu em 1934, aos 90
anos, voltará à Terra para acertar as contas com seus inimigos e incréus – uma espécie de Dia do
Julgamento à brasileira”. HANDLER, Bruce. Dead Priest Continues To Stir Up Memories. Observer-
Reporter. Washington, 18 de agosto de 1973, p. 3. Disponível em: <https://news.google.com/newsp
apers?nid=6w2ZCmoKEM0C&dat=19730818&printsec=frontpage&hl=pt-BR>. Acesso em: 28 set.
2016.
409
A CAMA do Pe. Cicero Ficará. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 1, 11 set. 1949.
197

regularmente, em busca dos conselhos e das graças do sacerdote. Eram pessoas que não
moravam em Juazeiro, mas se deslocavam anualmente, ou em alguns períodos
específicos, à procura de remédios para o corpo e a alma. Após a morte do sacerdote, a
despeito de todas as previsões, tais visitas continuaram.
Em 1951, José Almeida publicou um texto sobre as diversas romarias
brasileiras no Diário de Pernambuco. O jornalista criticou as peregrinações feitas a
Juazeiro e a outras cidades do Nordeste, ressaltando que não se tratava de turismo, mas
de fanatismo:

Mas, as romarias continuam. Diariamente caminhões deixam essas plagas e se


destinam a Juazeiro do Padre Cícero [...]. São os romeiros que deixam os seus
afazeres, os seus lares e demandas àqueles centros. E o resultado dessas
romarias? Endemias de que, vez por outra, são portadores; gastos dos seus
parcos recursos. Se pelo menos fosse uma viagem de turismo, ainda vá lá, mas
é o fanatismo que fala bem alto. E desse fanatismo, os sabidos do Joazeiro [...]
tiram proveitos. Depenam sem dó nem piedade os pobres matutos, os incautos
matutos que de lá voltam trazendo apenas fadiga, doenças e quando muito
felizes, não acontecem desastres semelhantes aos que nós referimos linhas
acima.410

O texto criticava as peregrinações por desestabilizarem financeiramente os


romeiros, além de afirmar que as grandes aglomerações urbanas produziam endemias.
Considerava os pobres viajantes como homens e mulheres ignorantes que eram vítimas
de aproveitadores e da própria fé extremada. Por fim, lembrava o perigo dos acidentes
automobilísticos – que, nesse período, já eram muitos – durante essas empreitadas.
A reportagem assinada pelo major Optato Gueiros411 em 1951 demonstra a
vulnerabilidade dos devotos aos apelos dos comerciantes:

Em todas as casas desses romeiros encontra-se o retrato do Padrinho Cicero


em todos os formatos. O povo de Juazeiro sabe muito bem tirar partido da
ingenuidade dessa gente e por isso, vendem aos milhares retratos do venerado
sacerdote, onde ele aparece nas nuvens dos céus de Juazeiro ou nas do
vaticano, e assim por diante. É o Juazeiro a ‘cidade santa’ das peregrinações
dos nordestinos. Ao descortinarem aquela cidade do Ceará, quando
descambam na parte inclinada da Serra do Araripe, rezam, e têm umas palavras
de saudação àquele ‘Vaticano-mirim’. O negócio que se faz ali, de foguetes,
rosários, cruzes, imagens de todos os santos, predominando a do Padrinho, que
é esculpido em diversas posições e tamanho, é de pasmar. Ouvi muitos desses
fanáticos afirmar ser o padre Cicero o próprio Deus em forma humana, outros:
o Espírito Santo. Há porém os que o têm como um profeta. Existe geralmente
a crença de que o ‘reverendo vai ressuscitar por esses dias’, em pleno Juazeiro.

410
ALMEIDA, José. Notas Matutas. Diário de Pernambuco, Recife, p. 9, 1 dez. 1951.
411
Militar pernambucano conhecido como “caçador de cangaceiros” por ter comandado as forças que
mataram Lampião em 1938.
198

É costume, entre os mesmos crentes, ‘ajudar-se’ a morrer fazendo-se as


seguintes advertências aos moribundos: ‘Lembra-te do nome de Jesus. Maria,
José e meu Padrinho Cícero!’. [...] Alguns padres têm procurado arrancar ao
povo de suas paroquias a fé excessiva que depositam no Padrinho Cícero, mas,
quando percebem a impopularidade em que vão caindo, resolvem abandonar a
ideia.412

Embora o clero continuasse, ano após ano, tentando arrefecer a fé em Padre


Cícero, o objetivo estava longe de ser atingido. Regularmente, as romarias continuavam
ocorrendo, assim como os ganhos econômicos que as envolviam. O Padrinho, conforme
é possível perceber ao longo das muitas matérias jornalísticas produzidas a respeito do
tema, ainda vivia. Koselleck lembra que os historiadores devem estar atentos aos termos
e advérbios que indicam mudanças ou permanências temporais, pois eles falam muito
acerca dos conceitos de progresso, aceleração, constância e atraso413.
Em Juazeiro, muitos esperavam que a morte de Padre Cícero trouxesse
consigo, imediatamente, a aceleração do tempo, a integração à modernidade, o progresso
vindo a galope. A constatação de que, após 20 de julho de 1934, muitos ainda insistiam
em visitar Juazeiro e em crer na santidade do Padrinho representava uma decepção, um
desgosto e até um tormento para aqueles que sonhavam com uma cidade laica, racional e
integrada às teias dos demais municípios desenvolvidos do Brasil. Para os romeiros, aliás,
aquele “ainda” significava um “sempre”. Padre Cícero morreu, mas permanecia vivo nos
corações dos seus devotos.

412
GUEIROS, Optato. Memórias de um ex-oficial de Volante – XIV. Padre Cícero Romão Batista,
Patriarca. Diário de Pernambuco, Recife, p. 11, 30 set. 1951.
413
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. p. 122.
199

6 JUAZEIRO DEPOIS DO PADRE CÍCERO

6.1 Amigos e inimigos da memória de Padre Cícero

Em 1936, Lauro Reis Vidal publicou o seu Padre Cícero – O Joaseiro visto
de perto. No livro, reproduziu uma das primeiras notícias acerca da morte do Padrinho.
É uma carta pessoal, enviada em 21 de julho de 1934 pelo radialista Lourival Marques de
Melo ao tabelião Augusto Nicodemos, narrando o momento de tristeza e desespero vivido
em Juazeiro. Essa carta foi publicada no jornal O Semeador, de Maceió. Lourival
Marques era afilhado não de Padre Cícero, como tantos juazeirenses, mas de Floro
Bartolomeu. Era também filho de um dos secretários do sacerdote. Na carta, ele contou:

Dia 20 de julho. Eram 6 horas da manhã e eu ainda estava dormindo. Acordei


pelo tropel de gente que corria pela rua. Fiquei sem saber a que atribuir aquelas
carreiras insólitas. Depois, o sino principal da matriz badalou a finados...
depois outro... e outro mais. Espantei-me de ouvir todos os sinos da matriz
dobrarem a finados. [...]. Quando cheguei à janela tive a impressão de que
alguma coisa monstruosa sucedia na cidade. Que espetáculo horroroso, esse de
milhares de pessoas alucinadas, correndo pelas ruas afora, chorando, gritando,
arrepelando-se... Foi então que se soube... O Padre Cícero falecera... Eu, sem
ser fanático, senti uma vontade louca de chorar, de sair aos gritos, como toda
aquela gente, em direção à casa desse homem, que não teve igual em bondade
e nem teve igual em ser caluniado.414

Entre intelectuais, figuras públicas e demais grupos que não eram compostos
por “fanáticos”, havia também defensores do Padrinho, pessoas que afirmavam sua
bondade e repeliam as ofensas. Tais sujeitos, tendo convivido com o sacerdote, buscaram
reestabelecer sua honra após a morte. Eram os “amigos da memória” do Padrinho415.
Manoel Dinis e Reis Vidal foram, talvez, os maiores representantes da categoria, sendo
seguidos ainda por Teófilo Machado, Tristão Romero e outros escritores juazeirenses que
buscavam se opor às ideias geralmente veiculadas pelas elites cearenses.
Sabe-se que não é de bom tom disseminar os defeitos dos recém-mortos. No
caso do fundador de Juazeiro, especificamente, não se tratava de um morto qualquer, mas
de um homem que, embora fosse considerado como santo por uma multidão, ainda era
malvisto pela imprensa nacional e pela cultura letrada. Após sua morte, começaram a

414
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936, p. 120-121.
415
MACHADO, J. Duas Palavras – excertos da vida do Padre Cícero. Juazeiro do Norte: Tipografia São
Francisco, 1948, p. 3.
200

surgir obras que não se dedicavam mais (somente) a dissertar sobre o fim de Juazeiro e a
possibilidade de que aquele estranho recanto viesse a se tornar uma nova Canudos. Os
livros lançados após 1934 pretendiam falar, especialmente, sobre a vida e a obra do ilustre
padre. Décadas após seu falecimento, alguns temores se atenuavam e sua trajetória —
com qualidades e defeitos — se consolidou como o tema mais explorado. Era um capítulo
da história que havia terminado, e deveria ser registrado. Se durante sua existência tudo
estava em aberto, podendo Padre Cícero ser santo, revolucionário, coronel ou milionário,
a partir de 1934 seria possível colocar tais aspectos na balança e dizer, de fato, quem ele
foi.
O fato de o biografado estar morto possibilitou um distanciamento daqueles
que pretenderam escrever sua história. Já não havia o problema da invasão de privacidade,
e os biógrafos puderam ser menos cautelosos416. De fato, por muito tempo pulularam
divagações acerca do que seria o destino de Juazeiro após o desaparecimento do
sacerdote. Não se ousava, contudo, escrever sobre sua vida como se ela já tivesse se
encerrado. O foco central das narrativas, por muito tempo, foi Juazeiro. Essa tendência,
contudo, sofreu transformação. A partir de 1934 é possível analisar Padre Cícero sem se
deter sobre Juazeiro.
Foram redigidas numerosas obras de cunho biográfico após o
desaparecimento do sacerdote: a primeira delas surgiu já em 1935, quando Manoel Dinis
aproveitou-se da proximidade que tivera com o santo do sertão para lançar seu Mistérios
do Joazeiro, obra de caráter local, mas que obteve certa circulação, sendo citada — apesar
das muitas críticas e reservas — por praticamente todos os biógrafos que vieram a seguir.
Segundo o advogado juazeirense, seu objetivo era elaborar uma “[...] concisa e imparcial
narrativa histórica sobre o Padre Cícero Romão Batista, o Juazeiro do Padre Cícero e algo
de seu folclore”417. É fruto de depoimentos e conversas casuais que tivera pessoalmente
com o sacerdote. Parece ser, na verdade, a biografia de um vivo. Ou de um quase-morto.
Padre Cícero – o Santo do Juazeiro, de autoria de Edmar Morel, foi o
primeiro esforço de elaboração de uma obra de grande circulação, escrita por alguém que
não conheceu pessoalmente o Padrinho, e mais fundada sobre a documentação escrita
que sobre a oralidade. O jornalista a lançou em 1946, após passar algum tempo

416
Conforme Sergio Vilas Boas, a morte é uma parte essencial de qualquer biografia. “Fazer uma biografia
de alguém vivo é algo incompleto, porque o morrer faz parte do viver. À biografia de um vivo falta um
elemento crucial – a morte [...].” BOAS, Sergio Vila. Biografismo: reflexões sobre as escritas da vida.
São Paulo: Editora Unesp, 2008, p.174.
417
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935], p. 13.
201

pesquisando em Juazeiro. Patrocinada pelos Diários Associados, a obra é um ataque


contra Juazeiro. Morel preparou um amplo estudo em que buscava, entre outras coisas,
compreender as principais ideias do sacerdote sobre os grandes temas da política nacional
de seu tempo. Segundo ele, “[...] os assuntos palpitantes e pelos quais [Padre Cícero] tem
simpatia, são recortados e pregados num livro, cuja capa é uma estampa litografada de
uma mulher, página de um almanaque mundano ali colocada pela inconstância de alguma
beata”418. Esses recortes constituíram fontes fundamentais para a biografia que escreveu.
Em 1968, foi a vez do escritor Otacílio Anselmo realizar volumoso trabalho
no sentido de concretizar uma minuciosa pesquisa acerca do tema. É preciso mencionar
que outros autores ainda se dedicaram ao assunto no mesmo período. Para efeito de
estudo, no entanto, serão analisados aqui mais detidamente os livros que alcançaram
grande público e trouxeram informações novas sobre a vida do Padre Cícero e o cotidiano
de Juazeiro.
Essas obras buscaram elaborar histórias coesas, capazes de contar como foi
possível que tantos sertanejos seguissem Padre Cícero. Excetuando Mistérios do
Joazeiro, que procurou trazer certos aspectos mais íntimos da vida do sacerdote, as
biografias escritas por Edmar Morel e Otacílio Anselmo procuraram explicar a
personalidade de Padre Cícero através da ideia de que ele era produto de seu meio. Se,
inicialmente, as narrativas em torno do sacerdote tinham como foco o modo como
emancipou e conduziu o povoado, transformando-o em arraial ou grande cidade — a
depender do narrador —, os escritos posteriores à sua morte buscam compreender como
o Padre Cícero foi transformado por aqueles sertanejos, ou como nunca deixou de ser um
deles.
Segundo Reis Vidal, só seria possível fixar os traços predominantes da
personalidade de Padre Cícero caso ele fosse estudado “[...] inteiramente fora do alcance
das sugestões do meio ambiente” 419. É exatamente o oposto do que defendem outros
biógrafos. Para Edmar Morel, “[...] o padre não consegue o milagre de sobreviver ao
ambiente. É facilmente dominado pelo meio”420. Do mesmo modo, Otacílio Anselmo
defende que “[...] enclausurado num recanto do sertão, em contato apenas com tabaréus,
o Pe. Cícero não poderia realizar a obra social e religiosa que lhe atribuem seus

418
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O Santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
115.
419
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 18.
420
MOREL, Edmar. Op. cit., p. 2.
202

apologistas” 421 . Padre Cícero jamais poderia ser analisado sem que fosse estudado
também o povo que o seguiu e o lugar em que ascendeu à fama. O santo juazeirense,
portanto, é constantemente avaliado em conexão com o meio em que viveu e atuou.
Há de se recordar que, entre 1930 e 1960, havia, como bem notou Durval
Muniz, uma forte literatura regionalista, que abraçava a dicotomia civilização versus
barbárie quando abordava o Nordeste. Os discursos da classe média urbana que escrevia
sobre a região tanto poderiam se mostrar interessados na manutenção da ordem burguesa
quanto na transformação daquela realidade social. Eram, de toda forma, olhares
“civilizados” sobre um Brasil arcaico, rural e tradicional422. Edmar Morel está entre os
intelectuais que observavam esse espaço com uma postura de superioridade — a postura
do cearense que foi morar no Rio de Janeiro, conviveu com grandes personagens, atuou
na imprensa nacional, teve contato com pensadores simpatizantes do marxismo e
lamentava que seus conterrâneos não tivessem a mesma sorte, vivendo na pobreza e
ignorância.
É necessário notar ainda que os biógrafos que publicaram nesse período
parecem se inspirar, em certa medida, na principal tendência literária daquela ocasião, o
Neorrealismo. Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado
dedicavam-se, à época, a falar sobre o Nordeste, numa espécie de literatura em que o
lugar e o homem tinham o mesmo peso. Os aspectos sociais do sertão eram, senão moda,
curiosidades que interessavam a todo o Brasil. Livros e mais livros sobre o tema eram
publicados e vendidos. Entre os biógrafos de Padre Cícero, poderia existir, claro, interesse
por sua personalidade, associado ao fato de serem cearenses e terem, por tanto tempo,
percebido a influência do sacerdote na região. Mas não se pode descartar, ainda, certo
senso de oportunidade, considerando as vendas crescentes de obras sobre o Nordeste, a
seca e os problemas sociais daquela parte do país. Grande parte dos biógrafos de Padre
Cícero, inclusive, cita o grande ícone desse tema, Euclides da Cunha e seu Os Sertões,
tendo, por vezes, admitido explicitamente a inspiração.

421
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
62.
422
Segundo Albuquerque Jr., para esses intelectuais, “[...] os cangaceiros ou as volantes, por exemplo, são
formas violentas e ilegais. Tais discursos tendem a valorizar a sociedade da lei, da disciplina, dos
códigos escritos, da despersonalização dos conflitos, do império dos códigos abstratos, dos conflitos
retirados da esfera do privado para a esfera pública. As ‘revoltas primitivas’ seriam produto da falta de
luzes, de consciência, seriam instintividade, barbárie. Busca-se sempre retirar dessas manifestações as
imagens que mais chocam, que mais ressaltam sua diferença em relação à ordem futura que se quer
criar”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife:
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 194.
203

É preciso acrescentar que o desaparecimento de Padre Cícero despertou


rapidamente o interesse de “apressados biógrafos”423, como Manoel Dinis e Reis Vidal.
As obras de Edmar Morel e Otacílio Anselmo vieram depois, com maiores pretensões,
tais como a de corrigir os possíveis erros e parcialidades dessas primeiras biografias. O
público de Juazeiro acompanhou os muitos lançamentos literários sobre o assunto, sempre
reagindo às obras sobre Padre Cícero, cobrindo-as de elogios ou de críticas. Anselmo
chega a afirmar que os primeiros leitores de seu livro recomendaram que ele não o
publicasse, temerosos de “consequências desagradáveis ou mesmo funestas” 424 que
poderiam vir a ocorrer quando chegasse às mãos dos devotos e seguidores do Padrinho.
Edmar Morel e Otacílio Anselmo partem da premissa que o fundador de
Juazeiro era um padre inculto, dado desde os mais tenros anos a experiências místicas,
como sonhos e visões, que o afastaram da doutrina católica. Ambos destacam, por
exemplo, seu mau desempenho nos estudos e a necessidade de o Coronel Antonio Luiz
ter intervindo em sua defesa para que fosse ordenado padre, contra a vontade de Pierre-
Auguste Chevalier, então reitor do Seminário da Prainha, que o considerava confuso e
teimoso. Ao contrário disso, Reis Vidal defendeu que eram magníficos os ensinamentos
que a privilegiada cultura de Padre Cícero “[...] ministrava a quantos dele se acercavam,
nos assuntos pertinentes à sociologia, à filosofia, à teologia, ao direito canônico e enfim
a todas as ciências devassadas pela sabedoria humana”425. Vidal, deste modo, destacou-
se como um apologista de Padre Cícero, enquanto Otacílio Anselmo, por exemplo,
iniciava a introdução de sua obra se defendendo: “[...] ao contrário do que poderão dizer
certos críticos, este livro não visa a denegrir a reputação de ninguém, como, por exemplo,
a do seu personagem principal”426. Toda essa onda de biógrafos, que se atacavam e se
contradiziam, afirmava buscar a “narração da verdade”.
No período aqui estudado (1934 a 1969), numerosas obras foram publicadas
sobre o Padre Cícero: Irineu Pinheiro publicou O Joaseiro do Cariri e a revolução de
1914 em 1938. Em 1948, José Teófilo Machado traz à luz seu Duas palavras. Uma
tipografia local editou o livreto Vida completa do Padre Cícero Romão Batista – Anchieta

423
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O Santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
131.
424
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
p.s.n.
425
VIDAL, Reis. Padre Cícero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 18-19.
426
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
s.n.
204

do século XX, de autoria de Tristão Romero (Francisco de Assis Leite), em 1950. Antônio
Gomes de Araújo publicou Um civilizador do Cariri em 1955 e Apostolado do Embuste
em 1956. Rosário, rifle e punhal foi a contribuição de Nertan Macedo em 1965. Por fim,
o Padre Azarias Sobreira mostrou ao mundo seu O patriarca de Juazeiro em 1968. É
possível que algumas publicações ainda tenham ficado de fora da lista aqui mencionada.
Os livros que mais se destacaram acerca do tema, no entanto, são as biografias redigidas
por Edmar Morel, Otacílio Anselmo e Azarias Sobreira, publicadas por editoras de
sucesso — a Civilização Brasileira e a Editora Vozes —, que garantiram a ampla
circulação dos títulos.
A biografia é um gênero que pode trazer uma mistura entre fabulação e
experiência vivida. No caso de Padre Cícero, essa especificidade é levada ao limite, já
que milagres, sonhos premonitórios, bilocações e outros fenômenos extraordinários são
descritos costumeiramente, por vezes sendo negados e, noutros momentos, defendidos
como verdadeiros. Manoel Dinis, por exemplo, parecia acreditar no dom da bilocação de
Padre Cícero. “Queremos crer mesmo, que a maior parte de sua vida foi dirigida por meio
de sonhos e talvez do fenômeno de bilocação a que parece-nos que ele se prestava,
adormecendo momentaneamente, como tivemos ocasião de observar muitas vezes
[...].” 427 Aqui, o biógrafo é testemunha de um fenômeno que considera factível. As
fronteiras entre memória e imaginação são tênues, e isso será notado pelos leitores e
críticos que virão a seguir.
Embora a biografia seja um gênero que não deixa de utilizar o ficcional para
preencher lacunas ou alcançar uma tese central em torno do biografado, há amarras que
a prendem ao acontecido, assim como ocorre com o trabalho do historiador 428 .
Praticamente todos os biógrafos de Padre Cícero eram jornalistas e se apoiaram, senão no
acontecido, na documentação encontrada sobre o que aconteceu. Edmar Morel, por
exemplo, apresenta, no início de sua obra, uma espécie de manifesto: “Nunca, na minha
vida de jornalista, abandonei o fato. A ficção é para o romancista, o poeta, o dramaturgo.
O repórter vive de informação que não admite contestação”429. Como jornalista, apegaria-

427
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 29.
428
Segundo François Dosse, contudo, “[...] o gênero biográfico encerra o interesse fundamental de
promover a absolutização da diferença entre um gênero propriamente literário e uma dimensão
puramente científica – pois, como nenhuma outra forma de expressão, suscita a mescla, o caráter
híbrido, e manifesta assim as tensões e as conivências existentes entre a literatura e as ciências
humanas”. DOSSE, François. O Desafio biográfico – Escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2000. p.
18
429
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O Santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
1.
205

se à defesa da verdade dos fatos, seguindo uma tendência descrita por Boas, que afirma a
ideia jornalística de que “[...] a verdade só poderia estar nos fatos, porque os fatos são o
real, o real concreto; e o real concreto é aquele que se apresenta materialmente à nossa
percepção”430. Nesse jogo, o importante papel simbólico desempenhado pelo biografado
— no caso, Padre Cícero — é negligenciado, por ser impalpável 431 . Algo semelhante
ocorrerá com Otacílio Anselmo, que descreverá seu livro como uma obra repleta de
citações e referências, devendo constituir, segundo sua ambição, “[...] uma retificação
histórica, elaborada sem outro objetivo a não ser a narração da verdade [...]”. Havia em
Anselmo a ânsia de corrigir todos os seus antecessores. Ele não era, porém, o primeiro:
muitos autores escreveram com o mesmo objetivo.
No quesito “transparência”, os biógrafos de Padre Cícero são razoavelmente
honestos; revelam bastante de suas fontes e métodos. Não se sabe, contudo, quais
documentos e narrativas foram descartados na feitura de seus livros, assim como pouco
se sabe sobre o motivo de terem escolhido Padre Cícero, e não qualquer outro
personagem, para biografar. Otacílio Anselmo, por exemplo, encarou um desafio de alta
envergadura. Afirmou, inclusive, que seu livro seria algo imprudente:

[...] porque a verdade – para quem vive à sombra da farsa e da mentira e de sua
exploração – incomoda e dói, irrita e enfurece. Mas foi justamente inspirado
nela – na verdade – que me propus a escrevê-la em termos inacessíveis a
intelectuais prudentes, que há de sobra neste País. Determinado a esse
desiderato, consumi cerca de oito anos de estudos e pesquisas, durante os quais
mergulhei em cartórios e bibliotecas, rebusquei arquivos públicos e
particulares, transcrevi documentos e tomei depoimentos pessoais, resultando
de tamanho esforço um acervo documental abundante e irrefutável.432

Para Anselmo, o fato de basear-se em documentos oficiais tornaria seu livro


uma obra conclusiva e indiscutível. Partindo dessa premissa, ele chega mesmo a contestar
a data de nascimento de Padre Cícero, comemorada sempre em 24 de março. Ao encontrar
um documento assinalando o nascimento do sacerdote em 23 de março de 1844, Anselmo
passa a defender que o salto teria o objetivo de vincular o nascimento do Padrinho ao dia

430
BOAS, Sergio Vila. Biografismo: Reflexões sobre as escritas da vida. São Paulo: Editora Unesp, 2008.
p. 162.
431
Conforme afirma Albuquerque Jr. sobre aqueles que se dedicaram a estudar o Nordeste, “[...] o discurso
dos intelectuais marxistas tende a abordar fenômenos como o cangaço, o messianismo e o coronelismo
a partir de seus determinantes sociais, reduzindo-se quase sempre a mera explicação econômica”.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife:
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p.196.
432
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
s.n.
206

25 de março, quando se comemora a Anunciação de Nossa Senhora. O autor de Padre


Cícero – Mito e realidade afirma ainda que “[...] admitindo-se que a ideia dessa
transposição de data tenha partido dele, a fraude se ajusta à vaidade doentia de que foi
portador”433. Essa “descoberta” de Otacílio Anselmo, exposta logo no início de seu livro,
vem demonstrar parte de seu processo de escrita, que, embora seja baseado em
documentos oficiais, não se nega a emitir juízos de valor434.
Enquanto Morel e Anselmo buscavam corrigir os erros de narradores anteriores e
mostrar a verdadeira — e má — face de Padre Cícero, Manoel Dinis, Reis Vidal, Teófilo
Machado, Assis Leite e tantos outros afirmavam ter o objetivo de fazer justiça. Os
primeiros tinham mais método e menos empatia. Os últimos tinham mais empatia do que
método. De toda forma, cada um desses sujeitos elaborou sua própria teoria acerca da
influência de Padre Cícero sobre Juazeiro, ou sobre a influência de Juazeiro sobre Padre
Cícero.

Para Morel e Anselmo, ele era um exemplar típico do homem sertanejo: rude,
indisciplinado, agressivo, inculto. Seus defensores, por outro lado, o pintavam como
exceção máxima, raro exemplar de homem ilustrado no sertão. O Padre Azarias Sobreira,
por exemplo, afirma ter publicado, em 1968, seu O patriarca de Juazeiro por um
imperativo de consciência, porque Deus assim quis. Declara que, após ter venerado o
Padrinho na infância, foi hostil na adolescência, chegando à maturidade, finalmente, com
o objetivo de ser justo. No balanço geral dos estudos publicados até 1968, Sobreira avalia:

Já se editaram obras e obras de puro devaneio ou de manifesta difamação em


torno dessa tão discutida figura de sacerdote e patriarca dos sertões
nordestinos. Eis porque já me parece azado o momento de pôr no devido relevo
as suas qualidades positivas, as virtudes cristãs que o exornaram e dele fizeram
o maior centralizador de energias do hinterland brasileiro [...]. Quem quer que

433
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
18.
434
Amália Xavier refuta alguns dados e se mostra extremamente ofendida com informações referentes à
sua família publicadas por Otacílio Anselmo. Segundo Anselmo, em 1926 teria sido elaborado um plano
para assassinar Floro Bartolomeu. Miguel Jordão, romeiro do Padre Cícero, foi contratado para efetivar
o plano. Teria partido para o Rio de Janeiro, recebendo pagamento, armas e dinheiro. Lá chegando,
entregara uma carta de José Xavier de Oliveira para o filho, Antonio Xavier de Oliveira, em que tudo
era explicado. Anselmo afirma que o autor de Beatos e cangaceiros não permitiu que o crime se
realizasse, prevendo ainda que Floro Bartolomeu, pelo estado de saúde em que se encontrava, em breve
morreria. A escritora juazeirense visitou Miguel Jordão da Silva, que lhe concedeu um documento
afirmando que jamais entregara carta alguma. Assim, Amália afirma que Anselmo “[...] publicou no seu
livro a mais negra calúnia que se poderia atribuir a uma pessoa” OLIVEIRA, Amália Xavier de. O
Padre Cícero que eu conheci - Verdadeira história de Juazeiro. Fortaleza: Premius, 2001 [1969]. p.
365. A autora acredita que Otacílio, embora se apoie bastante em documentos oficiais, muitas vezes se
baseia sobre narrativas que podem ser falsas.
207

se propôes, até hoje, estudar a figura do Patriarca de Juazeiro, viu-se


embaraçado entre os hosanas populares e o tom reticente e suspicaz das classes
pensantes.435

De um lado, Manoel Dinis, Reis Vidal e Tristão Romero escrevem para


defender o sacerdote de qualquer injúria, assim como para elogiar seus feitos e garantir
que, graças a ele, Juazeiro se transformara em cidade grande e industriosa. Seus livros,
elaborados com pouco método, escritos com parcos recursos e publicados por pequenas
editoras, tiveram pouca circulação. Por outro lado, Edmar Morel, Otacílio Anselmo e
Azarias Sobreira lançaram extensas publicações com ampla circulação, fartamente
salpicadas de citações bibliográficas, atingindo todo o Brasil e tornando-se referência
naquilo que dizia respeito ao Padrinho e a Juazeiro.
As biografias de Padre Cícero, portanto, dividem-se entre aquelas que tratam
de sua ascensão e decadência (nesse caso, ele levaria consigo o munícipio que fundou) e
aquelas que promovem uma espécie de embalsamamento de seu corpo morto: as vísceras
são eliminadas, bem como tudo aquilo que cheira mal, restando somente o cândido fruto
de uma operação plástica. É o que ocorre, por exemplo, com o livro escrito por Lauro
Reis Vidal. De acordo com o jornalista e cineasta, o Padre Cícero, ao longo de sua
existência em Juazeiro, passou “[...] tranquilamente os dias entregue apenas à nobilitante
missão de evangelizador das almas, semeando o bem e a cordura, espalhando o amor entre
os homens, num verdadeiro apostolado”436.
É preciso destacar que todas essas narrativas, embora tenham sido escritas
entre 1934 e 1969, não se detêm sobre seu próprio tempo, mas sobre o período em que
viveu Padre Cícero. Há, assim, uma lacuna sobre os eventos ocorridos após o
desaparecimento do sacerdote, que foi preenchida, de certa maneira, somente por
Agostinho Odísio.

6.2 O Juazeiro de Padre Cícero

Em 1968, Otacílio Anselmo afirma que, após a morte do sacerdote, “[...]


voltou à tona, e com igual vigor, aquela literatura louvaminheira que tanto enaltecera Pe.

435
SOBREIRA, Pe. Azarias. O Patriarca de Juazeiro. Petrópolis: Vozes, 1968. p. 11.
436
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 19.
208

Cícero”437. Com efeito, os primeiros ensaios biográficos lançados após o desaparecimento


do Padrinho foram escritos por autores que conviveram com ele e o enchem de confetes
e louvores. São amigos do santo sertanejo, e suas obras pretendem destacar as melhores
qualidades que possuiu. As duas tentativas iniciais de biografar Padre Cícero vieram de
Manoel Dinis e Reis Vidal, como já foi dito.
Manoel Dinis conheceu o sacerdote em fevereiro de 1912. Afirma que, logo
após ter se graduado em Direito, na cidade de Recife, teria se deslocado ao sul do Ceará
porque tinha o intuito de “[...] colher dados positivos, para publicar um livro contra o
Padre Cícero e o Juazeiro” 438 . Foi o primeiro advogado de profissão a se instalar na
cidade, onde chegou a fundar um colégio. No final de 1912, mudou-se para o Pará, mas
retornou em 1914. Conviveu de perto com o sacerdote por muitos anos, travando com ele
conversações sobre os mais diversos temas.
Já em 1935, um ano após a morte do Padrinho, Dinis publicou o seu Mistérios
do Joaseiro. Sobre o livro, afirmou que seria uma narrativa neutra e objetiva. No entanto,
logo nas primeiras páginas, atacou nominalmente um dos maiores detratores do Padrinho,
afirmando: “Alencar Peixoto é um leigo e muito despeitado com o Patriarca, por
interesses que foram prejudicados, por motivos que ele atribui ao hoje ilustre morto”439.
Embora tenha assegurado escrever uma obra imparcial, Dinis fez intenso uso das citações
de críticos de Padre Cícero para rebater, sempre que possível, as censuras feitas ao
sacerdote.
Lauro Reis Vidal também publicou uma biografia pouco tempo após a morte
do Padrinho, mais especificamente em 1936. Era cearense, como praticamente todos os
outros biógrafos do sacerdote, e esteve em Juazeiro várias vezes, por longos períodos de
tempo, mantendo relação íntima com o Padre Cícero e tendo, inclusive, hospedado-se em
sua casa. Atuou como jornalista e produtor de filmes e foi um dos responsáveis pela
tentativa de reabilitar o nome do sacerdote entre os intelectuais do país. Sua obra tem
forte caráter de propaganda. Vidal, logo no início de seu Juazeiro visto de perto – O Padre
Cícero Romão Batista, sua vida e sua obra defendeu que era necessário desfazer a

437
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
583.
438
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p.174.
439
Op. cit., p. 18.
209

impressão de que Juazeiro seria um “[...] meio infenso à evolução natural das sociedades
hodiernas”440.
Edmar Morel e Otacílio Anselmo acreditavam que a produção intelectual de
Reis Vidal tinha como objetivo a obtenção de vantagens políticas junto ao Padrinho.
Segundo Morel, a morte de Floro Bartolomeu obscureceu a vida de Padre Cícero que, a
cada dia mais velho e doente “é cercado por uns cavalheiros sem profissão definida e
jornalistas com rótulos de escritores, quase todos ambicionando o lugar de deputado
federal, vago com o falecimento daquele médico”441. Otacílio Anselmo também acredita
que, após a morte de Floro Bartolomeu, padre Cícero passou a ser cercado por diversas
personalidades que buscavam apadrinhamento político. O sacerdote, descontente pela
falta de influência política na esfera federal, teria adquirido a ideia fixa de substituí-lo.
Assim, teria sido assediado uma porção de pretendentes ao cargo: “[...] disputavam-no,
em primeiro plano, Raimundo Gomes de Matos e Juvêncio Santana, seguidos de Pedro
Coutinho e Reis Vidal”442.
Tanto Manoel Dinis quanto Reis Vidal construíram narrativas que pretendiam
situar Padre Cícero como fator de progresso para Juazeiro e a região, o oposto do que
havia sido defendido por inúmeros escritores e jornalistas até então. Manoel Dinis, por
exemplo, afirmou que o sacerdote

[...] fez do povoado de Juazeiro um seio de Abraão, ao contrário do que fora


antes de sua chegada aqui, quando é notório que pessoas que viajavam da feira
do Crato, para Missão Velha, se desviavam para não passarem pelo Juazeiro,
receiando (sic) ser vítimas ou testemunhas de alguma arruaça, cachaçada, tiro
ou facada de uma molecagem insubordinada que vivia aqui, onde o mau
costume era o tipo local, pois para tanto infelizmente tinha corrido com o
exemplo da sua má vida de mancebia, o Capelão anterior ao Padre Cícero
[...].443

A função moralizadora de Padre Cícero é citada por numerosos biógrafos.


Mesmo aqueles que ficaram conhecidos como detratores do sacerdote costumam elogiar
a vida casta e proba que levou, censurando por vezes somente seu autoritarismo ao

440
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 22.
441
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
111.
442
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
550.
443
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 33.
210

castigar, até mesmo fisicamente, os “pecadores” 444 . De acordo com as mais diversas
narrativas, no início de sua trajetória, o Padrinho não era um poço de afeto, mas um duro
fiscal dos sertanejos que moravam no povoado445. Segundo os biógrafos mais simpáticos
ao sacerdote, foi desse modo que Juazeiro deixou de ser um local evitado, passando a ser
procurado. O Padrinho já influía positivamente na vida do povoado antes mesmo do
milagre de 1889.
Reis Vidal tentou demonstrar ainda que Padre Cícero não atraía bandidos para
Juazeiro com o objetivo de utilizar a mão de obra criminosa, como faziam os demais
coronéis, mas era responsável, ao contrário, por controlar e converter aqueles que saíam
dos trilhos. Ao defender que Padre Cícero protegeu sua terra do cangaceirismo, por
exemplo, Vidal assegura que Padre Cícero tentara, até o fim, converter Lampião. Aos que
afirmavam ser o Juazeiro uma espécie de inferno na terra, o jornalista afirmava bastar
uma visita ao município para que se percebesse uma cidade que refletia as qualidades de
seu fundador:

A má fé e as mais das vezes a origem suspeita de onde promanam as


informações sobre o Joaseiro social, levaram a imprensa brasileira a espalhar
por todos os quadrantes da nacionalidade os mais disparatados conceitos a
respeito daquela longínqua região, erroneamente tida por certa parte da
população como antro de celerados de todas as espécies. E de tal maneira está
este conceito radicado no espírito dos outros brasileiros que, não é sem
justificado receio que o jornalista transpõe os umbrais da populosa cidade do
Cariry, na persuasão de encontrarem seus olhos concretizadas, nas ruas de
Joaseiro, as mais apavorantes cenas. Logo ao descer do comboio ferroviário,
após uma enfadonha viagem [...] a surpresa é imensa. O ‘habitat’ do patriarca
não podia ser um antro de bandidos. Nem o Padre Cícero era o protetor vulgar
de cangaceiros, de que tanto se há falado. O grande levita era um bom por
temperamento e educação.446

Através dessas narrativas elogiosas era construída uma versão da história


em que o Padrinho não possuía os defeitos tão propalados pela imprensa nacional. A
cidade tinha sido liderada por um homem inteligente e generoso, não podendo ser o antro
de fanáticos que se costumava afirmar. Reis Vidal já havia aderido a essa campanha de
“limpeza” da honra de Padre Cícero bem antes da publicação de seu livro. Em 1932, após

444
Otacílio Anselmo afirma que, “[...] de volta ao meio rústico de onde proviera, despontou-lhe a índole
autoritária da qual as primeiras vítimas foram seus alunos [...]”.444 ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero,
mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 44.
445
São narrados, por exemplo, episódios em que Padre Cícero aplicava “bolos” nos casais que haviam
desfrutado os privilégios do matrimônio antes de obterem o sacramento.
446
VIDAL, Reis. Padre Cicero - Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 54
211

a exibição de um filme de sua lavra sobre o sacerdote, foi veiculado no jornal paraibano
O Norte um artigo que apresentava um panorama geral do investimento de Vidal na
metamorfose das opiniões sobre Padre Cícero e Juazeiro:

Phenomeno interessante de concentração de uma collectividade heterogênea e


hybrida, em pleno primitivismo tribal, em torno à figura apostólica e rustica de
um thaumaturgo, Joaseiro, essa nação perfeitamente autônoma, é a realização
talvez do sonho de Antonio Conselheiro que as armas da Republica não
permittiram que se realizasse, destruindo a povoação disforme do interior da
Bahia [...]. O Padre Cícero, que reúne qualidades de chefe e patriarca à maneira
bíblica, superior, na sua visão sociológica, ao fanático de Canudos, organizou
em Joaseiro uma espécie de fascio semi-barbaro, disciplinado e concentrando
em torno à sua pessoa magica todas aquellas populações dispersas e nômades
dos sertões do nordeste.447

Mesmo para defender o Padre Cícero, o artigo não deixava, como era comum,
de estabelecer comparações entre Juazeiro e Canudos. Padre Cícero teria feito da cidade
uma experiência que deu certo, uma Canudos bem-sucedida. Seu mérito seria o de
transformar em civilizada uma coletividade considerada primitiva. Desse modo, embora
fosse rústico como o povo que o seguia, Padre Cícero, com seu caráter de patriarca, pôde
colocar em ordem o desalinho mental que era próprio de seus afilhados. Essa era, de fato,
uma tese defendida pelos “amigos da memória” do Padrinho.
Como já se discutiu anteriormente, era muito comum a ideia, entre os
intelectuais do país, de que a população sertaneja, especificamente a do Cariri ou de
Juazeiro, fosse constituída por homens e mulheres selvagens e violentos, de hábitos
morais reprováveis. Eram incivilizados que foram debilmente evangelizados por
sacerdotes igualmente imorais, até que o segundo capelão de Juazeiro chegasse para
transformar a situação. Tristão Romero, por exemplo, afirma, em 1950, que por tradição
e legado de sangue os descendentes dos primeiros povoadores do Cariri eram
beligerantes, conflituosos, nômades e viviam a serviço do crime. Quem teria modificado
essa situação? Padre Cícero, claro:

Embora, ao lado dessa população corrupta, existissem alguns elementos


sadios, não moravam na Sede do povoado. Viviam em suas propriedades
entregues ao seu labor quotidiano, aparecendo em Juazeiro somente aos
domingos e dias santificados, para assistirem à santa Missa, ou qualquer outro
ato de culto religioso. Cooperavam com o Padre no trabalho de regeneração
daquele povo inculto e mal (sic) por natureza. A parte mais difícil dessa tarefa,
entretanto, somente o santo Capelão conseguia realizar. Somente ele dispunha
de tempo suficiente para este mister que tanto o deleitava, porque esta operação
constituía a razão de ser de sua própria existência. Amava aqueles demônios

447
ANTECIPANDO O JULGAMENTO para a posteridade. O Norte, João Pessoa, 26 de maio de 1932.
212

como se foram os seus filhos esforçando-se por transforma-los em Anjos,


amigos do Bem e tementes a Deus. Agia com a mesma brandura como
Anchieta na catequese dos brutos Selvagens [...]. O Juazeiro de 1872 era quase
o Brasil de 1600, pedra bruta, que o Grande artista lapidara com a ferramenta
que somente a fé pode oferecer ao homem.448

Tristão Romero era o pseudônimo de Francisco de Assis Leite, jurista nascido


em Milagres (CE), em 1911. Ele foi responsável pela publicação do Almanaque do Cariri
(1949) e representava, então, o papel de intelectual da terra. Não se sabe por que, para o
lançamento dessa obra, utilizou um pseudônimo. Segundo a hipótese levantada por
Romero, teria havido uma população “sadia” no antigo povoado (constituída pela elite
tradicional de Juazeiro), mas se tratava de uma minoria. A regra era viverem ali, antes da
chegada do sacerdote, pessoas más por natureza, demônios que ele viria a transformar em
anjos. Sob esse ponto de vista, Padre Cícero se impõe não apenas como uma espécie de
evangelista ou catequizador, mas como um escultor de almas. A bondade atribuída ao
sacerdote contrasta com a vocação supostamente natural dos habitantes locais para o
crime.
Assim como José de Anchieta introduziu o catolicismo no Brasil, Padre
Cícero teria sido responsável por apresentar o evangelho à inculta e bárbara população de
Juazeiro. Desse modo, a selvageria não seria fruto do fanatismo em torno do sacerdote.
Seria, sim, um dom natural daquela população, que ele se esforçava para transformar. Da
mesma maneira, Juazeiro não era um acampamento, um arraial repleto de moradias
vulneráveis por causa do sacerdote. Era, sim, um povoado pobre, que graças ao seu
esforço se transmutara em cidade razoavelmente organizada.
Segundo Manoel Dinis, “Roma começou por ser um grupo de ladrões” e o
Padrinho via nesse exemplo a possibilidade de “[...] edificar uma grande cidade católica
e realmente civilizada, com elementos étnicos tão heterogêneos” 449 . Reis Vidal era
partidário da mesma tese. Para ele, no entanto, não era o caráter de evangelista o mais
importante da personalidade do sacerdote, mas sua atuação política. Esse fator, segundo
Vidal, teria garantido o avanço do povoado, sendo responsável por sua transformação em
cidade:

448
ROMERO, Tristão. Vida completa do Padre Cícero Romão Batista – Anchieta do século XX.
Juazeiro do Norte: s.n., 1950. p. 30.
449
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p.125.
213

Isolado da vida trepidante das metrópoles, entregue com devotada atenção aos
estudos geraes e sobretudo ao das reformas políticas operadas no século, o
patriarca do Juazeiro, comunicando-se com o resto do Paiz apenas pelo
telegrafo, tornou-se, dentro de bem curto espaço de tempo, uma espécie de
oraculo, constantemente consultado pelas personalidades mais destacadas do
regimento.450

O isolamento de Padre Cícero era visto como uma qualidade. Seu


distanciamento das questões políticas nacionais era somente uma ilusão, pois ele estava
em comunicação constante com grandes personalidades, sendo inclusive consultado sobre
importantes temas. Interessante é notar que, para Edmar Morel, biógrafo que viria a
seguir, o sacerdote pecava justamente por se omitir nos assuntos do país. Essas visões
dicotômicas — e muitas vezes contraditórias — sobre o Padrinho eram comuns entre seus
biógrafos. Reis Vidal, por exemplo, defende que “[...] do Padre Cicero teve sempre pela
instrucção o mais desvelado carinho”, afirmando que uma fonte incontestável — “[...] um
dos maiores inimigos do Padre – Paulo de Moraes e Barros” — já havia mencionado que
ele instituíra três escolas municipais, além de 82 particulares, custeadas por ele451.
Manoel Dinis, por sua vez, afirma que, para educar e instruir “[...] tanta gente
de ideias e de costumes bárbaros ou quase selvagens, pois mesmo índios autênticos,
mansos, vieram do Maranhão e do Piauí até aqui”, Padre Cícero teve a autoridade moral
que nenhum outro homem teria, acrescentando ainda que era necessário notar quão
benemérita foi sua atuação em Juazeiro, pois “em relação a tal hibridismo social e
étnico”452, ele era o educador máximo. O padre Azarias Sobreira, por sua vez, diria que
“[...] o Padre Cícero viveu sempre idealizando a felicidade e, portanto, a alfabetização de
sua gente, na maior escala possível”453.
Outros biógrafos, contudo, rebatem as informações acerca do número de
escolas em Juazeiro. Edmar Morel, por exemplo, diz que, desde quando chegou ao
povoado, “[...] o capelão não faz nada no terreno educacional. Populações inteiras vivem
na ignorância. Só sabem desfiar o rosário nos dedos e cantar benditos... A ele interessava
este lamentável estado de cousas”454. Otacílio Anselmo recrimina o fato de, ao chegar de
Roma, Padre Cícero não ter se preocupado com a melhoria das condições de vida do seu

450
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 47
451
Op. cit., p. 76.
452
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 132.
453
SOBREIRA, Pe. Azarias. O patriarca de Juazeiro. Petrópolis Vozes, 1968. p. 174.
454
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
44
214

povo, negando-se a abrir escolas primárias. Anselmo afirma que o sacerdote perdeu a
oportunidade de, na Europa, “[...] elevar-se no campo da cultura intelectual, ampliar os
conhecimentos trazidos do Seminário e já, àquela hora, diminuídos por força do convívio
diuturno com pessoas ignorantes”455. Segundo a perspectiva de Morel e Anselmo, Padre
Cícero, ao esquivar-se da tarefa de transformar Juazeiro, acabava sendo transformado
pelos juazeirenses.
Aqueles que defendiam Padre Cícero como um civilizador, contudo,
concordavam, em certa medida, com seus detratores quando se tratava de opiniões acerca
dos habitantes mais humildes de Juazeiro. Manoel Dinis, por exemplo, ao tentar
apresentar um indício do nível intelectual dos romeiros, revela que “[...] muitos deles
criam que o Padre Cícero era Deus e que não tinha nascido, não comia, nem morreria:
parecia que comia, mais (sic) era tudo isto só na vista da gente”456. A compaixão do amigo
do sacerdote não se estendia aos seguidores do santo juazeirense:

Cremos que muitos dos que vieram para esta cidade compraram o bonde, como
dizem de um mineiro, porque fizeram negócios para ficarem verdadeiramente
escorchados: não se conta o número de romeiros que aqui chegaram dispondo
de um bom começo de independência econômica e terminaram morrendo de
miséria ou voltando famintos e miseráveis para suas terras natais. Tal ruína em
parte era devida ao doentio fanatismo que infelizmente grassou (já hoje há
poucos tipos genuínos de fanático dominado completamente por paranoia
religiosa) horrivelmente aqui, a ponto de um comerciante ao chegar nesta terra,
perder seus haveres e seu crédito. Este pobre homem que conhecemos,
entregou sua loja de fazendas a caixeiros menores que, pensando que tinham
entrado na terra dos bem aventurados, vendiam fiado a quem queria ou dizia
que os romeiros são irmãos. Os irmãozinhos acabaram com os bens do
comerciante, enquanto ele rezava na capela de Nossa Senhora das Dores,
tentando de se salvar, e dizem que chegou ao ponto de agitar os braços,
experimentando se já tinha criado asas para voar em busca do céu.457

Quando não eram descritos como incultos, bárbaros, selvagens, doentes ou


criminosos, os afilhados do Padrinho eram tratados como homens puros e ingênuos, que,
deixando-se levar pela fé extremada — ou pelo fanatismo, como os intelectuais de então
costumavam chamar —, eram enganados, ludibriados e prejudicados por gente mais
esperta e menos piedosa. Os narradores de Juazeiro são unânimes em afirmar que, com
ou sem o consentimento de Padre Cícero, muitos eram os que se aproveitavam de sua
“santidade” para tirar proveito dos romeiros. Dinis lembra, inclusive, uma prática já

455
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
258.
456
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 56.
457
Op. cit., p. 55.
215

relatada por Odísio, aquela que diz respeito a uma exploração iniciada antes mesmo de o
viajante chegar a Juazeiro, quando os corretores de casas religiosas (também chamadas
de casas de santos) disputavam os romeiros “[...] como artigos de negócio, a ponto de ter
havido por isto conflitos e até morte de corretores”, conduzindo-os à presença de Padre
Cícero somente “[...] quando eles compravam alguns rosários, santinhos, etc., cobrando
ordinariamente, os corretores, certa quantia por cabeça de romeiro que angariavam para
seus patrões”458.
Reis Vidal esteve em Juazeiro, entre outras vezes, em 1925, quando filmou a
inauguração da estátua de Padre Cícero na praça então batizada de “Almirante
Alexandrino”. Esse evento é marcante nas narrativas locais não apenas pela grande festa
ofertada por Floro Bartolomeu aos importantes personagens do estado e da região, mas
porque em torno dela ocorreram eventos que colocariam em xeque a reputação do
sacerdote e fariam Floro romper com aliados: os crimes de rodagem. Tais crimes são
mencionados em toda a bibliografia acerca de Padre Cícero e Juazeiro. São também
recriminados pelos membros da cultura letrada, que os consideraram bárbaros e cruéis.
Otacílio Anselmo afirma que tudo começou com uma tentativa de
embelezamento da cidade para receber o oficialato que viria inaugurar a estátua. Em 1924,
Floro Bartolomeu retornava do Rio de Janeiro, trazendo sob o braço o discurso proferido
na Câmara, ocasião na qual defendera o Padre Cícero e Juazeiro. Otacílio Anselmo
classifica Juazeiro e o Padre Cícero como “[...] apenas o tiro inicial de prodigiosa
campanha de propaganda livresca em torno do velho sacerdote” 459 . Naquele ano, o
Padrinho seria homenageado pelos seus oitenta anos com a inauguração de uma estátua
de bronze. A solenidade se atrasou, no entanto, acontecendo somente em 1925. No longo
período que a precedeu, o médico baiano preparou a chamada “festa da estátua” 460 .
Edmar Morel situa justamente naquela década um período de amplo sucesso da imagem
de Padre Cícero, acrescentando, no entanto, que muitos se aproveitavam dessa fama,
inclusive o jornalista Reis Vidal:

458
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 55-56.
459
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
514.
460
Op. cit., p. 523.
216

Fazem fitas de cinema. O nome do Padre figura em rótulos de preparados


farmacêuticos, remédio para coceira, para tosse e em caixa de pós de arroz. Dia
a dia cresce a sua fortuna com a achegada de peregrinos distantes. Todos
trazem presentes, em dinheiro, em jóias, em terras, em gado. Uma verdadeira
quadrilha de saltimbancos cerca o sacerdote, usando de todos os meios para
roubá-lo. As quantias saem de suas mãos com a mesma facilidade com que
chegam [...]. A casa do Patriarca é um campo aberto aos exploradores.
Jornalistas e escritores entram em Juazeiro com planos premeditados. O
objetivo é um só: a bolsa do Padre.461

Otacílio Anselmo afirma que, “[...] a pretexto da festa inaugural da estátua de


Padre Cícero, quando a cidade seria visitada pelas mais altas autoridades do Estado”462,
Floro Bartolomeu, sob os olhos de Padre Cícero, perpetrou um verdadeiro terror a partir
de agosto de 1924, com fuzilamentos de criminosos (pobres, em geral), retirados à noite
das cadeias de Juazeiro e conduzidos para o Crato. Ao chegar na fronteira que limitava
os dois municípios, tombavam com as cabeças transpassadas por balas, tendo, no dia
seguinte, seus cadáveres lançados sobre a calçada de uma velha cadeia do Crato. “Lá
deixaram os presos cujos crânios derramaram os miolos, ao se fraturarem com a queda.
O povo culto do Crato fremiu de indignação”463. O prefeito, Antônio Luís, protestou. E
os crimes passaram a ser efetuados somente no âmbito de Juazeiro. Manoel Dinis não
poupa Floro Bartolomeu. Afirmou que os soldados de Juazeiro agiram como bandidos, e
os cadáveres das vítimas foram “conduzidos numa cangalha, como suínos”464.
Esse evento mobilizou a elite intelectual — os membros da cultura letrada
publicaram artigos em jornais com o objetivo de denunciar os desmandos do aliado de
Padre Cícero. Juazeiro era representada na imprensa local como uma cidade bárbara, onde
a lei não era respeitada nem mesmo pelas autoridades. Os denunciantes foram
perseguidos, como ocorreu com Benjamim Abraão, então secretário de Padre Cícero, e o
boticário José Geraldo da Cruz, que teve seu jornal O Ideal empastelado. Floro, inclusive,
tentou rebater as acusações referentes aos fuzilamentos com a fundação de um jornal
próprio, a Gazeta de Juazeiro. Ao descrever o primeiro ato autoritário de Floro
Bartolomeu, o advogado Manoel Dinis assevera que

461
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
83.
462
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
515.
463
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 106.
464
Id., ibid.
217

[...] ele jamais agiu como Prefeito deste município e sim, como segunda
pessoa do Padre Cícero, sempre que este era Prefeito. Tais períodos de gestão
municipal nunca tiveram arrecadação regular de imposto, nem escrita, nem o
menor melhoramento pago por este Município. Por isto o Dr. Floro fez
compulsoriamente o calçamento das principais ruas desta cidade, sem a menor
formalidade legal, cobrando dos proprietários das casas [...] e pagando aos
empreiteiros apenas a metade das [...] quantias.465

Segundo os relatos desse período, Floro Bartolomeu agia de maneira


autoritária e centralizadora, fazendo cobranças compulsórias e providenciando uma certa
política higienista em torno da cidade. Esse evento é fundamental nas biografias que
tratam do Padrinho. Seus defensores o colocam como inocente ou manipulado por Floro
Bartolomeu. Seus críticos o consideram omisso e responsável pelos crimes cometidos. O
fato passa a delimitar um período específico, aquele em que se tenta construir, em
retrospecto, a imagem de Padre Cícero como político.
Manoel Dinis, ainda no início de sua narrativa, enreda os mais diversos temas
tratados por outros biógrafos. Um ano após o desaparecimento do sacerdote, considera
absurdo que ainda se considere o padre como um fanático. Lembra, inclusive, que o
Padrinho se desviou de uma possível aliança com Antônio Conselheiro:

[...] o Padre Cícero não era um fanático [...], como ainda há quem o diga,
porque se o fosse, dispondo do grande prestígio que tinha, teria se aliado a
Antonio Conselheiro que estava em armas no tempo em que o Padre Cícero
recebeu ordens para ir a Roma, defender-se perante o Papa, ou sair do Juazeiro,
sob pena de excomunhão. E de tal aliança, com rebeldia contra a nascente
República e contra as ordens de Roma, que resultaria? Pelo menos inumeráveis
crimes e mortes em todo o nosso Nordeste. E, talvez, em todo o Brasil. Mas tal
não aconteceu.466

É preciso notar que Manoel Dinis, embora não se assuma como seguidor de
Padre Cícero ou mesmo como pessoa que crê no milagre da hóstia — sobre o qual afirma
não estar habilitado a emitir juízo pessoal por não ter presenciado —, assevera que achava
possível ter havido de fato um fenômeno sobrenatural “[...] se admitirmos com a Igreja
Católica, como fenômenos sobrenaturais, o do caso do vigário de Jony, que já citamos e
diversos outros mais ou menos semelhantes”467. Valendo-se da argumentação de que tais
fatos eram considerados verdadeiros no exterior e poderiam ter se passado também no
Brasil, pergunta retoricamente se deveriam ser privilégio de qualquer outro país, para
então concluir: “Pensamos que não, e nem o Brasil é tão santo, que não precise de algum

465
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935], p. 105.
466
Op. cit., p. 23.
467
Op. cit., p. 98.
218

fato extraordinário, para aviventar-lhe a fé, nem tão condenado, que não precise de tais
manifestações”468. Dinis afirma, além disso, acreditar que Padre Cícero poderia estar, ao
mesmo tempo, em dois lugares. Apoiando-se nas argumentações do médium Carmine
Mirabelli, comenta: “Diziam que o Padre tinha o dom de bilocação, mas isto, só por si,
apenas prova uma particularidade individual”. Segue afirmando que Santo Antônio tinha
a mesma habilidade, acrescentando que Padre Cícero teria dado a entender mais de uma
vez que possuía aquele dom, “[...] dizendo que assistiu a mais de um dos combates da
guerra russo-japonesa”469.
Manoel Dinis escreveu uma obra que se situava na fronteira entre a biografia,
a hagiografia e as memórias. Por esse motivo, Edmar Morel o classifica como “[...] um
dos apressados biógrafos do sacerdote, suspeito por ser um dos seus grandes amigos,
escrevendo um livreto para circular unicamente no Cariri...” 470. De fato, era um livro
frágil, tanto do ponto de vista do conteúdo quanto da forma. Foi impresso, inclusive, num
papel pouco resistente, fruto de uma gráfica local. Ele concluiu sua obra indicando
caminhos para o futuro:

O Juazeiro é, relativamente, uma das cidades mais pobres do Brasil, a despeito


de sua edificação num dos mais promissores e férteis rincões de solo cearense.
Tal fenômeno tem sua explicação em terem vindo para esta localidade, desde
que começou a se desenvolver, quase somente pessoas pobres ou miseráveis
que, a custa de sua fé e de seu trabalho, sob os conselhos do Padim, edificaram
esta cidade, para cujo enriquecimento é necessário nela, o desenvolvimento de
indústrias de fiação e tecidos, de extração do óleo de pequi, etc. para aproveitar
o seu algodão e o operário barato que tem.471

Anselmo, em seu Padre Cícero – Mito e realidade, atribui essa abundância


de mão de obra barata ao fato de Padre Cícero não ter estabelecido escolas em Juazeiro,
preferindo financiar o estudo de jovens moços, como Juvêncio Santana e Azarias Sobreira
— que iriam, futuramente, ser úteis na defesa de seus interesses. Ao pobre, restava “[...]
incrementar a lavoura nas regiões circunvizinhas de Juazeiro”, que se beneficiavam da
“abundância de braços dos rudes ádvenas”472. Do mesmo modo, Edmar Morel diria que
o povo do Juazeiro estaria condenado a viver sem instrução, embora tivesse demonstrado

468
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935], p. 98.
469
Op. cit., p. 56.
470
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
131.
471
DINIS, Manoel. Mistérios do Joazeiro. Fortaleza: IMEPH, 2011, [1935]. p. 262.
472
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
62.
219

grande potencial ao montar pequenas indústrias e fazer surgir uma geração de artistas
especializados. Destaca que em 1946 existiam, em Juazeiro “[...] dezenas de ourivesarias,
ferrarias, fábricas de punhais, de chapéus de palha, de capas para chuva feitas com
maniçoba, de fósforos grosseiros, de sapatos [...], de artigos para montaria, de
mosaicos”473, etc.
Tais aspectos, relacionados ao crescimento urbano e ao potencial econômico
da cidade, eram amplamente discutidos pelos defensores do Padrinho. O Padre Azarias
Sobreira, por exemplo, afirmou: “[...] o misticismo em torno do Padre Cícero, embora
continue muito indelével na alma popular [...], vai aos poucos cedendo espaço às ideias
de renovação material e espiritual”474. A partir desse argumento, defendeu:

É, na realidade, ao lado da Cidade Santa que amortece, uma Cidade


Econômica, movimentada, visitada, admirada, de quantos ali chegam,
assaltados de surpresa de encontrar, em vez dum aglomerado de romeiros,
como já foi, uma urbe elegante, clara, acolhedora, plena de energia e de
trabalho [...].475

Juazeiro já não era o reduto de romeiros que se imaginava. Seu futuro tinha
se adiantado. Se algum misticismo perdurava, não constituía um imã em direção ao
passado. A transformação trazida pela modernidade era, segundo Azarias Sobreira, um
novo fato extraordinário de Juazeiro. Cabe dizer que o crescimento da cidade gerou as
mais diversas impressões. O padre Antônio Gomes de Araujo, em seu Apostolado do
embuste, defendeu que o propalado milagre da hóstia foi, na verdade, uma armação
protagonizada por José Marrocos.
Sob sua perspectiva, Padre Cícero foi também vítima dessa enganação, mas,
ao saber da verdade, teria se calado: “Antonio Luis o censurou pelo fato de não haver
dado divulgação ao embuste de que fora vítima. Defendeu-se, o exprobado, alegando que
a revelação teria entravado o crescimento de Juazeiro”476. Assim, o milagre e a fé no
Padrinho são considerados como elementos centrais para o progresso da recém-nascida
cidade. Por outro lado, Padre Cícero é encarado como uma espécie de marionete, já que
o padre Antônio Gomes defende ter sido José Marrocos “[...] o cérebro do Padre Cícero

473
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
142
474
SOBREIRA, Pe. Azarias. O patriarca de Juazeiro. Petrópolis: Vozes, 1968. p. 289.
475
Op. cit., p. 290.
476
ARAUJO, Antonio Gomes de. Apostolado do Embuste. Revista Itaytera, n. 1, p. 6, Crato, Edições
Itaytera, 1956.
220

na questão do embuste, como Floro Bartolomeu, no campo político”477. Araújo acredita


ainda que José Marrocos teria fabricado o milagre através de uma reação química, tendo
em vista “[...] a projeção social do Padre Cícero e Juazeiro e, dentro dessa paisagem, o
seu próprio destaque”478.
Poucos anos após a morte do sacerdote, em 1938, Irineu Pinheiro também se
aplicou a escrever sobre Padre Cícero e Juazeiro. Sua obra não pretendia ser, como as
demais, somente uma biografia. O objetivo era, sobretudo, estudar um período específico:
a Revolução de 1914. Seria impossível, no entanto, deixar de falar do sacerdote e de sua
influência sobre a nova cidade, por isso faz sentido o título: O Joaseiro do Padre Cícero
e a Revolução de 1914. Pinheiro declara, então, que “[...] foi o padre Cícero – não há que
duvidar – um dos maiores fatores de progresso da vida econômica sul cearense” 479. O
jornalista defende que a imigração dos romeiros foi responsável, entre outras coisas, pelo
sucesso da agricultura no vale caririense. Segundo ele,

Muito discutida, repito, a ação do padre Cícero durante sua vida e depois da
morte. Há os que na larga existência do venerado pastor só enxerguem
gravíssimos defeitos. Faltam-lhes aqueles sentimentos generosos, que geram a
imparcialidade, indispensáveis, portanto, aos que se aventuram a descrever os
sucessos de uma época, ou a traçar a biografia de um homem. Foi ele, o padre
Cícero, o Consolador dos humildes e desprotegidos do Nordeste. Todos os que
o procuravam, desiludidos dos poderosos, nele encontravam invariavelmente
o carinho de uma palavra, ou de um gesto amigo [...]. Foi, na realidade, o
Consolador das gentes abandonadas dos sertões, que sempre tiveram fome e
sede de justiça.480

Irineu Nogueira Pinheiro foi um médico e jornalista cratense nascido em


1881. Fundou o jornal Correio do Crato, tendo colaborado ainda com muitos outros. Foi
também o primeiro presidente do Instituto Cultural do Cariri. Além de escrever sobre a
Revolução de 1914, Pinheiro publicou biografias e livros sobre a história do Crato. Teve
participação ativa na Sedição, como tantos outros que apoiavam Accioly. Pinheiro afirma
que, ao escrever sobre Juazeiro, seu objetivo era “evitar que fossem esquecidos alguns
fatos da vida política do Ceará, especialmente da do sul do Estado. Esquecidos ou

477
ARAUJO, Antonio Gomes de. Apostolado do Embuste. Revista Itaytera, n. 1, p. 20, Crato, Edições
Itaytera, 1956.
478
ARAUJO, Antonio Gomes de. Apostolado do Embuste. Revista Itaytera, n. 1, p. 21, Crato, Edições
Itaytera, 1956.
479
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Fortaleza: IMPEH, 2011
[1938]. p. 166.
480
Op. cit., p. 166-167.
221

deturpados pela tradição oral”481. Em uma das notas finais do livro, admite que é “[...]
empresa difícil a análise de almas, perscrutar-lhes os recessos mais interiores e ocultos”,
por isso não foi seduzido pela ideia de dissecar a complexa personalidade do patriarca de
Juazeiro. Nota, porém, que em 1938 já eram muitos os biógrafos do Padrinho, pois afirma
que ninguém foi “mais diversamente julgado em vida e depois de morto do que o padre
Cícero. Uns consideram-no digno de figurar o hagiológio cristão e outros julgam-no como
heresiarca sinistro, grotesca caricatura de fanático e megalômano”482. Pinheiro dizia ter
a pretensão de se afastar de tais extremos. Seu intuito era falar sobre um homem que
sobrevivia na estima da gente humilde. O surpreendia o fato de “inda hoje” (em 1938),
continuarem “[...] as visitas ao seu túmulo, na pequenina e modesta igreja de N.S. do
Perpétuo Socorro da cidade que fundou e em que por dilatados anos residiu”483.
Chama a atenção do jornalista cratense — e dos demais intelectuais —, ainda
serem constantes as homenagens feitas pelos afilhados de Padre Cícero, mesmo três anos
após sua morte. Para Pinheiro, essa permanência não denota algo ruim, mas uma
qualidade do sacerdote que permanecia conseguindo mobilizar seus devotos mesmo após
a morte. Era, no entanto, algo surpreendente, inesperado.
Além dos devotos, muitos outros não se esqueceram de Padre Cícero. Os
“amigos de sua memória” viriam a defendê-lo dos muitos ataques sofridos. Segundo Reis
Vidal, “[...] resta-lhe, depois da morte, a justiça dos porvindouros”484. Tristão Romero,
por exemplo, notava que os romeiros continuavam seguindo os conselhos do Padrinho
mesmo após 1934:

E assim, formando homens, com o trabalho, o exemplo e a palavra, formava


também um povo, que embora vivendo esparço (sic) por todo o território
nacional, permanecia unido pela sua palavra de ordem e pelo pensamento do
Padre Cícero, o seu Guia, Mestre e Amigo. Este fenômeno sociológico perdura
ainda hoje após a morte do venerável patriarca de Juazeiro, porque o Padre
Cícero continua vivo no coração de seus devotos e afilhados [...].485

481
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Fortaleza: IMPEH, 2011
[1938]. p. 13.
482
Op. cit., p. 149.
483
Op. cit., p. 163.
484
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 69.
485
ROMERO, Tristão. Vida completa do Padre Cícero Romão Batista – Anchieta do século XX.
Juazeiro do Norte, 1950. p. 50.
222

Manoel Dinis, Reis Vidal, Irineu Pinheiro, Tristão Romero e padre Azarias
Sobreira fazem parte de um time que considera Padre Cícero um fator de progresso para
uma região condenada ao abandono. Tais autores elogiam o sacerdote não com base na
discutida santidade de seus atos, mas tomando por princípio a grande e exitosa tarefa
fundar de uma cidade, zelando por ela e por seus habitantes.
Se logo após a morte Padre Cícero recebeu carinhos e afagos de seus
biógrafos amigos, o mesmo não pode ser dito dos trabalhos que vieram a seguir. Parece
que a distância temporal abria espaço não apenas para pesquisas mais densas, mas
também para verdades censuradas e agressões por vezes virulentas. Padre Cícero não foi
poupado. O corpo “esfriara” e já era possível verter sobre ele as mais cortantes palavras.

6.3 Padre Cícero de Juazeiro

Nas décadas de 1940 e 1960, a editora carioca Civilização Brasileira lançou


duas biografias sobre o sacerdote caririense: Padre Cícero – O santo de Juazeiro (1946),
de Edmar Morel e Padre Cícero – Mito e realidade (1968), de Otacílio Anselmo486 .
Ambas possuíam as mesmas cores nas capas: vermelho, preto e branco. O vermelho
provavelmente aludia ao sangue precioso que deu origem à cidade e instituiu a santidade
do Padrinho.
O opúsculo Duas palavras, de José Teófilo Machado, foi publicado em 1948,
entre outros motivos, para “[...] respondermos à malícia com que o sr. Edmar Morel
publicou em livro de sua autoria relativo ao Joazeiro, dois telegramas assinados pelo
Padre Cícero”487. Para rebater o escrito de Morel — que “[...] dá lugar a haver pessoas
que, lendo os ditos telegramas, classifiquem o Padre Cícero como homem politiqueiro,
vulgar e sem moral política [...]” — Machado argumenta que, à época dos telegramas488

486
Cabe lembrar que, na época, as biografias faziam bastante sucesso no mercado editorial brasileiro. “Na
década de 1950, a liberdade seria uma conquista política nova no Brasil, o que conformaria, também,
um importante período para a experiência brasileira. Muitas das produções intelectuais expressariam a
necessidade de se pensar sobre a modernização do país em meio às contradições em curso, tentando
romper com os temores vizinhos da guerra, da ditadura e da repressão política. Nesses anos também se
manteria bastante ativo o mercado editor e leitor do gênero biográfico, no Brasil, possivelmente ainda
estimulado pela voga da ‘epidemia biográfica” – expressão atribuída aos escritores Tristão de Athayde
e Osório Borba, sobre os anos 30’.” SILVA, Ana Rosa Clocet da; NICOLAZZI, Fernando; PEREIRA,
Mateus (Org). Contribuições à história da historiografia luso-brasileira. São Paulo: Hucitec Editora
Fapemig, 2013. p. 427.
487
MACHADO, José Teófilo. Duas palavras. Excertos da vida de Padre Cícero. Juazeiro do Norte:
Tipografia São Francisco, 1948. p. 1
488
Os telegramas em questão tratavam da participação e apoio de Padre Cícero a diferentes personagens
políticos em momentos que envolviam revoltas populares.
223

(1930), “[...] o padre estava quase completamente cego de cataratas”489. O livreto tem
apenas 28 páginas, contendo um resumo biográfico e o testamento do sacerdote. Era uma
obra de caráter local, editada em tipografia da própria cidade e patrocinada, entre outros,
por Manoel Dinis, tendo sido publicada dois anos após a divulgação do livro de Edmar
Morel. Os defensores de Padre Cícero, portanto, continuavam vigilantes.
Em janeiro do ano seguinte, 1949, o Correio do Juazeiro apresentou, na
primeira página de sua segunda edição, uma crítica mordaz ao trabalho de Morel. Antes
de se dedicar a perscrutar a vida de Padre Cícero, o biógrafo escreveu sobre Gago
Coutinho e Sacadura Cabral, aviadores portugueses. Também publicou um livro sobre o
explorador Percy Fawcett, e esse foi seu maior sucesso até então. Segundo Chateaubriand,
editor das duas obras490, ambas teriam se esgotado em 30 dias491. A crítica publicada no
jornal de Juazeiro menciona Gago Coutinho e sua vida aventurosa (1941), bem como E
Fawcett não voltou (1944), comparando-os à obra que Edmar Morel publicou sobre o
sacerdote:

Mas o sucesso de seus dois livros-reportagens, sobretudo do segundo,


estimulou-lhe a vaidade em demasia e ele, sob a influência dessas vitórias,
perpetrou então essa verdadeira monstruosidade: veio a Juazeiro biografar Pe.
Cícero. Custou lhe caro a ousadia, porquanto obteve, como resultado, uma
derrota jornalística e outra de livraria e a animosidade perene dos joazeirenses
que lhe compuseram a obra: ‘O Santo do Joazeiro’. Certo é que ele teve
elementos para escrever a contento, e com a isenção de ânimo precisa, a
história de vida do nosso Taumaturgo. Mas essa historia jamais poderia ou
poderá ser escrita com o acerto necessário por um simples repórter.
Personalidade complexa, místico por excelência, os principais fatos e
incidentes da tribulada existência do Pe. Cicero só se podem explicar e
compreender devidamente à luz de uma análise profunda de sua formação
espiritual, de seu amor a Juazeiro e a sua gente. Porque, na historia de sua vida,
o fato em si é de importância inferior, cumprindo ressalvar tão somente a sua
razão de ser, o gesto que o ditou. Essa análise, e somente com ela se terá
biografia justa e honesta do Pe. Cícero, capaz de reivindicar para ele a posição
que de fato lhe compete ocupar no julgamento dos espíritos esclarecidos, essa
análise não é obra de repórter. Acostumado aos sensacionalismos das notícias
ligeiras, seu espírito não pode demorar-se mais detidamente na apreciação dos
fatos. Assim, o livro de Edmar Morel constitui uma leviandade, uma iniciativa
impensada. Com ele, o conceito do Pe. Cícero, já tão espezinhado por aí afora,
decaiu mais ainda. Quem o levantará?...492

489
MACHADO, José Teófilo. Duas palavras. Excertos da vida de Padre Cícero. Juazeiro do Norte:
Tipografia São Francisco, 1948. p. 1.
490
Frederico Chateaubriand era sobrinho do proprietário dos Diários Associados e foi responsável, entre
outras coisas, pela reformulação — e consequente sucesso — da revista O Cruzeiro.
491
CHATEAUBRIAND, Frederico. A época é do repórter. Diário de Pernambuco, Recife, p. 4, 5 abr.
1946.
492
CORNELIO, E. Um repórter apressado. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 1, 23 jan. 1949.
Espedito Cornélio de Miranda era secretário do então prefeito de Juazeiro, Antônio Conserva Feitosa.
Foi radialista na Rádio Iracema, de Juazeiro, e atuou também como professor na Escola Técnica de
Comércio. Foi ainda superintendente da CELCA.
224

As críticas a Morel foram frequentes em Juazeiro. No mesmo jornal, em


outubro de 1949, era lançado um apelo: em 1950 seria publicada a segunda edição do
Almanaque do Cariri, sob a direção de Assis Leite, que teria oferecido à cidade “[...] nada
menos que 200 páginas ilustradas, devendo o nosso povo cooperar em tão belo gesto, que
poderá ser uma represália às reportagens farsantes de Edmar Morel”493. A busca pelo
patrocínio do almanaque tinha como principal argumento um revide à iniciativa de Morel.
Assis Leite seria o intelectual a quem se confiaria essa tarefa.
De fato, Leite publicou em 1949 o prometido almanaque, intitulado Juazeiro
do Norte – A cidade das pequenas indústrias e do ensino profissional (talvez a primeira
obra sobre a cidade que não trazia em seu título o nome de Padre Cícero). Na exígua
coluna dedicada a falar sobre o sacerdote, afirmava:

Ainda é muito cedo para se fazer o julgamento do homem que impressionou


as populações sertanejas que o aclamaram como seu guia espiritual, de São
Francisco ao Tocantins. A influência moral que o Padre Cícero exercia sobre
os homens se fazia sentir não só entre os camponeses, mas, igualmente, entre
as classes sociais mais cultas [...]. Decorrido mais de um decênio de seu
desaparecimento dentre os vivos, sua obra permanece imutável. A cidade que
fundou, cujo desenvolvimento progressivo assistiu, contribuindo com sua
cooperação, o seu exemplo para o progresso da terra caririense, não sofreu o
colapso que muitos esperavam sucedesse após sua morte. Ao contrário, a
memoria de seu nome venerada pelos sertanejos de todo o Nordeste, tem
contribuído para seu maior desenvolvimento econômico, cultural e social da
cidade das Pequenas Industrias conhecidas em todo o Brasil.494

Em 1950, sob o pseudônimo de Tristão Romero, publicaria um livro


completamente dedicado a analisar a influência do Padrinho sobre o cotidiano de
Juazeiro. Em seu Vida completa do Padre Cícero Romão Batista – Anchieta do século,
saía em defesa do Padrinho:

Estudando o Padre Cícero à luz da Justiça e da Verdade, sem paixão, e com


amor, de início, devolvo aos seus inimigos e detratores de seu nome impoluto,
o cortejo de mentiras, as falsas versões e o ódio atirados contra o nosso querido
e santo Pastor, no intuito malévolo de diminuir o esplendor de sua obra e
desviar os sentimentos de reverente admiração e respeito que lhe devotam os
bons.495

493
COOPEREM COM o “Almanaque do Cariri”. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 6, 23 out.
1949.
494
LEITE, Francisco de Assis. Almanaque do Cariri. Cidade: s.n., 1949. p. 242.
495
ROMERO, Tristão. Vida completa do Padre Cícero Romão Batista – Anchieta do século XX.
Juazeiro do Norte, 1950. p. 4.
225

Assis Leite assevera que se orgulharia caso o seu trabalho alcançasse o


seguinte objetivo: “[...] o maior engrandecimento do nome de quem, em vida, foi um
exemplo palpitante de nobreza e dignidade” e “[...] depois da morte continua sendo o
conforto e a alegria dos que sofrem e nele confiam e esperam” 496 . Pretendia ser o
responsável por “levantar a honra” do Padrinho após o desapontamento causado pela
repercussão de Padre Cícero – O santo de Juazeiro.
Edmar Morel nasceu em Fortaleza, no ano de 1912. Era filho de um barbeiro
que, eventualmente, vendia estampas do Padre Cícero. O nome do sacerdote era muito
falado no estabelecimento de seu pai, e marcava presença nas memórias de sua infância.
De origem humilde, trabalhou durante a juventude numa loja de discos e vitrolas, onde
aprendeu a escutar compositores eruditos. Seu primeiro contato com o jornalismo se deu
em 1931, quando atuou como agenciador de anúncios em O Ceará. Posteriormente,
tornou-se suplente de revisor e auxiliar de repórter. Essas atividades iniciais o impeliram
a investir na carreira. Assim, aos vinte anos, partiu para o Rio de Janeiro em busca de
melhores oportunidades. Lá, rapidamente conseguiu emprego no Jornal do Brasil, onde
não se demorou por muito tempo. Tentou também ser introduzido em A Noite, não
obtendo sucesso. Trabalhou em A Manhã e O Globo, até finalmente se ligar, em 1938, ao
Diário da Noite, onde permaneceria até 1947. Faria carreira justamente nos Diários
Associados, onde passou a atuar como repórter, tendo sido enviado a diversas localidades
para cobrir os mais diversos e relevantes temas. Foi nesse período que escreveu os artigos
que dariam origem, em 1946, ao seu Padre Cícero – O santo do Juazeiro.
Morel afirma que seu objetivo, ao desembarcar em Juazeiro, era escrever
uma obra baseada em fatos, que fosse imparcial e não admitisse contestação497. Declara
ainda: “Sou repórter e, como tal, não devo fazer interpretações sociológicas dos fatos que
narro, à base de documentação e com absoluta isenção de ânimos”498. Padre Cícero havia
morrido há doze anos, mas o jornalista afirmava ter sentido,

496
ROMERO, Tristão. Vida completa do Padre Cícero Romão Batista – Anchieta do século XX.
Juazeiro do Norte, 1950. p. 6.
497
Conforme lembra Ramos a respeito dos telegramas do município (catalogados por Pelúsio Correia e
repassados a Padre Cícero), que vieram a ser utilizados por alguns biógrafos para justificar a fama de
adivinho de Padre Cícero, é preciso destacar que Edmar Morel tentou desenvolver, a partir de tal fonte
“uma explicação minimamente racional para o prestígio que o padre Cícero gozava. É exatamente por
isso que vários autores vão endossar o ‘segredo dos telegramas’ para ‘revelar a verdade’. Não se admitia
uma via interpretativa que não estivesse pautada nos ‘fatos’, longe de qualquer sentido religioso.”
RAMOS, Francisco Régis Lopes. Papel passado: cartas entre os devotos e o padre Cícero. Fortaleza:
Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 2017-208.
498
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
2.
226

[...] ao primeiro contato com o povo, que o Padre deixara uma cidade
mergulhada nas trevas do analfabetismo e de um profundo misticismo.
Limitou-se, durante longos anos, a proteger a escória do crime. Bandidos
caçados pelas polícias de vários Estados do Nordeste, encontravam em
Juazeiro o refúgio que pediram a Deus, com sombra e água fresca, sob a
proteção de uma batina. Sob o tropel do cangaço, Juazeiro progrediu, porém,
fica cada vez mais pobre no campo da cultura.499

Morel defende que Padre Cícero era fruto de seu meio, além de ter sido
influenciado por aventureiros e aproveitadores. É um dos biógrafos que enxergaram o
local, mesmo depois da morte do sacerdote, como um ignorante e místico reduto de
cangaceiros. Segundo o jornalista, Padre Cícero e o advogado Manoel Dinis conversavam
todas as noites, e o sacerdote contava a ele “[...] todos os seus sonhos e visões, verdadeiras
histórias de Trancoso, contos da Carochinha...”500.
É evidente o caráter de biografia ambiciosa impresso à obra de Morel, que se
inicia com a chegada do Padrinho ao Juazeiro, em 1872, e termina com a sua morte, em
1934. O objetivo do jornalista fortalezense não é dissertar sobre Juazeiro, como fizeram
Alencar Peixoto, Floro Bartolomeu, Lourenço Filho e outros escritores que se dedicaram
ao tema antes da morte do sacerdote. Morel é um dos primeiros escritores de renome a
escrever, a partir de importante documentação, uma biografia sobre Padre Cícero —
segundo Frederico Chateaubriand, “[...] numa linguagem clara e característica para o
povo, o leitor encontrará episódios sensacionais que marcaram a vida do Padre Cícero
[...], como sacerdote, como político e revolucionário” 501. Embora efetivamente utilize
documentos na elaboração de seu livro, Morel não escapa, contudo, à tentação de
construir certas teorias acerca de Juazeiro e seu fundador. A obra escrita por ele traz como
fontes fundamentais os recortes de jornais que Padre Cícero fizera 502 e, por vezes,
comentara.
Os principais eventos colocados em tela por ele são aqueles mesmos que
foram fartamente comentados nos jornais que circularam até então: a emancipação do
município em 1911, a Sedição de Juazeiro em 1914, a passagem de Lampião pela cidade

499
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
1.
500
Op. cit., p. 133.
501
CHATEAUBRIAND, Frederico. A época é do repórter. Diário de Pernambuco, Recife, p. 4, 5 abr.
1946.
502
Para maiores informações sobre o arquivo pessoal de Padre Cícero, Cf. PINHO, Maria de Fátima de
Morais; MENESES, Sônia. No Silêncio Obsequioso, preparo minha própria defesa: Pe. Cícero,
arquivista de si mesmo. Revista Observatório, v. 2, p. 172-196, 2017.
227

em 1926, a Revolta de Princesa em 1930, a exibição do filme de Reis Vidal em 1932 —


marcos muito comuns no jornalismo que se dedicou a noticiar Juazeiro. A peculiaridade
de sua obra é a discussão sobre a participação de Padre Cícero na política nacional. Assim,
do regional ao nacional e ao internacional, é possível construir um panorama não apenas
sobre as ações do Padrinho, mas acerca das ideias que defendeu ao longo de sua trajetória.
É importante notar que o jornalista descreveu todos os eventos no tempo
presente, o que pode dar a impressão de que teria conhecido o Padre Cícero pessoalmente
e formado uma opinião pessoal sobre ele. Na verdade, grande parte da narrativa é
construída a partir de livros anteriormente publicados acerca do tema. Entre as fontes
utilizadas pelo jornalista fortalezense, encontram-se as obras de Alencar Peixoto, Manoel
Dinis e Xavier de Oliveira, além das cartas trocadas por Padre Cícero e diversas
personalidades e os já mencionados recortes de jornal. Embora costume dar crédito
àqueles que apresentaram informações relevantes para a elaboração do texto, muitas
vezes Morel não deixa clara a fonte pesquisada. À página de número 11 de seu livro, por
exemplo, afirma que em 1872, quando o sacerdote chega ao povoado, “[...] Juazeiro é um
antro de ladrões de cavalo, ébrios e desordeiros. Poucos trabalham, em regra têm o vício
da embriaguez e vivem com mulheres alegres”503. Tais informações, evidentemente, não
foram parte da experiência que teve, somente em 1946, em sua visita à cidade, mas
também não fica clara a origem dessa descrição.
Como já foi dito antes, muitos foram os paralelos elaborados entre as batalhas
de Canudos e a Sedição de Juazeiro. Edmar Morel não fugiu deles. Segundo ele, “[...] o
sacerdote rústico, com a mesma crendice com que Antônio Conselheiro fez Canudos,
ergue Juazeiro”504. Para o jornalista, no entanto, algumas diferenças se apresentavam em
favor da bravura de Antônio Conselheiro e de suas frágeis tropas, pois Juazeiro se
encontrava em situação diversa em 1914:

É preciso fazer uma diferença entre os dois. Antônio Conselheiro, à frente de


seus homens, lutou contra exércitos organizados, bem aparelhados e dirigidos
por experimentados e bravos comandantes. O Padre Cícero, com seus romeiros
armados e municionados pelo Governo Federal, enfrenta uma tropa tão
covarde que não cai no campo de batalha um só oficial.505

503
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O Santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
11.
504
Op. cit., p. 72.
505
Op. cit., p. 73.
228

A observação de Morel pode ser considerada inconsistente se levarmos em


consideração que Franco Rabelo e suas ações faziam parte de uma política de “salvações”
nacional, enquanto Padre Cícero lutava para não perder o espaço conquistado junto à
oligarquia de Accioly506.
Embora tenha sido mal recebido em Juazeiro, o livro de Morel obteve sucesso
no país, transformando-se na maior referência no que dizia respeito a Juazeiro. Se os
habitantes locais o desabonavam, a elite intelectual do país o elogiava nos jornais e nas
demais obras lançadas sobre o tema. O próximo biógrafo de Padre Cícero, Otacílio
Anselmo, viria a apoiar boa parte de sua obra sobre as premissas lançadas por Edmar
Morel:

Já tivemos alguns livros escritos sobre o assunto, como o do sr. Lourenço Filho
e o do sr. Irineu Pinheiro. O primeiro é mais um estudo das condições de vida
do interior e do fenômeno do cangaço, do que mesmo uma biografia. O
segundo é uma justificação da revolução do Cariri, uma espécie de apologia
politica do chefe de cangaceiros, escrita por um homem que tomou partido na
luta, a seu lado. O livro de Edmar Morel se avantaja a ambos, pela riqueza de
detalhes, pela amplitude do retrato, que nos dá do vigário obscuro que
conseguiu, por ser chefe de um bando de fanáticos, constituir-se em um dos
peões do xadrez político nacional.507

Nessa crítica, como se vê, desaparecem as obras de Manoel Dinis e Reis


Vidal. Os “defensores” do Padrinho tiveram menos repercussão que seus detratores.
Apesar disso, numa outra passagem, Anselmo defende que “Manuel Diniz [...] deve ser
considerado o biógrafo oficial do Pe. Cícero, porquanto escreveu o que ele lhe ditara ‘em
longas e mesmo íntimas palestras”508.
Dinis se impõe como alguém que escreveu uma espécie de biografia
autorizada — embora superficial —, enquanto Edmar Morel se insere no cenário nacional,
transformando-se em referência para os biógrafos que viriam a seguir. A tese de que Padre
Cícero seria não um protagonista, mas um peão na política nacional, influenciaria também
Otacílio Anselmo.

506
Conforme recorda Ramos, enquanto a polícia possuía “[...] farto número de carabinas mausers, os
‘rebeldes’ dispunham de reduzida quantidade de rifles [...]. A grande maioria dos combatentes de
Juazeiro não tinha arma de fogo”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. Narrativas em Fogo Cruzado –
Padre Cícero, Lampião e a Guerra de 14. Trajetos Revista de história da UFC, v. 2, n. 3, p. 156,
Fortaleza, 2002.
507
PADRE CÍCERO Romão Batista, etc... Diário de Pernambuco, Recife, p. 2, 11 abr. 1946.
508
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
30.
229

As ofensas que os juazeirenses enxergaram no livro de Edmar Morel voltaram


a figurar na obra publicada em 1968 por Otacílio Anselmo e Silva, que era sargento do
Exército e compunha a banda de música do 23º Batalhão de Caçadores de Fortaleza.
Também se aventurava no mundo das letras, tendo escrito, além da biografia de Padre
Cícero, um livro sobre a história da cidade de Brejo Santo. Nasceu em Jati (CE) e ficou
conhecido, entre outras coisas, por ter sido o fundador do “Prova de Fogo”, um dos
primeiros blocos carnavalescos da capital cearense. Anselmo foi ainda membro do
Instituto Cultural do Cariri (ICC), com sede na cidade de Crato (CE), onde residiu por
algum tempo509. Publicou em 1968 sua obra de maior expressão, Padre Cícero – Mito e
Realidade510.
Otacílio Anselmo atuava como jornalista e foi correspondente do jornal
carioca O Semanário, onde assinava como presidente da Frente Nacionalista do Crato511.
Tinha, portanto, contato com intelectuais do Rio de Janeiro. Seu livro, inclusive, teve
lançamento festivo em livrarias da capital carioca, e a orelha foi escrita por um grande
intelectual de seu tempo, Nelson Werneck Sodré 512 . Foi amplamente divulgado no
restante do Brasil: “O escritor cearense Otacílio Anselmo anuncia para breve ‘Padre
Cícero, Beato e Coronel’”, dizia O Jornal, em 3 de abril de 1968513. Aparentemente,
Anselmo (ou seu editor) optou por modificar o título, talvez por tê-lo considerado muito
agressivo.
O autor planejou se diferenciar de seus antecessores por meio do lançamento
de uma biografia de Padre Cícero amparada por ampla documentação. Afirmou que o
livro tinha caráter objetivo e não pretendia macular a figura do Padrinho. Na introdução
de seu Padre Cícero: mito e realidade (1968), declarou ter preparado uma “[...] obra
eminentemente documentária, [que] constitui uma retificação histórica, elaborada sem

509
Para mais informações sobre o ICC, cf. VIANA, José Italo Bezerra. As muitas artes do Cariri: relações
entre turismo e patrimônio cultural no século XXI. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-
Graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.
510
O jornalista Felipe Teixeira Bueno Caixeta levanta uma curiosa suspeição sobre o livro de Anselmo,
afirmando: “[...] hoje sabe-se que para desmoralizar o Padre Cícero e cessar as romarias em Juazeiro,
ghost writers da Diocese de Crato manipulavam documentos para a imprensa e entregavam livros
completos para publicação por autores como Otacílio Anselmo (Padre Cícero Mito e Realidade),
financiando a impressão e a distribuição de sucessivas tiragens com 20 mil ou mais exemplares.
CAIXETA, Felipe Teixeira Bueno. In: CORDEIRO, Maria Paula Jacinto; PINHEIRO, Mateus;
ALVES, Dosana Dayara de Alcântara (org). Anais do IV Simpósio Simpósio Internacional Padre
Cícero: E... Onde está ele?. Crato: Universidade Regional do Cariri, 2017. p. 201.
511
MOVIMENTO NACIONALISTA Brasileiro. O Semanário, Rio de Janeiro, Semana de 12 a 19 de
dezembro de 1957, p. 8.
512
Sodré, inclusive, lançava também em 1968, pela mesma editora, seu Fundamentos da estética marxista.
513
RÁPIDAS. O Jornal, Rio de Janeiro, p. 14, 3 abr. 1968.
230

outro objetivo a não ser a narração da verdade”514. Os admiradores de Padre Cícero, no


entanto, discordaram do resultado, colocando-o na lista dos chamados detratores de Padre
Cícero.
Valdemar Cavalcanti lembra que Otacílio Anselmo teria passado oito anos
realizando a pesquisa que daria origem a seu livro. Escrutinou bibliotecas, cartórios,
arquivos públicos e particulares. Na resenha, Cavalcanti esclarece que Anselmo analisa
“[...] toda a fenomenologia do seu meio e de sua época; todo o enquadramento social e
econômico que explica a ação carismática daquele espantoso padre sertanejo”515.
Otacílio Anselmo utiliza, de fato, múltiplas fontes, frequentemente citando os
autores de onde vieram as informações, embora nem sempre realize a crítica delas. Ele
dá muito crédito, por exemplo, às afirmações lançadas pelo padre Alencar Peixoto em seu
Joazeiro do Cariry. Ao delinear a figura de Maria de Araújo, opta por seguir afirmações
do famoso inimigo de Padre Cícero:

Apresentando o estigma da fusão de três raças, Maria de Araújo era o tipo


clássico da mestiça, com predominância do negro, pois negro era o pai,
oriundo, sem dúvida, da senzala do Pe. Pedro Ribeiro, enquanto a mãe
provinha do branco e do índio [...] Não obstante feia, Maria de Araújo teve seu
retrato espalhado entre as massas fanatizadas.516

Anselmo chega a alegar que toda a literatura que apontava o Padre Cícero
“[...] como semeador de benefícios, pai da pobreza, criador de escolas, orfanatos, etc., é
pura ficção e tem sentido de réplica às duras verdades reveladas pelo Pe. Alencar
Peixoto”517.
Assim como tantos outros, o capitão iniciou seu livro falando sobre a
colonização do Cariri e tentando explicar a composição da população a partir dos pontos
de vista racial e social. Para concluir seu intento, não hesitou em utilizar como referência
uma das mais racistas descrições de Maria de Araújo, elaborada por Peixoto.
O primeiro capítulo de Padre Cícero – Mito e realidade é intitulado “O
Meio”. Como Euclides da Cunha, Anselmo preferiu iniciar sua obra com “A Terra”,
discutindo somente depois “o homem”. Ao final do capítulo inicial, concluiu que o

514
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. p.
s.n.
515
CAVALCANTI, Waldemar. Padre Cícero: o mito e a realidade humana. O Jornal, Rio de Janeiro, p.
2, 7 set. 1968.
516
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
74.
517
Op. cit., p. 211.
231

povoado de Juazeiro havia sido um ponto para o qual convergiram, a partir de 1889, “[...]
os legatários do sebastianismo de Pedra Bonita e alguns remanescentes de Canudos”518,
compreendendo que, dessa forma, teria se cristalizado um fanatismo já presente na região
graças aos penitentes. Afirmou, ainda, que “[...] por mais que se procure negar, o Século
XX encontrou o Juazeiro em condições semelhantes às de Canudos nos meados da última
década do século passado”519. Posteriormente, dedicou-se ao nascimento de Padre Cícero,
não esquecendo de mencionar aspectos genealógicos. Tratou da infância do sacerdote,
bem como de sua estadia no Seminário da Prainha.
Na segunda parte do livro, Anselmo faz uma análise da vida de Padre Cícero
como sacerdote, desde os primeiros passos no ofício. Depois, sobre a trajetória do
Padrinho como fundador de Juazeiro. Anselmo julga que a crença na santidade de Padre
Cícero teria sido mantida e estimulada após a morte do sacerdote graças aos intelectuais
e poetas populares que voltaram a conceber estudos e escritos em geral sobre ele. Para
Anselmo, após a morte, “desfaleceu o chefe político” para fixar-se na memória apenas o
santo. Sua obra parece querer resgatar justamente o padre político, já esquecido pelos
devotos.
Otacílio Anselmo e diversos escritores do mesmo período se propuseram a
produzir análises de caráter supostamente sociológico, fugindo das antigas dicotomias e
disputas entre defensores e acusadores de Padre Cícero, mas os leitores, principalmente
os juazeirenses e aqueles que defendiam a santidade e a dignidade do sacerdote, nunca
deixaram de enquadrar as mais diversas obras nesses dois grupos. Criticá-lo era criticar
Juazeiro e seus habitantes, o que encolerizava as elites locais.
O livro de Otacílio Anselmo foi publicado um ano antes da construção da
grande estátua na Colina do Horto. Em 1969, quando a imagem foi inaugurada, Padre
Cícero – Mito e realidade era a obra mais recente e de maior envergadura sobre o tema.
Numa coluna sobre a inauguração da estátua, a imprensa carioca dissertava sobre Padre
Cícero à luz de Anselmo, afirmando que o sacerdote não fora uma grande personalidade,
mas “[...] uma figura insignificante [...] que adquiriu extraordinário relevo por obra e
graça de condições sociais e paisagem”520. A tese de Anselmo gira em torno da ideia de
que Padre Cícero é um exemplar de seu próprio meio, não podendo se diferenciar dos
humildes fanáticos que o seguiram:

518
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
12.
519
Op. cit., p. 255.
520
CARNEIRO, Glauco. Padim Ciço: a estátua do mito. O Jornal, Rio de Janeiro, p. 5, 30 nov. 1969.
232

O Pe. Cícero não era, certamente, bom pregador; sê-lo-ia, na hipótese de haver-
se dedicado ao cultivo das letras. Contudo, sua voz modulada e firme, em
harmonia com a expressão de um olhar perscrutador, era o bastante para
impressionar a gente simples que o escutava. Voz e olhar – eis o que havia de
excepcional em sua curiosa personalidade.521

Os dons de Padre Cícero seriam naturais. Não eram mérito de sua disciplina e de
seus estudos. Ele não teria sido, como alguns afirmaram, um grande intelectual. De acordo
com Morel, “[...] pasma o fato de não aparecer em parte alguma, um só artigo, um simples
trabalho religioso ou social, um discurso político do patriarca” 522 . Anselmo segue na
mesma linha, defendendo que o sacerdote não se destacara dos demais homens e mulheres
de seu meio. Para ele, o estudante Cícero Romão Batista rendia pouco nas aulas de
Teologia, provavelmente porque privilegiava os estudos de hipnotismo e magnetismo523.
Prossegue dizendo que ele possuía uma “indisposição para o esforço mental”524. Anselmo
atribui tais caracteres a uma índole associada aos habitantes locais. A indisciplina
atribuída ao Padre Cícero seria, assim, uma “tendência ancestral”525. Seu autoritarismo
diante dos seguidores caracterizaria uma certa “violência inata”526. Edmar Morel defendeu
que

Prisioneiro do ambiente, sem grandes conhecimentos, personagem principal


dos fatos que tornam Juazeiro falado no Brasil inteiro e cercado pelo que havia
de mais ordinário, em todos os setores, é um produto do meio em que vive.
Alheio aos movimentos sociais e reformadores que aparecem no mundo, sem
livros e ignorando os modernos escritores, filósofos e sociólogos, tem a sua
personalidade envolvida por lendas e por fatos rocambolescos, tornando-se de
evangelizador [...] num místico pastor de almas rude.527

Otacílio Anselmo lhe seguiu: “[...] lhe faltavam o equilíbrio mental, a cultura
e a visão de um Ibiapina. Com efeito, para um povo carente de instrução, não fundou
escolas”528. Anteriormente, contudo, vale lembrar a opinião de Reis Vidal, que afirmava

521
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
57.
522
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
126.
523
Op. cit., p. 33.
524
Op. cit., p. 43.
525
Op. cit., p. 44.
526
Op. cit., p. 46.
527
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
125.
528
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
p. 62.
233

o sacerdote como “[...] inteligência polymorfa que, argamassando vários e pacientes


estudos no decurso de uma laboriosa existência dedicada aos livros, se irradiava
exhuberantemente e se afirmava como robusta expressão mental”529. Para os amigos de
Padre Cícero, ele era um. Para os “inimigos” de sua memória, era outro, bastante
diferente.
O santo de Juazeiro trocou o papel de evangelizador pelo de místico, segundo
Edmar Morel. Logo veio a resposta, através de Tristão Romero: Padre Cícero não era
apenas um evangelizador; era, na verdade, uma espécie de Anchieta do sertão. Dois
extremos que se opunham na interpretação da personalidade do Padrinho. A versão do
autor de Padre Cícero – O santo de Juazeiro foi, por muito tempo, considerada pelos
jornalistas do país como a mais correta, e seu livro ganhou status de referência sobre o
tema.
O livro de Otacílio Anselmo, por sua vez, foi fundamental na cristalização da
ideia de que Padre Cícero seria um coronel, ou mesmo como um “coronel-gângster”530.
Ele também teve seus contestadores, e o livro é, até os dias atuais, malvisto em Juazeiro.
Sua obra, no entanto, não teve o alcance daquela lançada anteriormente por Edmar Morel,
jornalista então consagrado.
O que cabe notar, tanto em Edmar Morel quanto em Otacílio Anselmo, é a
tese de que Padre Cícero era fruto de seu meio e pouco fez para transformar a realidade
da população que ali habitava. Ambos enxergavam em Juazeiro um espelho do sacerdote,
com todos os defeitos que lhe cabiam531. Conforme Edmar Morel, Padre Cícero teria se
omitido. Sua vaidade e seu desejo de ser cultuado seriam maiores que a intenção de
eliminar a ignorância de seus devotos:

Está para surgir no brasil um eclesiástico mais simples no modo de trajar do


que o Padre Cícero. Sua sotaina surrada e o chapéu ensebado lhe dão maior
simplicidade e isso mesmo o torna mais perto do coração do povo, composto
do que há de mais heterogêneo. Talvez tudo isto, premeditado, por simples

529
VIDAL, Reis. Padre Cicero: Joaseiro visto de perto, o Padre Cicero Romão Baptista, sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. p. 19.
530
PINTO, Luis. Os Coronéis... Diário do Paraná, Curitiba, p. 2, 25 mai. 1972.
531
Sob esse ponto de vista, os intelectuais brasileiros pareciam ignorar a tendência, então em voga, de
compreender o indivíduo como exterior à sociedade, podendo ser estudado pelas suas propriedades
psicológicas inatas. Conforme destaca Marcelino, “[...] o estabelecimento de uma visão de mundo
amparada no indivíduo foi fundamental à constituição da crença na unicidade de uma determinada
trajetória. Esse tipo de concepção, por outro lado, acompanhou o maior distanciamento entre a
historiografia e o processo de composição e biografias do século XIX, tendo em vista a crescente perda
de vigor do sentido de exemplaridade atribuído à escrita da história [...]”.M ARCELINO, Douglas
Attila. O Corpo da Nova República. Funerais presidenciais, representação histórica e imaginário
político. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015. p. 28-29.
234

esperteza. Paulo de Tarso rasgava a túnica ao ver que a multidão o tomava


como um Deus caído à terra. O Padre Cícero não tem este gesto e
contemporiza, fechando os olhos ao ambiente de ignorância e misticismo que
o rodeia.532

Otacílio Anselmo vai além, situando o Padrinho como responsável pela


miséria em que se encontravam os habitantes de Juazeiro. Afirma que “[...] o Pe. Cícero
transpusera os umbrais da idade bíblica preocupado apenas com a manutenção do
fanatismo religioso [...] tendo em vista sua estabilidade econômica, política e social”533.
Garante ainda a inépcia do sacerdote como administrador, destacando que “fosse o
sacerdote um líder realmente interessado no progresso e no bem-estar do seu povo, como
ainda afirmam certos autores, e Juazeiro não teria permanecido à frente das localidades
mais atrasadas do Ceará”534.
Talvez, além do livro de Tristão Romero/Assis Leite, a única obra a discutir
Juazeiro após 1934 sem ter como foco principal o Padre Cícero seja um livreto intitulado
O Cariri: - Crato - Juazeiro do Norte – Estudo de Geografia Regional, publicado por
uma editora do Crato em 1968. O autor, Douracy Soares, era geógrafo e professor da
Universidade Federal da Bahia. Em 1966, foi convidado pela Faculdade de Filosofia do
Crato a ministrar um curso de cartografia que deu origem ao estudo. Soares, ao analisar
os aspectos regionais da região, não chegou a resultados muito diferentes daqueles
apresentados por Edmar Morel e Otacílio Anselmo. Em sua publicação, afirmou: “[...]
depois de sua morte, ocorrida em 1934, padre Cícero transformou-se num ‘santo’ para os
sertanejos ingênuos. Durante a sua vida permitiu, tranquila e conscientemente, a
mistificação”535. Douracy afirma em 1968:

Ainda hoje, entre a gente simples de consciência ingênua, dos sertões semi-
áridos, do litoral canavieiro e do Cariri, padre Cícero é considerado o profeta
que deve ser obedecido, e a ingenuidade daquela gente lhes permite acreditar
na ‘volta do profeta’. ‘– Ele voltará, os ‘milagres’, as ‘curas’ e as ‘aparições’
estão aí como prova’, pregam os indivíduos pagos pelos comerciantes de
Juazeiro nos sertões e no litoral nordestino. A crença na ressureição do
‘padrinho’ propagou-se enormemente, sendo o messianismo, uma fonte de
renda de Juazeiro do Norte.536

532
MOREL, Edmar. Padre Cícero – O santo do Juazeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1946. p.
137.
533
ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero, mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.
504.
534
Id., ibid.
535
SOARES, Douracy. O Cariri - Crato - Juázeiro do Norte. Crato: Faculdade de Filosofia do Crato, 1966.
p. 32
536
Id. ibid.
235

Koselleck afirma que a Modernidade não enterra imediatamente a Historia


Magistra Vitae, mas faz com que ela se dissolva até desaparecer a noção de eternidade537.
Os homens passam a compreender que são seres históricos, que nenhuma transcendência
temporal é possível. Em Juazeiro, contudo, experimenta-se uma espécie de “não
simultaneidade do contemporâneo”. As coisas que acontecem no restante do Brasil são
diversas daquelas que acontecem em Juazeiro538, onde “ainda” existem coisas que não
deveriam existir. O presente não é diferente do passado, e o futuro talvez não venha a ser
diferente do presente. A permanência, não eliminada, pode vir a se tornar mais longa.
Essa insegurança aparecerá frequentemente nas obras que tratam sobre Juazeiro. Tais
noções, no entanto, são subjetivas. Cada autor defenderá, conforme sua inclinação
pessoal, o “já” ou o “ainda”. Para todos, no entanto, o passado é algo a ser superado.
Os narradores de Juazeiro não sabiam onde terminaria o passado, que, para
os pessimistas, constituiria um presente permanente. O que eles não notavam é que essas
múltiplas temporalidades podem coincidir. “Ainda” em 1968, um povo humilde esperava
Padre Cícero. Era, sem dúvida, uma decepção para qualquer homem das letras
diagnosticar isso. Edmar Morel e Otacílio Anselmo eram pessoas que lamentavam o
“ainda”. Queixavam-se do fato de a ausência significar uma presença ainda maior.
Enquanto isso, Manoel Dinis, Lauro Reis Vidal, Tristão Romero e outros defensores de
Padre Cícero celebravam o progresso, a grande densidade demográfica, as ruas alinhadas,
a indústria — o “já”. Esses dois grupos não percebiam que tais dicotomias eram
insuficientes para definir Juazeiro. A cidade do Padrinho era, por excelência, a terra em
que o “ainda” e o “já” eram simultaneamente possíveis. Além disso, ou exatamente por
isso, havia ali um tempo ligado à eternidade.

537
“A singularidade dos eventos — principal premissa teórica tanto do historicismo como das teorias do
progresso — não conhece a repetição e, por isso, não permite nenhuma indicação imediata quanto ao
proveito das ações passadas. Neste ponto, a ‘história’ [Geschichte] moderna destronou a velha historia
como magistra vitae. Mas o axioma do princípio da singularidade individual que determina o conceito
moderno de história se refere — estruturalmente falando — menos ao ineditismo efetivo dos eventos
do que à singularidade do conjunto das transformações da modernidade.” KOSELLECK, Reinhart.
Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed.
PUC-Rio, 2006. p. 144.
538
Segundo Koselleck, “A simultaneidade daquilo que não é contemporâneo entre si, de início uma
experiência surgida da expansão para o ultramar, passou a ser o padrão básico para que a crescente
unidade da história universal a partir do século XVIII fosse interpretada como progresso”. Op. cit., p.
293. No caso de Juazeiro, contudo, se trata de um caso em que tempos muito diversos – no país e no
mundo – eram simultâneos. Justamente por isso, a cidade parecia não acompanhar o ritmo do progresso.
236

7 PADRE CÍCERO NA PRAÇA, NA CAPELA E NO ALTO DA COLINA

7. 1 Padre Cícero na praça

O primeiro grande monumento construído em homenagem ao Padre Cícero


em Juazeiro foi, como se sabe, a escultura em tamanho natural encomendada por Floro
Bartolomeu para figurar no centro da Praça da Liberdade (então nomeada como Praça
Almirante Alexandrino).
Concebida pelo escultor carioca Laurindo Ramos, a obra foi produzida em
bronze no pátio da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1923, e posteriormente
seguiu viagem para seu destino final539, tendo sido inaugurada somente em 1925, um ano
após o Padrinho completar oitenta anos de idade. Os jornais repercutiram o
acontecimento:

Rio (Pelo correio) – A inauguração da estatua do Padre Cicero Romão Baptista


na principal avenida do Joazeiro constituiu um facto de sensação, ruidoso e
inédito em todo o nordeste. Innumeras famílias vieram de grande numero de
Estados, notando-se que os romeiros de outros municípios e cidades cearenses
constituíram multidão. A Escola de Aprendizes Marinheiros de Fortaleza,
representada pelo seu comandante e uma companhia de alunos, compareceu,
realisando evoluções e prestando continências. O comandante Pedro
Bittencourt foi, por isto, muito cumprimentado. Na casa de residência do
deputado Floro Bartholomeu, realizou-se um banquete sendo trocados vários
brindes.540

539
A ESTATUA DO Padre Cicero. A Provincia, Recife, p. 1, 23 nov. 1923.
540
INAUGURA SE no Ceará a estatua do Padre Cícero. O Dia, Curitiba, 27 jan. 1925.
237

Figura 23 – O escultor Laurindo Ramos e sua obra em bronze

Fonte: COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História.
Fortaleza: Edições UFC, 2010 [1923]. p.175.
238

O evento teve, conforme a reportagem, caráter cívico 541 . Romeiros se


deslocaram para presenciar o acontecimento, mas o protagonismo foi dado aos militares,
que abrilhantaram a cerimônia. O jornalista destacou o fato de nenhum membro do clero
ter comparecido, exceto o próprio Padre Cícero, que, ainda lúcido, felicitou-se com a
homenagem erguida num dos principais logradouros da cidade. O sacerdote, portanto,
não apenas estava vivo durante a cerimônia comemorativa, mas também presente, tendo
inclusive discursado durante a inauguração de sua própria imagem. Segundo o jurista
cearense Firmo Holanda Cavalcante, as comemorações foram iniciadas ao meio-dia,
durante um almoço presidido pelo sacerdote, que, após ouvir as palavras elogiosas de
diversos oradores,

Agradeceu [...], em voz pausada e firme, demonstrando sua gratidão pelas


manifestações de que vinha sendo alvo, as quaes, na sua reconhecida modéstia,
julgava imerecidas. No correr de sua oração, o padre Cícero fez o histórico de
sua vida sacerdotal, sempre obediente aos seus superiores hierárquicos. Referiu
a circumstancia de haver recusado os oferecimentos de seu grande amigo, o
saudoso D. Luiz. A. dos Santos, para ocupar posições de destaque, preferindo
permanecer no seu então pequeno burgo, hoje a prospera, populosa e
movimentada cidade do Joaseiro, pois foi sempre o seu ideal fazer o maior bem
que pudesse à humanidade. Fallou ainda sobre a fundação do seminário do
Crato, afirmando ter sido sua a iniciativa de tão útil melhoramento. Alludiu,
veladamente, às perseguições que Joaseiro tem sofrido, sempre triumphando
pelo poder de Deus, adiantando sentir-se feliz de qualquer forma, mesmo
recordando estas ocorrências do passado. Alludiu mais à satisfação que tinha,
vendo presente uma partícula da Marinha Brasileira, representada pelo
comandante Bittencourt e seus comandados. Pronunciou palavras de
agradecimento a todos que ali se encontravam para o homenagear e, para
terminar levantou sua taça (de leite), saudando à Religião Catholica,
Apostholica, Romana, na pessoa de S. S. o Papa Pio XI, que providencialmente
regia a Igreja; ao Sr. Presidente da Republica; ao Sr. Presidente do Estado; ao
Almirante Alexandrino de Alencar, na pessoa do Capitão-Comandante Pedro
Bittencourt.

São poucos os discursos de Padre Cícero narrados, como esse, em


pormenores. As palavras que proferiu durante os festejos de inauguração da estátua que
refletia sua própria imagem são significativas porque tocam em questões que o sacerdote

541
Conforme Ramos, na praça Almirante Alexandrino se erguia “[...] um símbolo de modernidade e
civilização construído por Floro Bartholomeu no sentido de redimensionar a imagem de Juazeiro aos
olhos das elites estaduais e nacionais. Sua grande preocupação, enquanto Deputado Federal eleito sob
direta influência de Padre Cícero, era combater os comentários sobre o ‘fanatismo’ e a ‘barbárie’ da
cidade que lhe dava sustentação política. Com efeito, procurava equiparar Juazeiro com representações
do mundo civilizado e sempre que tinha oportunidade realizava discursos na Câmara Federal em defesa
da cidade e do P. Cícero. Assim, mostrava a legitimidade de sua carreira no poder legislativo”. RAMOS,
Francisco Regis Lopes. O verbo encantado. Unijuí: Ijuí, 1998. p. 104.
239

considerava fundamentais em sua biografia, além disso, cortejam as autoridades da


política local e da Igreja Católica, duas categorias com as quais sempre se relacionou de
maneira mais ou menos tensa. Sua suposta modéstia não o impediu de ressaltar que,
apesar das importantes propostas recebidas, preferira permanecer no pobre povoado de
Juazeiro, investindo inclusive na ideia de que fosse construído na região um seminário
para a educação dos jovens missionários. Essa informação é importante porque demonstra
o apreço do Padrinho pela obediência à doutrina católica, bem como uma hipotética
vontade de civilizar — e talvez romanizar — a população local. Falando sobre as
perseguições sofridas, o sacerdote preferiu não ser explícito, julgando ainda que tais
tensões seriam coisas do passado.
Sua preleção, portanto, conseguiu abarcar aspectos políticos e religiosos sem,
contudo, tocar nas grandes preocupações sociais que foram o cerne de sua atuação.
Proferiu uma fala protocolar, repleta de rapapés típicos de rituais como aquele, com a
especificidade de o próprio homenageado estar presente. O advogado Firmo Cavalcante,
que assistiu à cena e enviou suas anotações para o jornal quixadaense O Sitiá, fez questão
de ressaltar que o fundador de Juazeiro, como padre e santo que era, optou por substituir
o vinho da comemoração por leite. Seu relato destacou falas e imagens que acreditou
serem relevantes para dar a conhecer a personalidade do homenageado.
É preciso observar que se tratava da realização de uma cerimônia oficial, com
a participação de autoridades da Marinha, além de lideranças políticas, que saudavam o
evento. Cavalcante elencou a presença do prefeito de Barbalha, de uma comissão do Crato
conduzida pelo coronel Antônio Luiz, do juiz de direito local e de nomes representativos
do universo intelectual de então, além de emissários dos municípios da região e mesmo
de cidades mais afastadas.
Horas após um almoço realizado a portas fechadas, apenas para os convidados
mais ilustres, deu-se a solenidade de descerramento da estátua, realizada em praça
pública, que contou com discursos de correligionários do Padre Cícero, tais como o jurista
e político Raimundo Gomes de Mattos e o famoso médico e aliado Floro Bartolomeu:

Às 17 horas, iniciou-se a cerimonia de inauguração da estatua, perante uma


multidão superior a trinta mil pessoas, de todas as classes sociais [...]. Ao ser
retirado o manto que envolvia a estatua, em cujos tratos se retratava fielmente
o Pe. Cícero, houve estrondosa e uníssona aclamação, justamente quando
assomava à tribuna o homenageado do dia, amparado pela mão de dr. Floro,
para pronunciar palavras de agradecimento, em meio a visível emoção que ao
começar lhe embargava a voz, agradecimento extensivo a todos os presentes,
e em especial, aos seus grandes amigos drs. G. de Mattos, orador oficial da
240

solenidade, e Floro, pela dedicação que de muito lhe demonstrava, declarando


que o tinha como uma parte do seu próprio ser. Ao descer da tribuna colocou-
se no pedestal da Estatua, onde recebia os cumprimentos. Terminada a
cerimonia, a Marinha fez evoluções para retirar-se, acompanhando-a o auto,
que conduzia o Pe., havendo, nesta ocasião, um tumulto tal, nada mais restando
que transportarem à mão o carro, em que viajava o amphitrião.542

Terminada a reunião entre lideranças locais, deu-se o grande evento, ao qual


acorreram inúmeros visitantes, pobres e ricos, dos mais diversos recantos. Padre Cícero
não era, para boa parte dessas pessoas, o político importante que a estátua representava.
Era o santo, amado e conduzido pelos devotos em seus próprios braços, como se o carro
fosse um andor. A presença de devotos e romeiros, contudo, era secundária nesse
contexto. A cerimônia de inauguração não era um ritual religioso, como alguns poderiam
pensar, mas um evento político com pretensões de estabelecer um culto racionalizado à
atuação de Padre Cícero no contexto político local.
Após a inauguração, houve, conforme a tradição local, um grande estourar de
fogos na praça em que foi erigida a estátua, seguido de elegante banquete na residência
de Floro Bartolomeu, onde estiveram presentes algumas das mais importantes autoridades
locais. Tudo sugeria um clima de festa e comemoração pela merecida homenagem que o
fundador de Juazeiro recebia ao final de sua vida. Cavalcante acrescentou à sua narração
a informação de que às 22h foram queimados sete grandes painéis que mediam um metro
e carregavam imagens “[...] do Presidente da Republica, Presidente do Estado, dr.
Francisco Sá, Almirante Alexandrino, Pe. Cícero, dr. Floro e vigário Macêdo, trabalho de
fino gosto artístico, de um pirotechnico da terra, de elevado custo” 543 . Os tributos
prestados às diversas lideranças, inclusive ao vigário Macêdo 544 , demonstravam que
aquele não era um evento de cunho popular, mas um ritual político no qual deviam ser
enaltecidos os vultos mais importantes do país, do estado e da região.
A estátua de bronze, no meio da praça, não simbolizava o Padrinho dos
devotos, mas o Padre Cícero civilizador, o herói modernizador de Juazeiro, responsável
pela edificação da cidade. Era o Padre Cícero prefeito, o mesmo que se confundia com a

542
A ERECÇÃO da estatua do Padre Cicero. O Sitiá, Quixadá, p. 2, 15 fev. 1935.
543
Provavelmente se tratava de balões. À época, havia fabricantes de fogos que também trabalhavam com
esse tipo de material. Id., ibid.
544
Manoel Correia de Macedo, o padre Macedinho, era filho de Pelúsio Correia de Macêdo, amigo próximo
de Padre Cícero. Foi vigário de Juazeiro, tendo sido nomeado por Dom Quintino para que se
responsabilizasse pela paróquia de Nossa Senhora das Dores. Rompeu com Floro Bartolomeu – e,
consequentemente, com Padre Cícero ‒ em fins de 1924, durante as discussões causadas pelos crimes
de rodagem.
241

liderança política de Floro Bartolomeu 545 . Na seguinte passagem, essa impressão se


reafirma. Gavião Gonzaga conta que quando era inspetor sanitário do Ceará, foi
conduzido para conhecer a estátua de bronze de Padre Cícero, onde teria escutado uma
peculiar informação de seu guia:

[...] o caboclo levou Gavião para mostrar que a estátua do padre Cícero não era
dele: era de Floro... Veja bem doutor – dizia-lhe. A ‘cacunda’ não é do meu
padrinho. É do Floro, que está engabelando o Santo. A cara, veja a cara. É do
Floro! Este malvado pensa que pode mais do que meu padrinho. Tá besta!
Quero ver é na hora de fazer milagre [...].546

Com efeito, a estátua não retratava um santo em mármore ou gesso, com


feições e cores celestiais, mas um homem público que muito fizera pela cidade e por isso
recebera um monumento comum entre lideranças públicas. A estátua, idealizada por
Laurindo Ramos, era em muitos aspectos semelhante a tantas outras que foram elaboradas
em bronze e colocadas nas praças de pequenas e grandes cidades do Brasil e do mundo.
O guia de Gonzaga afirmou que o médico baiano, aproveitando-se da bondade
e ingenuidade de Padre Cícero, não apenas o ludibriava, mas chegava ao cúmulo da
desonestidade, roubando sua feição. Desse modo, todos os atributos negativos,
geralmente associados aos governantes e políticos em geral, desvincularam-se do
Padrinho, que teve em Floro Bartolomeu não apenas um aliado, mas um álibi para as
decisões políticas tomadas. A face do prefeito não era a face de Padre Cícero.
Tais especificidades não escaparam à observação do professor e jornalista
pernambucano José do Patrocínio Oliveira que, após breve estadia em Juazeiro em 1953,
não se furtou a analisar o contraste entre a figura em bronze e a imagem que os devotos
possuíam do Padrinho. O santo não estava representado ali:

No bronze temos um padre Cícero à moda grega, sem a corcunda que o fazia
olhar, constantemente, para o chão, com as suas feições grosseiras, a displasia
plástica acentuada, embora deixasse extravasar no sorriso franco a bondade
transbordante em seu coração de sacerdote para com aquela gente que o
venerava. Por isso, estranhamos a estátua de bronze, na praça principal do
Juazeiro, aonde vai grande número de romeiros. Na terra, fez grandes
benefícios e impôs veneração pelas suas virtudes. Hoje todos falam, naquela
cidade, do Padre Cícero como de um santo de grande poder e não exagerou o

545
Conforme lembra Ramos, “Pe. Cícero raramente é lembrado (ou exaltado) como prefeito, enquanto
Floro recebe com certa frequência esse predicado”. LOPES, Régis. Caldeirão: Estudo histórico sobre
o Beato José Lourenço e suas comunidades. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 49
546
LEMBRANDO O PADRE Cícero. Diário da Tarde, Curitiba, p. 2, 11 jun. 1956.
242

repórter ao dizer que a veneração àquele sacerdote é superior à da Virgem


Santíssima.547

A obra concebida pelo escultor Laurindo Ramos parece ter sido uma das
melhores produções de sua lavra, pois a revista Ilustração Brasileira afirmou, durante
exposição de artes realizada em 1926, que

Laurindo Ramos não está bem representado, os bustos que apresentou não têm
vida e são amaneirados; comparando-os com outras produções do jovem
esculptor deixam muito a desejar. O anno passado, com a estatua do ‘Padre
Cicero’ deixou transparecer muitas esperanças que infelizmente não
appareceram.548

O Salão de Bellas Artes de 1926 pretendia exibir para o público as obras dos
mais importantes artistas brasileiros. A crítica especializada lamentava, no entanto, o fato
de tais artistas seguirem modelos europeus, “[...] enveredando por caminhos bem diversos
dos indicados pelo temperamento tropical, preferindo os atalhos e as modalidades que
nos chegam pelas publicações estrangeiras”549. Deste modo, os trabalhos pouco refletiam
as inspirações pessoais de seus autores. Laurindo Ramos seria um desses talentosos
expositores que se afastaram das brasilidades, criando obras quase sem vida.
Os aspectos estéticos da estátua de bronze foram alvos de apreciação não
apenas da crítica especializada, mas também de jornalistas, como o socialista cearense
Joaquim Pimenta, que publicou no Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), em 1960, um
relato de suas lembranças acerca do Padrinho:

Se eu fosse escultor ainda hoje seria capaz de traçar as linhas mestras em que
se poderia talhar a verdadeira estátua do Padre Cícero, mui diferente da que
existe em Juazeiro: foi quando o observei, após a missa, ainda paramentado,
conversando em pé, meio recostado ao altar, com um grupo humilde de
romeiros. Todo ele estava ali, individualizado, característico, esculpindo o seu
próprio modelo na singeleza de gestos, na familiaridade chã com que os
acolhia; na paciência, na solicitude, no carinho com que ia respondendo a tudo
quanto desejam saber: casos complicados ou simples escrúpulos de
consciência; coisas as mais pueris sobre religião, lavoura, criação, transações
comerciais de êxito incerto; profecias de bons e maus tempos; alveitaria,
medicina, com o seu chernoviz de ervas e orações fortes para todas as

547
OLIVEIRA, José do Patrocinio. Fé e Fanatismo em Juazeiro do Padre Cícero. O Malho, ano 51, n. 156,
p. 23, Rio de Janeiro, janeiro de 1953.
548
O SALÃO de 1926. Ilustração Brasileira, ano 7, n. 73, p. 25, Rio de Janeiro, setembro de 1926.
549
Op. cit., p. 20.
243

enfermidades e doenças550, desde a cura da paralisia e da maleita, até a reza


mais eficaz para expelir o tapuru das bicheiras e levantar espinhelas caídas...551

Padre Cícero não era um homem público, de toga e livro na mão. Era o
Padrinho, um humilde e receptivo sacerdote que se desdobrava para acolher e auxiliar
seus devotos das mais diferentes maneiras possíveis. Sua representação em bronze,
segundo o jornalista cearense, não o refletia verdadeiramente.
A estátua não parecia familiar e afável, mas imponente e majestosa. Poucos
devotos se inclinavam para admirá-la e faziam um ou dois gestos de oração. Em sua
maioria, os seguidores do Padrinho não enxergavam ali o homem santo que tanto
admiravam. A imagem de bronze não estava tão confortável em seu habitat quanto Padre
Cícero em Juazeiro, com seus pobres afilhados. Os jornais cearenses também deram
notícias sobre a elaboração da escultura, inclusive indicando os aspectos mais dignos de
atenção:

O esculptor Laurindo Ramos expoz na Escola de Bellas Artes a estatua de


bronze do padre Cícero, encomendada pelo deputado Floro. O monumento
representa o padre de pé, com expressão enérgica e serena de quem cumpre
sua missão terrena com coragem e fé. A mão direita segura um livro aberto e
a esquerda prende a capa que envolve a batina. A estatua será erigida em
janeiro.552

Em seu livro — que nada mais é que a transcrição do discurso proferido —


, Floro Bartolomeu afirma que a estátua fora “[...] mandada fazer pelo povo de Joazeiro”.
A obra era, sem dúvida, mais uma tentativa de defender aquele que “[...] de um pequeno
povoado de cinco ou seis casas de taipa fez uma cidade de mais de seis mil prédios, com
uma população de mais de trinta mil almas”553. Tudo era uma tentativa de mostrar que o
sacerdote responsável por levar avanço à região não poderia ser “[...] um tartufo, um
embusteiro, um chefe de cangaceiros”554, como afirmavam os detratores do Padrinho.

550
Para maiores informações sobre as práticas de cura populares, cf. MEDEIROS, Aline da Silva. Os
Remédios, os livros e os tempos: consumo de remédios e experiência do tempo entre o Lunário
Perpétuo e o Diccionario do Dr. Chernoviz. 2015. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em
História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2015.
551
PIMENTA, Joaquim. Padre Cícero. Diretrizes, Rio de Janeiro, p. 34, fev. 1939.
552
A ESTATUA DO PADRE CICERO. A Ordem, Sobral, p. 2, 12 dez. 1923.
553
COSTA, Floro Bartolomeu da. Juazeiro e o Padre Cícero: Depoimento para a História. Fortaleza:
Edições UFC, 2010 [1923]. p. 175.
554
Op. cit., p. 177.
244

Anos depois, visitantes de Juazeiro analisariam não apenas a própria estátua,


mas a praça que a abrigava, bem como os demais monumentos ali edificados em períodos
posteriores. O radialista Teóphilo de Barros Filho diria, em 1940, o seguinte:

No seu ponto mais central há uma bela praça ajardinada, onde um complicado
relógio, inteiramente construído por um mecânico da terra, marca com precisão
absoluta as horas, os mezes, os dias, as phases da lua e até determina para as
senhoras seus dias críticos. Ao pé do relógio, uma estatua do padre com a
legenda: ‘Ao padre Cícero, homenagem do sertão’. Na verdade, deve o
Joazeiro ao seu patrono, sua existência.555

Desse modo, o jornalista ressalta o caráter de homenagem a homem público


que Padre Cícero teria recebido através dessa estátua. Exagera os atributos do relógio ao
dizer que ele apontava até mesmo os dias “críticos” das mulheres de Juazeiro, causando
certo efeito de ironia. O relógio, contudo, demarca a ideia de modernidade e progresso —
frutos da obra de um legítimo juazeirense —, em contraste com a placa afixada à coluna,
que apresentava uma Juazeiro ainda acanhada. A coluna que servia de pedestal para o tal
relógio foi construída por Odísio dez anos após a inauguração da escultura de bronze.

555
BARROS FILHO, Theofilo de. Ainda esperam a ressurreição do Padre Cicero. Diário da Noite, p. 3,
25 nov. 1940.
245

Figura 24 – Odísio, a estátua de bronze e a Coluna da Hora

Fonte: Vera Odísio. De Dom Bosco a Padre Cícero: a saga do escultor Agostinho Balmes Odísio
discípulo de Rodin. Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 140.

Após a morte do Padrinho, outros monumentos foram erguidos em sua


homenagem, tanto na cidade fundada por ele quanto em diversas outras localidades.
Destacam-se, em Juazeiro, a estátua concebida por Agostinho Odísio e assentada sobre
um nicho em frente à Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, bem como o grande
monumento erguido sobre a Colina do Horto por iniciativa do prefeito Mauro Sampaio,
em 1969. Ambas as estátuas possuem significados distintos, que serão discutidos a seguir.
Conforme destaca Ramos, “[...] o Pe. Cícero de bronze ergue-se sem a força
do sagrado. O enigmático roteiro dos peregrinos, composto pelos lugares sagrados de
Juazeiro, não contém a estátua da Praça Alexandrino”556. É preciso recordar, contudo,
que mesmo a estátua em bronze foi vista por críticos e viajantes como um objeto que
serviria à veneração. Juazeiro se estabelecia, simultaneamente, como cidade sagrada e

556
RAMOS, Francisco Regis Lopes. O verbo encantado. Unijuí: Ijuí, 1998. p. 108.
246

profana. Do mesmo modo, a estátua profana foi julgada com frequência como um foco
de crenças esdrúxulas e fanatismo. Padre Cícero, o político, era também o santo — nessa
simbiose, muitos elementos que diziam respeito à cidade e ao seu fundador se constituíam
e se confundiam.

7.2 Padre Cícero na capela

Em junho de 1935, quase um ano após a morte do Padre Cícero, o jornal


carioca A Manhã afirmava que “[...] nas ruas do Joazeiro observa-se o mesmo fanatismo.
Centenas de pessoas passam defronte a estátua do padre, ajoelham-se e juncam de flores
o pedestal”557. A estátua que recebia os “fanáticos” provavelmente seria aquela instalada
na Praça Almirante Alexandrino em 1925. Essa informação é peculiar por atrelar à estátua
de bronze manifestações que seriam mais comuns diante da estátua posteriormente
elaborada por Odísio.
A imagem do padre que fora encomendada ao escultor italiano passou a ser
compreendida como uma espécie de personificação do sacerdote após sua morte. Por estar
instalada num nicho, lembrava efetivamente a imagem de um santo canonizado pela
Igreja, diferentemente daquela localizada na Praça Almirante Alexandrino. Os visitantes
da cidade, estupefatos com a persistência da devoção, viam os atos de afeto, homenagem
e contrição como sintomas de um fanatismo ainda predominante.
Conforme já foi mencionado, em reportagem elaborada sobre Juazeiro, o
jornalista Edmar Morel lançou a hipótese de que o túmulo do Padrinho fosse preterido
pelos romeiros. Segundo ele, os devotos teriam maior estima pelo monumento erigido em
frente à capela dedicada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A imagem idealizada e
esculpida por Odísio recebia mensalmente a visita de milhares de romeiros. Ali, o
Padrinho parecia vivo, e os devotos ainda podiam realizar promessas, agradecer pelas
graças concedidas e pedir a bênção enquanto contemplavam seus olhos azuis, como
faziam quando o patriarca de Juazeiro ainda habitava a cidade em corpo e espírito: “Na
praça fronteira da igreja levantaram um santuário e nele colocaram uma estatua de
cimento do padre, em tamanho natural. O culto é feito fora do templo e estou certo mesmo
que milhares de romeiros nunca entraram na igreja”558.

557
COBIÇADÍSSIMO o dinheiro do Padre Cícero. A Manhã, Rio de Janeiro, p. 2, 29 jun. 1935.
558
MOREL, Edmar. Todo poderoso, senhor absoluto dos sertões e humilhado em Juazeiro. Diário de
Pernambuco, Recife, p. 3, 31 ago. 1944.
247

Dessa maneira, a estátua se constituía como um objeto capaz de ligar o


passado ao presente. O Largo do Socorro, onde fora instalada, introduziu a possibilidade
de conectar um dado espaço — aquele em que o Padrinho estava sepultado — a uma
distinta percepção do tempo, que indicava sua sobrevivência. A experiência de vida dos
grupos de romeiros e devotos se materializava no momento em que repetiam o antigo
gesto de peregrinar até Juazeiro com o objetivo de visitar o Padrinho.
Embora muitos pensassem que o desaparecimento de Padre Cícero causaria
o fim de tais romarias, o futuro previsto não se concretizou. Em 1958, o jornalista
pernambucano Alves da Mota aplicava inclusive tons de violência ao afeto que os
romeiros devotavam à mesma estátua, descrevendo a cidade da seguinte maneira:

Juazeiro, a terra do ‘Padim Ciço’, onde o fanatismo, a idolatria e veneração


pela memoria do famoso pároco há 18 anos desaparecido do cenário da vida,
toca às raias do impossível, do inacreditável. Quem entrar em Juazeiro e ao
contemplar no Largo da Igreja do Perpetuo Socorro, a imagem em tamanho
natural, do Padre Cicero Romão Batista, não dobrar os joelhos acompanhando
o coro da ladainha cantada por um grupo de romeiros que se renova a cada
minuto, arrisca-se a ser linchado pela multidão fanática.559

Nessa narrativa, Juazeiro permanecia como reino da insanidade e da


selvageria, tão repleto de fanatismo quanto de violência. Essa percepção era comum
àqueles que observavam a cidade “de fora”, especialmente aos letrados. A escrita
jornalística parecia não conseguir capturar os matizes do sentimento romeiro.
O Padrinho não era um morto comum, como todos aqueles que recebiam
flores e velas no túmulo no Dia de Finados. Tratava-se de um morto que repousava em
paz, mas não descansava sozinho. Recebia diariamente a visita de seus afilhados. Era uma
“alma vivente”, um defunto cheio de vigor, um finado cuja vida não finou. Por esse
motivo, alguns narradores viriam a ter a impressão de que o túmulo consagrado a ele não
assumia tanta importância quanto sua imagem quase viva. Jáder de Carvalho corrobora
com essa visão ao descrever, no prefácio de Padre Cícero: Mito e realidade, em 1968, as
cenas que presenciara em Juazeiro:

Estive, por várias vezes, na meca cearense e, na minha derradeira visita, pude
observar sem trabalho: o romeiro desce do caminhão que o traz de muito longe,
do confim dos sertões, e logo se dirige à igreja, isto é, ao túmulo do meu
Padrinho. Ajoelha durante alguns minutos, em seguida tira do bolso da calça

559
MOTA, Alves da. No Roteiro do Cariri. Diário de Pernambuco, Recife, p. 1, 8 fev. 1958.
248

algumas cédulas (o dinheiro, quase sempre, vem amarrado num lenço).


Deposita as cédulas no lugar indicado e se encaminha, rápido e comovido, para
o patamar do templo. Ali, de olhos vivos e rosto muito corados – olhos muito
do Pe. Cícero e tez de jovem para dar melhor impressão – a imagem do
Patriarca é adorada como a de São Francisco, de São Benedito e outros santos
do catolicismo. O rosto abre-se em ternuras e bondade, no alto de um corpo
delicado, curvo, escondido naquela sotaina, tão conhecida e tão amada nos
sertões. Os olhos agradecem, ah, como agradecem! E como atendem – vistos
de dentro do romeiro! Diante dessa imagem que sorri sempre, esse romeiro
encontra o padre que ele não sentiu na estátua em praça pública, o padre que
ele talvez não acredite enterrado no corpo da igreja.560

A visita ao túmulo instalado na igreja parecia protocolar, já que ainda seria


possível ver e sentir o sacerdote vivo. O silêncio, a dor e o abatimento diante da sepultura
foram julgados pelo jornalista como displicência ou apatia. O frio do mármore
sentenciava, definitivamente, o fim de uma relação íntima e palpável entre o santo popular
e seus devotos. O ato máximo de proximidade física seria, dali em diante, o de ajoelhar-
se diante do túmulo ou proferir uma oração. O repórter que observava tais movimentos
iludia-se ao imaginar que os romeiros preferissem o contato com a alegre estátua à oração
aos pés da sepultura. Negligenciava, em sua análise, o sentimento de reverência ao espaço
em que o Padrinho jazia.
Mas essa não é a percepção de todos aqueles que visitaram Juazeiro. O
cineasta e radialista Theofilo de Barros Filho observou, numa edição de 1940 do Diário
da Noite, que o túmulo recebia vultuosa afluência de pessoas. Segundo sua interpretação,
os devotos se deslocavam desde suas distantes residências até o local porque esperavam
que a qualquer momento o Padrinho levantasse a tampa do jazigo e tornasse à vida:

Verifiquei que não somente um romeiro, mas quase todos eles, enfim todos os
habitantes rústicos da cidade lendária, esperam que um milagre devolva ao
mundo a figura estranha do velho sacerdote. Muitos vão até mesmo junto de
sua louza. Levam flores e se não houvesse proibição, levariam presentes,
animaes, comidas, dinheiro para junto das catacumba. Queriam ser os
primeiros a homenagear o ‘padrinho’ quando este, empurrando a tampa de
mármore do sarcófago, surgisse das entranhas da terra para abençoar a
multidão incalculável dos seus devotos e afilhados espalhados por todos os
recantos do imenso nordeste. Quando de sua morte, quase houve revolução no
Juazeiro.
Sem ligar importância ao protesto, os amigos do padre conduziram o caixão
para a igreja e já se dispunham a enterral-o quando a multidão lacrimosa
protestou. Protesto enérgico, a faca de ponta e rifle. De certo, haveria
hecatombe, se a Beata Mocinha e o Beato Lourenço não fizessem uso de boas
maneiras e empregando uma [...] hábil, obtiveram permissão para enterrar o
defunto. Assim mesmo, um rapaz que fechou o nariz ao ilustre insepulto há
dois dias, sofreu o risco de ser lynchado. Os devotos queriam matal-o, dizendo

560
CARVALHO, Jáder. “Prefácio”. In: ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
249

que era mentira, que o corpo não estava exalando mao cheiro. Foi preciso a
policia intervir e garantir a vida do proprietário daquele olfato imprudente...É
assim o Juazeiro. Na singularidade inacreditaval nessa Meca sertaneja. Centro
do maior fanatismo religioso da America Latina, o Joazeiro apresenta aos olhos
do repórter espetáculos tão impressionantes. Lá se colhem narrativas tão
fantásticas, existem motivos tão inéditos que ninguém hesita em considerar
esta cidade como a mais diferente cidade do Brasil.561

Assim, Theófilo de Barros Filho elabora uma versão da devoção em que a


morte de Padre Cícero seria negada: o corpo não podia cheirar mal e apodrecer como os
cadáveres dos demais mortais. Os presentes entregues no túmulo não eram iguais às
usuais homenagens aos mortos, mas configuravam uma relação estabelecida entre o
romeiro que levava sua oferenda e o sacerdote que poderia se reerguer a qualquer
momento do túmulo para recebê-la. A escrita irônica e corrosiva também aparece em um
artigo publicado no periódico A Noite, em 1935, em que se afirmava:

Durante o cortejo, em consequência do calor e da aglomeração, morreram


asphyxiadas três pessoas que acompanhavam o féretro. O esquife, aberto, foi
conduzido a mão pelos admiradores do venerado sacerdote. Um popular, com
seu tosco chapéo de palha erguido, protegia a cabeça do patriarca contra o
sol.562

O túmulo de Padre Cícero como espaço menosprezado ou adorado foi objeto


de estudo e observação para os jornalistas que visitaram Juazeiro. O próprio corpo do
Padrinho era alvo de especulações, carinhos e orações. Mesmo após a morte, teve a
própria pele protegida por seus devotos. Esse último gesto de cuidado e afeto foi
enxergado por alguns como um ato de fanatismo. Intelectuais, jornalistas e cronistas em
geral anteviam, no falecimento dele, o fim de um período marcado pela exótica fé
sertaneja, e qualquer atitude que apontasse o contrário era julgada como sinônimo de
ignorância e crendice, que deveriam, em breve, ser eliminadas em prol da modernidade e
do progresso.
A escultura de Padre Cícero inventada por Agostinho Odísio não rivalizava
com a anterior. Constituía um monumento em quase tudo diferente. Primeiramente, era
uma cópia tão fiel da imagem do próprio padre, que chegava a “enganar” os sentidos dos
romeiros e devotos, capazes de identificar naqueles olhos azuis a presença do Padrinho
ainda vivo. Se a escultura em bronze parecia lembrar um líder político morto, a imagem

561
BARROS FILHO, Theofilo de. Ainda esperam a ressurreição do Padre Cicero. Diário da Noite, Rio de
Janeiro, p. 3, 25 nov. 1940.
562
O IMPONENTE funeral do thaumaturgo. A Noite, Rio de Janeiro, p. 3, 23 jul. 1934.
250

colocada em frente à Capela, em cimento, lembrava um santo vivo, e servia para acalmar
os corações dos fiéis: ali, em frente à Igreja que resguardava o corpo já perecido, Padre
Cícero ainda vivia
Um sujeito não precisa ser considerado santo para que seja homenageado,
após a morte, com uma escultura fúnebre 563 . É curioso notar que Odísio trabalhava
justamente com um público formado pela burguesia que procurava eternizar seus
familiares através da criação de tais imagens. Em Juazeiro, no entanto, o artista encontra
um campo diferente. Poucos são os que possuem capital para a monumentalização do
próprio nome. Muitos, contudo, compram estátuas para rememorar um homem diferente
de todos, a quem a morte supostamente não deveria ter atingido. Odísio continua
trabalhando com um consumo de arte que é “democrático”, mas retrata, repetidamente, o
mesmo homem, distanciando-se do fenômeno de laicização anterior, em que esculturas
sacras lembravam homens comuns; agora, a escultura de um homem lembrava a sua
sacralidade.
O Padrinho já havia feito sua viagem. Desapareceu de Juazeiro. Mas, na
estátua, parecia continuar existindo. Já não era possível visitar o compassivo sacerdote
em sua residência à rua São José, mas os devotos continuavam a procurá-lo em Juazeiro.
Seu espírito passou a habitar toda a cidade, que foi se tornando, aos poucos, um local de
peregrinação e memória. Tomando o pensamento de Aleida Assmann, seria possível
afirmar que, além de local de memória, se configuraria ali um local sagrado.
Assmann desenvolve uma ampla discussão sobre “a memória dos locais”.
Segundo a autora, o uso dessa expressão é confortável porque sugere “[...] uma memória
que se recorda dos locais” e, ao mesmo tempo, uma memória “que está por si só situada
nos locais”, ou seja, também indica a possibilidade de que “[...] os locais possam tornar-
se sujeitos, portadores da recordação e possivelmente dotados de uma memória que
ultrapassa [...] a memória dos seres humanos”564. Ao distinguir os lugares de memória
dos locais de recordação, ela afirma que mesmo quando não possuem intrinsecamente
memórias, tais locais se constituem como espaços culturais de recordação extremamente
significativos. A autora distingue locais geracionais (associados ao parentesco); locais da
recordação, que possuem uma certa magia, sendo muitas vezes considerados sagrados;

563
Na Modernidade há uma “democratização do acesso aos monumentos de eternização da lembrança”.
Cf. MARCELINO, Douglas Attila. Historiografia, morte e imaginário. Estudos sobre racionalidades
e sensibilidades políticas. São Paulo: Alameda, 2017. p. 56.
564
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora Unicamp, 2011. p. 317.
251

locais memorativos, ou seja, criados institucionalmente para assegurar a sobrevivência de


locais sagrados; e locais traumáticos, relacionados a feridas que não querem cicatrizar.
Juazeiro se institui, nesse panorama, como local de recordação: espaço sagrado em que
se pode vivenciar a presença não de um deus, mas de um homem santo.
Padre Cícero pode ser invocado a partir de qualquer lugar, mas não é
onipresente. Na cidade em que viveu e operou os propalados milagres é possível sentir
seu poder de maneira mais intensa. Embora os afilhados do sacerdote tenham uma relação
quase familiar com o Padrinho e sua terra, Juazeiro não deve ser tomada como um lugar
geracional, ao qual as pessoas se ligariam por causa dos próprios antepassados. Ao
contrário: os forasteiros criaram uma conexão com aquele ambiente justamente graças à
sua sacralidade. Da mesma forma, não é possível afirmar que seja um local meramente
honorífico. A lápide do Padrinho não é, por exemplo, um espaço honorário, onde ocorrem
visitas às ruinas de algo que já não existe. É um local de piedade e de oração pela alma
de um santo que continua vivo.
A visita ao túmulo de Padre Cícero se configurou, aos poucos, como uma
espécie de “mistério da fé” juazeirense. Os afilhados do sacerdote sabem que ele não pode
mais ser visto e tocado. No entanto, creem que ele permanece ali, sempre atento e
disponível para escutar e atender os pedidos daqueles que o buscam. A sepultura,
entretanto, não se configurou como único indício da presença ainda constante do
Padrinho na cidade em que fundou.
As cores da estátua elaborada por Odísio reproduziam o fulgor da saúde:
Padre Cícero vestia a mesma batina preta de sempre, tinha o mesmo rosto inclinado, os
mesmos olhos que se comprimiam para evitar os intensos raios de sol, a mão sempre
erguida para abençoar seus devotos. A face ainda era rija, quase corada. Era assim que os
romeiros gostariam de ver o Padrinho. Em visita a Juazeiro em 1948, Nelson Carneiro
notou a peculiar relação estabelecida entre os romeiros e essa imagem, comparando-a,
inclusive, à estátua anterior:

Em frente à coluna da hora, na praça principal, eleva-se o monumento a Padre


Cícero, ‘homenagem do sertão’. Nada o distingue de outros monumentos,
destinados, em todas as cidades brasileiras, a suportar o peso dos anos. Não
encontrei ali uma flor ou uma prece que traduzisse presença, vida, fé. Mas na
Matriz de Nossa Senhora das Dores, de que foi capelão, já a influencia do Padre
se derrama, a todos os olhos. O folguetório, lá fora, anuncia a chegada de novos
romeiros. Vindos de todo o Nordeste, desde Alagoas, encarapitados em
caminhões festivos. No átrio, homens e mulheres imploram a proteção da
Virgem e de seu devoto. A dois passos do majestoso templo, que hoje substitui
a antiga capelinha edificada pelo Padre Pedro Ribeiro de Carvalho, trocam-se
252

lembranças do Padre Cícero Romão Batista. São os seus rosários, os seus


retratos, notícias biográficas, as suas novenas. Numa rua próxima está a casa
onde ele morreu, hoje propriedade, como quase todos os seus bens, da
Congregação dos Padres Salesianos. No quarto de alcova, a sua cama.
Romeiros e joazeirenses, genuflexos, rezam pela alma do Padre, suplicam a
sua intervenção junto à Padroeira. Quase todos os crentes querem a graça de
beijar a batina do ‘Meu Padrinho’, que é assim que ainda o tratam e chamam.
[...]. Um pouco mais distante, em frente ao altar-mor da Igreja do Perpétuo
Socorro, uma lápide assinala o túmulo do Padre Cicero. Nada importa que
sejam três horas da tarde de um dia de semana. Existe sempre muita gente
beijando o mármore, com uma tocante unção religiosa. Mas a todas essas
demonstrações outra se ajunta, de maior expressão. À entrada da Igreja, há um
verdadeiro oratório, com a figura, em tamanho natural, do antigo sacerdote. E
o povo, de joelhos, contrito, pedindo, rezando, esperando. Em toda parte, como
legenda, as ultimas palavras do Padre: ‒ ‘vou rogar a Nossa Senhora por vocês
todos’565.

Padre Cícero recebia os fiéis em frente à Capela do Socorro. Ele não esperava
pelos romeiros na parte de dentro, como os demais santos, quietos, calmos, tranquilos e
brancos como só numa distante Europa poderiam ser. O Padrinho era como os seus
seguidores: ele sofria sob o sol566. Apesar disso, o oratório que o protegia indicava que
ali não estava um político qualquer, mas um homem santo567.
Renata Marinho Paz transcreve, em sua tese de doutorado, uma circular em
que o então bispo da diocese de Crato, dom Francisco de Assis Pires, orientava os párocos
locais a respeito de um culto que poderia ser iniciar em torno de estátua erigida em 1935
em homenagem ao Padrinho:

Tendo chegado ao nosso conhecimento que em uma das praças da cidade de


Joaseiro, foi erigida há poucos dias, um monumento no qual a estatua do Pe.
Cícero Romão Baptista se apresenta colocada no interior de um nicho ou
oratório, à semelhança dos que são utilizados para conter as imagens sagradas,
e como isto pode dar ocasião a que de parte da gente simples e ingênua seja
cometidos erros relativamente ao culto publico de veneração que, segundo a
doutrina catholica, só e licito tributar-se aos servos de Deus já canonizados
pela autoridade da santa madre igreja, fazemos saber que toda e qualquer
manifestação, importando em actos de culto daquele gênero, deante da aludida
estatua, é reprovada e condemnada pela Igreja e por este motivo gravemente
pecaminosa.[...]

565
CARNEIRO, Nelson. Meu padrinho está no céu... Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 5, 28 nov. 1948.
566
Cf. PAZ, Renta Marinho. O santo que fica no sol. Uma leitura etnográfica sobre a devoção ao Padre
Cícero de Juazeiro do Norte. In: Lima, Marinalva Vilar de; Marques, Roberto. (Org.). Estudos
Regionais: limites e possibilidades. Crato: Ceres, 2004.
567
Conforme depoimento da devota Helena Vieira a Francisco Régis Lopes Ramos, “Ninguém reza na
frente de uma estátua assim no meio da praça. Reza quando tem um ‘nincho’. As pessoas rezam,
acendem vela e prestam aquela homenagem assim, pagam promessa sempre quando tem um ‘nincho’
ou uma capelinha, porque aí a gente considera como um oratório. Num é assim? Uma peça assim no
meio da praça é uma estátua. Aquele que tem no Socorro é um santo, não é uma estátua...”. RAMOS,
Francisco Regis Lopes. O verbo encantado. Unijuí: Ijuí, 1998. p.110.
253

Aproveitem os reverendos Parochos a presente oportunidade para instruir os


fiéis na parte da doutrina que se refere ao culto de veneração devido às imagens
e aos santos elevados pela Igreja à honra dos Sagrados altares.568

O bispo condenava o culto à estátua e lembrava que Padre Cícero não fora
canonizado pela Igreja. O fator agravante da heresia era o fato de haver um nicho ou
oratório protegendo a escultura. Não se sabe ao certo se a circular se refere à estátua
concebida por Odísio e assentada em frente à Capela do Perpétuo Socorro. Embora o
monumento possua uma placa comemorativa indicando inauguração ocorrida em 25 de
dezembro de 1940, parece existir a possibilidade de que dom Fernando se refira, já em
1935, à obra do escultor italiano569. De fato, a data de instalação e inauguração da imagem
é bastante incerta. Segundo anotação em fotografia que consta no acervo de Marconi
Landim, a estátua teria sido instalada em 1939. O mesmo retrato foi publicado na revista
O Cruzeiro:

568
Circular n. 20, de 09 de agosto de 1935 apud PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: a Igreja
Católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza: IMEPH, 2011. p. 160-161.
569
Segundo Gilmar de Carvalho, é “[...] curioso que não conste das inscrições quem mandou edificar o
nicho e entronizar a imagem ou vulto de expressão sertaneja, matriz, por sua vez, de toda uma estatutária
que constitui, talvez, a mais florescente das indústrias de conotação religiosa, ainda que, pelos registros,
se possa saber que foi José Geraldo da Cruz, o mesmo líder político que mandou retirar a fotografia do
Padre Cícero da sede da prefeitura, depois da Revolução de 30”. Cf.: CARVALHO, Gilmar de. Madeira
Matriz: cultura e memória. São Paulo: Annablume, 1998. p. 136.
254

Figura 25 – Resultado da estátua esculpida por Odísio

Fonte: MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista O Cruzeiro. Rio de
Janeiro, 16 de dezembro de 1944, p. 101.

Conforme legenda explicativa da imagem, o retrato não teria sido feito em


1939, mas em 1940. Edmar Morel indica: “Padre Cícero morreu em 1934. Esta fotografia
foi feita em 1940. Trata-se de uma estátua do sacerdote, em tamanho natural, ladeada por
comerciantes do Juazeiro”570. Provavelmente, foi necessário explicitar o fato de Padre
Cícero já estar morto na época do retrato justamente por tratar-se de uma imagem
tridimensional, repleta de uma materialidade que se confundia com o real.
No retrato, ao lado da escultura em tamanho natural — que facilmente seria
confundida com Padre Cícero vivo —, aparecem, entre outros, Antonio Ribeiro de Melo,
importante industrial de Juazeiro; João Pereira da Silva, fabricante de clichês e
comerciante ligado à União Democrática Nacional (UDN); José Batista Landim, primo
de Padre Cícero; o comerciante do ramo de calçados, sócio do Cine Roulien e diretor do
Rádio Clube, Joaquim Cornélio; o escultor Agostinho Balmes Odísio e Paulino, seu
ajudante; além de José Geraldo da Cruz, farmacêutico que foi cinco vezes prefeito de
Juazeiro (1930-1933; 1934-1935; 1936-1937; 1946; 1955-1959); o político, agricultor e

570
MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 16
de dezembro de 1944, p. 101.
255

pecuarista José Monteiro de Macedo, que também foi prefeito de Juazeiro durante dois
períodos (1947-1948 e 1951-1955); Fausto Guimarães (secretário de Padre Cícero) —
acompanhado de uma filha; o proprietário de engenhos José Bezerra de Melo, que
desempenhou durante trinta e cinco anos a função de tesoureiro da prefeitura de Juazeiro
do Norte; o comerciante Modesto Costa, e o capitalista Odílio Figueiredo, responsável
pela construção da Coluna da Hora571.
É preciso notar que a inscrição no alto da estátua indica sua inauguração em
25 de dezembro de 1940, por José Geraldo da Cruz, embora naquele ano o mandato de
prefeito coubesse ao industrial Antonio Pita. José Geraldo, por sua vez, esteve diversas
vezes à frente da gestão municipal, revezando-se no poder com outros políticos, entre os
períodos de 1930 e 1937, o que pode indicar que a construção da estátua tenha se iniciado
nesse período, sendo inaugurada oficialmente em momento posterior. É preciso destacar
ainda que, no retrato da estátua entre as figuras destacadas de Juazeiro, não aparece
Antonio Pita, prefeito em 1940, quando a imagem supostamente foi inaugurada. Mas é
possível enxergar, conforme foi mencionado, o farmacêutico José Geraldo da Cruz,
prefeito em mandatos anteriores. Esse é, talvez, um indício de que a estátua tenha sido
encomendada por ele, embora a inauguração possa efetivamente ter se dado somente
durante o mandato de seu sucessor. Por fim, a estátua é, sem dúvida, citada na obra de
Irineu Pinheiro, lançada em 1938. O escritor cratense afirma:

Em frente à capela, lá está, em um nicho, um pouco elevado do solo e próximo


ao cruzeiro, a estátua do padre, em tamanho natural. Encimam-na as suas
últimas palavras: ‘Vou rogar a Nossa Senhora por vocês todos’. Em torno da
estátua, pessoas que rezam ajoelhadas. Dentro da igrejinha, no chão raso, a
sepultura do fundador do Juazeiro, cercada de palmas de flores artificiais e
coberta de pétalas de rosas, que mãos piedosas e obscuras lá depositaram [...].
Foi, necessariamente, um bom quem despertou em vida tamanhas dedicações,
que a própria morte não conseguiu extinguir.572

É importante destacar essa confusão de datas no que diz respeito à


inauguração da estátua. A obra anterior, instalada em Juazeiro em 1925, teve sua
inauguração fartamente festejada e documentada, assim como ocorreria novamente com
a grande escultura de 1969. Somente a imagem elaborada por Odísio não possui registros

571
Segundo Dário Maia Coimbra, Odílio de Figueiredo encomendou a Agostinho Odísio a construção da
Coluna da Hora graças a recursos oriundos do jogo do bicho, então tributado pela prefeitura. Para
maiores informações, Cf. COIMBRA, Dário Maia. Os construtores de Juazeiro. Juazeiro do Norte:
Gráfica Universitária, 2000. p. 167.
572
PINHEIRO, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Fortaleza: IMPEH, 2011
[1938]. p. 164.
256

na imprensa nacional ou local, o que denota um provável distanciamento de posturas


institucionais e uma aproximação do então difuso e proibido encanto popular pela santa
figura de um padre morto há pouco tempo. Em torno dessa obra há certo silêncio
perturbador. Ao longo da pesquisa, não foi possível encontrar jornais que noticiassem sua
inauguração, ao contrário do que ocorreu com a estátua de bronze, que em 1925 foi
amplamente comemorada, e a estátua de concreto armado erguida sobre a Colina do Horto
em 1969, cujo descerramento figurou em quase todos os grandes e pequenos jornais do
país.
Edmar Morel e Zulema Figueiredo, em reportagem especial para a revista O
Cruzeiro intitulada “Os Últimos Beatos”, estiveram em Juazeiro e escreveram sobre
homens e mulheres leigos que, seguindo tradição iniciada pelo padre Ibiapina, faziam
votos de pobreza e castidade, vivendo para a oração. A reportagem é longa e traz diversas
fotografias feitas na cidade naquele período:

Figura 26 – Romeiros oram e beatos esmolam em Juazeiro

Fonte: MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista O Cruzeiro. Rio de
Janeiro, 16 de dezembro de 1944, p.100.
257

Figura 27 – Espada que teria pertencido a Floro Bartolomeu.


Segundo a reportagem, Padre Cícero teria abençoado a arma

Fonte: MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista


O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1944, p.104.

Figura 28 – Barraca sob a qual moraria Maria Firmina, uma beata de Padre Cícero
258

Figura 29 – Uma romeira eleva suas preces diante da estátua de Padre Cícero construída
por Odísio

Fonte: MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista O Cruzeiro. Rio de Janeiro,
16 de dezembro de 1944, p. 101.
259

Entre as fotos da reportagem, é possível ver a escultura de Odísio e a seguinte


legenda: “O corpo do Padre Cícero foi sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, porém os fanáticos veneram a memória do padre diante de sua estátua de
tamanho natural”573. Diferentemente da estátua de bronze, esta atrai grande número de
devotos, principalmente durante as romarias. As pessoas se ajoelham, rezam, deixam
flores, velas e imagens de santos quebradas. Muitos colocam objetos sob os pés do
Padrinho, rezam um Pai-Nosso e creem que assim as peças estão abençoadas. A
construção fica num espaço relativamente afastado da porta da capela e do cemitério,
situando-se nas proximidades do comércio local, que também gira em torno da fé 574.
Pouco se sabe sobre a escultura elaborada por Odísio — até mesmo a data de
inauguração assinalada na obra é imprecisa. O letreiro colocado acima do nicho, numa
placa que tem o formato de lápide, diz: “Viva o Reverendissimo Padre Cicero Romão
Batista – O Santo Patriarca fundador desta invicta cidade de Joazeiro de saudosa
memoria: 25-12-1940”, mas em 1938 já se dava notícia de sua existência. As palavras
que encimam a imagem fazem um jogo importante: reverenciam o padre e dão a ele o
título de “santo patriarca fundador da cidade”. Ou seja: é uma estátua dedicada ao
patriarca fundador de Juazeiro, mas também ao santo. Pelo que se sabe, inclusive, é o
primeiro monumento público a mencionar explicitamente a “santidade” do Padrinho.
Logo acima da cabeça da estátua, são exibidas as últimas palavras supostamente
proferidas pelo sacerdote em seu leito de morte: “Vou rogar a Nossa Senhora por vocês
todos”. Mesmo no momento em que se despedia da vida, Padre Cícero prometia cuidar
de seus afilhados. Mais abaixo, aos pés da estátua, outra inscrição: “Em 20 de julho de
1934 falleceu nesta cidade da qual foi o fundador o padre Cícero Romão Batista, cujos
restos mortaes estão sepultados nesta Egreja do Perpectuo Soccorro continuando
eternamente viva a sua sagrada memoria no coração do povo nordestino”.
É ainda relevante lembrar que, segundo Odísio, não havia, logo após a morte
do sacerdote, nenhuma inscrição dentro da capela que identificasse seus restos mortais.
A Igreja — provavelmente preocupada com os protestos que viriam a seguir — aceitou
sepultar Padre Cícero no local escolhido por ele, mas não destacou ali sua presença. Desta
forma, a estátua elaborada por Odísio parece ter sido construída com o intuito de sanar

573
MOREL, Edmar; FIGUEIREDO, Zulema. Os Últimos Beatos. Revista O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 16
de dezembro de 1944, p. 101.
574
Conforme Ramos, essa imagem do Padre Cícero está sempre envolta em orações, mas também figura
em meio a “[...] transações comerciais, nas beiradas da Igreja que o negou e no caminho da necrópole”.
RAMOS, Francisco Regis Lopes. O verbo encantado. Unijuí: Ijuí, 1998. p. 110.
260

essa ausência. Conforme menção anterior, o escultor italiano, ao visitar a Capela do


Socorro, provavelmente ainda em 1935, fez a seguinte anotação em seu caderno de
memórias: “[...] não existe nem uma lapide que o recorde porque o clero diocesano e o
Bispo não permitem”575
A contradição está justamente aí: a Igreja, ao proibir a existência de uma
humilde lápide, acabou ensejando a construção de algo ainda mais controverso para seus
propósitos de romanização e apagamento da trajetória do Padrinho: uma estátua de Padre
Cícero como santo, figurando fora da igreja, mas dentro de um oratório e recebendo
diariamente as visitas, orações e promessas de seus fiéis. É preciso apontar ainda que essa
imagem frequentemente era confundida com a própria sepultura do Padrinho,
principalmente quando a imprensa nacional se referia a ela.
Em seu caderno de memórias, Odísio reproduz uma fotografia em que posa
com o modelo da famosa estátua. Ele afirma, na legenda, que ela “[...] figuraria sobre o
túmulo do Padre Cícero” na Igreja do Perpétuo Socorro. Como é possível imaginar, isso
jamais poderia acontecer. A Igreja não permitiria uma estátua do sacerdote como santo
dentro de um de seus templos. Mas as artimanhas da vida fizeram com que a imagem,
mesmo fora do território sagrado, ainda se confundisse com o túmulo do Padrinho e com
o próprio sacerdote vivo. Padre Cícero, que após a morte não recebera nenhum
monumento, já não estaria presente apenas no túmulo, mas também na praça. Não se pode
dizer que Padre Cícero permaneceu vivo graças a Odísio. Mas se pode dizer que Odísio
ajudou Padre Cícero a (re)viver.

575
ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero. Fortaleza: Museu do Ceará,
2006. p. 18.
261

Figura 30 – A estátua de Padre Cícero elaborada por Odísio, ainda em barro

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006. p. 131.
262

Ao longo do tempo, os grupos de visitantes que se deslocam até Juazeiro vão


assumindo diferentes características e distintos graus de valoração. Os turistas, por
exemplo, são aqueles que fazem a viagem por curiosidade ou lazer. Os “fanáticos” e
romeiros, por outro lado, seriam aqueles que permaneceram realizando a peregrinação até
Juazeiro em busca do Padrinho e de seus milagres. Um articulista do Correio de Juazeiro
já criticava, em 1949, o fato de a cidade receber somente romeiros, e atribuía esse
problema ao fato de não se encontrar adaptada para a recepção de turistas:

O visitante da terra do Padre Cicero, geralmente acompanhado de uma auto-


curiosidade anterior e atiçada pelo tradicionalismo que lhe foi contado da
cidade, e pelos fatos históricos deixados em livros e jornais, em que tudo deixa
transparecer coisas fantásticas, fica, surpreso, em verdade, diante do que vê. A
estatística lhe dirá algo sobre os 50 mil habitantes, sobre outras tantas
industrias, sobre o perímetro soberbo da cidade, sobre a fabrica de relógios,
enfim, o progresso da terra. Eis senão que, ao procurar um hotel para hospedar-
se, o visitante extranha. As poucas pensões espalhadas, geralmente pequenos
prédios de pouso, sem qualquer feição que se amolde o nível social do
ambiente, dá um atestado de despreso pelo ramo. Hospedarias para romeiros
há muitas, porem, falta um hotel na expressão da palavra como os 2
formidaveis edifícios construídos na cidade de Crato.576

Conforme Odísio já havia destacado em seu Memórias de Joazeiro do Padre


Cícero, o setor hoteleiro da cidade especializou-se em pensões, pousadas e,
especialmente, em “ranchos”, constituídos por casas ou galpões dotados de cozinha e
banheiro coletivos onde os romeiros armavam suas redes e aos quais se deslocavam para
preparar alimentos e dormir, enquanto passavam o restante dos dias visitando os lugares
santos de Juazeiro. Figuras importantes que viajavam até o Cariri para conhecer a cidade
de Padre Cícero costumavam se hospedar nas residências de juazeirenses ilustres ou em
hotéis situados na cidade ao lado, Crato.
Apesar de atrair um grande número de visitantes, a terra do Padrinho se
dedicava principalmente a dar pouso aos devotos pobres que chegavam das mais diversas
cidades do Nordeste. Os grupos de romeiros que buscavam abrigo nas pensões, pousadas,
ranchos e casas de santos de Juazeiro eram heterogêneos, conforme a descrição de
Henrique de Figueiredo 577 para o Diário de Pernambuco em 1954, vinte anos após a
morte de Padre Cícero:

576
PORQUE precisamos... Juazeiro do Norte, p. 5, 25 set. 1949.
577
Jornalista muito admirado por seu estilo e suas ironias. Atuou no Nordeste, diferente de tantos colegas
que transferiram a carreira para a região Sudeste do Brasil.
263

Era essa mesma população heterogênea e movediça, que dele se acercava,


pedindo a benção ao PADRIM CICERO. Ela provem ainda de todos os
recantos geográficos do nordeste brasileiro. Quase todos de gibão e chapéu de
couro, vindos dos chapadões do Orobo, da Varzea da Ema, de Sincorá, na
Bahia; barranqueiros das margens do rio São Francisco; sertanejos dos contra-
fortes da Borborema, na Paraiba, vestidos do brim de ‘pólvora com farinha’ ou
brim azulão ‘Alvorada’; corumbás dos engenhos de açúcar de Pernambuco, os
cabras das vaquejadas do agreste; comedores de barro das bordas do rio
Calunga; assassinos das Alagoas; sertanejos aguerridos, almas de lama, que na
Cidade Santa do Joazeiro vão arejar os seus complexos de criminalidade.
Negras feiticeiras dos xangôs da Baixa do Sapateiro e de Feira de Sant’Ana;
Pais de terreiro do Engenho Velho, e de Panzarré; Mães de santo do Babalorixá
Senhor do Bonfim. Mulheres andrajosas; raparigas ostentando pulseiras de
relógio e argolões nos lóbulos das orelhas, do ouro das minas de Piancó.
Morenas sertanejas de peitos empinados e nadegas opulentas. Romeiros de
todo ano, de Lagoa dos Gatos, de Panelas, de Cupira, levados pelo caminhão
do ‘Seu Jonoca’. Velhos, valetudinários, arrimados do seu bordão de
buranhém, trazendo no alforje um pedaço de carne de bode, rapadura e um
punhado de farinha de manipeba.578

O elemento mais peculiar do relato, no entanto, é a viagem não ser realizada


somente pelos católicos, mas também por devotos que professavam religiões de matriz
africana, como os pais e mães de santos. É importante notar que em Juazeiro havia
numerosos praticantes desses cultos. Eram pessoas que enfrentavam preconceitos e
perseguições, como se pode notar em reportagem de capa feita pelo Correio do Juazeiro
em 1949. Na matéria, J. Barbosa e Coelho Alves entrevistavam a vizinha de um suposto
feiticeiro. Segundo a reportagem, “Abilio de ‘Tal’ e Pereirinha, mestres da macumba”
promoviam sessões durante as madrugadas, “fazendo o maior alarido”. Os jornalistas
convocavam a ação da polícia alegando haver na vizinhança “uma família inteira
prejudicada pela macumba”:

‒ Que efeito produzem essas ‘sessões’ que desabone a senhora?


‒ Ah... fez d. Rosa – É um inferno. Quando se vai dormir ouvem-se alaridos,
gemidos, pancadas assustadoras e som de metais como se tivessem lutando
com espadas. Tenho medo de um dia a casa vir abaixo e não se pode dormir.
Eu só acredito em Deus, mas temo, que eles não virem a bruxaria por cima de
nós.
Consta que na noite de 8 p. p. o Pereirinha gritou alto na calçada: ‘Atenção
pessoal, de amanhã em diante as ‘sessões’ serão feitas de portas abertas para
quem quiser. Eu quero vêr quem acha ruim’.
É a vez de chamarmos a atenção da polícia para comparecer também aos rituais
da casa malassombrada da Rua Pe. Cicero, 937 afim (sic) de verificar o que há
de anormal, pelo menos assegurando o socêgo (sic) da vizinhança, que, como
d. Rosa, não dorme nas noites das ‘manifestações dos espíritos malignos que
andam pelo mundo para a perdição das almas’.579

578
FIGUEIREDO, Henrique de. Padre Cicero. Diário de Pernambuco, Recife, p. 9, 8 out. 1954.
579
BARBOSA, J.; ALVES, Coêlho. Avançam ainda os feiticeiros! Correio do Juazeiro, Juazeiro do
Norte, p. 1, 13 mar. 1949.
264

O mesmo Pereira seria acusado, em outubro de 1949, de vender uma exótica


garrafada com a promessa de curar um cidadão da Serra de São Pedro (atual cidade de
Caririaçu). De acordo com o texto, “Pereira foi infeliz na sua sabedoria”, pois denúncias
afirmavam ter feito “[...] um ‘preparo’ de sangue de morcego, pena de urubu torrada e
outros ingredientes mandingueiros”580. Desse modo, mais uma vez a polícia era incitada
a agir para evitar que os pobres e ignorantes fossem ludibriados por sujeitos que vendiam
as tais “garrafadas”, cujas matérias-primas supostamente incluiriam “[...] sangue de
morcego, pena de urubu torrada, essência de barriga de cururu, farófia de lagartixa e
outros ingredientes que só o demônio bebe sem furar o intestino”581.
A despeito de vez por outra aparecerem nas páginas do Correio do Juazeiro
agradecimentos de pessoas que se diziam curadas por Pereirinha, o jornal promovia uma
verdadeira perseguição àqueles que realizavam cultos de matriz africana, bem como aos
praticantes de espiritismo em geral e aos “curandeiros” amiúde procurados pela
população pobre e desprovida de acesso ao socorro médico. Na semana anterior a essa
denúncia, por exemplo, o jornal anunciava que Juazeiro era uma “[...] terra de superstição
e fanatismo por excelência dada a falta de escolas e de educação necessária”, onde
aventureiros se aproveitavam da inocência da população. A seguir, elencava os feitiços
mais comuns: “[...] o sapo costurado, a cobra de duas cabeças enrolada em fios de cabelos,
os embrulhos com ossos, pimenta e incenso, uma variedade [...] grande de
despachos...”582.
Como se pode notar, nem só da fé em Padre Cícero viviam os habitantes de
Juazeiro. Eles buscavam diversos meios de encontrar a cura para os males físicos,
espirituais, emocionais e econômicos. As elites locais e os intelectuais combinavam a
crença em feitiços ao fanatismo comumente associado aos devotos de Padre Cícero,
atribuindo a culpa de tal inclinação para crer em fenômenos sobrenaturais à precária
educação formal ofertada pela municipalidade. As crenças que fugiam à ortodoxia da
Igreja Católica eram vistas como atraso e fanatismo, devendo ser eliminadas pelo bem do
progresso:

Juazeiro, a Méca, a cidade tradição, santuário do Nordeste, é também a Taba


de Araken aonde pululam muitos indígenas ariscos e subservientes, selvícolas

580
FEITICEIRO “bancando” o médico. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 1, 23 out. 1949.
581
Id., ibid.
582
É O QUE conforta. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 6, 6 mar. 1949.
265

de gravatas que acompanham misticamente o batuque da feitiçaria farsantes


dos macumbeiros mór, aproveitadores da obtusidade mental dos fanaticos da
taba. Juazeiro ainda vai atrasado no carrilhão do século. O estilo de aldeia, vez
por outra dá margens a que se levantem bandos de índios de camisa e sapatos
aloucados pela vóz do chefe feiticeiro; anormalizados sócio-humanamente
com os arcos e flechas de desarmonias a lançar as setas da confusão nos que
querem progresso.583

Embora a defesa da eugenia já não se adequasse aos novos tempos, a


comparação dos habitantes locais a indígenas “ariscos e subservientes” e a crítica às
crenças associadas ao “batuque da feitiçaria farsante dos macumbeiros mór” pretendiam
demonstrar que Juazeiro devia seu atraso àquela população que, mesmo vestindo camisas,
calçando sapatos e utilizando gravatas, continuava a ser constituída por mestiços que
levavam o tempo a propagar crenças consideradas obtusas, promovendo, assim, o atraso
no percurso de Juazeiro rumo ao progresso.
Sabe-se que o monumento construído em 1969 sobre a Colina do Horto virou
ponto de propaganda política para diversos candidatos, que passaram a visitar Juazeiro
em busca dos votos sertanejos (e a publicar nos jornais de todo o país fotografias em que
oravam aos pés da estátua). Antes de 1969, contudo, o túmulo de Padre Cícero e a estátua
idealizada por Odísio já eram utilizados com o mesmo propósito. Ainda em 1934, a
sepultura recebeu a visita do interventor Moreira Lima, que se destacou até Juazeiro
durante a romaria de Finados:

Fortaleza, I (D. C.) – regressou do sul do Estado, o interventor Moreira Lima,


que visitou a zona do Cariry, inclusive as cidades de Crato e Joazeiro, fazendo-
se acompanhar de numeroso séquito. Nesta ultima cidade, o coronel Moreira
Lima fez questão de visitar o tumulo do padre Cicero, junto ao qual depos uma
enorme coroa, que trouxera da capital. Tem sido muito comentado esse gesto
do interventor, naquela cidade conhecida como a ‘Meca dos Romeiros’,
havendo quem pretenda atribuir essa atitude do coronel Moreira Lima ao
intuito de imitar Napoleão Bonaparte, em sua visita à mesquita do Cairo.584

Os jornais do período noticiavam tais visitações, avaliando, conforme as


diferentes inclinações políticas, os erros e acertos da estratégia de levar candidatos até
Juazeiro. O vice-presidente Café Filho, o então ministro João Goulart, Adhemar de
Barros, na época sem mandato, e o governador do Ceará, Raul Barbosa, também visitaram
o túmulo e foram fotografados junto à estátua em 1952585. É preciso mencionar que, na

583
BARBOSA, Menezes. Taba de Araken. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 2, 16 out. 1949.
584
O INTERVENTOR Moreira Lima imitando Napoleão Bonaparte... Diário Carioca, Rio de Janeiro, p.
6, 3 nov. 1934.
585
CENTENÁRIO do Crato. O Jornal, Rio de Janeiro, p. 2, 28 out. 1952.
266

fotografia, a escultura é identificada como sendo o próprio túmulo do Padrinho, fato que
se repete em numerosas publicações.
Em 1959, foi a vez do Marechal Lott fazer sua visita à estátua e ao túmulo.
Durante esse acontecimento, a imprensa nacional se dividiu. A revista O Cruzeiro fez
uma longa reportagem em que mencionava viagem de Jânio Quadros a Jerusalém e
Nazaré, comparando-a à excursão que naquele momento Lott fazia a Juazeiro. O
jornalista Carlos Castello Branco, em tom elogioso, afirmava que o marechal fora ao
Nordeste para testar a popularidade e treinar o contato com os demais políticos e o povo,
saindo-se bem. Além disso, o Padrinho parecia ter atributos capazes de inspirar o militar:

O deputado Último de Carvalho lembrou o que, a respeito do Padre Cícero,


cujo túmulo o Marechal e comitiva acabavam de visitar, lhe revelara seu colega
Colombo de Souza: o Padre Cícero depois de confessar algumas dezenas de
assassinos e ladrões, subia ao púlpito e dizia: ‘Meus filhos, vocês mataram
muito e roubaram muito; vão para casa, não matem mais nem roubem mais’.
O Deputado Último acrescentou: ‘É isso que eu quero, Marechal. Não quero
que o senhor prenda ninguém, nem faça inquérito. No Brasil quem rouba muito
é barão, tem muita influência. O que quero é que o senhor não deixe roubarem
mais’. E enfático: ‘Marechal, não assine protocolo com partido!’. O Ministro
da Guerra riu com gosto, inteiramente descontraído.586

Um ano depois, já em período de campanha propriamente dita, o Correio da


Manhã retomou a discussão sobre a viagem do candidato ao Ceará e, mais
especificamente, a Juazeiro, tecendo sobre ela diversas críticas. As palavras de um
hipotético cidadão juazeirense acerca do comportamento do Marechal impunham uma
reprovação:

‒ Ele não veio aqui fazer comício. Veio para uma inauguração da CHESF. Mas
fez muito mal de se ajoelhar e rezar no túmulo do padre Cícero. O povo não
gostou desse exagero do marechal. O povo gosta de uma coisa: que elogiem o
padre Cícero, digam que foi um grande cidadão, um patriarca desta cidade,
homem bom, amigo do povo, de prestígio reconhecido no resto do Brasil, e até
na história do Brasil. Mas ajoelhar-se e rezar, isto só no altar dos santos. Padre
Cícero não é santo da Igreja.587

Assim sendo, a visita a Juazeiro servia de mote para a discussão política, e as


especulações sobre a ambiguidade de Padre Cícero eram utilizadas para elogiar ou criticar
os candidatos. O retrato junto à estátua concebida por Odísio, que foi se tornando
tradicional entre aqueles que aspiravam cargos no Poder Executivo, era uma constante

586
BRANCO, Carlos Castello. Lott sabe falar. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 44, 15 ago. 1959.
587
O POVO é sério. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 9, 10 jun. 1960.
267

nos jornais e revistas do período, inclusive nos anos iniciais da ditadura civil-militar que
se instalou no país.
A escultura de Padre Cícero — assim como o seu túmulo — não eram assunto
para discussões apenas na política nacional. Os boatos e conflitos que envolviam o clero
local também partiam, muitas vezes, do mesmo ponto. Em 1949, por exemplo, boletins
anônimos circulavam na região do Cariri com críticas ao Monsenhor Joviniano Barreto,
que resolveu realizar uma “concentração” com a participação de diversos oradores
engajados em sua defesa. A iniciativa, no entanto, não obteve êxito. Logo depois dessa
tentativa de justificação, novos textos anônimos voltaram a circular, criticando os
oradores e o próprio Monsenhor, que

[...] Não desmentiu que faz campanha contra o amor que os romeiros teem ao
Padre Cicero. Não desmentiu que tem vontade de acabar com a estatua do
Padre Cicero, no Socorro. Não desmentiu que mandou fechar a Capela do
Socorro para não ser celebrada uma missa em homenagem ao Padre Cicero.
[...] Não desmentiu que chamava de Faisca e Tubarão as creanças batizadas
pelo Padre Cicero [...]. Quando o Padre Cicero foi chamado para junto do pai
celeste o Monsenhor Juviniano disse: daqui a 10 anos não se fala mais no nome
do Padre Cicero nem desses tais milagres. 588

Diversas acusações endereçadas a Monsenhor Joviniano diziam respeito ao


culto ao Padre Cícero, mais especificamente a temas relacionados à Capela do Perpétuo
Socorro, onde seu corpo fora sepultado, e à estátua erigida ali em frente. Ofender o amor
que os devotos alimentavam pelo Padrinho era como ofender o próprio Padrinho. Erro,
portanto, imperdoável. O informativo ainda atacava o fato de Monsenhor Joviniano ter
especulado que Padre Cícero seria em breve esquecido. Sabe-se que, com atos, os devotos
desmentiram essa possibilidade, visitando sempre Juazeiro e provando, com isso, a
perseverança do amor dedicado ao sacerdote.
A estátua do Socorro, como é possível perceber, exercia especial atração
sobre os romeiros, confundindo-se, sob o olhar da imprensa nacional, com o próprio
túmulo do Padre Cícero. O vulto concebido por Odísio teve, por muito tempo,
significação religiosa e simbólica equivalente àquela que viria a ter o monumento
inaugurado por Mauro Sampaio em 1969.
Com a estreia da gigantesca estátua, a imagem idealizada por Odísio parece
ter perdido algumas atribuições políticas, mas continuou resistindo como forte atrativo

588
NOVOS boletins anônimos. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 1, 3 jul. 1949.
268

religioso, especialmente para os romeiros. Até os dias atuais, embora não funcione como
chamariz turístico, recebe diariamente dezenas — ou mesmo centenas — de devotos e
romeiros que ali realizam suas preces, santificam seus pertences e acendem suas velas.
Entre a capela e a rua, entre a fé e a política, Padre Cícero permaneceu vivo, e Juazeiro
prosseguiu sendo sua morada.

7.3 Padre Cícero no alto da Colina

O jornal O Estado de São Paulo publicou, no início de novembro de 1969,


uma reportagem sobre os acidentes automobilísticos ocorridos durante a Romaria de
Finados daquele ano. O correspondente de Fortaleza anunciava que, no dia cinco de
novembro, já era possível contar oito devotos mortos e mais uma centena de pessoas
lesadas por ferimentos graves: “Os romeiros tinham ido participar dos festejos de
inauguração da estátua de 27 m de altura do padre Cícero, que domina todo o vale do
Cariri”589.
Trinta e cinco anos após a morte de Padre Cícero, a Romaria de Finados se
consolidava como tradição. Anualmente, milhares de devotos já deixavam suas
residências em Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e outros estados com o
objetivo de prestar homenagem ao Padrinho, pedir a sua bênção e fazer ou pagar
promessas. O fluxo aumentou com a construção do grandioso monumento na Colina do
Horto. Colisões e capotamentos nas estradas malconservadas eram recorrentes.
Caminhões de frete — os famosos paus de arara — conduziam os peregrinos em condições
precárias e frequentemente provocavam acidentes que por vezes levavam a óbitos. Apesar
disso, os romeiros nunca abandonaram o caminho. Essas peregrinações já haviam sido
descritas em artigo publicado no Correio de Juazeiro por Anderson Borges, logo após a
Romaria de Finados de 1949:

Cada caminhão que chega, superlotado de romeiros que entoam benditos,


corresponde a uma descarga cerrada de fogos e foguetões, ouvida, talvez, em
quase todo município. É essa maneira típica do romeiro demonstrar sua fé,
depois de uma longa viagem de muitas léguas através dos sertões abrazados,
onde só o espinho do chique-chique exprime revolta ao ódio implacável da
natureza. Gente simples, o romeiro não conhece esse famigerado respeito
humano que destitue as sociedades hodiernas dos seus mais instintivos
sentimentos, principalmente dos que se referem à religião e a fé. Ele revela na

589
ROMARIA TEM final trágico. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 6, 5 nov. 1969.
269

menor atitude, o traço da inocência que predomina em sua formação. É uma


criatura radicada na terra onde trabalha pelo próprio sustento: não sente atração
pelo litoral – porta de entrada da maldade e da perversão – e só a fé em N. S.
das Dôres e o respeito à memória do Padre Cícero, fazem-no vir ao bulício
desta terra legendária. O seu devotamento é profundo. Vem de muito distante,
trepidando em cima de um caminhão qualquer, acoberto dos raios solares mas
expostos à poeira micro pulverizada dos caminhos causticados pela soalheira
desse outubro nordestino. Enfrenta os imprevistos, além de todos os
sofrimentos ponderáveis e que são o rosário sem fim das romarias.590

A ideia de que os romeiros eram representantes do Brasil profundo, do Brasil


puro e pouco interessado pelos pecados do litoral, era veiculada nos jornais com o
provável objetivo de demonstrar a especificidade do atraso cultural em que ainda se
encontrava o sertão nordestino, bem como a força da ingênua devoção ao Padre Cícero.
Se em 1949 os seguidores do Padrinho já se submetiam às piores condições em longas e
extenuantes viagens ao Cariri, vinte anos depois, em 1969, surgiu na cidade um novo
atrativo para aqueles que nunca abandonaram Juazeiro e a Mãe das Dores: a gigantesca
representação do patriarca de Juazeiro construída em cimento armado e instalada num
dos pontos mais altos do município. Edificada ao longo de dois anos, a estátua pretendia
aplacar os protestos provocados pelo prefeito de Juazeiro, Mauro Sampaio, ao tentar
substituir o velho Pé de Tambor por uma antena de televisão.
O Pau de Tambor (ou Pé de Tambor) era uma Timbaúba que contava então
mais de cem anos. Dizia-se que Padre Cícero tinha o hábito de repousar sob sua copa
durante os retiros espirituais que realizava na Colina do Horto. A árvore era larga, alta e
frondosa, e muitos devotos a consideravam sagrada, por isso colhiam seus ramos e folhas
para utilizar em preparos medicinais. Seus troncos e sua folhagem podiam ser enxergados
mesmo por aqueles que se encontravam na parte baixa da cidade. Chegou a ser construída
junto a ela uma capelinha que por muitos anos foi bastante visitada pelos romeiros. Assim,
os devotos do Padrinho estimavam o robusto vegetal e o consideravam como um bem
natural e cultural que representava o Padre Cícero, e que permaneceu vivo e forte após o
perecimento do sacerdote.
Quando, com o objetivo de implantar uma antena de televisão, a árvore foi
derrubada, houve grande clamor e resistência popular. Conforme Barros, “[...] foi-se o
tambor de folhas milagrosas e plantou-se a torre das imagens poluidoras”591. O prefeito,

590
BORGES, Anderson. O drama das romarias. Correio do Juazeiro, Juazeiro do Norte, p. 2-3, 20 nov.
1949.
591
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero – A Terra da Mãe de Deus.
Fortaleza: IMEPH, 2008. p. 338.
270

preocupado com o apoio político que perderia junto à população juazeirense, resolveu
construir nas proximidades do local uma grandiosa estátua em homenagem ao Padre
Cícero. A estratégia funcionou. A obra esculpida pelo pernambucano Armando Lacerda
passou a atrair milhares de fiéis anualmente. Conforme lembra Gilmar de Carvalho em
seu Madeira Matriz, a derrubada do Pé de Tambor “[...] serviu muito mais como forma
de erradicar um símbolo que se verticalizava, que era visível e que tinha história, do que
como implantação de uma tecnologia592”. Mauro Sampaio, o prefeito, foi inteligente o
suficiente para notar que precisava corrigir seu ato: resolveu substituir o antigo símbolo
por um novo. O padre passava a ser representado em medidas que correspondiam a sua
real grandeza. A estátua de 27 metros convidava os visitantes a olharem para o céu.
A inauguração da estátua ocorreu em primeiro de novembro, um dia antes
daquele tradicionalmente devotado à lembrança dos mortos. Acreditava-se que o dia de
luto não era apropriado para festejos. A cerimônia foi realizada no centro da cidade, pois
o local em que a estátua fora instalada era ainda de difícil acesso. Compareceram
autoridades e figuras públicas. Oswald Barroso conta que, sob a perspectiva dos devotos,

Um lado da terra ficou penso depois que o Pau de Tambor teve o tronco
apartado do chão. Uma fatia de ar repentina fez balançar a serra do Horto como
a alguém engasgado. Só recuperou o equilíbrio quando as folhas da grande
árvore foram transformadas em chás e as farpas de sua madeira, igualmente,
se consubstanciaram em relíquias, que Maria dos Benditos se pôs a distribuir
entre os devotos [...]. Foi quando o prefeito viu a revolta bater à sua porta.
Pancadas agudas feito choro de cão morto a pauladas. Ele foi até a janela da
frente e pôde observar o mundo se fender em dois, um raio dividindo a terra a
partir do alto do Horto. Era o aviso.593

A tradição popular conta que, arrependido pelo “pecado” de ter ordenado a


destruição do Pé de Tambor, o prefeito teria feito ao próprio Padre Cícero a promessa de
construir uma estátua em sua homenagem. Por outro lado, a versão mais difundida dessa
narrativa afirma que a revolta e os protestos populares é que o levaram a pensar em tal
solução. Em entrevista, o prefeito dizia que o monumento era “[...] o grande sonho do
povo de Juazeiro, embora [...] toda a população tenha em casa várias estatuetas,
medalhinhas, quadros e outras lembranças de ‘meu padrinho’”594.

592
CARVALHO, Gilmar de. Madeira Matriz: Cultura e memória. São Paulo: Annablume, 1998. p. 30.
593
BARROSO, Oswald. Romeiros. Fortaleza: Secretaria de cultura e Turismo; URCA, 1989. p. 35.
594
JUAZEIRO GANHA em novembro estátua gigante de Pe. Cícero. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p.
29, 11 ago. 1969.
271

Desse modo, a peculiaridade do monumento edificado na Colina do Horto é


o fato de ele não ter sido erigido por iniciativa e vontade individual das autoridades
públicas. A escultura não foi elaborada com o objetivo de solidificar a lembrança de um
grande homem, mas de aplacar o clamor popular que não se conformava com a destruição
de um símbolo que não poderia ser refeito. O monumento, portanto, não foi elaborado
para lembrar uma personalidade que poderia ser esquecida, mas para homenagear alguém
próximo, presente e constantemente lembrado. Conforme reportagem publicada no
Diário de Pernambuco,

O padre Cícero Romão, ‘santo do Sertão’ e herói do Cariri, volta a pisar os


montes da região onde seus ‘milagres’ atraem centenas de milhares de
romeiros, pelos campos e caatingas. Sua estátua, o maior monumento do
Nordeste, será inaugurada hoje, no dia da festa maior do Cariri, na presença de
trezentos mil romeiros, que vêm de todos os recantos do Nordeste e até dos
sertões do Mato Grosso e das fronteiras da Amazônia [...]. Sua construção foi
rápida: dois anos. Custou trabalhos e sacrifícios a tôda a população da região
do Cariri, que de qualquer lugar pode observá-la no cimo da serra mais alta da
região. Não foi construída como atração turística, mas como um monumento
de fé e gratidão ao apóstolo do sertão, que multiplica milagres aos que
procuram seu túmulo e invocam sua proteção.595

Nessa citação é importante destacar a afirmação de que a estátua, ao contrário


de outros monumentos, não foi levantada como atração turística. Ela não se configurava,
portanto, como um lugar de memória artificialmente criado, mas como um desejo
concretizado pelos próprios romeiros (o desejo de ver seu Padrinho pisando novamente
as terras do Horto). Simbolizava, mais que qualquer outra construção relacionada ao
Padre Cícero, a existência de um local de recordação que, a despeito das tentativas de
diversas autoridades públicas e religiosas, não poderia ser eliminado.
É importante perceber, no entanto, que outros meios de comunicação
divulgavam versões diferentes da história. Em janeiro de 1969, o periódico carioca A Luta
Democrática publicou matéria sobre uma quadrilha que teria sido descoberta em Maceió
ao praticar estelionato contra os devotos de Padre Cícero. Os criminosos percorriam
diversas cidades do Nordeste arrecadando dinheiro para, supostamente, construir a grande
estátua em Juazeiro. Alguns dos golpistas foram presos em Recife. Mauro Sampaio,
responsável pelo monumento, imediatamente comunicou que não havia comissionado
ninguém para arrecadar fundos para a obra, “[...] revelando ainda que a estátua para o

595
ALCIDES, Jota. Inauguração da estátua do padre Cícero tem presença de 300 mil romeiros do Nordeste.
Diário de Pernambuco, Recife, p. 10, 1 nov. 1969.
272

Padre Cícero e outras que lembrarão o sacerdote, estão sendo realizadas às expensas da
prefeitura e visam um maior fluxo turístico a cidade”596.
Dessa forma, a construção saía da dimensão do “fanatismo” e se instituía
como política pública realizada institucionalmente com um objetivo bem delimitado. A
matéria do jornal carioca não foi a única a destacar o caráter turístico da atração. Ainda
em 1968, o Diário de Pernambuco anunciava que a estátua implantada no cume da serra
seria “[...] circundada por vários jardins, praças, ‘playground’, além de outras atrações”,
constituindo assim um amplo complexo turístico 597 . O Padrinho, que sempre fora
considerado fator de atraso, transformou-se em vetor de progresso.
Um dia após a inauguração, o periódico fortalezense Gazeta de Notícias
anunciava detalhes da cerimônia, enfatizando a presença de importantes autoridades
políticas e militares, bem como do sofisticado aparato tecnológico utilizado na iluminação
da estátua. O jornal deu destaque também à cobertura da imprensa nacional, que se
deslocou até Juazeiro para noticiar o evento:

Com o acionamento, pelo vice-governador Humberto Ellery, da chave de


controle eletrônico de iluminação do monumento, foi inaugurada, a noite
passada, às 8 horas, a estátua do Padre Cícero, localizada na serra do Horto,
em Juazeiro do Norte. Antes do ato, durante 39 segundos, a cidade esteve
inteiramente as escuras. À única chave, do patamar da Igreja Matriz de Nossa
Senhora das Dores, foram acesos os 24 refletores de luz alogênica, únicos em
todo o Norte e Nordeste do pais. Mais de 200 mil pessoas assistiram o ato,
filmado por cinegrafistas das emissoras de televisão Globo e Tupi, do Rio de
Janeiro, e Cultura, de São Paulo, e transmitido por emissoras de radio de todo
o Nordeste, inclusive da Bahia. Repórteres dos jornais ‘Diário de
Pernambuco’, ‘Jornal do Comercio’, ‘Jornal do Brasil’ e de outros órgãos da
imprensa brasileira, além de enviados das revistas, ‘Veja’, ‘Fatos e Fotos’, ‘O
Cruzeiro’, ‘Manchete’ e ‘Realidade’, documentaram toda a programação
cumprida ontem na Meca do Cariri, contando, ainda, flagrantes da
movimentação dos romeiros – mais de 100 mil. A programação de ontem, foi
iniciada às 8h30, com um desfile cívico do qual participaram os integrantes do
Tiro de Guerra e da Polícia Militar, além de estudantes dos diversos
estabelecimentos de ensino de Juazeiro. No palanque armado na Praça
Almirante Alexandrino ficaram as diversas autoridades que convergiram para
Juazeiro, entre as quais os deputados Virgílio Távora, Leão Sampaio, Adauto
e Humberto Bezerra, além do prefeito Mauro Sampaio, responsável pela
construção do monumento. Os romeiros vieram em maior número de
Pernambuco, seguindo-se os contingentes da Paraíba e Alagoas, chegaram,
principalmente, em caminhões e ônibus, utilizando, ainda, trens e automóveis.
Somente do Recife chegaram, nos dois últimos dias, 26 ônibus; da Paraíba, 16
e de Alagoas mais de 10. De outros Estados também convergiram romeiros,
inclusive do Paraná, Amazonas de Brasília. O senador mato-grossense
Clímaco Bezerra também estava em Juazeiro, como simples romeiro, o mesmo
ocorrendo com vários parlamentares de Estados Nordestinos. Arranchados em
tendas improvisadas, ou hospedados em residências de Juazeiro e Crato,

596
QUADRILHA ARRECADA dinheiro – Estátua do Padre Cícero. A Luta Democrática, Rio de Janeiro,
p. 4, 23 jan. 1969.
597
UMAS e outras. Diário de Pernambuco, Recife, p. 10, 12 mai. 1968.
273

instituições de caridade, colégios e abrigos municipais, os romeiros alteram


inteiramente a fisionomia da cidade, cujo comercio vem funcionando inclusive
à noite, num movimento sem precedentes. Mesmo com a inauguração do
monumento, a afluência de romeiros poderá crescer nas próximas horas, uma
vez que a tradicional data das romarias ao túmulo do Padre Cícero é o dia 2 de
novembro (hoje), dia de finados.598

Foi elaborado, em torno da nova estátua de Padre Cícero, um discurso que


tinha em seu âmago a ideia de modernidade. O monumento ao progresso já não seria a
antena de televisão, mas a gigantesca imagem do fundador de Juazeiro, instalada no alto
da Colina não para receber orações, mas para atrair turistas. O pretenso caráter turístico
do empreendimento lançado por Mauro Sampaio, contudo, destoava da infraestrutura da
cidade e das possibilidades financeiras do público-alvo.

598
MAIS DE 200 mil pessoas assistem inauguração da estátua do Padre Cícero. Gazeta de Notícias,
Fortaleza, 2 de novembro de 1969.
274

Figura 31 – A estátua de Padre Cícero no Horto

Fonte: MOREL, Edmar. Antes de chegar a Juazeiro, distante ainda 300 km, em pleno Rio São Francisco,
já encontro multidões de crentes na santidade do Padre. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 97, 1973.

Os romeiros, por outro lado, não abandonaram o Padrinho, e compareceram


em peso à cerimônia, realizando a visita anual que já faziam costumeiramente à cidade
santa. Eram, sem dúvida, um grupo mais numeroso que aquele formado por pessoas que
275

viajavam por curiosidade e lazer. O periódico fortalezense sublinhou que muitos


visitantes se hospedavam em residências de Juazeiro ou mesmo do Crato, além de
utilizarem colégios e instituições de caridade como abrigos. Em fins de outubro, dias antes
da inauguração, romeiros desabrigados já armavam seus acampamentos enquanto
aguardavam o grande dia:

A cidade de Juazeiro já está recebendo milhares de fiéis e admiradores do


Padre Cícero. São milhares de famílias de todas as classes sociais, residentes
nos mais diferentes pontos do Nordeste brasileiro. Às imediações da cidade já
estão sendo levantados acampamentos àqueles que não podem pagar hotel ou
pensão, mas nem por isso querem deixar de render uma homenagem àquele
que, em vida, foi uma das maiores figuras do Brasil, quiçá a primeira do
Nordeste. Em Juazeiro do Norte se alguém se meter a engraçado e disser que
o Padre Cícero é feio, talvez não acabe nem a frase. Será até esquartejado. O
mesmo ocorreria em qualquer outra cidade do Nordeste, onde a figura do Padre
Cícero é respeitada.599

O articulista afirma, como tantos outros, que diante dos habitantes e visitantes
de Juazeiro seria impossível tecer qualquer crítica ao Padrinho. Reforça, assim, a ideia
de que os devotos eram fanáticos, ignorantes e violentos. A dicotomia entre turistas e
romeiros era nascente, mas se consolidaria ao longo do tempo. Os turistas passariam a ser
valorizados e desejados pelos órgãos municipais e os empresários locais, enquanto os
romeiros e devotos em geral continuavam sendo considerados indesejáveis empecilhos
ao progresso da terra do Padrinho, embora constituíssem o amplo mercado consumidor
de produtos fabricados e comercializados nas ruas de Juazeiro.
A Gazeta de Notícias publicou, em 1 de novembro de 1969, um número
especial voltado somente para a inauguração da estátua em Juazeiro. O jornal cearense
trouxe diversas reportagens sobre a cidade e o monumento, além de inúmeras
propagandas de entes públicos e privados juazeirenses. As longas matérias elogiosas à
iniciativa de Mauro Sampaio dão margem para que se imagine que a prefeitura de
Juazeiro do Norte também foi uma importante financiadora da publicação. Importa
observar que a cidade é apresentada como um centro, primeiramente, de indústria e
comércio, sendo a religião um aspecto meramente secundário:

Juazeiro não é somente indústria e comércio. A cidade tem se notabilizado pelo


seu espírito religioso, tanto assim que já corre mundo o ‘slogan’ de que a terra
do Padre Cícero é a ‘capital da fé e do trabalho’. E já disse o Padre Murilo,

599
ESTÁTUA DO Padre Cícero com 25 metros de altura. Diário de Pernambuco, Recife, p. 2, 24 out.
1969.
276

vigário da Paróquia de Nossa Senhora das Dores, que ‘Juazeiro pôs o rosário
no pescoço do Nordeste...’.600

Teoricamente, portanto, somente a partir da edificação da estátua, Juazeiro


passaria a ser uma “capital da fé”. Acreditava-se, evidentemente, que o empreendimento
traria vultuosos recursos para a cidade. Uma reportagem não assinada, publicada no
mesmo periódico, chegava a afirmar que Mauro Sampaio teria tomado a decisão de
construir a estátua graças a um “estalo”. Ou seja, a grande atração da cidade não seria um
monumento previamente planejado, mas algo inventado ao bel prazer e repentina
inspiração do chefe do Poder Executivo Municipal. O monumento seria, sob esse ponto
de vista, fruto de uma decisão intempestiva, de um insight supostamente surgido do nada,
do qual o prefeito era o único protagonista:

A administração Mauro Sampaio teve dois momentos de rara felicidade: a sua


decisão de governar com base em um plano de ação (já atingido na maioria das
metas pretendidas) e o seu ESTALO para construir o monumento do Pe.
Cícero. De fato, qualquer uma dessas decisões, postas em prática, seria o
suficiente para transformá-lo num dos maiores administradores – senão o
maior – que a história já registrou em Juazeiro do Norte. A construção do
Monumento trará, a curto, a médio e longo prazos, benefícios incalculáveis
para a vida econômica do município; haja vista que o fluxo de turismo foi
iniciado antes mesmo do término da obra. Por outro lado, não faltou a
divulgação necessária ao grande empreendimento: imprensa, rádio, televisão e
até a literatura de cordel foram os veículos anunciadores do que se fazia em
Juazeiro. Resta apenas que os homens de visão se preparem, de agora em
diante, para dotar a cidade de uma infraestrutura hoteleira capaz de garantir a
continuidade dessa nova motivação turística criada pelo prefeito Mauro
Sampaio.601

Mauro Sampaio era elogiado a ponto de ser considerado um dos maiores


prefeitos de Juazeiro, talvez mesmo o melhor (o que indicaria a possibilidade de ter
superado o próprio Padre Cícero). Havia a compreensão, no entanto, de que o
“empreendimento turístico” não se sustentaria sem o apoio da iniciativa privada local. De
nada bastaria a construção do grande monumento — e sua divulgação — caso a cidade
não se equipasse para receber os visitantes mais desejados: os turistas. O público comum,
formado pelos romeiros, acomodava-se como podia nos inúmeros ranchos de Juazeiro,

600
A CAPITAL da fé. Gazeta de Notícias, Fortaleza, p. 6, 1 nov. 1969.
601
UM SENHOR monumento. Gazeta de Notícias, Fortaleza, p. 2, 1 nov. 1969.
277

mas os turistas, que viriam irrigar a região com suas fartas remunerações, precisavam de
melhores equipamentos de hospedagem602.
João Clímaco Bezerra, em colaboração enviada para diversos jornais do país,
advertia que a obra não seria, de fato, um entretenimento turístico, mas um peculiar
atrativo para aqueles que acreditavam nos milagres de Padre Cícero. Chegava a afirmar,
inclusive, que a crença em torno do Padrinho se fortaleceria graças a essa iniciativa:

Instalado, assim, nessa altura de gigante, o apóstolo voltará a reinar sobre os


corações dos homens simples. Multiplicar-se-ão, sem dúvida, os seus milagres.
Novos feitos serão somados aos fatos acontecidos. E cegos e cantadores beatos
e cangaceiros, continuarão a cantar nas feiras de Juazeiro que o Padim Pe.
Cícero é uma das três pessoas da Santíssima Trindade. E continuará como um
tema vivo para biógrafos e pesquisadores [...].603

Por um lado, a estátua garantiria a sobrevivência do reinado de Padre Cícero,


inclusive renovando a fé de seus devotos. Por outro, seria mais um ícone associado a
tantos outros símbolos nordestinos, tais como “cegos, beatos e cangaceiros”, sempre
relacionados aos cantadores que divulgavam a santidade do Padrinho. Sob essa
perspectiva, a edificação do monumento daria nova vida ao tema, que permaneceria sendo
estudado.
Com efeito, numerosos intelectuais se manifestaram a respeito da edificação.
A escritora Rachel de Queiroz comemorou a iniciativa de construção da estátua,
lamentando o fato de as elites e instituições detentoras de poder terem tentado, após a
morte de Padre Cícero, apagar sua memória e o sentimento que o povo lhe devotava. A
persistência da fé no sacerdote, no entanto, garantiu o que ela chamou de “momento de
revisão”, quando as autoridades públicas resolveram aceitar e mesmo incentivar essa
mesma fé:

Morto o Padre Cícero – e a sua morte foi como um terremoto, no Juazeiro –,


parecia que todos os poderosos só tinham um cuidado em relação ao velho:
fazê-lo esquecido. A igreja oficial procurava rapidamente ocupar o vácuo
deixado no coração do povo, pelo santo renegado, recebendo-lhe a herança,
tomando a direção das suas obras de caridade; os governos por sua vez
tratavam de preencher o vácuo político e ganhar-lhe o imenso eleitorado. Mas
o povo não esquecia. O povo nem um instante abandonou a Igreja das Dores,
teimando em para lá levar flores e esmolas, fazer tocar foguetes. Nunca deixou

602
Para maiores informações sobre o estímulo ao turismo no Cariri, cf. VIANA, José Italo Bezerra. As
muitas artes do Cariri: relações entre turismo e patrimônio cultural no século XXI. 2017. Tese
(Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2017.
603
BEZERRA, João Clímaco. Um apóstolo do Sertão. Diário do Paraná, Curitiba, p. 2, 8 nov. 1969.
278

de trocar nas feiras as medalhas de alumínio e prata com a efígie de Meu


Padrinho, ou as imagens de madeira e cerâmica em que ele é feito em vulto,
pequeno, corcunda, vestido na batina preta, apoiado ao bastão. Ninguém na
terra o esqueceu: a ele continuam a se fazer promessas, com o nome dele se
batizam ainda os meninos. [...] E agora essa revisão, esse movimento de
reparação pública atinge a sua forma mais impressionante com a inauguração
do monumento ao Padre Cícero: lá na serra do Hôrto, onde ele sonhara levantar
a sua grande igreja e para a qual chegara a erguer os poderosos alicerces, as
primeiras muralhas. E que monumento esse, estátua gigantesca que, no Brasil,
só é menor que o Cristo do Corcovado.604

Raquel de Queiroz também destacou, como João Clímaco fizera


anteriormente, a renovação dos escritos sobre Padre Cícero. A escritora cearense citou
nominalmente os estudos de Amália Xavier e do padre Azarias Sobreira, afirmando que
lançavam um novo olhar sobre as questões de Juazeiro. O Padrinho parecia viver,
finalmente, um momento de aceitação não apenas entre o “grande público”, mas também
entre autoridades e intelectuais, que se esforçavam para restituir sua honra.
Os articulistas em geral não deixavam de lembrar a peculiaridade da paragem
escolhida para a construção do monumento. Como se sabe, muitos anos antes Padre
Cícero havia desejado erguer ali um imponente templo católico. A majestosa igreja do
Horto, sonhada pelo sacerdote e edificada pelos devotos, teve sua obra paralisada por
ordem da diocese. Em 1944, em longas reportagens escritas por Edmar Morel e
publicadas no Diário de Pernambuco, foram narrados os últimos momentos da existência
daquela construção:

Pela madrugada, embarco no campo de aviação de Joazeiro, de regresso ao


Rio. O avião antes de rumar para Petrolina, sobrevoou a cidade. E do alto, vi
uma multidão trabalhando entre escombros de um prédio. Os últimos fanáticos
sob a influência dos padres salesianos, jogavam por terra, as colunas da igreja
do Horto, o sonho sublime do pároco. O aeroplano ganhava altura. Nuvens
soltas enfeitavam os céus do Cariri. E quando o ‘Arari’ transpôs a Chapada do
Araripe, voltei os meus olhos para Joazeiro e numa romaria sentimental li um
trecho do testamento do vigário:
-- Aos salesianos suplico que terminem a construção da capela do Horto...605

Os padres salesianos, herdeiros do Padre Cícero, não apenas não terminaram


a igreja como também agiram ativamente na destruição de suas ruínas. Dez anos após a
morte do sacerdote, nada mais restava do seu sonho. A congregação salesiana chegou a
construir um templo no centro da cidade voltado à adoração do Sagrado Coração de Jesus.

604
QUEIROZ, Rachel de. A estátua do Padre Cícero. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 4, 9 nov. 1969.
605
MOREL, Edmar. Devassando o arquivo do Padre Cicero – O mais poderoso senhor do Nordeste retardou
uma operação melindrosa por falta de dinheiro. Diário de Pernambuco, Recife, p. 3-10, 10 set. 1944.
279

A igreja “dos Salesianos”, dedicada ao Sagrado Coração, nunca foi plenamente aceita
pelos devotos, ficando até os dias atuais à margem do tradicional itinerário de
peregrinação dos romeiros.
A fé dos devotos, o amor ao Padrinho e a revolta diante da destruição de seus
símbolos, foram os elementos que ensejaram a edificação da grande estátua do Horto.
Walter Barbosa não deixou de notar a contradição: um templo católico que seria,
inicialmente, voltado a uma devoção estimulada pela Igreja Católica em processo de
romanização, deu lugar a um monumento que, se erguido enquanto Padre Cícero era vivo,
transformaria a localidade efetivamente num “reduto de fanáticos”, como temia a diocese:

Feliz coincidência. Notável contradição. Coincidência por ter o padre Cícero


dito que naquele local seria erigido um dos maiores monumentos do mundo;
não foi o templo, mas a sua estátua. Contradição porque, se o prelado soubesse
que tal monumento seria, no futuro, a estátua do padre, a Igreja teria sido feita.
Se o padre Cícero adivinhasse que o monumento em apreço seria a sua estátua,
jamais concordaria ante a sua humildade. Mas, como diz o adágio popular que
<<O HOMEM PÕE E DEUS DISPÕE>>, o santuário foi iniciado e demolido,
para dar lugar a uma obra de arte que ocupa, segundo afirmações, o terceiro
lugar no mundo. << Bem aventurados os humildes e os bons de coração>>.606

Desse modo, a profecia se cumpria: no Horto do Padre Cícero, espaço


sagrado, associado pelo sacerdote ao repouso e à oração, era edificado um dos maiores
monumentos do mundo. Mas não se tratava de um templo. Era uma estátua que levava
seu rosto, suas vestes, seu cajado e seu chapéu. Surgia, pois, um símbolo de dimensões
grandiosas, frequentemente comparado ao Cristo Redentor do Rio de Janeiro ou à Estátua
da Liberdade. Não era simples escultura elaborada para lembrar um homem público.
Também não se tratava de um empreendimento construído somente para atrair turistas.
Era tudo isso, mas era também — e principalmente — uma conquista da fé.
Na edição especial da Gazeta de Notícias sobre o tema, o ex-prefeito de
Juazeiro José de Souza Menezes dissertou longamente acerca da ereção de monumentos,
proferindo rebuscadas palavras sobre o caráter das edificações destinadas a preservar a
memória de um personagem ilustre. De acordo com sua análise, tais iniciativas seriam
sempre frutos da gratidão de um povo àquele líder que se destacou em determinado setor:

O costume das consagrações populares a fatos históricos distintos e a


personalidades que se distinguiram em suas vidas e as fizeram um modelo de
virtudes ou de grandes benefícios prestados a uma coletividade, vem de longe.
Assinalam-no ao longo dos tempos, sob varias formas tanto a tradição oral ou

606
BARBOSA, Walter. Cícero falou... Diário de Pernambuco, p. 10, Recife, 4 nov. 1969.
280

escrita através de vasta literatura, quanto os monumentos construídos de vários


materiais resistentes à ação do tempo, muitos deles erguidos há séculos
passados e no entanto ainda hoje a testemunharem eloquentemente uma
grandeza material, um feito épico transcendente, uma conquista do espírito e
mais particularmente a figura excepcional de um grande homem cuja memória
se desejou ganhasse a dimensão da imortalidade na admiração e respeito das
gerações futuras. Ao costume antecedeu, sem dúvida, a dádiva da gratidão,
sentimento que, em tais casos, sempre assumiu maior amplitude afetiva, maior
calor humano, porque vasão em termos de universalidade, de coletividade, não
se retendo apenas nos limites da afeição individual [...]. Hoje estará esta cidade
inaugurando solenemente o Monumento do Padre Cícero, na Colina do Horto.
O acontecimento tem tal força de significação que sua ressonância tomou
expressão de singularidade e admiração fora do comum até mesmo além das
fronteiras do país. A festa do primeiro de novembro, entre nós, será, por isto
mesmo, uma das maiores consagrações populares já porventura testemunhadas
nesta nação a um de seus filhos. Não será isto, contudo, uma decorrência de
fatores externos: da imponência do monumento em suas proporções físicas; de
simples curiosidade diante do arrojo de uma modesta cidade sertaneja, pelo
dinamismo invulgar do seu prefeito, erguer um monumento de tal porte; de
mera afabilidade a convites dourados a grandes personalidades para maior
brilhantismo da solenidade. Nada disto. Temos aqui, simplesmente, uma
consagração popular de feição histórica com base na gratidão coletiva. E uma
consagração, com esse espírito, ao que supomos sem precedentes nacionais
que se lhe equiparem.607

A gratidão, portanto, era o cerne da narrativa. O monumento não era fruto de


“fatores externos”, de uma curiosidade ou excentricidade promovida pelo jovem e
dinâmico prefeito. A estátua de Padre Cícero coroava sua imortalidade, dando testemunho
da importância do Padrinho para o município de Juazeiro, para os devotos que ali
permaneceram após sua morte e para os romeiros que continuavam a promover
peregrinações à cidade santa.
O padre Murilo de Sá Barreto, a quem havia sido confiada, em 1958, a
importante paróquia de Nossa Senhora das Dores, também publicou um texto de sua lavra
na edição comemorativa do jornal fortalezense. Sua análise levava em consideração o
histórico de monumentos erigidos em homenagem ao Padrinho, estabelecendo um
esquema de valoração entre aquele que era inaugurado em 1969 e o que fora edificado
em 1925, mas ignorando a escultura concebida por Odísio logo a pós a morte do
sacerdote:

Juazeiro vive, hoje, um dos maiores momentos históricos. Maior, muito maior
do que aquele 11 de janeiro de 1925, quando se erigiu, no coração da Praça
Almirante Alexandrino, o bronze da maior manifestação, já prestada a um
homem, em vida. Aqui, fala a gratidão e o reconhecimento que ainda perdura,
a despeito dos 44 anos que já se foram. Lá, o ilustre homenageado se fazia
presente, pessoalmente. A afetividade e o respeito, a veneração e o desejo de

607
MENEZES, José de Souza. VALOR HISTÓRICO DAS CONSAGRAÇÕES POPULARES – O
MONUMENTO DO PADRE CÍCERO. Gazeta de Notícias, Fortaleza, p. 6, 1 nov. 1969.
281

aparecer podiam atrair desavisados para formar ‘aquele estuário humano que
ali se agitou, avolumou e tomou proporções extraordinárias’. Cá, somente a
amizade, consagração perene do agradecimento. Exaltação viva, apoteótica,
popular, por isso mesmo rica e não financiada, dessa compacta multidão que,
cresce assustadoramente, mesmo depois de 35 anos do desaparecimento de seu
Amigo e Conselheiro [...]. Homenagem do povo juazeirense ao seu Grande
Guia. Resgate de Amizade do Prefeito Mauro Sampaio. Reconhecimento e
Gratidão do povo nordestino. Falará sempre o Monumento da Serra do Horto.
Dirá na rigidez daquelas linhas que passarão muitos sóis até que um dia se
apague do coração desse povo, a verdadeira imagem do patriarca.608

Para o padre Murilo, a estátua erigida em 1969 tinha um caráter muito


diferente daquela inaugurada em 1925. O missionário destacava que, em 1925, com Padre
Cícero ainda vivo e presente, a homenagem ganhava um caráter que tanto podia ser de
afeto quanto de puro e simples interesse — político ou não — pela influência do querido
santo nordestino. Dezenas de anos após o falecimento de Padre Cícero, contudo, o
monumento que ali nascia pretendia ser uma sincera e desinteressada homenagem,
segundo o sacerdote. A gigantesca imagem do Padrinho tornava palpável sua
sobrevivência nos corações dos romeiros, e visível sua bênção sobre os nordestinos.
Cabe ressaltar que Murilo de Sá Barreto — futuramente “Monsenhor Murilo”
— seria o primeiro membro do clero a acolher os devotos de Juazeiro e a abraçar o culto
ao Padre Cícero. Sua postura diante das romarias foi um marco e representou uma ruptura
com a antiga tradição de perseguição ao catolicismo popular. Ele foi, talvez, o primeiro
agente de transformação na relação da Igreja com Juazeiro.
Um local “[...] só conserva lembranças quando as pessoas se preocupam em
mantê-las”609. Foi o que ocorreu no Horto. Com a derrubada do “Pé de Tambor”, poderia
ter havido a eliminação de mais um marco da presença do Padrinho. Mas os devotos não
deixaram que esse símbolo fosse destruído, como foram destruídas anteriormente as
ruínas da Igreja do Sagrado Coração. Justamente por haver ali uma aura própria, tais
recordações foram cultivadas e protegidas contra tentativas de eliminação.
Assmann defende que a categoria “lugar de memória” criada por Nora — e,
segundo o autor, predominante na Modernidade — é insuficiente para compreender os
locais de recordação alemães. Do mesmo modo, talvez seja possível afirmar que seria
também insuficiente para explicar Juazeiro, o Horto e os locais sagrados associados ao
Padre Cícero. A persistência dos devotos em Juazeiro e a obstinação da fé dos romeiros

608
BARRETO, Murilo de Sá. Gazeta de Notícias, Fortaleza, p. 5, 1 nov. 1969.
609
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora Unicamp, 2011. p. 347.
282

constituíram, de fato, símbolos da resistência dos mais fracos diante dos mais fortes. Os
mais fortes, finalmente, não impunham símbolos de heróis que deviam ser
homenageados, mas se rendiam ao culto daquele que, por tanto tempo, não pôde ser
cultuado. Conforme afirma Jáder de Carvalho, “Padre Cícero Romão era mortal – e
morreu”. Mas sua morte não era uma morte como outra qualquer, pois “[...] no morto,
começa logo a desfalecer o chefe político, de imediato esquecido no meio místico no qual
se plasmou [...], para fixar-se na memória e no amor de milhões de sertanejos610.

610
CARVALHO, Jáder. “Prefácio”. In: ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
283

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção intelectual sobre Juazeiro do Norte sempre se preocupou com o


destino da cidade após a morte de seu grande líder e fundador, Padre Cícero. Numerosos
memorialistas, escritores e jornalistas se dedicaram a esse tema, compondo duas
correntes: uma delas defendia que a cidade ficaria em ruínas, abandonada pelos romeiros
que lá habitavam somente porque sempre encontraram ali o apoio material e espiritual de
Padre Cícero. A segunda corrente acreditava que, após o desaparecimento do sacerdote,
seria eliminado o último motivo de fanatismo e a localidade deixaria de ser uma
excêntrica urbe para se transformar numa importante e progressista cidade. Nenhuma das
duas perspectivas se consolidou de fato.
O culto ao Padre Cícero continuou a existir. Romeiros já não iam a Juazeiro
em busca da bênção e dos conselhos do Padrinho — passaram a se deslocar em honra à
sua memória, com o objetivo de pagar promessas ou, simplesmente, para pisar no solo
sagrado daquela cidade santa. Um dos primeiros sujeitos a notar essa tendência foi
Agostinho Odísio, que se transferiu para a região do Cariri assim que soube do
falecimento de Padre Cícero e ali construiu exitosa carreira no campo da escultura.
Foram frustradas as impressões dos intelectuais que imaginaram Juazeiro se
transformando numa segunda Canudos, num reino bárbaro repleto de cangaceiros, num
caos social ou num deserto demográfico. Passado o susto inicial, os indícios levam a crer
que a vida após a morte de Padre Cícero continuou transcorrendo quase normalmente. As
humildes casinhas — de palha ou tijolos — não foram abandonadas. As beatas
prosseguiram rezando seus rosários e os mendigos continuaram mendigando. A feira
permaneceu animada. Os comerciantes persistiram negociando. Os trabalhadores
continuaram trabalhando. Os jogadores seguiram jogando. Os devotos analfabetos não se
tornaram intelectuais incréus assim que Padre Cícero morreu. As mulheres pobres
continuaram levando suas duras vidas, trabalhando, cuidando dos filhos e sendo
socialmente reprimidas pelos demais moradores, mesmo que Padre Cícero já estivesse
ausente e não pudesse continuar pregando a moralidade. Os famintos continuaram
sentindo fome, e os alimentados permaneceram comendo farinha, feijão e carne seca.
Padre Cícero não era imortal. Morreu. Mas quem esteve mais morto não foi
o Padrinho, foi o padre político. O santo Padre Cícero nunca esteve tão vivo quanto após
284

1934. Não sobreviveu na estátua de bronze da Praça Almirante Alexandrino, como muitos
imaginaram. Sobreviveu nos corações sertanejos, que lhe devotavam velas, flores,
orações e amor. Seu túmulo foi importante objeto de constante visitação, até quando
passou a dividir atenção, por volta de 1935 e 1940, com a estátua elaborada por Agostinho
Balmes Odísio, responsável por enternecer muitos fiéis e gerar diversas práticas de
devoção.
Depois da morte de Padre Cícero, muito se escreveu, não mais sobre o que
seria Juazeiro, mas sobre quem foi o Padrinho. Os jornalistas se surpreendiam com a
permanência do culto ao sacerdote. Houve, de fato, indícios do surgimento de um
messianismo em torno da figura rediviva de Padre Cícero. Todos os sinais de veneração
à sua figura, no entanto, levavam a reprimendas por parte da Igreja Católica. Diversos
escritores se dedicaram a estudar esse fenômeno da permanência.
Entre 1935 e 1969, muitas obras foram lançadas sobre Padre Cícero. Quase
todas possuíam caráter de biografia. As narrativas editadas nesse período geralmente se
encerravam em 1934, como se ali terminasse a história. Intelectuais que conviveram com
o sacerdote ou que estudaram a sua personalidade começaram a fazer balanços sobre as
contribuições – ou prejuízos – que o Padrinho causou aos juazeirenses. Uns advogavam
sua presença como fator de progresso. Outros acreditavam que foi motivo de atraso.
Quase todos, no entanto, se surpreendiam ao notar que a cidade ainda vivia sob os
desígnios de um morto. Curioso é notar que, no âmbito acadêmico, esse período “pós-
Padre Cícero” tenha sido amplamente negligenciado.
Em 1969 foi erguida, na Colina do Horto, a emblemática e gigantesca estátua
do sacerdote. O Padrinho, que vivera humildemente no centro da cidade, agigantava-se
no alto do monte, podendo ser visto a partir de qualquer pedaço do vale do Cariri e
estendendo sua enção sobre toda a região. Antes disso, contudo, já havia se materializado
na escultura entregue por Odísio no final da década de 1930. Entre 1940 e 1969, a imagem
singela de um padre de face rosada e gesto firme e terno foi cultuada por milhares de
devotos, visitada por políticos e reprochada por intelectuais e autoridades religiosas.
A estátua de bronze que figurava desde 1925 na praça Almirante Alexandrino
configurou, por muito tempo, um artificial símbolo de progresso, celebrado entre as
autoridades, mas desdenhado pelos devotos. A estátua da capela, por sua vez,
representava a perseverança de um culto que, embora fosse a causa fundamental de
existência da cidade, continuava envergonhando a muitos. Foi também importante marco
simbólico do município, habilmente utilizado por candidatos que buscavam o apoio dos
285

juazeirenses nas eleições. A estátua da Colina, por fim, delimitava um tempo em que o
sacerdote falecido se tornaria chamariz para o progresso de fato, advindo do turismo e,
consequentemente, do desenvolvimento urbano. A figura perseguida de Padre Cícero,
tanto em vida quanto em morte, transformava-se, mais que nunca, em arma política e
comercial. A partir de 1969, os devotos já deixavam de acreditar no retorno de Padre
Cícero, mas os homens de negócios nunca o quiseram tão vivo.
Ao longo dessa pesquisa, as diversas fontes examinadas me despertaram
para os mais diversos interesses. Lamento não ter conseguido me deter sobre todas as
possibilidades vislumbradas na documentação que consultei. Espero que, futuramente,
outros pesquisadores possam vir a se dedicar sobre aspectos que, embora fossem valiosos,
por questões de viabilidade, tempo e escopo, findaram apenas sendo assinalados no
presente estudo. Por esse motivo, apresento, a seguir, desdobramentos que podem vir a
ser explorados.
Acredito que, a partir da documentação da Fundação Rockefeller, por
exemplo, é possível analisar algumas das teses eugenistas em torno da população que
migrou para Juazeiro. Os viajantes e memorialistas que escreveram sobre a cidade até
1930 também podem apresentar grandes contribuições na discussão desse assunto ainda
ignorado. O racismo que envolve a descrição dos componentes étnicos da população que
buscou Padre Cícero é evidente em grande parte das fontes, embora nunca tenha
encontrado um pesquisador que se dedicasse a estudá-lo.
Do mesmo modo, o protagonismo da mulher trabalhadora — especialmente
da mulher negra — em Juazeiro precisa ser examinado. É um mote ainda inédito. Os
censos do IBGE podem ser fontes iniciais para essa pesquisa, mas é preciso verificar
também os arquivos locais, jornais e demais documentos para perceber a relevância da
participação dessas mulheres na vida social e econômica da cidade.
Os hábitos alimentares da população sertaneja constituem, também, um
objeto pouco investigado. Se considerarmos a fome como principal motivo para a
migração, é urgente compreender não apenas o modo como os nordestinos pobres lidavam
com a miséria, mas principalmente suas experiências — inclusive de classe — em torno
da alimentação, bem como as práticas culinárias e a cultura alimentar da região. Relatos
orais e Censos agropecuários podem vir a ser úteis nesse debate.
As Cortes Celestes do Horto, perseguidas quando Padre Cícero ainda era
vivo, são um tema bastante presente nos jornais de circulação nacional. As histórias em
torno do beato Elias, especificamente, são muitas. Infelizmente, desconheço estudo
286

acerca desse peculiar personagem e dos grupos de beatos reprimidos naquele período. A
destruição das ruínas da igreja do Horto, e o consequente aniquilamento do que já fora
devastado, bem como os sentimentos de tristeza e frustração que giram em torno desse
evento, podem ser também temas ricos para um pesquisador que se preocupe com a
relação entre os desejos de Padre Cícero — até mesmo manifestos em testamento — e o
apagamento de sua obra.
A produção jornalística de Juazeiro, bem como os cordéis lançados após a
morte de Padre Cícero, são fontes ricas em possibilidades, que aqui foram descartadas
porque dariam origem, sem dúvida, a um estudo completamente novo e diverso daquele
que foi inicialmente proposto. Servirão, no entanto, como motes para novos
pesquisadores que vierem a se interessar pelos destinos de Juazeiro após a morte do
sacerdote.
O silêncio em torno da escultura confiada a Agostinho Odísio e colocada à
frente da Capela de Nossa Senhora do Socorro é, também, um tema rico. A estátua de
Odísio, diferentemente das outras, não foi inaugurada. Ela “apareceu”. Surgiu como
milagre. Os jornais não registram nada a seu respeito. Ela não tem idade certa (apresenta
datas contraditórias). Não se sabe quem a encomendou. Não fosse o diário escrito por seu
autor, talvez nem mesmo se soubesse quem era o escultor responsável por tal obra. Esses
mistérios em torno de uma imagem tão querida causam, no mínimo, curiosidade. Seria
importante estudar, ainda, a percepção da Igreja Católica sobre os cultos dedicados a ela
já na década de 1940, poucos anos após a morte do sacerdote, num período em que o clero
ainda buscava apagar a memória de Padre Cícero.
Por fim, os usos políticos da imagem do Padrinho nas campanhas eleitorais
— inclusive nas presidenciais — configuram uma questão que sem dúvida poderia ser
perscrutada por aqueles que se interessam por cultura política. Até os dias atuais, é
comum que candidatos em campanha busquem Juazeiro com o objetivo de pedir a bênção
do Padrinho e, evidentemente, destacar a importância do Nordeste e do Cariri em suas
plataformas eleitorais. Os jornais são fontes que discutem, frequentemente, a percepção
da população local sobre tais eventos, bem como o sucesso ou insucesso da estratégia.
Essa tese pretendeu demonstrar que 1934 não foi o ano do fim da história.
Foi, na verdade, mais um motivo para a santificação popular de Padre Cícero, que passou
a ser visto com olhos mais compreensivos a partir da década de 1960, quando ocorreu o
Concílio Vaticano II. Tomei a morte não como término, mas como ponto de partida da
minha narrativa. Utilizei como fonte principal o caderno de memórias de um homem que
287

não conheceu Juazeiro de Padre Cícero, mas somente Juazeiro sem Padre Cícero. Odísio
chegou nesse momento de suspensão da ordem e não se furtou a escrever sobre o que
viveu e o que não viveu. Sua chegada foi, também, um acontecimento importante do
período. Por esse motivo, utilizei sua obra como meio de acesso à investigação de outros
âmbitos desse estranho momento.
Busquei examinar tanto as perspectivas de pessoas comuns — romeiros,
devotos, trabalhadores — quanto de intelectuais acerca do lutuoso evento. Acontece,
contudo, que os membros da elite, geralmente pertencentes à cultura letrada, como se
sabe, deixam muito mais vestígios de seus modos de pensar que a população iletrada,
detentora somente da oralidade. De toda forma, numa leitura a contrapelo, é possível
perscrutar as diferentes expectativas sobre esse futuro que se imaginava repleto de
progresso ou de atraso.
Boa parte da historiografia sobre Juazeiro se encerra em 1934. Espero que
aqueles que porventura notem esse fato possam enxergar, a partir de agora, novos
caminhos para pesquisa. Padre Cícero não morreu. A lembrança de sua existência,
avivada pela morte, precisa receber a mesma atenção que os estudos sobre a sua trajetória.
O desaparecimento do Padrinho foi apenas o início de um trânsito para a eternidade.
Juazeiro, por outro lado, teve duas emancipações: a primeira se deu em 1911, graças à
ação do sacerdote. E a segunda se deu em 1934, com o seu desaparecimento. Juazeiro e
os romeiros precisaram aprender a independência. E notaram que viver sem Padre Cícero
era continuar vivendo com o Padrinho ainda mais perto, sempre presente nas ruas de uma
terra que se tornou santa. As pesquisas sobre ele e sua cidade permanecem férteis em
possibilidades. Avancemos.
288

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