GSV e Ilíada
GSV e Ilíada
GSV e Ilíada
Belo Horizonte
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
2006
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Prof. Dr. Hermenegildo José de Menezes Bastos
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Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques
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Prof. Dra. Maria do Carmo Lanna Figueiredo
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Profa. Dra. Márcia Marques Morais
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Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart
(orientador)
Para Denise
AGRADECIMENTOS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .........................................................................................................................10
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................214
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RESUMO
Sertão: Veredas e o poema épico homérico Ilíada. Diálogos fecundos acontecem entre
obras literárias de outras culturas e épocas. Para que o fenômeno aconteça é necessário
que o leitor participe de todo o processo comparativo e que aja como um leitor apto a
quando a enciclopédia do leitor tem instrumental para realizar a ação de leitura, o que
para refletir sobre literatura é por demais proveitoso. Perfilar Rosa e Homero enriquece
o estudo de literatura sem fronteiras culturais e lingüísticas. Daí poder dizer que o
esperadas e não esperadas, como a comparação entre o diabo e o deus grego Hades.
abriram, esperando para serem percorridas em outra oportunidade. Cada vereda surge
por Riobaldo, outros pelo aedo da Ilíada e outras tantas pelo próprio leitor.
LISTA
edição da Editora José Olympio. (ver bibliografia). O romance será sempre referido
INTRODUÇÃO
impressões que olhares distintos fazem para construir uma gama de sentidos diversos.
centralizam bastante o seu foco no ato de leitura, ato em que o leitor exerce papel
evidente. Entre inúmeros estudos notou-se que o texto provoca, no ato de leitura, a
própria libertação de um possível enunciador. Tal ação é muito bem descrita por Hans
Robert Jauss, por exemplo, que aceita a leitura como construção, destacando o
1
Os estudos em recepção se destacam, principalmente o “Reader response criticism”. A ação do leitor
tomou um marcante rumo quando a escola da fenomenologia contribuiu para o estudo do leitor,
destacando os dizeres de Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e Stanley Fish. Jonathan Culler esclarece,
acerca de Jauss: “Uma obra é uma resposta a perguntas colocadas por um ‘horizonte de expectativas’.
Depois de determinado, o leitor continua atendendo o horizonte de expectativa e depois o rompe”. O
dinamismo segue com o questionamento e com a ampliação do mesmo. As fases são interligadas e
formam um movimento cíclico. Cada reinício, no entanto, difere-se das outras fases iniciais, dotando todo
o processo de uma forma evolutiva. Interessante notar que, mesmo com o leitor desempenhando uma ação
mais evidente, a estética da recepção sugere que a interpretação se centralize não na experiência pessoal
de cada indivíduo, mas na história da recepção que cada obra tem. Centraliza-se, especificamente, na
relação da obra com as normas estéticas e conjuntos de expectativas transformadores que possibilitam a
leitura através do tempo.
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Chama-se a atenção para tais estudos, sendo que agem com muita pertinência em
Heidegger, Gadamer, Ingarden, Vodicka, Jauss e Iser. A ação comparatista é uma ação
acontecem entre obras literárias de outras culturas e épocas. Notou-se que a literatura
dialoga muito bem até com outros campos semióticos. Para que o fenômeno aconteça é
necessário que o leitor participe de todo o processo comparativo e que aja como um
leitor apto a aceitar o paralelismo proposto entre duas obras literárias. Tal paralelismo
Não seria leviano entender que o texto rosiano contém traços do épico, sendo
que, em muitas instâncias, ele comunga com o gênero que o poeta grego Homero
fundou ao conceber a Ilíada. Manuel Cavalcanti Proença certa vez afirmou que “se há
necessidade de classificação para Grande Sertão: Veredas não há dúvida que se trata de
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A “competência enciclopédica”, termo cunhado por Eco, relaciona-se com o repertório textual, variando
de leitor para leitor. Para que o leitor se torne competente é necessário que constantemente a sua
enciclopédia seja atualizada, ou seja, aprimorada. Certamente as questões enciclopédicas são as que
selecionam o leitor para a leitura de um determinado texto. Então, levando a fenomenologia em conta, é
necessário que o leitor rompa com as suas expectativas para investir na sua aquisição de repertório. Este
seria o procedimento mais adequado em um processo de leitura, pois confirma a suposição do
semioticista de que o próprio texto só se torna amplo e dinâmico se o leitor executar o seu processo de
atualização.
12
uma epopéia”. (cf. PROENÇA, 1959:161) Grande Sertão: Veredas narra os feitos de
épico.
Rosa escreveu o Grande Sertão: Veredas para narrar a vida de sua gente. Na
destaca, também, o povo que nela vive, interagindo com seus costumes e linguagem.
Tanto Rosa quanto Homero abordam contos de manifestação oral de sua cultura.
autores.
homem de se expressar.
3
A etimologia de epopéia tem muito a ver com o conceito de narrativa propriamente dito. “Fazer
narrativa” confirma o gênero em que se insere a epopéia, relacionando-se, assim, com a estrutura que
compõe o romance.
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jagunços como personagens centrais de seu enredo, ele evidencia, de certa forma, o
brasileira; por isso, é sublime, magno, por ser jagunço, ao mesmo tempo em que é
marginalizado por ocupar essa função no sertão de Minas Gerais. Sua mira exata é dom
invulnerabilidade pela sua mãe, a deusa Tétis, que o mergulhou no mágico rio Estige,
inferências intertextuais deste porte se dão quando o leitor faz articulações. Seria o caso
amplos. Algumas leituras associativas transcendem, até mesmo, o que fora mencionado
pelo enunciado, se bem que o mesmo enunciado é que possibilitou o ponto de partida
que todo texto é um mosaico de citações, uma retomada de outros textos, abrem a mente
do leitor para que se estabeleça uma leitura associativa e perspicaz, fato percebido por
A aquisição desses novos textos feita pelo leitor culmina na ruptura do horizonte
um processo de relações entre textos lidos” (cf. idem. p.54), o encontro entre textos
rede, cada pessoa vai tecendo sua parte, com pontos brandos e fortes. Importa mais o
de grande valia para os estudos que irão ocorrer aqui. Claude Pichois e André M.
literária. A literatura comparada trata das relações literárias entre dois ou mais
espiritual do homem, assim como a arte e a religião. Pode-se estudá-la como uma
dizer que o Sertão e a Hélade estão próximos e que Grande Sertão: Veredas e Ilíada
inter-relacionam-se.
esperadas, como a comparação entre o diabo e o deus grego Hades. Foram percebidos
esperando para serem percorridas em outra oportunidade. Cada vereda surge de modo
Riobaldo, outros pelo aedo da Ilíada e outras tantas pelo próprio leitor.
1- VEREDAS ÉPICAS
grega está ligada à construção do pensamento ocidental como um todo. De certa forma,
O épico talvez seja o gênero que mais tenha contribuído para a influência
helênica no mundo ocidental. Recitado por Homero, analisado por Aristóteles, o épico
firmou-se nas produções artísticas até o período de seu enfraquecimento, por volta do
século XVII.
o que é chamado de “romance grego”. A temática épica toma outra feição, pois já no
auge do império grego do século V a.C., o gênero começa a mostrar certa fragilidade,
presentear ou não uma dama. Estes motivos recorrem nas Etiópicas de Heliodoro como
em Caíreas e Calirroé. O mesmo acontece com Dafnis e Cloé de Lonco, assim como
Leucipe e Clitofon de Aquiles Tácio, ilustrando, também, esse tipo de enredo. Não
história. Romancistas desse período vêem num motivo pueril a razão para construir o
enredo. Acontecimentos cadenciados, com um nexo e uma linha de ação, já não surtem
O romance amoroso surge nos tempos da segunda sofistica, que tenta revitalizar
assim como traços do “romance histórico” nos estilos criativos de Heródoto, Xenofonte
O romance nunca fora classificado em sua época. Dizia Aristóteles que “a arte
que apenas recorre ao simples verbo, quer metrificado quer não, e, quando metrificado,
uma arte que, até hoje, permaneceu inominada.” (POÉTICA, LIVRO I: linhas 27-30) 4
também, os temas da religiosidade cristã, devido à forte censura imposta pela Igreja. A
marcas de seu antepassado épico, tomou rumos diferentes. Para muitos, o romance é
maneira, maneira esta que extravasa limites. De outro lado, a epopéia, supostamente
presa a um modelo rígido, tanto na esfera ideológica quanto na forma, contém traços de
4
Tradução de Eudoro de Souza.
22
Vale, então, expor a caracterização dos gêneros. Na composição léxica, o termo epopéia
traz duas palavras gregas. To epós (To epovς) significando “palavra”, que no plural varia
para Ta epea (Ta epeva), o “discurso”, a “narrativa”, o “verso”. A outra palavra: poié o
verso, o hexâmetro dactílico, métrica eleita pelos aedos para melhor desempenho na
memorização5.
ocidental e, para muitos, o épico tem mobilidade e ressurge forte, de tempos em tempos,
expressa através da língua popular da romanidade. Foi então que a forma épica passou a
se chamar romance.
Com as características colocadas aqui, não se tem uma idéia díspar entre o épico
trouxe à tona novas estruturas. O romance que conhecemos hoje tomou forma a partir
de subversões, como aconteceu nos tempos clássicos. Livros como Dom Quixote
contêm um alto grau parodístico em seu estilo, o que corrobora o teor contestador do
de dominação ideológica.
5
Acreditava-se que a poesia épica era cantada, ação que também auxilia na memorização.
23
Talvez o fator que mais diferencie o épico do romance seja a subjetividade. Daí
personagem do romance alemão, situações de teor lírico, muito mais do que de qualquer
outro gênero.
Para Proença, o livro tem duas estruturas principais. Uma ele chama de objetiva,
a que enquadra questões relativas aos combates e andanças. A outra de subjetiva, onde
primeira parte chamada de objetiva. Pautado em uma linha de ação épica, transcorre um
dos eixos da narrativa de Riobaldo. Proença pontua que o narrador de Grande Sertão:
caráter o perfil heróico, que ajuda ainda mais a endossar a estrutura épica. “Aliás, por
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Certamente a outra parte destacada por Proença pode ser levada em conta, uma
vez que o teor místico pontuado pelo ensaísta, vinculado ao teor subjetivo, é o que
perfila o livro como um romance, o que lhe dá uma tessitura mais marcante. O místico
2. NARRADORES E VEREDAS
mas a coincidência mais evidente é que todos apontam o verso épico como sendo
diz que Homero carecia de profundidade narrativa, o poeta dotava o texto com uma
certa linearidade. Bakhtin tece considerações parecidas quando afirma que o épico é um
intenções. No épico, a voz do narrador não se separa da fala do herói, tamanha a função
Georg Lukács, no seu Teoria do Romance, acredita que o épico e toda a sua
herança do legado épico mas, ao mesmo tempo, estabelece outras perspectivas para
narradores, fato que distingue o romance moderno do seu ancestral. Aqui se tem a noção
recursos discursivos de tal teor implica uma diversidade já inerente ao gênero épico,
trechos da Ilíada.
narrativa épica, justificando, assim, uma proximidade do texto homérico com o romance
nota-se que a epopéia apresenta um modus narrandi muito similar ao do romance. Tal
Primeiro, o filósofo deixa claro que há dois tipos de discurso direto contidos na
que este recurso polifônico tão fecundo existe, pode-se dizer que o narrador
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Rabel menciona a complexidade polifônica no épico homérico quando esclarece que o narrador épico
assume posições distintas no seu ato de contar. Para o teórico, toda vez em que o proêmio aparece (uma
oração), o narrador tende a assumir a posição da entidade divina, assumindo uma instância que se usou
chamar de musa-narradora. Nos momentos de invocação, esta representação fica mais evidente, como no
Canto II, no “Catálogo das Naus”, no Canto V quando se listam os gregos vencidos por Heitor, no Canto
XI na aristia de Agamêmnon, quando acontece um pequeno catálogo dos opositores do general de
Micenas, assim como nos Cantos XII, XIV e XVI.
27
no texto rosiano. Aristóteles percebera que havia na narrativa homérica indícios fortes
ficcionais e não o próprio poeta. Deste modo, o poeta não representa quando fala por ele
mesmo, mas representa ao se manifestar como outra instância. O estudioso G.S. Kirk
lembra que não há predominância nem exclusividade em narrativas deste gênero, o que
provoca suposições acerca da não-linearidade modelar que todo épico parece conter.
para a prosa de um modo geral. O próprio Rabel endossa que o ponto de vista relaciona-
primeira pessoa, o rosiano. Entende-se que a concepção rígida de gêneros não favorece
as diversas leituras acerca das obras. O épico pode conter nuanças subjetivas e o
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Aristóteles diz que o poeta representa quando narra, mas não representa quando fala com a sua própria
pessoa. Aristóteles nivela todos os aspectos de criação poética (poieîn) como um processo de imitação
(mimhthvς). O processo narrativo, então, participa da mesma conceituação, apesar do filósofo acreditar que
há três gêneros para a manifestação mimética: o lírico, o épico e o dramático. A narrativa épica sendo
uma das mais expressivas.
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que a entidade ficcional não participa da história (dihghvsiς) e, por isso, assume um ponto
essa mobilidade, diferente dos outros tipos de narradores propostos pelo estruturalista
ponto de vista de alguma personagem ou, até, desvelando algumas perspectivas extra-
enunciado.
Para algumas teorias críticas esta é a instância que mais se confunde com o
autor, já que o narrador assume uma posição mais contemplativa e afastada da diegese,
indica que o narrador não se mistura com a narrativa; é outro em relação à história.
do autor implícito (que vem a ser uma entidade ficcional e textual também) e o autor
empírico (este, uma figura extra-enunciado). A concepção narrativa fica ainda mais
comum. A representação deste narrador épico é tão intensa que a sua heterogeneidade se
longe de serem estáticos. Esta representação dota o texto com variados pontos de vista
narrativos. Para Rabel, por exemplo, o poeta, a musa e o narrador épico são instâncias
8
A nomenclatura proposta por Genette parece bem apropriada para as reflexões encontradas aqui. Não se
negligenciam, no entanto, outras classificações que poderão aparecer neste texto. O termo diegese é
retirado dos conceitos aristotélicos.
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para desenvolver o andamento da história. Sabe-se que o épico costuma se valer, para
desenvolver a ação diegética, do ponto de vista e que tal recurso vem a ser o
componente essencial neste tipo de narrativa, ora para provocar suspense, ora para
evidenciar alguma reflexão feita por uma personagem. O épico homérico usa de todos
estes recursos, mas cria um trânsito que nenhum autor do gênero, contemporâneo a ele
mesmo tempo em que encerra a visão subjetiva fechada de um guerreiro que agoniza na
luta.
com mais detalhes, outro épico grego, e também de Homero, Odisséia, recebeu atenção
devido ao forte teor polifônico que apresenta. Assim, fica clara a força do narrador
outra entidade narrativa que irá percorrer o poema épico. A ausência de Odisseu é
descrita, distante de Ítaca, desde a Guerra de Tróia. Fala-se do encontro de Atena, deusa
conhecido o pai. Atena incentiva-o a começar a sua viagem para a Lacedemônia, terra
do rei Menelau, para obter notícias do genitor. Palas incentiva, também, uma jornada
30
para Pilos, o reino de Nestor, com o intento de obter algum tipo de informação sobre
Odisseu ― nobre mais estimado de Ítaca. Até o Canto IV, a viagem do jovem príncipe
se intercalam na função.
por Poseidon, e chega às margens do reino dos feácios, onde é auxiliado por Nausícaa,
filha do rei Alcínoo. A partir do Canto VII, Odisseu começa a recontar a sua história em
analepse. Ele fala de seu regresso da ilha de Calipso e ouve do aedo Demódoco
apresenta: “Sou de Laertes o filho, Odisseu, conhecido entre os homens por toda a sorte
de astúcias; bater foi no céu minha glória”. (ODISSÉIA, CANTO IX: v.16-17) A partir
daí, ele passa a narrar episódios célebres como a sua passagem pelo país dos Lotófagos
e a sua passagem na ilha dos Ciclopes. Seu encontro com Polifemo fora a razão maior
da ira do deus Poseidon. Ele fala de sua passagem pela ilha de Éolo, do país dos
antropófagos Lestrigões e seu encontro com a feiticeira Circe. Conta que desceu ao
Hades para pedir auxílio ao adivinho cego Tirésias e, em seguida, passou por um trajeto
de purificação. Passa pela prova das Sirens, criaturas metade mulher e metade ave; pelo
estreito de Cila e Caríbdis e atinge a ilha do deus Hélio, onde se abrigam suas reses
gado. Atendendo ao pedido de Hélio, Zeus fulmina cada um dos marujos com seu raio e
somente Odisseu chega com vida à ilha de Calipso. No Canto XIII, a narrativa é
retomada pelo narrador em terceira pessoa, o aedo, e se organiza em uma linha temporal
mais cronológica até culminar no desfecho: a morte dos pretendentes, o reencontro com
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afirmar que a polifonia contida no épico toma contornos mais nítidos. A começar por o
que o teórico chama de diegese. De acordo com Genette, este é o espaço-tempo no qual
que enquadra, valida e confere inteligibilidade à história.” (cf. REIS, 1999: 26-7)
tempo que o herói passa na Guerra de Tróia, que também durou cerca de dez anos. Os
intenção estratégica. O jovem filho de Odisseu iniciaria a sua própria viagem, afirmando
endossando outra viagem e a natural tendência dos Aqueus para a exploração marítima.
Quem protege Telêmaco é Atena e a deusa deixa claro que já era hora de o jovem nobre
crucial para “tirar Ítaca da situação amorfa sem tempo e sem lei em que se encontra há
tantos anos.” (cf. CALVINO, 1998: 17) Calvino também notou a complexidade e os
abismos de histórias contidas no épico, quando intitula seu ensaio “As Odisséias na
Odisséia.” As histórias recontadas são todas sobre viagens. Viajantes sempre têm
heterodiegético, um narrador que não atua na diegese, ou seja, não é personagem dentro
da aventura de Odisseu; um narrador que “não integra nem integrou, como personagem,
tal fato. O poeta busca inspiração no monte Hélicon para que a musa narre “as aventuras
que confere credibilidade e legitimidade ao feito do poeta. Nota-se que uma das
diminuta, até o Canto VII, daí o foco passa a ser autodiegético. “O narrador da história
que relata as suas próprias experiências como personagem central da história”. (cf.
Tendo chegado à corte dos feacos, Ulisses ouve um aedo cego como
Homero que canta as peripécias de Ulisses; o Herói explode em lágrimas;
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ventos desfavoráveis é aberto, por razão de uma leviana curiosidade dos marujos. O
próprio Odisseu acusou a atividade de “insensatez que nos degradou.” O excesso, que
culmina com a morte de toda a sua tripulação, se dá na ilha de Hélio, quando os marujos
comem do gado sagrado do deus. Zeus fulmina-os nas naus, ao iniciarem o regresso:
estada na ilha de Ogígia, pertencente à deusa Calipso. Todo esse processo é percebido
pelo narrador autodiegético e é relatado como uma entonação humilde e plácida. Não se
mortal.
viveu os fatos relatados.” (cf. REIS, 1999: 119) Existe então uma construção, uma
maturidade do protagonista, que recebe até elogios de Atena por ser e estar mais astuto:
considerável autoridade que normalmente não é posta em causa.”(cf. REIS, 1999: 122)
A troca se dá no Canto XIII, logo nos primeiros versos: “Isso disse ele; os presentes
calados e quedos ficaram, como que presos por mágico influxo na sala sombria.”.
atenção para o narrador metadiegético, uma personagem da diegese que conta outra
Demódoco, que se revela para Odisseu no palácio dos feácios. A troca do foco se dá
através de uma encenação do foco narrativo, tanto para o narrador autodiegético quanto
no épico homérico.
Em suma, pode-se dizer que o narrador assume pontos de vista variados dentro
da ação narrativa. Rosa intercala, durante a saga de Riobaldo Tatarana, várias histórias
dentro do que se usou chamar de narrativa principal. Estas histórias (ou estórias, como
preferia Rosa) são evidenciadas por pausas encenadas em que o narrador Riobaldo
Estas histórias incidentais, que ocorrem na Ilíada, inúmeras vezes, são chamadas
de forma cíclica, onde há uma junção do início da história metadiegética com o texto
principal. A transição é feita pelo narrador, que aciona o recurso polifônico com a
assim, do jogo polifônico, semelhante ao narrador de Rosa, pois encena a inserção dos
enunciado rosiano. Nota-se que o narrador se envolve em uma rede textual, provocando
narra através de Jõe Bexiguento o caso “Maria Mutema” e quando o poeta épico dá a
fala diretamente ao velho Nestor, que conta o mito de Teseu, Pirítoo e os centauros.
principal.
paradigma, este se fecha com um verso muito parecido com aquele que o iniciou. O
verso marcando a entrada de Nestor é o verso 259: “Ora atendei-me, que muito mais
moços do que eu sois, sem dúvida.” O exemplo continua, contundente (versos 260-1):
“Já convivi, noutros tempos com mais vigorosos guerreiros do que vós ambos; no
entanto, nenhum inferior me julgava.” Nestor conta a bravura de Pirítoo e Teseu em luta
sempre acatado. Obedecei-me, também, que é melhor aceitar bons conselhos.” (v. 273-
4) Nestor, general de Pilo, ainda reitera, fechando assim o seu exemplo e retomando o
eixo principal da narrativa: “Mas, forte embora, não queiras Atrida, tomar ao Pelida a
ação dos homens. O narrador vocifera através de Nestor e transita no seu ponto de vista
durante a explicação. A história interrompe, mas não altera a cadência narrativa; aliás,
ajuda na retomada encenada pelo narrador épico. Cada paradigma faz o papel de
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Paradigma Mitológico
Conselhos foram
ouvidos por homens TESEU E PIRÍTOO b’ Conselhos foram ouvidos
b por homens mais nobres.
mais nobres
Canto I: v. 259 - 274
c
Teseu, Pirítoo e os centauros
FIGURA 1
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38
Como se nota na figura, a forma circular permite que a história seja inserida na
narrativa principal sem abalar o andamento principal do épico. Nesta estrutura ele pode
ser inserido e reinserido à revelia do narrador, bastando uma encenação que esclareça
uma mudança de ponto de vista. O narrador dá voz à personagem Nestor, que assume o
exercício narrativo.
gênero épico.
Um dos estudos mais evidentes sobre o paradigma mitológico foi feito por D.
jagunço. “— Por que era que eu também não podia ser assim, como o Jõe?” (GS:V,
(GS:V, 170)
Bexigüento não importava. Duro homem jagunço, como ele no cerne era, a idéia curta,
Riobaldo, que assume outra voz para contar o caso. O momento transitório se dá com o
discurso indireto, mas logo o discurso direto predomina. Este trecho também é
Jequitinhão, no arraial de São João Leão, perto da terra dele, Jõe. Caso de Maria
circular, para inserir-se novamente no jogo encenado do narrador que detém, também, o
contar do enredo principal. A reflexão sobre a jagunçagem pode ser considerada o início
Bexiguento, através de sua história, ajuda na compreensão do que é ser jagunço. Através
da história, Riobaldo considera muitas questões sobre o seu status jagunço, reflexão
É quase natural para ele ser jagunço, naturalidade que Riobaldo não enxergava em si.
fabular: “Naquele lugar existia uma mulher...” (GS: V, 170) e se desenvolve como
drama trágico que fala da intensa redenção de Maria Mutema. Assassina o marido sem
Padre Ponte, dizendo estar apaixonada e que fora ele a razão de ter cometido tal ato
hediondo. O sadismo de Maria Mutema faz o Padre Ponte perecer: “... foi adoecido
ficando, de doença para morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o
modo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho;
dava pena. Morreu triste” (GS: V, 174). A narrativa lembra que durante a purificação de
sacolejava a caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia!” (GS: V, 173).
prova cabal do crime e Yorick fora identificado pelo coveiro. Mesmo com o impiedoso
processo de decomposição que uniformiza o ser humano depois que perde os tecidos, os
dois crânios são reconhecidos devido às marcas bem particulares9. O fim do caso é
marcado pela retomada de Riobaldo no transitório e direto: “E foi isso que Jõe
9
A alusão mais óbvia ao Hamlet de Shakespeare refere-se ao momento do assassinato do pai do
protagonista. O veneno usado para matá-lo é introduzido na orelha, assim como o chumbo derretido que
Maria Mutema introduz no marido. Mais explorações intertextuais podem ser estabelecidas, ainda tendo
a peça shakesperiana com o ponto de partida. No Ato V, cena I, Hamlet tem uma conversa com o
coveiro. A conversa é circunstancial, pois o príncipe ouvira notícias da morte de Ofélia, durante o seu
exílio na Inglaterra. O nobre aborda justamente o coveiro que prepara o jazigo de sua amada. A primeira
pergunta lançada é acerca da existência: “How long will a man lie i’th’ earth ere he rot?”. O tempo que
um homem enterrado levaria para se decompor. O coveiro diz que o tempo varia, dependendo da
quantidade de água que retém o corpo. Os mais abastados duram mais, pois mais água o corpo
armazena. “His trade that a will keep out water a great while.” A reflexão mais densa, no entanto, se dá
quando o protagonista recebe um crânio já deixado na terra por vinte e três anos. Sobre os restos
humanos, a questão existencial intensifica-se. Hamlet segura o crânio de Yoric,k em mãos, e divaga
sobre o fim de cada um e como o alegre e cantante bobo da corte eventualmente se tornara uma caveira,
o emblemático símbolo da morte. No dicionário de símbolos de Hans Biedermann, os esqueletos “na
maioria das vezes são concebidos como símbolos da morte. Porque os ossos sobrevivem à destruição da
carne e em circunstâncias favoráveis podem conservar-se por milhares de anos”. (cf. BIEDERMANN,
1993). CHEVALIER & GHEERBRANT(1996), também falam da vasta simbologia do esqueleto, que
muito remete à representação feita na obra de Shakespeare. Ao mesmo tempo que a caveira lembra o
fim, lembra, também, a transcendência. O crânio de Yorick, a exemplo do crânio de Alexandre, o
Grande, têm o mesmo fim, se nivelam, revelando que na cova, a hierarquia e a vaidade humana
culminam na expressão uniforme e esbranquiçada da caveira de órbitas ocas. Rosa parece estender a
alusão shakesperiana, quando faz questão de mencionar a exumação do marido de Maria Mutema. A
caveira retirada da cova age como elemento de reflexão. A caixa craniana identificava a vítima devido à
bola de chumbo que tinia. O paralelo feito com o Hamlet é o mesmo: a uniformidade do crânio não o faz
reconhecível, mesmo assim Yorick e o marido de Maria Mutema são identificados devido a marcas bem
particulares. O bobo da corte só é identificado pelo coveiro. Em seguida, quando Hamlet o coloca em
mãos, pensa justamente no destino que todo mortal terá, o de perder as feições e de se transformar em
uma ossada. As ponderações de Hamlet e Horatio(Horácio) confirmam: “Hamlet: Dost thou think
Alexander looked a this fashion i’thearth? Pah! Horatio: E’ en so my lord.” Os restos mortais remetem
às questões aqui debatidas. A ossada de Yorick, o bobo da corte, se equipara à ossada do grande general
da Macedônia. Assim, pode-se dizer que a morte é enxergada como transcedência, extensão. No plano
dos ossos não há supremacia ou superioridade, de ninguém. Os crânios são idênticos e quase não
revelam a identidade de seus donos. O entendimento desta questão pode estar relacionado com um
esclarecimento ou até uma purificação de Maria Mutema e de Hamlet.
41
Bexigüento a mim contou...” (GS: V, 174). “Na mesma frase ele retoma a sua reflexão:
“... e que de certo modo me divagasse.”, interrompida pelo fluir da história que segue
em sua cadência.
pela narrativa principal. Aliás, o tempo é trabalhado de maneira bem distinta nas duas
obras. As narrativas incidentais, no entanto, não parecem ser estratégias para, de algum
até, hipertextuais. Seria natural que o narrador Riobaldo inserisse em sua história
principal, outras histórias e historietas. A própria ação narrativa faz que casos se
apresentem com freqüência. Muitas vezes esses casos aparecem em tom explicativo,
rosiano se apresenta de forma não-linear, aocorrência de tais histórias parece ainda mais
experimental, aproxima mais o livro de Rosa com o teor contido nas epopéias
INTERMISSÃO
b
c
FIGURA 2
Caso de Maria Mutema e do Padre Ponte.
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fazendo com que o enredo central e as histórias incidentais tenham o mesmo grau de
importância.
Tideu, que é descrito como um modelo a ser seguido e que jamais oscilara em nenhum
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PARADIGMA
MITOLÓGICO
Não costumava Tideu b’ O domador de cavalos
trepidar, por maneira Tideu não ficou perturbado
nenhuma. Tideu: Os sete contra
Tebas
FIGURA 3
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43
Assim se introduz a história “Os sete contra Tebas”, a fim de servir como
do grande Tideu, domador de cavalos, que espias? Por que motivo examinas, desta arte
citado como grande referência. “Não costumava Tideu trepidar, por maneira
nenhuma...” (v. 372). Nos versos seguintes o Atrida conta a história, iniciando-se
assim: “De certa vez ― com o amigo, porém ― em Micenas esteve Polinice divino,
com o fim de reunir companheiros, pois nesse tempo cercavam os muros sagrados de
nos versos 388-9: “... o domador de cavalos, Tideu, não ficou perturbado.” O
foi. O Etólio Tideu, mas a um filho gerou bem sabemos nas conjunturas da guerra, se
Retorna-se a outro caso rosiano, que segue o modelo do primeiro caso analisado.
que usa da história para refletir sobre a jagunçagem. O caso é acionado com uma
conversa quero refletir ao senhor. Foi que, eu puxando, eu desejando saber, se falou
muito nessas orações de curar a gente contra bala de morte, e em breves que fecham o
corpo.” (GS: V, 327). O intervalo cíclico segue: “Alaripe então contou uma estória,
caso sucedido, fazia tempos, no giro do sertão” (GS: V, 327). A partir daí Alaripe
conta: “Um José Misuso uma vez estava ensinando a Etelvininho...” (GS: V, 327). O
narrador retoma o foco narrativo, confirmando que naquele momento fora ouvinte da
história: “A gente muito rimos todos”. A narrativa principal passa a vigorar novamente
44
328).
O caso é mais breve, mas relata as crenças jagunças sobre o corpo fechado,
corpo que Aquiles continha, pois fora banhado no Estige, pela mãe Tétis, assim que
paradigmas mitológicos sendo que a crença tem teores que podem ser considerados
míticos.
como a sua personalidade dialoga com o ser ou não ser jagunço. Tanto o “Caso de
principal a refletir mais sobre a sua condição. Na voz de Jõe Bexiguento e Alaripe, ele
INTERMISSÃO
voz a Dione que, em histórias homéricas, geralmente aparece como mãe de Afrodite, e
esta última é reconhecida como filha de Zeus. O paradigma em questão serve como
consolo, pois Afrodite vai ao Olimpo tratar de um ferimento, causado por Diomedes,
um corte que fez emanar de sua mão um icor precioso que só corre nas veias dos
divinos. (cf.v. 339) A deusa primordial ilustra para a filha que outros imortais já foram
feridos em batalhas com mortais e souberam resistir à dor: “Ainda que muito te aflija,
querida, suporta paciente. Que de aflições indizíveis, os deuses, por causa dos homens,
imortais que servirão de modelo paradigmático para a deusa do amor. “Ares também já
sofreu quando foi em possantes cadeias acorrentado (...)” (v. 386-7) “Hera, também, já
sofreu quando o herói Anfitrônio no seio destro a feriu com uma seta dotada de três
dardo por esse mesmo homem forte atirado, de Zeus descendente, no próprio sólio dos
mortos, causando-lhe dor infinita.” (v. 395-8). O paradigma se fecha com a afirmação
de que mortais causadores de feridas em deuses têm tristes fins. Foi o acontecido com
Afrodite contra Diomedes. Ela faz Egíale, esposa do Etólio, infiel ao marido durante
toda a sua estada na guerra de Tróia. Por causa da sua constante lascividade, a rainha se
mata. O paradigma se aplica para aquele que ousa desafiar os deuses. O modelo
PARADIGMA
MITOLÓGICO b’ Pois, de fato não era de
estirpe terrena.
Outros Deuses
suportaram b
Dione: “Deuses
Feridos”
c
Exemplos de Ares, Hera e Hades
FIGURA 5
________________________________________________________________________
caso que Seo Ornelas conta acerca de um certo Dr. Hilário. Riobaldo dá a voz para Seo
Ornelas, mas encena a transição do ponto de vista: “E como eu atalhei o assunto, por
convinhável nas boas normas, pois a lembrança dum inimigo deixa qualquer homem
agastado...” (GS:V, 346-7). Em seguida, mais uma vez, o uso da estratégia encenada
ressalta a transição do foco narrativo: “O Seo Ornelas relatou à gente diversos casos.”
discurso indireto para indicar a voz do seu contador de casos. O recurso é amplamente
usado, com indicações que vêm marcadas como: “Seo Ornelas — segundo seu contar
— proseava nas estradas da cidade, em moda com Dr. Hilário mais outros dois ou três
senhores...” (GS:V, 347). O caso chega ao fim, com a presença de Riobaldo mais
evidente, apesar de a história ter sido narrada por outro. A narrativa principal é
47
retomada, o caso parece ajudar nas reflexões de Riobaldo sobre a sua chefia, pois logo
em seguida tem-se a frase: “Tal e outras contou Seo Ornelas, senhor de prosa muito
renovada...” e logo depois: “Pelo que, por todo o seroar, deixei com ele a mão; ainda
que às vezes eu ficasse em dúvida: se completa, sendo eu um chefe, aturar que um outro
________________________________________________________________________
INTERMISSÃO
b’ Tal, e outras, contou o
O Seo Ornelas relatou b Seo Ornelas, senhor
à gente diversos casos. de prosa muito renovada.
Caso do Seo Ornelas
“ O Dr. Hilário”
Outras histórias que se misturam à narrativa são contadas pelo próprio Riobaldo,
que quebra o eixo central da história e insere outras. Não há aqui um recurso polifônico,
mas uma estratégia do narrador para construir a sua história, entremeada com muitas
outras que dão a nuança de que se trata de um contar oral, involuntariamente chamando
linha de ação narrativa não fica muito definida, o narrador faz com que tudo progrida
essência cosmogônica e coletiva, transparente nas descrições espaciais assim como nas
Rosa, aceitando ser romance e epopéia, ao mesmo tempo em que mescla características
narrativa ainda parece um tanto claudicante. A história ou o “caso dos primos” não
para contar o marcante caso dos primos; refletindo sobre os costumes locais, Riobaldo
inicia com o seu “mire e veja” (GS:V, p. 48) e logo conta: “só porque marido e mulher
eram primos carnais” e, em seguida: “... os quatro meninos deles vieram nascendo com
a pior transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos...” (p.48) A narrativa
principal é retomada com frases que ajudam a fechar o exemplo circular: “Arre, nem
49
posso figurar, minha idéia nisso!” e o encerramento: “Refiro ao senhor...”, que marca a
a “Mire e Veja...”
a’ Refiro ao senhor
INTERMISSÃO
b b’ “Arre, nem posso figurar
Só porque marido e minha idéia nisso!
mulher
O Caso dos primos
c
Os quatro meninos deles vieram
nascendo com pior transformação que
há: sem braços, sem pernas, só os tocos.
FIGURA 7
________________________________________________________________________
abateram o macaco, preparado com muito gosto pelo bando. No entanto, percebe-se que
o tal macaco não tinha rabo; era José Alves, devorado por Riobaldo e os companheiros.
antropofágico. Medeiro Vaz passa mal; outros jagunços regurgitam, pois sentem asco
Mais adiante, um outro caso chama a atenção. “Assim...” (p. 59) marca a
que conta a história de uma boiada inteira que encalhou e se decompôs no local, abre-se
azulado. Por causa disso o lugar recebeu fama de amaldiçoado. Diziam que ali
dele ir matar o outro...” Os dois irmãos se rebelam e acabam executando o próprio pai.
cometido o parricídio. Aqui, a história serve, nitidamente, para dar contorno à figura
coerente da parte do narrador fazer uma pausa na narrativa principal e usar um caso para
explicados para o narratário. “Mas porém, o chefe nosso, naquele tempo, já era ― o
senhor saiba ―: Zé Bebelo.” (GS:V, 60) Feita tal caracterização, volta-se à história a
a
Só que um pobre veio morar próximo com Zé
Bebelo, oi, rumo das coisas nascia inconstante,
diferente, conforme cada vez.
a’
Refiro ao senhor
INTERMISSÃO
Semelhante não foi... b b’ Mas porém, o chefe
nosso, naquele tempo,
já era— o senhor saiba —:
O Caso de Zé Bebelo.
Rudegério de Freitas
c
FIGURA 8 Mandou obrigado um filho dele ir matar
o outro.
________________________________________________________________________
Veredas. Há várias maneiras de lidar com este fenômeno. Inegável, no entanto, que o
ato de contar histórias, involuntariamente, chama outras histórias. Esta interpolação foi
herdada da tradição oral. As ações tanto de Riobaldo quanto do aedo da Ilíada são
Nota-se que mesmo os paradigmas mais longos não impedem que o narrador
retome o eixo principal da narrativa, a ação propriamente dita. Constatou-se tal fato na
narrativa rosiana. Casos mais extensos, como o de “Maria Mutema e do Padre Ponte”,
acionado com uma ameaça de morte; parte do confronto entre Diomedes e Glauco. “Os
que medem comigo são filhos de pais sem ventura.” Em seguida a exemplificação é
colocada: “Mas, se um dos deuses tu fosses, que moram no Olimpo vastíssimo, sabe que
contra os eternos não quero em combate medir-me.” (v. 128-9) Usa-se a figura de
Licurgo como modelo para esclarecer a razão maior de nunca enfrentar um Deus em
Dionísio, ele e as amas, violento, repele do sacro monte de Nisa.” (v. 132-3) Licurgo, o
rei da Trácia, tentou expulsar o culto ao deus Dionísio de seu país. As ninfas estimadas
a Dionísio são agredidas pelo nobre, o próprio Brômio refugiou-se no mar junto a Tétis,
devido à investida do mortal. Mesmo assim, Diomedes lembra que Licurgo não viveu
muito por causa deste feito: “Mas, depois disso, contra ele irritaram-se os deuses felizes,
tendo-o cercado Zeus Crônida. A vida bem curta ele teve, por se ter feito odioso aos
eternos que moram no Olimpo” (v. 138-9). O círculo fecha-se com o verso: “Mas, se,
início: “...chega-te, e logo hás de ver-te, por certo no exemplo funesto.” (v. 143)
Outro paradigma mais extenso está no Canto IX, onde é relatado o mito de
parte do Canto. Fenice expõe: “Ora, meus amigos, me ocorre contar-vos um caso nada
recente.”(v. 528). O grego continua esclarecendo a cólera de Ártemis, depois que Eneu
Febo, então, “um javali de alvos dentes, selvagem, envia contra ele...” (v. 529). Versos
quase idênticos fecham um paradigma rico e dos mais expressivos: “De certa vez os
Cuerentes e os fortes Etólios, à volta de ...” (v. 529) e “Entre os Etólios galhardos e os
PARADIGMA
MITOLÓGICO
De certa vez os
Cuerentes e os fortes b’ “Entre os Etólios
Etólios, à volta de... galhardos e os homens
Cuerentes valentes.”
Meléagro e o Javali
c
A História de Meléagro e o Javali
FIGURA 10
________________________________________________________________________
dado equipara Aquiles ao grande herói Héracles, talvez o maior herói dos gregos
força da entidade, dizendo ser Zeus uma de suas vítimas. O excelso deus se vê vitimado
convence Aquiles, ele não retorna à batalha persuadido por nenhum dos discursos dos
PARADIGMA
MITOLÓGICO
O próprio Zeus b’ Dor muito aguda Zeus
poderoso, que os na alma sentiu, ao ouvir
b
deuses e homens a notícia.
supera, em suas A história de Héracles
malhas se viu feita.
A História de Héracles
FIGURA 11
________________________________________________________________________
contado por Aquiles. Ele aparece no último Canto, o vigésimo quarto. O exemplo é
quinhentos e noventa e nove: “Teu filho, velho, tal como querias...” Níobe é lembrada
para uma confraternização, uma ceia, pois Aquiles lembra: “... de comer se lembrou até
parecidos com o do início: “que terás tempo de o filho chorar mais adiante...” (v. 619).
homérico. É a única vez que a narração é assumida por Aquiles para uma função
paradigmática. Aquiles fica ausente boa parte da Ilíada, mas sem dúvida, é o foco
Curioso ver a necessidade de um exemplo cunhado pelo próprio Aquiles. Mais uma
A História de Níobe
...Contra os eternos c c’ Níobe, lassa de choro,
não quero em combate afinal, de comer, foi
medir-me. lembrada.
d’
Os deuses urânios ao décimo
d dia os enterraram.
Quando perdeu no e
seu palácio seus
doze rebentos. A ofensa de Níobe
FIGURA 12
________________________________________________________________________
aceita ser chamado, também, de épico. Romance provindo do advérbio latino romance
batalhas no sertão.
guerra. Jagunços embatem entre si, enfileirados em suas montarias e, armados com
atitudes passionais do homem sertanejo. Obedecem à lei do “olho por olho, dente por
Batedores são sempre acionados para que reportem a situação da frente inimiga.
imensidão do sertão, o local por onde faz as suas andanças. O ganho territorial
itinerante, pois é esta condição, “acrescentando a sua liberdade, que o jagunço mais
por vasta experiência. Desafiar tal hierarquia implica na não-aceitação do jagunço pelo
benfeitor, um soldado que luta por um ideal, que defende sua posição. Ele saqueia e
pilha, tirando dos ricos para entregar aos pobres. A sobrevivência do jagunço, segundo a
Riobaldo orgulha-se da função que ocupará. Nas inúmeras vezes não abandona a
idéia de desistir da jagunçagem. O “ser” jagunço e o “não ser jagunço” são “papéis
ANDRADE; 1991,492)
cantos dedicam-se ao aspecto com mais intensidade. São eles os Cantos V, XIII, XI-
59
atenção para tal estratégia, pois o leitor da atualidade pode achar o presente recurso um
tanto enfadonho, mas deve-se lembrar que, na Antigüidade Clássica, havia quem
Homero admirava lutas e tinha uma concepção clara e vívida do que estava ouvindo ou
lendo.
impossível de se saber. Um retrato geral poder ser imaginado, de soldados com grevas
metal pode ser considerado bronze. As bigas eram transportes comuns, mas nota-se que
que tomam a frente para o arremesso da lança ou para fazer um desafio a um oponente
específico. Um efeito que Willock ressaltou como sendo parecido com os que os
exércitos se fecham e tal situação leva o poeta a usar símiles expressivos. Qualidades
marcantes nas batalhas são acionados com alguma descrição extravagante, como um
recuo de bigas ou o destaque de algum herói: a aristia. Gregos ceifam a vida de seus
60
A descrição de feridas é retratada ora com tons realistas, ora com tons de
perceber o perigo de seu texto se tornar monótono, por isso existem constantes guinadas
que tanto o Grande Sertão: Veredas quanto a Ilíada privilegiam tal aspecto em suas
comparados.
das balas das armas de fogo. No entanto, armas brancas e vestimentas próprias para a
Riobaldo age como batedor em certas batalhas, como franco atirador e depois
como líder. Sua posição em batalha muda de acordo com a sua hierarquia. Nas batalhas
61
iniciais, depara-se mais com a descrição de Riobaldo sobre o combate. Quando assume
a posição de líder, ele assume uma função mais contemplativa nos campos de batalha.
Diante das fileiras, o Urutu Branco age dinamicamente, exercendo a função de chefe e
O Canto III contém dois temas alternados. O primeiro é a batalha singular entre
Páris Alexandre e Menelau. O segundo é a descrição dos heróis gregos feita por Helena.
atenção para o alto das muralhas, onde Helena descreve para o rei e os anciãos de Tróia
os principais líderes aqueus. Percebe-se que o duelo singular fica em aberto, pois
Afrodite salva o seu protegido de uma fatalidade certa. O Canto termina em Tróia,
Passa-se, agora, ao paralelo proposto, cujas figuras centrais são Riobaldo e Páris
Homero quando duvida de sua própria capacidade de liderança. Vale, então, detalhar
aspectos do Canto III da Ilíada para, em seguida, fazer um paralelo com a ação que
troianas e as disciplinadas fileiras gregas. Faz-se necessária uma retomada do Canto II,
onde ocorre uma pormenorizada descrição dos exércitos. Os soldados e seus líderes são
conforme a lenda, tribos da Etiópia, extremo sul, tal como era considerado pela
geografia clássica.
disso, Páris salta diante da guarnição troiana. Tal ato provoca a imediata reação de
Menelau, que se coloca diante de sua guarnição. Páris veste a pele de um leopardo,
príncipe troiano do restante dos soldados, pois o mesmo é constantemente referido pela
semelhança física com os deuses. Dionísio e Héracles, por exemplo, vestiam peles de
felinos. Baco o de uma pantera e Héracles a pele do leão da Neméia. O próprio Zeus era
dissimulada. Nessa hora, o irmão mais velho de Páris, Heitor, expõe o seu
heróis traçados por Homero. O chamado herói homérico reproduz em suas falas o ideal
Heitor não deixa de reprimir Páris, achando o seu ato de fuga dos mais
desprezíveis. O amante de Helena foge ao ver que Menelau havia atendido o seu brado
de desafio. É acerca desta atitude que Heitor se vê impelido a reprimir Páris, devido à
presentes dos deuses.” No caso aqui, os dons vieram da áurea Afrodite. Os dons em
questão são os da sedução, a simetria e a beleza. O príncipe pede a Heitor que convoque
novo embate, o que solucionará a guerra, pois o vencedor levaria Helena e os seus
proposta e sugere sua firmação com o sacrifício de dois cordeiros, “um macho branco e
uma fêmea negra”, pois em geral sacrificam-se vítimas do mesmo sexo dos deuses,
brancas para os deuses celestes e negras para os deuses subterrâneos. Um arauto parte
confronto, pois é mais guerreiro que Páris Alexandre, representando o ímpeto, o desejo,
64
divina de Afrodite.
cargo de chefe jagunço. Riobaldo sente um temor, uma falta de preparo, muitas vezes
citado por Páris que, declaradamente, gaba-se por reunir os dons de sedução e do amor e
não os dons guerreiros. Riobaldo reflete sobre este momento de oscilação, se acha
Riobaldo ainda reage mal. Não aceita de todo a condição jagunça e um cargo de
liderança não o deixa em uma posição muito confortável. Riobaldo refuta a liderança,
“— Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece. Mas nós sabemos a tua
valia...” — Diadorim retornou. Assim instava, mão erguida. Onde é que os
outros roda-a-roda, denotavam assentimento. “— Tatarana! Tatarana!...—
uns pronunciaram; sendo Tatarana um apelido meu, que eu tinha.
65
Páris reluta em cumprir os atos de um herói, assim como Riobaldo, quando nega
a liderança. O príncipe troiano justifica a sua atitude, falando de seus dotes artísticos e
não dos guerreiros. Riobaldo nega a posição de chefe que lhe é oferecida, ofendendo a
Páris não poderia ter negado a luta contra Menelau no momento em que lançara o
desafio. Riobaldo não poderia ter negado a liderança, agia contra a sociedade dos
Ainda no Canto III, nota-se um outro fator que emparelha a Ilíada com o Grande
Sertão: Veredas.
veste uma armadura de guerra mais realista, confirmando, assim, o tom fantasioso da
que tem sua dimensão épica evidenciada quando Riobaldo descreve a sua vestimenta:
fazerem reconhecíveis, uma marca do grupo social a que era pertencente; assim fazia o
herói homérico, identificando-se pelo bronze de sua armadura e pelo relevo estampado
este ainda era do bando. Fato que incomoda o jagunço, pois desprezava o caráter de
seu conflito:
Aí foi curto fogo, mas eu levei uma bala, de raspaz na carne do braço, perdi
muito sangue. Raymundo Lé banhou com casca de angico, na hora melhorei;
Diadorim amarrou bem, com pano duma camisa rasgada. Apreciei a
delicadeza dele. Atual, todos prestaram em mim amizade de atenção, aquilo
vinha a ser até um consolo. Só que, depois de dois dias, o braço me doía
inteiro e inchava... (GS:V, 244).
jagunço. O ferimento poderia tê-lo banido das futuras batalhas e as suas habilidades
68
(...) sei que a inchação me cansasse muito, sempre eu queria esbarrar pra
água beber. — “Se eu tiver de atirar, então como é que faço? Não posso...”
— era outro meu receio. (GS:V, 244).
Assim como Riobaldo, Páris Alexandre procura reabilitar-se diante das normas
sociais impostas. Seu ato covarde de retrair-se, no primeiro combate, teria reparo no
outro embate que estava por vir. A consciência de seu ato lembra muito a de Riobaldo,
sabendo ser imperativo ficar na batalha, mesmo ferido, para não perder o status por ele
conseguido. Desta vez, Páris luta, enfrenta o grego Menelau, o marido de Helena. Ele
não refuga, mas é evidente a sua inferioridade diante do rei de Esparta. Ambos
guerreiros perdem as armas. Fisicamente, Menelau subjuga Páris e o arrasta pelo elmo
brumas, e socorre o príncipe troiano. Páris, por causa do acontecido, não mantém a
palavra, apesar de ter sido salvo por interferência divina, fato que irá macular seu status
Argos. Ele se destaca e os seus feitos são exaltados na Dolonia, feito ocorrido no Canto
V da epopéia.
especial, marcadamente, no campo de batalha. Cada guerreiro tem a sua cena gravada. É
Diomedes honra a sua função social. Enfrenta deuses fisicamente e sai vitorioso. Fere
Afrodite no momento de mais uma interferência da deusa, desta vez para salvar Enéias,
anatômicas de Homero são muito precisas). O herói troiano fere-se, rompem-se-lhe dois
tendões, e ainda tem a pele rasgada. Está para sucumbir, já genuflectido, quando a sua
mãe intervém, cobrindo-o com um manto branco, “um véu, muralha contra dardos!”
Mesmo assim, a espada de Diomedes vara o pano tecido pelas próprias Cáritas, e com
isso, fere Afrodite nas mãos. Enéias, então, é protegido por Febo Apolo, enquanto a sua
vitorioso. Ares recebe um golpe de lança “na parte inferior no flanco, onde o envolvia a
guerreiro troiano de nome Enéias e, em seguida, ferir dois imortais deixa o talento do
destacado como jagunço exemplar. Seus feitos podem ser equiparados aos de
condição: “Ah, eu, meu nome era Tatarana!” (GS:V, 384). Riobaldo, aqui, entende a sua
posição de jagunço-chefe. O ato da personagem de Rosa valida o seu status e a sua ação
no campo de batalha.
declarada dos gregos. Palas endossa a valia de seu herói nestes versos:
Na narrativa das duas obras, percebe-se que o herói e o jagunço são descritos por
sua genealogia. Explicitar as suas origens parece traço marcante do discurso heróico.
Sua origem confirma seu status social. Ser herói implica uma carga social imensa, de
Orgulho máximo do herói, ele nunca nega a oportunidade de revelá-la. Tal atitude é
marcante na Ilíada.
Dardânios. No Canto XX, antes de enfrentar Aquiles, ele lembra suas origens. “Por
imortal Afrodite.” (v. 208-9) O restante da genealogia vem transcrito abaixo. A fala é
questiona a atitude de Enéias de se embater com ele. Desta vez, o Pelida frisa que nem
72
A genealogia segue:
para enaltecer sua figura heróica. Assim, enobrece o confronto com Aquiles. Enéias é o
73
mais poderoso dos guerreiros troianos, depois de Heitor. Não é parte da primeira casta,
pois não descende diretamente de Príamo, mas é gerado por Afrodite, mantendo-se,
assim, nivelado com Aquiles, que também fora gerado por uma deusa. Apesar de
exímio combatente, não é páreo para Aquiles, que o subjuga. Enéias, mais uma vez, é
salvo por interferência divina. Desta vez, Poseidon evita o perecer do herói. Aquiles
reconhece: “É, por sem dúvida, Enéias querido dos deuses eternos. (v. 347)
“—... Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero
julgamento, esta bizarria... Agradeço sem tremor de medo nenhum, nem
agências de adulação! Eu. José, Zé Bebelo, é meu nome: José Rabelo Adro
Antunes! Tataravô meu Francisco Vizeu Antunes — foi capitão-de-
cavalos... Demarco idade de quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de
José Ribamar Pachêco Antunes e Maria Deolinda Rabelo; e nasci na
bondosa vila mateira do Carmo da Confusão...” (GS:V, 211)
Bebelo é de fato homem bem nascido. Qual seria outra razão para descrições tão
levasse em conta o discurso proferido por Bebelo, que influenciou Riobaldo e este,
deus Ares. O grande deus da guerra, simpático aos troianos, perde seu embate contra o
mortal líder dos gregos, provocando a sua fuga para o Olimpo. Diomedes fere Ares,
74
traspassando-lhe a divina pele. “Ares, o deus de bronze, gritou com a força de nove ou
depois do suposto pacto nas veredas mortas. Treciziano é confundido com a própria
figura do demônio; por isso é degolado por Riobaldo. De um lado, vê-se certa inaptidão
— “Tu vai Riobaldo. Acolá no alto, é que o lugar de chefe. Com teu dever,
pela pontaria mestra: que lá em riba, de lá tu mais alcança... Constante que,
aqui, o negócio está garantido...” — ele disse, mansinho, de me persuadir
(GS:V, 441)
75
personagem de Rosa10.
Trecho marcante das cenas de batalhas, de alto teor comparativo, vem a ser a dos
Eu ia dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ele rezava rezas da Bahia.
Mandou todo mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a
cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me
mostrou de propósito o corpo. (GS: V, 453).
quanto para a importante revelação que irá acontecer no desfecho da narrativa rosiana.
10
Tanto Idomeneu quanto Odisseu e Aias podem ser comparados ao protagonista de Rosa.
76
celebra Pátroclo, guerreiro grego, estimado de Aquiles e morto por Heitor no Canto
XVIII.
o corpo sendo carregado em uma biga; Aquiles, apoiando a cabeça de Pátroclo, oferece
mechas de seu cabelo. Constrói-se uma pira alta, banhada em gordura animal, para
depositar o corpo do guerreiro. Adicionam-se à pira óleo de oliva e mel, cavalos e cães
durante as celebrações.
Jogos são realizados para honrar o guerreiro morto. Oito eventos ao todo,
começando por uma corrida de bigas, seguida de lutas livres e pugilismo e, de uma série
Zé Bebelo traduz bem o impacto que causa o gênero. Alan Viggiano compara o trecho à
personifica grande atitude heróica; tal constatação aproxima ainda mais o Grande
vem transcrita abaixo. Vale dizer que a parte aqui explicitada consegue envolver uma
— “Ele? O jeito que é o dele, que ele tem? Em é mais baixo do que alto, não
é velho, não é moço... Homem branco... Veio de Goiás... O que os outros
falam e tratam: “Deputado”. Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti...
“— Estávamos em jejum de briga...” — ele mesmo disse. Ele e seus cinco
deram fogo feito feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse: vai remexer o
mundo! Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti... Desceram... Nem
cavalo eles não têm... ” (GS: V, 69)”.
Grande Sertão: Veredas. Junto com a volta de Zé Bebelo está o anunciar de grande
batalha. Zé Bebelo retorna do exílio para vingar a morte de Joca Ramiro. Ele é peça
chave para que a batalha possa ser vencida. Daí a necessidade de se frisar o impacto da
para a batalha. Aquiles retoma a sua posição para vingar a morte do amigo Pátroclo. A
única razão que deixa Aquiles perdoar o chefe Agamêmnon por ter lhe tomado a
escrava Briseide, seu espólio de guerra. Heitor é quem mata Pátroclo, acionando a volta
Para aumentar ainda mais o impacto da chegada de Aquiles, são forjadas novas
armas, uma nova indumentária. Tétis pede pessoalmente ao deus Hefesto, mestre ígneo,
para talhá-las. Novo escudo, novas lanças, espada, elmo e cnêmides são feitos pelo
Aquiles ignora a profecia que lhe foi feita. Se matasse Heitor gozaria de pouca
vida terrena. Para vingar a honra do amigo, Aquiles desafia a profecia. Tal destino é
sempre lembrado por sua mãe e até pelos cavalos, Xantos e Balios, que puxam seu carro
de guerra.
herói carrega o ideal que defende nas batalhas e este ideal fora talhado por um deus. Um
escudo magnífico, totalmente diferente dos escudos dos outros guerreiros. Tem duas
estampa uma feição de pavor nas fileiras troianas. O maior guerreiro, um deus entre
conflito ocorre às margens do grande rio, irritado com o massacre de troianos que
de Ílion. Hera, deusa protetora de Aquiles, pede a interferência do filho Hefesto, o deus
do fogo ígneo, para não deixar o herói perecer nas águas do Escamandro. O duelo
desfecho da Ilíada. Neste canto e nos últimos três acontecem batalhas de grande porte,
mas a batalha dita como sendo uma batalha de transição acontece entre Aquiles e a
Ilíada e a Aithiopis11.
nas localidades do Rio do Sono. Alan Viggiano lembra que “o Rio do Sono, sim, é um
rio épico, na saga de Riobaldo Tatarana”. Nota-se que o Rio do Sono é um cenário de
triunfante chegada, como já fora mencionado, de Zé Bebelo, fato que ajuda a destacar o
teor épico contido no romance rosiano. O embate final e decisivo entre os jagunços de
Alan Viggiano aponta o local exato do Rio do Sono, onde tal marco acontece:
11
Escritos apócrifos relacionados com a Ilíada, onde o enfoque é o desfecho da queda de Tróia,
principalmente o episódio que concerne a morte de Aquiles e a elaboração do ardil que resultou no
Cavalo de Tróia.
80
Hermógenes, vem a ser nas margens de um rio, local onde ocorreu uma das batalhas
Interessante notar que todas estas personagens perecem. Decerto que a morte de
O vocábulo herói deriva do grego heróe (h@rwς, h@woς), um homem notável por
suas qualidades e proezas extraordinárias. Nos feitos do herói estão incluídos atos e
O herói homérico vivia sob rígidas normas sociais e culturais, normas que
guiavam a sua vida, tanto no campo de batalha quanto no seu lar. A posição de herói
entre muitas coisas, o sofrimento e a morte. O herói tinha sempre duas escolhas: poderia
seguir uma força externa ou poderia fazer a escolha por ele mesmo. Tal dimensão, no
herói; saber reconhecer a hora certa de deixar a batalha e saber quando fora abandonado
pelos deuses. Não ter estas qualidades implica a perda e a aprovação da honra. A
comunidade homérica dependia de seus heróis para defender seus ritos sociais e
religiosos, assim como outros valores culturais. Ser herói era uma responsabilidade que
atribuía ao homem um status social. O guerreiro somente definia e justificava este status
maneira de estabelecer este status era no campo de batalha. O herói deveria mostrar
respeito e responder às normas sociais, assim como obedecer aos seus superiores e
mas, para o herói, a honra é o ápice. Não poderia suportar insultos, sentia que deveria
sempre proteger a sua reputação. A função do herói é a de lutar, única maneira de obter
apoiar mutuamente em batalhas e refutar por completo crueldades abusivas, razão por
que abominava a injustiça e a tortura. Ao ceifar a vida de uma vítima, fazia-o de uma
esse código, instalava-se com honra em sua comunidade e a honra comunitária consistia
em algo vital para o herói homérico. Seu mundo girava em torno do relacionamento
com a família e a cidade. Perder esta honra concedida pela sociedade deixaria a sua vida
que as pessoas diziam. Falhando na execução de seus deveres, de alguma forma teria a
raiva e o desprezo de sua comunidade, a mais intensa das vergonhas. Quando um herói
deus ou da sociedade como um todo. Em seus solilóquios, o herói também era guiado na
Esta pequena reflexão sobre o herói homérico suscita uma serie de reflexões
fala de herói, tem-se em mente o ser mitológico, estruturado, alheio a perigos que o
ameaçam. Este ser exerce um extremo controle, de si mesmo e da ação que o circula. O
falam de um homem extraordinário pelas suas proezas guerreiras, pelo seu valor ou
imitação de uma ação importante e completa, uma ação encenada onde atores,
que se imita, ou deve ser imitado em uma tragédia, é a ação mítica inerente ao texto,
representada pelo herói. Essa figura, mítica por excelência, teria de assumir,
O herói trágico, assim como o herói épico, age na sua moira e acaba
este respeito visava o clássico herói da tragédia, valorizado substancialmente pela fábula
84
moralista e cujo caráter se faria mais rico e cheio de nuanças quando ligado a um
destino incomum, fruto das profecias dos deuses ou das artes do imprevisível. Assim, é
lógico concluir-se que os heróis não-participantes da ação não deveriam ser imitados e é
máximas aristotélicas. Certos romances vêem o herói como um ideal humano, ser
extraordinário então, não muito divergente da construção épica. Personagens como Peri,
idealização humana. É comum demonstrar o herói como um ser completo nas suas
No entanto, são nas análises orientadas pela sociologia do romance, que se passa
a enxergar outras construções do herói. Como já fora visto, o herói se enquadra em uma
pólo, seres divinos inabaláveis. Em outro, um herói que se encontra abaixo do ser
humano mais comum. Todos os heróis, não obstante, em conflito, como ilustram
vocábulo. Certamente, levam-se em conta fatores contextuais para que o estudo possa se
tornar pertinente. O jagunço e o herói homérico dividem muito mais semelhanças que
85
estabelecida pelos jagunços. Para Consuelo Albergaria, o chefe tem uma ação
Tal trecho será posto frente a frente com o que se usou chamar de “Teichoskopia”
A atenção volta-se para um dos mais marcantes trechos da Ilíada, que descreve o
ponto de vista de Helena sobre os líderes gregos. Ver Helena no alto das muralhas
compara-se, pois, a uma visão divina. Assim fala Príamo, o rei dos troianos:
representação das batalhas acontecidas em seu nome. Este é o momento mais evidente
troianos, o que valida ainda mais a descrição. A beleza de Helena transpõe o físico e
salta para o teor mítico. A partir da visão da mais bela mortal, Príamo e seu conselho
Atreu descendente, tão grande rei, chefe de homens, quão forte e notável guerreiro.”
Parente de Helena, pois é Atrida, assim como Menelau; a princesa parece saudosa, mas
habitava Tróia. Fala de Hermíone, sua filha, agora já quase uma mulher feita. Ela tinha
somente oito anos quando a mãe deixara Esparta com Páris. Helena faz menção a sua
então, relata as suas impressões do líder de Micenas e depois passa a palavra novamente
à princesa Helena.
querer ver os heróis gregos sob certa hierarquia. Príamo, vendo Odisseu, pede que o
senhor de Ítaca seja descrito, já adiantando a sua admiração pelo líder. Helena segue e
nascido, astucioso, guerreiro, de Ítaca oriundo, apesar de ser ilha de chão pedregoso, em
maior virtude. Antenor, um dos anciões, lembra de seu discurso quando esteve em visita
diplomática para reaver Helena. O ancião compara o discurso de Odisseu “qual neve no
tempo de inverno”, não podendo nenhum mortal rivalizar-se com ele. O dom da palavra
Menelau, por sua vez, é referido como homem de poucas palavras e de grande
porte heróico. Curiosamente, Helena não se detém muito na descrição do marido, fato
Acaio tão belo e de tal corpulência, de bem maior estatura e de espáduas mais largas
que os outros?” Helena, coberta por um véu, confirma a imponência de Ájax; neste
momento, pela primeira vez, a princesa é descrita como sendo “a divina criatura.” A sua
posição no alto da muralha endossa o teor divino de Helena, filha do próprio Zeus e
maioria das representações antropomórficas mostra as deusas cobertas por algum tipo
Helena finda a descrição de Ájax: “Esse é o baluarte dos homens Aqueus, Ájax,
o gigante”. A figura excelsa do líder da Salamina ainda se destaca mais, depois que
Helena ainda se lembra dos saudosos Castor e Pólux, descritos como heróis
versos dão a entender que Helena não estaria a par da morte de seus irmãos, os
Dioscuros. Versos adiante confirmam que Helena já sabia do destino dos parentes.
e Menelau, também muito significativo no Canto III da Ilíada. Helena, mais tarde,
desempenha outro papel importante nos versos homéricos para, então, praticamente, se
Zé Bebelo, o réu, já descrito neste trabalho, tem atenção especial. Sua atitude
merece uma descrição detalhada do protagonista. Começando pelo peculiar ato que
inicia o julgamento, em que Zé Bebelo, assumindo atitude corajosa, vista por Riobaldo
até como um ato insano, senta-se diante dos outros chefes maiorais. Atrevido, ele até
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assinara a sua sentença de morte, mas eis que Joca Ramiro, cordialmente, senta-se no
como uma grande ação heróica. O jagunço, rival de Riobaldo, questiona o caráter de Zé
— “Cachorro que é, bom para a faca. O tanto que ninguém não provocou,
não era inimigo nosso, não se buliu com ele. Assaz que veio, por si, para
matar, para arrasar, com sobejidão de cacundeiros. Dele é este Norte? Veio a
pago do Governo. Mais cachorro que os soldados mesmos... Merece ter vida
não. Acuso é isto, acusação de morte. O diacho, cão!” (GS: V, 201)
julgamento. Pede que as suas atas sejam removidas e gesticula, o que Rosa chamaria de
expondo a habilidade de Bebelo com as palavras. Esta é certamente uma das qualidades
heróis gregos que tinham também no discurso uma grande arma: Odisseu, Idomeneu,
Ájax e Páris.
estapafúrdia, imitando “o pica-pau em seu oficio em árvore.” (GS:V, 201) A sua fala,
submetido. Excesso grave, como lembra Joca Ramiro, não ficou deflagrado. O chefe
maioral diz: “Temperou somente: — Mas não falou o nome-da-mãe, amigo...” (GS: V,
202).
necessidade da execução de Bebelo. A sua ofensa não agravava a este ponto. Em sua
defesa, Zé Bebelo menciona a sua genealogia. Como fora citado anteriormente, ato bem
—“... Eu conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do lado dele, nunca
menti que não estive, todos aqui sabem. Saí de lá, meio fugido. Saí, porque
quis e vim guerrar aqui, com as ordens destes famosos chefes, vós... Da
banda de cá, foi que briguei, e dei mão leal, com meu cano e meu gatilho...
Mas, agora, eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que
honra o raio da palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, de primeira, sem ter
ruindades em cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir
de com eles se judiar... Isto, afirmo! Vi. Testemunhei! Por tanto, que digo,
ele merece um absolvido escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-
toa... E isto digo, porque de dizer eu tinha, como dever que sei, e licença
dada por meu grande chefe nosso, Joca Ramiro, e por meu cabo-chefe Titão
Passos! (...) (GS: V, 208-9)
fazer de chefe, transitando ora na margem direita ora na margem esquerda do São
Francisco. Um chefe presente, tanto no sertão quanto nas gerais. O seu forte vínculo
com o mundo material, principalmente seu desejo por um cargo político, o impede de
de Riobaldo.
caráter de Riobaldo. Para Albergaria, este é um dos fatores que possibilitam a libertação
do protagonista.
primeiro a ser contemplado é Joca Ramiro, juiz do julgamento, que recebe bastante
recebe crédito de toda a comunidade: “Mas Joca Ramiro era mesmo o tutùmumbuca;
grande maioral” (GS: V, 202) Nota-se, até, misturada à chefia, uma atitude patriarcal:
Joca Ramiro tinha poder sobre eles. Joca Ramiro era quem dispunha.
Bastava vozear curto e mandar. Ou fazer aquele bom sorriso, debaixo dos
bigodes, e falar, como falava constante, com um modo manso muito
proveitoso: — Meus meninos... meus filhos...”(GS:V, 199)
talento em ouvir e ponderar falas. Ouve desde Hermógenes até os jagunços de pouca
condenando Bebelo ao exílio, exalta todas as suas qualidades heróicas. A sentença vem
transcrita:
— “O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu
povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado
deles, nem cacundeiro. A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?”
(GS: V, 213).
sua valia dentro da sociedade dos jagunços — Bebelo aceita a sua condenação: “Bem se
eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe palavra, e vai?” (GS:V,
213) É aceito por Bebelo o que fora dito e sua resposta valida e confirma a posição
grupo e tal fato sempre transparece em sua fala. Todos os jagunços chefes o respeitam
nesta ordem, assim como os demais jagunços, que ocupam outras posições hierárquicas
de menor relevância no grupo. Joca Ramiro chega a ter qualidades que lembram um ser
Riobaldo.
bom pastor. A instância paterna é muito evidente e Joca Ramiro é “paternal” e estaria
mais “próximo da primeira pessoa da Santíssima Trindade, o Padre, que com o filho e o
Ramiro, no entanto, parece ser a maior contribuição para o jagunço Riobaldo e foi esta
conta desse sertão nosso.” (GS:V, 37) A figura iluminada de Ramiro é associada, de
acordo com Albergaria, ao “Kethen”, a coroa esotérica que ocupa lugar específico na
ponta do hexagrama. (Este é o signo do primeiro ângulo de uma disposição trágica que
ação, não diminui sua importância e os momentos dedicados a sua descrição, pelo
narrador, confirmam que Joca Ramiro é modelo essencial para a formação de Riobaldo
Outro jagunço descrito é Titão Passos. Para Riobaldo, uma espécie de espelho de
Joca Ramiro. Fica perto do grande chefe até o fim do julgamento e participa como
segunda voz que endossa os preciosos ditos que o líder maior proferia.
Mas a gente é sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis vir guerrear, veio —
achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra? Agora, ele escopou e
perdeu, está aqui, debaixo de julgamento. A bem, se na hora, a quente a
gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí estava certo, estava feito. Mas
refrego de tudo, já se passou. Então, isto aqui é matadouro ou talho?... Ah,
eu, não. Matar, não. Suas licenças... (GS: V, 205)
ele ser “como um filho de Joca Ramiro” muito valoriza a sua palavra e o narrador ainda
confirma: “Coração meu recomprei, com as palavras de Titão Passos. Homem em regra,
sempre com atitudes medidas e honradas, acatando o que os outros grandes chefes
almejam para Bebelo. A integridade de sua fala se confirma em seus atos. Haja vista o
no exemplo em que Candelário pede para se medir em duelo com Bebelo, para resolver
o andamento do julgamento:
jagunço: “Ele é bisneto de Pedro Cardoso, trasneto de Maria da Cruz!” (GS:V, 206).
Ricardão são descritos como antagonistas dos valores prezados pelo narrador. Goanha é
também seguidor fiel de Joca Ramiro, tanto que a opinião do chefe tem uma valia
— “Antão pois antão...” — ele referiu forte: — “meu voto é com o compadre
Sô Candelário, e com meu amigo Titão Passos, cada com cada... Tem crime
não. Matar não. Eh, dia!...” (GS:V, 206)
época de seu exercício como jagunço. O protagonista se atenta para Hermógenes, que
Sertão: Veredas. Riobaldo ainda completa com todas as letras: “―Que sim, certo! O
contemplado de maneira bem unilateral. Acumula o que, para Riobaldo, vem a ser todo
contar, o protagonista lembra que o jagunço havia feito um pacto com o demônio, grau
o protagonista começa, pois Riobaldo enfrenta o conflito de ter sido pactário ou não. A
censura feita ao seu opositor é, no mínimo, questionável sendo que o próprio Riobaldo
regular. Há trechos em que Riobaldo reconhece a valia de seu opositor, dizendo até
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que: “O Hermógenes tinha seus defeitos, mas puxava por Joca Ramiro, fiel — punia e
mas desmerecido de situação política, sem tino nem prosápia.” (GS:V, 138) No
narrativa onde se dá uma interação plena entre os dois. Riobaldo se surpreendera com a
sua menção e com o momento em que Hermógenes lhe delega a função de escolher
mais homens para compor o grupo que participaria da ação. “Aí, ele tinha que eu
escolhesse-os para vir juntos. Eu?” (GS:V, 155) Neste momento se dá uma aversão à
liderança de Hermógenes, pois Riobaldo frisa que obedecia ao líder Joca Ramiro e
acataria o mando de Hermógenes por este ser subalterno do pai de Diadorim: “Pensei
em Joca Ramiro. Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não obedecia
visão guia os jagunços por entre as trevas da escura noite do sertão: “O Hermógenes
puxando, enxergava por nós. Que olhos, que esse, descascavam de dentro do escuro
qualquer coisa, olhar assim, que nem o de suindara.” (GS:V, 157) Ali, no silêncio,
sua devoção ao Hermógenes era por princípio: “Aquilo era serviço de armas, fazia
instante, repudia a própria condição de jagunço, quando insinua que ele e Hermógenes
Riobaldo afirma que não é uma má idéia ter o antagonista por perto, devido à sua
momento da ação, aceita uma camaradagem de Hermógenes, permitindo que este lhe
dê carne seca, cachaça e água durante a execução dos serviços de batedor. Riobaldo
suspeita do ato, mas aceita, endossando a sua dúvida com uma pergunta retórica: “Eu
carecia do Hermógenes? Mas, por que foi então que aceitei, que mastiguei carne, nem
fome acho que não tinham direito, enguli daquela farinha?” (GS:V, 164)
ruim.” (GS:V, 131) mas, no momento da ação, Riobaldo lembra: “Seguro nasci, sou
feito. D’o Hermógenes ali junto estar, naquela hora, digo ao senhor, gostei.” (GS:V,
para o réu. Hermógenes mostra sua natureza, desejando desviscerar Zé Bebelo feito
porco. Tal atitude é vista com imenso repúdio por Riobaldo, que se mostra aliviado
por Joca Ramiro ter dado sentença mais prudente. Mas é no julgamento, todavia, que
formação conflitos mais psicológicos, o herói épico parece envolver-se com questões de
Épicos, no geral, mostram heróis que têm como função principal e primordial
serem maiores que o próprio ato vital, se bem que, nem sempre, representam
justificativa moral, o aval que permite ao herói exercer seu poder em sua plenitude.
Ao atingir este excesso, o intacto herói grego parece conter inúmeros pontos de
narrativa épica. Toma-se o épico homérico como exemplo. Seus heróis experimentaram
diria Riobaldo, pergunta que muitas vezes persegue muitos dos heróis épicos, divididos
mitólogos, ele é o sétimo filho do casal, sendo que os outros seis não resistiram às
intensas provações às quais a ninfa os submetera logo após o nascimento. Tétis, com a
exceção de Aquiles, todos perecem. Em muitos relatos, o próprio Peleu é quem livra o
filho da morte certa. Tal relação conturbada, entre o rei da Ftia e a deusa marinha, ainda
banhou seu filho nas águas do Estige, que o muniram com uma pele invulnerável. Tétis,
no entanto, esqueceu de banhar um dos pés do pequeno Aquiles. Este ponto não
banhado foi a razão da queda do mesmo. Para garantir-lhe uma formação extraordinária,
foi levado para o monte Pélion e deixado aos cuidados do centauro Quíron, encarregado
entranhas de leões e javalis, assim como mel e medula de urso. De acordo com certas
tradições, o nome Aquiles foi-lhe dado pelo tutor. Seu nome de nascimento seria
Lígiron.
Tétis o previne sobre o seu destino. Se não for à guerra gozará de vida longa, mas pouca
glória, e ao contrário, se atender às batalhas, teria vida curta, mas grande nomeada no
mundo grego. Desnecessário dizer que o habitante da Tessália escolhe a segunda opção.
tal destino e temendo pela vida do filho, ocultam-no no palácio de Licomedes, o rei de
Ciros, disfarçado de mulher, vivendo entre as filhas do rei. Contam que vivera desta
maneira por nove anos e chamavam-lhe de Pirra, a ruiva. Foi assim que se uniu a
Deidânia e desta união nasceu Neoptólemo, que mais tarde teria participação importante
na guerra de Tróia. O embuste foi descoberto por Odisseu, que sempre soubera da
descobriu que Tróia só cairia se Aquiles fosse para a batalha. Ao visitar o reino de
Licomedes, Odisseu ofertou presentes as suas filhas e, sabiamente, colocou armas entre
os objetos, justamente os regalos que Pirra acabou escolhendo. Tal episódio explicita a
na Ilíada, comportamento este que muito revela sua porção dualística. De certo que, já
Homem de brio forte, chega a esboçar um confronto físico com Agamêmnon, frustrado
mesmo Canto, no entanto, tem uma atitude que certamente se desvincula da honra
heróica — resolve abandonar as batalhas, com o seu contingente, e ainda roga à mãe
para que interfira junto a Zeus, pessoalmente, para que possa assistir à derrota Acaia.
Ifigênia em Áulis. Aquiles é parte do ardil elaborado por Agamêmnon para atrair a sua
filha primogênita, Ifigênia, para o porto de Áulis, onde as naus gregas se encontram
Ártemis, que intenciona punir o general de Micenas por um excesso. A única maneira
executando. Aquiles se pronuncia contra o ato e, mesmo com todo o contingente grego
censurado pelos soldados quando aceita, por vontade própria, ser a vítima do sacrifício.
Aquiles, sempre compadecido, ainda oferece a sua força para impedir o fim da jovem.
Transcreve-se, então, a fala do herói para que se possa evidenciar a sua enorme
dignidade:
sacrifício de uma virgem troiana, Polixena, pois a sua alma parece se encontrar inquieta
circunstâncias honradas da batalha, como fora o caso de Aquiles, se bem que o herói
104
não viu seu agressor, Páris Alexandre, quando caiu na armadilha no templo de Atena. A
frustração do comandante dos Mirmidões é nítida e, em seu discurso para Odisseu, tal
momentos de conflito. É inerente a Aquiles uma violência desmedida, que muitas vezes
o coloca em excesso. Tal violência denota a passionalidade dos atos do herói. Tanto em
sempre de maneira bem verdadeira, como em gestos nos ritos do funeral de Pátroclo,
atos de sangüinários massacres que, na maioria das vezes, o deixam fora de controle.
inimigo, mas, ao mesmo tempo, como lembra Andrômeda no Canto XXI, abstém-se de
mutilar a vítima, como foi o caso de Eetião, morto por Aquiles e tratado com extremo
105
sua espada.
Há como ver nessas atitudes já mencionadas, e em outras, certo grau de equilíbrio e não
Aquiles, assim confirmando o ato deliberado de subverter o código heróico. Age, depois
Então, em seguida, juntamente com um acesso de choro, pede à mãe para que
intervenha junto ao mais poderoso dos deuses, Zeus, no intuito de apoiar os troianos.
Quando recebe a notícia da morte de Pátroclo, pondera. Pede novamente à mãe que
interceda para a confecção de novas armas. Mesmo assim, entre estes altos e baixos, a
extrair lições dos acontecimentos que lhe afligiram. Nada mais nobre do que sua
percepção acerca do grande erro que fora a sua ira, erro esse que custou a vida de seu
grande companheiro Pátroclo. Na maioria das vezes, Aquiles atende aos deuses,
divina, como a dada por Atena, e se mostra subserviente. Tais qualidades são
duvidoso. Mesmo seus atos rudes em batalhas são acometidos de surtos de intensa
percebe o seu intenso ato de violência e, a pedido dos deuses, trata com respeito Príamo,
rei inimigo, pai do executor de seu melhor amigo. Inclusive restitui o corpo do maior
herói troiano à família. Esta é a ação que mais deixa à mostra as qualidades heróicas de
106
Aquiles. Ao mesmo tempo em que pode ser o mais piedoso guerreiro e demonstrar
Robert Aubreton:
Aquiles. Percebe-se no herói a questão existencial que permeia todo mortal; perguntas
que até um ente extraordinário, como Aquiles, não consegue responder. Interessante
notar que este é o conflito que tanto assombra muitos heróis pertencentes ao romance,
inclusive Riobaldo.
Como já fora mencionado antes, Aquiles deixa bem clara a sua dualidade no
Flávio R. Kothe, em uma reflexão sobre o herói, atenta para o fato de que
herói trágico:
teor trágico. Tanto que, muitas vezes, são encontrados nos épicos elementos geralmente
incidente com o Escamandro, assim como a morte de Heitor, são claros momentos de
Aquiles em excesso, o que o dimensiona tanto para o status de um herói épico, assim
tão particular no amplo universo clássico. Não é sem motivo que muitos estudiosos
situação de combate, de disputa em que o atleta se encontra. Este pleito provoca, muitas
combate primeiro.
108
pois o protagonista recebe as principais ações da peça, dividindo os seus conflitos com o
alto grau de mistério. Tal caracterização, no entanto, contribui para leituras segregadas,
que geralmente atribuem ao herói épico uma composição isenta de conflitos, servindo
sua concepção teórica. A ficção, nas reflexões do teórico, se classifica de acordo com a
força do herói na ação. Para isso, o estudioso canadense se vale do conceito aristotélico
Frye desloca o herói para o centro da sua reflexão para, então, estabelecer uma
atinge um plano mítico e o teor de suas ações recebe um plano quase divino. O épico
pode conter alguns elementos desta primeira análise, mas, mais tarde, enquadra-se em
outra figuração. O crítico afirma que “tais estórias ocupam um lugar importante em
literatura, mas como regra situam-se fora das categorias literárias normais”. (FRYE,
1973:39).
teor mítico prevalece um teor lendário, onde domina o conto popular. Tal herói é
posição de líder, ainda em grau superior ao homem, porém tem: “autoridade, paixões e
poderes de expressão muito maiores do que os nossos, mas o que ele faz se sujeita tanto
à crítica social como à ordem da natureza.” (FRYE, 1973: 40) Este é o herói que
Volta-se a atenção para o herói que não é superior a nenhum homem. Aqui,
nivelamento implicado na expressão “herói imitativo baixo” que, para Frye, condiz
“normal e que provoca certo deslocamento, pois induz o olhar a procurar outras
esferas.” Frye ainda ressalta que tal herói: “Se inferior em poder ou inteligência a nós
mesmos, de modo que temos a sensação de olhar de cima uma cena de escravidão,
explica como a figura central das obras de ficção deslocou-se de seu eixo, dando a
organizações sociais, pois Frye reflete sobre o herói com teor divino, depois sobre um
110
herói lendário, um herói líder, um herói imitativo e outro, sendo o herói imitativo baixo:
“um de nós” (cf. FRYE). Isso implica, então, que o herói do modo irônico encontra-se
existente nos planos heróicos. O herói pode conter posição social variada, mas os seus
nós”. Assim se estabelece uma intrínseca relação da agonia do herói clássico com os
conflitos do romance.
reflexões de Friedrich Nietzsche em um de seus Cinco prefácios para cinco livros não
escritos. O herói grego comunga com os valores essenciais das sociedades helênicas e
os seus conflitos, o ágon, são as suas disputas e perjúrios para se manter digno neste
ambiente social. O herói se encontra em intensa provação, nem sempre suportando tal
pressão. Essa situação confere ao herói clássico uma condição humana. Assim o herói
se vê em angústia. Em agonia.
destacando ainda mais a condição do herói vinculado ao humano e a clara oposição “das
duas forças que nunca podem lutar entre si, a do homem e a do deus”. (cf.
NIETZSCHE, 1996: 79) Qualquer tentativa heróica se angustia diante de tal percepção.
Na verdade, essa parece ser a eterna questão que aflige o humano, uma pretensa
intensos conflitos pelos quais passaram. Odisseu, por exemplo, tem seus conflitos
evidenciados em outro épico, que trata com a mesma intensidade das angústias do herói
111
e de seus feitos notórios. Karl Kerényi já havia esclarecido que, desde o seu nascimento,
Autólico, foi oferecida ao ardiloso Sísifo pelo próprio pai, na esperança de produzir um
herdeiro tal qual o avô. Oferece a filha para Sísifo, mesmo esta já estando prometida a
remete a Autólico, possível avô de Odisseu, muito odiado pelos seus atos de larápio.
Verdade que Odisseu não tem conotação de odiado em seu épico, mas é alvo constante
VII: “Se vós sabeis dentre os homens quem maior carga de desgraças suporta, a esse me
destacam-se os dez anos de luta contra Poseidon. Odisseu é exemplo de equilíbrio. Tal
fato transparece no episódio em que retoma seu reino depois de intensa provação,
intensa agonia.
de Creta, seu filho de criação, Leuco, usurpa o trono quando mata a própria mãe, a
Desafortunadamente, seu filho (ou filha) surgiu para saudá-lo. Respeitando a promessa,
112
Idomeneu sacrificou-o. O ato provocou repúdio em seu povo e muitos deuses, também,
se viram adversos à atitude. Isso causou uma grande praga em toda a Creta. Idomeneu
exilou-se para apaziguar os deuses. Foi para Salento, onde ergueu um templo para a sua
almejado. Heróis na Ilíada recebem questionamentos nas suas ações de combate mais
que, na etimologia traz “rio aberto, amplo”, nota-se uma relação com suas constantes
É o primeiro epíteto, pois Riobaldo “atira com a alma”, diz Wupes, qualidade dele
somente, qualidade que dita a sua mudança elementar. De rio, ou seja, água, passa a ser
o lagarto, o fogo. Na verdade, Tatarana é uma transição, lembrando o ato dos lagartos
Guararavacã do Guaicuí, onde revela o amor por Diadorim. Pode-se inferir que estas
ações sejam asas para Riobaldo, a sua libertação. As asas são o fator mais destacado na
metamorfose do lagarto para a borboleta. Asas que permitem outro tipo de locomoção,
Vale frisar, uma outra vez, que essa transformação é parte de uma evolução. Os
vai transpondo fases. Riobaldo e Tatarana são a mesma pessoa, mas carregam uma
Um é água, elemento evasivo. Outro é o fogo, impetuoso, impulsivo. Tal fato dá muita
japonesa:
do processo metamórfico é a aparição do Urutu Branco, status hierárquico mais alto que
têm o seu ponto máximo no pacto das Veredas Mortas. O herói percorre todos estes
para o mesmo Riobaldo, mas um Riobaldo que jamais será como antes. Não se molham
as mãos nas mesmas águas de um rio, especialmente um baldo, amplo como Riobaldo.
116
intrínseca interação entre o que se designa como realidade e ficção. Para o teórico, a
dicotomia dos termos não é tão clara assim. Cria-se, então, uma relação mais intensa,
onde ele sugere uma tríade, que se dinamiza conciliando o referente (o real), o fictício e
ficção. Tal tríade consiste no real, no fictício e no imaginário que, para ele, apresenta
texto ficcional. Vale ressaltar como o real é o mundo extratextual, a exposição de fatos,
endossa seu caráter de mentir, do não-real. Age, em suma, como sujeito antagônico às
pois transita entre os outros membros, fazendo com que o fluxo do círculo proposto por
Iser funcione. Ao mesmo tempo que “no ato de fingir, o imaginário ganha uma
determinação que lhe é própria e adquire, deste modo, um atributo de realidade; pois “a
determinação é uma definição mínima ao real”, Iser ainda esclarece que “o imaginário
não se transforma em um real por efeito da determinação alcançada pelo ato de fingir.”
pois trata-se de descobrir como o imaginário funciona, para que, a partir dos efeitos
referente, quando colocam que as suas histórias se passam na Minas Gerais dos
jagunços e na era helênica heróica. Aí, a proposta de Iser parece ser acionada, pois o
referente espacial. Passa-se a dar atenção a uma história que se executa em espaço
espaço e da referência ditada por ele. O referente espacial, muitas vezes preciso e coeso,
interage com o mundo imaginário e ficcional da narrativa, não perdendo a sua postura
leitor acionou as associações intertextuais propostas para que toda essa ligação seja
possível. Rosa e Homero dotam suas narrativas com um intenso fluxo da tríade de Iser
mítico, tramita no espaço referente, por isso aproxima-se do leitor, provoca a interação
espaço e as personagens são vínculos fortes com o real mas, inseridos em diegese,
fomentam a idéia iseriana de que referente, imaginário e fictício são conectados, mas
compondo uma concepção menos dual de mundo, por isso estabelecendo ruptura. Nem
estabelecendo assim o incômodo que Iser indica, pois a dicotomia real/ficcional não é
autodiegética. Este tipo de ponto de vista narrativo dota o texto da ficcionalidade que
parecia, a princípio, menos óbvia no romance. Assim, todo o ponto de vista narrativo
pode ser enquadrado com uma credibilidade dúbia, pois narradores em primeira pessoa
questionamentos. O referente espacial fomenta uma articulação fértil entre texto e leitor,
questionar aspectos tão marcantes do referente. Nada impede que as localidades sejam
Alan Viggiano, autor de uma pesquisa sobre o itinerário de Riobaldo, expõe que
Rosa não inventara sequer um nome em toda a toponímia utilizada na saga de Riobaldo
Tatarana. Seu estudo confirma elevada percentagem de nomes de rios, lagos, córregos,
veredas, vilas, povoados, cidades, que existem no norte de Minas, sudeste de Goiás e
sudoeste da Bahia, utilizados por Rosa na narrativa vivida por Riobaldo. Tamanha
referente muito específico. Cada canto da morfologia da terra é lembrado, assim como
citadas no livro de Rosa, mais de cento e oitenta podem ser apontadas no mapa, o que
indica a pesquisa espacial. Viggiano lembra que todas foram tiradas do caderno de notas
120
de João Guimarães Rosa. Tal fato confirma a idéia de que Rosa era um escritor
Homero. Estudos mais recentes afirmam que Homero descrevia com exatidão as
localidades em seus poemas. Apesar de a criatividade poética ter absoluta liberdade para
extensivo uso de símiles. Era o seu forte inventar o discurso e não localidades, por isso
a fidelidade na transposição do relevo, pois ficava mais livre para se dedicar ao enredo,
à métrica.
lenda de que o poeta era cego, ou pelo menos supor que o autor da Ilíada ficara sem
visão já com certa idade. Certas suposições de que o poeta era cego vieram de sua
associação com o personagem Demódocos na Odisséia, aedo cego que conta histórias
para Odisseu. Muitos pensadores supuseram que a personagem fosse uma alusão ao
Eles aparecem rumo ao Urucuia, depois voltam ao Paracatu e, por fim, sobem para o
norte. O bando de jagunços acompanha o seu novo chefe, volta ao chapadão do Urucuia
O grupo segue na estrada que liga Brasília a Belo Horizonte, um reencontro dos
Pontal, entre Paracatu e João Pinheiro. É nesta localidade que se sucedem os combates,
até o final do romance. Esses combates se dividem entre o Tamanduá, o Cererê Velho e
margens do rio do Sono, perto da confluência com o rio Paracatu. Eis o cenário da épica
Diadorim.
Ilíada. Zeus, vigiando a batalha do topo do monte Ida, acaba de ver Heitor massacrar
membros da tropa grega, que já recua para os navios. Satisfeito com a humilhação dos
olha de cima para baixo do monte Ida para Tróia, em uma direção noroeste. Se a sua
linha de visão for contínua, atravessa o mar e tem uma interseção com as costas da
Trácia. Homero parece estar a par desta posição, pois descreveu o que o maior e mais
poderoso dos deuses visualisa da terra dos criadores de cavalos Trácios. Tal vista do
lugar privilegiado, no topo mais alto da Samotrácia, o Samos, pois dali: “todo o Ida
poderia ser visto, e visível, também, estavam a cidade de Príamo e as naus dos Aqueus.”
(XIII: 10 - 16) Poseidon espera a melhor chance para intervir a favor dos gregos e está,
propositadamente, do lado oposto ao de Zeus. Mais uma vez a destacada noção espacial
de Homero é percebida.
123
Depois de vislumbrar a batalha, Poseidon sente intensa ira contra Zeus e decide
intervir de vez em favor dos gregos. Neste momento, como uma câmera, há a descrição
dos arredores troianos, como uma subjetiva de Poseidon, símile do deslocamento das
O monte Ida tem local estratégico na geografia helênica, talvez seja por isso que
Homero o cite inúmeras vezes na Ilíada. Lá, Páris Alexandre julgou um concurso, que
escolheria a deusa mais bela. Homero também associa o monte ao encontro de Afrodite
Flora Süssekind, em seu O Brasil não é longe daqui, reflete sobre a figura do
paisagens espaciais. Surpreendido pelo seu ato itinerante, durante o seu processo de
formação nas décadas de 1830 e 1840, o narrador se viu cumprindo múltiplas funções.
em cronista. São estes autores, de acordo com Süssekind, que ditariam a forma da prosa
exploração eram acompanhados por desenhistas com estilo naturalista, retratando, com
Rosa parece ter muita influência deste tipo de literatura; mesmo tendo uma
Homero aparece como um contador dos feitos gregos, talvez por isso a precisão
Poseidon ainda se torna mais pertinente quando se analisa que o deus do mar é o deus
mais poderoso do panteão grego, depois de Zeus. Ele claramente apóia os gregos na luta
estratégia de Rosa de não ter dividido o romance em capítulos fez com que,
momentos envolventes da ação, fazendo com que o livro tenha um andamento bastante
específico.
narrado. Utéza mostra, no ponto alto de seu estudo da narrativa, os momentos em que se
momentos têm quase uma função de reviravolta no livro. Abordam dois momentos
representação simbólica muito lembra a ação narrativa propriamente dita. Os dois eixos
em Diadorim.
Deve ser pontuado que, de certa maneira, o contexto histórico-cultural das obras
cronológico. A linha narrativa de Grande Sertão: Veredas não pode ser considerada
determinada época histórica. A carta encontrada por Riobaldo na Fazenda dos Tucanos,
o papel para ele mesmo produzir um texto destinado às autoridades do município de São
Francisco e vila Risonha, data do tempo do império: “...de tempos idos, num vigente
fevereiro, 11, quando ainda se tinha Imperador.” (GS:V, 251) O combate feito na
Fazenda dos Tucanos tem data posterior ao ano de 1889. Outra alusão ao tempo
Prestes, a coluna, pela barra do Urucúia. Já em uma época onde não havia mais o
exercício do jagunço. “Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes,
vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na
barra do Urucúia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas
da Bahia.” (GS:V, 77) Registrou-se que a coluna passou naquela referência geográfica
Riobaldo, então, se passa antes de 1925. A narrativa de Grande Sertão: Veredas ocorre
entre os anos de 1889 e 1925. Para Napoleão Valadares, esta referência temporal é ainda
mais narrada:
no ano de 1920. Há, ainda, outras marcas cronológicas no andamento narrativo. Logo
no inicio do romance tem-se uma alusão ao ano de 1879. “Neco forçou Januária e
Carinhavinha, nas eras do ano de 79.” (GS:V, 88) Dez anos antes do já aludido “Fim do
e tantos.” (GS:V, 458), entende-se que seja o final do século XIX, talvez o ano de 1899.
narrativa, Riobaldo contando para um certo senhor letrado o que ocorreu na sua vida de
peculiar, sugerindo que não há começo, meio e fim e, sim, um contínuo exercício de
então, sugere um tempo que compreende uma sofisticação rara na literatura, e raridade é
(Zeuvς), significa “a luz, o céu claro, o brilho”. Zeus equivale ao sânscrito Diaus pitar ou
Zeus patéer, em latim Jú-piter. O nome parece significar “deus da luz”, ou “deus do
céu”, cuja raiz remonta à mesma origem da palavra dies, “dia”, que significa
da vida”.
O mais poderoso dos deuses reunia em si todos os atributos divinos. Era todo
poderoso, via tudo, sabia tudo. Mediador do bem e do mal era muitas vezes
harmonia do mundo. Contestar sua autoridade era a mais grave das ofensas.
com uma coroa de carvalho, tendo na mão direita o raio e na esquerda o cetro. Aos pés,
via-se a águia com as asas abertas. A parte superior de seu corpo estava sempre nua e a
inferior coberta, para mostrar que era visível para os imortais e invisível para os mortais.
Os seus cultos foram os mais solenes e freqüentes, seus templos os mais pomposos e
Filho mais novo de Crono e Réia, pertence à segunda geração divina. Réia,
cansada de ver seus filhos devorados pelo marido, resolveu ludibriá-lo. Deu à luz o
131
caçula na ilha de Creta e, para enganar o consorte, entregou-lhe uma pedra embrulhada
em panos, que o deus engoliu sem perceber que se tratava de um ardil da esposa. O
recém-nascido deus foi aleitado em uma gruta do monte Ida pela cabra Amaltéia. É
cuidado pelas Ninfas. Quando se tornou adulto, envolveu-se com a pele da cabra, a
égide, e foi de encontro ao pai. Juntamente com a mãe, fez com que Crono regurgitasse
deuses do Olimpo tiveram êxito. Na partilha, Poseidon ficou com os mares, Hades os
ilha Inárime. Castigou Prometeu por ter roubado o fogo, dos deuses, a fim de ceder aos
Pandora, primeira mulher, que abriu uma caixa contendo todos os males da
humanidade.
Certa vez, sua esposa Hera refugiou-se em Samos, resolvida a não partilhar mais
deus elaborou um plano para atrair sua ciumenta consorte. Mandou vestir uma estátua
publicamente que iria desposar Platéia, filha de Asopo. Embebida de ódio, a diva
muito e fez as pazes com o marido. No entanto, o senhor do Olimpo continuou suas
audaz.
Na sua função arquetípica, vem a ser descrito como um deus patrilinear, rei e
senhor do Olimpo, pai do céu, executivo, conquistador. Também era hábil em fazer
intuitivo e sensível. Sempre autoritário e cruel às vezes. Passional, tende a ter uma
prolífico.
Clássica e as inúmeras funções cumpridas pela mesma. Atenta-se, no entanto, para uma
função específica que Zeus exercia: cumpridor e senhor do destino. Essa função será
brasileiro.
No Canto XXI, Zeus ergue uma balança por entre as nuvens para decidir o fim
do embate entre Aquiles e Heitor. Delibera, o pai dos deuses, que seja o fim de Heitor,
12
Na mitologia grega três entidades primordiais eram associadas ao destino, à Moira (Moi~ra).
Em caverna escura e isolada, viviam as Moiras, também chamadas de Parcas e associadas às Queres. De
acordo com Hesíodo, na Teogonia, elas eram três irmãs, filhas da Nýx, a Noite (Nuvx), uma das forças
mais antigas do universo. Outras tradições entendem que são filhas de Zeus e Têmis. Sérias e quietas, as
Moiras provocavam medo em mortais e tinham o respeito dos deuses, pois eram as responsáveis pelo
destino de todos, sendo que nem mesmo o poderoso Zeus atrevia-se a interferir. Cloto (Klwqwv) era a
fiandeira. Seu nome deriva de klothein (klwvqein): “fiar e fazer andar a roda.” Aparenta ser a menos velha
das três. Sentada no chão, ela ficava trançando cuidadosamente os fios do destino de cada criatura, tão
logo nascesse. Amores, amizades, família, encontros e desencontros, tudo planejado por ela. Depois de
terminar sua parte, passava os fios para as mãos de Láquesis (Lavcesiς), a mediadora. O nome dessa
Moira deriva do verbo lankhánein (lagcavvnein): “sortear, tiro a sorte”. (cf. BRANDÃO, 1997: 141) Ela
examinava tudo e decidia qual a melhor hora em que todas as coisas deveriam acontecer. Depois, os fios
chegavam às mãos de Átropos ( !Atropoς), a cortadora. Etimologicamente o nome deriva de
trépein(trevpein) ou troopoo: “voltar”, sendo que o a — alfa privativo —, tem o significado de não, de
negativo ou oposto. Então, tem-se: “a que não volta atrás ou inflexível.” (cf. BRANDÃO, 1997: 141) Ela
avaliava cada vida e determinava, com justiça, o dia em que deveria morrer, cortando o fio trabalhado
pelas irmãs. Aparecia como sendo a mais idosa das três, trajando púrpuro e negro, portando pequena
foice ou tesoura.
Hesíodo também menciona o Destino (Movroς), entidade primordial, filho do Caos e de Nýx.
Misterioso e poderoso, seus decretos gravados em bronze poderiam ser adiados, mas nunca anulados
pelos deuses. É representado, na forma antropomórfica, como cego e soturno, sendo tão obscuro e
sombrio quanto a sua progenitora. Alguns mitólogos assinalam que as Queres (Kh~reς) são entidades
distintas das Moiras. Na verdade, são emissárias das Parcas. Aparecem como entidades horrendas,
aladas e com dentes compridos e pontudos. Dilaceram e bebem o sangue dos cadáveres antes de arrastar-
lhes a alma para o Hades. Abrem o caminho para outro emissário das Moiras, Tânatos(Qavvnatoς), ceifar
a vida da vítima. É comum as Queres e Tânatos dividirem um cortejo, onde as criaturas aladas aparecem
cercando um ser de rosto seco, pálido, desfeito e de órbitas ocas, coberto por um véu e com uma foice na
mão. Possuía, ainda, um coração de ferro e entranhas de bronze. No entanto, principalmente na Ilíada,
não aparece em sua forma antropomórfica. Importante, no entanto, é destacar o estudo feito por Junito
Brandão, no primeiro volume de sua série intitulada Mitologia. Remetendo-se à escatologia presente na
Ilíada, o estudioso clássico esclarece que nos poemas homéricos a palavra Moira significa quinhão,
metade, parte ou lote. Há um sinônimo, um equivalente ao vocábulo em arcado-cipriota (um dos dialetos
de Homero): Aîsa(Aisa), associado especificamente ao ato de fiar. Por não terem sido antropomorfizadas
em nenhum momento do épico, tem-se a impressão que as Moiras pairam soberanas, acima dos deuses e
dos homens, e suas decisões são irrevogáveis. Tal idéia é questionada por alguns helenistas. Acredita-se
que, nos épicos homéricos, a Moira se confunde com a vontade dos deuses, principalmente com a vontade
de Zeus. Em vários momentos tem-se a impressão de que Zeus é nitidamente usado como equivalente à
Moira ou ao Fado, como observa Junito Brandão: “O que se pode concluir, salvo engano, é que, por
vezes, Zeus se transforma em executor das decisões da Moîra, parecendo confundir-se com a mesma.”
(cf. BRANDÃO, 1999: 142).
A idéia de uma Moira agindo como o destino de todos os mortais se desenvolveu de várias
maneiras. Na Antigüidade Clássica, o destino se projetou na representação de três fiandeiras, pois a
concepção de vida e morte parece ser inerente à função de fiar. Na obra de Homero, associa-se o fio à
vida humana, simbologia significativa nos versos do poeta. O nascimento tem muito a ver com a função
de Moira. Freqüentemente Cloto, Láquesis e Átropos aparecem junto a Ilítia, deusa que ajuda e zela
pelos partos. Se se considerar a origem latina, Parca vem do verbo parere, “parir, dar à luz”, o que ajuda
a aproximar as Moiras do fenômeno do nascimento. Nota-se que a entidade Tique (Tuvch), a Sorte, o
Acaso, muito se assemelha às Moiras. Na mitologia romana é chamada de Fortuna: “a que ‘pilota’ a vida
dos homens”, ou: “a deusa que presidia a todos os acontecimentos, e distribuía os bens e os males
conforme seu capricho.” (SPALDING, 1965:108) A Sorte, assim como o Destino, era representada como
sendo cega. Fortuna era vista como uma mulher calva, cega ou com um pano cobrindo os olhos. Na
maioria das vezes, entidades relacionadas ao destino são representadas com imagens femininas, já que o
ato de tecer, urdir ou fiar ficava a cargo das mulheres. A influência helênica fez com que outras entidades
femininas fossem associadas ao destino, em diversas culturas e sociedades.
134
Mafra ainda pontua que o fato de Zeus ser associado à onisciência e, de ter o
conhecido epíteto de pai dos deuses, atestam a proximidade com o vocábulo Moira
(Moi~ra), que em grego significa parte ou lote, e “deste sentido deve ser passado, por
extensão, a designar aquilo que a cada um cabe em sorte na vida. A Moira, então, é um
“poder ‘inacessível’, ‘eterno’, ‘irrevogável’ e muitas vezes ‘duro’, que ‘fixa o teor e o
Mesmo a crença clássica sendo politeísta e, por isso, contendo deuses cumprindo
inúmeras funções, nota-se que Zeus detém, muitas vezes, uma ampla atribuição e
parcelas das funções das outras entidades divinas. Para alguns estudiosos, tais acúmulos
já indicavam um teor monoteísta na crença clássica, teor que predominaria mais tarde.
No entanto, o fator que mais indica a onisciência de Zeus é a sua associação com
recebia o seu nome de toda a natureza e, era ele mesmo, a causa de tudo. Para o
estudioso Hélio Aristides, Zeus é o autor do universo: o céu, a terra e tudo que nele se
o irrevogável, a rigidez contida no destino de cada um. “Por esse modo há de ver quanto
sou, mais que todos, potente.” (ILÍADA, CANTO VIII: v. 17 - 18) ou “por mais esforço
135
que nisso apliqueis, impossível a todos vós há de se arrastar a Zeus grande, o senhor
obra de Ésquilo confirmam a amplitude de sua força quando dizem que Zeus é o éter,
Zeus é a terra, Zeus é o ar e Zeus é o todo e tudo aquilo que representa o mais elevado.
Para Homero, a rapidez com que Zeus se movia de lugar para lugar indicava a sua
história.
pelo fio da moira. Se se associar a figura de Zeus com o destino, logo adiante se ouve o
narratário: “O senhor pense outra vez, repense o bem pensado: para que foi que eu tive
de atravessar o rio, defronte com o Menino?” (GS:V, 86). Aí, se vê o inevitável, uma
angústia do saber que permeia o pensamento trágico; seria tudo diferente se Riobaldo
não tivesse encontrado o menino, mas era o seu fado, um caminho já tecido e costurado.
Esta vereda não pôde ser evitada por Tatarana. Não pôde ser escolhida. Algo mais forte
o fez caminhar na trilha estabelecida. Mais adiante, o narrador reflete sobre os fatos e
O trecho segue:
136
caminho é traçado pelo destino, e que um mortal está longe de ter o poder de regê-lo.
E grande aviso, naquele dia, eu tinha recebido; mas menos do que ouvi, real,
do que eu tinha de certo modo adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu acho
que, quase toda a vez que ele vem, não é para se evitar o castigo, mas só
para se ter consolo legal, depois que o castigo passou e veio. Aviso? Rompe
ferro! (GS:V, 137-8).
ciúme: “Riobaldo, você está gostando desta moça?” (GS: V, 150). Riobaldo nega
revelando a dualidade de seus sentimentos, e demonstrando não saber dos fatos que lhe
reserva o destino. Tanto que Diadorim reitera, com uma indagação ainda mais
enigmática, sem respostas: “Você sabe de seu destino Riobaldo?” O protagonista deixa
claro que não controla a moira e que forças sobrenaturais são detentoras deste controle.
“- ‘Se nanja, sei não. O demônio sabe... ’ — eu respondi — ‘Pergunta’...” (GS: V, 150)
137
O próprio Riobaldo não sabe a razão de ter usado o nome do demônio naquela
hora, mas entende-se que o destino rege a sua vida, tecido por forças que fogem ao
controle do homem.
Com esta percepção, Riobaldo se entrega à rede do destino e vive seus relatos à
da balança. “Mas levei minha sina.” (GS: V, 239) diz o narrador, em um exemplo de
mencionados faz-se uma associação presencial de Zeus na narrativa, pois “Zeus preside
todas as vezes que o som do trovão é descrito, há indício da ação do destino no enredo.
Esta criação lexical lembra muito a grafia de Zeus, e se se voltar para a pronúncia do
original grego, uma semelhança fonética com o vocábulo é notada. O léxico parece
querer reproduzir o som das balas ricocheteando durante as batalhas. É assim em uma
debaixo de fatos machos e zúo de balas.” (GS: V, 188) Mais próximo de uma
associação com Zeus está o próximo trecho. A aproximação envolve o destino, visto
Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das
beiradas mal nem vejo... Quem me entende? O que eu queria. Os fatos
passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o poder do presente é
que é furiável? Não. Esse obedece igual — e é o que é. Isto, já aprendi. A
bobeia? Pois, de mim, isto o que é, o senhor saiba — é lavar ouro. Então,
onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade? (GS: V,
260)
velhice, conta uma história que muito induz à reflexão. O andar contínuo do rio e as
árvores desfocadas de seu leito. A vida passa de uma maneira quase impensada e o
romance:
Dá, deu: bala beija-florou. Zúos — ao que rachavam ombreiras das janelas,
estraçalhavam, esfarelavam fasquia. Umas que caíam quase como colhidas,
no assoalho do chão — tinham dansado de ricochete — e ficavam para lá,
amolgadas, feito pedaço de cano, ou aveladas de maduras. Essas podiam se
esfriar, de vagarinho. Perdiam sem valia aquele feio calor, que podia ter sido
a vida de uma pessoa. (GS: V, 446)
139
destino se expondo. A batalha do Paredão marca quem vai e quem fica no mundo.
Como o trovão de Zeus, fulminando aqueles que ousaram desafiar o deus e burlar os
Com trovôo. Trovoadão nos Gerais, a ror, a rodo... Dali de lá, eu podia
voltar, não podia? Ou será que não podia, não? Bambas asas, me não sei.
Bambas asas... Sei ou o senhor sabe? Lei é asada é para as estrelas. Quem
sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma — mas que a gente
não sabe em que rumo está — em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?
(GS: V, 410)
se parece muito com o ato de tear das Moiras. Ao mesmo tempo em que Cloto fia e
Láquesis distribui, Átropos escolhe o momento em que vai cortar. Até este momento do
corte, o fio distribuído já tomou vários rumos, transformando aquele momento certo do
destino em algo que ainda pode ser moldado. Riobaldo refere-se ao destino como algo
em constante reforma, mas ao mesmo tempo afirma que: “A morte de cada um já está
em edital.” (GS: V, 440) ou: “meus destinos foram fechados.” (GS: V, 220).
consciência, menciona o complexo fenômeno. Ele descreve uma cena que, mais uma
Nessa descrição da localidade que o narrador chama de Abaeté, vê-se uma cena
que muito lembra a ação de tear das Moiras. A roca, símbolo do ato de tecer, anuncia
que em toda instância, em todos os caminhos, o destino está presente. A outra velha,
que faz questão de cobrir os olhos para que estes não sejam identificados, lembra a
figura de Átropos, inflexível, cortante, decidindo o fim que todo mortal um dia irá ter.
Zeus age como o destino no trágico. Exercita essa função em muitos trechos da
narrativa épica, em muitos trechos da Ilíada, especificamente. Interessante notar que sua
O primeiro fator que chama a atenção para um elo comparativo entre a entidade
Atena representava a guerra feita com estratégia, entre outras tantas funções. O
ato de guerra, na Antigüidade Clássica, era presidido somente pela figura masculina.
Atena vestia-se como guerreiro, já nascera com elmo, de escudo e lança em mãos. Ao
13
Atena ( *Aqhna~~) era deusa da sabedoria, da guerra estratégica, das ciências e das artes. Dedicou-se
mais às artes e dizem que todas foram por ela inventadas. Era protetora dos tecelões e bordadeiras. Filha
de Zeus e Métis. Quando Zeus travava uma grande batalha contra os gigantes, sua primeira esposa ficou
grávida. Seguindo conselho de Urano e Geia, o deus a engoliu, pois foi-lhe dito que se a consorte tivesse
uma filha e esta um filho, o descendente arrebataria o trono do Olimpo. Algum tempo depois sentiu uma
insuportável dor de cabeça. Chamou Hefestos que, atendendo ao pedido do deus, abriu-lhe o crânio com
uma marreta. De sua cabeça saiu Atena, vestida e armada, dançando uma moda guerreira: “ele da própria
cabeça gerou a de olhos glaucos Atena terrível estrondante guerreira infatigável.” (cf. HESÍODO v. 925).
Era representada de elmo, com a égide em mãos ou sobre o peito, um escudo e uma lança. Levava sempre
consigo a coruja, pois a inteligência do pássaro ultrapassava a escuridão e penetrava o enigma escondido
em tudo. Consagravam-lhe, também, o galo, a serpente e a oliveira. Inventou o óleo de oliva e introduziu
a oliveira na Grécia. Certa vez, o rei Cécrope procurava um protetor para sua recém fundada cidade.
Atena e Poseidon ofereceram-se, cada um doando uma prenda. O deus dos mares fez surgir do chão água
límpida e um cavalo. A deusa fez crescer uma oliveira. O rei consultou seu povo e Atena venceu. A
cidade, então, recebeu seu nome. Inventou a quadriga, o carro de guerra. Ajudou na construção da Argo.
Protegeu Odisseu na Odisséia, assim como outros heróis — Héracles, Jasão, Perseu e Belerofonte. Lutou
a favor dos gregos na Guerra de Tróia. Foi desafiada pela tecelã Aracne para um duelo. A tecelã teceu as
mazelas dos deuses e Atena, irada, rasgou a tela da rival. Envergonhada, Aracne se matou. Atena
apiedou-se da pobre e a transformou em aranha, que está sempre tecendo. Seus outros nomes eram:
Minerva: nome latino; Palas, depois de ter vencido o gigante Palas em batalha; Erganéia, Prómacos,
Alalcomenéia, Hípia, Boarmia, Pronoia e Boulaia.
142
contrário da maioria das entidades femininas da mitologia grega, Atena não se vincula
vínculo direto com o pensamento lógico de Zeus. Sendo o braço direito do pai, ela
mundo tenebroso das mães.” (cf. LEMINSKI, 1999:41) Para Jung, o pensar feminino é
realizado por uma mulher através de seu animus masculino, diferente do ego feminino.
O ícone de Atena mescla-se com homens e auxilia Aquiles e seus companheiros. Além
uma postura masculina. Para dizer a verdade, Diadorim se veste em Reinaldo e assume
a aparência física masculina. Mescla-se em meio aos jagunços e age feito um deles, um
O primeiro a atentar para uma possível etimologia de Diadorim foi José Carlos
Garbuglio, que admitiu “a hipótese de dia + doron, ou através + dádiva, dom, o que não
adorado” , que muito remete à figura dualística de Atena e ao seu status divino. Para
143
Veredas:
Diadorim se mescla ainda mais com Atena quando suas atitudes masculinas
intercalam-se com sua porção feminina, especialmente quando Riobaldo descreve sua
do gênero do nome de Diadorim remete ao andrógeno, que nas culturas antigas encerra
em si, ao mesmo tempo, a figura do masculino e feminino, e não um ser híbrido de sexo
indeterminado, fato que contribui ainda mais para a associação feita com Atena.
sentido figurado a Diadorim. Pierre Grimal, outro mitólogo, confirma no verbete de seu
Héstia, que evitam a companhia de homens, enquanto Atena se vê sempre cercada por
eles. Em vez de se separar ou retirar-se, ela apreciava a ação e o poder masculino, como
não ser no que se diz respeito ao casamento. Perfeitamente ligada a seu pai,
ela opta pelo celibato. (DEVEREUX, 1990: 144)
abdica do sexo, do amor, da forma feminina para tornar-se a figura do pai e acompanhá-
lo na vida de jagunço: “... nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para
muito amar, sem gozo de amor”. (GS:V, 458) Riobaldo, em momento anterior à morte
o que eu queria saber não era próprio do Siruiz, mas da moça virgem, moça
branca, perguntada, e dos pés-de-verso como eu nunca tive poder de formar
um igual. (GS:V, 136)
Atena é geralmente descrita como tendo um aspecto calmo, “mais majestosa do que
propriamente bela” (cf. GRIMAL, 1997: 53), magnitude semelhante às descrições feitas
por Riobaldo: “mas Diadorim sendo tão galante moço, as feições finas caprichadas.”
(GS:V, 123) Diadorim tem olhos verdes, “...olhos verdes, semelhantes grandes, o
lembrável das compridas pestanas...” (GS:V, 107) Olhos que Riobaldo ainda descreve,
Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele,
ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto
esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão
impossível.
(GS:V, 38)
constantemente referida como a deusa de olhos glaucos, ou como afirma Grimal, “deusa
escolher.
Glauco, adjetivo usado como epíteto de Atena, vem do original grego Glaukiavw
azuis ou Glaukovς (glaucos) = brilhante, cor de glauca, de verde pálido, entre o verde e o
azul. A deusa é referida desta forma em diversas traduções. Em versões inglesas, como
146
Interessante notar que tal característica descrevia certa enfermidade da entidade, para
não dizer uma rejeição. Luciano de Samósata relata o nascimento de Atena, chamando a
Hefesto: Que faço eu grande Zeus? Venho por ordem vossa, armado
com um machado afiado, capaz de partir qualquer pedra, se houvesse
necessidade.
Zeus: Ótimo Hefesto! Parta-me, então, o crânio.
Hefesto: Quereis submeter-me a uma prova, ou estais louco? Dizei o
que hei de fazer.
Zeus: Já te disse, parta-me o crânio; bata com toda a força e sem
demora; não posso viver com as dores que me dilaceram o cérebro.
Hefesto: Acautela-vos Zeus. Quem sabe se não vamos cometer uma
asneira? O meu machado é afiado, fará com que te corra o sangue e não te
libertar à guisa de Lucina.
Zeus: Bata Hefesto! Nada temas. Sei o que quero.
Hefesto: Bato, mas contra a vontade. Que me resta, se assim
ordenais... Que estou vendo? Uma jovem armada da cabeça aos pés! Que dor
de cabeça não devia ser a vossa, Zeus! Não é de assustar a vossa inquietude,
pois trazíeis na meninge uma jovem desse porte, ainda por cima armada.
Tínheis na cabeça um verdadeiro campo. Olha como salta! Ei-la que dança a
pírrica, agita o escudo, brande a lança, e está dominada pelo entusiasmo. O que
é mais estranho, é que, de súbito se tornou bela e pronta para casar. É verdade
que tem olhos cor-da-glauca, mas o elmo compensa esse defeito. Zeus, como
pagamento pelo serviço que vos prestei, ceda-ma por esposa.
Zeus: Tu me pedes o impossível, Hefesto; ela quer permanecer virgem
para sempre. Não me oponho ao vosso desejo.
Hefesto: Quero-a. O resto fica por minha conta. Vou levá-la.
(LUCIANO DE SAMÓSATA)
Não é raro ver vocábulos como glaucos, ter olhos de reflexos azuis ou olhos
glaucos, de olhos azuis ou glaucípede, que quer dizer brilhante, cor de glauca, de verde
pálido, entre o verde e o azul nas descrições de Atena. Haroldo de Campos “transcria” o
vocábulo para “brilho de olhos azuis”. Já Robert Fagles fala de “olhos cinza claros”, ou
entre o azul e o verde, uma cor que só uma divindade poderia conter nas íris... Nuanças
Alguns tradutores optam por olhos de coruja que, ainda sim, remetem a glauco,
pois a luz lunar, mais freqüente quando age em seu habitat e a leva a executar seus
Hades, por isso o deus o encarregou de vigiar sua esposa Perséfone. Quando Deméter
foi aos Infernos reclamar a filha, sabia, pois ouvira da própria boca de Zeus, que seu
rebento não poderia comer nada no reino dos mortos. A deusa teria recuperado a filha se
Ascálafo não tivesse delatado que a vira ingerindo três bagos de romã. Para punir o
Foi aí, então, que Atena tomou a ave sob sua proteção, porque ela vigiava tudo que se
como uma ave de mau agouro, com uma reputação de ladra e dissimulada. O fato de um
delator ter sido transformado em coruja confirma tal constatação. Ao mesmo tempo, em
significados ambíguos da coruja são demonstrados na narrativa rosiana. Sua ação como
olhos de Hermógenes, Riobaldo diz: “O Hermógenes, puxando, enxergava por nós. Que
olhos, que esse, descascavam de dentro do escuro qualquer coisa, olhar assim, que nem
A associação com Atena é mais evidente quando a coruja aparece como vetor de
questão:
narrativa. A coruja vai ao encontro de toda representação de Atena que, por sua vez
virgem, protetora das crianças, inspiradora das artes e da paz, qualidades que se
em suposições, imprecisos. O par de íris jade de Diadorim são o verde do sertão, verde
pálido, estourado pela forte luz das Minas Gerais. O verde de Atena é o verde do
cenário que se caracteriza por nunca manter uma cor só, voltando, assim, à impressão
enunciativa, que não traduz com exatidão a cor dos olhos da personagem rosiana.
Destacam-se os “os olhos verde-mar” de Atena uma outra vez, usados por muitos
14
Chama-se a atenção para outra representação da deusa Atena na mitologia grega, a
representação matriarcal. Percebe-se que tal função, apesar de não ser a principal, também é associada a
Palas.
A deusa pode ser vinculada à fertilidade do solo, à Grande Mãe, sendo que em sua etimologia,
como notou Junito Brandão, estão atta do indo-europeu, significando,mãe, remetendo muito ao awaia ou
bagia (bavgia), tendo sentido equivalente de mãe ou ama, aia, em grego. Atena seria “uma ‘Grande Mãe’,
certamente originária de Creta.” (cf. BRANDÃO, 1999: 136)
Mesmo Atena não sendo divindade da terra, pois, Zeus “da própria cabeça gerou a de olhos
glaucos Atena terrível estrondante guerreira infatigável.” (cf. HESÍODO v.925), e agindo como a “voz de
Zeus” (cf. DEVEREUX) sendo a única divindade a ter acesso à égide e ao trovão, pertencentes ao Zeus
pai, Atena defende suas acrópoles como uma deusa da fertilidade, associada principalmente à oliveira, e
ao seu fruto, a oliva, que fez brotar da terra na célebre disputa contra Poseidon. Entende-se o seu vínculo
com uma representação maternal, principalmente se se abordar o mito de Erictônio. Mitólogos admitem
que Erictônio é gerado a partir de Atena. Basta verificar o relato para estabelecer a associação. Certa
feita, Atena pediu um lote de armas para o deus ferreiro Hefesto. O deus, abandonado mais uma vez por
Afrodite, sua esposa, sentiu-se inflamado de desejo pela convicta entidade virgem. O deus coxo tentou
forçar relações carnais com Atena que, hábil guerreira, se desvinculou. No entanto, Hefesto chegara a
ejacular na coxa da deusa, que limpou o sêmen com um tufo de algodão e atirou-o ao chão. Desta reação
espontânea nasceu Erictônio. O contato do sêmen com duas representações da terra. A semente só é
fertilizada ao entrar em contato com a pele de Palas, apta a fecundar, como a terra, como a mãe.
Utilizando-se de uma percepção edipiana, já percebida por Márcia Marques de Morais em A
Travessia dos Fantasmas: Literatura e Psicanálise em Grande Sertão: Veredas, há momentos em que
Riobaldo se remete aos olhos de sua mãe ao olhar fundo nos olhos verdes de Diadorim: “Os afetos.
Doçura dos olhos dele me transformou para os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do
mundo”. (GS:V, 115) ou “ Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice,
querendo contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender — e acho que é por isso que a gente
morre.” (GS:V, 219) Mais uma vez, as personagens rosianas e homéricas se encontram, ao serem
perfiladas.
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sertão sendo “do tamanho do mundo”, Riobaldo recorre ao mar distante, pois o verde do
sertão ainda não fora suficiente para descrever o verde volátil da íris de Diadorim, que
“mudava sempre, como a água de todos os rios.” (GS:V, 219) ou “Diadorim, rios
verdes” (GS:V, 235) Se o sertão é do tamanho do mundo, o sertão é mar, olhos verdes
“onda do mar”, os olhos de Atena verde-mar. O mediterrâneo todo ali, o mundo ali nos
pedra que lhe ofertaram como regalo. Os olhos de Diadorim são o mundo, um verde
Klint pintou sua Palas Atenas, de olhos acinzentados, quase de cristal; Bruna Lombardi
emprestou seus olhos claros para representar Diadorim. Mas, no enunciado, verde e
descrição física de Joca Ramiro pode se relacionar com a figura icônica do supremo
deus do Olimpo. A descrição de Riobaldo acerca do seu chefe aponta essa semelhança:
Uma descrição detalhada enaltece ainda mais a figura do chefe dos jagunços e o
E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco — cavalo que me
olha de todos os altos. Numa sela bordada, de Jequié, em lavores de preto-e-
branco. As rédeas bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um
homem de largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como
é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos, anelados? O chapéu bonito?
Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa em que se
reparar. A gente olhava, sem pousar os olhos. A gente tinha até medo de
que, com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse aquele homem
maior, ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente,
como agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem
tristeza. Uma voz que continuava. (GS:V, 189-90)
e na esquerda o cetro; aos seus pés via-se a águia com as asas abertas. (cf. SPALDING,
152
antropomorfo com “a parte superior do seu corpo nua, e a inferior coberta, a fim de
mostrar que era visível para os deuses e invisível para os mortais.” (SPALDING,
pai/filho/filha, pois age com papeis múltiplos. Zeus via, em Atena, uma sublime
raro, favorecia Palas em dilemas e em pedidos, pois a deusa era conhecida como a
“favorita do pai”.
Joca Ramiro, chefe maior dos jagunços, simbolizava a magnitude da classe, uma
Zeus, mas, perfeitamente plausíveis se forem usadas em uma descrição de Joca Ramiro.
Diadorim perfila-se com Atena muito mais do que qualquer outra personagem da
homéricos, vê-se uma maior proximidade psíquica com a deusa Tritônia. O diagnóstico
dos deuses em perfil psicanalítico, delineado por C.G. Jung, vai ao encontro da
personalidade de Diadorim.
153
No estudo proposto por Jung, Atena, ou uma mulher com o perfil de Atena,
em pensar com acerto, objetiva na solução de problemas. Está sempre disposta a formar
sólidas alianças com os homens, talvez sua principal e mais evidente característica.
Junito de Souza Brandão analisa que uma mulher-Atena configura-se mais como amiga
intima dos homens do que das mulheres. O estudioso ainda ressalta que Atena tem uma
forte atração pelo poder e pelo mando. “Desse modo, a mulher-Atena, apesar de sua
estreita ligação com os ‘heróis’, pode tornar-se com mais facilidade uma homossexual,
1999:347)
Difícil dizer se Diadorim completa todas estas descrições dadas a Atena. Nota-
se, no entanto, que existem inúmeras coincidências que não podem ser ignoradas,
de homens; mas nenhum relato esclarece alguma preferência de sexo. De acordo com o
por ele. Atena não demonstra vínculo afetivo nem com imortais e muito menos com
demônio. Na crença cristã, dizer seu nome significa tê-lo nas proximidades, por isso
mal, mas sim o oposto, o outro lado. No mundo da Grécia antiga, acreditava-se que não
existia o rival do deus supremo Zeus. Como disse Poseidon na Ilíada, “ninguém é mais
forte que Zeus”. Não se pode negar que foram poucas as tentativas de destronar o deus,
batalhas. Zeus já havia exilado todo e qualquer inimigo que pudesse incomodá-lo.
155
Ainda assim, fora importunado pela esposa Hera e pelo irmão Poseidon, que tentaram
usurpar o poder do deus supremo. Desnecessário mencionar que tal tentativa frustrou-
se. Quem então seria oponente de Zeus? Não existe o oponente, mas existe, sim, o
oposto de Zeus, o deus que, em vez de habitar o céu, mora no lado mais escuro da terra,
semelhanças interessantes.
Hades recebeu, na partilha, o submundo que leva o seu nome. O mundo das
trevas, onde vive o deus associa-se ao inferno dos cristãos, lar de Satã (Lúcifer) — o
anjo que se rebelou. Penumbras e odores fortes não são só características do mundo do
de cima para baixo, até o centro do planeta. Na frente, encontra-se uma espécie de ante-
inferno, onde se aglomeram as almas recusadas tanto por Deus quanto pelo Diabo. Nove
contra o próximo, contra si mesmos e contra Deus. No oitavo círculo, o Malebolge, dez
família, da pátria, dos amigos e dos benfeitores. No último ponto do Inferno vê-se o rei
infernal, Satanás, Lúcifer. Apresenta-se com três faces e três bocas, cada uma delas
tragando Judas, Cássio e Bruto. O Inferno era uma montanha apontada para o centro da
Terra.
escuridão). Ambos são parte da grande região negra chamada de Tártaro. Convém
descrever o reino do deus para que a comparação com o inferno cristão seja mais clara.
apagado, onde algumas almas vagam atrás de conforto. Depois do bosque, encontra-se o
sombreando uma poça formada pelo Rio Lete, onde algumas almas sempre saciam sua
sede. Almas menos antigas preferem outras águas, as da Lagoa da Memória, sombreada
por uma árvore menor. Julgando os mortos estão Minos, Radameto e Éaco, em um local
europeus. Ambos reportam os casos mais complexos para Minos. Depois de cada
veredito, os fantasmas são encaminhados para uma das três passagens. Almas que não
apresentam virtudes e nem desvios vão para o Bosque de Perséfone. Os maléficos vão
para o Tártaro e recebem uma punição. Os virtuosos vão para os Campos Elísios.
157
local. A distinção é feita por Hades e seus auxiliares. Talvez esta seja a diferença
para as almas castigadas, mas também para as almas heróicas. Dante descreve o
Purgatório e o Paraíso, que completam a vida após a morte dos cristãos, locais com uma
distinção espacial dos Infernos. O Purgatório é uma montanha apontada para o alto e
formada por dois troncos de cones sobrepostos. O primeiro, mais largo, constitui o
pois se localiza em uma ilha oceânica. O Paraíso consiste de tirar um primeiro Céu, o da
lua, que acolhe as almas dignas que cumpriam seus votos religiosos; no segundo, de
almas dos santos; no sétimo, o de Saturno, purgam as almas dos que no mundo
entregaram-se à vida inerte; no oitavo, o das Estrelas fixas, vê-se o triunfo de Cristo; no
nono Céu, também chamado de primeiro Móvel, vê-se um ponto luminoso, em torno do
O temor que os gregos nutriam por Hades vincula-se somente ao medo da morte,
iconizado por Tânatos (Qavnatoς), entidade que habita o Hades. Hades é o senhor dos
infernos. Raramente deixa seu reino e demonstra muita rigidez nos seus domínios. Este
comportamento fazia-o o menos venerado dos deuses, por isso a escassez de altares em
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sua homenagem. Sua esposa, Perséfone, já é mais amena e algumas vezes convenceu o
consorte a dar uma nova chance às almas suplicantes. Apesar de ser muito fiel ao
marido, a rainha prefere a companhia de Hécate ou se refugiar no bosque que leva seu
cercavam sobre a vida após a morte. Os cristãos recebem como punição as sombras e as
trevas, se cometerem algum ultraje aos valores que os regem. O reino de Satã é a
escuridão, repleto de névoas de enxofre. Hades não pode, porém, ser intitulado como
reino de Hades remete muito ao espaço idealizado do inferno proposto pelos cristãos. O
deslocamento e a escuridão compõem ambos. Toda esta região dominada por Hades
deve ser descrita, para uma comparação mais bem feita entre o Inferno cristão e o
Inferno imaginado pelos gregos. O Rio Estige conecta o Tártaro com o oeste do mundo
e tem cinco afluentes. Suas águas são um veneno mortal, tóxicas e mal-cheirosas. O
Estige é o mais sagrado dos rios. Nele, Tétis mergulhou Aquiles e o muniu de
mortal que quebrasse sua promessa receberia a morte certa. O imortal que ousasse tal
feito perdia a divindade por cem anos. Todo ente era enterrado com uma moeda sob a
língua, o tributo necessário para que Caronte, o barqueiro, o levasse através do Estige.
Hermes, o Deus mensageiro, guiava-os, para as almas não perderem o rumo. Na outra
margem do grande rio, Cérbero, o cão de três cabeças, guardava com afinco todo o
relevo infernal. Não deixa nenhum ser vivo entrar e nenhuma alma sair. O Aqueronte,
Rio das Almas Perdidas, tinhas águas amargas, lodosas e sempre borbulhantes. O
Cócito, Rio dos Vivos, era formado das lágrimas dos maus, pecadores e culpados. O
Flagetonte, Rio Ardente, era feito de brasas e chamas. O Lete, Rio do Esquecimento,
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era fonte para as almas que queriam esquecer do passado. O Averno, Lago das Águas
Estagnadas, que exalava miasmas letais e envolvia o local com esterilidade e inópia. O
Inferno.
reflete acerca do mesmo. O diabo ronda o enunciado, como uma espécie de consciência,
Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia ver, então era eu
mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu
estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças —
eu digo. Pois não é ditado: “menino — trem do diabo”? E nos usos, nas
plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio
do redemunho... (GS:V, 11)
senhor dos infernos da mitologia grega não contém características vis. Era representado
como homem taciturno, sempre trajando negro ou púrpuro. Aparece, nas raras vezes que
deixa a morada, conduzindo um carro tirado por alazões negros. Ossos e caveiras eram
ícones associados ao deus. Hades ( jvAidhς), “deus das trevas” de aianes, é também
referido como “o invisível”. Raramente era nomeado, “pois temia-se que, invocando-o,
1997:189) Verificando seu nome latino, Plutão, notam-se fatores que endossam a
função do rei dos Infernos. Na etimologia latina significa “o que se enriquece com os
despojos humanos”. Sempre temido pelos súditos, e odiado pelos mortais, Hades
solo com os punhos cerrados. Junito Brandão acha absurda a associação etimológica
grega com os vocábulos hölle do alemão e hell, do inglês; no entanto, não deixa de ser
Hades é referido com Edoneu e Dis, seus epítetos mais comuns e suavizados de seu
contundente nome.
Apesar de não ser maligno, o deus é violento e poderoso, preza muito a discrição
de seu reino. São poucas as coisas que Hades teme, entre elas encontra-se a habilidade
Ilíada, menciona-se: “Deixe-se abrandar: Somente Hades é amargo e inflexível; por isso
mesmo, para os mortais, é o mais detestado dos deuses.” (ILÍADA: CANTO IX)
Confere-se que Hades é temido e, até, maldito, assim como Satã na crença cristã. A
palavra diabo queima a boca, como se pode notar na história escrita por Rosa. “Do
demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome
dele - dizem só: Que-Diga.” (GS:V, 9) Este é um dos quase quarenta nomes que
nome, mesmo dizendo não acreditar na entidade. Pierre Grimal, como já foi dito, lembra
que Hades era citado ou invocado através de entusiasmos ou epítetos, jamais pelo nome.
dicotomia, para evidenciar seu conflito com a brutalidade que assola o sertão. Não
sanguinário. Riobaldo menciona a entidade toda vez que incutido sofrimento paira no
precisa chamá-lo, e chamá-lo pelo primeiro nome atrai mal augúrio. Mesmo, muitas
vezes, o Diabo levando referencia de ser nada. Ainda dialogando com Hansen, vê-se
uma intensa ligação do Diabo com o nada. O romance inicia-se com o vocábulo Nonada
formando uma oração. Considerando que a palavra é menção ao Diabo, percebe-se que
Diabo nas reflexões feitas na diegese do Grande Sertão. Riobaldo afirma que “O crespo
guerreiro perde a vida, o poema épico cita o nome do deus, como eufemismo da morte,
aos golpes do rei filho de Atreu, cumprindo seu destino, mergulharam na morada de
Hades.” (ILIADA: CANTO XI) ou “Não penso que o magnânimo filho de Pântoo haja
lançado um dardo inútil com a mão robusta; algum Argivo há de tê-lo recebido na pele e
cuido que nele se apoiará para descer à morada de Hades.” (ILÌADA: CANTO XIX)
Hades cumpre suas obrigações até contra os próprios imortais, que podem ser
grego. Lá estão os Titãs e outras criaturas que ousaram desafiar os deuses. Homero fala
da existência do Éter (Céu), o Ar, o Hades e, da sua parte mais profunda, o Tártaro,
estando este último tão distante de Hades quanto o céu da terra. A distinção aparece no
deus Hades. Tal fato procede, pois a entidade habita o Hades, juntamente com Hipnos, o
Sono, e Morfeu, filho deste último. Em Homero, Tânatos não toma forma
antropomórfica, ocorrido isso somente uma vez, no Canto XVI, quando tira do campo
negra, uma bruma que bloqueia a luz. Já Hesíodo apresenta-o na forma física humana.
como um menino negro, de pés tortos e acariciado pela Noite, a sua mãe.
também representado por animais como o chacal, o cão, a cobra, o bode e o corvo. O
Diabo é geralmente apresentado com uma forma repulsiva ou grotesca. O rival de Deus
assemelha com o Diabo pintado nas cartas de tarô, que o dicionarista Chevalier descreve
da seguinte maneira:
De pé, seminu, em cima de uma bola cor de carne, cuja metade inferior
enfia-se num soclo ou bigorna rubra com seis camadas superpostas, o Diabo,
cujo hermafroditismo é abundantemente sublinhado, tem asas azuis
semelhantes às de um morcego. Calças azuis são presas ao corpo por um
cinto vermelho cruzado abaixo do umbigo. Os pés e as mãos têm unhas
compridas como as de um macaco. A mão direita se eleva, a esquerda,
voltada para o chão, segura pela lâmina uma espada desembainhada e nua,
sem punho nem guarda (ou corpos). Na cabeça, leva uma estranha cobertura
amarela, feita de crescentes lunares afrontados e de uma galhada de veado
com cinco pontas. Ao pedestal estão presos pelo pescoço, por um cordão
que passa através de um anel soldado ao soclo, dois diabretes simétricos,
inteiramente nus, um macho e outro fêmea (a menos que sejam, eles
também, andróginos), providos, cada qual, de uma longa cauda que roça
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pelo solo, cascos fendidos, mãos escondidas por detrás das costas, cabeça
coberta por um gorro vermelho, de onde partem dois chifres de veado preto
e duas gafulhas ou dois cornos. O solo é amarelo, raiado de negro na parte
superior. Mas debaixo das patas dos dois diabinhos, o solo negro como
aquele sobre o qual passa a foice da Morte. (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 1997:337)
As Erínias, por exemplo, são descritas como criaturas munidas com asas de morcego e
serpentes ao invés de cabelos. “São representadas como três gênios alados, com os
Górgonas também são descritas de uma maneira que lembra muito o Diabo. Suas
cabeças eram ornadas com serpentes, presas das arcadas expostas, mãos de bronze e
entidades infernais são as Harpias, dotadas de atributos físicos que lembram a imagem
contendo forma repulsiva e grotesca. Protetora das feiticeiras e das magias, aparece
animais associados com o rival do Deus cristão, como a cadela e a loba, o que leva à
destaque, fato que deixa o ícone de Cérbero bem próximo aos atributos físicos do
demônio. “A imagem mais corrente que dele se dava era a seguinte: três cabeças de
cão, cauda formada por uma serpente e, no dorso, uma multidão de cabeças de
relacionada com o governo mútuo que Hades faz com sua consorte, Perséfone. Não
menos inflexível e cruel, a rainha dos infernos desempenha um papel que vai ao
encontro das funções de seu marido. Era representada como uma jovem bela, coroada,
ao lado de Hades, sobre trono ébano ou sobre um carro tirado por cavalos negros.
Sertão: Veredas existem trechos onde a descrição física do diabo encontra-se com a
sugestão de Chevalier:
Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, dos olhos de nem ser — se
viu —; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar.
Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava
rindo pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram — era demo. (GS:V,
9).
rapina, o cão, a cobra... elementos que também se encontram nas entidades infernais da
representam unem ainda mais os ícones. Durante toda a narrativa rosiana, descrições
que o demônio provoca no enredo. O trecho segue abaixo, contendo os símbolos que
por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra
cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de,
pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião,
corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para
adiante, rasgar e estraçalhar o bico, parece um quiçe muito afiada por ruim
desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas — que
estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro
delas dorme: são o demo.” (GS:V, 12).
do demônio ou alguma forma dos seres habitantes do Hades. A cobra cascavel remete
aos corpos e aos cabelos da Erínias e das Górgonas. O gavião e o corvo associam-se às
do diabo no Grande Sertão: Veredas é muito mais significativa que a menção de Hades
Hades faz um papel imperativo quando mencionado nos versos hexâmetros, suas
atitudes são enérgicas e violentas, não contêm o teor dialético que Rosa coloca no
inópia. Riobaldo caminha para uma encruzilhada, o brejo marimbú, lá vê nada e nem
pode ser comparado ao pacto que ocorreu com o protagonista rosiano. A catábase
acontecia sempre quando um mortal ousava freqüentar o reino de Hades ainda com
constantemente negado por ele mesmo, que afirma: “Destes meus olhos esbarrarem num
profundos. A presença da díade bem e mal se apresenta caráter humano. Não poderia
A primeira parte se atém mais a este aspecto, frisando a sombria aparência das
Veredas tortas. “E eu não percebia nada. Isto é, que mesmo com o escuro e as coisas do
escuro, tudo devia de parar por lá, com o estado e aspecto.” (GS:V, 317) A localidade
continua sendo descrita em tom sombrio: “ chirilil dos bichos. Arre, quem copia o riso
Kathrin Holzermayr Rosenfield chama a atenção para o fato de que algo novo
orvalha na segunda parte do pacto. Na verdade, Riobaldo enxerga a luz pois, durante o
seu clamor pelo diabo, pronuncia Lúcifer quatro vezes, enquanto Satanás, outra alcunha
mais famosa do demônio, só é pronunciada duas vezes. Na era medieval, Lúcifer era o
nome dado ao planeta Vênus nos céus, “aquele que traz a luz”. Riobaldo brada por luz,
169
pueris dicotomias que o assolam. Daí vê-se Lúcifer no enunciado e não os outros tantos
nomes que são variantes de diabo. Depois que a tensão do pacto se dissipa, nota-se no
Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas idéias, e de tantas coisas
passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito
remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria
vontade. Até eu não puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo, quase
sem esbarrar, o todo tempo.” (GS:V, 321)
Um pouco antes, Riobaldo confirma que o dia “Foi orvalhando. O ermo do lugar
descrita, a estrela d’alva, que vem a ser o planeta Vênus, iluminando o céu e,
pertinência, esclarece que “este anúncio da luz de Vênus, do dia e da vida, estabelece
Volta-se agora para a catábase nas histórias fundadas pela cultura clássica.
Vários foram os heróis gregos que desceram ao Hades para executarem o que
Junito Brandão chamou de regressus ad uterum. O estudioso deixa claro que a catábase
homem velho, para que possa eclodir o homem novo.” (BRANDÃO, 1999: vol. III,
170)
suprema dos infernos: Hades. Os heróis confrontam diretamente com o deus. Héracles
até fere Edoneu com uma flechada no ombro, depois de um duelo magno. Perseu desce
aos infernos, ganha a simpatia de Hades, e recebe o elmo mágico do deus que deixa os
seres invisíveis, como gratificação. Orfeu passa pelo seu processo de autoconhecimento,
quando vai ao Hades, para reaver a sua amada Eurídice. A beleza de suas canções
esposa. Orfeu, no entanto, ultrapassa o métron que lhe fora estabelecido e a alma de sua
Ambos lutaram junto com os centauros e venceram, dando início a uma amizade
fecunda. Dizem que Pirítoo, em primeira instância, tinha em Teseu um inimigo, mas ao
A parceria gerou vários feitos. O mais célebre de todos é o rapto de Helena. Foi
sina de Afrodite, que incutiu beleza avassaladora na princesa espartana, devido à falta
que cometera o seu pai humano, o rei Tíndaro, que se esqueceu de honrar a deusa no
culto que celebraria o nascimento da filha. Helena seria causa de infortúnios como a
Teseu se apaixonara pela infante, quando a viu dançando em uma celebração e resolveu
raptá-la. Tal rapto já fazia parte de um trato com Pirítoo. Ambos raptariam descendentes
diretos de Zeus, para continuar uma grande estirpe. Para confirmar isso, combinariam
171
Pirítoo, então, sortearam para ver quem ficaria com Helena ou a divindade infernal.
Bem sucedido foi o rapto da impúbere Helena. O combinado, agora, era ir ao Hades
para conquistar Perséfone, que também tem um histórico de raptos tão proeminentes
convidados muito bem, já pensando no logro que os deixaria nos infernos eternamente.
É inadmissível para o deus que qualquer ser mortal ainda com vida adentre os seus
domínios, a não ser que prove qualidade para tal. Sabe-se, no entanto, que pouquíssimos
foram bem aceitos nos infernos. São nomes consagrados como Héracles, Orfeu, Perseu,
estão prestes a cair. Ardil que prendeu a própria Perséfone aos infernos.
infernal, se ingerido, cria um vínculo eterno de quem se alimentou dele com o Hades.
Teseu e Pirítoo não se ergueram das cadeiras em que estavam sentados. As vísceras
ficaram atadas ao móvel. Bem mais tarde, Héracles, em seu embate contra Hades, salva
Assim, Teseu deixa de completar sua catábase. Não houve negociação com
Hades. Na verdade, Teseu teria que conviver com seus excessos anteriores, como o
Teseu acaba cumprindo um reinado tirânico, que finda tragicamente, como descrito por
Junito Brandão:
não sucedeu. As intenções do herói eram por demais maliciosas. Raptar a tão querida
esposa do deus infernal realmente não endossa qualquer tipo de iluminação ou regresso.
Notou-se, no entanto, que entremeada nos versos da Ilíada, estava também uma alusão à
Perséfone, sua esposa, a rainha do submundo. A deusa aparece no Canto XI, em meio
Cora ou Core — significa donzela ou mulher jovem. Quando abduzida por Hades, passa
causa de sua mudança e a razão de sua ida aos infernos, que se transformou em seu lar.
do trigo. É representada sempre como uma jovem bela, coroada, ao lado de Hades,
sentada em um trono ébano ou sobre um carro tirado por cavalos negros. Em sua função
destaca-se por ser muito receptiva. No enfoque junguiano, vê-se uma mulher mais
característica de ser sonhadora. Raptada por Hades, relato também de suposta autoria
Homérica, gritou de tal maneira que a sua mãe ouviu do alto do Olimpo. Desde então,
estimada filha. Disputou com Afrodite a guarda do belo Adônis. A luta entre as duas
deusas foi julgada por Zeus, decidindo que o mortal, nascido de Mirra, viveria um terço
do ano com Afrodite e um terço com a rainha dos infernos (o veredicto da situação é
idêntico ao que Perséfone recebera do próprio Zeus). O outro terço do ano, Adônis
Perséfone puniu Mente, ninfa dos infernos, amada por Hades, transformando-a
em planta odorífica. Doou um pouco de beleza para Psique armazenar em uma caixa e
entregar a Afrodite. Uma das árduas tarefas que a jovem teve que executar para a deusa
Afrodite.
agricultura encontrou a filha nos infernos. Pediu a Zeus para que recuperasse a filha. O
supremo deus consentiu, contanto que a jovem não tivesse comido nada nas regiões do
submundo. Ascálafo, entidade leal a Hades, apressou-se em dizer que vira Perséfone
comer seis bagos de romã. Diante de tal fato, Zeus estabeleceu que a moça passasse seis
meses com a mãe e seis meses com o consorte (de acordo com alguns mitólogos,
Perséfone passa um terço do ano com a mãe, um terço com Hades e um terço em seu
bosque.) Depois desta decisão de Zeus, Perséfone passa a ser entidade atuante no
submundo.
maneira muito distinta do marido Hades. Nota-se certa complacência em suas ações. Na
Odisséia, Perséfone é quem reúne as mulheres honradas, para que as almas possam ser
vistas por Odisseu. Enquanto este conversa com a mãe, extenso catálogo destas
possibilitando um confronto na árdua prova, feita pelo rei de Ítaca. Antíclea finalmente
revê o filho. Perséfone, mesmo adjetivada com o vocábulo e*painhv (terrível, temível), é
e Teseu. Em todos, age como ativadora dos candidatos à catábase. Cora faz a vez de
clássica. Tal transição é feita pelos rios que compõem o relevo infernal, já pontuados
anteriormente. Hermes guia as almas através dos tortuosos caminhos e, depois, a alma
chega a sua morada final, levada na canoa pelo barqueiro Caronte. Há dois momentos
acontece no encontro entre Riobaldo e o menino. Nota-se que a travessia é feita com
um barco e um canoeiro: “Mas, sério naquela sua simpatia deu ordem ao canoeiro,
com uma palavra só firme, mas sem vexame: — ‘Atravessa!’ O canoeiro obedeceu.”
(GS:V, 83)
coragem...” O momento de medo contrasta com o rio, fator muito explorado por Rosa
Ao mesmo tempo que Riobaldo “arregala doidos olhos” de pavor e esboça início de
choro, vê-se que o narrador contempla o rio em uma espécie de transe e vislumbra do
mesmo modo os olhos do menino, sempre “sereno, sereno”. “Eu vi o rio. Via os olhos
deles, produziam uma luz.” (GS:V, 83). Destacando as qualidades medo e serenidade,
176
entoada pelo canoeiro ilustra toda a ação passada: “... Meu rio de São Francisco, nessa
maior turvação; vim de dar um gole d’água, mas pedir sua benção...” (GS:V, 84)
permite. O narrador descreve uma certa transformação para o narratário. Dizia que:
“—:eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável.” (GS:V, 86). A transcendência
Minha mãe estava lá no porto, por mim. Tive de ir com ela, nem pude me
despedir direito do Menino. De longe virei, ele acenou com a mão, eu
respondi. Nem sabia o nome dele. Mas não carecia. Dele nunca me esqueci,
depois, tantos anos todos. (GS:V, 86)
o encontro com a mãe e a pletora causada pelo encontro com o garoto, são indícios de
Além da travessia com o menino, Riobaldo enfrenta uma travessia maior, que se
nítida: “Depois, de arte: que o Liso do Sussuarão não concebia passagem a gente viva,
era o raso pior avante. Era um escampo dos infernos.” (GS:V, p.29). Era sabido que
um ente vivo não poderia entrar no reino de Hades, apenas alguns poucos heróis foram
capazes de tal feito, da mesma forma, o Liso não era coisa para gente viva, como
construção de seu ser. O narrador descreve com detalhes a localidade e a descreve com
um teor infernal:
Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso de Sussuarão, é o mais longe — pra
lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que
quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta,
sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só — Ver o luar
alumiado, mãe, e escutar como quantos o vento se sabe sozinho, na cama
daqueles desertos não tem excrementos. Não tem pássaro. (GS:V, 29)
presente, pois as águas de todos os rios que fazem parte do relevo infernal ou ardem
rosiana, e que tais momentos lembram muito o regresso dos heróis para o Hades, em
uma busca de identidade ou cumprindo alguma tarefa incutida no mundo dos vivos. É
mergulho, de acordo com a cultura clássica, para dentro do submundo e faz-se, então, a
experiência com a vida, salta para o Hades e lá transcende em uma condição única,
pois volta para o mundo material, podendo comparar o que se passa no mundo do
espiritual e no mundo empírico. Tal ação não condiz com o daímon (δαιηϖη) que, na
predomínio da alma sobre o corpo. O processo, no entanto, está longe de ser ameno,
pode ser que seja até catártico. Toma-se o caso de Odisseu. Com a intenção de
procurar o adivinho cego Tirésias, que mantém seu dom de profecia no Hades graças à
intervenção de Perséfone, Odisseu realiza seu salto para o Hades dando vazão a outras
obstáculos não são poucos. Depois das oferendas e libações, Odisseu se depara com as
almas. Desembaiando a espada, ele impede que outras almas cheguem ao saguão
sacrificatório antes do cego Tirésias. Algumas almas são ouvidas: Elphenor, outrora
companheiro de Odisseu, suplica para que seus ritos fúnebres sejam feitos, pois sua
alma vaga na entrada do Hades sem poder entrar. O general Agamêmnon se faz
presente, assim como Aquiles e tantos outros. A interação mais evidente, no entanto, é
do herói é única, experiência que poucos anthrópos viveriam. Por isso, o herói vive
socrático de que “eu nada sei exceto o fato de minha própria ignorância”, o ex-jagunço
(ou não?) constata que, em meio aos recalques e às interdições, evoluiu de maneira
espiritual, apesar das constantes indagações que assombram. O fato de ter um grande
179
compadre com “a doutrina dele, de Cardéque” indica uma ação de cunho espiritual,
pessoais. A recorrente afirmação da personagem, dizendo não ter feito o pacto, propõe
assim, a célebre esfera Yin, Yang. A constatação que “ninguém não pode me impedir
de rezar; pode algum? O existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora da
sujidade; à parte de toda a loucura ou acordar da alma é o que é?” (GS:V, 458) vai ao
15
A etimologia de Afrodite (*Afrodvvivth) talvez derive de aphrós (afróς) — espuma na língua grega
popular, “pelo fato de haver nascido do mar” (cf. BRANDÃO, 29: 1997) Nasceu da espuma do mar,
fecundada pelo pênis de Urano, logo que cortado por Cronos. Ao nascer, foi conduzida por Zéfiro em
uma concha de pérola e nácar e entregue às Horas. Foi educada, vestida e ornamentada e, em seguida
conduzida à mansão dos Imortais. Em alguns relatos aparece como filha de Zeus e Dione. Deusa da
beleza e do amor. Os gregos distinguiam três Afrodites: A Afrodite celeste, que inspirava o amor casto e
puro; Afrodite popular, que presidia aos amores sensuais e a Afrodite preservadora, que afastava os
corações das obscenidades e da volúpia. Geralmente era representada como sendo alva e loura, “a áurea
Afrodite” (cf. HOMERO), sempre com pouca vestimenta ou nua. Aparecia sempre com Eros sobre um
carro feito de conchas de nácar cor-de-rosa, tirado por cisnes ou pardais ou, principalmente, pombas. Nos
seus cortejos estavam as Cáritas: Eufrosina, Agalia e Talia. Não se imolavam vítimas a Afrodite,
ofereciam-se-lhe flores, perfumes, incensos e frutos. Entre as flores, a rosa estava-lhe consagrada. Entre
as frutas, a maçã; entre as árvores, a mirta ou murta. Era casada com Hefesto, mas constantemente
faltava-lhe a fidelidade conjugal, preferindo amantes como Ares. Foi escolhida por Páris Alexandre no
célebre concurso que ocorreu nas núpcias de Cadmo e Harmonia, recebendo como prêmio o pomo de
ouro. A diva ofereceu ao julgador a mulher mais bonita e o pastor recebeu a grega Helena como
recompensa. Amou intensamente os mortais Anquises e Adônis. Perseguiu Psique por esta ter se
igualado a sua beleza, fato que levou Eros a experimentar o teor de suas próprias setas. Inspirou Éos, a
aurora, um amor insano por Órion por aquela ter se unido a Ares. Tendo as mulheres de Lemnos deixado
de lhe trazer oferendas, castigou-as com um odor insuportável. Puniu as filhas de Ciniras, em Pafo,
forçando-as a se prostituírem aos estrangeiros. Deu vida à estátua de Pigmalião, para que o artista sentisse
o dom do amor. Deu ao velho barqueiro Fáon um bálsamo para que ele se tornasse jovem outra feita.
Tomou partido dos troianos na Guerra de Tróia. O rei Tíndaro ofereceu um sacrifício aos deuses devido
ao nascimento de sua filha Helena. No entanto, esqueceu-se da parte dedicada a Afrodite. A diva, irada,
jurou vingança: a esposa do rei, Leda, seria sempre infiel. Ela levou sua vingança ainda mais longe.
Quando nasceu Helena, instituiu que a princesa seria infiel ao marido e causa das maiores desgraças.
Trazia sempre consigo um cinto, onde se encontravam todas as graças e seduções. Era chamado de cesto.
Por Mirra ter-se negligenciado a venerá-la, incitou na princesa uma paixão incontrolável pelo próprio pai.
Para punir Hipólito por renunciar ao amor, infligiu na sua madrasta, Fedra, uma paixão sem igual pelo
enteado, fato que levou ambos à morte. Foi perseguida pelo monstro Tifeu, que se enamorou da deusa.
Apavorada, fugiu para as bordas do Eufrates. Quando estava prestes a ser capturada, dois peixes a
transportaram para longe. Em sua função arquetípica, aparece como sensual e amante, mulher criativa.
No enfoque junguiano, é retratada como sendo definitivamente extrovertida e sensível. Uma mulher com
perfil de Afrodite é sagaz em desfrutar da beleza e do amor, sendo, também, pródiga em relacionamentos
amorosos, promíscua, lenta em avaliar conseqüências. (cf. BRANDÃO, 354: 1997) Teve vários
descendentes: Eros, Ânteros, Deimos, Fobos e Harmonia, com Ares; Hermafrodito, com Hermes; Príapo
e Himaneu, com Dionísio; Enéias, com Anquises; Érix e Herófile, com Poseidon e Golgos e Béroe, com
Adônis. Designavam-se vários epítetos para Afrodite. Entre eles: Vênus (nome latino), Urânia,
Pandemos, Nínfia Hetaira, Cípria, Citeréia, Mirtea, Dionéia.
181
Logo após o seu nascimento fora conduzida ao lar dos deuses, já recebendo as suas
do Titã Crono. Sendo assim, pode-se afirmar que o nascimento do amor precede, até, o
domínio de Zeus, que mais tarde reinaria sobre o mundo no monte Olimpo.
pelos gregos. Existiam, entre muitas funções, três principais. Afrodite Urânia inspirava
Pausânias fala de uma Afrodite celeste, uma vulgar e outra preservadora. Assim,
carnal, preso ao corpo e o último, um amor desordenado, que leva humanos a uniões
épocas, no entanto, não se separava o amor puro do físico, o carnal. Em sua forma
182
inicial, Afrodite, deusa da paixão sexual, cumpria também funções de cunho celestial,
como as de genitora e como entidade protetora dos marinheiros. Com o passar dos
séculos, os gregos patriarcais reduziram as suas funções a tudo que concerne ao amor.
aproxima-se muito mais de Afrodite; é fato notório que chamamos o desejo sexual de
religião cristã assumiu maior poder, baniram Afrodite. Outras entidades foram
substituídas, mas a deusa do amor teve que ser banida. Afrodite pareceu ser uma
ameaça ao paradoxo cristão, que idealizou uma divindade patrilinear sem forma ou
corpo. A Igreja via as mulheres como uma aproximação dos humanos de seus
espuma para todos. Jaques Mazel, estudioso da literatura grega, ressalta, no entanto,
que tal variante seria uma proposta para consolar Afrodite de sua condição de órfã. Dá-
se, então, uma mãe verdadeira, Dione, e um pai respeitável, Zeus, origem que dita uma
comportamento dual de Afrodite. A deusa, gerada por Zeus e Dione, faz-se uma
platônicos e socráticos. A porção vulgar abraça o ideal do amor popular de cais, amor
mas nota-se que Afrodite sofrerá incontáveis variantes, que lhe atribuirão uma série de
deusa dos covis. Além disso, aparece como Afrodite Melênis, a negra, Afrodite
Escótia, a sombria, pois as coisas do amor acontecem mais à noite, Afrodite Epitímbia,
como Afrodite Casínia, que designa as cópulas impudicas, ou como Afrodite Decreto,
desejo de Riobaldo e verificar o quanto o amor, iconizado pela deusa , participa das
Guimarães Rosa”, que Riobaldo conhece três espécies de amor. O primeiro é o enlevo
por Otacília, o segundo é a avassaladora e dúbia paixão pelo amigo Diadorim e, por
Nhorinhá é o amor que mais incita o desejo sexual de Riobaldo: “Se chamava
Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pêlo — alegria que foi, feito casamento,
lembranças que se turvam depois que e o nome de Diadorim é lembrado. Este era o
amor misterioso, o amor que incomodava: “— que era aquilo?” Riobaldo se infunde
em explicações que o desorientam. “Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava.
Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa feita! “(GS:V, 114) Este amor eleva-
O modelo preestabelecido por Nunes faz sentido, ainda mais depois de explícitas
nota Otacília recebendo descrições mais erotizadas do narrador, assim como Diadorim.
185
Otacília parece carregar mais estes entremeados. Ao mesmo tempo que era “forte
como a paz”, descrição espiritualizada, era, também,” deitada, rezada, feito uma
cheirosa, o bafo de menino-pequeno.” (GS:V, 146) Ou, “Nhorinhá gosto bom ficado
em meus olhos e minha boca.” (GS:V, 78) “Nonada! A mais, com aquela grandeza, a
Outras mulheres são lembradas por Riobaldo, a maioria meretrizes, com quem
Urânia.
sugerida por Platão, e afirma que Afrodite “tem o poder de transmutar o prazer sexual
em êxtase espiritual.” (BOECHAT, 1995: 191) O entrelace das duas funções é notório,
Dormi com uma mulher, que muito me agradou ― o marido dela estava
fora, na redondeza. Ali não dava maleita. De manhã cedo, a mulher me
disse:— ‘Meu pai existe daqui a quarto-de-légua. Vai, lá tu almoça e janta.
De noite, se meu marido não tiver voltado, eu te chamo dando avisos.
(GS:V, 106)
Ou ainda:
Saí alegre do bordel, acinte. Depois, o Fafafa, numa venda, perguntou se não
tinham chá de mate seco, comercial; e o homem tirou instantâneo nosso
186
Tais dotes físicos, porém, mesclam-se com teores de amor puro representado
“Conheci que Otacília era moça direita e opinosa, sensata, mas de muita ação.” (GS:V,
rezada, feito uma gatazinha branca no cavo dos lençóis lavados soltos. Ela deusa de
Pandêmia ao longo da narrativa, daí dizer que a porção mais espiritualizada do amor
paralelos no enunciado rosiano, chame-se a atenção para outros aspectos que possam
terra, às montanhas e ao mar, lugar de onde surgiu, de acordo com Hesíodo. Vê-se
jacintos, papoulas e romãs. Consta que seus pêlos pubianos são relacionados com as
mudas de alface e com outras flores contendo cinco pétalas. Não raro, Afrodite aparece
Afrodite também é notada através de símbolos e, além de deusa do amor, é deusa das
representação simbólica das flores. Pierre Grimal afirma que “as suas plantas eram as
imolavam vítimas a Vênus; seus altares jamais eram manchados pelo sangue;
presença. Como diria o poeta Mimnermo de Cólofon: “Sem a Afrodite de ouro, que
vida existe e que doçura?” Píndaro, confirmando a tradição, diz: “... da enganadora
enlaçam as finas sedas do enunciado e, quase sempre, enfeitam alguma cena de denso
vezes pelo narrador. Sua lembrança transita entre o desejo carnal e o espiritual, mas a
me dizia uns carinhos turcos”, ou, também, “Toda a vida gostei demais de estrangeiro”
(GS:V, 90) Rosa’uarda incute a função dual de Afrodite, tão presente e refletida aqui.
completas, que juntos fizemos, no fundo do quintal, num esconjo fiz com muito anseio
amor dos cavaleiros andantes, que cultuavam as suas nobres damas, glorificando,
assim, ainda mais os seus feitos heróicos. Nhorinhá atiça a sua virilidade, o amor
fisiológico, material, efêmero, mas nem por isso, menos lembrado que os outros
190
amores. Tais reflexões remetem à primorosa obra de José de Alencar, O Guarani, nela
está proposta, também, uma tríade de amores. No romance lê-se que “Loredano
desejava; Álvaro amava; Peri adorava.” Alencar deixa claro que o aventureiro: “daria a
vida para gozar”, o segundo, o galante cavalheiro, enfrentaria a morte “para merecer
um olhar” e o protagonista, o índio Peri, “se mataria, se preciso fosse, só para fazer
começando pelo o amor de desejos e, com Álvaro e Peri, alternando a concepção mais
sentimentos em Riobaldo, que contém todas as porções, diferente dos três personagens
certos trechos onde pombos aparecem como o anúncio do amor. Nos dizeres de Safo
de Lesbos: “A tua carruagem atrela, ó Deusa, belos pássaros rápidos: eles a escura
volta darão à terra escura cruzando o éter sempre pela esteira do céu.” Tal pássaro é
podem remeter ao amor. O dicionarista Pierre Grimal, como a poeta Safo, aponta o
pombo como sendo o pássaro que faz a tração do carro de Afrodite. “Os animais
favoritos da deusa eram as pombas. Era um casal destes animais que puxava seu
pombos, cisnes, gansos, aves conhecidas por sua placidez e beleza. Quando a deusa
descansa, senta-se em trono de cisnes. Afrodite, então, mais uma vez, manifesta-se
com um alto teor simbólico. Na mitologia grega, é sabido que Afrodite exercia uma
grande capacidade de manipular quem encantava. Foi assim quando inspirou o amor de
Eós por Orión, o de Fedra por Hipólito e o de Mirra pelo próprio pai, todos esses
amores causaram intensa dor. Inspirou amores puros, como o de Pigmalião pela estátua
Aí, falei dos pássaros, que tratavam de seu voar antes do mormaço. Aquela
visão dos pássaros, aquele assunto de Deus. Diadorim era quem tinha me
ensinado. Mas Diadorim agora estava afastado, amuado, longe num
emperrêio. Principal que eu via eram as pombas. No bebedouro, pombas
bando. E as verdadeiras, altas, cruzando do mato. ― “Ah, já passaram mais
de vinte verdadeiras...” ― palavras de Otacília, que contava. Essa
principiou a nossa conversa. Salvo uns risos e silêncios, a tão. Toda moça é
mansa, é branca e delicada. Otacília era mais. (GS:V, 146)
Afrodite eclode nos ditos sobre Diadorim, nas falas sobre Otacília. Para Jaques Mazel,
a flecha direcionada para as paixões femininas é atirada por Afrodite. Eros é conhecido
obra de Hesíodo, onde Eros aparece como entidade primordial, Afrodite não deixa de
ter total domínio do amor, tendo Eros como um fiel emissário. As proezas do amor,
192
função que a maioria dos mitólogos dão a Eros, como o filho dedicado de Afrodite,
que se rebelou somente uma vez, vítima de suas próprias setas. De cantos langorosos e
sedutores, Afrodite representa mais o amor físico, a união “carnal e sensual ligada à
inspira outro sentimento, um mais moral e pedagógico, “aquele que anima o espírito
1991: 180)
(*a*frodisiavzw) implica em ter relação sexual, “a atividade genital”, entrega aos prazeres
do amor... Afrodite incutiria o desejo de uma pessoa para a outra, a paixão seria
possível amor homossexual, que possa estar sentindo pelo companheiro, ora Riobaldo
inunda os seus pensamentos com a doce imagem de Otacília. Tanto as porções Urânia
193
Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor
de ouro. De doer, minhas vistas bestavam, se embaçavam de renuvem, e não
achei acabar para olhar para o céu. Tive pena do pescoço do meu cavalo ―
pedação, tábua suante, padecente. (GS:V, 42)
recebe grande atenção do narrador. Ouro, no sentido primeiro, revela essa porção de
amor que mais prezou, o amor de dimensões idealizadas por Diadorim. O amor de
em que o narrador lhe dá uma condição de prata. O amor espiritualizado, então, ocupa
percebe que Diadorim corresponde ao belo garoto que, na sua infância, conheceu na
O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem,
mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquele do porto de Janeiro,
daquilo que lhe contei, o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa,
toda a vida. E ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes,
194
Riobaldo também refletia sobre seu intenso relacionamento com Diadorim; dizia
Tatarana, no entanto, uma atração física é notada e inúmeras vezes o narrador fala de
mantinha-se sempre bela. Renovava a sua beleza com banhos mágicos, restaurando o
hímen. Certa vez, muniu Psique com uma caixa — pýxis (puvxiς) — e ordenou-lhe que
Hades, Perséfone. Tal bálsamo fora associado ao muco vaginal, ligando o ato sexual
com o conceito de belo, tanto beleza física quanto espiritual. O amor Urânia, para se
O amor espiritual se concretiza, o carnal não. Este fato divide Riobaldo, o incomoda. O
protagonista não concretiza o amor Pandêmia, prova de que o amor espiritual e carnal
se conjugam. Não haveria razão para tanta angústia, tanto conflito, se Riobaldo se
satisfizesse com a porção Urânia do amor. A atração física se ressalta nos trechos
descritos abaixo:
Diadorim também disso não disse; ele gostava de silêncios. Se ele estava
com as mangas arregaçadas, eu olhava para os braços dele ― tão bonitos
195
ou:
Riobaldo nutre o amor incutido por Afrodite Urânia quando, em suas descrições,
Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com
uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos — vislumbre meu
— que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum
pasto. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro
ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem
tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... Reforço o dizer:
que era belezas e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa
que o entender da gente por si não alcança. (GS:V, 374)
nas falas de Riobaldo sobre Diadorim, nota-se uma mescla desses dois tipos de amor.
para as descrições envolvendo Otacília, que é referida como sendo a “Moça de cara
redonda.” (GS:V, 122) Difícil não associar tal atributo físico à própria aparência de
196
Afrodite existia a fecundidade, que homens e mulheres férteis usufruíam dos dons da
deusa do amor e não só a face de Afrodite, mas assim como outras partes anatômicas,
remetem à fertilidade.
Afrodite. Em esculturas mais antigas, a deusa aparece vestida. Aos poucos, partes do
corpo, como as espáduas, coxas e seios foram sendo reveladas, mas a nudez sensual só
marcantes como o afresco perdido de Afrodite Anadiômena, pintado por Apeles (IV
a.C.), Afrodite Cnida, de Praxíteles (370? – 330 a.C) e a célebre Vênus de Milo
Cápua. Todas mostram uma Afrodite voluptuosa, que ajuda a personificar o instinto
Mesmo abraçando esta função institiva, Afrodite era, por excelência, a deusa do
pura quanto na mais profana. Suas formas inspiraram pintores de inúmeras eras.
suas formas femininas exageradas: seios e quadris fartos, largos. Vulvas triangulares
bastas. Nádegas carnudas pronunciadas. Afrodite era uma deusa de funções mais
amplas nos tempos pré-helênicos. Originalmente, fora deusa marinha, do céu e até da
197
epítetos, Citeréia, remete ao poder criativo e ao prazer físico. Muitos acham que
Afrodite provém da grande deusa de Chipre, mais tarde assimilada pelo enunciado de
algumas divindades, Afrodite não mantém distância entre ela e aqueles que caem sob o
seu poder. Ela se entrega ao amor intensamente, como os mortais, pois só assim
embora o amor penetre no fígado (como pensavam os gregos), a paixão cura. O sexo
personagem Otacília. Ela, notadamente, compõe a figura icônica de Afrodite, tanto nos
Riobaldo descreve aspectos de Otacília, aspectos que a dotam tanto com o amor
Afrodite aflora na narrativa rosiana, ora com uma blandícia quase imperceptível,
ora com clareza linear. Este paradoxo é perfeitamente explicável. Paul Diel considera-a
psicanalítico, na qual o amor se completa em sua união com a alma, a deusa representa
a perversão sexual, pois a harmonia do amor puro é associado a Hera, a protetora dos
casamentos.
Não se pode dissociar, no entanto, o ato amoroso do ato carnal, pois “o ato da
fecundação pode ser buscado unicamente em função do prêmio do gozo que a natureza
agora, para Afrodite enquanto personagem, pois é assim que ela se manifesta na Ilíada,
de Tróia. Sua primeira aparição é no Canto III; a partir daí, aparece nos outros cantos
deusa participa da guerra. No já citado Canto III, por exemplo, Afrodite intervém no
rasga a tira de couro que prende o elmo do príncipe troiano, no momento em que é
arrastado para as fileiras das tropas inimigas, pelo arqui-rival Menelau. Dos campos
Helena, inundando os amantes com o sentimento do amor. Nesse momento, dá-se uma
motivação sexual interna da princesa grega raptada, ao mesmo tempo em que age
como uma deidade poderosa, agindo externamente, usando de sua presença física ou
dialoga com Helena, disfarçada. Helena percebe a perfeição do colo da mortal que a
interpela, sabendo que tal perfeição só pode originar-se de uma deusa. A filha de Zeus
revelar para um mortal na sua forma antropomórfica, fato que ocorre neste trecho e em
vários outros da Ilíada. Afrodite fez questão de reprimir Helena assim que o uso do
como se pode constatar no romance rosiano. Ao longo do texto, nota-se uma grande
variação nos epítetos que modificam o nome da deusa, o que revela a costante
funções do amor e até intervém em batalhas. Fisicamente, vem descrita como áurea,
anatômicos mais evidentes de Afrodite eram revelados pela sua nudez. Raramente
Afrodite. Homero descreve muito Afrodite como sendo a dioz qugavthr (filha de deus),
pois os relatos homéricos, ao contrário das obras de Hesíodo, classificam a deusa como
filha de Zeus e Dione. Apesar de ser descrita como “amiga dos sorrisos”, Afrodite
recebe epítetos variados de acordo com o contexto em que age. Quando é abordada por
Hera, no Canto XIV, o epíteto “filha de deus” é usado, pois a esposa do deus maior
requer a cinta que induz o amor em todos os entes. Assim que recebe o adorno de
verdade, a rainha dos deuses usa das artimanhas da sedução, propriedades associadas à
deusa do amor.
201
filho Enéias, que luta por Tróia. A deusa interfere diretamente na batalha e tem a sua
mão ferida por Diomedes. O corte provoca o corrimento de um “icor que mana do
Cípria da batalha. No Canto XXIII, Afrodite desce do Olimpo para assegurar que o
corpo de Heitor, morto por Aquiles, não seja aviltado por cães ou aves de rapina. Ela
unta o cadáver do guerreiro com óleo e rosas, para que Aquiles não o esfolasse ao
Ares são enlaçados na rede invisível fabricada por Hefesto. O ato sexual congela-se e
os amantes ficam expostos aos olhares das outras entidades olímpicas masculinas.
Afrodite, atada, com o amante dentro de si, recolhe-se na própria ação por ela
sublimada. Ao mesmo tempo em que luta para se desprender da rede, concentra-se nos
Poseidon, fascinado, pede para que Hefestos liberte os amantes, pois a visão
assim como os mortais que agem sob a sua tutela. Mulheres que seguem esta função
sublime beleza do amor, de sua sensualidade e criatividade nos dons eróticos. Tais
qualidades são ditadas por Afrodite e a sua função arquetípica de mulher sensual,
fumantes incensos, sempre acesos em nome da diva. Nos versos de Hesíodo, vimos
que Afrodite controla tudo que concerne ao amor. Todo mortal está submetido aos
seus melindres.
constante no ar; as outras deusas nem ousaram ficar no recinto, tamanha a repulsa e o
Riobaldo não escapa, em pleno sertão mineiro, da divindade grega. A rede que envolveu
(CONSIDERAÇÕES FINAIS)
levantam-se, agora, pontos não conclusivos, mas que ampliariam estudos envolvendo
João Guimarães Rosa certa vez disse que tinha horror ao efêmero. Averigua-se
permitem que ela seja lida em diferentes épocas.” (cf. CULLER, 1999:120)
fundamentado por parâmetros que mudam de tempos em tempos, mas que estabelecem
dura até a presente data, conclui-se que tal fenômeno só fora possível devido ao
Jauss. Levam-se em consideração, também, fatores ideológicos, que acabam por eleger
vastidão.
incluindo no seu formato uma inquietude existencial, inquietude esta percebida no épico
confrontar o infinito, uma pletora de indagações e retóricas, mas nunca uma solução. O
16
A noção de cânone, apresentada aqui, muito se relaciona com as reflexões de Harold Bloom no
aclamado O Cânone Ocidental. No entanto, é esclarecedora e bem elaborada a idéia apresentada por
Flávio Kothe em O Cânone Imperial. Os dois estudiosos entendem a questão de maneira bem distinta.
Enquanto o crítico americano defende a autonomia do domínio da estética e se mostra visivelmente contra
os estudos culturais em literatura, o professor brasileiro desconstrói a idéia rígida de texto canônico,
denunciando-a, até, como impostura ideológica.
206
mundo tão acabado e perfeito do homem clássico tornou-se uma grande indagação e
mas existencialmente tudo é ainda muito confuso, intenso, vívido. Por um lado, temos o
narrativa subjetiva que não se deixa calar. Dois eixos misturam-se: a aventura no sertão
literatura universal.
de concepções duais, mostrando que nada pode receber esclarecimento. Daí a mistura:
explica a sua paixão por Diadorim, paixão esta: “amor, mal encoberto por amizade.”
(GS:V, 220) Daí a história começa a se contar cadenciadamente, a aventura com o teor
de epopéia vai se revelando mais nítida e o teor lírico, subjetivo, por sua vez, se dilui. É
útil frisar, no entanto, que esta busca interior, a reflexão, só se dá porque a personagem
207
central passa pelo aventuresco, pela construção da ação narrativa. É na ação que morre
atingir do sublime, um êxtase típico do trágico, bem típico, também, do lírico. Esta
um mundo misturado.
Riobaldo ganha a sua segurança e a sua paz ao inserir-se em um mundo burguês. Isso se
traduz no seu apego à família, a instituição burguesa por excelência, e por ser, no tempo
testamento.” (GS:V, 457) As aventuras no sertão são substituídas pelo status burguês, o
homem de bem que, barranqueiro, conta feitos ao narratário culto. Ainda assim, o
homem socialmente estabelecido exerce um contínuo ato de procura. Sua paz social e
“O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!” (GS:V, 460) Ou lembrando
outro narrador rosiano: “Sou homem depois deste falimento?” “Sou o que não foi, o que
vai ficar calado.” Num perpétuo “acabar de contar”, a história insiste em se reiniciar,
(GS:V, 254). “Aqui a estória se acabou. Aqui a estória acabada. Aqui a estória acaba.”
(GS:V, 454) Ou ainda: “Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase
barranqueiro. Para velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro.” (GS: V,
454)
ao próprio ato de contar, bem parecido com o aedo clássico, “possuído” pela musa,
possuído por um ato divino e vital, ao mesmo tempo reflexivo e estruturado, fundado
208
pela sociedade que inaugurou o mote: “Penso logo existo.”, e também: “Só sei de que
nada sei.” O romance de Rosa mune-se de recursos para, também, participar da grande
O ato de contar faz com que questões sobre o foco narrativo venham à tona,
principalmente o complexo foco narrativo contido na Ilíada. Foi de muita valia o estudo
épico. Sustentado por teorias das narrativas contemporâneas, voltadas para o romance
em geral, Rabel, com sucesso, discute como a narrativa romanesca funciona, muitas
vezes, como épica. Constata-se que tudo que se diz de um épico se enquadra no
autor empírico pouco se manifesta como detentor do foco narrativo. Daí a reflexão
sobre outra categoria, o autor implícito, que também participa muito da polifonia do
discussões feitas pelo filósofo, sobre o dinamismo do discurso épico homérico, que
direto. Usando tal distinção, Rabel estabelece que Homero é poeta da Ilíada e a Musa,
inúmeras vezes invocada, a entidade que conta a história. Nesta perspectiva, endossam-
raconto. O romance se valeu desta rica marca narrativa para instituir uma das suas
sua forma definida no final do século XVI e começo do século XVIII. Seu auge vem no
Tal desprendimento talvez seja a maior distinção entre a epopéia e o romance. O gênero
emerge sem regras fixas e não acompanha nenhum modelo métrico ou formal.
Esta talvez seja a marca mais própria do romance, a mais distinta. As outras,
ainda que relevantes, não se desconectam totalmente de seu antepassado. Atenta-se para
romance origina-se de uma classe abastada e que, muitas vezes, os homens “comuns”
são de um círculo social restrito. A tal liberdade romanesca confina, de certo modo, suas
ações inovadoras a um grupo limitado. Sendo assim, a epopéia clássica mostra-se mais
democrática, já que o aedo recita suas histórias (sobre os aristoi sem dúvida), mas para
glória, mas seus conflitos se originam do núcleo pequeno-burguês em si, os valores que
passaram a imperar na humanidade. Não estabelecer estas metas muitas vezes gera o
clássicos são bases da formação humanista e que tais valores, de certo modo, ainda
vigoram no mundo burguês. O conflito do “homem comum” não seria, então, o fato de
“cotidiano” nada mais é do que a vida burguesa e, quando se fala de burguesia, logo
conter dualidades, também é marca nas principais personagens épicas, como é o caso de
propósito de sugerir, para, então, estabelecer uma reflexão mais concreta sobre a
realidade.
211
mas uma linha tênue os separa. A construção do romance é muito calcada na épica
perigráfico foi feita, e alguns itens do marco teórico refletem isso, mas,
desde muito. Desde o começo. Todos com teores parecidos. Em Gilgamesh, epopéia
babilônica que antecede a Ilíada em pelo menos mil anos, temos um herói e a sua
jornada para autoconhecer-se. O rei de Ur descobre que a amizade pode trazer a paz
para uma nação inteira. Descobre, também, que atacar um monstro sem prudência pode
revela quando o herói atenta para o fato de que: “a sabedoria só pode ser alcançada
imensa aventura para perceber tal coisa. Desesperançosamente, o herói do romance luta
dentro do homem, os crespos do homem” (GS:V, 11), diria Riobaldo, já no início de sua
divagação retórica, para chegar a conclusão de que: “ O diabo não há! É o que eu digo,
Feácios: “É-me odioso, realmente, de novo ter de contar o que já ficou dito com toda a
desperta para o sentido de sua viagem. A jornada que se iniciou deve terminar. O herói
já não precisa contar a sua história uma outra vez, pois Odisseu descobrira-se. Já
Aquiles não passa pela percepção. Revela o seu descontentamento, seu vazio quando
diz para Odisseu que queria estar vivo e não usufruir de sua estadia nos Campos Elísios.
continua enigmática para Aquiles e Riobaldo, mesmo depois da aventura. Talvez seja
como diria Riobaldo: “Eu sou de onde eu nasci. Sou de outros lugares.” (GS:V, 220)
213
ABSTRACT
research is aimed to be a parallel study of two literary works. Treading the paths of
both Rosa and Homer discloses a literary approach with no cultural and linguistic
boundaries. Thus, one may say that the Sertão and the Hellade are not so far apart and
that Grande Sertão: Veredas and The Iliad are interconnected. The reader is invited to
choose many paths; some suggested by Riobaldo, others by The Iliad’s singer as well as
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