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ABRANCHES, A. M. Nacionalismo e Democracia No Pensamento de Guerreiro Ramos PDF

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APARECIDA MARIA ABRANCHES

Nacionalismo e Democracia no
Pensamento de Guerreiro Ramos

Tese apresentada ao Instituto Universitário de


Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do grau de Doutora
em Ciências Humanas: Ciência Política, sob a
orientação do Prof. Dr. Marcelo Jasmin.

RIO DE JANEIRO
2006
Livros Grátis
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Milhares de livros grátis para download.
Abranches, Aparecida Maria (9.8.1969)

Nacionalismo e Democracia no Pensamento de Guerreiro


Ramos

Rio de Janeiro – IUPERJ, 2006.


Tese: Doutorado em Ciências Humanas: Ciência
Política. IUPERJ

I. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro


– IUPERJ
II. Nacionalismo – Democracia – Pensamento Social
Brasileiro
APARECIDA MARIA ABRANCHES

NACIONALISMO E DEMOCRACIA NO PENSAMENTO DE GUERREIRO RAMOS

Tese apresentada ao Instituto Universitário de


Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do grau de Doutora em
Ciências Humanas: Ciência Política.

BANCA EXAMINADORA:

MARCELO JASMIN (ORIENTADOR)

CÉSAR GUIMARÃES

HELENA BOMENY

MARCOS CHOR MAIO

MARIA ALICE REZENDE CARVALHO

RIO DE JANEIRO
2006
Índice

INTRODUÇÃO 1

CAPÍTULO 1 – AS CRÍTICAS AO ISEB: SEUS LIMITES E A PROPOSTA DE UM OUTRO ENFOQUE 5

1.1. Capitalismo, Estado e intelectuais na crítica ao ISEB 5


1.2. Os limites da crítica 12
1.3. O nacionalismo na perspectiva contemporânea 17
1.4. Estado, sociedade e nacionalismo 21

CAPÍTULO 2 – DILEMAS DO CONCEITO DE NAÇÃO NO CONTEXTO


DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NO BRASIL 30

2.1. A crítica epistemológica ao nacionalismo 30


2.2. A sociologia paulista e a questão da identidade nacional 41
2.3. A sociologia, a antropologia e os seus objetos 45
2.4. Sociologia, sociedade industrial e representações do Brasil 47
2.5. Antropologia: folclore e identidade nacional 55
2.6. Sociologia, “descoberta” da sociedade brasileira e cidadania 62

CAPÍTULO 3 – O SOCIÓLOGO EM “MANGAS DE CAMISA” 71

3.1. O contexto da crítica de Guerreiro Ramos à sociologia acadêmica 71


3.2. O sociólogo em habitus 72
3.3. Quadro histórico da formação: o burocrata e o intelectual 75
3.4. Guerreiro e a industrialização 85

CAPÍTULO 4 – NACIONALISMO E IDEOLOGIA 97


4.1. O nacionalismo e populismo 97
4.2. Nacionalismo: uma teoria da sociedade brasileira 103
4.3. “País com povo” e “país sem povo” 108
4.4. Ciência e ideologia 121
4.5. Os pressupostos filosóficos e sociológicos da redução sociológica 127

CAPÍTULO 5 – O PENSAMENTO SOCIAL E POLÍTICO BRASILEIRO NA PERSPECTIVA


DE GUERREIRO RAMOS 134

5.1. Por uma sociologia dinâmica 134


5.2. As imagens da nação no pensamento social brasileiro 136
5.3. Visões homogêneas e pessimistas 137
5.4. Visões heterogêneas e otimistas 147
5.5. Espaço, tempo e história nacional 149

CAPÍTULO 6 – DUAS DIGRESSÕES SOBRE NACIONALISMO E DEMOCRACIA 156

6.1. Primeira digressão: as ciências sociais em uma era de nacionalismos 156


6.2. Segunda digressão: Estado, sociedade e democracia na historiografia do
pensamento político brasileiro após a década de 1970 166

CONCLUSÃO 174

BIBLIOGRAFIA 180
Resumo

O objetivo desta tese é analisar o nacionalismo nos anos 1950, no Brasil, como
um fenômeno histórico associado a processos de democratização social e política. A
análise é desenvolvida tomando como referência básica os escritos de Guerreiro Ramos,
membro até 1958 do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado em
1955. A criação do Instituto teve como principal finalidade formular a ideologia
nacional-desenvolvimentista. Retomo nesta tese algumas das principais críticas feitas ao
ISEB em fins das décadas de 1970 e 1980, e proponho um enfoque alternativo ao modo
como essas críticas compreenderam o nacionalismo de um ponto de vista
exclusivamente econômico. Com base na literatura contemporânea sobre nacionalismo,
proponho uma leitura que considere o papel do Estado e o das narrativas nacionais
como constitutivos dos processos históricos de construção dos Estados nacionais e,
conseqüentemente, das sociedades democráticas integradas.
Agradecimentos

Agradeço ao meu orientador Marcelo Jasmin por suas sugestões valiosas, pelo
apoio e incentivo. Sua confiança foi indispensável para me dar a determinação
necessária para realizar este trabalho. Aos coordenadores e professores do IUPERJ, em
especial Luiz Werneck Vianna e Ricardo Benzaquen. Ao professor César Guimarães,
pela sabedoria, generosidade, eterna sede de conhecimento e, por conseguinte, “frescor
das idéias”, tudo o que faz dele um grande mestre. No IUPERJ, pude contar com o
companheirismo dos meus colegas de curso Felícia Picanço, Marcelo Maciel, Marlise
Matos, Andréia e Jairo, Robert Wegner, Vânia, Kleber de Deus; e das funcionárias
Simone, Bia, Solange, Ângela, Valéria, Lia e Dona Lina, que ficarão para sempre em
minha lembrança.
Agradeço também aos professores da UERJ, que foram muito importantes na
minha formação nas ciências sociais, em especial Cléia Schiavo, Luis Rodolfo Vilhena,
Valter Sinder, Noeli Corrêa de Melo. À professora Helena Bomeny, com muito carinho,
pela pessoa que é e pela orientadora que foi para mim na graduação, a quem eu devo os
meus primeiros passos na reflexão sobre o pensamento de Guerreiro Ramos.
Ao Marcos Chor Maio, que, a partir da minha entrada no mestrado, muito
contribuiu para que eu desse seqüência à reflexão iniciada na graduação. O estímulo à
participação em seminários sobre Guerreiro Ramos, sem dúvida, ajudou a manter em
mim o entusiasmo pelo pensamento desse autor.
Agradeço ao Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, em particular
aos meus colegas Sarah Teles, Vladimir Lombardo, Simone Dubeux, Elielma Machado,
Ana Fernanda Coelho, Solange Luçan, Sonia Travassos e Mirane Girão; e, ainda, o
carinho de Mônica, Mercedez e Helenice. Agradeço aos meus amigos desde os tempos
da UERJ, cuja amizade tenho o prazer de desfrutar nos dias de hoje na PUC: Luiz
Fernando Almeida Pereira, Ronaldo Castro, Paulo Jorge Ribeiro e José Mauro Freitas.
Sou muito grata à atenção e carinho dos meus grandes amigos, Rosi Marques
Machado e Paulo D’Ávila. A presença de ambos nesse processo foi particularmente
importante pelo estímulo intelectual, o que adveio, freqüentemente, por meio de
calorosas discussões e interesse sincero por este trabalho. Aos dois, meu grande carinho.
Aos amigos que a vida generosamente trouxe para mim: Cristina, Aninha e
Paulo Bahia. E ainda a duas pessoas que comprovam que a amizade resiste ao tempo e a
tudo: Maria Helena, cuja força, alegria e capacidade de sonhar fez e faz com que exista
um mundo para além das ciências sociais; e a minha “irmãzinha” Débora de Castro
Barros, por sua lealdade, dedicação e paciência ao longo desse processo. Finalmente, a
Romana, pela amizade e apoio.
Agradeço à minha família: minha mãe Joventina de Oliveira Abranches, sem
dúvida a pessoa mais importante no processo que me trouxe desde as primeiras letras
até este momento, e minhas irmãs Arlene, Elaine e Eliane.
Finalmente, agradeço ao CNPq pela bolsa concedida, o que tornou possível a
realização desta tese.
Para meu pai Geraldino Abranches (in memoriam)
e meu irmão Gideon de Oliveira Abranches (in memoriam)
Eu estava esparramado na rede, Jeca urbanóide de papo pro ar
Me bateu a pergunta meio a esmo: na verdade, o Brasil o que será?
O Brasil é o homem que tem sede ou o que vive da seca do sertão?
Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo, o que vai e o que vem na contramão?
O Brasil é um caboclo sem dinheiro procurando o doutor nalgum lugar?
Ou será o professor Darcy Ribeiro que fugiu do hospital pra se tratar?

A gente é torto, igual Garrincha e Aleijadinho... ninguém precisa consertar


Se não der certo, a gente se vira sozinho
Decerto, então, nada vai dar

O Brasil é o que tem talher de prata ou aquele que só come com a mão?
Ou será que o Brasil é o que não come, o Brasil gordo na contradição?
O Brasil que bate tambor de lata ou que bate carteira na estação?
O Brasil é o lixo que consome ou tem nele o maná da criação?
Brasil, Mauro Silva, Dunga e Zinho, que é Brasil zero a zero e campeão,
Ou o Brasil que parou pelo caminho... Zico, Sócrates, Júnior e Falcão?

O Brasil é uma foto do Betinho ou um vídeo da Favela Naval?


São os trens da alegria de Brasília ou os trens de subúrbio da Central?
Brasil-Globo de Roberto Marinho? Brasil-bairro: garotos-candeal?
Quem vê do Vidigal o mar e as ilhas ou quem das ilhas vê o Vidigal?
O Brasil alagado, palafita? Seco açude sangrado, chapadão?
Ou será que é uma avenida paulista? Qual a cara da cara da nação?

(Celso Viáfora e Vicente Barreto)


Introdução

O nacionalismo, formulado como teoria da sociedade brasileira e ideologia


desenvolvimentista pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, na década de
1950, 1 foi objeto de vários estudos críticos entre os fins da década de 1970 e de 1980.
Na oportunidade que tive de ler alguns desses estudos para a realização da minha
dissertação de mestrado, chamou-me a atenção o fato de as críticas focalizarem o
nacionalismo de um ponto de vista exclusivamente econômico, desconsiderando o que,
para mim, constitui um fenômeno político mais amplo, associado a processos de
democratização social e política.
Nesta tese, analiso o nacionalismo a partir dos escritos de um dos intelectuais
daquele instituto, Guerreiro Ramos, procurando apreender a teoria da sociedade
brasileira, na qual um discurso de apelo nacionalista teria se justificado na época.
Considero que as críticas, cujos principais aspectos analiso no Capítulo 1, teriam
submetido a teoria histórica da sociedade brasileira, formulada pelo ISEB, aos seus
próprios parâmetros de correção científica. Esses parâmetros seriam dois: um, oriundo
dos anos 1970, e outro, que teria orientado uma teoria da modernização da sociedade
brasileira nos anos 1950.
Nos anos 1970, os estudos, envolvidos em um contexto de contestação ao
regime militar, teriam encontrado no marxismo de Althusser uma perspectiva para a
crítica ao Estado na sociedade capitalista. A compreensão do Estado como instrumento
das classes dominantes orientou uma crítica do nacionalismo como ideologia que teria

1
O ISEB foi fundado em 1955, no Rio de Janeiro, reunindo um grupo de intelectuais com o propósito de
elaborar a teoria do nacional-desenvolvimentismo, com a qual se pretendia dar continuidade, no governo
de Juscelino Kubitschek, à política de industrialização substitutiva de importações do governo de Getúlio
Vargas. Dentre seus membros se destacam: Roland Corbisier, Álvaro Vieira Pinto, Cândido Mendes,
Hélio Jaguaribe, Nélson Werneck Sodré, Guerreiro Ramos, entre outros.

1
Introdução

como principal finalidade escamotear os conflitos de classes. O argumento principal era


de que o ISEB fora patrocinado pelo Estado, e a ideologia formulada por ele nasceu em
conluio com os interesses do Estado, que, por sua vez, é visto como funcionário da
burguesia. Desse ponto de vista, acredito que os estudos tiveram como objetivo uma
crítica política ao nacionalismo, o qual, os críticos acreditam, teria contribuído para o
desfecho de 1964. Com base na perspectiva marxista, o nacionalismo seria uma mística
deliberada em favor da classe dominante.
Os estudos, no entanto, não pretenderam desqualificar o nacionalismo apenas
como ideologia falsificadora da realidade, mas também como teoria incorreta da
sociedade brasileira. A incorreção da teoria adviria do modelo de análise histórica
baseada na idéia de uma temporalidade brasileira específica, que encontra na tese da
dualidade básica o seu principal fundamento. Essa dimensão dos estudos, denomino-a
crítica epistemológica, que se fundamenta em um modelo de compreensão do processo
de modernização brasileira que animou o debate metodológico no contexto da
institucionalização das ciências sociais no Brasil. Esse modelo é fornecido pela teoria da
modernização, baseado na idéia de atraso e moderno, ou de tradição versus
modernidade. No Capítulo 2, procedo à análise de como Florestan Fernandes sugere ter
sido esta a compreensão que orientou a fixação de um padrão de cientificidade
considerado válido para os estudos sobre a modernização da sociedade brasileira.
Considero as duas perspectivas – a política e a epistemológica, ou a marxista e a
da teoria da modernização – como responsáveis por uma compreensão que reduz o
nacionalismo do ISEB a uma explicação exclusivamente econômica. A primeira se
fundamenta na idéia de modo de produção capitalista, cuja infra-estrutura econômica
explicaria fenômenos culturais e políticos como determinados. A segunda, por sua vez,
toma a sociedade urbano-industrial como parâmetro de compreensão do conteúdo
racional dos fenômenos culturais e políticos. Desse modo, na medida em que o ISEB
incorporava modelos de análise que não se esgotavam nos quadros, seja no modo de
produção capitalista, seja no da sociedade urbano-industrial, produziria uma teoria
incorreta e irracional, visto que seus formuladores não se pautavam exclusivamente pelo
que a empiria histórica indicava como sendo o estágio mais avançado do conhecimento
humano.

2
Introdução

No Capítulo 1, proponho uma via alternativa para o estudo do nacionalismo. A


literatura recente tem questionado o porquê das teorias sociais clássicas e de autores de
orientação marxista e liberal terem dificuldade de lidar com o tema do nacionalismo.
Dos estudos recentes, três aspectos me pareceram centrais para a dificuldade em se
analisar o nacionalismo como um fenômeno histórico, associado a processos de
democratização social e política. Primeiro, um entendimento da modernidade como
processo que se desdobra de mudanças ocorridas na forma de produção:
industrialização, divisão do trabalho, estrutura de classes e racionalização burocrática.
Essas mudanças, ocorridas na Europa a partir do século XVIII, teriam fornecido o
modelo de racionalidade que caracterizaria a modernidade política, social e econômica.
Segundo, a desconsideração da busca do Estado nacional por lealdades entre os súditos
em um contexto de deslocamento da soberania dinástica para a do povo. Não é
considerado o fato de que a busca de lealdade teria levado o Estado, na Europa, a uma
aproximação com a população interna por meio de símbolos, especialmente as histórias
nacionais. E, ainda, está ausente uma compreensão do Estado como entidade que se
altera em um contexto de democratização eleitoral e de conflitos sociais. Como terceiro
aspecto, aponto o descrédito a que é relegada a formulação das narrativas históricas
nacionais, as quais, embora podendo ser patrocinadas ou utilizadas pelo Estado, gozam
de independência em face dele, como obra de intelectuais.
Esses três elementos estão presentes nas críticas ao ISEB. Primeiro, a empiria
que os críticos consideram válida para a formulação da teoria correta, a teoria da
modernização. Segundo, uma compreensão essencialista do Estado, como desprovido de
razões próprias para buscar lealdade entre os cidadãos e, terceiro, uma desqualificação
de narrativas históricas nacionais. O ISEB teria incorrido nos três equívocos, todos eles
decorrentes do modo como produziu uma teoria histórica da sociedade brasileira.
A partir do Capítulo 3, passo à análise do pensamento de Guerreiro Ramos. No
terceiro, analiso sua formação intelectual, a fim de perceber como ocorre sua
aproximação com a sociologia, a economia e o Estado, resultando, destes dois últimos, a
defesa que fará da política substitutiva de importações do governo Vargas. Nesse
capítulo, em que trabalho com textos da década de 1940 até 1951, observo que a
recepção e o uso das teorias sociais clássicas e contemporâneas ocorre em um ambiente
em que o Estado é percebido por ele como instrumento de democratização e solução da

3
Introdução

pobreza. Com o estudo da pobreza, Guerreiro vai alcançando uma visão macro da
sociedade brasileira em termos de desigualdades regionais, e daí a questão da
industrialização como tarefa urgente para a obra de integração territorial e social.
No Capítulo 4, analiso a teoria da sociedade brasileira, a partir da análise de
Guerreiro da história política do Brasil. O que considero ser uma teoria está diluído em
vários textos escritos, principalmente, depois de 1955 até início da década de 1960.
Ainda nesse capítulo analiso a relação que, para o autor, haveria entre ideologia e
ciência e o modo como fundamenta a defesa de uma sociologia militante e nacional.
O Capítulo 5 é dedicado ao estudo do pensamento social e político brasileiro.
Procuro analisar qual o critério de seleção que permite ao autor identificar estudos que
teriam contribuído para uma compreensão nacional e “autêntica” da sociedade
brasileira, e outros que ele qualifica como alienados. Com base no próprio critério de
seleção que Guerreiro utiliza, procuro compreender como ele constrói o conceito de
nação derivando dela o que seria uma temporalidade brasileira. Minha conclusão é de
que Guerreiro, a partir da idéia de espaço, pode chegar a um conceito de nação que
compreende a história, a mudança, portanto, o próprio processo de modernização, que
evita a dicotomia atraso versus moderno. Desse modo, acredito que encontramos nesse
sociólogo uma alternativa ao modelo que orientou o estudo da modernização da
sociologia paulista. Termino o capítulo concluindo sobre o que para Guerreiro seria o
atraso brasileiro.
O Capítulo 6 constitui-se em duas digressões sobre o nacionalismo. Na primeira,
procuro entender o cenário histórico externo que, no Brasil, ensejou um modelo de
ciências sociais proclamado como universalista e outro, intitulado nacionalista, e por
que os dois se apresentaram como antagônicos quando, na verdade, eram ambos
partícipes de uma mesma constelação histórica mundial. Na segunda, faço uma breve
revisão da historiografia do pensamento social e político brasileiro a partir da década de
1970. Questiono o fato de que a experiência e os ideais de democracia do final daquela
década e da de 1980 nortearam uma forma de estudo do pensamento político brasileiro
que irá dividir os autores em autoritários e não autoritários. Contraponho a esses estudos
críticos o que considero ter sido a experiência da igualdade e da liberdade, como dois
momentos na consolidação das democracias atuais.

4
Capítulo 1

As críticas ao ISEB: seus limites


e a proposta de um outro enfoque

Partindo da compreensão de que a crítica elaborada ao ISEB, nos anos 1970,


envolve aspectos epistemológicos e políticos, neste capítulo focalizarei a dimensão
política. Essa dimensão se relaciona diretamente à perspectiva marxista. É tendo a teoria
de Marx como suporte teórico que os críticos identificam no nacionalismo isebiano uma
ideologia falsificadora da luta de classes. Por isso, na primeira seção, apresentarei os
termos em que essa crítica se desenvolve, ou seja, os seus principais temas: capitalismo,
Estado e ideologia.
Na seção seguinte, apresentarei a crítica da crítica dos anos 1970 ao ISEB,
utilizando outros referenciais teóricos que, acredito, permitem ampliar a própria
compreensão do fenômeno do nacionalismo de uma maneira geral, e, particularmente,
do nacionalismo isebiano.

1.1. Capitalismo, Estado e intelectuais na crítica ao ISEB

Os principais temas que fundamentaram a crítica ao ISEB formam o triângulo


Estado, capitalismo e ideologia. Esse tripé constitui uma espécie de síntese da crítica
cujas principais formulações encontram-se no estudo de Caio Navarro de Toledo, ISEB:
fábrica de ideologias (1978), e em Maria Sylvia Carvalho Franco, O tempo das ilusões
(1978). Considero que nesses dois trabalhos residem os fundamentos teóricos da crítica
mais ampla, a qual se estende às análises de Marilena Chauí (1983) sobre o pensamento
autoritário, que, segundo a autora, teria na idéia de nação a principal fonte de
estruturação e justificação –, e aos estudos de Carlos Guilherme Mota (1977) e

5
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Francisco Weffort (1978). Comum a todas as análises, a crítica ao nacionalismo se


fundamenta na perspectiva marxista do capitalismo como modo de produção que
desencadeia a divisão e os conflitos de classes típicos da ordem burguesa.
De acordo com essas análises, o nacionalismo é visto como uma ideologia que
confere protagonismo ao Estado, que, em sua relação com a sociedade civil, a interpela
como povo sem consideração dos conflitos; estes, no contexto de uma sociedade
capitalista, se polarizam entre os interesses da burguesia e os do proletariado. O
nacionalismo, desse modo, teria nas idéias de Estado e de povo os elementos-chave de
um discurso baseado na nação, endereçado aos membros da sociedade como nacionais,
postulando, portanto, uma identidade comum, mais do que as divisões sociais.
O que importa aos críticos é desvendar os interesses que estariam por trás do
nacionalismo que o ISEB teria “inventado”. É por meio da crítica teórica que tais
interesses são revelados, e é à luz destes que Estado e povo são identificados no
discurso nacionalista isebiano como entidades abstratas. Assim, Estado e povo
aparecem como peças de uma retórica política, cujo significado histórico não pode ser
deduzido delas próprias, mas da infra-estrutura social que, de fato, as explicaria.
Atentando para o que considera ser a infra-estrutura social dos anos 1950, a
crítica teórica dos anos 1970 visa a esclarecer as incongruências conceituais do
nacionalismo, ancorada na perspectiva econômica que a matriz marxista lhe fornece. O
ponto, talvez, mais elucidativo da articulação entre crítica teórica e política e a
perspectiva econômica é o que diz respeito à abordagem do conceito de alienação,
bastante utilizado pelos isebianos. Franco (1978) aponta a utilização desse conceito
como instrumento por meio do qual fora produzido o “artifício” da diluição do conflito
de classes.
Em sua análise sobre o pensamento de Álvaro Vieira Pinto, Franco destaca o
fato de que a alienação é explicada em função do conceito de trabalho, constituindo-se
este, nas palavras do filósofo do ISEB, a expressão da “essência humana”. A mística
produzida por esse raciocínio se explicaria no complemento: “...mas para que assim seja
é preciso que na trama dos vínculos sociais estabelecidos pelos indivíduos uns com os
outros, tendo por base o esforço coletivo executado sobre a natureza, se conserve
íntegro o caráter humano próprio do ímpeto criador com que o homem explora o mundo
natural” (Álvaro Vieira Pinto, apud Franco, 1978, p. 166). O que é aí evidenciado,

6
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

segundo a autora, é a ausência de “outras mediações do modo de produção”, na medida


em que é postulada uma relação direta dos indivíduos com a natureza. As relações de
classes desapareceriam nesse raciocínio, mediante a distorção do conceito de trabalho, o
qual é “arrancado do seu elemento de dominação e focalizado como nexo abstrato entre
sujeito e ‘realidade’, anulando-se a rede constituída de relações de produção” (Franco,
1978, p. 167).
Ausente a perspectiva de classe, o que informa o fenômeno da alienação, agora
com Caio Navarro de Toledo, é o binômio metrópole versus periferia. Esse binômio
desencadeia a reflexão filosófica com a qual a alienação é explicada em termos de
“dialética da dominação e da servidão (senhor × escravo)”. Descendo do nível abstrato
dessa dialética, Roland Corbisier teria revelado a intencionalidade que preside toda a
reflexão filosófica:

“Para não permanecer nessa dialética abstrata (...), Roland


Corbisier vai identificar a economia da complementaridade que
caracteriza as relações concretas entre metrópole e colônia com
as descrições acima...
Desta forma, o desenvolvimento econômico surge no
horizonte representando, simultaneamente, a ruptura com o
subdesenvolvimento, a conquista da autonomia e realização ou
‘recuperação do ser histórico da comunidade (de que o apartara
o sistema colonial)’.” (Toledo, 1978, p. 72)

A regência econômica na análise tanto da política oficial quanto do nacionalismo


é marcante no estudo de Toledo. O Estado é compreendido como comandado por
interesses exclusivamente econômicos, ou melhor, dos “grupos hegemônicos”. Esta
parece ser a visão de Estado que rege toda a análise do nacionalismo e das ações
políticas do Estado. Quanto ao nacionalismo, na medida em que é produto das “agências
de racionalização”, portanto, a serviço do “Estado empregado”, tem sua análise
condicionada pelo que seriam os interesses da classe dominante. Como se pode observar
logo na apresentação que Toledo faz de seu objeto de estudo:

“Triste sina a do ISEB: personagens secundários da vida política


brasileira foram os principais protagonistas nos atos de criação e
de extinção da Instituição em meados dos anos 50 e 60.
João Café Filho e Paschoal Ranieri Mazzili, presidentes por
‘forças das circunstâncias’ decisivas das direções do processo

7
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

político brasileiro nestes últimos vinte anos –, através do


decretos que assinavam, nada mais faziam do que assumir os
papéis de ‘agentes’ de decisões que eram reclamadas e impostas
por (novos) grupos hegemônicos. Na criação, pela necessidade
de o Estado providenciar agências que racionalizassem o surto
de desenvolvimento do País; na extinção, pela consolidação das
forças político-militares, que julgavam a existência do ISEB
como um ‘desserviço à nação’.” (Toledo, 1978, p. 31)

O trabalho de Toledo, que certamente é a principal referência da crítica nos anos


1970, orienta-se em uma direção: o ISEB teve por fim “fabricar” uma ideologia. A
ideologia no pensamento isebiano não decorreria, simplesmente, das insuficiências
teóricas de modelos como, por exemplo, o da dualidade, mas da própria vontade de
produzir uma ideologia. Para Franco, não haveria ingenuidade na ideologia, mas
“truques”, com uma finalidade bem precisa. Todo o empenho de Toledo em ISEB:
fábrica de ideologia está em desvendar, passo a passo, como aquele “coquetel
filosófico” 2 se articula em favor do capital. De acordo com Franco, o trabalho de
Toledo tem o mérito de apresentar as principais orientações do pensamento isebiano que
teriam culminado em uma “síntese conservadora” das representações em que se dividia
a classe dominante do período. Nessa linha de avaliação, a autora conclui o seguinte:

“Com grande penetração, o autor de ISEB: fábrica de ideologias


expôs como se articulam, no discurso dos isebianos, o privilégio
outorgado à consciência como motor do desenvolvimento, a
ambição de fundamentar sua atividade no conhecimento
cientifico e a intenção programática, ligada a uma concepção
determinada do Estado.” (Franco, 1978)

Essas articulações indicam o modo como a ideologia no pensamento isebiano é


focalizada. Toledo apresenta várias “ausências” nos escritos do ISEB, tais como os
conceitos de modo de produção, de contradições de classes (classe dominante versus
classe dominada, trabalho versus capital). Essas ausências seriam indicações do terreno
abstrato em que os isebianos se moviam. Assim, para esse autor, o empirismo que os
isebianos desejavam garantir com a lei das fases (ou seja, com a história), situando aí as
classes sociais, se revelaria, sob o escrutínio da crítica, pura abstração. O abstracionismo
das fases se mostraria na própria ideologia que os isebianos procuravam promover.

2
A expressão “coquetel filosófico” é de Michel Debrun, em crítica ao ISEB (1962).

8
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Toledo aponta o método das linhas diretrizes, que, de acordo com Guerreiro
Ramos, seria captado mediante o encadeamento das fases. A linha diretriz indica a
“direção em que se orienta a evolução da cultura” (Toledo, 1978, p. 39). O
abstracionismo desse raciocínio se revelaria no fato de que “a fase nunca será formulada
a priori, mas a posteriori, a partir da observação empírica dos fatos” (Toledo, 1978, p.
40). Em Hélio Jaguaribe, esclarecer-se-ia por que os fatos deveriam ser julgados a
posteriori. A fase mais adiantada da sociedade brasileira, a “fase da transformação,
caracterizada pela energética e acentuada propensão ao desenvolvimento”, se
caracterizaria pela maior representatividade ideológica, por isso corresponderia também
à de maior autenticidade, 3 favorecendo a formulação da ideologia autêntica, aquela
capaz de apontar o sentido do desenvolvimento. Na interpretação de Toledo, a fase de
maior representatividade é aquela na qual os interesses coincidem, na qual “os setores
dominantes de todas as classes sociais têm os mesmos interesses situacionais (a
transformação social), e esses interesses situacionais, por sua vez, coincidem com as
necessidades objetivas de todo o País (a expansão das suas forças materiais de
produção)” (Toledo, 1978, p. 42).
Para Franco, o problema nesse esquema das fases é que com ele a história é
entendida em termos do desenvolvimento da consciência, como movimento da Razão.
O momento mais avançado corresponde ao de maior autenticidade ideológica.
Identificando a mesma teleologia em Vieira Pinto, a autora indica em que sentido o
idealismo apontava:

“Este autor, em contrapartida do ‘não-ser’ das sociedades


atrasadas, mas portadoras das virtualidades do futuro e lugar de
uma ideologia transformadora, indica o imobilismo das
sociedades avançadas, que parecem já ter chegado ao fim, onde
o sistema se completou e o pensamento descansa. Se (...) Álvaro
Vieira Pinto, como os demais membros do ISEB, é herdeiro da
instrumentalização da ratio e se o desenvolvimento é entendido
como implantação da ordem capitalista, não será difícil

3
Na definição de Hélio Jaguaribe, citada por Toledo, “é representativa a ideologia que constitui a
formulação correspondente aos interesses situacionais de classe ou grupo que a sustentam” (p. 40), e são
autênticas as ideologias que, “sejam quais forem os interesses situacionais que representam, formulem,
para a comunidade como um todo, critérios e diretrizes que a encaminham no sentido de seu processo
faseológico, ou seja, que permitam o melhor aproveitamento das condições naturais da comunidade, em
função dos valores predominantes na civilização a que pertence” (Toledo, 1978, p. 41).

9
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

compreender, em suas proposições, o que significa esse repouso


das sociedades avançadas.” (Franco, 1978, p. 157)

Portanto, para os críticos, o problema do esquema faseológico é a eliminação do


sentido marxista de contradição de classes e, por conseguinte, a aceitação do modo de
produção capitalista como o “repouso das sociedades avançadas” no que isso signifique
a realização da história. Desse modo, na medida em que os interesses da burguesia
industrial, da classe média e proletariado urbanos são vistos como coincidentes,
portanto, os mais representativos, Hélio Jaguaribe teria diluído aí a contradição classe
dominante versus classe dominada. Diluída essa contradição como motor da história,
esta passa a depender de uma vanguarda esclarecida que se encarregaria de formular a
ideologia do desenvolvimento.
Nesse sentido, para Franco, a condição para que o intelectual apareça como
“consciência privilegiada da realidade” é o “empirismo pobre” em que a realidade
aparece parcelada. A realidade é, então, produzida como condição de legitimação do
sujeito cognoscente, que se encarrega de apontar a direção e formular a ideologia
autêntica:

“‘A ideologia é necessária porque se tornou possível constituí-


la.’ Daí, dessa noção de possibilidade contida no real, faz-se o
giro para a subjetividade: surge a figura da consciência que
identifica na realidade suas tendências de desenvolvimento,
formula a ideologia capaz de levá-las a bom termo, mantendo as
transformações nesses limites dados.” (Franco, 1978, pp. 162-3)

Dessa necessidade de erigir o sujeito a partir da realidade é que, para Franco,


resultaria a “distorção do idealismo”:

“Estranhamente, nessa mesma operação em que se erige o


sujeito como sede de conhecimento e prática, sua liberdade é
afogada pela necessidade dos fatos. Isto liquida, é claro,
qualquer aproximação com um idealismo conseqüente, de
acordo com o qual os fins da prática humana não podem ser
derivados do conhecimento empírico e onde, portanto, ciência,
ética e política estão nitidamente distinguidos.” (Franco, 1978,
p. 163)

10
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Desse mesmo empirismo abstrato é que se erigiria a idéia de nação. A crítica ao


autoritarismo dos autores se desdobra da crítica ao idealismo da cisão entre sujeito e
objeto. O povo, como produto de um discurso sobre ele, não existiria concretamente.
Uma vez diluída a contradição real, classe dominante versus classe dominada, a
realidade de onde se procurava extrair a consciência das massas se reduzia a uma ilusão.
Daí que a relação entre intelectual e povo seria uma relação de exterioridade e
autoritária. Pode-se deduzir desse raciocínio a crítica de Weffort (1978) ao “populismo
teórico” e que considera absurda a idéia de povo-comunidade da formulação isebiana:

“O equívoco original está na concepção de povo: os


nacionalistas, mesmo os mais radicais, falaram sempre em nome
do povo, em nome da comunidade nacional. Por certo nunca se
propuseram, nem o poderiam, representar o povo atual,
concreto, contraditório, pois isto seria levar a uma prática
absurda a idéia inconsciente do povo comunidade.” (Weffort,
1978, p. 37)

Se o conceito de classe aparece, por um lado, como uma ausência, cuja presença
teria evitado os “equívocos” em que os isebianos incorreram, por outro, configura-se
como conseqüência necessária do idealismo e do historicismo de que partiram. Para
Toledo, não houve enfrentamento do “problema teórico” das classes, preferindo-se ficar
no nível das polarizações, como setores modernos versus setores arcaicos.
Apesar da crítica feita ao ISEB, Toledo reconhece o “estado extremamente
precário dos estudos sociológicos brasileiros e, por conseguinte, do seu elevado grau de
comprometimento ideológico (...) na época” (Toledo, 1978, p. 121). Se havia um
comprometimento nos anos 1950, ele não parece ser menor nos anos 1970, pois, ao que
tudo indica, o próprio Toledo e os demais críticos parecem se encontrar bastante
comprometidos em uma luta ideológica contra o regime militar, e, conseqüentemente,
contra o Estado autoritário.
Por isso penso que a questão de cunho econômico ressaltada por Toledo – que
apareceria no pensamento do ISEB em termos de setores modernos versus setores
arcaicos, sobrepondo-se ao que seria a contradição fundamental classe dominante versus
classe dominada – não se desvincula do idealismo identificado desde o início do seu
estudo. Todo o empenho de Toledo consiste em desvendar o autoritarismo do
pensamento isebiano manifestado pelo idealismo. Dessa forma, a análise é comandada,

11
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

desde o início, por uma certeza: a de que o pensamento isebiano teve por fim “fabricar
uma ideologia”.
O sentido dessa crítica só pode ser entendido caso também se entenda que, para
ela, o ISEB e a tradição de pensamento à qual se filiaria se autotraduzem como
encarnação do Estado. O Estado visto como esfera universal, como realizador da
história e como locus da razão. 4
Nesse sentido, toda a crítica ao intelectualismo do ISEB parece ser um
desdobramento da crítica marxista ao Estado burguês, o que se desdobra, no caso
brasileiro, a uma crítica ao Estado autoritário, que, não esqueçamos, no pós-1964,
acrescenta mais um adjetivo: o Estado autoritário militar. Então, portanto, a crítica ao
ISEB parece ser, antes de mais nada, uma crítica a e uma negação propriamente dita do
Estado. O empenho na exorcização do Estado privou a crítica de um fator fundamental
para a compreensão do nacionalismo. Além disso, ao descartar a historiografia proposta
pelo ISEB, a crítica privou-se também de compreender o papel da elaboração das
histórias nacionais na construção do Estado-nação, e com ele os intelectuais que as
formularam. Mas sobre isso tratarei na próxima seção.

1.2. Os limites da crítica

Uma das críticas que faço aos estudos críticos é que neles o nacionalismo não é
focalizado como um fenômeno histórico relacionado às particularidades históricas,
geográficas, culturais e sociais que podem ensejá-lo de formas distintas em diferentes
partes do globo e épocas. Ou seja, visto que sua análise é presa de uma dinâmica
econômica entendida por si só como a principal estruturadora do mundo social e
político, o nacionalismo (qualquer nacionalismo) teria sempre o mesmo significado
político: o de servir aos interesses da classe economicamente dominante.
A meu ver, trata-se de uma visão que, não exclusiva da crítica, conforme
veremos, pressupõe uma racionalidade onipresente, a qual é entendida como única

4
A Apresentação de Adauto Novaes do livro de Marilena Chauí sobre os conceitos de nacional e popular
na cultura brasileira exprime bem a visão crítica que a autora tem do Estado nesse trabalho. Escreve o
autor: “Presos nas teias das concepções clássicas de um Estado Universal, os autores de tais projetos de
cultura sonham com a criação de um indivíduo que seja ao mesmo tempo a síntese da particularidade
cultural com a universalidade de seu discurso. (...) o Estado, poder transcendente, não é apenas o lugar da
obediência e da coesão da sociedade; mais que isso torna-se o único lugar possível de realização do
indivíduo” (Chauí, 1983, p. 7).

12
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

garantia da inteligibilidade histórica, desde que o correto redutor de racionalidade seja


utilizado. Esse redutor é o que é oferecido pela produção da vida material, de cuja
dinâmica é inferida a dupla classe dominante e classe dominada. Estas, por sua vez,
esclarecem o tipo de interesse que ratifica como racionais as ações humanas. É a
racionalidade imediatamente ditada pelas condições de produção, incluídas as relações e
as forças produtivas. Desse modo, o redutor último da práxis é a economia. Com base
nessa perspectiva, só duas ideologias são racionais e, portanto, as únicas capazes de
esclarecer a racionalidade que há no mundo moderno: liberalismo e socialismo.
Dessa forma, outras manifestações ideológicas, uma vez que excluídas delas está
a racionalidade, serão focalizadas indistintamente a partir de outro redutor, desta vez o
da irracionalidade. Temos então fascismo, nacionalismo, fundamentalismos,
terrorismos, etc. Tudo isso se equivale, não dispondo o pensamento social de
instrumentos que possam analisá-los e identificar suas diferenças.
No que diz respeito ao nacionalismo, sob a rubrica da irracionalidade, fica difícil
analisar as diferenças entre eles. A literatura contemporânea, na medida em que o elege
como um objeto per se de análise, sem submeter sua análise a critérios extrínsecos a ele,
abre caminho para uma compreensão do nacionalismo como um fenômeno plural.
Por meio dessa pluralidade, descortinam-se também outras motivações humanas
não exclusivamente econômicas. Renato Ortiz (1981; 1985), por exemplo, chama
atenção para a temática racial e a da violência nos nacionalismos das ex-colônias
africanas depois da Segunda Guerra Mundial. Parta Chatergee (1993) destaca um
nacionalismo cultural na Índia, com base no qual fora possível a resistência à
dominação inglesa. João Trajano Sento-Sé (1999), em uma articulação entre bildung e
nacionalismo, identifica este como “projeto civilizador”, que abarca desde diferentes
campos de saber à construção de símbolos, os quais concorrem para a elaboração de um
“patrimônio comum dos membros de uma mesma sociedade” (Sento-Sé, 1999, p. 112).
Norbert Elias (1997) vai identificá-lo na Alemanha do final do século XIX como ponto
de chegada de um processo iniciado em fins do século XVIII, em que um grupo social
elabora sua auto-imagem, criando um domínio cultural próprio, em vista das
desigualdades percebidas no campo político e social. Com Lizt temos a formulação de
um nacionalismo econômico baseada na percepção de assimetrias de poder entre a
Alemanha e as nações capitalistas mais desenvolvidas (Snyder, 1978).

13
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Se o reducionismo econômico impede de considerar relevantes outras


motivações de nacionalismos, ele também tende a obscurecer o papel do Estado nos
processos de construção da tessitura social que torna possível a democracia política.
Hobsbawm (2002), ao analisar o conceito de nação e o fenômeno do nacionalismo no
período entre 1830 e 1880 na Europa, destaca, junto com determinantes econômicos do
nacionalismo, a necessidade de legitimação do Estado moderno junto ao público
membro do território sob sua jurisdição. Trata-se de um contexto em que a presença do
Estado na vida cotidiana era fato incontestável, presença essa atestada por cartórios,
correio, pela educação primária obrigatória e censos regulares, tudo facilitado pela
revolução nos transportes e comunicações. Nesse contexto, em que a maquinaria estatal
se impõe diária e diretamente na vida dos cidadãos, sem o auxílio de padrões
tradicionais de garantia de lealdade e ainda tendo contra si a rivalidade de novos
movimentos sociais (liberalismo, nacionalismo e movimentos operários), ao Estado
“tornava-se imperativo inculcar novas formas de lealdade cívica” (Hobsbawm, 2002, p.
106).
O problema da “coesão sociopolítica” não foi percebido apenas pelas elites
dirigentes, mas, segundo Hobsbawm, constituiu a agenda de estudos da sociologia
política nas últimas décadas do século XIX. A inculcação de um padrão novo de
lealdade não significava criar seres sociais passivos, longe disso, pois requeria um
sentimento de pertença e de identificação com o Estado. Daí a criação de uma espécie
de religiosidade cívica capaz de envolver os cidadãos nas batalhas do Estado. Distinto
do nacionalismo, o “patriotismo estatal” fora estimulado por meio do envolvimento dos
cidadãos nos seus assuntos. A eleitorização da política e o fornecimento de uma
“paisagem institucional e processual”, por meio das funções do “Estado-cidadão”, eram
eficazes na promoção do sentimento patriótico. Eram eficazes, mas não suficientes. O
patriotismo estatal tinha relações genéticas com a idéia de soberania popular, o Estado
exercendo poder em nome do povo. Enquanto relacionadas à idéia de soberania popular,
questões como etnicidade, terra natal, origem comum, língua comum eram aspectos
secundários à cidadania. No entanto, à medida que a disputa por lealdade por parte de
socialistas, liberais e nacionalistas 5 desafiava o Estado como único depositário da

5
O autor refere-se aos nacionalismos que não se identificavam com o Estado e nem dele precisavam.
Dentre as forças rivais, Hobsbawm refere-se ao nacionalismo como a mais poderosa.

14
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

lealdade cívica, este passava a acionar componentes emocionais. Terra comum,


histórias, batalhas, bandeira, língua são alguns dos recursos com os quais foi possível a
criação de uma “comunidade imaginada”.
Interessa-me nessa análise de Hobsbawm a distinção entre o patriotismo estatal e
o nacionalismo. O nacionalismo não se confunde com o Estado, embora possa ser
mobilizado por ele. O nacionalismo pode ser lido tanto em sua função política estatal
quanto em sua função econômica, no contexto da emergente sociedade industrial. 6
Ao isolar analiticamente o patriotismo estatal, Hobsbawm ressalta o componente
político do Estado como distinto do econômico. A autoridade central, em um contexto
de igualização, passa a depender da adesão voluntária dos cidadãos comuns, o que
desencadeia uma ação política de promoção do envolvimento e de uma aproximação
mais afetiva entre eles. Nesse processo tanto canais institucionais, como extensão de
direitos políticos, quanto as vias mais simbólicas são criados.
Para mim, essa maneira de proceder do Estado em sociedades em processo de
democratização não é contemplada pela crítica ao nacionalismo isebiano. Conforme
apresentarei em outros capítulos, esse elemento foi considerado por Guerreiro Ramos e
compõe junto com outros elementos a sua agenda nacionalista. Parece-me razoável
dizer que a crítica, ao postular uma identificação entre a intelligentzia isebiana e o
Estado, não distingue o que é mais uma compreensão dos nacionalistas sobre o papel do
Estado em contextos de democratização daquilo que seria uma identificação pessoal
com o Estado. É possível que o Estado tenha sido visto pelos nacionalistas como um
lugar privilegiado de ação discursiva e política para eles próprios, e até mesmo de
enriquecimento do prestígio pessoal, porém isso não pode ofuscar uma compreensão de
como o Estado é teorizado como peça fundamental na democratização política pelos
nacionalistas.
Além dessa aproximação do Estado com relação ao público, outro ponto que
destaco na crítica é o modo como a historiografia do nacionalismo é submetida ao
critério econômico. Do mesmo modo que o fenômeno nacionalismo e o Estado, também
a análise da história que informa o historicismo isebiano é submetida ao critério
econômico. Vejamos como isso ocorre. Para isso, vou retomar alguns trechos da análise
de Toledo citados anteriormente.

6
Esta é a perspectiva de Ernst Gellner, da qual tratarei mais adiante.

15
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

A regência econômica na análise da compreensão histórica dos isebianos é


garantida pela observação de Toledo de que “a fase nunca será formulada a priori, mas
a posteriori, a partir da observação empírica dos fatos”. A (má) intencionalidade se
revela no fato de que a fase mais adiantada da sociedade brasileira, “caracterizada pela
enérgica e acentuada propensão ao desenvolvimento”, se caracterizaria pela maior
representatividade ideológica, favorecendo, portanto, a formulação da ideologia
autêntica: a do desenvolvimento. Essa fase, a última, seria a mais representativa, porque
nela os interesses seriam coincidentes e, portanto, o nacionalismo poderia dirigir-se a
um povo, apontando-lhe a diretriz.
Para além do brilhantismo que essa leitura encerra, ela só se sustenta, porém, na
condição da eliminação do movimento histórico pressuposto na historiografia que está
sendo elaborada pelos isebianos. Ou seja, os críticos, ao desqualificarem as categorias e
pressupostos da filosofia histórica, só podem ler o projeto historiográfico isebiano
segundo critérios conceituais externos a este. Trata-se do conceito marxista de modo de
produção capitalista com sua infra e superestrutura. De acordo com esse modelo, o
pensamento manifesto na teoria histórica é tratado como reflexo superestrutural da
infra-estrutura do modo de produção capitalista. Na medida em que os isebianos operam
com a idéia de povo e nação, então da perspectiva da contradição básica, a historiografia
que acolhe esses conceitos só pode ser uma ilusão, uma falsificação ideológica.
No trecho da obra de Álvaro Vieira Pinto criticado por Franco (1978), aquele em
que o autor postula a relação entre homem e natureza, está a indicação de uma via
antropológica para o estudo da história. Segundo minha compreensão do estudo de
Norma Côrtes (2003) sobre o pensamento de Vieira Pinto, mais do que a história deste
ou daquele período, deste ou daquele fenômeno, Vieira Pinto propunha uma via
historiográfica para o estudo da história como processo que postula a ação humana
criadora.
Evidentemente, não é meu propósito analisar a compreensão da historicidade em
Álvaro Vieira Pinto. O que quero ressaltar, ao chamar atenção para Vieira Pinto, é a
autonomia negada pelos críticos do pensar a partir de uma outra perspectiva que não
seja a que eles consideram mais adequada. O ISEB operou com um modo de pensar a
história, ou com diferentes modos, em um contexto em que outros modos também
estavam sendo construídos. Tanto na sociologia como na ciência política, na

16
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

antropologia, na economia ou na história, a sociedade brasileira, naquele momento,


animava uma investigação do passado e um modo de pensar o passado, válido para
pensar o presente e projetar e buscar futuros possíveis. Estou considerando a
historiografia, não só a isebiana, como um dos elementos constitutivos de formação do
Estado nacional. Portanto, considero essa historiografia como projeto independente de
uma razão de Estado ou de uma razão econômica, embora possa servir a esses
propósitos.
Por fim, considero que a crítica, ao se ancorar em uma perspectiva econômica
(nitidamente marxista, mas que também pode ser compreendida à luz da idéia de
sociedade industrial), submete três elementos que, em uma análise do nacionalismo,
merecem ser destacados. Trata-se dos conceitos de nação e de Estado, e das narrativas
históricas elaboradas por uma intelligentzia. A possibilidade de uma via alternativa às
análises dos críticos advém de estudos mais recentes sobre o fenômeno, nos quais esses
três fatores são centrais. A seguir, passo à apresentação das teorias que abordam esses
temas e, à luz delas, analisarei os limites da crítica dos anos 1970 ao fenômeno
nacionalismo, para a partir disso propor um outro enfoque sobre o nacionalismo
isebiano.

1.3. O nacionalismo na perspectiva contemporânea

Benedict Anderson (1998) chama atenção para a ausência de análises mais


consistentes do nacionalismo em autores de orientação marxista e liberal. A ausência
seria ainda mais intrigante quando se observa que as principais guerras travadas no
próprio mundo comunista foram guerras nacionais. 7 O fato é que, em ambas as
perspectivas, o nacionalismo seria menos objeto de análise do que a constatação
indesejável de um fenômeno que, segundo Anderson, tem moldado os processos de
nation building desde o final do século XVIII.
De acordo com Anderson, nas visões clássicas as dificuldades em analisar o
nacionalismo decorrem da rejeição de que a nacionalidade per se possa ser agente de
motivação e sustentação desses processos de construção nacional. Partindo dessa

7
Anderson refere-se às guerras do Vietnã, Camboja e China ocorridas em fins da década de 1970.
Enquanto estas se definiram como nacionais, as guerras de 1950 e 1960 podiam ser explicadas pelas
ideologias socialista e liberal.

17
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

rejeição, o nacionalismo é, então, enquadrado como anomalia, como surto, cuja


explicação escapa aos instrumentos teóricos das ciências sociais. Para Seton Watson,
autor de orientação liberal, o nacionalismo não seria passível de uma “definição
científica”. Para o marxista Tom Nairm, a “teoria do nacionalismo representa um
fracasso histórico do marxismo” (Anderson, 1998, p. 3). Infelizmente, para Anderson,
esse tom de lamento não tem significado um confronto com o tema, mas uma omissão.
Anderson propõe uma teoria do nacionalismo que possa desvendá-lo como
artefato cultural, social e político, ou seja, uma teoria que possa ser aplicada à
compreensão de outros nacionalismos ocorridos, ou em ocorrência, em contextos sociais
e históricos distanciados daqueles que lhe deram origem em fins do século XVIII e no
decorrer do século XIX nos continentes americano e europeu.
Em sua teoria, Anderson procura escapar de uma interpretação do nacionalismo
que o trate como produto de intenções deliberadas e exclusivamente políticas que se
impõem exteriormente a um público. O autor evita uma compreensão do nacionalismo
que o considere como “mascaramento” e “falsidade”, e não como “imaginação” e
“criação”. Sua teoria baseia-se na idéia de nação como “comunidade imaginada” por
aqueles que a ela se sentem pertencer por meio de códigos culturais, como a linguagem
falada e escrita. Tais códigos, especialmente a linguagem escrita dos romances e jornais,
funcionariam como acessos a um mundo imaginado como habitado por outros que são
iguais.
Revisando a literatura clássica da sociologia, Montserrat Guibernau (1997)
apresenta um argumento que ajuda a tanto esclarecer a ausência de um tratamento
sistemático do nacionalismo naqueles textos como entender o porquê de se compreendê-
lo como um fenômeno anômalo. A autora observa que, ao privilegiar questões que mais
de perto julgavam-se relacionadas com a ordem social e econômica emergentes no final
do século XVIII, conceitos como lutas de classe, divisão do trabalho e racionalização
alcançaram, nas reflexões de Marx, Durkheim e Weber, status privilegiado na
formulação de uma teoria geral da sociedade, que procurava iluminar tanto o presente
quanto os processos por que passaram as sociedades desde os seus primórdios. Embora
se possa identificar nesses autores clássicos uma preocupação com o tema da
nacionalidade, suas concepções teriam falhado em vista do caráter paradigmático que a
noção de industrialização assume na compreensão da maneira como os indivíduos

18
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

definem suas identidades no mundo moderno. Dessa forma, o nacionalismo é descurado


como provedor de identidade, ganhando relevo o modo como o trabalho é organizado, a
divisão de classes e as formas racionalizadas de ordenamento político e econômico.
Podemos deduzir, da análise de Guibernau, que uma reflexão que identifica no
desenvolvimento e transformações sociais um processo contínuo de racionalização se
desdobra em um entendimento acerca das motivações humanas como algo que se
cristaliza nas estruturas e instituições sociais originadas desse processo. Ou seja, a
sociedade industrial constitui ela mesma em parâmetro na definição do que seja a
consciência dos homens e dos motivos que os animam na vida social e política. Daí que
sentimentos relacionados à noção de pátria, língua, valores, etc. – matérias-primas do
nacionalismo – sejam relegados como irracionais.
Esse ponto relativo à compreensão da racionalidade que caracteriza os homens
no mundo moderno é retomado por Craig Calhoum (1995). Em uma crítica à literatura
política que condena movimentos sociais organizados em torno de considerações de
identidade como formas pré-políticas de participação, o autor retoma a idéia de
nacionalidade como uma espécie de identidade fundadora que teria moldado, no século
XIX, a noção de espaço público como hospedeiro da cidadania. A literatura política
contemporânea, de vertente liberal e marxista, em um esquecimento desse momento
fundador, elabora uma explicação sobre as motivações que impelem os homens à
participação e à luta política com base na noção de interesse. Desse modo, negligencia o
fato de que um apelo com base em identidades comuns foi necessário na organização
política do mundo moderno. No que concerne aos marxistas, Calhoum observa que a
criação de modernas políticas de classes funda-se na interpelação dos homens em sua
condição de trabalhadores como identidade que ultrapassa diversos ramos específicos de
atividades, de religião, de região, de gênero, etc.
Embora me pareça que, no seu estudo, Calhoum esteja mais interessado em
ressaltar um certo formalismo do pensamento político ao delimitar as condições em que
demandas sociais podem ser consideradas dignas ou de interesse público, excluindo
outras, o autor sugere o modo com que o nacionalismo tem sido tratado pelo
pensamento político. Assim como movimentos reivindicativos baseados em
considerações de gênero e etnia são tratados como temas de interesse privado,
pertencentes à ordem do natural e não do público, a nacionalidade também recebe o

19
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

mesmo destino. Problemático nesta perspectiva é que ela opera com o esquecimento de
dois fatos pretéritos. Primeiro, que a idéia de nação esteve subjacente às narrativas sobre
a modernidade, incluindo aí o próprio discurso sobre a democracia:

“Modern history has been constructed first and foremost as


national histories (...). The settled, established democracies of
the world are – to a worrying extent – those countries where
long process of national integration preceded the establishment
of democratic political institutions.” (Calhoum, 1995, p. 233-4)

O segundo fato, e o que mais diretamente orienta a crítica do autor, é quanto ao


caráter nada natural da idéia de nação. Em uma passagem em que discute com
Huntington, Calhoum observa que

“(...) the conditions for democracy were created in Western


Europe by bloody repression and forced cultural assimilation, by
projects of centralizing political power and state bulding that
show few signs of being part of a civilization destined to support
democracy, e and by a history of military conflicts whitin as
well as between state as disaustrous as anywhere”. (Calhoum,
1995, p. 234)

Este ponto é importante porque nos remete ao nacionalismo como um “artefato”


político, no dizer de Benedict Anderson. As sociedades democráticas integradas
pressupuseram a centralização política e o uso da violência, o que significa, também, o
modo como o Estado nacional foi construído.
Destaco nessas análises a atenção dos autores para três aspectos não
considerados pelos estudos que levam às conclusões sobre a anormalidade do
nacionalismo. Trata-se, em primeiro lugar, da aceitação do regime de racionalidade das
sociedades industriais como definidor da identidade e motivações dos indivíduos.
Guibernau (1997) enfatiza esse aspecto vinculando-o à ausência de análises mais
consistentes do nacionalismo nos estudos dos clássicos da sociologia. Essa talvez seja a
razão pela qual os autores mencionados por Anderson procurem entender o
nacionalismo à luz do liberalismo e do socialismo. Da mesma forma, Calhoum sugere
um certo racionalismo, baseado em uma compreensão mais econômica de interesse, das
teorias liberal, socialista e democrática. Em segundo lugar, trata-se de uma omissão

20
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

quanto ao papel ativo do Estado, violento e pacífico, no processo de construção de


sociedades nacionais integradas, e, em terceiro, de um descarte das narrativas sobre a
nação e das histórias culturais nesse processo.
A não-consideração desses três aspectos também está presente na crítica ao
nacionalismo teorizado no Brasil. Com relação ao primeiro, o do regime de
racionalidade, ele é tácito na perspectiva materialista que informa a crítica; sobre o
segundo, baseado na compreensão de que a forma de produção que caracteriza a
sociedade moderna é, por si só, pedagoga política dos indivíduos, o Estado configura-se
como inimigo, a ser mais combatido do que conquistado em um processo de luta
política; e quanto ao terceiro, as narrativas sobre a nacionalidade e a historiografia são
rejeitadas sob o rótulo de inventivas e mistificações.
Na seção que se segue, analiso, na perspectiva de dois autores, Ernest Gellner
(1983; 1996) e Imanuel Wallerstein (1995), a relação entre Estado e sociedade na
compreensão do nacionalismo. Com o primeiro autor, um modelo de análise calcado nas
mudanças estruturais da sociedade confere à sociedade preeminência na compreensão
do nacionalismo. Com Wallerstein, destaca-se a importância do Estado no contexto de
acomodação das ideologias socialista, liberal e conservadora em partidos políticos e o
reconhecimento do Estado como uma estrutura que deveria ser conquistada, e não
combatida.

1.4. Estado, sociedade e nacionalismo

O estudo de Gellner (1993; 1996) sobre o advento do nacionalismo baseia-se em


uma teoria denominada por ele materialista. A teoria é desenvolvida a partir de um
modelo que diferencia dois tipos ideais de sociedade: a agroletrada e a industrial. O
nacionalismo seria favorecido pela segunda, ao mesmo tempo que para esta o
nacionalismo também se tornaria imprescindível, pelo menos no início, no trânsito de
um tipo social para o outro.
Baseada em uma tecnologia estável e controlada por um estrato social
dominante, a sociedade agroletrada não estimula o crescimento econômico, do qual a
distribuição desigual do status social não depende. Muito pelo contrário, o equilíbrio
social se mantém em virtude de a reduzida capacidade da tecnologia demandar uma

21
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

mão-de-obra especializada. Essa sociedade é marcada pela heterogeneidade social, que


é tanto vertical como lateral. O isolamento entre as comunidades mantém a distância
cultural entre elas. A escolarização restrita reforça a distância social, dividindo as
pessoas pelo tipo de cultura que possuem: a cultura superior – adquirida por meio da
escolarização – e a inferior – desenvolvida nas práticas diárias.
Nessa sociedade agroletrada, as condições para o nacionalismo não existem, por
causa da heterogeneidade social, que a perpassa por inteiro. A organização política é de
dois tipos exclusivos e combinados. De um lado, a cidade-Estado, conduzindo-se
politicamente de forma autônoma, e, de outro, o domínio de grandes territórios, com
forças concentradas em um ponto específico. O que importa nesse modelo é que nele
não há forças sociais, econômicas e políticas capazes de promover a fusão entre a
cultura e o Estado.
A sociedade industrial baseia-se na inovação tecnológica e crescimento
econômico contínuo. O crescimento econômico “é o primeiro princípio de legitimação
desse tipo de sociedade” (Gellner, 1996, p. 115). O nacionalismo é o segundo princípio.
O trabalho físico cede lugar ao trabalho especializado, que exige e cria uma “cultura
operacional” capacitadora do manejo de instrumentos de trabalho sofisticados. Portanto,
na sociedade industrial, a educação deve ser universalizada, inibindo a proliferação de
subculturas internas. A cultura difundida é a superior, adquirida na escola. Supera-se,
portanto, o abismo entre cultura superior e inferior. O acesso a essa cultura passa a ser o
bem mais desejado, uma vez que é por meio dela que se adquire aceitabilidade social,
política e moral. O Estado se encarrega dos custos da universalização, constituindo-se
este o seu principal papel na promoção da homogeneidade cultural necessária ao
nacionalismo.
Além da homogeneidade cultural, a social também é promovida. Na medida em
que o crescimento econômico ou “afluência crescente” é o primeiro princípio de
legitimação, essa sociedade investe continuamente em inovação tecnológica e, também
de forma contínua, transforma a sua estrutura ocupacional. Esse fator tem impacto
direto na mobilidade ascencional dos indivíduos, que pelo mérito podem vir a ocupar os
cargos mais elevados da sociedade. Da instabilidade ocupacional resulta então outro
fator de promoção da homogeneidade: a igualdade social formal.

22
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

O estudo de Gellner sugere que o conhecimento da política como uma das


esferas da atividade humana parece ter gozado de relativa tranqüilidade e estabilidade
no trânsito das sociedades agroletradas para a modernidade. Tal conhecimento pôde se
desenvolver em um cenário social ocupado por comunidades locais, auto-reprodutoras,
fechadas, distanciadas das atividades de uma autoridade política central.
Nesse ponto, é possível associar a abordagem de Gellner sobre a sociedade
agroletrada com a análise de Nobert Elias (1997). Conforme observado por este autor, o
Estado moderno se desenvolveu seguindo uma lógica e interesses próprios
independentemente dos interesses dos governados. Recortado tal como estava da vida
social mais ampla, o Estado forneceu os ingredientes necessários à delimitação do
objeto da teoria política, que vai encontrar em Maquiavel o seu principal formulador.
A partir de Elias, pode-se dizer que, desde O Príncipe, a conquista de territórios
e a realização de interesses próprios com o uso legítimo da coerção são aceitos como
núcleo do que se entende ser a atividade exclusiva do Estado. No entanto, sob o impacto
da divisão orgânica do trabalho exigida pela industrialização, à medida que as antigas
comunidades locais vão sendo dissolvidas, vai se criando um espaço social mais
homogêneo. Assim, a distância entre governantes e governados vai diminuindo,
exigindo aproximação do Estado com o público. Com isso, os conteúdos próprios que
caracterizavam a atividade política vão se ampliando. A conquista tem como alvo não
apenas territórios alhures, mas também seres sociais, que já não dispõem dos códigos de
conduta e de crenças que a antiga conformação social fornecia. Trata-se da emergência
do Estado nacional moderno.
Voltando a Gellner, para este, o Estado moderno passaria a ter como atividade
mais importante a organização de um sistema universal de educação. O papel do Estado
na universalização do saber é entendido pelo autor como funcional a uma sociedade
marcada pela mudança e inovação contínuas, que não permite mais a acomodação das
pessoas a papéis ocupacionais estáveis. Com a democratização do saber, estariam
asseguradas as condições sociais e culturais necessárias para que homens e mulheres se
identificassem como pertencentes a uma comunidade comum. Com isso, Gellner afirma
que nações não existem por si mesmas, é o nacionalismo que lhes dá origem, na medida
em que condições são propiciadas para ele pela industrialização.

23
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Problemático nessa visão de Gellner é que as características propriamente novas


assumidas pelo Estado são explicadas em função do novo regime de produção e de
trocas. Da mesma forma, o nacionalismo é dependente dessa condição, constituindo-se
no elo ideológico entre Estado e sociedade. Se desejarmos delimitar a esfera própria da
política nessa concepção iremos encontrá-la tão-somente nos elementos tradicionais
apontados por Maquiavel. As categorias e conceitos relativos à emergência do público
são fornecidos pelas exigências do mundo econômico, tais como as noções de liberdade
e igualdade. Desse modo, se procurarmos pensar o papel próprio da política estatal na
promoção da sociedade integrada, esse papel só pode ser esclarecido em virtude das
demandas do mundo econômico, excluindo as políticas das quais o próprio
nacionalismo faz parte. 8 O desenvolvimento político como portador de uma lógica
própria nesse processo é difícil de se apreender. É a própria noção de desenvolvimento
político como distinto do desenvolvimento econômico com suas repercussões no mundo
social que está em jogo.
Portanto, na medida em que novos conteúdos emanados pela vida social só
podem ser explicados por critérios selecionados no mundo econômico, sendo a
economia entendida aí como o único fator dinâmico, a concepção maquiavélica de
Estado projetada na concepção mesma do que seja a atividade política tende a ser
reificada como algo que não participa do e nem é alterado pelo desenvolvimento
político da sociedade. A evolução, a mudança, a transformação, enfim, qualquer que
seja a dinâmica é vista como prerrogativa do mundo econômico, enquanto o Estado e
sua política permanecem essencialmente os mesmos. Disso decorre que, nas concepções
que operam com a dicotomia sociedade versus Estado, este aparece como elemento
estranho, uma figura quase mitológica, que na sua relação com o público interno atua,
na melhor das hipóteses, como guardião da segurança e da propriedade – tal como
Hobbes concebeu –, e, na pior das hipóteses, como protetor dos interesses da classe
dominante.
Observa-se que a perspectiva de Gellner acaba despolitizando a política naquilo
que diz respeito ao seu papel na constituição de uma esfera pública, na medida em que o
que lhe seria próprio fornecido na época – a universalização do saber – é atribuído à

8
Sobre as demandas políticas que inclinaram o Estado a uma atenção para com o público interno a
território específico, já fiz referencia ao estudo de Hobsbawm (2002). Outra referência que questiona esse
ponto em Gellner é Jonh Breuly (1996).

24
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

dinâmica social impulsionada pela industrialização. De acordo com essa ótica, o


nacionalismo também é despolitizado, na medida em que atuaria como uma espécie de
empresário cultural do Estado a serviço da ordem industrial.
O ponto ausente na perspectiva de Gellner – e que para mim responde pela
despolitização do Estado e do nacionalismo – é o que diz respeito ao modo como o
universo democrático foi construído e discursado. A análise de Wallerstein (1995) sobre
o modo como ideologias, como o socialismo e liberalismo, se firmaram é bastante
profícua para melhor compreendermos a questão. De acordo com esse autor, tais
ideologias não podem ser pensadas sem que se considerem as mudanças ocorridas na
vida política pós-Revolução Francesa, em que uma concepção de normalidade política
fundada na legitimidade do governante se desloca em favor da de soberania popular.
Essa mudança de padrão impôs aos pretendentes ao governo toda uma estratégia de
conquista e de mobilização popular que implicou a organização de partidos, a
preparação de uma agenda política e a elaboração de um discurso compreensível às
massas; um discurso que, portanto, interpelasse à maneira como elas se sentiam como
realidades humanas e sociais concretas.
Contudo, a organização na forma de partidos e de uma agenda política não foi
produto deliberado, racionalizado, exclusivo das cabeças de lideranças políticas.
Wallernstein observa que só após o fracasso de 1848 os socialistas descobriram que não
poderiam contar com uma rebelião espontânea dos trabalhadores. Além disso,
descobriram que as estruturas estatais eram suficientemente fortes e eficazes na
repressão dos levantes. Só então, depois de 1848, os socialistas “começaram seriamente
a se organizar em partidos, sindicatos e a organizar os trabalhadores”, e a conquista do
Estado passou a se constituir em estratégia para a transformação social. Os
acontecimentos daquele ano também despertaram os conservadores, só que para o fato
de que uma revolução era possível. O temor se lhes mostra imperativa a necessidade de
se construir uma sociedade mais integrada. Do lado liberal, a estratégia para conter a
rebelião foi fazer concessões às classes trabalhadoras, permitindo-lhes alguma
participação no poder e na riqueza excedente.
A análise de Wallerstein sugere que, na medida em que a idéia de soberania
popular se torna fato na concepção política moderna, as ideologias em disputas se
organizam em vista da conquista de um mundo social conturbado, que nega qualquer

25
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

afirmativa de que a industrialização e os seus desdobramentos em formas


administrativas racionalizadas sejam por si sós criadores de condições que tornem
possível uma homogeneização social, via sistema educacional ou qualquer outra
iniciativa do Estado.
Se pensarmos no caso da França sob o governo de Luís Filipe, nenhuma
iniciativa política que visasse à integração da nação parecia estar nos horizontes das
elites políticas. 9 Esse é um ponto que atraiu a atenção de Tocqueville (1991), ao atribuir
como uma das causas das rebeliões de 1848 a ausência de canais políticos capazes de
incorporar o povo. Naquele mundo político em que o país estava dividido em “duas
zonas desiguais”, observa, “o que mais faltava sobretudo no período final era a vida
política propriamente dita. Ela não podia nascer nem se manter no círculo legal que a
Constituição havia traçado; a antiga aristocracia estava vencida, o povo estava excluído”
(Tocqueville, 1991, p. 39). Tratava-se de um cenário em que os partidos não podiam
“guerrear” devido à demasiada confiança do rei nas engrenagens do Estado, longamente
construído ainda no Antigo Regime. Sobre isso, Tocqueville comenta:

“Muito orgulhoso das vantagens que tinha obtido do engenhoso


mecanismo, o rei Luís Filipe estava convencido de que, mesmo
que não pusesse sua mão sobre esse belo instrumento, como
fizera Luís XVIII, e o deixasse funcionar segundo suas regras,
estaria ao abrigo de todos os perigos.” (Tocqueville, 1991, p. 41)

É baseado nesse diagnóstico que faz Tocqueville de uma sociedade dividida em


duas zonas desiguais que se pode direcionar a análise de Wallerstein para a linguagem
que está sendo mobilizada naquele cenário. Embora Wallerstein não se refira ao
nacionalismo, mas sim aos partidos e às ideologias como organizadores do mundo
político, pode-se perceber que o discurso que está sendo mobilizado gira em torno da
igualdade. Igualdade esta com vistas a criar um sentimento de solidariedade como
condição mesma da afirmação dos partidos. E se pensarmos, por exemplo, no Manifesto
Comunista, quando Marx faz notar que os socialistas não devem ser acusados de desejar

9
Apesar da falta de iniciativa no que diz respeito à criação dos canais políticos, tal como observado por
Tocqueville, a observação de Wallerstein sobre a auto-intitulação de Luís Filipe como “Rei dos
Franceses” é sugestiva para a compreensão da relação entre governante e uma nação específica, no caso,
os franceses.

26
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

a abolição da propriedade privada porque ela já está abolida para 99% da população,
veremos que o discurso é endereçado a um “povo”.
Conforme Wallerstein explicita, a modulação política, tanto do Estado como da
sociedade, supôs demandas e discursos de caráter político definidos pela idéia de
igualdade. Emergentes em um contexto em que a idéia de soberania popular se afirma
como fonte da legitimidade política, as ideologias conservadora, liberal e socialista,
originalmente, têm em comum a hostilidade ao Estado como instituição contra qual a
sociedade devia ser protegida.
A questão que estava na base dessa oposição era se o Estado de fato refletiria a
vontade popular, que, segundo Wallerstein, constituiu-se na base existencial da
antinomia Estado versus sociedade. Contudo, o que se observa no processo é um reforço
das estruturas estatais, na medida em que o Estado vai se firmando para cada uma das
ideologias como meio eficiente na realização de suas agendas específicas e para a
conquista do poder. Para os socialistas, tornava-se claro que a conquista do Estado era o
“primeiro passo” na busca de fins de longo prazo. Além disso, enquanto a conquista não
ocorria, “a constant pressure for state intervention to regulate conditions of the
Workplace, the stabilishment by state of income transfer structures, and both the
legalization and the legitimation by the state of working class organizational activities”
(Wallerstein, 1995, p. 99), o que resultava no reforço do Estado. Para os conservadores,
a intervenção estatal se mostrava necessária em face de possíveis rupturas da ordem
social. Para os liberais, o risco de uma sociedade deixada ao arbítrio individual,
podendo gerar associações coercitivas da iniciativa e liberdade individuais, demandava
o poder regulatório do Estado no sentido de prevenir tais tendências. Ao lado desse
fortalecimento do Estado, a disputa entre as três posições as inclinava cada vez mais
para um discurso interpelador da vontade popular soberana com base na nacionalidade.
Em sua análise, Wallerstein apresenta Estado e sociedade como instâncias
relacionadas de um mesmo processo histórico que vão se alterando de acordo com as
demandas sociais e políticas dos atores que dinamizam esse processo. Em contraste com
essa perspectiva temos a de Gellner, que acaba por conduzir a uma compreensão do
período estruturada também pela relação Estado e sociedade, porém como esferas bem
nítidas e autônomas, de forma que se o Estado se altera é tão-somente com vistas a se

27
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

tornar mais funcional à economia. Desse modo, Gellner acaba se silenciando sobre as
demandas políticas que inclinam o Estado a uma relação para com o público interno.
Como podemos deduzir da análise de Wallernstein, o estudo da política
moderna, se preso a uma concepção de Estado versus sociedade, tende a manter essas
duas esferas em uma relação de estranhamento, impedindo que a alteração política de
seus conteúdos seja discernida. As ideologias, segundo esse autor, são oriundas da
sociedade moderna, identificando-se, primeiro, como expressões politizadas da
sociedade contra o Estado, mas que, ao mesmo tempo, passam a depender da estrutura
estatal na consecução de seus fins. Nesse movimento, os objetivos estatais também
sofrem alterações na sua relação com a sociedade.
Além da perspectiva marxista, que informa a crítica ao Estado nos estudos sobre
o ISEB, penso que essa crítica também é herdeira de uma tradição intelectual, cuja
compreensão sociológica do Brasil já nasce fundada no antagonismo sociedade ×
Estado. Tomo como marco histórico dessa tradição o ensaio de Paulo Prado, Retrato do
Brasil (1998), publicado pela primeira vez em 1926.
Nesse trabalho, ao lado das reflexões sobre a natureza tropical e a miscigenação,
que teriam contribuído para o aguçamento da cobiça, há uma visão negativa do Estado
português. Esse Estado aparece como devorador insaciável, que sangrava a colônia com
toda sorte de impostos, torrados em construções suntuosas, em tecidos de seda e lã, que
ele não produzia. Era um parasita da colônia, das bandeiras e da mineração, consumido
pela sede de ouro e pela inércia. No Post-scriptum, Prado reitera essa imagem negativa:

“O poder público, pacientemente, esperou os frutos da riqueza


semeada. E logo em seguida criou o imposto, como os
governadores do século XVIII e a metrópole estúpida, na
loucura do Ouro, criaram os quintos, os dízimos, as dízimas, as
quintas, a capitação e a derrama. Nesse afã, porém, a
administração pública faliu, não podendo acompanhar o
movimento progressista, ora lento, ora impetuoso. E
assoberbado, num afobamento tonto, ficou atrás: é quase um
empecilho e um trambolho.” (Prado, 1998, p. 201)

Em contraste com o Estado, no Brasil, desde os tempos das bandeiras, tudo se


devia à iniciativa privada, “que ergueu plantações, que estendeu pela terra virgem os
trilhos de caminho de ferro, que encheu de gado as grandes pastagens, que fundou

28
Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

cidades, organizou companhias e importou o conforto da vida material” (Prado, 1998, p.


201). Temos com Paulo Prado uma nítida oposição entre Estado e sociedade, em que
esta aparece quase se regendo a si própria, mas estorvada por um Estado não apenas
ineficiente, mas também devorador.
Essa visão negativa do Estado receberá, no contexto da institucionalização das
ciências sociais, fundamentação sociológica. No próximo capítulo analisarei como se dá
essa fundamentação, que, a meu ver, responde pela segunda dimensão que apontei na
crítica: a epistemológica.

29
Capítulo 2

Dilemas do conceito de nação


no contexto de institucionalização
das ciências sociais no Brasil

2.1. A crítica epistemológica ao nacionalismo

No primeiro capítulo, destaquei, na crítica dos anos 1970, uma das duas
dimensões que, para mim, a caracteriza. Trata-se do que considero ser o seu aspecto
propriamente político. Essa dimensão política fundamenta-se na perspectiva marxista
que informa uma compreensão da sociedade moderna como capitalista. No que diz
respeito a esse caráter político, considero que a crítica expressa suas próprias
insatisfações no contexto do regime militar, de maneira que, ao eleger o ISEB como
objeto de estudo acadêmico, o elege também como um veículo da crítica ao Estado
autoritário militar, entendido primeiramente como Estado burguês.
Ao mobilizar conceitos marxistas, acredito que os críticos encontram um amparo
conceitual adequado para a crítica ao Estado. Com os conceitos de relações sociais de
produção e as duas classes sociais que essas relações engendram na sociedade
capitalista, a crítica pode identificar o que Marx, na Ideologia Alemã (1989), aponta
como sendo o momento histórico em que “a consciência pode de fato imaginar que é
algo mais do que a consciência da prática existente, que ela representa realmente algo,
sem representar algo real” (Marx, 1989, p. 27). Este é o momento, segundo Marx, em
que a divisão do trabalho alcança um tal nível de desenvolvimento que, com a

30
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

propriedade privada, passa a implicar a contradição entre o “interesse isolado ou da


família isolada e o interesse coletivo de todos os indivíduos que mantêm relação entre
si” (Marx, 1989, p. 29). Dessa forma, o interesse coletivo passa a assumir, na qualidade
de Estado, uma forma independente, e torna possível ao Estado se apresentar como ente
universal ou como comunidade ilusória, destacada dos indivíduos reais. Com esse
aporte teórico, os críticos se encontram em condições de isolar o Estado como objeto de
análise, e aquilo que seria o seu “aparelho ideológico”: o ISEB.
Ao desenvolver as análises nessa direção, os estudos têm eles próprios caráter
político e ideológico. Ao criticarem o pensamento do ISEB, é contra o Estado que se
dirigem principalmente, como Estado burguês, em primeiro lugar, e como autoritário
militar, em segundo.
Neste capítulo, analisarei o que considero ser uma segunda dimensão da crítica
que diz respeito à epistemologia. Se, por um lado, com os conceitos marxistas, podemos
identificar a crítica política, por outro, eles não parecem suficientes para a compreensão
da crítica epistemológica, que tem como alvo o conceito de nação.
O fundamento da crítica epistemológica adviria da teoria da modernização,
fundada na idéia de tradição e modernidade como tipos de sociedade que se excluem
mutuamente. Proponho que a teoria da modernização foi congênita à organização do
campo da sociologia no Brasil, organização esta coincidente com a percepção de uma
sociedade em trânsito para o moderno, que seria verificado a partir das transformações
estruturais em ocorrência desde, mais ou menos, a década de 1930. Essa perspectiva, a
da transição, teria orientado tanto a sociologia de Florestan Fernandes quanto a de
Guerreiro Ramos. Ou, melhor dizendo, o modo de compreensão do moderno entre os
cientistas sociais em São Paulo e os do Rio de Janeiro. Porém, embora a percepção da
sociedade em trânsito tenha sido a principal referência empírica histórica a informar
uma teoria da modernização brasileira, o modo como a teoria da modernização foi
aplicada internamente ocorreu de maneiras distintas, resultando em “dois padrões do
trabalho sociológico”.
Conforme nota Lúcia Lippi de Oliveira (1995), com Guerreiro Ramos e
Florestan Fernandes, dois padrões do trabalho sociológico foram propostos nos anos
1950. Não cabe, neste momento, explicitar as diferenças entre os dois padrões, mas em
resumo é possível. Os dois modelos se contrapunham no que diz respeito ao que seria

31
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

uma sociologia universal, neutra, seguindo os padrões da sociologia durkheimiana e


uma sociologia nacional e comprometida. O primeiro modelo é defendido por Florestan
Fernandes e o segundo por Guerreiro Ramos.
O que desejo analisar neste capítulo é como a partir da idéia de modernização
esses dois padrões – o universal e o nacionalista – puderam ser elaborados. A análise
que faço da teoria da modernização nesses dois autores é orientada pelo estudo e pela
crítica de Bendix (1996) à teoria da modernização tal como ela vinha sendo aplicada no
contexto em que escreve. 10 O problema central que orienta a análise desse autor diz
respeito à impossibilidade de a teoria da modernização convencional poder iluminar os
processos de modernização por que passam as sociedades “seguidoras” dos modelos de
modernização política e econômica, fornecidos pelas transformações ocorridas nesses
campos, na França e na Inglaterra, respectivamente, a partir do século XVIII.
A limitação da teoria da modernização convencional, entre outros fatores,
adviria do fato de se trabalhar com a idéia de tradição e modernidade como tipos de
sociedade mutuamente excludentes, como estruturas que podiam ser identificadas a
partir de determinadas características dependentes e inter-relacionadas em cada um dos
modelos. Um outro fator seria o de pensar as mudanças como intrínsecas à sociedade
em que o fenômeno ocorre, desconsiderando o cenário externo do qual as sociedades
“seguidoras” participam, e mesmo aquelas que passaram a fornecer o modelo do que é
modernização. Trabalhando com um modelo de compreensão dual, escreve Bendix:

“O problema é geral. Todas as sociedades complexas têm uma


estrutura interna e um cenário externo. Do mesmo modo, todas
as sociedades complexas possuem uma estrutura formal de
autoridade governamental que difere e é relativamente
independente de formações de grupos que emergem da
organização social e econômica da sociedade. (...)” (Bendix,
1996, p. 368)

À luz das críticas de Bendix, identifico nos dois padrões assinalados supra a
mesma compreensão da modernização em termos de tradição e modernidade. Porém,
enquanto o modelo fornecido por Florestan Fernandes se aproxima mais do modelo

10
O livro de Bendix é de 1964. O autor apresenta uma tradição de pensamento vinculado à teoria da
modernização que viria desde Adam Fergunson, passando por Marx, Durkheim até Talcot Parsons, entre
outros.

32
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

observado por Bendix, ou seja, o de tratar tradição e modernidade como tipos sociais
mutuamente excludentes, o de Guerreiro evita essa abordagem. A razão adviria
exatamente de que neste autor a modernização é analisada considerando-se o cenário
externo, o qual é remontado à forma de ingresso do Brasil na comunidade internacional
pela via do comércio. Dessa entrada resultará uma compreensão do Brasil que o
configura nos anos 1950 como internamente dual, um setor moderno e outro atrasado,
mas também múltiplo. A multiplicidade diz respeito aos graus distintos de
desenvolvimento regional, e é por meio dela que Guerreiro apreende a própria dualidade
mais como categoria compreensiva do padrão de desenvolvimento, que no Brasil teria
ensejado uma coleção de temporalidades distintas. Desse modo, a dualidade em
Guerreiro, o atraso e o moderno, são categorias que não se excluem temporal e
espacialmente, sendo ela condutora de um escrutínio da história brasileira.
No modelo de Florestan, os indicadores do moderno e o lugar onde eles se
manifestam promovem um corte histórico no mesmo momento em que o moderno é
identificado. Haveria um antes e um depois na história brasileira, os quais são
compreendidos em termos de dois tipos de sociedade mutuamente excludentes. O
passado, com seu correspondente tipo social, indicaria o fator que lá determinaria o
atraso. Amparada pelo conhecimento desse fator, a sociologia poderia indicar no
moderno o fator principal de modernização, e a partir dele indicar a via da
modernização. Desse modo, o elemento principal de modernização é oriundo do
complexo de características identificadas como modernas, as quais não estariam
presentes na configuração anterior. Porém, como veremos, a sociologia em São Paulo
não poderá prescindir de um ator que conduza o processo de modernização. O
“inovador” é apreendido do próprio complexo social que indica o moderno. O demiurgo
será o intelectual que porta o “saber racional”, característica principal do moderno, o
que se traduziria na educação escolarizada.
Essa análise é apresentada mais adiante. O que desejo, a partir dessa indicação
de como o ente modernizador é identificado pelo tipo de sociologia da modernização
presente no estudo de Florestan, é o modo como esta teoria serve de parâmetro ao que é
entendido como ciência pela crítica e com base no que é considerado ciência
desqualifica o pensamento do ISEB como ideologia.

33
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

Como veremos mais adiante, a compreensão da sociedade brasileira em termos


de tradição e moderno identifica, no primeiro tipo, o modelo de Estado patrimonialista,
formado em um complexo de relações familísticas. Comprometido com uma ordem
social em que o domínio doméstico é predominante, não é do Estado que a idéia de
público poderá florescer no Brasil. É com a urbanização e a implantação de cursos
superiores que a idéia de público começa a germinar. É do contexto da cidade e da
universidade que a crítica ao complexo escravocrata, incluindo o Estado, começa. O
pensamento crítico é entendido como racional, e dessa racionalidade participam a
própria crítica ao Estado e a orientação para um tipo de sociedade entendida como
moderna. O que se verifica é que, dado o seu alinhamento com a cidade, o pensamento
racional já nasce comprometido com a construção de uma ordem civil, na qual estaria
excluído o Estado como condutor do processo.
O que quero deduzir disso é que a teoria da modernização que informa esse
modo de analisar a sociedade brasileira, informa também o que seria ciência. A ciência
seria um tipo de saber que nasce, além de sem ter nenhum comprometimento com o
Estado, como seu crítico. Por isso, penso que a crítica epistemológica ao ISEB não se
fundamenta na teoria marxista, mas na teoria da modernização da sociologia paulista
dos anos 1950. Então, ao se referir ao nacionalismo como ideologia, o que seria essa
ideologia é compreendido em termos de falsificação da ciência, visto que o que informa
a idéia de ciência é a idéia de sociedade civil, o que, por sua vez, é deduzido da ordem
urbano-industrial.
A continuidade em relação aos anos 1950 na crítica pode ser observada na
insistência com que o conceito de nação é alvejado. Noto na crítica que, ao mesmo
tempo que o conceito de nação é o seu alvo, porque aparece para ela como fabricação
ideológica do ISEB, ele, o conceito, parece também fundamentar a crítica, desfrutando
da mesma dignidade cognitiva dos conceitos marxistas, como referencial empírico
interno ao pensamento estudado como explicativo de uma determinada compreensão do
Estado. Ou seja, se a concepção marxista, por meio do conceito de relações sociais de
produção, fornece o conceito de contradições de classe como fundamento empírico de
compreensão do Estado na sociedade capitalista, uma outra teoria, a do ISEB, oferece o
conceito de nação, com o que dilui a contradição entre classes.

34
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

Entendo que o conceito de nação fundamente a crítica pelo fato mesmo de que a
crítica, ao mobilizar os conceitos marxistas, se estrutura indicando a ausência deles na
reflexão do ISEB. Ou seja, ela analisa o pensamento por aquilo que não estava lá: o
conceito de luta de classes. No entanto, indica, também, o que estava lá: o conceito de
nação, no qual a contradição estaria diluída. Os estudos críticos são bastante profícuos
quando, ao procurarem identificar o fundamento empírico da reflexão do ISEB, a nação,
na intenção de desqualificá-lo como empiria fabricada, ilusória, acabam por sinalizar a
presença de um conceito que parece ter sido bastante eficiente na produção de uma
teoria sobre o Brasil e ter tido grande poder de mobilização política e cultural.
Renato Ortiz (1985), ao comentar a crítica, com a qual ele concorda, de Franco a
Álvaro Vieira Pinto, chama atenção para a grande popularidade do pensamento do ISEB
na esfera cultural, o que o teria transformado, nas palavras do autor, em uma espécie de
“religiosidade popular”. Dentre os diversos movimentos políticos e intelectuais nos
quais os conceitos do ISEB se difundiram, Ortiz chama atenção para influência isebiana
no teatro e no cinema, sobre o que faz a seguinte observação:

“É suficiente ler os textos de Guarnieri e Boal sobre o teatro


nacional para se perceber o quanto eles devem aos conceitos de
cultura alienada, de popular e de nacional. Fala-se assim na
necessidade de se implantar um ‘teatro nacional’ em
contraposição a um ‘teatro alienado’, cujo modelo seria o Teatro
Brasileiro de Comédia; em algumas passagens, figuras de
expressão do ISEB são explicitamente citadas no texto.” (Ortiz,
1985, p. 48)

Como se pode notar na observação de Ortiz, a gama de conceitos que se


difundiram está intimamente ligada ao conceito de nação, ou seja, é dependente desse
conceito central. Desse modo, podemos dizer que a precariedade do fundamento
empírico da teoria isebiana não era tão precária assim. Devemos nos lembrar, no
entanto, de que a crítica, ao deslindar a centralidade da nação no pensamento isebiano,
como um conceito no qual, para ela, se sustentara uma teoria do Estado como ente
universal, não parte imediatamente do conceito de nação, mas do modo como ele fora
formulado. Portanto, a crítica se dirige a uma teoria, não ao fenômeno nacionalismo.
Para Toledo e Franco, os isebianos puderam chegar à formulação dessa idéia por
meio de uma compreensão da história em termos de fases. Com base na sucessão

35
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

dialética das fases é que teria sido possível ao ISEB formular a teoria das ideologias
representativas e autênticas, residindo aí o golpe de mestre contra o conceito de luta de
classes, dando lugar ao de nação. Portanto, o grande mérito do estudo de Toledo foi o de
ter chegado ao cerne do modo como a idéia de nação foi formulada conceitualmente. O
fato de ter sido esse o grande mérito, com o que concordo, me sugere que aos críticos
não importa o fato de que a questão nacional tenha povoado o cenário político e
intelectual dos anos 1950, e desde antes. Se isso não importa é porque o foco da crítica
não é o nacionalismo do ISEB como um fenômeno histórico, melhor dizendo, da
ideologia do ISEB como ela mesma expressando os sentimentos políticos e culturais da
época. Desse modo, se o pensamento do ISEB não interessa como sendo ele mesmo
fenômeno da empiria histórica em que atua, então parece que o ISEB é focalizado como
algo que “sobrevoa” aquele contexto. O caráter de sobrevoante, para mim, deriva do
fato de se tratar de uma teoria, o que é o alvo da crítica epistemológica; daí o a priori da
crítica ser informado por outra teoria, a teoria da modernização, que mencionei
anteriormente.
Evidentemente que se minha observação quanto ao caráter interessado da crítica
relativamente ao Estado autoritário militar da sua própria época está correta, então um
ponto de partida já estaria garantido pela própria compreensão política do Estado como
autoritário. A condição de sobrevoante do ISEB seria explicada pela própria
compreensão que se tem do Estado em relação à sociedade. No entanto, fiz notar na
introdução deste capítulo como os críticos buscam legitimar a crítica ao ISEB e,
conseqüentemente, ao Estado partindo de uma determinada compreensão da teoria de
Marx. Ou seja, busca-se uma fundamentação teórica para a crítica política ao Estado.
Portanto, o a priori histórico da análise, a visão do Estado no regime autoritário militar,
se neutralizaria na cientificidade dos conceitos mobilizados.
Podemos questionar, contudo, a capacidade de legitimação da teoria como ela é
utilizada pela crítica em um trabalho que tem como objeto um fenômeno historicamente
datado, em um contexto em que as ações políticas são adjetivadas exatamente pelo
conceito que a crítica quer mostrar, que é falso. A meu ver, os conceitos marxistas não
têm eles mesmos, na crítica, força teórica autolegitimadora no que diz respeito ao
estudo do objeto histórico em questão: o nacionalismo. Para mim eles se legitimam

36
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

como fundamentos teóricos de uma crítica política ao Estado burguês em geral, mas não
de uma crítica epistemológica ao pensamento do ISEB.
Para que os conceitos marxistas se autolegitimassem como científicos na crítica
ao ISEB, os críticos teriam de estar dispostos a um maior enfrentamento com a empiria
histórica da época em que os isebianos escrevem, em vez de só demonstrar ausências
conceituais nos seus textos. Teriam de demonstrar as lutas de classes se desenvolvendo
de forma racional na direção da destruição do Estado burguês, e com isso questionar o
nacionalismo isebiano. Ou então enfrentar o fato de que o adjetivo nacional não
complementou apenas o engajamento e discurso político do ISEB, mas também outras
formas de engajamento político. 11 Teriam de explicar o nacionalismo e a sua incidência
em processos de modernização política, econômica e social. Resumindo, a
autolegitimação das categorias marxistas deveria advir de uma legitimação histórica, o
que, me parece, reclamaria uma compreensão do Brasil-nação na sua relação com outras
nações capitalistas ou mais adiantadas. Esse enfrentamento com a empiria histórica
tornaria mais plausíveis para a crítica termos como imperialismo, antinação e
subdesenvolvimento, que povoam os escritos isebianos e da época. Creio que posso
dizer, em termos marxistas, que os críticos se detiveram na superestrutura ideológica,
nos fatores que, segundo Marx, a constituem, Estado e representações ideológicas.
Quanto ao nexo lógico-histórico entre infra e superestrutura, a crítica parece deixar a
resposta para a autoridade da teoria, deduzindo do conceito de modo de produção
capitalista as bases econômicas da superestrutura política e ideológica brasileira. Ou
seja, a infra-estrutura de um país economicamente dependente é desprezada. De modo
que o que me parece informar a crítica é o modelo de uma sociedade na qual a
revolução burguesa já teria ocorrido.
Não divago sem rumo quando apresento esse raciocínio sobre a infra e
superestrutura na crítica. Tenho um objetivo bastante preciso, que é o de destacar que,

11
Ao comentar a crítica de Caio Navarro ao misticismo do par nação e antinação no pensamento isebiano,
Bolívar Lamounier observa que, nos anos 1950, “para muitos... o jargão nacionalista significava
justamente o oposto da alegada mistificação. Significava crítica ao status quo; significava tomada de
consciência de inúmeros problemas, entre os quais o da desigualdade, quer ou não percebida em termos
de estrutura de classes; e, sobretudo significava abertura política, abertura de um espaço maior para a
participação” (Lamounier, 1978, p. 156). Nélson Werneck Sodré (1978), assim como Lamounier, também
cobra da crítica uma referência mais exata da época. Além desses autores, para uma visão mais
panorâmica do debate político envolvendo a questão nacional, ver Luiz Werneck Vianna (1988) e César
Guimarães (2001).

37
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

dentre os componentes da superestrutura, há um que parece ter função determinante em


relação aos demais na crítica. Trata-se da própria teoria ou ideologia, como queira,
nacionalista, ou seja, das idéias. A ênfase no caráter de mito ou de falsificação das
idéias nacionalistas é de tal forma insistente que me faz pensar que ela atua, para os
críticos, como uma espécie de profecia, que, uma vez pronunciada, se auto-realiza. Ela
se realizaria começando pelo próprio direcionamento da economia pelo Estado, por
meio da política desenvolvimentista. O paradoxo da crítica reside no fato de que se, por
um lado, ela procura se legitimar com base na afirmação de que somos capitalistas, por
outro parece temer que o capitalismo dependa do voluntarismo do Estado e das idéias.
Mas, por que o nacionalismo parece tão temível para a crítica? Se há uma consciência
proletária, provavelmente estaria imune à contaminação ideológica do nacionalismo.
Mas se, ao mesmo tempo, entende-se que há consciência de classe e risco de
contaminação, então há um paradoxo, e esse paradoxo deve ser respondido, então, pelo
fato de que, para os críticos, o nacionalismo teria buscado respaldo na ciência, se
apresentado como ciência. Lembremos que Maria Sylvia Carvalho Franco alerta para o
fato de que, ao se definir como “...Centro de Estudos que recorre à sociologia, à história,
à economia e à política... [o] pensamento do ISEB caracteriza-se a si mesmo como
ideologia e se nutre da grande fonte de verdade moderna: a ciência” (grifo meu, pp.
154-5).
É recorrente a ênfase na idéia de Razão, de ratio, como sendo o revestimento
lógico-científico com que o ISEB teria se apresentado ao público. O que parece pautar a
crítica e o próprio pensamento questionado por ela é a relação entre ciência e ideologia.
O problemático no ISEB não seria, então, o ter-se proclamado nacionalista, mas o ter
tentado produzir uma “mística” de neutralidade científica para o discurso nacionalista
baseado na idéia de nação. Ou seja, o ISEB formulou uma teoria errada, que não era
ciência. Com base em que se pode afirmar que aquela teoria não era científica, mas um
simulacro de ciência? Com base no modelo vitorioso no debate sobre as ciências sociais
nos anos 1950. Uma ciência social que nasce como instrumento da sociedade civil e
como crítica ao Estado é que orientaria a idéia de ciência correta em face da qual um
pensamento que se apresenta como científico, mas que não descura do papel do Estado
na construção de uma boa sociedade, só poderia ser falsificador.

38
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

É considerando essa dimensão epistemológica como constituinte da crítica que


penso que uma análise do nacionalismo no contexto da institucionalização das ciências
sociais seja importante. Um aprofundamento na análise sobre os dois padrões propostos
naquele contexto não tem por objetivo, nesta tese, reiterar a clássica querela entre Rio e
São Paulo, mas analisar como duas representações de Brasil estão sendo ali formuladas
e as suas conseqüências políticas posteriores. Penso poder seguir a sugestão de Gláucia
Villas Bôas e Eduardo Jardim (1982) sobre a importância do que eles consideram ser,
no estudo que empreendem sobre o modernismo e o desenvolvimento, o exame da
“constituição histórico-política dos conceitos que sustentam seja a problemática
modernista, seja a problemática do desenvolvimento” (Villas Boas; Jardim, 1982, p. 1).
Os autores questionam o fato de que, no Brasil, os críticos da ordem capitalista e do
imperialismo teriam “subtraído do campo da crítica os instrumentos que utilizam”. Ao
se proceder desse modo, não se estaria considerando que

“A expansão do mundo capitalista constitui, também, a


expansão de um regime de racionalidade que lhe é inerente. Em
outros termos, aquilo que aparece na história das ciências como
universalização do campo do saber científico precisaria ser
analisado como uma das faces do processo da expansão
capitalista.” (Villas Boas; Jardim, 1982, p. 3) 12

No sentido desse raciocínio, o primeiro objetivo na minha análise será focalizar


na proposta dos dois padrões assinalados por Oliveira o modo como duas representações
conceituais e históricas de Brasil estão sendo elaboradas: sociedade e nação. Restrinjo-
me, neste capítulo, à análise dessas representações no campo da sociologia e da
antropologia. Ao terminar, proponho que a representação da Antropologia não esgota
toda a compreensão que se teve do conceito de nação, e sugiro uma segunda
compreensão, que será objeto na continuação da tese. Como segundo objetivo, juntarei a
essas duas representações a formulação sociológica dos conceitos de sociedade e
nação. 13 Um terceiro será analisar como, subjacentes a esses dois conceitos, há duas

12
Nesta mesma linha de raciocínio, Mariza Peirano lembra a recomendação de Norbert Elias sobre a
importância de se averiguarem os aspectos ideológicos das teorias sociais, em particular o próprio
conceito de sociedades complexas no contexto em que ele foi gerado (Antropologia no plural).
13
Esforço-me para distinguir o que chamo de representação e conceito, pois, pelo primeiro termo,
entendo uma apreensão mais intuitiva e afetiva da vida coletiva brasileira no passado e no presente. Pelo
segundo, a representação é elaborada na forma conceitual, sendo essa forma constitutiva da construção de

39
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

concepções de história: uma que analisa as transformações estruturais da sociedade


brasileira desde os anos 1920, mais ou menos em uma linha de continuidade histórica
com o passado, e outra que identifica nessas transformações rupturas radicais. O quarto
objetivo será analisar como, juntamente a uma concepção da convivência coletiva
brasileira em termos de sociedade, também uma idéia de Estado como antagônico à
sociedade foi produzida. Neste ponto, destaco que, aquilo que inicialmente foi
elaborado como conceito sociológico, sociedade, passa a ter também uma conotação
política, isto é, a sociedade como um ente do qual o Estado é um inimigo, devendo ser
combatido.
Com esta análise da maneira como o Estado passa a ser conceituado pela
sociologia nos anos 1950, pretendo lançar luz sobre a forma dupla com que a crítica nos
anos 1970 se refere ao Estado. Com o aporte da teoria marxista, o Estado é criticado
como burguês ou Estado capitalista, e com o aporte de uma determinada compreensão
do Estado produzida pela sociologia nos anos 1950, ele é focalizado como autoritário.
Desse modo, com a análise marxista, a crítica dos anos 1970 mobiliza um arcabouço
conceitual próprio à época, especialmente o marxismo de Althusser; com a análise
sociológica, a crítica continua um modelo de compreensão do Estado como autoritário e
guardião de interesses de elites tradicionais. Com esta análise do Estado será possível
entender melhor o alinhamento entre a visão que se tem dele e o conceito de nação e a
concepção de história que lhe dá suporte na crítica. Por fim, o quinto objetivo será
destacar o segundo fator que teria impedido, conforme apontei no primeiro capítulo, a
crítica de compreender o fenômeno do nacionalismo: o regime de racionalidade das
instituições da sociedade moderna projetado nas motivações individuais.
No encaminhamento das análises a que me proponho neste capítulo, opto por
analisar o processo de institucionalização das ciências sociais nos anos 1950 em termos
de um debate que teve no seu centro uma representação do Brasil como nação. Isto é,
embora tenha como fim distinguir representações e conceitos distintos, sociedade e

um campo de saber, no caso o da sociologia, e que diz respeito ao próprio processo de institucionalização
das ciências sociais. Acredito que essa distinção seja importante para entendermos a aproximação que
Werneck Vianna (1997) faz entre os sociólogos da USP e os isebianos, ao identificá-los como
mannheimianos, ou seja, como uma intelligentzia que visa a produzir uma “síntese” da sociedade
brasileira e generalizar os conhecimentos adquiridos ao público. Conforme penso, numa representação
mais intuitiva e afetiva já estaria uma predisposição política e ideológica ligada a uma concepção
idealizada da sociedade que se deseja ter. Essa predisposição política inicial é, posteriormente,
generalizada ao público na forma de conceitos científicos.

40
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

nação, procuro colher a própria elaboração dessas idéias em um cenário mais amplo, em
que a preocupação com a identidade nacional e com a independência intelectual foi
regente. Por isso, iniciarei esta reflexão com um texto de Richard Morse sobre o
contexto da sociologia paulista e seus dilemas em face das peculiaridades de uma
sociedade em processo rápido de modernização social e econômica.

2.2. A sociologia paulista e a questão da identidade nacional

Richard Morse (1978) apresenta de maneira instigante um panorama histórico do


desenvolvimento do pensamento social e político no Brasil. Ultrapassando marcos que
designam datas, locais e concepções acerca dos padrões que legitimam a atividade
científica, o autor reúne autores cujas reflexões sobre a sociedade brasileira foram
orientadas pela idéia de identidade nacional. A análise dos escritos por Morse é
orientada pelo que ele denomina “móveis culturais e históricos”, presentes na
elaboração da realidade social.
Na resposta que procura dar à questão da proeminência da economia em
Manchester e da sociologia em São Paulo, cuja comparação é tornada possível pela
exposição das duas cidades aos efeitos da industrialização recebidos como choque por
suas respectivas elites intelectuais, o autor avisa, desde logo, que seu ponto de partida
não é a práxis, mas ingredientes culturais e históricos que, conforme se deduz da
seguinte passagem, orientam o pensamento e a ação:

“Por que a economia se tornou proeminente em Manchester e a


sociologia em São Paulo, se podemos atribuir uma semente de
sabedoria sintomática à designação das nossas ‘escolas’? Logo
descobrimos que a questão depende menos do tema da práxis do
que da maneira como a elaboração da realidade social propicia
elementos para o controle intelectual. A economia e a sociologia
não devem ser tratadas aqui como especialidades curriculares ou
como ‘disciplinas’, mas como matrizes para uma ampla gama de
conhecimentos da ‘questão social’.” (Morse, 1978, p. 34)

A práxis não deve constituir o ponto de partida em razão de não ser ela o melhor
caminho na compreensão da diferença de que se incumbe o autor demonstrar. Tal
caminho, pode-se deduzir, poderia levar a uma conclusão depreciativa da atividade

41
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

intelectual, em princípio paulista, diante do fenômeno da industrialização e das


exigências que impõem as atividades cognitiva e interventora. No âmbito restrito da
matéria tratada por Morse, o impacto da industrialização em Manchester descobriu, ao
olhar de um Engels e de um Tocqueville, uma sociedade rachada, dividida em classes,
cenário que abre uma agenda de estudos sobre a cidade diretamente subordinados a um
propósito racionalizador desempenhado pelos estudos estatísticos. Fundamental ao
pragmatismo de que se revestiu a atividade cognitiva foi o fato de os intelectuais não
terem de se debruçar sobre o tema da nacionalidade, pois, nas palavras de Morse,

“...os ingleses partilharam uma visão implícita de uma sociedade


nacional inclusiva que se expandiu por séculos, criando as
instituições, os acordos legais, as filosofias sociais, a liderança e
os símbolos nacionais convincentes que cada momento histórico
exigia. Sob as pressões modernas da industrialização, alguns
pegaram as deixas de communitas imaginárias, de eras passadas,
outros colocavam sua fé no racionalismo reparador, outros ainda
sentiram o grande dinamismo da transformação histórica em
curso. Mas todos partilhavam da imagem de uma sociedade
nacional coerente que persistia através dos tempos.” (Morse,
1978, p. 36)

Podemos dizer, então, que a imagem de uma sociedade nacional por longo
tempo integrada fazia recair o espanto diante dos efeitos da ordem urbano-industrial
sobre a cidade, ao mesmo tempo que fornecia o ponto de apoio para projetos
reintegradores. 14
No Brasil, o impacto da industrialização produzia efeitos distintos na imaginação
intelectual. Desenvolvendo uma interpretação que o texto de Morse torna possível,
pode-se afirmar que, enquanto na Inglaterra a industrialização fazia sentir seus efeitos
desorganizadores através da cidade, do urbano, evidenciando esse espaço e os
fenômenos a ele relacionados como universo empírico do labor intelectual, no Brasil,
ela se faz perceber através de um espaço muito mais amplo do que o da cidade. Trata-se
do próprio território nacional. De um modo geral, na Europa, autores como Tocqueville,
Engels, Marx e Durkheim puderam produzir uma imagem das fissuras entre seres
humanos em termos societários, como classe e individualismo, sem vinculá-las à

14
De acordo com Bendix (1996), uma razão para que os intelectuais Europeus percebessem a mudança
social como interna decorreria da relativa integridade das nações européias.

42
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

geografia nacional. No Brasil, observa-se que a imagem das cisões sociais provocadas
pela industrialização projeta-se sobre o território ora recortando-o com categorias
culturais e étnicas, ora com categorias políticas, em que se sobressai a relação entre
poder central e poder local, ora em termos das diferenças econômicas e culturais
regionais. Em comum a essas abordagens o fato de que, simultaneamente a elas, a
imagem do Brasil como nação se descortina. Daí que, em vez de classes e indivíduos, as
categorias recorrentes no pensamento social e político brasileiro serão a de povo, cultura
popular, cultura de folk freqüentemente acompanhadas de outra de caráter político-
geográfico, a de nação, especialmente a nação cultural e a nação política.
Apoiado no que seriam os móveis culturais e históricos do pensamento social
brasileiro, Morse reúne autores como Sílvio Romero, José Veríssimo, Paulo Prado,
Alberto Torres, Oliveira Vianna, atando-os à continuidade que estabelece entre a pauta
de estudos aberta pelo modernismo e a sociologia paulista dos anos 1950. Comum a
todos o tema persistente da identidade nacional. Comentando a crítica de George
Gurvitch à deficiência dos sociólogos brasileiros quanto à “exploração da cidade de São
Paulo como um laboratório social único”, Morse sugere que tal deficiência deveria ser
creditada à desconfiança que os sociólogos brasileiros teriam da eficácia dos
conhecimentos transmitidos pelos professores estrangeiros na compreensão da realidade
nacional. Daí que a pauta modernista ainda se faria presente nos temas substantivos a
serem pesquisados, o que tornava indispensável um “ponto de apoio cognitivo” para que
os estudos sociológicos não fossem “um simples mimetismo”. Corrobora o autor o
balanço crítico que Florestan Fernandes faz da sua experiência na USP (1977), em que
lembra a reação dos estudantes ao caráter colonialista impresso nas atitudes pedagógicas
dos professores estrangeiros, cujos ensinamentos se distanciavam em muito da realidade
local. Segundo o autor, ao intelectual brasileiro impunha a tarefa de redefinição do
ensino universitário, a fim de que ele se adequasse ao estudante brasileiro. Desse modo,
podemos dizer que uma preocupação com a independência intelectual em relação ao que
seria uma dominação espiritual pelas nações desenvolvidas constituiu um dos ideais que
nortearam a construção das ciências sociais nos anos 1950. 15

15
Ao escrever “um dos ideais”, tenho em mente uma outra preocupação que regeu as ciências sociais,
trata-se da democratização da sociedade brasileira. Sobre esse ponto, escreverei mais adiante, em
princípio, analisando como essa questão esteve diretamente associada às preocupações com o método de
Florestan Fernandes.

43
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

Ressalto na análise de Morse a identificação do tema da identidade nacional


como um fio condutor que permite estabelecer uma continuidade entre o presente e o
passado do pensamento social brasileiro nos anos 1950. Ao contrário de uma outra
matriz de estudos do pensamento social e político, a institucional, que enfatiza uma
ruptura, identificando uma fase “fase ensaísta” e a “fase científica”, Santos (1978) 16
Considerando o modo como essa matriz trata o passado das idéias, mais importante é
que, com Morse, podemos identificar esse tema exatamente em um espaço institucional
que serviu e ainda serve de parâmetro à indicação daquela ruptura, e, concluindo, ao
apontar a questão da identidade nacional em um contexto em que as motivações
imediatas dos estudos sociais são entendidas como advindas da dinâmica dos interesses
e do conflito, permite-nos repensar o tema da identidade nacional nos anos 1950.
O texto de Morse me faz pensar na análise de Montserrat Guibernau sobre a
ausência de uma análise sistemática do nacionalismo nos escritos dos clássicos da
sociologia. Apesar dessa ausência, a autora mostra como a questão nacional teria
permeado as reflexões de Durkheim, Marx e Weber. Preocupações com temas como
Estado, religião e patriotismo assinalariam a presença do fenômeno no contexto das
reflexões daqueles autores. O que Guibernau parece sugerir é a latência do fenômeno
nacionalismo como um objeto de estudo, mas que permaneceu dessa forma em virtude
de outros fenômenos se apresentarem mais claramente como novidade, ou seja, o
advento da sociedade de classes, a divisão do trabalho e formas burocráticas de
racionalização política e econômica. Conforme deduzo das observações da autora, o
estudo do nacionalismo requereria uma compreensão mais integrada de todos esses
aspectos mais aqueles que ficaram diluídos nos temas principais considerados
sociológicos: Estado, religião e patriotismo. Um outro aspecto ainda mencionado pela
autora é o passado mais longo das nações modernas, cujas raízes históricas se
encontrariam na constituição de lealdades grupais proporcionadas pelo sentimento de
exclusão, o que teria levado à “comparação com o estrangeiro’”, sendo isso mais um
ingrediente da imaginação da nação.

16
Segundo essa matriz, “o período científico das ciências sociais no Brasil se inicia com a criação de
cursos superiores, a importação de professores estrangeiros e a introdução das técnicas de investigação de
campo...” (Santos, 1978, p. 26). O autor questiona essa compreensão da história da produção intelectual
brasileira devido ao desprezo a que ela relega toda a produção anterior a 1930, e, portanto, tornando-a
irrelevante para “o progresso da ciência”.

44
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

Baseada na análise da autora, penso que o nacionalismo se insinuava no contexto


da elaboração do pensamento social como sendo ele mesmo um tipo de objeto que
poderia ter ensejado uma disciplina específica em relação a outras constitutivas do
campo mais amplo das ciências sociais, como a sociologia, a ciência política e a
antropologia. Tal disciplina ou campo de saber abarcaria cada um dos conteúdos que
fundamentam cada um desses campos de saber, como sociedades complexas, cultura,
Estado e classe política. Na medida em que o próprio objeto informaria a forma
epistemológica de abordá-lo, isto é, um fenômeno que a si mesmo se designa como
forma particular de sociabilidade e de relacionamento com outras formas, teria de
abarcar ainda a história e a geografia. Mas o nacionalismo não foi, no século XIX,
objeto de uma reflexão totalizadora desse tipo. Talvez esteja sendo com a literatura
recente sobre o fenômeno.
No entanto, se o nacionalismo não constituiu uma disciplina específica, uma
compreensão mais elaborada dele me parece ter sido possível pelas condições históricas
e sociais que propiciaram o surgimento da antropologia. Essa disciplina teria se formado
a partir de temas que o pensamento sociológico em formação não abarcaria por não
serem identificados como próprios de uma nova ordem social. Desse modo, penso que a
constituição quase simultânea desses dois campos de saber na Europa é ela mesma
expressiva de dois tipos de representação social convivendo de modo ambivalente. O
texto de Morse também me parece sugerir essa ambivalência. Por isso, no que se segue,
tentarei aprofundar a análise do contexto analisado por Morse a partir da constituição
desses dois campos no Brasil. Antes, porém, farei uma breve exposição de como teria
sido a elaboração da reflexão sociológica e antropológica na Europa tomando como
base um texto de Anthony Giddens (1984) sobre o contexto de surgimento da
sociologia.

2.3. A sociologia, a antropologia e os seus objetos

De acordo com Giddens (1984), a sociologia deriva sua especificidade da


relação que mantém com o alvorecer da ordem urbano-industrial, enquanto a
antropologia, de uma reflexão que tem como objeto culturas estranhas àquele universo.
À sociologia caberia investigar fenômenos sociais vinculados à civilização industrial,

45
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

cuja universalidade, derivada da sua incontestável marcha triunfante no mundo,


imprime nos objetos oferecidos por ela o mesmo caráter. Daí a possibilidade de a
sociologia dispor de um arcabouço de conceitos e técnicas de investigação homogêneos
e universais. A antropologia, por sua vez, refletiria no plano nacional a vocação que lhe
traz ao mundo europeu, isto é, incumbir-se do conhecimento de formas de interação
social e de mentalidades não afetadas pelas transformações econômicas, sociais e
políticas do Ocidente.
Não se pode desvincular dessas duas formas de conhecimento a dialética entre
uma nova ordem social, cujo dinamismo impõe e promete seu triunfo no mundo, e
“outras ordens” destinadas ao desaparecimento. Assim é que a antropologia, ainda que
produto do mesmo fenômeno histórico com o qual antagoniza, constrói a sua identidade
a partir de fenômenos sociais totais entendidos como particulares em relação a uma
ordem mundial que promete tornar-se única. Desse modo, a antropologia na Europa só é
fenômeno endógeno no que diz respeito aos móveis sociais, políticos e econômicos que
nutrem nela a imaginação de outros mundos. Porém, os objetos que a estruturam como
forma de saber são encontrados alhures.
Pode-se dizer que as expansões colonialistas do final do século XIX, ao
promoverem o “encontro” entre uma forma de existência social, entendida como o ápice
das realizações humanas, e outras, vistas em uma perspectiva etnocêntrica, põem em
operação formas de classificação já elaboradas pelo pensamento europeu na
compreensão das mudanças estruturais sofridas internamente. Refiro-me a conceitos
como tradição ou tradicionalismo, solidariedade mecânica, comunidade, pré-
capitalismo, formulados para a melhor compreensão do que fora o passado daquelas
nações. Tais conceitos expressariam a idéia de uma experiência social tida como
intocada, preexistente ao mundo urbano-industrial e civilizado. Acredito que essas
imagens produzidas internamente contribuíram para a compreensão de formas sociais
extra-européias e, mais que isso, forneceram o arcabouço conceitual da antropologia, e,
junto com o particularismo das sociedades estudadas, corroboram a definição e
delimitação do campo dessa disciplina.
O ponto que interessa focalizar aqui é como essa definição abrangente das duas
disciplinas informou a delimitação dos campos da sociologia e da antropologia no
Brasil; como a maneira de designar as duas disciplinas no seu nascedouro histórico

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

parece ter incidido diretamente sobre o seccionamento de objetos na definição das duas
disciplinas no Brasil. Além disso, como dessa delimitação derivaram-se formas distintas
de representação da sociedade brasileira pelas ciências sociais. No que se segue, tomo
como ilustração dois cientistas sociais: uma antropóloga, Maria Isaura Pereira de
Queiroz, e um sociólogo, Florestan Fernandes. Os textos analisados têm em comum o
caráter historiográfico. Conforme será visto, ambos propõem não uma história das duas
disciplinas isoladamente, mas das ciências sociais. No entanto, observa-se que
perspectivas distintas orientam o projeto, de modo que acabam sendo afirmadas duas
identidades disciplinares, cujas particularidades têm estreita relação com os objetos
eleitos e com a finalidade que orienta os estudos. Não cabe aqui analisar as relações
entre sociologia e antropologia no curso de suas respectivas elaborações e construções
na história das ciências sociais brasileiras. O objetivo na análise dos autores é tão-
somente mostrar como de alguma forma as duas disciplinas repõem no nosso cenário
intelectual as duas vocações assinaladas anteriormente. E, ao fazerem isso, nos
permitem visualizar, no período que compreende as décadas de 1930 a 1950, a
convivência conflituosa de duas representações do Brasil. De um lado, uma visão que
abandona o passado e busca no presente tanto as condições do pensamento quanto o
devir da sociedade que se deseja. De outro, uma imagem da nação que vai buscar no
passado a existência tanto de um pensamento quanto de um ser brasileiro.

2.4. Sociologia, sociedade industrial e representações do Brasil

Florestan Fernandes (1977) 17 associa o desenvolvimento da sociologia, na


Europa, a dois condicionamentos: um, manifesto na própria vida social, consagra um
modo racional de compreensão da existência humana, e outro, relativo à criação de
instituições de pesquisa, em que tem lugar a elaboração de padrões que devem reger a
atividade científica e orientar maneiras de intervenção na realidade social. Os dois, no
entanto, seriam dependentes da formação de uma ordem social diferenciada e
estratificada, na qual se verifica uma divisão social do trabalho capaz de concentrar nas
mãos de indivíduos especializados as atividades intelectuais.

17
“Ciência e Sociedade na Evolução Social do Brasil”, texto que estou analisando, foi originalmente
publicado pela Revista Brasiliense (São Paulo, jul.-ago. 1956, no 6, pp. 46-58) e A Etnologia e a
Sociologia no Brasil (São Paulo: Anhambi, 1958).

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

No Brasil, uma mentalidade sociológica só teria se tornado possível a partir da


desagregação do sistema escravocrata, o qual, na caracterização do autor, aparece como
um complexo de tradicionalismo e conservantismo que obliterava qualquer exercício
intelectual transcendente à ordem senhorial. Só para fins do século XIX é que
transformações ocorridas nas esferas econômica, política e cultural passam a favorecer a
formação de uma mentalidade que, doravante, se desenvolveria até o estágio em que a
sociologia se encontrava na década de 1950. Florestan identifica o surgimento dos
suportes sociais da nova mentalidade no decorrer do século XIX. A partir da vinda da
família real para o Brasil, as necessidades administrativas e aquelas relacionadas à
expansão econômica teriam pressionado no sentido da educação de um maior número
de pessoas, o que levou à criação de escolas superiores e de “núcleos urbanos de
atividade intelectual”. Por outro lado, a própria expansão da ordem social escravocrata e
o interesse em manter a influência política pelo senhor rural exigiu o deslocamento das
atenções deste para o mundo urbano. Com isso, Florestan identifica na formação de
centros urbanos o elemento mais auspicioso para o desenvolvimento do saber racional.
Enquanto na Europa o pensamento social se desenvolveu paralelamente às
transformações ligadas à passagem da desagregação do feudalismo à Revolução
Industrial, estando, portanto, estruturalmente vinculado à existência social e material
daqueles povos, no Brasil a interdependência entre o pensamento e mudanças estruturais
não seria perceptível. O autor reafirma a desvinculação entre as condições reais e
materiais de existência e a produção intelectual, a qual seria nutrida e recebida “pré-
formada” dos centros intelectuais europeus. Ressalta, porém, como isso teria favorecido
uma identidade engajada aos intelectuais brasileiros, que exerceriam aqui influências
“culturalmente criadoras” antes que “estruturais”.
Desse breve resumo quero destacar dois elementos. Em primeiro lugar, o
direcionamento da análise histórica de Florestan para o florescimento dos centros
urbanos. Se, por um lado, é realçada a ausência de condições materiais e sociais mais
amplas, ou estruturais, como suporte do pensamento, por outro a cidade vai aparecendo
como sendo capaz de fornecer o terreno que teria permitido o desenvolvimento do saber
racional. Em segundo lugar, a atenção dada às instituições de ensino voltadas para a
formação técnica e intelectual. Desses dois elementos destacam-se dois pares

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

dicotômicos que estruturam a análise: cidade versus campo e saber racional versus saber
não racional.
A respeito desta última dicotomia, Florestan parece sugerir como saber não racional
aquele praticado pelo clero no complexo escravocrata. Embora o catolicismo tenha
significado uma oportunidade para inculcar um tipo de conhecimento racional, isto é,
independente daquele emanado da ordem social escravocrata, ele foi abrangido por essa
mesma ordem. As razões se deviam ao fato de os problemas emergidos da escravidão
para os princípios cristãos não serem resolvidos dentro da “ordem eclesiástica colonial”,
e, também, devido à solidariedade da igreja com os interesses colonizadores do Reino.
Desse modo, a Igreja acabava por reafirmar uma mentalidade formada no âmbito das
relações domésticas.
Por saber racional, então, podemos entender que Florestan identifica aquele que
seria tanto capaz de promover uma percepção do público como espaço distinto do
espaço doméstico quanto a emancipação de valores culturais e sociais e formas de
administrar oriundos do domínio doméstico. Da análise do que seja o saber racional e o
não racional, temos então mais uma dicotomia: privado versus público. Cidade,
instituições de ensino e espaço público aparecem alinhados como categorias que vão
indicando a maneira como Florestan compreende as condições que permitirão o
florescimento do saber sociológico. Das três categorias, porém, uma configura o ideal a
ser alcançado por uma intelligentzia criadora: o público. Este seria o elemento ausente
no decorrer do anos analisados. A explicação do porquê da ausência é a mesma que
explica a submissão dos princípios cristãos à ordem senhorial. Os domínios doméstico e
rural seriam suficientemente absorventes, de modo a comprometer possíveis princípios
universalistas de ordenação social. A vida política é compreendida como
patrimonialista, de modo que o Estado é descartado da possibilidade de vir a
desempenhar qualquer papel de emancipação. Esse papel vai ser atribuído às
instituições técnicas e educacionais que, conforme o texto sugere, são congênitas à
formação da ordem urbana com os problemas que impõem e do saber racional.
Embora Florestan Fernandes ressalte a falta de interdependência entre a
produção intelectual e as transformações materiais e sociais, destacando o papel da
intelligentzia na condução de tais mudanças, algum tipo de condicionamento empírico
lhe é imprescindível. Este será encontrado no florescimento da cidade. É dispensável

49
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

escrever sobre a importância que a cidade, especialmente a de São Paulo, teve na


produção de seus intelectuais. É por meio da experiência da vida citadina, com o frenesi
e estupor causados e registrados por Paulo Prado (1998), que uma imaginação da vida
moderna advém aos homens e mulheres que puderam experimentar o que Morse chama
de ruptura abrupta com o mundo agrário. As greves e o ir e vir de trabalhadores, tudo
isso forneceu ingredientes para uma dedução daquilo que os livros e as viagens diziam
ser a sociedade moderna. Os que vivem em uma grande cidade sabem que, mais do que
um lugar geográfico, ela é onírica, propicia o sonho e a imaginação de outros mundos e
de outras épocas por meio dos seus museus, agências de viagens, jornais e revistas
estampados nas bancas, turistas, etc. Talvez parte disso tudo ainda não existisse no
início do século XX nas cidades brasileiras, mas não é o que importa. O que importa
assinalar é como para uma parcela importante de intelectuais brasileiros, para os quais a
cidade foi tão crucial para a produção intelectual, esse ambiente de sonho deve ter
favorecido um desprendimento cognitivo em relação a uma empiria puramente
geográfica. Como escrevi anteriormente, uma concepção mais abstrata, desprendida de
uma determinada espacialidade, vai se formando. 18
A análise de Florestan Fernandes começa indicando contrastes sociais baseados
em categorias geográficas. No início do texto analisado, como vimos, o autor utiliza o
recurso campo versus cidade. É em relação à idéia de campo ou rural, categorias
indicativas do atraso, que a cidade aparece sinalizando um devir, um futuro
supostamente melhor e racional. Mais adiante no mesmo texto, porém, a cidade aparece

18
Chama-me atenção o fato de que, nos estudos sobre a vida coletiva brasileira de um Euclides da Cunha
ou Oliveira Vianna, a geografia fornece o ponto de partida para a compreensão de hábitos e modos de
vida das populações. Categorias como litoral, sertão, corte e província são utilizadas como recursos
teóricos na busca de uma explicação histórico-sociológica do Brasil. Essa observação pode ser
significativa por duas razões. Primeiramente, pelo fato de indicar uma continuidade entre esses estudos
ensaístas, e a compreensão mais geográfica da configuração social brasileira da análise de Florestan
Fernandes. Em segundo, como, apesar da continuidade, uma ruptura com o padrão de análise dos
ensaístas – com o deslocamento da análise da diversidade regional para a cidade industrial – acelera o
processo intelectual de compreensão do moderno estribado nas formas de relações sociais próprias do
mundo industrial. Com isso, facilita uma compreensão da vida coletiva brasileira em termos de sociedade,
a qual é projetada para a coletividade inteira como devir necessário.
Parece-me que, enquanto um tipo de análise, que tem como referência empírica a diversidade regional,
facilita uma compreensão que vincula tradição e moderno, um outro tipo, que reduz a diversidade às
categorias rural e urbano, ou campo e cidade, promove com essa fissura uma ruptura temporal radical,
como a de atraso e moderno. Com o primeiro tipo de análise, o dos ensaístas, o conceito de nação me
parece mais apropriado para abranger uma totalidade social mais complexa delimitada pelo território
nacional. Com o segundo, uma parte expressiva dos residentes do território nacional, com seus hábitos e
modos de vida, é relegada como atraso ou resíduo no terreno da teoria que os conceitos de rural e urbano
estruturam. Essa breve digressão será mais bem esclarecida a seguir.

50
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

já prescindindo de um oposto geográfico, passando a ser ela referência de si mesma e


em relação à qual uma outra representação do atraso vai ser elaborada.
Trata-se do momento do texto em que Florestan dirige-se diretamente à cidade
de São Paulo nos anos 1950. A cidade já não aparece apenas como um lugar destacado
do mundo rural capaz de propiciar um afastamento dos influxos da vida doméstica no
pensamento e nas atitudes políticas. Ela é o lugar onde mudanças de caráter estrutural
estão ocorrendo. Trata-se do processo “adiantado” de industrialização, graças ao qual
uma “nova mentalidade” estaria em formação. A idéia de industrialização configura
como a que permite tanto extrapolar da representação da cidade como um lugar onde se
vive de determinada forma para uma representação mais abrangente da coletividade
inteira. Com a industrialização estariam presentes, também, as condições que
permitiriam o florescimento da sociologia. Trata-se de uma perspetiva que designa, para
a ciência social, condições sociais e culturais entendidas como próprias da ordem
urbano-industrial.
Tal compreensão, todavia, não parece ser sem problemas em um contexto
híbrido, em que passado e presente, atraso e moderno, irracionalidade e racionalidade
convivem. É o que veremos na próxima citação. A cidade vai apresentar um outro tipo
de problema, que será focalizado tanto como um obstáculo ao saber racional como
objeto de estudo e entrave a ser superado pela sociologia. A partir dessa análise, quero
também sublinhar como a apreciação daqueles problemas permite a construção de outra
dicotomia, desta vez descolada da empiria geográfica e apresentada como mais abstrata
e abrangente no que diz respeito à vida coletiva brasileira. Trata-se da dicotomia
folclore e civilização, que se desdobram em duas representações da sociedade brasileira,
a sociológica e antropológica Escreve Florestan Fernandes:

“o irracional continua a possuir, sem dúvida, grande importância


na vida cotidiana dos indivíduos. A magia de origem folclórica
continua a existir e a ser praticada, crenças religiosas ou mágico-
religiosas, que apelam para o misticismo e valores exóticos,
encontram campo propício para desenvolvimento graças às
inseguranças subjetivas, desencadeadas pelas incertezas morais
e fricções sociais do mundo urbano”. (Fernandes,1977a, p. 22)

No entanto, deduzo que tal mentalidade deveria ser considerada sobrevivência,


resíduo, já que, “...no fundo, a civilização que se vincula a este mundo é, por

51
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

necessidades internas, a civilização por excelência da tecnologia racional, da ciência e


do pensamento racional” (Fernandes, 1977, p. 22). No Brasil daqueles tempos, a
sociologia, além de técnica de conhecimento e solução dos problemas do mundo
urbano-industrial, era também um projeto de modernização. Florestan reconhece que os
suportes sociais que lhe permitiam desenvolver-se só existiam “em determinadas
regiões, nas quais a industrialização acelera a desagregação da antiga ordem tradicional
e patrimonialista e precipita o processo de desenvolvimento das classes sociais”
(Fernandes, 1977, pp. 23-4).
Observa-se que Florestan, ao tomar o pensamento como indicador do atraso e do
moderno, supondo estarem subjacentes a ele formas sociais específicas correspondentes,
é coerente com a perspectiva adotada na análise que busca a relação entre conteúdo do
pensamento e estrutura social. 19 Porém, essa forma acaba indicando uma limitação do
pensamento racional ou científico, na medida em que só lhe seria possível abarcar as
formas sociais que lhe dão suporte, ou seja, aquelas em que a civilização já tivesse
penetrado e formado demandas.
Tomando como suporte dessa mentalidade nova a cidade de São Paulo, com os
problemas que ela gera em termos de exigência de uma intervenção técnica, o
pensamento racional coincidiria com a formação de um saber técnico premido pelas
necessidades da cidade. Desse modo, o racional se encontra “no plano dos serviços
públicos, no das construções e da engenharia, na medicina, etc.” (Fernandes, 1977, p.
22). Vê-se que, nessa análise, a racionalidade do pensamento – que tem como condição
a racionalidade do contexto, a qual é definida pelo tipo de exigência que faz ao
conhecimento ou à ciência – só pode ser técnica. Técnica no sentido de que a
racionalidade do saber se define exatamente pela sua capacidade de intervenção e de
atendimento às demandas do contexto urbano-industrial. Nesse sentido, as ciências
sociais só poderiam ser tidas como forma de saber racional na medida em que fossem
capazes de atender às necessidades emergidas com a industrialização e urbanização. As

19
Aplica-se à analise de Florestan, que busca correspondência entre o conteúdo do pensamento e o
contexto ao qual se vincula, a classificação de Santos das matrizes que teriam orientado uma
historiografia do pensamento social e político brasileiro. Nesse caso, tratar-se-ia da “matriz sociológica”,
que segundo Santos “entende-se a análise que se desenvolve tomando como parâmetro características da
estrutura econômico-social, quer, como no caso de Fernandes agora mesmo citado, para explicar
variações ocorridas sobretudo no conteúdo das preocupações dos investigadores sociais, como
decorrência de modificações processadas na estrutura sócio econômica, quer, em casos extremos, para

52
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

preocupações de Florestan com a educação revelam o modo como a sociologia deveria


intervir naquele contexto, solução que parece necessária à superação da mentalidade
atrasada.
Um ponto a ser destacado é a forma como uma compreensão da sociologia vai
sendo elaborada, e, conseqüentemente, os seus conceitos. Ao tomar a cidade industrial
como referência, uma concepção de ciência social vai sendo enformada pelo tipo de
racionalidade que a ordem urbano-industrial promove. É desse tipo de racionalidade que
é possível estruturar uma concepção do moderno com base nas categorias rural e urbano
ou campo e cidade. As primeiras, como suporte do pensamento não racional e
indicativas do atraso; e as segundas, como suporte do pensamento racional e do
moderno. O racional se confunde com o próprio mundo industrial e com as exigências
feitas ao saber e à ciência. Desse modo, a sociologia se nutre das condições fornecidas
pelo mundo industrial.
À medida que a cidade vai se transformando em referência de si mesma,
prescindindo do seu oposto – o rural –, ou seja, à medida que vai se tornando parâmetro
de um modo de vida ideal – o moderno –, ela vai se libertando de seus contornos
geográficos e erigindo-se à condição de modo de vida mais abrangente a ser projetado
sobre a coletividade inteira. Já que ela expressa o modo como “a civilização se vincula a
este mundo”, então já não é simplesmente a cidade, lugar onde se vive de determinada
maneira, é a própria sociedade. Um tipo de convivência social que vincula os indivíduos
pela divisão do trabalho, que os agrega nos centros urbanos e que requer uma formação
cultural mais especializada fornecida pela escola e pelas universidades. De dado
empírico, a sociedade adquire também caráter de conceito totalizante, com o qual a
sociologia pode explicar a realidade social brasileira, identificando desajustes estruturais
que estariam atrasando a realização do moderno.
À medida que a idéia de cidade, como conceito que, inicialmente, orienta uma
compreensão do que seja o moderno, vai prescindindo do recorte geográfico e
adquirindo configuração abrangente, ela vai fornecendo também uma compreensão
histórica da sociedade brasileira, ou seja, do processo que a traria do atraso para o
moderno. Dessa forma, o atraso passa a prescindir do seu lugar geográfico – o mundo
rural –, identificando-se apenas como passado, uma espécie de correspondente ao

deduzir os atributos ou dimensões do pensamento social dos atributos e dimensões do processo social”

53
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

feudalismo europeu desagregado pela ordem industrial. É nesse sentido temporal que
podemos compreender o modo como Florestan Fernandes se refere à mentalidade
folclórica como o “irracional” que “continua a possuir... grande importância na vida
cotidiana dos indivíduos” (grifo meu). A mentalidade folclórica é apresentada como
resíduo. Sua presença na cidade industrial requer um tipo de entendimento que apele à
idéia de civilização, conceito utilizado pelo autor como conceito histórico, indicativo de
processo.
Tem-se, então, a passagem de uma compreensão geográfica – rural e urbano –
para uma mais abstrata, ancorada na idéia de tempo. De acordo com essa idéia de
tempo, informada pelos índices de civilização fornecidos pela cidade industrial, o tempo
da sociedade brasileira é deduzido do tempo das sociedades industriais, estas indicando
o ponto mais adiantado da escala evolutiva civilizatória. Por isso talvez a urgência do
saber técnico e de uma sociologia que promova a remoção dos entraves ao moderno
ainda existentes e presentes naqueles anos.
Quero chamar a atenção, nesta análise, primeiramente, para o fato de que o
conceito de sociedade é deduzido da percepção que tem o autor da cidade industrial, e
como esse conceito se torna suficientemente abrangente da diversidade de modos de
vida na sociedade brasileira, diluindo essa diversidade na redução folclore versus
civilização, o que significa dois tipos de mentalidade. Em segundo lugar, a
temporalidade brasileira é informada pelo próprio conceito de sociedade que, por sua
vez, é deduzido do modo de vida urbano-industrial. Decorre disso a ausência de uma
preocupação com que seria uma temporalidade brasileira, e junto com essa ausência
também um lugar para a indagação a respeito de uma especificidade brasileira, o que é
fundamental para se pensar a vida coletiva do Brasil em termos de nação. E, por último,
uma questão: o que aconteceu com as categorias rural e urbano? Será que essa dualidade
poderia tão facilmente ser reduzida ao dualismo pensamento racional e não racional?
E será que esta seria passível de ser resolvida apenas com a eliminação da
mentalidade mágica e folclórica por processos de educação especializada? Quem seriam
os agentes desse processo? Quem financiaria a universalização da educação
escolarizada? Decerto, me parece que uma parte do País real desaparece na teoria de

(Santos, 1978, p. 27).

54
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

Florestan Fernandes na medida em que ele sugere deduzir o País do laboratório que fora
a cidade de São Paulo. Penso poder encontrar essas respostas em outras teorias.
Uma delas é a fornecida pela antropologia. Abordarei a constituição desse
campo de saber das ciências sociais partindo do que considero ser um impasse da
sociologia em relação ao que Florestan Fernandes chama de mentalidade folclórica.
Procuro analisar como a antropologia, na medida em que encontra seu objeto próprio
naquilo que a sociologia descarta como resíduo, abre caminho para se pensar uma
temporalidade brasileira ancorada na idéia de identidade nacional.

2.5. Antropologia: folclore e identidade nacional

Na sociologia de Florestan Fernandes, as formas “mágicas” de origem folclórica


de pensamento, consideradas irracionais, parecem não caber no repertório de objetos da
sociologia. À medida que condiciona os objetos da sociologia à capacidade de eles
expressarem “concepções secularizadas da existência”, acaba limitando-os às agências
técnicas, nas quais tais concepções já se fariam presentes. Desse modo, o cotidiano de
uma sociedade, percebida em transição para o moderno, parece não encontrar, na
sociologia, conceitos e técnicas adequados à sua compreensão. Se é assim, então me
parece que há todo um repertório de questões a reclamar outro tipo de teorização. A
partir desse ponto, considero importante introduzir o modo como a antropologia vai se
relacionar com a sociologia. Desenvolverei esse ponto tomando por base o estudo de
Gláucia Villas Boas, A vocação das ciências sociais (1945/1964), um estudo da sua
produção em livro (1992).
Os dados de Gláucia Villas Bôas (1992) sobre a produção em livro das Ciências
sociais no período de 1945 a 1960 sugerem dificuldades da sociologia no período de
1945 a 1955 no cumprimento de uma agenda de estudos definida pela civilização
urbano-industrial. A autora seleciona os livros a partir de dois critérios: “obras sobre a
disciplina” e “temas específicos”. Chamo a atenção aqui para o segundo critério, o qual
é composto dos seguintes temas: a) mudança social, industrialização e desenvolvimento;
b) meio rural; c) mobilidade histórica e social; d) meio urbano; c) religião; e d)
educação. Deve-se observar que os dados registram, no período de 1945 a 1955, apenas
um livro sobre o tema da letra a e nenhum sobre o tema da letra d. Situação diversa é

55
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

registrada no período de 1955 a 1966, quando os dois temas somam, juntos, 28 obras
(20 sobre a e oito sobre d). Esses dados são significativos porque indicam um
descompasso entre objetos tidos como próprios da sociologia, por se referirem às
condições advindas com a industrialização e urbanização, e a circunstância social a que
se pretende aplicá-la no contexto de 1945 a 1955. O cotidiano só irá favorecer a
atividade cognitiva designada própria da sociologia a partir de 1955, quando é intenso o
processo de urbanização e industrialização.
Ainda tomando como referência o estudo de Villas Bôas, situação diversa
configura as realizações da antropologia. Esta conta com 70 obras no período de 1945 a
1955, e 71 no transcurso de 1956 a 1966. Os temas abrangidos são: tradições
populares, 20 grupos étnicos específicos, formação étnico-cultural, religiões afro-
brasileiras e cultura rural. Se comparadas as produções da sociologia e da antropologia,
observa-se que o cotidiano considerado místico e folclórico por Florestan Fernandes,
que parece estar fora do alcance da sociologia, encontra na antropologia acolhida
favorável.
Partindo do estudo de Maria Isaura Pereira de Queiroz, que ilustra um passado
mais longo nas ciências sociais brasileiras, remontando-o às pesquisas etnográficas
realizadas pelo Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro, fundado em
1838, Gláucia Villas Bôas identifica nos temas da antropologia daquele período uma
reatualização dos temas tradicionais que constituíram o campo desta no Brasil. Esses
temas tradicionais estariam vinculados a uma preocupação com a brasilidade. De acordo
com Maria Isaura Pereira de Queiroz (1989), de 1840 a 1870, as pesquisas etnográficas
têm como objeto os índios brasileiros, cujo objetivo seria “afirmar que os brasileiros
eram os legítimos filhos da terra, muito mais do que gente de além-mar: o selvagem era
a marca da brasilidade” (Queiróz,1989, p. 380). Essa preocupação com o nacional se
estende pelo final do século XIX e ao longo do XX sob outros enfoques:

“Novas questões começaram a ser estudadas no Brasil por volta


de 1870. A variedade de traços culturais existentes na sociedade
brasileira – hábitos arcaicos provenientes de Portugal, costumes

20
Sob a rubrica “tradições populares” da pesquisa de Villas Bôas, Vilhena (1997) identifica os estudos
sobre o folclore, os quais constituíam a maioria (48) em um total de 141 títulos publicados no período de
1945 a 1964. O autor chama a atenção para a proximidade entre a antropologia e o folclore, que naquele
período era marginalizado do repertório de temas estudados pelas ciências sociais.

56
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

africanos, práticas indígenas –, encontrados no cotidiano de


todas as camadas sociais, independentemente de sua origem
étnica, compunha uma miscelânea que contrastava com a
homogeneidade que os letrados brasileiros julgavam existir nos
países europeus e na civilização ocidental. A sociedade e a
cultura do país passavam a constituir o foco de atenção para os
estudos que foram se avolumando com o correr do tempo e
ainda hoje compõem o objeto preferencial dos cientistas
sociais.” (Queiróz, 1989, p. 380)

Importa ressaltar, nessa maneira como o campo da antropologia é constituído,


primeiro, como uma busca de compreensão do nacional consubstancia o
desenvolvimento desse saber; segundo, como ela constrói uma maneira própria de
compreensão do nacional, na medida em que irá nutrir-se de temas não comprometidos
com a civilização urbano-industrial; e terceiro, como o tema da nacionalidade vai
delimitando o campo e os objetos que lhe são considerados próprios. Como visto supra,
Maria Isaura remonta a história das ciências sociais aos estudos etnográficos, os quais
têm como alvo os aborígenes e a afirmação da brasilidade. Sucede a essa fase outras
interligadas pela preocupação com a brasilidade. Na segunda fase assinalada pela
autora, de 1870 até por volta da década de 1920, o interesse pelo que é próprio à
sociedade brasileira é motivado pela dúvida quanto à “possibilidade de existir um ‘ser
brasileiro’”. Estudos de Nina Rodrigues, especialmente, revelariam “um profundo
preconceito racial e cultural, que se voltava, especialmente, contra o africano, cuja
presença no cotidiano da sociedade brasileira era muito mais forte do que a do indígena”
(Queiróz, 1989, p. 380). A partir das décadas de 1920 e 1930, o preconceito racial cede
diante de uma visão positiva quanto à existência de um ser brasileiro e a mestiçagem é
aceita e proclamada.
Observa-se que esse modo de compreensão das duas disciplinas acaba indicando
um corte entre dois campos: o da sociologia e o da antropologia. Esse corte é definido
mais pelos objetos que suscitam a tarefa de conhecer do que pela epistemologia das
duas disciplinas. Nota-se, que nos dois casos, noções de distância e de proximidade
entre o objeto e formas cognitivas são também fundamentais na estruturação da história
dos dois campos, o que permite também indicar as possibilidades da existência do saber.
No caso da antropologia, a distância é fundamental, o que pode ser explicado pela
maneira própria como ela se constitui na Europa em vista do estranhamento entre o

57
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

mundo europeu e os outros mundos. Quanto à sociologia, a exigência é a de um


parentesco entre o objeto e as formas de pensá-lo e investigá-lo estribado em
condicionamentos históricos análogos.
Observa-se que essas duas trajetórias das ciências sociais no Brasil apresentadas
pelos dois autores conduzem a um seccionamento da sociedade brasileira naquele
período. De um lado, uma realidade favorável ao conhecimento em virtude mesmo do
que, de um outro ponto de vista (o da sociologia), é a permanência do tradicional. De
outro, o não-tradicional, ou moderno, mas que acaba se revelando não existente ou pelo
menos com uma existência precária, malogrando o projeto da sociologia. Nesse
seccionamento pode-se identificar a produção, pelas ciências sociais, de duas imagens
do Brasil: de um lado, o país tradicional expressado pela mentalidade folclórica, e, de
outro, o Brasil moderno, representado pela cidade, urbanização e constituição de centros
de ensino e pesquisa e de agências de planejamento.
Interessante notar nesse seccionamento uma redefinição da perspectiva dualista
que orientou o ensaísmo de Sílvio Romero e Euclides da Cunha. Redefinição porque,
enquanto nesses autores a dualidade, manifesta na obra, expressa a geografia nacional,
por meio de formas concretas e particulares de experiência social, agora se trata de uma
dualidade que organiza o saber científico, ou douto. É como se a dualidade se
desprendesse da sua materialidade e passasse a consubstanciar uma forma de
representação douta do país. A dualidade migra da empiria para o pensamento. Mas,
nesse nível, de acordo com a historiografia, ela não se manifesta como constitutiva da
elaboração das formas de conhecimento da sociedade brasileira pelas ciências sociais.
Isso porque, na história sobre o processo de afirmação desse saber, registra-se também o
processo de autonomização de cada um dos seus campos. Ao solucionarem-se os
impasses com que as ciências sociais se defrontam nos anos 1940 e 1950, definindo-se
os campos em função da pertinência dos objetos, soluciona-se também o hibridismo de
uma realidade social em que os limites entre o que é entendido como tradicional e
moderno são tênues. Na medida em que cada uma das duas disciplinas constrói seu
campo a partir de uma das faces da dualidade, esta desaparece da realidade,
configurando-se cada uma delas um mundo exclusivo. De um lado, o mundo da
antropologia; de outro, o da sociologia. Ou, de um lado, a nação, dispondo de um tempo
longo de existência, e, de outro, a sociedade, de configuração recente.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

Penso que à medida que as visões da antropologia e da sociologia se excluem, então


os dois mundos representados por cada uma delas parecem reclamar uma síntese, ou
melhor, uma visão mais abrangente que articule tradição e modernidade, que resgate a
história e o hibridismo de uma sociedade em transição. Seria um tipo de compreensão
dos entes sociais capaz de se dirigir a eles como ingressos numa ordem societária que
lhes exige um novo tipo de educação, a escolarizada e técnica, um tipo de mentalidade
mais calculista nas relações de trabalho e ao mesmo tempo como tendo um longo
passado a lhes fornecer uma identidade.
Uma teoria desse tipo mais totalizante teria de dispor de um conceito
suficientemente amplo que pudesse congregar passado e presente, ou estruturas sociais
distintas em convivência tensa. Com Florestan Fernandes, procurei mostrar como o
próprio conceito de urbano, ao servir de amparo a uma compreensão da história
brasileira como ruptura, acaba por deduzir dele mesmo uma concepção totalizante do
que seria a sociedade, excluindo dele as “inconveniências” das sobrevivências culturais.
Formulado o conceito de sociedade a partir das condições urbano-industriais, ele mesmo
passa a informar a historiografia empírica e intelectual 21 que indica o passado e o
presente. A antropologia, ao acolher tais inconveniências, acaba por conferir à variável
temporal uma independência em relação ao espaço, podendo, com isso, focalizar os
dilemas da identidade nacional do ponto de vista de uma história mais longa. Interessa-
me, como promissor para minha própria análise do nacionalismo, que esses dois campos
de saber, ao se instituírem, forneçam duas formas de representação histórica, uma que
parte da geografia, rural e urbano, e outra que tem como ponto de partida a maneira
como os brasileiros elaboram sua identidade baseada em critérios étnicos e culturais, e

21
No seu artigo, Queiróz (1989) questiona uma historiografia do pensamento social latino-americano, em
geral, e o brasileiro, em particular, que enfatiza o caráter imitador do pensamento nos países
subdesenvolvidos. No Brasil, esses estudos, que tendem a admitir “uma total falta de criatividade dos
países subordinados”, relegariam como irrelevantes a produção intelectual anterior à década de 1950. É
contra essa perspectiva que a autora remonta o pensamento social brasileiro às pesquisas etnográficas e
publicações realizadas pelo Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro. O interessante na
perspectiva que orienta a autora, que vai buscar nos estudos “socioantropológicos” o que não seria pura
imitação do pensamento no país subdesenvolvido, é a preocupação com uma especificidade do
pensamento, a qual está diretamente relacionada com o resgate de uma história brasileira. De uma história
mais longa, não demarcada por uma ruptura relacionada com a instauração da ordem urbano-industrial.
Dessa forma, o pensamento do passado parece consubstanciar uma reflexão mais ampla da autora sobre a
identidade nacional. Com isso, ela sugere que um tipo de historiografia do pensamento social brasileiro,
que não se orienta exclusivamente pela condição urbano-industrial, pode evidenciar uma preocupação
mais ancestral com o processo de formação da identidade nacional, a qual estaria presente na antropologia
no processo de institucionalização das ciências sociais.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

que remonta, portanto, ao momento em que as raças se encontram, o que transcende o


modo espacial de convivência.
Espaço e tempo, portanto, são categorias que me parecem centrais para investigar
qual outro conceito, além de sociedade e identidade nacional, estaria sendo elaborado
naqueles anos. Ou seja, um conceito capaz de conjugar identidade nacional e uma
representação do moderno fornecido pelo complexo urbano-industrial e, portanto, capaz
de dar conta da ambivalência notada por Richard Morse.
Tal conceito terá de ser capaz de fundamentar, também, uma compreensão de quais
instâncias poderiam promover um sentimento de público amplamente difundido,
calcado tanto na pedagogia civilizadora das instituições da sociedade moderna – como a
escola e as agências técnicas – como no sentimento do que é comum àqueles a quem o
público pode-se referir como tal. A idéia de público, para que assim seja percebida,
supõe que os indivíduos se percebam como iguais, como portadores de direitos comuns,
com base em algum liame social que os iguale. Nas sociedades democráticas, esse liame
é fornecido pela própria idéia de cidadania, o que significa também ser cidadão de um
Estado. Conforme nota Hobsbawm (2002) na Europa, a condição de sentir-se cidadão
foi promovida pelo patriotismo estatal, em virtude da sua busca de novas formas de
lealdade. No entanto, em um contexto em que movimentos sociais, como o
nacionalismo, e o socialismo rivalizavam com ele na disputa por lealdade, coube ao
Estado mobilizar os sentimentos referentes a um passado comum mais distante para que
a idéia de cidadania pudesse ser mais profundamente sentida como um valor dos
próprios cidadãos. Ou seja, uma identidade nacional teve de ser elaborada, no que
ocorre a aproximação do patriotismo estatal com o nacionalismo.
Na análise do pensamento de Florestan Fernandes aqui realizada, vimos que, na
promoção do público, o Estado é descartado em vista da própria compreensão que o
autor tem do comprometimento do Estado com a ordem tradicional. A promoção do
público parece ser tarefa da escola, das agências técnicas e da própria sociologia. Mas
podemos nos perguntar quem financiaria esses empreendimentos. Gellner escreve que,
mesmo em uma sociedade que deriva sua pujança econômica do investimento privado,
coube ao Estado o financiamento da educação em massa. Então, parece-me que uma
atenção ao Estado brasileiro – como ente que procura modificar-se internamente na
forma de racionalização da sua burocracia e na forma de uma maior penetração na vida

60
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

cotidiana dos indivíduos – deveria ser considerada como constitutiva do processo de


modernização da sociedade inteira. A antropologia, por sua vez, parece estar mais
preocupada com a questão cultural, realizando, de forma sistemática, como saber
especializado, as pesquisas que os nacionalistas na Europa fizeram na intenção da luta
política, seja contra os Estados, ainda dinásticos, e o Estado estrangeiro, seja contra
antigos privilégios baseados em desigualdades tradicionalmente legítimas.
Por isso, então, penso que um conceito mais abrangente terá de ser capaz de
fornecer uma compreensão do que é entendido nos anos 1950 como sociedade moderna,
isto é, urbana e industrial; como sociedade depositária de uma identidade nacional há
longo tempo em construção; e, ainda, do papel do Estado como agente histórico atuando
na intenção do interesse próprio na busca de lealdades políticas de novo tipo. Esse
conceito comporta, assim, três dimensões do fato histórico-social nos anos 1950: a
sociedade complexa, o seu passado cultural e a esfera política. Esse conceito é o de
nação. Nos capítulos 4 e 5, nação será analisada como conceito sociológico, não apenas
como fundamento de uma ideologia política, a do nacionalismo. Como já escrevi, o
ISEB produziu também uma teoria da sociedade brasileira capaz de iluminar o presente
nos anos 1950. De fato, foi protagonista de uma luta ideológica, mas elaborou também
uma teoria sobre o Brasil, na qual industrialização, Estado e história são conjugados. Tal
teoria teve como fundamento o conceito de nação, o qual, como observam bem os
críticos, não deriva imediatamente da empiria histórica dos anos 1950, mas de uma
determinada compreensão da história entendida como sucessão de fases.
O meu propósito até aqui foi analisar como uma determinada representação de
nação foi elaborada em relação à idéia de sociedade no contexto da institucionalização
das ciências sociais. Gostaria agora de utilizar essa mesma discussão do método e
objetos da sociologia e da antropologia para realçar os sentimentos em relação à
cidadania que envolveu o debate nas ciências sociais. Com isso, desejo dimensionar um
pouco mais aquele contexto para além do âmbito das ciências sociais, para tentar dar
conta tanto do que as ciências sociais significaram em termos dos anseios democráticos
da época quanto da maneira como o pensamento de Guerreiro Ramos participa dessas
aspirações da época. Embora a institucionalização das ciências sociais como parte de
um projeto mais amplo de democratização social não se restrinja à experiência da qual

61
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

Florestan Fernandes participa, 22 creio que uma análise que articule a compreensão que
teve o sociólogo do método científico e o modo como ele próprio analisa a sua trajetória
pessoal e intelectual ofereça um quadro bem amplo do cenário social encontrado pela
institucionalização.

2.6. Sociologia, “descoberta” da sociedade brasileira e cidadania

Somente de um ponto de vista típico-ideal que se podem delimitar tão


claramente os limites de cada uma das disciplinas em função dos objetos naquele
período. A escassa produção da sociologia demonstrada na tese de Gláucia Villas Bôas
não deve ser vista como sugestão da inatividade dessa disciplina, mas dos dilemas que
ela enfrenta na conformação entre a sua epistemologia e a realidade social com que se
defronta. Richard Morse, ao mencionar a reclamação de George Gurvitch da sociologia
paulista, não está sugerindo tal inatividade, mas o debruçar-se sobre uma temática
destoante dos propósitos que a traz ao mundo. O que Richard Morse qualifica como
temas de “fascinação primitiva”, identificando neles uma preocupação com a identidade
nacional, pode ser o que Maria Arminda do Nascimento Arruda caracteriza como
“objeto de estudo nitidamente antropológico”, ao se referir aos estudos de Florestan
Fernandes: A organização social dos Tupinambá (tese de mestrado defendida em 1947)
e A função social da guerra na sociedade tupinambá (tese de doutorado defendida em
1951). Com base nesses estudos, Maria Arminda faz comentários acerca da relação
entre sociologia e antropologia naquele momento das ciências sociais:

“...a investigação sociológica das sociedades indígenas,


realizada por Florestan Fernandes, expressa um momento
característico das ciências sociais no Brasil, onde as distinções
entre sociologia e antropologia encontram-se nubladas”.
(Arruda, 1995, p. 147)

Se o objeto não assegura a distinção entre os campos, caberá ao método tal


tarefa: “...as distinções dizem respeito ao modo como se interpreta e se analisa o objeto.
O que significa, explicitamente, a maneira de sua construção” (Arruda, 1995, p. 148). A
discussão sobre o método apropriado, preciso, é inseparável dessa fase de

22
Sobre isso, ver Oliveira (1995) e Vianna (1997).

62
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

institucionalização e legitimação das ciências sociais, em especial da sociologia. Maria


Arminda observa uma “obsessão teórico-metodológica” na personalidade intelectual de
Florestan Fernandes:

“A obsessão teórico-metodológica, da mesma forma, ganha


relevo, a partir da natureza do empreendimento: tratava-se de
atribuir legitimidade acadêmica à disciplina sociológica.
Florestan, ao viver à condição peculiar de scholar, buscou
realizar a tarefa que coube a Durkheim e a seus discípulos na
França: assentar as bases da sociologia acadêmica. A ênfase na
importância da teoria segue a lógica do grupo francês. Inclusive
o estilo da exposição onde encontra-se ausente a erudição de
tipo literário, deslocada pela preocupação categorial, guarda
parentesco com as ações do mestre francês e de sua entourage.
Ao impor novos padrões de feitura das obras e transmiti-los aos
seus discípulos, Florestan Fernandes criou a maneira acadêmica
de reflexão, rompendo os modelos do passado.” (Arruda, 1995,
p. 144)

É por intermédio dessa preocupação com o método que se pode apreender a


segunda condição da sociologia apontada por Florestan: a existência de “um complexo
suporte institucional e estrutural”, o qual nas sociedades européias e americana se
formou paralelamente ao desenvolvimento da sociedade capitalista (Fernandes, 1977b,
p. 25). Como se verá mais adiante, a elaboração e observação de métodos rigorosos é
consubstancial à institucionalização das ciências sociais. Ainda que a sociologia apareça
capitaneando esse processo, observa-se que o método configura-se como uma solução
para os impasses quanto a delimitação dos campos. O método ganha força
universalizante, capaz de se impor ao particularismo dos objetos que, por sua vez,
ameaçam projetar-se sobre as diferentes disciplinas.
Por ora é importante especular sobre o significado das preocupações com o
método não apenas como esforço de legitimação da sociologia, mas também como
preocupação consubstancial a uma compreensão do que seja o moderno e do empenho
de modernização do país.
Destaca-se na citação anterior o desejo de rompimento com o tipo de reflexão
realizado no passado. Trata-se do rompimento com o estilo ensaístico e literário que
caracterizou as chamadas “grandes interpretações do Brasil”. Para Florestan Fernandes,
a mudança de estilo permitida pela observação do rigor científico significava a

63
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

superação de um tipo de escrita comprometido com uma “visão estamental da cultura”


(apud Arruda, 1995, p. 133). De acordo com o que Santos (1978) denomina “matriz
institucional”, assenta-se aí a perspectiva que designa uma ruptura entre o passado não
científico das reflexões sobre a sociedade e a fase que inaugura a perspectiva científica
ou institucional. Mas essa ênfase no método e no rigor contra a visão estamental pode
ser vista, também, de um outro ângulo, se se considera a importância que a universidade
tem na vida pessoal e profissional de Florestan. Pode-se deduzir que a defesa de uma
reflexão estribada na ciência, para além do rigor, significava também a defesa da
democratização quanto ao acesso à atividade intelectual. A existência de um espaço
legítimo de elaboração dos cânones científicos e, conseqüentemente, de legitimação da
atividade intelectual permitiria a formação de uma comunidade cujos membros se
distinguiriam pelo mérito acadêmico. O talento, não o privilégio, constituiria o acesso à
atividade intelectual.
Façamos uma incursão pelos caminhos que levam Florestan à defesa do método
e à perspectiva institucional e sociológica pelo ângulo apontado anteriormente. O texto
utilizado é a sua autobiografia.
Oriundo da classe social baixa, cujo universo, na São Paulo dos anos 1920, é
descrito como um mundo social à parte, praticamente invisível à elite da cidade, a
universidade revelou-se a Florestan Fernandes um lugar onde o talento se impõe em um
mundo habitado por “tubarões e sardinhas”. É na universidade, também inóspita ao
“cheiro da ralé”, que os preconceitos de classe cedem diante do jovem talentoso, cioso e
crítico dos ensinamentos que lhe permitiam olhar com novas lentes um mundo cujos
compartimentos só se revelam através de “frestas”. Florestan se ufanava da universidade
que encontrara? Não.
Iniciado no saber sociológico na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
Florestan desde logo se percebe novamente confinado. Entre a universidade e o mundo
que desde cedo conhecera havia uma imensa distância. Incomoda-se, então, com os
limites impostos à eficácia do saber adquirido, limites estes que impunham o risco de
substituir-se um “provincianismo cultural” por um “artificialismo intelectual” vazio. A
universidade promovia um novo modo de pensar, mas não lograva conhecer a realidade,
também condição de emancipação do pensamento em face do saber transplantado. Isso
tornava precário aquele ensino. Na metade dos anos 1940, Florestan testemunha

64
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

tentativas cegas de superação do colonialismo cultural, o que, em parte, se devia à auto-


satisfação que o prestígio conferido pela universidade permitia. Em meio às
circunstâncias que favorecem o seu sucesso pessoal, uma deixa entrever o ufanismo
reinante no meio universitário. Chama-lhe atenção a repercussão própria que adquire
por meio dos artigos publicados na revista Sociologia, em O Estado de S. Paulo e na
Folha da Manhã, o que lhe conferia “prestígio de letrado”. A repercussão se devia a
“uma certa densidade e uma certa intensidade na comunicação do ‘público’ com o
‘escritor’” (Fernandes, 1977, pp. 164-5), o que fazia crer que as “proezas da Europa”
poderiam ser realizadas aqui através dos “monstrinhos sagrados da ciência”. Florestan
sugere uma das razões de tanto sucesso e engano: o público da universidade era a
própria universidade.
A memória de Florestan sugere que o confinamento da universidade era ele
próprio causa e efeito da distância que mantinha com a sociedade. De um lado, a
impermeabilidade da sociedade e, conseqüentemente, a ausência de pressão sobre a
atividade intelectual. De outro, a auto-satisfação de uma elite letrada comprazida pelo
prestígio, impedida de se perceber mera repetidora das luzes européias.
Se a universidade era causa e efeito dessa distância, caberia também ser ela
causa e efeito da aproximação. A mudança do efeito deveria vir pela percepção e crítica
dos limites do saber transplantado, a partir dos “choques” com a realidade circundante:

“Todo ensino transplantado é, forçosamente, precário. No


processo de aprender e transformar-se, o colonizado ignora a
natureza do drama. Todavia, quando ele procura, por uma razão
ou por outra, explorar praticamente os conhecimentos, as
técnicas e instituições transplantados, se estabelecem os choques
com a realidade e termina o ‘sono letárgico’. Aí a implantação
passa a ser vista sem os óculos cor-de-rosa dos agentes externos
da operação: os limites mostram se ela contém algum êxito ou se
deve ser abandonada.” (Fernandes, 1977, p. 165)

A partir dessas linhas, que parecem exortar: “Transponhamos o muro!”, se


inicia, talvez, aquela obsessão pelo método, apontada por Maria Arminda. Neste ponto,
também o início da polêmica que iria marcar essa fase da institucionalização das
ciências sociais: aquela entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes. No horizonte da
ênfase no método e no rigor científico estavam em mira dois objetivos. Primeiramente,

65
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

construir o campo das ciências sociais no Brasil, o que pressupunha um certo grau de
independência com relação ao saber adquirido. Essa independência se lhe afigurava
inextrincavelmente ligada à pesquisa, o que permitiria tanto a aplicação do saber quanto
uma personalidade própria à sociologia no Brasil, em virtude da especificidade das
temáticas a serem abordadas. A pesquisa, por sua vez, pressupunha e promovia a
institucionalização do papel de sociólogo. Como se observa na citação a seguir, a
universidade, por meio das atividades de ensino e pesquisa, adquire um papel central na
moldagem de um padrão (por que não dizer?) “nacional” da ciência social no Brasil:

“O que impediu que essa acomodação se desse não foi a pressão


externa da sociedade e da história, às quais seria possível
adaptar um novo tipo de inércia cultural, mas a compulsão dos
papéis intelectuais institucionalizados, que nos obrigava a ‘dizer
algo’, seja para o estudante, na salas de aula, seja para os
especialistas e o público, através da pesquisa. E esse algo tinha
de ser dito segundo certo padrões, muito altos, que nos
encadeava ao processo de ensino e de pesquisa como ele se
desenrolava no exterior, nos centros de investigação dos quais
importamos nossos modelos.” (Fernandes, 1977, pp. 167-8)

O outro objetivo, e o que mais de perto interessa aqui, é o descobrimento da


sociedade brasileira. Como se pode observar por meio do seu descontentamento com o
ensino da sociologia, ela não lograva aproximar universidade e sociedade. A pesquisa
seria o meio pelo qual isso seria possível. Na resposta que dá, em 1958, às críticas de
Guerreiro Ramos ao estudo dos “detalhes da vida social”, Florestan ressalta a
importância desses estudos tanto no desenvolvimento da ciência quanto no
conhecimento da realidade nacional:

“Além disso é preciso atentar para o significado da investigação


dos ‘detalhes da vida social’ num país como o Brasil. A
sociedade brasileira caracteriza-se pelo fato de congregar
regiões que apresentam graus diferentes de desenvolvimento
interno, seja econômico, seja sócio-cultural. Por isso, a escolha
conveniente e o estudo intensivo de ‘detalhes’ típicos de certas
regiões representam uma alternativa realmente segura de
conhecimento das ‘estruturas nacionais e regionais’.”
(Fernandes, 1977, p. 69)

66
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

Desta breve incursão nas reflexões de Florestan sobre esse período da


institucionalização das ciências sociais ressaltam-se algumas considerações a respeito
da relação entre essa época e a sociedade brasileira naquele contexto. Em primeiro
lugar, a universidade como lugar de realização de aspirações democráticas, o que,
segundo a experiência pessoal do sociólogo paulista, é representado pela possibilidade
de acesso à atividade intelectual por meio do mérito. Além disso, essa possibilidade
seria tanto mais “real” na medida em que padrões para o exercício intelectual fossem
definidos através da teoria e do método. Em segundo, a relação entre o debate sobre o
método e o que chamo de “redescobrimento” da sociedade brasileira, o que significa,
em Florestan Fernandes, o conhecimento do universo popular por meio dos estudos de
comunidade.
Foi sobre questões de método que o debate entre Guerreiro Ramos e Florestan
Fernandes ocorreu. A última citação que fiz é uma resposta de Florestan à crítica de
Guerreiro Ramos à sociologia acadêmica. Em 1953, entre os dias 10 e 17 de junho,
ocorreu o II Congresso Latino-Americano de Sociologia, onde Guerreiro apresentou
sete recomendações, todas rejeitadas. Dentre elas, destaco duas às quais Florestan se
refere:

“No estádio atual de desenvolvimento das nações latino-


americanas e em face de suas necessidades cada vez maiores de
investimentos em bens de produção, é desaconselhável aplicar
recursos na prática de pesquisa sobre minudências da vida
social, devendo-se estimular a formulação de interpretações
genéricas dos aspectos global e parciais das estruturas nacionais
e regionais.” (Ramos, 1956, pp. 77-8)

“É francamente desaconselhável que o trabalho sociológico,


direta ou indiretamente, contribua para a persistência nas nações
latino-americanas, de estilo de comportamento de caráter pré-
letrado. Ao contrário, no que concerne às nações indígenas ou
afro-americanas, os sociólogos devem aplicar-se no estudo e na
proposição de mecanismos de integração social que apressem a
incorporação desses contingentes humanos na atual estrutura
econômica dos países latino-americanos.” (Ramos, 1956, p. 78)

A despeito das divergências sobre o método mais adequado à compreensão da


sociedade brasileira, considero mais importante a aproximação entre eles no que diz
respeito à compreensão que ambos têm da sociologia como instrumento de

67
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

democratização. Por vias distintas, é bem verdade. Como observa Vianna (1997), em
Florestan Fernandes encontramos uma compreensão em que “a luta contra o
subdesenvolvimento e o atraso dependeria menos de uma modernização econômica
induzida pelo Estado do que de uma reforma da sociedade promovida por um sistema
educacional democrático” (Vianna, 1997, p. 191). Descrente de um Estado com raízes
patrimoniais, o caminho para a modernização teria de ser o da “reforma da sociedade
civil”. Guerreiro Ramos alinha-se mais à alternativa oposta, que “confiaria a quebra do
padrão e subdesenvolvimento ao Estado e à modernização conduzida por ele” (Vianna,
1997, p. 192).
Além desse envolvimento da sociologia pela questão da democratização, uma
preocupação com o nacional e uma maneira própria de aplicação da sociologia estão
presentes em ambos. Como escrevi antes, uma crítica às transplantações de forma
acrítica também é feita por Florestan Fernandes. Do mesmo modo, uma compreensão
sobre uma distância cultural e social entre as classes sociais no Brasil também é
percebida como entrave ao moderno. Para Guerreiro Ramos, uma “substituição de
importações” no campo cultural seria, talvez, o fator mais decisivo na superação do
subdesenvolvimento. O caráter de importador acrítico de idéias estrangeiras é objeto por
excelência dos seus estudos sobre o pensamento social e político brasileiro, conforme
veremos mais adiante.
Uma outra proximidade, que como as assinaladas anteriormente pode ser
entendida no contexto de uma sociedade em transição para o moderno, é a que diz
respeito ao caráter “mannheimiano” com que os paulistas percebiam o papel do
intelectual e a destinação social dos produtos das ciências sociais. Em São Paulo, as
ciências sociais, orientadas por um ideal “mertoniano” de comunidade científica, terão
de ser “combinadas”, como observa Vianna, com a sociologia do conhecimento e dos
intelectuais de Mannheim. De acordo com a concepção de Merton, a comunidade
científica, dispondo de autonomia em relação a outros valores do mundo social,
disponibilizaria o conhecimento produzido “aos atores sociais e políticos sobre o que
era obscuro e irracional na vida em sociedade, viabilizando uma ação racional para o
equacionamento e eventual solução de determinados problemas da coexistência
humana” (Vianna, 1997, p. 186). A condição para que tal comunicação ocorresse era
que houvesse uma relação de homologia entre “ciência e representação política e

68
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

social”. Não era assim que a estrutura social e política era percebida pelos intelectuais
paulistas, ou seja, como portadora de representações civis e políticas confiáveis. Daí
que, conforme nota Vianna, a comunidade científica deve intervir, mediada por uma
“síntese total” procedente das diversas sínteses e formulada pela ciência social. Desse
modo, a comunidade mertoniana se conduziria de modo mannheimianno tanto no que
diz respeito à produção da “síntese total” quanto no modo como concebe seu papel
como intelligentzia. A intervenção seria no sentido da reforma da sociedade civil por
meio da educação, não em aliança com o Estado.
Se, conforme podemos deduzir da análise de Vianna, a sociologia do
conhecimento de Mannheinn levou a sociologia em São Paulo a um descredenciamento
de atores políticos e sociais de um papel modernizador, propondo, como compreendo,
uma total reinvenção da sociedade brasileira por meio da educação orientada pelas
ciências sociais, o mesmo não ocorre com o “mannheimianismo” de Guerreiro Ramos.
Certamente, ele credita à produção de sínteses totalizantes e a uma atitude militante dos
intelectuais um fator decisivo à modernização política e social. Porém, como veremos, a
recepção do pensamento de Mannheim por Guerreiro é condicionada pelo modo como
compreende a formação histórica brasileira pela “dualidade básica”. 23 Com essa
compreensão, Guerreiro vai, além de remontar a modernidade brasileira a um passado
mais distante daquele que informa a ciência social em São Paulo, poder encontrar na
estrutura social atores políticos e sociais confiáveis no processo de modernização. Entre
esses atores, como partidos, cientistas sociais, economistas, trabalhadores, empresários,
Exército e estudantes, estaria o próprio Estado. O papel da sociologia seria o de
esclarecer esses atores quanto ao sentido da modernização, sendo então imprescindível
uma teoria capaz de produzir uma síntese histórico-social da existência coletiva
brasileira.
No próximo capítulo, passo à análise do pensamento de Guerreiro Ramos. Neste
capítulo, estarei mais interessada em analisar o processo de formação intelectual do

23
O conceito de dualidade básica, formulado por Ignácio Rangel, e o modo como Guerreiro vai
desenvolvendo uma percepção do país em termos de dualidade serão analisados a partir do final do
terceiro capítulo. Ao utilizar o termo condicionado, não quero dizer, com isso, que Guerreiro, ao tomar
conhecimento de Mannheim ou, mais precisamente, da sociologia do conhecimento, já tivesse bem claro
para si a idéia de dualidade. Seria condicionado mais no sentido da relação que Guerreiro vai
estabelecendo entre o modo como vai compreendendo a formação histórica brasileira e a recepção do
pensamento de Mannheim. Podemos dizer que o modo como Guerreiro recepciona a sociologia do

69
Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências
sociais

sociólogo que vai resultar nos seus escritos na década de 1950, especialmente a partir de
1955, no ISEB. Como veremos, trata-se de um pensamento que vai se desenvolver
dentro do Estado, em uma de suas agências, o Departamento Nacional da Criança, e
depois no DASP. É nesse contexto, em que o pensamento se desenvolve em
proximidade com o Estado, que Guerreiro vai poder perceber uma dinâmica de
modernização política e social interna a esse aparelho político. Desse modo, uma
compreensão positiva quanto ao papel do Estado, como participante do processo de
modernização, vai ser desenvolvida “em ato” e defendida nos anos 1950.
Em suma, para concluir, as duas concepções, a da sociologia e seu método e a da
sociedade brasileira, representadas em Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos, devem
ser vistas não como excludentes entre si, mas como maneiras distintas de se
compreender a modernização brasileira, possíveis em um mesmo cenário histórico,
aquele em que a democratização passa a se constituir na principal questão do
pensamento social. A diferença seria quanto às vias pelas quais ela poderia ocorrer, e da
reflexão sobre essas vias resultou a rica produção intelectual dos anos 1950.

conhecimento é interpretado por ele próprio à luz dessa mesma sociologia, ou seja, como histórica e
socialmente (melhor seria, nacionalmente) condicionada.

70
Capítulo 3

O sociólogo em “mangas de camisa”

3.1. O contexto da crítica de Guerreiro Ramos à sociologia acadêmica

Podemos dizer que o Guerreiro Ramos mais conhecido pela história do


pensamento social brasileiro é aquele dos escritos polêmicos, nos quais questiona a
produção sociológica acadêmica e reivindica uma sociologia nacional. Em obras como
A Cartilha do Aprendiz de Sociólogo (1956) 24 e A Redução Sociológica (1965),
Guerreiro Ramos demarca uma das arenas em que exerceu sua militância em favor do
nacionalismo. Essa arena – a da sociologia ou ciências sociais –, por sua vez, esteve
circunscrita a um espaço institucional onde atividades relacionadas a pesquisas e ensino
eram desenvolvidas. Trata-se do ISEB – Instituto Superior de Estudos brasileiros, criado
em 1955.
O ISEB teve origem na iniciativa de intelectuais que, em agosto de 1952,
passaram a se reunir no Parque de Itatiaia com o objetivo de discutir sobre problemas
nacionais, bem como elaborar um projeto de desenvolvimento para o Brasil. 25 Alguns
dos organizadores do grupo eram diretamente ligados à administração Vargas, o que já
indica as relações estreitas que o grupo pretendia manter com o governo e o papel que
desejava desempenhar nas decisões governamentais. O grupo se dissolveu em 1953, e

24
“A Cartilha do Aprendiz de Sociólogo” foi publicada em Introdução Crítica à Sociologia Brasileira
(1956), e A Redução Sociológica foi publicada originalmente em 1958.
25
Os intelectuais do ISEB se autoconceberam como intelligentzia na acepção oferecida por Mannheim.
Para este, a possibilidade de a intelligentzia se constituir como ator político acima das classes sociais
estaria diretamente ligada à condição que a vida moderna oferecia de que se formasse esse estrato social
independente. Isso porque ela permitiria o alargamento da área de recrutamento desse grupo social. Um
traço marcante na concepção de Mannheim é a heterogeneidade social da intelligentzia. O vínculo que lhe

71
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

foi criado o IBESP – Instituto Brasileiro de Economia e Política, que deu seqüência aos
propósitos que levaram à primeira reunião, isto é, à elaboração da ideologia do
desenvolvimento. No sentido de difundir suas idéias e propósitos, foi criada a revista
Cadernos do Nosso Tempo, que teve seu primeiro número em 1954. Com a morte de
Vargas, diante de quem o grupo desfrutava de prestígio, segundo Alzira Abreu (1975),
os membros do IBESP ficaram temerosos de perder sua posição, e procuraram, então,
estreitar laços e apresentar a idéia de criar um centro de altos estudos sobre a sociedade
brasileira ao novo ministro da Educação, Cândido Motta Filho. Depois de muitas
conversas, o ministro saiu convencido de que faltavam, no cenário intelectual brasileiro,
instituições capazes de desenvolver estudos diretamente ligados à “realidade brasileira”
e destinados à formação de “quadros técnicos e de dirigentes do país” (Abreu, 1975, p.
106). Assim, em 14 de julho de 1955 foi baixado o decreto que fundou o ISEB, o qual
passou a estar diretamente subordinado ao Ministério da Educação e da Cultura.
O ISEB foi estruturado em vista do propósito que levou à sua criação, ou seja, a
formação de quadros técnicos. Para isso, suas atividades consistiam no oferecimento de
um curso regular com duração de um ano, destinado a pessoas portadoras de diploma
universitário e que desempenhassem papel relevante em organizações públicas e
privadas. Além do curso regular, o instituto incumbia-se de realizar conferências,
oferecer cursos extraordinários e publicar.
As disciplinas que compunham o curso regular eram economia, filosofia,
sociologia e história. Guerreiro Ramos era o sociólogo do grupo de professores, e pode-
se dizer que é por meio de suas atividades desde o IBESP que ele ganha visibilidade
como intelectual das ciências sociais diante da comunidade que vinha, então,
simultaneamente, se firmando nesse campo de saber e, assim, firmando-o também.

3.2. O sociólogo em habitus

Em A Redução Sociológica, Guerreiro Ramos propõe que se distinga a


“sociologia em hábito” da “sociologia em ato”. 26 Ao utilizar essa distinção na crítica

daria uma identidade seria tão-somente sociológico: “a educação que os enlaça de modo surpreendente”
(Mannheim, 1972).
26
A palavra habitus é atribuída a Aristóteles, e significa uma “aptidão inata, ou adquirida pelo
treinamento”. A sociologia nacionalmente engajada exigiria do sociólogo essa capacidade do habitus, o
que lhe permitiria “utilizar sociologicamente o conhecimento sociológico” (Ramos, 1963, p. 129).

72
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

que faz à sociologia acadêmica, procura diferenciar o que considera ser o cientista social
meramente “alfabetizado em sociologia” (Ramos, 1965, p. 129) daquele que, além da
formação escolar, teria corroborado sua formação com a experiência.
A idéia de saber em hábito parece expressar bem a avaliação do sociólogo da sua
própria trajetória intelectual. Credenciado com um diploma universitário em ciências
sociais, obtido na Faculdade Nacional de Filosofia, em 1942, Guerreiro Ramos parece
ter dado pouca ou nenhuma importância à educação formal recebida naquele
estabelecimento. É o que ele sugere em entrevista concedida a Lucia Lippi e Alzira
Abreu (1995), quando se refere aos professores de forma nada lisonjeira. Seu
treinamento intelectual parece ter vindo mesmo a partir das atividades que desenvolveu
no Departamento Nacional da Criança (DNC), para onde foi indicado em 1943 e onde
desenvolveu estudos sobre mortalidade infantil, puericultura e medicina popular. No
final desse mesmo ano, Guerreiro foi nomeado técnico de administração do
Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), onde, segundo ele:
“Analisava projetos de organização de departamentos, como o Departamento de
Agricultura, de penitenciárias, ia para as repartições e dava nova forma, pois eles
precisavam se reorganizar” (Oliveira, 1995, p. 146).
Durante a época no DASP, Guerreiro também escreveu vários artigos na seção
“Bibliografia” da Revista do Serviço Público, entre os anos 1946 e 1949. Por meio
desses artigos, podemos acompanhar como vai se dando a sua aproximação com os
pensadores clássicos e contemporâneos das ciências sociais, como Marx, Weber,
Durkheim, Karl Mannheim, Donald Pierson, entre outros. Nesses artigos, os quais
possuem um caráter mais de divulgação do pensamento dos autores, percebemos a
figura de um sociólogo que procura consolidar a sua formação por uma via quase
autodidata. É por essa época que Guerreiro escreve O Processo da Sociologia no Brasil,
que será publicado em 1953. Nesse livro, ele analisa criticamente a sociologia no Brasil
e desenvolve conceitos como de transplantação e autenticidade, que constituirão a base
da história crítica que realizará do pensamento social e político brasileiros, do Visconde
de Uruguai até os seus dias.
O saber que vai se desenvolvendo em hábito ganha maior impulso a partir de
1951, quando Guerreiro participa da equipe de assessores do governo Getúlio Vargas na
Casa Civil. Segundo suas próprias palavras, é nessa época que ele pode ver “o governo

73
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

mais diretamente” e “compreender o governo do Brasil” (Oliveira, 1995, p. 147). Na


assessoria, trabalhou junto com aqueles que foram alguns dos principais economistas da
linha nacional desenvolvimentista: Rômulo de Almeida, que era o chefe da assessoria
econômica, Jesus Soares Pereira e Inácio Rangel (Bielschowsky, 2000, p. 127).
Ao comentar sua participação no Teatro Experimental do Negro, enfatiza o
papel que a prática exerceu na sua produção teórica:

“Na minha vida profissional, aliás, em certo sentido, a prática


precedeu a teoria. A nova teoria sobre relações de raça no Brasil,
que consegui fazer vitoriosa em nosso meio, representa a
indução de uma ‘práxis’. O Teatro Experimental do Negro me
possibilitou a ‘práxis’ do ‘problema’ e depois dela cheguei à
teoria. O mesmo aconteceu com os meus estudos sobre
mortalidade infantil e sobre problemas administrativos,
econômicos e políticos do país. Quem não age, quem não
participa do processo societário não compreende a sociedade.”
(Ramos, 1956, p. 210) 27

A aproximação com o governo, o contato com os economistas e com o nacional-


desenvolvimentismo constituirão os ingredientes finais de um pensamento que,
doravante, vai atuar na arena das ciências sociais, conclamando a uma atitude engajada
e comprometida com a causa do nacionalismo. A partir dessa época – 1951 –, em que o
grupo de Itatiaia começa a se reunir, datam as publicações dos estudos críticos do
pensamento social brasileiro, por meio dos quais Guerreiro resgata o pensamento do
passado.

27
O engajamento político na militância negra constitui um dos modos com que Guerreiro Ramos vai
desenvolvendo uma reflexão mais ampla sobre a sociedade brasileira. De acordo com Marcos Chor Maio
(1997), os primeiros escritos de Guerreiro sobre as questões raciais datam de 1946. Nas reflexões dessa
época, podemos perceber uma compreensão sociológica das relações raciais no Brasil, pois Guerreiro
identifica um preconceito de classe, o qual, segundo ele, é compreendido à luz de “nossa formação
histórica”. A partir de 1949, Guerreiro se engaja na militância do Teatro Experimental do Negro (TEN),
movimento cultural criado em 1948 por Abdias Nascimento. Nesse período, o “problema do negro” será
abordado considerando-se quatro aspectos: o preconceito de cor; as diferenças regionais; as de classe e a
divisão rural versus urbano (Maio, 1985, p. 275). Maio sugere uma relação entre a militância no TEN e a
influência de intelectuais das colônias africanas e antilhanas, empenhadas no movimento de
descolonização, no pensamento de Guerreiro Ramos. No capítulo 4 desta tese, destaco como as idéias de
diferenças regionais, de rural versus urbano ao lado das idéias dos intelectuais africanos foram
fundamentais tanto na compreensão que Guerreiro tem do Brasil como nação como o que ele entende
serem as atitudes política e cognitiva necessárias à autodeterminação nacional.

74
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

3.3. Quadro histórico da formação: o burocrata e o intelectual

A formação de um pensamento que, a partir de 1953, se expressa bem nas


recomendações apresentadas no II Congresso Latino-Americano de Sociologia, das
quais resultou A Cartilha do Aprendiz de Sociólogo, deve ser compreendida no interior
de uma constelação que podemos qualificar como histórica. Primeiro, as iniciativas
voltadas para a racionalização administrativa do Estado brasileiro sob o Estado Novo;
segundo, os conflitos sociais da primeira metade do século XX, que, segundo Arrigh
(1997), colocaram em pauta preocupações com o “homem comum”; terceiro, a
constituição do campo das ciências sociais como instrumento de democratização; e
quarto, a formulação da teoria econômica do subdesenvolvimento.
Nesta seção vou analisar dois textos que considero importantes no foco que
quero lançar sobre quatro aspectos. O primeiro desses aspectos trata da recepção da
sociologia por Guerreiro Ramos: como ele compreende o papel desse saber como
instrumento da democracia e de ampliação dos direitos de cidadania, e como que, com
a abordagem sociológica de dois problemas – o da mortalidade infantil e o da
delinqüência juvenil –, ele tanto chama a atenção para uma concepção vigente das
causas das desigualdades sociais como reelabora essa concepção, no sentido de
redirecionar as políticas públicas voltadas para os referidos problemas. O segundo
aspecto diz respeito ao processo de formação intelectual de Guerreiro como sociólogo
por meio do exercício prático desse saber. Nesse ponto lançarei luz sobre a farta
literatura sociológica utilizada por ele e a influência da sociologia americana nesse
processo de formação. O terceiro é o que se refere ao papel de Guerreiro como um
construtor e formador do campo da sociologia no Brasil, contribuindo, ainda que fora
da universidade, para a divulgação e aceitação social desse saber em um contexto em
que as questões sociais eram tratadas de um ponto de vista biológico ou racial. O
quarto aspecto, por sua vez, relaciona-se ao modo como Guerreiro alcança uma
compreensão positiva do Estado como instrumento de democratização.
Os textos são Aspectos Sociológicos da Puericultura (1944), e O Problema da
Mortalidade Infantil (1951a). Embora publicados em datas relativamente distantes
uma da outra – o que é significativo, por indicar a incorporação de mais conteúdos e
preocupações no desenvolvimento do pensamento do autor –, esses textos esclarecem

75
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

como, a partir de uma questão efetiva, Guerreiro foi elaborando uma concepção da
sociologia como saber engajado e comprometido com o que, mais adiante, poderemos
entender melhor serem as questões nacionais na sua concepção.
Aspectos Sociológicos da Puericultura foi escrito com finalidades didáticas
para médicos e estudantes que buscavam especialização em puericultura nos cursos do
DNC 28 . A intenção do texto, segundo Guerreiro, era a de aproximar os estudantes da
“nova mentalidade sociológica” e “chamar a atenção dos médicos para os problemas
importantes que estão sendo debatidos na esfera da sociologia” (Ramos, 1944, p. 9).
Nessas frases de abertura já se anunciam tanto uma nova sensibilidade no tratamento
de uma questão que até então vinha sendo focalizada de um ponto de vista
exclusivamente médico e higienista, como o caráter de novidade da sociologia no
âmbito de saberes mais longamente consolidados no Brasil, como a medicina, que
seria a principal matriz explicativa do caráter social das doenças. Na nota prévia ao
texto, Gastão de Figueiredo, diretor da Divisão de Cooperação Federal do DNC,
refere-se do seguinte modo ao trabalho:

“Foi muito feliz o autor quando acentuou a íntima conexão da


sociologia com a puericultura, cujo conhecimento facilitará a
solução de inúmeros casos, tantas vezes demorada porque
geralmente as medidas suscitadas não excediam o âmbito
restrito da medicina ou da higiene. A persistência nessa
orientação é contraproducente e não encontra apoio na evolução
dos conhecimentos atuais.” (Ramos, 1944, p. 6)

Em seguida, Guerreiro identifica ainda outra conexão entre o trabalho do DNC,


a abordagem sociológica e a democracia. Ao estabelecer essa conexão, ele indica o
ambiente ideológico em que a reflexão vai prosseguir. Referindo-se ao DNC como uma
das “mais importantes agências da democracia brasileira”, escreve o seguinte:

“Mais do que uma ideologia, a democracia é um serviço que se


instaura. Deixou de ser simplesmente uma idéia querida ou uma
vaga aspiração. É uma fase de desenvolvimento da consciência

28
Em sua análise sobre a política social voltada para a criança no primeiro governo Vargas, Cristina M.
Oliveira Fonseca (1993) afirma que a preocupação com a criança, com a mortalidade infantil, com o
menor abandonado e com a delinqüência juvenil estava associada à “idéia do ‘homem novo’ que daria
origem a uma nova nação”. Nesse sentido, escreve Fonseca: “Proteger a criança, defender seus direitos,
significava por extensão resguardar a própria nação” (Fonseca, 1993, pp. 101-2).

76
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

humana. É algo a que a maioria dos homens se converteu. Sua


discussão, portanto, não é apenas filosófica. É também de ordem
tecnológica. De certo modo, ela é um problema de engenharia
social. É um serviço que deve ser planejado de maneira a
transformar os direitos concedidos teoricamente ao homem
comum, em realidades efetivas, ou melhor, em deveres.”
(Ramos, 1944, p. 10)

Esse pequeno trecho chama a atenção para alguns aspectos relacionados ao


ambiente político no qual a sociologia é convidada a colaborar. Trata-se do seu caráter
de instrumento técnico de planificação da sociedade e do conteúdo democrático
presente nos projetos de planificação social e política. De acordo com minhas
observações, o conceito de planificação é central nas clivagens entre intelectuais da
década de 1950. Assim como o conceito de nação foi visto como exprimindo uma
inclinação autoritária ou anti-societal, creio que a opção pela palavra planificação e o
seu uso recorrente também contribuem para reforçar uma imagem autoritária daqueles
que a mobilizaram. Guerreiro Ramos, nesse mesmo texto, sugere as dificuldades
ideológicas com que o conceito se defronta, e também procura esclarecer o sentido no
qual o utiliza:

“A palavra planificação sugere muitas desconfianças. Imaginam


alguns que a planificação é sinônimo de tirania. Outros, ao
contrário, acreditam-na essencialmente democrática. Mas nem
aqueles e estes sabem que a planificação é ‘política e
moralmente neutra’. Em si mesma não é má e nem boa. É uma
tecnologia social que pode ser usada para fins maus ou bons. Há
vários métodos de planificar. E o dilema não é planejar a
sociedade ou deixá-la entregue a si mesma. O dilema consiste
em achar ou não um método democrático de planificação.”
(Ramos, 1944, pp. 11-2) 29

29
Conforme observa César Guimarães (2001), o pós-guerra ensejou um conjunto de “idéias-força” como:
desenvolvimento, descolonização, nacionalismo e, as sinônimas, planejamento, plano e programa. A idéia
de plano – ou planificação, tal como usado por Guerreiro – consagrava-se à medida que nela o caráter
ideológico dos caminhos que o desenvolvimento poderia seguir, capitalismo ou socialismo, esmaecia-se.
Articulado com a idéia de desenvolvimento, Guimarães acentua, “o ‘planejamento do desenvolvimento’
adquire notável implicação na economia política do pós-guerra, pois empresta substância econômica a um
fenômeno político” (Guimarães, 2001, p. 158). No texto de Guerreiro de 1946, o significado do termo
planificação não me parece estar, ainda, associado à idéia de desenvolvimento econômico, mas de
democracia. Uma compreensão econômica da planificação será, a meu ver, resultado de um processo de
estudo e reflexão da sociedade brasileira para o qual as suas atividades no DASP e no DNC contribuíram
muito. Incluídos nesse processo, pode-se identificar ainda os estudos do pensamento social brasileiro e as
atividades no TEN, onde, conforme observei em nota anterior, Guerreiro teria entrado em contato com as

77
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

Baseado em Mannheim, Guerreiro identifica na própria palavra planificação


propriedades cognitivas da sociologia. A planificação não consistiria apenas em um
instrumento político apropriado pelo Estado e suas agências, mas também em um
conceito resultante de uma forma de se conceber a vida em sociedade em um
determinado momento do seu desenvolvimento histórico. Essa forma de concepção
seria aquela em que a sociedade aparece como dotada de uma estrutura lógica, cujos
princípios poderiam ser apreendidos pelo investigador social. Tais princípios
consistiriam em um “sistema de forças atuantes em uma sociedade”, os quais, uma vez
descobertos, propiciariam “inventar as instituições novas capazes de pôr em
funcionamento a estrutura social” (Ramos, 1944, p. 13).
A planificação, segundo Guerreiro, deveria ser entendida (i) como um dado das
sociedades contemporâneas, ou de um determinado estágio de seu desenvolvimento; (ii)
sua condição de dado associa-se também à qualidade de “problema da época atual”,
outra forma de enquadrar a planificação; (iii) e ela poderia ser entendida como uma
solução, isto é, quando passa a ser uma técnica social e política. Para compreender a
condição de dado e de problema, Guerreiro recorre a uma concepção de mudança social
fundada na idéia de processo social. No texto em questão, o processo é definido como
“a série de etapas de desenvolvimento de um fenômeno”. O processo social é pensado
em analogia com fenômenos naturais e biológicos, como o processo de crescimento de
uma planta ou de um bebê.
Em princípio, as observações que estou fazendo sobre processo social podem
parecer inócuas, mas, como se verá no decorrer desta tese, essa é uma idéia central para
compreendermos a concepção dinâmica de nação de Guerreiro Ramos. No tema
específico de que me ocupo aqui, a idéia de processo está sendo reivindicada como
fundamento epistemológico de uma ciência social, cujo domínio específico está sendo
construído não só nas ciências sociais no Brasil, mas no mundo. 30 Pode-se dizer que a

idéias dos nacionalistas africanos. De todas essas atividades, teria resultado uma articulação das “idéias-
força” do pós-guerra no pensamento de Guerreiro Ramos em sua fase isebiana.
30
Uma das críticas que Guerreiro irá fazer às ciências sociais acadêmicas a partir de A Cartilha do
Aprendiz de Sociólogo até A Redução Sociológica se refere ao que ele considera ser uma compreensão
não dinâmica da realidade brasileira. Isso se deveria à importação de teorias sociológicas americanas,
especialmente do “funcionalismo”. Percebo uma relação entre a crítica de Guerreiro Ramos e a que faz
Norbert Elias ao que considera ser uma crise das ciências sociais. Na introdução à edição de 1968 de O
Processo Civilizador (1990), o autor sugere uma crise por que estariam passando as teorias sociais
baseadas na idéia de processo. A crise se revelaria no contexto de afirmação das teorias funcionalistas, em
especial a de Parsons. Segundo o autor, verificar-se-ia uma época em que as teorias sociológicas que

78
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

analogia com os fenômenos naturais e biológicos tem a ver com uma preocupação
quanto ao fundamento científico da própria sociologia. Conforme vimos na citação
sobre as desconfianças em relação à planificação, Guerreiro ressalta o seu caráter
neutro, nem bom nem mal, ou seja, passível de uma inferência não valorativa. O
processo social seria, então, ele mesmo uma lei histórica e social irrefutável, e que
poderia ser tomado como uma constante na análise de qualquer fenômeno social em
determinadas épocas.
Desse modo, Guerreiro pretende demonstrar que a planificação é a resultante de
um longo processo histórico. Em um texto de 1946, “Notas sobre Planificação Social”,
o autor explica esse processo recorrendo a Mannheim e, além deste, aos clássicos como
Comte, Durkheim, Hegel, Marx e Weber, os quais teriam contribuído para a
compreensão da planificação como uma “etapa da evolução social”. Baseado nesses
autores, Guerreiro compreende que a “civilização ocidental” teria passado por quatro
estágios ou fases, que descrevo repetindo suas palavras: a) a fase da solidariedade da
horda; b) a fase da solidariedade estamental; c) a fase da competição individual; e d) a
fase da solidariedade superindividual, ou da planificação. Não vou me deter em cada
uma delas, bastando assinalar que esse esquema marca um compasso em que a
sociedade evolui em uma direção na qual a diferenciação social vai ficando cada vez
mais acentuada e, com isso, acarretando problemas de desorganização social em vista
do enfraquecimento da comunidade sobre os indivíduos. Nota-se aí a influência de
Durkheim sobre Guerreiro, cujo pensamento é objeto de um artigo na Revista do
Serviço Público, no número de outubro e novembro de 1946. 31
Guerreiro deriva desse processo de diferenciação social as possibilidades
mesmas de que a planificação pudesse vir a ser um instrumento de democratização sem
estar em contradição com a dinâmica interna desse processo. Para isso, ele ressalta o
“princípio da competição”. Tal princípio, além de expressar a liberação dos indivíduos
de pertencimentos sociais fixos, como família, estamentos e condições derivadas do
nascimento, colocaria em evidência o fato de que “a ordem social, à luz do novo

procuravam “modelos de desenvolvimento social a longo prazo” estavam sendo substituídas por outras,
que “se interessam principalmente por modelos de sociedades em estado de repouso e imutabilidade”
(Elias, 1990, p. 224).
31
Todos os artigos de 1946 foram orientados pela idéia de planificação.

79
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

princípio (a competição), não é algo estabelecido de uma vez por todas, mas uma ordem
precária que pode ser incessantemente modificada” (Ramos, 1946, p. 164).
Essa forma de ver a sociedade como uma “ordem precária” e em modificação
induzida ou espontânea vai orientar a maneira como Guerreiro vai tratar tanto do
problema da mortalidade infantil e da delinqüência como da possibilidade da
planificação como instrumento de democracia. No que diz respeito ao primeiro assunto,
o princípio da competição será corroborado pela idéia de interação social, com o que
Guerreiro reelabora uma maneira de pensar aqueles problemas fundada em
determinações biológicas ou hereditárias, e as focaliza em termos de circunstâncias
sociais de convívio. Abordarei esse ponto mais adiante. Por ora, vou continuar no tema
da planificação.
A idéia de uma “ordem precária” não apenas possibilita a planificação, como a
exige. Com base nas análises de Durkheim, Guerreiro chega à idéia da planificação
como uma exigência do seu tempo; com Weber, ele chega a ela como algo que foi
engendrado pelo processo histórico. Neste caso, ele se vale do conceito de
racionalização, colocando-o em interação com a idéia de competição, o que produz um
resultado interessante. Vejamos como ele articula esses dois conceitos em uma longa
passagem:

“O protestantismo forneceu aos pioneiros da Renascença os


materiais intelectuais para a racionalização do espírito
aquisitivo.
O princípio do estamento foi substituído pelo princípio da
competição. As relações humanas foram submetidas ao cálculo.
Na esfera econômica acreditava-se que a ordem resultaria da
livre concorrência. E, de fato, numa sociedade de pequenos
patrões e em que a máquina ainda não tinha substituído o
trabalho humano, era legítimo admitir que os mais aptos fossem
os mais bem-sucedidos.
Entretanto, em nossa época, este princípio não funciona mais.
Atingimos uma fase de extrema concentração do poder
econômico, e do poder militar. A organização econômica, em
forma de monopólio, destruiu as condições básicas da
competição e, de modo semelhante, o aparecimento das novas
armas de guerra, de que é representativa a bomba atômica,
tornou-se sem sentido a contribuição individual mesmo na
guerra. Na época da revolução francesa, cada indivíduo valia um
fusil; hoje porém, com uma bomba de alguns quilos, se pode
destruir uma cidade inteira.

80
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

Entramos já numa nova etapa da civilização ocidental.


Estamos vivendo já numa sociedade planificada. A produção da
cultura, o divertimento, a opinião pública não são esferas livres,
mas setores deliberadamente manipulados.
Por conseguinte, é incontestável a existência do problema da
planificação. O que nos interessa é saber agora que espécie de
planificação é necessária realizar, tendo-se em vista as
necessidades da democracia.” (Ramos, 1946, pp. 164-5)

Se, por um lado, o princípio da competição pode ser visto como algo positivo e
negativo, simultaneamente, naquilo em que ele indica, ou seja, tanto a liberação dos
homens quanto a desorganização social, respectivamente, por outro, a racionalização
também pode ser vista de dois ângulos. Em primeiro lugar, o seu aspecto negativo
devido ao fato de ela eliminar a própria competição, ensejando os monopólios e o
controle das mentes; e, em segundo, ela pode servir de instrumento benéfico em
proveito da própria competição e, portanto, das condições da sociedade democrática.
Em suma, a planificação seria um dado histórico, um problema e uma solução. Além
dessas três características, ela seria também um instrumento cognitivo, uma vez que
inerente ao processo de sua construção conceitual estaria a apreensão da sociedade em
termos de estrutura, de um complexo em que todas as suas partes estão relacionadas.
Ao que parece, a idéia de planificação é congênita à maneira de Guerreiro pensar
a sociologia como um saber de intervenção na realidade. Dessa forma de pensar é
inseparável o lugar de onde o seu pensamento é elaborado, ou seja, do Estado ou de uma
de suas agências destinadas à formulação de políticas públicas, o DNC. Isso não quer
dizer que, à maneira como os críticos costumam encaminhar a análise sobre os
condicionamentos sociais do pensamento, o conteúdo das idéias deva ser visto como
determinado unilateralmente por esse lugar de onde se fala. No caso de Guerreiro e o
DNC, defrontamo-nos com uma situação em que pensamento e contexto são
reciprocamente influenciados. As idéias de processo e de dinâmica, tão caras a
Guerreiro, podem ser flagradas no acompanhamento da elaboração de seu próprio
pensamento. Nesse processo, observamos: a dinâmica no interior de uma determinada
instituição, o Estado, em virtude mesmo da sua capacidade de incorporar novos saberes
ou novas racionalidades; a dinâmica intelectual de Guerreiro, que é impulsionada para
uma determinada direção em virtude mesmo da lógica que anima o Estado naquele
momento; a dinâmica dos conceitos e do patrimônio intelectual, na medida em que, por

81
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

meio da recepção e da leitura que Guerreiro faz deles, estes vão migrando para outros
contextos, para diferentes situações, fertilizando e sendo fertilizados por essa troca.
Se nesse período, desde o término do curso de ciências sociais até os anos 1950
– quando vamos encontrar Guerreiro Ramos participando de congressos de sociologia –,
ele não dispôs de um espaço objetivo onde pudesse contribuir diretamente para a
institucionalização acadêmica das ciências sociais no Brasil: a universidade; e se não
pôde desenvolver-se como sociólogo no convívio da “comunidade mertoniana”,
podemos afirmar que é no DNC que o sociólogo encontra lugar tanto para a firmação da
perspectiva sociológica quanto de sua formação pessoal. Ao lermos os artigos sobre
puericultura e aqueles publicados na Revista do Serviço Público, deparamo-nos com um
autor que, ao mesmo tempo que utiliza uma farta bibliografia para corroborar a
abordagem sociológica de questões específicas, também parece estar em processo de
aprendizagem. É um autor que parece estar aplicando imediatamente o que acabou de
ler. Considero digno de nota o uso de manuais de sociologia no texto de 1944, por meio
dos quais Guerreiro entra em contato com autores e conceitos clássicos da sociologia,
como tipos ideais e fatos sociais. 32 O contato direto com obras de Durkheim e Weber só
ocorre por volta de 1946, ano em que publica uma resenha sobre cada um dos autores.
Ao lermos esses artigos, temos a impressão de um homem solitário, esgrimando
sozinho em um contexto não apenas institucional, mas também discursivo, pouco
permeável tanto a um sociólogo quanto à sociologia. É o que ele sugere em A
Mortalidade Infantil no Brasil, ao propor uma abordagem histórica e circunstanciada da
mortalidade infantil, em vez de uma perspectiva exclusivamente médica. Nesse
trabalho, Guerreiro chama a atenção para o viés racial presente nessa forma de
enquadrar o problema, conforme se lê na citação a seguir:

“Vale registrar, porém, que esta concepção social da mortalidade


parece não estar sendo acolhida pela nossa administração federal.
Porque, se o contrário acontecesse, outra deveria ser a sua
conduta, em face dos problemas de saúde do país.
É uma concepção médica ou eugênica que dá forma à estrutura
dos serviços sanitários do nosso país.
No que diz respeito, por exemplo, à mortalidade infantil, está
em vigência, entre nós, uma concepção segundo a qual ela não

32
Os manuais citados são: Reuter and Hart – Introduction to sociology e Wiese and becker – sytematic
sociology.

82
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

decorreria não tanto de condições sociológicas ou econômicas,


mas da ‘falta de vigor físico e da escassa capacidade hereditária
dos indivíduos.Segundo esta concepção, haveria em toda
sociedade indivíduos pertinentes a dois estoques biológicos
diferenciados: o estoque dos que são possuidores de boa
capacidade hereditária e o estoque dos débeis e dos fracos, entre
os quais a morte faz, de preferência, a sua colheita. O problema
resultaria, assim, de uma diferença biológica qualitativa entre os
membros da sociedade. Conseqüentemente, ou por dever
filantrópico, ou para resolvê-los efetivamente por processos
eugênicos, seriam necessários serviços médicos de vária natureza:
posto de puericultura, lactário, hospital infantil e outros. A
solução é médica. É perfeitamente lógico o raciocínio.” (Ramos,
1951a, p. 6) 33

Tal visão, segundo Guerreiro, resultava em uma percepção da desigualdade


social como determinada por fatores biológicos e hereditários, incapaz de diagnosticar
corretamente, portanto, as causas sociais tanto da desigualdade quanto da mortalidade
infantil. Nesse texto, que é de 1951, Guerreiro já encaminha sua análise no sentido da
defesa da industrialização, na medida em que focaliza o problema inserindo-o em uma
análise mais ampla da estrutura econômica, renda nacional e níveis de consumo popular.
Esse ponto será abordado mais adiante. Por ora quero explorar na citação o que ela nos
permite pensar sobre o Guerreiro Ramos arquiteto, co-fundador e divulgador das
ciências sociais. Além disso, ressaltar também o papel que as ciências sociais
desempenham na modulação de um olhar para a desigualdade entre os homens em
termos de causalidade social.
No texto de 1944, Guerreiro nada sugere sobre a maneira como mais tarde irá
enquadrar os problemas de saúde infantil e delinqüência juvenil, isto é, como problemas
também relacionados à estrutura econômica. O texto se prende ao objetivo de oferecer
instrumentos conceituais para uma abordagem sociológica desses problemas. É por
meio dos conceitos, idéias e autores que são mobilizados pelo sociólogo que nos
deparamos com a forte influência que a Escola de Chicago exerceu sobre o pensamento
de Guerreiro Ramos. Nos escritos dos anos 1950, nenhuma referência positiva da Escola

33
Guerreiro destaca positivamente os médicos puericultores da recente geração: Dr. Olinto de Oliveira e o
Dr. Pedro de Alcântara.

83
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

de Chicago (pelo menos nenhuma que me tenha chamado a atenção) é mencionada. 34


Ao contrário, as críticas que ele faz ao que chama de estudos de minudências sugerem
uma rejeição à aplicação da sociologia americana às questões brasileiras. No entanto,
depois de eu já ter lido seus textos e refletido bastante sobre o pensamento que os
orienta, em especial a concepção de história, a impressão que tenho é que a Escola de
Chicago teve uma influência muito mais marcante do que o que é possível perceber nos
escritos dos anos 1950.
Uma idéia que me parece central é a de processo social. Nesse texto de 1944, o
conceito de processo é utilizado no sentido de situar os problemas de mortalidade e de
delinqüência em uma perspectiva histórico-espacial. No caso da delinqüência, o
processo de que se parte é do próprio crescimento da criança, no qual está implicado o
tipo de ambiente onde ela cresce, os contatos ou interações estabelecidos com os pais,
na escola, etc. No caso da mortalidade, são consideradas as condições extra-uterinas
envolvidas em todo o período de gestação. Com isso, Guerreiro sugere aos médicos e
futuros técnicos o enfoque no ambiente social e geográfico que estariam facilitando as
patologias.
Baseado na teoria dos quatro desejos fundamentais de Thomas e nos de
formação da personalidade de Ernest Burguess e de Summer, Guerreiro distingue
analiticamente os processos biológico e social na construção da personalidade social. A
análise da interação dos dois processos permitiria ao sociólogo distinguir o indivíduo da
pessoa. Ao nascer, o ser humano é apenas um indivíduo. Somente ao ingressar na
comunidade e adquirir os hábitos, costumes desta é que ele se torna uma pessoa. Na
realidade, segundo Guerreiro, indivíduo e pessoa são inseparáveis. A junção desses dois
elementos forma o que ele considera ser a personalidade.
Na minha opinião, a leitura dessas teorias condicionou a recepção da filosofia
que na Redução Sociológica são utilizadas para formulação do método sociológico ali
proposto. Vejo relação, por exemplo, entre as idéias de ecologia e a idéia de mundo de
Heidegger, passando pelo modo como ele vai dos enfoques territorialistas de Oliveira
Vianna, Euclides da Cunha e à literatura regionalista. Vejo também relação entre a
concepção de formação da personalidade de Burguess e de Summer e o modo como

34
No Capítulo 5, identifico uma relação entre o enfoque ecológico da sociologia americana e o
regionalismo, ambos, para mim centrais ao modo como Guerreiro vai elaborar uma compreensão
geográfica da nação.

84
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

Guerreiro vai trabalhar com as idéias de povos naturais e históricos de Hegel. O papel
dessas teorias filosóficas no pensamento de Guerreiro será analisado no quarto e quinto
capítulos. No que se segue, dou prosseguimento à análise desse período da formação do
habitus, focalizando agora o modo como o autor vai se aproximando de uma
compreensão mais econômica dos problemas sociais brasileiros.

3.4. Guerreiro e a industrialização

É procurando responder aos desafios que as atividades desenvolvidas no


Departamento Nacional da Criança e no DASP impõem que os problemas sociais,
aqueles relacionados à administração pública, e a questão da industrialização vão se
imbricar, desembocando na defesa do nacional-desenvolvimentismo. Podemos perceber
que até por volta de 1947 a 1948 os conteúdos dos seus escritos revelam um caráter
mais epistemológico, em que prepondera uma preocupação em se delimitar o campo
específico da sociologia em relação ao discurso biológico.
Nos artigos publicados na Revista do Serviço Público em 1949, uma abordagem
de cunho mais econômico das condições sanitárias dos pobres é registrada. Nesses
artigos, Guerreiro utiliza pesquisas realizadas por agências privadas, como o Serviço
Social da Indústria (SESI), pelo Conselho Econômico da Confederação Nacional da
Indústria e por vários sociólogos a respeito das condições de vida e de consumo das
classes populares. Enquanto nos artigos anteriores a 1949 a análise dos segmentos
populares se limita ao universo mental desse grupo social, nos escritos posteriores
Guerreiro vai se aproximando de uma concepção mais estrutural do problema da
pobreza e suas conseqüências no trato das doenças. Doravante, os conceitos de cultura e
de folk vão perdendo relevo como categorias explicativas dos hábitos populares, e ganha
destaque o conceito de classes.
O conceito de classe é informado não pela concepção marxista, mas pela escala
de consumo e administração dos orçamentos familiares. Os autores citados são Frédéric
Le Play, Maurice Halbawachs e Max Scheller, dentre outros, aos quais é atribuído o
estabelecimento de vínculos entre o universo mental e as condições econômicas de
existência. Grande parte dos autores citados e pesquisas mencionadas é ligada a
agências internacionais, como o Bureau International du Travail (BIT). Esses estudos,

85
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

sobretudo o das agências, revelam um grande interesse em definir de modo não abstrato
o que é a pobreza, o que remete à estrutura econômica, uma vez que os métodos
utilizados inquirem sobre as condições de vida das “massas”.
Com base nesses estudos, em artigo de outubro de 1949, “As classes Sociais e a
Saúde das Massas” em que transparece um tom conclusivo, Guerreiro estabelece a
relação entre mortalidade infantil, classe social, cultura e estrutura econômica. Nas
palavras seguintes, podemos observar como o autor parece fechar uma parte da sua
formação, a qual já conteria todos os aspectos que doravante vão orientar os escritos nos
anos 1950. Vejamos:

“Se a mortalidade, geral e infantil, a mortalidade por


tuberculose, a sífilis, a lepra e outras doenças se correlacionam
de maneira positiva com as classes de baixo poder aquisitivo,
torna-se evidente que é na medida em que se transforma a
estrutura das classes sociais ou, como diz o Dr. Pedro de
Alcântara, que se promove a homogeneização da riqueza
espiritual e material que se resolvem estes problemas. Quer
dizer, no tratamento deve ser dada primazia às medidas indiretas
que são as sociais. À luz deste raciocínio acertado, a
organização sanitária de um país como o Brasil é um aparato
mais inócuo do que eficiente, cujas ‘atividades têm sido mais ou
menos inúteis’, como afirma, com a autoridade de diretor do
Serviço Nacional de Peste e de delegado do Brasil à conferência
de Organização de Saúde da ONU de Genebra, o ilustre médico,
Dr. Almir de Castro.
A menos que se adote a desmoralizada concepção biologista
ou darwinista do processo social, como a de certo médico
espanhol que afirma que a maioria dos indivíduos das classes
inferiores são tarados e que os membros de classe superior aí
estão por serem biologicamente os mais indicados para as suas
funções, a menos que se adote tal teoria, os dados da biometria e
da sociologia diferencial demonstram à saciedade, que a
melhoria do padrão sanitário das massas deriva da elevação
econômica e cultural da maior parte da população.” (Ramos,
1949, p. 40)

Nas críticas ao ISEB, aponta-se a ausência de uma perspectiva de classes. É


cobrada a concepção marxista desse fato social. Os autores das críticas não reconhecem
como válido o modelo “tricotômico”, isto é, que vê a distribuição dos contingentes
sociais em três classes. Para eles, a idéia de “classe média” é inócua, ou então suspeita,
e põe sob suspeita os seus utilizadores. De acordo com o que li da produção sociológica

86
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

nos anos 1950, não encontro nenhuma abordagem do mundo social que o enquadre de
acordo com a perspectiva marxista de classe, a não ser de forma mais doutrinária do que
pragmática. Na sociologia realizada em São Paulo, comunidade constitui a categoria
básica de conhecimento do universo popular. Em Guerreiro Ramos, bem como em
outros escritos isebianos, a categoria com que eles procuram compreender o mundo
social de um ponto de vista micro é a de classe, mas dentro do modelo tricotômico. Com
base no acompanhamento que fazemos aqui do desenvolvimento da perspectiva
sociológica no pensamento de Guerreiro Ramos, podemos notar que a exigência que se
faz em relação à ausência do conceito de classe marxista é anacrônica. Anacronismo
que tem por conseqüência desconsiderar as leituras, modos e objetos de pensar
disponíveis naquele contexto.
Como podemos observar, entre a sociologia de Guerreiro e a defesa que ele fará
da política nacional desenvolvimentista há um crescendo que pode ser acompanhado
pela dinâmica do seu pensamento. Uma compreensão mais econômica de um problema,
inicialmente entendido como ecológico e cultural, é alcançada. Dessa compreensão, o
autor chega a uma perspectiva de classe e, a partir dela, à de estrutura social, que é
basicamente informada pela compreensão da estrutura econômica. Esta vista como
subdesenvolvida, o que se evidenciaria pelo baixo nível de renda per capta no país.
O alcance a que o pensamento de Guerreiro chega de uma percepção econômica
dos problemas estruturais do país deve ser compreendido em um cenário em que a
economia como saber acadêmico também vai se firmando. Segundo Bielschowsky, é só
a partir de 1960 que o ensino da economia como saber científico se organiza. Antes
“não apenas eram poucos e de má qualidade os cursos de economia no Brasil, como
pareciam, também, estar desprovidos de orientação teórica definida” (Bielschowsky,
2000, p. 7).
No entanto, é ao período que se inicia em 1930 que o autor remonta o
surgimento de uma percepção mais específica do campo econômico e sua relação com
uma teoria da sociedade brasileira. Independentemente dos matizes ideológicos e
teóricos que vão orientar as preocupações econômicas, um pensamento econômico
brasileiro se delineia junto às mudanças das instituições políticas desencadeadas pela
crise da década de 1930. Segundo o autor, “a centralização de poder comandada por
Vargas gerou um conjunto de agências planejadoras, como o Departamento

87
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

Administrativo do Serviço Público, o Conselho Federal do Comércio Exterior, o


Conselho Nacional do Petróleo, o Conselho de Águas e Energia e tantas outras”
(Bielschowsky, 2000, p. 127). É no âmbito dessas instituições que o problema do
desenvolvimento industrial acaba por dar maior realce – bem como a exige – à reflexão
econômica como parte integrante e significativa de uma compreensão global da
sociedade brasileira e de sua história.
Em nível acadêmico, a história do pensamento econômico teve como suporte
instituições como a Universidade do Brasil e a Fundação Getulio Vargas, esta criada em
1944, onde Eugênio Gudin e Otávio Gouvêia de Bulhões “lograram formar uma sólida
divisão de pesquisas econômicas, que, em 1950, ganhou o nome de Instituto Brasileiro
de Economia (IBRE)” (Bielschowsky, 2000, p 38). Além dessas instituições de ensino e
pesquisa, outras diretamente ligadas ao comércio acolheram e estimularam a reflexão
econômica. Trata-se do Conselho Nacional de Economia, Confederação Nacional do
Comércio, Associação Comercial de São Paulo e Federação do Comércio de São Paulo.
Ressalta-se, ainda, a importância das publicações como veículos de debate e de
divulgação da relevância da economia.
Creio que uma análise setorializada da história do pensamento sociológico no
Brasil, ou seja, aquela que se detém exclusivamente na produção acadêmica, acaba por
mutilar essa mesma história, na medida em que a exclui de um universo mais amplo do
qual ela é uma parte e o qual traduz. O estudo de Bielschowsky – visto que se trata de
uma história do pensamento econômico – nos mostra que não se pode escrever a história
econômica brasileira considerando-se apenas o desenvolvimento de uma infra-estrutura
despojada de espírito. Ao focalizar o pensamento, o que significa também dizer a
história da afirmação social de uma competência científica, o autor mostra como a
economia é parte significativa nos esforços de compreensão, explicação e modernização
da sociedade brasileira nos anos que vão de 1930 à década de 1960. Voltemos a
Guerreiro Ramos.
O sociólogo faz uma análise da estrutura econômica brasileira em “O Problema
da Mortalidade Infantil no Brasil”, no qual destaca a relação entre a mortalidade infantil
e a renda nacional. Sem deixar de assinalar o fato da alta concentração de renda no país
como um fator da desigualdade social, ele esclarece que, dado o nível da renda nacional,
ainda que ela fosse igualmente distribuída por todas as famílias com uma média de

88
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

cinco membros, a parte que caberia a cada uma delas não seria suficiente para a
subsistência física (p. 11). Outro fator agravante da estrutura econômica seria a
desigualdade regional. Segundo os dados que utiliza, só o Estado de São Paulo e o
Distrito Federal responderiam por 65% da renda nacional, cabendo o restante aos
demais Estados.
Guerreiro revela um pessimismo em relação à possibilidade de superação de
níveis tão altos de desigualdade econômica. Na justificativa desse pessimismo, podemos
visualizar uma sugestão do capitalismo brasileiro induzido. Ele observa que, no Brasil,
“as profundas desigualdades de poder aquisitivo não parecem passageiras”, devido à
incipiência do capitalismo brasileiro. Nas suas palavras, seríamos

“um país de pequena renda e de capitais insuficientes para


desenvolver a economia nacional na medida das necessidades da
população brasileira. É ingênuo pensar num distributivismo
avançado. Por muito tempo o desenvolvimento do país terá de
ser obtido à custa do pauperismo ou de baixos salários”.
(Ramos, 1951a, p. 13)

Há algo de irônico nesta última frase. Esse tom laissez-faire destoa do


voluntarismo que permeia todo o pensamento de Guerreiro Ramos. Se há uma ironia,
porém, é porque ele parece estar chamando a atenção para o fato de que a superação da
desigualdade social não poderia ser esperada de um movimento espontâneo, vindo de
baixo para cima. Isso porque, com base nos seus estudos sobre orçamento familiar, a
pobreza tende a perpetuar-se a si mesma. Seguindo uma perspectiva materialista da
cultura, Guerreiro destaca como a formação de uma mentalidade mais cosmopolita e
mais prospectiva estaria diretamente condicionada pela renda familiar, ou seja, pela
situação material. Utilizando estudos sobre a pobreza, ele observa o seguinte:

“O nível de pobreza – diz Comish – permite apenas manter


juntos o corpo e a alma. Nele nem a mais prudente utilização da
renda disponível permite satisfazer as necessidades da família
média. A menor emergência expõe os indivíduos à caridade
pública ou à dependência.
O nível mínimo de subsistência permite manter
satisfatoriamente a vida física, embora seja insuficiente para
permitir a satisfação das necessidades sociais. Implica, ainda,
uma condição precária de existência.” (Ramos, 1951a, p. 14)

89
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

Conforto, atividades recreativas e educacionais estavam ausentes dos gastos da


família média brasileira, o que significava uma mediocrização das aspirações a níveis de
vida mais elevados e, conseqüentemente, a ausência da formação de uma pressão
popular para a aquisição de bens além daqueles necessários à subsistência física. A
pobreza material e cultural se retroalimentavam, donde podemos perceber o pessimismo
de Guerreiro Ramos.
Esse texto é escrito no contexto de iniciativas governamentais que visavam à
melhoria das condições da saúde dos brasileiros. Procurava-se atacar o problema com a
instalação de postos de saúde e de puericultura e, dessa forma, restringindo o problema
a uma solução médica e administrativa. Guerreiro chama a atenção para as limitações
daquelas iniciativas, porque entre elas e a mentalidade popular haveria um enorme
abismo, que as tornaria ineficientes. Segundo ele: “Os consultórios, o posto de
puericultura e outras unidades sanitárias só se fixam eficientemente quando as
populações estão suficientemente esclarecidas, possuem determinados hábitos de vida e
já gozam de poder aquisitivo para se manterem num nível de vida mínimo” (Ramos,
1951a, p. 39).
O mesmo raciocínio se aplica à crítica que ele faz às recomendações de um
sociólogo americano para a solução do problema escolar brasileiro em A Cartilha.
Recomendava-se que no Brasil fossem instaladas escolas secundárias em todos os
municípios proporcionalmente ao número de pessoas, como nos Estados Unidos.
Segundo Guerreiro, só em um ato de loucura tal medida poderia ser adotada, pois, além
do fato de que não haveria professores em número suficiente, “como manter nas escolas
secundárias uma população de adolescentes cuja psicologia e cuja situação econômica
se constituiriam em fatores impeditivos da escolaridade?” (Ramos, 1956, pág. 99). A
crítica à soluções importadas para os problemas brasileiros articula-se com a crítica ao
pensamento transplantado.
Assinaladas a cultura da pobreza, a concentração de renda e a baixíssima renda
per capita, Guerreiro aponta o baixo nível de produção, que agravaria ainda mais a
pobreza no Brasil. De acordo com os dados que utiliza, a produção agrícola per capita
manifestava “nítida tendência para decrescer”. Dentro desse quadro, que representa uma
visão global da sociedade brasileira, a mortalidade infantil seria perfeitamente normal,

90
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

visto que seria “uma espécie de mecanismo regulador por meio do qual a população
equilibra seus recursos com as suas necessidades” (Ramos, 1951a, p. 23).
A conclusão sobre a normalidade da mortalidade é um desalento. Na verdade, a
imagem que Guerreiro tem da situação global do Brasil é de que ela tenderia para pior.
Cada um dos fatores se reforçariam: a distância cultural interna, a mentalidade popular
(que no caso da mortalidade infantil a justificava como sendo a vontade de Deus) –
incapaz de pressionar por padrões de vida mais elevados –, a estrutura econômica cada
vez mais encolhida e políticas sociais dispendiosas e ineficazes.
As avaliações negativas que Guerreiro Ramos faz das medidas administrativas e
da adoção de práticas que foram eficientes em outros lugares participam do rol das
críticas mais amplas que Guerreiro faz às transplantações. Essas críticas, que vão a
partir de 1953 orientar os estudos críticos do pensamento social e político brasileiro, em
que denuncia o distanciamento entre esse pensamento e a realidade brasileira, aparece
em Problema da Mortalidade Infantil como uma crítica à administração pública. Aliás,
é dessa forma que ele inicia o texto. Ele assinala que o problema originário da
administração pública no Brasil, isto é, da sua ineficiência, é que ela teria precedido à
sociedade. Isso fez com que fosse congênito à formação política brasileira “o vício de
adotar para os seus problemas soluções prontas”. Em A Cartilha é reiterada essa
observação e ampliada para o contexto latino-americano:

“Em todos os países latino-americanos se registra uma


contradição entre a vida comunitária e as instituições, as quais,
em sua maioria, têm sido recebidas acabadas, resultante mais de
um processo revolutivo do que evolutivo.” (Ramos, 1956, p. 83)

A defesa de um capitalismo brasileiro induzido segue junto com a crítica que


Guerreiro Ramos faz à sociologia acadêmica. Em “A Cartilha do Aprendiz de
Sociólogo”, a recomendação de um maior empenho dos sociólogos na aceleração do
desenvolvimento econômico baseia-se no julgamento desfavorável que ele faz do modo
como as teorias sociais eram importadas, contribuindo, com isso, de forma
insatisfatória, para o desenvolvimento material e cultural brasileiro. Ele assinala a
estreita relação que haveria entre o comportamento das elites letradas em face das
teorias estrangeiras e a paralisia estrutural brasileira. A cultura popular se constituía em
um fator de inércia, bem como a cultura erudita. Ambas se fechavam sobre si mesmas

91
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

mantendo o abismo entre as classes sociais, as quais conviveriam em uma relação de


estranhamento.
É importante assinalar esse aspecto da distância cultural interna como reforço da
compreensão que Guerreiro tinha do nacionalismo. Se compararmos a ênfase do autor
no distanciamento cultural como uma conseqüência parcial do subdesenvolvimento
econômico com as teorias recentes sobre os nacionalismos europeus, observaremos que
o autor não está distante da compreensão do nacionalismo como fenômeno cultural e
político e que é congênito à formação das sociedades industriais.
Embora em uma perspectiva crítica do nacionalismo, como um artifício criado
pelas elites industriais, vimos como Gellner nos esclarece um pouco sobre o significado
cultural desse fenômeno. Para esse autor, na sociedade agrária, o saber era
especializado, concentrado em elites letradas, horizontalmente interligadas, distantes
das comunidades locais, auto-reprodutoras e verticalmente separadas entre si. Na
sociedade industrial, em virtude da divisão do trabalho exigida pelo desenvolvimento
econômico contínuo, há uma expropriação do saber concentrado nas antigas elites pelo
Estado, o qual passa a se encarregar da universalização do conhecimento. Esse papel do
Estado, na organização de um sistema nacional de educação seria funcional a uma
sociedade marcada pela mudança e inovação contínuas, o que não permitiria mais às
pessoas a acomodação a papéis sociais estáveis.
De fato, essa explicação de Gellner não se aplica inteiramente à análise de
Guerreiro Ramos. Conforme vimos anteriormente, Guerreiro chega mesmo a criticar
medidas como estas, a da implantação indiscriminada de escolas secundárias. Porém, o
que deve ser ressaltado na análise de Gellner é o fato de que a configuração da nação
exige certa homogeneidade interna e aproximação entre as classes.
Como podemos observar no pensamento de Guerreiro, o elemento cultural goza
de uma relativa autonomia em face da economia. Essa autonomia se manifesta mesmo
na compreensão que o sociólogo tem dele como fator de inércia e de paralisia. A cultura
letrada e a cultura popular, cada uma a seu modo, principalmente por causa do
distanciamento entre elas, contribuiriam para a estagnação do país. Se como fator de
inércia o elemento cultural contribuiria para a paralisia estrutural, é possível deduzir
que, ao se tornar mais dinâmico, mais engajado, no que diz respeito aos cientistas
sociais, ele poderia assumir um papel ativo no desenvolvimento nacional. É essa relativa

92
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

independência que permite a Guerreiro direcionar a crítica a elites culturais e


acadêmicas, na medida em que elas reproduziriam nos estudos sociais uma atitude de
alheamento e estranhamento da realidade local. Tal alheamento seria pernicioso, visto
que impediria uma relação mais afetiva com a comunidade interna e, conseqüentemente,
uma ação mais engajada com vistas ao desenvolvimento cultural, social, político e
econômico.
Pode-se dizer que, para Guerreiro, na falta de condições materiais – no caso, a
configuração mesma de uma sociedade industrial –, um sentimento de nacionalidade
teria de ser despertado mais, ou antes, entre os intelectuais do que no Estado. Tal
sentimento adviria de uma experiência de pertença (e por que não de amor?) à nação, o
que seria proporcionado pela própria sociologia dos estudos “sinceros” da realidade
local, e não “obnubilados” pelo desejo de prestígio conferido pela mera erudição nas
teorias importadas.
O sentimento de pertença é um tema que atravessa o estudo sobre o
nacionalismo de Benedict Anderson em Comunidades Imaginadas. O autor acredita que
a comunidade nacional é ela própria uma imaginação daqueles que a ela se imaginam
pertencer, e que, por isso, a realidade da nação só pode ser apreendida em termos das
representações que os homens têm de si como membros de um grupamento humano
com o qual partilham crenças e valores comuns. Ao definir a nação como comunidade
imaginada, Anderson abre caminho para pensar o nacionalismo como algo que não
existe apenas na imaginação dos governantes, mas como artefato cultural construído
graças à capacidade que as pessoas têm de se imaginar como pertencentes a uma
comunidade, ou seja, a partir de um conjunto de crenças e valores identificados em
códigos reais como, por exemplo, a linguagem escrita e falada. Os nacionalismos nos
países colonizados teriam sido possíveis graças ao aparecimento de uma intelligentzia
que, por meio do romance e da poesia, puderam disseminar o sentimento de pertencer a
uma comunidade habitada por outros desconhecidos, mas iguais.
É interessante identificar uma relação entre a ênfase de Anderson no papel dos
intelectuais e a de Guerreiro. Anderson toma como ponto de partida de sua análise os
grandes sistemas religiosos como promotores do sentimento de pertença. Religiões,
como islamismo e cristianismo, teriam dado significado ao sentimento de contingência e
de fatalidade das pessoas. As religiões são artefatos culturais cujos artífices são homens

93
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

que pensam, que elaboram em um registro transcendental uma compreensão da vida e


da maneira como se deve viver. Constituem, em suma, uma intelligentzia.
A análise do conteúdo das idéias orienta a análise de Guerreiro da formação da
política brasileira. Vimos que, ao proceder ao estudo da forma como o Estado brasileiro
fora organizado, o autor destaca a imitação de mecanismos administrativos oriundos das
nações européias. Entretanto, a explicação histórica do conteúdo das idéias que
Guerreiro fará se tornará possível com o livro de Inácio Rangel: A Dualidade Básica da
Economia Brasileira, de 1953, sobre isso tratarei no próximo capítulo.
Como veremos, a literatura regionalista tem grande importância para Guerreiro,
pois, podemos deduzir, por meio da linguagem escrita promoveria uma imaginação da
comunidade nacional. Dessa autonomia relativa que a cultura assume no pensamento de
Guerreiro, podemos concluir sobre o papel que os intelectuais deveriam desempenhar
tanto no desenvolvimento da estrutura econômica brasileira como na promoção de um
sentimento nacional. Mas, para isso, eles teriam de romper a cisão interna que a
separava da população local. Na verdade, o sentimento nacional teria de ser ele mesmo
anterior ao desenvolvimento da estrutura econômica naquelas condições.
Guerreiro identifica no “sonambulismo” em que viviam os intelectuais
brasileiros, e igualmente nas idéias orientadoras das políticas públicas, um “transplante
literal” das teorias importadas. Ele escreve sobre isso na primeira recomendação feita no
Congresso de Sociologia:

“As soluções dos problemas sociais dos países latino-


americanos devem ser propostas tendo em vista as condições
efetivas de suas estruturas nacionais e regionais, sendo
desaconselhável a transplantação literal de medidas adotadas em
países plenamente desenvolvidos.” (Ramos, 1956, p. 83)

A prática de transplantações literais teria relação direta com a formação histórica


brasileira. De um lado, uma elite administrativa e intelectual, cultivada no exterior; de
outro, a ausência de povo. Segundo ele:

“O colonizador, no Brasil, não encontrou povo, como encontrou


no México, no Peru, na Índia. Encontrou uma espécie de
‘material etnográfico’, uma espécie de ‘matéria inorgânica’, de
que dispôs segundo seus propósitos. Operou em espaço

94
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

historicamente vazio, que passou a ser ocupado por portugueses


e africanos, os contingentes fundamentais formativos da nossa
população, uns e outros alienígenas.” (Ramos, 1956, p. 86)

Só a partir de 1822 é que teria surgido o “problema nacional” brasileiro. Com a


Independência, impunha-se às elites políticas a reforma das instituições que haviam sido
instaladas pelos portugueses. É dessa formação histórica que decorreria a formação
mental das elites, fornecendo o seguinte panorama:

“(...) de um lado, a massa de brasileiros sem hábitos de


autogoverno, secularmente submetida ao discricionarismo de
potentados e reguletes locais; de outro lado, uma camada
letrada, provida de idéias apanhadas em livros de língua inglesa
e francesa, uma elite livresca e superfetada que se caracterizou
por uma atitude exemplarista, segundo a qual a resolução dos
nossos problemas estaria garantida pela instalação, entre nós,
das instituições vigentes nos países líderes da época: Inglaterra,
França, Estados Unidos”. (Ramos, 1956, p. 87)

Esse distanciamento impediria que, nos dias em que Guerreiro Ramos escrevia,
se compreendessem os problemas estruturais que afetavam a vida dos brasileiros. Além
disso, impediria a percepção de que, a despeito da ausência de coordenação e
planejamento, um capitalismo brasileiro e uma cultura popular estavam se
desenvolvendo. Porém, esse desenvolvimento teria de ser “acelerado”. Por isso,
Guerreiro compreende que as transplantações em si não são más. As transplantações
literais teriam um efeito predatório visto que reproduziriam relações de dominação entre
países. Alternativa às transplantações literais e predatórias seriam as “acelerativas”,
pois, visando à aceleração do desenvolvimento interno, “são obrigadas a adotar medidas
observadas em países plenamente desenvolvidos” (Ramos, 1956, p. 88). Dentre as
transplantações acelerativas são destacadas “as máquinas, os processos fabris de alto
rendimento, certas formas especializadas de instrução e educação”.
A crítica às transplantações e ao pensamento social e político brasileiro requer
análise mais detalhada. A exposição desses estudos críticos precisa estar situada no
contexto da compreensão mais ampla de Guerreiro da formação histórica da sociedade
brasileira e da sua configuração nos anos 1950. No próximo capítulo, inicio a análise
dos textos escritos a partir de 1953 e, mais precisamente, aqueles da fase isebiana,

95
Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

encerrada em 1958. O ponto central será apresentar o nacionalismo não apenas como
uma tática política, mas como uma teoria da sociedade brasileira, teoria essa que
constituiu, também, uma das narrativas históricas sobre essa sociedade naquela época.

96
Capítulo 4

Nacionalismo e ideologia

4.1. Nacionalismo e populismo

O nacionalismo político como ideologia formulada pelo ISEB constitui objeto da


crítica de Francisco Weffort em O Populismo na Política Brasileira (1978). Nesse
trabalho, o autor questiona a validade da distinção que os ideólogos nacionalistas
estabeleceram entre o populismo e o nacionalismo. Segundo Weffort, o ponto forte do
argumento consistiria na identificação do populismo como um fenômeno pré-político,
destituído de conteúdo político e, por isso, não ideológico. Para os nacionalistas, o
nacionalismo seria um fenômeno distinto e mais avançado, por nele já se poder delinear
uma política baseada em princípios orientada pelo que seriam os interesses gerais do
povo. Partindo do pressuposto de que o populismo foi uma constante na política
brasileira de 1945 a 1964, o nacionalismo é considerado por Weffort apenas como uma
forma mais rebuscada e elaborada do populismo. Nos dois fenômenos, o vínculo entre
massa e líder caracteriza a relação política, mantendo-se, portanto, nas duas formas o
que os nacionalistas desqualificavam no populismo, ou seja, um apelo com base na
“demagogia, emocionalidade, verbiagem social, etc.” (Weffort, 1978, p. 25).
Segundo Weffort, o equívoco original do nacionalismo residiria no apelo ao
povo, que apenas repunha com outro termo o suporte social do populismo: a massa. Se
uma diferença havia, esta residiria no simples fato de que, enquanto se pode falar do
populismo como um fenômeno espontâneo, verificado em diferentes pontos do país e
resultado do encontro entre interesses de grupos sociais e uma liderança carismática, o
nacionalismo nasce dentro do Estado.

97
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

“O reformismo nacionalista também foi espontaneísta, porém


em forma mais elaborada. Diferentemente do populismo,
expressão tópica da ascensão das massas e da sua incorporação
ao regime, o nacionalismo foi sua expressão global, e emerge,
portanto, diretamente ao nível do Estado. Ele corresponde, neste
período que se inicia com o segundo governo Vargas, a grupos
políticos, tecnocráticos e militares situados no aparelho do
Estado ou diretamente associados a ele e que tratam de definir
uma estratégia para o Estado em face dos problemas criados ou
enfrentados pelo desenvolvimento industrial e urbano do País. A
ideologia nasce, pois, dentro do Estado ou em associação com
ele, embora pretendendo traduzir interesses gerais de todo o
povo. A política nacionalista expiou de várias formas o pecado
original da ideologia.” (Weffort, 1978, p. 40)

Considerados os aspectos mencionados por Weffort, ou seja, do nacionalismo


como uma tática política e que manipula um ingrediente emocional, não há como, de
fato, acredito, distinguir os dois fenômenos. No entanto, na medida em que sua análise
privilegia tão-somente o caráter prático ou tático da ideologia nacionalista, isto é, como
um movimento que pretendeu mobilizar amplos setores da sociedade com base em um
discurso que faz apelo a alianças, ela deixa de lado o conteúdo propriamente teórico do
nacionalismo. Sua caracterização do nacionalismo não considera aquilo em que este se
pretendeu como uma teoria social e política normativa, que buscava salientar, na
estrutura social, mudanças que estariam tendo um impacto renovador no
comportamento político da sociedade e que poderiam ensejar, também, uma
epistemologia da ciência política distinta daquela que orientava e possibilitava a análise
do populismo.
Desejar encontrar na realidade os suportes que permitam o estabelecimento de
uma teoria e de um campo de saber talvez seja o elemento contrafactual do
nacionalismo e, portanto, não apreendido pelo estudo de Weffort. É cada vez mais claro
para mim que não se pode pretender uma compreensão dos anos que se seguem à
redemocratização até 1960 sem que se considere o fato de se tratar de um período que
poderíamos qualificar como “heróico”, de forte impulso criativo e de invenção.
O desejo de modernização não se revela apenas em políticas efetivas de
desenvolvimento econômico, social e na criação de cursos universitários, mas também
na construção de teorias e de epistemologias que parecem pretender, às vezes, antecipar-
se a um moderno efetivo e real. Idealismo e realidade se imbricam de tal forma que me

98
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

parece injusto apontar equívocos teóricos por meio do diagnóstico baseados em fatos
supostamente mais observáveis. Em um balanço das elites intelectuais que se formam
em torno do projeto universitário que conduz à institucionalização das ciências sociais,
podemos dizer que se trata não apenas do erguimento de edifícios, organização de
departamentos e definição de métodos de pesquisas e objetos, mas também de uma
ressemantização da própria experiência social como condição para um arcabouço
conceitual renovado. Muitos dos conceitos parecem mais eficazes na prefiguração de
um futuro desejado do que na explicação ou compreensão da própria época.
De certa forma, as narrativas sobre o Brasil nos anos 1950 tendem a apontar o
que deveria ser superado nas formas de pensar e agir então vigentes. Florestan
Fernandes vai desde as formas folclóricas da mentalidade popular, do estilo ensaístico
da produção intelectual, à maneira como as elites políticas se comportam em face do
poder estatal, indicando-os como entraves mentais do moderno. Guerreiro Ramos, por
sua vez, tem como objeto preferencial as maneiras de pensar e de se pensar das elites,
fossem elas econômicas, intelectuais ou políticas (as quais se caracterizariam por uma
relação de estranhamento com o outro interno), considerando estas maneiras de pensar
os empecilhos a ser superados.
Arriscando-me a uma interpretação pessoal dessa época, diria que o que está em
mira e (por que não?) em processo é uma revolução do pensar, a qual se impõe como
urgente em virtude de uma constelação histórica mundial em mudança acelerada, e da
qual o país estaria em condições objetivas de participar, até certo ponto. Esse “até certo
ponto” a que me refiro é aquele relativo à reconfiguração da ordem econômica mundial,
a qual, até a década de 1930, apoiava-se na certeza da vocação natural de cada país
como o fator que legitimaria e autorizaria uma forma específica de ingresso na divisão
internacional do trabalho.
Se uma alteração no modo de pensar tal ingresso foi estimulada por fatores mais
externos do que internos, provocando mudanças tanto no pensamento econômico
brasileiro como nas políticas econômicas efetivas, o mesmo não se poderia esperar do
que diz respeito a um impacto mais contundente nas maneiras de pensar tradicionais das
elites mais bem favorecidas econômica e culturalmente, bem como da camada popular.
Só para mencionar um aspecto da mentalidade referido ao consumo, Celso Furtado
(2000) escreve que uma das conclusões a que chegou na sua teoria do

99
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

subdesenvolvimento foi a do mimetismo cultural refletido nos padrões de consumo da


elite brasileira.
Desenvolvendo uma explicação estrutural desse fato já sabido pelos economistas
“conservadores”, como Eugênio Gudin, Furtado observa que o mimetismo poderia ser
entendido em um quadro histórico em que o aumento de produtividade proporcionado
pelo comércio internacional acarretou o aumento de renda nos países de economia
agrária. O problema é que a universalização dos fatores – aumento de produtividade do
trabalho e inovação tecnológica – que conjuntamente contribuíram para a riqueza
mundial se restringiu eficazmente ao primeiro. As técnicas produtivas se
universalizaram apenas no setor de transporte, sendo nula a universalização no que diz
respeito às diretamente ligadas à produção. O resultado foi a combinação de uma
economia sem capacidade para o estímulo de um mercado interno para bens
diversificados e de consumo massificado, ao lado de uma forte concentração de renda
no setor favorecido pelo comércio internacional: o setor agrário.
A essa combinação de fatores se juntava outra universalização: a de padrões de
consumo praticados nos países pioneiros da industrialização. À medida que as camadas
sociais internas mais bem favorecidas adotavam tais padrões, estavam contribuindo para
o subdesenvolvimento brasileiro. Essa constatação permitiu a Furtado introduzir uma
variável cultural na compreensão do subdesenvolvimento. Nas suas palavras:

“Essas reflexões me levaram à convicção de que a permanência


do subdesenvolvimento se deve à ação de fatores de natureza
cultural. A adoção pelas classes dominantes dos padrões de
consumo dos países muito superiores aos nossos explica a
elevada concentração de renda, a persistência da
heterogeneidade social e a forma de inserção no comércio
internacional.” (Furtado, 2000, p. 60)

A observação retrospectiva de Furtado corrobora a impressão que os escritos de


Guerreiro nos deixam daqueles anos. Trata-se do fato de que o aspecto sociológico mais
dramático, e ao qual o nacionalismo foi sensível, é a ausência de solidariedade nacional,
expressa no distanciamento entre as classes sociais. De certo, a distância pode ser
enquadrada em termos de desigualdades regionais e sociais, reduzidas ao seu
denominador comum, que é a desigualdade econômica, como podemos observar nos
diagnósticos de Guerreiro Ramos e de outros.

100
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Já vimos que todo o período abrangido pela década de 1940 é de construção de


instituições e formulação de políticas públicas sensíveis à desigualdade. A convivência
de dois mundos que se excluem, e, mais, praticamente não se tocam, é descrita de modo
dramático por Florestan Fernandes. Contudo, o conceito de desigualdade econômica me
parece um tanto insuficiente para entendermos o tipo de diagnóstico da sociedade e
apelo a ela que caracteriza o nacionalismo. De fato, posto que nisso consiste a crítica de
Weffort, o nacionalismo como ideologia mobiliza um conteúdo emocional, que
interpela as consciências, visando ao despertar de um sentimento simpático e afetivo de
pertencimento. Em Guerreiro Ramos, parece-me bastante claro que o alvo da
interpelação ideológica são os intelectuais e as elites políticas. São ácidas suas críticas
aos consumidores de idéias, teorias e soluções políticas importadas.
Embora tais atitudes de importação cultural sejam creditadas, como veremos, à
maneira como se dá a nossa formação histórica e a configuração do mundo pós-Segunda
Guerra como “sistema mundial”, em que o intercâmbio cultural se torna fato estrutural,
Guerreiro Ramos imputa o elemento de responsabilidade pessoal na maneira de as elites
se conduzirem em face do destino nacional. É na convocação da responsabilidade ou da
intervenção consciente dos homens que consiste a ideologia no nacionalismo em
Guerreiro Ramos. Em Maquiavel, A Política e o Estado Moderno (1980), Antônio
Gramsci faz uma observação que, acredito, ajuda a compreender o significado desse
apelo que Guerreiro faz às elites. Escreve Gramsci: “Fala-se de capitães sem exército,
mas, na realidade, é mais fácil formar um exército do que capitães.” Estou convencida
de que o nacionalismo, ao menos aquele de Guerreiro, se destinava à formação de
capitães, visto que o diagnóstico que a teorização sobre a sociedade brasileira lhe
permite alcançar é de que o Brasil “já” era um país com “povo”, faltando a conversão
das elites à nação.
Por isso defendo que o nacionalismo que os escritos de Guerreiro nos permitem
compreender deve ser analisado como um fenômeno de pedagogia coletiva, de discurso
que visa à formação de uma “vontade nacional”, já que a nação existe, mas falta a
vontade. Nisso ele transcende os partidos e opera como um discurso de fundação. Nesse
caso, ele não se confunde com o episódio de uma variável histórica particular, no caso, a
história política. Ele se anuncia como “fenômeno social total”, e que pretende expressar

101
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

a sociedade como “fato social total”, isto é, uma realidade econômica, cultural, jurídica,
política, estética, etc.
Como pretendo demonstrar, no pensamento de Guerreiro Ramos, ideologia
política e ciência social se confundem, embora não seja impossível detectar o limiar
entre os dois projetos: o ideológico e o científico. Para que alcancemos uma melhor
compreensão do nacionalismo isebiano, é preciso que descartemos como falso
problema, na medida em que o conflito entre ciência e ideologia não é um problema
para os nacionalistas. Novamente, enfatizo que o problema para a crítica era a fusão
entre esses dois aspectos. A compreensão da imbricação entre ideologia e ciência e da
identificação nítida de cada uma das duas no nacionalismo de Guerreiro Ramos depende
da capacidade ou boa vontade de entendermos como a junção e separação das duas
estão implicadas na concepção que tem o autor da configuração histórica da sociedade
brasileira nos anos em que formula a teoria e ideologia nacionalista, isto é, a partir de
1955. A ideologia decorre da teoria.
Assim, penso que o nacionalismo deve ser compreendido como um fenômeno
mais amplo, conforme escrevi, não apenas como um episódio de uma variável histórica
particular, no caso, a história política. Sem dúvida, como observa Weffort, o
nacionalismo pretendeu-se um momento superior ao populismo, como o da política
ideológica. Encontramos essa reflexão em Guerreiro Ramos (1961), quando este
apresenta uma sucessão de “tipos políticos” que iria desde o que ele chama política de
clã, passando pela modalidade oligárquica, pela populista, pela dos grupos de interesse,
até a ideológica, nos seus dias. No entanto, o que talvez não seja relevante para a análise
de Weffort é o intuito mais descritivo na identificação desses vários e diferentes
momentos da evolução política brasileira, e que tem como objetivo procurar,
simultaneamente, tanto assinalar proximidades, como fato histórico, entre o populismo e
o nacionalismo, como diferenças sutis entre eles. Essas diferenças estariam menos nas
performances das políticas populistas e nacionalistas do que na infra-estrutura social
que molda a psicologia do eleitorado.
De fato, o nacionalismo foi uma tática política malograda. Mas, como não se
tratou apenas de uma tática política, podemos considerá-lo como uma narrativa sobre a
vida política no Brasil dos anos 1950, na qual se supõe encontrar ingredientes capazes
de apontar para um devir possível. Esse caráter de narrativa científica é, sem dúvida, o

102
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

que recrudesce a crítica contra o ISEB. Não apenas o fato de terem seus formuladores
expressado uma razão de Estado, mas também o fato de terem pretendido uma razão
científica. Ao fazerem isso, teriam ideologizado a própria ciência e, portanto,
introduzido a irracionalidade do mundo lá onde ela jamais poderia penetrar. Por isso
mesmo, as críticas terão de “expulsá-la” do campo de onde é possível um discurso sobre
a política, devolvendo-lhe ao mundo da política efetiva e de suas vocalizações. Daí que
o nacionalismo político desaparece diluído naquela que seria a única forma
manifestamente moderna de política até 1964, isto é, aquela em que seria possível
detectar uma percepção pública na ação política das lideranças: o populismo. Talvez um
compromisso demasiado forte com os fatos seja exatamente o que impede uma melhor
compreensão do que foi o nacionalismo naquilo em que todos os seus formuladores do
ISEB parecem ter sido unânimes, ou seja, do nacionalismo como um projeto, ancorado
em uma teoria da sociedade brasileira.

4.2. Nacionalismo: uma teoria da sociedade brasileira

O objetivo deste capítulo é focalizar o nacionalismo de Guerreiro Ramos como


uma teoria da sociedade brasileira e como ideologia militante. Como ideologia, ele é
dirigido principalmente às elites políticas partidárias e aos cientistas sociais. Em um
contexto social e político em que as elites parecem-lhe distanciadas da realidade
nacional, Guerreiro, na minha opinião, parece estar mais preocupado com a alienação
das elites do que com a dos homens comuns em relação à vida social brasileira. Como já
observei antes, talvez o fator que mais estivesse impedindo a obra de concretização do
Estado nacional fosse, para Guerreiro, um distanciamento cultural e intelectual interno,
entre elite e povo. Nas suas críticas ao pensamento social brasileiro – que, segundo ele,
praticava as transplantações literais –, o alheamento é sugerido em virtude do fascínio
pelas teorias estrangeiras, o que talvez significasse um fascínio pelo próprio estrangeiro.
Dessa forma, uma compreensão da sociedade brasileira em um momento em que
mudanças fundamentais na sua estrutura política e social estariam ocorrendo requereria,
antes de tudo, uma espécie de conversão nacionalista capaz de despertar um interesse
apaixonado pela nação. Esse interesse deveria levar os cientistas sociais a conhecer,
primeiramente, a história, a estrutura social e regional da nação, para que então

103
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

pudessem, com esse conhecimento, selecionar teorias conforme as conveniências de um


projeto político e social para o Brasil.
Em “Princípios do Povo Brasileiro”, publicado em O Problema Nacional do
Brasil (1960), Guerreiro Ramos distingue seis tipos de nacionalismo: o nacionalismo
ingênuo, o nacionalismo utópico, o nacionalismo de cúpula, o nacionalismo de cátedra,
o nacionalismo de circunstância e o nacionalismo como ciência. O tipo de nacionalismo
proposto é o último. É o nacionalismo dos chamados “povos-proletários”, para os quais
o que nas nações desenvolvidas já seria presente, para eles seria futuro. Por essa
condição periférica, esses povos seriam os “portadores do ponto de vista da comunidade
humana universal”. Daí que a ciência encontraria nesses povos o seu posto mais
avançado historicamente. E essa ciência seria o nacionalismo, como “ponto de vista dos
povos proletários”. Eis como Guerreiro a descreve:

“Como ciência, o nacionalismo só pode ser expresso à guisa de


conjunto de princípios gerais de uma atitude metódica destinada
a habilitar a transpor conhecimentos e fatos de uma perspectiva
para outra, a relativizar o adquirido, a bombardear com
perguntas e argüições todo produto da ação humana.” (Ramos,
1960, p. 255)

Para essa análise, do nacionalismo como ideologia e ciência e como teoria da


sociedade brasileira, utilizarei vários textos escritos entre 1955 e 1961. Não me
prenderei a uma ordem cronológica, visto que nesses textos há sobreposições de temas e
de formas de análise, mas que não estão organizados de forma sistemática. São textos
militantes, na sua maioria, dirigidos a públicos de conferências, a leitores de livros e
jornais. Minha tarefa será principalmente identificar a teoria ou narrativa da sociedade
brasileira que Guerreiro está produzindo, e como, por meio dessa teoria, ele chega a
uma compreensão do Brasil como nação.
Se no capítulo 2 minha atenção esteve principalmente voltada para a teoria da
sociedade brasileira em Florestan Fernandes, na sua preocupação com a questão da
modernização, neste me interessa investigar como Guerreiro produziu uma teoria em
vista da mesma preocupação que orientou o sociólogo paulista. E, mais importante,
investigar como o conceito de nação é elaborado por este autor, em que e como ele se
diferencia do de sociedade.

104
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Para essa tarefa, vou iniciar a análise pelo livro A Crise do Poder no Brasil
(1961). Há duas análises nesse livro que abrem uma via para uma compreensão mais
interna do pensamento do autor a respeito da sua teorização da sociedade brasileira na
movimentada década de 1950. Trata-se da tipologia das práticas políticas vigentes no
país e do seu diagnóstico do que seria uma crise de poder em vista do resultado da
eleição presidencial em 1960.
A tipologia apresentada permite, de início, chamar a atenção para o modo como
o nacionalismo é apresentado por Guerreiro Ramos como uma “exigência”, o que me
parece significar um apelo dirigido às lideranças partidárias para que elas ajustem seus
programas a uma realidade política nova. Essa novidade seria atestada pelo populismo.
Vejamos como ele apresenta a tipologia:

“Os conceitos ‘puros’ de política de clã, política de oligarquia,


política populista, política de grupos de pressão e política
ideológica tendem a ser momentos sucessivos da nossa
evolução. Todavia, ao surgir no país um tipo de política, os que
lhe são historicamente inferiores não desaparecem
necessariamente, continuam em vigência em determinadas
áreas, em determinadas esferas da vida nacional com diferentes
graus de intensidade. Pode-se afirmar que, atualmente, se
registram no Brasil todos aqueles tipos de política. Nos meios
rurais é máxima a vigência da política de clã e da política de
oligarquia e mínima, por exemplo, a da política ideológica.
Prevalece a equação ideológica, ao se focalizarem questões de
âmbito nacional. Quanto menos gerais e mais locais os assuntos,
mais provável a incidência da política de tipo histórico inferior.”
(Ramos, 1961, p. 67)

Há muitos elementos que podem ser explorados nessa citação; por isso, em
outros momentos deste texto me reportarei a ela. No momento, quero apenas destacar a
sucessão histórica das formas políticas e, com outra citação que se faz necessária, como
Guerreiro analisa o populismo em relação às formas historicamente inferiores e em
relação a outras que lhe sucederiam. Sobre o populismo, ele escreve:

“O populismo é um avanço em relação à política de clã e à


política de oligarquia. Esta superioridade decorre de sua infra-
estrutura peculiar. Corresponde a um momento da evolução
econômica em que a industrialização, perdendo o caráter
marginal e ocasional, vai se constituindo em processo

105
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

consistente. Mas é claro que as primeiras gerações dos centros


urbano-industriais ainda não podem apresentar aquela
mentalidade classista que costuma caracterizar as gerações de
trabalhadores providos de longa tradição de lutas. O populismo
é uma ideologia pequeno-burguesa que polariza a massa obreira
nos períodos iniciais da industrialização em que as diferentes
classes ainda não se configuraram e apenas despontam, de
maneira rudimentar. Em tais condições, a debilidade relativa do
incipiente sistema produtivo não permite que as categorias dos
trabalhadores tomem parte nas lutas políticas em obediência a
programas próprios ou diferenciados. Ao contrário, justapõem-
se num agregado sincrético, que pode ser considerado como o
povo em estado embrionário. Esses contingentes recém-egressos
dos campos ainda não dominaram o idioma ideológico. Seu
escasso ou nulo enquadramento e treino partidário, sua tímida
consciência de direitos, eis o que os torna incapazes de exercer
influência pedagógica em seus líderes, os quais, por isso mesmo,
não precisam de um libertarismo superficial em suas maneiras
de ação. Com as suas diferentes qualificações, constitui
expressão do populismo no Brasil o varguismo, e em suas
coordenadas movimentam-se até agora os líderes João Goulart,
Jânio Quadros, Tenório Cavalcanti (...).” (Ramos, 1961, pp. 56-
7)

Destaco nessa citação o modo como o populismo é enquadrado. Em primeiro


lugar, como expressão política dominante; em segundo, como fenômeno relacionado a
uma infra-estrutura social determinada. Esta é configuradora da ordem urbano-
industrial, e que é distinta daquela em que têm lugar as formas clânicas e oligárquicas.
Sob tal apreciação, o populismo é menos objeto de avaliação valorativa do que como,
simultaneamente, fato a ser constatado e categoria compreensiva de uma constelação
histórica em formação. Tal constelação é a que diz respeito a um momento da evolução
econômica, em que a industrialização é a sua principal dinamizadora. A industrialização
acarreta mudanças qualitativas referentes a psicologia, modos de vida urbano e
definição das classes sociais.
O enquadramento do populismo como forma política dominante é atestado na
parte final da citação. São destacados nomes de lideranças expressivas da política
populista então atuantes. Atesta ainda esse enfoque do populismo como forma política
dominante o modo como a “política ideológica” é apresentada. Esta seria a “exigência
fundamental da presente fase do Brasil” (p. 60). Enfatizo a palavra “exigência” por duas
razões. Ela remete a uma compreensão da política ideológica menos como um fato do

106
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

que como possibilidade na época, e como um programa dentro do discurso nacionalista.


A política ideológica não se confunde com o nacionalismo. É um fenômeno da realidade
política que o nacionalismo, como teoria, vislumbra como possível de suceder à forma
então dominante: o populismo.
Em A Crise do Poder no Brasil, Guerreiro interpela dois tipos de atores sociais:
as lideranças partidárias e os cientistas sociais. Dos primeiros, reclama organização e
definição de programas; 35 dos segundos, uma sociologia política reformulada (p. 46). O
nacionalismo, então, transcende tanto o fenômeno da política partidária quanto as
ciências sociais. O nacionalismo de Guerreiro Ramos é apresentado, ao mesmo tempo,
como militância junto às elites políticas e intelectuais e como teoria da sociedade
brasileira com a qual justifica o próprio apelo que está sendo feito a esses grupos. As
duas propostas são encaminhadas acompanhadas de análise política e sociológica, nas
quais diagnostica a crise política que estaria exigindo a ação dos partidos e da ciência
social.
Em A Crise do Poder no Brasil, as análises política e sociológica se entrecruzam
de tal modo que, como assinalei, encontro nesse livro a melhor forma de entrada para a
compreensão da maneira como o autor estrutura a sua concepção do país e da sua
trajetória histórica, o que pode ser identificado em outras obras. Nessas obras, são
utilizadas categorias de compreensão histórica que há algum tempo vinham sendo
elaboradas. Em virtude disso, o objetivo principal na análise de alguns dos textos
reunidos é identificar a estrutura de pensamento do autor e como ela informa a
compreensão histórica e atual da sociedade brasileira. Uma vez feito isso, estaremos em
condições de melhor compreender o próprio nacionalismo, não apenas no pensamento

35
Em “O Controle Ideológico da Programação Econômica”, escrito em 1958 e publicado em O Problema
Nacional do Brasil (1960), Guerreiro reclama representatividade dos partidos políticos, o que seria
indispensável ao processo de desenvolvimento econômico, visto terem se tornado “eminentemente
políticas as soluções dos problemas econômicos nacionais”. Ele explica o que seria “a plena
representatividade” do aparelho partidário: “Ela se concretizaria quando nossas instituições político-
partidárias funcionassem de tal maneira que permitissem à comunidade tornar-se verdadeiro sujeito do
acontecer histórico-social” (p. 217). A plena representatividade era urgente em um contexto em que “As
cúpulas da atual organização partidária (...) controlam discricionariamente, segundo os seus restritos
interesses, o lançamento dos candidatos às funções públicas. Quer-se dizer: elas pretendem fazer os
representantes que desejam e nem sempre aqueles legitimamente formados pela revelação pública de suas
capacidades” (pp. 217-8). Outro fator que contribuiria para a política de cúpula seria “o modo como se
processam as eleições que pelo seu caráter oneroso, em termos monetários, não favorece a candidatura a
postos legislativos de pessoas de recursos modestos, beneficiando mais aqueles que dispõem de meios
materiais, embora muitas vezes destituídos de autenticidade, ou de escassa idoneidade ideológica” (p.
218).

107
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

de Guerreiro, mas como um fenômeno intelectual e político coerente com o modo como
a época era interpretada pelo autor.

4.3. “País com povo” e “país sem povo”

As categorias “país com povo” e “país sem povo” são centrais no diagnóstico do
que seria a crise do poder. É por meio delas que o autor procura identificar o caráter
estrutural do drama político, captando a coexistência tensa entre dois tipos sociais, cujo
antagonismo ter-se-ia revelado no limite no contexto das eleições, e do seu desfecho,
para a Presidência da República em outubro de 1960. A sinalização imediata da crise
estrutural mais funda é oferecida pelos partidos políticos. A análise dos partidos é
instrumental tanto para localizar o problema político específico quanto para aprofundar
a compreensão da natureza estrutural da crise política. No processo eleitoral que leva à
vitória de Jânio Quadros, o problema dos partidos se manifesta. Na análise da relação
entre os candidatos e seus vices com os partidos com os quais concorreram, detecta-se a
fragilidade das agremiações. Eis como o problema é exposto.

“Nos dias atuais, o sistema partidário formado no após-guerra


chegou a um momento crítico. A última campanha sucessorial e
os resultados do recente pleito de 3 de outubro de 1960 mostra
que a nossa vigente organização partidária não reflete as
qualificações do eleitorado. Visivelmente as direções dos três
grandes partidos, o PSB, o PTB e a UDN, não foram capazes de
encaminhar a sucessão nos termos que lhe convinham. Os
candidatos, Marechal Lott e Jânio Quadros, são personalidades
cujo lançamento na vida pública ocorreu à revelia dos grandes
partidos. O segundo tem feito questão de assinalar que está
acima dos partidos e, na campanha, quando reconheceu alguma
ligação partidária, declarou-se militante do PTB, justamente o
partido que apoiava o seu principal adversário. O candidato à
vice-presidência da República, João Goulart, líder do PTB,
companheiro de chapa do Marechal Lott, nem por isso deixou de
ser também apresentado aos eleitores, notadamente em São
Paulo, pelos clubes jan-jan, ou seja, como companheiro de
chapa de Jânio Quadros. Por outro lado, o Marechal Lott foi
originariamente candidato à Presidência da República por
entidades extrapartidárias e jamais militou em qualquer partido.”
(Ramos, 1961, pp. 77-8)

108
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Desse quadro em que as eleições transcorreram, Guerreiro identifica o


desajustamento dos partidos tradicionais à realidade social e política. Na conclusão,
escreve que, “nas eleições passadas, patenteou-se que grande número dos eleitores não
votou partidariamente, votou com suas próprias preferências”. O desenquadramento dos
partidos estaria ensejando um tipo extraordinário de política: o bonapartismo. O
bonapartismo caracteriza uma situação em que, pela ausência de mediação partidária
entre o governo e o povo, o governante interpela diretamente os governados. Tal
situação acarreta prejuízos à livre organização da sociedade civil, visto que “o
bonapartismo suspende a força política das classes sociais e as transforma, por assim
dizer, em suplicantes diante do Estado” (Ramos, 1961, p. 37).
Notemos que Guerreiro Ramos identifica no bonapartismo a mesma relação
entre governante e governado que Francisco Weffort afirma fazer a promoção do
nacionalismo. É interessante que Weffort reclame do nacionalismo o fato de não terem
seus ideólogos proposto um reforço dos partidos, exatamente o que Guerreiro faz aqui.
Mas importa menos a crítica do que o diagnóstico, segundo o qual se assistia ao
enfraquecimento de organizações sociais intermediárias. De certo, esse é o ponto em
que me parece distinguirem-se as análises de ambos. Guerreiro põe acento no
robustecimento de condutas políticas personalistas ao lado do enfraquecimento das
instituições políticas, inclusive a do Estado. Weffort ressalta o fortalecimento do Estado
e a conduta autoritária. Mas o diagnóstico é o mesmo. Só que, em vez de conclamar
pela organização da classe trabalhadora, Guerreiro propõe uma solução de organização
política. Trata-se da organização dos partidos políticos. O fato de a tessitura social
apresentar-se cindida por interesses já configuraria elemento de pedagogia política,
cabendo aos partidos ajustarem-se, ideológica e organizacionalmente, a uma ordem
social em mudança.
Interessado em avançar a análise política rumo à compreensão sociológica,
importa, para Guerreiro, salientar o que de positivo se revelava naquele momento: o
aparecimento do povo. Tanto a inexpressividade dos partidos como o bonapartismo
estariam a confirmar a existência de povo. O fenômeno auspicioso, tanto para um
redirecionamento das organizações quanto para a sociologia política, é a emergência do
povo como categoria política. Essa emergência sinalizava uma mudança histórica, que
caberia à sociologia investigar. A novidade – o aparecimento do povo –, acarretando

109
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

atitudes políticas distintas por parte das elites políticas, é detectada na tipologia, já
citada, com a qual se identifica a forma política dominante em diferentes épocas.
Baseado no conceito de solidariedade mecânica de Dukheim, Guerreiro sugere
dois tipos sociais fundamentais que dariam apoio às diferentes modalidades políticas
(Ramos, 1961, p. 60). As formas clânicas e oligárquicas teriam suporte em um modelo
social formado por semelhanças, enquanto a divisão do trabalho ensejaria as
modalidades em que o povo se faria notar. A época em que o populismo era a forma
dominante atestaria um momento transitivo para aquela em que o eleitorado se
conduziria de forma mais autônoma. A caracterização dos dois tipos sociais e as atitudes
políticas correspondentes são também amparadas pelas observações de Gilberto Amado,
após a revolução de 1930, sobre a psicologia popular, e pela variação nos números das
eleições na história eleitoral brasileira. Segundo Gilberto Amado, “a extrema
uniformidade de opiniões políticas corresponde à extrema uniformidade de opiniões das
elites dirigentes” (Ramos, 1961, p. 60). Os números das eleições durante a República
Velha informavam que a maioria dos presidentes fora eleita com mais de 90% dos
votos, com escassas exceções, que assinalavam “momentos de agudas crises na
sociedade brasileira”, em que os eleitores demonstravam resistência às pressões. A
partir de 1945, Guerreiro identifica nos percentuais menores de voto dos presidentes
eleitos o que chama de “gritante progresso subjetivo das massas” (idem, pp. 63-4).
Em A Redução Sociológica (1965), o que é esse progresso subjetivo das massas
é explicado nos termos da configuração de uma estrutura social que habilitaria a
capacidade projetiva dos indivíduos, à qual estaria associada um potencial conflitivo.
Trata-se do que o autor denomina a “consciência crítica” no nível da vida ordinária. São
três os fatores da consciência crítica no Brasil: a industrialização, a urbanização e a
alteração do consumo popular.
É peculiar o modo como a industrialização é abordada. Embora seja uma
exigência da época, e dada a sua “envergadura”, que “contribui para caracterizar como
nova a atual etapa de nossa evolução histórico-social”, a industrialização é fato antigo.
Ela fora estimulada pelo setor exportador, o qual possibilitou a prática de pagamentos e,
conseqüentemente, “um movimento interno de transações econômicas de que se
beneficiava significativa parcela da camada popular” (Ramos, 1965, p. 67). A produção
mercantil interna continua em um crescendo, e se incrementa a partir de 1850. Ele

110
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

observa que, exceto nas décadas iniciais do século XVI, a importação jamais fora a
principal fonte de satisfação de necessidades internas, servindo como suplemento da
produção interna. Uma conseqüência importante dessas transações econômicas foi o
impacto desintegrador sobre as unidades domésticas, o que sugere o aparecimento de
uma vida urbana.
Com essa análise da evolução econômica, Guerreiro quer salientar o “dinamismo
interno” da economia e da vida comunitária brasileira, o qual teria como aliado um
“fator externo”: a exportação. Nessa análise, já está em aplicação o método redutor
defendido em A Redução Sociológica. O objetivo é apreender a história nacional,
desembaraçada de elementos externos que para ela contribuíram. Outro objetivo é
apreender o que, em outro capítulo da Redução Sociológica, o autor denomina a “linha
diretriz”, 36 ou seja, a continuidade histórica manifesta em um vetor que aponta para o
futuro do embrião da nação. Outro aspecto, parece-me, é mostrar como uma disposição
para o consumo era fator endógeno, de maneira que a industrialização, na época em que
o autor escreve, se apresentava como um fato a exigir tratamento político e
organizacional e a promover a capacidade projetiva nos empresários, nos políticos e
consumidores em relação ao futuro nacional.
A urbanização, conseqüência da industrialização, assinalava a incorporação de
mais brasileiros a um “círculo de intensas (e tensas) relações”, especialmente
econômicas. Seus efeitos psicológicos incidiam sobre a capacidade de cálculo,
estimulada pela dependência cada vez maior da compra dos bens necessários à vida, na
medida em que os indivíduos saíam da esfera da produção para o autoconsumo,
tornando-se “essencialmente compradores”. As relações que a urbanização produz
“estimulam o individualismo, a competição, a capacidade de iniciativa, o interesse pelos
padrões superiores de existência” (Ramos, 1965, p. 74). Outro fator agregado à
industrialização e à urbanização podia ser verificado na diversificação da pauta do
consumo popular. A “simplicidade” do consumo, antes restrito a bens vegetativos
(alimentação, casa e roupa), passava a conviver com consumos mais sofisticados.
Seriam essas as condições que, no Brasil, estariam permitindo a generalização da
consciência política. Segundo Guerreiro, a sociedade que a urbanização forma é a que
tem “maior conteúdo político que a de rurícolas”, acrescentando: “Não é por acaso que

36
No quinto capítulo analiso como o autor trabalha com essa idéia de “linha diretriz”.

111
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

a consciência política se vem incrementando nos últimos anos. Está se formando entre
nós a categoria de verdadeiro povo, graças àquela incorporação. Não tem precedentes o
grau de politização que revelam as massas atuais do Brasil” (Ramos, 1965, p. 73).
Dessas considerações sobre os efeitos sociológicos dos três fatores, salientam-se
dois aspectos importantes. Primeiro, a análise da transformação estrutural baseada nas
categorias rural e urbano. Deduzo essas categorias do fato de Guerreiro referir-se ao
agrupamento social com menor conteúdo político como “rurícola”. Segundo, como tais
categorias informam sobre a experiência de tempo que estaria modificando
qualitativamente a psicologia do eleitorado.
Os quadros de referência histórica são rural e urbano, categorias espaciais
condicionantes de experiências distintas do tempo. No plano rural, os povos vivem em
uma condição “natural”, em que a relação com a natureza é imediata. Aí o tempo é
lento, uma vez que regulado pelo ritmo da natureza e não por pressões que só a
competição e o desejo por padrões mais elevados de vida podem promover. O rurícola,
escreve,

“tem de ser, portanto, um indivíduo pouco tenso em suas


relações com objetos e outros indivíduos, uma vez que estas são,
em larga margem, ajustadas à maneira habitual como os
fenômenos naturais transcorrem. Em segundo lugar, a pequenez
relativa das coletividades rurais, em vez de estimular acentuada
diferenciação dos indivíduos, de diversificar seus objetivos e sua
motivação, levando-os a adotar condutas fortemente
competitivas, integra-os de modo profundo em grupos dotados
de vigorosa consciência coletiva”. (Ramos, 1965, pp. 73-4)

Além do comportamento acomodado, entre as populações rurais não há lugar


para a experiência da individualidade e, portanto, de atitudes mais livres em relação aos
modos de agir sancionados pela tradição. Em relação à política, essa situação definiria
atitudes eleitoras tuteladas pela elite política. As categorias rural e urbano são centrais
na tipologia política. Vejamos como essa relação aparece na análise das condições que
possibilitariam a política populista em A Crise do Poder no Brasil:

“Mas a diversificação econômica do país, o crescimento da


população e, em particular, das aglomerações urbanas são
fatores que progressivamente enfraquecem as oligarquias. Nos

112
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

centros mais desenvolvidos surge uma população que, pela


natureza de suas atividades, não carece da proteção dos chefes
oligárquicos. À diferença dos trabalhadores do campo, que
asseguram largamente sua subsistência do consumo direto da
produção natural, os trabalhadores urbanos vivem da
remuneração de suas atividades. Para os primeiros têm grande
força coesiva os vínculos de localidade. O solo adquire, todavia,
outra significação para os trabalhadores urbanos, não os prende
e torna-se-lhes algo abstrato. O que os modela crescentemente é
a natureza social de suas atividades, que os leva a transcender o
lugar da localidade, da residência. O teor social da existência
dos trabalhadores urbanos é mais rico do que o da vida
camponesa, eleva a sua consciência. Gradativamente
compreendem que o atendimento de suas reivindicações
depende da escala em que passam a influenciar os governantes.
O Estado começa a se lhes mostrar menos como o botim de
oligarcas e seus protegidos do que como órgão de categorias
sociais. Procuram estabelecer com os chefes políticos um
vínculo distinto do que relaciona o oligarca com os seus clientes.
Vêem no chefe político um homem identificado com os seus
problemas e não pessoa a quem devem fidelidade e obediência.”
(Ramos, 1961, p. 54)

Do exposto até aqui, quero destacar o modo como as categorias rural e urbano
informam uma compreensão da estrutura social brasileira nos anos 1950. Até aqui, a
teoria de Guerreiro em nada difere daquela apresentada por Florestan Fernandes, da
qual tratei no Capítulo 2. Ambos trabalham com as mesmas categorias para indicar o
sentido da modernização, a qual se estriba nas condições da ordem urbano-industrial.
Contudo, há mais um elemento na compreensão de Guerreiro que, se explorado,
modificará sensivelmente o significado das duas categorias, rural e urbano,
relativamente ao significado que, em particular, a segunda tem no pensamento de
Florestan Fernandes. Trata-se da idéia de diversidade regional. Para esclarecer melhor
essa diferença, retomo a conclusão a que cheguei sobre a relação entre a ordem urbano-
industrial e o conceito de sociedade em Florestan Fernandes.
Tal como já observei, há um momento em que a análise de Florestan sobre a
estrutura social brasileira prescinde da dicotomia rural e urbano, tomando a última como
referência para uma compreensão mais totalizante da sociedade brasileira. É com
referência à cidade como lugar da indústria e do tipo de trabalho vinculado a ela que a
totalidade social brasileira é pensada. À medida que a cidade passa a significar a própria
sociedade, ela passa a absorver, como sobrevivência histórica, o que antes era

113
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

apresentado como destacado dela, a mentalidade tradicional ou folclórica, antes


vinculada ao rural. Desse modo, é essa mentalidade que deve ser superada como entrave
ao moderno. O tradicionalismo ou atraso configura-se como resíduo em um contexto
civilizacional formado pela ordem urbano-industrial.
Ao prescindir das categorias rural e urbano, passando a focalizar o problema
mais em torno de dois tipos de mentalidade – o irracional e o racional –, Florestan acaba
por não enfatizar os problemas das diferenças regionais no que diz respeito à
desigualdade econômica entre elas. Nesse ponto é que Guerreiro concentra a sua crítica
aos estudos de comunidade, (des)qualificando-os como “detalhes da vida social”.
Florestan rebate essa crítica, observando que a importância desses estudos estaria no
fato de eles contribuírem para a explicação dos diferentes graus de desenvolvimento
entre as regiões, porém tudo isso partindo dos tipos de mentalidade, 37 enquanto
Guerreiro se orienta pela idéia de desenvolvimento econômico desigual, o que
explicaria a subjetividade, hábitos e costumes. 38
Aqui, interessa-me o fato de que o conceito de região não tenha sido tão
importante para a reflexão de Florestan quanto teve para o pensamento de Guerreiro
Ramos. Em Florestan Fernandes, a categoria de maior peso para a teoria é a sociedade
urbano-industrial. 39 Com isso, sua compreensão totalizante da sociedade brasileira não
parte da idéia de território nacional, mas do próprio ideal da civilização industrial, ou

37
Cf. citação no Capítulo 2, p. 66.
38
O modo como Guerreiro Ramos alcança uma compreensão mais econômica dos fenômenos culturais já
foi destacado no Capítulo 3, e ainda será retomado no próximo capítulo, em que analisarei como o autor
vai migrando de uma compreensão da mentalidade popular para uma percepção econômica. Além de A
Cartilha, a análise das desigualdades regionais pode ser encontrada em “Estrutura Atual e Perspectivas da
Sociedade Brasileira (2a parte)”, publicado em O Problema Nacional do Brasil (1960). Nesse texto, o
autor reclama como urgente o estudo das disparidades econômicas entre as regiões, acentuando o que
seria a “descapitalização dos Estados do Norte”, ou “a expoliação das populações setentrionais pelo Sul”.
39
É dessa categoria urbano-industrial que Florestan deduz os dois tipos de mentalidade, racional e
irracional, este último associado a idéia de folclore. Ao usar o termo folclore, estou designando uma
compreensão do problema do atraso brasileiro em Florestan em termos mentais ou psicoculturais. No
Capítulo 2 apresentei em uma citação como, sob essa rubrica, estão sendo designadas tradições populares,
e o que o autor denomina pensamento mágico, apresentado como formas irracionais de pensamento.
Parece-me que esta é, também, a forma de enquadramento do problema da incorporação do negro na
sociedade de classes no estudo desse autor. Jessé de Souza (2003), em sua análise de Integração do Negro
na Sociedade de Classes, chama a atenção para a importância que Florestan dá à organização psicossocial
do negro, que, em virtude da sua situação de ex-escravo, o impediria de ingressar na ordem capitalista. Da
mesma forma, Maria Arminda (1995) chama a atenção para o que nesse estudo de Florestan é
interpretado como “um descompasso entre a ordem social (mais sincronizada com as alterações da
estrutura econômica) e a ordem racial (de ajustamento mais lento às mudanças). Por essa razão, a ordem
racial permaneceu atrasada, ‘como um resíduo do antigo regime, e só poderá ser eliminada, no futuro,
pelos efeitos indiretos da normalização progressiva do estilo democrático de vida e da ordem social
correspondente” (Arruda, 1995, p. 151).

114
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

seja, do que se entende por sociedade moderna. Em Guerreiro Ramos, a idéia de


diferenças regionais é fundamental para sua compreensão do que seria o atraso
brasileiro, manifesto nos hábitos de consumo, de medicação, de concepção da morte,
enfim, de diferenças culturais da população brasileira.
Com a questão das diferenças regionais, quero destacar ainda um outro ponto. A
idéia de região em Guerreiro nos remete a um outro tipo de síntese da sociedade
brasileira. Uma síntese que eu chamaria de territorialista. Vejamos como, nas tipologias,
ele faz uso sociológico da compreensão macroestrutural com base no território. Para
isso, vou repetir um trecho da citação:

“Pode-se afirmar que, atualmente, se registram no Brasil todos


aqueles tipos de política. Nos meios rurais é máxima a vigência
da política de clã e da política de oligarquia e mínima, por
exemplo, a da política ideológica. Prevalece a equação
ideológica ao se focalizarem questões de âmbito nacional.
Quanto mais gerais e locais os assuntos, mais provável a
incidência da política de tipo histórico inferior.” (Ramos, 1961,
p. 67)

Esse trecho nos permite identificar algo mais que uma perspectiva evolucionista
na mudança de comportamento político. Notemos que, ao esclarecer sobre o caráter
típico ideal das modalidades políticas, Guerreiro chama a atenção para a vigência de
todas elas e, conforme a explicação baseada em Durkheim, como apontei antes, ele as
reduz a dois modos de apreensão básicos. No conjunto, os tipos políticos são
apresentados como sucessão histórica – formas passadas e atuais; ao mesmo tempo, são
todos formas políticas do presente – todas as formas são registradas atualmente –, e
podem ser reduzidos a uma dualidade: rural e urbano. 40
Entendo o modo de pensar de Guerreiro como tridimensional. É um modo de
pensar histórico, antropológico e sociológico, equivalente ao que Wrigth Mills (apud
Giddens, 1984) chama de imaginação sociológica. As três dimensões – continuidade
temporal; diversidade, que, por sua vez, encerra temporalidades diversas; e
configuração no presente: rural e urbano – são todos aspectos de um mesmo fenômeno,

40
A relação entre dualidade, multiplicidade ou diversidade regional e o modo como nos integramos na
economia mundial são detalhadas por Guerreiro em “A Problemática da Realidade Brasileira”, texto
originalmente apresentado em conferência no ISEB em 1955, e publicado em O Problema Nacional do
Brasil (1960).

115
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

o qual deve ser apreendido como “totalidade”. A história política é parte da totalidade, e
como parte contém as informações genéticas, à maneira de um DNA, da totalidade
inteira. Por isso, podemos abrir caminho através da história política e tentar encontrar,
por meio dela, o conceito suficientemente abrangente e abstrato que permitirá a
Guerreiro Ramos pensar a sociedade brasileira em termos das três dimensões: histórica,
múltipla e dual.
Das três, a compreensão da dimensão histórica é dependente do entendimento
das outras duas. Podemos dizer que da dualidade rural e urbano, característica mais
evidente da configuração social da época, chega-se a uma compreensão da diversidade
regional, e desta a uma compreensão da especificidade histórica brasileira. Em vários
textos, Guerreiro identifica a diversidade regional como a presença no Brasil da
“contemporaneidade do não coetâneo”, o que significa dizer a coexistência de várias
fases por que passara a civilização. Ignácio Rangel refere-se a esse fato, que no seu
pensamento o conduz ao que considera ser a lei básica da economia brasileira, da
seguinte forma: “que o Brasil é um país no qual se pode estudar a história universal
simplesmente viajando do litoral para o interior. Trata-se de que, no Brasil, as várias
etapas por que a civilização passara podiam ser encontradas”. 41 Conforme a exposição
desse fato por Rangel, podemos perceber nas categorias litoral e sertão o modo como se
adentra no problema da desintegração e isolamento entre as regiões do país. É por meio
dessas categorias formuladas por Euclides da Cunha que, segundo Guerreiro Ramos, se
pode ter uma primeira percepção do que seria a especificidade da formação histórica
Brasileira. 42 Mas, segundo ele, coube a Inácio Rangel desenvolver o argumento lógico e
histórico da dualidade como “lei estrutural básica” da nossa formação social. É à luz da
idéia de dualidade que Guerreiro Ramos realiza as críticas iniciais ao caráter
transplantado em boa parte dos estudos brasileiros e das idéias que orientaram a
construção do aparelho político e administrativo. Decorre dessa situação o que ele
identifica como sendo a heteronomia na sociedade brasileira e relacionado a essa

41
Citando trecho da obra de Rangel, essa simultaneidade é atestada pelo fato de que, no Brasil, “temos,
diz Rangel, o comunismo primitivo nas tribos selvagens, certas formas mais ou menos dissimuladas de
escravidão, nas áreas pioneiras, onde, sob a aparência das dívidas, se compram e vendem, não raro, os
próprios homens; temos o feudalismo, sob diversas formas, um pouco por todo o país; temos o
capitalismo em todas as suas etapas: mercantil, industrial, financeira. Por cima de tudo isso, temos o
capitalismo de Estado que, do ponto de vista formal, pode ser confundido com o socialismo” (“A
Problemática da Realidade Brasileira”. In: O Problema Nacional do Brasil, 1960, p. 89).
42
Guerreiro atribui também a Silvio Romero a percepção da dualidade.

116
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

característica estrutural da nossa formação: a alienação, o amorfismo e a


inautenticidade. 43
Podemos dizer que, até o estudo de Ignácio Rangel, 44 Guerreiro teria ancorado
suas críticas em uma visão mais impressionista da dualidade. A explicação lógica e
histórica da dualidade, como característica da nossa formação decorrente do modo como
o país se integra no mundo por via do comércio internacional, só veio a ser clarificada,
como ele admite, com o estudo de Ignácio Rangel. Na apresentação do livro de Rangel,
Guerreiro ressalta o modo como o “método histórico” é utilizado, o qual fora
fundamental na “originalidade” do estudo. Comparando esse método com o manejo da
história por autores marxistas, assinala nestes três deficiências, das quais destaco as
duas últimas. Os autores marxistas

“tenderam a aplicar aqui de modo mecânico, não apenas as


conclusões, mas também as categorias dos estudos marxistas
realizados na Europa, o que levava a ver analogia entre
formação do capitalismo brasileiro e dos países europeus,
dispensando-os de um esforço de dinamização do método
histórico. Finalmente, em virtude dessa inconsistência, foram de
certo míopes em relação às especificidades históricas do
processo brasileiro, as quais só se poderiam revelar se menos
passiva e mais crítica tivesse sido a assimilação da doutrina
marxista”. (Ramos, 1957, p. 4)

O que deve ser destacado e indagado é o fato de que a descoberta da


especificidade da economia brasileira é ela mesma condicionada pela noção de que há
uma especificidade. É a própria noção da dualidade que preside a descoberta dela como
lei estrutural básica da economia e dos fatos culturais e políticos. Isso se deve ao modo
como nos integramos, desde a Colônia, à economia internacional, por meio do

43
Sobre isso, o autor escreve: “Mas a lei da dualidade, como disse, pode ser generalizada para todos os
aspectos da vida brasileira. Tanto coletiva como individualmente, temos sempre um repertório de posturas
expressamente pra inglês ver. Pra inglês ver é, em grande parte, o nosso aparato institucional. Todavia,
observe-se que o caráter transplantado das instituições brasileiras só à luz da lei da dualidade se explica
objetivamente” (“A Problemática da Realidade Brasileira”. In: O Problema Nacional do Brasil, 1960, p.
90). A heteronomia significa imitação de idéias e comportamentos do outro estrangeiro, incluindo aí até
os hábitos de consumo imitados das nações mais desenvolvidas. Da heteronomia decorrem a alienação,
que ele define como o antônimo de autodeterminação, e a inautenticidade, que significa o fato de o país
“pautar-se econômica, política, social e culturalmente por normas que não permitem a atualização de suas
possibilidades e que vigoram à custa de contínuo deficit de seu ser” (p. 96).
44
Para uma análise mais detalhada da teoria de Ignácio Rangel sobre a dualidade básica, ver
Bielschowsky (2000) e Guimarães (1998).

117
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

comércio. Essa dualidade básica, segundo Guerreiro Ramos, é que explicaria não só a
nossa história, mas também a configuração das classes sociais no Brasil. A explicação
das classes, na época em que escreve, por sua vez, é dependente da dualidade rural e
urbano, que seria o desdobramento histórico-sociológico da principal dualidade.
Em O Problema Nacional do Brasil (1960), 45 o autor retoma a análise de Rangel
e a aplica à compreensão da situação das classes sociais no Brasil. Segundo Guerreiro,
em virtude do modo como nos integramos à economia mundial, verificou-se, desde
antes da Independência, uma aliança entre proprietários rurais e comerciantes. Essa
aliança teria impedido o antagonismo de interesses entre a classe comercial e o
latifúndio, como ocorrera na Europa entre burguesia mercantil e senhores feudais. Ela
teria protagonizado os principais eventos políticos que levaram o Brasil à emancipação
política. Constituíam-se, então, os interesses latifundiários e mercantis a dominar a vida
política até os dias em que escreve.
Ao lado dessa vigorosa aliança é que vinha se formando a burguesia industrial.
Ao lado, ou seja, não como conseqüência da transformação de comerciantes em
burgueses industriais, como na Europa. Esse fato – o de não ter a burguesia industrial se
originado da classe dos comerciantes, permanecendo estes aliados ao latifúndio –
caracterizaria o Brasil pela simultaneidade de fases históricas diferentes. Nisso
consistiria a dificuldade de uma revolução burguesa, devido à dependência do setor
industrial das classes econômicas mais antigas.
Outro fator a impedir a revolução burguesa seria o fato de o capitalismo
industrial no Brasil surgir em um momento de expansão do capitalismo “cêntrico”. Com
a expansão econômica, financeira e técnica, o capital estrangeiro estaria inibindo a
iniciativa e a consciência de classe dos industriais brasileiros, o que os impedia de se
conduzirem como protagonistas no processo de desenvolvimento econômico.
Outro fator, ainda, a impedir um maior arrojo da burguesia industrial é o ter ela,
no seu nascimento, se defrontado com um proletariado já institucionalizado e
legalmente reconhecido. Isso teria sido decorrência da formação industrial tardia no
Brasil, o que provocou um “acavalamento dos papéis históricos da burguesia nacional e
do proletariado”. Essa situação explicaria a timidez da burguesia, que seria levada a

45
O texto é “Nacionalismo, Ideologia dos Povos Periféricos”, seção “Princípios do Povo Brasileiro”,
conferência realizada na Faculdade Nacional de Filosofia, em março de 1959, a convite do Diretório
Acadêmico.

118
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

“frear-se ou não se lançar em iniciativas arrojadas, temerosa de perder em curto prazo as


vantagens de que desfrutava” (Ramos, 1960, p. 237).
Apesar desse “acavalamento” entre os dois atores históricos, Guerreiro Ramos
identifica, no proletariado urbano, a “classe mais avançada, porque portadora de mais
vigorosa consciência dos seus interesses do que as outras”. Nesse ponto, ele distingue o
proletariado urbano do rural, descrevendo este da seguinte forma:

“Os trabalhadores do campo, nas condições prevalecentes, são


contrapeso das lutas trabalhistas urbanas, oferecendo, como
eleitores conduzidos e cidadãos pouco iniciados na consciência
dos direitos civis, a base social de que necessitam as seções
capitalistas mais antigas para manter as prerrogativas do poder
que ainda possuem.” (Ramos, 1961, pp. 237-8)

Os dois tipos de proletariado são contrastados como “suportes de tendências


distintas”: o latifúndio mercantil e a burguesia industrial. No meio social em que residia
o proletariado rural é que ainda seriam vigentes as formas clânicas e oligáquicas de
política, enquanto o meio urbano sustentaria os tipos populistas em trânsito para o que
seria a “política ideológica”, referente a uma ordem política, econômica e social
competitiva. Só com o desenvolvimento econômico é que as relações sociais do campo
seriam desagregadas, o que dependeria da força do proletariado urbano, aliado à
burguesia industrial e a parte da classe média. Apesar de nascida fora do mundo das
atividades produtivas e em grande parte parasitária, Guerreiro escreve que “expressiva
margem da nossa classe média, tendo mantido continuamente estreitas relações com o
povo, esposa tendências progressistas e é aliada natural dos trabalhadores” (Ramos,
1960, p. 239).
Finalizando esse ponto, notemos que a dualidade interna, rural e urbano, é
explicada por outro tipo de dualidade, a histórica, que remonta ao modo como
começamos a existir como nação por meio da forma do nosso ingresso na economia
mundial. É com esse início que a história nacional do Brasil se realiza. História formada
pela relação de dependência com nações mais adiantadas econômica e politicamente,
relação esta que, uma vez explicada com o auxílio das ciências sociais, incluída aí a
ciência econômica, poderia ser superada. Daí a grande importância que as ciências
sociais teriam na emancipação daquela situação, e a convocação que Guerreiro faz aos

119
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

intelectuais para uma atitude militante e interessada, o que significava atitude


desalienada, em suma, convertida aos propósitos de autodeterminação nacional.
A idéia de povo pode ser entendida, também, a partir do diagnóstico de uma
sociedade vista como internamente desarticulada. Essa desarticulação seria verificada
entre as regiões do país, entre as classes sociais, entre elite e pessoas comuns, ricos e
pobres, tipos e comportamentos políticos díspares e entre fases históricas diferentes, que
se apresentam em coexistência simultânea. Na definição do autor: “O povo é um
conjunto de núcleos populacionais articulados entre si pela divisão do trabalho,
participantes de uma mesma tradição e afetados de uma mesma consciência coletiva de
ideais e de fins.” No Brasil, o povo seria uma ficção

“a que recorriam os grupos e as classes dirigentes para dar ao


país forma aparente de nação. Esses grupos e classes herdaram
do colonizador europeu vasto território dotado de unidade
administrativa e lingüística, mas habitado por populações
dispersas e isoladas que não se articulavam entre si
suficientemente para formar um povo”. ( Ramos, 1960, p. 229)

Nesse sentido é que a idéia de povo aparece como símbolo, como recurso
ideológico, afetivo, que apela à emoção, a fim de ensejar uma solidariedade nacional,
sem o que o processo de construção da nação não se efetivaria, e mais adiado seria o
projeto de emancipação da dependência. Por isso, a ideologia que orientaria a ação com
vistas à emancipação teria de ser o nacionalismo.
O nacionalismo é ideologia, mas também se apresenta como ciência, como teoria
social, política, econômica, histórica do Brasil. Como bem diz Maria Silvia Carvalho
Franco, “o pensamento do ISEB caracteriza-se a si mesmo como ideologia e se nutre da
grande fonte de verdade moderna: a ciência”. Mas, que tipo de ciência? Trata-se de uma
ciência social comprometida com o que entende ser a realidade nacional. O primeiro
passo para tal ciência seria a organização do seu arcabouço conceitual, que deveria ser
elaborado a partir da realidade social imediata, na qual se deseja interferir. Em “A
Problemática da Realidade Nacional” (1960) e A Redução Sociológica, Guerreiro
apresenta uma discussão epistemológica e metodológica em que defende quais seriam
os fundamentos metodológicos e normativos de uma sociologia militante. O tema da

120
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

próxima seção será analisar a relação entre ciência e ideologia no pensamento do autor,
e como a sociologia do conhecimento esclareceria essa aliança.

4.4. Ciência e ideologia

Ao discutir métodos e orientações da ciência, Guerreiro Ramos se posiciona a


favor de uma sociologia que não exclua dela a ideologia. Ciência e política aparecem
como vocações que não se excluem. A reflexão sobre esse tema já aparece em artigo
sobre Max Weber publicado na Revista do Departamento de Administração do Serviço
Público – Dasp (1946). Neste autor, Guerreiro destaca como a reunião da sensibilidade
política com a científica resultou em uma “compreensão militante do seu tempo”:

“A sociologia de Max Weber não é uma construção acadêmica,


mas é fruto de uma nítida vocação política e também de um
acendrado escrúpulo científico, para transpor o abismo em que a
sociedade do seu tempo, que é o nosso, parecia afundar-se.”
(1946, p. 129)

Guerreiro destaca o caráter “militante” 46 da sociologia weberiana, referindo-se


ao contexto de sua elaboração. Tratava-se de uma:

“(...) época em que os objetivos da sociedade e aqueles da


personalidade particular de cada homem parecem contraditórios,
época, portanto, eticamente descaracterizada, de onde está
banida, por ser desnecessária e inconseqüente, a eloqüência do
heroísmo humano”. (1946, p. 30) 47

46
Esse tipo de pensamento militante caracterizaria um modelo de intelligentzia distinto do modelo russo.
Este, de “caráter cismático”, leva a identificar como essencial à intelligentzia a atitude subversiva e
anárquica. Guerreiro rejeita este tipo, definido assim por Ares Pon, afirmando que o que caracteriza a
intelligentzia é a militância e o “pensar independente”, o pensar, mencionando Mannheim, “que se
esforça por ser liberto do ponto de vista exclusivo de uma classe” (1946, p. 186). Nesse sentido,
exemplares desse modelo foram o “círculo weberiano”, na Alemanha, e a “sociedade fabiana”, na
Inglaterra, que apontaram alternativas e caminhos sem cismas políticos e sociais.
47
A sociologia de Max Weber também teria sido influenciada pelo problema nacional, interpretado nos
mesmos termos em que interpreta o problema nacional brasileiro: “Max Weber, uma da figuras mais
completas de sociólogo, jamais se distraiu em seus estudos e em sua vida prática do problema nacional
alemão. É significativo que sua lição inaugural em 1894 na Universidade de Freibugim-Breisgau se
intitulasse: O Estado Nacional e a Política Alemã. Neste trabalho tratava da imaturidade da burguesia
alemã, que naquele momento o sociólogo julgava inapta a exercer a liderança política da nação. Weber
percebia que a burguesia nascente de seu país, ao contrário dos junkers em declínio, era dominante, mas
não dirigente, e, de sua parte, procurava influir para a configuração do que chamava Machtstaat, de um
Estado a serviço da nação alemã como um todo e não tributário de uma classe” (1946, p. 188).

121
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Em “Ideologia e Segurança Nacional”, 48 essa relação é fundamentada pela


sociologia do conhecimento. Essa modalidade do conhecimento sociológica conferiria
um status legítimo à ideologia, como sendo ela própria ciência, uma ciência que
“procura explicar a gênese das idéias”. Refutando a idéia negativa de ideologia “como
equivalente a formas inidôneas de pensamento”, Guerreiro defende que:

“No estudo da gênese do pensamento e das condutas, a análise


sociológica operou o que se pode considerar como verdadeira
revolução copérnica, ao descobrir a origem social de nossas
idéias e de nossos motivos. O homem é um ser social e
historicamente constituído. Não existe, para ele, a possibilidade
de debruçar-se sobre a realidade social, como se fosse um Eu
puro, incondicionado, liberto de influências circunstanciais. Essa
ilusão do realismo é hoje insustentável perante a argüição da
ciência e da filosofia – o que constitui um escândalo para a
consciência ingênua dos que consideram certos e absolutos os
modos de ser e de pensar do seu grupo, e errados e
extravagantes os dos grupos estranhos. O homem não está
cindido da realidade histórico-social. O indivíduo e a sociedade
constituem uma realidade social.” (Guerreiro, 1960, p. 43)

Em “A Problemática da Realidade Brasileira” (1956), Guerreiro Ramos


contrapõe a sociologia do conhecimento à sociologia academicamente praticada, nas
suas palavras, de origem durkheimiana e americana. Seria em torno de dois padrões de
ciência que a “realidade social é atualmente ‘questão disputada’”, e que, segundo ele,
seria uma categoria mais pressuposta do que explícita entre os sociólogos”. O uso
“corrente” do conceito de sociedade conduziria a uma visão “coisificada” da sociedade
brasileira, o que significava considerar a sociedade como um dado, como “realidade
social produzida” e não “em produção”. Eis os termos com que ele explica a diferença
entre esses dois tratamentos:

“Ainda vigoram, em nossos dias, correntes que, implícita ou


explicitamente, admitem uma noção empírica da realidade social
considerando-a como algo ‘coisificado’, objetivado, exterior ao
homem. A essa atitude, sem dúvida, corresponde uma redução
da perspectiva à sociedade produzida, isto é, aos aspectos
objetivos da realidade social, aos aspectos em que se no
apresenta externamente, em seu revestimento empírico. É certo

48
Conferência realizada no ISEB em 1957 e publicada em O Problema Nacional do Brasil (1960).

122
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

que essa realidade nos é dada diretamente, na forma empírica de


seus ingredientes, na qual se incluem não só seus elementos
visíveis, sua base geográfica, sua população, etc. como outros
elementos igualmente concretos, porém menos materiais como
as atitudes, os símbolos, as condutas padronizadas. Todos esses
elementos nos são dados empiricamente, sem dúvida. Todavia
não se alcança satisfatoriamente a realidade social enquanto se
pretende reduzi-la a tais ingredientes.
(...)
Esses ingredientes, na verdade, constituem a realidade social
produzida. Existe, porém, a realidade social em produção, em
particípio presente, e que em última análise se reduz à mediação.
Os ingredientes empíricos da realidade se dinamizam pela
mediação do homem... A realidade social, como diz Heller, é
efetividade humana, realidade efetuada pelo homem.” (Ramos,
1960, p. 80)

A sociologia de Durkheim, sistematizada em As Regras do Método Sociológico,


concebe os fatos sociais como neutros, desconsiderando as intencionalidades humanas.
As regras propostas por Durkheim, junto com a antropologia americana, se traduziriam,
no Brasil, em estudos que se reduziriam a “mera coleção de fatos, de estudos
monográficos, ‘surveys locais’”, que não contribuiriam para uma compreensão da
totalidade social e para percebê-la em processo.
A sociologia do conhecimento, em Guerreiro, deveria ser aplicada ao estudo
tanto do conhecimento da vida cotidiana quanto do conhecimento da totalidade social.
Com o primeiro tipo de aplicação, a sociologia poderia compreender as transformações
que estariam ocorrendo na psicologia popular, manifesta no modo como o eleitorado
vinha se comportando. Com o segundo, os fatores que estariam ensejando tais
modificações, como a industrialização e suas conseqüências: urbanização e alteração no
consumo popular. Além disso, com a compreensão da totalidade social na fase histórica
em que se encontrava, poder-se-iam compreender, também, os entraves ideológicos ao
desfecho do processo histórico, os quais se deveriam à dualidade decorrente da forma de
intercâmbio com as nações mais economicamente adiantadas. Dessa forma, tanto as
atitudes e pensamentos autodeterminativos quanto os alienados também poderiam ser
compreendidos. Com o esclarecimento das condições sociais do pensamento, as quais
são sempre ideológicas, “autênticas” ou “inautênticas”, a sociologia do conhecimento
auxiliaria na formulação da ideologia nacional.

123
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

O método sociológico é proposto em A Redução Sociológica (1965), e é


inspirado na fenomenologia, na filosofia da existência e na sociologia do conhecimento.
Ao mesmo tempo que Guerreiro apresenta o método, procura fundamentá-lo nas
próprias condições objetivas e subjetivas em transformação das sociedades periféricas e
daquelas emergentes do colonialismo. No Brasil, o fato auspicioso para o método da
redução sociológica seria a configuração da “consciência crítica” da nossa realidade. A
consciência crítica, segundo o autor, “surge quando um ser humano ou grupo social
reflete sobre os fatores que determinam a sua personalidade histórica e se conduz diante
deles como sujeito” (Ramos, 1965, p. 61).
No Brasil, a consciência crítica seria fenômeno de massas em virtude da
industrialização e suas conseqüências. Nas nações asiáticas e africanas, a aspiração à
história, apesar de elas não terem ultrapassado a condição colonial, confirmaria a
propagação da consciência crítica. Nas conferências de Bandoeng (1955), do Cairo
(1957) e de Acra e Tânger (1958), essas nações apresentaram pontos de vista próprios, e
o “propósito de pautarem suas ações segundo normas derivadas de projetos autônomos
de existência” (Ramos, 1965, p. 61).
Os fatos relacionados aos nacionalismos naquelas nações é que estariam
despertando o interesse pela fenomenologia e pela filosofia da existência, que
tematizam o “histórico”. Essas filosofias poderiam responder à indagações sobre a
natureza da transformação histórica por que passam essas populações, de uma posição
passiva a uma autodeterminativa. Essas indagações repunham no cenário intelectual, a
divisão dos povos em naturais e históricos. De acordo com Hegel:

“A existência propriamente de um povo começa quando este


povo se eleva à consciência (...). Para o filósofo, seria a história
uma camada ôntica superposta à natureza. Se o Oriente – pensa
Hegel – carece de história, é porque aí ‘a individualidade não é
pessoa’, está ‘dissolvida no objeto’ (...). Não importa que, nesta
condição, encontrem-se ‘Estados, artes, ciências incipientes –
tudo isso se acha no terreno da natureza.” (apud Ramos, 1965, p.
166)

A tomada de consciência assinala o ponto alto que se atinge da cultura quando,


“segundo Hegel, um povo ‘compreende o pensamento de sua vida e de seu Estado, a
ciência de suas leis, de seu direito e de sua moralidade” (Ramos, 1965, p. 166). É nessa

124
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

capacidade de compreensão que reside a capacidade de emancipação em relação aos


objetos e às coisas. Quando esse desencaixe ocorre, “um grupo social põe entre si e as
coisas que o circundam o seu projeto de existência” (Ramos, 1965, p. 58).
Com a teoria do histórico de Arnold Toymbee, Guerreiro introduz uma
compreensão sociológica da liberação da consciência. Neste autor, a identificação das
pessoas com as coisas configura-se pela pressão dos costumes. Nessa perspectiva, o
tradicionalismo aparece como atributo dos povos naturais, e com ele estaria impedida a
emancipação da consciência (Ramos, 1965, p. 166).
Fazendo uso dessas categorias, povos históricos e naturais, Guerreiro deriva
deles a qualificação da consciência como crítica e ingênua. A consciência crítica é
compreendida como “personificação e conquista da liberdade”, fato entre os povos
históricos. A consciência ingênua seria “puro objeto de determinações exteriores”. A
qualificação da consciência como ingênua pode ser compreendida, também, à luz do
mesmo tipo de adjetivação dada a um tipo de nacionalismo, distinto daqueles
observados nas colônias insurgentes. Comparando os nacionalismos em O Problema
Nacional do Brasil, ele escreve:

“O nacionalismo ingênuo é o mais incipiente. Consiste numa


reação elementar da auto-exaltação do grupo, próximo do
fenômeno que os sociólogos denominam etnocentrismo. Todo
grupo, uma família, uma associação, uma tribo, uma nação,
tende a reforçar os seus laços de coesão interna, discriminando
acriticamente os estranhos e afirmando enfaticamente os
caracteres próprios. Há certamente um nacionalismo ingênuo
que, em sua expressão limite, poderia ser resumido na fórmula:
‘tudo que é brasileiro é bom, tudo que é estrangeiro é mau...’.”
(Ramos, 1960, p. 245)

Nesse tipo de nacionalismo, identificam-se as mesmas inclinações para que uma


comunidade, pressionada pela tradição, se feche sobre si mesma. Assim como ele
corresponde à consciência ingênua, o nacionalismo preconizado pelo autor corresponde
à consciência crítica. Seria o tipo verificado nas colônias afro-asiáticas:

“Mas a reação ao colonialismo que hoje se verifica no meio


afro-asiático é quanto ao caráter, distinta das anteriores. É
reação ao colonialismo considerado como sistema, é a reação
mediante a qual esses povos fazem uma reivindicação cujo

125
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

conteúdo não é parcial, mas infinito, universal. É que pretendem


ser, eles também, sujeitos de um destino próprio. Nas sociedades
coloniais apareceram hoje quadros novos, empenhados num
esforço de repensar a cultura universal na perspectiva da auto-
afirmação dos seus respectivos povos. Não é um comportamento
romântico que levaria esses povos ao enclausuramento, a se
apegarem a seus costumes sob alegação, realmente suicida, de
preservá-los em sua pureza; é antes uma atitude que não exclui o
diálogo; pois contém a consciência de que, para ser
historicamente válida, a auto-afirmação dos povos deve confluir
para o estuário de todas as culturas da humanidade. Tal é a
perspectiva em que se acham semelhantes quadros.” (Ramos,
1965, p. 62)

A partir da caracterização da consciência e do nacionalismo ingênuos,


identificamos o nacionalismo de Guerreiro Ramos em uma perspectiva universalista. A
consciência crítica é cosmopolita, mas é no nível nacional que ela é primeiramente
possível. A condição universal do ser é a nação. Ao defender uma sociologia nacional,
Guerreiro tem consciência de que, postas nesses termos, suas teses suscitavam uma
reação de desqualificação do que entendia por ciência. Percebe-se, na maneira como
distingue o nacionalismo ingênuo do crítico, uma defesa contra uma desqualificação das
suas idéias e, ao mesmo tempo, uma atitude ofensiva contra o que se acreditaria ser uma
atitude cosmopolita em matéria de ciência. O par “povos naturais e povos históricos”
pode ser entendido como expressando mais uma forma da dualidade que configuraria a
realidade brasileira. De um lado, um Brasil que não fez o ingresso no histórico e que, no
nível da consciência, seria “puro objeto das determinações exteriores”. Corresponderia à
parte da produção de conhecimento, que, supondo a neutralidade do conhecimento,
creditando a esse caráter o seu universalismo, nada mais faria do que ser determinado
pelo ser histórico de outra nação. E de outro, o Brasil que, a seu ver, estaria fazendo sua
entrada no histórico, sendo para isso necessário uma autoconsciência nacional, para a
qual a atitude cognitiva da redução sociológica seria necessária.
Por isso, A Redução Sociológica é dirigida, principalmente (é assim que
entendo), aos sociólogos, na forma de discussão metodológica e epistemológica sobre a
produção de conhecimento do mundo social. O objetivo principal nesse estudo é provar
o caráter intencional da consciência e o seu enraizamento histórico e social circunscrito
a uma realidade social mais imediata, que é a nação. A análise da natureza da
consciência e do modo com ela vem a se constituir no que é, ou seja, como consciência,

126
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

é estribada nas reflexões ou “descobertas”, como o autor diz, da fenomenologia e da


sociologia do conhecimento.

4.5. Os pressupostos filosóficos e sociológicos da redução sociológica

Em Hurssel e Heidegger, Guerreiro Ramos encontra o que denomina os


pressupostos filosóficos da redução sociológica. Ele credita a redução ao método
filosófico de Hurssel, que “procura levar o sujeito a uma experiência transcendental em
que somente pode ocorrer o defrontar-se do eu puro com o objeto puro” (Ramos, 1965,
p. 96). São três as reduções a que se deve proceder: a histórica, a eidética e a
transcendental. É com esta terceira que a consciência se revela intencional, como
“consciência de”, como “essencialmente referida ao objeto”. É nessa descoberta de
Hurssel que, me parece, Guerreiro está principalmente interessado, com vistas a provar
o caráter condicionado de todo conhecimento, a começar pelo objeto particular ao qual
ela se refere, e com isso defender sua tese do conhecimento como ideologia.
Com Heidegger, a consciência que, em Hurssel, se situa em um nível
transcendental adquire um condicionamento mais objetivo. A consciência, segundo
Heidegger, pressupõe a idéia de mundo:

“Coube a Martin Heidegger mostrar, com particular realce, que


a epoché implica o problema do mundo. O eu e os objetos estão
na história e assim a ‘vivência intencional’ que os liga verifica-
se no mundo. Para Heidegger, o sujeito jamais é um ‘eu puro’
‘transcendental’; ao contrário, é um ser no mundo.” (Ramos,
1965, p. 97)

Com Heidegger, Guerreiro quer fazer a passagem do idealismo filosófico para a


sociologia e descobrir as circunstâncias concretas e existenciais da consciência que, em
Hurssel, se revela intencional. O sujeito de Heidegger é o homem do dia-a-dia, do
cotidiano, em sua condição primordial no mundo social. Para ele: “Em qualquer
momento de sua existência, o homem está no mundo ‘preocupado com suas tarefas,
absorvido por seus interesses’ em familiaridade com o complexo de objetos que o
circundam” (Ramos, 1965, p. 97).
O conhecimento que se tem do mundo, imerso na cotidianidade, é, no entanto,
um conhecimento “ateórico e pré-ontológico”. O modo de alcançar o conhecimento

127
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

teórico é a eliminação do ponto de vista cotidiano. Guerreiro exemplifica essa


eliminação escrevendo que é o que ocorre quando se considera o martelo “suspendendo
o seu significado referencial, que é o de martelar”. Podemos dizer que, além de
martelar, a reflexão teórica indaga sobre o “para quê” da utilidade de martelar. Com
isso, aparece, com Heidegger, uma outra acepção da palavra intencionalidade, o para
quê:

“Desde já se torna evidente que, no domínio da redução


sociológica, há duas acepções da palavra intencionalidade,
estritamente ligadas, para as quais se deve estar sempre alerta.
Numa acepção, usa-se a palavra para esclarecer que a
consciência está sempre referida aos objetos. (...) Na outra
acepção, a palavra designa o conteúdo significativo ou
referencial dos objetos no mundo, o para quê.” (Ramos, 1965, p.
99)

Reside nessa segunda acepção da palavra intencionalidade a crítica que


Guerreiro faz, em A Problemática da Realidade Brasileira, do modo como a sociedade
seria tratada de modo positivista. A sociedade tratada como “algo coisificado”,
descurando-se da atividade humana criadora nela interveniente. O mundo, segundo
Heidegger,

“é mais existente que as coisas perceptíveis, com as quais


podemos contar, no meio das quais nos acreditamos em casa
(atmosfera de vida) quotidiana. Mas o mundo não é, jamais, um
objeto que se encontra diante de nós. É o que é, sempre não-
objetivo. Não sendo nem um objeto, nem uma coisa, não é
porém um termo abstrato. O mundo é mais concreto que todo
objeto concreto, porque é em realidade nele e a partir dele que
tudo que aparece e tudo que é presente surge e se coordena. O
mundo é o não-objetivo do qual nós dependemos...”. (apud
Ramos, 1965, p. 99)

Com Hurssel e Heidegger, a filosofia se mostra fundamental para a defesa do


caráter interessado do conhecimento, o que decorre mesmo da estrutura da consciência,
do modo como ela vem a ser o que é: consciência. Com Heidegger, Guerreiro procura
fundamentar sua defesa do caráter condicionado da consciência, na medida em que ela
implica a idéia de mundo. O mundo, por sua vez, não se resume a uma coleção de

128
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

objetos definidos apenas pela sua utilidade nem só pela sua função em um organismo
social. Os objetos se integram em uma “totalidade mundo” dotada de sentido, em que
eles, além da função, veiculam um “para quê”, o que os vincula à consciência que deles
se utiliza, de modo que consciência e objeto estão reciprocamente relacionados e são
mutuamente determinados.
Essa idéia de mundo de Heidegger integra o que Guerreiro entende por
totalidade histórico-social. A totalidade implica a consciência, nas suas duas acepções,
relacionando consciência e objeto e a reciprocidade entre eles. Podemos dizer que os
objetos, o modo como estão relacionados com a consciência, fornecem um conteúdo
materialista à consciência, mas não determinam o uso que se faz da utilidade que eles
possuem, pois o uso é prerrogativa do sujeito na sua relação com outros sujeitos.
A consciência, como sempre intencional, e os objetos requerem também
delimitação histórica, pois têm de ser entendidos como historicamente condicionados.
Então, além da totalidade como mundo, a totalidade deve ser compreendida como
histórica. A história, por sua vez, exige delimitação, o que, segundo Guerreiro, é
preocupação das ciências sociais, desde Vico. Guerreiro designa a delimitação histórica
pelo conceito de “fases”. Cada fase histórica compreende uma totalidade, em que “tudo
que acontece em determinado momento da sociedade adquire o seu exato sentido”.
Baseado em Hegel e em Marx, a totalidade designa cada uma das grandes seções
históricas, como “combinação de fatores”. Marx, na sua fase materialista, buscou uma
compreensão histórica relacionando as condições da vida material com as idéias. Mas
Guerreiro evita uma compreensão da totalidade em que um fator determina os demais.
Por isso, ele encontra no estudo de Marcel Mauss sobre o potlatch uma contribuição
mais adequada para o modo como a totalidade deve ser compreendida. O antropólogo,
por meio de estudo empírico, descobre a totalidade como “fenômeno social total”, como
fenômeno, “simultaneamente, econômico, jurídico, estético, militar, político, etc.”
(Ramos, 1965, p. 142). Disto ele conclui que a fase é uma totalidade histórico-social,
cujas partes estão dialeticamente relacionadas.
É o caráter dialético da relação entre os vários fatores que congregam a
totalidade que fornece a esta uma dinâmica histórica, podendo a sociologia identificar
seções no processo civilizatório. A preocupação com o seccionamento histórico é
atribuída a Vico, Condorcet, Augusto Comte, Hebert Spencer e Morgan, além de Hegel,

129
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Marx, Mannheim, etc. Apesar das divergências entre os autores, Guerreiro destaca o
fato de ser comum a todos eles o entendimento de que “a cada uma das unidades do
processo histórico-social corresponde um conjunto de características que só
desaparecem pela superveniência de outra unidade, à qual corresponderão outras
características” (Ramos, 1965, p. 142).
O “método faseológico”, segundo Franz Carl Müller, permitiria determinar,
“mediante o confronto de fases, a direção em que se orienta a evolução da cultura... em
captar a linha diretriz...” (Ramos, 1965, p. 143). Desejando tornar mais concretas as
idéias de fase e de linha diretriz, Guerreiro recorre à idéia de “agregado vital”, de
Alfredo Weber. O agregado vital corresponde aos “aspectos organizacionais da
convivência humana e ao domínio prático da natureza” (Ramos, 1965, p. 144).
Alterações na base material do agregado vital, decorrentes da “racionalização, em geral,
e, em particular, do progresso técnico, fazem-se, necessariamente, acompanhar de
‘mudanças sociológicas’”. As fases corresponderiam aos períodos de transformação do
agregado vital. A situação histórica de cada fase seria identificada por meio de
comparação:

“A delimitação das fases é obtida de modo comparativo. Uma


sociedade cuja estrutura se fundamenta no latifúndio está
comparativamente em fase inferior àquela cuja estrutura se
baseia na economia de mercado. A fase não é, portanto, uma
categoria lógica, a priori. É caracterizada a posteriori, pela
observação empírica dos fatos selecionados em diferentes
sociedades, e tomando-se uma ou um conjunto delas como
termo de comparação.” (Ramos, 1965, p. 145)

Com o conceito de totalidade, como fenômeno ao qual se integra a consciência


relacionada ao conjunto dos objetos materiais e culturais – a qual também é definida
pela sua historicidade –, Guerreiro reúne todos os elementos para corroborar a idéia de
contexto histórico-social pressuposto pela sociologia do conhecimento como
condicionador das idéias. Esse é o fundamento dessa modalidade de sociologia que,
segundo Guerreiro, por isso mesmo, “já se fundamenta numa conduta eminentemente
redutora”.
A sociologia do conhecimento teria sua origem na fenomenologia. Autores como
Max Scheler, Alfred Vierkandt, S. Kracauer, Theodor Litt, Teodor Geiger, Gerda

130
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Walther, Edith Stern, Alfred Schutz, Georg Gurvitch, Jules Monnerot e Luís Recasens
Siches teriam se iniciado nessa modalidade de análise a partir da fenomenologia do
social. Esta, segundo Hurssel, consistiria no estudo do “modo de ser do social”, que,
mediante sua descrição, se chegaria à sua “essência”, ou seu “eidos”. Porém, a redução
sociológica de Guerreiro, a despeito de ser tributária da origem fenomenológica da
sociologia do conhecimento, não se confunde com a fenomenologia do social, pois não
se trata de uma ciência eidética do social. A redução, segundo Guerreiro,

“Funda-se numa atitude metódica interessada em descobrir as


implicações referenciais, de natureza histórico-social, de toda
sorte de produção intelectual e em referir essa produção ao
contexto em que se verifica, para apreender exaustivamente o
seu significado.” (Ramos, 1965, p. 105)

Porém, se Hurssel se limitou a fazer uma fenomenologia do social, ele também


admitiu haver “tantas ciências eidéticas (fenomenologias regionais) quantos sejam os
objetos das diversas disciplinas”, sendo necessário à fenomenologia do social
compreendê-las. Foi seguindo esse caminho aberto por Hurssel que os autores citados se
constituíram nos precursores da sociologia do conhecimento, praticando o método
redutor a diferentes disciplinas e seus respectivos objetos. Guerreiro vai seguindo uma
escala por meio da análise da contribuição de alguns deles, até chegar à definição sobre
o que denomina redução sociológica.
Ele comenta rapidamente as contribuições dos autores alemães (Max Scheler,49
Alfred Vierkandt e Theodor Litt), e, dentre os de língua românica (Gurvitch, Monnerot
e Recansens), destaca, especialmente, os limites e as contribuições de Monnerot como
os que estariam mais próximos da redução sociológica. Monnerot faz uma “sociologia
da sociologia”, em que procura mostrar o condicionamento dos sistemas sociológicos
pela psicologia dos seus respectivos criadores. Um certo reducionismo psicológico me
parece ser o objeto da crítica de Guerreiro, e isso se deveria ao fato de ter escapado a
este autor “o problema da atitude redutora como instrumento metodológico da
sociologia nacional” (Ramos, 1965, p. 104). Apesar da crítica, Guerreiro, coerente com
seu método, dá uma justificativa existencial para a atitude de Monnerot. Ele fora

49
Segundo Berger e Luckmann (2004), foi Max Scheler quem forjou o termo “sociologia do
conhecimento”, na década de 1920, na Alemanha.

131
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

impedido pela sua própria situação, em virtude de viver em uma sociedade já fundada.
Além dessa limitação, Monnerot também teria incorrido em um radicalismo relativista,
o que impede que a teoria social criada possa ter papel operante. Para que assim seja, a
sociologia tem de ter “algum conteúdo dogmático empiricamente justificado pelo fato
mesmo de que a realidade a que se refere é dotada de sentido” (Ramos, 1965, p. 104).
Contribuição importante de Monnerot, no entanto, encontra-se no conceito de
“condição humana situada e datada”. Notemos que o termo datada agrega um conteúdo
histórico à redução, juntamente com aquele conceito de mundo, fornecido por
Heidegger. O caráter valorativo e ideológico terá de considerar o lugar e o tempo da sua
produção. Segundo Monnerot: “A visão depende dos valores. Só a condição humana,
situada e datada, confere um sentido ao que vê” (apud Ramos, 1965, p. 105).
Mais próxima ainda da redução sociológica, como método que se aplica ao
estudo do pensamento nacional, estaria a teoria de Myrdal sobre a “inadequação da
teoria econômica dominante nos Estados Unidos e em países europeus”. Segundo
Guerreiro, tudo parecia indicar que, para esse autor, “há sempre um resíduo ideológico
nas ciências sociais (...). Não haveria teoria econômica ideologicamente neutra, o que
asseguraria qualidade científica é o seu ajustamento à realidade” (Ramos, 1965, p. 106).
Para Myrdal, haveria “elementos ideológicos infiltrados” em organizações como o
GATT e o Fundo Monetário Internacional, em prejuízo das nações periféricas. Myrdal
sustenta suas desconfianças e críticas no que seria uma “impossibilidade de o cientista
social libertar-se inteiramente do que chama ‘premissas de valor’”. Para ele: “Uma
‘ciência social desinteressada (...) ‘nunca existiu e por motivos lógicos não pode
existir”’ (Ramos, 1965, p. 107).
Por fim, Karl Mannheim e Hans Freyer, que teriam contribuído para pensar o
problema da cultura implicado na redução sociológica. Mannheim se situa entre os
especialistas de sua época que “submeteram as doutrinas sociológicas a uma reflexão
radical, na apreensão de cujo sentido sempre as referia ao seu substrato histórico e
cultural” (Ramos, 1965, p. 108). Hans Freyer, por sua vez, procedeu a um estudo da
“sociologia da sociologia”, considerando-a “como produto orgânico de certa cultura e
por isso não pode transferir-se simplesmente a outra cultura” (Ramos, 1965, p. 110).
É com base nesses antecedentes, nos quais fundamenta a redução sociológica,
que Guerreiro formula as quatro leis que deveriam ser seguidas pelo sociólogo

132
Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

brasileiro: a lei do comprometimento, a lei do caráter subsidiário da produção científica


estrangeira, a lei da universalidade dos enunciados gerais da ciência e a lei das fases.
Essas leis são endereçadas ao cientista social brasileiro, em uma espécie de
convocação militante à causa do nacionalismo. Ao formular essas leis e endereçá-las
aos sociólogos, Guerreiro o faz com base em um conhecimento oriundo da sua própria
prática da “sociologia da sociologia” aplicada ao estudo do pensamento social e político
brasileiros. É com base nesse estudo que ele faz a crítica ao caráter alienado e
descomprometido com a realidade nacional brasileira do pensamento social brasileiro.
No próximo capítulo, vou analisar o modo como Guerreiro procedeu nesses estudos e
como, a partir deles, pôde chegar às conclusões que lhe pareceram autorizar a
recomendação da redução sociológica e a observação daquelas leis.

133
Capítulo 5

O pensamento social e político brasileiro na


perspectiva de Guerreiro Ramos

5.1. Por uma sociologia dinâmica

A crítica de Guerreiro Ramos à sociologia acadêmica compõe um quadro


mais amplo de estudos do pensamento social e político brasileiros que remonta ao
início da década de 1950. Podemos dizer que, nesses estudos, o sociólogo já vinha
aplicando a sociologia do conhecimento, preconizada como epistemologia da
redução sociológica. Nesses estudos críticos, procura identificar o que seria a
alienação dos seus conteúdos, induzindo-a do modo como os textos traduziriam
uma maior ou menor compreensão da realidade brasileira. Uma compreensão mais
exata e, portanto, não alienada, seria a que captasse a dinâmica do processo
histórico brasileiro. O caráter dinâmico da realidade, como critério de avaliação da
“autenticidade” dos escritos, fica claro em três ensaios: “A Ideologia da Jeunesse
Dorée”, “A Ideologia da Ordem” e “O Inconsciente Sociológico”, publicados em A
Crise do Poder no Brasil (1961).
Nesses escritos, Guerreiro situa, de um lado, os intelectuais “abertos ao
novo sentido de época”; de outro, os conservadores de um tempo contraditado pela
realidade. Estes são denominados “ideólogos da ordem”, que carecem de uma
visão sociológica dinâmica social, avaliando-a em termos psicológicos e
espiritualistas. Nessa “família”, a da “ideologia da ordem”, Guerreiro identifica os
intelectuais católicos e integralistas, como Jackson de Figueiredo, Hamilton
Nogueira e Tristão de Ataíde. Confrontados com o ímpeto revolucionário de sua

134
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

época, manifestado por agitações sociais, julgavam-no à luz da “dialética do bem e


do mal”. Jackson Figueiredo, observa Guerreiro, “via um caráter ‘satânico’ nas
manifestações violentas, nas explosões belicosas do espírito revolucionário”.
Propunham, dessa forma, um reformismo moral, um “esclarecimento do espírito” e
o apelo à exemplaridade das tradições, no sentido de purgar a sociedade de seus
pecados. Enfim, as análises desses autores seriam orientadas pelo psicologismo e
alienação em relação à sociedade brasileira.
Na outra família estão os “sociólogos anônimos”, homens que não possuem
nem credenciais acadêmicas nem domínio das técnicas científicas. No entanto,
destacam-se pela objetividade com que interpretaram os acontecimentos na década
de 1930, identificando fatores sociológicos emergentes e condicionantes da
reconfiguração política, social e econômica em processo naquele período. Figuram
nesse grupo Martins de Almeida, Virgínio Santa Rosa e Azevedo Amaral. 50 De um
modo geral, os três autores identificam a crise do seu tempo como “reflexos de
transformações que estavam se processando em nossas relações de produção e de
classe”. Martins de Almeida, em Brasil Errado, aponta, ainda, um descompasso
entre “a nossa organização político-partidária e as condições materiais do país”.
Virgínio Santa Rosa, em O Sentido do Tenentismo, diagnostica a diferenciação de
classes e o surgimento de uma pequena burguesia que “forçava a sua entrada nos
quadros políticos”. Quanto a Azevedo Amaral, ele destaca a identificação do
colapso dos preços do café como causa da crise, o que indicava a “volta do sentido
econômico da evolução do país”.
Essa análise da intelectualidade e o destaque conferido àqueles que
identificaram tendência de mudança progressiva na sociedade brasileira, bem como
suas causas, sem lhes serem refratários, corroboram a concepção de que a vocação
científica não exclui a vocação política. A própria forma de análise da realidade,
induzindo-a da dinâmica histórica e a positivando, torna o pensamento engajado e
comprometido e, portanto, fator de transformação histórica.
No que se segue, farei uma análise mais pormenorizada dos estudos de
Guerreiro sobre o pensamento social e político brasileiros. Nesta análise, além, do

50
Guerreiro cita no mesmo artigo outros nomes dessa galeria. São os autores João Ribeiro, Silvio
Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, José Maria dos Santos, Caio Prado Júnior, Oliveira Vianna,
entre outros.

135
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

critério temporal e histórico, que qualifica o pensamento como nacional ou


autêntico, desejo ainda demonstrar um outro critério de avaliação das obras. Trata-
se do critério espacial ou territorial. Proponho que a crítica de Guerreiro Ramos ao
que seria o mimetismo, a alienação, a inautenticidade e, decorrente de tudo isso,
um pensamento não engajado, está fundamentado em uma idéia de espaço
nacional, do qual deduz uma história nacional específica.

5.2. As imagens da nação no pensamento social brasileiro

Na expressiva galeria de autores visitados por Guerreiro a partir de 1951,


observamos que os critérios utilizados nas análises são pautados pelas imagens do
país que teriam sido produzidas pelas próprias interpretações. As imagens são
apreendidas em função dos contrastes entre elas. De um lado, as que indicariam um
país homogêneo e as que o apontariam como heterogêneo. De outro, aquelas que
diriam respeito ao ânimo dos autores em relação ao país: visões pessimistas e
otimistas. De acordo com o que se pode apreender de seus estudos, haveria uma
correspondência entre a perspectiva que considera o país como homogêneo e o
pessimismo, e outra entre a imagem heterogênea e o otimismo.
De acordo com minhas leituras, percebo que, para Guerreiro, as imagens
produzidas estão diretamente relacionadas ao modo como os autores procedem nas
suas interpretações. Ao formular a sua própria idéia de nação, é de um determinado
modo de interpretar que ele se utiliza. Modo este que ele identifica em algumas
interpretações e não em outras. Posto isso, o meu interesse é identificar quais os
critérios perseguidos por Guerreiro quando analisa os diferentes procedimentos
adotados pelos autores e, por conseguinte, tentar perceber qual desses critérios lhe
serve de parâmetro para qualificar umas interpretações e desqualificar outras, e que
orienta a sua própria formulação do conceito de nação.
Desse modo, na primeira parte, analisarei as interpretações que ele rejeita, o
que, acredito, me possibilitará identificar o critério que rege tais interpretações,
fornecendo, assim, melhores condições de focalizar, na segunda parte, o que ele
valoriza nos modos de proceder de Euclides da Cunha e Oliveira Vianna.

136
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

5.3. Visões homogêneas e pessimistas

Expressivas da correspondência entre a visão homogênea e o pessimismo


são as análises de obras em que predominaria uma interpretação do povo brasileiro
em termos de caráter nacional e de “inteléquias”. Guerreiro identifica essa
perspectiva em autores como Afonso Celso, Ronald de Carvalho, Paulo Prado,
Afonso Arinos de Mello Franco e Sérgio Buarque de Hollanda. Sobre as
interpretações desses autores, escreve:

“De um modo geral, essas interpretações se caracterizaram


pelo fato de atribuírem ao povo brasileiro um caráter, uma
vocação ou tendências ou inclinações fixas.” (Ramos, 1954,
p. 86)

Além de imobilistas e homogêneas, essas visões tenderiam a acentuar


defeitos do povo brasileiro, como tristeza, cobiça, romantismo, dissipação, amor à
ostentação, cordialidade, etc. O caráter pessimista dessas visões é enfatizado em
outro texto em referência a Retrato do Brasil, de Paulo Prado, no qual anota:

“Tomo para modelo da visão alienada do Brasil uma obra de


caráter parassociológico que teve extraordinária repercussão
na época em que foi publicada. Trata-se de Retrato do Brasil
(1928), de Paulo Prado, que exprime, de modo paroxístico,
certo sado-masoquismo de nossas camadas letradas, para as
quais o caráter do povo brasileiro está marcado de notas
pejorativas. O brasileiro é povo triste, luxurioso, cobiçoso e
romântico, para Paulo Prado; como para outros se
caracteriza pelo servilismo e pelos maus costumes ou por
características equivalentes.” (Ramos, 1956, p. 22)

Que tipo de procedimento estaria presente nessas interpretações que as


tornariam homogêneas, pessimistas e imobilistas? Podemos tentar responder a essa
questão indagando sobre o que nelas estaria ausente. Uma pista para a resposta
pode ser encontrada nas seguintes perguntas de Guerreiro de como se chegou
àquelas conclusões: “Por que se formam tais sentimentos e tais modos de ser? A
que condições objetivas se aliam?” (Ramos, 1954, p. 93). Com essas perguntas,

137
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

Guerreiro parece sugerir a ausência de uma referência ao contexto na produção


daquelas imagens.
Se se trata da ausência de uma referência ao contexto, podemos situar as
análises que Guerreiro faz desses autores específicos no âmbito da sua crítica mais
geral aos estudos sobre o Brasil. Esses estudos seriam pautados pela “alienação”,
pela cópia de autores estrangeiros, o que adviria tanto do estranhamento em
relação à sociedade brasileira quanto de seu reforço. Plenos de erudição, mas
ignorantes quanto à realidade nacional, faltaria aos autores exatamente esse
conhecimento.
No entanto, embora se possa compreender aquelas interpretações no âmbito
da crítica mais geral, creio haver algo peculiar na crítica à produção daquelas
imagens relacionado ao fato de que elas se remetem diretamente a uma
preocupação com o tema da identidade nacional. Uma perspectiva da
problematicidade específica das interpretações pode ser mais bem fornecida se
entendermos que, exceto a de Afonso Celso, as demais se situam no contexto da
preocupação modernista com o tema da identidade nacional.
Nos textos mencionados, não há nenhuma referência explícita ao
modernismo; entretanto, em texto de 1980, “A Inteligência Brasileira na Década de
1930, à luz da Perspectiva de 1980”, Guerreiro confere destaque ao movimento na
análise do pensamento social brasileiro dos anos de 1920 a 1945. Nesse texto,
embora o autor reitere o caráter “expatriado” das idéias modernistas, admite ter
sido um movimento de ruptura com a “mentalidade reinante, representativa da
rusticidade agrária do Brasil”, que “exprimiu assim o inconformismo dos que
almejam um Brasil mais urbano, bem como encorajou as pesquisas das condições
peculiares da formação brasileira” (Ramos, 1982, p. 534).
Ao destacar o encorajamento dos estudos sobre a sociedade brasileira, não
poderia escapar a Guerreiro um esforço de compreensão do Brasil distinto daqueles
que observa em autores cujo conhecimento do Brasil passaria primeiro pelas lentes
estrangeiras. Em O Processo da Sociologia no Brasil (1953), Guerreiro destaca
esse maior envolvimento com a realidade brasileira em Mário de Andrade:

“(...) A questão que importa é a do exercício funcional da


literatura em que Mário de Andrade foi enexedível com

138
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

aquela generosidade, com aquela disposição para


comprometer-se com o meio, ligar-se de norte a sul pelo
artigo e pela carta, aos jovens carecentes de rumos e,
sobretudo, com aquela renúncia à literatura mesma e ao
esnobismo, pelo gosto do local e da vinculação. Ele foi no
Brasil o caso raríssimo de um homem de letras emancipado
da literatura.” (Ramos, 1953, pp. 35-6)

No entanto, ainda que orientado pela idéia de ruptura e mais inclinado à


realidade brasileira, o modernismo, na conclusão de Guerreiro, acaba por incorrer
em uma visão imobilista, discernindo mais o folclórico e o pitoresco.
Ora, se uma abordagem mais circunstanciada da sociedade brasileira não é
exatamente o que impediu tais visões imobilistas, o que seria então? Acredito que
uma resposta possa ser buscada na maneira como o tema da identidade nacional
entra na pauta modernista por meio da preocupação com o ingresso do país no
concerto das nações civilizadas.
Ao analisar o tema sob essa ótica, Gláucia Villas Boas e Eduardo Jardim,
em “Ritmo, Tempo e Luta no Processo de Conhecimento da Sociedade
Brasileira”(1982), introduzem a idéia de uma temporalidade brasileira que estaria
emergindo com os estudos da cultura popular. Tais estudos são vistos como
necessários quando, a partir de 1924, percebe-se que “a afirmação da
nacionalidade passa a constituir a mediação necessária para o acesso ao concerto
internacional” (Villas Bôas e Jardin, 1982, p. 6). Ainda de acordo com os autores,
“na tematização desta mediação – parte nacional – o modernismo elabora o que a
época costuma chamar ‘retratos-do-Brasil’”. Estes “buscam o conhecimento de um
substrato da vida nacional que existiria de forma subjacente e mais profundamente
do que o plano das aparências” (idem). No popular residiria a nacionalidade.
Um aspecto bastante interessante no texto é o que chama a atenção para a
relação de Mário de Andrade com a Antropologia de Levi-Bruhl, Tylor e Frazer no
entendimento do popular. Convém citar todo o parágrafo sobre as conseqüências
dessa Antropologia na concepção da temporalidade do popular:

“Através da leitura desta Antropologia que tinha por


objetivo, seja em uma perspectiva evolucionista, seja na
ótica de um Levi-Bruhl, elaborar uma concepção do
elemento primitivo como momento de um processo

139
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

evolutivo que desembocaria no elemento civilizado ou como


elemento diferente, mas cuja qualidade de diferença seria
dada no contraste com o elemento civilizado, é, portanto do
ponto de vista da racionalidade desta Antropologia, que
Mário de Andrade busca elaborar o seu conceito de popular
entendido, mais freqüentemente, como elemento folclórico.”
(Villas Boas; Jardim, p. 7)

Sob essa perspectiva, o folclórico é afirmado como “sobrevivência do


passado”, mas que Mário de Andrade qualifica como “tradição móvel”, o que
permitiria “atualizar e verificar no presente um saber e práticas que a princípio
remontam a um passado indeterminado”. Grifei “passado indeterminado” porque é
exatamente este o ponto que me interessa para pensar o que Guerreiro Ramos pode
estar sinalizando como critério que lhe permite encontrar diferenças significativas
entre as diversas interpretações do Brasil.
Como visto, Guerreiro Ramos preza no modernismo exatamente a ruptura
com o passado, o que sugere que a sua própria perspectiva de leitura do movimento
é informada por uma idéia de tempo futuro. Além de informar a leitura dos autores,
sugere também que sua formulação da idéia de nação pressupõe, da mesma forma,
um critério temporal, cujo vetor privilegiado é aquele que aponta em direção ao
devir. No entanto, pode-se observar que, embora Guerreiro oriente sua reflexão
pela idéia de um futuro nacional – o qual estaria relacionado com as ofertas da
modernização econômica e social –, ele está preocupado com um presente que se
lhe afigura bastante problemático. Minha sugestão é a seguinte: em relação à
maneira como o presente é entendido por ele é que se seguirá o seu
questionamento da idéia de temporalidade introduzida pelo modernismo.
Em sua leitura do modernismo, vimos que Guerreiro preza a ruptura com o
passado, ressaltando, apesar disso, as imagens folclorizadas e imobilistas como
aspectos negativos. Isso parece sugerir que essas interpretações “falhariam”
exatamente quanto ao manejo do critério temporal utilizado nos estudos.
Problemático nessa “falha” me parece ser que, embora mobilizados por uma
perspectiva de tempo, na qual se detecta uma ruptura com o passado, os
modernistas deixariam obscurecidos certos aspectos da realidade que a Guerreiro é
exatamente o que importa iluminar.

140
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

Quais são esses aspectos? E em que medida a idéia de tempo que informa os
estudos modernistas os estaria ocultando? Além disso, a partir da visão de
Guerreiro Ramos, o que pode haver de problemático na relação entre a concepção
de identidade nacional e a noção de temporalidade brasileira introduzida pelo
modernismo?
No texto de 1980, há um parágrafo em que o autor menciona o que deixaria
de vir à luz tanto nos estudos modernistas quanto naqueles dos intelectuais
católicos. Neste trecho, o que há de problemático nas visões imobilistas se torna
manifesto na comparação que ele estabelece entre aquelas interpretações e a
literatura regionalista:

“No entanto, o imobilismo não empolga inteiramente a


literatura regionalista dos anos 30, pois ganha tonalidade
gorkiana, naqueles romancistas que denunciam ao país a
pobreza e miséria de populações regionais, tais como José
Américo, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Jorge de Lima,
Armando Fontes, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz,
Marques Rebelo e outros.” (idem, 1980, p. 535)

A partir dessa citação, destaco o contraste entre visões produtoras de


imagens imobilistas do país e outras que permitem trazer à luz a pobreza e a
miséria. No regionalismo haveria um tipo de abordagem que propiciaria uma
compreensão do tempo presente, o qual, uma vez que encontra lugar na narrativa
sobre a sociedade brasileira, denuncia a própria realidade, e, mais que isso, uma
realidade que é problemática, uma realidade realmente “feia” (as aspas são
minhas).
Minha sugestão é que, no confronto entre os textos sobre o regionalismo e
sobre aqueles produtores de imagens imobilistas, dois critérios podem ser
destacados como orientadores tanto das concepções de identidade nacional, que
Guerreiro Ramos identifica nas obras, quanto da sua própria maneira de formular
essa idéia. São eles: o temporal e o espacial ou geográfico.
Sem dúvida, Guerreiro Ramos organiza o seu pensamento em termos
temporais, o que lhe torna possível identificar uma ruptura com o passado agrário e
oligárquico e, mesmo, projetar o futuro. No entanto, na medida em que procura não

141
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

descurar da sua formulação da identidade nacional a possibilidade da crítica ao


presente, é na idéia de espaço que ele encontra o próprio fundamento da crítica.
É essa possibilidade da crítica ao presente, contida na idéia de espaço, que,
segundo Guerreiro, parece estar ausente na perspectiva modernista. Ausência esta
que suscita uma indagação a respeito do que acontece com a idéia de espaço no
modernismo. Como vimos, além da idéia de ruptura, Guerreiro valoriza no
movimento o encorajamento “da pesquisa das condições peculiares da formação
brasileira”, o que, de certa forma, não permite enquadrar seus representantes entre
os intelectuais “estrangeiros” ao país. Desse modo, uma perspectiva de espaço
estaria presente na análise do popular pelo modernismo; porém, algo acontece com
a idéia de espaço que não tornaria o movimento, nas palavras do próprio Guerreiro,
“de todo consistente com o seu intento renovador”.
Proponho, neste momento, que pensemos essa questão explorando a
formulação da idéia de identidade nacional pelo modernismo a partir de um outro
ângulo. Sigo Richard Morse (1978), para quem o movimento pode ser entendido,
também, como uma reação ao sentimento de desvario provocado pela rápida e
surpreendente modernização da cidade de São Paulo nos anos 1920.
Para Morse, a busca das raízes nacionais na cultura popular significou uma
procura do “ser nacional”, com o que se intentou restabelecer o elo entre o
“tranqüilo passado agrário” e a “desvairada sociedade urbana”. Minha idéia é que,
além de procurar assegurar uma entrada autêntica no concerto das nações
modernas – tal como assinalado por Gláucia Villas Bôas e Eduardo Jardim –, a ida
à cultura popular também pode ser vista como uma reação ao fluxo dilacerante do
tempo industrial, também sentido como ameaçador das culturas nacionais.
Ao refletir sobre a reação dos modernismos europeus ao impacto
dissolvente do tempo industrial no espaço, David Harvey (1989) apresenta
interessante discussão a respeito de como a arquitetura, a pintura, a escrita, enfim,
a arte, fornecem espaços para a materialização e contenção do tempo, o que
qualifica como “espacialização do tempo”.
Acredito que o modernismo brasileiro, como um movimento estético,
também faria essa operação. Só que, ao contrário de retirar do passado a força para
o presente, é a idéia de um passado que retira sua força do presente, presente esse

142
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

fornecido pelo popular. A distância não apenas geográfica, mas também social e
cultural, existente entre os intelectuais e o popular também acabaria contribuindo
para um dimensionamento temporal dessa mesma distância, reforçando a idéia do
popular como sobrevivência. Ao contrário de Harvey, eu diria que, no caso do
modernismo brasileiro, em vez de uma “espacialização do tempo”, se processaria
uma “temporalização do espaço”, uma vez que o popular não se manifesta apenas
nos artefatos culturais que produz, mas também em determinados espaços da
geografia urbana e nacional.
Esse ponto relativo ao espaço popular concebido em termos temporais me
parece central na compreensão das razões que levam Guerreiro Ramos a apontar
limites à idéia de identidade nacional no modernismo. Uma vez que possamos
identificar tais razões, ou seja, o que e por que torna problemática a perspectiva de
tempo manejada pelo modernismo, creio podermos focalizar quais os critérios que
orientam a própria concepção de Guerreiro de nacionalidade, bem como o que o
permite distinguir concepções dinâmicas e estáticas nos autores estudados por ele.
Com base no que foi visto até aqui, pode-se apreender como problemático,
em primeiro lugar, o fato de que a temporalidade modernista tem seu vetor voltado
para trás; isto é, a nação vai ser buscada em um passado imemorial. Em Mário de
Andrade, o estudo do popular teria como fim a busca das raízes nacionais, do
tradicional supostamente manifesto na cultura popular. Portanto, a idéia de um
passado longínquo é que informaria o que é a nação, conforme indica Morse na
seguinte passagem:

“A ‘desvairada São Paulo’ dos primeiros versos de Mário de


Andrade não era uma realidade econômica, mas uma arena
para a busca do ser. Talvez não exatamente uma arena, pois
a cidade e o ser se interpenetravam. Ao decompor o seu
mundo, ao obliterar as fronteiras do ser, o poeta postulava a
antiga questão de Montaigne: ‘Que sais-je?’. Na cascata de
versos, ficção, estudos, crônicas e correspondência que se
seguiu, Mário continuou firme na busca tanto de uma
identidade do brasileiro quanto da sua própria. As artes,
populares e intelectuais, eram uma fascinação constante,
bem como a etnia, a linguagem e a fala.” (Morse, 1978, pp.
43-4)

143
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

Em segundo lugar, o problema residiria no fato de ser a tradição um invento


proporcionado por uma atitude de estranhamento do popular. Com relação a esse
aspecto, creio corroborar a crítica mais geral de Guerreiro aos intelectuais
brasileiros, desde Tobias Barreto até àqueles que, na sua época, dedicavam-se ao
estudo do negro. Estrangeiros em sua própria terra, os letrados nacionais tenderiam
a estranhar, folclorizando, os componentes humanos da nação. 51 Desses dois
aspectos – a busca do passado e o estranhamento do popular – resultaria uma
perspectiva estagnada e homogênea da nação, visto que nessa forma de conceber a
identidade nacional estaria implicado um sacrifício do que, para Guerreiro Ramos,
constituiria o elemento dinâmico da sociedade brasileira: o povo, seja na sua
existência social, excluída do universo da cidadania, seja como alvo de políticas
mais amplas, entendidas como capazes de promover a inclusão social, econômica e
política.
Parece-me plausível afirmar que o problema na concepção modernista para
Guerreiro é a noção de tempo, em virtude, principalmente, da projeção que ela
realiza do tempo presente no passado, resultando no obscurecimento de um
presente problemático que ele percebe materializado nos diferentes espaços da
geografia nacional. Suponho, então, que Guerreiro encontre em outros autores
alternativas que permitam concepções de identidade nacional não conclusivas e
não estagnantes. Interpretações que propiciem um enquadramento da identidade
nacional como processo e que, como tal, sejam favoráveis à intervenção de
projetos políticos modernizadores.
Percebo como alternativas os estudos de Euclides da Cunha e de Oliveira
Vianna, nos quais Guerreiro privilegia a abordagem regionalista. Antes de
focalizar a leitura desses autores, acho conveniente ressaltar os móveis políticos e
intelectuais que levam Guerreiro Ramos ao estudo dos ensaístas nos anos 1950.
Além disso, é importante identificar distinções entre os pontos de partida de
Guerreiro Ramos e do modernismo a partir de seus respectivos momentos
históricos.

51
Há um trecho em que Guerreiro se refere ao distanciamento entre os intelectuais e o popular, que
corrobora esta observação: “No Brasil, o homem culto e o homem do povo são espécies diferentes. A
cultura de nossos homens de prol é, por assim dizer, uma espécie de sobremesa do país. Passa pelas
alfândegas. Classifica-se na ordem dos enlatados ou das conversas.(...) “Daí o que venho chamando aqui
de alienação, o desentendimento entre as camadas populares e as camadas cultas.” (Ramos, 1953, p. 34)

144
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

Em primeiro lugar, não encontramos em Guerreiro uma preocupação tão


acentuada, ou imediata, com o ingresso do Brasil no concerto das nações. Com
relação a isso, poderíamos dizer que ele – talvez por estar escrevendo sobre o tema
na década de 1950 – já partiria da visão do segundo momento do modernismo, no
qual se preconiza a necessidade da afirmação nacional. Além disso, não se pode
descurar o fato de que o nacional vai adquirindo contornos mais políticos,
extrapolando de um enquadramento acentuadamente cultural. Ao me referir a esse
contorno político, penso na democratização que se sucede ao fim do Estado Novo,
o que, não só para Guerreiro Ramos, mas para as ciências sociais, põe em pauta
preocupações com a incorporação ao universo da cidadania de segmentos sociais
excluídos. Penso que esse clima político, em que a silhueta de uma sociedade civil
vai se tornando mais nítida, contribuiu para direcionar a atenção dos intelectuais
mais para o interior da fronteira nacional.
Quanto a Guerreiro Ramos, minha premissa é que esse cenário político teve
impacto direto na maneira como ele veio a pensar o nacional a partir da idéia de
cultura popular nos anos 1950, conferindo-lhe um significado político. Contudo, o
clima político, por si só, não é suficiente para iluminar a maneira como uma
sensibilidade mais realista e menos estética do popular lhe é despertada; nem como
essa visão do popular modula sua compreensão da idéia de nação. Com base no
que escrevi até aqui, pode-se afirmar que o entendimento do autor da identidade
nacional se desenvolveu, em grande parte, por meio dos estudos de interpretação
do Brasil. Porém, o modo como os critérios que lhe permitem discernir dentre as
várias interpretações as que melhor convêm à compreensão da sociedade nos anos
1950, por sua vez, também, não advém exclusivamente dessas leituras.
Resgato para esta análise os estudos que Guerreiro Ramos realizou sobre o
universo mental popular na época em que foi professor e pesquisador no
Departamento Nacional da Criança. São desse período suas análises da mortalidade
infantil e delinqüência juvenil, nas quais procura introduzir uma perspectiva
sociológica na explicação de um fenômeno focalizado, até então, de um ponto de
vista exclusivamente médico e biológico. Nesses estudos, é possível observar
como a sociologia americana – em especial, a Escola de Chicago – o orienta em
direção a uma perspectiva mais espacial de problemas que ele busca investigar

145
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

como sociológicos. Seguindo Ernest Burgess e Robert Park, entre outros, Guerreiro
focaliza os ambientes rural e urbano como contribuintes na modulação de
mentalidades e comportamentos tidos como produtores de sociopatias.
Uma referência que me parece bastante interessante para estabelecer
possíveis nexos entre a sociologia americana e a leitura dos autores regionalistas
brasileiros é a que ele faz à descrição de Burgess de áreas urbanas distintas, da
qual resulta uma imagem da cidade como composta de cinco círculos concêntricos
– a extensão da cidade é configurada como que irradiando de um centro. Citando
Park, Guerreiro se utiliza de metáforas, como vegetais, plantas e solo, para
produzir uma imagem de movimento e de irradiação.

“Como os vegetais, observou Robert Park, os homens são de


qualquer modo ligados ao solo. Agregam-se num
determinado solo e dele rebentam como plantas, haurindo do
ambiente que os cerca seus valores sociais.” (Ramos, 1944,
p. 38)

Em texto de 1951, “Pauperismo e Medicina Popular”, Guerreiro faz uma


geografia da mortalidade infantil, relacionando o problema ao que qualifica como
“cultura de folk”, segundo ele, “uma característica da pobreza”. Nesse texto,
ressalto dois aspectos: primeiro, uma análise do popular que procura focalizar a
pobreza e a sua relação com a maneira de pensar popular, no caso, os
procedimentos curativos da medicina popular; 52 segundo, a própria forma
cartográfica que utiliza para situar o problema da mortalidade infantil em uma
perspectiva nacional – as informações sobre as práticas medicinais são referidas às
diferentes regiões e estados brasileiros, como Paraíba, Bahia, Planalto Goiano,
Minas Gerais, Rio de Janeiro, etc.
Desses dois aspectos resulta um esquema de análise em que a cultura
popular, além de ser vista como nada venerável, perde a fluidez temporal com que
o modernismo a identifica. Ela se liga ao solo, à região, logo, enraíza-se no

52
Só para mencionar um dos casos, cito o seguinte, colhido pelo próprio autor: “Acredita-se na Bahia que
dar de beber água do banho à criança é bom para torná-la mansa. O autor conheceu um caso de diarréia
provocado por esta prática e que quase levou à morte um recém-nascido.” Dos que colhe em Namoros
com a Medicina, de Mário de Andrade, eis alguns casos: “para curar talhos, esterco de jumento ou
cataplasma de estrume fresco de vaca e azeite de cozinha; para tirar bicho de pé, pisar em bosta de porco,
etc.”.

146
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

presente. É essa perspectiva geográfica que acredito advir da influência da


sociologia americana e dos próprios estudos mais substantivos, o que orienta suas
análises da idéia de nação em Euclides da Cunha e Oliveira Vianna, os quais passo
a analisar.

5.4. Visões heterogêneas e otimistas

Nas análises desses autores, não escapou a Guerreiro Ramos determinados


aspectos que tornam os outros autores alvos de crítica. Tal é o caso do que
considera “generalizações imanentistas”, presentes nas representações de tipos
humanos brasileiros, como o sertanejo, o matuto, o gaúcho, o mulato, o negro, o
mestiço, e o próprio povo brasileiro. Os equívocos são creditados à maneira como
o “nosso problema étnico” foi tratado, em geral, porque não souberam os autores
distinguir bem a “raça e a cultura”. Porém, acredito que é exatamente a distinção
entre o que nas obras é alvo de crítica e o que é destacado como positivo que torna
mais significativo apreender os critérios que permitem a Guerreiro identificar
concepções diferentes de identidade nacional.
Em O Regionalismo na Sociologia Brasileira (1954), Guerreiro Ramos
reafirma a sua rejeição de interpretações que resultem em afirmações conclusivas
sobre a nacionalidade, as quais teriam sido evitadas por autores como Sílvio
Romero, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna:

“É costume entre nós falar de povo brasileiro como se fosse


uma massa homogênea e única, distensa, com perfeita
igualdade, através de uma vastíssima superfície de oito
milhões de metros quadrados, e guardando por toda ela a
mesma densidade social e a mesma unidade de composição e
de estrutura.” (Ramos, 1954, p. 59)

As razões dessas visões seriam as seguintes:

“Dos que assim pensam nenhum se deu ao trabalho de


desmontar as diversas peças e elementos, de que se compõe
esse vasto organismo, para ver como ele se formou e como
ele funciona. É natural que dele tenham apenas uma idéia
vaga, ou uma idéia incompleta, ou uma idéia falsa. Levam
em conta a unidade da raça, da civilização e da língua, e não

147
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

sei o que mais; mas, não querem levar em conta a


diversidade dos habitats (e aqui se percebe a herança
euclidiana), a sua ação durante três ou quatro séculos, as
variações regionais no caldeamento dos elementos étnicos e,
principalmente, a inegável diferença das pressões históricas
e sociais sobre a massa nacional, quando exercidas ao norte,
ao centro e ao sul.” (Ramos, 1954, p. 59)

Nesse texto, O Regionalismo na Sociologia Brasileira, Guerreiro Ramos


contrapõe um regionalismo mais recente, que identifica em Gilberto Freyre e nos
estudos sobre comunidade realizados por Donald Pierson, ao mais antigo, de
Euclides da Cunha. Nota-se que, ao apresentar os dois como tipos distintos,
Guerreiro está sugerindo que não é apenas a abordagem regional ou espacial que
evitaria as tais visões conclusivas da identidade nacional. O que a evitaria seria a
perspectiva que, desde o início, orientaria os estudos: a perspectiva nacional.
Dessa perspectiva é que resultaria uma análise comparativa das diversas regiões do
país. Teria sido graças ao panorama nacional, que orientou o trabalho de Euclides
da Cunha, que sua obra “nega, por exemplo, a existência de um tipo unívoco de
brasileiro”.
Além das diferenças psíquicas e sociais, as análises trariam à luz, também,
“diferentes histórias” da formação nacional, tal como em Populações Meridionais,
de Oliveira Vianna, que, “marcando o condicionamento ecológico e geográfico da
formação nacional”, pode perceber “três histórias diferentes’ encastoadas em três
habitats diferentes, gerando, por seu turno, três sociedades diferentes: a dos
sertões, no norte; a das matas, no centro-sul; e a dos pampas, no extremo sul”.
Sem deter-me mais na referência aos autores, passo às considerações que
me interessam na análise de Guerreiro. Em primeiro lugar, destaco a maneira como
a idéia de nação é valorizada como perspectiva que orienta esses autores. De fato,
ela é um ponto de partida, mas não encerra certezas prévias acerca do que é o
brasileiro. A idéia de nação é, antes, um norte dos estudos, mas um norte vazio,
sem conteúdo psíquico e histórico. A única certeza que ela parece oferecer é a que
é dada pelo mapa, pela cartografia. Em segundo lugar, o fato de que a
temporalidade brasileira, ou a sua historicidade, é uma dimensão que vai sendo
elaborada a partir da própria noção de geografia. Nenhuma imaginação de um
passado anterior à existência geográfica moldaria as conclusões dos autores acerca

148
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

do que é o nacional. Nos estudos próprios de Guerreiro, observamos que ele evita
remeter-se a um passado que remonte à colônia, à herança cultural e psíquica dos
colonizadores. Quando muito, essa remissão é feita para se pensar a origem de
formas de administrar, e pensar com “pensamentos prontos” e importados o Brasil.
Mas, no que diz respeito àquilo que lhe interessa como sendo a noção da formação
nacional, ganha relevo uma história que é elaborada a partir da própria existência
física da nação.
Pode-se dizer que a concepção de identidade nacional de Guerreiro Ramos é
orientada pela idéia de processo, do que ela vem sendo desde a sua existência real.
A crítica que faz aos demais autores reside no fato de se tentar apreendê-la a partir
de uma essência, de um caráter, que já estaria formado para sempre. Na idéia de
processo, tempo e espaço geográfico se cruzam. O tempo entendido como uma
temporalidade brasileira própria, uma vez que a história de que se pode falar é
aquela fornecida pela existência real geográfica.
Segundo minha própria interpretação de Euclides da Cunha e Oliveira
Vianna, observo que a própria forma de narrar desses autores indica a idéia de
movimento, de viagem. Em Euclides, isso é bastante explícito. Em Populações
Meridionais, chama a atenção como o movimento da história se confunde com o
movimento no espaço. Sem entrar na discussão sobre a validade das fontes do
autor, é interessante observar como ele parte do que seria o ambiente da cidade,
segue para o interior, onde encontra o domínio rural, chegando ao movimento das
bandeiras e deste à floração de vilas e cidades pelo interior do país.
Nos anos 1950, a tarefa de intelectuais e de políticos seria a de dar
continuidade a esse movimento, ou seja, ao processo de formação da identidade
nacional brasileira.

5.5. Espaço, tempo e história nacional

Esta análise me sugere que o conceito de espaço é central no modo como


Guerreiro Ramos concebe a nação como realidade dinâmica e portadora de uma
história própria. Para mim, dos espaços regionais, Guerreiro desdobra uma

149
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

compreensão do espaço nacional amplo que comporta as diversidades regionais


internas.
Como assinalei no Capítulo 4, o modo como Guerreiro Ramos pensa a
nação o leva a concebê-la como múltipla e dual. Essa característica, ao mesmo
tempo que informaria a “problemática” da realidade brasileira, também informaria
a “fase” em que a sociedade brasileira se encontrava na década de 1950. Essa
configuração, dual e múltipla, com seus respectivos tipos subjetivos, constituiria a
nação como totalidade histórica naquela época.
Deduzo disso que se a industrialização e o grau de desenvolvimento técnico
são assinalados como critérios objetivos de avaliação do sentido histórico, a “linha
diretriz”, a importância deles decorreria mais do imediatismo que proporcionam à
compreensão da mudança histórica e ao seu sentido. Do ponto de vista ideológico,
no sentido científico e político que Guerreiro dá a palavra ideologia, o mais
importante nesses fatores não seriam eles mesmos, mas as suas conseqüências – a
urbanização e as alterações no estilo de consumo. Em A Cartilha, Guerreiro
assinala a integração regional como uma das conseqüências da industrialização, do
que resultaria a integração das regiões e, com isso, podemos deduzir, a eliminação
da diversidade regional decorrente de desenvolvimentos econômicos e sociais
desiguais, e da dualidade da qual a diversidade decorre. Com isso, resultaria a
promoção de uma sociedade nacional subjetiva e culturalmente mais uniforme.
Dessa forma, na idéia de povo está pressuposta a integração territorial, o que
significa integração nacional.
A teoria da nação de Guerreiro, e da identidade nacional, decorre da
delimitação que ele realiza do espaço geográfico nacional como suporte de uma
configuração histórico-sociológica particular. Com sua defesa e análise do
nacionalismo, podemos dizer que ele participa da grande família de intelectuais
brasileiros preocupados com a questão da identidade nacional. 53 No entanto, com a
circunscrição do tema ao espaço nacional, ele se distanciaria de uma interpretação
culturalista, baseada na idéia de herança ibérica.
Com Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, e Sérgio Buarque de
Holanda, em Raízes do Brasil, a identidade nacional é pensada em termos de

53
Sobre essa extensa família, da qual o ISEB faz parte, veja Leite (1983).

150
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

herança, pressuposto aí o antecedente português. Com esses autores, aos quais se


junta Paulo Prado, em Retrato do Brasil, a história da formação da identidade
brasileira é remontada à Renascença. Guerreiro Ramos, com seu método redutor,
parece querer tirar dos “parênteses” esse passado mais longínquo e, com isso,
evitar uma compreensão da identidade nacional que promova interpretações dela
em termos de caráter nacional, decorrentes de caracteres psicoculturais, como
espírito de aventura, personalismo, luxúria, cobiça, etc. Além disso, delimita
temporalmente essa história ao próprio espaço que configurou a nação brasileira.
Ao utilizar o conceito de espaço, Guerreiro realiza um corte histórico, com
o qual, ao mesmo tempo que seria possível identificar uma história particular,
permitiria integrar essa mesma história na história mundial. Seria uma operação
análoga à que ele realiza quando constrói os tipos políticos no Brasil, referindo
cada um deles a uma configuração geográfica específica dentro da nação, o que o
impede de se referir aos tipos historicamente inferiores como sobrevivências.
Todos aqueles tipos estariam presentes na época em que vigora a política
populista, e cada um deles seria passível de explicação objetiva. A explicação seria
o tipo de organização espacial das regiões, ora populacionalmente rarefeito, ora
denso. Desta maneira, ao assinalar os tipos, representando diferentes épocas
históricas simultâneas, eles poderiam ser integrados a uma realidade mais
abrangente que os tornaria todos tipos do presente – a nação. Da mesma forma, ao
tipificar histórica e sociologicamente o Brasil, e explicar essa tipificação pela
dualidade básica da nossa formação, Guerreiro, ao mesmo tempo que identifica
uma particularidade, a integra em uma totalidade mais ampla – a totalidade mundo.
O corte espacial está implicado em um fato histórico, o Descobrimento do Brasil,
momento inaugural da nação. Sobre isso ele escreve em A Problemática da
Realidade Brasileira (1961): “Desde que o Brasil é revelado ao mundo pela
descoberta, passa a ser alcançado pela lei da dualidade.”
Essa maneira de pensar a história, a partir da “descoberta”, me parece
relacionada com as idéias de “povos naturais” e “povos históricos” de Hegel, que o
autor utiliza em A Redução Sociológica. Antes do Descobrimento, a possibilidade
de sermos históricos – o que significa também sermos povo –, já estaria contida no
espaço natural. A partir do Descobrimento, começamos a ingressar no histórico

151
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

através do modo como o europeu, civilizado, portador de história, se relacionaria


com a natureza, incluindo aí o índio, compreendido pela categoria “povos
naturais”. O espaço natural também condicionaria a atividade humana criadora do
colonizador.
Pensar o histórico a partir da descoberta introduz um elemento significativo
no modo como Guerreiro pensa a história nacional. Trata-se da idéia de relação
com o outro, que integra os povos naturais à história mundial ou à civilização. A
relação com o outro determinaria tanto o ingresso desses povos na história da
civilização quanto na história particular, nacional. A forma do ingresso
determinaria também o estilo das entradas nos dois âmbitos históricos. No caso do
Brasil, essa forma foi determinada pelo tipo de intercâmbio econômico, do qual
resulta a dualidade como a lei histórica básica da nossa formação histórica interna
e externa.
Penso que essa maneira de pensar a história a partir do Descobrimento e
pelo tipo de intercâmbio por meio do qual nos integramos ao mundo pode nos fazer
indagar sobre a concepção de atraso e moderno em Guerreiro Ramos.
Comecemos pensando sobre a relação entre modernidade e história no
pensamento de Guerreiro Ramos. Esses dois termos me parecem se equivaler, no
seu pensamento, no sentido de que a história é sempre moderna. Segundo a
tipologia “povos naturais” e “povos históricos”, os primeiros, por não serem
históricos, seriam, por isso, atrasados. No Brasil, a história começaria com a
descoberta, o que vem acompanhado da integração do espaço existente ao espaço
mundial. Então, a integração é que determina a entrada no histórico, e ser histórico
é ser moderno, posto que integrado à modernidade-mundo. Se a dualidade foi
determinada pelo modo como ingressamos na história, e se não era fenômeno
episódico da constelação histórica, iniciada na década de 1930, mas consubstancia
o modo de ser histórico do Brasil, então o país sempre foi atrasado e moderno,
sendo esta a maneira como sempre fomos modernos. O que estaria se desagregando
nos anos 1950 seria uma totalidade histórica mundial, ou “fase”, da qual
participaria não só o Brasil, mas outros países de formação colonial, guardadas as
diferenças entre eles. No Brasil, enquanto essa totalidade não apresentou sinais
evidentes de desagregação, ela foi o que deveria ser historicamente.

152
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

Penso que, sendo a história seccionada em termos de totalidade, o que


configura uma fase, então o passado não é indicativo de atraso. O passado é só o
que passou. Em uma maneira de pensar o passado como indicativo de atraso, este é
visto como sobrevivência em uma concepção evolutiva da história. O pensamento
de Guerreiro não comporta as sobrevivências, visto que trabalha com a idéia de
totalidade. Então, o que é o atraso?
Se pensarmos que ele pensa o moderno pela idéia de integração, então o
contrário do moderno seria o isolamento. Antes do Descobrimento, o que existia
no que seria o Brasil estava isolado do mundo, portanto, não existia. A idéia de
isolamento como algo negativo é sugerida em vários textos. Ela aparece no modo
como ele constrói a tipologia rural e urbano em A Crise do Poder no Brasil. No
urbano são destacadas aglomerações urbanas, relações sociais intensas, o grau da
integração proporcionado pela estrutura ocupacional, pelo mercado, pelas vias de
comunicação e transporte. Ao contrário, o tipo rural se caracteriza pela rarefação
demográfica, pela existência de núcleos populacionais fechados e desintegrados
entre si. Ao analisar a política de clã, eis o que ele escreve:

“A política de clã é, na verdade, característica de uma


situação pré-política. Era dominante no Brasil colonial, em
cujo território vicejava uma poeira de núcleos populacionais,
mônadas fechadas e auto-suficientes, e tinha diferentes
nomes, engenhos, fazendas, estâncias, currais.” (Ramos,
1961, p. 49)

Em Princípios do Povo Brasileiro (1960), o autor destaca o “nacionalismo


ingênuo”, que teria suporte na mesma tipicidade da forma rural. Tal nacionalismo
expressa uma forte solidariedade de grupo, fechado sobre si mesmo, o que leva a
atitudes etnocêntricas e xenófobas de exaltação própria e rejeição do outro. Ao
identificar o “amorfismo” como uma das características do Brasil naquela fase, em
A Problemática da Realidade Brasileira, ele se apóia em Alberto Torres e
Frabregat, para explicar o que determinaria essa situação:

“Haveria razão de caráter espacial que impede a sociedade


brasileira, como as sul-americanas, de adquirir forma.
Nossas noções de direito e filosofia reclamam ambientes

153
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

relativamente povoados, onde a natureza não constitui


obstáculo às formas mais férteis de convivência humana e as
regiões desta classe – diz Fabregat – são poucas na América
do Sul.” (Ramos, 1960, p. 94)

Todas essas referências são negativas. Todas elas indicam o “não-ser” o


qual está vinculado ao isolamento. Todas essas situações deveriam ser superadas.
Então, o que indicaria o atraso seria o isolamento, determinante das maneiras
subjetivas de ser, que eram “alienadas”. O isolamento seria o fator interno a
impedir o Brasil de completar o processo histórico formador da nação, e, com isso,
dar outro sentido à forma de intercâmbio com outras nações. O atraso, no Brasil,
seria a incompletude do Estado nacional, o que reclamava como urgente a
integração política favorecida pela integração econômica, da qual decorreria a
integração social e cultural.
Entendo que, com a categoria espaço geográfico relacionada ao
Descobrimento, informando o que seria a história nacional, Guerreiro Ramos quer
apresentar a nação como realidade existente. O pressuposto de uma história e
ciência nacionais seria a afirmação da nação. Decorreria dessa afirmação o estudo
da sua configuração histórica e social específicas. Esse estudo, por sua vez,
orientado pelo conhecimento do modo como a nação faz seu ingresso no histórico,
desvendaria o que na nação em processo, seria o seu “não-ser”. 54 Penso que o não-
ser da nação constituiria, também, o seu ser; portanto, conhecer o “não-ser” é,
simultaneamente, afirmá-lo e negá-lo.
O não-ser da nação consistiria na dualidade, na heteronomia, na alienação,
no amorfismo e na inautenticidade. Essa descrição da nação, segundo Guerreiro,
“se caracteriza pelo que nega, postula o seu contrário. Esse contrário é o nosso
projeto, em função do qual avaliamos a presente circunstância brasileira” (Ramos,
1961, p. 88).
Vemos nessa descrição a elaboração de mais uma dualidade. Com essa
descrição, temos um pólo, informado por categorias compreensivas induzidas da
realidade brasileira na época e que deveriam constituir o repertório da ciência

54
Em A Problemática da Realidade Brasileira, Guerreiro refere-se à nação como ambivalente. Seríamos
e não seríamos ao mesmo tempo: “Somos e não somos ao mesmo tempo, no tocante à velha sociedade e à
qual nos referimos” (p. 88).

154
Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

social nacional. Um outro pólo ideal deveria se constituir, pelo contrário, daquelas
características. Esse pólo seria um projeto, cujo engajamento decorreria da
compreensão correta ou autêntica da realidade brasileira: o projeto nacional.

155
Capítulo 6

Duas digressões sobre


nacionalismo e democracia

6.1. Primeira digressão: as ciências sociais em uma era de nacionalismos

O argumento central desta tese é o de que o nacionalismo no Brasil dos anos


1950 teve, além de um significado econômico, um político. Como político, ele
expressou os ideais de democracia e de cidadania mais amplos advindos com as
transformações econômicas nos anos 1930 e, talvez, principalmente, com as mudanças
culturais, especialmente as manifestadas nas ciências sociais. Essas ciências, em
especial a sociologia, nascem com um propósito renovador, e o mesmo impulso, que as
leva a debater sobre seus objetos e métodos, as conduz a descobrir de uma maneira nova
a sociedade brasileira. Podemos dizer que antes dessa época vigorosa, as imagens da
sociedade ou da nação eram fornecidas pela natureza, pela cultura popular e pela doença
(Ventura, 1991; Lima, 1998). Sob o impacto das ciências sociais, uma compreensão
social e econômica desnaturaliza os determinismos e lança luz sobre a estrutura social
mais ampla, que confinava a maioria da população à condição de subalternidade
política, econômica e social.
De modos diferentes, de perspectivas teóricas distintas, uma imagem da
sociedade brasileira, como sociedade ou nação, foi produzida, participando dessa
imagem a dinâmica de uma sociedade urgente de mudanças. Urgência essa talvez mais
percebida devido ao “acavalamento”, usando a expressão de Guerreiro, de épocas
diferentes e conviventes em simultaneidade. Para uns, uma compreensão denominada
nacional da macroestrutura histórica e a do presente representariam um esforço mais
intensivo de conhecimento e de ação; para outros, eliminar o passado e iniciar o

156
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

conhecimento e a ação pelo que se considerava o momento mais avançado do processo


histórico pareceu-lhes o caminho mais rápido de alcançar a sociedade dos sonhos.
Penso que as duas vias elaboradas e propostas na época e o porquê de elas se
apresentarem como mutuamente excludentes, como incompatíveis, podem ser
compreendidos à luz de um cenário histórico mais amplo, em que a questão social e um
certo tipo de nacionalismo se sobrepuseram em determinadas partes do mundo,
inclusive no Brasil. Arrigh, em O Longo Século XX (1996), nos esclarece sobre a
marcha do nacionalismo desde o século XVIII até o momento histórico, no pós-Segunda
Guerra, em que se registraria o “advento do homem comum”, trazido a público pelo
nacionalismo e pela questão social, época em que uma “dupla exclusão” sugere o modo
como as ciências sociais do século XX, a partir de fins da sua primeira metade, teriam
de reorganizar sua agenda de pesquisas. A seguir, farei uma breve análise seletiva do
texto do autor, recortando nele o tema do nacionalismo.

A questão nacional e a questão social: duas diretrizes das ciências sociais no Brasil

Identifico em Arrigh três fases do nacionalismo: um nacionalismo econômico;


um nacionalismo de proprietários, também identificado como fase de “democratização
do nacionalismo”; e um nacionalismo proletário.
A primeira fase é identificada no contexto de luta pela hegemonia econômica e
política na Inglaterra e França do século XVIII. Três fatores foram decisivos no modo
como essa fase de luta pela conquista de hegemonia se distinguiu das anteriores. 55 Os
fatores foram: a colonização direta, a escravatura capitalista e o nacionalismo
econômico. Os dois primeiros, realizados de acordo com uma lógica capitalista
territorialista, relacionaram-se diretamente com a conquista do Atlântico. O último
significou a acumulação de excedentes advindos do comércio colonial e interestatal e a
gestão da economia nacional através de “ordens às burocracias estatais” e incentivos à
iniciativa privada no que esta passa a participar indiretamente da gestão do Estado e da
guerra. Dos dois mecanismos de gestão econômica, enfatizo o último e o modo como
ele foi mobilizado pela Inglaterra, a vencedora da rivalidade anglo-francesa. Além de
envolver os súditos indiretamente com atividades relacionadas à guerra e à gestão do

55
O autor refere-se à Espanha e à Holanda.

157
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

Estado, comuns às duas, a Inglaterra, em virtude da posição geopolítica, pôde ampliar


os incentivos, tornando-os mais atrativos em termos de recompensa, por meio da
expansão colonial. Desse processo de gestão econômica, implicando reforço da
burocracia estatal, envolvimento dos súditos e empresa colonizadora, resultaram as
“novas comunidades nacionais”, tanto nas metrópoles, com a formação das classes
médias, como nas colônias.
A formação das comunidades nacionais dá ensejo à segunda fase do
nacionalismo, caracterizada pela democratização, o que significava aproximação entre
governantes e governados na gestão do Estado. Notemos como Arrigh parte do
princípio de que governantes e governados são entidades separadas, sendo os primeiros,
como também ocorre na análise de Elias, enquadrados dentro de uma lógica política e
estatal própria no sentido de Maquiavel. Tal lógica, em Arrigh, é a do territorialismo. As
comunidades nacionais integradas, em termos de aproximação entre governantes e
governados, surgem no final do século XVIII, intensificando-se nos seguintes. Notemos
também que, com a noção de territorialismo como estratégia mobilizada pelo Estado
capitalista, o autor desvia a compreensão do nacionalismo como fenômeno que se
explica pela industrialização, como faz Gellner. Além disso, amplia o horizonte de
análise do nacionalismo no plural, ou seja, não apenas motivado e ativado por razões
oriundas da ordem urbano-industrial.
Essas comunidades nacionais deram origem a uma nova configuração de poder,
impulsionada por rebeliões multiplicadas a partir do “revanchismo” francês, que se
seguiu após a Revolução Francesa, contra o expansionismo inglês. As investidas
imperialistas e revanchistas de Napoleão foram acompanhadas de violações ao Sistema
de Vestfália, criado em 1648. Esse acordo postulava a autonomia dos Estados soberanos
dentro de um sistema de equilíbrio de poder e de direito internacional, e acima dos quais
não se admitia nenhuma autoridade, como no sistema medieval.
A França violou os princípios e normas de Vestfália, menosprezando os “direitos
absolutos dos governantes” e desrespeitando direitos, propriedade e liberdade de
comércio de civis mediante bloqueios e desapropriações. O resultado foi uma “escalada
de conflitos”, que deu origem a um “caos sistêmico”, 56 do qual a Inglaterra tirou

56
Segundo Arrighi, “o ‘caos’ e o ‘caos sistêmico’, (...) referem-se a uma situação de falta total,
aparentemente irremediável, de organização. Trata-se de uma situação que surge por haver uma escalada
do conflito para além do limite dentro do qual ele desperta poderosas tendências contrárias, ou porque um

158
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

proveito e, com isso, consolidou a hegemonia política em face dos demais Estados
soberanos. Desse modo, a Inglaterra atraiu para sua própria órbita de poder as “novas
comunidades nacionais e de proprietários”, um novo acordo, o Concerto das Nações
Européias, foi celebrado e baseado não mais nas “emoções pessoais dos monarcas”, mas
nos “interesses e ambições coletivas dessas comunidades nacionais” (Arrighi, 1996, p.
53). Apoiado nas comunidades nacionais de proprietários, o Concerto das Nações
funcionou como instrumento político do “imperialismo de livre comércio” comandado
pela Inglaterra.
Sob o imperialismo de livre comércio, os domínios do Ocidente no mundo não
ocidental se expandiram até o percentual de 85%, em 1914, de controle da “superfície
territorial do planeta”. Esse aumento dos domínios, juntamente com o imperialismo de
livre comércio, é um dos fatores que concorreram para a terceira fase do nacionalismo.
As conseqüências políticas da dupla dominação dava início à configuração de novo caos
sistêmico no século XX:

“Poderosos movimentos de protesto social haviam começado no


mundo inteiro antes mesmo da eclosão da Primeira Guerra
Mundial. Esses movimentos tinham como raízes – e almejavam
subverter – a dupla exclusão na qual se baseava o imperialismo
de livre comércio: dos povos não ocidentais, de um lado, e das
massas não proprietárias, de outro.” (Arrighi, 1996, p. 63)

A razão das revoltas dos povos não ocidentais (as colônias não emancipadas
politicamente) fica evidente, como também o objetivo que será perseguido nos
movimentos nacionalistas: a autodeterminação e a luta antiimperialista. Com relação
aos não proprietários ocidentais, o despertar da consciência proletária se desenvolve, em
parte, em processo análogo ao que levou a formação das classes médias e proprietárias
entre o fim do século XVIII e metade do XIX. Nessa época, a iniciativa privada fora
envolvida na gestão do Estado e da guerra. No fim do século XIX e início do XX,
novamente são os esforços de guerra que explicam a ampliação da “socialização da
gestão do Estado e da guerra” com a industrialização dos armamentos. As atividades da

novo conjunto de regras e normas de comportamento é imposto ou brota de um conjunto mais antigo de
regras e normas, sem anulá-lo, ou por uma combinação dessas duas circunstâncias. À medida que
aumenta o caos sistêmico, a demanda de ‘ordem’ – a velha ordem, uma nova ordem, qualquer ordem! –
tende a se generalizar cada vez mais entre os governantes, os governados, ou ambos. Portanto, qualquer

159
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

guerra, na medida em que utilizam “produtos mecânicos fabricados à máquina”,


envolvem trabalhos dos não proprietários, o que teria aumentado o poder dessa classe
em suas “lutas pela proteção estatal e subsistência” (Arrighi, 1996, pp. 63-6).
Decisiva nas rebeliões do século XX foi a Revolução Russa, da qual irradiaram
os ideais perseguidos tanto pelas colônias como pelas “massas não proprietárias”: a
autodeterminação dos povos e a “primazia dos direitos de subsistência sobre os direitos
de propriedade e de governo”. Por fim, a Segunda Guerra Mundial, que funcionou como
“uma cadeia de transmissão para a revolução social, que, durante e depois da guerra,
espalhou-se por todo o mundo ocidental sob a forma de movimentos nacionalistas de
libertação nacional” (Arrighi, 1996, p. 65). É essa época que alguns autores denominam
“o século do homem comum”, que Arrighi identifica como a da proletarização do
nacionalismo.
Um ponto a destacar em Arrighi é que, ao situar a história do capitalismo em
uma perspectiva territorialista, entendido este como lógica política própria do Estado
moderno europeu, o autor descortina uma paisagem mundial composta de comunidades
territoriais, cujas histórias particulares não se esgotam com a história do capitalismo. O
capitalismo figura como um aspecto, talvez o mais importante, na criação de um espaço
mundial plano, horizontal, a cuja superfície as nações emergem, integrando-se em uma
modernidade mundial, isto é, no tempo presente de e com outras nações. Essa
perspectiva territorialista, como lógica associada à do capitalismo, afasta uma
compreensão das mudanças sociais como processo interno às sociedades, em que a
modernização ocorre. Essa perspectiva permite situar sociedades em seus processos de
mudança no cenário externo reclamado por Bendix e, com isso, analisar as diferentes
sociedades ou nações em termos de dualidade.
Detendo-me estritamente no pensamento de Guerreiro Ramos e indiretamente na
reflexão de Ignácio Rangel, posso dizer que a história narrada por esses autores perfaz,
no plano nacional, a história de Arrighi. Como destaquei, uma perspectiva geográfico-
espacial orienta a história política de Guerreiro e, com base nela, ele faz o “diagnóstico”
da configuração política nos anos 1950. No trajeto historiográfico, 1822 é a primeira
data assinalada nos seus escritos, a independência política, época situada entre 1776 e
1848, quando, segundo Arrighi, ocorreu “completa transformação das relações

Estado ou grupo de Estados que esteja em condições de atender a essa demanda sistêmica de ordem tem a

160
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

governante-governado na totalidade das Américas e na maior parte da Europa” (Arrighi,


1996, p. 52).
Nesse contexto, que iria de fins do século XIX até aproximadamente 1930, de
acordo com Guerreiro, a estrutura de classes no Brasil se definiria em função da
propriedade latifundiária: de um lado, os proprietários, e, de outro, os não proprietários.
Em relação ao Concerto das Nações, não éramos atrasados, participávamos como nação
politicamente independente e fornecedora de matérias-primas. Enquanto tal situação
perdurou, não havia “povo” no Brasil, o que significava que as decisões políticas
estavam concentradas nas mãos das elites proprietárias e exportadoras e comandadas
por interesses externos. 57 Com a crise econômica dos anos 1930, a pressão da produção
interna por bens de consumo importados mudou a direção histórica brasileira.
Essa análise – que para nós, hoje, é até banal – ilumina uma historiografia em
construção durante todo o período que se inicia por volta de 1930, e que tem seus
primeiros formuladores entre os economistas. O que chamo de economistas não são
necessariamente profissionais formados em faculdades de economia, as quais só passam
a surgir na década de 1940, mas pessoas que darão impulso à elaboração de uma análise
estrutural da formação histórica brasileira a partir de questionamentos de natureza
econômica. É no âmbito dessas reflexões que a crítica teórica às teorias econômicas
clássicas divulgadoras da divisão internacional do trabalho se transforma também em
crítica política ao imperialismo de livre comércio (Love, 1996; Bielschowsky, 2000).
A historiografia isebiana é estruturada pela idéia de “fase”. O ano 1930 marcaria
o início de uma nova fase da história brasileira. Desse período até 1950, quando os
isebianos estão escrevendo, o desafio histórico é encarado como aquele em que se
impunha a aceleração econômica por meio da industrialização, o que reclamava a
intervenção estatal, a formação de uma burguesia nacional e a incorporação política e
social dos trabalhadores; a industrialização é vista como meio pelo qual a incorporação

oportunidade de se tornar mundialmente hegemônico” (Arrighi, 1996, p. 30).


57
Distinguindo as nações anteriormente emancipadas daquelas em processo de descolonização em termos
do status que elas gozavam no sistema internacional, Arrigh escreve sobre as primeiras: “Ao mesmo
tempo, as nações que se haviam transformado nas unidades componentes do sistema interestatal sob a
hegemonia britânica eram, em geral, comunidades de proprietários, das quais as classes desprovidas de
bens eram efetivamente excluídas. Assim o direito dos cidadãos proprietários de buscar a riqueza foi
elevado, não apenas acima dos direitos absolutos do governo, mas também acima dos ancestrais direitos à
vida das massas não proprietárias (cf. Polany, 1957). Tal como a democracia ateniense na Antigüidade, a
democracia liberal no século XIX foi uma ‘oligarquia igualitária’, na qual ‘uma classe dominante de

161
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

ocorreria. Notemos que essa fase é representada como uma constelação histórica
urgente de realizações de etapas, que o mundo desenvolvido já teria realizado algumas e
que estaria realizando outras; no conjunto, a industrialização doméstica, a formação da
burguesia industrial e do proletariado.
Podemos dizer que Arrighi, também situado em uma perspectiva histórica,
assinala em termos de fases correspondentes a ciclos de hegemonia a realização dessas
etapas. Primeiro, o nacionalismo econômico, significando isto gestão estatal da
economia. Depois, a formação da sociedade civil, ainda que restrita aos proprietários.
Sobre o componente industrial da classe de proprietários, Arrighi sugere sua
consolidação como decorrente de fatores não exclusivamente vinculados aos interesses
econômicos de civis. É o que deduzo do modo como se refere à Revolução Industrial,
como algo que “decolou sob o impacto das guerras revolucionárias e napoleônicas da
França” (Arrighi, 1996, p. 56). E, por fim, a ampliação de direitos aos excluídos, por
meio de lutas: massas sem propriedade e colônias.
Podemos acrescentar que, em meio a esse processo linear, houve nacionalismo
econômico, como no caso da Alemanha no final do século XIX, seguindo, no mesmo
país, o nacionalismo cultural dos românticos. Podemos nos lembrar, ainda, do
centralismo político dos federalistas; do industrialismo e territorialismo interno dos
americanos; do nacionalismo cultural na Índia (Chatergee, 2004); no Brasil, da chamada
geração de 1870 – com Silvio Romero, com o nacionalismo cultural que traz à cena a
questão da identidade cultural.
Na perspectiva seguida pelo ISEB, o caráter revolucionário da época que se
inicia, em 1930, é marcado principalmente pelo colapso do imperialismo de livre
comércio, que é a via que estimula as análises críticas econômicas às teorias liberais
clássicas nos países, que passam então a se compreender como subdesenvolvidos. A
partir desse marco é que a noção de imperialismo passa a informar uma atitude política
interna e externa baseada na idéia de nação. No caso do Brasil, nação politicamente
independente, seu ingresso no cenário de rebeliões internacionais não se daria do
mesmo modo das nações africanas. A revolução por aqui tinha um conteúdo mais
econômico, combinado com exigências de natureza social. Acumuladas em um mesmo
período histórico, as fases assinaladas por Arrigh configuram a nação como unidade

cidadãos partilhava os direitos e os espólios do controle político’ (MacIver, 1932, p. 352)” (Arrighi, 1996,

162
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

multidimensional de demandas, de exigências a reclamarem a presença do Estado, bem


como sua mudança. Como diz Guerreiro, a natureza do Estado, a direção imprimida às
suas atividades já não podiam mais ser determinadas por interesses dos proprietários
rurais e exportadores, mas pelos das classes emergentes, as quais entende como
solidárias em um mesmo projeto histórico.
Importa assinalar que, no período em que as ciências sociais estão sendo
elaboradas no Brasil, especialmente nos anos 1950, todas essas “realidades” sociais,
culturais, econômicas e políticas estão informando aquele projeto. Acredito que o fato
de uma parcela dessa intelectualidade ter se desenvolvido em um ambiente como o
paulistano, onde as contradições sociais decorrentes da industrialização se mostravam
mais agudas, favoreceu um olhar mais propenso a selecionar, na época, o conflito entre
as “massas não proprietárias” e os proprietários, o que inclinou esses intelectuais a uma
visão mais “universalista” de enquadramento dos conflitos, identificando-os como a
fase mais avançada do processo histórico.
Além disso, uma visão bastante crítica do passado brasileiro, como
obscurantista, patrimonialista e escravocrata, informava esses intelectuais paulistas o
que seria uma visão crítica do presente. Esse presente, em uma análise linear calcada na
idéia de atraso e moderno, se mostrava, nos anos 1950, híbrido. Do universo das classes
populares ao das elites dominantes dos vários setores – agrocomercial, financeiro e
industrial –, passado e moderno se misturavam de forma confusa e passível de enganar
mentes menos perspicazes ou de má-fé. Os intelectuais de São Paulo, de que nos fala
Florestan Fernandes nas suas memórias daquele tempo de fundação, se viam isolados do
passado e do presente, tendo à sua frente não apenas a tarefa de recriar o ambiente culto
da universidade, mas também a sociedade. Daí que o adjetivo nacional, na medida em
que nele está implicado uma recuperação, de algum modo afirmativa, do passado e uma
visão unitarista da coletividade, será rejeitado.
Um outro ponto que explica as duas direções é o fato de as ciências sociais
emergirem em um contexto de ditadura: o Estado Novo. Para uns, os nacionalistas, o
Estado novo era ele mesmo símbolo de novos tempos; para outros, a continuidade
obscurantista da nossa formação, que, como diz Fernandes em suas memórias, não
permitia reconhecer qualquer outra forma de atividade política além daquela que se

pp. 63-4).

163
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

desenvolvia na sua órbita. Daí permanecer o recrutamento político restrito ao ambiente


das elites tradicionais o que reforçava ainda mais, na atitude política daqueles
intelectuais, a idéia da universidade e do pensamento como as cidadelas em que o ideal
democrático podia florescer.
Considero importante destacar a idéia de desenraizamento, cara a esses
intelectuais. É uma idéia que norteia a historiografia das ciências sociais e que enaltece
a experiência paulista. Sérgio Miceli, em uma análise dos condicionamentos
socioculturais a reger as ciências sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo, confirma um
desenraizamento que, para mim, se radica em uma concepção negativa do passado
político-social brasileiro. Eis como ele descreve os intelectuais em São Paulo e no Rio
de Janeiro, respectivamente:

“Em São Paulo, a hierarquia acadêmica que vai se constituindo


nas duas primeiras décadas de funcionamento foi sendo
modelada por docentes estrangeiros treinados nas regras e
costumes da competição acadêmica européia (e francesa em
particular), todos eles empenhados em instaurar um elenco de
procedimentos, exigências e critérios acadêmicos de avaliação,
titulação e promoção. O acesso às posições de comando e
liderança esteve invariavelmente condicionado à produção e
defesa de doutoramento, ao concurso para a livre-docência e à
conquista da cátedra...” (Miceli, 1989, p. 81)

“No Rio de Janeiro, nos dois empreendimentos universitários


citados verifica-se uma corrida política em torno das posições
disponíveis, logo convertidas em alvos de clientelismo, e
rapidamente preenchida pelos docentes estrangeiros ‘acima de
qualquer suspeita’ doutrinária, por jovens provincianos recém-
chegados no Rio na cola de algum protetor ou mandachuva
político e por docentes transferidos de cátedra de ensino
jurídico, alguns desses tendo dado provas de serem intelectuais
de primeira linha (Vítor Nunes Leal, por exemplo).” (Miceli,
1989, p. 82)

O que considero interessante na comparação dos dois modelos – o carioca e o


paulista – é o elogio dos estrangeiros em São Paulo, cuja autonomia maior desfrutada
naquele ambiente ter-lhes-ia permitido introduzir padrões mais civilizados de
recrutamento de competências. Além dos docentes, Miceli enfatiza ainda o fato de a

164
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

clientela universitária paulista ser composta de descendentes de imigrantes e


“desenraizados”.
Outro ponto interessante é que a crítica que o autor faz às instituições políticas e
sociais brasileiras só lhe parece possível graças ao que seria um padrão mais civilizado e
democrático de convivência coletiva introduzido pelos estrangeiros em São Paulo. Em
decorrência dessa perspectiva, Miceli faz uma avaliação negativa das instituições
localizadas no Rio de Janeiro e de todo o saber produzido nessa cidade, o qual, segundo
essa visão, não teria sido capaz de formular uma reflexão sobre as instituições políticas
e sociais brasileiras menos comprometida com os interesses pessoais. Daí esse saber não
merecer crédito, posto que não científico.
No entanto, Miceli desconsidera o fato de que pensadores como Bernardo de
Vasconcelos, Visconde do Uruguai, Alberto Torres, Oliveira Vianna, entre outros,
vinham desde há muito tempo desenvolvendo uma reflexão sociológica que procurava
investigar o modo como as instituições políticas no Brasil vinham contribuindo para
uma cultura política personalista a permear todas as instituições sociais. O que o
pensamento desses autores nos diz é que um pensamento crítico às instituições
nacionais é concomitante à construção da ordem republicana no Brasil, portanto, trata-
se de um pensamento nacional e anterior à produção de conhecimento em que este se
profissionaliza na universidade. Miceli toma o conhecimento produzido em São Paulo
como um marco inaugural da preocupação com o que seria a construção de uma
sociedade moderna, republicana e democrática. Se, em vez de se referenciar por esse
marco institucional – a institucionalização das ciências sociais no Brasil –, Miceli
tivesse situado essa mesma institucionalização em um contexto mais amplo da história
política e social brasileira, possivelmente ele teria sido mais generoso tanto com o
pensamento anterior quanto com o produzido fora das universidades, pois poderia tê-los
compreendido como congênitos à construção da sociedade brasileira, republicana e
democrática, o que significa também dizer a construção do Estado-nação.
É dando continuidade ao pensamento nacional produzido pelos autores
desqualificados pela análise de Miceli que Guerreiro Ramos enraíza sua sociologia, seu
pensamento e a si mesmo. Por meio desses autores é que uma continuidade histórica vai
sendo apreendida em termos de uma dialética nacional envolvendo o pensamento crítico
interno e o que, em cada fase da nossa história, foi o status quo. De fato, como dizem os

165
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

críticos, a premissa da qual os nacionalistas partem é a nação, supondo-a existente e


talvez mais importante, vendo-se a si próprios como nacionais.

6.2. Segunda digressão: Estado, sociedade e democracia no pensamento político


brasileiro após a década de 1970

Outro argumento desta tese foi de que a crítica dos anos 1970 configura um
cenário histórico e social de críticas ao Estado militar. Assim, se, por um lado, houve
uma crítica epistemológica, que dá continuidade ao debate que regeu a
institucionalização das ciências sociais, por outro, a ida ao ISEB faria parte de uma
crítica política específica, que teria na tematização do Estado autoritário, ao mesmo
tempo, uma retomada do espírito mannheimiano das ciências sociais em 1950 e o
impulso para uma historiografia do pensamento social e político brasileiro.
Creio não ser equivocado afirmar que a antinomia Estado e sociedade, presente
na crítica ao ISEB, estrutura também um dos modos como se escreveu a história do
pensamento social e político no Brasil. No contexto do regime militar, a clivagem
autoritarismo versus democracia, para mim, se constitui em um desdobramento e
reforço da dicotomia sociedade versus Estado, com as quais será possível uma
historiografia do chamado pensamento autoritário em contraposição àqueles que
divisaram a possibilidade da democracia.
Do período militar considero exemplar o artigo de Bolívar Lamounier e
Fernando Henrique Cardoso (1978b). Ao situarem a análise no período da década de
1940, dois estudos são destacados pelos autores, um como democrático e outro como
autoritário. Trata-se de Coronelismo, Enxada e Voto, de Vítor Nunes Leal, e Instituições
Políticas Brasileiras, de Oliveira Vianna. O primeiro, ao focalizar o estudo na dinâmica
eleitoral do período republicano, “teria ido à raiz da questão da possibilidade da
democracia no contexto sócio-político da época” (Lamounier; Cardoso, 1978b, p. 44).
Ao tomar os partidos políticos como universo político de sua análise, Vítor Nunes
estaria mais bem situado em vista mesmo da natureza do objeto – os partidos. Além
disso, seu estudo, ao detectar a impossibilidade do sistema representativo, teria
denunciado a funcionalidade daquelas agremiações para a expansão do Estado na vida
pública. Por outro lado, Oliveira Vianna já teria falhado ao tomar como premissa “o

166
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

condicionamento histórico-cultural das instituições políticas brasileiras...”. Assim, os


autores citados concluem que, “por tara de origem, já que não somos citzens ingleses e
por razões sócio-culturais, pois jamais cultivamos a responsabilidade da ação conjunta
que as comunidades de aldeia poderiam ter gerado, considera Oliveira Vianna que as
instituições políticas brasileiras perpetuaram a forma cultural de uma relação entre o
povo-massa-inorganizado e amebóide – e uma direção autoritária” (Lamounier;
Cardoso, 1978b, p. 5). A sociologia de Oliveira Vianna seria mais uma ficção
justificadora do Estado autoritário.
É nessa mesma linha de argumentação que as críticas ao ISEB serão formuladas.
A crítica ao conteúdo autoritário do pensamento elaborado naquele instituto é deduzida
da relação entre pensamento e Estado. Maria Sylvia Carvalho Franco, ao sugerir uma
filiação entre o pensamento do ISEB e o Estado, descreve o intelectual como
“encarnação do demiurgo”, como “a consciência da realidade, dispondo de uma
atividade racional que organiza a história, dá corpo à nação, funda o poder” (Franco,
1978, p. 158). Para Carlos Guilherme Mota (1977), a ideologia nacionalista isebiana
teria rompido com os elementos críticos do nacionalismo da geração de 1940. Segundo
ele, em obras de autores como Mário Neme, Paulo Emílio Sales Gomes e Edgar da
Mata-Machado, a idéia de nação, indicativa do surgimento do “povo”, se estruturava
como crítica ao Estado Novo.
Além da crítica epistemológica e da que se volta para a relação entre pensamento
e Estado, sugiro que a crítica dos anos 1970 ao ISEB pode ser compreendida, também,
no contexto de um debate sobre a história política brasileira centrado na antinomia
estado versus sociedade. Segundo Fábio Wanderley Reis (1974), esse debate teria sido
reaberto por Simon Schwartzman em dois trabalhos – um de 1970 e o outro de 1973 58 –
, nos quais Nestor Duarte e Raymundo Faoro constituem ilustrações daquela antinomia.
Enquanto Nestor Duarte “salienta o poder da aristocracia rural e a autonomia dos
núcleos privados...”, Faoro, por sua vez, “vê no aparato estatal brasileiro a fortaleza de
um ‘estamento burocrático’ permanente, apontando sua independência com respeito à
estrutura social subjacente” (Reis, 1974, p. 48). Conforme salienta Reis, ao posicionar-
se ao lado de Faoro, Schwartzman acabou “reformulando o problema em termos de

58
Os dois trabalhos de Simon Schwartzman são o artigo “Representação e Cooptação Política no Brasil”,
Dados, 7 (1970), e Regional Cleavages and Political Patrimonialism in Brasil, Tese de Doutorado
(1973).

167
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

‘representação’ (em que o aparato do estado se mostra como expressão de forças sociais
autônomas) versus ‘cooptação’ (em que o estado prevalece sobre as forças sociais),
procura ele interpretar toda a evolução brasileira até os dias atuais em termos de
predomínio continuado de tendências ‘cooptativas’ (...)” (Reis, 1974, p. 48).
Penso que contribuiu para esse debate, em que estado e sociedade se
antagonizam, uma compreensão da década de 1970 como aquela em que se teria
testemunhado o afloramento de condições institucionais e sociais do funcionamento da
ordem democrática. Bolívar Lamounier (1993), ao designar três grandes fases em que a
história do Brasil se desenvolveu no último século, aponta o período pós-1964 como a
fase “centrada na questão democrática”. A democracia entendida como sistema político,
e não apenas como sistema de idéias, se efetivaria com a “progressiva diferenciação e
autonomização de um subsistema representativo, isto é, de um conjunto de
procedimentos eleitorais, parlamentares e partidários que regulam a investidura de
pessoas privadas em posições de autoridade pública” (Lamounier, 1993, p. 98).
Podemos dizer que os aspectos institucionais ressaltados por Lamounier,
configurando a democracia como sistema político, compõem e organizam um cenário
em que forças sociais, vistas antes como politicamente inexpressivas, irrompem como
atores políticos. Ruth Cardoso (1984) destaca como os movimentos sociais urbanos
impunham uma revisão da forma clássica marxista de explicação dos processos de
transformação social do mundo capitalista. A contradição fundamental classe dominante
versus classe dominada cederia lugar a uma outra forma de manifestação de conflito
anunciada pelos movimentos sociais urbanos em relação ao Estado. Esses movimentos
seriam indicadores da organização de uma sociedade civil, levando a uma reflexão
acerca da possibilidade de uma ordem democrática efetiva.
Maria Hermínia Tavares de Almeida (1992) chama atenção para o caráter de
“marco no debate político da esquerda brasileira” no ensaio de Carlos Nélson Coutinho:
A Democracia como Valor Universal. O significado de divisor de águas na concepção
política da esquerda se dava em função da perspectiva negativa com que a democracia
era até então tratada. A democracia era vista como “instrumento político, um meio de
ascensão ao poder, nem sempre o mais acessível às forças populares e, seguramente, o
menos adequado à realização de seus supostos interesses históricos” (Almeida, 1992,
pp. 42-3). Citando Lechenner, a autora observa que essa visão positiva da democracia

168
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

apontava “uma nova sensibilidade intelectual e política”, com a qual “a democracia


aparecia como ordem possível e desejável” (Almeida, 1992, pp. 42-3).
A autora destaca ainda a recepção de Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro,
naquela década. Publicado em 1958 pela primeira vez, e passando despercebido, o livro
foi “descoberto, celebrado e reeditado uma década e meia depois” (Almeida, 1992, p.
45). A recepção desse livro pode ser expressiva do modo como, a partir da década de
1970, o debate sobre a democracia vai se processar. Poderíamos dizer que o livro de
Faoro vai ao encontro de uma postura intelectual antiestatal, que via no Estado a origem
dos males brasileiros, e ainda animada pelo que seria o despertar da sociedade civil.
Segundo Maria Hermínia, “a democracia veio junto com a revisão crítica das
formulações sobre a natureza e as funções do Estado no processo de desenvolvimento”
(Almeida, 1992, p. 44). São ainda destacados pela autora: um artigo de Fernando
Henrique Cardoso, “A Questão do Estado no Brasil”; o livro de Florestan Fernandes, A
Revolução Burguesa no Brasil; e um artigo de Francisco Weffort, “Por que
Democracia”.
Acredito que o fato de a crítica ao ISEB se desenrolar nesse cenário, em que a
democracia e a idéia de sociedade civil se constituem na referência básica de uma
historiografia baseada na antinomia Estado versus sociedade, faz com que ela projete,
nos anos 1950, o ambiente político e social dos anos 1970. Com isso, a crítica dá um
salto sobre o que talvez tenha sido o momento histórico em que justamente as condições
institucionais para que a democracia se consolidasse fossem, ao mesmo tempo, objeto
de estudo e alvo de uma ação mais interventora na realidade por parte da intelligentzia e
do Estado.
Nos anos 1970, sob o fechamento do regime, a liberdade política talvez fosse um
valor mais desejado e urgente, uma vez que seria essa a condição para que as
reivindicações dos movimentos sociais pudessem se orientar para a realização da
igualdade social e política. Creio que, pela primazia que a liberdade política assume
nesse contexto, os críticos do ISEB se voltem para os anos 1950 e avaliem de forma
negativa a posição daquele Instituto em relação ao Estado. É possível pensar que essa
perspectiva se associe com a tendência apontada por Reis (1974), na sua crítica ao
debate centrado na antinomia Estado versus sociedade, em que a política brasileira
aparece como sempre autoritária. Nas palavras do autor:

169
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

“O aspecto principal de nossa objeção, contudo, dirige-se a certo


ingrediente das abordagens usualmente adotadas no debate sobre
estado versus sociedade que leva os autores a procurarem por
algo como uma essência da sociedade e da política brasileiras
que se teria estabelecido em suas origens e se teria mostrado
capaz de sobreviver de maneira antes misteriosa. Desde que
dificilmente se poderiam negar as profundas transformações
experimentadas pela sociedade brasileira tanto ao nível
estrutural quanto ao nível de sua fachada institucional, tal
essência tem que ser buscada numa fluida e evasiva ‘cultura
política brasileira’ ou numa espécie de ‘caráter nacional
brasileiro’.” (Reis, 1974, p. 52)

Nesse contexto do debate centrado na antinomia Estado versus sociedade, o


nacionalismo do ISEB é atacado pela crítica por seu caráter integracionista, ou seja, por
sua posição que não descartava o Estado na promoção de uma sociedade mais integrada.
De alguma forma, essa perspectiva isebiana ofusca a dimensão mais conflituosa do
processo social e, com isso, não dá realce a um tipo de demanda que valoriza mais a
liberdade do que a igualdade. Porém, quando lemos Guerreiro Ramos, percebemos que
o que mais faltava na década de 1950 era uma integração social e política que pudesse
dar como garantida a idéia de igualdade. Penso que o nacionalismo tinha em vista
exatamente acionar esse sentimento; por isso, em vez de um apelo que conclamasse a
uma atitude política antiestatal, pelo contrário, o nacionalismo via no Estado tanto o
instrumento como um elemento simbólico da igualdade, o que significaria,
primeiramente, sentimento de pertença a uma comunidade nacional.
Voltando aos autores do século XIX, podemos observar em que condições a
igualdade era tida como garantida, ensejando uma reflexão que vai valorizar a dimensão
da liberdade e da diferença.

Igualdade e liberdade: dois momentos da democracia

Encontramos em Stuart Mill e Alexis de Tocqueville as origens da concepção de


democracia que remete a arranjos políticos que lhe garantam a existência, como aquela
que Bolívar Lamounier identifica nos anos 1970. Stuart Mill desenvolve sua análise
defendendo a primazia da liberdade em um contexto histórico de crescente igualização

170
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

social e política. Preocupado com uma experiência histórica em que maiorias afluem ao
cenário político, Mill associa o tema da liberdade política à defesa da diversidade de
opinião e de escolhas individuais existentes no mundo social. O predomínio do
princípio da liberdade sobre o da igualdade, nesse autor, pode ser explicado tanto pela
possibilidade da tirania da maioria como pela precaução liberal em relação ao arbítrio
do Estado na vida dos homens. Observa-se que, nessa concepção, a igualdade não se
apresenta como um valor e finalidade em si, mas a asseguração dos meios que tornem o
exercício da liberdade possível. Se seguirmos a aproximação entre o pensamento de
Mill e de Tocqueville no que diz respeito à constatação da democracia como um fato no
mundo moderno, e se entendermos que, assim como o conceito de liberdade, o de
igualdade é indissociável da democracia, poderemos concluir que, se a igualdade não é
um fim para esses autores, é porque para eles ela já está dada. Em A Democracia da
América há uma passagem que elucida bem essa compreensão em Tocqueville. Ele
escreve:

“Na maior parte das nações modernas, e em particular em todos


os povos do continente europeu, o gosto e a idéia de liberdade só
começaram a nascer e a se desenvolver no momento em que as
condições começaram a igualar-se e em conseqüência dessa
mesma igualdade.” (Tocqueville, 1987, p. 385)

Considero que é do ponto de vista em que a salvaguarda da liberdade é vista


como dependente da garantias institucionais, é que a democracia pode ser descrita como
“um conjunto de procedimentos eleitorais, parlamentares...”, como descreve Bolívar
Lamounier.
No entanto, a história da democracia na sociedade moderna não foi escrita
apenas por quem e para quem a igualdade já era um dado. É o caso do movimento de
idéias que leva à Revolução Francesa, do qual costumamos nos esquecer do lema
“fraternidade”, que replica uma ordem social fundada nas crenças das desigualdades
naturais. É o caso do nacionalismo alemão, que, de suas raízes no romantismo ao
nacionalismo econômico de Lizt, é impulsionado pela percepção da desigualdade
política e econômica entre nações. Nesses casos em que a desigualdade era o inimigo a
ser combatido, um apelo com base na igualdade, seja dirigido a um setor majoritário da
sociedade, seja à nação inteira, foi realizado como condição da ordem democrática.

171
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

Rousseau é um caso exemplar de um pensamento democrático em que o estatuto da


igualdade tem precedência sobre o da liberdade. Ao partir do pressuposto de que a
condição primeira dos homens, a liberdade, fora perdida com a civilização, a conquista
da igualdade era condição necessária à restituição da liberdade. Em tais situações e
pensamento, conceitos como o de soberania popular, vontade geral, nação, povo
traduziram ideais de realização dessa condição básica que permitiria aos homens se
identificarem como iguais sob o manto dessas identidades genéricas. Ao relacionar
Revolução Francesa e nacionalismo, Montserrat Guibernau observa que “conceitos de
igualdade e solidariedade e, sobretudo, de soberania popular desempenharam um papel
fundamental no caminho para o nacionalismo” (Guibernau, 1997, p. 54).
Estamos diante de duas concepções de democracia que, sem negar uma das suas
duas dimensões – igualdade e liberdade –, se configuram distintas em virtude do
predomínio que uma terá sobre a outra. A liberdade predomina quando a igualdade
parece estabelecida; a igualdade, quando esta se afigura como ideal a ser realizado. O
primeiro caso nos expõe a uma concepção de democracia em que esta aparece como
uma engenharia política, estabelecendo métodos e fórmulas que garantam seu
funcionamento. O segundo remete a uma espécie de primeiro momento da experiência
democrática moderna.
Como vimos, a literatura recente sobre o nacionalismo tem focalizado
exatamente a relação entre a idéia de igualdade e sentimentos nacionais na origem dos
Estados nacionais desde a primeira metade do século XIX. A análise de Norbert Elias
(1997) sobre a “sociogênese” da formação do Estado nacional na Alemanha é exemplar
dessa coincidência. No momento em que um estrato social, a classe média, formada no
interior de uma sociedade política fundada na desigualdade, se constitui em classe
dominante, no apelo que dirige ao público interno com vista a uma nova estrutura de
poder, aciona sentimentos de igualdade por meio de símbolos verbais veiculadores de
“um nós imagem” e um “nós ideal”. É somente com crença na igualdade que se pode
definir o ethos nacionalista, tal como o faz Elias na seguinte passagem:

“Um ethos nacionalista subentende um sentido de solidariedade


e obrigação, não apenas em relação a determinadas pessoas ou a
uma única pessoa em posição de mando, mas também em
relação a uma coletividade soberana que o próprio indivíduo
forma com milhares ou milhões de outros indivíduos,

172
Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

coletividade esta que está, hic et nunc, organizada num Estado –


ou que, de acordo com as crenças das pessoas envolvidas, assim
virá a estar no futuro – e o apego pelo qual é mediado, através
de símbolos especiais, alguns dos quais podem ser pessoas.
Esses símbolos e a coletividade que eles representam atraem
para si fortes emoções positivas do tipo usualmente chamado
‘amor’... O amor de um indivíduo pela sua nação nunca é apenas
amor por pessoas ou grupos de pessoas a que se refere como
‘eles’; também é o amor de uma coletividade a que o indivíduo
se refere como ‘nós’. Seja o que mais possa ser, é também uma
forma de amor-próprio.” (Elias, 1997, p. 143)

A conclusão a que chego sobre o nacionalismo dos anos 1950, para além do fato
de ter sido formulado como ideologia do desenvolvimentismo pelo ISEB, é que ele
traduziu, no Brasil, a formação de um ethos tal como Elias o descreve, ou seja, a
formação de um sentimento de solidariedade e obrigação para com a coletividade
inteira. As ciências sociais, na forma como elas são concebidas seja por Florestan
Fernandes, seja por Guerreiro, são uma expressão desse sentimento de amor e
comprometimento com a construção da nação. Especialmente em relação a Guerreiro
Ramos, talvez, o modo como ele insiste na crítica às várias elites, em particular, às
intelectuais, seja resultado da sua compreensão macro da sociedade brasileira, cujo
principal problema seria um estranhamento dessas elites em relação à história e às
paisagens social e geográfica que constituem o que ele entende ser a nação. Essa
compreensão confere um caráter particular ao que Guerreiro Ramos entende ser uma
sociologia comprometida e engajada.

173
Conclusão

A análise desenvolvida nesta tese estruturou-se como um diálogo com a crítica


ao ISEB. Destaquei três fatores, que, à luz de estudos mais recentes, seja sobre o
nacionalismo, seja sobre a formação dos Estados nacionais, teriam sido negligenciados
pelas críticas. Esses fatores são: o papel do Estado na promoção de sociedades nacionais
integradas, a partir de sua aproximação com o público interno; a constituição da ordem
urbano-industrial, que teria tornado a teoria social clássica mais sensível aos aspectos
supostamente mais racionais relacionados à esfera econômica e, com isso, desprezado
aqueles de caráter mais afetivos e simbólicos, que dão suporte ao nacionalismo; e, por
último, a elaboração das narrativas nacionais no contexto de formação dos Estados
nacionais.
Dos três fatores, detive-me mais atentamente no segundo, por entender que é a
partir dos parâmetros fornecidos pela sociedade industrial que a crítica é norteada por
uma perspectiva mais econômica do nacionalismo. Essa perspectiva econômica dá
suporte tanto à crítica ideológica quanto à epistemológica. A crítica ideológica dirige-se
ao ISEB como aparelho ideológico do Estado, entendido este como Estado burguês,
conforme a compreensão marxista. A crítica epistemológica dirige-se ao que seria uma
incorreção científica, posto que, ao erigir a nação como categoria central no estudo da
sociedade brasileira, os intelectuais do ISEB teriam desprezado o conceito de sociedade
industrial ou de classes.
Do diálogo com a crítica, procurei identificar esses três fatores e a articulação
entre eles nos escritos de Guerreiro Ramos. A conclusão a que chego é que a atuação
desse isebiano como funcionário do Estado, no DNC e no DASP, lhe abriu uma
perspectiva de estudo da sociedade brasileira distinta daquela que estaria informando a
ciência social acadêmica.
No DNC, Guerreiro pôde aproximar-se de forma teórica e prática de problemas
relacionados à desigualdade social. Com as reflexões sobre mortalidade infantil e

174
Conclusão

delinqüência juvenil, o isebiano alcança uma compreensão socioeconômica desses


fenômenos, inicialmente enquadrados de um ponto de vista cultural. O trabalho naquela
agência também torna-o sensível ao papel do Estado na solução daqueles problemas,
papel esse que assume a forma de uma maior penetração do aparelho estatal na vida
social, por meio de técnicos, médicos, sanitaristas e formulação de políticas públicas. A
importância que o Estado assume como agente de democratização social para o autor é
evidenciada na sua reflexão sobre a planificação.
Com os estudos sobre mortalidade infantil e delinqüência juvenil, Guerreiro
pôde ainda enquadrar essas questões em termos de diferenças regionais. Ele observa que
a mortalidade infantil, em determinadas regiões, estaria diretamente relacionada a
hábitos e crenças populares, sendo estes justificadores dos óbitos. Esses hábitos e
crenças, por sua vez, estariam relacionados ao isolamento das regiões.
Uma compreensão econômica tanto das patologias sociais quanto do universo
cultural que as envolve é alcançada por meio de estudos sobre o orçamento familiar. A
partir desses estudos, Guerreiro abre uma via de análise que lhe permite relacionar
subculturas regionais e pobreza e situá-las em um contexto econômico mais amplo. A
visão desse contexto lhe é fornecida pelas análises do tamanho e distribuição do PIB.
Quanto ao tamanho, ele é pequeno para as dimensões territoriais e demográficas do
país; quanto à distribuição, ele é desigual, concentrado nas regiões Sul e Sudeste.
A idéia de Estado planificador, a diversidade regional e a natureza econômica
dos problemas sociais são, a meu ver, os três ingredientes que vão orientar a sociologia
de Guerreiro a partir dos anos 1950. Dos três, o segundo constituirá a premissa empírica
a partir da qual ele formula a sua teoria histórica e nacional da sociedade brasileira. Esta
será articulada com uma preocupação pragmática que apela à economia política.
O público-alvo do discurso militante deveria restringir-se, segundo minha
compreensão, aos economistas, partidos e governo. Contudo, observamos que Guerreiro
dirige-se a um público mais amplo, incluindo nele, principalmente, os cientistas sociais.
A razão disso, sugiro, decorre de um desdobramento de sua reflexão sobre as
desigualdades regionais. Assim como haveria um distanciamento cultural e econômico
entre as regiões, haveria também um distanciamento entre o pensamento social
brasileiro e o “povo”. O povo, nesse caso, corresponderia à multidão dispersa pelo
território, nas diversas regiões.

175
Conclusão

Esse distanciamento é percebido pelo autor por meio de suas leituras das teorias
e interpretações do Brasil, as quais ele (des)qualifica como alienados. Além disso, as
análises econômicas sobre o subdesenvolvimento da época corroboravam a tese da
alienação das elites, intelectuais ou não, ao apontar o padrão de consumo, consumo esse
suntuário, imitado dos países desenvolvidos pelas elites brasileiras.
Constatada a prática da imitação tanto cultural quanto material, Guerreiro retoma
a perspectiva cultural na sua análise sobre o comportamento das elites em relação à
nação. Uma compreensão materialista e histórica é proporcionada pela tese da dualidade
básica de Ignácio Rangel. Porém, a explicação histórico-materialista da dualidade não
elimina o problema cultural das elites. Daí que um discurso de caráter mais emocional e
afetivo é elaborado e endereçado às elites intelectuais, com vistas à sua conversão à
nação. Mas o discurso de conteúdo emocional não pode prescindir da racionalidade
conferida pela ciência e pela história. Guerreiro então formula uma teoria baseada na
idéia de nação. Com esse conceito, ele vai para o embate intelectual em fins dos anos
1950.
A Redução Sociológica é a obra mais expressiva da sociologia nacionalista de
Guerreiro Ramos. Nessa obra, a nação é apresentada como referência empírica,
espacial, cultural e histórica do pensamento “autêntico”, o que quer dizer nacional. Se
com a sociologia do conhecimento, nessa obra, Guerreiro procura legitimar suas
formulações perante a comunidade acadêmica, é na fenomenologia e na filosofia da
existência que ele encontra os suportes teóricos para a elaboração de uma concepção
dinâmica da nação.
Como vimos, de Hurssel e de Heidegger, Guerreiro traz as idéias de consciência
intencional e de mundo, para o qual a consciência se dirige e adquire seus conteúdos. A
idéia de mundo corresponde, na leitura de Guerreiro, à realidade imediata a partir da
qual a consciência se desenvolve. É dessas duas idéias que ele elabora tanto uma
compreensão da nação quanto da consciência nacional. Como escrevi no Capítulo 5, a
nação entendida, primeiramente, como espaço nos limites do território é o conceito com
o qual Guerreiro poderá apreender a sociedade brasileira como uma totalidade histórica
e social. A nação se lhe configura como categoria abrangente da diacronia e da
sincronia brasileiras.

176
Conclusão

Com a diacronia, ele chama a atenção dos intelectuais para o que seria uma
história comum e particular, história essa que vincula gerações e contemporâneos. Com
sincronia, ele procura chamar atenção para as diferenças regionais e suas conseqüências
negativas que impediriam a constituição de um “verdadeiro povo”. É em um cenário
entendido como multifacetado que a idéia de nação pode ser também entendida como
recurso simbólico e cêntrico em relação às gerações passadas e vindouras e em relação
aos contemporâneos separados pelas classes sociais e pelas regiões.
Se, como observa Fábio Wanderley Reis (1974), o desenvolvimento político de
uma nação supõe uma etapa em que a institucionalização da autoridade tem de se
afirmar contra “focos particulares de solidariedade”, com Guerreiro Ramos, podemos
dizer que o nacionalismo, ao erigir a nação como centro de uma solidariedade comum,
encontra nessa idéia – a nação – o correspondente simbólico da autoridade legítima
representada pelo Estado moderno. Dessa forma, a nação tem como função fazer
convergir para ela os sentimentos dispersos nos “focos particulares de solidariedade”.
Concluo que a compreensão de Guerreiro da sociedade brasileira como nação
adveio-lhe da experiência no DNC, quando confrontado com a diversidade regional. A
nação se lhe configura como conceito suficientemente abrangente das diferenças
regionais, entendidas todas elas como nacionais e, portanto, objeto de uma política
nacional. A política nacional é algo a ser promovido pelo Estado. Por meio de uma
política nacional, o Estado assumiria, também, a função de aparelho integrador do corpo
nacional. Parece-me ser essa uma compreensão que Guerreiro tem do Estado, a de ente
integrador da nação, em vista das suas ações na direção da sociedade, ações essas que
tenderiam a desorganizar subculturas, modos de vida, crenças e hábitos tradicionais,
reorganizando-os em uma espécie de superfície plana, homogênea, a qual chamamos
modernamente de sociedade.
A eficácia do Estado, por sua vez, na sua ação integradora, adviria da
sensibilidade de técnicos e governantes à natureza econômica dos problemas sociais, os
quais também se constituiriam em obstáculos à maior penetração do Estado na
sociedade. Acredito que a secularização da sociedade por meio de hospitais e escolas,
por exemplo, é um fator importante para a dissolução de formas tradicionais de lealdade
política. Por isso, as iniciativas do Estado, como a do DNC, podem ser compreendidas

177
Conclusão

como parte de uma estratégia mais ampla de legitimação da autoridade central


representada pelo Estado.
Como sugerido por Guerreiro, tais iniciativas poderiam ser fracassadas, na
medida em que o orçamento não comportaria aquelas despesas de integração. É nesse
sentido que a industrialização produziria efeitos positivos, podemos dizer tanto em
termos de tributos quanto em termos sociológicos, conforme aqueles apontados pelo
autor. Esses efeitos são a urbanização e a alteração do consumo popular, dos quais
decorreriam os efeitos políticos positivos para a consolidação da democracia, isto é, um
eleitorado mais livre das formas políticas tradicionais, clânicas e oligárquicas.
Nesta tese, ao partir do princípio de que os críticos do ISEB analisaram o
nacionalismo em uma perspectiva exclusivamente econômica, eu tinha em vista
explorar outros elementos que pudessem dar conta do fenômeno como inscrito em um
cenário social e político mais amplo. Ao fim deste trabalho, parece-me certo que esse
cenário era aquele em que se estaria assistindo a uma etapa do processo de consolidação
do estado nacional brasileiro. Entendo que essa etapa significava uma convergência
entre Estado e substrato social e cultural da nação. Dessa forma, o significado político
do nacionalismo, como teoria da sociedade brasileira e como ideologia, advém do fato
de ter procurado soldar o tecido social em torno de um símbolo: a nação. Com isso, o
nacionalismo procuraria promover uma sociedade ao menos, simbolicamente, mais
homogênea, como condição para que a democracia pudesse vigorar sem as ameaças de
golpe que, desde o pós-Estado Novo, vinham-na cercando, o que de fato aconteceu.
Em escrito mais recente, Caio Navarro de Toledo (2005) sugere uma
compreensão renovada do significado político do nacionalismo isebiano, compreensão
que corrobora as conclusões desta tese no que diz respeito à relação entre nacionalismo
e democracia. Segundo o autor, nas três fases em que a experiência do ISEB ocorreu, o
Instituto

“sempre esteve comprometido com a defesa das causas sociais,


progressista e de natureza democrática. Seu ativo engajamento
na defesa das reformas sociais, da soberania nacional e da
ampliação da democracia política explica, assim, a fúria
obscurantista configurada pelo golpe de 1964: destruição de
arquivos, publicações e biblioteca do ISEB, instauração de
extensos inquéritos político-militares (IPMs) sobre suas

178
Conclusão

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(Toledo, 2005, p. 8)

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