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06 - Violëncia - Lembrando Alguns Conceitos

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Aletheia, n.24, p.95-104, jul./dez.

2006

Violências: lembrando alguns conceitos


Lívia de Tartari e Sacramento
Manuel Morgado Rezende

Resumo. Este artigo mostra que a violência é um problema social e de saúde pública. É um
fenômeno complexo e seu estudo requer atenção de várias áreas do conhecimento. Exis-
tem discussões, mas as mesmas não dão conta de explicar as violências. Muitas são de
difícil acesso por ocorrer na privacidade do “lar doce lar”. As estatísticas apontam sua
ocorrência, mas não existem políticas públicas e métodos de prevenção instituídos para as
violências. Por este motivo, são necessários estudos que mostrem a existência das violênci-
as almejando compreender a magnitude da violência no mundo científico. A violência
pode ter um ciclo, mas nós não sabemos onde é o começo ou final desse círculo. Assim, o
ciclo é mantido, com justificativas e explicações diferentes, mas a ocorrência é contínua.
Até que, um dia, a promoção de saúde possa delinear para a população o que é a violência,
como esta começa e assim determinar meios que possam educar e prevenir sua ocorrência.
Palavras-chave: violência, violência doméstica, promoção de saúde, prevenção da violência.

Violence: remembering some concepts

Abstract. This article shows that violence is a social and public health problem. This is a
complex phenomenon and its investigation requires the attention of several areas of
knowledge. Debate exists, but it isn’t enough to explain the different types of violence.
Many acts are difficult to be accessed, for they occur in the privacy of “home sweet home”.
Statistics point out the events, but there are no public policies or established prevention
methods for the different types of violence. For this reason studies are necessary to prove
their existence. Longing to understand the magnitude of violence in the scientific world.
Violence may have a cycle, but where this cycle begins or ends is not known. Therefore,
the cycle is maintained, with different justifications and explanations, but the incident is
continuous. Thus it will be, until one day, health promotion can outline to the population
what violence is and how it begins, then find means to educate and prevent its occurrence.
Key words: violence, domestic violence, health promotion, violence prevention.

Introdução gráfica sobre o tema violência, a partir de


artigos da Biblioteca Virtual em Saúde
Historicamente a violência atinge to- (BVS): http://www.bireme.br/, publicados no
dos os setores da sociedade, sendo um fe- período de 1991 a 2005. Além desta revi-
nômeno multideterminado e, como tal, são, usamos dissertações e livros. Na busca
complexo. Por isso, achamos relevante avan- feita no dia 16 de Fevereiro de 2005 coloca-
çar na discussão sobre esse tema. Aborda- mos o descritor violência e encontramos 65
remos, neste trabalho, os diversos matizes artigos. Com a leitura dos resumos destes
das violências que foram pesquisados em artigos fizemos uma seleção de oito estu-
livros, dissertações e artigos publicados no dos que abordam a violência relacionada à
período de 1991 a 2005. saúde da mulher, no âmbito doméstico.
Objetivamos fazer uma revisão biblio- O termo violência, de natureza polissê-
mica, é utilizado em muitos contextos soci- de social. Ou seja, esta impossibilidade de
ais. Como exemplo, podemos pensar que o ter um lugar no discurso da ciência e nas
termo violência pode ser empregado tanto práticas sociais, bem como não haver uma
para um homicídio quanto para maus – tra- linguagem apropriada para nomeá-la e li-
tos emocionais, verbais e psicológicos. Na dar com suas questões internas – dos seus
esfera conjugal manifesta-se com freqüên- determinantes, antecedentes, das suas con-
cia através dos maus – tratos; ao submeter à seqüências, no âmbito da vida e da saúde
mulher a práticas sexuais contra a sua von- da população.
tade; maus – tratos físicos, isolamento soci- Tendo em vista as especificidades da
al; ao proibir o uso de meios de comunica- violência, teremos algumas subdivisões que
ção; o acesso aos cuidados de saúde;a inti- serão importantes para o desenrolar da dis-
midação. No ambiente profissional observa- cussão. O termo violência contra a mulher
se a presença de assédio moral. foi dado pelo movimento social feminista
A violência foi definida pela Organi- há pouco mais de vinte anos. A expressão
zação Mundial da Saúde (OMS, 2002) como refere-se a situações diversas quanto aos
o “uso intencional da força ou poder em atos e comportamentos cometidos: violên-
uma forma de ameaça ou efetivamente, cia física, assassinatos, violência sexual e
contra si mesmo, outra pessoa ou grupo psicológica cometida por parceiros (íntimos
ou comunidade, que ocasiona ou tem gran- ou não), estupro, abuso sexual de meninas,
des probabilidades de ocasionar lesão, mor- assédio sexual e moral (no trabalho ou não),
te, dano psíquico, alterações do desenvol- abusos emocionais, espancamentos, com-
vimento ou privações”. pelir a pânico, aterrorizar, prostituição for-
A violência é uma questão social e, çada, coerção à pornografia, o tráfico de
portanto, não é objeto próprio de nenhum mulheres, o turismo sexual, a violência ét-
setor específico. Segundo Minayo (2004), nica e racial, a violência cometida pelo Es-
ela se torna um tema mais ligado à saúde tado, por ação ou omissão, a mutilação ge-
por estar associada à qualidade de vida; nital, a violência e os assassinatos ligados
pelas lesões físicas, psíquicas e morais que ao dote, violação conjugal, violência tolera-
acarreta e pelas exigências de atenção e cui- da perpetrada pelo Estado, etc. A violência
dados dos serviços médico-hospitalares e contra a mulher violência inclui, ainda, por
também, pela concepção ampliada do con- referência ao âmbito da vida familiar, além
ceito de saúde. Segundo a Organização das agressões e abusos já discriminados,
Mundial da Saúde (OMS), saúde seria o impedimentos ao trabalho ou estudo, re-
completo bem – estar físico, mental, social cusa de apoio financeiro para a lida domés-
e espiritual dos indivíduos. tica, controle dos bens do casal e/ou dos
De acordo com Schraiber e D’oliveira bens da mulher exclusivamente pelos ho-
(1999), mesmo nos dias atuais, em que, de mens da casa, ameaças de expulsão da casa
fato, estamos nos voltando para a violência e perda de bens, como forma de “educar”
como grande problema social, esta não en- ou punir por comportamentos que a mu-
contra um adequado e profícuo canal de lher tenha adotado.
publicidade: não existe ainda um lugar so- A violência parece estar ligada à crimi-
cial e um campo de intervenção e saberes nalidade e ser usada para expressar o que
que a reconheça como objeto próprio: como ocorre no espaço público, quando é come-
seu alvo de estudos e de atuação. Sem re- tida por desconhecidos. Quando os proble-
conhecimento e definição de seu lugar no mas ocorrem com vizinhos, colegas de tra-
mundo da ciência se torna difícil o relato e balho e escola, não são reconhecidos como
a exposição de seus detalhamentos. Ainda violência. O termo violência também indi-
de acordo com Schraiber e D’oliveira (1999), ca que a situação é grave, o que, cultural-
é por este motivo que muitos que estudam mente, parece significar que a violência
o fenômeno apontam para sua invisibilida- doméstica, embora concretamente severa,

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não é representada como tal. Dentre os ti- das crianças e dos idosos: são as questões
pos de violência, a do tipo sexual é a mais de gênero, vinculadas às desigualdades, que
associada ao conceito de violência. revestem as agressões e os abusos perpetra-
Muitas vezes a violência pode ocorrer dos contra as mulheres e as meninas que
nos relacionamentos amorosos. Especial- tornam a violência contra a mulher um
mente a violência cometida por pessoas ín- evento específico.
timas, que envolve, também, filhos, pais, Neste caso, mais que em qualquer ou-
sogros e outros parentes ou pessoas que vi- tro, vamos encontrar as delimitações das
vam na mesma casa. A esse tipo de violên- esferas psicológica, física e sexual entreme-
cia costumamos chamar de violência do- adas uma pelas outras, exatamente por es-
méstica. tarem envolvidas e resignificadas pelas
A violência doméstica está de tal ma- questões de gênero.
neira arraigada na vida social de determi- Consideramos que a violência psico-
nadas famílias que passa a ser percebida lógica é mais comum e menos visível.
como uma situação normal.
Entende-se por violência intrafamiliar: (...) De fato, embora alguns autores acredi-
tem que a violência psicológica subjaz a
(...) toda ação ou omissão que prejudique o toda e qualquer forma de abuso (Guerra,
bem-estar, a integridade física, psicológica 1998), ela é quase sempre a modalidade
ou a liberdade e o direito ao pleno desen- de menor incidência tanto em outros paí-
volvimento de um membro da família. Pode ses como nos diversos serviços brasileiros
ser cometida dentro e fora de casa, por qual- que apresentam essas estatísticas, no Bra-
quer integrante da família que esteja em re- sil. (Guerra, 1998, p.299).
lação de poder com a pessoa agredida. In-
clui também as pessoas que estão exercen-
No tocante aos tipos de violência, a fí-
do a função de pai ou mãe, mesmo sem la-
sica atinge o topo da estatística da pesquisa
ços de sangue. (Day & colaboradores, 2003)
realizada pelo Centro de Referência às Víti-
mas de Violência (CNRVV) do Instituto
Já o termo doméstico inclui pessoas Sedes Sapientae. Esta foi realizada de 1994
que convivem no ambiente familiar, como a 1998, tendo como base 64 casos atendi-
empregados, agregados e visitantes espo- dos pelo CNRVV. Mostra a prevalência do
rádicos. A violência doméstica emerge como núcleo familiar como cenário da vitimiza-
questão social importante mediante estu- ção (76% dos casos) e a predominância da
dos dos conflitos familiares, sendo mais violência física (84,21%), associada ou não
conhecida por referência aos abusos e maus- à violência sexual (40,60%) e, logo depois,
tratos sofridos pelas crianças, mulheres e o abandono (15,04%) e a negligência
idosos. (13,53%) e a violência psicológica (12,03%).
Tal fato é possível de ser visto nas Se somarmos a negligência e o abandono
agressões físicas e nos maus-tratos de or- (podem ser entendidos como abuso emo-
dem psicológica, remanescentes da cultu- cional) com a violência psicológica, teremos
ra que entendeu os castigos ou punições um número bastante significativo (40,60%).
corporais e a desqualificação moral ou a Ou seja, a mesma porcentagem da violên-
humilhação da pessoa como recursos de cia sexual tão alardeada.
socialização e práticas educativas. Deste A violência sexual faz parte de uma
modo, as dimensões físicas, sexuais e psi- grande margem da violência contra a mu-
cológicas mostram-se extremamente inter- lher e necessita ser relatada, pois foi ela que
ligadas à violência doméstica. abriu campo para o estudo dos outros ti-
De outro lado, sofrer agressões e abu- pos. A agressão sexual por um desconheci-
sos por pessoas íntimas torna a violência do é bastante diversa da mesma agressão
contra a mulher situação próxima àquela cometida por uma pessoa íntima, que se

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ama (ou amou) e com quem se escolheu cológica. No trecho abaixo ela foi utilizada
conviver, ainda que esta opção seja, algu- para as crianças, mas pode ser estendida
mas vezes, mais próxima do constrangimen- para qualquer raça, gênero, etnia.
to. O assédio, tal qual a violência na esfera
psicológica, que é a forma de muitas pes- Constitui toda forma de rejeição, deprecia-
soas chamarem as humilhações, ameaças ou ção, discriminação, desrespeito, cobranças
desqualificações e, por vezes, as agressões exageradas, punições humilhantes e utili-
a pessoas ou bens queridos, nada mais é do zação da criança ou do adolescente para
que um componente da violência que de- atender às necessidades psíquicas dos adul-
pende muito dos contextos culturais das tos. Todas essas formas de maus – tratos
práticas amorosas ou dos relacionamentos psicológicos causam danos ao desenvolvi-
entre homens e mulheres para ser “diag- mento e ao crescimento biopsicossocial da
nosticado” como uma forma de violência. criança ou do adolescente, podendo pro-
vocar efeitos muito deletérios na formação
Desta forma, o termo violência contra
de sua personalidade e na sua forma de
a mulher diz respeito a sofrimentos e agres- encarar a vida. Pela falta de materialidade
sões dirigidos especificamente às mulheres do ato que atinge, sobretudo, o campo emo-
pelo fato de serem mulheres. Como termo cional e espiritual da vítima e pela falta de
genérico usado para referir à situação expe- evidências imediatas de maus – tratos, esse
rimentada pelas mulheres quer remeter tam- tipo de violência é dos mais difíceis de se-
bém a uma construção de gênero, isto é, se rem identificados (Brasil, 2002, citado por
por um lado este termo evidencia uma dada Signorini & Brandão, 2004, p.298-299)
ocorrência sobre as mulheres, também quer
significar a diferença de estatuto social da A violência conjugal está bastante li-
condição feminina. Esta diferença faz com gada à violência contra as mulheres ou à
que situações de violência experimentadas violência de gênero. Esta passou a ter visi-
pelas mulheres, especialmente a violência bilidade nos primeiros anos da década de
que se dá por agressores conhecidos, próxi- 80 com o surgimento do movimento femi-
mos e de relacionamento íntimo, sejam vis- nista e com o levantamento das situações
tas como experiências de vida usuais. de violência ocorridas dentro dos lares. As
Há uma lei, Lei nº 10.778/03, que es- feministas pediam que estes crimes, come-
tabelece a notificação compulsória da vio- tidos por pessoas conhecidas, tivessem o
lência contra a mulher atendida nos servi- mesmo tratamento dado aos crimes de vio-
ços de saúde, sejam eles públicos ou priva- lência cometidos por desconhecidos. Assim
dos. Este fato também é previsto no Esta- foi anunciado o problema da violência con-
tuto da Criança e do Adolescente (Brasil, jugal, uma situação que outrora era priva-
1990). E antes pela Constituição Federal de da estava se tornando pública e demanda-
1988 (Art. 227), sendo obrigatória a notifi- va soluções. Segundo Day e colaboradores
cação de casos suspeitos ou confirmados, (2003), 40 a 70% dos homicídios femini-
prevendo penas para quem não o fizer. nos, no mundo, são cometidos por parcei-
Para evitar mais distorções, a Confe- ros íntimos.
rência de Direitos Humanos de 1993 gerou Segundo Gonçalves (2003), o lar é ge-
uma definição oficial das Nações Unidas rido por um conjunto de regras e padrões,
sobre a violência contra a mulher: “todo ato que são as Leis Domésticas. Em sua maio-
de violência de gênero que resulte em, ou ria, tais leis são subentendidas, ou seja, são
possa resultar em dano ou sofrimento físi- informais. Dessa maneira, não estão escri-
co, sexual ou psicológico da mulher, inclu- tas, assim como não foi assinado um con-
indo a ameaça de tais atos, a coerção ou a trato de cumprimento das mesmas.
privação arbitrária da liberdade, tanto na A lei doméstica, portanto, fundamen-
vida pública como na vida privada” (p. 3). ta a desigualdade existente entre os mem-
Definiremos também a violência psi- bros da família. Estas leis parecem operar

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com base numa postura de retórica e de vivência de difícil revelação, quer na esfera
violência. A retórica se exemplifica na assi- da pesquisa científica, quer no âmbito de
metria dos papéis e do peso recebido pelos práticas sociais de assistência. Tal fato pode
componentes do núcleo familiar. A violên- ser visto nas pesquisas e relatos sobre o tema.
cia está explicita através de atos, palavras, Estudos consultados trazem a violência, em
ações, gestos... Tais situações parecem com- geral, e a violência contra a mulher, em par-
binar bastante, fazendo da unilateralidade ticular, como temas culturalmente investi-
das decisões uma constante na vida famili- dos de uma aura de silêncio, o que torna
ar: na não possibilidade de argumentação sua abordagem mais complexa, exigindo que
pelos membros, na imposição de compor- se subdivida em contornos particulares:
tamentos e do silêncio, entre outras coisas. locais, regionais, nacionais, de acordo, com
Estudos apontam que a violência nas a cultura em questão. A violência de natu-
relações familiares envolve atos, palavras e reza doméstica, por sua vez, amplia tal ca-
pensamentos que depreciam a imagem da racterística, ao situar-se no âmbito da vida
pessoa diante de si e dos outros. Os senti- privada e das relações familiares.
mentos que vão se formando afetam a vida Falando sobre violência e, mais especi-
psíquica da vítima. O desenvolvimento de ficamente, sobre a violência contra mulhe-
feridas emocionais, criadas a partir dos re- res, percebemos que a noção de gênero
lacionamentos agressivos, onde a pessoa é muitas vezes é confundida com a idéia de
vítima de violência pode ficar registrado em sexo feminino, quando, na verdade, surgiu
seu psiquismo como marcas traumáticas. exatamente para destacar tal distinção.
Muitas situações ocorridas nesses lares não Enquanto sexo indica uma diferença ana-
são objeto de boletins de ocorrência, pois tômica corporal, gênero indica a constru-
são assuntos de família e, segundo as Leis ção social, material e simbólica dos seres
Domésticas, só devem ser abordados na in- humanos.
timidade da mesma. Segundo Griesse (1993), esta dicoto-
Uma pessoa que tenha sofrido uma mia influencia a vidas das pessoas. Estas
agressão é uma vítima, pois seu psiquismo são diferenças culturais determinantes en-
é alterado de maneira mais ou menos du- tre o feminino e o masculino. A identifica-
radoura. Mesmo quando sua maneira de ção do sexo, normalmente, determina o
reagir à agressão contribui para estabelecer comportamento social e as características
com o agressor uma relação auto – alimen- pessoais. As pessoas são divididas em dois
tada e que dá a impressão de ser ‘simétri- grupos exclusivos nos quais os interesses,
ca’, não devemos esquecer que essa pessoa as aspirações e habilidades são assumidos
sofre ou sofreu uma situação pela qual, na e bem definidos (o que corresponde aos
maioria das vezes, não é responsável. Em- estereótipos dos papéis sexuais).
bora as vítimas se queixem de seu parceiro Dentro dos lares, essas posturas tam-
ou daqueles com quem convivem, é raro bém são assumidas e exigidas, apesar de
terem a consciência de que existe esta te- vários grupos, a partir dos anos 60, as ca-
mível violência subterrânea e que ousem racterizarem como rígidas e disfuncionais.
queixar-se dela. Os papéis acabam por restringir os com-
portamentos dos indivíduos a determina-
Implicações da violência para a saúde das atividades consideradas apropriadas
da vítima para o seu sexo.
Com o desenrolar do presente estudo Desta forma, os homens, especialmen-
foi percebido que o silêncio e a invisibilida- te os homens jovens, estariam muito mais
de são temas associados à violência. Expe- sujeitos do que as mulheres à violência no
rimentar situações de violência, especial- espaço público e ao homicídio, cometido por
mente quando esta é de natureza domésti- estranhos ou conhecidos. Já as mulheres
ca, conjugal e/ou sexual, tem-se mostrado estão mais sujeitas a serem agredidas por

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pessoas conhecidas e íntimas. Este fato pode ca; e 59% moravam com o companheiro.
significar violência repetida e continuada o Quanto ao nível de instrução: 5,6% eram
que, muitas vezes, se perpetua cronicamen- analfabetas; 32,3% tinham até quatro anos
te por muitos anos ou até vidas inteiras. de estudo; 33,8% até oito anos (fundamen-
Em nosso país, por exemplo, dados do tal completo); 19,6% tinham completado o
PNAD/88 (Pesquisa Nacional de Amostra- ensino médio; e 8,7% tinham 12 anos ou
gem Domiciliar, IBGE, de 1988) apontam mais de estudo. Quanto à ocupação: 36%
que o lugar de maior perigo para as mu- declararam-se do lar; 41,9% estavam em-
lheres é a própria casa (55% das mulheres pregadas em trabalho regular (16,1% como
agredidas na região sudeste foram atacadas empregadas domésticas); 4,3% em traba-
dentro de casa e 67% das agressões foram lho não regular; 4,3% declararam-se estu-
feitas por parentes ou conhecidos). Dados dantes e 13% estavam desempregadas. Fi-
atualizados em 1995 apontam que cerca de lhos: na época da pesquisa, 24,5% das en-
39% dos homicídios de mulheres, cuja au- trevistadas estavam grávidas e 24% não fa-
toria era conhecida, foram cometidos den- ziam nenhum tipo de contracepção; 61,5%
tro das relações familiares. O número de (198 mulheres) das entrevistadas tinham fi-
vítimas da violência no universo da infân- lhos, sendo que destas 72,2% tinham até
cia e adolescência vem aumentando signi- dois filhos; 19,2% tinham até quatro filhos;
ficativamente, segundo os dados do PNAD/ 8,6% tinham cinco filhos ou mais.
IBGE. Entre 1993 e 1996, o agente agres- Do total de mulheres entrevistadas
sor encontrava-se em 35,6% dos casos en- nesta pesquisa, 44,4% (143 mulheres) res-
tre pessoas conhecidas e 19% dos casos ponderam ter sofrido pelo menos um epi-
entre parentes. (Marin, 2002, p.29). sódio de agressão física na vida adulta, sen-
A violência pode se correlacionar aos do que 76,9% desses casos foram perpetra-
maiores índices de suicídio, abuso de dro- dos por companheiros ou familiares; 11,5%
gas, álcool e sofrimento psíquico. O uso e/ (37 mulheres) disseram ter sido forçadas a
ou abuso do álcool e das drogas e as situa- ter relações sexuais pelo menos uma vez na
ções de estresse também podem, conforme vida adulta, sendo 62,2% desses casos co-
Griesse (1991), ser entendidos como fatores metidos por companheiros e familiares.
precipitantes da violência no âmbito famili- Quando questionadas sobre a humilhação,
ar. Ainda com base em tal autora, os dados maus-tratos ou agressão verbal (violência
indicam que mulheres espancadas e/ou vio- psicológica) cometidos por alguém próxi-
lentadas psicologicamente têm companhei- mo, pelo menos alguma vez na vida, 55,6%
ros com maior tendência a beber freqüente- (179 mulheres) responderam que já havi-
mente, mesmo que eles não sejam sempre am vivido este tipo de situação e, destas,
violentos quando bebem. 71% dos compa- 40,3% consideraram haver sofrido violên-
nheiros das mulheres de classe baixa bebi- cia na vida. Os dados revelam, ainda, que
am com um alto grau de freqüência; 19% 69,6% das entrevistadas (224 mulheres) afir-
foi a média dos companheiros da classe mé- maram ter passado por algum tipo de hu-
dia que bebiam com freqüência e 38% dos milhação, desrespeito ou agressão física ou
companheiros era da classe média alta. sexual na vida adulta.
A pesquisa de Schraiber e colaborado- Os dados são relevantes e mostram que
res (2003) também nos mostra dados inte- as violências ocorrem e têm elevado grau
ressantes foram entrevistadas 322 mulhe- de incidência. Os dados mostram que pre-
res, usuárias de um serviço da rede pública cisa ser dada maior atenção às mesmas, para
do município de São Paulo. Estas apresen- que possamos atuar na promoção da saúde
taram como principais características sócio- e na garantia de direitos, tanto do ponto de
demográficas na época da pesquisa: serem vista ético da assistência, como também,
jovens (47,2% têm entre 15 e 24 anos); pelo que mostra a literatura, para que nos-
47,8% se auto-definiram como de cor bran- sas ações sejam, de fato, mais resolutivas.

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Nesta mesma pesquisa, uma parcela das dominado. Esta relação realmente deve exis-
mulheres (39,7%) lembrou das dimensões da tir, todavia não acreditamos que seja tão fá-
coerção e dominação e muitas insistiram na cil definir quem é o desencadeador da mes-
importância desta forma de violência, ao ma. Pensamos que é um ciclo e como tal não
apontarem para a dimensão psicológica podemos saber, exatamente, onde começa e
como sendo situações até de maior constran- onde termina. Sabemos somente que agres-
gimento que a da violência física, por deixa- sor e vítima fazem parte da relação.
rem “feridas que não cicatrizam”. Como já apontado, a violência conju-
Cabe, no entanto, ressaltar que a no- gal passou a ter visibilidade nos primeiros
meação de vítima permanece bastante as- anos da década de 80 com o surgimento do
sociada à mulher até por suas raízes histó- movimento feminista e o levantamento das
ricas. A ordem social de tradição patriarcal situações de violência ocorridas dentro dos
por muito tempo não deu visibilidade à vi- lares. Vários grupos de apoio a mulheres fo-
olência contra mulheres. Tendo o homem ram criados nessa época e conseguiram dar
o papel ativo na relação social e sexual en- visibilidade à violência conjugal, tornando-
tre os sexos, a mulher coube o papel de a pública. Esses grupos fizeram parcerias
passividade e de reprodução. Salienta-se, com o Estado para implementar políticas
também, que no campo jurídico todas as públicas e assim surgiram outros grupos,
pessoas em conflito, sejam homens ou como o Conselho Nacional dos Direitos da
mulheres, serão denominados réus ou víti- Mulher em 1983 e a primeira Delegacia de
mas, por isso, usamos tais termos. Defesa da Mulher (DDM), em 1985.
A partir do movimento feminista ocor- A Delegacia de Defesa da Mulher foi o
reram transformações sociais, tais como a primeiro e grande recurso no combate pú-
inserção da mulher no mercado de trabalho blico à violência contra a mulher e especi-
que, em geral, foi acompanhada pela difi- almente à violência conjugal no país. Seu
culdade do que chamamos de “dupla jor- caráter é basicamente policial: detectar
nada”. Esta expressão remete à concepção transgressões à lei, averiguar sua procedên-
de que mulher que trabalha fora ao chegar cia e criminalizar a violência doméstica.
em casa deve tomar conta dos filhos, do Desta maneira, a violência doméstica é tida
marido, da comida, entre outras atividades. como um desvio da norma e como tal é
Se o homem sempre teve o poder, agora a considerado um crime passível de respon-
mulher tenta mostrar o contrapoder, mani- sabilização e punição.
festando seus desejos, suas recusas, suas Como já referido, os crimes têm dife-
vontades e exigindo os seus direitos. rentes formas de serem tratados. Mesmo
Para Ricotta (2002), muitas vezes a ví- que seja igual quando praticado por des-
tima parece complementar a atitude do conhecidos ou por marido e mulher assu-
agressor, pois ela assume efetivamente a mem significados diferentes e, muitas ve-
posição de vítima, fazendo com que exis- zes, a violência conjugal é de difícil carac-
tam as duas posições – vítima e agressor. Se terização enquanto violência e se forem le-
a vítima não assumisse tal posição o agres- vadas em conta às relações e contratos já
sor também não teria esta posição. O ciclo, existentes entre o casal.
então, se repete, pois ele é reforçado no Lembrando que o ambiente violento
momento em que o agressor ataca e a víti- reproduz a violência, os membros passam a
ma responde com submissão. Sem saber ela ser reprodutores de condutas agressivas e
promove um novo ataque e este se torna o levam essa conduta aos outros ambientes
complemento oportuno para a manuten- dos quais participam. Muitas vezes, conse-
ção do comportamento do agressor. guem disfarçar, mas em algum momento
Ricotta (2002) refere uma relação exis- irão mostrar o que realmente são: pessoas
tente entre vítima e agressor, dominador e violentas.

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Considerações finais to pelas violências psicológicas, principal-
mente ameaça, difamação e injúria. A vio-
A violência parece estar ligada à crimi- lência sexual, especialmente a coerção e/ou
nalidade e ser usada para expressar o que violência sexual praticada por parceiro ínti-
ocorre no espaço público, quando é come- mo no âmbito privado, está pouco evidenci-
tida por desconhecidos. Quando os proble- ada ou inexistente nas estatísticas disponí-
mas ocorrem entre conhecidos não são in- veis, muitas vezes, porque é dito que o mari-
titulados como violência. O termo em ques- do tem esse direito sobre a mulher e isto
tão também indica a gravidade da situação, passa a não ser tipificado como crime. Isto
o que, culturalmente, parece significar que mostra que precisa ser dada maior relevân-
a violência doméstica, embora severa, não cia ao enfrentamento das violências, para que
seja representada como tal. Dentre os tipos nós profissionais possamos atuar na promo-
de violência, a do tipo sexual parece ser a ção da saúde e na garantia de direitos.
mais associada ao conceito de violência. Percebemos que ao falarmos de violên-
Pelos artigos levantados foi visto que no cia e de vitimização, falamos de um perigo
Brasil, desde os anos 80, vários estudos abor- exterior, da ausência de saúde por parte de
dam a questão da violência doméstica e con- quem pratica a violência e que pode compro-
jugal, com base no trabalho das instituições meter a saúde física e mental das vítimas;
policiais e jurídicas, principalmente através podendo trazer conseqüências de ordem psi-
das Delegacias Especializadas no Atendimen- cológica, um estado de privação, que faz com
to às Mulheres (DEAMs). Existe uma dife- que a vítima utilize o acting out, se tornando
rença na nomenclatura de um estado para passiva, atemorizada, podendo desenvolver
outro podendo ser chamada de DEAM ou transtornos afetivos e de ansiedade.
DDM (Delegacia de Defesa das Mulheres). Ouvir as demandas relacionadas às vi-
Grande parte destes trabalhos foi fortemente olências significa ouvir as vítimas e isto é
influenciada pelo movimento feminista, que bastante complexo. E também é estar cons-
privilegiou o direito da mulher à sua segu- ciente da existência do problema e poder
rança na “privacidade” do lar e estimulou as perguntar sobre ele, no momento apropri-
denúncias contra os maridos agressores. ado e sem constrangimentos. Uma situa-
Mesmo assim, ainda estamos carentes ção que afeta de 20 a 50% das mulheres
de estudos populacionais sobre a violência não pode ser objeto de estigmatização ou
baseada em gênero no país, bem como de vergonha e o receio dos profissionais em
pesquisas operacionais nos serviços. Sem abordar o assunto, muitas vezes, expressa
estes estudos ficamos impossibilitados de um julgamento moral próprio e não um
ter um melhor conhecimento sobre este constrangimento em expor a situação por
fenômeno e suas conseqüências. Este tipo parte das vítimas.
de violência ainda é pouco investigado pe- Porém, devemos entender que a vio-
los profissionais de saúde, o que deve cola- lência não será igualmente percebida ou
borar para que seja subestimado em dados vivida por todos. Ou seja, poderá se associ-
oficiais. Os autores pesquisados também ar ao gênero, a outros elementos como ida-
mostram que o número de ações preventi- de, condições familiares, sociais, econômi-
vas ou de ações de acompanhamento das cas e culturais, sem existir um caráter ge-
vítimas é escasso, talvez isto ocorra pela nérico de como é entendida e assimilada
complexidade do fenômeno em questão. por cada pessoa.
Os dados encontrados mostram que as Por outro lado, para que nós profissio-
violências ocorrem, sim, e muitas vezes não nais possamos avaliar ou identificar as for-
são visíveis. Existe uma maior ocorrência e mas de violência conjugal, precisamos de
visibilidade para as violências físicas, tipifi- instrumentos diagnósticos. No Brasil estes
cadas criminalmente por lesões corporais. instrumentos são raros, não tendo tradu-
Porém, essas violências são seguidas de per- ção e nem adaptação para a nossa cultura.

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Mas eles são essenciais para que possamos Referências
reconhecer os fenômenos pertinentes à vi-
olência, suas interações e conseqüências. Dantas-Berger, S. M., & Giffin, K. (2005)
Foi visto que ao contrário do que parece A violência nas relações de conjugalidade:
ao senso comum, uma boa parte das pessoas invisibilidade e banalização da violência se-
que vivem em situações de violência tenta- xual? Cadernos de Saúde Pública, 21, 2, 417-
ram por diversas vezes romper com a mes- 425.
ma. Mas muitas vezes tais pessoas não foram Day, V. P., Telles, L. E. de B., Zoratto, P. H.,
bem sucedidas pelas fragilidades psicossoci- Azambuja, M. R. F. de., Machado, D. A.
ais, bem como pelas limitações das institui- Silveira, M. B. Debiaggi, M., Reis, M. da G.
ções às quais recorreram. Este caminho trun- Cardoso, R. G. & Blank, P. (2003). Violên-
cado de busca de alternativas foi nomeado cia doméstica e suas diferentes manifesta-
como rota crítica por pesquisadores da Orga- ções. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do
nização Panamericana de Saúde e está reple- Sul, 25, 1, 9-21.
to de desencontros, desestímulos e falta de Giffin, K. (1994). Violência de gênero, se-
acesso na tentativa de uso de Delegacias, ad- xualidade e saúde. Cadernos Saúde Pública,
vogados e outras instituições. Sendo o desti- 10, 1, 146-155.
no da maioria das mulheres, que por um Griesse, M.A. (1991) Características Psico-
motivo ou outro o utilizam, os serviços de sociais das mulheres, vítimas de violência
saúde deveriam constituir-se como um local doméstica, na região de São Bernardo do
de acolhimento e elaboração de projetos de Campo. Dissertação de Mestrado. Centro
apoio. Não deviam, pois, serem mais um de Pós – Graduação Mestrado em Psicolo-
obstáculo na tentativa empreendida pelas gia da Saúde, Instituto Metodista de Ensi-
mulheres de transformação de sua situação. no Superior. São Bernardo do Campo, SP.
Fica aqui a certeza de que com um serviço Hasselmann, M. H., & Reichenheim, M. E.
básico de saúde bem implementado de pro- (2003). Adaptação transcultural da versão em
fissionais competentes para tal atendimento português da Conflict Tactics Scales Form R
o fenômeno da violência poderia ser melhor (CTS-1), usada para aferir violência no casal:
visualizado, podendo ser delimitado e, pos- equivalências semântica e de mensuração.
teriormente, prevenido e tratado. Cadernos de Saúde Pública, 19, 4, 1083-1093.
É necessário que a situação de violên- Hirigoyen, M. F. (2002). Assédio Moral: a
cia enunciada seja acolhida, qualificada e violência perversa no cotidiano. Rio de Janei-
tratada com respeito, ética e sigilo. Sendo a ro: Bertrand Brasil.
violência um problema com sérias conse- Marin, I.S.K. (2002). Violências. São Pau-
qüências para a saúde, ela é uma situação lo: Escuta/FAPESP.
que extrapola em muito esta esfera e conti- Marziale, M. H. P. (2004). A violência no
nua sendo uma situação de vida, com toda setor saúde. Revista Latino-Americana de.
a complexidade que isto implica. A pressa Enfermagem, 12 2, 147-152.
dos profissionais de saúde em tratar o pro- Miller, M. S. (1999). Feridas invisíveis: abu-
blema pode ser prejudicial ao paciente. Essa so não – físico contra mulheres. São Paulo:
pode ser diagnosticada como uma outra Summus.
violência, já que é capaz de desrespeitar e Minayo, M. C. de S. (2004). A difícil e lenta
cronificar a trajetória de sofrimento da pes- entrada da violência na agenda do setor saú-
soa. Qualificar a violência como algo inde- de. Cadernos de Saúde Pública, 20, 3, 646-647.
sejado e inaceitável abre possibilidades de Ricotta, L. (2002). Quem grita perde a ra-
transformação pela consciência do proces- zão. São Paulo: Ágora,
so a que está submetida. Então, resta ao Schraiber, Lilia. B., & D’oliveira, A. F. (1999).
profissional possuir a qualificação necessá- Violência contra mulheres: interfaces com
ria para saber em que casos agir e como a saúde, Interface – Comunicação, Saúde,
deverá ser essa ação. Educação, 3, 5, 11-26.

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Schraiber, L. D’oliveira, A. F. Hanada, H. Sedes Sapientae);. Mestranda em Psicologia da Saúde
Figueiredo, W. Couto, M. Kiss, L. Durand, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).
J., & Pinho, A. (2003). Violência vivida: a Manuel Morgado Rezende
dor que não tem nome, Interface – Comuni- Doutor em Saúde Mental pela Universidade Estadu-
cação, Saúde, Educação, 7, 12, 41-54. al de Campinas (UNICAMP), Professor da Gradua-
ção e do Programa de Pós – Graduação em Psicologia
Recebido em março de 2006 da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo
Aceito em julho de 2006 (UMESP).

Autores Endereço para correspondência:


Lívia de Tartari e Sacramento liviats@directnet.com.br
Psicóloga; Especialista Psicologia Jurídica (Instituto

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