A União Africana Possibilidades e Desafios
A União Africana Possibilidades e Desafios
A União Africana Possibilidades e Desafios
Introdução
Este trabalho procura analisar a constituição e evolução da União Africana (UA) a partir da
experiência de duas instituições que marcaram a história recente do continente africano: a
Conferência de Bandung e a Organização de Unidade Africana (OUA). A tese central é a
de que, a despeito do término da Guerra-fria e a reorganização dos espaços numa
perspectiva regionalista, a UA será incapaz de favorecer a integração do continente africano
caso não assegure a viabilidade de arranjos institucionais capazes de suprir as necessidades
e urgências vivenciadas no continente africano; especialmente a consolidação da
democracia e a promoção do desenvolvimento. Duas dimensões diretamente relacionadas à
estabilidade política e à segurança.
Seria incorreto discutir a UA sem referir-se a duas instituições que marcaram a trajetória do
continente africano na segunda metade do século XX: a Conferência de Bandung e a
Organização de Unidade Africana (OUA). Estas instituições marcaram a trajetória dos
Estados africanos e delinearam as formas através das quais podemos considerar e avaliar a
evolução tanto dos acordos quanto das organizações regionais que vêem sendo promovidos
no continente. Desse modo, servem de guia para avaliação os meios de consecução de
projetos inter-governamentais no continente africano.
No caso da primeira, é importante frisar seu contexto. Além das motivações políticas
internas, a luta pelo processo de descolonização foi fortemente apoiada pela realização de
fóruns internacionais para tratar da temática. Em janeiro de1949, realiza-se, em Nova
Delhi, uma conferência para debater conflitos entre Holanda e Indonésia. Contando com a
participação de representantes da Etiópia e do Egito, nesta reunião, além da recomendação
da adoção de medidas coletivas contra os Países Baixos, é decidido estabelecer a
coordenação da ação dos países afro-asiáticos na ONU, criando um bloco composto por:
Afeganistão, Arábia Saudita, Birmânia, Egito, Índia, Indonésia, Iraque, Irã, Líbano,
Paquistão, Síria, Yemen, Etiópia e Libéria.
Entre abril de 1954 e abril de 1955, são realizados mais dois encontros internacionais para
debater assuntos relativos ao processo de descolonização. O primeiro em Colombo,
contando com a presença da Birmânia, Ceilão, Índia, Indonésia e Paquistão. Ao final, os
1
países participantes publicaram um comunicado conjunto, frisando, entre outros aspectos, o
desejo de convocar uma conferência de nações afro-asiáticas. Em dezembro desse mesmo
ano, os países patrocinadores reuniram-se em Bogor, Indonésia, e decidem promover a
Conferência Bandung.1.
Com efeito, ela sinalizou interesse de seus membros em participar de forma ativa e
propositiva no sistema internacional, recusando o alinhamento prévio aos blocos existentes,
ao mesmo tempo em que conferiu apoio aos territórios afro-asiáticos em processo de
descolonização. Conforme Menezes (1956, p. 288), a longo e médio prazos, os principais
resultados alcançados pela Conferência foram que:
e) mostrou aos Estados Unidos e à Rússia que êles, se bem que não tendo
potencial militar, formam uma força internacional a ser computada em qualquer
estratégia mundial;
f) fez com que os Estados Unidos tendessem a depreciar menos e a olhar com
menos desconfiança a política do bloco neutralista asiático.
1
A Conferência contou com a participação dos seguintes países: Afeganistão, Birmânia, Camboja, Ceilão, China, Egito, Etiópia,
Costa do Ouro, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Japão, Jordânia, Laos, Líbano, Libéria, Líbia, Nepal, Paquistão, Filipinas, Arábia
Saudita, Sudão, Síria, Tailândia, Turquia, Vietnam do Sul e Yemen.
2
egípicio, Gamal Abdel Nasser, durante encontro realizado em Brioni, Iugoslávia. Neste
evento, a reiteração das propostas de Bandung produz efeitos mais significativos para o
processo de descolonização. Na ONU, este grupo de países torna-se maioria e passa a
contrabalançar a hegemonia EUA-URSS (Gráfico 1). Como avalia Pinheiro (1988, pp. 68-
69):
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1) A situação dos povos a uma subjugação, a uma dominação e a uma
exploração estrangeira constitui uma negação dos direitos fundamentais do
homem, contrários à Carta das Nações Unidas e comprometedores da causa
da paz e da cooperação mundiais.
5) Serão tomadas medidas imediatas nos territórios sob tutela, os territórios não-
autônomos e todos os outros territórios que ainda não atingiram a
independência, pela transferência de todo poder aos povos desses territórios,
sem nenhuma condição nem reserva, conforma a sua vontade e seus votos
livremente expressos, sem nenhuma distinção de raça, de crença ou de cor, a
fim de permitir-lhes gozar uma independência ou uma liberdade completas.
O clima de euforia deu condições aos novos Estados africanos de pensarem na promoção
instituições capazes de possibilitar o desenvolvimento econômico, promover a
modernização e a assegurar a liberdade política em meio ao exacerbado sentimento
nacionalista que compõe o mosaico étnico africano. E assim surgiu a OUA. Criada em
sintonia com o processo de descolonização africano, a OUA teve sua fundação registrada
em 25 de maio de 1963, em Adis Abeba. Entre seus objetivos foram estabelecidos:
Promover a unidade e solidariedade entre os estados africanos;
4
Coordenar e intensificar a cooperação entre os estados africanos, no sentido de
atingir uma vida melhor para os povos de África;
Com objetivos tão amplos e demandas não menos aflitivas, a OUA registrou uma série de
dificuldades desde seu surgimento. Uma das principais, sem dúvida, era responder ao
desafio da questão étnica. E a carta da OUA tratou tal dificuldade garantindo a unidade do
Estado dentro das fronteiras coloniais, procurando assegurar a formação de nações fora dos
distintos grupos religiosos, lingüísticos e culturais. Estratégia assumida pelo “grupo de
Monrovia”, representado pelos presidentes da Costa do Marfim, Félix Houphouet Boigny, e
do Senegal, Léopold Sédar Senghor.
Não por acaso, desde sua fundação até a criação da UA, a OUA permaneceu inalterada em
sua estrutura. Seus objetivos declarados não sofreram igualmente alterações substantivas,
sendo reiterados através de sua existência a constante defesa da soberania, da integridade
territorial, da independência dos Estados africanos e o princípio de não-interferência nos
assuntos internos dos países. A tese de Nkrumah, contudo, foi veementemente
marginalizada para não dizer expurgada dos debates que cercaram a existência da
Instituição. A renúncia à tese de uma integração supranacional pareceu ser tão límpida e
correta que seu debate jamais ganhou força e densidade.
5
Assim, entre o processo de descolonização e a instauração da OUA os Estados africanos
não lograram consolidar uma dimensão satisfatória do ponto de vista institucional. Em boa
medida porque:
Salvo naqueles locais em que eram mantidos sob controle por líderes nacionais
carismáticos, os exércitos do Terceiro Mundo comumente se opuseram ao
domínio civil. Os oficiais superiores frequentemente sentiam, e diziam, que
sabiam muito melhor do que os meros políticos o que o destino do país precisava,
e como manter a ordem a fim de cumprir esse destino. (TILLY, 1996, p. 283)
Os acordos pós-coloniais são muito pouco numerosos. Daí decorre que essas
fronteiras permanecerem, na grande maioria (87%) herdadas e, nesse sentido, são
ainda poucos “africanas”: essa propriedade não designa apenas os traçados
geográficos ou a sua origem, mas também o seu estatuto. É por isso que a fórmula
“fronteiras herdadas da colonização” não remete apenas a um fato histórico
evidente ou a uma constatação estabelecida com fins mais ou menos críticos ou
explicativos, mas também e sobretudo a um princípio de legitimidade.
(FOUCHER, 1991, p. 167)
O desfecho desta situação é bem sabido: as lutas por libertação e a conquista das
independências ocorridas entre as décadas de 60 e 70 não lograram por fim a maior parte
dos conflitos vivenciados no continente africano. Parafraseando Bahia, pode-se considerar
que a revolução africana seguiu uma trajetória marcada pela breve euforia após a
independência, instauração de partido único ou tomada de poder pelos militares, forte
estatização da economia e ampla esperança de democratização; em muitos casos, seguidas
de uma restauração autoritária sobre um fundo de crise de identidade e de violência.
(BAHIA, 2002, p. 116)
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social, expresso pela ordem constitucional e seus processos, não resultou em níveis de
coesão social capazes de garantir a paz em tempos de crise.
Consequentemente, os Estados africanos foram poucos, para não dizer quase nada,
atrativos aos investimentos externos. Em boa medida porque: “os novos Estados
independentes tentavam controlar economicamente as riquezas de seu solo e subsolo, ainda
dominadas pelos trustes; e a política de nacionalização, então implantada, multiplicou os
conflitos que, indiretamente, abalaram a economia mundial – por exemplo, durante a crise
do petróleo de 1973.” (FERRO, 1996, p. 394) Com efeito, as crises econômicas
internacionais, como a que se registra na década de 80, são particularmente profundas no
continente, levando os mercados africanos a se tornarem cada vez mais reduzidos. Com a
elevação das taxas de juros (de cerca de 3 a 4 % em 1973, para 22 a 23% nos anos 80) decai
ainda mais o interesse de investidores pelo continente.
Neste período, os Estados africanos sofrem intensamente com os efeitos da dívida externa,
a insuficiência de recursos para o desenvolvimento e os rigorosos programas de ajuste
estrutural coordenados pelo FMI e pelo Banco Mundial, reduzindo drasticamente a
capacidade destas melhorarem substancialmente os níveis sócio-econômicos das
populações. Como mostra o último Informe da ONU acerca dos Objetivos do Milênio
(FAO, 2006), ao adentrar a década de 90, 44,6% da população da África subsaariana
contava com menos de US$1 por dia para se manter. Passada mais de uma década, esta
cifra praticamente não se alterou, registrando-se que 44,0% da população mantêm-se no
mesmo patamar socioeconômico.
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Opções políticas, resultados econômicos.
É certo que os benefícios da globalização não são uniformes em todas as regiões e países.
Devido às tendências subjacentes do crescimento e à presença de Estados frágeis, a África
compreende uma região com alta possibilidade de ser deixada para traz no confronto com o
que alguns autores denominam de paradigmas da III Revolução Industrial (MOURÃO,
1997). Contudo, é também a África que pode vir a obter as vantagens mais expressivas da
integração ensejada pelos processos de globalização e regionalização. O continente pode
aproveitar, por um lado, a brecha existente entre a tecnologia e as diferenças salariais como
uma vantagem para impulsionar um nível mais elevado de crescimento sustentável; e, por
outro, as demandas políticas e sociais comuns para institucionalização de mecanismos
favoráveis à integração continental.
De modo geral, não há como atestar que o comércio por si só seja capaz de gerar de
maneira sistemática e direta uma ampliação da brecha salarial nos países. Não obstante, se
combinada a mudança tecnológica e, em menor medida, o investimento externo, tais forças
relacionadas à globalização podem causar uma desigualdade maior em muitos países.
Frente a este quadro, depreende-se que a região da África subsaariana terá que fazer um
esforço importante, e com a sustentação da comunidade internacional, para que não seja
deixada para traz nas próximas décadas (como demonstra o Gráfico 2).
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Gráfico 2 – Africa risks falling behind, as average incomes are unlikely to converge
Fonte: www.worldbank.org/gep2007
Atualmente, a metade do décimo mais pobre da população mundial vive na Ásia. Mantidas
as atuais condições, o World Bank estima que em 2030 esta proporção tenha sido reduzida
para um quinto nesta região. Já na África, no entanto, as projeções indicam que na mesma
época ela concentre a terça parte dos povos mais pobres, duplicando a proporção que
registra atualmente. É indiscutível que esta região detenha o potencial necessário para
promover um crescimento mais acelerado. Contudo, é primordial que os conflitos civis
cessem, pois eles tem tido a capacidade negativa de limitar o desenvolvimento em diversas
regiões do continente, particularmente na região da África subsaariana. Para tanto, faz-se
necessário promover reformas políticas que garantam a paz e assegurem a estabilidade
necessária aos investimentos. Cumpridas tais exigências, o World Bank prevê que o nível
de crescimento na África poderia ser duplicado (como descreve o Gráfico 3).
9
Gráfico 3 – More acceleration is possible
Fonte: www.worldbank.org/gep2007
Por esta perspectiva, não há como negar que a existência de potenciais a serem explorados
com a expansão do comércio no continente africano, como, por exemplo, a possível
triangulação “[...] envolvendo os espaços regionais do Mercado Comum do Sul (Mercosul),
da Southern Africa Development Community (SADC) e da União Européia (UE), centradas
em torno de interesses reais e complementares dos três potenciais parceiros regionais.”
(MOURÃO, 1997, p. 94 ) Até mesmo por países de menor porte, como ilustra Bhagwati
(2004, p. 70), podem vir a se beneficiar, pois:
Ao voltar suas economias para fora, os países africanos tem como explorar e se beneficiar
do crescimento e elevada demandas produzidas pelas economias emergentes,
particularmente pela China, pela Índia e mesmo pelo Brasil, que oferecem grandes
oportunidades para o aumento de suas exportações. No caso da China e Índia, o aumento de
suas exportações tem incrementado a demanda por insumos, como energia, tecnologia e
bens de capital, acelerando e afetando diretamente o crescimento das exportações
provenientes do continente africano e mesmo da América Latina nos últimos anos (Gráfico
4).
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Gráfico 4 – China’s non-oil imports from all developing countries have surged over the
last two decades
Fonte: www.worldbank.org/gep2007
Em relação ao Brasil, uma análise do intercâmbio comercial ao longo dos últimos 20 anos
(Gráfico 5) com o continente africano demonstra que o mesmo tem se intensificado, sendo
que, nos últimos 5 anos, o destaque deve-se às relações comerciais com Angola, Nigéria e
África do Sul. Juntos estes países representam em média 48% do total das exportações
brasileiras para aquele continente e 53% das importações africanas para o Brasil.
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10
Bilhões US$
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6
4
2
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19
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20
19
19
19
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20
20
Exportações Importações
Um recorte dos últimos 3 anos nestas relações comerciais possibilita perceber uma
continuidade no saldo positivo das relações comerciais brasileiras com Angola (+1,1 bilhão
US$) e África do Sul (+2,3 bilhão US$), porém não com a Nigéria (-3,1 bilhões US$).
11
Chama atenção o saldo positivo da balança comercial brasileira com Angola neste período
(+1,1 bilhão US$), que alcançou 42% do valor relativo aos últimos 20 anos. Fato
semelhante, porém em intensidade bem menor (22%) advém da África do Sul, o que sugere
um efetivo crescimento das exportações com tais países. Uma primeira caracterização dos
produtos exportados pelo Brasil para estes países pode ser observada na Tabela 1.
Não por acaso, em compasso às alterações da própria economia mundial, nesta virada de
século um conjunto de mudanças institucionais viabilizou a ampliação do grau de abertura
financeira em muitas economias africanas. Como resultado, pôde-se observar, ainda que
lenta, a efetiva inserção dos agentes domésticos no mercado financeiro internacional, bem
como o ingresso de IED. Este último caracterizado pelo tipo de que se vincula ao capital
social de empresas, numa perspectiva empreendedora, com fins produtivos. Por meio de
subscrição de ações ou quotas, geralmente se realiza tanto pela injeção de dinheiro nas
empresas, como pela aquisição de participações de terceiros.
Somente em 2005, o fluxo de IED no continente atingiu a cifra de US$ 31 bilhões. Ainda
que esteja concentrado em poucos países, é expressivo notar que neste ano o aumento de
IED chegou a 78% em comparação com 2004, sendo ocasionado principalmente por um
forte crescimento na rentabilidade das empresas que operam no continente e pelo alto preço
do commodities lá produzidas. No continente, a África do Sul foi o país que mais recebeu
investimentos em 2005 (US$ 6,4 bilhões) sendo seguida pelo Egito, Nigéria, Marrocos,
Sudão, Guiné Equatorial, República Democrática do Congo, Argélia, Tunísia e Chade.
12
Os aportes realizados no continente foram concentrados em setores como petróleo, gás e
mineração. Segundo as estimativas da Unctad (2006), o fluxo de investimentos para a
África deverá continuar a crescer devido ao grande número de projetos já anunciados na
região, à quantidade expressiva de investidores interessados nos recursos africanos e
políticas geralmente favoráveis para o recebimento de IED no continente. Assim, após
décadas sem crescimento, a economia africana passa a dar sinais de melhora sensível.
Durante a última década o continente tem observado não apenas a aceleração constante do
crescimento econômico, mas também novas oportunidades de comércio e investimentos.
É por este prisma que o debate acerca das UA deve ser avaliado. Como instrumento capaz
de assegurar as condições necessárias à paz e ao desenvolvimento de seus Estados
membros. Debate que, em última instância traz à tona a própria discussão sobre as OI,
tradicionalmente centrado no dilema da ordem ou da governabilidade em um sistema
anárquico: o sistema de Estados, em que as unidades componentes agem alicerçadas pelo
princípio da soberania nacional. Por tal característica, deste sistema deriva um baixo grau
de governabilidade, uma vez que o elemento tido como primordial para cada uma das
unidades é a autonomia do Estado em questões domésticas e externas.
Este debate percorre as mais variadas linhas de interpretação teóricas. Seja pela corrente
realistas, liberal, racionalista, ou marxista, a preocupação central dos pesquisadores é
compreender os mecanismos e dinâmicas que asseguram a manutenção da ordem
internacional. Sinteticamente, pode-se definir as OI como: “Associações voluntárias de
Estados, estabelecidas por acordo internacional, dotadas de órgãos permanentes, próprios e
independentes, encarregadas de gerir interesses coletivos e capazes de expressar vontade
juridicamente distinta da de seus constituintes” (VELASCO, 1990, p. 41) Por este prima, as
OI podem ser tidas como:
Coletividades vivas interagindo com seus ambientes, contendo membros que
buscam usar as organizações para seus fins particulares e que, por vezes, lutam
com outros membros a respeito do conteúdo e alocação do produto das
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organizações. Estas dinâmicas produzem um caráter organizacional distinto
através do tempo. (NESS; BRECHIN, 1988, p. 24)
Assim, as OI adquiriram importância capital no quadro das relações internacionais
contemporâneas, sobretudo pela sua rápida e ampla multiplicação após o término da II
Guerra Mundial. A partir de então, questões tradicionalmente reservadas à autoridade das
unidades estatais (como paz e segurança, migrações, saúde, trabalho etc.), passaram a ser
tratadas como objeto de interesse de instituições internacionais. Tomando por exemplo o
art. 1º da Carta das Nações Unidas, obtém-se entre seus propósitos:
Paradoxalmente, no art. 2º, § 6, reitera-se que: “A Organização fará com que os Estados
que não são Membros das Nações Unidas ajam de acordo com esses Princípios em tudo
quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança internacionais.” Tal proposição
leva a se perceber o caráter voluntarista da participação, uma vez que a Instituição não pode
agir sobre Estados que não façam parte da Organização. E mais, considerando as próprias
características de seus membros, depreende-se que as OI são instituições interestatais, uma
vez que recaem sobre os Estados as responsabilidades de manutenção dos propósitos
acordados. Daí as OI terem como característica serem instituições interestatais ou mesmo
intergovernamentais, uma vez que outros membros não podem alcançar um outro patamar
que não seja o de observador.
Como efeito, no art. 2º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados estabelece-se
que uma: “organização internacional” significa uma organização intergovernamental.” Por
este prisma, o debate sobre OI passa a uma dimensão mais pragmática e complexa:
considerada sua natureza, como equacionar os limites de autonomia entre as OI e as
unidades constitutivas, sejam elas fundadoras ou associadas? Debate que encerra o próprio
sentido e validade das OI, e por sua vez da UA, pois coloca em questão sua capacidade de
ação e legitimidade frente às unidades estatais. Em última instância, entre ordem e anarquia
no sistema interestatal.
O processo de transição que levou a OUA para a UA recoloca em questão, portanto, tal
perspectiva. Ensejada na década de 1990, seu avanço mais significativo se deu a partir em
14
1999 quando é lançado o projeto, em Sirte, na Jamahiriya Árabe Líbia Popular e Socialista.
Arquitetada pelo líder Muammar Qadhafi, a proposta do Tratado da UA foi,
surpreendentemente, se transformando em realidade em pouco menos de dois anos. O
Tratado foi adotado pela maioria dos membros da OUA em 2000, na cimeira de cúpula de
Togo, Lomé e ratificado e 2001, por seus Estados membros – entre os quais a África do
Sul, Costa do Marfim, Senegal, Namíbia, Moçambique, Zimbabwe e vários outros, que
resistiam à forma como se pretendia fazer esta integração continental.
Com sede em Addis Abeba, Etiópia, a UA conta hoje com 53 Estados membros.
Seu principal órgão decisório é a assembléia geral dos Estados membros, que se reúnem
ordinariamente ao menos uma vez por ano, representados pelos respectivos chefes de
Estado. A assembléia geral elege um presidente com um mandato válido pelo período de 12
meses. Um Conselho Executivo, composto dos ministros das relações exteriores, aconselha
a assembléia geral. Há, ainda, uma Comissão, que na prática se constitui num secretariado
com poderes executivos, composto por dez comissários encarregados de pastas específicas
para áreas distintas. Esta Comissão elege um coordenador com um mandato de quatro anos.
15
j) promover o desenvolvimento duradouro nos planos econômico, social e
cultural, assim como a integração das economias africanas,
Por este prisma a UA ainda encerra uma série de dúvidas quanto ao seu real significado.
Para além da valorização e preservação dos laços étnicos e histórico-culturais, consoante à
promoção de políticas de desenvolvimento, qual, exatamente, o propósito deste projeto
multilateral que envolve Estados de economia e bases industriais relevantes como a África
do Sul com países africanos como Sudão e Somália? A princípio, poder-se-ia cogitar que o
objetivo básico seria o desenvolvimento de projetos comuns, sobretudo os de âmbito
políticos e econômicos, consoante à harmonização da postura internacional dos países
membros. De acordo com Mourão (2002, p. 259), a UA:
[...] para além da programação anunciada de seus objetivos, poderá ter um papel a
desempenhar no campo da democratização dos países do continente e servir,
complementarmente, os processos integrativos, não excludentes, mormente em
assuntos que vão da integração, integração regional à inserção internacional, de
medidas favoráveis à criação e desenvolvimento da infra-estrutura de integração,
à difusão da informação, conhecimento e tecnologia, comércio intra-regional e
inter-regional, combate ao narcotráfico, medidas para limitar a multiplicação da
Aids e tantas outras, em um encadeamento de intenções.
Contudo, não há uma definição clara acerca dos custos deste exercício multilateral,
comparativamente elevados para boa parte dos países africanos. Como resultado, vários
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membros tem esboçado preocupação pela ausência de definições claras acerca dos objetivos
políticos e econômicos da UA. Uma das mais urgentes diz respeito à violência observada
nos últimos dias no Darfur, Sudão, que, desde fevereiro de 2003, vivencia uma gravíssima
crise humanitária, sem que a UA tenha capacidade técnica e mesmo organização política
para dar fim à situação.
Ainda que a UA conte com um Conselho de Paz e Segurança similar ao da ONU e seu Ato
Constitutivo estabeleça limitações significativas à soberania dos Estados membros,
prevendo, em seu Artigo 4, como motivo de intervenção as “circunstâncias graves, isto é,
crimes de guerra, genocídios e crimes contra a humanidade”, a incapacidade de por fim à
situação de Darfur tem colocado em questão a capacidade gerencial e executiva da
Instituição.
Obviamente que este não deixa de ser um problema da ONU. Talvez até mais pertinente a
sua competência do que necessariamente a da UA. Mas é neste ponto a que se deve atentar:
entre a OUA e UA ainda não foi possível estabelecer mecanismos capazes ou eficientes na
promoção dos direitos básicos que deveriam ser assegurados em âmbito interestatal. Não
foi igualmente possível verificar a validade de instituições capazes de prescrever
comportamentos estatais aceitáveis e repudiar aqueles tidos como inaceitáveis. Como
instituição, é primordial a UA ser capaz de estipular as formas como os Estados membros
deveriam cooperar e competir entre si. (MEARSHEIMER, 2000, p. 333)
Tal constatação leva a concluir que o ideal de um continente construído a partir de uma OI
ainda está bastante distante. Ainda que se reconheça a validade dos acordos e blocos
regionais existentes, não é possível negar que os mesmo são facilmente suscetíveis às
instabilidades domésticas, às guerras de fronteira e mesmo às disputas étnicas. Para tornar-
se efetiva, a atuação da UA deve ter impacto objetivo sobre a realidade vivida. Ao lidar
com questões referentes a direitos humanos, como é o caso em Darfur, torna-se imperativo
se reconhecer que se lida com o poder manifesto no cotidiano. Portanto, a ação deve ser
capaz de assegurar o auxílio necessário à manutenção da vida, seja em seus âmbitos
normativos seja em sua urgência cotidiana.
Em função das ameaças potenciais, a UA deve ter como uma de suas estratégias a
localização de forças de paz, em cada exército nacional – ou, em sua ausência, o exército
nacional um “Estado líder” em cada sub-região – que disponibilize ao órgão sub-regional
de prevenção e gestão de conflitos um contingente de soldados formados e equipados para
operações de manutenção ou de restabelecimento da paz. Seu objetivo último seria
minimizar os custos inerentes à projeção de forças, o que coloca em questão a capacidade
de coordenação com as instâncias sub-regionais existentes, que deve ser regulamentada –
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como é o caso do Reforço da Capacidade Africana de Manutenção da Paz (Recamp), da
França, o African Center for Security Studies (ACCS), dos Estados Unidos, e o British
Military Advisory and Training Team (BMATT), da Grã- Bretanha, que necessitam ser
integrados a esta estratégia ampla. (TSHIYEMBE, 2001)
Se as dimensões da segurança são importantes, não é possível negar que a união política
entre os Estados africanos só terá condições de se materializar quando se basear numa
união econômica. Instituições financeiras tais como o Banco Central Africano, o Fundo
Monetário Africano e o Banco Africano de Investimentos, cuja criação está prevista na
Carta da União, só serão eficazes se tiverem condições de coordenar um espaço econômico
comum. Se toda essa renovação institucional se concretizar, a UA poderá se tornará um
espaço de desenvolvimento regional integrado e promissor.
E neste ponto a UA surge de imediato como instituição fundamental para consecução de tal
projeto, uma vez que sobre ela recai a responsabilidade de assegurar princípios, normas,
regras e procedimentos em torno dos quais as expectativas dos Estados envolvidos venham
a convergir. Em outras palavras, responsável pela validade de regimes, sejam eles de
caráter econômicos ou políticos, em plano regional. Como Instituição capaz de promover e
assegurar: “Um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos em torno dos quais
as expectativas dos atores convergem em uma área temática.” (KRASNER, 1982, p. 1)
18
Assim, o conceito de desenvolvimento, como sustentado por Sen (2000), compreende um
processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Em conseqüência, se a
liberdade pode ser vista como resultante do desenvolvimento, torna-se fundamental
argumentar em favor dessa meta. Conceber o desenvolvimento como expansão de
liberdades substantivas dirige a atenção para os fins que o tornam importante, em vez de
restringi-la a alguns dos meios que, inter alia, desempenham um papel relevante no
processo.
Desse ponto de vista, o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão das
liberdades reais que as pessoas desfrutam. Ela contrasta com visões mais restritas, como as
que identificam desenvolvimento com crescimento do PIB, aumento da renda per capita,
industrialização, avanço tecnológico ou modernização. Esses cinco elementos são
obviamente importantíssimos como meios de expandir as liberdades. Mas as liberdades são
essencialmente determinadas por saúde, educação e direitos civis. Dessa forma, perceber o
desenvolvimento como expansão de liberdades substantivas, faz com que a atenção seja
direcionada para os fins que o tornam importante e não para os meios. (SEN, 2000, p. 52)
Essa ênfase nas liberdades e direitos básicos se apóia em três pilares: sua importância
intrínseca; seu papel conseqüencial de fornecer incentivos políticos para a segurança
econômica; e seu papel construtivo na gênese de valores e prioridades. Uma variedade de
instituições – ligadas à operação de mercados, a administrações, legislaturas, partidos
políticos, organizações não-governamentais, Poder Judiciário, mídia e comunidade em
geral – contribui para o processo de desenvolvimento precisamente por meio de seus efeitos
sobre o aumento e a sustentação das liberdades individuais.
19
assistência social. Resulta, ainda, como é o caso da África, da negação de liberdades
políticas e civis por regimes autoritários e de restrições impostas à liberdade de participar
da vida social, política e econômica da comunidade.
Por este prisma, para não repetir os erros da OUA, a atuação da UA deveria voltar-se para
assegurar a expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam. Não se trata mais de
avaliar o grau de desenvolvimento de uma nação ou sociedade com base no crescimento do
PIB, no aumento das rendas pessoais, na industrialização ou nas transformações sociais. O
crescimento do PIB e da renda pessoal contribuem para aumentar as liberdades, mas estas
dependem de outros fatores, como o acesso a determinados serviços e garantia de direitos.
Nesse sentido, o desenvolvimento ainda está longe de ter-se disseminado por boa parte dos
Estados africanos, onde a pobreza econômica retira das pessoas a liberdade de saciar a fome
ou de conseguir os remédios para combater doenças curáveis, de obter roupa e habitação
adequadas, de ter água tratada.
Assim o crescimento está mais ligado a um clima econômico mais propício do que a um
sistema político mais rígido. A expansão das liberdades reais é não apenas o fim primordial,
mas também o principal meio para se alcançar o desenvolvimento. As liberdades, assim,
têm papel instrumental no desenvolvimento. As liberdades políticas permitem às pessoas
determinar quem governa e com que princípios, além de assegurar-lhes a possibilidade de
fiscalizar os governantes; as facilidades econômicas dão-lhes a oportunidade de consumir,
produzir ou trocar. À medida que aumentam a renda e a riqueza de uma nação, sua
população habilita-se à obtenção de maiores benefícios pessoais. As oportunidades sociais,
como acesso à educação e saúde, por sua vez, são importantes para assegurar não apenas
uma vida saudável, mas também participação ativa no processo econômico e político. As
garantias de transparência destinam-se a inibir a corrupção, a irresponsabilidade financeira
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e as transações ilícitas. Por fim, a segurança protetora cria uma rede de segurança social,
que impede a miséria, a fome e, em certos casos, a morte.
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Apontamentos Finais
[...]
Num mundo frágil, as boas políticas são reféns do acaso. Na África, como em boa
parte do mundo só que com maior freqüência, os relógios tanto recuam como
avançam. (LANDES, 1998, p. 573)
Como afirma Huband (2004, p. 17): “El final de la Guerra Fria há dejado a África huérfana
de superpotencias, pero consciente de que a hora tiene por primera vez em sus manos su
próprio destino como continente de naciones.” Assim, ao rejeitar a noção de que a política
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externa de Estados periféricos seja puramente reativa às determinações oriundas dos centros
hegemônicos, torna-se importante reiterar o fato de que estes mesmos países atravessaram a
segunda metade do século XX à busca de canais e mecanismos capazes de promover seus
interesses domésticos em plano externo. A análise da UA, portanto, apresenta-se como
condição primordial para avaliação dos êxitos e equívocos resultantes da interação dos
países africanos com o sistema internacional contemporâneo.
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