A Teoria Crítica de Kant
A Teoria Crítica de Kant
A Teoria Crítica de Kant
DO CONHECIMENTO
DE KANT
Pontifcia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Chanceler:
Dom Altarniro Rossato
Reitor:
Ir. Norberto Francisco Rauch
Conselho Editorial:
Antoninho Muza Naime
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Diretor da EDZPUCRS:
Antoninho Muza Naime
Januário Lucas Gaffrée
Ex-Lente de Filosofia do Direito
na Faculdade de Direito de Porto Alegre
A TEORIA
DO CONHECIMENTO
DE KANT
(UM ENSAIO)
SEGUNDA EDIÇÃO
Coleção:
PENSADORES GAÚCHOS - 6
Coordenador: Luis Alberto De Boni
-EDIPUCRS
Porto Alegre
2000
1@ edição:
Rio de Janeiro, Typ. Do Jornal do Commercio,
de Rodrigues & Comp., 1909
Capa:
Cristiano Max Pereira
Editoração e composição:
Suliani Editografia Ltda. Fonelfax: (51) 336.1 166
Revisão:
Reinholdo A. Ullmann
Impressão e acabamento:
Gráfica EPECE
ISBN: 85-7430-110-8
CDD 142.3
193
121
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E-mail: edipucrs.pucrs.br
http://ultra.pucrs.br.edipucrs/
Prefácio h Segunda edi* ......................
.... ................
Ao leitor..........................
.............................................
- O problema do conhecimento
e os diversos simmas filosóficos ...................................
11 - O problema t&ioosúgnoscitivo e o dogmatismo.........
111 - As bmes da fiIo5ofia dtica ............. ......................
lv - O espaço e o tempo .........................................................
v - Os conceitos puros do entendimento..............................
VI .A dedução dos conceitos puros do enkdmmto...........
VII
vm .O significadoda coisa em si...........................................
IX .A psicologia racional e os paralogismos da r& pura..
X .A ccwmologia racionaie as antinomias da razb pura ....
XI - A solução das antinomias da razão pura.........................
XII- O problema da liberdade ................................................
xm - A teologia racional e a existêwia de Deus .....................
XTV - A teologia racional c a teologia mora! ..........................
XV .A razão pura W c a e a razão pura prática .................... 155
XVI .As diversas espécies de certeza .......*.....
......,.. . . . 165
XVIT - O lugar da fflosobcrltica
entre os sistemas espadativos .................................... 171
XVIII - Critica e metafisica....................................................... 183
XM .Mecanismo e tdeologia ....................................... 193
A diferença de outros profissionais de áreas empíricas afins em
nosso País, os estudiosos de Filosofia pouco têm-se dedicado à re-
constituição histórica das idéias de seus pensadores. Assim também
relativamente ao pioneiro livro A teoria do conhecimento de Kant
(1909), de Januário Lucas Gaffrée, ex-professor de nossa Faculdade
de Direito, limitar-nos-emos a discutir as suas idéias gerais, avalian-
do desta maneira a sua contribuição ao desenvolvimento da Filosofia
como tal. Este procedimento concorda com sua noção mais eminente
de Filosofia como autoconsciência crítica da humanidade.
O livro já vale pelo conceito de Filosofia que o Autor, mais
inspirado em sua própria época do que em Kant, esboça nas pági-
nas iniciais do prólogo "Ao leitor". Segundo sua concepção, a Filo-
sofia tem em vista, primeiro, pôr e tentar resolver problemas gerais
com o objetivo de alcançar uma síntese do universo, a partir de
pontos de vista gerais das ciências e da cultura e por meio de cinco
problemas principais: o problema lógico ou do conhecimento, o
problema cosmológico, o problema biológico, o problema psicoló-
gico e o problema apreciativo ou ético. A esses problemas ele
acrescenta ainda o estético, o social e o religioso, mas reduzindo os
dois últimos ao problema ético, e o primeiro ao psicológico. O que
concorda, pelo menos no último caso, com o estágio de desenvol-
vimento do pensamento kantiano à época da Crítica da razão
pura,' que àquela época ainda não descobrira, mas o que anunciou
meses depois, princípios a priori para o juízo de gosto (refiro-me à
carta de Kant a Reinhold, de 28 de dezembro de 1787).
Em segundo lugar, a Filosofia consiste, além da autocrítica ao
próprio pensamento, no exame crítico dos pressupostos de um sis-
tema que deva e possa pretender ser válido. Neste último sentido, o
autor justifica a sua investigação da Crítica da razão pura, que ele
apresenta como teoria do conhecimento de Kant.
' B 35, 2. ed. 1787. Tradução de V. Rohden e U. B. Moosburger. São Paulo: Abril
Cultural - (Col. Os Pensadores). 1980, p. 40, Nota.
Segundo ele, apoiado em Leibniz, todas as construções espe-
culativas são em parte verdadeiras, procurando o homem através
delas realizar a sua concepção do cosmos. Para isso o pretendente a
filosofar precisa ter a capacidade de formular idéias gerais e senso
especulativo. A atividade filosófica coexiste com a existência de
problemas, tem a duração deles e encontra neles o aguilhão à ativi-
dade do pensamento. O homem enfrenta continuamente problemas
gerais, como os problemas da sua aptidão a conhecer o mundo, do
limite desses conhecimentos, da origem da vida, da natureza de
nossa vida íntima, dos motivos ou razões de nossas ações. A Filo-
sofia trata os problemas da ciência num nível mais geral, procuran-
do formular com eles uma síntese lógica e racional do universo. A
cada grande época científica correspondeu uma conseqüente cons-
trução filosófica. É neste sentido que a Filosofia é "uma espécie de
exame de consciência que a humanidade fez de si mesma e dos
seus progressos" (p. 21). O valor da Filosofia reside precisamente
em ser "a consciência da humanidade", representando a quintes-
sência da cultura de uma época, as idéias e sentimentos predomi-
nantes nela e indicando uma direção a seguir. Como tal, a Filosofia
exige que o homem se desprenda das contingências materiais de
vida e do quotidiano e busque satisfazer aspirações mais elevadas,
tendo consciência dos deveres, da razão por que agimos e lutamos,
do que somos e do lugar que ocupamos no cosmos. Enquanto rela-
cionada com os problemas da época, a Filosofia é Weltanschauung
- no sentido de Dilthey, seguido pelo Autor -, concepção do uni-
verso, que é experienciada globalmente por qualquer um, em sua
unidade, mas que cabe analisar e criticar metódica e sistematica-
mente.
A Filosofia de Kant não se reduziu a um ou outro desses con-
ceitos, e nem tampouco à Crítica da razão pura, como, antes,
Gaffrée deu a entender, desfigurando-a muitas vezes em virtude
desta limitação de abordagem. Mesmo sob o ônus dessa parcialida-
de, ele realizou um ensaio arguto e apaixonado sobre a primeira
Crítica. O método, que ele propôs e tentou cumprir para essa forma
de fazer filosofia, consistiu em julgar um sistema filosófico com
isenção de ânimo e conhecimento de causa, estudando-o historica-
mente, sem o copiar servilmente, mas tornando compreensíveis e
nítidas suas proposições fundamentais e oferecendo-as à reflexão,
discussão e crítica do leitor.
Desperta admiração essa sua iniciativa, se levarmos em conta
as dificuldades muito adversas que enfrentou em sua época, quando
a Filosofia, desprestigiada pelo positivismo, resumia-se a uma re-
flexão superficial, diletante e malvista: "O estudo da Filosofia é
entre nós, desde que passe de mero diletantismo, completamente
descurado e, acrescentamos, malvisto. O ensino oficial suprimiu-o
dos seus programas; de sorte que ele não é daquelas disciplinas que
nos permitem ganharmos o pão. Aplicar-se a ele é, por conseguinte,
ou de espíritos desocupados ou, pior ainda, indica um lamentável
retrocesso intelectual para os domínios da metafísica decaída e
desprestigiada. O culpado dessa incúria das coisas filosóficas, as
quais, seja dito de passagem, sempre tiveram raros cultores entre
nós, é o espírito sectário do positivismo, que, no berço do nosso
republicanismo oficial, procurou imprimir o seu cunho a todas as
nossas instituições, não lhes escapando, como de direito, o ensino"
(P. 19).
Em face da filosofia de Kant, duas atitudes do positivismo po-
dem ser consideradas: de um lado, pela redução dos fatos íntimos a
sua atuação social, o positivismo desconheceu e renunciou ao estu-
do do sujeito pensante, desconsiderou os limites e faculdades de
nossa razão e apreciou apenas os fatos dados em sua concatenação
objetiva e suas leis. Não que se tratasse de pensar um sujeito abs-
trato do conhecimento, pois sem a realidade efetiva do universo
pensado é impossível conceber o próprio sujeito pensante e suas
experiências objetivas. De outro lado, em sua recusa à metafísica o
positivismo de algum modo coincidiu, se não com o espírito, com a
letra da Crítica da razão pura. Só que Kant, demonstrando a im-
possibilidade da metafísica em seu sentido especulativo e dogmáti-
CO,renovou-a, com base nos resultados de sua primeira Crítica,
como teoria transcendental das condições a priori do conhecimento
e como metafísica da prática. Segundo aquela concepção interpre-
tada por Gaffrée, os princípios fundamentais da Filosofia são ante-
cipações, analogias e postulados, e não axiomas. Eles precisam ser
deduzidos, isto é, necessitam mostrar que eles são condições im-
prescindíveis da experiência (cf. p. 156).
Uma das vantagens atuais do livro de Gaffrée foi sua discussão
da teoria do conhecimento de Kant desde a perspectiva de teorias
dominantes em sua época, dentre as quais destacou o monismo
naturalista de Haeckel, que ele confrontou também com o espino-
zismo, o idealismo e formas vigentes de materialismo. O motivo
dessa sua referência histórica foi mostrar que as teorias filosóficas
modernas de algum modo derivam do criticismo kantiano ou, no
mínimo, têm contas a acertar com ele. Todo sistema posterior a
Kant não pode esquivar-se à crítica da razão e a deixar ver através
dele os seus erros, acertos, princípios e inconseqüências. Sua filo-
sofia fornece um critério regulador para o julgamento de qualquer
doutrina. Curiosamente, todo o trabalho de Gaffrée é realizado sem
nenhuma referência bibliográfica, nenhuma indicação de fontes e
citações do texto kantiano. As várias expressões alemãs que utili-
zou, com boa tradução a seguir, fazem supor sua utilização pelo
menos do texto original da primeira Crítica. Os principais temas
dela, salvo alguma omissão importante como a dos juízos sintéticos
a priori, são especificamente tratados. Isto torna ao mesmo tempo
maltratados alguns desses temas, cingidos à sua abordagem dentro
da primeira Crítica, mas que receberam relevantes contribuições
posteriores, como é o caso do tema prático. Independentemente
porém de todos os erros que possamos detectar em sua "explanação
sucinta" - como ele prefere chamá-la, ao invés de "exposição" -, é
impressionante a tensão especulativa que ele conseguiu imprimir à
sua forma de tratamento da primeira Crítica, da qual aprendemos,
além de aspectos de conteúdo, o exemplo de um empreendimento
cercado pelas adversidades que descreveu.
Possivelmente o livro de Gaffrée teria lucrado se tivesse abor-
dado de maneira mais exaustiva certos temas relevantes da teoria
do conhecimento kantiana, como, por exemplo, os da noção de
transcendental, de experiência, de juízo, de dedução, de consciên-
cia e de objeto. Ao invés disso, ele preferiu um tratamento breve de
todos os assuntos aflorados no âmbito estrito e algumas vezes es-
treito da primeira Crítica. Se com isso logrou uma razoável apre-
sentação da dedução, incorreu numa exposição escolar do esque-
matismo. Em troca entendeu bem o fulcro de certas questões, como
a da ontologia, que confundiu coisa em si e fenômeno, e a do equí-
voco da metafísica nos paralogismos e antinomias, ao incorrer em
silogismos de quatro termos, com o termo médio tomado em acep-
ções diversas na premissa maior e na premissa menor. É o caso, na
antinomia, do conceito de existência condicionada (cf. p. 131) e, na
psicologia racional, da diferença entre sujeito pensante e sujeito
real do juízo (cf. p. 106); neste último caso, o sujeito lógico, que
não é o sujeito real pensando no juízo, é mediante um sofisma
transformado em substância simples ou alma. Trata-se de uma ilu-
são intrínseca à razão, que pretende atribuir existência objetiva ao
próprio noúmenon e que só a crítica kantiana trouxe à luz.
Eu não diria que os principais problemas do texto de Gaffrée
tenham a ver apenas com o uso equívoco de termos, como, por
exemplo, de uma suposta diferença entre os sentidos de "mundo" e
de "cosmos", que ele define de modo diverso e a seguir confunde.
Inicialmente propõe que o termo "mundo" signifique o conjunto
dos fenômenos, e "cosmos" os fenômenos no espaço (cf. p. 113).
Poucas linhas depois ele identifica mundo com o todo incondicio-
nado: "[ ...I a esse todo incondicionado chamaremos mundo". Com
base nisso não poderia falar, poucas linhas após, do "mundo condi-
cionado como objeto da percepção" (p. 114). O mundo no espaço e
no tempo é identificado como grandeza, que a cosmologia procura-
rá transformar em grandeza total do mundo. O cosmos como gran-
deza, porém, observa o Autor, é uma coisa em si fenomenal, um
círculo quadrado, um absurdo. Relativamente às antinomias, as
teses supõem um cosmos limitado (como as antíteses um cosmos
ilimitado): começo no tempo, um espaço finito (cf. p. 129; o senti-
do anterior de cosmos limitado aos fenômenos exteriores é altera-
do). Então cosmos passa a ser declarado síntese dos fenômenos:
"Cosmos como síntese dos fenômenos nunca nos é dado [..I9'; e na
mesma frase passa a usar mundo e cosmos como sinônimos (cf. p.
132). Como solução crítica o mundo termina em idéia regulativa
(p. 134). Ao final, cosmos e fenômeno são identificados: "[ ...I
contanto que não aceitemos a existência de um ente necessário
como fenômeno, isto é, como fazendo parte do cosmos" (p. 141).
Os principais problemas com os quais o leitor se defronta no
texto dizem respeito, de um lado, a uma confusão entre funções da
sensibilidade e do entendimento, de juízos e categorias e, de outro,
a uma compreensão estreita, insuficiente e equivocada da filosofia
prática kantiana. Do ponto de vista da filosofia teórica, o conceito
de experiência é usado apenas no sentido comum factício: "a expe-
riência [...I oferece à sensibilidade uma variada série de percep-
ções" (p. 67), e não no sentido técnico kantiano de um conheci-
mento empírico de objetos que envolve a participação do entendi-
m e n t ~ Grave
.~ apresenta-se a confusão entre funções da sensibili-
dade e do entendimento, ao invés de delimitar a função do enten-
dimento como faculdade de pensar o objeto da intuição sensível, e
a da sensibilidade, de percebê-lo. E Kant nos adverte com insistên-
cia: "Estas duas faculdades ou capacidades não podem trocar as
suas funções. O entendimento nada pode intuir, e os sentidos nada
pensar. O conhecimento só pode surgir da sua reunião. Por isso não
se deve confundir a contribuição de ambos, mas há boas razões
para separar e distinguir cuidadosamente um do outro" (B 75, trad.
cit. p. 57). O desrespeito a essa distinção enfática conduziria a uma
identificação entre estética (ciência das regras da sensibilidade em
geral) e lógica (ciência das regras do entendimento em geral). Pois
é o que faz Gaffrée. Segundo ele, o entendimento é afetado pela
experiência (cf. p. 55). Ora, a afeção é um fenômeno empírico con-
cernente à sensação, pelo qual ela recebe uma matéria a ser elabo-
rada pelo entendimento. A faculdade de obter representações por
afeções é a sensibilidade. Mas Gaffrée acrescenta que coexistência
e sucessão (fenômenos espaço-temporais) são as "únicas condições
mediante as quais o intelecto percebe e elabora as suas percepções"
(p. 61). O intelecto, pois, assume aí as funções da sensibilidade,
além da sua própria. Não se trata de um fenômeno qualquer, mas
do universo, que "afeta a nossa sensibilidade e o nosso entendi-
mento" (p. 63). O Autor sai-se melhor ao dizer que é a razão que
cria as formas originárias de nossas concepções, enquanto a sensi-
bilidade recebe as impressões (cf. p. 65); a sensibilidade do sujeito
pensante apreende". A confusão consolida-se ao afirmar o conceito
como parte (abstrata) da intuição, que contém a inteira soma dos
predicados (cf. p. 56). A determinação correta da percepção, de um
lado, leva por outro à confusão entre conceito (do entendimento) e
idéia (da razão): "A percepção apreende um fenômeno [...I o con-
ceito nos dá a idéia desse fenômeno" (p. 66). Para o Autor "noú-
menon... pode ser pensado, ainda que não concebido" (p. 63). Kant,
porém, distingue entre uma função dos conceitos da razão: conce-
ber (o incondicional), e uma função dos conceitos do entendimento,
compreender (as percepções) (cf. Crp B 367, trad. cit. p. 185). Sur-
preendentemente o Autor, confundindo intuições puras com formas
a priori do entendimento, deriva deles, ao invés de derivar das
14
formas dos juízos, as categorias: "Descobrindo os juízos sintéticos
a priori, demonstrando como as intuições puras, as formas a priori
do entendimento, fazem nascer as categorias [...I" (p. 181). Se as
categorias são deduzidas de intuições puras (cf. p. 191), cai por
terra a concepção do conhecimento como reunião de intuições e
conceitos. Ao invés de fazer derivar os conceitos puros do enten-
dimento dos quatro tipos de formas possíveis de juízos, como Kant
mostra nos parágrafos 9 e 10 da Lógica Transcendental (B 95, trad.
cit. p. 69, e segs.), definindo categoria como predicado de um juízo
possível (Crp, B 94, trad. cit. p. 68-69), o nosso Autor simples-
mente identifica categorias e juízos sintéticos a priori, ou seja a
parte com o todo (cf. Gaffrée p. 249: "A substância kantiana [...I é
um puro conceito do entendimento, é um juízo sintético a priori").
Antes disso ele já confundira categorias com as puras formas do
juízo. De fato, os títulos das quatro divisões são os mesmos, mas as
subdivisões variam entre tábuas dos juízos e tábuas das categorias
(cf. Crp, parágrafos 9 e 10). Gaffrée não afirma, pois, como o faz
Kant, que as categorias se formam a partir de juízos e, por conse-
guinte, não as entendeu. Fica claro com isso por que o livro não faz
nenhuma explanação sobre juízos sintéticos a priori.
O outro conjunto de observações diz respeito à questão da pos-
sibilidade de uma metafísica prática. Embora a Crp tenha contem-
plado a possibilidade de uma metafísica da experiência e uma me-
tafísica dos costumes, como resultado dessa Crítica, Gaffrée desen-
volveu insuficientemente os conceitos da última forma de metafísi-
ca. Os conceitos da filosofia teórica, enquanto teoria da possibili-
dade da experiência, não servem de base para uma filosofia prática,
porque eles concernem à fundamentação dos fenômenos (naturais),
enquanto para a prática requer-se que o conceito noumênico de
liberdade, pelo menos, não seja contraditório. Esta não-contradito-
riedade do conceito de liberdade'foi demonstrada na resolução da
terceira antinomia (referida também no prefácio à segunda edição
da Crp), mediante a distinção de dois sentidos do conceito de ob-
jeto, enquanto fenômeno e enquanto coisa em si.
No capítulo sobre o significado da coisa em si, o Autor, na
tentativa de ser fiel ao ponto de vista crítico de Kant, observa que
não se trata de demonstrar a impossibilidade do supra-sensível, mas
apenas do conhecimento teórico dele. Na sua remissão ao antigo
dogmatismo, que distinguia sensibilidade (apreensão do objeto
como aparece) e entendimento (apreensão do objeto como ele é em
si), ele parece ignorar que essa era também a posição de Kant até a
Dissertação de 1770, Sobre as formas e os princípios do mundo
sensível e inteligível. Nada, porém, na sua explanação permite uma
abertura crítica além de uma metafísica da experiência. A metafísi-
ca reduz-se a determinar os elementos últimos do conhecimento,
estabelecendo-lhes validade; e a possibilidade de uma metafísica
prática, a partir da apontada não-contradição do conceito de liber-
dade, deixa de ser considerada. Antes, ela é vista como um deva-
neio. Dentro daqueles limites apontados, a metafísica é ciência;
fora deles é um devaneio (cf. p. 192). A liberdade é apontada como
um postulado entre outros da razão prática, quando ela deveria ser
privilegiada como conceito prático. Ela é não só o conceito, cuja
realidade uma vez provada mediante o factum da lei moral torna-o
o conceito-chave de todo o sistema da razão pura, mas também é
aquele conceito a partir do qual os postulados de Deus e da imorta-
lidade tomam consciência e realidade objetiva (Crítica da razão
prática = C.r.pr., A 4). Gaffrée observa que a existência da liber-
dade só se explica no caso de supormos que os fenômenos sejam
nossas representações, e as suas causas, coisas em si ou idéias (cf.
p. 136). Mas ele se inclina imprecisamente por uma liberdade rela-
tiva, que para Kant como liberdade psicológica é fictícia (cf.
C.r.pr., A 174). A debilidade dessa defesa de liberdade como con-
ceito fundante da prática leva Gaffrée a afirmar que, diante da ne-
cessidade natural, a simples consciência da liberdade não sendo
real, será um motivo entre outros a determinar nossas ações (cf. p.
140).
Juntamente com o conceito de filosofia prática, também o con-
ceito de razão crítica fica comprometido. A solução das antinomias
requeria a sentença de um juiz imparcial, que só pode ser a própria
razão. Só que ela, segundo o nosso Autor, ao invés de manter uma
postura de neutralidade, toma partido pelo teísmo, pelo espiritua-
lismo e pela moralidade, cujo interesse independe totalmente do
científico: "Não podendo proceder com imparcialidade nem tam-
pouco mostrar a sem-razão de seus adversários sem dogmatizar, ela
tem de basear a força de sua polêmica em interesses morais" (p.
157). Essa tomada de partido de Gaffrée contra a razão prática
leva-o a ver nesta uma defesa do dogmatismo e do status quo: a
razão, por interesses morais, "em lugar de demonstrar a importân-
cia das teorias adversas, tentará chamar a nossa atenção para o pe-
rigo público que poderia advir de se sustentarem tais doutrinas" (p.
157-8). Para arrematar, cito ainda esta frase: "O interesse moral
que tem razão em acreditar na imortalidade da alma e na existência
de Deus está de tal maneira vinculado às doutrinas da religião, à fé
oficial e ao bem público, que fácil lhe é fazer passar os seus adver-
sários por inimigos do Estado e da ordem estabelecida" (p. 158).
Essa caricatura da razão prática é o oposto de tudo o que Kant
pensou sobre uma razão crítica, especialmente sobre uma razão
prática que se concebe como essencialmente crítica de uma ordem
empírica heterônoma, centrada em interesses particulares, ela sim
comprometida com a irrazão vigente.
Seria fastidioso prosseguir no detalhamento dessa investida
contra a ética kantiana da autonomia, resultante de uma universali-
zação abusiva da Crítica da razão pura, que parece revelar, menos
que uma abstração metódica, um desconhecimento puro e simples
das duas outras Crítica kantianas - a Crítica da razão prática
(1788) e a Crítica da faculdade do juizo (1790), só mencionadas
por ele uma vez pelo nome, en passant (cf. p. 205).
Antes de concluir, conviria chamar a atenção para a hipótese
alternativa, apresentada por Gaffrée, de uma ética científica, tendo
fins a posteriori e tendo por base os conhecimentos superiores da
inteligência, "em busca de fins que promovam uma estabilidade
cada vez maior do equilíbrio vital, sendo, em síntese, os nossos
atos voluntários sempre resultado de uma luta contínua de motivos,
tanto objetivos como subjetivos, na qual sempre triunfará o mais
forte, de acordo com a causalidade natural" (p. 200). Ninguém
acreditará que essa ética da força constitua a resultante de uma
postura científica em favor da crítica teórica kantiana.
É um ponto de vista comum da primeira e segunda Crítica que
a ética kantiana nada tem de anticientífico: "A Matemática, a Ciên-
cia Natural e mesmo o nosso conhecimento empírico acerca do
homem possuem um alto valor como meios para se atingir os fins
da humanidade [...I" (Crp, B 878, trad. cit. p. 413). Só mediante a
união de ciência e sabedoria a moral não termina no fanatismo e no
misticismo: "A ciência (investigada criticamente e introduzida
metodicamente) é a porta estreita que introduz à doutrina da sabe-
doria [...], uma ciência cuja guardadora tem que continuar sendo a
Filosofia" (Crpr., A 292).
A tentativa do Professor de Filosofia do Direito, Januário Lucas
Gaffrée, de oferecer uma explanação completa da Crítica da razão
pura como teoria do conhecimento, embora parcialmente bem-
sucedida, tornou-se escolar e levou-a, pela vastidão de abordagem,
a resultados problemáticos em alguns aspectos. Será recomendável
servir-se dessa obra como companhia de leitura complementar à
ocupação direta com a própria Crítica kantiana. Nessa função ela
contribuirá para o esclarecimento de conceitos e para a formação
do pensamento crítico. A solução e adversidade-contra as quais ele
lutou para escrevê-la contam com o nosso reconhecimento ao ree-
ditá-la, numa época de mais acentuado desenvolvimento do pensa-
mento filosófico, fecundado pelo estudo crescente de Kant.
Porto Alegre, 10 de janeiro de 1998.
AO LEITOR
§ 11
Aos espíritos desejosos de se libertarem do avassalador dog-
matismo das metafísicas pagãs ou cristãs, ou desanimados pelas
devastações do ceticismo, cujos adeptos, no dizer pitoresco de
Kant, são verdadeiramente os nômades da filosofia, os quais se-
meiam a ruína e lançam a devastação sobre as frágeis, artísticas e
geniais construções metafísicas, oferece o criticismo do filósofo de
Koenigsberg uma doutrina e apresenta uma solução, as quais, pelas
suas linhas harmônicas, pela sua solidez e, ao mesmo tempo, pela
sua moderação, levam grandemente vantagem a todos os sistemas
anteriores. A sua construção especulativa serve, por outro lado, de
ponto de partida e de fanal aos que, posteriormente, se hajam de
ocupar dos árduos e dificultosos problemas fundamentais da filoso-
fia.
Kant, num movimento de orgulho, bem legítimo, aliás, e mui-
tíssimo compreensível da parte de quem totalmente subvertera as
bases, admitidas até sua época, de toda especulação pura, compa-
rou a sua atividade nos domínios da filosofia à revolução, produzi-
da pela hipótese de Copérnico no campo da cosmologia.
E efetivamente, ao espírito desprevenido bastará ter em mente
os sonhos metafísicos a que, antes da Crítica da razão pura se en-
tregavam os espíritos mais sensatos e os mais geniais e compará-
10s com as tendências pronunciadas, depois da obra do nosso filó-
sofo e como conseqüência dela, de se considerarem depreciativa-
mente certos problemas filosóficos, os quais antigamente constituí-
am a matéria das discussões na cátedra e no livro, para se verificar
imediatamente quanto em nitidez, clareza de pensamento e siste-
matização de nossas concepções filosóficas temos lucrado, guiados
pelo fio condutor do idealismo crítico.
Por isso mesmo, não será de duvidar que um exame e uma veri-
ficação das bases sobre que o grande pensador fundou a sua doutri-
na, ainda hoje, mais de um século depois de que ela começou a
dominar e continua a se impor a uma grande maioria de espíritos de
escol, seja de uma evidente utilidade, para nos forçar à modéstia
das concepções e para. não nos deixar presumamos demasiado das
nossas próprias forças, julgando, como ainda em nossos tempos faz
o haeckelismo impenitente e presunçoso, não ser impossível expla-
nar o inexplicável.
A crítica do nosso entendimento e da nossa sensibilidade, a
análise exata do modo por que originamos conceitos, o estudo
aprofundado dos elementos últimos do conhecimento, tudo isso é
de calcular nos dê a chave do enigma que tentamos solver acerca
da validade e certeza da nossa ciência.
Para que juntamente porém, seja completa essa análise e
abranja a totalidade da matéria em consideração, é mister pergun-
temos em primeiro lugar se efetivamente existe o conhecimento e,
obtida resposta afirmativa, em que coisa ele consiste.
§ 13
Admitindo que os nossos conceitos procedem da experiência
que lhes dá o conteúdo, ele trata de indagar de onde procede a for-
ma deles. Envolve isso o exame, a investigação das nossas faculda-
des cognoscitivas.
Os idealistas consideravam como única faculdade nossa verda-
deiramente cognoscitiva o entendimento puro, com a sua possibili-
dade de formar conceitos puros, isto é, independendo da experiên-
cia. Os sensualistas, pelo contrário, atribuíam essa certeza à verifi-
cação empírica. Aqueles sustentavam que as representações sensí-
veis são obscuras e confusas e que só o entendimento as pode tor-
nar claras; estes opinam que os conceitos não são mais do que ima-
gens apagadas das coisas as quais tanto menos claras se fazem
quanto mais abstratas são.
Ora, se supusermos que há representações intelectuais que,
como tais, são totalmente confusas e do mesmo modo representa-
ções sensíveis, as quais se mostram perfeitamente claras, a conse-
qüência será que nem a nossa representação sensível nem a inte-
lectual possuem, de per si, clareza ou obscuridade, mas apenas
diferem na maneira lógica por que elaboram representações.
Devemos, pois, admitir em nós duas faculdades fundamentais
de conhecimento, a sensibilidade e o entendimento. "De modo que
fica evidente, diz Kant, que se oferece uma má explicação do sen-
sível e do intelectual, quando se supõe aquele conter só conheci-
mento claro, e o deste ser exclusivamente confuso. Os graus de
clareza são apenas diferenças lógicas, as quais não afetam as repre-
sentações dadas, sendo, porém, a base de toda comparação lógica.
Os objetos sensíveis podem ser muito claros, os intelectuais muito
confusos. O primeiro fato nos ostenta a geometria, esse paradigma
de todo conhecimento sensível, e o segundo a metafísica, aquele
organum de toda a ciência intelectual. Sejam quais forem os esfor-
ços que faça esta última para dissipar os nevoeiros do nosso enten-
dimento, ela muitas vezes não conta com os grandes sucessos
iguais aos da matemática. As concepções geométricas são, apesar
de sua clareza, de procedência sensível, e os conceitos metafísicos,
por confusos que se nos manifestam, serão sempre intelectuais."
Determinadas as duas faculdades fundamentais do conheci-
mento trata-se de saber como ele é possível por meio do entendi-
mento e por intermédio da sensibilidade.
O ESPAÇO E O TEMPO
§ 20
A distinção fundamental entre a aparência e a essência, entre o
fenômeno e o noúmenon, entre o mundo sensível e o inteligível,
entre a coisa contingente e relativa e a coisa em si, é o primeiro
passo dado pela filosofia crítica no sentido de bem assinalar os
limites do conhecimento.
Kant, ao mesmo tempo mostrando que da coisa em si não nos é
dado afirmar nem sequer a existência, não exclui, entretanto, a re-
presentação, mas puramente supra-sensível, intelectual ou subjeti-
va, transcendente, portanto do conhecimento, daquilo que chama-
mos noúmenon ou coisa em si. Releve-se-nos aqui notar, entre pa-
rêntese, que o nosso filósofo emprega as expressões transcendental
e transcendente em dois sentidos totalmente diversos: a primeira
indica tudo aquilo que constitui condição a priori do nosso conhe-
cimento, e a segunda tudo aquilo que transcende dos limites dele.
Aqui fica a advertência, a fim de evitar confusões, fáceis de se da-
rem.
O noúmenon, portanto, pode ser pensado, ainda que não conce-
bido. O entendimento peado, quanto ao universo sensível, na es-
treita cadeia de suas formas fundamentais, tem um irresistível pen-
dor a rompê-las, e, penetrando no mundo noúmenal, julga poder
sobre ele formular conceitos para os quais exige se reconheça uma
absoluta e apodítica validade. Esses conceitos, assim independentes
da experiência, são evidentemente inválidos, porque não se podem
sujeitar à ordem de sucessão e coexistência, na qual unicamente se
têm que laborar os nossos juízos cognoscitivos.
Aos juízos ou conceitos puros, referentes ao mundo da coisa
em si, é lícito dar um grande valor, se bem que subjetivo, e o qual
pode alcançar altíssima influência, se, baseados neles, tivermos de
formular regras de conduta para a humanidade.
Se, para estabelecer um sistema ético, apreciativo das ações
humanas, para afirmar a existência da lei moral, fôssemos forçados
a admitir, ainda que não pudéssemos prová-la, a existência desses
conceitos, pensáveis, mas não cognoscíveis, é certo nós teríamos
que aceitar tal existência, como uma necessidade básica da nossa
razão, a qual, não a podendo demonstrar, postulá-la-ia.
Essa existência, improvável e contraditória, negada pelas nos-
sas faculdades, apuradoras do conhecimento, teria, entretanto, a sua
razão de ser nas mais profundas e íntimas necessidades práticas do
ser humano.
A grita, levantada por filosofantes malévolos e de curtas vistas
contra o sistema de Kant, por haver sustentado na Crítica da razão
pura que da coisa em si nada podemos afirmar, e, entretanto, na
Crítica da razão prática, voltando atrás, acentuar a necessidade de
crermos na existência de Deus, na imortalidade da alma, no livre
arbítrio, apenas denota estolidez da parte de quem, como Haeckel,
distingue duas filosofias no edifício, tão um e tão rigorosamente
lógico, levantado pelo gênio de Koenigsberg.
Não há contradição: o nosso entendimento, aliado à sensibili-
dade, e formando conceitos de coexistência e sucessão, nega o co-
nhecimento noúmenal; a razão prática, sem pretender demonstrar a
realidade da coisa em si, não podendo, entretanto, na opinião do
nosso filósofo, prescindir dela, postula (atenda-se, não prova) a sua
existência. Contradição haveria, se por acaso, ao passo que em um
ponto fundamental do sistema se negasse a existência desses con-
ceitos, em outros se afirmasse possuírem eles realidade.
Se todo o sistema da ética kantiana repousa nesse postulado da
razão prática, será uma profunda injustiça dizer, como pensaram e
escreveram alguns, que só por temor dos poderes temporais é que o
profundo pensador o introduziu na sua filosofia.
A Haeckel, mostrando a inanidade de seus ataques a este e a
outros pontos da doutrina crítica, já deu cabida resposta o professor
Paulsen, em livro em que salientou o parco cabedal crítico e o min-
guado critério filosófico do grande naturalista, que, entretanto,
tenta com o seu monismo restaurar a antiga e incongruente metafí-
sica dos pensadores helenos, e como religião instaurar o culto da
natureza, da substância, do éter e não sabemos que mais.
Não queremos, com estas considerações, de modo algum dimi-
nuir os grandes méritos do insigne professor de Jena, cujo labor,
fecundo e constante em prol da ciência, glorifica, sem dúvida al-
guma, a ele e ao seu país. Todas as vezes, porém, que deseja filoso-
far, e sempre principalmente que ousa contrapor o seu monismo ao
criticismo kantiano, sai da própria esfera da atividade e... déraison-
ne.
§ 23
Eis-nos agora chegados ao ponto crucial da filosofia crítica, em
que, determinadas as categorias, ou os conceitos puros do entendi-
mento, se procura saber como elas podem servir de fundamento à
experiência.
Se os puros conceitos do entendimento, como temos assumido,
dela independem, tanto que precedem à nossa apreensão empírica,
como podem servir de fundamento à experiência? Se as nossas
percepções fossem coisas em si, o que já mostramos não ser possí-
vel, se fossem noúmena, sem ligação alguma com o sujeito pen-
sante, independendo da nossa sensibilidade, não seria possível ab-
solutamente cogitar de qualquer apuração da experiência.
Tal, entretanto, não é o caso; pois que, sendo as nossas percep-
ções forçadas a se refletirem e ordenarem dentro dos nossos moldes
subjetivos, os quais são condição essencial das nossas representa-
ções, no espaço e no tempo, isto é, em termos de coexistência e
sucessão, elas não podem ser formuladas em conceitos, indepen-
dentemente dessas formas subjetivas a priori.
Se, portanto, afirmamos que a experiência é possível, devemos
afirmar que os puros conceitos do entendimento são condições tão
imprescindíveis para ela como o é o espaço para a percepção ime-
diata ou intuição. Quer isto dizer que só eles é que poderão tornar
possível a existência dos objetos do nosso entendimento, sendo,
pois, condições a priori, independentes da experiência, a que dão
origem.
Os objetos da experiência são as nossas representações (ou os
fenômenos) e a sua concatenação ou coordenação geral e necessá-
ria. É preciso, porém, notarmos que as representações consistem
em sensações percebidas, variadas e ordenadas no espaço e no
tempo: quanto à sua matéria, compõem-se de manifestações sensí-
veis, variando, evidentemente, conforme a excitação recebida pela
nossa sensibilidade; quanto à forma, são grandezas e, portanto,
decomponíveis em suas partes.
Ora, o que existe no espaço necessariamente existe separado
dos outros fenômenos, o que existe no tempo existe simultanea-
mente com outros fenômenos ou então se Ihes sucedendo; a forma
de qualquer representação tem, portanto, também um caráter de
pluralidade ou variedade.
Quer construamos grandezas, como são as da matemática, quer
as manifestações da nossa sensibilidade sejam quantitativa ou qua-
litativamente diversas, o certo é que mister se torna concatená-las
de um modo geral e necessário, a fim de que surja um objeto que
possa ser por tal universal e necessariamente admitido.
Enquanto os elementos das nossas representações se conserva-
rem isolados e estranhos uns aos outros, evidentemente não nos
será lícito falar nem de conhecimento nem de experiência; pois que
as nossas percepções se compõem de um conjunto de elementos
materiais e formais os quais necessitam ser reduzidos a conceitos,
válidos em sua generalidade, sem o que nenhum resultado cognos-
citivo poderemos colher.
É, pois, certo que a indagação da origem dos objetos da expe-
riência supõe concomitantemente a investigação de como nasce a
mesma experiência, consubstanciada na interrogação de como nos
é dado conceber as percepções puras da razão e as grandezas puras
da matemática.
Já que a nossa sensibilidade oferece tão somente elementos
cuja concatenação, embora necessária, não pode ser por ela levada
a efeito, devendo ser disso encarregada a nossa atividade intelectu-
al a priori, a experiência, está bem visto, não pode por si só elabo-
rar síntese alguma. Essa síntese deve ser levada a cabo pela razão
pura anterior à experiência e não pela sensibilidade, cujas percep-
ções ela concatena ou combina num quadro geral e necessaria-
mente válido.
Mas, para que seja geral e necessariamente válida tal síntese,
ela deverá primeiramente, em relação a um fenômeno ou grupo de
fenômenos, abranger todos os seus elementos de apresentação, em
segundo lugar, à medida que forem sendo apreendidos novos ele-
mentos, representar-se ou recordar os anteriormente percebidos, na
respectiva ordem de apresentação, e, finalmente, tendo-os todos,
reconhecer no conceito que por fim deles formula o entendimento
os mesmos dados precedentemente colhidos.
Os elementos da síntese cognoscitiva são, conseguintemente,
três: a apreensão dos dados da representação, a reprodução dos já
apreendidos, e o reconhecimento como idênticos aos apreendidos
dos que o intelecto cria outra vez, isto é, formulando-os em con-
ceitos.
A apreensão faz-se por meio da percepção, a reprodução por
intermédio da imaginação (Einbildung)e o reconhecimento por via
do conceito ou juízo.
Se, ao tentarmos uma síntese cognoscitiva, não tivermos a cada
passo em mente a impressão das nossas representações anteriores,
se as esquecermos, não nos será possível de forma alguma levá-la a
termo, por falta de concatenação dos dados com que deveríamos
jogar.
A síntese da reprodução, nas próprias palavras de Kant, está in-
dissoluvelmente ligada à da apreensão. Ela, contudo, não nos dá a
concatenação de todos os elementos de que necessitamos para for-
mar um juízo válido; porquanto nada efetivamente nos garante que
as percepções, quando transformadas em conceitos, sejam exata-
mente idênticas às anteriormente apreendidas, de sorte que, antes
de esclarecida essa dúvida, não podemos garantir um2 síntese re-
almente completa e válida, em vez de uma aparência fictícia dela.
É preciso, pois, que, além de reproduzidas as nossas percepções
anteriores, nos seja dado reconhecê-las como precisamente as
mesmas anteriormente apreendidas; quer dizer que, quando compa-
rada a sensação, vazada no conceito formulado, e a passada, pos-
samos expressar sobre a sua identidade um juízo apoditicamente
válido.
Aí, porém, se nos apresenta uma dificuldade, insuperável à
primeira vista: a nossa consciência está sujeita a todo momento a
tão várias transformações, não constituindo, por conseguinte, um
todo estável, que impossível nos é quase conceber como possa re-
conhecer no conceito a mesma percepção que anteriormente se nos
manifestara, de sorte que, a ser verdadeira tal conclusão, a síntese
do reconhecimento no juízo será absolutamente impossível. Ora, se
desejamos o resultado contrário, isto é, a possibilidade da síntese,
forçoso nos é admitir, como condição indispensável dela, a existên-
cia necessária de uma consciência que nunca se transforma, de um
substratum puro, originário inalterável, o qual, em contraposição à
consciência empírica, sempre variável, permaneça constantemente
idêntico a si mesmo.
Sem essa consciência ou faculdade a priori de transformar as
percepções em conceitos, que Kant chama faculdade de apercep-
ção transcendental, não se pode cogitar da identidade entre a repre-
sentação (sensível) e o conceito; portanto, sem a identidade da
consciência, como faculdade recognoscitiva, não há validade nos
juízos que expendermos sobre os fenômenos. Ora, o mundo sensí-
vel, apesar das variadas transformações da consciência empírica, se
nos apresenta ao eu sempre com as mesmas feições uniformes;
logo, é de se admitir a consciência pura ou, em outros termos, a
unidade transcendental da apercepção.
A consciência empírica consiste no nosso eu empírico, o qual
se manifesta tão variado quanto o são as percepções por ele apre-
endidas; o sujeito da consciência pura é também o nosso eu, não o
que a cada momento se transforma, porém o que permanece cons-
tante, estável, sempre igual a si mesmo. Ela é, por isso, a consciên-
cia originária, transcendental, da própria identidade ou, na expres-
são do nosso filósofo, a "autoconsciência originária" (urspruengli-
ches Selbstbewusstsein).
As representações, por variadas que as suponhamos, concate-
nam-se e combinam-se na consciência pura, que desta sorte repre-
senta a unidade sintética de todas elas e, pois, o princípio primário
do nosso conhecimento. A unidade necessária da apercepção é o
elo que liga todos os fenômenos, enfeixando-os numa síntese, sem
o que eles seriam menos que sonhos.
Para nós só pode haver uma única espécie de experiência, as-
sim como existe um só espaço e um só tempo, e a razão disso está
justamente na acenada unidade sintética da apercepção, na unidade
fundamental do nosso entendimento, a que o filósofo cabidamente
chama de "faculdade básica do conhecimento".
Como todas as nossas representações cumulam no conceito ge-
ral da Natureza, como exprimindo o conjunto do mundo sensível, é
bem de ver que o nosso conhecimento dela, a lei geral da produção
dos fenômenos, depende da unidade e identidade fundamental da
consciência.
A consciência empírica varia conforme os indivíduos, ao passo
que a pura é invariável e idêntica para todos; o de que ela faz a
apuração é só o que tem um caráter objetivo ou uma validade geral
e necessária. A consciência pura não é receptiva, porém ativa e
produtiva, dá forma às nossas representações, é uma faculdade de
pensar ou de formular juízos. As formas por meio das quais ela
produz esses juízos são, portanto, as formas puras do juízo ou as
categorias. São, por conseguinte, os conceitos puros do entendi-
mento que nos dão o fundamento dos objetos da experiência; eles a
condicionam e, portanto, a sua validade alcança até onde chega a
nossa verificação empírica.
83
Os dois axiomas, o da extensão e o da antecipação da apreen-
são ou verificação empírica têm por efeito, o primeiro, excluir a
possibilidade de grandezas divisíveis, e o segundo, a de-uma solu-
ção de continuidade entre elas, isto é, o vácuo, e ambos, por isso, a
plausibilidade do contrário dessa mesma continuidade.
ANTINOMIAS
1"
Tese - O mundo como grandeza (no espaço e no tempo) é ili-
mitado ou infinito.
Antítese - O mundo como grandeza não é limitado (é infinito).
2"
Tese - A inteira divisão (a divisibilidade) da matéria é limitada;
ela se compõe de partes simples.
Antítese - A divisibilidade da matéria é ilimitada, ela não se
compõe de partes simples, no cosmos nada há simples.
--
3"
Tese - A série inteira das causas é limitada, existe uma causa
primeira, a qual não é condicionada, não se determina à ação por
qualquer impulso exterior, mas por sua própria espontaneidade,
existe uma causa livre.
Antítese - A inteira série das causas não é limitada, não existe
uma causa primeira nem uma causa livre, só existem causas obede-
cendo estritas leis naturais.
4"
Tese - A inteira dependência das existências é limitada, existe
alguma coisa pertencente ao mundo, da qual dependem todas as
existências, sem que ela própria de nenhuma outra dependa, existe
um ente absolutamente (schlechhin) necessário.
Antítese - A inteira dependência das existências não é limitada,
nada do que pertence ao universo dele independe, não há ente ab-
solutamente necessário.
§ 73
A metafísica pretende determinar a ordem na natureza, partindo
de certos pressupostos a priori, dos quais, como conseqüência ne-
cessária, decorram as condições do ser e da existência. Como tenha
o mais arraigado desprezo pela experiência, cujas conclusões lhe
f3âr~e~rosseirase~e~eordenaç4o+~e4e~fpio~b-
solutos, puros, não dados ou condicionados pela experiência, para,
por intermédio deles, em escala descendente, estabelecer o condi-
cionamento das ocorrências, tanto internas como externas. E, já que
a chave de suas deduções se encontra num absoluto princípio das
coisas, ela toma como ponto de partida a admissão de uma existên-
cia que nos é intuitivamente certa, que não deriva de qualquer ou-
tra, cujo conceito, o do conjunto de todas as realidades possíveis, a
pressupõe apoditicamente. Dela decorrem, desdobrando-se conse-
qüentemente do seu conceito fundamental, todas as outras existên-
cias, contingentes e passageiras, ao passo que ela é a única eterna e
absoluta.
Como espírito, como inteligência e como vontade, não pode ser
conhecida diretamente senão pelo nosso próprio espírito, o qual,
assim se há de supor necessariamente de natureza semelhante à
dela.
Desta forma, do conceito do ente absoluto decorrem dedutiva e
necessariamente todos os outros conceitos que já estudamos nas
idéias da psicologia, cosmologia e teologia racionais.
Com esta base, o dogmatismo forçosamente tem de concluir
que as nossas intuições a priori, o nosso conhecimento da existên-
cia absoluta, sendo rigorosa e inevitavelmente necessário, nos de-
vem dar um conhecimento perfeito do universo, nos permitem pe-
netrar confiadamente nos seus mistérios e afoitamente solver os
seus enigmas. Basta para isso que tomemos um ponto de partida
exato e lhe desenvolvamos, dedutivamente, as conseqüências.
O método ideal da metafísica dogmática é, portanto, o que em-
pregou Spinoza, o qual, more geometrico, do conceito da substân-
cia, por ele estabelecido, deriva todo o seu sistema de filosofia.
A substância desse filósofo, sendo aquilo de que derivam todas
as manifestações no universo, subordina ao próprio conceito e faz
dele decorrer assim as nossas ocorrências internas como os objetos
externos à consciência: todas elas são atributos e modos da subs-
tância. O intelecto a conhece adequadamente, quando a considera
sub specie ~ t e r n i ;e inadequadamente, quando, sem referi-los ao
conceito máximo, procura determinar a coordenação, puramente
aparente ou representativa, desses atributos e modos no nosso espí-
rito.
Malebranche, que deriva os seus pressupostos do cartesianis-
mo, expressa as mesmas idéias no aforismo que ficou célebre de
que2nÓsvemos_todasa~c~isa~~Beup"querend~~~
significar que a visão final e exata das coisas ou do cosmos só nos
pode ser dada dedutivamente, inferindo-a do conceito, que hou-
vermos determinado, da causa primeira e absolutamente real.
Leibniz, por seu lado, afirma que o intelecto, independente-
mente da sensibilidade, conhece as coisas como elas são, ao passo
que esta, perturbando-as e obscurecendo-as, faz-nos vê-las de uma
maneira confusa e incompatível com o seu conhecimento preciso e
necessário; a conseqüência é que o entendimento deverá formar os
seus conceitos, independentemente de quaisquer dados empíricos,
a priori, portanto, para depois fazer que estes, subordinando-se
àqueles, com eles busquem a sua conformidade.
Os processos do antigo dogmatismo estão, pois, patentes: a sua
metafísica é ontologia, os seus conceitos básicos são a priori, são
tais que da sua afirmação se deve inferir a existência dos seus ob-
jetos, aplicando-se, por via de subordinação, aos dados da experi-
ência.
O seu ponto de partida é sintético, o seu método é o dedutivo e
o seu objeto é a metafísica das coisas em si, isto é, o conhecimento,
por intermédio da razão, dos últimos elementos das coisas daquilo
que transcende do espaço e do tempo, da causalidade absoluta, en-
fim.
No mundo da experiência, a única ciência cujo processo é fun-
damentalmente dedutivo, partindo de conceitos sintéticos a priori,
é a matemática, e, como as suas proposições são apoditicamente
certas, não se lhes podendo opor contestação válida, julgou a meta-
física do supra-sensível que, usando de método idêntico, poderia
reivindicar para os seus princípios igual certeza.
Os princípios, postulados, definições, axiomas da matemática
diferem, porém, dos da metafísica no fato essencial de se poderem
tornar sensíveis, de serem susceptíveis de construção e capazes de
se representarem no espaço e no tempo. Embora os crie a priori a
razão pura, a posteriori confirma-os a experiência.
O mesmo, contudo, não se dá com os princípios da metafísica,
os quais, criados a priori recusam toda e qualquer verificação da
experiência, que desprezam figadalmente. De modo que, tratando-
se de princípios antagônicos, os da metafísica do supra-sensível e
os da matemática pura, uns ou outros devem ser falsos nos seus
fundamentos a priori. A matemática é, porém, como vimos, con-
firmadaqela experiência, ao passo queametafísica supra-sensível
- -
não está de acordo com ela. De que lado nos havemos de colocar?
Não sendo a nossa atitude, neste assunto, uma questão de senti-
mento, mas da validade do nosso conhecimento, forçoso nos é re-
pelir a metafísica do supra-sensível e aceitar a matemática.
MECANISMO E TELEOLOGIA