ABRANCHES, A. M. Nacionalismo e Democracia No Pensamento de Guerreiro Ramos PDF
ABRANCHES, A. M. Nacionalismo e Democracia No Pensamento de Guerreiro Ramos PDF
ABRANCHES, A. M. Nacionalismo e Democracia No Pensamento de Guerreiro Ramos PDF
Nacionalismo e Democracia no
Pensamento de Guerreiro Ramos
RIO DE JANEIRO
2006
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Abranches, Aparecida Maria (9.8.1969)
BANCA EXAMINADORA:
CÉSAR GUIMARÃES
HELENA BOMENY
RIO DE JANEIRO
2006
Índice
INTRODUÇÃO 1
CONCLUSÃO 174
BIBLIOGRAFIA 180
Resumo
O objetivo desta tese é analisar o nacionalismo nos anos 1950, no Brasil, como
um fenômeno histórico associado a processos de democratização social e política. A
análise é desenvolvida tomando como referência básica os escritos de Guerreiro Ramos,
membro até 1958 do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado em
1955. A criação do Instituto teve como principal finalidade formular a ideologia
nacional-desenvolvimentista. Retomo nesta tese algumas das principais críticas feitas ao
ISEB em fins das décadas de 1970 e 1980, e proponho um enfoque alternativo ao modo
como essas críticas compreenderam o nacionalismo de um ponto de vista
exclusivamente econômico. Com base na literatura contemporânea sobre nacionalismo,
proponho uma leitura que considere o papel do Estado e o das narrativas nacionais
como constitutivos dos processos históricos de construção dos Estados nacionais e,
conseqüentemente, das sociedades democráticas integradas.
Agradecimentos
Agradeço ao meu orientador Marcelo Jasmin por suas sugestões valiosas, pelo
apoio e incentivo. Sua confiança foi indispensável para me dar a determinação
necessária para realizar este trabalho. Aos coordenadores e professores do IUPERJ, em
especial Luiz Werneck Vianna e Ricardo Benzaquen. Ao professor César Guimarães,
pela sabedoria, generosidade, eterna sede de conhecimento e, por conseguinte, “frescor
das idéias”, tudo o que faz dele um grande mestre. No IUPERJ, pude contar com o
companheirismo dos meus colegas de curso Felícia Picanço, Marcelo Maciel, Marlise
Matos, Andréia e Jairo, Robert Wegner, Vânia, Kleber de Deus; e das funcionárias
Simone, Bia, Solange, Ângela, Valéria, Lia e Dona Lina, que ficarão para sempre em
minha lembrança.
Agradeço também aos professores da UERJ, que foram muito importantes na
minha formação nas ciências sociais, em especial Cléia Schiavo, Luis Rodolfo Vilhena,
Valter Sinder, Noeli Corrêa de Melo. À professora Helena Bomeny, com muito carinho,
pela pessoa que é e pela orientadora que foi para mim na graduação, a quem eu devo os
meus primeiros passos na reflexão sobre o pensamento de Guerreiro Ramos.
Ao Marcos Chor Maio, que, a partir da minha entrada no mestrado, muito
contribuiu para que eu desse seqüência à reflexão iniciada na graduação. O estímulo à
participação em seminários sobre Guerreiro Ramos, sem dúvida, ajudou a manter em
mim o entusiasmo pelo pensamento desse autor.
Agradeço ao Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, em particular
aos meus colegas Sarah Teles, Vladimir Lombardo, Simone Dubeux, Elielma Machado,
Ana Fernanda Coelho, Solange Luçan, Sonia Travassos e Mirane Girão; e, ainda, o
carinho de Mônica, Mercedez e Helenice. Agradeço aos meus amigos desde os tempos
da UERJ, cuja amizade tenho o prazer de desfrutar nos dias de hoje na PUC: Luiz
Fernando Almeida Pereira, Ronaldo Castro, Paulo Jorge Ribeiro e José Mauro Freitas.
Sou muito grata à atenção e carinho dos meus grandes amigos, Rosi Marques
Machado e Paulo D’Ávila. A presença de ambos nesse processo foi particularmente
importante pelo estímulo intelectual, o que adveio, freqüentemente, por meio de
calorosas discussões e interesse sincero por este trabalho. Aos dois, meu grande carinho.
Aos amigos que a vida generosamente trouxe para mim: Cristina, Aninha e
Paulo Bahia. E ainda a duas pessoas que comprovam que a amizade resiste ao tempo e a
tudo: Maria Helena, cuja força, alegria e capacidade de sonhar fez e faz com que exista
um mundo para além das ciências sociais; e a minha “irmãzinha” Débora de Castro
Barros, por sua lealdade, dedicação e paciência ao longo desse processo. Finalmente, a
Romana, pela amizade e apoio.
Agradeço à minha família: minha mãe Joventina de Oliveira Abranches, sem
dúvida a pessoa mais importante no processo que me trouxe desde as primeiras letras
até este momento, e minhas irmãs Arlene, Elaine e Eliane.
Finalmente, agradeço ao CNPq pela bolsa concedida, o que tornou possível a
realização desta tese.
Para meu pai Geraldino Abranches (in memoriam)
e meu irmão Gideon de Oliveira Abranches (in memoriam)
Eu estava esparramado na rede, Jeca urbanóide de papo pro ar
Me bateu a pergunta meio a esmo: na verdade, o Brasil o que será?
O Brasil é o homem que tem sede ou o que vive da seca do sertão?
Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo, o que vai e o que vem na contramão?
O Brasil é um caboclo sem dinheiro procurando o doutor nalgum lugar?
Ou será o professor Darcy Ribeiro que fugiu do hospital pra se tratar?
O Brasil é o que tem talher de prata ou aquele que só come com a mão?
Ou será que o Brasil é o que não come, o Brasil gordo na contradição?
O Brasil que bate tambor de lata ou que bate carteira na estação?
O Brasil é o lixo que consome ou tem nele o maná da criação?
Brasil, Mauro Silva, Dunga e Zinho, que é Brasil zero a zero e campeão,
Ou o Brasil que parou pelo caminho... Zico, Sócrates, Júnior e Falcão?
1
O ISEB foi fundado em 1955, no Rio de Janeiro, reunindo um grupo de intelectuais com o propósito de
elaborar a teoria do nacional-desenvolvimentismo, com a qual se pretendia dar continuidade, no governo
de Juscelino Kubitschek, à política de industrialização substitutiva de importações do governo de Getúlio
Vargas. Dentre seus membros se destacam: Roland Corbisier, Álvaro Vieira Pinto, Cândido Mendes,
Hélio Jaguaribe, Nélson Werneck Sodré, Guerreiro Ramos, entre outros.
1
Introdução
2
Introdução
3
Introdução
pobreza. Com o estudo da pobreza, Guerreiro vai alcançando uma visão macro da
sociedade brasileira em termos de desigualdades regionais, e daí a questão da
industrialização como tarefa urgente para a obra de integração territorial e social.
No Capítulo 4, analiso a teoria da sociedade brasileira, a partir da análise de
Guerreiro da história política do Brasil. O que considero ser uma teoria está diluído em
vários textos escritos, principalmente, depois de 1955 até início da década de 1960.
Ainda nesse capítulo analiso a relação que, para o autor, haveria entre ideologia e
ciência e o modo como fundamenta a defesa de uma sociologia militante e nacional.
O Capítulo 5 é dedicado ao estudo do pensamento social e político brasileiro.
Procuro analisar qual o critério de seleção que permite ao autor identificar estudos que
teriam contribuído para uma compreensão nacional e “autêntica” da sociedade
brasileira, e outros que ele qualifica como alienados. Com base no próprio critério de
seleção que Guerreiro utiliza, procuro compreender como ele constrói o conceito de
nação derivando dela o que seria uma temporalidade brasileira. Minha conclusão é de
que Guerreiro, a partir da idéia de espaço, pode chegar a um conceito de nação que
compreende a história, a mudança, portanto, o próprio processo de modernização, que
evita a dicotomia atraso versus moderno. Desse modo, acredito que encontramos nesse
sociólogo uma alternativa ao modelo que orientou o estudo da modernização da
sociologia paulista. Termino o capítulo concluindo sobre o que para Guerreiro seria o
atraso brasileiro.
O Capítulo 6 constitui-se em duas digressões sobre o nacionalismo. Na primeira,
procuro entender o cenário histórico externo que, no Brasil, ensejou um modelo de
ciências sociais proclamado como universalista e outro, intitulado nacionalista, e por
que os dois se apresentaram como antagônicos quando, na verdade, eram ambos
partícipes de uma mesma constelação histórica mundial. Na segunda, faço uma breve
revisão da historiografia do pensamento social e político brasileiro a partir da década de
1970. Questiono o fato de que a experiência e os ideais de democracia do final daquela
década e da de 1980 nortearam uma forma de estudo do pensamento político brasileiro
que irá dividir os autores em autoritários e não autoritários. Contraponho a esses estudos
críticos o que considero ter sido a experiência da igualdade e da liberdade, como dois
momentos na consolidação das democracias atuais.
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Capítulo 1
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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A expressão “coquetel filosófico” é de Michel Debrun, em crítica ao ISEB (1962).
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
Toledo aponta o método das linhas diretrizes, que, de acordo com Guerreiro
Ramos, seria captado mediante o encadeamento das fases. A linha diretriz indica a
“direção em que se orienta a evolução da cultura” (Toledo, 1978, p. 39). O
abstracionismo desse raciocínio se revelaria no fato de que “a fase nunca será formulada
a priori, mas a posteriori, a partir da observação empírica dos fatos” (Toledo, 1978, p.
40). Em Hélio Jaguaribe, esclarecer-se-ia por que os fatos deveriam ser julgados a
posteriori. A fase mais adiantada da sociedade brasileira, a “fase da transformação,
caracterizada pela energética e acentuada propensão ao desenvolvimento”, se
caracterizaria pela maior representatividade ideológica, por isso corresponderia também
à de maior autenticidade, 3 favorecendo a formulação da ideologia autêntica, aquela
capaz de apontar o sentido do desenvolvimento. Na interpretação de Toledo, a fase de
maior representatividade é aquela na qual os interesses coincidem, na qual “os setores
dominantes de todas as classes sociais têm os mesmos interesses situacionais (a
transformação social), e esses interesses situacionais, por sua vez, coincidem com as
necessidades objetivas de todo o País (a expansão das suas forças materiais de
produção)” (Toledo, 1978, p. 42).
Para Franco, o problema nesse esquema das fases é que com ele a história é
entendida em termos do desenvolvimento da consciência, como movimento da Razão.
O momento mais avançado corresponde ao de maior autenticidade ideológica.
Identificando a mesma teleologia em Vieira Pinto, a autora indica em que sentido o
idealismo apontava:
3
Na definição de Hélio Jaguaribe, citada por Toledo, “é representativa a ideologia que constitui a
formulação correspondente aos interesses situacionais de classe ou grupo que a sustentam” (p. 40), e são
autênticas as ideologias que, “sejam quais forem os interesses situacionais que representam, formulem,
para a comunidade como um todo, critérios e diretrizes que a encaminham no sentido de seu processo
faseológico, ou seja, que permitam o melhor aproveitamento das condições naturais da comunidade, em
função dos valores predominantes na civilização a que pertence” (Toledo, 1978, p. 41).
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
Se o conceito de classe aparece, por um lado, como uma ausência, cuja presença
teria evitado os “equívocos” em que os isebianos incorreram, por outro, configura-se
como conseqüência necessária do idealismo e do historicismo de que partiram. Para
Toledo, não houve enfrentamento do “problema teórico” das classes, preferindo-se ficar
no nível das polarizações, como setores modernos versus setores arcaicos.
Apesar da crítica feita ao ISEB, Toledo reconhece o “estado extremamente
precário dos estudos sociológicos brasileiros e, por conseguinte, do seu elevado grau de
comprometimento ideológico (...) na época” (Toledo, 1978, p. 121). Se havia um
comprometimento nos anos 1950, ele não parece ser menor nos anos 1970, pois, ao que
tudo indica, o próprio Toledo e os demais críticos parecem se encontrar bastante
comprometidos em uma luta ideológica contra o regime militar, e, conseqüentemente,
contra o Estado autoritário.
Por isso penso que a questão de cunho econômico ressaltada por Toledo – que
apareceria no pensamento do ISEB em termos de setores modernos versus setores
arcaicos, sobrepondo-se ao que seria a contradição fundamental classe dominante versus
classe dominada – não se desvincula do idealismo identificado desde o início do seu
estudo. Todo o empenho de Toledo consiste em desvendar o autoritarismo do
pensamento isebiano manifestado pelo idealismo. Dessa forma, a análise é comandada,
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
desde o início, por uma certeza: a de que o pensamento isebiano teve por fim “fabricar
uma ideologia”.
O sentido dessa crítica só pode ser entendido caso também se entenda que, para
ela, o ISEB e a tradição de pensamento à qual se filiaria se autotraduzem como
encarnação do Estado. O Estado visto como esfera universal, como realizador da
história e como locus da razão. 4
Nesse sentido, toda a crítica ao intelectualismo do ISEB parece ser um
desdobramento da crítica marxista ao Estado burguês, o que se desdobra, no caso
brasileiro, a uma crítica ao Estado autoritário, que, não esqueçamos, no pós-1964,
acrescenta mais um adjetivo: o Estado autoritário militar. Então, portanto, a crítica ao
ISEB parece ser, antes de mais nada, uma crítica a e uma negação propriamente dita do
Estado. O empenho na exorcização do Estado privou a crítica de um fator fundamental
para a compreensão do nacionalismo. Além disso, ao descartar a historiografia proposta
pelo ISEB, a crítica privou-se também de compreender o papel da elaboração das
histórias nacionais na construção do Estado-nação, e com ele os intelectuais que as
formularam. Mas sobre isso tratarei na próxima seção.
Uma das críticas que faço aos estudos críticos é que neles o nacionalismo não é
focalizado como um fenômeno histórico relacionado às particularidades históricas,
geográficas, culturais e sociais que podem ensejá-lo de formas distintas em diferentes
partes do globo e épocas. Ou seja, visto que sua análise é presa de uma dinâmica
econômica entendida por si só como a principal estruturadora do mundo social e
político, o nacionalismo (qualquer nacionalismo) teria sempre o mesmo significado
político: o de servir aos interesses da classe economicamente dominante.
A meu ver, trata-se de uma visão que, não exclusiva da crítica, conforme
veremos, pressupõe uma racionalidade onipresente, a qual é entendida como única
4
A Apresentação de Adauto Novaes do livro de Marilena Chauí sobre os conceitos de nacional e popular
na cultura brasileira exprime bem a visão crítica que a autora tem do Estado nesse trabalho. Escreve o
autor: “Presos nas teias das concepções clássicas de um Estado Universal, os autores de tais projetos de
cultura sonham com a criação de um indivíduo que seja ao mesmo tempo a síntese da particularidade
cultural com a universalidade de seu discurso. (...) o Estado, poder transcendente, não é apenas o lugar da
obediência e da coesão da sociedade; mais que isso torna-se o único lugar possível de realização do
indivíduo” (Chauí, 1983, p. 7).
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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O autor refere-se aos nacionalismos que não se identificavam com o Estado e nem dele precisavam.
Dentre as forças rivais, Hobsbawm refere-se ao nacionalismo como a mais poderosa.
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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Esta é a perspectiva de Ernst Gellner, da qual tratarei mais adiante.
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Anderson refere-se às guerras do Vietnã, Camboja e China ocorridas em fins da década de 1970.
Enquanto estas se definiram como nacionais, as guerras de 1950 e 1960 podiam ser explicadas pelas
ideologias socialista e liberal.
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
mesmo destino. Problemático nesta perspectiva é que ela opera com o esquecimento de
dois fatos pretéritos. Primeiro, que a idéia de nação esteve subjacente às narrativas sobre
a modernidade, incluindo aí o próprio discurso sobre a democracia:
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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Sobre as demandas políticas que inclinaram o Estado a uma atenção para com o público interno a
território específico, já fiz referencia ao estudo de Hobsbawm (2002). Outra referência que questiona esse
ponto em Gellner é Jonh Breuly (1996).
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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Apesar da falta de iniciativa no que diz respeito à criação dos canais políticos, tal como observado por
Tocqueville, a observação de Wallerstein sobre a auto-intitulação de Luís Filipe como “Rei dos
Franceses” é sugestiva para a compreensão da relação entre governante e uma nação específica, no caso,
os franceses.
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
a abolição da propriedade privada porque ela já está abolida para 99% da população,
veremos que o discurso é endereçado a um “povo”.
Conforme Wallerstein explicita, a modulação política, tanto do Estado como da
sociedade, supôs demandas e discursos de caráter político definidos pela idéia de
igualdade. Emergentes em um contexto em que a idéia de soberania popular se afirma
como fonte da legitimidade política, as ideologias conservadora, liberal e socialista,
originalmente, têm em comum a hostilidade ao Estado como instituição contra qual a
sociedade devia ser protegida.
A questão que estava na base dessa oposição era se o Estado de fato refletiria a
vontade popular, que, segundo Wallerstein, constituiu-se na base existencial da
antinomia Estado versus sociedade. Contudo, o que se observa no processo é um reforço
das estruturas estatais, na medida em que o Estado vai se firmando para cada uma das
ideologias como meio eficiente na realização de suas agendas específicas e para a
conquista do poder. Para os socialistas, tornava-se claro que a conquista do Estado era o
“primeiro passo” na busca de fins de longo prazo. Além disso, enquanto a conquista não
ocorria, “a constant pressure for state intervention to regulate conditions of the
Workplace, the stabilishment by state of income transfer structures, and both the
legalization and the legitimation by the state of working class organizational activities”
(Wallerstein, 1995, p. 99), o que resultava no reforço do Estado. Para os conservadores,
a intervenção estatal se mostrava necessária em face de possíveis rupturas da ordem
social. Para os liberais, o risco de uma sociedade deixada ao arbítrio individual,
podendo gerar associações coercitivas da iniciativa e liberdade individuais, demandava
o poder regulatório do Estado no sentido de prevenir tais tendências. Ao lado desse
fortalecimento do Estado, a disputa entre as três posições as inclinava cada vez mais
para um discurso interpelador da vontade popular soberana com base na nacionalidade.
Em sua análise, Wallerstein apresenta Estado e sociedade como instâncias
relacionadas de um mesmo processo histórico que vão se alterando de acordo com as
demandas sociais e políticas dos atores que dinamizam esse processo. Em contraste com
essa perspectiva temos a de Gellner, que acaba por conduzir a uma compreensão do
período estruturada também pela relação Estado e sociedade, porém como esferas bem
nítidas e autônomas, de forma que se o Estado se altera é tão-somente com vistas a se
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
tornar mais funcional à economia. Desse modo, Gellner acaba se silenciando sobre as
demandas políticas que inclinam o Estado a uma relação para com o público interno.
Como podemos deduzir da análise de Wallernstein, o estudo da política
moderna, se preso a uma concepção de Estado versus sociedade, tende a manter essas
duas esferas em uma relação de estranhamento, impedindo que a alteração política de
seus conteúdos seja discernida. As ideologias, segundo esse autor, são oriundas da
sociedade moderna, identificando-se, primeiro, como expressões politizadas da
sociedade contra o Estado, mas que, ao mesmo tempo, passam a depender da estrutura
estatal na consecução de seus fins. Nesse movimento, os objetivos estatais também
sofrem alterações na sua relação com a sociedade.
Além da perspectiva marxista, que informa a crítica ao Estado nos estudos sobre
o ISEB, penso que essa crítica também é herdeira de uma tradição intelectual, cuja
compreensão sociológica do Brasil já nasce fundada no antagonismo sociedade ×
Estado. Tomo como marco histórico dessa tradição o ensaio de Paulo Prado, Retrato do
Brasil (1998), publicado pela primeira vez em 1926.
Nesse trabalho, ao lado das reflexões sobre a natureza tropical e a miscigenação,
que teriam contribuído para o aguçamento da cobiça, há uma visão negativa do Estado
português. Esse Estado aparece como devorador insaciável, que sangrava a colônia com
toda sorte de impostos, torrados em construções suntuosas, em tecidos de seda e lã, que
ele não produzia. Era um parasita da colônia, das bandeiras e da mineração, consumido
pela sede de ouro e pela inércia. No Post-scriptum, Prado reitera essa imagem negativa:
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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque
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Capítulo 2
No primeiro capítulo, destaquei, na crítica dos anos 1970, uma das duas
dimensões que, para mim, a caracteriza. Trata-se do que considero ser o seu aspecto
propriamente político. Essa dimensão política fundamenta-se na perspectiva marxista
que informa uma compreensão da sociedade moderna como capitalista. No que diz
respeito a esse caráter político, considero que a crítica expressa suas próprias
insatisfações no contexto do regime militar, de maneira que, ao eleger o ISEB como
objeto de estudo acadêmico, o elege também como um veículo da crítica ao Estado
autoritário militar, entendido primeiramente como Estado burguês.
Ao mobilizar conceitos marxistas, acredito que os críticos encontram um amparo
conceitual adequado para a crítica ao Estado. Com os conceitos de relações sociais de
produção e as duas classes sociais que essas relações engendram na sociedade
capitalista, a crítica pode identificar o que Marx, na Ideologia Alemã (1989), aponta
como sendo o momento histórico em que “a consciência pode de fato imaginar que é
algo mais do que a consciência da prática existente, que ela representa realmente algo,
sem representar algo real” (Marx, 1989, p. 27). Este é o momento, segundo Marx, em
que a divisão do trabalho alcança um tal nível de desenvolvimento que, com a
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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais
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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais
À luz das críticas de Bendix, identifico nos dois padrões assinalados supra a
mesma compreensão da modernização em termos de tradição e modernidade. Porém,
enquanto o modelo fornecido por Florestan Fernandes se aproxima mais do modelo
10
O livro de Bendix é de 1964. O autor apresenta uma tradição de pensamento vinculado à teoria da
modernização que viria desde Adam Fergunson, passando por Marx, Durkheim até Talcot Parsons, entre
outros.
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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais
observado por Bendix, ou seja, o de tratar tradição e modernidade como tipos sociais
mutuamente excludentes, o de Guerreiro evita essa abordagem. A razão adviria
exatamente de que neste autor a modernização é analisada considerando-se o cenário
externo, o qual é remontado à forma de ingresso do Brasil na comunidade internacional
pela via do comércio. Dessa entrada resultará uma compreensão do Brasil que o
configura nos anos 1950 como internamente dual, um setor moderno e outro atrasado,
mas também múltiplo. A multiplicidade diz respeito aos graus distintos de
desenvolvimento regional, e é por meio dela que Guerreiro apreende a própria dualidade
mais como categoria compreensiva do padrão de desenvolvimento, que no Brasil teria
ensejado uma coleção de temporalidades distintas. Desse modo, a dualidade em
Guerreiro, o atraso e o moderno, são categorias que não se excluem temporal e
espacialmente, sendo ela condutora de um escrutínio da história brasileira.
No modelo de Florestan, os indicadores do moderno e o lugar onde eles se
manifestam promovem um corte histórico no mesmo momento em que o moderno é
identificado. Haveria um antes e um depois na história brasileira, os quais são
compreendidos em termos de dois tipos de sociedade mutuamente excludentes. O
passado, com seu correspondente tipo social, indicaria o fator que lá determinaria o
atraso. Amparada pelo conhecimento desse fator, a sociologia poderia indicar no
moderno o fator principal de modernização, e a partir dele indicar a via da
modernização. Desse modo, o elemento principal de modernização é oriundo do
complexo de características identificadas como modernas, as quais não estariam
presentes na configuração anterior. Porém, como veremos, a sociologia em São Paulo
não poderá prescindir de um ator que conduza o processo de modernização. O
“inovador” é apreendido do próprio complexo social que indica o moderno. O demiurgo
será o intelectual que porta o “saber racional”, característica principal do moderno, o
que se traduziria na educação escolarizada.
Essa análise é apresentada mais adiante. O que desejo, a partir dessa indicação
de como o ente modernizador é identificado pelo tipo de sociologia da modernização
presente no estudo de Florestan, é o modo como esta teoria serve de parâmetro ao que é
entendido como ciência pela crítica e com base no que é considerado ciência
desqualifica o pensamento do ISEB como ideologia.
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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais
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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais
Entendo que o conceito de nação fundamente a crítica pelo fato mesmo de que a
crítica, ao mobilizar os conceitos marxistas, se estrutura indicando a ausência deles na
reflexão do ISEB. Ou seja, ela analisa o pensamento por aquilo que não estava lá: o
conceito de luta de classes. No entanto, indica, também, o que estava lá: o conceito de
nação, no qual a contradição estaria diluída. Os estudos críticos são bastante profícuos
quando, ao procurarem identificar o fundamento empírico da reflexão do ISEB, a nação,
na intenção de desqualificá-lo como empiria fabricada, ilusória, acabam por sinalizar a
presença de um conceito que parece ter sido bastante eficiente na produção de uma
teoria sobre o Brasil e ter tido grande poder de mobilização política e cultural.
Renato Ortiz (1985), ao comentar a crítica, com a qual ele concorda, de Franco a
Álvaro Vieira Pinto, chama atenção para a grande popularidade do pensamento do ISEB
na esfera cultural, o que o teria transformado, nas palavras do autor, em uma espécie de
“religiosidade popular”. Dentre os diversos movimentos políticos e intelectuais nos
quais os conceitos do ISEB se difundiram, Ortiz chama atenção para influência isebiana
no teatro e no cinema, sobre o que faz a seguinte observação:
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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais
dialética das fases é que teria sido possível ao ISEB formular a teoria das ideologias
representativas e autênticas, residindo aí o golpe de mestre contra o conceito de luta de
classes, dando lugar ao de nação. Portanto, o grande mérito do estudo de Toledo foi o de
ter chegado ao cerne do modo como a idéia de nação foi formulada conceitualmente. O
fato de ter sido esse o grande mérito, com o que concordo, me sugere que aos críticos
não importa o fato de que a questão nacional tenha povoado o cenário político e
intelectual dos anos 1950, e desde antes. Se isso não importa é porque o foco da crítica
não é o nacionalismo do ISEB como um fenômeno histórico, melhor dizendo, da
ideologia do ISEB como ela mesma expressando os sentimentos políticos e culturais da
época. Desse modo, se o pensamento do ISEB não interessa como sendo ele mesmo
fenômeno da empiria histórica em que atua, então parece que o ISEB é focalizado como
algo que “sobrevoa” aquele contexto. O caráter de sobrevoante, para mim, deriva do
fato de se tratar de uma teoria, o que é o alvo da crítica epistemológica; daí o a priori da
crítica ser informado por outra teoria, a teoria da modernização, que mencionei
anteriormente.
Evidentemente que se minha observação quanto ao caráter interessado da crítica
relativamente ao Estado autoritário militar da sua própria época está correta, então um
ponto de partida já estaria garantido pela própria compreensão política do Estado como
autoritário. A condição de sobrevoante do ISEB seria explicada pela própria
compreensão que se tem do Estado em relação à sociedade. No entanto, fiz notar na
introdução deste capítulo como os críticos buscam legitimar a crítica ao ISEB e,
conseqüentemente, ao Estado partindo de uma determinada compreensão da teoria de
Marx. Ou seja, busca-se uma fundamentação teórica para a crítica política ao Estado.
Portanto, o a priori histórico da análise, a visão do Estado no regime autoritário militar,
se neutralizaria na cientificidade dos conceitos mobilizados.
Podemos questionar, contudo, a capacidade de legitimação da teoria como ela é
utilizada pela crítica em um trabalho que tem como objeto um fenômeno historicamente
datado, em um contexto em que as ações políticas são adjetivadas exatamente pelo
conceito que a crítica quer mostrar, que é falso. A meu ver, os conceitos marxistas não
têm eles mesmos, na crítica, força teórica autolegitimadora no que diz respeito ao
estudo do objeto histórico em questão: o nacionalismo. Para mim eles se legitimam
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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais
como fundamentos teóricos de uma crítica política ao Estado burguês em geral, mas não
de uma crítica epistemológica ao pensamento do ISEB.
Para que os conceitos marxistas se autolegitimassem como científicos na crítica
ao ISEB, os críticos teriam de estar dispostos a um maior enfrentamento com a empiria
histórica da época em que os isebianos escrevem, em vez de só demonstrar ausências
conceituais nos seus textos. Teriam de demonstrar as lutas de classes se desenvolvendo
de forma racional na direção da destruição do Estado burguês, e com isso questionar o
nacionalismo isebiano. Ou então enfrentar o fato de que o adjetivo nacional não
complementou apenas o engajamento e discurso político do ISEB, mas também outras
formas de engajamento político. 11 Teriam de explicar o nacionalismo e a sua incidência
em processos de modernização política, econômica e social. Resumindo, a
autolegitimação das categorias marxistas deveria advir de uma legitimação histórica, o
que, me parece, reclamaria uma compreensão do Brasil-nação na sua relação com outras
nações capitalistas ou mais adiantadas. Esse enfrentamento com a empiria histórica
tornaria mais plausíveis para a crítica termos como imperialismo, antinação e
subdesenvolvimento, que povoam os escritos isebianos e da época. Creio que posso
dizer, em termos marxistas, que os críticos se detiveram na superestrutura ideológica,
nos fatores que, segundo Marx, a constituem, Estado e representações ideológicas.
Quanto ao nexo lógico-histórico entre infra e superestrutura, a crítica parece deixar a
resposta para a autoridade da teoria, deduzindo do conceito de modo de produção
capitalista as bases econômicas da superestrutura política e ideológica brasileira. Ou
seja, a infra-estrutura de um país economicamente dependente é desprezada. De modo
que o que me parece informar a crítica é o modelo de uma sociedade na qual a
revolução burguesa já teria ocorrido.
Não divago sem rumo quando apresento esse raciocínio sobre a infra e
superestrutura na crítica. Tenho um objetivo bastante preciso, que é o de destacar que,
11
Ao comentar a crítica de Caio Navarro ao misticismo do par nação e antinação no pensamento isebiano,
Bolívar Lamounier observa que, nos anos 1950, “para muitos... o jargão nacionalista significava
justamente o oposto da alegada mistificação. Significava crítica ao status quo; significava tomada de
consciência de inúmeros problemas, entre os quais o da desigualdade, quer ou não percebida em termos
de estrutura de classes; e, sobretudo significava abertura política, abertura de um espaço maior para a
participação” (Lamounier, 1978, p. 156). Nélson Werneck Sodré (1978), assim como Lamounier, também
cobra da crítica uma referência mais exata da época. Além desses autores, para uma visão mais
panorâmica do debate político envolvendo a questão nacional, ver Luiz Werneck Vianna (1988) e César
Guimarães (2001).
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12
Nesta mesma linha de raciocínio, Mariza Peirano lembra a recomendação de Norbert Elias sobre a
importância de se averiguarem os aspectos ideológicos das teorias sociais, em particular o próprio
conceito de sociedades complexas no contexto em que ele foi gerado (Antropologia no plural).
13
Esforço-me para distinguir o que chamo de representação e conceito, pois, pelo primeiro termo,
entendo uma apreensão mais intuitiva e afetiva da vida coletiva brasileira no passado e no presente. Pelo
segundo, a representação é elaborada na forma conceitual, sendo essa forma constitutiva da construção de
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um campo de saber, no caso o da sociologia, e que diz respeito ao próprio processo de institucionalização
das ciências sociais. Acredito que essa distinção seja importante para entendermos a aproximação que
Werneck Vianna (1997) faz entre os sociólogos da USP e os isebianos, ao identificá-los como
mannheimianos, ou seja, como uma intelligentzia que visa a produzir uma “síntese” da sociedade
brasileira e generalizar os conhecimentos adquiridos ao público. Conforme penso, numa representação
mais intuitiva e afetiva já estaria uma predisposição política e ideológica ligada a uma concepção
idealizada da sociedade que se deseja ter. Essa predisposição política inicial é, posteriormente,
generalizada ao público na forma de conceitos científicos.
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nação, procuro colher a própria elaboração dessas idéias em um cenário mais amplo, em
que a preocupação com a identidade nacional e com a independência intelectual foi
regente. Por isso, iniciarei esta reflexão com um texto de Richard Morse sobre o
contexto da sociologia paulista e seus dilemas em face das peculiaridades de uma
sociedade em processo rápido de modernização social e econômica.
A práxis não deve constituir o ponto de partida em razão de não ser ela o melhor
caminho na compreensão da diferença de que se incumbe o autor demonstrar. Tal
caminho, pode-se deduzir, poderia levar a uma conclusão depreciativa da atividade
41
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Podemos dizer, então, que a imagem de uma sociedade nacional por longo
tempo integrada fazia recair o espanto diante dos efeitos da ordem urbano-industrial
sobre a cidade, ao mesmo tempo que fornecia o ponto de apoio para projetos
reintegradores. 14
No Brasil, o impacto da industrialização produzia efeitos distintos na imaginação
intelectual. Desenvolvendo uma interpretação que o texto de Morse torna possível,
pode-se afirmar que, enquanto na Inglaterra a industrialização fazia sentir seus efeitos
desorganizadores através da cidade, do urbano, evidenciando esse espaço e os
fenômenos a ele relacionados como universo empírico do labor intelectual, no Brasil,
ela se faz perceber através de um espaço muito mais amplo do que o da cidade. Trata-se
do próprio território nacional. De um modo geral, na Europa, autores como Tocqueville,
Engels, Marx e Durkheim puderam produzir uma imagem das fissuras entre seres
humanos em termos societários, como classe e individualismo, sem vinculá-las à
14
De acordo com Bendix (1996), uma razão para que os intelectuais Europeus percebessem a mudança
social como interna decorreria da relativa integridade das nações européias.
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geografia nacional. No Brasil, observa-se que a imagem das cisões sociais provocadas
pela industrialização projeta-se sobre o território ora recortando-o com categorias
culturais e étnicas, ora com categorias políticas, em que se sobressai a relação entre
poder central e poder local, ora em termos das diferenças econômicas e culturais
regionais. Em comum a essas abordagens o fato de que, simultaneamente a elas, a
imagem do Brasil como nação se descortina. Daí que, em vez de classes e indivíduos, as
categorias recorrentes no pensamento social e político brasileiro serão a de povo, cultura
popular, cultura de folk freqüentemente acompanhadas de outra de caráter político-
geográfico, a de nação, especialmente a nação cultural e a nação política.
Apoiado no que seriam os móveis culturais e históricos do pensamento social
brasileiro, Morse reúne autores como Sílvio Romero, José Veríssimo, Paulo Prado,
Alberto Torres, Oliveira Vianna, atando-os à continuidade que estabelece entre a pauta
de estudos aberta pelo modernismo e a sociologia paulista dos anos 1950. Comum a
todos o tema persistente da identidade nacional. Comentando a crítica de George
Gurvitch à deficiência dos sociólogos brasileiros quanto à “exploração da cidade de São
Paulo como um laboratório social único”, Morse sugere que tal deficiência deveria ser
creditada à desconfiança que os sociólogos brasileiros teriam da eficácia dos
conhecimentos transmitidos pelos professores estrangeiros na compreensão da realidade
nacional. Daí que a pauta modernista ainda se faria presente nos temas substantivos a
serem pesquisados, o que tornava indispensável um “ponto de apoio cognitivo” para que
os estudos sociológicos não fossem “um simples mimetismo”. Corrobora o autor o
balanço crítico que Florestan Fernandes faz da sua experiência na USP (1977), em que
lembra a reação dos estudantes ao caráter colonialista impresso nas atitudes pedagógicas
dos professores estrangeiros, cujos ensinamentos se distanciavam em muito da realidade
local. Segundo o autor, ao intelectual brasileiro impunha a tarefa de redefinição do
ensino universitário, a fim de que ele se adequasse ao estudante brasileiro. Desse modo,
podemos dizer que uma preocupação com a independência intelectual em relação ao que
seria uma dominação espiritual pelas nações desenvolvidas constituiu um dos ideais que
nortearam a construção das ciências sociais nos anos 1950. 15
15
Ao escrever “um dos ideais”, tenho em mente uma outra preocupação que regeu as ciências sociais,
trata-se da democratização da sociedade brasileira. Sobre esse ponto, escreverei mais adiante, em
princípio, analisando como essa questão esteve diretamente associada às preocupações com o método de
Florestan Fernandes.
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16
Segundo essa matriz, “o período científico das ciências sociais no Brasil se inicia com a criação de
cursos superiores, a importação de professores estrangeiros e a introdução das técnicas de investigação de
campo...” (Santos, 1978, p. 26). O autor questiona essa compreensão da história da produção intelectual
brasileira devido ao desprezo a que ela relega toda a produção anterior a 1930, e, portanto, tornando-a
irrelevante para “o progresso da ciência”.
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parece ter incidido diretamente sobre o seccionamento de objetos na definição das duas
disciplinas no Brasil. Além disso, como dessa delimitação derivaram-se formas distintas
de representação da sociedade brasileira pelas ciências sociais. No que se segue, tomo
como ilustração dois cientistas sociais: uma antropóloga, Maria Isaura Pereira de
Queiroz, e um sociólogo, Florestan Fernandes. Os textos analisados têm em comum o
caráter historiográfico. Conforme será visto, ambos propõem não uma história das duas
disciplinas isoladamente, mas das ciências sociais. No entanto, observa-se que
perspectivas distintas orientam o projeto, de modo que acabam sendo afirmadas duas
identidades disciplinares, cujas particularidades têm estreita relação com os objetos
eleitos e com a finalidade que orienta os estudos. Não cabe aqui analisar as relações
entre sociologia e antropologia no curso de suas respectivas elaborações e construções
na história das ciências sociais brasileiras. O objetivo na análise dos autores é tão-
somente mostrar como de alguma forma as duas disciplinas repõem no nosso cenário
intelectual as duas vocações assinaladas anteriormente. E, ao fazerem isso, nos
permitem visualizar, no período que compreende as décadas de 1930 a 1950, a
convivência conflituosa de duas representações do Brasil. De um lado, uma visão que
abandona o passado e busca no presente tanto as condições do pensamento quanto o
devir da sociedade que se deseja. De outro, uma imagem da nação que vai buscar no
passado a existência tanto de um pensamento quanto de um ser brasileiro.
17
“Ciência e Sociedade na Evolução Social do Brasil”, texto que estou analisando, foi originalmente
publicado pela Revista Brasiliense (São Paulo, jul.-ago. 1956, no 6, pp. 46-58) e A Etnologia e a
Sociologia no Brasil (São Paulo: Anhambi, 1958).
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dicotômicos que estruturam a análise: cidade versus campo e saber racional versus saber
não racional.
A respeito desta última dicotomia, Florestan parece sugerir como saber não racional
aquele praticado pelo clero no complexo escravocrata. Embora o catolicismo tenha
significado uma oportunidade para inculcar um tipo de conhecimento racional, isto é,
independente daquele emanado da ordem social escravocrata, ele foi abrangido por essa
mesma ordem. As razões se deviam ao fato de os problemas emergidos da escravidão
para os princípios cristãos não serem resolvidos dentro da “ordem eclesiástica colonial”,
e, também, devido à solidariedade da igreja com os interesses colonizadores do Reino.
Desse modo, a Igreja acabava por reafirmar uma mentalidade formada no âmbito das
relações domésticas.
Por saber racional, então, podemos entender que Florestan identifica aquele que
seria tanto capaz de promover uma percepção do público como espaço distinto do
espaço doméstico quanto a emancipação de valores culturais e sociais e formas de
administrar oriundos do domínio doméstico. Da análise do que seja o saber racional e o
não racional, temos então mais uma dicotomia: privado versus público. Cidade,
instituições de ensino e espaço público aparecem alinhados como categorias que vão
indicando a maneira como Florestan compreende as condições que permitirão o
florescimento do saber sociológico. Das três categorias, porém, uma configura o ideal a
ser alcançado por uma intelligentzia criadora: o público. Este seria o elemento ausente
no decorrer do anos analisados. A explicação do porquê da ausência é a mesma que
explica a submissão dos princípios cristãos à ordem senhorial. Os domínios doméstico e
rural seriam suficientemente absorventes, de modo a comprometer possíveis princípios
universalistas de ordenação social. A vida política é compreendida como
patrimonialista, de modo que o Estado é descartado da possibilidade de vir a
desempenhar qualquer papel de emancipação. Esse papel vai ser atribuído às
instituições técnicas e educacionais que, conforme o texto sugere, são congênitas à
formação da ordem urbana com os problemas que impõem e do saber racional.
Embora Florestan Fernandes ressalte a falta de interdependência entre a
produção intelectual e as transformações materiais e sociais, destacando o papel da
intelligentzia na condução de tais mudanças, algum tipo de condicionamento empírico
lhe é imprescindível. Este será encontrado no florescimento da cidade. É dispensável
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Chama-me atenção o fato de que, nos estudos sobre a vida coletiva brasileira de um Euclides da Cunha
ou Oliveira Vianna, a geografia fornece o ponto de partida para a compreensão de hábitos e modos de
vida das populações. Categorias como litoral, sertão, corte e província são utilizadas como recursos
teóricos na busca de uma explicação histórico-sociológica do Brasil. Essa observação pode ser
significativa por duas razões. Primeiramente, pelo fato de indicar uma continuidade entre esses estudos
ensaístas, e a compreensão mais geográfica da configuração social brasileira da análise de Florestan
Fernandes. Em segundo, como, apesar da continuidade, uma ruptura com o padrão de análise dos
ensaístas – com o deslocamento da análise da diversidade regional para a cidade industrial – acelera o
processo intelectual de compreensão do moderno estribado nas formas de relações sociais próprias do
mundo industrial. Com isso, facilita uma compreensão da vida coletiva brasileira em termos de sociedade,
a qual é projetada para a coletividade inteira como devir necessário.
Parece-me que, enquanto um tipo de análise, que tem como referência empírica a diversidade regional,
facilita uma compreensão que vincula tradição e moderno, um outro tipo, que reduz a diversidade às
categorias rural e urbano, ou campo e cidade, promove com essa fissura uma ruptura temporal radical,
como a de atraso e moderno. Com o primeiro tipo de análise, o dos ensaístas, o conceito de nação me
parece mais apropriado para abranger uma totalidade social mais complexa delimitada pelo território
nacional. Com o segundo, uma parte expressiva dos residentes do território nacional, com seus hábitos e
modos de vida, é relegada como atraso ou resíduo no terreno da teoria que os conceitos de rural e urbano
estruturam. Essa breve digressão será mais bem esclarecida a seguir.
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Aplica-se à analise de Florestan, que busca correspondência entre o conteúdo do pensamento e o
contexto ao qual se vincula, a classificação de Santos das matrizes que teriam orientado uma
historiografia do pensamento social e político brasileiro. Nesse caso, tratar-se-ia da “matriz sociológica”,
que segundo Santos “entende-se a análise que se desenvolve tomando como parâmetro características da
estrutura econômico-social, quer, como no caso de Fernandes agora mesmo citado, para explicar
variações ocorridas sobretudo no conteúdo das preocupações dos investigadores sociais, como
decorrência de modificações processadas na estrutura sócio econômica, quer, em casos extremos, para
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deduzir os atributos ou dimensões do pensamento social dos atributos e dimensões do processo social”
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feudalismo europeu desagregado pela ordem industrial. É nesse sentido temporal que
podemos compreender o modo como Florestan Fernandes se refere à mentalidade
folclórica como o “irracional” que “continua a possuir... grande importância na vida
cotidiana dos indivíduos” (grifo meu). A mentalidade folclórica é apresentada como
resíduo. Sua presença na cidade industrial requer um tipo de entendimento que apele à
idéia de civilização, conceito utilizado pelo autor como conceito histórico, indicativo de
processo.
Tem-se, então, a passagem de uma compreensão geográfica – rural e urbano –
para uma mais abstrata, ancorada na idéia de tempo. De acordo com essa idéia de
tempo, informada pelos índices de civilização fornecidos pela cidade industrial, o tempo
da sociedade brasileira é deduzido do tempo das sociedades industriais, estas indicando
o ponto mais adiantado da escala evolutiva civilizatória. Por isso talvez a urgência do
saber técnico e de uma sociologia que promova a remoção dos entraves ao moderno
ainda existentes e presentes naqueles anos.
Quero chamar a atenção, nesta análise, primeiramente, para o fato de que o
conceito de sociedade é deduzido da percepção que tem o autor da cidade industrial, e
como esse conceito se torna suficientemente abrangente da diversidade de modos de
vida na sociedade brasileira, diluindo essa diversidade na redução folclore versus
civilização, o que significa dois tipos de mentalidade. Em segundo lugar, a
temporalidade brasileira é informada pelo próprio conceito de sociedade que, por sua
vez, é deduzido do modo de vida urbano-industrial. Decorre disso a ausência de uma
preocupação com que seria uma temporalidade brasileira, e junto com essa ausência
também um lugar para a indagação a respeito de uma especificidade brasileira, o que é
fundamental para se pensar a vida coletiva do Brasil em termos de nação. E, por último,
uma questão: o que aconteceu com as categorias rural e urbano? Será que essa dualidade
poderia tão facilmente ser reduzida ao dualismo pensamento racional e não racional?
E será que esta seria passível de ser resolvida apenas com a eliminação da
mentalidade mágica e folclórica por processos de educação especializada? Quem seriam
os agentes desse processo? Quem financiaria a universalização da educação
escolarizada? Decerto, me parece que uma parte do País real desaparece na teoria de
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Florestan Fernandes na medida em que ele sugere deduzir o País do laboratório que fora
a cidade de São Paulo. Penso poder encontrar essas respostas em outras teorias.
Uma delas é a fornecida pela antropologia. Abordarei a constituição desse
campo de saber das ciências sociais partindo do que considero ser um impasse da
sociologia em relação ao que Florestan Fernandes chama de mentalidade folclórica.
Procuro analisar como a antropologia, na medida em que encontra seu objeto próprio
naquilo que a sociologia descarta como resíduo, abre caminho para se pensar uma
temporalidade brasileira ancorada na idéia de identidade nacional.
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registrada no período de 1955 a 1966, quando os dois temas somam, juntos, 28 obras
(20 sobre a e oito sobre d). Esses dados são significativos porque indicam um
descompasso entre objetos tidos como próprios da sociologia, por se referirem às
condições advindas com a industrialização e urbanização, e a circunstância social a que
se pretende aplicá-la no contexto de 1945 a 1955. O cotidiano só irá favorecer a
atividade cognitiva designada própria da sociologia a partir de 1955, quando é intenso o
processo de urbanização e industrialização.
Ainda tomando como referência o estudo de Villas Bôas, situação diversa
configura as realizações da antropologia. Esta conta com 70 obras no período de 1945 a
1955, e 71 no transcurso de 1956 a 1966. Os temas abrangidos são: tradições
populares, 20 grupos étnicos específicos, formação étnico-cultural, religiões afro-
brasileiras e cultura rural. Se comparadas as produções da sociologia e da antropologia,
observa-se que o cotidiano considerado místico e folclórico por Florestan Fernandes,
que parece estar fora do alcance da sociologia, encontra na antropologia acolhida
favorável.
Partindo do estudo de Maria Isaura Pereira de Queiroz, que ilustra um passado
mais longo nas ciências sociais brasileiras, remontando-o às pesquisas etnográficas
realizadas pelo Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro, fundado em
1838, Gláucia Villas Bôas identifica nos temas da antropologia daquele período uma
reatualização dos temas tradicionais que constituíram o campo desta no Brasil. Esses
temas tradicionais estariam vinculados a uma preocupação com a brasilidade. De acordo
com Maria Isaura Pereira de Queiroz (1989), de 1840 a 1870, as pesquisas etnográficas
têm como objeto os índios brasileiros, cujo objetivo seria “afirmar que os brasileiros
eram os legítimos filhos da terra, muito mais do que gente de além-mar: o selvagem era
a marca da brasilidade” (Queiróz,1989, p. 380). Essa preocupação com o nacional se
estende pelo final do século XIX e ao longo do XX sob outros enfoques:
20
Sob a rubrica “tradições populares” da pesquisa de Villas Bôas, Vilhena (1997) identifica os estudos
sobre o folclore, os quais constituíam a maioria (48) em um total de 141 títulos publicados no período de
1945 a 1964. O autor chama a atenção para a proximidade entre a antropologia e o folclore, que naquele
período era marginalizado do repertório de temas estudados pelas ciências sociais.
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No seu artigo, Queiróz (1989) questiona uma historiografia do pensamento social latino-americano, em
geral, e o brasileiro, em particular, que enfatiza o caráter imitador do pensamento nos países
subdesenvolvidos. No Brasil, esses estudos, que tendem a admitir “uma total falta de criatividade dos
países subordinados”, relegariam como irrelevantes a produção intelectual anterior à década de 1950. É
contra essa perspectiva que a autora remonta o pensamento social brasileiro às pesquisas etnográficas e
publicações realizadas pelo Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro. O interessante na
perspectiva que orienta a autora, que vai buscar nos estudos “socioantropológicos” o que não seria pura
imitação do pensamento no país subdesenvolvido, é a preocupação com uma especificidade do
pensamento, a qual está diretamente relacionada com o resgate de uma história brasileira. De uma história
mais longa, não demarcada por uma ruptura relacionada com a instauração da ordem urbano-industrial.
Dessa forma, o pensamento do passado parece consubstanciar uma reflexão mais ampla da autora sobre a
identidade nacional. Com isso, ela sugere que um tipo de historiografia do pensamento social brasileiro,
que não se orienta exclusivamente pela condição urbano-industrial, pode evidenciar uma preocupação
mais ancestral com o processo de formação da identidade nacional, a qual estaria presente na antropologia
no processo de institucionalização das ciências sociais.
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Florestan Fernandes participa, 22 creio que uma análise que articule a compreensão que
teve o sociólogo do método científico e o modo como ele próprio analisa a sua trajetória
pessoal e intelectual ofereça um quadro bem amplo do cenário social encontrado pela
institucionalização.
22
Sobre isso, ver Oliveira (1995) e Vianna (1997).
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construir o campo das ciências sociais no Brasil, o que pressupunha um certo grau de
independência com relação ao saber adquirido. Essa independência se lhe afigurava
inextrincavelmente ligada à pesquisa, o que permitiria tanto a aplicação do saber quanto
uma personalidade própria à sociologia no Brasil, em virtude da especificidade das
temáticas a serem abordadas. A pesquisa, por sua vez, pressupunha e promovia a
institucionalização do papel de sociólogo. Como se observa na citação a seguir, a
universidade, por meio das atividades de ensino e pesquisa, adquire um papel central na
moldagem de um padrão (por que não dizer?) “nacional” da ciência social no Brasil:
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democratização. Por vias distintas, é bem verdade. Como observa Vianna (1997), em
Florestan Fernandes encontramos uma compreensão em que “a luta contra o
subdesenvolvimento e o atraso dependeria menos de uma modernização econômica
induzida pelo Estado do que de uma reforma da sociedade promovida por um sistema
educacional democrático” (Vianna, 1997, p. 191). Descrente de um Estado com raízes
patrimoniais, o caminho para a modernização teria de ser o da “reforma da sociedade
civil”. Guerreiro Ramos alinha-se mais à alternativa oposta, que “confiaria a quebra do
padrão e subdesenvolvimento ao Estado e à modernização conduzida por ele” (Vianna,
1997, p. 192).
Além desse envolvimento da sociologia pela questão da democratização, uma
preocupação com o nacional e uma maneira própria de aplicação da sociologia estão
presentes em ambos. Como escrevi antes, uma crítica às transplantações de forma
acrítica também é feita por Florestan Fernandes. Do mesmo modo, uma compreensão
sobre uma distância cultural e social entre as classes sociais no Brasil também é
percebida como entrave ao moderno. Para Guerreiro Ramos, uma “substituição de
importações” no campo cultural seria, talvez, o fator mais decisivo na superação do
subdesenvolvimento. O caráter de importador acrítico de idéias estrangeiras é objeto por
excelência dos seus estudos sobre o pensamento social e político brasileiro, conforme
veremos mais adiante.
Uma outra proximidade, que como as assinaladas anteriormente pode ser
entendida no contexto de uma sociedade em transição para o moderno, é a que diz
respeito ao caráter “mannheimiano” com que os paulistas percebiam o papel do
intelectual e a destinação social dos produtos das ciências sociais. Em São Paulo, as
ciências sociais, orientadas por um ideal “mertoniano” de comunidade científica, terão
de ser “combinadas”, como observa Vianna, com a sociologia do conhecimento e dos
intelectuais de Mannheim. De acordo com a concepção de Merton, a comunidade
científica, dispondo de autonomia em relação a outros valores do mundo social,
disponibilizaria o conhecimento produzido “aos atores sociais e políticos sobre o que
era obscuro e irracional na vida em sociedade, viabilizando uma ação racional para o
equacionamento e eventual solução de determinados problemas da coexistência
humana” (Vianna, 1997, p. 186). A condição para que tal comunicação ocorresse era
que houvesse uma relação de homologia entre “ciência e representação política e
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social”. Não era assim que a estrutura social e política era percebida pelos intelectuais
paulistas, ou seja, como portadora de representações civis e políticas confiáveis. Daí
que, conforme nota Vianna, a comunidade científica deve intervir, mediada por uma
“síntese total” procedente das diversas sínteses e formulada pela ciência social. Desse
modo, a comunidade mertoniana se conduziria de modo mannheimianno tanto no que
diz respeito à produção da “síntese total” quanto no modo como concebe seu papel
como intelligentzia. A intervenção seria no sentido da reforma da sociedade civil por
meio da educação, não em aliança com o Estado.
Se, conforme podemos deduzir da análise de Vianna, a sociologia do
conhecimento de Mannheinn levou a sociologia em São Paulo a um descredenciamento
de atores políticos e sociais de um papel modernizador, propondo, como compreendo,
uma total reinvenção da sociedade brasileira por meio da educação orientada pelas
ciências sociais, o mesmo não ocorre com o “mannheimianismo” de Guerreiro Ramos.
Certamente, ele credita à produção de sínteses totalizantes e a uma atitude militante dos
intelectuais um fator decisivo à modernização política e social. Porém, como veremos, a
recepção do pensamento de Mannheim por Guerreiro é condicionada pelo modo como
compreende a formação histórica brasileira pela “dualidade básica”. 23 Com essa
compreensão, Guerreiro vai, além de remontar a modernidade brasileira a um passado
mais distante daquele que informa a ciência social em São Paulo, poder encontrar na
estrutura social atores políticos e sociais confiáveis no processo de modernização. Entre
esses atores, como partidos, cientistas sociais, economistas, trabalhadores, empresários,
Exército e estudantes, estaria o próprio Estado. O papel da sociologia seria o de
esclarecer esses atores quanto ao sentido da modernização, sendo então imprescindível
uma teoria capaz de produzir uma síntese histórico-social da existência coletiva
brasileira.
No próximo capítulo, passo à análise do pensamento de Guerreiro Ramos. Neste
capítulo, estarei mais interessada em analisar o processo de formação intelectual do
23
O conceito de dualidade básica, formulado por Ignácio Rangel, e o modo como Guerreiro vai
desenvolvendo uma percepção do país em termos de dualidade serão analisados a partir do final do
terceiro capítulo. Ao utilizar o termo condicionado, não quero dizer, com isso, que Guerreiro, ao tomar
conhecimento de Mannheim ou, mais precisamente, da sociologia do conhecimento, já tivesse bem claro
para si a idéia de dualidade. Seria condicionado mais no sentido da relação que Guerreiro vai
estabelecendo entre o modo como vai compreendendo a formação histórica brasileira e a recepção do
pensamento de Mannheim. Podemos dizer que o modo como Guerreiro recepciona a sociologia do
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sociólogo que vai resultar nos seus escritos na década de 1950, especialmente a partir de
1955, no ISEB. Como veremos, trata-se de um pensamento que vai se desenvolver
dentro do Estado, em uma de suas agências, o Departamento Nacional da Criança, e
depois no DASP. É nesse contexto, em que o pensamento se desenvolve em
proximidade com o Estado, que Guerreiro vai poder perceber uma dinâmica de
modernização política e social interna a esse aparelho político. Desse modo, uma
compreensão positiva quanto ao papel do Estado, como participante do processo de
modernização, vai ser desenvolvida “em ato” e defendida nos anos 1950.
Em suma, para concluir, as duas concepções, a da sociologia e seu método e a da
sociedade brasileira, representadas em Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos, devem
ser vistas não como excludentes entre si, mas como maneiras distintas de se
compreender a modernização brasileira, possíveis em um mesmo cenário histórico,
aquele em que a democratização passa a se constituir na principal questão do
pensamento social. A diferença seria quanto às vias pelas quais ela poderia ocorrer, e da
reflexão sobre essas vias resultou a rica produção intelectual dos anos 1950.
conhecimento é interpretado por ele próprio à luz dessa mesma sociologia, ou seja, como histórica e
socialmente (melhor seria, nacionalmente) condicionada.
70
Capítulo 3
24
“A Cartilha do Aprendiz de Sociólogo” foi publicada em Introdução Crítica à Sociologia Brasileira
(1956), e A Redução Sociológica foi publicada originalmente em 1958.
25
Os intelectuais do ISEB se autoconceberam como intelligentzia na acepção oferecida por Mannheim.
Para este, a possibilidade de a intelligentzia se constituir como ator político acima das classes sociais
estaria diretamente ligada à condição que a vida moderna oferecia de que se formasse esse estrato social
independente. Isso porque ela permitiria o alargamento da área de recrutamento desse grupo social. Um
traço marcante na concepção de Mannheim é a heterogeneidade social da intelligentzia. O vínculo que lhe
71
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
foi criado o IBESP – Instituto Brasileiro de Economia e Política, que deu seqüência aos
propósitos que levaram à primeira reunião, isto é, à elaboração da ideologia do
desenvolvimento. No sentido de difundir suas idéias e propósitos, foi criada a revista
Cadernos do Nosso Tempo, que teve seu primeiro número em 1954. Com a morte de
Vargas, diante de quem o grupo desfrutava de prestígio, segundo Alzira Abreu (1975),
os membros do IBESP ficaram temerosos de perder sua posição, e procuraram, então,
estreitar laços e apresentar a idéia de criar um centro de altos estudos sobre a sociedade
brasileira ao novo ministro da Educação, Cândido Motta Filho. Depois de muitas
conversas, o ministro saiu convencido de que faltavam, no cenário intelectual brasileiro,
instituições capazes de desenvolver estudos diretamente ligados à “realidade brasileira”
e destinados à formação de “quadros técnicos e de dirigentes do país” (Abreu, 1975, p.
106). Assim, em 14 de julho de 1955 foi baixado o decreto que fundou o ISEB, o qual
passou a estar diretamente subordinado ao Ministério da Educação e da Cultura.
O ISEB foi estruturado em vista do propósito que levou à sua criação, ou seja, a
formação de quadros técnicos. Para isso, suas atividades consistiam no oferecimento de
um curso regular com duração de um ano, destinado a pessoas portadoras de diploma
universitário e que desempenhassem papel relevante em organizações públicas e
privadas. Além do curso regular, o instituto incumbia-se de realizar conferências,
oferecer cursos extraordinários e publicar.
As disciplinas que compunham o curso regular eram economia, filosofia,
sociologia e história. Guerreiro Ramos era o sociólogo do grupo de professores, e pode-
se dizer que é por meio de suas atividades desde o IBESP que ele ganha visibilidade
como intelectual das ciências sociais diante da comunidade que vinha, então,
simultaneamente, se firmando nesse campo de saber e, assim, firmando-o também.
daria uma identidade seria tão-somente sociológico: “a educação que os enlaça de modo surpreendente”
(Mannheim, 1972).
26
A palavra habitus é atribuída a Aristóteles, e significa uma “aptidão inata, ou adquirida pelo
treinamento”. A sociologia nacionalmente engajada exigiria do sociólogo essa capacidade do habitus, o
que lhe permitiria “utilizar sociologicamente o conhecimento sociológico” (Ramos, 1963, p. 129).
72
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
que faz à sociologia acadêmica, procura diferenciar o que considera ser o cientista social
meramente “alfabetizado em sociologia” (Ramos, 1965, p. 129) daquele que, além da
formação escolar, teria corroborado sua formação com a experiência.
A idéia de saber em hábito parece expressar bem a avaliação do sociólogo da sua
própria trajetória intelectual. Credenciado com um diploma universitário em ciências
sociais, obtido na Faculdade Nacional de Filosofia, em 1942, Guerreiro Ramos parece
ter dado pouca ou nenhuma importância à educação formal recebida naquele
estabelecimento. É o que ele sugere em entrevista concedida a Lucia Lippi e Alzira
Abreu (1995), quando se refere aos professores de forma nada lisonjeira. Seu
treinamento intelectual parece ter vindo mesmo a partir das atividades que desenvolveu
no Departamento Nacional da Criança (DNC), para onde foi indicado em 1943 e onde
desenvolveu estudos sobre mortalidade infantil, puericultura e medicina popular. No
final desse mesmo ano, Guerreiro foi nomeado técnico de administração do
Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), onde, segundo ele:
“Analisava projetos de organização de departamentos, como o Departamento de
Agricultura, de penitenciárias, ia para as repartições e dava nova forma, pois eles
precisavam se reorganizar” (Oliveira, 1995, p. 146).
Durante a época no DASP, Guerreiro também escreveu vários artigos na seção
“Bibliografia” da Revista do Serviço Público, entre os anos 1946 e 1949. Por meio
desses artigos, podemos acompanhar como vai se dando a sua aproximação com os
pensadores clássicos e contemporâneos das ciências sociais, como Marx, Weber,
Durkheim, Karl Mannheim, Donald Pierson, entre outros. Nesses artigos, os quais
possuem um caráter mais de divulgação do pensamento dos autores, percebemos a
figura de um sociólogo que procura consolidar a sua formação por uma via quase
autodidata. É por essa época que Guerreiro escreve O Processo da Sociologia no Brasil,
que será publicado em 1953. Nesse livro, ele analisa criticamente a sociologia no Brasil
e desenvolve conceitos como de transplantação e autenticidade, que constituirão a base
da história crítica que realizará do pensamento social e político brasileiros, do Visconde
de Uruguai até os seus dias.
O saber que vai se desenvolvendo em hábito ganha maior impulso a partir de
1951, quando Guerreiro participa da equipe de assessores do governo Getúlio Vargas na
Casa Civil. Segundo suas próprias palavras, é nessa época que ele pode ver “o governo
73
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
27
O engajamento político na militância negra constitui um dos modos com que Guerreiro Ramos vai
desenvolvendo uma reflexão mais ampla sobre a sociedade brasileira. De acordo com Marcos Chor Maio
(1997), os primeiros escritos de Guerreiro sobre as questões raciais datam de 1946. Nas reflexões dessa
época, podemos perceber uma compreensão sociológica das relações raciais no Brasil, pois Guerreiro
identifica um preconceito de classe, o qual, segundo ele, é compreendido à luz de “nossa formação
histórica”. A partir de 1949, Guerreiro se engaja na militância do Teatro Experimental do Negro (TEN),
movimento cultural criado em 1948 por Abdias Nascimento. Nesse período, o “problema do negro” será
abordado considerando-se quatro aspectos: o preconceito de cor; as diferenças regionais; as de classe e a
divisão rural versus urbano (Maio, 1985, p. 275). Maio sugere uma relação entre a militância no TEN e a
influência de intelectuais das colônias africanas e antilhanas, empenhadas no movimento de
descolonização, no pensamento de Guerreiro Ramos. No capítulo 4 desta tese, destaco como as idéias de
diferenças regionais, de rural versus urbano ao lado das idéias dos intelectuais africanos foram
fundamentais tanto na compreensão que Guerreiro tem do Brasil como nação como o que ele entende
serem as atitudes política e cognitiva necessárias à autodeterminação nacional.
74
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
75
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
como, a partir de uma questão efetiva, Guerreiro foi elaborando uma concepção da
sociologia como saber engajado e comprometido com o que, mais adiante, poderemos
entender melhor serem as questões nacionais na sua concepção.
Aspectos Sociológicos da Puericultura foi escrito com finalidades didáticas
para médicos e estudantes que buscavam especialização em puericultura nos cursos do
DNC 28 . A intenção do texto, segundo Guerreiro, era a de aproximar os estudantes da
“nova mentalidade sociológica” e “chamar a atenção dos médicos para os problemas
importantes que estão sendo debatidos na esfera da sociologia” (Ramos, 1944, p. 9).
Nessas frases de abertura já se anunciam tanto uma nova sensibilidade no tratamento
de uma questão que até então vinha sendo focalizada de um ponto de vista
exclusivamente médico e higienista, como o caráter de novidade da sociologia no
âmbito de saberes mais longamente consolidados no Brasil, como a medicina, que
seria a principal matriz explicativa do caráter social das doenças. Na nota prévia ao
texto, Gastão de Figueiredo, diretor da Divisão de Cooperação Federal do DNC,
refere-se do seguinte modo ao trabalho:
28
Em sua análise sobre a política social voltada para a criança no primeiro governo Vargas, Cristina M.
Oliveira Fonseca (1993) afirma que a preocupação com a criança, com a mortalidade infantil, com o
menor abandonado e com a delinqüência juvenil estava associada à “idéia do ‘homem novo’ que daria
origem a uma nova nação”. Nesse sentido, escreve Fonseca: “Proteger a criança, defender seus direitos,
significava por extensão resguardar a própria nação” (Fonseca, 1993, pp. 101-2).
76
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
29
Conforme observa César Guimarães (2001), o pós-guerra ensejou um conjunto de “idéias-força” como:
desenvolvimento, descolonização, nacionalismo e, as sinônimas, planejamento, plano e programa. A idéia
de plano – ou planificação, tal como usado por Guerreiro – consagrava-se à medida que nela o caráter
ideológico dos caminhos que o desenvolvimento poderia seguir, capitalismo ou socialismo, esmaecia-se.
Articulado com a idéia de desenvolvimento, Guimarães acentua, “o ‘planejamento do desenvolvimento’
adquire notável implicação na economia política do pós-guerra, pois empresta substância econômica a um
fenômeno político” (Guimarães, 2001, p. 158). No texto de Guerreiro de 1946, o significado do termo
planificação não me parece estar, ainda, associado à idéia de desenvolvimento econômico, mas de
democracia. Uma compreensão econômica da planificação será, a meu ver, resultado de um processo de
estudo e reflexão da sociedade brasileira para o qual as suas atividades no DASP e no DNC contribuíram
muito. Incluídos nesse processo, pode-se identificar ainda os estudos do pensamento social brasileiro e as
atividades no TEN, onde, conforme observei em nota anterior, Guerreiro teria entrado em contato com as
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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
idéias dos nacionalistas africanos. De todas essas atividades, teria resultado uma articulação das “idéias-
força” do pós-guerra no pensamento de Guerreiro Ramos em sua fase isebiana.
30
Uma das críticas que Guerreiro irá fazer às ciências sociais acadêmicas a partir de A Cartilha do
Aprendiz de Sociólogo até A Redução Sociológica se refere ao que ele considera ser uma compreensão
não dinâmica da realidade brasileira. Isso se deveria à importação de teorias sociológicas americanas,
especialmente do “funcionalismo”. Percebo uma relação entre a crítica de Guerreiro Ramos e a que faz
Norbert Elias ao que considera ser uma crise das ciências sociais. Na introdução à edição de 1968 de O
Processo Civilizador (1990), o autor sugere uma crise por que estariam passando as teorias sociais
baseadas na idéia de processo. A crise se revelaria no contexto de afirmação das teorias funcionalistas, em
especial a de Parsons. Segundo o autor, verificar-se-ia uma época em que as teorias sociológicas que
78
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
analogia com os fenômenos naturais e biológicos tem a ver com uma preocupação
quanto ao fundamento científico da própria sociologia. Conforme vimos na citação
sobre as desconfianças em relação à planificação, Guerreiro ressalta o seu caráter
neutro, nem bom nem mal, ou seja, passível de uma inferência não valorativa. O
processo social seria, então, ele mesmo uma lei histórica e social irrefutável, e que
poderia ser tomado como uma constante na análise de qualquer fenômeno social em
determinadas épocas.
Desse modo, Guerreiro pretende demonstrar que a planificação é a resultante de
um longo processo histórico. Em um texto de 1946, “Notas sobre Planificação Social”,
o autor explica esse processo recorrendo a Mannheim e, além deste, aos clássicos como
Comte, Durkheim, Hegel, Marx e Weber, os quais teriam contribuído para a
compreensão da planificação como uma “etapa da evolução social”. Baseado nesses
autores, Guerreiro compreende que a “civilização ocidental” teria passado por quatro
estágios ou fases, que descrevo repetindo suas palavras: a) a fase da solidariedade da
horda; b) a fase da solidariedade estamental; c) a fase da competição individual; e d) a
fase da solidariedade superindividual, ou da planificação. Não vou me deter em cada
uma delas, bastando assinalar que esse esquema marca um compasso em que a
sociedade evolui em uma direção na qual a diferenciação social vai ficando cada vez
mais acentuada e, com isso, acarretando problemas de desorganização social em vista
do enfraquecimento da comunidade sobre os indivíduos. Nota-se aí a influência de
Durkheim sobre Guerreiro, cujo pensamento é objeto de um artigo na Revista do
Serviço Público, no número de outubro e novembro de 1946. 31
Guerreiro deriva desse processo de diferenciação social as possibilidades
mesmas de que a planificação pudesse vir a ser um instrumento de democratização sem
estar em contradição com a dinâmica interna desse processo. Para isso, ele ressalta o
“princípio da competição”. Tal princípio, além de expressar a liberação dos indivíduos
de pertencimentos sociais fixos, como família, estamentos e condições derivadas do
nascimento, colocaria em evidência o fato de que “a ordem social, à luz do novo
procuravam “modelos de desenvolvimento social a longo prazo” estavam sendo substituídas por outras,
que “se interessam principalmente por modelos de sociedades em estado de repouso e imutabilidade”
(Elias, 1990, p. 224).
31
Todos os artigos de 1946 foram orientados pela idéia de planificação.
79
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
princípio (a competição), não é algo estabelecido de uma vez por todas, mas uma ordem
precária que pode ser incessantemente modificada” (Ramos, 1946, p. 164).
Essa forma de ver a sociedade como uma “ordem precária” e em modificação
induzida ou espontânea vai orientar a maneira como Guerreiro vai tratar tanto do
problema da mortalidade infantil e da delinqüência como da possibilidade da
planificação como instrumento de democracia. No que diz respeito ao primeiro assunto,
o princípio da competição será corroborado pela idéia de interação social, com o que
Guerreiro reelabora uma maneira de pensar aqueles problemas fundada em
determinações biológicas ou hereditárias, e as focaliza em termos de circunstâncias
sociais de convívio. Abordarei esse ponto mais adiante. Por ora, vou continuar no tema
da planificação.
A idéia de uma “ordem precária” não apenas possibilita a planificação, como a
exige. Com base nas análises de Durkheim, Guerreiro chega à idéia da planificação
como uma exigência do seu tempo; com Weber, ele chega a ela como algo que foi
engendrado pelo processo histórico. Neste caso, ele se vale do conceito de
racionalização, colocando-o em interação com a idéia de competição, o que produz um
resultado interessante. Vejamos como ele articula esses dois conceitos em uma longa
passagem:
80
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
Se, por um lado, o princípio da competição pode ser visto como algo positivo e
negativo, simultaneamente, naquilo em que ele indica, ou seja, tanto a liberação dos
homens quanto a desorganização social, respectivamente, por outro, a racionalização
também pode ser vista de dois ângulos. Em primeiro lugar, o seu aspecto negativo
devido ao fato de ela eliminar a própria competição, ensejando os monopólios e o
controle das mentes; e, em segundo, ela pode servir de instrumento benéfico em
proveito da própria competição e, portanto, das condições da sociedade democrática.
Em suma, a planificação seria um dado histórico, um problema e uma solução. Além
dessas três características, ela seria também um instrumento cognitivo, uma vez que
inerente ao processo de sua construção conceitual estaria a apreensão da sociedade em
termos de estrutura, de um complexo em que todas as suas partes estão relacionadas.
Ao que parece, a idéia de planificação é congênita à maneira de Guerreiro pensar
a sociologia como um saber de intervenção na realidade. Dessa forma de pensar é
inseparável o lugar de onde o seu pensamento é elaborado, ou seja, do Estado ou de uma
de suas agências destinadas à formulação de políticas públicas, o DNC. Isso não quer
dizer que, à maneira como os críticos costumam encaminhar a análise sobre os
condicionamentos sociais do pensamento, o conteúdo das idéias deva ser visto como
determinado unilateralmente por esse lugar de onde se fala. No caso de Guerreiro e o
DNC, defrontamo-nos com uma situação em que pensamento e contexto são
reciprocamente influenciados. As idéias de processo e de dinâmica, tão caras a
Guerreiro, podem ser flagradas no acompanhamento da elaboração de seu próprio
pensamento. Nesse processo, observamos: a dinâmica no interior de uma determinada
instituição, o Estado, em virtude mesmo da sua capacidade de incorporar novos saberes
ou novas racionalidades; a dinâmica intelectual de Guerreiro, que é impulsionada para
uma determinada direção em virtude mesmo da lógica que anima o Estado naquele
momento; a dinâmica dos conceitos e do patrimônio intelectual, na medida em que, por
81
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
meio da recepção e da leitura que Guerreiro faz deles, estes vão migrando para outros
contextos, para diferentes situações, fertilizando e sendo fertilizados por essa troca.
Se nesse período, desde o término do curso de ciências sociais até os anos 1950
– quando vamos encontrar Guerreiro Ramos participando de congressos de sociologia –,
ele não dispôs de um espaço objetivo onde pudesse contribuir diretamente para a
institucionalização acadêmica das ciências sociais no Brasil: a universidade; e se não
pôde desenvolver-se como sociólogo no convívio da “comunidade mertoniana”,
podemos afirmar que é no DNC que o sociólogo encontra lugar tanto para a firmação da
perspectiva sociológica quanto de sua formação pessoal. Ao lermos os artigos sobre
puericultura e aqueles publicados na Revista do Serviço Público, deparamo-nos com um
autor que, ao mesmo tempo que utiliza uma farta bibliografia para corroborar a
abordagem sociológica de questões específicas, também parece estar em processo de
aprendizagem. É um autor que parece estar aplicando imediatamente o que acabou de
ler. Considero digno de nota o uso de manuais de sociologia no texto de 1944, por meio
dos quais Guerreiro entra em contato com autores e conceitos clássicos da sociologia,
como tipos ideais e fatos sociais. 32 O contato direto com obras de Durkheim e Weber só
ocorre por volta de 1946, ano em que publica uma resenha sobre cada um dos autores.
Ao lermos esses artigos, temos a impressão de um homem solitário, esgrimando
sozinho em um contexto não apenas institucional, mas também discursivo, pouco
permeável tanto a um sociólogo quanto à sociologia. É o que ele sugere em A
Mortalidade Infantil no Brasil, ao propor uma abordagem histórica e circunstanciada da
mortalidade infantil, em vez de uma perspectiva exclusivamente médica. Nesse
trabalho, Guerreiro chama a atenção para o viés racial presente nessa forma de
enquadrar o problema, conforme se lê na citação a seguir:
32
Os manuais citados são: Reuter and Hart – Introduction to sociology e Wiese and becker – sytematic
sociology.
82
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
33
Guerreiro destaca positivamente os médicos puericultores da recente geração: Dr. Olinto de Oliveira e o
Dr. Pedro de Alcântara.
83
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
34
No Capítulo 5, identifico uma relação entre o enfoque ecológico da sociologia americana e o
regionalismo, ambos, para mim centrais ao modo como Guerreiro vai elaborar uma compreensão
geográfica da nação.
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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
Guerreiro vai trabalhar com as idéias de povos naturais e históricos de Hegel. O papel
dessas teorias filosóficas no pensamento de Guerreiro será analisado no quarto e quinto
capítulos. No que se segue, dou prosseguimento à análise desse período da formação do
habitus, focalizando agora o modo como o autor vai se aproximando de uma
compreensão mais econômica dos problemas sociais brasileiros.
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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
sobretudo o das agências, revelam um grande interesse em definir de modo não abstrato
o que é a pobreza, o que remete à estrutura econômica, uma vez que os métodos
utilizados inquirem sobre as condições de vida das “massas”.
Com base nesses estudos, em artigo de outubro de 1949, “As classes Sociais e a
Saúde das Massas” em que transparece um tom conclusivo, Guerreiro estabelece a
relação entre mortalidade infantil, classe social, cultura e estrutura econômica. Nas
palavras seguintes, podemos observar como o autor parece fechar uma parte da sua
formação, a qual já conteria todos os aspectos que doravante vão orientar os escritos nos
anos 1950. Vejamos:
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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
nos anos 1950, não encontro nenhuma abordagem do mundo social que o enquadre de
acordo com a perspectiva marxista de classe, a não ser de forma mais doutrinária do que
pragmática. Na sociologia realizada em São Paulo, comunidade constitui a categoria
básica de conhecimento do universo popular. Em Guerreiro Ramos, bem como em
outros escritos isebianos, a categoria com que eles procuram compreender o mundo
social de um ponto de vista micro é a de classe, mas dentro do modelo tricotômico. Com
base no acompanhamento que fazemos aqui do desenvolvimento da perspectiva
sociológica no pensamento de Guerreiro Ramos, podemos notar que a exigência que se
faz em relação à ausência do conceito de classe marxista é anacrônica. Anacronismo
que tem por conseqüência desconsiderar as leituras, modos e objetos de pensar
disponíveis naquele contexto.
Como podemos observar, entre a sociologia de Guerreiro e a defesa que ele fará
da política nacional desenvolvimentista há um crescendo que pode ser acompanhado
pela dinâmica do seu pensamento. Uma compreensão mais econômica de um problema,
inicialmente entendido como ecológico e cultural, é alcançada. Dessa compreensão, o
autor chega a uma perspectiva de classe e, a partir dela, à de estrutura social, que é
basicamente informada pela compreensão da estrutura econômica. Esta vista como
subdesenvolvida, o que se evidenciaria pelo baixo nível de renda per capta no país.
O alcance a que o pensamento de Guerreiro chega de uma percepção econômica
dos problemas estruturais do país deve ser compreendido em um cenário em que a
economia como saber acadêmico também vai se firmando. Segundo Bielschowsky, é só
a partir de 1960 que o ensino da economia como saber científico se organiza. Antes
“não apenas eram poucos e de má qualidade os cursos de economia no Brasil, como
pareciam, também, estar desprovidos de orientação teórica definida” (Bielschowsky,
2000, p. 7).
No entanto, é ao período que se inicia em 1930 que o autor remonta o
surgimento de uma percepção mais específica do campo econômico e sua relação com
uma teoria da sociedade brasileira. Independentemente dos matizes ideológicos e
teóricos que vão orientar as preocupações econômicas, um pensamento econômico
brasileiro se delineia junto às mudanças das instituições políticas desencadeadas pela
crise da década de 1930. Segundo o autor, “a centralização de poder comandada por
Vargas gerou um conjunto de agências planejadoras, como o Departamento
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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
cinco membros, a parte que caberia a cada uma delas não seria suficiente para a
subsistência física (p. 11). Outro fator agravante da estrutura econômica seria a
desigualdade regional. Segundo os dados que utiliza, só o Estado de São Paulo e o
Distrito Federal responderiam por 65% da renda nacional, cabendo o restante aos
demais Estados.
Guerreiro revela um pessimismo em relação à possibilidade de superação de
níveis tão altos de desigualdade econômica. Na justificativa desse pessimismo, podemos
visualizar uma sugestão do capitalismo brasileiro induzido. Ele observa que, no Brasil,
“as profundas desigualdades de poder aquisitivo não parecem passageiras”, devido à
incipiência do capitalismo brasileiro. Nas suas palavras, seríamos
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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
visto que seria “uma espécie de mecanismo regulador por meio do qual a população
equilibra seus recursos com as suas necessidades” (Ramos, 1951a, p. 23).
A conclusão sobre a normalidade da mortalidade é um desalento. Na verdade, a
imagem que Guerreiro tem da situação global do Brasil é de que ela tenderia para pior.
Cada um dos fatores se reforçariam: a distância cultural interna, a mentalidade popular
(que no caso da mortalidade infantil a justificava como sendo a vontade de Deus) –
incapaz de pressionar por padrões de vida mais elevados –, a estrutura econômica cada
vez mais encolhida e políticas sociais dispendiosas e ineficazes.
As avaliações negativas que Guerreiro Ramos faz das medidas administrativas e
da adoção de práticas que foram eficientes em outros lugares participam do rol das
críticas mais amplas que Guerreiro faz às transplantações. Essas críticas, que vão a
partir de 1953 orientar os estudos críticos do pensamento social e político brasileiro, em
que denuncia o distanciamento entre esse pensamento e a realidade brasileira, aparece
em Problema da Mortalidade Infantil como uma crítica à administração pública. Aliás,
é dessa forma que ele inicia o texto. Ele assinala que o problema originário da
administração pública no Brasil, isto é, da sua ineficiência, é que ela teria precedido à
sociedade. Isso fez com que fosse congênito à formação política brasileira “o vício de
adotar para os seus problemas soluções prontas”. Em A Cartilha é reiterada essa
observação e ampliada para o contexto latino-americano:
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Esse distanciamento impediria que, nos dias em que Guerreiro Ramos escrevia,
se compreendessem os problemas estruturais que afetavam a vida dos brasileiros. Além
disso, impediria a percepção de que, a despeito da ausência de coordenação e
planejamento, um capitalismo brasileiro e uma cultura popular estavam se
desenvolvendo. Porém, esse desenvolvimento teria de ser “acelerado”. Por isso,
Guerreiro compreende que as transplantações em si não são más. As transplantações
literais teriam um efeito predatório visto que reproduziriam relações de dominação entre
países. Alternativa às transplantações literais e predatórias seriam as “acelerativas”,
pois, visando à aceleração do desenvolvimento interno, “são obrigadas a adotar medidas
observadas em países plenamente desenvolvidos” (Ramos, 1956, p. 88). Dentre as
transplantações acelerativas são destacadas “as máquinas, os processos fabris de alto
rendimento, certas formas especializadas de instrução e educação”.
A crítica às transplantações e ao pensamento social e político brasileiro requer
análise mais detalhada. A exposição desses estudos críticos precisa estar situada no
contexto da compreensão mais ampla de Guerreiro da formação histórica da sociedade
brasileira e da sua configuração nos anos 1950. No próximo capítulo, inicio a análise
dos textos escritos a partir de 1953 e, mais precisamente, aqueles da fase isebiana,
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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”
encerrada em 1958. O ponto central será apresentar o nacionalismo não apenas como
uma tática política, mas como uma teoria da sociedade brasileira, teoria essa que
constituiu, também, uma das narrativas históricas sobre essa sociedade naquela época.
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Capítulo 4
Nacionalismo e ideologia
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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
parece injusto apontar equívocos teóricos por meio do diagnóstico baseados em fatos
supostamente mais observáveis. Em um balanço das elites intelectuais que se formam
em torno do projeto universitário que conduz à institucionalização das ciências sociais,
podemos dizer que se trata não apenas do erguimento de edifícios, organização de
departamentos e definição de métodos de pesquisas e objetos, mas também de uma
ressemantização da própria experiência social como condição para um arcabouço
conceitual renovado. Muitos dos conceitos parecem mais eficazes na prefiguração de
um futuro desejado do que na explicação ou compreensão da própria época.
De certa forma, as narrativas sobre o Brasil nos anos 1950 tendem a apontar o
que deveria ser superado nas formas de pensar e agir então vigentes. Florestan
Fernandes vai desde as formas folclóricas da mentalidade popular, do estilo ensaístico
da produção intelectual, à maneira como as elites políticas se comportam em face do
poder estatal, indicando-os como entraves mentais do moderno. Guerreiro Ramos, por
sua vez, tem como objeto preferencial as maneiras de pensar e de se pensar das elites,
fossem elas econômicas, intelectuais ou políticas (as quais se caracterizariam por uma
relação de estranhamento com o outro interno), considerando estas maneiras de pensar
os empecilhos a ser superados.
Arriscando-me a uma interpretação pessoal dessa época, diria que o que está em
mira e (por que não?) em processo é uma revolução do pensar, a qual se impõe como
urgente em virtude de uma constelação histórica mundial em mudança acelerada, e da
qual o país estaria em condições objetivas de participar, até certo ponto. Esse “até certo
ponto” a que me refiro é aquele relativo à reconfiguração da ordem econômica mundial,
a qual, até a década de 1930, apoiava-se na certeza da vocação natural de cada país
como o fator que legitimaria e autorizaria uma forma específica de ingresso na divisão
internacional do trabalho.
Se uma alteração no modo de pensar tal ingresso foi estimulada por fatores mais
externos do que internos, provocando mudanças tanto no pensamento econômico
brasileiro como nas políticas econômicas efetivas, o mesmo não se poderia esperar do
que diz respeito a um impacto mais contundente nas maneiras de pensar tradicionais das
elites mais bem favorecidas econômica e culturalmente, bem como da camada popular.
Só para mencionar um aspecto da mentalidade referido ao consumo, Celso Furtado
(2000) escreve que uma das conclusões a que chegou na sua teoria do
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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
a sociedade como “fato social total”, isto é, uma realidade econômica, cultural, jurídica,
política, estética, etc.
Como pretendo demonstrar, no pensamento de Guerreiro Ramos, ideologia
política e ciência social se confundem, embora não seja impossível detectar o limiar
entre os dois projetos: o ideológico e o científico. Para que alcancemos uma melhor
compreensão do nacionalismo isebiano, é preciso que descartemos como falso
problema, na medida em que o conflito entre ciência e ideologia não é um problema
para os nacionalistas. Novamente, enfatizo que o problema para a crítica era a fusão
entre esses dois aspectos. A compreensão da imbricação entre ideologia e ciência e da
identificação nítida de cada uma das duas no nacionalismo de Guerreiro Ramos depende
da capacidade ou boa vontade de entendermos como a junção e separação das duas
estão implicadas na concepção que tem o autor da configuração histórica da sociedade
brasileira nos anos em que formula a teoria e ideologia nacionalista, isto é, a partir de
1955. A ideologia decorre da teoria.
Assim, penso que o nacionalismo deve ser compreendido como um fenômeno
mais amplo, conforme escrevi, não apenas como um episódio de uma variável histórica
particular, no caso, a história política. Sem dúvida, como observa Weffort, o
nacionalismo pretendeu-se um momento superior ao populismo, como o da política
ideológica. Encontramos essa reflexão em Guerreiro Ramos (1961), quando este
apresenta uma sucessão de “tipos políticos” que iria desde o que ele chama política de
clã, passando pela modalidade oligárquica, pela populista, pela dos grupos de interesse,
até a ideológica, nos seus dias. No entanto, o que talvez não seja relevante para a análise
de Weffort é o intuito mais descritivo na identificação desses vários e diferentes
momentos da evolução política brasileira, e que tem como objetivo procurar,
simultaneamente, tanto assinalar proximidades, como fato histórico, entre o populismo e
o nacionalismo, como diferenças sutis entre eles. Essas diferenças estariam menos nas
performances das políticas populistas e nacionalistas do que na infra-estrutura social
que molda a psicologia do eleitorado.
De fato, o nacionalismo foi uma tática política malograda. Mas, como não se
tratou apenas de uma tática política, podemos considerá-lo como uma narrativa sobre a
vida política no Brasil dos anos 1950, na qual se supõe encontrar ingredientes capazes
de apontar para um devir possível. Esse caráter de narrativa científica é, sem dúvida, o
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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
que recrudesce a crítica contra o ISEB. Não apenas o fato de terem seus formuladores
expressado uma razão de Estado, mas também o fato de terem pretendido uma razão
científica. Ao fazerem isso, teriam ideologizado a própria ciência e, portanto,
introduzido a irracionalidade do mundo lá onde ela jamais poderia penetrar. Por isso
mesmo, as críticas terão de “expulsá-la” do campo de onde é possível um discurso sobre
a política, devolvendo-lhe ao mundo da política efetiva e de suas vocalizações. Daí que
o nacionalismo político desaparece diluído naquela que seria a única forma
manifestamente moderna de política até 1964, isto é, aquela em que seria possível
detectar uma percepção pública na ação política das lideranças: o populismo. Talvez um
compromisso demasiado forte com os fatos seja exatamente o que impede uma melhor
compreensão do que foi o nacionalismo naquilo em que todos os seus formuladores do
ISEB parecem ter sido unânimes, ou seja, do nacionalismo como um projeto, ancorado
em uma teoria da sociedade brasileira.
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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
Para essa tarefa, vou iniciar a análise pelo livro A Crise do Poder no Brasil
(1961). Há duas análises nesse livro que abrem uma via para uma compreensão mais
interna do pensamento do autor a respeito da sua teorização da sociedade brasileira na
movimentada década de 1950. Trata-se da tipologia das práticas políticas vigentes no
país e do seu diagnóstico do que seria uma crise de poder em vista do resultado da
eleição presidencial em 1960.
A tipologia apresentada permite, de início, chamar a atenção para o modo como
o nacionalismo é apresentado por Guerreiro Ramos como uma “exigência”, o que me
parece significar um apelo dirigido às lideranças partidárias para que elas ajustem seus
programas a uma realidade política nova. Essa novidade seria atestada pelo populismo.
Vejamos como ele apresenta a tipologia:
Há muitos elementos que podem ser explorados nessa citação; por isso, em
outros momentos deste texto me reportarei a ela. No momento, quero apenas destacar a
sucessão histórica das formas políticas e, com outra citação que se faz necessária, como
Guerreiro analisa o populismo em relação às formas historicamente inferiores e em
relação a outras que lhe sucederiam. Sobre o populismo, ele escreve:
105
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
106
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
35
Em “O Controle Ideológico da Programação Econômica”, escrito em 1958 e publicado em O Problema
Nacional do Brasil (1960), Guerreiro reclama representatividade dos partidos políticos, o que seria
indispensável ao processo de desenvolvimento econômico, visto terem se tornado “eminentemente
políticas as soluções dos problemas econômicos nacionais”. Ele explica o que seria “a plena
representatividade” do aparelho partidário: “Ela se concretizaria quando nossas instituições político-
partidárias funcionassem de tal maneira que permitissem à comunidade tornar-se verdadeiro sujeito do
acontecer histórico-social” (p. 217). A plena representatividade era urgente em um contexto em que “As
cúpulas da atual organização partidária (...) controlam discricionariamente, segundo os seus restritos
interesses, o lançamento dos candidatos às funções públicas. Quer-se dizer: elas pretendem fazer os
representantes que desejam e nem sempre aqueles legitimamente formados pela revelação pública de suas
capacidades” (pp. 217-8). Outro fator que contribuiria para a política de cúpula seria “o modo como se
processam as eleições que pelo seu caráter oneroso, em termos monetários, não favorece a candidatura a
postos legislativos de pessoas de recursos modestos, beneficiando mais aqueles que dispõem de meios
materiais, embora muitas vezes destituídos de autenticidade, ou de escassa idoneidade ideológica” (p.
218).
107
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
de Guerreiro, mas como um fenômeno intelectual e político coerente com o modo como
a época era interpretada pelo autor.
As categorias “país com povo” e “país sem povo” são centrais no diagnóstico do
que seria a crise do poder. É por meio delas que o autor procura identificar o caráter
estrutural do drama político, captando a coexistência tensa entre dois tipos sociais, cujo
antagonismo ter-se-ia revelado no limite no contexto das eleições, e do seu desfecho,
para a Presidência da República em outubro de 1960. A sinalização imediata da crise
estrutural mais funda é oferecida pelos partidos políticos. A análise dos partidos é
instrumental tanto para localizar o problema político específico quanto para aprofundar
a compreensão da natureza estrutural da crise política. No processo eleitoral que leva à
vitória de Jânio Quadros, o problema dos partidos se manifesta. Na análise da relação
entre os candidatos e seus vices com os partidos com os quais concorreram, detecta-se a
fragilidade das agremiações. Eis como o problema é exposto.
108
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
atitudes políticas distintas por parte das elites políticas, é detectada na tipologia, já
citada, com a qual se identifica a forma política dominante em diferentes épocas.
Baseado no conceito de solidariedade mecânica de Dukheim, Guerreiro sugere
dois tipos sociais fundamentais que dariam apoio às diferentes modalidades políticas
(Ramos, 1961, p. 60). As formas clânicas e oligárquicas teriam suporte em um modelo
social formado por semelhanças, enquanto a divisão do trabalho ensejaria as
modalidades em que o povo se faria notar. A época em que o populismo era a forma
dominante atestaria um momento transitivo para aquela em que o eleitorado se
conduziria de forma mais autônoma. A caracterização dos dois tipos sociais e as atitudes
políticas correspondentes são também amparadas pelas observações de Gilberto Amado,
após a revolução de 1930, sobre a psicologia popular, e pela variação nos números das
eleições na história eleitoral brasileira. Segundo Gilberto Amado, “a extrema
uniformidade de opiniões políticas corresponde à extrema uniformidade de opiniões das
elites dirigentes” (Ramos, 1961, p. 60). Os números das eleições durante a República
Velha informavam que a maioria dos presidentes fora eleita com mais de 90% dos
votos, com escassas exceções, que assinalavam “momentos de agudas crises na
sociedade brasileira”, em que os eleitores demonstravam resistência às pressões. A
partir de 1945, Guerreiro identifica nos percentuais menores de voto dos presidentes
eleitos o que chama de “gritante progresso subjetivo das massas” (idem, pp. 63-4).
Em A Redução Sociológica (1965), o que é esse progresso subjetivo das massas
é explicado nos termos da configuração de uma estrutura social que habilitaria a
capacidade projetiva dos indivíduos, à qual estaria associada um potencial conflitivo.
Trata-se do que o autor denomina a “consciência crítica” no nível da vida ordinária. São
três os fatores da consciência crítica no Brasil: a industrialização, a urbanização e a
alteração do consumo popular.
É peculiar o modo como a industrialização é abordada. Embora seja uma
exigência da época, e dada a sua “envergadura”, que “contribui para caracterizar como
nova a atual etapa de nossa evolução histórico-social”, a industrialização é fato antigo.
Ela fora estimulada pelo setor exportador, o qual possibilitou a prática de pagamentos e,
conseqüentemente, “um movimento interno de transações econômicas de que se
beneficiava significativa parcela da camada popular” (Ramos, 1965, p. 67). A produção
mercantil interna continua em um crescendo, e se incrementa a partir de 1850. Ele
110
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
observa que, exceto nas décadas iniciais do século XVI, a importação jamais fora a
principal fonte de satisfação de necessidades internas, servindo como suplemento da
produção interna. Uma conseqüência importante dessas transações econômicas foi o
impacto desintegrador sobre as unidades domésticas, o que sugere o aparecimento de
uma vida urbana.
Com essa análise da evolução econômica, Guerreiro quer salientar o “dinamismo
interno” da economia e da vida comunitária brasileira, o qual teria como aliado um
“fator externo”: a exportação. Nessa análise, já está em aplicação o método redutor
defendido em A Redução Sociológica. O objetivo é apreender a história nacional,
desembaraçada de elementos externos que para ela contribuíram. Outro objetivo é
apreender o que, em outro capítulo da Redução Sociológica, o autor denomina a “linha
diretriz”, 36 ou seja, a continuidade histórica manifesta em um vetor que aponta para o
futuro do embrião da nação. Outro aspecto, parece-me, é mostrar como uma disposição
para o consumo era fator endógeno, de maneira que a industrialização, na época em que
o autor escreve, se apresentava como um fato a exigir tratamento político e
organizacional e a promover a capacidade projetiva nos empresários, nos políticos e
consumidores em relação ao futuro nacional.
A urbanização, conseqüência da industrialização, assinalava a incorporação de
mais brasileiros a um “círculo de intensas (e tensas) relações”, especialmente
econômicas. Seus efeitos psicológicos incidiam sobre a capacidade de cálculo,
estimulada pela dependência cada vez maior da compra dos bens necessários à vida, na
medida em que os indivíduos saíam da esfera da produção para o autoconsumo,
tornando-se “essencialmente compradores”. As relações que a urbanização produz
“estimulam o individualismo, a competição, a capacidade de iniciativa, o interesse pelos
padrões superiores de existência” (Ramos, 1965, p. 74). Outro fator agregado à
industrialização e à urbanização podia ser verificado na diversificação da pauta do
consumo popular. A “simplicidade” do consumo, antes restrito a bens vegetativos
(alimentação, casa e roupa), passava a conviver com consumos mais sofisticados.
Seriam essas as condições que, no Brasil, estariam permitindo a generalização da
consciência política. Segundo Guerreiro, a sociedade que a urbanização forma é a que
tem “maior conteúdo político que a de rurícolas”, acrescentando: “Não é por acaso que
36
No quinto capítulo analiso como o autor trabalha com essa idéia de “linha diretriz”.
111
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
a consciência política se vem incrementando nos últimos anos. Está se formando entre
nós a categoria de verdadeiro povo, graças àquela incorporação. Não tem precedentes o
grau de politização que revelam as massas atuais do Brasil” (Ramos, 1965, p. 73).
Dessas considerações sobre os efeitos sociológicos dos três fatores, salientam-se
dois aspectos importantes. Primeiro, a análise da transformação estrutural baseada nas
categorias rural e urbano. Deduzo essas categorias do fato de Guerreiro referir-se ao
agrupamento social com menor conteúdo político como “rurícola”. Segundo, como tais
categorias informam sobre a experiência de tempo que estaria modificando
qualitativamente a psicologia do eleitorado.
Os quadros de referência histórica são rural e urbano, categorias espaciais
condicionantes de experiências distintas do tempo. No plano rural, os povos vivem em
uma condição “natural”, em que a relação com a natureza é imediata. Aí o tempo é
lento, uma vez que regulado pelo ritmo da natureza e não por pressões que só a
competição e o desejo por padrões mais elevados de vida podem promover. O rurícola,
escreve,
112
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
Do exposto até aqui, quero destacar o modo como as categorias rural e urbano
informam uma compreensão da estrutura social brasileira nos anos 1950. Até aqui, a
teoria de Guerreiro em nada difere daquela apresentada por Florestan Fernandes, da
qual tratei no Capítulo 2. Ambos trabalham com as mesmas categorias para indicar o
sentido da modernização, a qual se estriba nas condições da ordem urbano-industrial.
Contudo, há mais um elemento na compreensão de Guerreiro que, se explorado,
modificará sensivelmente o significado das duas categorias, rural e urbano,
relativamente ao significado que, em particular, a segunda tem no pensamento de
Florestan Fernandes. Trata-se da idéia de diversidade regional. Para esclarecer melhor
essa diferença, retomo a conclusão a que cheguei sobre a relação entre a ordem urbano-
industrial e o conceito de sociedade em Florestan Fernandes.
Tal como já observei, há um momento em que a análise de Florestan sobre a
estrutura social brasileira prescinde da dicotomia rural e urbano, tomando a última como
referência para uma compreensão mais totalizante da sociedade brasileira. É com
referência à cidade como lugar da indústria e do tipo de trabalho vinculado a ela que a
totalidade social brasileira é pensada. À medida que a cidade passa a significar a própria
sociedade, ela passa a absorver, como sobrevivência histórica, o que antes era
113
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
37
Cf. citação no Capítulo 2, p. 66.
38
O modo como Guerreiro Ramos alcança uma compreensão mais econômica dos fenômenos culturais já
foi destacado no Capítulo 3, e ainda será retomado no próximo capítulo, em que analisarei como o autor
vai migrando de uma compreensão da mentalidade popular para uma percepção econômica. Além de A
Cartilha, a análise das desigualdades regionais pode ser encontrada em “Estrutura Atual e Perspectivas da
Sociedade Brasileira (2a parte)”, publicado em O Problema Nacional do Brasil (1960). Nesse texto, o
autor reclama como urgente o estudo das disparidades econômicas entre as regiões, acentuando o que
seria a “descapitalização dos Estados do Norte”, ou “a expoliação das populações setentrionais pelo Sul”.
39
É dessa categoria urbano-industrial que Florestan deduz os dois tipos de mentalidade, racional e
irracional, este último associado a idéia de folclore. Ao usar o termo folclore, estou designando uma
compreensão do problema do atraso brasileiro em Florestan em termos mentais ou psicoculturais. No
Capítulo 2 apresentei em uma citação como, sob essa rubrica, estão sendo designadas tradições populares,
e o que o autor denomina pensamento mágico, apresentado como formas irracionais de pensamento.
Parece-me que esta é, também, a forma de enquadramento do problema da incorporação do negro na
sociedade de classes no estudo desse autor. Jessé de Souza (2003), em sua análise de Integração do Negro
na Sociedade de Classes, chama a atenção para a importância que Florestan dá à organização psicossocial
do negro, que, em virtude da sua situação de ex-escravo, o impediria de ingressar na ordem capitalista. Da
mesma forma, Maria Arminda (1995) chama a atenção para o que nesse estudo de Florestan é
interpretado como “um descompasso entre a ordem social (mais sincronizada com as alterações da
estrutura econômica) e a ordem racial (de ajustamento mais lento às mudanças). Por essa razão, a ordem
racial permaneceu atrasada, ‘como um resíduo do antigo regime, e só poderá ser eliminada, no futuro,
pelos efeitos indiretos da normalização progressiva do estilo democrático de vida e da ordem social
correspondente” (Arruda, 1995, p. 151).
114
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
Esse trecho nos permite identificar algo mais que uma perspectiva evolucionista
na mudança de comportamento político. Notemos que, ao esclarecer sobre o caráter
típico ideal das modalidades políticas, Guerreiro chama a atenção para a vigência de
todas elas e, conforme a explicação baseada em Durkheim, como apontei antes, ele as
reduz a dois modos de apreensão básicos. No conjunto, os tipos políticos são
apresentados como sucessão histórica – formas passadas e atuais; ao mesmo tempo, são
todos formas políticas do presente – todas as formas são registradas atualmente –, e
podem ser reduzidos a uma dualidade: rural e urbano. 40
Entendo o modo de pensar de Guerreiro como tridimensional. É um modo de
pensar histórico, antropológico e sociológico, equivalente ao que Wrigth Mills (apud
Giddens, 1984) chama de imaginação sociológica. As três dimensões – continuidade
temporal; diversidade, que, por sua vez, encerra temporalidades diversas; e
configuração no presente: rural e urbano – são todos aspectos de um mesmo fenômeno,
40
A relação entre dualidade, multiplicidade ou diversidade regional e o modo como nos integramos na
economia mundial são detalhadas por Guerreiro em “A Problemática da Realidade Brasileira”, texto
originalmente apresentado em conferência no ISEB em 1955, e publicado em O Problema Nacional do
Brasil (1960).
115
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
o qual deve ser apreendido como “totalidade”. A história política é parte da totalidade, e
como parte contém as informações genéticas, à maneira de um DNA, da totalidade
inteira. Por isso, podemos abrir caminho através da história política e tentar encontrar,
por meio dela, o conceito suficientemente abrangente e abstrato que permitirá a
Guerreiro Ramos pensar a sociedade brasileira em termos das três dimensões: histórica,
múltipla e dual.
Das três, a compreensão da dimensão histórica é dependente do entendimento
das outras duas. Podemos dizer que da dualidade rural e urbano, característica mais
evidente da configuração social da época, chega-se a uma compreensão da diversidade
regional, e desta a uma compreensão da especificidade histórica brasileira. Em vários
textos, Guerreiro identifica a diversidade regional como a presença no Brasil da
“contemporaneidade do não coetâneo”, o que significa dizer a coexistência de várias
fases por que passara a civilização. Ignácio Rangel refere-se a esse fato, que no seu
pensamento o conduz ao que considera ser a lei básica da economia brasileira, da
seguinte forma: “que o Brasil é um país no qual se pode estudar a história universal
simplesmente viajando do litoral para o interior. Trata-se de que, no Brasil, as várias
etapas por que a civilização passara podiam ser encontradas”. 41 Conforme a exposição
desse fato por Rangel, podemos perceber nas categorias litoral e sertão o modo como se
adentra no problema da desintegração e isolamento entre as regiões do país. É por meio
dessas categorias formuladas por Euclides da Cunha que, segundo Guerreiro Ramos, se
pode ter uma primeira percepção do que seria a especificidade da formação histórica
Brasileira. 42 Mas, segundo ele, coube a Inácio Rangel desenvolver o argumento lógico e
histórico da dualidade como “lei estrutural básica” da nossa formação social. É à luz da
idéia de dualidade que Guerreiro Ramos realiza as críticas iniciais ao caráter
transplantado em boa parte dos estudos brasileiros e das idéias que orientaram a
construção do aparelho político e administrativo. Decorre dessa situação o que ele
identifica como sendo a heteronomia na sociedade brasileira e relacionado a essa
41
Citando trecho da obra de Rangel, essa simultaneidade é atestada pelo fato de que, no Brasil, “temos,
diz Rangel, o comunismo primitivo nas tribos selvagens, certas formas mais ou menos dissimuladas de
escravidão, nas áreas pioneiras, onde, sob a aparência das dívidas, se compram e vendem, não raro, os
próprios homens; temos o feudalismo, sob diversas formas, um pouco por todo o país; temos o
capitalismo em todas as suas etapas: mercantil, industrial, financeira. Por cima de tudo isso, temos o
capitalismo de Estado que, do ponto de vista formal, pode ser confundido com o socialismo” (“A
Problemática da Realidade Brasileira”. In: O Problema Nacional do Brasil, 1960, p. 89).
42
Guerreiro atribui também a Silvio Romero a percepção da dualidade.
116
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
43
Sobre isso, o autor escreve: “Mas a lei da dualidade, como disse, pode ser generalizada para todos os
aspectos da vida brasileira. Tanto coletiva como individualmente, temos sempre um repertório de posturas
expressamente pra inglês ver. Pra inglês ver é, em grande parte, o nosso aparato institucional. Todavia,
observe-se que o caráter transplantado das instituições brasileiras só à luz da lei da dualidade se explica
objetivamente” (“A Problemática da Realidade Brasileira”. In: O Problema Nacional do Brasil, 1960, p.
90). A heteronomia significa imitação de idéias e comportamentos do outro estrangeiro, incluindo aí até
os hábitos de consumo imitados das nações mais desenvolvidas. Da heteronomia decorrem a alienação,
que ele define como o antônimo de autodeterminação, e a inautenticidade, que significa o fato de o país
“pautar-se econômica, política, social e culturalmente por normas que não permitem a atualização de suas
possibilidades e que vigoram à custa de contínuo deficit de seu ser” (p. 96).
44
Para uma análise mais detalhada da teoria de Ignácio Rangel sobre a dualidade básica, ver
Bielschowsky (2000) e Guimarães (1998).
117
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
comércio. Essa dualidade básica, segundo Guerreiro Ramos, é que explicaria não só a
nossa história, mas também a configuração das classes sociais no Brasil. A explicação
das classes, na época em que escreve, por sua vez, é dependente da dualidade rural e
urbano, que seria o desdobramento histórico-sociológico da principal dualidade.
Em O Problema Nacional do Brasil (1960), 45 o autor retoma a análise de Rangel
e a aplica à compreensão da situação das classes sociais no Brasil. Segundo Guerreiro,
em virtude do modo como nos integramos à economia mundial, verificou-se, desde
antes da Independência, uma aliança entre proprietários rurais e comerciantes. Essa
aliança teria impedido o antagonismo de interesses entre a classe comercial e o
latifúndio, como ocorrera na Europa entre burguesia mercantil e senhores feudais. Ela
teria protagonizado os principais eventos políticos que levaram o Brasil à emancipação
política. Constituíam-se, então, os interesses latifundiários e mercantis a dominar a vida
política até os dias em que escreve.
Ao lado dessa vigorosa aliança é que vinha se formando a burguesia industrial.
Ao lado, ou seja, não como conseqüência da transformação de comerciantes em
burgueses industriais, como na Europa. Esse fato – o de não ter a burguesia industrial se
originado da classe dos comerciantes, permanecendo estes aliados ao latifúndio –
caracterizaria o Brasil pela simultaneidade de fases históricas diferentes. Nisso
consistiria a dificuldade de uma revolução burguesa, devido à dependência do setor
industrial das classes econômicas mais antigas.
Outro fator a impedir a revolução burguesa seria o fato de o capitalismo
industrial no Brasil surgir em um momento de expansão do capitalismo “cêntrico”. Com
a expansão econômica, financeira e técnica, o capital estrangeiro estaria inibindo a
iniciativa e a consciência de classe dos industriais brasileiros, o que os impedia de se
conduzirem como protagonistas no processo de desenvolvimento econômico.
Outro fator, ainda, a impedir um maior arrojo da burguesia industrial é o ter ela,
no seu nascimento, se defrontado com um proletariado já institucionalizado e
legalmente reconhecido. Isso teria sido decorrência da formação industrial tardia no
Brasil, o que provocou um “acavalamento dos papéis históricos da burguesia nacional e
do proletariado”. Essa situação explicaria a timidez da burguesia, que seria levada a
45
O texto é “Nacionalismo, Ideologia dos Povos Periféricos”, seção “Princípios do Povo Brasileiro”,
conferência realizada na Faculdade Nacional de Filosofia, em março de 1959, a convite do Diretório
Acadêmico.
118
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119
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
Nesse sentido é que a idéia de povo aparece como símbolo, como recurso
ideológico, afetivo, que apela à emoção, a fim de ensejar uma solidariedade nacional,
sem o que o processo de construção da nação não se efetivaria, e mais adiado seria o
projeto de emancipação da dependência. Por isso, a ideologia que orientaria a ação com
vistas à emancipação teria de ser o nacionalismo.
O nacionalismo é ideologia, mas também se apresenta como ciência, como teoria
social, política, econômica, histórica do Brasil. Como bem diz Maria Silvia Carvalho
Franco, “o pensamento do ISEB caracteriza-se a si mesmo como ideologia e se nutre da
grande fonte de verdade moderna: a ciência”. Mas, que tipo de ciência? Trata-se de uma
ciência social comprometida com o que entende ser a realidade nacional. O primeiro
passo para tal ciência seria a organização do seu arcabouço conceitual, que deveria ser
elaborado a partir da realidade social imediata, na qual se deseja interferir. Em “A
Problemática da Realidade Nacional” (1960) e A Redução Sociológica, Guerreiro
apresenta uma discussão epistemológica e metodológica em que defende quais seriam
os fundamentos metodológicos e normativos de uma sociologia militante. O tema da
120
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
próxima seção será analisar a relação entre ciência e ideologia no pensamento do autor,
e como a sociologia do conhecimento esclareceria essa aliança.
46
Esse tipo de pensamento militante caracterizaria um modelo de intelligentzia distinto do modelo russo.
Este, de “caráter cismático”, leva a identificar como essencial à intelligentzia a atitude subversiva e
anárquica. Guerreiro rejeita este tipo, definido assim por Ares Pon, afirmando que o que caracteriza a
intelligentzia é a militância e o “pensar independente”, o pensar, mencionando Mannheim, “que se
esforça por ser liberto do ponto de vista exclusivo de uma classe” (1946, p. 186). Nesse sentido,
exemplares desse modelo foram o “círculo weberiano”, na Alemanha, e a “sociedade fabiana”, na
Inglaterra, que apontaram alternativas e caminhos sem cismas políticos e sociais.
47
A sociologia de Max Weber também teria sido influenciada pelo problema nacional, interpretado nos
mesmos termos em que interpreta o problema nacional brasileiro: “Max Weber, uma da figuras mais
completas de sociólogo, jamais se distraiu em seus estudos e em sua vida prática do problema nacional
alemão. É significativo que sua lição inaugural em 1894 na Universidade de Freibugim-Breisgau se
intitulasse: O Estado Nacional e a Política Alemã. Neste trabalho tratava da imaturidade da burguesia
alemã, que naquele momento o sociólogo julgava inapta a exercer a liderança política da nação. Weber
percebia que a burguesia nascente de seu país, ao contrário dos junkers em declínio, era dominante, mas
não dirigente, e, de sua parte, procurava influir para a configuração do que chamava Machtstaat, de um
Estado a serviço da nação alemã como um todo e não tributário de uma classe” (1946, p. 188).
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48
Conferência realizada no ISEB em 1957 e publicada em O Problema Nacional do Brasil (1960).
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objetos definidos apenas pela sua utilidade nem só pela sua função em um organismo
social. Os objetos se integram em uma “totalidade mundo” dotada de sentido, em que
eles, além da função, veiculam um “para quê”, o que os vincula à consciência que deles
se utiliza, de modo que consciência e objeto estão reciprocamente relacionados e são
mutuamente determinados.
Essa idéia de mundo de Heidegger integra o que Guerreiro entende por
totalidade histórico-social. A totalidade implica a consciência, nas suas duas acepções,
relacionando consciência e objeto e a reciprocidade entre eles. Podemos dizer que os
objetos, o modo como estão relacionados com a consciência, fornecem um conteúdo
materialista à consciência, mas não determinam o uso que se faz da utilidade que eles
possuem, pois o uso é prerrogativa do sujeito na sua relação com outros sujeitos.
A consciência, como sempre intencional, e os objetos requerem também
delimitação histórica, pois têm de ser entendidos como historicamente condicionados.
Então, além da totalidade como mundo, a totalidade deve ser compreendida como
histórica. A história, por sua vez, exige delimitação, o que, segundo Guerreiro, é
preocupação das ciências sociais, desde Vico. Guerreiro designa a delimitação histórica
pelo conceito de “fases”. Cada fase histórica compreende uma totalidade, em que “tudo
que acontece em determinado momento da sociedade adquire o seu exato sentido”.
Baseado em Hegel e em Marx, a totalidade designa cada uma das grandes seções
históricas, como “combinação de fatores”. Marx, na sua fase materialista, buscou uma
compreensão histórica relacionando as condições da vida material com as idéias. Mas
Guerreiro evita uma compreensão da totalidade em que um fator determina os demais.
Por isso, ele encontra no estudo de Marcel Mauss sobre o potlatch uma contribuição
mais adequada para o modo como a totalidade deve ser compreendida. O antropólogo,
por meio de estudo empírico, descobre a totalidade como “fenômeno social total”, como
fenômeno, “simultaneamente, econômico, jurídico, estético, militar, político, etc.”
(Ramos, 1965, p. 142). Disto ele conclui que a fase é uma totalidade histórico-social,
cujas partes estão dialeticamente relacionadas.
É o caráter dialético da relação entre os vários fatores que congregam a
totalidade que fornece a esta uma dinâmica histórica, podendo a sociologia identificar
seções no processo civilizatório. A preocupação com o seccionamento histórico é
atribuída a Vico, Condorcet, Augusto Comte, Hebert Spencer e Morgan, além de Hegel,
129
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
Marx, Mannheim, etc. Apesar das divergências entre os autores, Guerreiro destaca o
fato de ser comum a todos eles o entendimento de que “a cada uma das unidades do
processo histórico-social corresponde um conjunto de características que só
desaparecem pela superveniência de outra unidade, à qual corresponderão outras
características” (Ramos, 1965, p. 142).
O “método faseológico”, segundo Franz Carl Müller, permitiria determinar,
“mediante o confronto de fases, a direção em que se orienta a evolução da cultura... em
captar a linha diretriz...” (Ramos, 1965, p. 143). Desejando tornar mais concretas as
idéias de fase e de linha diretriz, Guerreiro recorre à idéia de “agregado vital”, de
Alfredo Weber. O agregado vital corresponde aos “aspectos organizacionais da
convivência humana e ao domínio prático da natureza” (Ramos, 1965, p. 144).
Alterações na base material do agregado vital, decorrentes da “racionalização, em geral,
e, em particular, do progresso técnico, fazem-se, necessariamente, acompanhar de
‘mudanças sociológicas’”. As fases corresponderiam aos períodos de transformação do
agregado vital. A situação histórica de cada fase seria identificada por meio de
comparação:
130
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
Walther, Edith Stern, Alfred Schutz, Georg Gurvitch, Jules Monnerot e Luís Recasens
Siches teriam se iniciado nessa modalidade de análise a partir da fenomenologia do
social. Esta, segundo Hurssel, consistiria no estudo do “modo de ser do social”, que,
mediante sua descrição, se chegaria à sua “essência”, ou seu “eidos”. Porém, a redução
sociológica de Guerreiro, a despeito de ser tributária da origem fenomenológica da
sociologia do conhecimento, não se confunde com a fenomenologia do social, pois não
se trata de uma ciência eidética do social. A redução, segundo Guerreiro,
49
Segundo Berger e Luckmann (2004), foi Max Scheler quem forjou o termo “sociologia do
conhecimento”, na década de 1920, na Alemanha.
131
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
impedido pela sua própria situação, em virtude de viver em uma sociedade já fundada.
Além dessa limitação, Monnerot também teria incorrido em um radicalismo relativista,
o que impede que a teoria social criada possa ter papel operante. Para que assim seja, a
sociologia tem de ter “algum conteúdo dogmático empiricamente justificado pelo fato
mesmo de que a realidade a que se refere é dotada de sentido” (Ramos, 1965, p. 104).
Contribuição importante de Monnerot, no entanto, encontra-se no conceito de
“condição humana situada e datada”. Notemos que o termo datada agrega um conteúdo
histórico à redução, juntamente com aquele conceito de mundo, fornecido por
Heidegger. O caráter valorativo e ideológico terá de considerar o lugar e o tempo da sua
produção. Segundo Monnerot: “A visão depende dos valores. Só a condição humana,
situada e datada, confere um sentido ao que vê” (apud Ramos, 1965, p. 105).
Mais próxima ainda da redução sociológica, como método que se aplica ao
estudo do pensamento nacional, estaria a teoria de Myrdal sobre a “inadequação da
teoria econômica dominante nos Estados Unidos e em países europeus”. Segundo
Guerreiro, tudo parecia indicar que, para esse autor, “há sempre um resíduo ideológico
nas ciências sociais (...). Não haveria teoria econômica ideologicamente neutra, o que
asseguraria qualidade científica é o seu ajustamento à realidade” (Ramos, 1965, p. 106).
Para Myrdal, haveria “elementos ideológicos infiltrados” em organizações como o
GATT e o Fundo Monetário Internacional, em prejuízo das nações periféricas. Myrdal
sustenta suas desconfianças e críticas no que seria uma “impossibilidade de o cientista
social libertar-se inteiramente do que chama ‘premissas de valor’”. Para ele: “Uma
‘ciência social desinteressada (...) ‘nunca existiu e por motivos lógicos não pode
existir”’ (Ramos, 1965, p. 107).
Por fim, Karl Mannheim e Hans Freyer, que teriam contribuído para pensar o
problema da cultura implicado na redução sociológica. Mannheim se situa entre os
especialistas de sua época que “submeteram as doutrinas sociológicas a uma reflexão
radical, na apreensão de cujo sentido sempre as referia ao seu substrato histórico e
cultural” (Ramos, 1965, p. 108). Hans Freyer, por sua vez, procedeu a um estudo da
“sociologia da sociologia”, considerando-a “como produto orgânico de certa cultura e
por isso não pode transferir-se simplesmente a outra cultura” (Ramos, 1965, p. 110).
É com base nesses antecedentes, nos quais fundamenta a redução sociológica,
que Guerreiro formula as quatro leis que deveriam ser seguidas pelo sociólogo
132
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia
133
Capítulo 5
134
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
50
Guerreiro cita no mesmo artigo outros nomes dessa galeria. São os autores João Ribeiro, Silvio
Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, José Maria dos Santos, Caio Prado Júnior, Oliveira Vianna,
entre outros.
135
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
140
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
Quais são esses aspectos? E em que medida a idéia de tempo que informa os
estudos modernistas os estaria ocultando? Além disso, a partir da visão de
Guerreiro Ramos, o que pode haver de problemático na relação entre a concepção
de identidade nacional e a noção de temporalidade brasileira introduzida pelo
modernismo?
No texto de 1980, há um parágrafo em que o autor menciona o que deixaria
de vir à luz tanto nos estudos modernistas quanto naqueles dos intelectuais
católicos. Neste trecho, o que há de problemático nas visões imobilistas se torna
manifesto na comparação que ele estabelece entre aquelas interpretações e a
literatura regionalista:
141
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
142
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
fornecido pelo popular. A distância não apenas geográfica, mas também social e
cultural, existente entre os intelectuais e o popular também acabaria contribuindo
para um dimensionamento temporal dessa mesma distância, reforçando a idéia do
popular como sobrevivência. Ao contrário de Harvey, eu diria que, no caso do
modernismo brasileiro, em vez de uma “espacialização do tempo”, se processaria
uma “temporalização do espaço”, uma vez que o popular não se manifesta apenas
nos artefatos culturais que produz, mas também em determinados espaços da
geografia urbana e nacional.
Esse ponto relativo ao espaço popular concebido em termos temporais me
parece central na compreensão das razões que levam Guerreiro Ramos a apontar
limites à idéia de identidade nacional no modernismo. Uma vez que possamos
identificar tais razões, ou seja, o que e por que torna problemática a perspectiva de
tempo manejada pelo modernismo, creio podermos focalizar quais os critérios que
orientam a própria concepção de Guerreiro de nacionalidade, bem como o que o
permite distinguir concepções dinâmicas e estáticas nos autores estudados por ele.
Com base no que foi visto até aqui, pode-se apreender como problemático,
em primeiro lugar, o fato de que a temporalidade modernista tem seu vetor voltado
para trás; isto é, a nação vai ser buscada em um passado imemorial. Em Mário de
Andrade, o estudo do popular teria como fim a busca das raízes nacionais, do
tradicional supostamente manifesto na cultura popular. Portanto, a idéia de um
passado longínquo é que informaria o que é a nação, conforme indica Morse na
seguinte passagem:
143
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
51
Há um trecho em que Guerreiro se refere ao distanciamento entre os intelectuais e o popular, que
corrobora esta observação: “No Brasil, o homem culto e o homem do povo são espécies diferentes. A
cultura de nossos homens de prol é, por assim dizer, uma espécie de sobremesa do país. Passa pelas
alfândegas. Classifica-se na ordem dos enlatados ou das conversas.(...) “Daí o que venho chamando aqui
de alienação, o desentendimento entre as camadas populares e as camadas cultas.” (Ramos, 1953, p. 34)
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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
como sociológicos. Seguindo Ernest Burgess e Robert Park, entre outros, Guerreiro
focaliza os ambientes rural e urbano como contribuintes na modulação de
mentalidades e comportamentos tidos como produtores de sociopatias.
Uma referência que me parece bastante interessante para estabelecer
possíveis nexos entre a sociologia americana e a leitura dos autores regionalistas
brasileiros é a que ele faz à descrição de Burgess de áreas urbanas distintas, da
qual resulta uma imagem da cidade como composta de cinco círculos concêntricos
– a extensão da cidade é configurada como que irradiando de um centro. Citando
Park, Guerreiro se utiliza de metáforas, como vegetais, plantas e solo, para
produzir uma imagem de movimento e de irradiação.
52
Só para mencionar um dos casos, cito o seguinte, colhido pelo próprio autor: “Acredita-se na Bahia que
dar de beber água do banho à criança é bom para torná-la mansa. O autor conheceu um caso de diarréia
provocado por esta prática e que quase levou à morte um recém-nascido.” Dos que colhe em Namoros
com a Medicina, de Mário de Andrade, eis alguns casos: “para curar talhos, esterco de jumento ou
cataplasma de estrume fresco de vaca e azeite de cozinha; para tirar bicho de pé, pisar em bosta de porco,
etc.”.
146
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
do que é o nacional. Nos estudos próprios de Guerreiro, observamos que ele evita
remeter-se a um passado que remonte à colônia, à herança cultural e psíquica dos
colonizadores. Quando muito, essa remissão é feita para se pensar a origem de
formas de administrar, e pensar com “pensamentos prontos” e importados o Brasil.
Mas, no que diz respeito àquilo que lhe interessa como sendo a noção da formação
nacional, ganha relevo uma história que é elaborada a partir da própria existência
física da nação.
Pode-se dizer que a concepção de identidade nacional de Guerreiro Ramos é
orientada pela idéia de processo, do que ela vem sendo desde a sua existência real.
A crítica que faz aos demais autores reside no fato de se tentar apreendê-la a partir
de uma essência, de um caráter, que já estaria formado para sempre. Na idéia de
processo, tempo e espaço geográfico se cruzam. O tempo entendido como uma
temporalidade brasileira própria, uma vez que a história de que se pode falar é
aquela fornecida pela existência real geográfica.
Segundo minha própria interpretação de Euclides da Cunha e Oliveira
Vianna, observo que a própria forma de narrar desses autores indica a idéia de
movimento, de viagem. Em Euclides, isso é bastante explícito. Em Populações
Meridionais, chama a atenção como o movimento da história se confunde com o
movimento no espaço. Sem entrar na discussão sobre a validade das fontes do
autor, é interessante observar como ele parte do que seria o ambiente da cidade,
segue para o interior, onde encontra o domínio rural, chegando ao movimento das
bandeiras e deste à floração de vilas e cidades pelo interior do país.
Nos anos 1950, a tarefa de intelectuais e de políticos seria a de dar
continuidade a esse movimento, ou seja, ao processo de formação da identidade
nacional brasileira.
149
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
53
Sobre essa extensa família, da qual o ISEB faz parte, veja Leite (1983).
150
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
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Em A Problemática da Realidade Brasileira, Guerreiro refere-se à nação como ambivalente. Seríamos
e não seríamos ao mesmo tempo: “Somos e não somos ao mesmo tempo, no tocante à velha sociedade e à
qual nos referimos” (p. 88).
154
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos
social nacional. Um outro pólo ideal deveria se constituir, pelo contrário, daquelas
características. Esse pólo seria um projeto, cujo engajamento decorreria da
compreensão correta ou autêntica da realidade brasileira: o projeto nacional.
155
Capítulo 6
156
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
A questão nacional e a questão social: duas diretrizes das ciências sociais no Brasil
55
O autor refere-se à Espanha e à Holanda.
157
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
56
Segundo Arrighi, “o ‘caos’ e o ‘caos sistêmico’, (...) referem-se a uma situação de falta total,
aparentemente irremediável, de organização. Trata-se de uma situação que surge por haver uma escalada
do conflito para além do limite dentro do qual ele desperta poderosas tendências contrárias, ou porque um
158
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
proveito e, com isso, consolidou a hegemonia política em face dos demais Estados
soberanos. Desse modo, a Inglaterra atraiu para sua própria órbita de poder as “novas
comunidades nacionais e de proprietários”, um novo acordo, o Concerto das Nações
Européias, foi celebrado e baseado não mais nas “emoções pessoais dos monarcas”, mas
nos “interesses e ambições coletivas dessas comunidades nacionais” (Arrighi, 1996, p.
53). Apoiado nas comunidades nacionais de proprietários, o Concerto das Nações
funcionou como instrumento político do “imperialismo de livre comércio” comandado
pela Inglaterra.
Sob o imperialismo de livre comércio, os domínios do Ocidente no mundo não
ocidental se expandiram até o percentual de 85%, em 1914, de controle da “superfície
territorial do planeta”. Esse aumento dos domínios, juntamente com o imperialismo de
livre comércio, é um dos fatores que concorreram para a terceira fase do nacionalismo.
As conseqüências políticas da dupla dominação dava início à configuração de novo caos
sistêmico no século XX:
A razão das revoltas dos povos não ocidentais (as colônias não emancipadas
politicamente) fica evidente, como também o objetivo que será perseguido nos
movimentos nacionalistas: a autodeterminação e a luta antiimperialista. Com relação
aos não proprietários ocidentais, o despertar da consciência proletária se desenvolve, em
parte, em processo análogo ao que levou a formação das classes médias e proprietárias
entre o fim do século XVIII e metade do XIX. Nessa época, a iniciativa privada fora
envolvida na gestão do Estado e da guerra. No fim do século XIX e início do XX,
novamente são os esforços de guerra que explicam a ampliação da “socialização da
gestão do Estado e da guerra” com a industrialização dos armamentos. As atividades da
novo conjunto de regras e normas de comportamento é imposto ou brota de um conjunto mais antigo de
regras e normas, sem anulá-lo, ou por uma combinação dessas duas circunstâncias. À medida que
aumenta o caos sistêmico, a demanda de ‘ordem’ – a velha ordem, uma nova ordem, qualquer ordem! –
tende a se generalizar cada vez mais entre os governantes, os governados, ou ambos. Portanto, qualquer
159
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
Estado ou grupo de Estados que esteja em condições de atender a essa demanda sistêmica de ordem tem a
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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
161
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
ocorreria. Notemos que essa fase é representada como uma constelação histórica
urgente de realizações de etapas, que o mundo desenvolvido já teria realizado algumas e
que estaria realizando outras; no conjunto, a industrialização doméstica, a formação da
burguesia industrial e do proletariado.
Podemos dizer que Arrighi, também situado em uma perspectiva histórica,
assinala em termos de fases correspondentes a ciclos de hegemonia a realização dessas
etapas. Primeiro, o nacionalismo econômico, significando isto gestão estatal da
economia. Depois, a formação da sociedade civil, ainda que restrita aos proprietários.
Sobre o componente industrial da classe de proprietários, Arrighi sugere sua
consolidação como decorrente de fatores não exclusivamente vinculados aos interesses
econômicos de civis. É o que deduzo do modo como se refere à Revolução Industrial,
como algo que “decolou sob o impacto das guerras revolucionárias e napoleônicas da
França” (Arrighi, 1996, p. 56). E, por fim, a ampliação de direitos aos excluídos, por
meio de lutas: massas sem propriedade e colônias.
Podemos acrescentar que, em meio a esse processo linear, houve nacionalismo
econômico, como no caso da Alemanha no final do século XIX, seguindo, no mesmo
país, o nacionalismo cultural dos românticos. Podemos nos lembrar, ainda, do
centralismo político dos federalistas; do industrialismo e territorialismo interno dos
americanos; do nacionalismo cultural na Índia (Chatergee, 2004); no Brasil, da chamada
geração de 1870 – com Silvio Romero, com o nacionalismo cultural que traz à cena a
questão da identidade cultural.
Na perspectiva seguida pelo ISEB, o caráter revolucionário da época que se
inicia, em 1930, é marcado principalmente pelo colapso do imperialismo de livre
comércio, que é a via que estimula as análises críticas econômicas às teorias liberais
clássicas nos países, que passam então a se compreender como subdesenvolvidos. A
partir desse marco é que a noção de imperialismo passa a informar uma atitude política
interna e externa baseada na idéia de nação. No caso do Brasil, nação politicamente
independente, seu ingresso no cenário de rebeliões internacionais não se daria do
mesmo modo das nações africanas. A revolução por aqui tinha um conteúdo mais
econômico, combinado com exigências de natureza social. Acumuladas em um mesmo
período histórico, as fases assinaladas por Arrigh configuram a nação como unidade
cidadãos partilhava os direitos e os espólios do controle político’ (MacIver, 1932, p. 352)” (Arrighi, 1996,
162
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
pp. 63-4).
163
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
164
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
165
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
Outro argumento desta tese foi de que a crítica dos anos 1970 configura um
cenário histórico e social de críticas ao Estado militar. Assim, se, por um lado, houve
uma crítica epistemológica, que dá continuidade ao debate que regeu a
institucionalização das ciências sociais, por outro, a ida ao ISEB faria parte de uma
crítica política específica, que teria na tematização do Estado autoritário, ao mesmo
tempo, uma retomada do espírito mannheimiano das ciências sociais em 1950 e o
impulso para uma historiografia do pensamento social e político brasileiro.
Creio não ser equivocado afirmar que a antinomia Estado e sociedade, presente
na crítica ao ISEB, estrutura também um dos modos como se escreveu a história do
pensamento social e político no Brasil. No contexto do regime militar, a clivagem
autoritarismo versus democracia, para mim, se constitui em um desdobramento e
reforço da dicotomia sociedade versus Estado, com as quais será possível uma
historiografia do chamado pensamento autoritário em contraposição àqueles que
divisaram a possibilidade da democracia.
Do período militar considero exemplar o artigo de Bolívar Lamounier e
Fernando Henrique Cardoso (1978b). Ao situarem a análise no período da década de
1940, dois estudos são destacados pelos autores, um como democrático e outro como
autoritário. Trata-se de Coronelismo, Enxada e Voto, de Vítor Nunes Leal, e Instituições
Políticas Brasileiras, de Oliveira Vianna. O primeiro, ao focalizar o estudo na dinâmica
eleitoral do período republicano, “teria ido à raiz da questão da possibilidade da
democracia no contexto sócio-político da época” (Lamounier; Cardoso, 1978b, p. 44).
Ao tomar os partidos políticos como universo político de sua análise, Vítor Nunes
estaria mais bem situado em vista mesmo da natureza do objeto – os partidos. Além
disso, seu estudo, ao detectar a impossibilidade do sistema representativo, teria
denunciado a funcionalidade daquelas agremiações para a expansão do Estado na vida
pública. Por outro lado, Oliveira Vianna já teria falhado ao tomar como premissa “o
166
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
58
Os dois trabalhos de Simon Schwartzman são o artigo “Representação e Cooptação Política no Brasil”,
Dados, 7 (1970), e Regional Cleavages and Political Patrimonialism in Brasil, Tese de Doutorado
(1973).
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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
‘representação’ (em que o aparato do estado se mostra como expressão de forças sociais
autônomas) versus ‘cooptação’ (em que o estado prevalece sobre as forças sociais),
procura ele interpretar toda a evolução brasileira até os dias atuais em termos de
predomínio continuado de tendências ‘cooptativas’ (...)” (Reis, 1974, p. 48).
Penso que contribuiu para esse debate, em que estado e sociedade se
antagonizam, uma compreensão da década de 1970 como aquela em que se teria
testemunhado o afloramento de condições institucionais e sociais do funcionamento da
ordem democrática. Bolívar Lamounier (1993), ao designar três grandes fases em que a
história do Brasil se desenvolveu no último século, aponta o período pós-1964 como a
fase “centrada na questão democrática”. A democracia entendida como sistema político,
e não apenas como sistema de idéias, se efetivaria com a “progressiva diferenciação e
autonomização de um subsistema representativo, isto é, de um conjunto de
procedimentos eleitorais, parlamentares e partidários que regulam a investidura de
pessoas privadas em posições de autoridade pública” (Lamounier, 1993, p. 98).
Podemos dizer que os aspectos institucionais ressaltados por Lamounier,
configurando a democracia como sistema político, compõem e organizam um cenário
em que forças sociais, vistas antes como politicamente inexpressivas, irrompem como
atores políticos. Ruth Cardoso (1984) destaca como os movimentos sociais urbanos
impunham uma revisão da forma clássica marxista de explicação dos processos de
transformação social do mundo capitalista. A contradição fundamental classe dominante
versus classe dominada cederia lugar a uma outra forma de manifestação de conflito
anunciada pelos movimentos sociais urbanos em relação ao Estado. Esses movimentos
seriam indicadores da organização de uma sociedade civil, levando a uma reflexão
acerca da possibilidade de uma ordem democrática efetiva.
Maria Hermínia Tavares de Almeida (1992) chama atenção para o caráter de
“marco no debate político da esquerda brasileira” no ensaio de Carlos Nélson Coutinho:
A Democracia como Valor Universal. O significado de divisor de águas na concepção
política da esquerda se dava em função da perspectiva negativa com que a democracia
era até então tratada. A democracia era vista como “instrumento político, um meio de
ascensão ao poder, nem sempre o mais acessível às forças populares e, seguramente, o
menos adequado à realização de seus supostos interesses históricos” (Almeida, 1992,
pp. 42-3). Citando Lechenner, a autora observa que essa visão positiva da democracia
168
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
169
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
social e política. Preocupado com uma experiência histórica em que maiorias afluem ao
cenário político, Mill associa o tema da liberdade política à defesa da diversidade de
opinião e de escolhas individuais existentes no mundo social. O predomínio do
princípio da liberdade sobre o da igualdade, nesse autor, pode ser explicado tanto pela
possibilidade da tirania da maioria como pela precaução liberal em relação ao arbítrio
do Estado na vida dos homens. Observa-se que, nessa concepção, a igualdade não se
apresenta como um valor e finalidade em si, mas a asseguração dos meios que tornem o
exercício da liberdade possível. Se seguirmos a aproximação entre o pensamento de
Mill e de Tocqueville no que diz respeito à constatação da democracia como um fato no
mundo moderno, e se entendermos que, assim como o conceito de liberdade, o de
igualdade é indissociável da democracia, poderemos concluir que, se a igualdade não é
um fim para esses autores, é porque para eles ela já está dada. Em A Democracia da
América há uma passagem que elucida bem essa compreensão em Tocqueville. Ele
escreve:
171
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
172
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia
A conclusão a que chego sobre o nacionalismo dos anos 1950, para além do fato
de ter sido formulado como ideologia do desenvolvimentismo pelo ISEB, é que ele
traduziu, no Brasil, a formação de um ethos tal como Elias o descreve, ou seja, a
formação de um sentimento de solidariedade e obrigação para com a coletividade
inteira. As ciências sociais, na forma como elas são concebidas seja por Florestan
Fernandes, seja por Guerreiro, são uma expressão desse sentimento de amor e
comprometimento com a construção da nação. Especialmente em relação a Guerreiro
Ramos, talvez, o modo como ele insiste na crítica às várias elites, em particular, às
intelectuais, seja resultado da sua compreensão macro da sociedade brasileira, cujo
principal problema seria um estranhamento dessas elites em relação à história e às
paisagens social e geográfica que constituem o que ele entende ser a nação. Essa
compreensão confere um caráter particular ao que Guerreiro Ramos entende ser uma
sociologia comprometida e engajada.
173
Conclusão
174
Conclusão
175
Conclusão
Esse distanciamento é percebido pelo autor por meio de suas leituras das teorias
e interpretações do Brasil, as quais ele (des)qualifica como alienados. Além disso, as
análises econômicas sobre o subdesenvolvimento da época corroboravam a tese da
alienação das elites, intelectuais ou não, ao apontar o padrão de consumo, consumo esse
suntuário, imitado dos países desenvolvidos pelas elites brasileiras.
Constatada a prática da imitação tanto cultural quanto material, Guerreiro retoma
a perspectiva cultural na sua análise sobre o comportamento das elites em relação à
nação. Uma compreensão materialista e histórica é proporcionada pela tese da dualidade
básica de Ignácio Rangel. Porém, a explicação histórico-materialista da dualidade não
elimina o problema cultural das elites. Daí que um discurso de caráter mais emocional e
afetivo é elaborado e endereçado às elites intelectuais, com vistas à sua conversão à
nação. Mas o discurso de conteúdo emocional não pode prescindir da racionalidade
conferida pela ciência e pela história. Guerreiro então formula uma teoria baseada na
idéia de nação. Com esse conceito, ele vai para o embate intelectual em fins dos anos
1950.
A Redução Sociológica é a obra mais expressiva da sociologia nacionalista de
Guerreiro Ramos. Nessa obra, a nação é apresentada como referência empírica,
espacial, cultural e histórica do pensamento “autêntico”, o que quer dizer nacional. Se
com a sociologia do conhecimento, nessa obra, Guerreiro procura legitimar suas
formulações perante a comunidade acadêmica, é na fenomenologia e na filosofia da
existência que ele encontra os suportes teóricos para a elaboração de uma concepção
dinâmica da nação.
Como vimos, de Hurssel e de Heidegger, Guerreiro traz as idéias de consciência
intencional e de mundo, para o qual a consciência se dirige e adquire seus conteúdos. A
idéia de mundo corresponde, na leitura de Guerreiro, à realidade imediata a partir da
qual a consciência se desenvolve. É dessas duas idéias que ele elabora tanto uma
compreensão da nação quanto da consciência nacional. Como escrevi no Capítulo 5, a
nação entendida, primeiramente, como espaço nos limites do território é o conceito com
o qual Guerreiro poderá apreender a sociedade brasileira como uma totalidade histórica
e social. A nação se lhe configura como categoria abrangente da diacronia e da
sincronia brasileiras.
176
Conclusão
Com a diacronia, ele chama a atenção dos intelectuais para o que seria uma
história comum e particular, história essa que vincula gerações e contemporâneos. Com
sincronia, ele procura chamar atenção para as diferenças regionais e suas conseqüências
negativas que impediriam a constituição de um “verdadeiro povo”. É em um cenário
entendido como multifacetado que a idéia de nação pode ser também entendida como
recurso simbólico e cêntrico em relação às gerações passadas e vindouras e em relação
aos contemporâneos separados pelas classes sociais e pelas regiões.
Se, como observa Fábio Wanderley Reis (1974), o desenvolvimento político de
uma nação supõe uma etapa em que a institucionalização da autoridade tem de se
afirmar contra “focos particulares de solidariedade”, com Guerreiro Ramos, podemos
dizer que o nacionalismo, ao erigir a nação como centro de uma solidariedade comum,
encontra nessa idéia – a nação – o correspondente simbólico da autoridade legítima
representada pelo Estado moderno. Dessa forma, a nação tem como função fazer
convergir para ela os sentimentos dispersos nos “focos particulares de solidariedade”.
Concluo que a compreensão de Guerreiro da sociedade brasileira como nação
adveio-lhe da experiência no DNC, quando confrontado com a diversidade regional. A
nação se lhe configura como conceito suficientemente abrangente das diferenças
regionais, entendidas todas elas como nacionais e, portanto, objeto de uma política
nacional. A política nacional é algo a ser promovido pelo Estado. Por meio de uma
política nacional, o Estado assumiria, também, a função de aparelho integrador do corpo
nacional. Parece-me ser essa uma compreensão que Guerreiro tem do Estado, a de ente
integrador da nação, em vista das suas ações na direção da sociedade, ações essas que
tenderiam a desorganizar subculturas, modos de vida, crenças e hábitos tradicionais,
reorganizando-os em uma espécie de superfície plana, homogênea, a qual chamamos
modernamente de sociedade.
A eficácia do Estado, por sua vez, na sua ação integradora, adviria da
sensibilidade de técnicos e governantes à natureza econômica dos problemas sociais, os
quais também se constituiriam em obstáculos à maior penetração do Estado na
sociedade. Acredito que a secularização da sociedade por meio de hospitais e escolas,
por exemplo, é um fator importante para a dissolução de formas tradicionais de lealdade
política. Por isso, as iniciativas do Estado, como a do DNC, podem ser compreendidas
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Conclusão
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Conclusão
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