Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

GSV e Ilíada

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 237

ALEXANDRE VELOSO DE ABREU

DO SERTÃO AO ÍLION: UMA COMPARAÇÃO ENTRE

GRANDE SERTÃO: VEREDAS E ILÍADA.

Belo Horizonte
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
2006
2

ALEXANDRE VELOSO DE ABREU

DO SERTÃO AO ÍLION: UMA COMPARAÇÃO ENTRE

GRANDE SERTÃO: VEREDAS E ILÍADA.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para a obtenção do grau
de Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa,
elaborado sob a orientação do Professor Doutor
Audemaro Taranto Goulart.

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


Belo Horizonte
2005
3

Tese defendida publicamente no Programa de Pós-gradução em Letras da PUC


MINAS e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora:

________________________________________________________________
Prof. Dr. Hermenegildo José de Menezes Bastos

________________________________________________________________
Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques

________________________________________________________________
Prof. Dra. Maria do Carmo Lanna Figueiredo

________________________________________________________________
Profa. Dra. Márcia Marques Morais

________________________________________________________________
Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart
(orientador)

Belo Horizonte, 16 de Março de 2006.

Professor Hugo Mari


Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras
da PUC-MINAS
4

Para Denise

Minha maior vereda.


5

AGRADECIMENTOS

Ao professor Audemaro pela orientação

Aos meus pais

Aos amigos que encontrei em várias veredas


6

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .........................................................................................................................10

PARTE I — VEREDAS DESBRAVADAS

1. VEREDAS ÉPICAS ............................................................................................................18


1.1. O épico e o romance grego ...........................................................................................18
1.2. Grande Sertão como épico ............................................................................................23

2. NARRADORES E VEREDAS ...........................................................................................24


2.1. Ponto de vista: Narradores em profusão ......................................................................25
2.2. Intermissões rosianas e paradigmas homéricos ............................................................35

3. URJO DE GUERRA: BATALHAS NO SERTÃO E NO ÍLION.....................................57


3.1. A batalha rosiana e homérica ......................................................................................61
3.2. Vestindo guerreiros .....................................................................................................66
3.3. Cenas e Episódios........................................................................................................67
3.4. A Volta de Zé Bebelo..................................................................................................77

4. O HERÓI DO SERTÃO E DO ÍLION...............................................................................81


4.1. O julgamento de Zé Bebelo e a Teichskopía: vendo heróis ........................................86
4.1.1. Hermógenes Saranhó Rodrigue Felipes ............................................................97
4.2. O herói dividido ..........................................................................................................99
4.3. O Ágon: o conflito heróico .......................................................................................107
4.4. Metamorfoses do Herói ............................................................................................112

5. REALIDADES ESPACIAIS E NARRATIVAS FICCIONAIS........................................116


5.1. Atos de fingir no sertão e no ílion ..............................................................................117
5.2. O relevo rosiano e o relevo homérico ........................................................................119
5.3. O espaço: encontro estilístico ....................................................................................121
7

PARTE II — VEREDAS PERCORRIDAS

6. ZEUS NO SERTÃO E NO ÍLION ..................................................................................130


6.1. Zeus como destino: a moira no sertão ......................................................................132

7. OLHOS DE DIADORIM E ATENA ..............................................................................141


7.1. Diadorim e Atena: qualidades ..................................................................................141
7.2. Olhos verdes de Diadorim, glaucos os de Atena ......................................................145
7.3. Diadorim e Joca Ramiro/Atena e Zeus ....................................................................151

8. O DIABO E HADES NO MEIO DO REDEMOINHO....................................................154


8.1. Contexto do diabo e de Hades ...................................................................................155
8.2. Diabo e Hades: paralelos............................................................................................159
8.3. O pacto e a catábase...................................................................................................167
8.4. A porção Perséfone....................................................................................................172

9. AFRODITE NAS VEREDAS DO GRANDE SERTÃO ................................................180


9.1. Afrodite em Rosa ......................................................................................................184
9.2. Afrodite e os seus símbolos no grande sertão ...........................................................187
9.3. Afrodite anunciada ....................................................................................................192
9.4. Afrodite na Ilíada ......................................................................................................199

PARTE III — VEREDAS ENIGMÁTICAS

10. VEREDAS, ENTROCAMENTOS E ENCRUZILHADAS............................................200

10.1. Um estudo misturado...............................................................................................205


10.2. Épicas romanescas e romances épicos.....................................................................209
10.3. Sem fôlego nas veredas............................................................................................211

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................214
8

RESUMO

Propõe-se, aqui, um estudo comparativo entre o romance rosiano Grande

Sertão: Veredas e o poema épico homérico Ilíada. Diálogos fecundos acontecem entre

obras literárias de outras culturas e épocas. Para que o fenômeno aconteça é necessário

que o leitor participe de todo o processo comparativo e que aja como um leitor apto a

aceitar o paralelismo proposto entre duas obras literárias. Tal paralelismo só se dá

quando a enciclopédia do leitor tem instrumental para realizar a ação de leitura, o que

Eco chama de “competência enciclopédica”. Quando uma análise comparativa

acontece, leva-se em conta uma série de indagações. Na verdade, o fenômeno amplia

os horizontes de leitura e demanda um estudo pormenorizado. Valer-se da literatura

para refletir sobre literatura é por demais proveitoso. Perfilar Rosa e Homero enriquece

o estudo de literatura sem fronteiras culturais e lingüísticas. Daí poder dizer que o

Sertão e a Hélade estão próximos e que Grande Sertão: Veredas e Ilíada

interrelacionam-se. O encontro das narrativas propiciou o surgimento de veredas

esperadas e não esperadas, como a comparação entre o diabo e o deus grego Hades.

Foram percebidos encontros estilísticos entre Rosa e Homero. Algumas veredas

percorridas, outras desbravadas. No geral, a percepção de que muitas outras veredas se

abriram, esperando para serem percorridas em outra oportunidade. Cada vereda surge

de modo variado. Encontramo-nos, então, em uma profusão de caminhos, uns citados

por Riobaldo, outros pelo aedo da Ilíada e outras tantas pelo próprio leitor.

PALAVRAS CHAVE: Epopéia, Romance, Grande Sertão: Veredas e Ilíada.


9

LISTA

Todas as citações extraídas do romance Grande Sertão: Veredas se encontram na 9°

edição da Editora José Olympio. (ver bibliografia). O romance será sempre referido

pela abreviatura GS:V. A tradução que prevalece da Ilíada é a de Carlos Alberto

Nunes; no entanto, várias traduções da obra de Homero foram consultadas.


10

INTRODUÇÃO

A literatura, como qualquer objeto de apreciação estética, está sujeita às

impressões que olhares distintos fazem para construir uma gama de sentidos diversos.

A arte, na verdade, se dinamiza justamente nas profusões de sentidos que provoca.

Membros da corrente científica que se usou chamar de fenomenologia

centralizam bastante o seu foco no ato de leitura, ato em que o leitor exerce papel

evidente. Entre inúmeros estudos notou-se que o texto provoca, no ato de leitura, a

própria libertação de um possível enunciador. Tal ação é muito bem descrita por Hans

Robert Jauss, por exemplo, que aceita a leitura como construção, destacando o

procedimento ideal em um processo de recepção. A formação do leitor age em

condições calcadas no horizonte de expectativas e, conseqüentemente, em uma

elaboração e aperfeiçoamento deste1.

1
Os estudos em recepção se destacam, principalmente o “Reader response criticism”. A ação do leitor
tomou um marcante rumo quando a escola da fenomenologia contribuiu para o estudo do leitor,
destacando os dizeres de Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e Stanley Fish. Jonathan Culler esclarece,
acerca de Jauss: “Uma obra é uma resposta a perguntas colocadas por um ‘horizonte de expectativas’.
Depois de determinado, o leitor continua atendendo o horizonte de expectativa e depois o rompe”. O
dinamismo segue com o questionamento e com a ampliação do mesmo. As fases são interligadas e
formam um movimento cíclico. Cada reinício, no entanto, difere-se das outras fases iniciais, dotando todo
o processo de uma forma evolutiva. Interessante notar que, mesmo com o leitor desempenhando uma ação
mais evidente, a estética da recepção sugere que a interpretação se centralize não na experiência pessoal
de cada indivíduo, mas na história da recepção que cada obra tem. Centraliza-se, especificamente, na
relação da obra com as normas estéticas e conjuntos de expectativas transformadores que possibilitam a
leitura através do tempo.
11

Chama-se a atenção para tais estudos, sendo que agem com muita pertinência em

um estudo comparativo, muito centrado na recepção de um modo geral. Duas obras

literárias de contextos históricos e culturais diferentes só poderão ser relacionadas se o

leitor acionar as premissas já tão debatidas por Aristóteles, Longino, Horácio,

Heidegger, Gadamer, Ingarden, Vodicka, Jauss e Iser. A ação comparatista é uma ação

de leitura e, conseqüentemente, do leitor. A viabilidade do estudo também suscita

reflexões intertextuais e dialéticas, que compartilham com o processo de reflexão e com

a abertura para um estudo comparativo mais amplo e dialógico. Diálogos fecundos

acontecem entre obras literárias de outras culturas e épocas. Notou-se que a literatura

dialoga muito bem até com outros campos semióticos. Para que o fenômeno aconteça é

necessário que o leitor participe de todo o processo comparativo e que aja como um

leitor apto a aceitar o paralelismo proposto entre duas obras literárias. Tal paralelismo

só se dá quando a enciclopédia do leitor tem instrumental para realizar a ação de leitura,

o que Eco chama de “competência enciclopédica2”. Quando uma análise comparativa

acontece, leva-se em conta uma série de indagações. Na verdade o fenômeno amplia os

horizontes de leitura e demanda um estudo pormenorizado.

Por isso, propõe-se, aqui, um estudo comparativo entre o romance rosiano

Grande Sertão: Veredas e o poema épico homérico Ilíada.

Não seria leviano entender que o texto rosiano contém traços do épico, sendo

que, em muitas instâncias, ele comunga com o gênero que o poeta grego Homero

fundou ao conceber a Ilíada. Manuel Cavalcanti Proença certa vez afirmou que “se há

necessidade de classificação para Grande Sertão: Veredas não há dúvida que se trata de
2
A “competência enciclopédica”, termo cunhado por Eco, relaciona-se com o repertório textual, variando
de leitor para leitor. Para que o leitor se torne competente é necessário que constantemente a sua
enciclopédia seja atualizada, ou seja, aprimorada. Certamente as questões enciclopédicas são as que
selecionam o leitor para a leitura de um determinado texto. Então, levando a fenomenologia em conta, é
necessário que o leitor rompa com as suas expectativas para investir na sua aquisição de repertório. Este
seria o procedimento mais adequado em um processo de leitura, pois confirma a suposição do
semioticista de que o próprio texto só se torna amplo e dinâmico se o leitor executar o seu processo de
atualização.
12

uma epopéia”. (cf. PROENÇA, 1959:161) Grande Sertão: Veredas narra os feitos de

um povo. A narrativa encontra-se envolvida em fundamentos que sustentam um poema

épico.

Rosa escreveu o Grande Sertão: Veredas para narrar a vida de sua gente. Na

história, exalta a região sertaneja, geografia que conhece profundamente. O romance

destaca, também, o povo que nela vive, interagindo com seus costumes e linguagem.

Rosa aborda a batalha, os conflitos de liderança e hierarquia em sua narrativa, temas

recorrentes no enunciado homérico. Um destaque intenso de valores culturais e étnicos

encontra-se como parte das histórias.

Tanto Rosa quanto Homero abordam contos de manifestação oral de sua cultura.

Freqüentemente, no texto rosiano e no texto homérico, há valorização de conteúdos

provenientes das raízes populares. Os mitos recontados na Ilíada e as histórias em

Grande Sertão: Veredas explicitam tal valorização contida no estilo de ambos os

autores.

A primeira coincidência marcante vem a ser justamente a estrutura épica. A

palavra grega epós (epovς) destaca-se pela variedade de significados. No entanto,

percebe-se uma coerência no significante. Entre os possíveis significados estão:

palavra; discurso; palavra dada; promessa; conselho; aviso; provérbio; sentença;

oráculo; notícia; verso; linha; poesia épica.3

Na multiplicidade do termo, nota-se um cerne comum: a literatura, o contar

histórias. Todos os significados remetem à continuidade, à seqüência, à idéia que uma

narrativa pode suscitar. A recitação aparece como uma constante, a necessidade do

homem de se expressar.

3
A etimologia de epopéia tem muito a ver com o conceito de narrativa propriamente dito. “Fazer
narrativa” confirma o gênero em que se insere a epopéia, relacionando-se, assim, com a estrutura que
compõe o romance.
13

A poesia épica calca-se em acontecimentos ilustres, sublimes, solenes,

centrados, geralmente, em guerras. Narra feitos para perpetuar uma cultura. O

protagonista é um herói, ser superior em força física e psíquica, ser de divinas

proporções. Homero popularizou tal gênero durante o período de sua existência. Em

suas obras, refletem-se imagens de um povo que fundou o alicerce da sociedade

ocidental, mesclando elementos do maravilhoso e da fábula. O épico sustenta-se como

presença constante em obras contemporâneas.

O texto de Rosa espelha-se em alguns elementos da epopéia. Ao colocar os

jagunços como personagens centrais de seu enredo, ele evidencia, de certa forma, o

povo sertanejo. O narrador, Riobaldo, personifica a exaltação de uma autenticidade

brasileira; por isso, é sublime, magno, por ser jagunço, ao mesmo tempo em que é

marginalizado por ocupar essa função no sertão de Minas Gerais. Sua mira exata é dom

divino e o faz ter as dimensões de um abençoado, assim como Aquiles, dotado de

invulnerabilidade pela sua mãe, a deusa Tétis, que o mergulhou no mágico rio Estige,

ou Enéias, inteligente e agraciado por ser filho de Afrodite. Riobaldo enquadra-se em

um perfil heróico, se se considerar o contexto espacial, cultural e o papel que cumpre no

ambiente em que está inserido. No entanto, apesar de conter inúmeras características de

personagens homéricos, Riobaldo tem o mérito de ser rosiano na concepção. O vasto

conceito de herói será analisado aqui, expondo ainda mais as proximidades do

protagonista do romance brasileiro com as personagens da Antigüidade Clássica.

No enunciado rosiano, existem trilhas ligadas a outras. Em uma dessas trilhas,

encontra-se a possibilidade de exercitar a leitura comparativa. Considera-se que

inferências intertextuais deste porte se dão quando o leitor faz articulações. Seria o caso

de concordar com Umberto Eco e a terminologia proposta pelo semioticista. A

articulação intertextual acontece quando o “leitor competente” consegue modelar-se ao


14

leitor-modelo, considerado entidade textual. Reconhecer o texto e, em seguida,

reconhecer um texto em outro é competência do leitor. Os tipos de reconhecimento são

amplos. Algumas leituras associativas transcendem, até mesmo, o que fora mencionado

pelo enunciado, se bem que o mesmo enunciado é que possibilitou o ponto de partida

para a mesma reflexão.

As premissas dos estudos intertextuais auxiliam muito um estudo comparativo.

As reflexões de Mikail Bakhtin, que diagnosticou o fenômeno da língua como não

sendo propriedade de um indivíduo, inspirando o estudo de Julia Kristeva, confirmando

que todo texto é um mosaico de citações, uma retomada de outros textos, abrem a mente

do leitor para que se estabeleça uma leitura associativa e perspicaz, fato percebido por

Graça Paulino, Ivete Walty e Maria Zilda Cury:

Toda leitura é necessariamente intertextual, pois ao ler estabelecemos


associações desse texto do momento com outros já lidos. Essa associação
é livre e independe do comando da consciência do leitor, assim como pode
ser independente da intenção do autor. Os textos, por isso são lidos de
diversas maneiras, num processo de produção de sentido que depende do
repertório textual de cada leitor, em seu momento de leitura. (Paulino;
Walty; Cury; 1999: 54)

Endossa-se, então, o fato de que inferências intertextuais relacionam-se

diretamente com a competência enciclopédica de cada leitor. O “repertório textual”,

então, é a chave para que textos sejam reconhecidos em outros.

A aquisição desses novos textos feita pelo leitor culmina na ruptura do horizonte

de expectativas, termo consagrado por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, ao

desenvolverem os estudos sobre recepção. Munir-se de textos e associá-los às novas

leituras aciona um comportamento de um enunciador competente que, se exercita ao

fazer uma leitura. Estabelece-se um horizonte de expectativa diante de um texto,


15

atende-se esta expectativa, questiona-se esta expectativa e depois se rompe com a

mesma, criando a amplitude desejada dentro de um texto literário.

Levando em consideração que “qualquer assunto pode, em princípio, propiciar

um processo de relações entre textos lidos” (cf. idem. p.54), o encontro entre textos

tornou-se uma maneira de ampliar as dimensões dos estudos literários. Parafraseando

as autoras, percebe-se que as produções humanas são compostas de uma infindável

rede, cada pessoa vai tecendo sua parte, com pontos brandos e fortes. Importa mais o

desenvolvimento destes fios tecidos e não a ruptura. O fio é a leitura, a interação, um

movimento em conjunto. Volta-se a atenção para os estudos de literatura comparada,

de grande valia para os estudos que irão ocorrer aqui. Claude Pichois e André M.

Rousseau já chamaram a atenção para a importância do estudo nos métodos de análise

literária. A literatura comparada trata das relações literárias entre dois ou mais

domínios culturais, podendo, também, confrontar obras pertencentes ao mesmo âmbito

e/ou campo de conhecimento. Os teóricos concluíram que a arte literária é a base

espiritual do homem, assim como a arte e a religião. Pode-se estudá-la como uma

função fundamental, sem consideração de seu espaço temporal ou de lugar. Assim,

ambos definem a literatura comparada como uma:

(...) descrição analítica, comparação metódica e diferencial, interpretação


sintética dos fenômenos interlingüísticos ou interculturais, pela história,
pela crítica, e pela filosofia, a fim de melhor compreender a literatura
como função específica do espírito humano. (PICHOS & ROUSSEAU,
1994:218)

Valer-se da literatura para refletir sobre literatura é por demais proveitoso.

Perfilar Rosa e Homero dimensionará a proposta sugerida pelos franceses, que

idealizaram o estudo de literatura sem fronteiras culturais e lingüísticas. Daí poder


16

dizer que o Sertão e a Hélade estão próximos e que Grande Sertão: Veredas e Ilíada

inter-relacionam-se.

O encontro das narrativas propiciou o surgimento de veredas esperadas e não

esperadas, como a comparação entre o diabo e o deus grego Hades. Foram percebidos

encontros estilísticos entre Rosa e Homero. Algumas veredas percorridas, outras

desbravadas. No geral, a percepção foi que muitas outras veredas se abriram,

esperando para serem percorridas em outra oportunidade. Cada vereda surge de modo

variado. Encontramo-nos, então, em uma profusão de caminhos, uns citados por

Riobaldo, outros pelo aedo da Ilíada e outras tantas pelo próprio leitor.

Eis, agora, algumas possíveis veredas, no Sertão e no Ílion.


17

PARTE I — VEREDAS DESBRAVADAS

“Os gregos parecem ter imaginado todo o imaginável.”

Paulo Leminski: Metaformose, uma viagem pelo imaginário grego.


18

1- VEREDAS ÉPICAS

A epígrafe da obra de Paulo Leminski ilustra uma idéia recorrente acerca da

cultura clássica. Intimamente ligada à idéia de fundação, alicerce, origem, a literatura

dos gregos é vista como o marco iniciador da literatura do Ocidente.

A contribuição helênica para a formação literária ocidental é notória, por que

não dizer, indissociável da produção artística e estética de nossa civilização. A arte

grega está ligada à construção do pensamento ocidental como um todo. De certa forma,

a época clássica inaugura a possibilidade do surgimento de discursos ampliados e

dialógicos, essenciais para a construção do pensamento da civilização ocidental.

1.1. O épico e o romance grego

O épico talvez seja o gênero que mais tenha contribuído para a influência

helênica no mundo ocidental. Recitado por Homero, analisado por Aristóteles, o épico

firmou-se nas produções artísticas até o período de seu enfraquecimento, por volta do

século XVII.

Jacyntho Lins Brandão esclarece que:

Admitir, contudo, que os poemas homéricos inauguram apenas a literatura épica,


entendida no sentido de um único gênero, não dá a medida exata de sua real
importância. Detalhando ainda mais, aprendemos com eles um gênero de
expressão do mundo, gênero esse que se consagrou para nós sob o nome de épico.
(LINS BRANDÃO, 1992:43)
19

Refletindo sobre a citação acima, constata-se que o épico homérico, devido à

complexidade, mostra-se plurifacetado, aceitando dialogar com outros gêneros que

também compõem outras inúmeras maneiras de expressão, revelando a densidade

contida nos versos do aedo clássico.

Tais questões incitam outros pensamentos. Ainda na Antigüidade Clássica surge

o que é chamado de “romance grego”. A temática épica toma outra feição, pois já no

auge do império grego do século V a.C., o gênero começa a mostrar certa fragilidade,

culminando na sua decadência, no século II a.C. A narrativa heróica é substituída por

enredos que contam histórias sobre casais se apaixonando, separações tempestuosas,

raptos, viagens e aventuras em locais longínquos, assim como mortes e ressurreições.

Os temas já mostram os nobres fora de seu status, transformando-se em escravos, sendo

às duras penas libertados. Às vezes, simplesmente mostram conflitos banais como o de

presentear ou não uma dama. Estes motivos recorrem nas Etiópicas de Heliodoro como

em Caíreas e Calirroé. O mesmo acontece com Dafnis e Cloé de Lonco, assim como

Leucipe e Clitofon de Aquiles Tácio, ilustrando, também, esse tipo de enredo. Não

podem ser deixadas de lado As Efesiagis de Xenofonte, obra marcante do gênero.

Donald Schüler, em reflexão esclarecedora, diz que:

A organização das cidades-estado procurou transferir a decisão de deuses


autoritários para as assembléias dos cidadãos. Em todas essas áreas, o
homem grego rompe deliberadamente a ordem rígida do universo mítico em
busca ousada de soluções livres para os problemas com que se defronta.
Determinado a vencer fronteiras, provoca a emergência do ilimitado em tudo
o que pensa e faz. Sendo o romance o gênero sem limites, encontram-se
esboços romanescos no ápice de todas as criações literárias. (SCHÜLER,
1985: 165)
20

O romance grego surge do desligamento de uma ordem pré-estabelecida, já

questionando seus mitos e a confiabilidade de outros discursos como a filosofia e a

história. Romancistas desse período vêem num motivo pueril a razão para construir o

enredo. Acontecimentos cadenciados, com um nexo e uma linha de ação, já não surtem

efeito, pois o próprio romancista se vê desprovido de sistema de valorização, sem ordem

ou critério de seleção. Tudo se estilhaçara e se desordenara, dando vazão a uma

representação que se desenvolve em estrutura precária. No entanto, muito da estrutura

épica se vê refletida no romance grego, principalmente no que concerne à linha

narrativa e à presença de personagens.

O romance amoroso surge nos tempos da segunda sofistica, que tenta revitalizar

a glória ateniense, resgatando os modelos de uma época mais áurea. O desconhecimento

da língua e a sofisticação da literatura permitiram que somente os eruditos tivessem

cultivo dessa revitalização. Os romancistas bebem dessa fonte, procurando ampliar as

suas histórias. Pouco inspirados, os temas são repetidos à exaustão e os artifícios de

linguagem opacos, carecendo de criatividade. As situações absurdas predominavam no

enredo e a fórmula dos “grandes amores consagrados” sempre figurava na narrativa. As

personagens não têm qualquer densidade e não proporcionam profundidade à história.

A estrutura do romance, como é conhecida hoje, além de conter uma referência

ao épico e ao romance grego, relaciona-se, também, com outras manifestações, em

outros gêneros. Encontram-se teores do “romance filosófico” nos diálogos de Platão,

assim como traços do “romance histórico” nos estilos criativos de Heródoto, Xenofonte

e Plutarco. O “romance psicológico” sorve sua essência do drama grego, principalmente

de Sófocles e Eurípides, este último o provável inspirador do “romance de costumes”,

devido ao desenvolvimento da comédia nova e do discurso forense.


21

O romance nunca fora classificado em sua época. Dizia Aristóteles que “a arte

que apenas recorre ao simples verbo, quer metrificado quer não, e, quando metrificado,

misturando metros entre si diversos ou servindo-se de uma só espécie métrica, — eis

uma arte que, até hoje, permaneceu inominada.” (POÉTICA, LIVRO I: linhas 27-30) 4

O romance viria a se estruturar como é conhecido hoje depois do medievalismo,

onde O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes

Saavedra, inauguraria a espécie. O protagonista concebido pelo autor espanhol alude,

em tom satírico, aos temas de cavalaria, comuns no medievalismo; corriqueiros eram,

também, os temas da religiosidade cristã, devido à forte censura imposta pela Igreja. A

Igreja homogeneizou as manifestações artísticas, pois a literatura profana transformou-

se em sacra e a lírica, em modo geral, em hinos religiosos. O drama fora substituído

pelas encenações na igreja. Há de se mencionar a transformação da filosofia em teologia

e a substituição do discurso pela homilia e pelo sermão.

Cervantes libera o romance de suas atas e o coloca revigorado como genuína

manifestação artística. A cultura clássica é revisitada. Nomes como Dante, Camões e

Shakespeare ainda a revigoram mais. Instaura-se o romance como gênero autônomo.

Devido a esse longo processo de estruturação, o romance, contendo muitas

marcas de seu antepassado épico, tomou rumos diferentes. Para muitos, o romance é

considerado, até, como uma antítese da epopéia. De um lado, o romance experimenta,

desafia a forma. Liberta o léxico de uma prisão métrica, desenvolvendo-se de outra

maneira, maneira esta que extravasa limites. De outro lado, a epopéia, supostamente

presa a um modelo rígido, tanto na esfera ideológica quanto na forma, contém traços de

outros gêneros textuais.

4
Tradução de Eudoro de Souza.
22

Deve-se pontuar a razão de o romance e o épico serem considerados oxímoros.

Vale, então, expor a caracterização dos gêneros. Na composição léxica, o termo epopéia

traz duas palavras gregas. To epós (To epovς) significando “palavra”, que no plural varia

para Ta epea (Ta epeva), o “discurso”, a “narrativa”, o “verso”. A outra palavra: poié o

(poieîn) denota o ato de criar, fazer. Etimologicamente, epopéia refere-se ao criar

narrativo disposto em verso. A manifestação da epopéia obedece a uma medida no

verso, o hexâmetro dactílico, métrica eleita pelos aedos para melhor desempenho na

memorização5.

Desde a civilização indo-européia, o modelo épico percorre a civilização

ocidental e, para muitos, o épico tem mobilidade e ressurge forte, de tempos em tempos,

no universo literário. Esta renovação, de acordo com Donald Schüler, possibilita ao

gênero um versar autêntico de nossa realidade, realidade exprimida em forma prosaica,

expressa através da língua popular da romanidade. Foi então que a forma épica passou a

se chamar romance.

Com as características colocadas aqui, não se tem uma idéia díspar entre o épico

e romance. Vê-se, no entanto, uma razão para distinguí-los.

O romance grego surgiu de uma contestação. Questionando rígidas instituições,

trouxe à tona novas estruturas. O romance que conhecemos hoje tomou forma a partir

de subversões, como aconteceu nos tempos clássicos. Livros como Dom Quixote

contêm um alto grau parodístico em seu estilo, o que corrobora o teor contestador do

romance grego. Enquanto o épico parece endossar um establishment, o romance o

questiona, o ridiculariza, agindo como um incômodo muito mais do que um instrumento

de dominação ideológica.

5
Acreditava-se que a poesia épica era cantada, ação que também auxilia na memorização.
23

Naturalmente, há romances que endossam um status quo e que se estruturam em

estratégias marcadamente ideológicas. Alguns meramente panfletaram discursos de

camadas privilegiadas ou conceitos que regiam algum estilo de época. No entanto, é no

romance que classes desfavorecidas começam a despontar como o centro de um enredo.

Talvez o fator que mais diferencie o épico do romance seja a subjetividade. Daí

muitos considerarem Werther (1774), de Johann Wolfgang Goethe, o marco dessa

característica do romance. O grau de desconstrução das personagens, principalmente do

protagonista, dá a tonalidade subjetiva do romance. O protagonista se mescla com os

seres comuns, pois é um deles. Aflições, tormentos e angústias eram os inimigos da

personagem do romance alemão, situações de teor lírico, muito mais do que de qualquer

outro gênero.

1.2 . Grande Sertão: Veredas como épico

Recorre-se ao notório ensaio de M. Cavalcanti Proença, “Trilhas no Grande

Sertão”, para evidenciar as marcas épicas que existem no romance rosiano.

Para Proença, o livro tem duas estruturas principais. Uma ele chama de objetiva,

a que enquadra questões relativas aos combates e andanças. A outra de subjetiva, onde

teores místicos predominam. Grande parte da estrutura da epopéia se estabelece nesta

primeira parte chamada de objetiva. Pautado em uma linha de ação épica, transcorre um

dos eixos da narrativa de Riobaldo. Proença pontua que o narrador de Grande Sertão:

Veredas é um protagonista na verdadeira etimologia do termo e que contém em seu

caráter o perfil heróico, que ajuda ainda mais a endossar a estrutura épica. “Aliás, por
24

esta característica, os próprios contos e novelas de Guimarães Rosa, entremeados de

episódios, são épicos em grande número”. (cf. PROENÇA, 1959: 162).

Certamente a outra parte destacada por Proença pode ser levada em conta, uma

vez que o teor místico pontuado pelo ensaísta, vinculado ao teor subjetivo, é o que

perfila o livro como um romance, o que lhe dá uma tessitura mais marcante. O místico

se liga ao existencial, o existencial ao psicológico, o psicológico se liga ao eu, o

subjetivo, que percorre toda a estrutura do romance.

Mesmo contendo essa densidade subjetiva, Grande Sertão: Veredas ainda se

remete a um conteúdo épico. O épico se encontra diluído, juntamente com os outros

núcleos da ação. Densidade psicológica e aventura dividem espaço no enunciado.

Subjetivo e objetivo se intercalam.

2. NARRADORES E VEREDAS

Tornou-se comum, em estudos de textos literários, marcar o texto épico com

características bem distintas. Tais concepções refletem-se em teóricos renomados como

E. Auerbach, M. Bakhtin e G. Lukács. De acordo com o estudioso de cultura clássica,

Robert J. Rabel, há pontos de encontro entre as considerações dos nomes mencionados,

mas a coincidência mais evidente é que todos apontam o verso épico como sendo

carente de perspectiva e profundidade. Auerbach, por exemplo, em marcantes trabalhos,

diz que Homero carecia de profundidade narrativa, o poeta dotava o texto com uma

certa linearidade. Bakhtin tece considerações parecidas quando afirma que o épico é um

sistema de crença unitário e rígido, onde poeta e personagens comungam as mesmas


25

intenções. No épico, a voz do narrador não se separa da fala do herói, tamanha a função

ideológica desempenhada pelo gênero.

2.1. Ponto de vista: Narradores em Profusão

Georg Lukács, no seu Teoria do Romance, acredita que o épico e toda a sua

elaboração serviram como um antepassado do romance. Tal constatação já evidencia a

pluralidade da narrativa épica. Percebe-se que o romance, “a epopéia burguesa”, nos

dizeres de Hegel, manifesta-se de uma maneira semelhante aos épicos, principalmente

na exposição do tratamento e do enredo e, também, nas instâncias narrativas mais

comuns como o espaço, tempo, personagens e o narrador. O narrador mais tradicional

do romance se expressa em terceira pessoa com o ponto de vista onisciente, óbvia

herança do legado épico mas, ao mesmo tempo, estabelece outras perspectivas para

narradores, fato que distingue o romance moderno do seu ancestral. Aqui se tem a noção

da diversidade da narrativa épica homérica. Ao mesmo tempo em que inaugura um

gênero de características sólidas, Homero engendra, também, a sua variação e

transitoriedade. Há, no épico, por ter no ato de contar o exercício da representação, um

alto grau de subjetividade, o que evidencia o ponto de vista, o foco narrativo,

assinalando ainda mais o seu grau de polifonia.

A Ilíada contém uma série de quebras, evidenciando uma polifonia, geralmente

envolvendo os proêmios e as vozes das personagens contidas na ação. Aristóteles já

havia chamado a atenção para o predomínio do discurso direto no épico homérico e

estudos conceituados já esclareceram a impossibilidade de uma narrativa pura. Utilizar


26

recursos discursivos de tal teor implica uma diversidade já inerente ao gênero épico,

especialmente o épico homérico. Basta perceber o jogo polifônico que se estabelece em

trechos da Ilíada.

A história de Odisseu, por exemplo, revela-nos a mobilidade de recursos

polifônicos da narrativa épica. A musa-narradora6 conta a “Telemaquia”, o narrador

Odisseu se instala no Canto IX e o poeta narrador retorna para contar o restante do

épico, considerado como o final cronológico, seguindo o tempo do enunciado.

Há momentos em que o narrador distingue-se, tanto implicitamente quanto

explicitamente, da musa-narradora. O poeta percebe sua inaptidão para narrar

determinadas passagens da narrativa, sustentáveis somente por uma “voz divina”.

Volta-se, então, para uma notória complexidade e perspectiva profunda da

narrativa épica, justificando, assim, uma proximidade do texto homérico com o romance

rosiano. Abstraindo-se a questão formal em que são apresentados os épicos clássicos,

nota-se que a epopéia apresenta um modus narrandi muito similar ao do romance. Tal

fenômeno se dá em várias instâncias narrativas, principalmente através da polifonia,

encontrada em ambos os textos. Há mais aspectos relevantes, nas reflexões de

Aristóteles, que fundamentam as questões relativas à complexidade da epopéia.

Primeiro, o filósofo deixa claro que há dois tipos de discurso direto contidos na

narrativa épica. Um do tipo narrativo (dihghvsiς) — outro do tipo dramático (dravma). Já

que este recurso polifônico tão fecundo existe, pode-se dizer que o narrador

desempenha uma infinidade de papéis no texto homérico, qualidade também encontrada

6
Rabel menciona a complexidade polifônica no épico homérico quando esclarece que o narrador épico
assume posições distintas no seu ato de contar. Para o teórico, toda vez em que o proêmio aparece (uma
oração), o narrador tende a assumir a posição da entidade divina, assumindo uma instância que se usou
chamar de musa-narradora. Nos momentos de invocação, esta representação fica mais evidente, como no
Canto II, no “Catálogo das Naus”, no Canto V quando se listam os gregos vencidos por Heitor, no Canto
XI na aristia de Agamêmnon, quando acontece um pequeno catálogo dos opositores do general de
Micenas, assim como nos Cantos XII, XIV e XVI.
27

no texto rosiano. Aristóteles percebera que havia na narrativa homérica indícios fortes

de dramaticidade que, de acordo com Rabel, ajudaram a destacar pontos de vista

variados de narradores, poetas e personagens do enredo grego. No conceito aristotélico,

o poeta representa quando narra7. O ato mimético descreve as entidades narrativas e

ficcionais e não o próprio poeta. Deste modo, o poeta não representa quando fala por ele

mesmo, mas representa ao se manifestar como outra instância. O estudioso G.S. Kirk

percebeu em trabalhos comparativos entre épicos gregos, sumerianos e acaios que há

uma presença mais recorrente do discurso direto no épico homérico especificamente,

que ressalta a representação na narrativa. O autor de The Iliad: a commentary ainda

lembra que não há predominância nem exclusividade em narrativas deste gênero, o que

provoca suposições acerca da não-linearidade modelar que todo épico parece conter.

Os estudos de Rabel sobre a musa-narradora, assim como as reflexões

aristotélicas da representação narrativa, ampliam a questão do narrador épico para

outras instâncias, instâncias mais próximas do elemento narrativo no romance, essencial

para a prosa de um modo geral. O próprio Rabel endossa que o ponto de vista relaciona-

se com a perspectiva propriamente e que o narrador homérico naturalmente contém uma

profundidade de campo longe de ser linear ou ordinária. Refletir comparativamente

sobre o narrador rosiano e homérico faz retornar atenção para a complexidade do

elemento da narrativa em ambos os autores, evidenciando a proximidade entre eles.

A perspectiva plurifacetada, as ações encenadas e as reflexões íntimas podem ser

encontradas nos dois narradores: o de terceira pessoa, no caso, aqui, o homérico, e o de

primeira pessoa, o rosiano. Entende-se que a concepção rígida de gêneros não favorece

as diversas leituras acerca das obras. O épico pode conter nuanças subjetivas e o

7
Aristóteles diz que o poeta representa quando narra, mas não representa quando fala com a sua própria
pessoa. Aristóteles nivela todos os aspectos de criação poética (poieîn) como um processo de imitação
(mimhthvς). O processo narrativo, então, participa da mesma conceituação, apesar do filósofo acreditar que
há três gêneros para a manifestação mimética: o lírico, o épico e o dramático. A narrativa épica sendo
uma das mais expressivas.
28

romance pode se valer de enredos da epopéia no andamento narrativo. A unidade

compacta que cabe ao épico, principalmente, pode ser questionada.

O narrador da Ilíada, por exemplo, seria classificado, de acordo com G. Genette

em seu Discurso da Narrativa, como sendo essencialmente heterodiegético8. Nota-se

que a entidade ficcional não participa da história (dihghvsiς) e, por isso, assume um ponto

de vista contendo uma perspectiva variada. Na verdade, o narrador heterodiegético tem

essa mobilidade, diferente dos outros tipos de narradores propostos pelo estruturalista

francês. Sua percepção muda, entremeando-se no enunciado, por vezes assumindo o

ponto de vista de alguma personagem ou, até, desvelando algumas perspectivas extra-

enunciado.

Para algumas teorias críticas esta é a instância que mais se confunde com o

autor, já que o narrador assume uma posição mais contemplativa e afastada da diegese,

distinguindo-se da narrativa. A própria concepção do termo utilizado por Genette já

indica que o narrador não se mistura com a narrativa; é outro em relação à história.

Genette ainda considera o narrador heterodiegético como um elaborado ficcional, longe

do autor implícito (que vem a ser uma entidade ficcional e textual também) e o autor

empírico (este, uma figura extra-enunciado). A concepção narrativa fica ainda mais

inquieta quando se trata de Homero. O narrador revela uma complexidade fora do

comum. A representação deste narrador épico é tão intensa que a sua heterogeneidade se

dilui consideravelmente, colocando a sua representatividade dentro da diegese, em focos

longe de serem estáticos. Esta representação dota o texto com variados pontos de vista

narrativos. Para Rabel, por exemplo, o poeta, a musa e o narrador épico são instâncias

distintas, aparecendo de forma variada nos versos, através de proêmios e discursos

indiretos, mas ainda contêm uma característica essencialmente heterodiegética, mesmo

8
A nomenclatura proposta por Genette parece bem apropriada para as reflexões encontradas aqui. Não se
negligenciam, no entanto, outras classificações que poderão aparecer neste texto. O termo diegese é
retirado dos conceitos aristotélicos.
29

quando a fala de alguma personagem é apresentada e o narrador, através do discurso

direto, representa o ponto de vista do último. Vozes diferentes e pontos de vista

distintos alternam-se como um sábio recurso narrativo, estrategicamente implementado

para desenvolver o andamento da história. Sabe-se que o épico costuma se valer, para

desenvolver a ação diegética, do ponto de vista e que tal recurso vem a ser o

componente essencial neste tipo de narrativa, ora para provocar suspense, ora para

evidenciar alguma reflexão feita por uma personagem. O épico homérico usa de todos

estes recursos, mas cria um trânsito que nenhum autor do gênero, contemporâneo a ele

ou não, conseguiu estabelecer. O narrador homérico em terceira pessoa alterna-se,

dinamicamente, na diegese. Em alguns casos, a sua perspectiva lembra o vôo de uma

ave de rapina, em plano geral, percebendo a amplitude de um campo de batalha, ao

mesmo tempo em que encerra a visão subjetiva fechada de um guerreiro que agoniza na

luta.

Para que a complexidade do narrador rosiano e homérico seja exemplificada

com mais detalhes, outro épico grego, e também de Homero, Odisséia, recebeu atenção

devido ao forte teor polifônico que apresenta. Assim, fica clara a força do narrador

épico, pontuando a sua dimensão complexa, dimensão mais percebida no narrador

autodiegético de Rosa, detentor de um foco narrativo denso e que, muitas vezes,

sobrepõe-se à ação do romance, privilegiando reflexões de teor subjetivo.

O épico inicia-se com uma costumeira invocação às musas, já reconhecendo a

outra entidade narrativa que irá percorrer o poema épico. A ausência de Odisseu é

descrita, distante de Ítaca, desde a Guerra de Tróia. Fala-se do encontro de Atena, deusa

da sabedoria, com Telêmaco, filho do protagonista, já na idade adulta, sem ter

conhecido o pai. Atena incentiva-o a começar a sua viagem para a Lacedemônia, terra

do rei Menelau, para obter notícias do genitor. Palas incentiva, também, uma jornada
30

para Pilos, o reino de Nestor, com o intento de obter algum tipo de informação sobre

Odisseu ― nobre mais estimado de Ítaca. Até o Canto IV, a viagem do jovem príncipe

de Ítaca é descrita em uma ambivalência de pontos de vista. A musa narradora e o poeta

se intercalam na função.

Depois de uma assembléia dos deuses, Odisseu é libertado da ilha de Ogígia, da

deusa Calipso, onde já se encontrava há alguns anos. Constrói um barco, despedaçado

por Poseidon, e chega às margens do reino dos feácios, onde é auxiliado por Nausícaa,

filha do rei Alcínoo. A partir do Canto VII, Odisseu começa a recontar a sua história em

analepse. Ele fala de seu regresso da ilha de Calipso e ouve do aedo Demódoco

histórias, como o encontro de Ares e Afrodite, descoberto por Hefesto. Emocionado,

ouve também a história do cavalo de Tróia. Este é o momento em que o herói se

apresenta: “Sou de Laertes o filho, Odisseu, conhecido entre os homens por toda a sorte

de astúcias; bater foi no céu minha glória”. (ODISSÉIA, CANTO IX: v.16-17) A partir

daí, ele passa a narrar episódios célebres como a sua passagem pelo país dos Lotófagos

e a sua passagem na ilha dos Ciclopes. Seu encontro com Polifemo fora a razão maior

da ira do deus Poseidon. Ele fala de sua passagem pela ilha de Éolo, do país dos

antropófagos Lestrigões e seu encontro com a feiticeira Circe. Conta que desceu ao

Hades para pedir auxílio ao adivinho cego Tirésias e, em seguida, passou por um trajeto

de purificação. Passa pela prova das Sirens, criaturas metade mulher e metade ave; pelo

estreito de Cila e Caríbdis e atinge a ilha do deus Hélio, onde se abrigam suas reses

sagradas. Os homens de Odisseu, contrariando o herói, devoram algumas cabeças de

gado. Atendendo ao pedido de Hélio, Zeus fulmina cada um dos marujos com seu raio e

somente Odisseu chega com vida à ilha de Calipso. No Canto XIII, a narrativa é

retomada pelo narrador em terceira pessoa, o aedo, e se organiza em uma linha temporal

mais cronológica até culminar no desfecho: a morte dos pretendentes, o reencontro com
31

Penélope e um outro reencontro com o idoso Laerte. Levando em consideração o estudo

de G. Genette sobre a narrativa, a complexidade mencionada exacerba-se. Pode-se

afirmar que a polifonia contida no épico toma contornos mais nítidos. A começar por o

que o teórico chama de diegese. De acordo com Genette, este é o espaço-tempo no qual

se desenrola a história: “Diegese é, então, o universo do significado, o ‘mundo possível’

que enquadra, valida e confere inteligibilidade à história.” (cf. REIS, 1999: 26-7)

A diegese na Odisséia acontece em um tempo de dez anos, não contando o

tempo que o herói passa na Guerra de Tróia, que também durou cerca de dez anos. Os

fatos são narrados fora de uma ordem cronológica, intensificando a complexidade

narrativa. A subversão da ordem temporal envolve-se com o enunciado exigindo do

leitor uma alta habilidade associativa. A estratégia destaca mais a complexidade

polifônica contida no épico.

Iniciar a Odisséia com a “Telemaquia”, a viagem de Telêmaco, ilustra bem a

intenção estratégica. O jovem filho de Odisseu iniciaria a sua própria viagem, afirmando

a necessidade e a natureza grega de estar no mar. Na verdade, temos uma viagem

endossando outra viagem e a natural tendência dos Aqueus para a exploração marítima.

Quem protege Telêmaco é Atena e a deusa deixa claro que já era hora de o jovem nobre

de Ítaca conhecer e navegar o mar Mediterrâneo. Atena assim o aconselha:

Ora um conselho sensato pretendo expender, se mo aceitas:


Nau aparelha, a melhor que encontrares, com vinte remeiros,
para notícias buscar de teu pai, que de há muito está ausente,
quer to refira um mortal, quer a voz que de Zeus se origina,
que, sobretudo entre os homens renome preexcelso concede.
(ODISSÉIA, CANTO I: v. 279-83)
32

As inúmeras viagens ocorridas no segundo épico homérico incitaram Ítalo

Calvino a perguntar quantas Odisséias existem na Odisséia. A viagem de Telêmaco é

crucial para “tirar Ítaca da situação amorfa sem tempo e sem lei em que se encontra há

tantos anos.” (cf. CALVINO, 1998: 17) Calvino também notou a complexidade e os

abismos de histórias contidas no épico, quando intitula seu ensaio “As Odisséias na

Odisséia.” As histórias recontadas são todas sobre viagens. Viajantes sempre têm

histórias para contar.

As reflexões de Calvino vêm ao encontro dos estudos feitos aqui. Se se levar em

conta a nomenclatura proposta por Genette, a Odisséia inicia-se com um narrador

heterodiegético, um narrador que não atua na diegese, ou seja, não é personagem dentro

da aventura de Odisseu; um narrador que “não integra nem integrou, como personagem,

o universo diegético em questão.” (REIS, 1999: 121) A invocação às musas esclarece

tal fato. O poeta busca inspiração no monte Hélicon para que a musa narre “as aventuras

do herói; engenhoso.” Provavelmente se trata de Calíope, protetora dos épicos, a musa

que confere credibilidade e legitimidade ao feito do poeta. Nota-se que uma das

principais características do narrador heterodiegético vem a ser esta posição afastada da

narrativa, de onde se enxergam os acontecimentos diegéticos de um ponto de vista mais

“variado”. Este tipo de narrador é munido de intenções, estabelecendo um alto grau de

manipulação dos acontecimentos contidos no enunciado. É um narrador que pode

intercalar momentos de subjetividade e objetividade na narrativa, pois tem o poder tanto

de ocultar como o de revelar determinados campos de visão. Esta narrativa segue

diminuta, até o Canto VII, daí o foco passa a ser autodiegético. “O narrador da história

que relata as suas próprias experiências como personagem central da história”. (cf.

REIS, 1999:118). Calvino descreve este momento de transição:

Tendo chegado à corte dos feacos, Ulisses ouve um aedo cego como
Homero que canta as peripécias de Ulisses; o Herói explode em lágrimas;
33

depois se decide a narrar ele próprio. No relato, chega ao Hades para


interrogar Tirésias e este lhe conta a seqüência da história. (CALVINO,
1998: 17).

Ao relatar o restante da história, Odisseu continua ponderando sobre os feitos,

principalmente sobre os excessos cometidos pelo grupo. Primeiro, o odre contendo

ventos desfavoráveis é aberto, por razão de uma leviana curiosidade dos marujos. O

próprio Odisseu acusou a atividade de “insensatez que nos degradou.” O excesso, que

culmina com a morte de toda a sua tripulação, se dá na ilha de Hélio, quando os marujos

comem do gado sagrado do deus. Zeus fulmina-os nas naus, ao iniciarem o regresso:

Um raio Zeus poderoso lançou sobre a nave, estrondando;


pela violência do raio as junturas tremerem, enchendo-se
ela de cheiro de enxofre; da nau foram todos lançados.
Tal como gralhas marinhas à volta do casco anegrado,
eram levados nas ondas; o deus os privou do retorno.
(ODISSÉIA, CANTO XII: v. 415-19)

O processo de purificação de Odisseu está prestes a terminar. Resta somente sua

estada na ilha de Ogígia, pertencente à deusa Calipso. Todo esse processo é percebido

pelo narrador autodiegético e é relatado como uma entonação humilde e plácida. Não se

percebe nenhuma agressividade em Odisseu, que parece entender a sua condição de

mortal.

Tais reflexões ficam mais intensas justamente porque o narrador assume um

foco narrativo autodiegético. Algumas amarras narrativas só se tornam possíveis

utilizando-se de seus recursos, como nos lembra Carlos Reis:


34

Deste modo, o narrador autodiegético pode, pela peculiaridade de seu


estado semionarrativo, privilegiar um tempo da narração e as vivências
(também contadas) do tempo presente da narração. (REIS, 1999: 113)

Deste poder narrativo vem a reflexão de Odisseu e, conseqüentemente, a sua

redenção pois, em meio aos versos, estão as ponderações do herói e a percepção da

ultrapassagem do métron. “O sujeito que no presente recorda já não é o mesmo que

viveu os fatos relatados.” (cf. REIS, 1999: 119) Existe então uma construção, uma

maturidade do protagonista, que recebe até elogios de Atena por ser e estar mais astuto:

Sempre há de ter em teu peito acolhida uma tal desconfiança!


Mas, entre tantos perigos, não posso deixar de amparar-te,
por seres muito piedoso e de astúcia e prudência dotado.
Outro qualquer, que voltasse de viagem longínqua, haveria
de ir impaciente ao palácio a rever a mulher e os filhinhos.
Mas não te agrada perguntas fazer a ninguém sobre nada,
antes de haveres a esposa provado, que, entanto, se encontra
em teu palácio ainda agora, num luto profundo submersa,
noites e dias, e sempre a verter copiosíssimo pranto.
(ODISSÉIA, CANTO XIII: v. 330-38)

Toda essa percepção é tecida enquanto a voz de Odisseu ecoa no enunciado.

Quando o herói cessa o recontar de suas aventuras, o narrador heterodiegético retoma a

narrativa e passa a acompanhar a chegada, a volta de Odisseu a Ítaca. Volta-se ao

estado demiurgo de quem conta a história, o narrador que é dotado de “uma

considerável autoridade que normalmente não é posta em causa.”(cf. REIS, 1999: 122)

A Odisséia, então, desenvolve-se até o seu final com o narrador heterodiegético.

A troca se dá no Canto XIII, logo nos primeiros versos: “Isso disse ele; os presentes

calados e quedos ficaram, como que presos por mágico influxo na sala sombria.”.

A complexidade polifônica de Homero ainda se amplia. G. Genette chama a

atenção para o narrador metadiegético, uma personagem da diegese que conta outra

história, que acaba aparecendo embutida na primeira. Geralmente, nestas metahistórias,

existe uma autonomia em relação à primeira. Quem desempenha tal função é


35

Demódoco, que se revela para Odisseu no palácio dos feácios. A troca do foco se dá

através de uma encenação do foco narrativo, tanto para o narrador autodiegético quanto

para o metadiegético. Este último caso será analisado pormenorizadamente na Ilíada e

no Grande Sertão: Veredas.

2.2. Intermissões rosianas e paradigmas homéricos

Percorrendo os enunciados rosiano e o homérico, percebe-se que o ato de narrar

histórias é cíclico, constante. Há, no ato de narrar, um ato de encenação ocorrido na

diegese. Questões metadiegéticas ressaltam a polifonia tanto no romance rosiano quanto

no épico homérico.

Em suma, pode-se dizer que o narrador assume pontos de vista variados dentro

da ação narrativa. Rosa intercala, durante a saga de Riobaldo Tatarana, várias histórias

dentro do que se usou chamar de narrativa principal. Estas histórias (ou estórias, como

preferia Rosa) são evidenciadas por pausas encenadas em que o narrador Riobaldo

assume a vez, ou a voz, de outro.

Estas histórias incidentais, que ocorrem na Ilíada, inúmeras vezes, são chamadas

pelos estudiosos clássicos de “paradigmas mitológicos”. Tais exemplos são construídos

de forma cíclica, onde há uma junção do início da história metadiegética com o texto

principal. A transição é feita pelo narrador, que aciona o recurso polifônico com a

encenação. A composição em questão é herança do método mnemônico dos aedos, que

viam necessidade de repetição e aliteração dos versos. O narrador épico participa,

assim, do jogo polifônico, semelhante ao narrador de Rosa, pois encena a inserção dos

paradigmas na narrativa principal.


36

“Intermissão” foi o termo mais apropriado para descrever o mesmo ato no

enunciado rosiano. Nota-se que o narrador se envolve em uma rede textual, provocando

o contar metadiegético. A intermissão é um intervalo, uma pausa que se inclui no

enredo através do foco narrativo. Em alguns casos, percebe-se um teor paradigmático

nas histórias (estórias) do texto rosiano.

Há uma proximidade grande entre estas histórias intercaladas no Grande Sertão:

Veredas e os paradigmas homéricos. Tal semelhança é encontrada quando Riobaldo

narra através de Jõe Bexiguento o caso “Maria Mutema” e quando o poeta épico dá a

fala diretamente ao velho Nestor, que conta o mito de Teseu, Pirítoo e os centauros.

Faz-se um paralelo entre as duas instâncias e como ambas se constroem na narrativa

principal.

No início do Canto I, quando o ancião Nestor interfere no discurso de

Agamêmnon e Aquiles, lança-se um paradigma. Um verso aciona o exemplo em

discurso direto livre, dando início ao paradigma circular. Depois de contado o

paradigma, este se fecha com um verso muito parecido com aquele que o iniciou. O

verso marcando a entrada de Nestor é o verso 259: “Ora atendei-me, que muito mais

moços do que eu sois, sem dúvida.” O exemplo continua, contundente (versos 260-1):

“Já convivi, noutros tempos com mais vigorosos guerreiros do que vós ambos; no

entanto, nenhum inferior me julgava.” Nestor conta a bravura de Pirítoo e Teseu em luta

contra os “monstros alpestres”, os centauros. “Obedeciam-me, entanto; meu voto era

sempre acatado. Obedecei-me, também, que é melhor aceitar bons conselhos.” (v. 273-

4) Nestor, general de Pilo, ainda reitera, fechando assim o seu exemplo e retomando o

eixo principal da narrativa: “Mas, forte embora, não queiras Atrida, tomar ao Pelida a

bela escrava, alto prêmio que fortes aqueus lhe entregaram.”


37

O primeiro paradigma encerra-se. A história épica, mitológica, explicita-se na

ação dos homens. O narrador vocifera através de Nestor e transita no seu ponto de vista

durante a explicação. A história interrompe, mas não altera a cadência narrativa; aliás,

ajuda na retomada encenada pelo narrador épico. Cada paradigma faz o papel de

exemplo em momentos distintos da Ilíada. Assim, os exemplos se destacam como uma

função dentro da linha narrativa, geralmente ampliando e dimensionando a ação do

narrador. Tal destaque ajuda na percepção polifônica, em um texto que se usou

convencionar como sendo de ponto de vista pouco profundo. O paradigma apresenta-se

em forma circular, como ilustra o diagrama que segue:

________________________________________________________________________

a e a’ } Aceite conselhos de Nestor

Paradigma Mitológico

Conselhos foram
ouvidos por homens TESEU E PIRÍTOO b’ Conselhos foram ouvidos
b por homens mais nobres.
mais nobres
Canto I: v. 259 - 274

c
Teseu, Pirítoo e os centauros

FIGURA 1
________________________________________________________________________
38

Como se nota na figura, a forma circular permite que a história seja inserida na

narrativa principal sem abalar o andamento principal do épico. Nesta estrutura ele pode

ser inserido e reinserido à revelia do narrador, bastando uma encenação que esclareça

uma mudança de ponto de vista. O narrador dá voz à personagem Nestor, que assume o

exercício narrativo.

O resumo esquemático ilustrado aqui reforça a ação polifônica contida no

andamento da narrativa homérica, demonstrando a riqueza nos campos de visão do

gênero épico.

Um dos estudos mais evidentes sobre o paradigma mitológico foi feito por D.

Lohmann e é constantemente retomado por vários helenistas como G. S. Kirk e

Malcolm M. Willcock. Interessante notar que um fenômeno similar ocorre na narrativa

de Grande Sertão: Veredas.

O Caso “Maria Mutema” advém justamente de uma pausa no enredo principal,

feita pelo narrador Riobaldo, para conhecer ou compreender melhor a condição de

jagunço. “— Por que era que eu também não podia ser assim, como o Jõe?” (GS:V,

169) A reflexão se intensifica quando o narrador revela: “E o Jõe contava casos”.

(GS:V, 170)

Chama-se a atenção para a pausa já nas palavras de Riobaldo: “Mas Jõe

Bexigüento não importava. Duro homem jagunço, como ele no cerne era, a idéia curta,

não variava”. (GS:V, 169) O início da intermissão é marcado pela encenação de

Riobaldo, que assume outra voz para contar o caso. O momento transitório se dá com o

discurso indireto, mas logo o discurso direto predomina. Este trecho também é

transcrito na íntegra. “E o Jõe contava casos. Contou que se passou no sertão

Jequitinhão, no arraial de São João Leão, perto da terra dele, Jõe. Caso de Maria

Mutema e do Padre Ponte”. (GS: V, 170).


39

A oração “Contou” aciona o recurso polifônico do narrador, que passa a assumir

a voz e a história de Jõe Bexiguento. O “título” do conto remete à mesma idéia. A

estratégia narrativa associa-se ao paradigma mitológico quando se apresenta em forma

circular, para inserir-se novamente no jogo encenado do narrador que detém, também, o

contar do enredo principal. A reflexão sobre a jagunçagem pode ser considerada o início

do círculo, que em seguida vem marcado com a “apresentação do caso”. O próprio

“Caso de Maria Mutema e do Padre Ponte” se desenvolve como um exemplo. Jõe

Bexiguento, através de sua história, ajuda na compreensão do que é ser jagunço. Através

da história, Riobaldo considera muitas questões sobre o seu status jagunço, reflexão

muito presente em todo o desenvolvimento da narrativa. A porção instintiva da

jagunçagem, que parece estar contida em Jõe Bexiguento, levanta os questionamentos.

É quase natural para ele ser jagunço, naturalidade que Riobaldo não enxergava em si.

O caso é um dos momentos mais inspirados do livro. Inicia-se com um teor

fabular: “Naquele lugar existia uma mulher...” (GS: V, 170) e se desenvolve como

drama trágico que fala da intensa redenção de Maria Mutema. Assassina o marido sem

motivo aparente, em trecho aludindo à tragédia shakesperiana Hamlet, um intertexto

tecido rosianamente, misto de homenagem e originalidade. “Matou — enquanto ele

estava dormindo — assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por um funil, um

terrível escorrer de chumbo derretido”. (GS: V, 173) Ainda tortura a consciência do

Padre Ponte, dizendo estar apaixonada e que fora ele a razão de ter cometido tal ato

hediondo. O sadismo de Maria Mutema faz o Padre Ponte perecer: “... foi adoecido

ficando, de doença para morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o

modo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho;

dava pena. Morreu triste” (GS: V, 174). A narrativa lembra que durante a purificação de

Mutema os cidadãos: “...desenterraram da cova os ossos do marido: se conta a gente


40

sacolejava a caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia!” (GS: V, 173).

Outra intertextualidade com o Hamlet de Shakespeare pode ser inferida. A referência

relaciona-se com a conversa do príncipe dinamarquês com o coveiro, quando refletem

sobre o crânio do bobo da corte, Yorick. Ambos os crânios, o do marido de Maria

Mutema e o da personagem de Shakespeare, são desenterrados e manipulados depois da

exumação. Ambos provocam reflexões. A ossada do marido de Maria Mutema continha

prova cabal do crime e Yorick fora identificado pelo coveiro. Mesmo com o impiedoso

processo de decomposição que uniformiza o ser humano depois que perde os tecidos, os

dois crânios são reconhecidos devido às marcas bem particulares9. O fim do caso é

marcado pela retomada de Riobaldo no transitório e direto: “E foi isso que Jõe

9
A alusão mais óbvia ao Hamlet de Shakespeare refere-se ao momento do assassinato do pai do
protagonista. O veneno usado para matá-lo é introduzido na orelha, assim como o chumbo derretido que
Maria Mutema introduz no marido. Mais explorações intertextuais podem ser estabelecidas, ainda tendo
a peça shakesperiana com o ponto de partida. No Ato V, cena I, Hamlet tem uma conversa com o
coveiro. A conversa é circunstancial, pois o príncipe ouvira notícias da morte de Ofélia, durante o seu
exílio na Inglaterra. O nobre aborda justamente o coveiro que prepara o jazigo de sua amada. A primeira
pergunta lançada é acerca da existência: “How long will a man lie i’th’ earth ere he rot?”. O tempo que
um homem enterrado levaria para se decompor. O coveiro diz que o tempo varia, dependendo da
quantidade de água que retém o corpo. Os mais abastados duram mais, pois mais água o corpo
armazena. “His trade that a will keep out water a great while.” A reflexão mais densa, no entanto, se dá
quando o protagonista recebe um crânio já deixado na terra por vinte e três anos. Sobre os restos
humanos, a questão existencial intensifica-se. Hamlet segura o crânio de Yoric,k em mãos, e divaga
sobre o fim de cada um e como o alegre e cantante bobo da corte eventualmente se tornara uma caveira,
o emblemático símbolo da morte. No dicionário de símbolos de Hans Biedermann, os esqueletos “na
maioria das vezes são concebidos como símbolos da morte. Porque os ossos sobrevivem à destruição da
carne e em circunstâncias favoráveis podem conservar-se por milhares de anos”. (cf. BIEDERMANN,
1993). CHEVALIER & GHEERBRANT(1996), também falam da vasta simbologia do esqueleto, que
muito remete à representação feita na obra de Shakespeare. Ao mesmo tempo que a caveira lembra o
fim, lembra, também, a transcendência. O crânio de Yorick, a exemplo do crânio de Alexandre, o
Grande, têm o mesmo fim, se nivelam, revelando que na cova, a hierarquia e a vaidade humana
culminam na expressão uniforme e esbranquiçada da caveira de órbitas ocas. Rosa parece estender a
alusão shakesperiana, quando faz questão de mencionar a exumação do marido de Maria Mutema. A
caveira retirada da cova age como elemento de reflexão. A caixa craniana identificava a vítima devido à
bola de chumbo que tinia. O paralelo feito com o Hamlet é o mesmo: a uniformidade do crânio não o faz
reconhecível, mesmo assim Yorick e o marido de Maria Mutema são identificados devido a marcas bem
particulares. O bobo da corte só é identificado pelo coveiro. Em seguida, quando Hamlet o coloca em
mãos, pensa justamente no destino que todo mortal terá, o de perder as feições e de se transformar em
uma ossada. As ponderações de Hamlet e Horatio(Horácio) confirmam: “Hamlet: Dost thou think
Alexander looked a this fashion i’thearth? Pah! Horatio: E’ en so my lord.” Os restos mortais remetem
às questões aqui debatidas. A ossada de Yorick, o bobo da corte, se equipara à ossada do grande general
da Macedônia. Assim, pode-se dizer que a morte é enxergada como transcedência, extensão. No plano
dos ossos não há supremacia ou superioridade, de ninguém. Os crânios são idênticos e quase não
revelam a identidade de seus donos. O entendimento desta questão pode estar relacionado com um
esclarecimento ou até uma purificação de Maria Mutema e de Hamlet.
41

Bexigüento a mim contou...” (GS: V, 174). “Na mesma frase ele retoma a sua reflexão:

“... e que de certo modo me divagasse.”, interrompida pelo fluir da história que segue

em sua cadência.

As histórias incidentais ocorrem em instâncias diferentes da cronologia proposta

pela narrativa principal. Aliás, o tempo é trabalhado de maneira bem distinta nas duas

obras. As narrativas incidentais, no entanto, não parecem ser estratégias para, de algum

modo, confundir o andamento da história. Qualquer ato de contar, principalmente por

causa de suas raízes calcadas na oralidade, tende a provocar exercícios metatextuais e,

até, hipertextuais. Seria natural que o narrador Riobaldo inserisse em sua história

principal, outras histórias e historietas. A própria ação narrativa faz que casos se

apresentem com freqüência. Muitas vezes esses casos aparecem em tom explicativo,

como acontece com os paradigmas do texto clássico. Como a narrativa do romance

rosiano se apresenta de forma não-linear, aocorrência de tais histórias parece ainda mais

plausível, sendo que nunca houve a intenção de concatenar a ação do enredo e de se

contar a história de um modo organizado. Na verdade tal característica, ainda que

experimental, aproxima mais o livro de Rosa com o teor contido nas epopéias

homéricas. Veja-se o modelo esquemático:


________________________________________________________________________

Mas Jõe Bexiguento não importava como ele


a no cerne era, a idéia dele era curta, não variava.
a’
E que certo modo me divagasse

INTERMISSÃO

E Jõe Bexiguento Jõe Bexiguento


contava casos. Caso de Maria
b Mutema e do Padre b’ E foi isso que Jõe
Contou
Ponte. Bexiguento a mim
contou.

b
c
FIGURA 2
Caso de Maria Mutema e do Padre Ponte.

________________________________________________________________________
42

O “Caso de Maria Mutema e do Padre Ponte”, especificamente, enquadra-se

como um exemplo, bem parecido com a intenção incutida no paradigma mitológico. No

entanto, as manifestações metadiegéticas no romance Grande Sertão: Veredas, na sua

grande maioria, não têm um intuito paradigmático; aparecem intercaladas na história

compondo um andamento narrativo variado, a ponto de diluir a narrativa principal,

fazendo com que o enredo central e as histórias incidentais tenham o mesmo grau de

importância.

Outro paradigma no épico homérico ocorre no Canto IV, quando o narrador

pronuncia-se com a voz de Agamêmnon, dirigindo-se a Diomedes, para que o general

da Etólia se esforçasse mais. A figura referida no paradigma é o pai de Diomedes,

Tideu, que é descrito como um modelo a ser seguido e que jamais oscilara em nenhum

combate. O paradigma pontua:

________________________________________________________________________

Porque motivo examinas, desta arte.


a
Mas um filho gerou bem sabemos nas conjecturas
a’

PARADIGMA
MITOLÓGICO
Não costumava Tideu b’ O domador de cavalos
trepidar, por maneira Tideu não ficou perturbado
nenhuma. Tideu: Os sete contra
Tebas

Os sete contra Tebas

FIGURA 3

________________________________________________________________________
43

Assim se introduz a história “Os sete contra Tebas”, a fim de servir como

exemplo para Diomedes. O paradigma se inicia com Agamêmnon proferindo: “Filho

do grande Tideu, domador de cavalos, que espias? Por que motivo examinas, desta arte

os caminhos franqueáveis? (CANTO IV: v, 370-1). O círculo aciona-se e Tideu é logo

citado como grande referência. “Não costumava Tideu trepidar, por maneira

nenhuma...” (v. 372). Nos versos seguintes o Atrida conta a história, iniciando-se

assim: “De certa vez ― com o amigo, porém ― em Micenas esteve Polinice divino,

com o fim de reunir companheiros, pois nesse tempo cercavam os muros sagrados de

Tebas.” (v.376-98) Agamêmnon continua com o círculo paradigmático ao estabelecer

nos versos 388-9: “... o domador de cavalos, Tideu, não ficou perturbado.” O

paradigma se fecha e a narrativa é retomada com a proposta inicial, evidenciando: “Tal

foi. O Etólio Tideu, mas a um filho gerou bem sabemos nas conjunturas da guerra, se

bem que orador excelente.” (v. 399-400)

Retorna-se a outro caso rosiano, que segue o modelo do primeiro caso analisado.

Agora quem conta é Alaripe, membro do bando. O narrador dá a voz ao companheiro,

que usa da história para refletir sobre a jagunçagem. O caso é acionado com uma

conversa entre Riobaldo e Alaripe: “Alaripe conversou comigo. E dessa derradeira

conversa quero refletir ao senhor. Foi que, eu puxando, eu desejando saber, se falou

muito nessas orações de curar a gente contra bala de morte, e em breves que fecham o

corpo.” (GS: V, 327). O intervalo cíclico segue: “Alaripe então contou uma estória,

caso sucedido, fazia tempos, no giro do sertão” (GS: V, 327). A partir daí Alaripe

conta: “Um José Misuso uma vez estava ensinando a Etelvininho...” (GS: V, 327). O

narrador retoma o foco narrativo, confirmando que naquele momento fora ouvinte da

história: “A gente muito rimos todos”. A narrativa principal passa a vigorar novamente
44

com Riobaldo assumindo o foco: “A hora a ser satisfa, alegrias sobejavam”(GS:V,

328).

O caso é mais breve, mas relata as crenças jagunças sobre o corpo fechado,

corpo que Aquiles continha, pois fora banhado no Estige, pela mãe Tétis, assim que

nascera. Neste caso, especificamente, há uma proximidade ainda maior com os

paradigmas mitológicos sendo que a crença tem teores que podem ser considerados

míticos.

O exemplo reitera as reflexões acerca da jagunçagem, tão presentes nos

pensamentos de Riobaldo. Aqui se vê o ritualístico, os ensinamentos jagunços sendo

passados entre os membros do bando. Riobaldo vê mais de perto a condição jagunça e

como a sua personalidade dialoga com o ser ou não ser jagunço. Tanto o “Caso de

Maria Mutema e do Padre Ponte” quanto “O Caso de Etelvininho” ajudam o narrador

principal a refletir mais sobre a sua condição. Na voz de Jõe Bexiguento e Alaripe, ele

ouve e reflete. Ao resumir o foco narrativo expõe as suas reflexões no comportamento

sertanejo. Estas intermissões se destacam exatamente por isso. Outro modelo de

intermissão rosiana vem em seguida:


________________________________________________________________________

a Alaripe conversou comigo...

a’ Hora a ser de satisfa...

INTERMISSÃO

Então Alaripe contou b’ A gente muito


uma estória , caso b rimos todos.
sucedido... Caso José Misuso e
Etelvininho

c Um José Misuso uma vez estava


ensinando a um Etelvininho
FIGURA 4
________________________________________________________________________
45

O próximo paradigma mitológico a ser analisado ocorre no Canto V da Ilíada.

D. Lohmann juntamente com M. M. Willcock, já esclareceram a complexidade deste

paradigma em particular, envolvendo os deuses como personagens. Aqui o narrador dá a

voz a Dione que, em histórias homéricas, geralmente aparece como mãe de Afrodite, e

esta última é reconhecida como filha de Zeus. O paradigma em questão serve como

consolo, pois Afrodite vai ao Olimpo tratar de um ferimento, causado por Diomedes,

um corte que fez emanar de sua mão um icor precioso que só corre nas veias dos

divinos. (cf.v. 339) A deusa primordial ilustra para a filha que outros imortais já foram

feridos em batalhas com mortais e souberam resistir à dor: “Ainda que muito te aflija,

querida, suporta paciente. Que de aflições indizíveis, os deuses, por causa dos homens,

já suportamos (...)” (CANTO V, v. 380-4). Em seguida, Dione cita importantes

imortais que servirão de modelo paradigmático para a deusa do amor. “Ares também já

sofreu quando foi em possantes cadeias acorrentado (...)” (v. 386-7) “Hera, também, já

sofreu quando o herói Anfitrônio no seio destro a feriu com uma seta dotada de três

farpas ásperas.” (v.392-3). “Hades, o monstro, também, sofreu muito, em virtude de um

dardo por esse mesmo homem forte atirado, de Zeus descendente, no próprio sólio dos

mortos, causando-lhe dor infinita.” (v. 395-8). O paradigma se fecha com a afirmação

de que mortais causadores de feridas em deuses têm tristes fins. Foi o acontecido com

Heracles, autor da façanha dos ferimentos em Hera e Hades. Sabe-se da vingança de

Afrodite contra Diomedes. Ela faz Egíale, esposa do Etólio, infiel ao marido durante

toda a sua estada na guerra de Tróia. Por causa da sua constante lascividade, a rainha se

mata. O paradigma se aplica para aquele que ousa desafiar os deuses. O modelo

esquemático se encontra a seguir:


46
________________________________________________________________________

Ainda que muito aflita...


a
Não tem vida longa os que...
a’

PARADIGMA
MITOLÓGICO b’ Pois, de fato não era de
estirpe terrena.
Outros Deuses
suportaram b
Dione: “Deuses
Feridos”

c
Exemplos de Ares, Hera e Hades
FIGURA 5
________________________________________________________________________

Em Grande Sertão: Veredas, outra história metadiegética vale ser pontuada. O

caso que Seo Ornelas conta acerca de um certo Dr. Hilário. Riobaldo dá a voz para Seo

Ornelas, mas encena a transição do ponto de vista: “E como eu atalhei o assunto, por

convinhável nas boas normas, pois a lembrança dum inimigo deixa qualquer homem

agastado...” (GS:V, 346-7). Em seguida, mais uma vez, o uso da estratégia encenada

ressalta a transição do foco narrativo: “O Seo Ornelas relatou à gente diversos casos.”

No entanto o narrador Riobaldo mantém-se como condutor da história, usando mais o

discurso indireto para indicar a voz do seu contador de casos. O recurso é amplamente

usado, com indicações que vêm marcadas como: “Seo Ornelas — segundo seu contar

— proseava nas estradas da cidade, em moda com Dr. Hilário mais outros dois ou três

senhores...” (GS:V, 347). O caso chega ao fim, com a presença de Riobaldo mais

evidente, apesar de a história ter sido narrada por outro. A narrativa principal é
47

retomada, o caso parece ajudar nas reflexões de Riobaldo sobre a sua chefia, pois logo

em seguida tem-se a frase: “Tal e outras contou Seo Ornelas, senhor de prosa muito

renovada...” e logo depois: “Pelo que, por todo o seroar, deixei com ele a mão; ainda

que às vezes eu ficasse em dúvida: se completa, sendo eu um chefe, aturar que um outro

fiasse e tecesse, guiando a fala.” (GS:V, 348)

________________________________________________________________________

a E como eu atalhei o assunto

a’ Pelo que, por todo serorar...

INTERMISSÃO
b’ Tal, e outras, contou o
O Seo Ornelas relatou b Seo Ornelas, senhor
à gente diversos casos. de prosa muito renovada.
Caso do Seo Ornelas
“ O Dr. Hilário”

Seo Ornelas, nessa ocasião, tinha


amizade com o delegado Hilário.
FIGURA 6
________________________________________________________________________

Outras histórias que se misturam à narrativa são contadas pelo próprio Riobaldo,

que quebra o eixo central da história e insere outras. Não há aqui um recurso polifônico,

mas uma estratégia do narrador para construir a sua história, entremeada com muitas

outras que dão a nuança de que se trata de um contar oral, involuntariamente chamando

outros textos, textos estes participativos no ato de desenvolvimento narrativo,

construindo-se de diversas maneiras.


48

O contar não-linear de Riobaldo ajuda na inserção de histórias paralelas. Como a

linha de ação narrativa não fica muito definida, o narrador faz com que tudo progrida

em em um curioso encadeamento. Esta característica é que funde o lírico, o dramático e

o épico em Grande Sertão: Veredas. A menção ao nome de Diadorim, logo no começo

do romance, é de forte teor lírico. No entanto, toda a contextualização espacial, por

exemplo, juntamente com a menção dos costumes dos jagunços e os episódios de

batalha e julgamento, são obviamente de cunho épico, e quem dá essa ambivalente

impressão é o narrador Riobaldo.

As outras histórias pontuadas também carregam uma mistura de gêneros. O

lírico é notado no intenso subjetivismo de Riobaldo; já o épico manifesta-se em uma

essência cosmogônica e coletiva, transparente nas descrições espaciais assim como nas

manifestações culturais. O fenômeno confirma a ambivalência de gêneros já notada por

inúmeros estudiosos. O texto de Homero contém tal ambivalência assim como o de

Rosa, aceitando ser romance e epopéia, ao mesmo tempo em que mescla características

de manifestações artísticas variadas.

Riobaldo interrompe a história pela primeira vez, bem no início, quando a

narrativa ainda parece um tanto claudicante. A história ou o “caso dos primos” não

recebe nenhum aviso encenado, mesclando-se com a narrativa principal. O recorrente

“mire e veja” tem função de marcador de discurso, lembrando a presença do

enunciador/narratário. Riobaldo abandona por alguns instantes a sua história central

para contar o marcante caso dos primos; refletindo sobre os costumes locais, Riobaldo

inicia com o seu “mire e veja” (GS:V, p. 48) e logo conta: “só porque marido e mulher

eram primos carnais” e, em seguida: “... os quatro meninos deles vieram nascendo com

a pior transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos...” (p.48) A narrativa

principal é retomada com frases que ajudam a fechar o exemplo circular: “Arre, nem
49

posso figurar, minha idéia nisso!” e o encerramento: “Refiro ao senhor...”, que marca a

volta à narrativa-eixo, pois o narratário é levado para o ponto “Arassuaí”, precisamente

sobre o topázio, um presente para Diadorim. Mesmo num campo monofônico, a

intermissão age com um teor paradigmático. Tem-se um exemplo de como Riobaldo se

posiciona diante de determinadas situações. Veja-se:


________________________________________________________________________

a “Mire e Veja...”

a’ Refiro ao senhor

INTERMISSÃO
b b’ “Arre, nem posso figurar
Só porque marido e minha idéia nisso!
mulher
O Caso dos primos

c
Os quatro meninos deles vieram
nascendo com pior transformação que
há: sem braços, sem pernas, só os tocos.
FIGURA 7
________________________________________________________________________

Ainda na voz de Riobaldo, acontecem outras pausas. Um caso que chama a

atenção é o de José Alves. Devido à escassez de provimentos e de caça, alguns jagunços

abateram o macaco, preparado com muito gosto pelo bando. No entanto, percebe-se que

o tal macaco não tinha rabo; era José Alves, devorado por Riobaldo e os companheiros.

Riobaldo recorda o momento, lembrando que Diadorim não participara do ato

antropofágico. Medeiro Vaz passa mal; outros jagunços regurgitam, pois sentem asco

do ato hediondo que cometeram.


50

Mais adiante, um outro caso chama a atenção. “Assim...” (p. 59) marca a

intermissão e o início de outra interrupção na narrativa-eixo. O círculo exemplificativo,

que conta a história de uma boiada inteira que encalhou e se decompôs no local, abre-se

com a seguinte frase:

“Tem um marimbú — um brejo matador, no Riacho Ciz.” A forte concentração

de carcaças em putrefação liberava gases inflamáveis, provocando um efeito de brilho

azulado. Por causa disso o lugar recebeu fama de amaldiçoado. Diziam que ali

aconteceria o final dos tempos; o local recebeu a alcunha de fogo-azul-do-fim-do-

mundo. A presença do enunciador novamente é lembrada, desta vez com uma

onomatopéia representando uma risada.

O caso que Riobaldo conta marcadamente vem um pouco antes, narrando os

feitos de um certo Rudegério de Freitas. “Semelhante não foi, quando um homem,

Rudegério de Freitas, dos Freitas ruivos da Água-Alimpada, mandou obrigado um filho

dele ir matar o outro...” Os dois irmãos se rebelam e acabam executando o próprio pai.

Zé Bebelo, percebendo a dignidade do ato, absolve os irmãos, mesmo estes tendo

cometido o parricídio. Aqui, a história serve, nitidamente, para dar contorno à figura

majestosa e heróica de Zé Bebelo. A intermissão se aproxima muito da função

paradigmática, ilustrando a condição de jagunço do respeitado chefe de Riobaldo. Seria

coerente da parte do narrador fazer uma pausa na narrativa principal e usar um caso para

exemplificar o grande caráter de liderança contida na figura de Zé Bebelo. A história é

tão-somente uma pausa para evidenciar o imponente Zé Bebelo. Feita a reverência,

Riobaldo retoma a sua história com a figura e o caráter de Zé Bebelo devidamente

explicados para o narratário. “Mas porém, o chefe nosso, naquele tempo, já era ― o

senhor saiba ―: Zé Bebelo.” (GS:V, 60) Feita tal caracterização, volta-se à história a

que Riobaldo tenta dar forma.


51

O modelo esquemático do caso vem ilustrado:


________________________________________________________________________

a
Só que um pobre veio morar próximo com Zé
Bebelo, oi, rumo das coisas nascia inconstante,
diferente, conforme cada vez.
a’
Refiro ao senhor

INTERMISSÃO
Semelhante não foi... b b’ Mas porém, o chefe
nosso, naquele tempo,
já era— o senhor saiba —:
O Caso de Zé Bebelo.
Rudegério de Freitas

c
FIGURA 8 Mandou obrigado um filho dele ir matar
o outro.
________________________________________________________________________

Durante toda a narrativa, histórias e reflexões envolvem o Grande Sertão

Veredas. Há várias maneiras de lidar com este fenômeno. Inegável, no entanto, que o

ato de contar histórias, involuntariamente, chama outras histórias. Esta interpolação foi

herdada da tradição oral. As ações tanto de Riobaldo quanto do aedo da Ilíada são

marcadamente estruturadas no que se usou chamar de narrativa oral. O modo de recitar

dos aedos muito lembra o estilo de Riobaldo. As histórias metadiegéticas são um

exemplo da proximidade entre os narradores.

Nota-se que mesmo os paradigmas mais longos não impedem que o narrador

retome o eixo principal da narrativa, a ação propriamente dita. Constatou-se tal fato na

narrativa rosiana. Casos mais extensos, como o de “Maria Mutema e do Padre Ponte”,

não abalam o narrador na retomada de sua narrativa principal.


52

Grande Sertão: Veredas e Ilíada devem tal fator à genuína complexidade

contida em seu respectivos narradores.

O paradigma de Licurgo, no Canto VI, é um dos mais extensos da Ilíada. Ele é

acionado com uma ameaça de morte; parte do confronto entre Diomedes e Glauco. “Os

que medem comigo são filhos de pais sem ventura.” Em seguida a exemplificação é

colocada: “Mas, se um dos deuses tu fosses, que moram no Olimpo vastíssimo, sabe que

contra os eternos não quero em combate medir-me.” (v. 128-9) Usa-se a figura de

Licurgo como modelo para esclarecer a razão maior de nunca enfrentar um Deus em

combate. Depois de mencionado o exemplo, Diomedes conta: “Ébrio, uma vez, de

Dionísio, ele e as amas, violento, repele do sacro monte de Nisa.” (v. 132-3) Licurgo, o

rei da Trácia, tentou expulsar o culto ao deus Dionísio de seu país. As ninfas estimadas

a Dionísio são agredidas pelo nobre, o próprio Brômio refugiou-se no mar junto a Tétis,

devido à investida do mortal. Mesmo assim, Diomedes lembra que Licurgo não viveu

muito por causa deste feito: “Mas, depois disso, contra ele irritaram-se os deuses felizes,

tendo-o cercado Zeus Crônida. A vida bem curta ele teve, por se ter feito odioso aos

eternos que moram no Olimpo” (v. 138-9). O círculo fecha-se com o verso: “Mas, se,

contrário, és humano” indica o fechamento que culmina com a ameaça de morte do

início: “...chega-te, e logo hás de ver-te, por certo no exemplo funesto.” (v. 143)

Mais um paradigma dedica-se ao poder soberano dos deuses. É recorrente em

relatos da Antiguidade Clássica, este tipo de exemplificação. Curioso é que os heróis

acabam descobrindo seu parentesco, e até trocam de armas. Descobre-se, aqui, o

parentesco de Glauco com o grande herói Belerofronte. O paradigama acabou

instigando a genealogia do general troinano.

O exemplo que envolve Dioniso e Licurgo aparece em seguida:


53
________________________________________________________________________

a Os que medem comigo são de pais sem ventura,


a’ chega-te, e logo hás de ver-te, por certo extremo...

Mas, dos deuses não b b’ Mas, se contrário, és humano...


fores...
PARADIGMA
MITOLÓGICO
...Contra os eternos c’ Por isso tudo, não quero
não quero em combate c lutar contra os deuses
medir-me. beatos.
A História de Licurgo

Nem mesmo o Filito de d d’ A vida bem curta ele teve.


Driante, Licurgo valente,
mui longa vida alcançou.
e
Dionísio e Licurgo
FIGURA 9
________________________________________________________________________

Outro paradigma mais extenso está no Canto IX, onde é relatado o mito de

Meléagro, pertencente ao discurso de Fenice, na célebre embaixada feita para Aquiles,

no intuito de convencê-lo a voltar para a batalha. O paradigma é detalhado e ocupa boa

parte do Canto. Fenice expõe: “Ora, meus amigos, me ocorre contar-vos um caso nada

recente.”(v. 528). O grego continua esclarecendo a cólera de Ártemis, depois que Eneu

esquecera-se de prestar sacrifícios em homenagem à deusa da caça. A irmã gêmea de

Febo, então, “um javali de alvos dentes, selvagem, envia contra ele...” (v. 529). Versos

quase idênticos fecham um paradigma rico e dos mais expressivos: “De certa vez os

Cuerentes e os fortes Etólios, à volta de ...” (v. 529) e “Entre os Etólios galhardos e os

homens Cuerentes valentes.” (v. 548). O paradigma segue:


54
________________________________________________________________________

a Ora, meus amigos, que ocorre contar-vos um


a’ caso...
Essa maneira de ser, caro amigo, não deve ser tua.

PARADIGMA
MITOLÓGICO
De certa vez os
Cuerentes e os fortes b’ “Entre os Etólios
Etólios, à volta de... galhardos e os homens
Cuerentes valentes.”
Meléagro e o Javali

c
A História de Meléagro e o Javali

FIGURA 10
________________________________________________________________________

Outro paradigma obedece à mesma ocorrência e aborda um dos mitos mais

populares: o nascimento de Héracles. No Canto XIX, a história ocupa o discurso de

Agamêmnon, também tentando convencer Aquiles a voltar para a peleja. O exemplo

dado equipara Aquiles ao grande herói Héracles, talvez o maior herói dos gregos

antigos, e mostra a dimensão do desespero do general de Micenas, precisando dos

serviços de Aquiles e os seus Mirmidones, outra vez no campo de luta.

Agamêmnon inicia explicando a função da deusa Áte, a culpa, e confirmando a

força da entidade, dizendo ser Zeus uma de suas vítimas. O excelso deus se vê vitimado

justamente no nascimento de Héracles. Mesmo bem tecida, a exemplificação não

convence Aquiles, ele não retorna à batalha persuadido por nenhum dos discursos dos

embaixadores. Esta volta acontece somente após a morte de Pátroclo, companheiro de

armas de Aquiles. O modelo esquemático se apresenta da seguinte forma:


55
________________________________________________________________________

a A culpa (Áte) é filha de Zeus...


De novo a culpa (Áte) que mente dos homens
a’ e deuses transforma.

PARADIGMA
MITOLÓGICO
O próprio Zeus b’ Dor muito aguda Zeus
poderoso, que os na alma sentiu, ao ouvir
b
deuses e homens a notícia.
supera, em suas A história de Héracles
malhas se viu feita.

A História de Héracles
FIGURA 11
________________________________________________________________________

Volta-se a atenção para o paradigma mais aclamado na Ilíada. Paradigma

contado por Aquiles. Ele aparece no último Canto, o vigésimo quarto. O exemplo é

dirigido a Príamo, o rei de Tróia. Trata-se da história de Níobe, acionada no verso

quinhentos e noventa e nove: “Teu filho, velho, tal como querias...” Níobe é lembrada

para uma confraternização, uma ceia, pois Aquiles lembra: “... de comer se lembrou até

mesmo a de belos cabelos, Níobe...”. Novamente o exemplo se fecha com versos

parecidos com o do início: “que terás tempo de o filho chorar mais adiante...” (v. 619).

O recurso polifônico é utilizado e dá a voz ao grande protagonista do épico

homérico. É a única vez que a narração é assumida por Aquiles para uma função

paradigmática. Aquiles fica ausente boa parte da Ilíada, mas sem dúvida, é o foco

principal de toda a narrativa. Seria natural que o protagonista, em determinado momento

da narrativa, contasse uma história em forma de um paradigma. Críticos admitem a


56

possibilidade de os paradigmas terem sido inseridos em tempos pós-homéricos.

Curioso ver a necessidade de um exemplo cunhado pelo próprio Aquiles. Mais uma

vez o modelo esquemático se apresenta em forma circular:


________________________________________________________________________

a Teu filho, tal como querias, já está resgatado...


que terás tempo de chorar mais ao diante.
a’

PARADIGMA Nós, também, velho divino,


Mas, dos deuses b MITOLÓGICO b’ pensemos agora na ceia.
não fores...

A História de Níobe
...Contra os eternos c c’ Níobe, lassa de choro,
não quero em combate afinal, de comer, foi
medir-me. lembrada.

d’
Os deuses urânios ao décimo
d dia os enterraram.
Quando perdeu no e
seu palácio seus
doze rebentos. A ofensa de Níobe
FIGURA 12
________________________________________________________________________

Diante das reflexões apresentadas, notou-se a densidade polifônica tanto no

narrador homérico quanto no narrador rosiano. Os recursos narrativos desdobram-se em

narrativas da epopéia e do romance. Grande Sertão: Veredas, genuíno romance que é,

aceita ser chamado, também, de épico. Romance provindo do advérbio latino romance

(= à maneira romana), resultado da influência de Homero na obra de Virgílio, o maior

poeta latino. A dimensão do único romance de Rosa oferece-nos inúmeras

interpretações. No enunciado está presente uma variedade imensa de caminhos, as

veredas sugeridas no título. Pela perspectiva de Riobaldo, tem-se o lírico, o dramático e

o épico. A aventura juntamente com o místico/mítico. O subjetivo andando lado a lado

com o coletivo, o grandioso. Opções variadas de veredas.


57

3- URJO DE GUERRA: BATALHAS NO SERTÃO E NO ÍLION

O que mais aproxima Grande Sertão:Veredas da epopéia talvez seja a

menção à guerra em seu enunciado. O romance dedica-se bastante às descrições de

batalhas em sua narrativa. Sob o ponto de vista de Riobaldo, vê-se o ambiente de

guerra. A vida de jagunço do narrador-personagem fora muito marcada pelos conflitos e

batalhas no sertão.

No romance, a batalha descreve-se com precisão, relatando as mazelas da

guerra. Jagunços embatem entre si, enfileirados em suas montarias e, armados com

winchesters, procedem como que em guerras militares. Dependem de unificação e

liderança, estratégia e organização. Estratégias precisas não escondendo, no entanto,

atitudes passionais do homem sertanejo. Obedecem à lei do “olho por olho, dente por

dente”, na sociedade dos jagunços. O conflito de grupo e sociedade pode ser e,

freqüentemente, é superado por atitudes do indivíduo. O jagunço pode sacrificar a

estratégia de uma luta para salvar um estimado companheiro.

Batedores são sempre acionados para que reportem a situação da frente inimiga.

Tal função é cumprida por homens da mais extrema confiança e inestimável

competência. A comunidade de jagunços defende a sua concepção itinerante e não se

vincula “aos territórios ocupados ou ao seu lugar de origem.” No entanto, preza a

imensidão do sertão, o local por onde faz as suas andanças. O ganho territorial

representa o trânsito livre nas regiões conquistadas, uma confirmação da condição

itinerante, pois é esta condição, “acrescentando a sua liberdade, que o jagunço mais

defende.” (cf. ANDRADE; 1991:492)


58

Disputa-se na jagunçagem uma posição hierárquica, conquistada por feitos ou

por vasta experiência. Desafiar tal hierarquia implica na não-aceitação do jagunço pelo

grupo, provoca julgamento e até a morte do indivíduo.

Vera Lúcia Andrade, em seu estudo “Conceituação de jagunço e jagunçagem em

Grande Sertão: Veredas”, expõe a dualidade presente no jagunço. A díade é notória.

Em certos momentos, o jagunço age como um malfeitor. Mata, rouba e tortura,

constantemente ameaça a ordem. O jagunço, no entanto, também mostra-se um

benfeitor, um soldado que luta por um ideal, que defende sua posição. Ele saqueia e

pilha, tirando dos ricos para entregar aos pobres. A sobrevivência do jagunço, segundo a

autora, remete à própria dicotomia Deus/Diabo, dicotomia recorrente na obra de Rosa.

A questão ainda se intensifica mais quando se percebem as impressões de

Riobaldo sobre o termo. O narrador-personagem ajuda a compor a estrutura díspar do

jagunço. Vera Lúcia Andrade esclarece:

Dessa duplicidade de função, porém, é que deriva a importância de seu


papel. A contradição erige-se em tensão: nem só bandido, nem só herói, mas
bandido e herói, o jagunço, em Grande Sertão: Veredas, traz implícita em
sua figura a ambigüidade que percorre o romance em muitos outros níveis.
(ANDRADE; 1991:492)

Riobaldo orgulha-se da função que ocupará. Nas inúmeras vezes não abandona a

idéia de desistir da jagunçagem. O “ser” jagunço e o “não ser jagunço” são “papéis

intercambiáveis, assumidos de acordo com a necessidade do momento.” (cf.

ANDRADE; 1991,492)

Quando a angústia apertava-lhe o peito, Riobaldo mentalizava Otacília, uma

espécie de orientação equivalente ao abandono da vida de jagunço. Já Diadorim vem a

ser o motivo de permanência e sua “razão” de ser jagunço.

A Ilíada divide a mesma característica com Grande Sertão: Veredas. Onze

cantos dedicam-se ao aspecto com mais intensidade. São eles os Cantos V, XIII, XI-
59

XVII,XX e XXI. A batalha ainda é tratada esparsamente em outros cantos. Chama-se a

atenção para tal estratégia, pois o leitor da atualidade pode achar o presente recurso um

tanto enfadonho, mas deve-se lembrar que, na Antigüidade Clássica, havia quem

admirasse cenas muito meticulosas e pormenorizadamente descritas. O leitor de

Homero admirava lutas e tinha uma concepção clara e vívida do que estava ouvindo ou

lendo.

Algumas descrições, no entanto, não são lá muito consistentes. Alguns

arqueólogos afirmam que a sustentação precisa das indumentárias gregas é algo

impossível de se saber. Um retrato geral poder ser imaginado, de soldados com grevas

nas pernas, cnêmides no peito e elmos eqüinoformes. Certamente, carregavam escudos,

espadas, lanças de arremesso e armaduras para combate corpo-a-corpo. Tudo feito de

metal pode ser considerado bronze. As bigas eram transportes comuns, mas nota-se que

guerreiros como Odisseu e Ajáx pareciam não usá-las.

Ações nas fronteiras de batalhas são constantes. Existe um cinturão de

guerreiros, postados ao fundo de uma fileira, aparentemente menos armados. Guerreiros

que tomam a frente para o arremesso da lança ou para fazer um desafio a um oponente

específico. Um efeito que Willock ressaltou como sendo parecido com os que os

cavaleiros medievais exercitavam, também levando ao culto de personalidade, dando

fama e sucesso, dependendo das glórias acumuladas em batalhas.

Há dois tipos de situação de luta. Um trata de um alinhamento elíptico, outro se

caracteriza pela mobilidade de um dos guerreiros por entre as tropas. No geral, os

exércitos se fecham e tal situação leva o poeta a usar símiles expressivos. Qualidades

heróicas como a coragem, força e defesa são recorrentes no enunciado. Momentos

marcantes nas batalhas são acionados com alguma descrição extravagante, como um

recuo de bigas ou o destaque de algum herói: a aristia. Gregos ceifam a vida de seus
60

rivais em pares, a estratégia de batalha denominada “rota”, função que Aquiles,

particularmente, cumpria muito bem.

A descrição de feridas é retratada ora com tons realistas, ora com tons de

fantasia. Na maioria das vezes, a descrição da anatomia humana é precisa e

impressionante, mas certos trechos desvinculam-se de tal aceitação. Homero parece

perceber o perigo de seu texto se tornar monótono, por isso existem constantes guinadas

na ação da Ilíada, para manter seu leitor em prumo.

Um paralelo envolvendo o elemento da batalha será colocado agora, destacando

que tanto o Grande Sertão: Veredas quanto a Ilíada privilegiam tal aspecto em suas

narrativas. Questões gerais de guerra, até episódios específicos de batalha, serão

comparados.

Batalhas no sertão e batalhas no Ílion receberão atenção agora.

3.1 – A batalha rosiana e a homérica

Percebe-se a grande semelhança entre o posicionamento dos jagunços e dos

soldados gregos em batalha. Ambos ostentam classificações hierárquicas. Os jagunços

considerados líderes encabeçam os grupos e preenchem os primeiros lugares nas

fileiras. Diferentemente dos gregos, os jagunços usufruem de barricadas para a proteção

das balas das armas de fogo. No entanto, armas brancas e vestimentas próprias para a

batalha são usadas e embates corpo-a-corpo são freqüentes.

Riobaldo age como batedor em certas batalhas, como franco atirador e depois

como líder. Sua posição em batalha muda de acordo com a sua hierarquia. Nas batalhas
61

iniciais, depara-se mais com a descrição de Riobaldo sobre o combate. Quando assume

a posição de líder, ele assume uma função mais contemplativa nos campos de batalha.

Diante das fileiras, o Urutu Branco age dinamicamente, exercendo a função de chefe e

assumindo a frente na disposição dos jagunços em batalha.

Volta-se a atenção agora para o Canto III da Ilíada, associando-o a episódios do

Grande Sertão: Veredas.

O Canto III contém dois temas alternados. O primeiro é a batalha singular entre

Páris Alexandre e Menelau. O segundo é a descrição dos heróis gregos feita por Helena.

Apresenta-se Páris, um dos filhos de Príamo, a causa da guerra, depois se volta a

atenção para o alto das muralhas, onde Helena descreve para o rei e os anciãos de Tróia

os principais líderes aqueus. Percebe-se que o duelo singular fica em aberto, pois

Afrodite salva o seu protegido de uma fatalidade certa. O Canto termina em Tróia,

precisamente no leito de Helena e Páris, onde Afrodite chama a princesa para

compartilhar o amor com o herói troiano.

Passa-se, agora, ao paralelo proposto, cujas figuras centrais são Riobaldo e Páris

Alexandre. Suas ações são muito próximas em certos trechos.

A personagem de Rosa, por exemplo, demonstra atitude similar à do troiano de

Homero quando duvida de sua própria capacidade de liderança. Vale, então, detalhar

aspectos do Canto III da Ilíada para, em seguida, fazer um paralelo com a ação que

ocorre na narrativa do Grande Sertão: Veredas.

O Canto III inicia-se com uma comparação entre as desorganizadas fileiras

troianas e as disciplinadas fileiras gregas. Faz-se necessária uma retomada do Canto II,

onde ocorre uma pormenorizada descrição dos exércitos. Os soldados e seus líderes são

descritos, revelando que o contingente grego supera o troiano em número. As

localidades geográficas impressionam pela exatidão cartográfica. Finda a recapitulação,


62

retoma-se o enunciado do Canto III, descrevendo o confronto com os Pigmeus,

conforme a lenda, tribos da Etiópia, extremo sul, tal como era considerado pela

geografia clássica.

Os dois exércitos aproximam-se, espera-se um grande confronto, mas ao invés

disso, Páris salta diante da guarnição troiana. Tal ato provoca a imediata reação de

Menelau, que se coloca diante de sua guarnição. Páris veste a pele de um leopardo,

vestimenta totalmente alegórica e atípica. Homero se vale disso para distinguir o

príncipe troiano do restante dos soldados, pois o mesmo é constantemente referido pela

semelhança física com os deuses. Dionísio e Héracles, por exemplo, vestiam peles de

felinos. Baco o de uma pantera e Héracles a pele do leão da Neméia. O próprio Zeus era

referido como o portador da égide, a pele da cabra Amaltéia, a que o amamentou. As

qualidades divinas de Páris são, então, endossadas, ao muní-lo com indumentária

alegórica. Mais tarde, no confronto individual com o líder da Lacedemônia, Homero

veste-o com uma indumentária ordinária de guerra.

Marcante símile descreve a fuga de Páris para as fileiras troianas. O príncipe é

comparado à serpente que, na cultura clássica, também tem uma conotação de

dissimulada. Nessa hora, o irmão mais velho de Páris, Heitor, expõe o seu

desapontamento diante do irmão mais novo.

No discurso de Heitor, ficam claras as rígidas normas que deveriam seguir os

heróis traçados por Homero. O chamado herói homérico reproduz em suas falas o ideal

que reflete as normas sociais em que está inserido.

Heitor não deixa de reprimir Páris, achando o seu ato de fuga dos mais

desprezíveis. O amante de Helena foge ao ver que Menelau havia atendido o seu brado

de desafio. É acerca desta atitude que Heitor se vê impelido a reprimir Páris, devido à

intensa vergonha do ato, conforme se pode ver na sua fala:


63

Páris funesto, de belas feições, sedutor de mulheres!


Bem melhor fora se nunca tivesses nascido, ou se a Morte
antes das núpcias te houvesse levado. Mais lucro tivéramos,
do que nos seres opróbrio e de escárnio servires aos outros.
Riem-se à grande os Aquivos de soltos cabelos nos ombros.
Um dos primeiros julgavam que fosses, por seres de físico
tão primoroso; no entanto, careces de força e coragem.
Como é possível que, sendo qual és, em navios velozes
o mar houvesses cruzado, reunido prestantes consócios
e a gente estranha chegado, da qual a raptar te atreveste
uma formosa mulher, peregrina, cunhada de príncipes,
para a desgraça de teu próprio pai, da cidade e do povo,
mofa tornando-te, assim, dos imigos que exultam com isso?
Não te atreveste a enfrentar Menelau, de Ares forte discípulo?
Fora a ocasião de saberes de quem a mulher seduziste.
Esses cabelos, a cítara, os dons de Afrodite, a beleza,
não te valeram de nada ao te vires lançado na poeira.
Se tão medrosos não fossem os Teucros, há muito vestiras
uma camisa de pedras, por quantas desgraças causaste.
(ILÍADA, CANTO III: v. 39-57)

Páris se redime, dizendo ao irmão que “não são de se recusar os gloriosos

presentes dos deuses.” No caso aqui, os dons vieram da áurea Afrodite. Os dons em

questão são os da sedução, a simetria e a beleza. O príncipe pede a Heitor que convoque

novo embate, o que solucionará a guerra, pois o vencedor levaria Helena e os seus

tesouros como prêmios.

Heitor propõe a batalha, aceita por ambas as nações. Menelau consolida a

proposta e sugere sua firmação com o sacrifício de dois cordeiros, “um macho branco e

uma fêmea negra”, pois em geral sacrificam-se vítimas do mesmo sexo dos deuses,

brancas para os deuses celestes e negras para os deuses subterrâneos. Um arauto parte

em busca dos companheiros e uma trégua momentânea é instaurada.

Depois da teichoskopia, a visão de Helena dos muros de Tróia, dá-se o embate.

Menelau, representando a instituição familiar, a estabilidade e a honra grega, controla o

confronto, pois é mais guerreiro que Páris Alexandre, representando o ímpeto, o desejo,
64

a inconstância. O príncipe troiano sucumbiria ao rival se não fosse a interferência

divina de Afrodite.

Os incidentes acima vão ao encontro de certos trechos de Grande Sertão:

Veredas. A fuga de Páris da batalha pode ser comparada à renúncia de Riobaldo ao

cargo de chefe jagunço. Riobaldo sente um temor, uma falta de preparo, muitas vezes

citado por Páris que, declaradamente, gaba-se por reunir os dons de sedução e do amor e

não os dons guerreiros. Riobaldo reflete sobre este momento de oscilação, se acha

inapto para executar cargo de função tão alta:

Todos estavam lá, os brabos, me olhantes — tantas meninas-dos-olhos


escuras repulsavam: às duras grão e grão — era como levando eu, de
milhares, uma carga de chumbo grosso ou chuvas-de-pedras. Aprovavam.
Me queriam governando. Assim estremeci por inteiro, me gelei de não poder
palavra. Eu não queria, não queria. Aquilo pedi muito por cima de minhas
capacidades. A desgraça, de João Goanhá não tiver rindo! Rentemente, que
eu não desejava arreglórias, mão de mando. Engoli cuspes. Avante, por fim,
como que respondi às gagas isto disse: — “Não posso... Não sirvo...” (GS:V,
64).

Em atitude semelhante a de Heitor, Diadorim repreende o companheiro, mas em

seu discurso estão as potencialidades de Riobaldo. “Mano velho, Riobaldo, tu pode!”

Riobaldo ainda reage mal. Não aceita de todo a condição jagunça e um cargo de

liderança não o deixa em uma posição muito confortável. Riobaldo refuta a liderança,

pois nela estava uma maior aceitação da jagunçagem.

Em seguida Diadorim confirma:

“— Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece. Mas nós sabemos a tua
valia...” — Diadorim retornou. Assim instava, mão erguida. Onde é que os
outros roda-a-roda, denotavam assentimento. “— Tatarana! Tatarana!...—
uns pronunciaram; sendo Tatarana um apelido meu, que eu tinha.
65

Temi. Terçava o grave. Assim, Diadorim dispunha do direito de fazer


aquilo comigo? Eu, que sou eu, bati o pé:
— “Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e executar, não
me ajusto de produzir ordens...” (GS:V, 64).

Páris reluta em cumprir os atos de um herói, assim como Riobaldo, quando nega

a liderança. O príncipe troiano justifica a sua atitude, falando de seus dotes artísticos e

não dos guerreiros. Riobaldo nega a posição de chefe que lhe é oferecida, ofendendo a

ordem jagunça, quando afirma, também, não ter o dom da liderança.

Ambos divergem do código de honra do contexto social em que estão inseridos.

Páris não poderia ter negado a luta contra Menelau no momento em que lançara o

desafio. Riobaldo não poderia ter negado a liderança, agia contra a sociedade dos

jagunços; daí a insistência de Diadorim, afirmando as habilidades do amigo, o que

possibilita a total inserção do narrador na comunidade dos homens do sertão.

3.2. Vestindo guerreiros: beleza heróica

Ainda no Canto III, nota-se um outro fator que emparelha a Ilíada com o Grande

Sertão: Veredas.

No Canto III, acontece a primeira descrição do herói homérico. Páris Alexandre

veste uma armadura de guerra mais realista, confirmando, assim, o tom fantasioso da

primeira indumentária, a pele de leopardo. O segundo embate parece mais idealizado,

confirmando a estrutura social em que o herói procura se inserir.

A descrição de Páris vestindo-se vem abaixo e faz transparecer a imponência

heróica. Transparece também a porção realista do enunciado homérico, que auxiliou a

compreensão de fatos e comportamentos relevantes da história antiga:


66

O divo Páris, marido de Helena de belos cabelos,


em torno dos membros ajusta a armadura de fino trabalho:
as caneleiras, primeiro, lavradas, nas pernas ataca,
belas de ver, por fivelas de prata maciça ajustadas;
em torno ao peito coloca, depois, a couraça magnífica,
que a seu irmão pertencia, Licáone, e bem se lhe ajusta;
lança nos ombros a espada de bronze com cravos de prata
e um grande escudo sobraça, maciço e de largos contornos:
o elmo de fino lavor na cabeça admirável coloca,
no qual, por modo terrível, penacho de crina ondulava;
toma, por fim, de uma lança bem forte, de fácil manejo.
Do mesmo modo se armou Menelau, de Ares forte discípulo.
(ILÍADA, CANTO III: v. 328-339)

Rosa dedica alguns trechos de seu romance para descrever a vestimenta do

jagunço. Imponente, lembra muito a roupa de combate dos cavaleiros medievais. A

vestimenta, na verdade, tonifica o teor épico e engrandece a personagem. Personagens

em destaque recebem descrição, juntamente com a indumentária. É o caso de Diadorim,

que tem sua dimensão épica evidenciada quando Riobaldo descreve a sua vestimenta:

Depois, Diadorim se levantou, ia em alguma parte. Guardei os olhos, meio


momento, na beleza dele, guapo tão aposto — surgido sempre com o jaleco,
que ele tirava nunca, e com as calças de vaqueiro, em couro de veado
macho, curtido com aroeira-brava e campestre. (GS: V, 135)

Dentro dos perfis descritos, tanto na personagem rosiana quanto na homérica,

vê-se a importância da indumentária. Os jagunços usavam de tal artefato para se

fazerem reconhecíveis, uma marca do grupo social a que era pertencente; assim fazia o

herói homérico, identificando-se pelo bronze de sua armadura e pelo relevo estampado

na frente de seu escudo.


67

3.3. Cenas e Episódios

Volta-se a atenção, agora, para aspectos dos combates. Aspectos variados,

principalmente no Grande Sertão: Veredas.

Riobaldo é ferido duas vezes. Na primeira é salvo por Hermógenes, quando

este ainda era do bando. Fato que incomoda o jagunço, pois desprezava o caráter de

Hermógenes. A cena do salvamento é descrita no trecho abaixo:

Aí, eu já estava para lá dele; mas virei e esperei. Porque, na desordem de


mente do alvoroço, aquela hora era só no Hermógenes que eu via
salvamento, para o meu cão de corpo. Quem que diz que na vida tudo se
escolhe? O que castiga, cumpre também. Vim. (GS:V, 165).

Já como o Urutu Branco, Riobaldo recebe escoriações no braço. Tal

acontecimento ocorre durante a migração das tropas para enfrentar o mesmo

Hermógenes, que outrora o havia ajudado. O narrador descreve a cena, evidenciando o

seu conflito:

Aí foi curto fogo, mas eu levei uma bala, de raspaz na carne do braço, perdi
muito sangue. Raymundo Lé banhou com casca de angico, na hora melhorei;
Diadorim amarrou bem, com pano duma camisa rasgada. Apreciei a
delicadeza dele. Atual, todos prestaram em mim amizade de atenção, aquilo
vinha a ser até um consolo. Só que, depois de dois dias, o braço me doía
inteiro e inchava... (GS:V, 244).

O conflito de Riobaldo parece ser o receio do não-cumprimento de seu dever de

jagunço. O ferimento poderia tê-lo banido das futuras batalhas e as suas habilidades
68

guerreiras estavam em questionamento. Riobaldo intensifica a sua participação, tirando

a idéia de que estaria se acovardando da luta. O trecho vem em destaque:

(...) sei que a inchação me cansasse muito, sempre eu queria esbarrar pra
água beber. — “Se eu tiver de atirar, então como é que faço? Não posso...”
— era outro meu receio. (GS:V, 244).

Assim como Riobaldo, Páris Alexandre procura reabilitar-se diante das normas

sociais impostas. Seu ato covarde de retrair-se, no primeiro combate, teria reparo no

outro embate que estava por vir. A consciência de seu ato lembra muito a de Riobaldo,

sabendo ser imperativo ficar na batalha, mesmo ferido, para não perder o status por ele

conseguido. Desta vez, Páris luta, enfrenta o grego Menelau, o marido de Helena. Ele

não refuga, mas é evidente a sua inferioridade diante do rei de Esparta. Ambos

guerreiros perdem as armas. Fisicamente, Menelau subjuga Páris e o arrasta pelo elmo

eqüinoforme. Percebendo a inferioridade do protegido, Afrodite desce, envolta em

brumas, e socorre o príncipe troiano. Páris, por causa do acontecido, não mantém a

palavra, apesar de ter sido salvo por interferência divina, fato que irá macular seu status

social, pois desafiara as regras de comportamento do herói.

A batalha continua na Ilíada e as atenções se voltam para Diomedes, líder de

Argos. Ele se destaca e os seus feitos são exaltados na Dolonia, feito ocorrido no Canto

V da epopéia.

Durante a narrativa épica de Homero, vários guerreiros recebem atenção

especial, marcadamente, no campo de batalha. Cada guerreiro tem a sua cena gravada. É

o caso de Nestor, Agamêmnon, Menelau, Enéias, Heitor, Pátroclo, Páris e Aquiles.

Diomedes recebe um enfoque bem evidenciado, o que denota o seu valor

heróico. Vence troianos em magnas lutas, como é descrito logo abaixo:


69

Dá, logo após, com dois filhos de Príamo, o neto de Dárdano,


que num só carro se achavam, Equéfronte e Crômio galhardos.
Tal como um leão que se atira no meio do gado que pasta
no prado ervoso, e espedaça a cerviz de um bezerro ou de um touro,
e ambos, assim, o Tidida, do carro arrancou com violência,
por vergonhosa maneira, espoliando-os das armas preciosas.
Aos companheiros deu ordens que às naus os cavalos levassem.
(ILÍADA, CANTO V: v. 159-165)

O destaque de Diomedes põe em evidência as qualidades do herói homérico.

Diomedes honra a sua função social. Enfrenta deuses fisicamente e sai vitorioso. Fere

Afrodite no momento de mais uma interferência da deusa, desta vez para salvar Enéias,

“filho do irreprochável Anquises, que se vangloria de seu nascimento, pois nasceu de

Afrodite.” Diomedes fere-o na coxa, mais especificamente no cótilo (as descrições

anatômicas de Homero são muito precisas). O herói troiano fere-se, rompem-se-lhe dois

tendões, e ainda tem a pele rasgada. Está para sucumbir, já genuflectido, quando a sua

mãe intervém, cobrindo-o com um manto branco, “um véu, muralha contra dardos!”

Mesmo assim, a espada de Diomedes vara o pano tecido pelas próprias Cáritas, e com

isso, fere Afrodite nas mãos. Enéias, então, é protegido por Febo Apolo, enquanto a sua

mãe se retira para poder tratar do ferimento.

Diomedes enfrenta Ares, o deus da guerra sangrenta, insana. Também se sai

vitorioso. Ares recebe um golpe de lança “na parte inferior no flanco, onde o envolvia a

cintura”, o que obriga a retirada do deus do campo de batalha.

A façanha de Diomedes é claramente constatada. O fato de subjugar o grande

guerreiro troiano de nome Enéias e, em seguida, ferir dois imortais deixa o talento do

herói grego bem visível.


70

Riobaldo recebe a posição de líder depois de provar a sua valia, de ter se

destacado como jagunço exemplar. Seus feitos podem ser equiparados aos de

Diomedes, pois recebe o reconhecimento de herói, como segue abaixo:

— “A rente, Riobaldo! Tu o chefe, chefe, é: tu o Chefe fica sendo... Ao que


vale!...” — ele dissezinho fortemente, mesmo mudado em festivo, gloriando
um fervor. Mas eu temi que ele chorasse. Antes, em rosto de homem e de
jagunço, eu nunca tinha avistado tantas tristezas. (GS: V, 330).

A hierarquia indica, agora, a liderança de Riobaldo, perfilando-o ainda mais com

o rei de Argos. O narrador-personagem também se reconhece como líder e aceita a

condição: “Ah, eu, meu nome era Tatarana!” (GS:V, 384). Riobaldo, aqui, entende a sua

posição de jagunço-chefe. O ato da personagem de Rosa valida o seu status e a sua ação

no campo de batalha.

Diomedes endossa toda a imposição social quando se sobressai no campo de

batalha. O Canto V é o seu momento de glória, ele é o protagonista da Ilíada, naquele

determinado instante. Ele é guiado e recebe instruções da própria Atena, protetora

declarada dos gregos. Palas endossa a valia de seu herói nestes versos:

Podes, com todo o teu brio, lutar com os Troianos, Diomedes,


pois no imo peito te faço nascer a indomável coragem,
própria do grande Tideu picador, quando o escudo vibrava.
Vou desfazer a caligem que os olhos brilhantes te cobre,
que distinguir, facilmente, consigas os deuses e os homens.
Não te aventures, jamais, a lutar contra os deuses eternos,
caso te venha tentar algum nome do Olimpo elevado;
contra nenhum; mas se filha de Zeus poderoso, Afrodite,
se aventurar a lutar, então fere-a com o bronze afiado.
(ILÍADA, CANTO V: v. 124 – 132)
71

Riobaldo também recebe avisos e conselhos, de luta e liderança. Zé Bebelo fala

das qualidades do protagonista e reafirma seu valor entre os jagunços:

Zé Bebelo retardou em me rever. Do fim, o dizer:


— “Um homem, para a façanha assim, só mesmo se...”
— “Sol procura é as pontas dos aços...” — eu cortei, sem meio medir o
razoado. Ao tanto Zé Bebelo completava:
— “... Só eu... ou você mesmo, Tatarana. Mas a gente somos garrotes
remarcados.”
Mas, daí , me entendo bem, ele fechou assim:
— “Riobaldo, tu é homem de estúrdia valia...”
A dado sincero; eu senti. Ao perante diante de minhas presenças, todos tinham
mesmo de ser sinceros. Só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio
interno delas; só nos onde os olhos. (GS: V, 322)

As qualidades de Riobaldo e Diomedes ficam claras. Um agindo nos versos da

Ilíada e o outro no romance Grande Sertão: Veredas.

Na narrativa das duas obras, percebe-se que o herói e o jagunço são descritos por

sua genealogia. Explicitar as suas origens parece traço marcante do discurso heróico.

Sua origem confirma seu status social. Ser herói implica uma carga social imensa, de

carregar consigo as funções comunitárias impostas pela nobreza dos antepassados.

Orgulho máximo do herói, ele nunca nega a oportunidade de revelá-la. Tal atitude é

marcante na Ilíada.

A genealogia mais significativa no épico grego é a do troiano Enéias, líder dos

Dardânios. No Canto XX, antes de enfrentar Aquiles, ele lembra suas origens. “Por

minha parte me orgulho de ser descendente de Anquises de coração valoroso e da deusa

imortal Afrodite.” (v. 208-9) O restante da genealogia vem transcrito abaixo. A fala é

direcionada ao meio do campo de batalha, dirigida especificamente a Aquiles, que

questiona a atitude de Enéias de se embater com ele. Desta vez, o Pelida frisa que nem
72

as entidades divinas poderão salvar o troiano de um fim certo. Enéias, então, em

resposta, descreve sua origem:

Por Zeus, que as nuvens cumula, gerado primeiro foi Dárdano,


o fundador da Dardânia, no tempo em que não existia
ainda no plaino Ílio Augusta, baluarte de fortes guerreiros,
que por todo o Ida habitavam, orando de fontes inúmeras.
Um filho Dárdano teve, o monarca possante Erictônio,
que foi o mais opulento de todos os homens da terra,
pois três mil éguas possuía, que, ufanas de seus potrozinhos,
num plaino extenso pasciam, na margem de um pântano pingue.
Enamorado de algumas, ao vê-las pastar, inflamou-se
Bóreas, que sob a figura de escuro corcel a uma dúzia
delas juntou-se, que doze, potrinhos, então, conceberam.
Quando estes, ledos, brincavam no prado de mestes viçosas,
pelas espigas corriam sem que elas, com isso, vergassem;
ou quando, acaso, folgavam no dorso mar infinito,
por sobre a crista das ondas os pés só de leve tocavam.
(ILÍADA, CANTO XX: v. 215 – 229)

A genealogia segue:

Trós, rei dos teucros, nasceu do opulento monarca Erictônio.


De trós provieram três filhos, de forma e intelecto perfeitos:
Ilo, depois deste, Assáraco e, alfim, Ganimedes deiforme,
que entre os mortais foi, sem dúvida, o herói de mais bela aparência.
Os deuses a este raptaram, por causa de sua beleza,
para que a Zeus de copeiro servisse e vivesse no Olimpo.
De Ilo nasceu Laomedonte, o monarca de forma impecável,
que descendentes deixou preclaríssimos, Lampo, Títono,
Príamo, Clício e Icetáone, de Ares aluno dileto.
Cápis provém do impecável Assáraco; Anquises, de Cápis;
nado de Anquises sou eu; vem de Príamo Heitor valoroso.
Esse o meu sangue, essa a estirpe, que só de nomear me envaideço.
(ILÍADA, CANTO XX: v. 230-41)

Esta é a genealogia mais pormenorizada da Ilíada: Enéias traça-a com detalhes,

para enaltecer sua figura heróica. Assim, enobrece o confronto com Aquiles. Enéias é o
73

mais poderoso dos guerreiros troianos, depois de Heitor. Não é parte da primeira casta,

pois não descende diretamente de Príamo, mas é gerado por Afrodite, mantendo-se,

assim, nivelado com Aquiles, que também fora gerado por uma deusa. Apesar de

exímio combatente, não é páreo para Aquiles, que o subjuga. Enéias, mais uma vez, é

salvo por interferência divina. Desta vez, Poseidon evita o perecer do herói. Aquiles

reconhece: “É, por sem dúvida, Enéias querido dos deuses eternos. (v. 347)

Volta-se, agora, para o Grande Sertão:Veredas, onde Zé Bebelo remete a sua

genealogia para argumentações durante o seu julgamento. Ele assim se descreve:

“—... Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero
julgamento, esta bizarria... Agradeço sem tremor de medo nenhum, nem
agências de adulação! Eu. José, Zé Bebelo, é meu nome: José Rabelo Adro
Antunes! Tataravô meu Francisco Vizeu Antunes — foi capitão-de-
cavalos... Demarco idade de quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de
José Ribamar Pachêco Antunes e Maria Deolinda Rabelo; e nasci na
bondosa vila mateira do Carmo da Confusão...” (GS:V, 211)

Era de suma importância a descrição das origens em um momento tão delicado

como o julgamento. Despertaria a atenção de quem estaria julgando, indicaria que Zé

Bebelo é de fato homem bem nascido. Qual seria outra razão para descrições tão

pormenorizadas de suas origens? O que Riobaldo chamara de “sensaboria” ou

“filosofia”? Riobaldo responde, reconhecendo o brio enaltecido de Bebelo, ao

pronunciar sua genealogia. O resultado do julgamento poderia ter sido outro se se

levasse em conta o discurso proferido por Bebelo, que influenciou Riobaldo e este,

agindo em defesa do antigo chefe, expôs a sua fala no julgamento.

Na Ilíada, o desfecho do destaque (aristia) de Diomedes se dá na luta contra o

deus Ares. O grande deus da guerra, simpático aos troianos, perde seu embate contra o

mortal líder dos gregos, provocando a sua fuga para o Olimpo. Diomedes fere Ares,
74

traspassando-lhe a divina pele. “Ares, o deus de bronze, gritou com a força de nove ou

dez mil homens, quando na guerra travam batalha”.

Riobaldo se destaca na luta no sertão, mas quando assume o status de chefe,

assume uma posição mais contemplativa na batalha. Ocorre antes do episódio, no

entanto, ação bastante marcante, quando Riobaldo mata um jagunço:

E ele endireitou pontudo para sobre mim, jogou o cavalo...O demo? Em


mim, danou-se! Como vinha, terrível, naquele agredimento de boi bravo.
Levantei nos estribos. — “E-hê!...” Esse luzluziu a faca, afiafe, e urrou de
ódio de enfiar e cravar, se debruçando, para diante todo. Tirou uma
estocada. Cerrei com ele...A ponta daquela pegou, por um mau movimento,
nas coisas e trens que eu tinha na cintura a tiracol: se prendeu ali, um mero.
À asas que eu com a minha quicé, a lambe leal — pajeuzeira — em dura
mão, peguei por baixo o outro, encortei desde o princípio da nuca — ferro
ringiu rodeando em ossos, deu o assovião esguichado, no se lesar o cano-do-
ar, e mijou alto o sangue dele. Cortei por cima do adão...Ele Outro caiu do
cavalo, já veio antes do chão com os olhos duros apagados...Morreu maldito,
morreu com a goela roncando na garganta! (GS: V, 387)

Questões sobre a valia de Riobaldo ficam bastante controversas, principalmente

depois do suposto pacto nas veredas mortas. Treciziano é confundido com a própria

figura do demônio; por isso é degolado por Riobaldo. De um lado, vê-se certa inaptidão

da personagem no campo de batalha; ao mesmo tempo, percebe-se uma ação

significativa do líder Urutu Branco, como vem transcrito logo abaixo:

— “Tu vai Riobaldo. Acolá no alto, é que o lugar de chefe. Com teu dever,
pela pontaria mestra: que lá em riba, de lá tu mais alcança... Constante que,
aqui, o negócio está garantido...” — ele disse, mansinho, de me persuadir
(GS:V, 441)
75

Pareceu ser mais frutífera a comparação entre as ações de Riobaldo e a aristia de

Diomedes. No entanto, outros heróis homéricos podem ser perfilados com a

personagem de Rosa10.

Trecho marcante das cenas de batalhas, de alto teor comparativo, vem a ser a dos

ritos fúnebres. A preparação dos corpos de Pátroclo, Heitor e Diadorim.

Depois da batalha, o guerreiro morto é homenageado em um ritual. A preparação

do corpo de Diadorim é de capital importância no enredo rosiano, pois é aí que se revela

sua real identidade. Antes disso, Riobaldo descreve a preparação do corpo:

Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo.


Piedade, com que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de
Diadorim, casca tão grosso sangue, repisado. (GS:V, 453).

O respeito pelo guerreiro dá-se na preparação de seu sepultamento. As marcas da

batalhas são removidas, a transição é ritualística:

Eu ia dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ele rezava rezas da Bahia.
Mandou todo mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a
cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me
mostrou de propósito o corpo. (GS: V, 453).

A preparação do corpo de Diadorim presta-se tanto para o cumprimento dos ritos

quanto para a importante revelação que irá acontecer no desfecho da narrativa rosiana.

10
Tanto Idomeneu quanto Odisseu e Aias podem ser comparados ao protagonista de Rosa.
76

O rito fúnebre também recebe atenção na narrativa de Homero. O primeiro

celebra Pátroclo, guerreiro grego, estimado de Aquiles e morto por Heitor no Canto

XVIII.

O ritual da preparação do corpo inicia-se com uma procissão de carruagens, com

o corpo sendo carregado em uma biga; Aquiles, apoiando a cabeça de Pátroclo, oferece

mechas de seu cabelo. Constrói-se uma pira alta, banhada em gordura animal, para

depositar o corpo do guerreiro. Adicionam-se à pira óleo de oliva e mel, cavalos e cães

imolados em sacrifícios e doze guerreiros troianos, prisioneiros a serem sacrificados

durante as celebrações.

Jogos são realizados para honrar o guerreiro morto. Oito eventos ao todo,

começando por uma corrida de bigas, seguida de lutas livres e pugilismo e, de uma série

de outras corridas. Depois, lutas com armaduras, arremesso de disco, o lançamento de

dardo e o manejo de arco e flecha.

O ritual recebe bastante atenção na Ilíada. Veja-se a importância das honras

dedicadas a Heitor no Canto XXIV, derradeiro episódio da epopéia. Nele os detalhes

ritualísticos concentram-se em três personagens específicas e em suas lamentações

diante do corpo do maior guerreiro de Príamo. Hécuba, a mãe, Andrômaca, a esposa,

Helena, a cunhada. A Ilíada, na verdade, encerra-se com esse destaque.

3.4. A volta de Zé Bebelo

Um dos momentos mais marcantes do Grande Sertão: Veredas é a volta de Zé

Bebelo do exílio, para compor a frente de batalha contra os jagunços de Hermógenes.


77

Se se considerar a epopéia como sendo a narração de feitos heróicos, a volta de

Zé Bebelo traduz bem o impacto que causa o gênero. Alan Viggiano compara o trecho à

cinematografia, devido a sua imponência e ao intenso teor imagético. Zé Bebelo

personifica grande atitude heróica; tal constatação aproxima ainda mais o Grande

Sertão: Veredas de um conteúdo carregado com as características da epopéia.

Uma pequena parte do trecho descrito extensamente (cerca de quatro páginas)

vem transcrita abaixo. Vale dizer que a parte aqui explicitada consegue envolver uma

boa parte da essência épica do romance:

— “Ele? O jeito que é o dele, que ele tem? Em é mais baixo do que alto, não
é velho, não é moço... Homem branco... Veio de Goiás... O que os outros
falam e tratam: “Deputado”. Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti...
“— Estávamos em jejum de briga...” — ele mesmo disse. Ele e seus cinco
deram fogo feito feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse: vai remexer o
mundo! Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti... Desceram... Nem
cavalo eles não têm... ” (GS: V, 69)”.

O impacto da chegada de Zé Bebelo realça a exultante carga épica contida no

Grande Sertão: Veredas. Junto com a volta de Zé Bebelo está o anunciar de grande

batalha. Zé Bebelo retorna do exílio para vingar a morte de Joca Ramiro. Ele é peça

chave para que a batalha possa ser vencida. Daí a necessidade de se frisar o impacto da

chegada de Zé Bebelo junto aos urucuianos, descendo o Paracatu na balsa de buriti.

Trecho de tamanho impacto pode ser comparado, na Ilíada, à volta de Aquiles

para a batalha. Aquiles retoma a sua posição para vingar a morte do amigo Pátroclo. A

única razão que deixa Aquiles perdoar o chefe Agamêmnon por ter lhe tomado a

escrava Briseide, seu espólio de guerra. Heitor é quem mata Pátroclo, acionando a volta

de Aquiles e todo o seu contingente de Mirmidões.


78

Para aumentar ainda mais o impacto da chegada de Aquiles, são forjadas novas

armas, uma nova indumentária. Tétis pede pessoalmente ao deus Hefesto, mestre ígneo,

para talhá-las. Novo escudo, novas lanças, espada, elmo e cnêmides são feitos pelo

divino ferreiro. O já quase invulnerável Aquiles se tornará ainda mais forte.

Aquiles ignora a profecia que lhe foi feita. Se matasse Heitor gozaria de pouca

vida terrena. Para vingar a honra do amigo, Aquiles desafia a profecia. Tal destino é

sempre lembrado por sua mãe e até pelos cavalos, Xantos e Balios, que puxam seu carro

de guerra.

Uma descrição pormenorizada do relevo contido no escudo acontece no Canto

XVIII da Ilíada. O artefato retrata a composição de uma cidade helênica da época. O

herói carrega o ideal que defende nas batalhas e este ideal fora talhado por um deus. Um

escudo magnífico, totalmente diferente dos escudos dos outros guerreiros. Tem duas

camadas de bronze, duas de estanho e uma de ouro.

O filho de Peleu novamente aparece no campo de batalha. A sua imponência

estampa uma feição de pavor nas fileiras troianas. O maior guerreiro, um deus entre

homens, ocuparia o seu lugar em combate novamente. Tal fato já desapropria os

troianos da vantagem conseguida durante o percurso da Ilíada.

Antes da derradeira batalha com Heitor, Aquiles executa a batalha mais

exuberante do épico homérico. O herói enfrenta o rio Escamandro, ou Xanto. Notável

conflito ocorre às margens do grande rio, irritado com o massacre de troianos que

mancharam as suas águas com sangue.

Aquiles combate a entidade divina. Um grande turbilhão toma conta do campo

de Ílion. Hera, deusa protetora de Aquiles, pede a interferência do filho Hefesto, o deus

do fogo ígneo, para não deixar o herói perecer nas águas do Escamandro. O duelo

ameniza-se e logo em seguida se dá a Teomaquia, o confronto entre deuses.


79

O encontro de Aquiles e Agamêmnon antecipa o encontro do herói da Ftia com

Heitor. O Canto XXI, estrategicamente, trabalha elementos da narrativa que anunciam o

desfecho da Ilíada. Neste canto e nos últimos três acontecem batalhas de grande porte,

mas a batalha dita como sendo uma batalha de transição acontece entre Aquiles e a

divindade, o Escamandro. Esta batalha certamente inaugura o anúncio da morte de

Aquiles, que aparecerá relatada na Odisséia ou em escritos apócrifos como a Micro

Ilíada e a Aithiopis11.

Um outro grande marco épico no Grande Sertão: Veredas é a batalha que se dá

nas localidades do Rio do Sono. Alan Viggiano lembra que “o Rio do Sono, sim, é um

rio épico, na saga de Riobaldo Tatarana”. Nota-se que o Rio do Sono é um cenário de

confrontos e episódios marcantes. É lá que se dá a morte de Medeiro Vaz, imponente

jagunço, líder, estimado do protagonista Riobaldo. Perto do Rio do Sono se dá a

triunfante chegada, como já fora mencionado, de Zé Bebelo, fato que ajuda a destacar o

teor épico contido no romance rosiano. O embate final e decisivo entre os jagunços de

Riobaldo e os Hermógenes acontece nas margens do Rio do Sono, na localidade do

Paredão, município de Buritizeiro. É a batalha onde Diadorim e Hermógenes se

enfrentam. Embate fatal para os dois.

Alan Viggiano aponta o local exato do Rio do Sono, onde tal marco acontece:

O legendário Rio do Sono, palco dos mais emocionantes episódios de


Grande Sertão: Veredas nasce no sul do município de João Pinheiro,
atravessa rumo ao norte todo esse município e vai desaguar no Rio Paracatu,
na divisa com Buritizeiro, próximo à localidade de Paredão, vila que formou
as cambiarras do combate final entre os dois bandos de cangaceiros, no final
do romance. (VIGGIANO, 1974:83)

11
Escritos apócrifos relacionados com a Ilíada, onde o enfoque é o desfecho da queda de Tróia,
principalmente o episódio que concerne a morte de Aquiles e a elaboração do ardil que resultou no
Cavalo de Tróia.
80

Esta localidade, em que o estudioso procura precisar o confronto de Diadorim e

Hermógenes, vem a ser nas margens de um rio, local onde ocorreu uma das batalhas

mais importantes da Ilíada. As batalhas mais decisivas ocorrem no desfecho de ambas

as histórias. Os impactos do grande confronto entre Diadorim e Hermógenes podem ser

emparelhados com a marcante luta entre o grego Aquiles e o troiano Heitor.

Interessante notar que todas estas personagens perecem. Decerto que a morte de

Aquiles não é relatada na Ilíada, especificamente, mas o protagonista homérico acaba

tendo o mesmo fim que o rival troiano e as personagens do romance rosiano.

Para ilustrar melhor as questões de batalha, analisa-se, agora, a figura do herói,

muito relevante para os estudos do épico e do romance.


81

4. OS HERÓIS DO SERTÃO E DO ÍLION

O vocábulo herói deriva do grego heróe (h@rwς, h@woς), um homem notável por

suas qualidades e proezas extraordinárias. Nos feitos do herói estão incluídos atos e

façanhas sobre-humanas. As considerações que vêm adiante refletem sobre o papel

heróico de Riobaldo e para isso iniciam-se algumas considerações sobre o herói

homérico, a fim de ilustrar melhor a proposta comparativa.

O herói homérico vivia sob rígidas normas sociais e culturais, normas que

guiavam a sua vida, tanto no campo de batalha quanto no seu lar. A posição de herói

dependia do seu entendimento da posição que ocupava na sociedade e da sua habilidade

de cumprir as expectativas a ele impostas. Aceitava padrões heróicos que incluíam,

entre muitas coisas, o sofrimento e a morte. O herói tinha sempre duas escolhas: poderia

seguir uma força externa ou poderia fazer a escolha por ele mesmo. Tal dimensão, no

entanto, só é alcançada depois que o homem passou por inúmeras provações,

conquistando, assim, o status de herói, o que só era conseguido mediante o

preenchimento de certas qualidades.

O equilíbrio heróico, consistindo na modéstia e devoção aos deuses, era

qualidade marcante. Compreender e reconhecer situações são qualidades próprias do

herói; saber reconhecer a hora certa de deixar a batalha e saber quando fora abandonado

pelos deuses. Não ter estas qualidades implica a perda e a aprovação da honra. A

comunidade homérica dependia de seus heróis para defender seus ritos sociais e

religiosos, assim como outros valores culturais. Ser herói era uma responsabilidade que

atribuía ao homem um status social. O guerreiro somente definia e justificava este status

no campo de batalha. O medo do herói da vergonha (aidvwvς/, aidouvς) governava a sua


82

responsabilidade em todos os segmentos sociais, assim como nos julgamentos de

valores. Agindo de modo incorreto, receberia um castigo, imposto pela própria

sociedade. A responsabilidade social era essencial para manter o status e a única

maneira de estabelecer este status era no campo de batalha. O herói deveria mostrar

respeito e responder às normas sociais, assim como obedecer aos seus superiores e

mostrar lealdade aos amigos.

A noção de honra pessoal prevalece na Ilíada. A honra de todos é importante,

mas, para o herói, a honra é o ápice. Não poderia suportar insultos, sentia que deveria

sempre proteger a sua reputação. A função do herói é a de lutar, única maneira de obter

glória e até a imortalidade. O herói homérico acreditava que os homens deveriam se

apoiar mutuamente em batalhas e refutar por completo crueldades abusivas, razão por

que abominava a injustiça e a tortura. Ao ceifar a vida de uma vítima, fazia-o de uma

maneira rápida. Não poderia em hipótese nenhuma mutilá-la ou torturá-la. Seguindo

esse código, instalava-se com honra em sua comunidade e a honra comunitária consistia

em algo vital para o herói homérico. Seu mundo girava em torno do relacionamento

com a família e a cidade. Perder esta honra concedida pela sociedade deixaria a sua vida

sem sentido. Os heróis constantemente temiam a desgraça, o julgamento da

comunidade. Ele não distinguia entre a moral e a conformidade e importava-se com o

que as pessoas diziam. Falhando na execução de seus deveres, de alguma forma teria a

raiva e o desprezo de sua comunidade, a mais intensa das vergonhas. Quando um herói

expressava-se em palavras, acreditava-se no seu discurso, valendo como a fala de algum

deus ou da sociedade como um todo. Em seus solilóquios, o herói também era guiado na

postura e no discurso. Nada era espontâneo.

Esta pequena reflexão sobre o herói homérico suscita uma serie de reflexões

sobre a personagem principal do romance rosiano. Indissociável da epopéia e do


83

romance é a figura do herói, debatida no texto e ainda suscetível a reflexões. Quando se

fala de herói, tem-se em mente o ser mitológico, estruturado, alheio a perigos que o

ameaçam. Este ser exerce um extremo controle, de si mesmo e da ação que o circula. O

herói se consagra como instância mítica, agente, determinante capaz de mudar,

deliberada e voluntariamente, o andamento da própria história, sempre agindo de

maneira nobre, viril e corajosa diante de quem seja.

À imagem do herói, comumente, associa-se, igualmente uma conformação física

e moral. Há também uma conformidade psicológica, de força e atividade, que constrói

uma personalidade inabalável e envolvente. Os verbetes dos dicionários geralmente

falam de um homem extraordinário pelas suas proezas guerreiras, pelo seu valor ou

magnanimidade; protagonista de uma obra literária. Em geral, é assim que o herói é

retratado, tanto na epopéia quanto no romance. No entanto, além destes atributos

específicos, nota-se que há outros. Encerra-se, por exemplo, em Édipo, da peça

sofocliana Édipo Rei, morfologicamente, o símbolo de grandeza moral e ao mesmo

tempo a representação dos infortúnios humanos, assim como em outros protagonistas de

vários textos épicos e trágicos.

Na Arte Poética, Aristóteles classifica o gênero dramático como sendo a

imitação de uma ação importante e completa, uma ação encenada onde atores,

dramatizando, intencionam provocar a paixão, o terror e a purgação destas emoções. O

que se imita, ou deve ser imitado em uma tragédia, é a ação mítica inerente ao texto,

representada pelo herói. Essa figura, mítica por excelência, teria de assumir,

necessariamente, a grandeza épica digna de protagonizar estes tipos de ações.

O herói trágico, assim como o herói épico, age na sua moira e acaba

determinando os próprios atos e devires de cada ser extraordinário. A idéia aristotélica a

este respeito visava o clássico herói da tragédia, valorizado substancialmente pela fábula
84

moralista e cujo caráter se faria mais rico e cheio de nuanças quando ligado a um

destino incomum, fruto das profecias dos deuses ou das artes do imprevisível. Assim, é

lógico concluir-se que os heróis não-participantes da ação não deveriam ser imitados e é

pela ação que ocorre o processo da construção heróica.

Para a reflexão sobre o herói moderno, recorre-se a outros conceitos, situando o

herói em instâncias um pouco divergentes da concepção clássica. Apesar de alguns

pensamentos conflitantes, muito do pensamento contemporâneo se orienta pelas

máximas aristotélicas. Certos romances vêem o herói como um ideal humano, ser

extraordinário então, não muito divergente da construção épica. Personagens como Peri,

de O Guarani de José de Alencar, contém em si um ato vital, inerente à personalidade

do herói, que lhe dá um status quase mitológico, envolvendo questões arquetípicas

como a nobreza de sentimentos, a bravura pessoal; em suma, uma corporificação da

idealização humana. É comum demonstrar o herói como um ser completo nas suas

vontades, senhor de si, tendo um espírito brilhante de poder, responsabilidade e audácia.

No entanto, são nas análises orientadas pela sociologia do romance, que se passa

a enxergar outras construções do herói. Como já fora visto, o herói se enquadra em uma

série de divisões, comportando-se de maneira específica em cada uma delas. Em um

pólo, seres divinos inabaláveis. Em outro, um herói que se encontra abaixo do ser

humano mais comum. Todos os heróis, não obstante, em conflito, como ilustram

Aquiles e o narrador Riobaldo.

Ao estudar o narrador, percebem-se em seu perfil muitos dos atributos do herói

homérico, constatando-se, então, que Riobaldo pode ser considerado, se se

privilegiarem algumas instâncias específicas, um herói, na concepção clássica do

vocábulo. Certamente, levam-se em conta fatores contextuais para que o estudo possa se

tornar pertinente. O jagunço e o herói homérico dividem muito mais semelhanças que
85

distinções. Riobaldo, ao invés de desvirtuar, perfila-se com as personagens Aquiles,

Heitor, Diomedes, Páris e outros que percorrem a narrativa da Ilíada.

Não raro, o protagonista de Rosa destaca os valores jagunços, principalmente os

líderes. Quando descreve Zé Bebelo, por exemplo, exalta certas qualidades:

Zé Bebelo — ah. Se o senhor não conheceu esse homem, deixou de


certificar que a qualidade de cabeça de gente a natureza dá, raro de vez em
quando. Aquele queria saber tudo, dispor de tudo, poder tudo, tudo alterar.
Não esbarrava quieto. Seguro já nasceu assim, zureta, arvorado, criatura de
confusão. Trepava de ser o mais honesto de todos, ou mais danado, no
tremeluz, conforme as quantas. Soava no que falava, artes que falava,
diferente na autoridade, mas com autoridade muito veloz. (GS: V, 60-1).

Zé Bebelo é visto por Riobaldo como exemplar dentro da complexa sociedade

estabelecida pelos jagunços. Para Consuelo Albergaria, o chefe tem uma ação

fundamental na formação de Riobaldo. Na verdade, todos os chefes participam, de certo

modo, no crescimento do protagonista. Vale centrar as atenções no episódio comumente

chamado de “O julgamento de Zé Bebelo”, onde o caráter de cada líder é bem descrito.

Tal trecho será posto frente a frente com o que se usou chamar de “Teichoskopia”

(Teicoskopiva), episódio em que Helena descreve os principais guerreiros gregos para

Príamo e um grupo de anciões troianos.


86

4.1. O julgamento de Zé Bebelo e a teichoskopia: vendo heróis.

A atenção volta-se para um dos mais marcantes trechos da Ilíada, que descreve o

ponto de vista de Helena sobre os líderes gregos. Ver Helena no alto das muralhas

compara-se, pois, a uma visão divina. Assim fala Príamo, o rei dos troianos:

É compreensível que os Teucros e Aqueus de grevas bem-feitas


por tal mulher tanto tempo suportem tão grandes canseiras!
Tem-se, realmente, a impressão de uma deusa imortal estar vendo.
Mas, ainda assim, por mais bela que seja, de novo reembarque,
não venha a ser, em futuro, motivo de ruína dos nossos.
(ILÍADA, CANTO III: v. 157-62)

É muito convincente a descrição plástica de Helena, sendo colocada como

representação das batalhas acontecidas em seu nome. Este é o momento mais evidente

da personagem no épico. Quem se expressa acerca da beleza da grega são os anciões

troianos, o que valida ainda mais a descrição. A beleza de Helena transpõe o físico e

salta para o teor mítico. A partir da visão da mais bela mortal, Príamo e seu conselho

passam a receber informações sobre os principais chefes gregos.

No verso 178, Helena inicia a sua descrição de Agamêmnon. “Rei poderoso, de

Atreu descendente, tão grande rei, chefe de homens, quão forte e notável guerreiro.”

Parente de Helena, pois é Atrida, assim como Menelau; a princesa parece saudosa, mas

dá a entender que as suas lembranças já estão esparsas, devido ao tempo em que

habitava Tróia. Fala de Hermíone, sua filha, agora já quase uma mulher feita. Ela tinha

somente oito anos quando a mãe deixara Esparta com Páris. Helena faz menção a sua

alegre juventude e encerra as suas colocações sobre o general Agamêmnon. Príamo,


87

então, relata as suas impressões do líder de Micenas e depois passa a palavra novamente

à princesa Helena.

Esplêndida descrição de Odisseu acontece em seguida. A teichoskopia parece

querer ver os heróis gregos sob certa hierarquia. Príamo, vendo Odisseu, pede que o

senhor de Ítaca seja descrito, já adiantando a sua admiração pelo líder. Helena segue e

confirma a eloqüência e astúcia do grande comandante. “Esse é Odisseu, de Laertes

nascido, astucioso, guerreiro, de Ítaca oriundo, apesar de ser ilha de chão pedregoso, em

toda a sorte de ardis entendido e varão prudentíssimo.” A sapiência de Odisseu é a sua

maior virtude. Antenor, um dos anciões, lembra de seu discurso quando esteve em visita

diplomática para reaver Helena. O ancião compara o discurso de Odisseu “qual neve no

tempo de inverno”, não podendo nenhum mortal rivalizar-se com ele. O dom da palavra

parece ser a mais arrebatadora das qualidades de Odisseu.

Menelau, por sua vez, é referido como homem de poucas palavras e de grande

porte heróico. Curiosamente, Helena não se detém muito na descrição do marido, fato

que endossa a razão de sua fuga para Tróia.

Passa-se para a descrição de Ájax, o gigante, conhecido como a “muralha” dos

Aqueus. A exuberância física do guerreiro chama a atenção: “Como se chama esse

Acaio tão belo e de tal corpulência, de bem maior estatura e de espáduas mais largas

que os outros?” Helena, coberta por um véu, confirma a imponência de Ájax; neste

momento, pela primeira vez, a princesa é descrita como sendo “a divina criatura.” A sua

posição no alto da muralha endossa o teor divino de Helena, filha do próprio Zeus e

protegida especial de Afrodite. O véu é vestimenta bastante usada pelas deusas. A

maioria das representações antropomórficas mostra as deusas cobertas por algum tipo

de véu. Esta imagem de Helena a aproxima de uma representação divina.


88

Helena finda a descrição de Ájax: “Esse é o baluarte dos homens Aqueus, Ájax,

o gigante”. A figura excelsa do líder da Salamina ainda se destaca mais, depois que

Helena é descrita como tendo um porte divinizado.

Idomeneu é reconhecido e destacado, pela filha de Leda, como sendo grande

comandante de armas. A menção ao líder do contingente de Creta sublima ainda mais a

importância de Idomeneu na forte armada grega.

Helena ainda se lembra dos saudosos Castor e Pólux, descritos como heróis

genuínos. Atenta-se para a situação inverossímil desta descrição pois, no início, os

versos dão a entender que Helena não estaria a par da morte de seus irmãos, os

Dioscuros. Versos adiante confirmam que Helena já sabia do destino dos parentes.

A descrição é interrompida e as atenções se voltam para o confronto entre Páris

e Menelau, também muito significativo no Canto III da Ilíada. Helena, mais tarde,

desempenha outro papel importante nos versos homéricos para, então, praticamente, se

ausentar do enredo da obra.

Manuel Cavalcanti Proença já havia reconhecido um perfil heróico em Riobaldo,

perfilando-o com o herói medieval. Mesmo com a cultura medieval procurando

afastamento do paganismo grego, as características de seus heróis emparelham-se

perfeitamente com o perfil do herói homérico. Proença confirma que a concepção

heróica é toda transposta para o sertão: “Todo o episódio do julgamento é um recorte de

romance de cavalaria transposto para o sertão”. (cf. PROENÇA, 1958:166) É

justamente o julgamento de Zé Bebelo que recebe atenção pormenorizada agora.

Zé Bebelo, o réu, já descrito neste trabalho, tem atenção especial. Sua atitude

merece uma descrição detalhada do protagonista. Começando pelo peculiar ato que

inicia o julgamento, em que Zé Bebelo, assumindo atitude corajosa, vista por Riobaldo

até como um ato insano, senta-se diante dos outros chefes maiorais. Atrevido, ele até
89

brinca: “Se abanquem... Se abanquem, senhores! Não se vexem...” Tal procedimento, de

acordo com Riobaldo, enfureceria qualquer um e, certamente, Bebelo, com o ato,

assinara a sua sentença de morte, mas eis que Joca Ramiro, cordialmente, senta-se no

chão, aceitando o que seria uma provocação ou zombaria. Zé Bebelo, em ação

requintada, se desfaz do banco em que estava e senta-se no chão, nivelando-se a Joca

Ramiro. Todo o comportamento de Bebelo impressiona Riobaldo, que sempre o

admirara como chefe.

A atitude de Zé Bebelo, quando questionado por Hermógenes, pode ser vista

como uma grande ação heróica. O jagunço, rival de Riobaldo, questiona o caráter de Zé

Bebelo e acusa-o de traição. A reação de Bebelo é muito marcante, pois a acusação de

Hermógenes atinge em cheio o código de honra jagunço. Hermógenes diz:

— “Cachorro que é, bom para a faca. O tanto que ninguém não provocou,
não era inimigo nosso, não se buliu com ele. Assaz que veio, por si, para
matar, para arrasar, com sobejidão de cacundeiros. Dele é este Norte? Veio a
pago do Governo. Mais cachorro que os soldados mesmos... Merece ter vida
não. Acuso é isto, acusação de morte. O diacho, cão!” (GS: V, 201)

A resposta de Zé Bebelo é a mais inusitada possível, em se tratando de um

julgamento. Pede que as suas atas sejam removidas e gesticula, o que Rosa chamaria de

“figurado indecente”, mencionado anteriormente no romance “P’r’ aqui mais p’ r’ aqui,

por este mais este cotovelo...”

No entanto, em seguida, revela-se em seu discurso a integridade heróica,

expondo a habilidade de Bebelo com as palavras. Esta é certamente uma das qualidades

mais admiradas por Riobaldo. O discurso é um talento de Bebelo, lembrando alguns

heróis gregos que tinham também no discurso uma grande arma: Odisseu, Idomeneu,

Ájax e Páris.

As palavras de Zé Bebelo provavelmente o safam de uma execução certa:


90

— “Ei! Com respeito, discordo, Chefe, máxime!” — Zé Bebelo falou —


“Retenho que estou frio em juízo legal, raciocínios. Reajo é com protesto.
Rompo embargos! Porque acusação tem de ser em sensatas palavras — não
é com afrontas de ofensa de insulto...” Encarou o Hermógenes: — “Homem:
não abusa homem! Não alarga a voz!...” (GS: V, 201).

Observa-se o dual comportamento de Zé Bebelo. Por um lado, apresenta uma

intensa sensatez em sua fala, ao mesmo tempo em que se comporta de maneira

estapafúrdia, imitando “o pica-pau em seu oficio em árvore.” (GS:V, 201) A sua fala,

além de chamar a atenção de Riobaldo, o preocupa, pois ofende a Hermógenes

diretamente. Entretanto, o discurso de Bebelo não macula o código a que está

submetido. Excesso grave, como lembra Joca Ramiro, não ficou deflagrado. O chefe

maioral diz: “Temperou somente: — Mas não falou o nome-da-mãe, amigo...” (GS: V,

202).

Na verdade, nenhum dos acusadores, excluindo Hermógenes e Ricardão, vê a

necessidade da execução de Bebelo. A sua ofensa não agravava a este ponto. Em sua

defesa, Zé Bebelo menciona a sua genealogia. Como fora citado anteriormente, ato bem

heróico e que lembra inúmeros trechos da Ilíada.

Riobaldo é objetivo ao falar no julgamento. Em seu discurso, defende Bebelo.

Descreve, também, o comportamento de todos os chefes e dos jagunços no momento da

ação do episódio. Em defesa de Bebelo, Riobaldo procura enaltecer as qualidades de

herói/jagunço encontradas em seu antigo chefe. Vê-se um elogio às qualidades de Zé

Bebelo ao mesmo tempo em que se nota a postura ética de Riobaldo perante o

julgamento ofertado pelo grupo de jagunços.


91

A sua fala segue:

—“... Eu conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do lado dele, nunca
menti que não estive, todos aqui sabem. Saí de lá, meio fugido. Saí, porque
quis e vim guerrar aqui, com as ordens destes famosos chefes, vós... Da
banda de cá, foi que briguei, e dei mão leal, com meu cano e meu gatilho...
Mas, agora, eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que
honra o raio da palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, de primeira, sem ter
ruindades em cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir
de com eles se judiar... Isto, afirmo! Vi. Testemunhei! Por tanto, que digo,
ele merece um absolvido escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-
toa... E isto digo, porque de dizer eu tinha, como dever que sei, e licença
dada por meu grande chefe nosso, Joca Ramiro, e por meu cabo-chefe Titão
Passos! (...) (GS: V, 208-9)

No trecho acima, vê-se uma clara posição de Riobaldo diante da personalidade

de Zé Bebelo. A personagem é digna de ser absolvida. Questiona-se se realmente

Bebelo não tenha cometido um ato de traição. Inquestionável, no entanto, é a admiração

de Riobaldo pelo chefe e a contribuição do chefe na sua formação de jagunço.

No estudo de Consuelo Albergaria, Bruxo da Linguagem no Grande Sertão, a

contribuição de Zé Bebelo na formação de Riobaldo é bem marcada. Zé Bebelo

compõe, segundo a autora, o pentagrama hipostasiado da chefia, figura talismânica

essencial para que o indivíduo atinja o processo de libertação transcendental, processo a

que se submete Riobaldo. A autora esclarece que Zé Bebelo desempenha o papel de se

fazer de chefe, transitando ora na margem direita ora na margem esquerda do São

Francisco. Um chefe presente, tanto no sertão quanto nas gerais. O seu forte vínculo

com o mundo material, principalmente seu desejo por um cargo político, o impede de

atingir a libertação transcendental, mas de modo algum influi na transcendentalização

de Riobaldo.

“Ele era a inteligência”, dizia o narrador. Albergaria esclarece ainda mais a

função modelar de Bebelo:


92

Do ponto de vista esotérico, a inteligência de Zé Bebelo, sendo a sua


qualidade fundamental, permite que vejamos com uma das pontas do Signo
de Salomão, e como tal, representante de um dos atributos da divindade.
Esta inteligência gera a sua inegável astúcia e a ambas lhe conferem a
autoconfiança que o impele para a frente; Zé Bebelo é um chefe destemido
que guarda estas características essencial à chefia (o destemor) durante
longo trecho da sua função – mas não consegue preservá-lo.
(ALBERGARIA, 1977:61).

Zé Bebelo marca a vida do jagunço e é peça fundamental para a formação do

caráter de Riobaldo. Para Albergaria, este é um dos fatores que possibilitam a libertação

do protagonista.

Volta-se, agora, a atenção para os outros chefes destacados por Riobaldo. O

primeiro a ser contemplado é Joca Ramiro, juiz do julgamento, que recebe bastante

atenção do narrador. Geralmente, nas descrições de Ramiro, constata-se que o chefe

recebe crédito de toda a comunidade: “Mas Joca Ramiro era mesmo o tutùmumbuca;

grande maioral” (GS: V, 202) Nota-se, até, misturada à chefia, uma atitude patriarcal:

Joca Ramiro tinha poder sobre eles. Joca Ramiro era quem dispunha.
Bastava vozear curto e mandar. Ou fazer aquele bom sorriso, debaixo dos
bigodes, e falar, como falava constante, com um modo manso muito
proveitoso: — Meus meninos... meus filhos...”(GS:V, 199)

A prudência de Joca Ramiro também é evidenciada quando o mesmo relata a

sentença de Zé Bebelo, destacando-se, também, a mediação bem feita do chefe e o seu

talento em ouvir e ponderar falas. Ouve desde Hermógenes até os jagunços de pouca

expressão, como o Gú e o Dôsno, assim como o próprio Riobaldo, pouco evidente na

hierarquia dos jagunços naquele momento da narrativa. A eloqüência na fala de Ramiro,


93

condenando Bebelo ao exílio, exalta todas as suas qualidades heróicas. A sentença vem

transcrita:

— “O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu
povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado
deles, nem cacundeiro. A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?”
(GS: V, 213).

O fato de Zé Bebelo reconhecer a fala já evidencia o poder de Joca Ramiro e a

sua valia dentro da sociedade dos jagunços — Bebelo aceita a sua condenação: “Bem se

eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe palavra, e vai?” (GS:V,

213) É aceito por Bebelo o que fora dito e sua resposta valida e confirma a posição

destacada de Ramiro: “— ... Então honrado vou.” (GS:V, 214)

A ordem hierárquica é bem estabelecida aqui. Joca Ramiro é o grande líder do

grupo e tal fato sempre transparece em sua fala. Todos os jagunços chefes o respeitam

nesta ordem, assim como os demais jagunços, que ocupam outras posições hierárquicas

de menor relevância no grupo. Joca Ramiro chega a ter qualidades que lembram um ser

divinizado, as quais o pronunciamento do final do julgamento deixa bem clara:

— “Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem...” — Joca Ramiro aí


disse, em final. E se levantou, num de repente, Ah, quando se levantava,
puxava as coisas consigo parecia — as pessoas, o chão, as árvores
desencontradas. E todos também, ao em tempo — feito um boi só, ou gado
em círculos, ou um relincho de cavalo, levantaram campo. Reinou zoeira de
alegria: todo mundo já estava com cansaço de dar julgamento, e se tinha
alguma certa fome. (GS: V, 214)
94

Para Consuelo Albergaria, Joca Ramiro também é elemento do já citado

Pentagrama Hipostasiado e contribui marcadamente para a libertação transcendental de

Riobaldo.

Ramiro representa o pólo direito das margens do São Francisco, o sertão de um

modo geral. Descreve-se o chefe como um ser luminoso, aproximado da figura de um

bom pastor. A instância paterna é muito evidente e Joca Ramiro é “paternal” e estaria

mais “próximo da primeira pessoa da Santíssima Trindade, o Padre, que com o filho e o

Espírito Santo, formam a idéia de Deus.” (cf. ALBERGARIA, 1977:57). A paciência de

Ramiro, no entanto, parece ser a maior contribuição para o jagunço Riobaldo e foi esta

qualidade que recebeu atenção evidente enquanto observava o julgamento.

Joca Ramiro é coroado como o “Grande Homem Príncipe”, “capaz de tomar

conta desse sertão nosso.” (GS:V, 37) A figura iluminada de Ramiro é associada, de

acordo com Albergaria, ao “Kethen”, a coroa esotérica que ocupa lugar específico na

ponta do hexagrama. (Este é o signo do primeiro ângulo de uma disposição trágica que

contém a paciência (a coroa), a justiça e a inteligência, elementos estes todos presentes

no signo de Salomão que ainda se completa com a beleza, sabedoria e amor.)

Configura-se, então, a importância de Joca Ramiro na formação de Riobaldo e

torna-se percebida a razão pela qual o chefe é tão pormenorizadamente descrito no

episódio do julgamento. Vale destacar que Ramiro tem participação presencial em

apenas dois momentos na narrativa: quando Riobaldo é criança, na fazenda São

Gregório, e no julgamento de Zé Bebelo. A ausência da personagem em boa parte da

ação, não diminui sua importância e os momentos dedicados a sua descrição, pelo

narrador, confirmam que Joca Ramiro é modelo essencial para a formação de Riobaldo

e eixo importante para as principais mudanças que ocorrem no romance.


95

Outro jagunço descrito é Titão Passos. Para Riobaldo, uma espécie de espelho de

Joca Ramiro. Fica perto do grande chefe até o fim do julgamento e participa como

segunda voz que endossa os preciosos ditos que o líder maior proferia.

Pela voz de Titão Passos percebem-se os valores dos jagunços:

Mas a gente é sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis vir guerrear, veio —
achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra? Agora, ele escopou e
perdeu, está aqui, debaixo de julgamento. A bem, se na hora, a quente a
gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí estava certo, estava feito. Mas
refrego de tudo, já se passou. Então, isto aqui é matadouro ou talho?... Ah,
eu, não. Matar, não. Suas licenças... (GS: V, 205)

O ponto de vista de Titão Passos muito coincide com o de Riobaldo. O fato de

ele ser “como um filho de Joca Ramiro” muito valoriza a sua palavra e o narrador ainda

confirma: “Coração meu recomprei, com as palavras de Titão Passos. Homem em regra,

capaz de mim.” (GS:V, 205)

Atenção é dada para o carismático Sô Candelário, um autêntico herói do sertão,

sempre com atitudes medidas e honradas, acatando o que os outros grandes chefes

almejam para Bebelo. A integridade de sua fala se confirma em seus atos. Haja vista o

no exemplo em que Candelário pede para se medir em duelo com Bebelo, para resolver

o andamento do julgamento:

Sobre o que, sobreveio Sô Candelário, arre avante, aos priscos, a figura


muita, o gibão desombrado. Sobrava fala: “— Com efeito! Com efeito!...”
— falou. Vai, vai, forteou mais a voz: — “Só quero pergunta: se ele convém
em nós dois resolvermos isto à faca! Pergunto para briga de duelo... É o que
acho! Carece mais de discussão não... Zé Bebelo e eu — nós dois, na
faca!...” (GS: V, 202).
96

Feitas as descrições de Sô Candelário, Riobaldo volta a falar de Titão Passos e

recebe, de Diadorim, a descrição de uma pequena genealogia, enobrecendo ainda mais o

jagunço: “Ele é bisneto de Pedro Cardoso, trasneto de Maria da Cruz!” (GS:V, 206).

João Goanhá é o último que recebe ressalvas de Riobaldo. Hermógenes e

Ricardão são descritos como antagonistas dos valores prezados pelo narrador. Goanha é

também seguidor fiel de Joca Ramiro, tanto que a opinião do chefe tem uma valia

inquestionável. Ramiro faz questão de que o companheiro dê o voto e, então, pronuncia:

— “Antão pois antão...” — ele referiu forte: — “meu voto é com o compadre
Sô Candelário, e com meu amigo Titão Passos, cada com cada... Tem crime
não. Matar não. Eh, dia!...” (GS:V, 206)

Depois da descrição dos principais chefes, Riobaldo discursa juntamente com

outros jagunços, que acompanhavam o julgamento em um grande aglomerado. Pela

visão do narrador, enxergamos o engrandecimento de personagens, que estimava na

época de seu exercício como jagunço. O protagonista se atenta para Hermógenes, que

merece bastante atenção.


97

4.1.1 - Hermógenes Saranhó Rodrigue Felipes

O subtítulo acima revela-nos o nome completo do antagonista de Grande

Sertão: Veredas. Riobaldo ainda completa com todas as letras: “―Que sim, certo! O

inimigo é o Hermógenes...” (GSV, 308)

Eleito pelo protagonista e narrador como o grande rival, Hermógenes é

contemplado de maneira bem unilateral. Acumula o que, para Riobaldo, vem a ser todo

o tipo de maldade. Começando pela descrição física da personagem, nada amena:

O Hermógenes: ele estava de costas, mas umas costas desconformes, a


cacunda amontoada, com o chapéu raso por cima, mas chapéu redondo de
couro, que se que uma cabaça na cabeça. Aquele homem se arrepanhava de
não ter pescoço. As calças dele como que se enrugavam demais da conta,
enfolipavam em dobrados. As pernas, muito abertas; mas, quando ele
caminhou uns passos, se arrastava — me pareceu — que nem queria
levantar os pés do chão. (GS: V, 91)

Hermógenes já é visto como o grande opositor de Riobaldo. No início de seu

contar, o protagonista lembra que o jagunço havia feito um pacto com o demônio, grau

máximo de sua característica maléfica. É aqui que a proximidade entre o antagonista e

o protagonista começa, pois Riobaldo enfrenta o conflito de ter sido pactário ou não. A

censura feita ao seu opositor é, no mínimo, questionável sendo que o próprio Riobaldo

pensou em concretizar um pacto com o demônio.

Interessante perceber que, em certos momentos, a condição de jagunço em

relação a Hermógenes não é questionada, o comportamento é mencionado como bem

regular. Há trechos em que Riobaldo reconhece a valia de seu opositor, dizendo até
98

que: “O Hermógenes tinha seus defeitos, mas puxava por Joca Ramiro, fiel — punia e

terçava” (GS: V, 138) ou: “O Hermógenes? Certo, um bom jagunço, cabo-de-turma;

mas desmerecido de situação política, sem tino nem prosápia.” (GS:V, 138) No

entanto, em determinado momento da narrativa, há mais perjúrios acerca do inimigo

que menções sobre a sua qualidade de caráter.

Episódio que chama a atenção no romance é quando Hermógenes seleciona

Riobaldo para fazer uma batida no grupo de Zé Bebelo. É o único momento na

narrativa onde se dá uma interação plena entre os dois. Riobaldo se surpreendera com a

sua menção e com o momento em que Hermógenes lhe delega a função de escolher

mais homens para compor o grupo que participaria da ação. “Aí, ele tinha que eu

escolhesse-os para vir juntos. Eu?” (GS:V, 155) Neste momento se dá uma aversão à

liderança de Hermógenes, pois Riobaldo frisa que obedecia ao líder Joca Ramiro e

acataria o mando de Hermógenes por este ser subalterno do pai de Diadorim: “Pensei

em Joca Ramiro. Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não obedecia

àquele Hermógenes.” (GS:V,155)

Depois de selecionados Garanço e o Montesclarense, a ação acontece. O

deslocamento do grupo é bem marcado pela liderança de Hermógenes. Uma apurada

visão guia os jagunços por entre as trevas da escura noite do sertão: “O Hermógenes

puxando, enxergava por nós. Que olhos, que esse, descascavam de dentro do escuro

qualquer coisa, olhar assim, que nem o de suindara.” (GS:V, 157) Ali, no silêncio,

Riobaldo refletia sobre o caráter do antagonista, o “príncipe das tantas maldades”, a

sua devoção ao Hermógenes era por princípio: “Aquilo era serviço de armas, fazia

parte.” Não se imaginava subjugado ao inimigo se não fosse nesta circunstância. O

grupo passa a noite em tocaia e o protagonista entende que obedeceria ordens de

Hermógenes naquela situação ímpar.


99

Mais adiante, na narrativa, o grupo se embrenha em ações de batalha. Riobaldo

alterna momentos de pavor e de devoção ao mais repudiado dos jagunços. Neste

instante, repudia a própria condição de jagunço, quando insinua que ele e Hermógenes

pertencem à mesma laia. Ao mesmo tempo em que se demostra extrema aversão,

Riobaldo afirma que não é uma má idéia ter o antagonista por perto, devido à sua

destreza e devoção ao chefe Joca Ramiro. O protagonista de Rosa, em determinado

momento da ação, aceita uma camaradagem de Hermógenes, permitindo que este lhe

dê carne seca, cachaça e água durante a execução dos serviços de batedor. Riobaldo

suspeita do ato, mas aceita, endossando a sua dúvida com uma pergunta retórica: “Eu

carecia do Hermógenes? Mas, por que foi então que aceitei, que mastiguei carne, nem

fome acho que não tinham direito, enguli daquela farinha?” (GS:V, 164)

Hermógenes é evidenciado negativamente: “Já vai que o Hermógenes era ruim,

ruim.” (GS:V, 131) mas, no momento da ação, Riobaldo lembra: “Seguro nasci, sou

feito. D’o Hermógenes ali junto estar, naquela hora, digo ao senhor, gostei.” (GS:V,

161) No momento do julgamento, Hermógenes e Ricardão propõem condena rígida

para o réu. Hermógenes mostra sua natureza, desejando desviscerar Zé Bebelo feito

porco. Tal atitude é vista com imenso repúdio por Riobaldo, que se mostra aliviado

por Joca Ramiro ter dado sentença mais prudente. Mas é no julgamento, todavia, que

se tem verdadeira noção de como o protagonista vê Hermógenes.

4.2. O herói dividido

Convencionou-se aplicar uma dicotomia para a exemplificação dos heróis épicos

e dos heróis específicos do romance. Enquanto o herói do romance revela em sua


100

formação conflitos mais psicológicos, o herói épico parece envolver-se com questões de

cunho mais ideológico e comunitário.

Épicos, no geral, mostram heróis que têm como função principal e primordial

serem maiores que o próprio ato vital, se bem que, nem sempre, representam

necessariamente um modelo de virtude, mas, na maioria das vezes, chamam a atenção

da comunidade para certa aplicabilidade de um comportamento padrão. Esta vem a ser a

justificativa moral, o aval que permite ao herói exercer seu poder em sua plenitude.

Personificam um traço específico de caráter e, por serem sobre-humanos, personificam-

no até o excesso. O excesso desequilibra o herói, um excesso praticamente involuntário,

muitas vezes, mas suscetível ao acontecimento.

Ao atingir este excesso, o intacto herói grego parece conter inúmeros pontos de

dilaceramento, de divisão, pois, constantemente, verifica-se o excesso contido na

narrativa épica. Toma-se o épico homérico como exemplo. Seus heróis experimentaram

e personificaram a violência, o orgulho, a crueldade, o egoísmo. Este comportamento,

inevitavelmente, levou-os a uma ultrapassagem do métron, um limite, na verdade o

limite do humano, o anthropós, categoria em que o herói ainda se enquadra, mesmo

tendo, muitas vezes, habilidades sobre-humanas ou sendo parte divina.

O herói épico, então, que, em contrapartida ao herói do romance, apresentaria

uma personalidade mais uniforme e nenhum conflito interior, experimenta receios,

desequilíbrios e, acima de tudo, apresenta indagações e questiona-se; perguntas que

ocorrem tantas vezes ao narrador Riobaldo, questionamentos que atingem esferas

complexas e dimensões existenciais profundas: “Você agüenta o existir?” (GS: V, 52)

diria Riobaldo, pergunta que muitas vezes persegue muitos dos heróis épicos, divididos

e dilacerados, em busca de respostas, como o protagonista de Rosa. Muitas vezes, o


101

ultrapassar da medida, o métron, implica um desejo de se responder a tais perguntas

para desvendar caminhos.

Tais instâncias caracterizam o protagonista da Ilíada: Aquiles. O filho de Peleu e

Tétis nem sempre segue com rigor o código heróico.

Seu nascimento já se mostra bastante conturbado. De acordo com alguns

mitólogos, ele é o sétimo filho do casal, sendo que os outros seis não resistiram às

intensas provações às quais a ninfa os submetera logo após o nascimento. Tétis, com a

intenção de eliminar a herança mortal de seus rebentos, mergulhava-os no fogo. Com

exceção de Aquiles, todos perecem. Em muitos relatos, o próprio Peleu é quem livra o

filho da morte certa. Tal relação conturbada, entre o rei da Ftia e a deusa marinha, ainda

refletiu-se bastante na vida de Aquiles. Não podendo assegurar-lhe a imortalidade, Tétis

banhou seu filho nas águas do Estige, que o muniram com uma pele invulnerável. Tétis,

no entanto, esqueceu de banhar um dos pés do pequeno Aquiles. Este ponto não

banhado foi a razão da queda do mesmo. Para garantir-lhe uma formação extraordinária,

foi levado para o monte Pélion e deixado aos cuidados do centauro Quíron, encarregado

de sua formação. Diariamente, recebia treinamento atlético e a sua alimentação continha

entranhas de leões e javalis, assim como mel e medula de urso. De acordo com certas

tradições, o nome Aquiles foi-lhe dado pelo tutor. Seu nome de nascimento seria

Lígiron.

As oscilações de Aquiles em relação ao status de herói já começam

anteriormente à Ilíada. Alguns contam que, antes de acompanhar a expedição a Tróia,

Tétis o previne sobre o seu destino. Se não for à guerra gozará de vida longa, mas pouca

glória, e ao contrário, se atender às batalhas, teria vida curta, mas grande nomeada no

mundo grego. Desnecessário dizer que o habitante da Tessália escolhe a segunda opção.

No entanto, outros relatos sugerem diferente comportamento. Tétis e Peleu, sabendo de


102

tal destino e temendo pela vida do filho, ocultam-no no palácio de Licomedes, o rei de

Ciros, disfarçado de mulher, vivendo entre as filhas do rei. Contam que vivera desta

maneira por nove anos e chamavam-lhe de Pirra, a ruiva. Foi assim que se uniu a

Deidânia e desta união nasceu Neoptólemo, que mais tarde teria participação importante

na guerra de Tróia. O embuste foi descoberto por Odisseu, que sempre soubera da

extrema importância de Aquiles para o contingente grego. Através do adivinho Calcas,

descobriu que Tróia só cairia se Aquiles fosse para a batalha. Ao visitar o reino de

Licomedes, Odisseu ofertou presentes as suas filhas e, sabiamente, colocou armas entre

os objetos, justamente os regalos que Pirra acabou escolhendo. Tal episódio explicita a

idéia de que o espírito guerreiro sobressaiu-se ao destino. Na verdade, nota-se que

Aquiles recebe constantes interferências do pai e da mãe. Aquiles foge do dever

guerreiro, falta grave na concepção e formação de um herói, provocando uma série de

atitudes que evidenciam um claro conflito na sua personalidade e no seu comportamento

na Ilíada, comportamento este que muito revela sua porção dualística. De certo que, já

no início do Canto I, Aquiles se revela um grande líder e com poder de decisões.

Homem de brio forte, chega a esboçar um confronto físico com Agamêmnon, frustrado

pela intervenção de Atena.

Num primeiro momento, pondera; aceita perder o prêmio de guerra. Mostra

sapiência ao acatar os conselhos de Atena, que lhe promete riquezas em dobro. No

mesmo Canto, no entanto, tem uma atitude que certamente se desvincula da honra

heróica — resolve abandonar as batalhas, com o seu contingente, e ainda roga à mãe

para que interfira junto a Zeus, pessoalmente, para que possa assistir à derrota Acaia.

Diante de tal atitude, o equilíbrio de Aquiles pode ser contestado. Outros

episódios voltam a retratar a dualidade de sua personalidade passional.


103

Nota-se, por exemplo, a grande dignidade do herói, na peça de Eurípides,

Ifigênia em Áulis. Aquiles é parte do ardil elaborado por Agamêmnon para atrair a sua

filha primogênita, Ifigênia, para o porto de Áulis, onde as naus gregas se encontram

estagnadas devido à falta de ventos. Tal fenômeno se dá devido ao castigo da deusa

Ártemis, que intenciona punir o general de Micenas por um excesso. A única maneira

de liberar as naus é através do sacrifício de Ifigênia, sacrifício que Agamêmnon acaba

executando. Aquiles se pronuncia contra o ato e, mesmo com todo o contingente grego

recriminando-o, permanece na sua postura. A própria Ifigênia é quem o livra de ser

censurado pelos soldados quando aceita, por vontade própria, ser a vítima do sacrifício.

Aquiles, sempre compadecido, ainda oferece a sua força para impedir o fim da jovem.

Transcreve-se, então, a fala do herói para que se possa evidenciar a sua enorme

dignidade:

Tua resolução é realmente nobre e faltam-me argumentos para demover-te,


pois a tua vontade merece respeito. Há muita generosidade em tua idéia (por
que deixarei de dizer esta verdade?), mas inda tens direito de repudiá-la.
Parto levando meus soldados combativos até perto do altar, não para
permitir, como desejas, mas impedir teu fim. Quando vires o gládio perto de
teu colo talvez prefiras aceitar meus argumentos; e se isto acontecer, não
deixarei que morras por causa de tua altivez exacerbada. Irei com os meus
guerreiros para o templo de Ártemis; quando chegares estarei a tua espera.
(EURÍPIDES, IFIGÊNIA EM ÁULIS: V, 2012-2027)

Tais ações heróicas confrontam-se com outras atitudes ocorridas em momentos

pré e pós Ilíada. Em Hécuba, do mesmo Eurípides, o fantasma de Aquiles pede o

sacrifício de uma virgem troiana, Polixena, pois a sua alma parece se encontrar inquieta

no Hades. A inconstância da alma do herói é confirmada no Canto XI da Odisséia

quando conversa com Odisseu no Hades. Um herói aceitaria a morte, principalmente em

circunstâncias honradas da batalha, como fora o caso de Aquiles, se bem que o herói
104

não viu seu agressor, Páris Alexandre, quando caiu na armadilha no templo de Atena. A

frustração do comandante dos Mirmidões é nítida e, em seu discurso para Odisseu, tal

descontentamento fica claro:

Ora não venhas. Solerte Odisseu, consolar-me da Morte,


pois preferiria viver empregado em trabalhos do campo
sob um senhor sem recursos, ou mesmo,de parcos haveres,
a dominar deste modo os mortos aqui comsumidos.
(ODISSÉIA, CANTO XI: v.488-91)

Aquiles, mais uma vez, demonstra sinais conflituosos, principalmente quando

questiona aspectos do código heróico. Há momentos em que se comporta de maneira

exemplar, em outros deixa transparecer momentos de frivolidade, comprometendo o seu

caráter heróico. Todos os momentos conflitantes cindem o caráter de Aquiles.

Atenta-se, agora, para episódios específicos da Ilíada, evidenciando mais os

momentos de conflito. É inerente a Aquiles uma violência desmedida, que muitas vezes

o coloca em excesso. Tal violência denota a passionalidade dos atos do herói. Tanto em

batalha quanto em sentimentos, ele tende ao exagero. Demonstra os seus sentimentos

sempre de maneira bem verdadeira, como em gestos nos ritos do funeral de Pátroclo,

quando fez jejum rigoroso e ofereceu mechas do cabelo. Acompanhou minuciosamente

os ritos da participação nos jogos e os sacrifícios. A sua natureza tempestuosa provoca

atos de sangüinários massacres que, na maioria das vezes, o deixam fora de controle.

Nada o detém, homens ou deuses. Luta com o Escamandro e persegue Heitor

implacavelmente. Em certos momentos, não demonstra o mínimo de piedade com o

inimigo, mas, ao mesmo tempo, como lembra Andrômeda no Canto XXI, abstém-se de

mutilar a vítima, como foi o caso de Eetião, morto por Aquiles e tratado com extremo
105

respeito. Ergueu um túmulo homenageando o guerreiro e as três gerações abatidas pela

sua espada.

No entanto, há certas atitudes de Aquiles que podem, certamente, receber mais

atenção, pois retratam a dualidade contida na personalidade da personagem homérica.

Há como ver nessas atitudes já mencionadas, e em outras, certo grau de equilíbrio e não

de passionalidade, o que nos leva a refletir sobre a intencionalidade dos excessos de

Aquiles, assim confirmando o ato deliberado de subverter o código heróico. Age, depois

da intervenção de Atena, friamente, quando seu prêmio — Briseida — é arrebatado.

Então, em seguida, juntamente com um acesso de choro, pede à mãe para que

intervenha junto ao mais poderoso dos deuses, Zeus, no intuito de apoiar os troianos.

Quando recebe a notícia da morte de Pátroclo, pondera. Pede novamente à mãe que

interceda para a confecção de novas armas. Mesmo assim, entre estes altos e baixos, a

qualidade heróica parece prevalecer no comportamento do Pelida. Ao que parece, sabe

extrair lições dos acontecimentos que lhe afligiram. Nada mais nobre do que sua

percepção acerca do grande erro que fora a sua ira, erro esse que custou a vida de seu

grande companheiro Pátroclo. Na maioria das vezes, Aquiles atende aos deuses,

reconhece-os como superiores e consegue, até, vislumbrá-los. Não questiona a ordem

divina, como a dada por Atena, e se mostra subserviente. Tais qualidades são

retribuídas, mesmo quando o herói comete algum excesso.

Aquiles intercala momentos de extrema devoção heróica com ações de cunho

duvidoso. Mesmo seus atos rudes em batalhas são acometidos de surtos de intensa

sensibilidade e respeito ao inimigo. Após castigar severamente o corpo de Heitor,

percebe o seu intenso ato de violência e, a pedido dos deuses, trata com respeito Príamo,

rei inimigo, pai do executor de seu melhor amigo. Inclusive restitui o corpo do maior

herói troiano à família. Esta é a ação que mais deixa à mostra as qualidades heróicas de
106

Aquiles. Ao mesmo tempo em que pode ser o mais piedoso guerreiro e demonstrar

inquestionável devoção aos deuses, mostra-se capaz de atrelar o corpo do adversário a

sua biga e arrastá-lo dias a fio, na esperança de mutilá-lo.

O intacto e inabalável caráter heróico é bem oscilante em Aquiles. Como lembra

Robert Aubreton:

No íntimo Aquiles é triste. Ama a vida, e a morte o cerca de todos os lados.


Ele próprio sabe claramente, agora que Pátroclo desapareceu: Morrerá nesta
terra. (AUBRETON, 1956: 162)

Nota-se, aqui, bem pontuado por Aubreton, a condição humana do herói

Aquiles. Percebe-se no herói a questão existencial que permeia todo mortal; perguntas

que até um ente extraordinário, como Aquiles, não consegue responder. Interessante

notar que este é o conflito que tanto assombra muitos heróis pertencentes ao romance,

inclusive Riobaldo.

Como já fora mencionado antes, Aquiles deixa bem clara a sua dualidade no

momento de sua queixa a Odisseu, no Hades. Um lamento que lembra o seu

arrependimento de escolher a glória de uma vida breve ao invés de chegar à velhice e

não desfrutar das honrarias de um herói.

Flávio R. Kothe, em uma reflexão sobre o herói, atenta para o fato de que

Aquiles percebe a beleza fundamental de se estar vivo, um traço mais característico do

herói trágico:

O que ajuda a engrandecer o herói épico é a sua dimensão trágica. O herói


épico é o sonho de o homem fazer sua própria história; o herói trágico é na
verdade o destino humano; o herói trivial é a legitimação do poder vigente; o
pícaro é a filosofia da sobrevivência feita gente. (KOTHE, 1987:15).
107

Vê-se, aqui, como os tipos de heróis se mesclam e como há no épico um grande

teor trágico. Tanto que, muitas vezes, são encontrados nos épicos elementos geralmente

estudados nas estruturas trágicas.

Aquiles mostra um condicionamento trágico em vários momentos da Ilíada. O

incidente com o Escamandro, assim como a morte de Heitor, são claros momentos de

Aquiles em excesso, o que o dimensiona tanto para o status de um herói épico, assim

como para o perfil do conflituoso herói trágico.

No geral, no entanto, a dualidade de Aquiles é o que contribui para o seu caráter

tão particular no amplo universo clássico. Não é sem motivo que muitos estudiosos

chamaram a atenção para o fato de a Ilíada aceitar satisfatoriamente a alcunha de

Aquileidae, tamanha a influência que o seu protagonista leva para o enredo.

4.3. O Ágon: O Conflito Heróico

Para as reflexões que vêm em seguida, necessita-se de uma atenção ao vocábulo

“protagonista”, que deriva do grego.

O radical ago (a*gwvn) indica o significado da luta, do confronto, em primeira

instância associado às competições atléticas. A agonia (a*gwniva) propriamente dita é a

situação de combate, de disputa em que o atleta se encontra. Este pleito provoca, muitas

vezes, um esforço quase sobre-humano, conseqüentemente um estado de angústia e

ansiedade. O protagonista (prwtagwnisthVς) designa o primeiro atleta, o campeão, o que

combate primeiro.
108

No gênero dramático tal situação é mais evidente, especialmente na tragédia,

pois o protagonista recebe as principais ações da peça, dividindo os seus conflitos com o

deuteragonista, que se apresenta como apoio à personagem da peça. O épico mostra o

seu protagonista na figura do herói. O romance usou da nomenclatura para estabelecer o

grau de importância de suas personagens. O herói do romance, muitas vezes o

protagonista, consolidou-se por explicitar os seus pensamentos angustiantes, recorrentes

situações conflitantes. Não raro, o herói do romance demonstra uma fragilidade e um

alto grau de mistério. Tal caracterização, no entanto, contribui para leituras segregadas,

que geralmente atribuem ao herói épico uma composição isenta de conflitos, servindo

de contrapartida ao herói do romance, este, sim, conflituoso e instável.

Em Anatomia da Crítica, Northop Frye usa desta separação para estabelecer a

sua concepção teórica. A ficção, nas reflexões do teórico, se classifica de acordo com a

força do herói na ação. Para isso, o estudioso canadense se vale do conceito aristotélico

de herói e pondera a partir deste conceito clássico.

Frye desloca o herói para o centro da sua reflexão para, então, estabelecer uma

tentativa de distinções de gênero. O primeiro herói, superior aos outros em condição,

atinge um plano mítico e o teor de suas ações recebe um plano quase divino. O épico

pode conter alguns elementos desta primeira análise, mas, mais tarde, enquadra-se em

outra figuração. O crítico afirma que “tais estórias ocupam um lugar importante em

literatura, mas como regra situam-se fora das categorias literárias normais”. (FRYE,

1973:39).

Em segunda instância, aparece um herói superior em grau aos outros homens,

evidenciado por ações maravilhosas e fantásticas mas, mesmo assim, ainda é

classificado como humano. Frye o chama de “herói da estória romanesca”. Ao invés do


109

teor mítico prevalece um teor lendário, onde domina o conto popular. Tal herói é

recorrente em fábulas e outras histórias de conteúdo maravilhoso.

As ponderações continuam agora com destaque para o herói que assume a

posição de líder, ainda em grau superior ao homem, porém tem: “autoridade, paixões e

poderes de expressão muito maiores do que os nossos, mas o que ele faz se sujeita tanto

à crítica social como à ordem da natureza.” (FRYE, 1973: 40) Este é o herói que

Aristóteles tinha em mente na Poética. O herói do “modo imitativo elevado”, herói

recorrente nos enunciados épicos e trágicos.

Volta-se a atenção para o herói que não é superior a nenhum homem. Aqui,

existem dificuldades na caracterização do herói, pois se destaca a questão do

nivelamento implicado na expressão “herói imitativo baixo” que, para Frye, condiz

muito com as personagens que predominam na comédia e ficção (ficção como

equivalente ao romance). Fala-se, até, que o nivelamento do herói induziria à não

utilização do termo, o que tem provocado reflexões na crítica.

Há também o “herói do modo irônico”, que se encontra abaixo da escala

“normal e que provoca certo deslocamento, pois induz o olhar a procurar outras

esferas.” Frye ainda ressalta que tal herói: “Se inferior em poder ou inteligência a nós

mesmos, de modo que temos a sensação de olhar de cima uma cena de escravidão,

malogro, ou absurdez.” (FRYE, 1973:40)

A pertinente classificação de Frye induz reflexões relevantes sobre o herói e

explica como a figura central das obras de ficção deslocou-se de seu eixo, dando a

impressão de uma evolução, no entendimento do crítico. Essa evolução pode ser

considerada a aproximação do herói da condição humana. No entanto, o que parece ser

o grau de mediação, o anthrópos comum, é o burguês que passa a figurar nas

organizações sociais, pois Frye reflete sobre o herói com teor divino, depois sobre um
110

herói lendário, um herói líder, um herói imitativo e outro, sendo o herói imitativo baixo:

“um de nós” (cf. FRYE). Isso implica, então, que o herói do modo irônico encontra-se

em esfera “abaixo de nós”.

Apesar de fazerem sentido, as considerações não anulam o grau de confronto

existente nos planos heróicos. O herói pode conter posição social variada, mas os seus

conflitos se mantiveram, mesmo com certo “aproximar” do herói do homem, o “um de

nós”. Assim se estabelece uma intrínseca relação da agonia do herói clássico com os

conflitos do romance.

Tais considerações se tornam ainda mais relevantes quando se consideram as

reflexões de Friedrich Nietzsche em um de seus Cinco prefácios para cinco livros não

escritos. O herói grego comunga com os valores essenciais das sociedades helênicas e

os seus conflitos, o ágon, são as suas disputas e perjúrios para se manter digno neste

ambiente social. O herói se encontra em intensa provação, nem sempre suportando tal

pressão. Essa situação confere ao herói clássico uma condição humana. Assim o herói

se vê em angústia. Em agonia.

O ágon se constrói em qualquer forma e em qualquer tipo de conflito, seja ele

bélico ou psicológico. Muitas vezes, vem do inevitável confronto de mortais e imortais,

destacando ainda mais a condição do herói vinculado ao humano e a clara oposição “das

duas forças que nunca podem lutar entre si, a do homem e a do deus”. (cf.

NIETZSCHE, 1996: 79) Qualquer tentativa heróica se angustia diante de tal percepção.

Na verdade, essa parece ser a eterna questão que aflige o humano, uma pretensa

aquisição de imortalidade, elevando-o a outro status.

Basta percorrer os caminhos dos heróis presentes na Ilíada para perceber os

intensos conflitos pelos quais passaram. Odisseu, por exemplo, tem seus conflitos

evidenciados em outro épico, que trata com a mesma intensidade das angústias do herói
111

e de seus feitos notórios. Karl Kerényi já havia esclarecido que, desde o seu nascimento,

Odisseu experimentara desfortúnios e conflitos. A agonia transparece até na etimologia

de seu nome. O rei de Ítaca descende de Autólico, um mestre-ladrão filho do deus

Hermes. Ambos fazem parte da genealogia materna de Odisseu. Antícleia, filha de

Autólico, foi oferecida ao ardiloso Sísifo pelo próprio pai, na esperança de produzir um

herdeiro tal qual o avô. Oferece a filha para Sísifo, mesmo esta já estando prometida a

Laertes. Daí a razão de alguns mitólogos levantarem a questão da bastardia de Odisseu.

O nome Odisseu deriva do grego οδυυηενος (odyssómenos), odiado, um adjetivo que

remete a Autólico, possível avô de Odisseu, muito odiado pelos seus atos de larápio.

Verdade que Odisseu não tem conotação de odiado em seu épico, mas é alvo constante

de perseguição, provavelmente devido a sua herança. O próprio herói lembra, no Canto

VII: “Se vós sabeis dentre os homens quem maior carga de desgraças suporta, a esse me

compararia com padecimentos.” Certamente a agonia de Odisseu não altera a sua

consagrada condição heróica e de rei de Ítaca. Entre as suas inúmeras qualidades,

destacam-se os dez anos de luta contra Poseidon. Odisseu é exemplo de equilíbrio. Tal

fato transparece no episódio em que retoma seu reino depois de intensa provação,

intensa agonia.

Todos os heróis citados na teichskopia tiveram amargo regresso ao lar,

resultados da insatisfação divina. Inevitavelmente sofrem angústia, agonia.

Idomeneu, por exemplo, enquadra-se nesta característica. Durante a sua ausência

de Creta, seu filho de criação, Leuco, usurpa o trono quando mata a própria mãe, a

rainha Meda, e os filhos legítimos de Idomeneu. Ao voltar de Tróia, a nau do líder

cretense envolveu-se em uma tempestade. O rei promete ao deus Poseidon que

sacrificaria o primeiro ser que aparecesse nas costas de sua cidade.

Desafortunadamente, seu filho (ou filha) surgiu para saudá-lo. Respeitando a promessa,
112

Idomeneu sacrificou-o. O ato provocou repúdio em seu povo e muitos deuses, também,

se viram adversos à atitude. Isso causou uma grande praga em toda a Creta. Idomeneu

exilou-se para apaziguar os deuses. Foi para Salento, onde ergueu um templo para a sua

deusa mais estimada: Atena.

4.4. Metamorfoses do herói

Mesmo vinculando-se a normas rígidas, o herói está sujeito a provações e

mudanças. Momentos podem abalá-lo de sua condição, desvirtuá-lo do equilíbrio tão

almejado. Heróis na Ilíada recebem questionamentos nas suas ações de combate mais

destacadas. Isso ocorre nas aristias, momentos em que heróis específicos se

evidenciam. Há, também, momentos de argüição, reflexão e mudanças.

Transformações, de modo geral.

Em Grande Sertão: Veredas o questionamento aflige Riobaldo. Em seu nome

que, na etimologia traz “rio aberto, amplo”, nota-se uma relação com suas constantes

divagações. No entanto, o protagonista recebe um apelido: Tatarana “o lagarto de fogo”.

É o primeiro epíteto, pois Riobaldo “atira com a alma”, diz Wupes, qualidade dele

somente, qualidade que dita a sua mudança elementar. De rio, ou seja, água, passa a ser

o lagarto, o fogo. Na verdade, Tatarana é uma transição, lembrando o ato dos lagartos

de tomarem forma de crisálida, aguardando grande metamorfose. A metamorfose da

borboleta salienta bem esse processo de transformação. A lagarta, forma primitiva e

viscosa, sofre um processo de embelezamento e complexidade, quando se transforma

em um ser alado: o papílio. A mudança de Riobaldo se revela ao mundo exterior. Ele se


113

transforma com atitudes e ações. A metamorfose da personagem acontece no âmbito

pessoal, sendo que se intensifica metafisicamente, principalmente depois do episódio da

Guararavacã do Guaicuí, onde revela o amor por Diadorim. Pode-se inferir que estas

ações sejam asas para Riobaldo, a sua libertação. As asas são o fator mais destacado na

metamorfose do lagarto para a borboleta. Asas que permitem outro tipo de locomoção,

ou seja, percepção. Simbolicamente, as asas propiciam uma outra visão, uma

perspectiva de ângulos variados.

Vale frisar, uma outra vez, que essa transformação é parte de uma evolução. Os

nomes trazem consigo o entendimento da própria mudança, que permeia todo o

progresso da personalidade do protagonista.

A simbologia da borboleta geralmente aparece como representação de uma

transformação. No dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant, o verbete destaca:

Um outro aspecto do simbolismo da borboleta é a potencialidade do ser; a


borboleta que sai dele é um símbolo de ressurreição. Fundamental nas suas
metamorfoses a crisálida é o ovo a semente é, ainda, se se referir, a saída do
túmulo. (CHEVALIER E GHEERBRANT, 1996: 137)

Ainda se faz importante ressaltar, na presente análise, outro aspecto da

simbologia, apontado pelo mesmo dicionário:

Um apólogo das balubas e dos luluas do Kasai (Zaire Central) ilustra ao


mesmo tempo a analogia alma. Borboleta é a passagem do símbolo à
imagem. O homem, dizem eles, segue, da vida à morte, o ciclo da borboleta:
ele é na sua infância, uma pequena lagarta, uma grande lagarta na sua
maturidade; ele se transforma em crisálida na sua velhice; seu túmulo é o
casulo de onde sai a sua alma que voa sob a forma de borboleta; a postura de
ovos dessa borboleta é a expressão do renascimento “(CHEVALIER E
GHEERBRANT, 1996: 138).
114

A transformação do ser é notória em todas as explicações no refereido

dicionário. É possível detectar esta transformação no romance rosiano. O protagonista

vai transpondo fases. Riobaldo e Tatarana são a mesma pessoa, mas carregam uma

mudança interior simbolizada no epíteto Tatarana. Riobaldo é bem distinto de Tatarana.

Um é água, elemento evasivo. Outro é o fogo, impetuoso, impulsivo. Tal fato dá muita

complexidade à personagem. Para destacar mais a pertinência da representação do

processo metamórfico de Riobaldo, recorre-se a outro estudioso de símbolos, Hans

Biedermann que diz o seguinte:

Animal simbólico em muitas civilizações, é interpretado como a capacidade


de mudar, a beleza, mas também como a transitoriedade da felicidade. A
maravilha desse fenômeno de metamorfose que se origina e se desenvolve
sem intervenção externa, conduzindo o animal da condição de lagarta à de
crisálida e depois à de borboleta, tem tocado profundamente o homem, que
se vê assim movido a refletir a respeito de sua própria transformação
espiritual. Imbuído da esperança de poder ascender algum dia da prisão
terrena à liberdade da luz externa. (BIEDERMANN, 1993:57)

O estudioso cita outra leitura simbólica, referente a um provérbio da cultura

japonesa:

Existe um verso japonês que exprime poeticamente a tristeza pelas alegrias


perdidas, como resposta ao provérbio popular: a flor caída não retorna ao
galho. Pensava que a flor tivesse retornado ao galho, mas, aí era apenas uma
borboleta. (BIEDERMANN, 1993: 58).

Aqui, a borboleta aparece como uma enfermidade, a transitoriedade das coisas.

Uma transformação contínua, que lembra muito as variações do protagonista rosiano.


115

Estabeleceu-se uma análise da transformação da personagem Riobaldo, através

da simbologia. Ao sair da crisálida, Riobaldo se verte no Urutu Branco, animal

peçonhento que também troca de pele, mantendo um constante transformar. O resultado

do processo metamórfico é a aparição do Urutu Branco, status hierárquico mais alto que

o jagunço atinge. Curiosamente, é quando acontecem muitos dos questionamentos, que

têm o seu ponto máximo no pacto das Veredas Mortas. O herói percorre todos estes

momentos de mudanças. Vive-os intensamente. O protagonista de Rosa passa pela

ampla mudança de “Rio-aberto” para “crótalo”. Nota-se que a transformação retorna

para o mesmo Riobaldo, mas um Riobaldo que jamais será como antes. Não se molham

as mãos nas mesmas águas de um rio, especialmente um baldo, amplo como Riobaldo.
116

5 – REALIDADES ESPACIAIS E NARRATIVAS FICCIONAIS

Atenta-se para um outro ponto comum entre a narrativa rosiana e a homérica: a

preocupação de se retratar o contexto espacial.

Wolfgang Iser, no capítulo “atos de fingir”, pertencente ao livro O fictício e o

imaginário, perspectivas de uma antropologia literária, esclarece em seu texto a

intrínseca interação entre o que se designa como realidade e ficção. Para o teórico, a

dicotomia dos termos não é tão clara assim. Cria-se, então, uma relação mais intensa,

onde ele sugere uma tríade, que se dinamiza conciliando o referente (o real), o fictício e

o imaginário. Iser sugere a tríade para romper a enraizada concepção de realidade e

ficção. Tal tríade consiste no real, no fictício e no imaginário que, para ele, apresenta

uma propriedade fundamental do texto ficcional. O ato de fingir, então, é o fictício do

texto ficcional. Vale ressaltar como o real é o mundo extratextual, a exposição de fatos,

prévios ao texto e conseqüentemente agindo como campo de referência. O real aqui

apresentado refere-se à multiplicidade dos discursos e aos acessos variados cada um

contém quando os aborda. O fictício é representado como um ato intencional, que

endossa seu caráter de mentir, do não-real. Age, em suma, como sujeito antagônico às

outras concepções apresentadas. O imaginário é o elemento mais perturbador da tríade,

pois transita entre os outros membros, fazendo com que o fluxo do círculo proposto por

Iser funcione. Ao mesmo tempo que “no ato de fingir, o imaginário ganha uma

determinação que lhe é própria e adquire, deste modo, um atributo de realidade; pois “a

determinação é uma definição mínima ao real”, Iser ainda esclarece que “o imaginário

não se transforma em um real por efeito da determinação alcançada pelo ato de fingir.”

No texto, existe uma proposta de trabalhar a conexão entre o fictício e o imaginário,

pois trata-se de descobrir como o imaginário funciona, para que, a partir dos efeitos

descritíveis, abram-se vias para o imaginário.


117

5.1. Atos de fingir no sertão e no ílion

Grande Sertão: Veredas e Ilíada se ambientam em uma realidade espacial

referente, quando colocam que as suas histórias se passam na Minas Gerais dos

jagunços e na era helênica heróica. Aí, a proposta de Iser parece ser acionada, pois o

referente espacial calca a narrativa em um ambiente real, reconhecível, descrito e

dimensionado. Tal referência é nítida nas descrições espaciais das obras.

O fluxo na tríade iseriana convida o imaginário e o fictício a partilharem do

referente espacial. Passa-se a dar atenção a uma história que se executa em espaço

referente, mas em uma realidade diegética. O fictício, como imaginário, participam do

espaço e da referência ditada por ele. O referente espacial, muitas vezes preciso e coeso,

interage com o mundo imaginário e ficcional da narrativa, não perdendo a sua postura

referencial, mas envolvendo-se com o não-referente, o não-real. Transposto para o

Sertão e para o Ílion, um referente reconhecível, o enredo procura ambientar um

imaginário e um fictício; também reconhecíveis para o leitor. Deve-se considerar que o

leitor acionou as associações intertextuais propostas para que toda essa ligação seja

possível. Rosa e Homero dotam suas narrativas com um intenso fluxo da tríade de Iser

para que os elementos do referente, no caso o Sertão e o Ílion, participem do jogo

textual de sua narrativa, ambientada em um imaginário e em um fictício próximos.

No entanto, Rosa e Homero atestam a ficcionalidade de suas obras, mas de

maneira nenhuma estabelecem total desprendimento da realidade. O imaginário, quase


118

mítico, tramita no espaço referente, por isso aproxima-se do leitor, provoca a interação

e, como propusera Iser, a ruptura, um novo horizonte de expectativas.

O fato de a narrativa estar no ambiente tripolar proposto por Iser possibilita a

inserção de elementos contidos em um mundo para âmbitos fictícios e imaginários. O

espaço e as personagens são vínculos fortes com o real mas, inseridos em diegese,

fomentam a idéia iseriana de que referente, imaginário e fictício são conectados, mas

heterogêneos, cada qual exprimindo a sua mobilidade dentro da arte literária e

compondo uma concepção menos dual de mundo, por isso estabelecendo ruptura. Nem

o espaço referente de Rosa e Homero desvinculam a narrativa de sua ficcionalidade,

estabelecendo assim o incômodo que Iser indica, pois a dicotomia real/ficcional não é

mais possível, sob a ótica do teórico alemão.

Rosa evidencia a ruptura quando faz questão de elaborar uma narrativa

autodiegética. Este tipo de ponto de vista narrativo dota o texto da ficcionalidade que

parecia, a princípio, menos óbvia no romance. Assim, todo o ponto de vista narrativo

pode ser enquadrado com uma credibilidade dúbia, pois narradores em primeira pessoa

tendem a concentrar o foco narrativo na sua perspectiva, fato que provoca

questionamentos. O referente espacial fomenta uma articulação fértil entre texto e leitor,

fazendo este transitar em um enunciado mais palpável, pois o espaço é porção

significativa nas obras de Rosa e Homero, imprescindíveis e evidentes. O referente é

chamado a participar do mundo literário, fascinando como cenário de ficção e

participando como registro da realidade.


119

5.2. O relevo rosiano e o relevo homérico

Começa-se abordando a narrativa de Rosa, pormenorizada nas descrições de

lugares e do relevo. O enunciado impressiona pela precisão de algumas localidades. As

andanças de Riobaldo reagem à morfologia das paisagens, refinadas e muito bem

retratadas pelo escritor. O teor ficcional da obra de Rosa, no entanto, obriga-nos a

questionar aspectos tão marcantes do referente. Nada impede que as localidades sejam

frutos de uma composição ficcional, elaboradas dentro de um sistema referente, mas

comunicando-se mais com instâncias imaginativas e ficcionais.

Alan Viggiano, autor de uma pesquisa sobre o itinerário de Riobaldo, expõe que

Rosa não inventara sequer um nome em toda a toponímia utilizada na saga de Riobaldo

Tatarana. Seu estudo confirma elevada percentagem de nomes de rios, lagos, córregos,

veredas, vilas, povoados, cidades, que existem no norte de Minas, sudeste de Goiás e

sudoeste da Bahia, utilizados por Rosa na narrativa vivida por Riobaldo. Tamanha

precisão, de acordo com o pesquisador, não poderia se expressar somente pelo

imaginário; implica, até, em um estudo in loco.

Este empirismo confirma a precisão nas descrições espaciais de Rosa e a sua

preocupação em se aproximar do referente espacial que explorara. Dá-se, então, a

afirmação de que o livro Grande Sertão: Veredas é um estudo espacial calcado em um

referente muito específico. Cada canto da morfologia da terra é lembrado, assim como

outros aspectos regionais.

Viggiano revela números precisos. Das quase duzentas e trinta localidades

citadas no livro de Rosa, mais de cento e oitenta podem ser apontadas no mapa, o que

indica a pesquisa espacial. Viggiano lembra que todas foram tiradas do caderno de notas
120

de João Guimarães Rosa. Tal fato confirma a idéia de que Rosa era um escritor

itinerante, pesquisador. Tanto as localidades quanto os costumes receberam atenção do

autor, daí se podem localizar e reconhecer elementos orográficos, hidrográficos e

toponímicos enquanto se percorre a narrativa do romance.

A afirmação de que Guimarães Rosa era autor itinerante aplica-se também a

Homero. Estudos mais recentes afirmam que Homero descrevia com exatidão as

localidades em seus poemas. Apesar de a criatividade poética ter absoluta liberdade para

desconsiderar precisões geográficas, Homero aventurava-se a manter um alto grau de

fidelidade às localidades que descrevia. O poeta expressava a sua criatividade em uma

concatenada ordem e numa volumosa apresentação de dados empíricos, implicando na

estrutura complexa do teor épico, além de diálogos carregados de realismo, apesar do

extensivo uso de símiles. Era o seu forte inventar o discurso e não localidades, por isso

a fidelidade na transposição do relevo, pois ficava mais livre para se dedicar ao enredo,

à métrica.

Quem vê Homero como itinerante e registrador de cenários deve confrontar a

lenda de que o poeta era cego, ou pelo menos supor que o autor da Ilíada ficara sem

visão já com certa idade. Certas suposições de que o poeta era cego vieram de sua

associação com o personagem Demódocos na Odisséia, aedo cego que conta histórias

para Odisseu. Muitos pensadores supuseram que a personagem fosse uma alusão ao

autor, mas pouco pode se confirmar sobre este fato.

Rosa mapeia a passagem do bando de Riobaldo Tatarana, agora Urutu Branco.

Eles aparecem rumo ao Urucuia, depois voltam ao Paracatu e, por fim, sobem para o

norte. O bando de jagunços acompanha o seu novo chefe, volta ao chapadão do Urucuia

e logo em seguida continua em direção ao norte. Durante a narrativa, o bando encontra a


121

Serra do Meio, Lagamar, Lugar do Touro, Ribeirão da Areia, todas as localidades

existentes (com outros nomes) na região geográfica.

O bando segue. Chega ao Liso do Suassumão, associado ao Liso da Campanha,

no município de Formoso. O bando, então, descreve um arco perfeito, descendo por

Goiás na divisa com Minas Gerais.

O grupo segue na estrada que liga Brasília a Belo Horizonte, um reencontro dos

bandos se dá em um lugar chamado Vereda do Tamanduá, a trinta quilômetros do Posto

Pontal, entre Paracatu e João Pinheiro. É nesta localidade que se sucedem os combates,

até o final do romance. Esses combates se dividem entre o Tamanduá, o Cererê Velho e

o Paredão. O Paredão é uma vila, distrito do município de Buritizeiro. Localiza-se nas

margens do rio do Sono, perto da confluência com o rio Paracatu. Eis o cenário da épica

batalha entre os bandos de Riobaldo e Hermógenes, onde morrem este último e

Diadorim.

5.3. O espaço: encontro estilístico

Alan Viggiano fecha a sua pesquisa resumindo os topônimos que abrangem

apenas o trecho da etapa compreendida entre o momento em que Riobaldo reconhece

Diadorim — e se incorpora ao bando — e o dia no qual, atingido pelos acontecimentos,

abandona a vida de jagunço. Cada topônimo específico remete à localidade existente

“imaginada” por Guimarães Rosa.

Homero impressiona pela veracidade de suas descrições. Nota-se, também, uma

exatidão quanto às descrições de espaços que permeiam a Ilíada. J.V. Luce,

pesquisador de obras clássicas, percebe a nitidez da descrição espacial no Canto XIII da


122

Ilíada. Zeus, vigiando a batalha do topo do monte Ida, acaba de ver Heitor massacrar

membros da tropa grega, que já recua para os navios. Satisfeito com a humilhação dos

Aqueus, que certamente refletiria no general Agamêmnon, Zeus deixa de focalizar as

cenas de guerra e vislumbra as paisagens do local.

Logo que Zeus fez Heitor e os Troianos as naus alcançarem,


os combatentes deixou aos trabalhos e dores entregues.
Os olhos fúlgidos volve, depois, para longe, passando
a contemplar a região dos gigantes da Trácia, dos Mísios
que combatem de perto, dos belos heróis Hipomolgos
que se alimentam de leite dos Ábios, os homens mais justos.
Para a planície de Tróia não mais volve os olhos brilhantes,
pois no imo peito jamais esperou que qualquer dos eternos
viesse auxiliar os Troianos ou os nobres guerreiros Aquivos.
(ILÍADA, CANTO XIII: V. 1-9)

A visão no épico é coerente com a realidade geográfica das proximidades. Zeus

olha de cima para baixo do monte Ida para Tróia, em uma direção noroeste. Se a sua

linha de visão for contínua, atravessa o mar e tem uma interseção com as costas da

Trácia. Homero parece estar a par desta posição, pois descreveu o que o maior e mais

poderoso dos deuses visualisa da terra dos criadores de cavalos Trácios. Tal vista do

monte Ida endossa o conhecimento geográfico de Homero, descrevendo com precisão o

local onde acontece a batalha.

Homero descreve a visão de Poseidon, também observando os cenários de um

lugar privilegiado, no topo mais alto da Samotrácia, o Samos, pois dali: “todo o Ida

poderia ser visto, e visível, também, estavam a cidade de Príamo e as naus dos Aqueus.”

(XIII: 10 - 16) Poseidon espera a melhor chance para intervir a favor dos gregos e está,

propositadamente, do lado oposto ao de Zeus. Mais uma vez a destacada noção espacial

de Homero é percebida.
123

Depois de vislumbrar a batalha, Poseidon sente intensa ira contra Zeus e decide

intervir de vez em favor dos gregos. Neste momento, como uma câmera, há a descrição

dos arredores troianos, como uma subjetiva de Poseidon, símile do deslocamento das

águas em direção às costas do Ílion:

Ao sair da água, assentara-se ali, lastimando a derrota


dos combatentes Aqueus. Contra Zeus indignado em excesso,
sem mais demora baixou do penedo escarpado em que estava,
com passos rápidos. Tremem florestas espessas e montes
ao pisar forte dos pés imortais do divino Posido.
(ILÍADA, CANTO XIII: v. 16 - 20)

O monte Ida tem local estratégico na geografia helênica, talvez seja por isso que

Homero o cite inúmeras vezes na Ilíada. Lá, Páris Alexandre julgou um concurso, que

escolheria a deusa mais bela. Homero também associa o monte ao encontro de Afrodite

e Anquises, união que gerou Enéias.

A narrativa rosiana também dá muita atenção ao referente espacial. Rosa, em

boa parte do romance, usa o enunciado para descrever a sua terra.

Flora Süssekind, em seu O Brasil não é longe daqui, reflete sobre a figura do

narrador no romance brasileiro e como este narrador desempenha um papel de relator de

paisagens espaciais. Surpreendido pelo seu ato itinerante, durante o seu processo de

formação nas décadas de 1830 e 1840, o narrador se viu cumprindo múltiplas funções.

Este narrador viajante metamorfoseava-se ora em cartógrafo, ora em historiador e ora

em cronista. São estes autores, de acordo com Süssekind, que ditariam a forma da prosa

de ficção romântica no Brasil.


124

Uma precisão descritiva era necessária na época. O país necessitava ser

reconhecido, mapeado, por razões políticas e culturais. Não raro, os grupos de

exploração eram acompanhados por desenhistas com estilo naturalista, retratando, com

nanquim e pena, as suas impressões paisagísticas enquanto caminhavam.

Estas impressões, tanto pictóricas quanto enunciativas, iniciaram o teor

nacionalista na literatura que passaria a ser produzida no Brasil. Criou-se uma

identidade literária valendo-se da preciosa informação colhida pelos viajantes que,

também literariamente, davam as suas impressões sobre as paisagens e os costumes que

presenciavam durante a sua viagem.

Quanto as suas descrições e as suas habilidades de perfilar o sertanejo mineiro,

Rosa parece ter muita influência deste tipo de literatura; mesmo tendo uma

ficcionalidade marcante, Rosa dá valor à veracidade dos cenários espaciais e à

caracterização das personagens.

Homero aparece como um contador dos feitos gregos, talvez por isso a precisão

geográfica é tão requisitada. O poema épico procura ambientar todas as localidades em

que ocorrem as batalhas. O deslocamento de Poseidon metaforicamente retoma o

movimento de tropas que, da região da Samotrácia, desembarcaram nas proximidades

da Tróade e iniciam o processo ainda de expansão territorial. A associação com

Poseidon ainda se torna mais pertinente quando se analisa que o deus do mar é o deus

mais poderoso do panteão grego, depois de Zeus. Ele claramente apóia os gregos na luta

e representa a força marítima, da qual os gregos se orgulhavam tanto.

O espaço, elemento da narrativa muito explorado tanto no romance quanto no

épico, tem marca profunda no estilo de Rosa e de Homero.


125

5.4. Grande Sertão Veredase Ilíada: o andamento e o tempo

A linha narrativa de Grande Sertão: Veredas tem provocado muitas reflexões. A

estratégia de Rosa de não ter dividido o romance em capítulos fez com que,

estruturalmente, se dividisse o romance em episódios. Cada episódio ocorre em

momentos envolventes da ação, fazendo com que o livro tenha um andamento bastante

específico.

Francis Utéza já havia analisado a estrutura da narrativa do único romance de

Rosa. Sabiamente, o livro JGR: Metafísica no Grande Sertão mostra os episódios

distribuídos em uma linha pouco constante. A consideração mais marcante, no entanto,

é a constatação de que o romance pode ser dividido em dois tomos.

Exatamente no meio do livro, considerando as edições da José Olympio, ocorre

o episódio da Guararavacã do Guaicuí, que cinde o livro em uma parte não-linear e

outra linear. A partir deste trecho, a história se desenvolve cronologicamente no tempo

narrado. Utéza mostra, no ponto alto de seu estudo da narrativa, os momentos em que se

dão as travessias, de relevância extrema para o andamento da história.

Sugere-se, aqui, uma estruturação baseada no símbolo do uroboro, o infinito, que

aparece ilustrado no final do livro. A narrativa volta para o inicio, um perpétuo

exercício de recontar, e contém dois pontos de interseção. O primeiro, o encontro de

Riobaldo e o menino, e o outro, o marcante episódio da Guararavacã do Guaicuí, todos

considerados travessias, se se leva em conta a análise feita por Utéza. Ambos os

momentos têm quase uma função de reviravolta no livro. Abordam dois momentos

distintos que envolvem Diadorim, momentos que agem no destino de Riobaldo. A

representação simbólica muito lembra a ação narrativa propriamente dita. Os dois eixos

do romance: o subjetivo e o objetivo, apontados por Cavalcante Proença, ficam muito


126

próximos e, até, colidem em duas instâncias. Na verdade, o encontro com o menino e a

Guararavacã do Guaicuí são um espelhamento, incidentes onde Riobaldo se vê refletido

em Diadorim.

Deve ser pontuado que, de certa maneira, o contexto histórico-cultural das obras

se assemelha em alguns aspectos. Os tempos homéricos apresentam uma sociedade

agrária, aristocrática, guerreira e rigidamente hierarquizada, dotada de um determinado

ethos, valores. No século V a.C., muito desta organização é revista, e o sistema

democrático é implementado, reformulando consideravelmente o modelo social da

Grécia do período Micênico. O romance rosiano também apresenta peculiaridades

acerca do tempo em sua narrativa. Seu andamento mistura o psicológico com o

cronológico. A linha narrativa de Grande Sertão: Veredas não pode ser considerada

linear, mas há vestígios de um tempo cronológico que ajuda a concatenar a ação da

história. Primeiramente, situa-se o tempo da narrativa, o narrador também, em

determinada época histórica. A carta encontrada por Riobaldo na Fazenda dos Tucanos,

o papel para ele mesmo produzir um texto destinado às autoridades do município de São

Francisco e vila Risonha, data do tempo do império: “...de tempos idos, num vigente

fevereiro, 11, quando ainda se tinha Imperador.” (GS:V, 251) O combate feito na

Fazenda dos Tucanos tem data posterior ao ano de 1889. Outra alusão ao tempo

cronológico se dá quando a personagem central menciona a passagem dos homens de

Prestes, a coluna, pela barra do Urucúia. Já em uma época onde não havia mais o

exercício do jagunço. “Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes,

vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na

barra do Urucúia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas

da Bahia.” (GS:V, 77) Registrou-se que a coluna passou naquela referência geográfica

no ano de 1925, onde houve confronto com as tropas do governo. A história de


127

Riobaldo, então, se passa antes de 1925. A narrativa de Grande Sertão: Veredas ocorre

entre os anos de 1889 e 1925. Para Napoleão Valadares, esta referência temporal é ainda

mais narrada:

Acrescente-se que na ação do romance está muito depois de 1889 (‘tempos


idos’) e algum tempo antes de 1925 (‘depois passam por aqui’.) Se nos
colocarmos vinte anos depois de 1889 e cinco anos antes de 1925, ficamos
com uma faixa de onze anos: 1909 a 1920. Aí está, possivelmente, o período
dentro do qual se deram as aventuras de Tatarana e os seus confrades.
(VALADARES, 1982: 15)

Nota-se, também, que na época em que ocorreu o combate de Andalécio e

Antônio Dó contra o Major Alcides do Amaral, no município de São Francisco,

Riobaldo já havia abandonado a vida de jagunço. O combate, historicamente, ocorreu

no ano de 1920. Há, ainda, outras marcas cronológicas no andamento narrativo. Logo

no inicio do romance tem-se uma alusão ao ano de 1879. “Neco forçou Januária e

Carinhavinha, nas eras do ano de 79.” (GS:V, 88) Dez anos antes do já aludido “Fim do

Império”. Quando é revelado o batistério de Diadorim: “11 de setembro da era de 1800

e tantos.” (GS:V, 458), entende-se que seja o final do século XIX, talvez o ano de 1899.

Recorre-se, novamente, às considerações de N. Valadares:

Avaliamos a idade de Diadorim, à época das andanças pelo sertão, em torno


de vinte anos. . Tendo nascido em 1889, completaria vinte anos em 1919,
tempo da jagunçagem. Finalmente, se a carta encontrada na Fazenda dos
Tucanos é datada de um dia 11, e se Diadorim foi batizado num dia 11, (as
duas únicas datas do livro), a jagunçagem pode ter se dado durante 11 anos e
1911 deve ser um deles. (VALADARES, 1982:16)

Apesar da circunstância cronológica, o tempo mais explorado no Grande Sertão:

Veredas é um tempo de teor mais psicológico, onde existe um exercício formidável de

tratamento do referente temporal e do tempo do narrado. Inicia-se com o tempo da


128

narrativa, Riobaldo contando para um certo senhor letrado o que ocorreu na sua vida de

jagunço, para, depois, se intercalar um tempo narrado, onde se encontra o

desenvolvimento da ação, contada em flashback, mas de uma maneira claudicante, sem

muito seguir uma linha sucessiva de um cadenciamento cronológico.

Mesmo contendo um maior teor psicológico, não se deve negligenciar a

sofisticação do tempo cronológico imposto por Rosa em sua narrativa. Na verdade, o

tempo psicológico e linear se equivalem, dando à narrativa um andamento bastante

peculiar, sugerindo que não há começo, meio e fim e, sim, um contínuo exercício de

recontar, destacando a elaboração estética contida no romance. Grande Sertão: Veredas,

então, sugere um tempo que compreende uma sofisticação rara na literatura, e raridade é

uma constante nos enredos de Rosa.


129

PARTE II — VEREDAS PERCORRIDAS

“Na extraordinária obra-prima Grande Sertão:


Veredas há de tudo para quem souber ler, e nela
tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada
um poderá abordá-la a seu gosto, conforme seu
ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço
fundamental do autor: a absoluta confiança na
liberdade de inventar”.

Antônio Cândido: Tese e Antítese


130

6. ZEUS NO SERTÃO E NO ÍLION

Junito Brandão, em seu Dicionário Mítico-Etimológico, constata que Zeus

(Zeuvς), significa “a luz, o céu claro, o brilho”. Zeus equivale ao sânscrito Diaus pitar ou

Zeus patéer, em latim Jú-piter. O nome parece significar “deus da luz”, ou “deus do

céu”, cuja raiz remonta à mesma origem da palavra dies, “dia”, que significa

“brilhante”. “Deus” ou “Divino”, com o sentido “brilhante”, encontra-se no sânscrito e

passou para inúmeras línguas, como o latim e o grego.

O nome Zeus corresponde precisamente ao termo Zoógonos: “autor conservador

da vida”.

O mais poderoso dos deuses reunia em si todos os atributos divinos. Era todo

poderoso, via tudo, sabia tudo. Mediador do bem e do mal era muitas vezes

misericordioso. Castigava os maus, no entanto era piedoso. Protegia os fracos, os

indigentes, os fugitivos e suplicantes. Presidia as manifestações celestes, provocava a

chuva, lançava os raios e trovões. Indiscutivelmente, o senhor absoluto das alturas

majestosas do Monte Olimpo. Tinha como função primordial manter a ordem e a

harmonia do mundo. Contestar sua autoridade era a mais grave das ofensas.

Era representado com um ar majestoso, de barbas, cabeleira espessa e ondulada,

com uma coroa de carvalho, tendo na mão direita o raio e na esquerda o cetro. Aos pés,

via-se a águia com as asas abertas. A parte superior de seu corpo estava sempre nua e a

inferior coberta, para mostrar que era visível para os imortais e invisível para os mortais.

Os seus cultos foram os mais solenes e freqüentes, seus templos os mais pomposos e

suntuosos. Sacrificavam-lhe cabras, ovelhas e touros brancos. O carvalho e a oliveira

lhe eram consagrados.

Filho mais novo de Crono e Réia, pertence à segunda geração divina. Réia,

cansada de ver seus filhos devorados pelo marido, resolveu ludibriá-lo. Deu à luz o
131

caçula na ilha de Creta e, para enganar o consorte, entregou-lhe uma pedra embrulhada

em panos, que o deus engoliu sem perceber que se tratava de um ardil da esposa. O

recém-nascido deus foi aleitado em uma gruta do monte Ida pela cabra Amaltéia. É

cuidado pelas Ninfas. Quando se tornou adulto, envolveu-se com a pele da cabra, a

égide, e foi de encontro ao pai. Juntamente com a mãe, fez com que Crono regurgitasse

os fraternos. Logo depois, revoltou-se contra o pai e obrigou-o a morar no Tártaro.

Assim, se tornou senhor de tudo. Os Titãs tentaram recuperar a posição do antigo

regente, mas foram vencidos na célebre batalha chamada de Titanomaquia. Nela, os

deuses do Olimpo tiveram êxito. Na partilha, Poseidon ficou com os mares, Hades os

infernos e Zeus os céus. Zeus, então, tornou-se absoluto.

Metamorfoseou-se em mil maneiras diferentes para satisfazer seus desejos

amorosos. Derrotou o monstro Tifeu, de cem cabeças. Esmagou-o sob os rochedos da

ilha Inárime. Castigou Prometeu por ter roubado o fogo, dos deuses, a fim de ceder aos

homens. Recebeu os raios e trovões dos Ciclopes. Ofereceu, à espécie humana,

Pandora, primeira mulher, que abriu uma caixa contendo todos os males da

humanidade.

Certa vez, sua esposa Hera refugiou-se em Samos, resolvida a não partilhar mais

o leito conjugal, devido à infidelidade do marido. Seguindo conselhos de Citerão, o

deus elaborou um plano para atrair sua ciumenta consorte. Mandou vestir uma estátua

de madeira com roupas de casamento e colocou-a em um carro. Depois, divulgou

publicamente que iria desposar Platéia, filha de Asopo. Embebida de ódio, a diva

abandonou o exílio e agrediu o ícone disfarçado no veículo. Percebendo o plano, riu

muito e fez as pazes com o marido. No entanto, o senhor do Olimpo continuou suas

aventuras amorosas. Manteve-se neutro na Guerra de Tróia, apesar de nutrir certa


132

simpatia pelos troianos. O Olimpo grego é a imagem de seu senhor: independente e

audaz.

Na sua função arquetípica, vem a ser descrito como um deus patrilinear, rei e

senhor do Olimpo, pai do céu, executivo, conquistador. Também era hábil em fazer

alianças, assim como galanteador e amante contumaz. Já no enfoque junguiano,

apresenta-se, normalmente, como sendo extrovertido. Definitivamente racional, mas

intuitivo e sensível. Sempre autoritário e cruel às vezes. Passional, tende a ter uma

imaturidade emocional. Também é hábil no uso do poder, mostrando-se resoluto e

prolífico.

O breve comentário acima ilustra a importância da entidade, na Antigüidade

Clássica e as inúmeras funções cumpridas pela mesma. Atenta-se, no entanto, para uma

função específica que Zeus exercia: cumpridor e senhor do destino. Essa função será

analisada na narrativa de Rosa, ampliando o diálogo da cultura clássica com o romance

brasileiro.

6.1. Zeus como destino: a moira no sertão

No Canto XXI, Zeus ergue uma balança por entre as nuvens para decidir o fim

do embate entre Aquiles e Heitor. Delibera, o pai dos deuses, que seja o fim de Heitor,

pois aquele era o destino do troiano:

Mas, quando, após quatro voltas, as fontes de novo alcançaram,


da áurea balança tomando, Zeus pai que bulcões acumula,
pôs sobre as conchas as Queres que a morte fatal determinam,
do divino Pelida e a de Heitor domador de cavalos,
e pelo meio a librou: baixa o dia funesto de Heitor
para o negro Hades; Apolo, nessa hora, ao Troiano abandona.
(ILÍADA, CANTO XXII: V.208-13)
133

Não raro, a figura de Zeus é associada ao destino, mesmo havendo entidades

específicas que cumprem a função.12

12
Na mitologia grega três entidades primordiais eram associadas ao destino, à Moira (Moi~ra).
Em caverna escura e isolada, viviam as Moiras, também chamadas de Parcas e associadas às Queres. De
acordo com Hesíodo, na Teogonia, elas eram três irmãs, filhas da Nýx, a Noite (Nuvx), uma das forças
mais antigas do universo. Outras tradições entendem que são filhas de Zeus e Têmis. Sérias e quietas, as
Moiras provocavam medo em mortais e tinham o respeito dos deuses, pois eram as responsáveis pelo
destino de todos, sendo que nem mesmo o poderoso Zeus atrevia-se a interferir. Cloto (Klwqwv) era a
fiandeira. Seu nome deriva de klothein (klwvqein): “fiar e fazer andar a roda.” Aparenta ser a menos velha
das três. Sentada no chão, ela ficava trançando cuidadosamente os fios do destino de cada criatura, tão
logo nascesse. Amores, amizades, família, encontros e desencontros, tudo planejado por ela. Depois de
terminar sua parte, passava os fios para as mãos de Láquesis (Lavcesiς), a mediadora. O nome dessa
Moira deriva do verbo lankhánein (lagcavvnein): “sortear, tiro a sorte”. (cf. BRANDÃO, 1997: 141) Ela
examinava tudo e decidia qual a melhor hora em que todas as coisas deveriam acontecer. Depois, os fios
chegavam às mãos de Átropos ( !Atropoς), a cortadora. Etimologicamente o nome deriva de
trépein(trevpein) ou troopoo: “voltar”, sendo que o a — alfa privativo —, tem o significado de não, de
negativo ou oposto. Então, tem-se: “a que não volta atrás ou inflexível.” (cf. BRANDÃO, 1997: 141) Ela
avaliava cada vida e determinava, com justiça, o dia em que deveria morrer, cortando o fio trabalhado
pelas irmãs. Aparecia como sendo a mais idosa das três, trajando púrpuro e negro, portando pequena
foice ou tesoura.
Hesíodo também menciona o Destino (Movroς), entidade primordial, filho do Caos e de Nýx.
Misterioso e poderoso, seus decretos gravados em bronze poderiam ser adiados, mas nunca anulados
pelos deuses. É representado, na forma antropomórfica, como cego e soturno, sendo tão obscuro e
sombrio quanto a sua progenitora. Alguns mitólogos assinalam que as Queres (Kh~reς) são entidades
distintas das Moiras. Na verdade, são emissárias das Parcas. Aparecem como entidades horrendas,
aladas e com dentes compridos e pontudos. Dilaceram e bebem o sangue dos cadáveres antes de arrastar-
lhes a alma para o Hades. Abrem o caminho para outro emissário das Moiras, Tânatos(Qavvnatoς), ceifar
a vida da vítima. É comum as Queres e Tânatos dividirem um cortejo, onde as criaturas aladas aparecem
cercando um ser de rosto seco, pálido, desfeito e de órbitas ocas, coberto por um véu e com uma foice na
mão. Possuía, ainda, um coração de ferro e entranhas de bronze. No entanto, principalmente na Ilíada,
não aparece em sua forma antropomórfica. Importante, no entanto, é destacar o estudo feito por Junito
Brandão, no primeiro volume de sua série intitulada Mitologia. Remetendo-se à escatologia presente na
Ilíada, o estudioso clássico esclarece que nos poemas homéricos a palavra Moira significa quinhão,
metade, parte ou lote. Há um sinônimo, um equivalente ao vocábulo em arcado-cipriota (um dos dialetos
de Homero): Aîsa(Aisa), associado especificamente ao ato de fiar. Por não terem sido antropomorfizadas
em nenhum momento do épico, tem-se a impressão que as Moiras pairam soberanas, acima dos deuses e
dos homens, e suas decisões são irrevogáveis. Tal idéia é questionada por alguns helenistas. Acredita-se
que, nos épicos homéricos, a Moira se confunde com a vontade dos deuses, principalmente com a vontade
de Zeus. Em vários momentos tem-se a impressão de que Zeus é nitidamente usado como equivalente à
Moira ou ao Fado, como observa Junito Brandão: “O que se pode concluir, salvo engano, é que, por
vezes, Zeus se transforma em executor das decisões da Moîra, parecendo confundir-se com a mesma.”
(cf. BRANDÃO, 1999: 142).
A idéia de uma Moira agindo como o destino de todos os mortais se desenvolveu de várias
maneiras. Na Antigüidade Clássica, o destino se projetou na representação de três fiandeiras, pois a
concepção de vida e morte parece ser inerente à função de fiar. Na obra de Homero, associa-se o fio à
vida humana, simbologia significativa nos versos do poeta. O nascimento tem muito a ver com a função
de Moira. Freqüentemente Cloto, Láquesis e Átropos aparecem junto a Ilítia, deusa que ajuda e zela
pelos partos. Se se considerar a origem latina, Parca vem do verbo parere, “parir, dar à luz”, o que ajuda
a aproximar as Moiras do fenômeno do nascimento. Nota-se que a entidade Tique (Tuvch), a Sorte, o
Acaso, muito se assemelha às Moiras. Na mitologia romana é chamada de Fortuna: “a que ‘pilota’ a vida
dos homens”, ou: “a deusa que presidia a todos os acontecimentos, e distribuía os bens e os males
conforme seu capricho.” (SPALDING, 1965:108) A Sorte, assim como o Destino, era representada como
sendo cega. Fortuna era vista como uma mulher calva, cega ou com um pano cobrindo os olhos. Na
maioria das vezes, entidades relacionadas ao destino são representadas com imagens femininas, já que o
ato de tecer, urdir ou fiar ficava a cargo das mulheres. A influência helênica fez com que outras entidades
femininas fossem associadas ao destino, em diversas culturas e sociedades.
134

Na tragédia, o destino tende a aparecer identificado como o pai dos deuses,

conforme esclarece Johnny José Mafra:

Na tragédia grega, a Moira identifica-se com Zeus. Exprime o fado de cada


um e é a expressão da essência divina, particularmente na manifestação de
dois atributos: justiça e providência. (MAFRA, 1994:6)

Mafra ainda pontua que o fato de Zeus ser associado à onisciência e, de ter o

conhecido epíteto de pai dos deuses, atestam a proximidade com o vocábulo Moira

(Moi~ra), que em grego significa parte ou lote, e “deste sentido deve ser passado, por

extensão, a designar aquilo que a cada um cabe em sorte na vida. A Moira, então, é um

“poder ‘inacessível’, ‘eterno’, ‘irrevogável’ e muitas vezes ‘duro’, que ‘fixa o teor e o

decurso da vida humana.” (MAFRA, 1994: 16).

Mesmo a crença clássica sendo politeísta e, por isso, contendo deuses cumprindo

inúmeras funções, nota-se que Zeus detém, muitas vezes, uma ampla atribuição e

parcelas das funções das outras entidades divinas. Para alguns estudiosos, tais acúmulos

já indicavam um teor monoteísta na crença clássica, teor que predominaria mais tarde.

No entanto, o fator que mais indica a onisciência de Zeus é a sua associação com

o fenômeno criador como um todo. O pensamento aristotélico enfatizava que Zeus

recebia o seu nome de toda a natureza e, era ele mesmo, a causa de tudo. Para o

estudioso Hélio Aristides, Zeus é o autor do universo: o céu, a terra e tudo que nele se

encontra contido. Já outros esclarecem que Zeus é o próprio criador do cosmo e, ao

mesmo tempo, seu pai e protetor.

A onipotência, onipresença e onisciência de Zeus talvez sejam as características

que mais o aproximam da função de destino, da moira. A onipotência ajuda a imprimir

o irrevogável, a rigidez contida no destino de cada um. “Por esse modo há de ver quanto

sou, mais que todos, potente.” (ILÍADA, CANTO VIII: v. 17 - 18) ou “por mais esforço
135

que nisso apliqueis, impossível a todos vós há de se arrastar a Zeus grande, o senhor

inconteste.” (v. 21 - 2) Realmente, a força de Zeus não era contestada e fragmentos da

obra de Ésquilo confirmam a amplitude de sua força quando dizem que Zeus é o éter,

Zeus é a terra, Zeus é o ar e Zeus é o todo e tudo aquilo que representa o mais elevado.

Para Homero, a rapidez com que Zeus se movia de lugar para lugar indicava a sua

onipresença e onisciência e a capacidade de estar em qualquer lugar, em qualquer hora,

para decidir o destino de qualquer ser.

Com a figura de Zeus devidamente associada ao destino, faz-se agora uma

leitura do Grande Sertão: Veredas, verificando o destino dentro da linha narrativa da

história.

Já na página dezesseis, Riobaldo se apresenta como um menino que será guiado

pelo fio da moira. Se se associar a figura de Zeus com o destino, logo adiante se ouve o

trovão, marca registrada do deus, e a moira se envolvendo no enunciado: “— ouvir

trovão de lá, e retrovão”. (GS:V, 24).

A presença do destino ainda se torna mais forte quando Riobaldo expõe ao

narratário: “O senhor pense outra vez, repense o bem pensado: para que foi que eu tive

de atravessar o rio, defronte com o Menino?” (GS:V, 86). Aí, se vê o inevitável, uma

angústia do saber que permeia o pensamento trágico; seria tudo diferente se Riobaldo

não tivesse encontrado o menino, mas era o seu fado, um caminho já tecido e costurado.

Esta vereda não pôde ser evitada por Tatarana. Não pôde ser escolhida. Algo mais forte

o fez caminhar na trilha estabelecida. Mais adiante, o narrador reflete sobre os fatos e

como certos caminhos são mesmo entrelaçados.

O trecho segue:
136

Se não tivesse passado por um lugar, uma mulher, a combinação daquela


mulher acender a fogueira, eu nunca mais, nesta vida, tinha topado com o
Menino? — era o que eu pensava. Veja o senhor: eu puxava essa idéia; e
com ela em vez de me alegre ficar, por ter tido tanta sorte, eu sofria o meu.
Sorte? (GS:V, 110).

O questionamento de Riobaldo denota que não há sorte se realmente um

caminho é traçado pelo destino, e que um mortal está longe de ter o poder de regê-lo.

Em certas ocasiões, Riobaldo levanta a hipótese de ter sido avisado de certos

acontecimentos da história. Mas o próprio protagonista questiona-se:

E grande aviso, naquele dia, eu tinha recebido; mas menos do que ouvi, real,
do que eu tinha de certo modo adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu acho
que, quase toda a vez que ele vem, não é para se evitar o castigo, mas só
para se ter consolo legal, depois que o castigo passou e veio. Aviso? Rompe
ferro! (GS:V, 137-8).

O trecho destacado acima dá a idéia de inevitabilidade dos fatos que sucedem na

narrativa. Até os afetos de Riobaldo se mostram regidos pelo destino. Diadorim,

incomodado com os sentimentos do narrador por Otacília, pergunta em um ataque de

ciúme: “Riobaldo, você está gostando desta moça?” (GS: V, 150). Riobaldo nega

revelando a dualidade de seus sentimentos, e demonstrando não saber dos fatos que lhe

reserva o destino. Tanto que Diadorim reitera, com uma indagação ainda mais

enigmática, sem respostas: “Você sabe de seu destino Riobaldo?” O protagonista deixa

claro que não controla a moira e que forças sobrenaturais são detentoras deste controle.

“- ‘Se nanja, sei não. O demônio sabe... ’ — eu respondi — ‘Pergunta’...” (GS: V, 150)
137

O próprio Riobaldo não sabe a razão de ter usado o nome do demônio naquela

hora, mas entende-se que o destino rege a sua vida, tecido por forças que fogem ao

controle do homem.

Com esta percepção, Riobaldo se entrega à rede do destino e vive seus relatos à

maneira que estabelecem as divindades, Zeus, especificamente, o detentor das decisões,

da balança. “Mas levei minha sina.” (GS: V, 239) diz o narrador, em um exemplo de

aceitação dos caminhos que para ele foram reservados.

Aceitando a figura de Zeus como o destino, notou-se que a sua presença se

revela variadamente no enunciado. Todas as vezes que o raio ou o trovão são

mencionados faz-se uma associação presencial de Zeus na narrativa, pois “Zeus preside

não só as manifestações celestes como provoca a chuva, lança o raio e os relâmpagos.”

(cf. GRIMMAL, 1999: 469)

Interessante notar como o destino marca a história de Rosa. Em vários trechos,

todas as vezes que o som do trovão é descrito, há indício da ação do destino no enredo.

Curioso, mesmo, no entanto, é o léxico criado a partir de uma onomatopéia: “Zúos”.

Esta criação lexical lembra muito a grafia de Zeus, e se se voltar para a pronúncia do

original grego, uma semelhança fonética com o vocábulo é notada. O léxico parece

querer reproduzir o som das balas ricocheteando durante as batalhas. É assim em uma

das vezes em que a onomatopéia aparece: “Os bebelos se desabelhavam zuretas,

debaixo de fatos machos e zúo de balas.” (GS: V, 188) Mais próximo de uma

associação com Zeus está o próximo trecho. A aproximação envolve o destino, visto

aqui como a presença de Zeus na narrativa. O trecho segue transcrito na íntegra:

Só foi um tempo. Só que alargou demora de anos — às vezes achei; ou às


vezes também, por diverso sentir, acho que se perpassou, no zúo de um
minuto mito: briga de beija-flor. Agora, que mais idoso me vejo, e quanto
138

mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor — se transforma, se


compõe, em uma espécie de decorrido formoso. (GS: V, 260)

As reflexões acerca do destino se intensificam na continuação:

Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das
beiradas mal nem vejo... Quem me entende? O que eu queria. Os fatos
passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o poder do presente é
que é furiável? Não. Esse obedece igual — e é o que é. Isto, já aprendi. A
bobeia? Pois, de mim, isto o que é, o senhor saiba — é lavar ouro. Então,
onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade? (GS: V,
260)

No “zuo de um minuto mito”, o destino tomou um rumo e o narrador, já na sua

velhice, conta uma história que muito induz à reflexão. O andar contínuo do rio e as

árvores desfocadas de seu leito. A vida passa de uma maneira quase impensada e o

destino dita os caminhos. A percepção de uma verdade, no entanto, está longe do

alcance do narrador. Está longe do alcance de todos nós.

A onomatopéia se aproxima da grafia de Zeus em um trecho próximo do final do

romance:

Dá, deu: bala beija-florou. Zúos — ao que rachavam ombreiras das janelas,
estraçalhavam, esfarelavam fasquia. Umas que caíam quase como colhidas,
no assoalho do chão — tinham dansado de ricochete — e ficavam para lá,
amolgadas, feito pedaço de cano, ou aveladas de maduras. Essas podiam se
esfriar, de vagarinho. Perdiam sem valia aquele feio calor, que podia ter sido
a vida de uma pessoa. (GS: V, 446)
139

O som da bala, uma reprodução parecida com o som do trovão, manifesta-se,

revelando o destino da narrativa de Grande Sertão: Veredas. O narrador ouve o som do

destino se expondo. A batalha do Paredão marca quem vai e quem fica no mundo.

Como o trovão de Zeus, fulminando aqueles que ousaram desafiar o deus e burlar os

caminhos, já previamente traçados por ele.

O trovão segue marcando a narrativa e as reflexões de Riobaldo perante o

destino. Reflexão muito evidente neste trecho:

Com trovôo. Trovoadão nos Gerais, a ror, a rodo... Dali de lá, eu podia
voltar, não podia? Ou será que não podia, não? Bambas asas, me não sei.
Bambas asas... Sei ou o senhor sabe? Lei é asada é para as estrelas. Quem
sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma — mas que a gente
não sabe em que rumo está — em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?
(GS: V, 410)

Claramente o narrador de Rosa reflete sobre o destino, como este age no

encadeamento de nossas vidas. O destino escreve-se com uma certa inconstância e os

caminhos são escolhidos em meio a oscilações. O caminho, ou andamento do destino,

se parece muito com o ato de tear das Moiras. Ao mesmo tempo em que Cloto fia e

Láquesis distribui, Átropos escolhe o momento em que vai cortar. Até este momento do

corte, o fio distribuído já tomou vários rumos, transformando aquele momento certo do

destino em algo que ainda pode ser moldado. Riobaldo refere-se ao destino como algo

em constante reforma, mas ao mesmo tempo afirma que: “A morte de cada um já está

em edital.” (GS: V, 440) ou: “meus destinos foram fechados.” (GS: V, 220).

A presença do destino provoca o narrador que, em constantes fluxos de

consciência, menciona o complexo fenômeno. Ele descreve uma cena que, mais uma

vez, inspira uma reflexão sobre o destino.


140

Um homenzinho distante, roçando, lenhando, ou uma mulherzinha fiando a


estriga na roca ou tecendo em seu tear de pau, na porta de uma choça de buriti
toda. Outro homem quis me vender uma arara mansa, que a qual falava toda
palavra que tem á. Outra velha, que estava fumando o pito de barro. Mas ela
enrolou a cara no chale, não se ajuizaram os olhos dela. (GS: V, 289)

Nessa descrição da localidade que o narrador chama de Abaeté, vê-se uma cena

que muito lembra a ação de tear das Moiras. A roca, símbolo do ato de tecer, anuncia

que em toda instância, em todos os caminhos, o destino está presente. A outra velha,

que faz questão de cobrir os olhos para que estes não sejam identificados, lembra a

figura de Átropos, inflexível, cortante, decidindo o fim que todo mortal um dia irá ter.

Zeus age como o destino no trágico. Exercita essa função em muitos trechos da

narrativa épica, em muitos trechos da Ilíada, especificamente. Interessante notar que sua

presença se estende até o sertão das Gerais.


141

7 – OLHOS DE DIADORIM E ATENA

Caminhando por entre as veredas rosianas e homéricas, nota-se que muitas

personagens se perfilam. Um exemplo é a relação entre a personagem Diadorim, do

romance de Rosa e Atena, entidade da mitologia clássica, que aparece como

personagem marcante na Ilíada. 13

7.1. Diadorim e Atena: Dualidades

O primeiro fator que chama a atenção para um elo comparativo entre a entidade

mitológica grega e a personagem rosiana, é o teor de ambivalência: ambas têm uma

identidade masculina e outra feminina.

Atena representava a guerra feita com estratégia, entre outras tantas funções. O

ato de guerra, na Antigüidade Clássica, era presidido somente pela figura masculina.

Atena vestia-se como guerreiro, já nascera com elmo, de escudo e lança em mãos. Ao

13
Atena ( *Aqhna~~) era deusa da sabedoria, da guerra estratégica, das ciências e das artes. Dedicou-se
mais às artes e dizem que todas foram por ela inventadas. Era protetora dos tecelões e bordadeiras. Filha
de Zeus e Métis. Quando Zeus travava uma grande batalha contra os gigantes, sua primeira esposa ficou
grávida. Seguindo conselho de Urano e Geia, o deus a engoliu, pois foi-lhe dito que se a consorte tivesse
uma filha e esta um filho, o descendente arrebataria o trono do Olimpo. Algum tempo depois sentiu uma
insuportável dor de cabeça. Chamou Hefestos que, atendendo ao pedido do deus, abriu-lhe o crânio com
uma marreta. De sua cabeça saiu Atena, vestida e armada, dançando uma moda guerreira: “ele da própria
cabeça gerou a de olhos glaucos Atena terrível estrondante guerreira infatigável.” (cf. HESÍODO v. 925).
Era representada de elmo, com a égide em mãos ou sobre o peito, um escudo e uma lança. Levava sempre
consigo a coruja, pois a inteligência do pássaro ultrapassava a escuridão e penetrava o enigma escondido
em tudo. Consagravam-lhe, também, o galo, a serpente e a oliveira. Inventou o óleo de oliva e introduziu
a oliveira na Grécia. Certa vez, o rei Cécrope procurava um protetor para sua recém fundada cidade.
Atena e Poseidon ofereceram-se, cada um doando uma prenda. O deus dos mares fez surgir do chão água
límpida e um cavalo. A deusa fez crescer uma oliveira. O rei consultou seu povo e Atena venceu. A
cidade, então, recebeu seu nome. Inventou a quadriga, o carro de guerra. Ajudou na construção da Argo.
Protegeu Odisseu na Odisséia, assim como outros heróis — Héracles, Jasão, Perseu e Belerofonte. Lutou
a favor dos gregos na Guerra de Tróia. Foi desafiada pela tecelã Aracne para um duelo. A tecelã teceu as
mazelas dos deuses e Atena, irada, rasgou a tela da rival. Envergonhada, Aracne se matou. Atena
apiedou-se da pobre e a transformou em aranha, que está sempre tecendo. Seus outros nomes eram:
Minerva: nome latino; Palas, depois de ter vencido o gigante Palas em batalha; Erganéia, Prómacos,
Alalcomenéia, Hípia, Boarmia, Pronoia e Boulaia.
142

contrário da maioria das entidades femininas da mitologia grega, Atena não se vincula

ao lar ou aos prazeres amorosos. Mostra-se exímia guerreira, dotada de astúcia e

inteligência. As estratégias de Atena possibilitam aos gregos vencerem Tróia. Suas

táticas e intervenções foram cruciais para o desfecho. Reside, na figura de Atena. um

vínculo direto com o pensamento lógico de Zeus. Sendo o braço direito do pai, ela

representa, juntamente com ele, “a vitória do pensamento lógico, masculino, sobre o

mundo tenebroso das mães.” (cf. LEMINSKI, 1999:41) Para Jung, o pensar feminino é

realizado por uma mulher através de seu animus masculino, diferente do ego feminino.

O ícone de Atena mescla-se com homens e auxilia Aquiles e seus companheiros. Além

de proteger os heróis individualmente e ser a deusa olímpica mais próxima de Zeus,

Atena nitidamente tomou partido do mundo patrilinear e representa atitudes masculinas

em seu comportamento. Devereux, mitólogo conceituado, esclarece:

Essas considerações preliminares me permitem abordar agora uma


explicação sobre a natureza de Atena, proposta pelo estóico Crisipo.
Segundo ele, a tradição que fazia essa deusa nasceu do crânio de Zeus
significa que Atena é a voz de Zeus. (DEVEREUX, 1990:153)

Não se pode deixar de notar que a personagem rosiana também se reveste de

uma postura masculina. Para dizer a verdade, Diadorim se veste em Reinaldo e assume

a aparência física masculina. Mescla-se em meio aos jagunços e age feito um deles, um

guerreiro, tal qual Palas.

O primeiro a atentar para uma possível etimologia de Diadorim foi José Carlos

Garbuglio, que admitiu “a hipótese de dia + doron, ou através + dádiva, dom, o que não

exclui a possibilidade de outras significações, como di (dois) + adorar, ou duplo

adorado” , que muito remete à figura dualística de Atena e ao seu status divino. Para
143

João Adolfo Hansen, autor de O O A Ficção da Literatura em Grandes Sertão:

Veredas:

Dizendo seu nome secreto, verdadeiro, Diadorim indica o duplo, e


duplamente, pois o nome verdadeiro é também metáfora dele mesmo como
mulher (Diadora – Deodora – Deodorina), num processo de ocultação, o que
seu nome significa para Riobaldo (/homem/) não corresponde àquilo que na
aparência está designado (homem): a significação mente e encobre, pelo
menos, um outro sentido literal figurado: / mulher /. (HANSEN, 2000: 131)

Diadorim se mescla ainda mais com Atena quando suas atitudes masculinas

intercalam-se com sua porção feminina, especialmente quando Riobaldo descreve sua

beleza, supostamente masculina, mas incutida com teor feminino. A não-confirmação

do gênero do nome de Diadorim remete ao andrógeno, que nas culturas antigas encerra

em si, ao mesmo tempo, a figura do masculino e feminino, e não um ser híbrido de sexo

indeterminado, fato que contribui ainda mais para a associação feita com Atena.

Outro fator que nos remete à comparação aparece quando o vaqueiro-poeta

Siruiz menciona, em sua canção, “a moça virgem”, que potencialmente refere-se em

sentido figurado a Diadorim. Pierre Grimal, outro mitólogo, confirma no verbete de seu

dicionário que “Atena permaneceu virgem.” A castidade de Atena é para dedicar-se

mais aos valores da guerra e às artes. Difere-se da postura imaculada de Ártemis e

Héstia, que evitam a companhia de homens, enquanto Atena se vê sempre cercada por

eles. Em vez de se separar ou retirar-se, ela apreciava a ação e o poder masculino, como

explica George Devereux, novamente:

Atena como assistente de Zeus é elemento comum na mitologia grega; é a


filha preferida de Zeus. Esta antiga deusa palácio miceniana aceitou
completamente o patriarcado do Olimpo; está sempre a favor do homem, a
144

não ser no que se diz respeito ao casamento. Perfeitamente ligada a seu pai,
ela opta pelo celibato. (DEVEREUX, 1990: 144)

A virgindade de Atena vai ao encontro do estado celibatário de Diadorim, que

abdica do sexo, do amor, da forma feminina para tornar-se a figura do pai e acompanhá-

lo na vida de jagunço: “... nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para

muito amar, sem gozo de amor”. (GS:V, 458) Riobaldo, em momento anterior à morte

de Diadorim, descreve essa visão:

O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de


moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da
boca descorados no branquiço, os olho dum terminado estilo, meio abertos
meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era destino de
uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... e tantos anos já se
passaram. (GS:V, 147)

Outro momento que alude à personagem também vem descrito:

o que eu queria saber não era próprio do Siruiz, mas da moça virgem, moça
branca, perguntada, e dos pés-de-verso como eu nunca tive poder de formar
um igual. (GS:V, 136)

Seguem, no próximo item, argumentos sobre a descrição física das personagens,

que muito contribuem para este estudo.


145

7.2. Olhos verdes de Diadorim, glaucos os de Atena

Os atributos físicos de Diadorim e de Atena coincidem em alguns aspectos.

Atena é geralmente descrita como tendo um aspecto calmo, “mais majestosa do que

propriamente bela” (cf. GRIMAL, 1997: 53), magnitude semelhante às descrições feitas

por Riobaldo: “mas Diadorim sendo tão galante moço, as feições finas caprichadas.”

(GS:V, 123) Diadorim tem olhos verdes, “...olhos verdes, semelhantes grandes, o

lembrável das compridas pestanas...” (GS:V, 107) Olhos que Riobaldo ainda descreve,

por várias vezes, durante a narrativa:

Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele,
ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto
esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão
impossível.
(GS:V, 38)

Torna-se pertinente outra associação com Atena, já que a deusa é

constantemente referida como a deusa de olhos glaucos, ou como afirma Grimal, “deusa

de olhos garços” ou “deusa de olhos verde-mar” como outros tradutores tendem a

escolher.

Glauco, adjetivo usado como epíteto de Atena, vem do original grego Glaukiavw

(Glaucos) = ter olhos de reflexos azuis ou Glauk-ovmmatoς (glauci-ommatos) = de olhos

azuis ou Glaukovς (glaucos) = brilhante, cor de glauca, de verde pálido, entre o verde e o

azul. A deusa é referida desta forma em diversas traduções. Em versões inglesas, como
146

as de Pope e Lattimore, o vocábulo é traduzido como cinza e Atena, então, é chamada

de deusa de olhos cinza, ainda lembrando o brilho metálico de um olho recessivo.

Interessante notar que tal característica descrevia certa enfermidade da entidade, para

não dizer uma rejeição. Luciano de Samósata relata o nascimento de Atena, chamando a

atenção para esse peculiar fato:

Hefesto: Que faço eu grande Zeus? Venho por ordem vossa, armado
com um machado afiado, capaz de partir qualquer pedra, se houvesse
necessidade.
Zeus: Ótimo Hefesto! Parta-me, então, o crânio.
Hefesto: Quereis submeter-me a uma prova, ou estais louco? Dizei o
que hei de fazer.
Zeus: Já te disse, parta-me o crânio; bata com toda a força e sem
demora; não posso viver com as dores que me dilaceram o cérebro.
Hefesto: Acautela-vos Zeus. Quem sabe se não vamos cometer uma
asneira? O meu machado é afiado, fará com que te corra o sangue e não te
libertar à guisa de Lucina.
Zeus: Bata Hefesto! Nada temas. Sei o que quero.
Hefesto: Bato, mas contra a vontade. Que me resta, se assim
ordenais... Que estou vendo? Uma jovem armada da cabeça aos pés! Que dor
de cabeça não devia ser a vossa, Zeus! Não é de assustar a vossa inquietude,
pois trazíeis na meninge uma jovem desse porte, ainda por cima armada.
Tínheis na cabeça um verdadeiro campo. Olha como salta! Ei-la que dança a
pírrica, agita o escudo, brande a lança, e está dominada pelo entusiasmo. O que
é mais estranho, é que, de súbito se tornou bela e pronta para casar. É verdade
que tem olhos cor-da-glauca, mas o elmo compensa esse defeito. Zeus, como
pagamento pelo serviço que vos prestei, ceda-ma por esposa.
Zeus: Tu me pedes o impossível, Hefesto; ela quer permanecer virgem
para sempre. Não me oponho ao vosso desejo.
Hefesto: Quero-a. O resto fica por minha conta. Vou levá-la.
(LUCIANO DE SAMÓSATA)

Não é raro ver vocábulos como glaucos, ter olhos de reflexos azuis ou olhos

glaucos, de olhos azuis ou glaucípede, que quer dizer brilhante, cor de glauca, de verde

pálido, entre o verde e o azul nas descrições de Atena. Haroldo de Campos “transcria” o

vocábulo para “brilho de olhos azuis”. Já Robert Fagles fala de “olhos cinza claros”, ou

o precioso “olhicerúlea” da tradução de Odorico Mendes, remetem a uma cor perdida


147

entre o azul e o verde, uma cor que só uma divindade poderia conter nas íris... Nuanças

claras, se se comparar com os olhos verdes de Diadorim.

Alguns tradutores optam por olhos de coruja que, ainda sim, remetem a glauco,

pois o substantivo feminino de coruja vem a ser Glauvx(glauxis), muito próximo do

adjetivo mencionado anteriormente. A coruja é sempre associada a Atena e aparece com

freqüência nas representações icônicas da deusa, pois a inteligência do pássaro

ultrapassava a escuridão e penetrava o enigma escondido em tudo. Surpreendem, na

narrativa rosiana, menções significativas à coruja, algumas vezes associadas a Diadorim

diretamente; outras, fazendo uma alusão à astúcia de um olhar enigmático.

As descrições contidas no Grande Sertão: Veredas remetem aos símbolos

associados às corujas. Pode-se observar que a coruja remete ao conhecimento racional,

pois a luz lunar, mais freqüente quando age em seu habitat e a leva a executar seus

costumes de predador, é a luz vinculada ao conhecimento racional, ao contrário da luz

solar, que se vincula ao conhecimento intuitivo, representados na mitologia grega por

Hélio ou Apolo. Associada a Atena, a coruja simboliza a clarividência; a ave de Palas é

a reflexão que domina um mundo de trevas.

As origens da coruja na mitologia grega envolvem dois lados da representação

do pássaro, em estudos propostos pelo simbolismo. Ascálafo era um fiel servo de

Hades, por isso o deus o encarregou de vigiar sua esposa Perséfone. Quando Deméter

foi aos Infernos reclamar a filha, sabia, pois ouvira da própria boca de Zeus, que seu

rebento não poderia comer nada no reino dos mortos. A deusa teria recuperado a filha se

Ascálafo não tivesse delatado que a vira ingerindo três bagos de romã. Para punir o

delator, Deméter lançou-lhe no rosto água do Flegetonte e o metamorfoseou em coruja.

Foi aí, então, que Atena tomou a ave sob sua proteção, porque ela vigiava tudo que se

passava à noite. No entanto, nas sociedades orientais e ocidentais, considera-se a coruja


148

como uma ave de mau agouro, com uma reputação de ladra e dissimulada. O fato de um

delator ter sido transformado em coruja confirma tal constatação. Ao mesmo tempo, em

muitas culturas, a palavra coruja remete ao belo, ao distinto, ao perfeito e endossa o

perfil de guardiã, detentora da sabedoria de maneira pensativa e cismadora. Os

significados ambíguos da coruja são demonstrados na narrativa rosiana. Sua ação como

ave noturna, remetendo ao medo e à feiúra, aparecem na história. Para descrever os

olhos de Hermógenes, Riobaldo diz: “O Hermógenes, puxando, enxergava por nós. Que

olhos, que esse, descascavam de dentro do escuro qualquer coisa, olhar assim, que nem

o de suindara.” (GS:V, 157)

A associação com Atena é mais evidente quando a coruja aparece como vetor de

sabedoria, astúcia e beleza. Descrições mais pormenorizadas ajudam a fundamentar a

questão:

Viver... O senhor já sabe: viver é etcétera... Diadorim alegre, e eu não.


Transato no meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os
pássaros que bem-me-viam todo e tal tempo. Gostava de Diadorim, dum
jeito condenado; nem pensava mais que gostava, mas aí sabia que já gostava
em sempre. Ôi, suindara! — linda cor... (GS:V, 74)

Nota-se que a coruja sempre rodeia o enunciado quando há uma menção a

Diadorim. O perfil de Atena em Diadorim ressalta sua caracterização e sua atitude na

narrativa. A coruja vai ao encontro de toda representação de Atena que, por sua vez

,encaixa-se com a formação da personagem rosiana. Atena é a deusa da sabedoria, é


149

virgem, protetora das crianças, inspiradora das artes e da paz, qualidades que se

manifestam quase que inteiramente em Diadorim.14

O “verde” rosiano e o “glauco” homérico são uma cor de enunciado, inesgotável

em suposições, imprecisos. O par de íris jade de Diadorim são o verde do sertão, verde

pálido, estourado pela forte luz das Minas Gerais. O verde de Atena é o verde do

mediterrâneo, de algas, corais. O verde rosiano é todo ambientado no buriti, no rio, na

“vereda”, juntamente com outras localidades citadas. Ainda se associam os olhos

esverdeados de Diadorim com uma constante transformação, metamorfose, metáfora do

cenário que se caracteriza por nunca manter uma cor só, voltando, assim, à impressão

enunciativa, que não traduz com exatidão a cor dos olhos da personagem rosiana.

Destacam-se os “os olhos verde-mar” de Atena uma outra vez, usados por muitos

tradutores, e que anunciam-se, também, em versos da narrativa rosiana. Atenta-se:

14
Chama-se a atenção para outra representação da deusa Atena na mitologia grega, a
representação matriarcal. Percebe-se que tal função, apesar de não ser a principal, também é associada a
Palas.
A deusa pode ser vinculada à fertilidade do solo, à Grande Mãe, sendo que em sua etimologia,
como notou Junito Brandão, estão atta do indo-europeu, significando,mãe, remetendo muito ao awaia ou
bagia (bavgia), tendo sentido equivalente de mãe ou ama, aia, em grego. Atena seria “uma ‘Grande Mãe’,
certamente originária de Creta.” (cf. BRANDÃO, 1999: 136)
Mesmo Atena não sendo divindade da terra, pois, Zeus “da própria cabeça gerou a de olhos
glaucos Atena terrível estrondante guerreira infatigável.” (cf. HESÍODO v.925), e agindo como a “voz de
Zeus” (cf. DEVEREUX) sendo a única divindade a ter acesso à égide e ao trovão, pertencentes ao Zeus
pai, Atena defende suas acrópoles como uma deusa da fertilidade, associada principalmente à oliveira, e
ao seu fruto, a oliva, que fez brotar da terra na célebre disputa contra Poseidon. Entende-se o seu vínculo
com uma representação maternal, principalmente se se abordar o mito de Erictônio. Mitólogos admitem
que Erictônio é gerado a partir de Atena. Basta verificar o relato para estabelecer a associação. Certa
feita, Atena pediu um lote de armas para o deus ferreiro Hefesto. O deus, abandonado mais uma vez por
Afrodite, sua esposa, sentiu-se inflamado de desejo pela convicta entidade virgem. O deus coxo tentou
forçar relações carnais com Atena que, hábil guerreira, se desvinculou. No entanto, Hefesto chegara a
ejacular na coxa da deusa, que limpou o sêmen com um tufo de algodão e atirou-o ao chão. Desta reação
espontânea nasceu Erictônio. O contato do sêmen com duas representações da terra. A semente só é
fertilizada ao entrar em contato com a pele de Palas, apta a fecundar, como a terra, como a mãe.
Utilizando-se de uma percepção edipiana, já percebida por Márcia Marques de Morais em A
Travessia dos Fantasmas: Literatura e Psicanálise em Grande Sertão: Veredas, há momentos em que
Riobaldo se remete aos olhos de sua mãe ao olhar fundo nos olhos verdes de Diadorim: “Os afetos.
Doçura dos olhos dele me transformou para os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do
mundo”. (GS:V, 115) ou “ Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice,
querendo contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender — e acho que é por isso que a gente
morre.” (GS:V, 219) Mais uma vez, as personagens rosianas e homéricas se encontram, ao serem
perfiladas.
150

Burti, minha palmeira,


lá na vereda de lá:
casinha da banda esquerda,
olhos de onda do mar... (GS:V, 42)

A imprecisão do verde leva o narrador sertanejo ao mar, longe dali. Mesmo o

sertão sendo “do tamanho do mundo”, Riobaldo recorre ao mar distante, pois o verde do

sertão ainda não fora suficiente para descrever o verde volátil da íris de Diadorim, que

“mudava sempre, como a água de todos os rios.” (GS:V, 219) ou “Diadorim, rios

verdes” (GS:V, 235) Se o sertão é do tamanho do mundo, o sertão é mar, olhos verdes

“onda do mar”, os olhos de Atena verde-mar. O mediterrâneo todo ali, o mundo ali nos

olhos raros da deusa da saberdoria. Íris de Diadorim, metáfora do sertão, do buriti, da

pedra que lhe ofertaram como regalo. Os olhos de Diadorim são o mundo, um verde

apaziguador, um meio termo entre o gélido e criogênico azul e o coriscante e

hemorrágico vermelho. Olhos de sertão, de diva, de mãe. Verdes os de Diadorim,

glaucos os de Atena. Olhos de sertão, olhos da Hélade — olhos do mundo. Gustav

Klint pintou sua Palas Atenas, de olhos acinzentados, quase de cristal; Bruna Lombardi

emprestou seus olhos claros para representar Diadorim. Mas, no enunciado, verde e

glauco continuam inesgotáveis.


151

7.3. Diadorim e Joca Ramiro/Atena e Zeus

O debate desta questão pode se estender ainda mais se se analisar a relação de

Atena e Zeus, perfilando-a com a relação de Diadorim e Joca Ramiro. A imponência da

descrição física de Joca Ramiro pode se relacionar com a figura icônica do supremo

deus do Olimpo. A descrição de Riobaldo acerca do seu chefe aponta essa semelhança:

Drede Joca Ramiro estava de braços cruzados, o chapéu dele se desabava


muito largo. Dele, até a sombra, que a lamparina arriava na parede, se
trespunha diversa, na imponência, pojava volume. E vi que era um homem
bonito, caprichado em tudo. Vi que era homem gentil. (GS:V, 91)

Uma descrição detalhada enaltece ainda mais a figura do chefe dos jagunços e o

aproxima de Zeus, tanto fisicamente quanto espiritualmente:

E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco — cavalo que me
olha de todos os altos. Numa sela bordada, de Jequié, em lavores de preto-e-
branco. As rédeas bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um
homem de largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como
é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos, anelados? O chapéu bonito?
Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa em que se
reparar. A gente olhava, sem pousar os olhos. A gente tinha até medo de
que, com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse aquele homem
maior, ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente,
como agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem
tristeza. Uma voz que continuava. (GS:V, 189-90)

As representações de Zeus, na mitologia grega, aparecem com definições

específicas. Representavam-no com ar majestoso, de barbas, tendo na mão direita o raio

e na esquerda o cetro; aos seus pés via-se a águia com as asas abertas. (cf. SPALDING,
152

1964:147) Tal manifestação é própria da sociedade patrilinear grega. Zeus iconiza a

figura masculina e sua autoridade. Sua representação também descreve um ser

antropomorfo com “a parte superior do seu corpo nua, e a inferior coberta, a fim de

mostrar que era visível para os deuses e invisível para os mortais.” (SPALDING,

1964:147) Poder e autoridade marcam a postura do deus supremo e demonstram-se

nitidamente canalizadas na personalidade da personagem Joca Ramiro.

A relação de Ramiro e Diadorim intensifica-se se colocada diante de Zeus e

Atena. Diadorim procura espelhar-se no pai, travestindo-se em homem e agindo como

tal. No papel de filha predileta, Diadorim sintetizava uma relação intrínseca de

pai/filho/filha, pois age com papeis múltiplos. Zeus via, em Atena, uma sublime

representação de si próprio; orgulhava-se da filha gerada em seu crânio, filha brilhante e

independente, vestida como guerreira, vetora de valores patrilineares do Olimpo. Não

raro, favorecia Palas em dilemas e em pedidos, pois a deusa era conhecida como a

“favorita do pai”.

Joca Ramiro, chefe maior dos jagunços, simbolizava a magnitude da classe, uma

representação suprema de valores morais e espirituais. Traços de um homem em plena

maturidade, robusto, grave, de fronte ampla, de cabeleira espessa e ondulada e de longas

barbas. Levava manto, embora trouxesse o amplo peito descoberto.

Os atributos físicos aqui citados são das representações antropomórficas de

Zeus, mas, perfeitamente plausíveis se forem usadas em uma descrição de Joca Ramiro.

Diadorim perfila-se com Atena muito mais do que qualquer outra personagem da

Ilíada. Mesmo a personagem rosiana tendo inúmeras características dos heróis

homéricos, vê-se uma maior proximidade psíquica com a deusa Tritônia. O diagnóstico

dos deuses em perfil psicanalítico, delineado por C.G. Jung, vai ao encontro da

personalidade de Diadorim.
153

No estudo proposto por Jung, Atena, ou uma mulher com o perfil de Atena,

mostra-se extrovertida, reflexiva e normalmente pouco sensível. Distante

emocionalmente, tem a característica de ser astuciosa e carente de empatia. Ela é ágil

em pensar com acerto, objetiva na solução de problemas. Está sempre disposta a formar

sólidas alianças com os homens, talvez sua principal e mais evidente característica.

Junito de Souza Brandão analisa que uma mulher-Atena configura-se mais como amiga

intima dos homens do que das mulheres. O estudioso ainda ressalta que Atena tem uma

forte atração pelo poder e pelo mando. “Desse modo, a mulher-Atena, apesar de sua

estreita ligação com os ‘heróis’, pode tornar-se com mais facilidade uma homossexual,

características que procura a todo custo mascarar com o sigilo.” (BRANDÃO,

1999:347)

Difícil dizer se Diadorim completa todas estas descrições dadas a Atena. Nota-

se, no entanto, que existem inúmeras coincidências que não podem ser ignoradas,

especialmente o grande teor de personalidade masculina que uma mulher-Atena carrega.

Já a homossexualidade de Atena e de Diadorim não pode ser explicitada, pois vestem-se

de homens; mas nenhum relato esclarece alguma preferência de sexo. De acordo com o

ponto de vista do narrador Riobaldo, Diadorim parecia nutrir um sentimento de amor

por ele. Atena não demonstra vínculo afetivo nem com imortais e muito menos com

mortais, manteve-se casta.


154

8 – O DIABO E HADES NO MEIO DO REDEMOINHO

“O diabo na rua no meio do redemoinho” é subtítulo de Grande Sertão:

Veredas, que ajuda a esclarecer a recorrente aparição do vocábulo “diabo” no romance

de Guimarães Rosa. Muitas das reflexões de Riobaldo envolvem a entidade e a tornam

algo marcante em diversas análises literárias.

Inúmeros estudos refletiram sobre os vastos eufemismos usados para aludir ao

demônio. Na crença cristã, dizer seu nome significa tê-lo nas proximidades, por isso

evita-se a pronúncia de seu nome: Satã ou Satanás — o demônio. A importância de sua

aparição, no romance de Rosa, implica uma atenção pormenorizada na análise

comparativa proposta aqui.

De certo que uma entidade do cristianismo não apareceria nos enunciados da

Ilíada, e a comparação tornar-se-ia impertinente. No entanto, analisando

minuciosamente os versos de Homero, nota-se a presença de entidades que, em primeira

instância, equivalem ao diabo, tão presente no Grande Sertão: Veredas.

Na cultura judaico-cristã, Satã é o antagonista de Deus. Com isto em mente,

temos, sim, um antagonista e não a personificação do mal. Na verdade, o diabo não é o

mal, mas sim o oposto, o outro lado. No mundo da Grécia antiga, acreditava-se que não

existia o rival do deus supremo Zeus. Como disse Poseidon na Ilíada, “ninguém é mais

forte que Zeus”. Não se pode negar que foram poucas as tentativas de destronar o deus,

que herdou o trono depois de vencer monstros horrendos e os Titãs, em magnas

batalhas. Zeus já havia exilado todo e qualquer inimigo que pudesse incomodá-lo.
155

Ainda assim, fora importunado pela esposa Hera e pelo irmão Poseidon, que tentaram

usurpar o poder do deus supremo. Desnecessário mencionar que tal tentativa frustrou-

se. Quem então seria oponente de Zeus? Não existe o oponente, mas existe, sim, o

oposto de Zeus, o deus que, em vez de habitar o céu, mora no lado mais escuro da terra,

o submundo. Este é Hades, um dos irmãos do grande deus do Olimpo.

Comparar o diabo com Hades parece inviável; no entanto, as entidades dividem

semelhanças interessantes.

8.1. Contexto do Diabo e de Hades

Hades recebeu, na partilha, o submundo que leva o seu nome. O mundo das

trevas, onde vive o deus associa-se ao inferno dos cristãos, lar de Satã (Lúcifer) — o

anjo que se rebelou. Penumbras e odores fortes não são só características do mundo do

demônio. O vocábulo Inferno aparece em muitas traduções, principalmente as latinas,

que designa lugar escuro.

Talvez a mais célebre descrição do inferno cristão seja a de Dante na Divina

Comédia. O Inferno situa-se debaixo de Jerusalém; um abismo circular, estreitando-se

de cima para baixo, até o centro do planeta. Na frente, encontra-se uma espécie de ante-

inferno, onde se aglomeram as almas recusadas tanto por Deus quanto pelo Diabo. Nove

círculos dividem o Inferno propriamente dito. Os cinco primeiros compõem o Alto

Inferno; os demais formam o baixo Inferno ou Dite — Cidade Infernal. No primeiro

círculo — Limbo — situam-se as almas dos não-batizados; no segundo, estão reclusos

os sensuais; no terceiro, os gulosos; no quarto, hostilizando-se, os avarentos e os


156

pródigos; no quinto, os irados. O Dite acolhe os hereges e os incrédulos no sexto

círculo; no sétimo, separados em três compartimentos, os que pecaram pela violência

contra o próximo, contra si mesmos e contra Deus. No oitavo círculo, o Malebolge, dez

fossos castigam os sedutores, os aduladores, os simoníacos, os adivinhos, os

fraudulentos, os hipócritas, os ladrões, os maus conselheiros, os fundadores de seitas e

os falsários. O nono círculo consta de quatro divisões, onde penam os traidores da

família, da pátria, dos amigos e dos benfeitores. No último ponto do Inferno vê-se o rei

infernal, Satanás, Lúcifer. Apresenta-se com três faces e três bocas, cada uma delas

tragando Judas, Cássio e Bruto. O Inferno era uma montanha apontada para o centro da

Terra.

Já o Hades localiza-se perto do extremo do oceano, ao lado do Érebo (noite ou

escuridão). Ambos são parte da grande região negra chamada de Tártaro. Convém

descrever o reino do deus para que a comparação com o inferno cristão seja mais clara.

A primeira região a despontar é o Bosque de Perséfone, um mundo silencioso e

apagado, onde algumas almas vagam atrás de conforto. Depois do bosque, encontra-se o

palácio de Hades e Perséfone. À esquerda de quem entra, vê-se um cipreste branco

sombreando uma poça formada pelo Rio Lete, onde algumas almas sempre saciam sua

sede. Almas menos antigas preferem outras águas, as da Lagoa da Memória, sombreada

por uma árvore menor. Julgando os mortos estão Minos, Radameto e Éaco, em um local

onde três caminhos se encontram. Radamante julga os asiáticos enquanto Éaco os

europeus. Ambos reportam os casos mais complexos para Minos. Depois de cada

veredito, os fantasmas são encaminhados para uma das três passagens. Almas que não

apresentam virtudes e nem desvios vão para o Bosque de Perséfone. Os maléficos vão

para o Tártaro e recebem uma punição. Os virtuosos vão para os Campos Elísios.
157

Diferente da concepção cristã, todas as almas são encaminhadas para o mesmo

local. A distinção é feita por Hades e seus auxiliares. Talvez esta seja a diferença

principal do inferno idealizado pelos gregos: existia, no submundo, um lugar não só

para as almas castigadas, mas também para as almas heróicas. Dante descreve o

Purgatório e o Paraíso, que completam a vida após a morte dos cristãos, locais com uma

distinção espacial dos Infernos. O Purgatório é uma montanha apontada para o alto e

formada por dois troncos de cones sobrepostos. O primeiro, mais largo, constitui o

Antepurgatório e o segundo o Purgatório propriamente dito. No primeiro círculo

purificam-se os soberbos; no segundo, os invejosos; no terceiro, os coléricos; e,

respectivamente, pelos círculos seguintes: os preguiçosos, os avarentos e os pródigos,

juntos; os gulosos e os luxuriosos. O Purgatório está isolado do Paraíso e do Inferno,

pois se localiza em uma ilha oceânica. O Paraíso consiste de tirar um primeiro Céu, o da

lua, que acolhe as almas dignas que cumpriam seus votos religiosos; no segundo, de

Mercúrio, estão os que praticaram as glórias mundanas; no terceiro, o de Vênus,

reúnem-se os que mesclaram devoção com amor terreno; no quarto, o de Marte,

esperam os que combateram em favor da fé; no sexto Céu, o de Júpiter, brilham as

almas dos santos; no sétimo, o de Saturno, purgam as almas dos que no mundo

entregaram-se à vida inerte; no oitavo, o das Estrelas fixas, vê-se o triunfo de Cristo; no

nono Céu, também chamado de primeiro Móvel, vê-se um ponto luminoso, em torno do

qual giram os nove círculos correspondentes às nove esferas do mundo; no décimo

círculo, o Empíreo, triunfam os anjos e os bem-aventurados, formando a Cândia Rosa.

O temor que os gregos nutriam por Hades vincula-se somente ao medo da morte,

iconizado por Tânatos (Qavnatoς), entidade que habita o Hades. Hades é o senhor dos

infernos. Raramente deixa seu reino e demonstra muita rigidez nos seus domínios. Este

comportamento fazia-o o menos venerado dos deuses, por isso a escassez de altares em
158

sua homenagem. Sua esposa, Perséfone, já é mais amena e algumas vezes convenceu o

consorte a dar uma nova chance às almas suplicantes. Apesar de ser muito fiel ao

marido, a rainha prefere a companhia de Hécate ou se refugiar no bosque que leva seu

nome. Perséfone passava outra parte do ano com a mãe, Deméter.

A divindade de Hades representava o medo, do grego, dos enigmas que o

cercavam sobre a vida após a morte. Os cristãos recebem como punição as sombras e as

trevas, se cometerem algum ultraje aos valores que os regem. O reino de Satã é a

escuridão, repleto de névoas de enxofre. Hades não pode, porém, ser intitulado como

uma entidade maléfica. Ele representa o invisível, o mistério, o oculto. A descrição do

reino de Hades remete muito ao espaço idealizado do inferno proposto pelos cristãos. O

deslocamento e a escuridão compõem ambos. Toda esta região dominada por Hades

deve ser descrita, para uma comparação mais bem feita entre o Inferno cristão e o

Inferno imaginado pelos gregos. O Rio Estige conecta o Tártaro com o oeste do mundo

e tem cinco afluentes. Suas águas são um veneno mortal, tóxicas e mal-cheirosas. O

Estige é o mais sagrado dos rios. Nele, Tétis mergulhou Aquiles e o muniu de

invulnerabilidade. Uma promessa feita evocando-o jamais poderia ser quebrada. O

mortal que quebrasse sua promessa receberia a morte certa. O imortal que ousasse tal

feito perdia a divindade por cem anos. Todo ente era enterrado com uma moeda sob a

língua, o tributo necessário para que Caronte, o barqueiro, o levasse através do Estige.

Hermes, o Deus mensageiro, guiava-os, para as almas não perderem o rumo. Na outra

margem do grande rio, Cérbero, o cão de três cabeças, guardava com afinco todo o

relevo infernal. Não deixa nenhum ser vivo entrar e nenhuma alma sair. O Aqueronte,

Rio das Almas Perdidas, tinhas águas amargas, lodosas e sempre borbulhantes. O

Cócito, Rio dos Vivos, era formado das lágrimas dos maus, pecadores e culpados. O

Flagetonte, Rio Ardente, era feito de brasas e chamas. O Lete, Rio do Esquecimento,
159

era fonte para as almas que queriam esquecer do passado. O Averno, Lago das Águas

Estagnadas, que exalava miasmas letais e envolvia o local com esterilidade e inópia. O

ambiente descrito aqui lembra muito as descrições de Dante e as descrições bíblicas do

Inferno.

8.2. Diabo e Hades: Paralelos

Atenta-se novamente para a representação do diabo e como o narrador Riobaldo

reflete acerca do mesmo. O diabo ronda o enunciado, como uma espécie de consciência,

a dualidade que insiste em predominar no pensamento do jagunço. Certas horas,

Riobaldo até afirma que o diabo não existe:

Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia ver, então era eu
mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu
estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças —
eu digo. Pois não é ditado: “menino — trem do diabo”? E nos usos, nas
plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio
do redemunho... (GS:V, 11)

Em outros instantes, afirma que o diabo é presença em todos os lugares, pois

habita o centro de cada um dos seres, a lama do homem:

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, dos crespos do homem


— ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão,
é que não tem diabo nenhum. Nenhum! — é o que digo. O senhor aprova?
Me declare tudo, franco - é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido.
Este caso — por estúrdio que me vejam — é de minha certa importância.
(GS:V, 11)
160

O trecho acima exemplifica bem o papel do diabo por toda a narrativa do

romance rosiano. As reflexões de Riobaldo duram até o término de seu grande

flashback. O diabo reúne em si atributos de várias entidades que habitam o Hades. O

senhor dos infernos da mitologia grega não contém características vis. Era representado

como homem taciturno, sempre trajando negro ou púrpuro. Aparece, nas raras vezes que

deixa a morada, conduzindo um carro tirado por alazões negros. Ossos e caveiras eram

ícones associados ao deus. Hades ( jvAidhς), “deus das trevas” de aianes, é também

referido como “o invisível”. Raramente era nomeado, “pois temia-se que, invocando-o,

se provocasse a sua cólera. Por isso, designava-se através de eufemismos.” (GRIMAL,

1997:189) Verificando seu nome latino, Plutão, notam-se fatores que endossam a

função do rei dos Infernos. Na etimologia latina significa “o que se enriquece com os

despojos humanos”. Sempre temido pelos súditos, e odiado pelos mortais, Hades

recebeu poucos templos em sua homenagem. Somente invocavam-no à noite, batendo o

solo com os punhos cerrados. Junito Brandão acha absurda a associação etimológica

grega com os vocábulos hölle do alemão e hell, do inglês; no entanto, não deixa de ser

uma associação relevante e merecedora de um estudo mais aprofundado. Não raro,

Hades é referido com Edoneu e Dis, seus epítetos mais comuns e suavizados de seu

contundente nome.

Apesar de não ser maligno, o deus é violento e poderoso, preza muito a discrição

de seu reino. São poucas as coisas que Hades teme, entre elas encontra-se a habilidade

que o irmão, Poseidon, tem de fazer tremer a terra:

Treme, angustiado, Edoneu, rei dos vastos domínios subtérreos,


e, dando um grito, do trono saltou, receando que a terra
sobre ele o deus de cabelos escuros, Posido, rasgasse,
escancarando, desta arte, à visão dos mortais e dos deuses,
seu tenebrosos palácio, que até pelos numes é odiado.
(ILÍADA, CANTO XX: v.61-65)
161

O temor que o deus provoca é constantemente citado nos escritos clássicos. Na

Ilíada, menciona-se: “Deixe-se abrandar: Somente Hades é amargo e inflexível; por isso

mesmo, para os mortais, é o mais detestado dos deuses.” (ILÍADA: CANTO IX)

Confere-se que Hades é temido e, até, maldito, assim como Satã na crença cristã. A

palavra diabo queima a boca, como se pode notar na história escrita por Rosa. “Do

demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome

dele - dizem só: Que-Diga.” (GS:V, 9) Este é um dos quase quarenta nomes que

Riobaldo usa para referir-se ao demônio. O narrador evita ao máximo a menção do

nome, mesmo dizendo não acreditar na entidade. Pierre Grimal, como já foi dito, lembra

que Hades era citado ou invocado através de entusiasmos ou epítetos, jamais pelo nome.

A função do diabo no romance rosiano pode ser analisada de várias formas. J.

Adolfo Hansen lembra que:

O contar de Riobaldo normaliza, assim, enquanto a interpreta na metáfora


Diabo, a brutalidade bruta da vida sertaneja. Hipostasiando a alteridade
monstruosa — Diabo —, ele reduz a referencia de sua fala a ela – e não o
consegue, pois insistem os efeitos da singularidade monstruosa, que
assombram seu discurso. (HANSEN, 2000:97)

Riobaldo menciona o Diabo, em seu discurso, para criar uma espécie de

dicotomia, para evidenciar seu conflito com a brutalidade que assola o sertão. Não

existe explicação para tamanhas chacinas, para os massacres horripilantes. Só a

representação do Diabo para alinhar e fazer coerente um contexto tão hediondo e

sanguinário. Riobaldo menciona a entidade toda vez que incutido sofrimento paira no

enunciado; é a sua maneira de ponderar sobre a questão que o atormenta, o divide.

Sobre este aspecto também se pronuncia Hansen:


162

No presente da enunciação, ainda, o Diabo tem também função catártica, de


explicar para Riobaldo a violência e a bestialidade e a bestice do sertão: os
causos que relata, sempre neles referindo O Ele, petrificam-se na imagem
fantasmática do Mal, alienando-os nela ao mesmo tempo em que se fecha na
sua auto-imagem de fazendeiro-dono-crente-em-Deus. (HANSEN, 2000:
97)

A recorrência de sua aparição coincide com a escolha de vários nomes. Riobaldo

precisa chamá-lo, e chamá-lo pelo primeiro nome atrai mal augúrio. Mesmo, muitas

vezes, o Diabo levando referencia de ser nada. Ainda dialogando com Hansen, vê-se

uma intensa ligação do Diabo com o nada. O romance inicia-se com o vocábulo Nonada

formando uma oração. Considerando que a palavra é menção ao Diabo, percebe-se que

a reflexão de Riobaldo já o persegue na primeira frase de seu relato e o acompanhará até

o término de sua história. Sobre tal questão, assim pronuncia-se Hansen:

Sendo também um dos nomes do Diabo ‘O O’ – zero, nonada, nada, (não) —


ser— lê-se nesse nome intensivo e extensivo ou um pronome demonstrativo de
terceira pessoa, que ou pode substituir um sujeito logicamente próprio, singular
e estável, ou a ele sobrepor-se, ou sobrepor-se àquilo que designa; ou, ainda,
nele se lê um artigo, determinante elevado à classe de nome, como
substancialização da qualidade, que se transforma numa espécie de ser da
designação, pura dêixis rebaixadas para aquém de uma qualidade fixa, pois
todos os nomes e todas as coisas podem ser usados como tradução de ‘O O’ ou
como seus lugares de emergência e possessão.” (HANSEN, 2000:90)

O nada se torna bem significativo, se se pensar na constância e importância do

Diabo nas reflexões feitas na diegese do Grande Sertão. Riobaldo afirma que “O crespo

— a gente se retém — então dá um cheiro de breu queimado. E o dito — o Coxo —

toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem.” Interessante é notar que

Hades aparece em situações semelhantes nos versos homéricos. Já nos primeiros

momentos do Canto I, ele é descrito, cumprindo suas tão temidas funções:


163

Canta-me a Cólera — ó deusa! — funesta de Aquiles Pelida,


causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos
e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados
e como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio
desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos,
o de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino.
(ILÍADA, CANTO I: v. 1-5)

As funções de Hades continuam a ser cumpridas. Muitas vezes, quando um

guerreiro perde a vida, o poema épico cita o nome do deus, como eufemismo da morte,

que é representada pela entidade Tânatos na mitologia grega. “E os filhos de Antenor

aos golpes do rei filho de Atreu, cumprindo seu destino, mergulharam na morada de

Hades.” (ILIADA: CANTO XI) ou “Não penso que o magnânimo filho de Pântoo haja

lançado um dardo inútil com a mão robusta; algum Argivo há de tê-lo recebido na pele e

cuido que nele se apoiará para descer à morada de Hades.” (ILÌADA: CANTO XIX)

Hades cumpre suas obrigações até contra os próprios imortais, que podem ser

castigados com o aprisionamento no Tártaro, a parte mais negra e sombria do Inferno

grego. Lá estão os Titãs e outras criaturas que ousaram desafiar os deuses. Homero fala

da existência do Éter (Céu), o Ar, o Hades e, da sua parte mais profunda, o Tártaro,

estando este último tão distante de Hades quanto o céu da terra. A distinção aparece no

trecho a seguir, em uma fala de Zeus na Ilíada:

Quem quer que seja disposto, a departe dos outros eternos,


a socorrer os Troianos, ou, ainda, os grevados Aquivos,
há de se ver fustigado, aqui mesmo, por modo irrisório,
se eu o não lançar, sem nenhuma cautela, no Tártaro escuro,
esta voragem profunda que embaixo da terra se encontra,
de érea soleira munida e de portas de ferro, tão longe
do Hades sombrio quanto há de permeio entre a terra e o Céu vasto.
(ILÍADA; CANTO VIII: v. 10-17)
164

Hades e o Diabo são ambos evitados nas narrativas, mas verifica-se a

importância de cada um em seus respectivos enunciados. Fora mencionado

anteriormente a entidade Tânatos, como sendo a representação da morte, e associado ao

deus Hades. Tal fato procede, pois a entidade habita o Hades, juntamente com Hipnos, o

Sono, e Morfeu, filho deste último. Em Homero, Tânatos não toma forma

antropomórfica, ocorrido isso somente uma vez, no Canto XVI, quando tira do campo

de batalha o desfalecido Sarpédon. Quase sempre aparece na forma de espessa nuvem

negra, uma bruma que bloqueia a luz. Já Hesíodo apresenta-o na forma física humana.

No entanto, possuía coração de ferro, entranhas e alma de bronze. Aparecia também

como um menino negro, de pés tortos e acariciado pela Noite, a sua mãe.

Todas as entidades do Hades associam-se de alguma forma ao Diabo, pois Satã é

também representado por animais como o chacal, o cão, a cobra, o bode e o corvo. O

Diabo é geralmente apresentado com uma forma repulsiva ou grotesca. O rival de Deus

é projetado como inverso de qualquer símbolo sacro. A representação judaico-cristã se

assemelha com o Diabo pintado nas cartas de tarô, que o dicionarista Chevalier descreve

da seguinte maneira:

De pé, seminu, em cima de uma bola cor de carne, cuja metade inferior
enfia-se num soclo ou bigorna rubra com seis camadas superpostas, o Diabo,
cujo hermafroditismo é abundantemente sublinhado, tem asas azuis
semelhantes às de um morcego. Calças azuis são presas ao corpo por um
cinto vermelho cruzado abaixo do umbigo. Os pés e as mãos têm unhas
compridas como as de um macaco. A mão direita se eleva, a esquerda,
voltada para o chão, segura pela lâmina uma espada desembainhada e nua,
sem punho nem guarda (ou corpos). Na cabeça, leva uma estranha cobertura
amarela, feita de crescentes lunares afrontados e de uma galhada de veado
com cinco pontas. Ao pedestal estão presos pelo pescoço, por um cordão
que passa através de um anel soldado ao soclo, dois diabretes simétricos,
inteiramente nus, um macho e outro fêmea (a menos que sejam, eles
também, andróginos), providos, cada qual, de uma longa cauda que roça
165

pelo solo, cascos fendidos, mãos escondidas por detrás das costas, cabeça
coberta por um gorro vermelho, de onde partem dois chifres de veado preto
e duas gafulhas ou dois cornos. O solo é amarelo, raiado de negro na parte
superior. Mas debaixo das patas dos dois diabinhos, o solo negro como
aquele sobre o qual passa a foice da Morte. (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 1997:337)

Nesta descrição do Diabo, notam-se similaridades com as entidades do Hades.

As Erínias, por exemplo, são descritas como criaturas munidas com asas de morcego e

serpentes ao invés de cabelos. “São representadas como três gênios alados, com os

cabelos mesclados de serpentes e tochas ou chicotes nas mãos.” (GRIMAL, 1997:147)

As entidades primordiais lembram a descrição do Diabo, feita por Chevalier. As

Górgonas também são descritas de uma maneira que lembra muito o Diabo. Suas

cabeças eram ornadas com serpentes, presas das arcadas expostas, mãos de bronze e

asas de ouro. Um simples olhar transformava mortais e imortais em pedra. Outras

entidades infernais são as Harpias, dotadas de atributos físicos que lembram a imagem

de Satanás. “Representam-se como aves com cabeça de mulher e garras afiadas.”

(GRIMAL, 1997) Hécate, entidade importante no panteão de Hades, também é descrita

contendo forma repulsiva e grotesca. Protetora das feiticeiras e das magias, aparece

como uma mulher com três cabeças ou corpos. A entidade metamorfoseava-se em

animais associados com o rival do Deus cristão, como a cadela e a loba, o que leva à

representação de Cérbero, o estimado cão de guarda de Hades. O Cão é um dos

apelidos mais comuns do Diabo. Constantemente o vocábulo é usado para referir-se à

entidade cristã e, em muitas de suas descrições, partes anatômicas caninas têm

destaque, fato que deixa o ícone de Cérbero bem próximo aos atributos físicos do

demônio. “A imagem mais corrente que dele se dava era a seguinte: três cabeças de

cão, cauda formada por uma serpente e, no dorso, uma multidão de cabeças de

serpentes levantadas.” (GRIMAL, 1997:83)


166

Já a qualidade andrógina do Diabo, contida na descrição de Chevalier, pode ser

relacionada com o governo mútuo que Hades faz com sua consorte, Perséfone. Não

menos inflexível e cruel, a rainha dos infernos desempenha um papel que vai ao

encontro das funções de seu marido. Era representada como uma jovem bela, coroada,

ao lado de Hades, sobre trono ébano ou sobre um carro tirado por cavalos negros.

Conjugando o casal, tem-se a função andrógina que lhes é atribuída. No Grande

Sertão: Veredas existem trechos onde a descrição física do diabo encontra-se com a

sugestão de Chevalier:

Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, dos olhos de nem ser — se
viu —; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar.
Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava
rindo pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram — era demo. (GS:V,
9).

Percorrendo a narrativa com mais detalhe, encontra-se uma descrição que

permeia quase todas as equivalentes icônicas do Diabo já mencionadas. As aves de

rapina, o cão, a cobra... elementos que também se encontram nas entidades infernais da

mitologia grega. A proximidade das duas entidades é notória e os símbolos que as

representam unem ainda mais os ícones. Durante toda a narrativa rosiana, descrições

associadas ao Diabo se intercalam, ora na descrição espacial, ora na descrição da fauna

e, principalmente, nas ponderações de Riobaldo. O cenário também remete à dualidade

que o demônio provoca no enredo. O trecho segue abaixo, contendo os símbolos que

não podem deixar de ser associados com a representação máxima do mal.

E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar


mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E isso é? Eh, o senhor já viu,
167

por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra
cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de,
pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião,
corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para
adiante, rasgar e estraçalhar o bico, parece um quiçe muito afiada por ruim
desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas — que
estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro
delas dorme: são o demo.” (GS:V, 12).

Todos os animais relacionados acima lembram de alguma forma a representação

do demônio ou alguma forma dos seres habitantes do Hades. A cobra cascavel remete

aos corpos e aos cabelos da Erínias e das Górgonas. O gavião e o corvo associam-se às

Harpias. A água e o poço lembram o próprio ambiente idealizado do Hades. A presença

do diabo no Grande Sertão: Veredas é muito mais significativa que a menção de Hades

no enunciado homérico. Riobaldo pondera e reflete sobre o conceito de demônio,

enquanto Hades anuncia na Ilíada a morte de guerreiros ou o clamor de uma batalha.

Hades faz um papel imperativo quando mencionado nos versos hexâmetros, suas

atitudes são enérgicas e violentas, não contêm o teor dialético que Rosa coloca no

Diabo, que ronda o pensamento de Riobaldo e provoca questionamentos concatenados.

8.3. O pacto e a catábase

O pacto é um dos marcos no romance Grande Sertão: Veredas. Para muitos

estudiosos, é o trecho mais evidente da obra. A cena do pactário se dá em localidade

inópia. Riobaldo caminha para uma encruzilhada, o brejo marimbú, lá vê nada e nem

escuta. Espera, solene, a chegada de Lúcifer.


168

Na cultura helênica, vários heróis passaram por um processo de regresso, que

pode ser comparado ao pacto que ocorreu com o protagonista rosiano. A catábase

acontecia sempre quando um mortal ousava freqüentar o reino de Hades ainda com

vida, fato insustentável e inadmissível.

Chama-se a atenção para o processo de purificação que se dá quando Riobaldo

clama pelo demônio. No ato, estão incutidas a fragilidade da existência humana e a

dificuldade de lidar com dualidades presentes na sua formação.

O pacto inicia-se com esta questão, o tema do nada, No-nada, a ausência de

qualquer ponto de referência. A segunda parte registra o medo de Riobaldo,

constantemente negado por ele mesmo, que afirma: “Destes meus olhos esbarrarem num

ror de nada.” (GS:V, 317)

Riobaldo passa a ter denso conflito. As dualidades o dilaceram. Em primeira

instância, variações mais dicotômicas e, depois conflitos transcendentes, muito mais

profundos. A presença da díade bem e mal se apresenta caráter humano. Não poderia

ser diferente com Riobaldo.

A primeira parte se atém mais a este aspecto, frisando a sombria aparência das

Veredas tortas. “E eu não percebia nada. Isto é, que mesmo com o escuro e as coisas do

escuro, tudo devia de parar por lá, com o estado e aspecto.” (GS:V, 317) A localidade

continua sendo descrita em tom sombrio: “ chirilil dos bichos. Arre, quem copia o riso

da coruja, o gritado. Arrepia os cabelos das carnes.” (GS:V, 317)

Kathrin Holzermayr Rosenfield chama a atenção para o fato de que algo novo

orvalha na segunda parte do pacto. Na verdade, Riobaldo enxerga a luz pois, durante o

seu clamor pelo diabo, pronuncia Lúcifer quatro vezes, enquanto Satanás, outra alcunha

mais famosa do demônio, só é pronunciada duas vezes. Na era medieval, Lúcifer era o

nome dado ao planeta Vênus nos céus, “aquele que traz a luz”. Riobaldo brada por luz,
169

iluminação, o doloroso processo de querer se enxergar e perceber o mundo, além das

pueris dicotomias que o assolam. Daí vê-se Lúcifer no enunciado e não os outros tantos

nomes que são variantes de diabo. Depois que a tensão do pacto se dissipa, nota-se no

enunciado que Riobaldo saiu das trevas à luz:

Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas idéias, e de tantas coisas
passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito
remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria
vontade. Até eu não puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo, quase
sem esbarrar, o todo tempo.” (GS:V, 321)

Um pouco antes, Riobaldo confirma que o dia “Foi orvalhando. O ermo do lugar

ia virando visível, como o esboço no céu, no mermear da d’alva.” (GS:V, 320) O

despertar é novamente assinalado, pois Riobaldo enxerga, em meio à vasta escuridão já

descrita, a estrela d’alva, que vem a ser o planeta Vênus, iluminando o céu e,

conseqüentemente, Lúcifer, se se considerar a nomenclatura medieval. Rosenfield, com

pertinência, esclarece que “este anúncio da luz de Vênus, do dia e da vida, estabelece

um contraste com a atmosfera noturna, negativa e mortífera da primeira metade” do

pacto. (ROSENFIELD, 1992: 66)

Volta-se agora para a catábase nas histórias fundadas pela cultura clássica.

Comparar a catábase ao pacto não vem a ser impertinente, se se levar em conta o

aspecto apresentado anteriormente, em que o pactário recebe iluminação, visão,

purificação, depois do ato.

Vários foram os heróis gregos que desceram ao Hades para executarem o que

Junito Brandão chamou de regressus ad uterum. O estudioso deixa claro que a catábase

ao Hades simboliza a anagnórisis, o autoconhecimento, “a ‘queima’ do que resta do


170

homem velho, para que possa eclodir o homem novo.” (BRANDÃO, 1999: vol. III,

170)

O ápice do processo designado por catábase é o confrontamento com a entidade

suprema dos infernos: Hades. Os heróis confrontam diretamente com o deus. Héracles

até fere Edoneu com uma flechada no ombro, depois de um duelo magno. Perseu desce

aos infernos, ganha a simpatia de Hades, e recebe o elmo mágico do deus que deixa os

seres invisíveis, como gratificação. Orfeu passa pelo seu processo de autoconhecimento,

quando vai ao Hades, para reaver a sua amada Eurídice. A beleza de suas canções

fascina as entidades infernais e amansa o temido cão tricefálico, Cérbero. O inflexível

Hades e a lutuosa Perséfone se comovem, e deixam o cantor levar de volta a alma da

esposa. Orfeu, no entanto, ultrapassa o métron que lhe fora estabelecido e a alma de sua

consorte volta para a morada fúnebre.

Por comparar o pacto de Riobaldo com o processo da catábase mais

detalhadamente, volta-se a atenção para Teseu e Pirítoo, citados no Canto I da Ilíada.

Ambos lutaram junto com os centauros e venceram, dando início a uma amizade

fecunda. Dizem que Pirítoo, em primeira instância, tinha em Teseu um inimigo, mas ao

vislumbrar o magno porte do herói, ofereceu-se como escravo.

A parceria gerou vários feitos. O mais célebre de todos é o rapto de Helena. Foi

sina de Afrodite, que incutiu beleza avassaladora na princesa espartana, devido à falta

que cometera o seu pai humano, o rei Tíndaro, que se esqueceu de honrar a deusa no

culto que celebraria o nascimento da filha. Helena seria causa de infortúnios como a

guerra de Tróia. Antes mesmo de atingir a puberdade, Helena já despertava desejos.

Teseu se apaixonara pela infante, quando a viu dançando em uma celebração e resolveu

raptá-la. Tal rapto já fazia parte de um trato com Pirítoo. Ambos raptariam descendentes

diretos de Zeus, para continuar uma grande estirpe. Para confirmar isso, combinariam
171

que seqüestrariam a princesa espartana e a rainha dos infernos, Perséfone. Teseu e

Pirítoo, então, sortearam para ver quem ficaria com Helena ou a divindade infernal.

Bem sucedido foi o rapto da impúbere Helena. O combinado, agora, era ir ao Hades

para conquistar Perséfone, que também tem um histórico de raptos tão proeminentes

quanto os da princesa espartana.

Assim se dá a catábase, o regresso feito por Teseu e Pirítoo. Hades recebe os

convidados muito bem, já pensando no logro que os deixaria nos infernos eternamente.

É inadmissível para o deus que qualquer ser mortal ainda com vida adentre os seus

domínios, a não ser que prove qualidade para tal. Sabe-se, no entanto, que pouquíssimos

foram bem aceitos nos infernos. São nomes consagrados como Héracles, Orfeu, Perseu,

Odisseu, Enéias, que conseguiram o feito com êxito.

O processo de purificação vem a ser justamente este. A capacidade de lidar com

Hades, no caso aqui, fazendo as vezes do iluminador, instrumento para a ação de

reconhecimento feita pelo herói no seu processo de regresso.

Teseu e Pirítoo, no intuito de raptar Perséfone, não percebem o ardil em que

estão prestes a cair. Ardil que prendeu a própria Perséfone aos infernos.

O herói participa de um banquete oferecido por Hades. Sabe-se que o alimento

infernal, se ingerido, cria um vínculo eterno de quem se alimentou dele com o Hades.

Teseu e Pirítoo não se ergueram das cadeiras em que estavam sentados. As vísceras

ficaram atadas ao móvel. Bem mais tarde, Héracles, em seu embate contra Hades, salva

Teseu, mas Pirítoo permanece sentado eternamente na Cadeira do Esquecimento.

Assim, Teseu deixa de completar sua catábase. Não houve negociação com

Hades. Na verdade, Teseu teria que conviver com seus excessos anteriores, como o

abandono de Ariadne e os trágicos destinos de Fedra e seu estimado filho Hipolitto.


172

Teseu acaba cumprindo um reinado tirânico, que finda tragicamente, como descrito por

Junito Brandão:

A morte de Teseu, como é de praxe no mundo heróico, talvez configure o


regressus ad uterum do filho de Etra, que, a essas alturas, como escrava de
Helena, fora levada para Tróia. Lançado do píncaro de um rochedo ao mar,
domínio de seu pai Poseídon, o herói teve a sua catarse final. (BRANDAO,
1999: vol. III, 173)

A iluminação de Teseu falhou, pois seu processo de pactário envolvendo Hades

não sucedeu. As intenções do herói eram por demais maliciosas. Raptar a tão querida

esposa do deus infernal realmente não endossa qualquer tipo de iluminação ou regresso.

Inúmeras análises já foram feitas sobre o pactário em Grande Sertão: Veredas.

Notou-se, no entanto, que entremeada nos versos da Ilíada, estava também uma alusão à

ação pactária em forma de catábase.

8.4. A porção Perséfone

Para especificar mais as características de Hades, faz-se necessário mencionar

Perséfone, sua esposa, a rainha do submundo. A deusa aparece no Canto XI, em meio

ao paradigma, precisamente no verso 569, quando é citada juntamente com o marido.

Vezes sem conta à alma Terra com a mão percutiu, invocando


173

o nome Hades escuro e Perséfone, a deusa tremenda,


posta de joelhos e o seio banhado de lágrimas quentes,
para que o filho fizesse morrer. (ILÍADA, IX: v. 569)

Muitas vezes, as menções do reino de Hades podem ser consideradas menções à

própria Perséfone, sempre lembrando, no entanto, que seu julgamento e apreciação de

certas situações não corresponderão à visão de Hades sobre o mesmo assunto.

Perséfone (Persefovnς) deriva de parthénos, que significa virgem. Seu epíteto —

Cora ou Core — significa donzela ou mulher jovem. Quando abduzida por Hades, passa

por uma transformação. O rapto se dá com um estupro. A violação de Perséfone é a

causa de sua mudança e a razão de sua ida aos infernos, que se transformou em seu lar.

Filha de Zeus e Deméter, é também associada à agricultura, especialmente à germinação

do trigo. É representada sempre como uma jovem bela, coroada, ao lado de Hades,

sentada em um trono ébano ou sobre um carro tirado por cavalos negros. Em sua função

arquetípica, mostra-se uma deusa vulnerável e dependente da figura materna, no entanto

destaca-se por ser muito receptiva. No enfoque junguiano, vê-se uma mulher mais

introvertida e sensível, de tendência depressiva, facilmente manipulável e voltada para a

fantasia. A representação junguiana também destaca a receptividade, a imaginação e a

característica de ser sonhadora. Raptada por Hades, relato também de suposta autoria

Homérica, gritou de tal maneira que a sua mãe ouviu do alto do Olimpo. Desde então,

estabeleceu-se na terra um período de esterilidade e seca, pois Deméter só fez procurar a

estimada filha. Disputou com Afrodite a guarda do belo Adônis. A luta entre as duas

deusas foi julgada por Zeus, decidindo que o mortal, nascido de Mirra, viveria um terço

do ano com Afrodite e um terço com a rainha dos infernos (o veredicto da situação é

idêntico ao que Perséfone recebera do próprio Zeus). O outro terço do ano, Adônis

passaria na companhia de quem bem entendesse.


174

Perséfone puniu Mente, ninfa dos infernos, amada por Hades, transformando-a

em planta odorífica. Doou um pouco de beleza para Psique armazenar em uma caixa e

entregar a Afrodite. Uma das árduas tarefas que a jovem teve que executar para a deusa

do amor. Cedeu porção de sua incomparável beleza, pois se apiedara da serva de

Afrodite.

A relação Perséfone e Deméter é intensa. Depois de procurar muito, a deusa da

agricultura encontrou a filha nos infernos. Pediu a Zeus para que recuperasse a filha. O

supremo deus consentiu, contanto que a jovem não tivesse comido nada nas regiões do

submundo. Ascálafo, entidade leal a Hades, apressou-se em dizer que vira Perséfone

comer seis bagos de romã. Diante de tal fato, Zeus estabeleceu que a moça passasse seis

meses com a mãe e seis meses com o consorte (de acordo com alguns mitólogos,

Perséfone passa um terço do ano com a mãe, um terço com Hades e um terço em seu

bosque.) Depois desta decisão de Zeus, Perséfone passa a ser entidade atuante no

submundo.

Perséfone é a entidade infernal que recebe os candidatos à catábase, de uma

maneira muito distinta do marido Hades. Nota-se certa complacência em suas ações. Na

Odisséia, Perséfone é quem reúne as mulheres honradas, para que as almas possam ser

vistas por Odisseu. Enquanto este conversa com a mãe, extenso catálogo destas

mulheres acontece. Um encontro no ambiente ad uterum com a mãe se dá,

possibilitando um confronto na árdua prova, feita pelo rei de Ítaca. Antíclea finalmente

revê o filho. Perséfone, mesmo adjetivada com o vocábulo e*painhv (terrível, temível), é

quem possibilita o atenuamento do processo, e o retorno seguro do viajante.

Os companheiros, depois, exortei, ordenando que as reses,


que estavam mortas no chão, pelo bronze cruel abatidas,
logo queimassem, depois de esfolá-las e rogos ter feito
175

a Hades, o deus poderoso, e à terrível Perséfone.


(ODISSÉIA, CANTO XI: v. 44-7)

Vêem-se as atitudes de Perséfone em outras histórias como a de Orfeu, Héracles

e Teseu. Em todos, age como ativadora dos candidatos à catábase. Cora faz a vez de

Amuleto, objetivando apaziguar as enfermidades que ocorrem no mundo dos mortos.

Este processo de trânsito é comparado com as travessias de Grande Sertão: Veredas.

A ida ao Hades é marcadamente um momento de transição dentro da cultura

clássica. Tal transição é feita pelos rios que compõem o relevo infernal, já pontuados

anteriormente. Hermes guia as almas através dos tortuosos caminhos e, depois, a alma

chega a sua morada final, levada na canoa pelo barqueiro Caronte. Há dois momentos

marcantes, em Grande Sertão: Veredas, que se assemelham ao instante da transição

para o Hades,chamados pelos estudiosos rosianos de “Travessia”. A primeira travessia

acontece no encontro entre Riobaldo e o menino. Nota-se que a travessia é feita com

um barco e um canoeiro: “Mas, sério naquela sua simpatia deu ordem ao canoeiro,

com uma palavra só firme, mas sem vexame: — ‘Atravessa!’ O canoeiro obedeceu.”

(GS:V, 83)

A canoa, detalhadamente descrita, evidencia o medo do garoto Riobaldo, o medo

de travessia, o medo de transcender. O menino demonstrava placidez e uma coragem

incomum. Diante do processo transcendente, ele reitera, solene: “Carece de ter

coragem...” O momento de medo contrasta com o rio, fator muito explorado por Rosa

para destacar o poder natural de tudo e o poder do homem de perceber o desconhecido.

Ao mesmo tempo que Riobaldo “arregala doidos olhos” de pavor e esboça início de

choro, vê-se que o narrador contempla o rio em uma espécie de transe e vislumbra do

mesmo modo os olhos do menino, sempre “sereno, sereno”. “Eu vi o rio. Via os olhos

deles, produziam uma luz.” (GS:V, 83). Destacando as qualidades medo e serenidade,
176

representantes no menino e em Riobaldo, a travessia se concretiza, a pequena canção

entoada pelo canoeiro ilustra toda a ação passada: “... Meu rio de São Francisco, nessa

maior turvação; vim de dar um gole d’água, mas pedir sua benção...” (GS:V, 84)

A travessia terminava: “Aí, o desejado, arribamos na outra beira, de lá.” No

entanto, a transcendência segue. No final da primeira travessia, Riobaldo encontra a

mãe, um acalanto bem associado ao progresso ad uterum que a ação da catábase

permite. O narrador descreve uma certa transformação para o narratário. Dizia que:

“—:eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável.” (GS:V, 86). A transcendência

apaziguadora é bem relatada, ao descrever o reencontro com a mãe e a saudade que se

imprimirá acerca do menino:

Minha mãe estava lá no porto, por mim. Tive de ir com ela, nem pude me
despedir direito do Menino. De longe virei, ele acenou com a mão, eu
respondi. Nem sabia o nome dele. Mas não carecia. Dele nunca me esqueci,
depois, tantos anos todos. (GS:V, 86)

Há mais importantes travessias entre esse trecho e o final do romance. Pode-se

perceber uma associação com Perséfone, principalmente quando se faz um paralelo

com a figura materna. Depois de adentrarem o Hades, muitos heróis viam em

Perséfone alívio, uma espécie de recolhimento. A transcendência de Riobaldo menino,

o encontro com a mãe e a pletora causada pelo encontro com o garoto, são indícios de

que a travessia obteve sucesso.

Além da travessia com o menino, Riobaldo enfrenta uma travessia maior, que se

dá na localidade denominada como sendo o “Liso do Sussuarão”. O processo de

travessia torna-se ainda mais acentuado e a associação a um “relevo” infernal fica


177

nítida: “Depois, de arte: que o Liso do Sussuarão não concebia passagem a gente viva,

era o raso pior avante. Era um escampo dos infernos.” (GS:V, p.29). Era sabido que

um ente vivo não poderia entrar no reino de Hades, apenas alguns poucos heróis foram

capazes de tal feito, da mesma forma, o Liso não era coisa para gente viva, como

descreve Riobaldo, quem executou a travessia e realizou uma grande etapa de

construção de seu ser. O narrador descreve com detalhes a localidade e a descreve com

um teor infernal:

Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso de Sussuarão, é o mais longe — pra
lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que
quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta,
sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só — Ver o luar
alumiado, mãe, e escutar como quantos o vento se sabe sozinho, na cama
daqueles desertos não tem excrementos. Não tem pássaro. (GS:V, 29)

Nota-se a proximidade do Liso com o Hades grego. O Hades se localiza no

extremo do oceano, o fim do mundo na concepção helênica antiga. A inópia também é

presente, pois as águas de todos os rios que fazem parte do relevo infernal ou ardem

em chamas, ou são venenosas, ou são consumidas pelas almas.

Chamou-se a atenção para os momentos de travessia de Riobaldo, na narrativa

rosiana, e que tais momentos lembram muito o regresso dos heróis para o Hades, em

uma busca de identidade ou cumprindo alguma tarefa incutida no mundo dos vivos. É

o caso de Odisseu, em seu épico particular e também no épico latino Eneida,

protagonizado pelo troiano sobrevivente Enéias. Toda alma dá um “salto” ou um

mergulho, de acordo com a cultura clássica, para dentro do submundo e faz-se, então, a

transcendência da alma humana para o mundo em que residiria eternamente. Transita-

se do material, o efêmero, para o duradouro, o espiritual. O herói vivencia essa


178

experiência com a vida, salta para o Hades e lá transcende em uma condição única,

pois volta para o mundo material, podendo comparar o que se passa no mundo do

espiritual e no mundo empírico. Tal ação não condiz com o daímon (δαιηϖη) que, na

verdade, concretiza a condição espiritual e desprende o ente da condição carnal.

Reflexões a esse respeito já se davam nos círculos filosóficos, que evidenciavam o

predomínio da alma sobre o corpo. O processo, no entanto, está longe de ser ameno,

pode ser que seja até catártico. Toma-se o caso de Odisseu. Com a intenção de

procurar o adivinho cego Tirésias, que mantém seu dom de profecia no Hades graças à

intervenção de Perséfone, Odisseu realiza seu salto para o Hades dando vazão a outras

reflexões mais profundas. Seu acesso, no entanto, é um pouco mais ríspido e os

obstáculos não são poucos. Depois das oferendas e libações, Odisseu se depara com as

almas. Desembaiando a espada, ele impede que outras almas cheguem ao saguão

sacrificatório antes do cego Tirésias. Algumas almas são ouvidas: Elphenor, outrora

companheiro de Odisseu, suplica para que seus ritos fúnebres sejam feitos, pois sua

alma vaga na entrada do Hades sem poder entrar. O general Agamêmnon se faz

presente, assim como Aquiles e tantos outros. A interação mais evidente, no entanto, é

a de Odisseu e a sua mãe Antíclea, encontro possibilitado por Perséfone. A experiência

do herói é única, experiência que poucos anthrópos viveriam. Por isso, o herói vive

uma condição ímpar quando realiza a catábase.

“Sou homem depois deste falimento?” Diria o narrador de “A terceira margem

do rio”, dito que se aplicaria em sua plenitude ao narrador Riobaldo. Depois de

transformações e travessias, Riobaldo reflete sobre toda sua analepse. Em um resumo

socrático de que “eu nada sei exceto o fato de minha própria ignorância”, o ex-jagunço

(ou não?) constata que, em meio aos recalques e às interdições, evoluiu de maneira

espiritual, apesar das constantes indagações que assombram. O fato de ter um grande
179

compadre com “a doutrina dele, de Cardéque” indica uma ação de cunho espiritual,

mesmo dando uma impressão de um certo escapismo e destaque para conflitos

pessoais. A recorrente afirmação da personagem, dizendo não ter feito o pacto, propõe

o equilíbrio, que doutrinas orientais pregam na concepção harmônica do homem. Para

se ter equilíbrio, é necessário que os pólos do bem e do mal coexistam, acionando,

assim, a célebre esfera Yin, Yang. A constatação que “ninguém não pode me impedir

de rezar; pode algum? O existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora da

sujidade; à parte de toda a loucura ou acordar da alma é o que é?” (GS:V, 458) vai ao

encontro da célebre constatação final de Riobaldo de que “Existe é homem humano.

Travessia”, ou seja, há constante travessia, uma busca infinita e a clara percepção de

que a travessia e a busca são completadas em um pontuado dialogismo. “O diabo não

existe...”: existe o equilíbrio.


180

9. AFRODITE NAS VEREDAS DO GRANDE SERTÃO

Na literatura greco-latina, toda manifestação amorosa é associada a Afrodite, a

deusa do amor.15 De acordo com Hesíodo, na Teogonia, Afrodite nasce da mutilação

do pênis de Urano, lançado ao mar, provocando uma fecundação espontânea: “espuma

da imortal carne ejaculava-se, dela uma virgem criou-se.” (TEOGONIA: v. 191-192)

15
A etimologia de Afrodite (*Afrodvvivth) talvez derive de aphrós (afróς) — espuma na língua grega
popular, “pelo fato de haver nascido do mar” (cf. BRANDÃO, 29: 1997) Nasceu da espuma do mar,
fecundada pelo pênis de Urano, logo que cortado por Cronos. Ao nascer, foi conduzida por Zéfiro em
uma concha de pérola e nácar e entregue às Horas. Foi educada, vestida e ornamentada e, em seguida
conduzida à mansão dos Imortais. Em alguns relatos aparece como filha de Zeus e Dione. Deusa da
beleza e do amor. Os gregos distinguiam três Afrodites: A Afrodite celeste, que inspirava o amor casto e
puro; Afrodite popular, que presidia aos amores sensuais e a Afrodite preservadora, que afastava os
corações das obscenidades e da volúpia. Geralmente era representada como sendo alva e loura, “a áurea
Afrodite” (cf. HOMERO), sempre com pouca vestimenta ou nua. Aparecia sempre com Eros sobre um
carro feito de conchas de nácar cor-de-rosa, tirado por cisnes ou pardais ou, principalmente, pombas. Nos
seus cortejos estavam as Cáritas: Eufrosina, Agalia e Talia. Não se imolavam vítimas a Afrodite,
ofereciam-se-lhe flores, perfumes, incensos e frutos. Entre as flores, a rosa estava-lhe consagrada. Entre
as frutas, a maçã; entre as árvores, a mirta ou murta. Era casada com Hefesto, mas constantemente
faltava-lhe a fidelidade conjugal, preferindo amantes como Ares. Foi escolhida por Páris Alexandre no
célebre concurso que ocorreu nas núpcias de Cadmo e Harmonia, recebendo como prêmio o pomo de
ouro. A diva ofereceu ao julgador a mulher mais bonita e o pastor recebeu a grega Helena como
recompensa. Amou intensamente os mortais Anquises e Adônis. Perseguiu Psique por esta ter se
igualado a sua beleza, fato que levou Eros a experimentar o teor de suas próprias setas. Inspirou Éos, a
aurora, um amor insano por Órion por aquela ter se unido a Ares. Tendo as mulheres de Lemnos deixado
de lhe trazer oferendas, castigou-as com um odor insuportável. Puniu as filhas de Ciniras, em Pafo,
forçando-as a se prostituírem aos estrangeiros. Deu vida à estátua de Pigmalião, para que o artista sentisse
o dom do amor. Deu ao velho barqueiro Fáon um bálsamo para que ele se tornasse jovem outra feita.
Tomou partido dos troianos na Guerra de Tróia. O rei Tíndaro ofereceu um sacrifício aos deuses devido
ao nascimento de sua filha Helena. No entanto, esqueceu-se da parte dedicada a Afrodite. A diva, irada,
jurou vingança: a esposa do rei, Leda, seria sempre infiel. Ela levou sua vingança ainda mais longe.
Quando nasceu Helena, instituiu que a princesa seria infiel ao marido e causa das maiores desgraças.
Trazia sempre consigo um cinto, onde se encontravam todas as graças e seduções. Era chamado de cesto.
Por Mirra ter-se negligenciado a venerá-la, incitou na princesa uma paixão incontrolável pelo próprio pai.
Para punir Hipólito por renunciar ao amor, infligiu na sua madrasta, Fedra, uma paixão sem igual pelo
enteado, fato que levou ambos à morte. Foi perseguida pelo monstro Tifeu, que se enamorou da deusa.
Apavorada, fugiu para as bordas do Eufrates. Quando estava prestes a ser capturada, dois peixes a
transportaram para longe. Em sua função arquetípica, aparece como sensual e amante, mulher criativa.
No enfoque junguiano, é retratada como sendo definitivamente extrovertida e sensível. Uma mulher com
perfil de Afrodite é sagaz em desfrutar da beleza e do amor, sendo, também, pródiga em relacionamentos
amorosos, promíscua, lenta em avaliar conseqüências. (cf. BRANDÃO, 354: 1997) Teve vários
descendentes: Eros, Ânteros, Deimos, Fobos e Harmonia, com Ares; Hermafrodito, com Hermes; Príapo
e Himaneu, com Dionísio; Enéias, com Anquises; Érix e Herófile, com Poseidon e Golgos e Béroe, com
Adônis. Designavam-se vários epítetos para Afrodite. Entre eles: Vênus (nome latino), Urânia,
Pandemos, Nínfia Hetaira, Cípria, Citeréia, Mirtea, Dionéia.
181

Logo após o seu nascimento fora conduzida ao lar dos deuses, já recebendo as suas

funções, assim descritas por Hesíodo:

Esta honra tem dês o começo e na partilha


coube-lhe entre homens e Deuses imortais
as conversas de moças, os sorrisos, os enganos,
o doce gozo, o amor e a meiguice.
(TEOGONIA: v. 203-6)

As funções de Afrodite são definidas, contendo um teor hierárquico alto. Ela já

aparece anteriormente a Zeus em tempo cronológico, pois nasce no início do reinado

do Titã Crono. Sendo assim, pode-se afirmar que o nascimento do amor precede, até, o

domínio de Zeus, que mais tarde reinaria sobre o mundo no monte Olimpo.

Platão, n’O Banquete, reflete sobre as plurifunções da deusa do amor cultuada

pelos gregos. Existiam, entre muitas funções, três principais. Afrodite Urânia inspirava

o amor casto e puro. Afrodite Polímnia ou Pandêmia, a Afrodite vulgar, presidia os

amores carnais e sensuais. Afrodite Apostrofia ou Preservadora afastava os corações

da impudicícia e da volúpia. Tais manifestações provêm da mesma Afrodite, que se

desdobra para cumprir as diversas nuanças do amor, nuanças nítidas no romance

Grande Sertão: Veredas.

Pausânias fala de uma Afrodite celeste, uma vulgar e outra preservadora. Assim,

distinguem-se as três espécies de amor: um casto, divinizado, outro vulgar, ou seja,

carnal, preso ao corpo e o último, um amor desordenado, que leva humanos a uniões

incestuosas e detestáveis. A Afrodite celeste era caracterizada pela veste estrelada,

enquanto outras geralmente eram representadas totalmente nuas. Em outras culturas e

épocas, no entanto, não se separava o amor puro do físico, o carnal. Em sua forma
182

inicial, Afrodite, deusa da paixão sexual, cumpria também funções de cunho celestial,

como as de genitora e como entidade protetora dos marinheiros. Com o passar dos

séculos, os gregos patriarcais reduziram as suas funções a tudo que concerne ao amor.

Paul Friedrich ensaia em The meaning of Aphrodite (O significado de Afrodite)

que a deusa do amor inspirava a paixão em heterossexuais e lésbicas, enquanto Eros

excitava as paixões entre homossexuais masculinos. A conotação de um amor carnal

aproxima-se muito mais de Afrodite; é fato notório que chamamos o desejo sexual de

afrodisíaco e não de erótico. O desejo sexual é afrodisíaco; a doença sexualmente

transmissível é venérea, de Vênus. Já Eros é associado a um amor puro. Quando a

religião cristã assumiu maior poder, baniram Afrodite. Outras entidades foram

substituídas, mas a deusa do amor teve que ser banida. Afrodite pareceu ser uma

ameaça ao paradoxo cristão, que idealizou uma divindade patrilinear sem forma ou

corpo. A Igreja via as mulheres como uma aproximação dos humanos de seus

instintos, portanto, distanciando-os de Deus.

Nem todos os relatos mitológicos concordam com a narrativa hesiodíaca do

nascimento de Afrodite. É deste nascimento que se tira a porção Pandêmia, saída da

espuma para todos. Jaques Mazel, estudioso da literatura grega, ressalta, no entanto,

que tal variante seria uma proposta para consolar Afrodite de sua condição de órfã. Dá-

se, então, uma mãe verdadeira, Dione, e um pai respeitável, Zeus, origem que dita uma

sexualidade mais determinada e ordinária. Talvez esta seja a explicação para o

comportamento dual de Afrodite. A deusa, gerada por Zeus e Dione, faz-se uma

Afrodite inapreensível, volúvel, sedutora e perigosa: “Perversa, polimorfa, por sua

origem paterna ela é deusa uraniana” ― celeste ― de acordo com os conceitos

platônicos e socráticos. A porção vulgar abraça o ideal do amor popular de cais, amor

cortesão ou amor venal. Sendo assim, há um encontro constante entre as várias


183

manifestações de Afrodite, concentrando-se, aqui, nas duas variações mais comuns,

mas nota-se que Afrodite sofrerá incontáveis variantes, que lhe atribuirão uma série de

epítetos. Quando surge como cúmplice de Perséfone, é chamada de Afrodite Mulhéia,

deusa dos covis. Além disso, aparece como Afrodite Melênis, a negra, Afrodite

Escótia, a sombria, pois as coisas do amor acontecem mais à noite, Afrodite Epitímbia,

a sinistra e Afrodite Andrófino, matadora de homens. Relacionada com a volúpia,

receberá modificações adjetivas como: Afrodite Peribásia ou Divaricátrix, por sua

habilidade em jogar e controlar as suas pernas e seus rins, membros e órgãos

associados diretamente com o amor carnal na cultura helênica. É também invocada

como Afrodite Casínia, que designa as cópulas impudicas, ou como Afrodite Decreto,

a corredora; talvez o símbolo maior da sensualidade seja a Afrodite Calipígia ou

Kalligloutos, “de belos glúteos”, belas nádegas.

Munindo-se das duas funções principais de Afrodite, pretende-se abordar o

desejo de Riobaldo e verificar o quanto o amor, iconizado pela deusa , participa das

reflexões do narrador autodiegético de Rosa. Ele permeia a narrativa rosiana de

maneira jocosa, literal às vezes, e ao mesmo tempo profunda. Pandêmia e Urânia se

intercalam dentro do universo do romance, evidenciado a importância do amor nas

reflexões e atitudes de Riobaldo.


184

9.1. Afrodite em Rosa

Beneditto Nunes lembra, em seu bem sucedido artigo “O amor na obra de

Guimarães Rosa”, que Riobaldo conhece três espécies de amor. O primeiro é o enlevo

por Otacília, o segundo é a avassaladora e dúbia paixão pelo amigo Diadorim e, por

último, a recordação de Nhorinhá.

Nhorinhá é o amor que mais incita o desejo sexual de Riobaldo: “Se chamava

Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pêlo — alegria que foi, feito casamento,

esponsal.” (GS:V, 28). As lembranças de Nhorinhá são lembranças voluntárias,

lembranças que se turvam depois que e o nome de Diadorim é lembrado. Este era o

amor misterioso, o amor que incomodava: “— que era aquilo?” Riobaldo se infunde

em explicações que o desorientam. “Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava.

Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa feita! “(GS:V, 114) Este amor eleva-

se mais ao espírito. Benedito Nunes ainda afirma:

A relação entre essas três espécies de amor, diferentes formas ou estágios e


um mesmo impulso erótico, que é primitivo e caótico em Diadorim, sensual
em Nhorinhá e espiritual em Otacília, traduz um escalonamento semelhante
ao da dialética ascensional transmitida por Diotima a Sócrates em O
Banquete, de Platão (...)(NUNES, 1991:145)

O modelo preestabelecido por Nunes faz sentido, ainda mais depois de explícitas

as três funções primordiais de Afrodite. No entanto, traços mesclam-se, meio que

alternando e diversificando as gamas de atributos designados à Cípria. Vez ou outra se

nota Otacília recebendo descrições mais erotizadas do narrador, assim como Diadorim.
185

Otacília parece carregar mais estes entremeados. Ao mesmo tempo que era “forte

como a paz”, descrição espiritualizada, era, também,” deitada, rezada, feito uma

gatazinha branca, no cavo dos lençóis lavados soltos.”

Todas as remissões a Nhorinhá, no entanto, são carnais, relacionadas com a

função corporal e mais popular do amor: “Nhorinhá prostituta, pimenta-branca, boca

cheirosa, o bafo de menino-pequeno.” (GS:V, 146) Ou, “Nhorinhá gosto bom ficado

em meus olhos e minha boca.” (GS:V, 78) “Nonada! A mais, com aquela grandeza, a

singeleza: Nhorinhá puta e bela.” (GS:V, 236)

Outras mulheres são lembradas por Riobaldo, a maioria meretrizes, com quem

conviveu rapidamente. Representam o amor carnal, a Afrodite Pandemia, a erotizada, a

carnal. Intercalam-se, na verdade, descrições da Afrodite Pandêmia e a Afrodite

Urânia.

O psicanalista Walter Boechat destaca a proximidade da função de cada deusa,

sugerida por Platão, e afirma que Afrodite “tem o poder de transmutar o prazer sexual

em êxtase espiritual.” (BOECHAT, 1995: 191) O entrelace das duas funções é notório,

mas existem trechos de andanças dos jagunços nos prostíbulos do serrado:

Dormi com uma mulher, que muito me agradou ― o marido dela estava
fora, na redondeza. Ali não dava maleita. De manhã cedo, a mulher me
disse:— ‘Meu pai existe daqui a quarto-de-légua. Vai, lá tu almoça e janta.
De noite, se meu marido não tiver voltado, eu te chamo dando avisos.
(GS:V, 106)

Ou ainda:

Saí alegre do bordel, acinte. Depois, o Fafafa, numa venda, perguntou se não
tinham chá de mate seco, comercial; e o homem tirou instantâneo nosso
186

retrato. Se chamava o lugar: São João das Altas. Mulher esperta,


cinturinhazinha, que me fez bem. O senhor releve e não reprove. Demasias
de dizer sobem com as lembranças da mocidade.” (GS:V, 148)

Percebe-se, no entanto, uma freqüência maior da mescla das duas funções do

amor, as funções de Cípria. O envolvimento sensual e o sentimento do amor puro

permeiam as várias situações ocorridas no romance, especialmente os trechos

envolvendo Diadorim e Otacília. Atente-se para as descrições envolvendo Otacília. A

personagem desperta desejos carnais em certas passagens, apesar de seu amor, na

maioria das vezes, vincular-se ao amor mais espiritualizado:

Mas, em tanto que ela falava, e mesmo com a confusão e os latidos de


muitos cachorros, eu divulguei, qual que uma luz de candeia mal deixava, a
doçura de uma moça, no enquadro da janela, lá dentro. Moça de carinha
redonda, entre compridos cabelos. E, o que mais foi, foi um sorriso. (GS:V,
122)

Tais dotes físicos, porém, mesclam-se com teores de amor puro representado

pela Afrodite Urânia e o amor carnal pela Afrodite Pandêmia. Otacília é

constantemente referida contendo uma porção erotizada e outra espiritualizada.

“Conheci que Otacília era moça direita e opinosa, sensata, mas de muita ação.” (GS:V,

148) ou “Só olhava para frente da casa-da-fazenda, imaginando Otacília deitada,

rezada, feito uma gatazinha branca no cavo dos lençóis lavados soltos. Ela deusa de

sonhar assim.” (GS:V, 151)

Otacília mune-se de atributos eróticos, mas predomina em sua figura o arquétipo

do amor mais espiritual, idealizado na mente do narrador. A porção Urânia subjuga a

Pandêmia ao longo da narrativa, daí dizer que a porção mais espiritualizada do amor

recai em Otacília, como confirma o trecho abaixo:


187

― “Casa comigo...” — Otacília baixinho me atendeu. E, no dizer, tirou de


mim os olhos, mas o tiritozinho de sua voz eu guardei e recebi, porque era
de sentimento. Ou não era? Daquele curto lisim de dúvidas foi que minou
meu mais querer. E nome o nome da flor era dito, tal, se chamava — mas
para os namorados respondido somente. Consoante, outras, as mulheres
livres, dadas respondem: — “Dorme comigo...” (GS:V, 146)

Depois de pontuadas as funções primordiais de Afrodite e feitos os seus

paralelos no enunciado rosiano, chame-se a atenção para outros aspectos que possam

merecer atenção pormenorizada.

9.2. Afrodite e os seus símbolos no Grande Sertão

Afrodite é associada a vários elementos da natureza, pois a deusa pertence à

terra, às montanhas e ao mar, lugar de onde surgiu, de acordo com Hesíodo. Vê-se

Afrodite acompanhada de gansos e golfinhos, com frutas, diversas flores, rosas,

jacintos, papoulas e romãs. Consta que seus pêlos pubianos são relacionados com as

mudas de alface e com outras flores contendo cinco pétalas. Não raro, Afrodite aparece

segurando uma maçã, o prêmio que ganhou de Páris Alexandre. A presença de

Afrodite também é notada através de símbolos e, além de deusa do amor, é deusa das

flores. Sobre este aspecto reflete Boechat:

A flor sintetiza de forma admirável o mistério de Afrodite , as flores são o


mais belo órgão sexual do universo. Muitas são as imagens floridas
representativas da beleza sexual feminina, entre elas a rosa vermelha,
colorida e perfumada, mas com espinhos que podem machucar, como fazem
sofrer as paixões do amor. (BOECHAT, 1995: 193-4)
188

A constante referência às flores, no enunciado rosiano, ressalta a intrínseca

presença de Afrodite na narrativa. Em um momento de conflito entre Otacília e

Diadorim, nota-se a flor como representação genuína do amor e como o sentimento

desponta nas duas personagens.

Os dois tipos de amor são confrontados: o de mistério, o incômodo, visto na

descrição de Diadorim, e o espiritualizado, mais comumente representado pelo

semblante de Otacília. Na verdade, Diadorim e Otacília parecem disputar a porção

Urânia da deusa Afrodite, canalizando a representação pelas flores:

Porque, no meio do momento, me virei para onde lá estava Diadorim, e eu


urgido quase aflito. Chamei Diadorim — e era um chamado com remorso —
e ele veio, se chegou. Aí, por alguma coisa dizer, eu disse: que estávamos
falando daquela flor. Não estávamos? E Diadorim reparou e perguntou
também que flor era essa, qual sendo? — perguntou inocente — “Ela se
chama liroliro” — Otacília respondeu. (GS:V, 146)

A flor participa diretamente da confrontação das duas personagens. Otacília,

assim como Diadorim, absorve a representação de Afrodite, pois a deusa insinua-se em

variadas instâncias simbólicas.

Vários estudiosos da mitologia grega vinculam Afrodite e seus dons com a

representação simbólica das flores. Pierre Grimal afirma que “as suas plantas eram as

rosas e o mirto.” (GRIMAL, 1999:11) e Tassilo Orfeu Spalding explica: “não se

imolavam vítimas a Vênus; seus altares jamais eram manchados pelo sangue;

ofereciam-se-lhe flores, perfumes, incensos e frutos.” (SPALDING, 1965: 268)


189

O forte vínculo de Afrodite com as flores carrega o enunciado com a sua

presença. Como diria o poeta Mimnermo de Cólofon: “Sem a Afrodite de ouro, que

vida existe e que doçura?” Píndaro, confirmando a tradição, diz: “... da enganadora

deusa, de Afrodite, as rosas engrinaldam...” No Grande Sertão: Veredas as flores

enlaçam as finas sedas do enunciado e, quase sempre, enfeitam alguma cena de denso

teor sentimental ou alguma localidade onde acontecem certos enlaces marcantes.

A remissão às rosas nos leva, também, ao nome de Rosa’uarda, citada algumas

vezes pelo narrador. Sua lembrança transita entre o desejo carnal e o espiritual, mas a

presença nos remete especificamente à representação de Afrodite enquanto figura

icônica. A começar pelo nome. Rosa’uarda é a repetição de Rosa. Rosa no vocábulo

vernáculo e Rosa em turco. Tem-se, então, formação nominal, substantiva, do símbolo

diretamente ligado à deusa Afrodite.

Interessante notar que Afrodite é entidade oriunda da Ásia Menor,

circunstancialmente a localidade geográfica de onde descende Rosa’uarda. “Sempre

me dizia uns carinhos turcos”, ou, também, “Toda a vida gostei demais de estrangeiro”

(GS:V, 90) Rosa’uarda incute a função dual de Afrodite, tão presente e refletida aqui.

Ao mesmo tempo em que ensinou Riobaldo “as primeiras bandalheiras, e as

completas, que juntos fizemos, no fundo do quintal, num esconjo fiz com muito anseio

e deleite”, Rosa’uarda é referida como tendo olhos que “brilhavam exaltados e

extraordinários pretos, duma formosura mesmo singular.” (GS:V, 90), qualidade

nitidamente de cunho espiritual.

O amor por Diadorim é enigmático, causa medo. O de Otacília inspira a paz. É o

amor dos cavaleiros andantes, que cultuavam as suas nobres damas, glorificando,

assim, ainda mais os seus feitos heróicos. Nhorinhá atiça a sua virilidade, o amor

fisiológico, material, efêmero, mas nem por isso, menos lembrado que os outros
190

amores. Tais reflexões remetem à primorosa obra de José de Alencar, O Guarani, nela

está proposta, também, uma tríade de amores. No romance lê-se que “Loredano

desejava; Álvaro amava; Peri adorava.” Alencar deixa claro que o aventureiro: “daria a

vida para gozar”, o segundo, o galante cavalheiro, enfrentaria a morte “para merecer

um olhar” e o protagonista, o índio Peri, “se mataria, se preciso fosse, só para fazer

Cecília sorrir.” As funções de Afrodite também foram apresentadas nas personagens

masculinas do romance de Alencar. São segmentados linearmente com Loredano,

começando pelo o amor de desejos e, com Álvaro e Peri, alternando a concepção mais

espiritualizada, sendo o amor de Peri o mais enigmático, denso. Rosa funde os

sentimentos em Riobaldo, que contém todas as porções, diferente dos três personagens

românticos , bem mais lineares que o rosiano.

Outro vínculo do enunciado com a representação de Afrodite manifesta-se em

certos trechos onde pombos aparecem como o anúncio do amor. Nos dizeres de Safo

de Lesbos: “A tua carruagem atrela, ó Deusa, belos pássaros rápidos: eles a escura

volta darão à terra escura cruzando o éter sempre pela esteira do céu.” Tal pássaro é

freqüentemente associado a Afrodite, por isso suas aparições na narrativa rosiana

podem remeter ao amor. O dicionarista Pierre Grimal, como a poeta Safo, aponta o

pombo como sendo o pássaro que faz a tração do carro de Afrodite. “Os animais

favoritos da deusa eram as pombas. Era um casal destes animais que puxava seu

carro.” (GRIMAL, 1999: 11) Chevalier, no seu dicionário de símbolos, ajuda a

evidenciar o forte vínculo do pássaro com a deusa do amor da mitologia grega:

Na acepção pagã, que valoriza de modo diverso a noção de pureza, não a


opondo ao amor carnal mas associando-a a ele, a pomba, ave de Afrodite
representa a realização amorosa que o amante oferece ao objeto do seu
desejo. (CHEVALIER & GHEERVRANT, 1996: 728)
191

O céu é o lugar de Afrodite, ele remete às antigas deusas-pássaro das religiões

pré-helênicas. As pombas a obedecem. Afrodite anda no ar, em carro tirado por

pombos, cisnes, gansos, aves conhecidas por sua placidez e beleza. Quando a deusa

descansa, senta-se em trono de cisnes. Afrodite, então, mais uma vez, manifesta-se

com um alto teor simbólico. Na mitologia grega, é sabido que Afrodite exercia uma

grande capacidade de manipular quem encantava. Foi assim quando inspirou o amor de

Eós por Orión, o de Fedra por Hipólito e o de Mirra pelo próprio pai, todos esses

amores causaram intensa dor. Inspirou amores puros, como o de Pigmalião pela estátua

Galatéia. Na narrativa, a presença da ave, especificamente o pombo, insere-se com as

reflexões sobre o amor feitas pelo narrador Riobaldo:

Aí, falei dos pássaros, que tratavam de seu voar antes do mormaço. Aquela
visão dos pássaros, aquele assunto de Deus. Diadorim era quem tinha me
ensinado. Mas Diadorim agora estava afastado, amuado, longe num
emperrêio. Principal que eu via eram as pombas. No bebedouro, pombas
bando. E as verdadeiras, altas, cruzando do mato. ― “Ah, já passaram mais
de vinte verdadeiras...” ― palavras de Otacília, que contava. Essa
principiou a nossa conversa. Salvo uns risos e silêncios, a tão. Toda moça é
mansa, é branca e delicada. Otacília era mais. (GS:V, 146)

O amor infla-se, metaforicamente representado pelo vôo dos pombos, diante

daquela situação densa vivida pelo narrador-personagem. O sentimento ministrado por

Afrodite eclode nos ditos sobre Diadorim, nas falas sobre Otacília. Para Jaques Mazel,

a flecha direcionada para as paixões femininas é atirada por Afrodite. Eros é conhecido

como o flecheiro do amor, mas Afrodite é a senhora, a dona do sentimento. Mesmo na

obra de Hesíodo, onde Eros aparece como entidade primordial, Afrodite não deixa de

ter total domínio do amor, tendo Eros como um fiel emissário. As proezas do amor,
192

suas nuanças, os estratagemas são elaborados por Afrodite. Confirma-se, assim, a

função que a maioria dos mitólogos dão a Eros, como o filho dedicado de Afrodite,

que se rebelou somente uma vez, vítima de suas próprias setas. De cantos langorosos e

sedutores, Afrodite representa mais o amor físico, a união “carnal e sensual ligada à

natureza dos corpos e às necessidades da espécie.” (cf. MAZEL, 1991:180) Eros

inspira outro sentimento, um mais moral e pedagógico, “aquele que anima o espírito

pederástico elevado ao nível de uma paixão profunda e desinteressada.” (MAZEL,

1991: 180)

Afrodisíaco, o que vem de Afrodite, remete à união sexual. O vocábulo

(*a*frodisiavzw) implica em ter relação sexual, “a atividade genital”, entrega aos prazeres

do amor... Afrodite incutiria o desejo de uma pessoa para a outra, a paixão seria

atributo de Eros. O sentimento erótico e de afrodisia de Riobaldo permeiam a

narrativa. Considera-se, no entanto, que ambos os sentimentos ministram-se via

Afrodite. Eros age como vetor dos desejos e vontades da mãe.

9.3. Afrodite anunciada

Afrodite continua envolvendo o enunciado rosiano, confunde Riobaldo e o

desnorteia em conflitos sobre a sua personalidade. Afrodite o dilacera com as suas

porções ambíguas ou, até, antagônicas. Ora o jagunço se vê divagando sobre um

possível amor homossexual, que possa estar sentindo pelo companheiro, ora Riobaldo

inunda os seus pensamentos com a doce imagem de Otacília. Tanto as porções Urânia
193

quanto a Pandêmia alternam-se no romance. Riobaldo, carregado de dúvidas,

confunde-se também com a complexidade do amor. As reflexões mostram a blandícia

de como Cípria participa das ações do protagonista de Rosa. A porção Urânia é

constatada em trechos como:

Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor
de ouro. De doer, minhas vistas bestavam, se embaçavam de renuvem, e não
achei acabar para olhar para o céu. Tive pena do pescoço do meu cavalo ―
pedação, tábua suante, padecente. (GS:V, 42)

O amor de prata e o amor de ouro sendo, respectivamente, Otacília e Diadorim,

ilustram as reflexões acerca das funções de Afrodite no romance rosiano.

O amor de ouro, um amor mais sublimado por ser inacessível e misterioso

recebe grande atenção do narrador. Ouro, no sentido primeiro, revela essa porção de

amor que mais prezou, o amor de dimensões idealizadas por Diadorim. O amor de

prata, o amor espiritualizado, é o amor que transcende o carnal e se envolve com

questões da alma. Otacília representa esse tipo de amor, especialmente no momento

em que o narrador lhe dá uma condição de prata. O amor espiritualizado, então, ocupa

o segundo lugar em importância, o amor em um sentido que excede o material.

Outros momentos do romance ajudam a refletir sobre os vários tipos de amor

representados por Afrodite. Nota-se o entusiasmo de Riobaldo quando a personagem

percebe que Diadorim corresponde ao belo garoto que, na sua infância, conheceu na

beira do rio. O amor sublimado transparece:

O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem,
mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquele do porto de Janeiro,
daquilo que lhe contei, o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa,
toda a vida. E ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes,
194

semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor


bonita, o nariz fino, afiladinho. (GS:V, 107)

Riobaldo também refletia sobre seu intenso relacionamento com Diadorim; dizia

ser forte, sincero. A função Urânia de Afrodite parece prevalecer no sentimento de

Tatarana, no entanto, uma atração física é notada e inúmeras vezes o narrador fala de

um desejo carnal acerca do amigo.

Na concepção helenística, a atração física vincula-se à formação espiritual do

amor. Corpo e mente são constantemente associados no pensamento helênico. Afrodite

mantinha-se sempre bela. Renovava a sua beleza com banhos mágicos, restaurando o

hímen. Certa vez, muniu Psique com uma caixa — pýxis (puvxiς) — e ordenou-lhe que

enchesse o receptáculo com um creme que contivesse a beleza única da rainha do

Hades, Perséfone. Tal bálsamo fora associado ao muco vaginal, ligando o ato sexual

com o conceito de belo, tanto beleza física quanto espiritual. O amor Urânia, para se

renovar, precisa do aspecto corporal, de sua força.

Grande parte do conflito da personagem Riobaldo reside justamente em conter a

paixão e o desejo carnal, inerentes à função pandêmia de Afrodite, diante de Diadorim.

O amor espiritual se concretiza, o carnal não. Este fato divide Riobaldo, o incomoda. O

protagonista não concretiza o amor Pandêmia, prova de que o amor espiritual e carnal

se conjugam. Não haveria razão para tanta angústia, tanto conflito, se Riobaldo se

satisfizesse com a porção Urânia do amor. A atração física se ressalta nos trechos

descritos abaixo:

Diadorim também disso não disse; ele gostava de silêncios. Se ele estava
com as mangas arregaçadas, eu olhava para os braços dele ― tão bonitos
195

braços alvos, em bem feitos, e a cara e as mãos avermelhadas e empoladas,


de picadas de mutucas... (GS:V, 30)

ou:

Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do


cheiro dele. Mesmo no escuro, assim, eu tinha aquele fino das feições, que
eu não podia divulgar, mas lembrava, referido, na fantasia da idéia.
Diadorim — mesmo o bravo guerreiro — ele era para tanto carinho: minha
repentina vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se
acabava e remansava a dureza do queixo, do rosto... Beleza — o que é? E o
senhor me jure! Beleza, o formato do rosto de um: e que para outro pode ser
decreto, é, para destino destinar... E eu tinha de gostar tramadamente assim,
de Diadorim, e calar qualquer palavra. Ele fosse uma mulher, e à-alta e
desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer paixão e no fazer —
pegava, diminuía: ela no meio de meus braços! (GS:V, 436)

Riobaldo nutre o amor incutido por Afrodite Urânia quando, em suas descrições,

enaltece as qualidades espirituais do amor ao invés de suas características carnais:

Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com
uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos — vislumbre meu
— que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum
pasto. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro
ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem
tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... Reforço o dizer:
que era belezas e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa
que o entender da gente por si não alcança. (GS:V, 374)

Mesmo podendo perceber manifestações isoladas da função Urânia e Pandêmia

nas falas de Riobaldo sobre Diadorim, nota-se uma mescla desses dois tipos de amor.

O protagonista deseja o amigo na esfera espiritual e na esfera carnal.

Destacada a presença de Afrodite nas descrições de Diadorim, passa-se, agora,

para as descrições envolvendo Otacília, que é referida como sendo a “Moça de cara

redonda.” (GS:V, 122) Difícil não associar tal atributo físico à própria aparência de
196

Afrodite. A deusa geralmente é representada com traços sinuosos, expressivos. Tais

traços, nas culturas indo-européias, descreviam o quão férteis eram os seres.

Acreditava-se que quem possuísse tais características físicas especificadas eram

abençoados por Afrodite. Aponta-se, também, que entre as inúmeras funções de

Afrodite existia a fecundidade, que homens e mulheres férteis usufruíam dos dons da

deusa do amor e não só a face de Afrodite, mas assim como outras partes anatômicas,

remetem à fertilidade.

Sabe-se que os gregos levaram um bom tempo para chegar à concepção de

Afrodite. Em esculturas mais antigas, a deusa aparece vestida. Aos poucos, partes do

corpo, como as espáduas, coxas e seios foram sendo reveladas, mas a nudez sensual só

se manifesta na idade helênica. Entre as representações da deusa, estão obras

marcantes como o afresco perdido de Afrodite Anadiômena, pintado por Apeles (IV

a.C.), Afrodite Cnida, de Praxíteles (370? – 330 a.C) e a célebre Vênus de Milo

(Afrodite de Melos), descoberta em 1820 na ilha de Melos, assim como a Afrodite de

Cápua. Todas mostram uma Afrodite voluptuosa, que ajuda a personificar o instinto

natural de fecundação e geração, muito presente nas crenças pré-helênicas e helênicas.

Mesmo abraçando esta função institiva, Afrodite era, por excelência, a deusa do

sentimento amoroso. Simbolizava o atrativo sexual e espiritual, tanto na forma mais

pura quanto na mais profana. Suas formas inspiraram pintores de inúmeras eras.

Nomes como Veronese, Ticiano, Rubens, Velázquez, Botticelli e Salvador Dali

valeram-se da estereotipia de Afrodite para idealizar as suas representações.

As chamadas estatuetas de Afrodite, de 30.000 anos atrás, são conhecidas por

suas formas femininas exageradas: seios e quadris fartos, largos. Vulvas triangulares

bastas. Nádegas carnudas pronunciadas. Afrodite era uma deusa de funções mais

amplas nos tempos pré-helênicos. Originalmente, fora deusa marinha, do céu e até da
197

morte. Os romanos designavam necrópoles, mausoléus e catacumbas como sendo

pombais; ave, como foi mencionado anteriormente, associada à deusa. Um de seus

epítetos, Citeréia, remete ao poder criativo e ao prazer físico. Muitos acham que

Afrodite provém da grande deusa de Chipre, mais tarde assimilada pelo enunciado de

Homero. Representações icônicas deste cunho geralmente mostram uma imagem de

barro, de quadris enormes e pernas finas terminando em ponta. Ao contrário de

algumas divindades, Afrodite não mantém distância entre ela e aqueles que caem sob o

seu poder. Ela se entrega ao amor intensamente, como os mortais, pois só assim

compreenderia e libertaria o poder do desejo para que ela e os seus súditos se

rendessem completamente ao amor. Afrodite, então, é o próprio desejo, a cura, pois

embora o amor penetre no fígado (como pensavam os gregos), a paixão cura. O sexo

afasta a dor, liberta o corpo.

Novamente volta-se ao enunciado rosiano, mais precisamente às descrições da

personagem Otacília. Ela, notadamente, compõe a figura icônica de Afrodite, tanto nos

aspectos físicos quanto na concepção Urânia da deusa do amor.

Há, nas descrições do protagonista, a presença do amor sensual e espiritual

quando se refere a Otacília:

Otacília — me alembrei da luzinha de meio mel, no demorar dos olhares


dela. Aquelas mãos, que ninguém tinha me contado que era assim, para gozo
e sentimento. O corpo — em lei dos seios e da cintura — todo formoso, que
era de se ver logo decorar exato. E a doidice da voz: que a gente depois
viajasse, e não faltava frescura d’água em nenhumas todas as léguas e
chapadas... Isso tudo então não era amor? Por força que era. (GS:V, 369)

Riobaldo descreve aspectos de Otacília, aspectos que a dotam tanto com o amor

espiritual quanto o físico, carnal:


198

O senhor me ouviu. Em como. Otacília e eu ficamos gostando um do outro,


conversamos, combinados no noivável, e na sobremanhã eu me despedi, ela
com a cabecinha de gata, alva no topo da alpendrada, me dando a luz de seus
olhos; e de lá me fui, com Diadorim e os outros. (GS:V, 233)

Afrodite aflora na narrativa rosiana, ora com uma blandícia quase imperceptível,

ora com clareza linear. Este paradoxo é perfeitamente explicável. Paul Diel considera-a

deusa do amor sob forma puramente física, geradora de vida. Já em um âmbito

psicanalítico, na qual o amor se completa em sua união com a alma, a deusa representa

a perversão sexual, pois a harmonia do amor puro é associado a Hera, a protetora dos

casamentos.

Não se pode dissociar, no entanto, o ato amoroso do ato carnal, pois “o ato da

fecundação pode ser buscado unicamente em função do prêmio do gozo que a natureza

infundiu no ato.” (DIEL, 1991: 114)

As ambivalências nas representações de Afrodite rodeiam o pensamento de

Riobaldo, explicitadas em descrições físicas ou entremeadas no enunciado. Atenta-se,

agora, para Afrodite enquanto personagem, pois é assim que ela se manifesta na Ilíada,

personificada e movente no enunciado homérico.


199

9.4. Afrodite na Ilíada

Exercendo a função de deusa do amor, Afrodite participa ativamente da guerra

de Tróia. Sua primeira aparição é no Canto III; a partir daí, aparece nos outros cantos

de modo bastante intenso.

Vale ressaltar a marcante presença de Afrodite nos campos de batalha, pois a

deusa participa da guerra. No já citado Canto III, por exemplo, Afrodite intervém no

embate entre Páris Alexandre e Menelau. Ela se materializa no campo de batalha e

rasga a tira de couro que prende o elmo do príncipe troiano, no momento em que é

arrastado para as fileiras das tropas inimigas, pelo arqui-rival Menelau. Dos campos

sangrentos da guerra, a deusa transporta Páris para o leito perfumado da formosa

Helena, inundando os amantes com o sentimento do amor. Nesse momento, dá-se uma

estranha cena de Afrodite reprimindo Helena. A deusa age simultaneamente, como a

motivação sexual interna da princesa grega raptada, ao mesmo tempo em que age

como uma deidade poderosa, agindo externamente, usando de sua presença física ou

antropomórfica. Helena não consegue resistir a tamanha força e sucumbe à onipotência

de Afrodite. Geralmente, os deuses aparecem disfarçados para os mortais, Cípria

dialoga com Helena, disfarçada. Helena percebe a perfeição do colo da mortal que a

interpela, sabendo que tal perfeição só pode originar-se de uma deusa. A filha de Zeus

e Leda tenta reagir, mas é severamente censurada, como aparece no trecho:

Cheia de cólera, a deusa Afrodite lhe disse, em resposta:


“Não me provoques, criatura infeliz, porque não aconteça
que te abandone e te venha a odiar quanto agora te prezo.
Se entre os Acaios e Teucros fizesse surgir ódio infausto
contra tu própria, haverias de ter um destino bem triste.”
(ILÍADA, CANTO III: v. 413-19)
200

Apesar de Afrodite ter-se disfarçado ao abordar Helena, não é raro um deus se

revelar para um mortal na sua forma antropomórfica, fato que ocorre neste trecho e em

vários outros da Ilíada. Afrodite fez questão de reprimir Helena assim que o uso do

disfarce foi descoberto.

Afrodite intercala uma pluralidade de funções no poema épico homérico, assim

como se pode constatar no romance rosiano. Ao longo do texto, nota-se uma grande

variação nos epítetos que modificam o nome da deusa, o que revela a costante

mudança e dinamismo de sua postura na narrativa épica. Afrodite abrange todas as

funções do amor e até intervém em batalhas. Fisicamente, vem descrita como áurea,

dourada, loura, a chriso-kómes (cruso-kovmhς). Lembra Karl Kerényi que os dotes

anatômicos mais evidentes de Afrodite eram revelados pela sua nudez. Raramente

tem-se uma descrição da deusa vestida.

É comum se deparar com o vocábulo meidivama (sorriso) nas descrições de

Afrodite. Homero descreve muito Afrodite como sendo a dioz qugavthr (filha de deus),

pois os relatos homéricos, ao contrário das obras de Hesíodo, classificam a deusa como

filha de Zeus e Dione. Apesar de ser descrita como “amiga dos sorrisos”, Afrodite

recebe epítetos variados de acordo com o contexto em que age. Quando é abordada por

Hera, no Canto XIV, o epíteto “filha de deus” é usado, pois a esposa do deus maior

requer a cinta que induz o amor em todos os entes. Assim que recebe o adorno de

propriedades eróticas, o adjetivo sorridente ou “que gosta de sorrir”, (Filo-meidhvς),

revela-se. Os epítetos não se relacionam com a rivalidade entre Hera e Afrodite; na

verdade, a rainha dos deuses usa das artimanhas da sedução, propriedades associadas à

deusa do amor.
201

Já no Canto V, Afrodite se mostra uma mãe zelosa ao interferir em favor do

filho Enéias, que luta por Tróia. A deusa interfere diretamente na batalha e tem a sua

mão ferida por Diomedes. O corte provoca o corrimento de um “icor que mana do

corpo dos deuses bem-aventurados”, como descreve Homero, e o inevitável retirar de

Cípria da batalha. No Canto XXIII, Afrodite desce do Olimpo para assegurar que o

corpo de Heitor, morto por Aquiles, não seja aviltado por cães ou aves de rapina. Ela

unta o cadáver do guerreiro com óleo e rosas, para que Aquiles não o esfolasse ao

arrastá-lo em sua biga.

Homero, no Canto VIII da Odisséia, descreve o momento em que Afrodite e

Ares são enlaçados na rede invisível fabricada por Hefesto. O ato sexual congela-se e

os amantes ficam expostos aos olhares das outras entidades olímpicas masculinas.

Afrodite, atada, com o amante dentro de si, recolhe-se na própria ação por ela

sublimada. Ao mesmo tempo em que luta para se desprender da rede, concentra-se nos

comentários dos observadores, envaidecendo-se com as palavras de Hermes:

Ó Rei Apolo, que longe remessas as setas, prouvera


que tal se desse, com três vexes mais desses elos em torno,
e os deuses todos e as deusas à volta estivésseis olhando,
contanto que me deitasse no leito com a áurea Afrodite.
(ODISSÉIA, CANTO VIII: v. 339-42)

ou com os comentários irônicos de Apolo:

Hermes, ó filho de Zeus, mensageiro e dador de presentes,


desejarias sentir-te enleado nas fortes cadeias,
tendo ao teu lado, deitada no leito, a divina Afrodite?
(ODISSÉIA, CANTO VIII: v. 339-42)
202

Poseidon, fascinado, pede para que Hefestos liberte os amantes, pois a visão

também o perturbava, principalmente diante da presença de Zeus.

A cena ajuda a endossar certas concepções arquetípicas de Afrodite. Junito

Brandão lembra que a deusa é geralmente prodígia em relacionamentos amorosos,

assim como os mortais que agem sob a sua tutela. Mulheres que seguem esta função

arquetípica, considerando o modelo de análise junguiano, muitas vezes vivem

intensamente um relacionamento amoroso, mas são lentas para avaliar as

conseqüências de seus atos e são promíscuas. Contêm alta sagacidade em desfrutar da

sublime beleza do amor, de sua sensualidade e criatividade nos dons eróticos. Tais

qualidades são ditadas por Afrodite e a sua função arquetípica de mulher sensual,

amante contumaz e criativa se aplica.

Emaranhada em rede, Afrodite infiltra-se na diegese rosiana, personagem voraz

na mente dividida de Riobaldo Tatarana; uma presença sentida, como os altares de

fumantes incensos, sempre acesos em nome da diva. Nos versos de Hesíodo, vimos

que Afrodite controla tudo que concerne ao amor. Todo mortal está submetido aos

seus melindres.

Relembrando a cena descrita por Demódoco na Odisséia, Poseidon se sente

perturbado na presença de Afrodite. Mesmo presa, a deusa deixa uma inquietude

constante no ar; as outras deusas nem ousaram ficar no recinto, tamanha a repulsa e o

estranhamento provocado. O mesmo incômodo encontra-se no enunciado rosiano.

Riobaldo não escapa, em pleno sertão mineiro, da divindade grega. A rede que envolveu

a própria Afrodite amarrou-a à narrativa de Rosa, pois no sertão há amor, engano,

desassossego, paixão. Há Afrodite.


203

PARTE III — VEREDAS ENIGMÁTICAS

“Só quem entendia de tudo eram os gregos. A vida


tem poucas possibilidades.”

(João Guimarães Rosa: Fatalidade)


In: Primeiras Estórias
204

10. VEREDAS, ENTROCAMENTOS E ENCRUZILHADAS

(CONSIDERAÇÕES FINAIS)

Seria, no mínimo infundada, a tentativa de se concluir a presente tese. Por isso,

levantam-se, agora, pontos não conclusivos, mas que ampliariam estudos envolvendo

tanto o Grande Sertão: Veredas quanto a Ilíada.

Entende-se, neste texto, o exercício comparativo como um fenômeno ligado

intimamente à leitura. Não há pretensão alguma de encerrar algo essencialmente

inclinado a se perpetuar. O ato de leitura permite que a obra literária se emancipe de

seu tempo, contexto e espaço, seguindo como expressão autônoma que é.

João Guimarães Rosa certa vez disse que tinha horror ao efêmero. Averigua-se

a total inserção deste pensamento no perpetuar da história em si. É o caso de se

concordar com a fenomenologia, especialmente a parte orientada para o leitor, que

geralmente é chamada de “estética da recepção”. Já que uma obra é “uma resposta a

perguntas colocadas por um ‘horizonte de expectativas’” (cf. CULLER, 1999: 120),

entende-se que o processo de leitura encontra-se intimamente relacionado com a

duração e permanência da obra literária na sociedade. Por isso, levando em

consideração o fenômeno da recepção, a “interpretação das obras deveria, portanto,

enfocar não a experiência de um indivíduo, mas a história da recepção de uma obra e

sua relação com as normas estéticas e conjuntos de expectativas mutáveis, que

permitem que ela seja lida em diferentes épocas.” (cf. CULLER, 1999:120)

Obras como Grande Sertão: Veredas e Ilíada pertencem a um legado literário

fundamentado por parâmetros que mudam de tempos em tempos, mas que estabelecem

modelos de continuidade. Se Homero fundou este exemplo modelar, e se este modelo


205

dura até a presente data, conclui-se que tal fenômeno só fora possível devido ao

interesse do leitor em exercitar a proposta de libertação, sugerida por Hans Robert

Jauss. Levam-se em consideração, também, fatores ideológicos, que acabam por eleger

cânones literários que se consagram e se imprimem no arcabouço artístico da

humanidade, evidenciando paradigmas filosóficos e estéticos, geralmente aceitos pelos

leitores ou inconscientemente internalizados por eles. 16

10.1. Um Estudo Misturado

Riobaldo, observando as falas e as ações de Zé Bebelo, constata um mundo

misturado ou, também, “o mundo à revelia...” (GS:V, 216). O mundo é misturado e

interrelacionado; o sertão é do tamanho do mundo e incluí o Ílion na sua imensa

vastidão.

Reflete-se justamente sobre esta vastidão. A princípio, um encontro entre a

epopéia e o romance. Lukács lembra que “o romance é a epopéia de um mundo sem

deuses” (cf. LUKÁCS, 1999:89) e, assim, amalgama-se com o contar do aedo,

incluindo no seu formato uma inquietude existencial, inquietude esta percebida no épico

homérico também. Para Adorno, há no narrador do romance algo que o impele a

confrontar o infinito, uma pletora de indagações e retóricas, mas nunca uma solução. O

16
A noção de cânone, apresentada aqui, muito se relaciona com as reflexões de Harold Bloom no
aclamado O Cânone Ocidental. No entanto, é esclarecedora e bem elaborada a idéia apresentada por
Flávio Kothe em O Cânone Imperial. Os dois estudiosos entendem a questão de maneira bem distinta.
Enquanto o crítico americano defende a autonomia do domínio da estética e se mostra visivelmente contra
os estudos culturais em literatura, o professor brasileiro desconstrói a idéia rígida de texto canônico,
denunciando-a, até, como impostura ideológica.
206

mundo tão acabado e perfeito do homem clássico tornou-se uma grande indagação e

uma perpétua reflexão.

Riobaldo questiona-se incessantemente. Sua narrativa vem a ser uma busca de

sentidos. Instâncias, que a princípio se mostram dicotômicas, o assolam, pois se

fundem, e Diadorim ainda nebula o seu pensamento.

Socialmente, Riobaldo estabelece-se no burgo que herdara de seu padrinho/pai,

mas existencialmente tudo é ainda muito confuso, intenso, vívido. Por um lado, temos o

enredo aventuresco que finda de maneira tradicional. Ao mesmo tempo, instala-se a

narrativa subjetiva que não se deixa calar. Dois eixos misturam-se: a aventura no sertão

— a ação; e a reflexão do ser — a introspecção. Lukács estabelece que o romance é uma

forma de aventura, mas é essencial perceber a interioridade, o conhecer-se, ou aprender

a conhecer-se. O aventuresco nada mais é do que a própria ação para conhecer-se em

busca da própria essência. (cf. LUKÁCS, 1999:91)

Vale falar da estrutura do Grande Sertão: Veredas para dimensionar o seu

processo de construção ficcional. Os elementos da narrativa são tratados de maneira

singular no romance, um refinamento raro, presente apenas nas grandes obras da

literatura universal.

O livro pode ser dividido em partes. A primeira é uma apresentação efervescente

de concepções duais, mostrando que nada pode receber esclarecimento. Daí a mistura:

“Tudo é e não é.” (GS:V, 12) No episódio geralmente chamado de Guararavacã do

Guaicuí, parte subjetiva, densa, quase um fluxo de consciência; um delírio, Riobaldo

explica a sua paixão por Diadorim, paixão esta: “amor, mal encoberto por amizade.”

(GS:V, 220) Daí a história começa a se contar cadenciadamente, a aventura com o teor

de epopéia vai se revelando mais nítida e o teor lírico, subjetivo, por sua vez, se dilui. É

útil frisar, no entanto, que esta busca interior, a reflexão, só se dá porque a personagem
207

central passa pelo aventuresco, pela construção da ação narrativa. É na ação que morre

Hermógenes: finda-se o teor épico. É na ação que morre Diadorim: ampliam-se as

questões existenciais que tanto incomodam Riobaldo. O fim de Diadorim suscita um

atingir do sublime, um êxtase típico do trágico, bem típico, também, do lírico. Esta

iluminação só se dá através da ação, do contar, do épos, a palavra contada. Outra vez

um mundo misturado.

Se se considerarem as concepções marxistas na construção do romance,

Riobaldo ganha a sua segurança e a sua paz ao inserir-se em um mundo burguês. Isso se

traduz no seu apego à família, a instituição burguesa por excelência, e por ser, no tempo

da narrativa, o dono dos meios de produção, herança trazida com a “cédula de

testamento.” (GS:V, 457) As aventuras no sertão são substituídas pelo status burguês, o

homem de bem que, barranqueiro, conta feitos ao narratário culto. Ainda assim, o

homem socialmente estabelecido exerce um contínuo ato de procura. Sua paz social e

sua ascensão burguesa não o fazem perder o ímpeto de recorrentemente se perguntar:

“O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!” (GS:V, 460) Ou lembrando

outro narrador rosiano: “Sou homem depois deste falimento?” “Sou o que não foi, o que

vai ficar calado.” Num perpétuo “acabar de contar”, a história insiste em se reiniciar,

provocando a inquietude tão característica do romance: “E foi ponto e ponto e ponto.”

(GS:V, 254). “Aqui a estória se acabou. Aqui a estória acabada. Aqui a estória acaba.”

(GS:V, 454) Ou ainda: “Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase

barranqueiro. Para velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro.” (GS: V,

454)

É neste sentido metaliterário, fenomenal, que Grande Sertão: Veredas se mistura

ao próprio ato de contar, bem parecido com o aedo clássico, “possuído” pela musa,

possuído por um ato divino e vital, ao mesmo tempo reflexivo e estruturado, fundado
208

pela sociedade que inaugurou o mote: “Penso logo existo.”, e também: “Só sei de que

nada sei.” O romance de Rosa mune-se de recursos para, também, participar da grande

crise existencial que aflige a sociedade ocidental.

O ato de contar faz com que questões sobre o foco narrativo venham à tona,

principalmente o complexo foco narrativo contido na Ilíada. Foi de muita valia o estudo

do norte-americano Robert J. Rabel, dedicado à percepção da polifonia no épico da

Antigüidade. Primeiramente, o autor distingüe o poeta da Ilíada do narrador, aedo

épico. Sustentado por teorias das narrativas contemporâneas, voltadas para o romance

em geral, Rabel, com sucesso, discute como a narrativa romanesca funciona, muitas

vezes, como épica. Constata-se que tudo que se diz de um épico se enquadra no

romance; no entanto, percebe-se a distância entre os dois gêneros. Concorda-se que, no

romance, as instâncias autor e narrador em terceira pessoa são próximas mas,

certamente, o narrador identifica-se claramente como entidade textual distinta e que o

autor empírico pouco se manifesta como detentor do foco narrativo. Daí a reflexão

sobre outra categoria, o autor implícito, que também participa muito da polifonia do

romance. Poetas épicos não se expressam em “própria persona”. Os mais sofisticados,

de acordo com Aristóteles, interferem estrategicamente na narrativa. Refletem-se, nas

discussões feitas pelo filósofo, sobre o dinamismo do discurso épico homérico, que

envolve a narração do poeta, a narrativa dita como sendo enunciativa e o discurso

direto. Usando tal distinção, Rabel estabelece que Homero é poeta da Ilíada e a Musa,

inúmeras vezes invocada, a entidade que conta a história. Nesta perspectiva, endossam-

se os variados campos de visão no épico grego: o poeta entremeado nos proêmios, a

Musa, mediadora da história e os focos narrativos variados das diversas personagens,

percebidas através do discurso direto. Por isso se entende o épico, principalmente o

homérico, como um rico enunciado polifônico, aproximando-o, assim, da prosa e do


209

raconto. O romance se valeu desta rica marca narrativa para instituir uma das suas

características mais inerentes: a densidade psicológica.

10.2. Épicas romanescas e romances épicos

A transcrição, outrora explicitada, do gênero épico para o romance levanta

alguns questionamentos. Sabe-se que o romance é herdeiro da epopéia clássica, tendo a

sua forma definida no final do século XVI e começo do século XVIII. Seu auge vem no

século XVIII, momento em que se relaciona diretamente com a sua popularidade.

O romance abandona o verso e sua prosa mundana predomina na ação narrativa.

Tal desprendimento talvez seja a maior distinção entre a epopéia e o romance. O gênero

emerge sem regras fixas e não acompanha nenhum modelo métrico ou formal.

Esta talvez seja a marca mais própria do romance, a mais distinta. As outras,

ainda que relevantes, não se desconectam totalmente de seu antepassado. Atenta-se para

as personagens centrais, os heróis, já tão debatidos aqui. O romance apresenta os

“homens comuns” no enredo literário. Entende-se por comuns os homens de origem

burguesa ou plebéia. No entanto, percebe-se que a produção literária envolvendo o

romance origina-se de uma classe abastada e que, muitas vezes, os homens “comuns”

são de um círculo social restrito. A tal liberdade romanesca confina, de certo modo, suas

ações inovadoras a um grupo limitado. Sendo assim, a epopéia clássica mostra-se mais

democrática, já que o aedo recita suas histórias (sobre os aristoi sem dúvida), mas para

uma variedade ampla de ouvintes.


210

De certo que as ações do herói do romance raramente proporcionam-lhe fama ou

glória, mas seus conflitos se originam do núcleo pequeno-burguês em si, os valores que

passaram a imperar na humanidade. Não estabelecer estas metas muitas vezes gera o

conflito inerente aos protagonistas do romance. Tem-se a idéia de que os valores

clássicos são bases da formação humanista e que tais valores, de certo modo, ainda

vigoram no mundo burguês. O conflito do “homem comum” não seria, então, o fato de

não se enquadrar ao perfil que a sociedade lhe impõe?

Uma característica marcadamente romanesca é a inserção do cotidiano no

enredo. O aprofundamento nesta questão se dá basicamente no século XX. O

“cotidiano” nada mais é do que a vida burguesa e, quando se fala de burguesia, logo

vem à mente o confronto de classes. Daí a construção do romance, nos dizeres de

Lukács, ser marcadamente das classes dominantes.

Notou-se, neste trabalho, que uma marca muito associada ao romance, a de

conter dualidades, também é marca nas principais personagens épicas, como é o caso de

Aquiles, assim como as reflexões feitas acerca de Odisseu. É inconcebível imaginar

personagens homéricas sem interioridade e complexidade, se bem que os conflitos que

embasam a epopéia clássica tendem a colocar as personagens em oposição a uma

realidade exterior, enquanto o romance se volta ao conflito interior. Equivocado seria

não perceber, no épico homérico, especificamente, o teor psicológico contido nos

protagonistas, teor presente e talvez mais explorado no romance.

O início do romance vem marcado por uma busca pela verossimilhança,

contrapondo-se ao teor mítico e fabular da epopéia. No entanto, o romance moderno

insere elementos simbólicos, místicos e alegóricos, recorrentes em epopéias com o

propósito de sugerir, para, então, estabelecer uma reflexão mais concreta sobre a

realidade.
211

Percebe-se que o romance, como é entendido hoje, distingue-se, sim, da epopéia,

mas uma linha tênue os separa. A construção do romance é muito calcada na épica

medieval, o romance de cavalaria e sentimental; o fator que o difere deste antepassado é

meramente comercial. No momento em que os valores cortesãos, guerreiros,

aristocráticos e galantes — de caráter feudal — eram destruídos pelo surgimento dos

Estados modernos e pela complexidade crescente do universo mercantil e burguês, viu-

se que o prestígio da classe aristocrática encontrava-se em declínio e o capitalismo

consagrou outros ideais, e, assim, outra classe dominante.

10.3. Sem fôlego nas veredas

Não houve a intenção de estudar a influência de Homero no processo de criação

de Rosa. Na verdade, visou-se a um estudo comparativo mais aberto, sem vínculo a

nenhuma corrente teórica. Obviamente, em certos momentos, alguma menção ao estudo

perigráfico foi feita, e alguns itens do marco teórico refletem isso, mas,

predominantemente, a comparação entre o enunciado das duas obras literárias

permaneceu como a fonte mais recorrente.

Romance, epopéia, romanesco, épico. Frutos da criatividade humana, presentes

desde muito. Desde o começo. Todos com teores parecidos. Em Gilgamesh, epopéia

babilônica que antecede a Ilíada em pelo menos mil anos, temos um herói e a sua

jornada para autoconhecer-se. O rei de Ur descobre que a amizade pode trazer a paz

para uma nação inteira. Descobre, também, que atacar um monstro sem prudência pode

ter conseqüências irreparáveis. Mas a percepção mais sensata de toda a aventura se


212

revela quando o herói atenta para o fato de que: “a sabedoria só pode ser alcançada

quando deixa de ser procurada.” Sabedoria plena é impossível, necessita-se de uma

imensa aventura para perceber tal coisa. Desesperançosamente, o herói do romance luta

para saber quem é — simplesmente para entender que se conhecer plenamente é

impossível. Não existe o Humbaba ou Polifemo, mas há o monstro. “O diabo vige

dentro do homem, os crespos do homem” (GS:V, 11), diria Riobaldo, já no início de sua

divagação retórica, para chegar a conclusão de que: “ O diabo não há! É o que eu digo,

se for...Existe é homem humano. Travessia.” (GS:V, 460) Já Odisseu revela aos

Feácios: “É-me odioso, realmente, de novo ter de contar o que já ficou dito com toda a

clareza.”(ODISSÉIA, CANTO XII: v. 452-3) Ao narrar a própria história, Odisseu

desperta para o sentido de sua viagem. A jornada que se iniciou deve terminar. O herói

já não precisa contar a sua história uma outra vez, pois Odisseu descobrira-se. Já

Aquiles não passa pela percepção. Revela o seu descontentamento, seu vazio quando

diz para Odisseu que queria estar vivo e não usufruir de sua estadia nos Campos Elísios.

São poucos os que transcendem até à percepção.

Depois de diversas aventuras em algumas poucas veredas, entrego-me à

sapiência do poeta da Mesopotâmia. Realmente, a sabedoria plena só se torna clara

quando não há mais necessidade em buscá-la. Perceber tal constatação é, na verdade, a

sublime sabedoria. Somente alguns heróis a perceberam, como Héracles, Édipo,

Gilgamesh e Odisseu, e isso somente depois de intensas aventuras. A constatação

continua enigmática para Aquiles e Riobaldo, mesmo depois da aventura. Talvez seja

porque a condição humana impeça a sabedoria plena, completa. O protagonista da

Ilíada e o protagonista do Grande Sertão: Veredas dividem a mesma condição. Seus

mundos se misturam: “o mundo à revelia”. O Sertão encontra-se no Ílion e vice-versa,

como diria Riobaldo: “Eu sou de onde eu nasci. Sou de outros lugares.” (GS:V, 220)
213

ABSTRACT

Using literature in a self-reflective way has proven to be a useful approach. This

research is aimed to be a parallel study of two literary works. Treading the paths of

both Rosa and Homer discloses a literary approach with no cultural and linguistic

boundaries. Thus, one may say that the Sertão and the Hellade are not so far apart and

that Grande Sertão: Veredas and The Iliad are interconnected. The reader is invited to

choose many paths; some suggested by Riobaldo, others by The Iliad’s singer as well as

many other directions, set by the reader himself.


214

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São


Paulo: 34 Letras, 2003.

ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura II. Tradução de Jorge de Almeida. São


Paulo: 34 Letras, 2003.

AGUIAR, Flávio Wolf de. As imagens femininas na visão de Riobaldo. In: Scripta
(edição especial do Seminário Internatiional Guimarães Rosa). Belo Horizonte: PUC-
MINAS, CESPUC, 1997.

AGUIAR, Flávio Wolf de. Grande Sertão em linha reta. In. Outras Margens: estudos
da obra de Guimarães Rosa. ORGS. Lélia Parreira Duarte, Maria Theresa Abelha
Alves. Belo Horizonte: Autêntica/PUC Minas, 2001.

ALENCAR, José de. O Guarani. 14 ed. São Paulo: Ática, 1988.

ANDRADE, Vera Lúcia. Conceituação de jagunço e jagunçagem em Grande sertão:


veredas. Belo Horizonte, 1977 (Supl .Lit.)

ANDRADE, Sônia Maria Viegas. A vereda trágica do grande sertão: veredas. São
Paulo: Loyola, 1985.

APOLLODORUS, The Library. English Translation: Sir James George Frazer, (Loeb
Classical Library, No. 121, Books I-III). London: Harvard University Press, 1996.

ARAÚJO, Heloísa Vilhena. O Roteiro de Deus. São Paulo: Mandarim, 1996.

ARSILLO, Vincenzo. O olhar do silêncio: maiêutica do discurso dialógico e


representação do outro em Grande Sertão: Veredas. In: Outras Margens: estudos da
obra de Guimarães Rosa. ORGS. Lélia Parreira Duarte, Maria Theresa Abelha Alves.
Belo Horizonte: Autêntica/PUC Minas, 2001.

ARISTÓTELES, Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. 14°
ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
215

ARISTÓTELES, Poética (periv poihtikh~ς). Tradução de Eudoro de Souza. Edição


bilíngüe grego-português. São Paulo: Ars Poética, 1992.

ARRIGUCCI Jr., Davi. O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães


Rosa. In: Pizarro, Ana (org.) América Latina, Literatura e Cultura. São Paulo:
Memorial; Campinas: Edunicamp, 1995.

ASSUMPÇÃO, Deise A.M., PIRES, Marisa C., QUEIROZ, Vagner C., O amor em
Grande Sertão: Veredas. In. Seminário Internacional Guimarães Rosa. (1998: Belo
Horizonte). Veredas do Rosa. ORGS. Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte:
PUC MINAS, CESPUC, 2000.

AUBRETON, Robert. Introdução a Homero. 2 ed. São Paulo: DIFEL/EDUSP, 1968.

AUERBACH, Eric. Introdução aos Estudos Literários. Trad. José Paulo Paes. São
Paulo: Cultrix, 1972.

AUERBACH, Eric. Mimesis. Trad. Suzi Frankl Sperber. São Paulo: Ed. Perspectiva,
1976.

AZOUBEL NETO, David. Mito e psicanálise. Campinas: Papirus, 1993.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 2 ed. Trad. Paulo Bezerra.


Rio de Janeiro: Forense Universtária, 1997.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. (A teoria do romance). Trad.


Aurora Bernardini et alii. São Paulo: Hucitec, 1988.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo:


Editora da Universidade de Brasília/HUCITEC, 1987.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G.


Pereira. Revisão e tradução Marina Appenzeller. 3. ed São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Antônio Gonçalves. Lisboa: Edições 70,
1984.
216

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990.

BEARD, Mary; HENDERSON, John. Antiguidade clássica. Uma brevíssima


introdução. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1985.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 2. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e
José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 3. Tradução. José Carlos Martins Barbosa
e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BESSA, Pedro Pires. Momentos visuais de Grande Sertão: Veredas. In: Seminário
Internacional Guimarães Rosa. (1998: Belo Horizonte). Veredas do Rosa. ORGS.
Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2000.

BIEDERMANN, Hans. Dicionário dos símbolos. Trad. Glória Paschoal de Camargo.


São Paulo: Melhoramentos, 1993.

BLOOM, Harold. A angústia da influência. Uma teoria da poesia. Trad. A. Netroviski.


Rio de Janeiro: Imago, 1991.

BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Os livros e a escola do tempo. Trad. Marcos


Santarrita. Rio de Janeiro : Objetiva, 1995.

BOECHAT, Walter. Afrodite, a deusa do amor. In: Mitos e arquétipos do homem


contemporâneo. Walter Boechat (org.). Petrópolis: Vozes, 1995.

BOLLE, Willi. Diadorim — a paixão como médium-de-reflexão. In: Outras Margens:


estudos da obra de Guimarães Rosa. ORGS. Lélia Parreira Duarte, Maria Theresa
Abelha Alves. Belo Horizonte: Autêntica/PUC Minas, 2001.

BOLLE, Willi. grandesertão.br São Paulo: Editora 34, Livraria Duas Cidades, Coleção
Espírito Crítico, 2004.
217

BOOTH, Wayne. A retórica da ficção. Tradução de Maria Teresa Guerreiro. Lisboa:


Arcádia, 1980.

BOSI, Alfredo. "A interpretação da obra literária". In: Céu, inferno. São Paulo: Ática,
1988.

BRANDÃO, Jacyntho José Lins. As origens do homem: Hesíodo e o Atrahasis. In:


Scripta Clássica: História, Literatura e Filosofia na Antiguidade Clássica. Orgs.
Antonio Orlando de O. Dourado Lopes, Celina Figueiredo Lage, Olimar Flores Júnior.
Belo Hoprizonte: Ed. Do Autor, 1999.

BRANDÃO, Jacyntho José Lins. Primórdios do épico: Ilíada. In: As Formas do Épico:
da epopéia sânscrita à telenovela. Organizado por Myrna Bier Appel e Míriam
Barcellos Goettems. Porto Alegre: SBEC/ Movimento, 1992.

BRANDÃO, Jacyntho José Lins. Do épos à epopéia: sobre a gênese dos poemas
homéricos. Textos de Cultura Clássica 12: 1-13, 1990.

BRANDÃO, Jacyntho José Lins. Antiga Musa: arqueologia da ficção. Belo Horizonte:
Faculdade de Letras da UFMG, 2005.

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. 2


ed. vol. I. Petrópolis: Vozes, 1997.

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. 2


ed. vol. II. Petrópolis: Vozes, 1997.

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. 2


ed. vol. III. Petrópolis: Vozes, 1997

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia e da


Religião Romana. Petrópolis: Vozes — Edunb, 1993.

BRANDÃO, Junito de Souza. Helena, o eterno feminino. Petrópolis: Vozes, 1991

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 13 ed.vol. I Petrópolis: Vozes, 1999.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 13 ed.vol. II Petrópolis: Vozes, 1999.


218

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 13 ed.vol. III Petrópolis: Vozes, 1999.

BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: Tragédia e Comédia. Petrópolis: Vozes,


1985.

BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: origem e evolução. São Paulo: Ars
Poética, 1992.

BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro, Editora UnB -
José Olympio Editora, 1997

BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Trad: David Jardim Júnior. 10 ed.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

CALVINO, Ítalo. A combinatória e o mito na arte da narrativa. In: Atualidade do mito.


Trad. Carlos Arthur R. do Nascimento. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.

CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. Trad. Ivo Barroso. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CAMPOS, André Malta. O resgate do cadáver: o último canto d’A Ilíada. São Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP, 2000.

CAMPOS, Haroldo de. Os nomes e os navios: Ilíada Canto II. Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1999.

CAMPOS, Haroldo de. MHNIS: a ira de Aquiles. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & Outras metas: ensaios de teoria e crítica
literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
219

CAMPOS, Maria do Carmo. A Festa da Nomeação em Grande Sertão: Veredas. In:


NONADA — Letras em revista. Porto Alegre: Faculdade Ritter dos Reis. Ano 1, n. 1,
ago/dez 1997.

CÂNDIDO, Antônio et alii. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1972.

CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte e Rio de


Janeiro, Editora Itatiaia, 1993.

CÂNDIDO, Antônio. "Jagunços e mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa." In Vários


escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

CÂNDIDO, Antônio. Na sala de aula. Caderno de análise literária. 2. ed. São Paulo:
Ática, 1986.

CÂNDIDO, Antônio. "O homem dos avessos". In: Tese e antítese. São Paulo:
Nacional, 1978.

CARVALHAL, Tânia. COUTINHO, Eduardo F. (ORGS) Literatura Comparada. Rio


de Janeiro: Rocco, 1994.

CASTRO, Manuel Antonio. O homem provisório no grande ser-tão. Rio de Janeiro:


Tempo Brasileiro, 1976.

CHIAPPINI, Lígia. Grande Sertão: Veredas — a metanarrativa como necessidade


diferenciada. In. Scripta (edição especial do Seminário Internacional Guimarães Rosa).
Belo Horizonte: PUC-MINAS, CESPUC, 1997

CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 10.ed. Trads. Vera da


Costa e Silva; Raul de Sá Barbosa; Angela Melim; Lúcia Melim. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1996.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad.


Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

CORRÊA, Paula da Cunha. Armas e Varões — A Guerra na Lírica de Arquíloco. São


Paulo: Ed. Unesp, 1998.
220

COSTA, Ana Luiza Martins. "Rosa, Ledor de Homero". Dossiê 30 Anos sem
Guimarães Rosa, n. 36, pp. 46-73, dez./97-fev./98.

COSTA LIMA, Luiz. A literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 6 vols. 2. ed. Rio de Janeiro: Sul


Americana, 1968-71.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: introdução geral. São Paulo: Global,


1996.

COMMELIN, P. Nova mitologia grega e romana. Trad. Thomas Lopes. Belo


Horizonte: Itatiaia, 1997.

COUTINHO, Afrânio. Antologia brasileira de literatura. 3. ed. Rio de Janeiro:


Distribuidora de Livros Escolares, 1967.

COUTINHO, Afrânio Introdução à literatura no Brasil. 11. ed. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1983.

COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1978.

COUTINHO, Eduardo F., Diadorim e a desconstrução do olhar dicotômico em Grande


Sertão: Veredas. In. Outras Margens: estudos da obra de Guimarães Rosa. ORGS.
Lélia Parreira Duarte, Maria Theresa Abelha Alves. Belo Horizonte: Autêntica/PUC
Minas, 2001.

COUTINHO, Eduardo F., Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande


Sertão: Veredas. Salvador: Casa de Jorge Amado, 1993.

COVIZZI, Lenira. Grande Sertão: Veredas, no Brasil, em dias de época. In: Seminário
Internacional Guimarães Rosa. (2001: Belo Horizonte). Veredas do Rosa II. ORG.
Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2003.

CULLER, Jonathan. Literary Theory: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford


University Press, 1997.
221

CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. Trad. Sandra Guardini T.


Vasconcelos. São Paulo: Becca, 1999.

CURY, Maria Zilda. PAULINO, Graça. WALTY, Ivete. 4. ed. Belo Horizonte: Ed.
Lê, 1998.

DANIEL, Mary L. João Guimarães Rosa: Travessia Literária. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1968.

DEVEREUX, Georges. Mulher e mito. Trad. Beatriz Sidou. Campinas: Papirus, 1990.

DIEL, Paul. O simbolismo na mitologia grega. Trad. Roberto Cacuro e Marcos


Martinho Santos. São Paulo: Attar, 1991.

DIMAS, Antonio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1985.

DIRSCHEEL, Klaus. A estética da recepção e suas conseqüências. Cadernos


Universitários de Coimbra n° 14, 1983.

DOWDEN, Ken. Os Usos da Mitologia Grega. Trad. Cid Knipel Moreira. Campinas:
Papirus, 1994.

ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Trad. Pérola Carvalho. São Paulo:


Editora Perspectiva, 1995.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São
Paulo: Editora Schwarcz, 1994.

ECO, Umberto. Lector in fabula. Trad. Attilio Cancian. São Paulo: Editora Perspectiva,
1979.

EDWARDS, Mark W. Homer: Poet of the Iliad. Baltimore: Johns Hopkins University
Press, 1987.

EDWARDS, Mark W. The Iliad: a commentary. Vol. V Books 17-20. Cambridge:


Cambridge University Press, 2000.
222

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2000.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério


Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ELIOT, Thomas S. De poesia e poetas. Trad. Ivan Junquiera. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1991.

EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: J. Zahar,
1993.

FINAZZI-ÁGRO, O tamanho da grandeza — geografia e história. In: Scripta (edição


especial do seminário Internacional Guimarães Rosa). Belo Horizonte: PUC-MINAS,
CESPUC, 1997.

FINAZZI-ÁGRO, Ettore. Um lugar do tamanho do mundo: tempos e espaços da ficção


em João Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

FINLEY, Moses. O Mundo de Ulisses. Trad. Armando Cerqueira, Lisboa: Editorial


Presença, 1982.

FISCHER, Ernest. A necessidade arte. Trad. Leandro Konder. Rio de Janeiro: 9. ed.
Edtora Guanabara, 1987.

FORSTER, E.M. Aspectos do romance. Trad. Maria Helena Martins. P. Alegre: Globo,
1974.

FRIEDRICH, Paul. The meaning of Aphrodite. University of Chicago Press: Chicago,


1978.

FRANZ, Michael. Os deuses no teatro: mistérios gregos e a tragédia na visão do século


XVIII. In: Filosofia & Literatura: o trágico. Org. Kathrin Holzermayr Rosenfield. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. Trad. Péricles E. da Silva Ramos. São Paulo:
Cultrix, 1973.
223

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma


hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.

GADAMER, Hans-Georg. The universality of the hermeneutical problem. In: LINGE,


D. (ed.) Philosophical hermeneutics. Berkeley: University of California Press, 1977.

GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1972.

GARBUGLIO, José Carlos. O mundo movente de Guimarães Rosa. São Paulo: Ática,
1980.

GENNETTE, Gerad. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa:


Veja, 1990.

GINZBURG, Jaime. A Narração Fragmentária em Grande Sertão: Veredas. In:


NONADA — Letras em revista. Porto Alegre: Faculdade Ritter dos Reis. Ano 1, n. 1,
ago/dez 1997.

GRAVES, Robert. The greek myths. 4. ed. New York: Penguin Classics, 1992.

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 3. ed. Trad. Vitor


Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

GOULART, Audemaro Taranto. Ilíada, um poema de fundação. In. Os gregos. Coleção


convite ao pensar. Haroldo Marques (org.) Belo Horizonte: Autêntica/ Editora PUC
Minas, 2002.

GUMIARÃES, Solange T. de Lima. Espaço e lugar no Grande Sertão: Veredas. In:


Seminário Internacional Guimarães Rosa. (2001: Belo Horizonte). Veredas do Rosa II.
ORGS. Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2003.

HAINSWORTH, Bryan. The Iliad: a commentary. Vol. III Books 9-12. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.

HAMILTON, Edith. Mitologia. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.

HAMILTON, Edith. O Eco grego. Trad. Edson Bini. São Paulo: Landy Editora, 2001.
224

HANSEN, João Adolfo. O O A Ficção da Literatura em Grandes Sertão: Veredas. São


Paulo: Hedra, 2000.

HARTOG, François. A História de Homero a Santo Agostinho. Prefácios de


Historiadores e textos sobre História reunidos e comentados por François Hartog,
traduzidos para o português por Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2001.

HARTOG, François. O Espelho de Heródoto. Trad. J. L. Brandão, Belo Horizonte,


Editora UFMG, 1999.

HARVEY, Paul. Dicionário de literatura clássica grego e latina. Trad. Mário da Gama
Cury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.

HERÓDOTO, História. trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. Universidade de


Brasília. 1998.

HESÍODO. O trabalho e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. 3.ed. São Paulo:
Iluminuras, 1996.

HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1991.

HOOD, Sinclair. A Pátria dos Heróis. Trad. Tomé Santos Jr. Lisboa: Editorial Verbo,
1969.

HOMERO. Ilíada. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Atena, 1958.

HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Ediouro, 2000.

HOMERO. Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Mandarim, 2000.

HOMERO. Ilíada. Trad. M. Alves Correia. vol. I. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1951.

HOMERO. Ilíada. Trad. M. Alves Correia. vol. II. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1951.
225

HOMERO. Ilíada. Trad. M. Alves Correia. vol. III. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1951.

HOMER. Iliad. Trans. Robert Fagles. New York: Penguin Books, 1998.

HOMER. Iliad. Trans. Alexander Pope. New York: Penguin Books, 2003.

HOMER. Iliad. Trans. Richmond Lattimore. Chicago: University of Chicago Press,


1995.

HOMERO. Odisséia. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1999.

HOMERO. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Ediouro, 2000.

ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: A literatura e o leitor. Trad.
org., Introd. Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. vol I. Trad. Johnes
Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. vol II. Trad. Johnes
Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.

ISER, Wolfgang. O Imaginário. In: O Fictício e o Imaginário — Perspectivas de uma


Antropologia Literária. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.

JANKO, Richard. The Iliad: a commentary. Vol. IV Books 13-16. Cambridge:


Cambridge University Press, 2000.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.


Trad. Sérgio Tellardi. São Paulo: Ática, 1994.

JAUSS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Trad. Claude Maillard. Paris:
Gallimard, 1978.

JOLLES, André. Formas Simples. Trad. Álvaro Cabral. S. Paulo: Cultrix, 1976
226

JONES, Peter V., O Mundo de Atenas. Trad. Ana Lia de Almeida Prado. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.

KERÉNYI, Karl. Os deuses gregos. 9. ed. Trad. Octávio Mendes Cajado. São Paulo:
Cultrix, 2000.

KERÉNYI, Karl. Os heróis gregos. 10. ed. Trad. Octávio Mendes Cajado. São Paulo:
Cultrix, 1998.

KIRK, G. S. The Iliad: a commentary. Vol. I Books 1-4. Cambridge: Cambridge


University Press, 2000.

KIRK, G. S. The Iliad: a commentary. Vol. II Books 5-8. Cambridge: Cambridge


University Press, 2000.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena Ferraz. São Paulo:
Perspectiva, 1974.

KRISTEVA, Julia. O texto romance. Trad. Manuel Ruas. Lisboa: Livros Horizonte,
1984.

KOTHE, Flávio R. O Cânone Colonial. Brasília: UnB, 1997.

KOTHE, Flávio R. O Cânone Imperial. Brasília: UnB, 2000.

KOTHE, Flávio R. O herói. São Paulo: Ática, 1985.

LACERDA, Sonia. Metamorfoses de Homero: História e antropologia na crítica da


poesia épica. Brasília: Editora UnB, 2003.

LARA, Cecília de. Grande Sertão Veredas — processos de criação. In: Scripta (edição
especial do Seminário Internacional Guimarães Rosa). Belo Horizonte: PUC-MINAS,
CESPUC, 1997

LATACZ, Joachim. Homer. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999.
227

LATEINER, Donald. Sardonic Smile. Nonverbal Behavior in Homeric Epic. Ann


Arbor: The University of Michigan Press, 1995.

LEMINSKI, Paulo. Metaformose: uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo:
Iluminuras, 1998.

LESKY, Albin. História da Literatura Grega. Trad. Manuel Losa. Fundação Calouste
Gulbenkian: Lisboa, 1995.

LESKY, Albin, A Tragédia Grega. Trad: J. Guinsburg, Geraldo G. de Souza, A. Guzik,


Editora Perspectiva: São Paulo, 1971.

LINS, Osman. Guerra sem testemunhas. 2. ed. São Paulo: Ática, 1974.

LUCE, John Victor. Celebrating Homer’s Landscape. London: Yale University Press,
1998.

LUCIANO. Diálogos dos mortos. Versão bilíngüe Grego/Português. Org. e Trad.


Henrique G. Murachco. São Paulo: Palas Athena: Edusp, 1996.

LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. S. Paulo:
Editora 34, 2000.

MAFRA, Johnny José. A Mulher Escritora na Literatura Greco-Latina e outros


estudos. Belo Horizonte: Editora Dimensão, 1989.

MAFRA, Johnny José. Hýbris: a essência da tragédia. Belo Horizonte: Faculdade de


Letras da UFMG, 1994.

MAGNABOSCO, Maria Madalena. O testemunho narrativo em Grande Sertão:


Veredas. In: Seminário Internacional Guimarães Rosa. (1998: Belo Horizonte).
Veredas do Rosa. ORGS. Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS,
CESPUC, 2000.

MARTINS, Nilce Santana. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: EDUSP, 2001.

MAZEL, Jacques. As metamorfoses de Eros. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São


Paulo: Martins Fontes, 1988.
228

MACEDO, Tânia. Guimarãres Rosa. São Paulo: Ática, 1996.

MACHADO, Ana Maria. Recado do nome. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

MARINHO, Marcelo. Grnd Srt~ Vertigens de um enigma. Campo Grande: Letra Livre,
2001.

MARINHO, Marcelo. O Crótalo, Hermógenes e o Crátilo: a literatura especular em


Grande Sertão: Veredas. In. Seminário Internacional Guimarães Rosa. (1998: Belo
Horizonte). Veredas do Rosa. ORGS. Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte:
PUC MINAS, CESPUC, 2000.

MARSHALl, Francisco. Édipo Tirano: A Tragédia do Saber. Porto Alegre: Ed.


Universidade/UFRGS, 2000.

MARTINS, José Maria. Guimarães Rosa: o alquimista do coração. Petrópolis: Vozes,


1994.

MASCETTI, Manuela Dunn. Goddess Wisdom: Aphrodite, Goddess of Love. San


Francisco: Chronicle Books, 1996.

MASCETTI, Manuela Dunn. Goddess Wisdom: Athena, Goddess of War and Wisdom.
San Francisco: Chronicle Books, 1996.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 7 ed. São Paulo: Editora Cultrix,
1995.

MATTER, Michele Dull Sampaio Beraldo. As vertentes do narrar em Grande Sertão:


Veredas. In: Seminário Internacional Guimarães Rosa. (2001: Belo Horizonte).
Veredas do Rosa II. ORG. Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS,
CESPUC, 2003.

MÉNARD, René. Mitologia Greco-Romana. 2. ed. vol. I. Trad. Aldo Della Nina. São
Paulo: Opus Editora, 1991.
229

MÉNARD, René. Mitologia Greco-Romana. 2. ed. vol. II. Trad. Aldo Della Nina. São
Paulo: Opus Editora, 1991.

MÉNARD, René. Mitologia Greco-Romana. 2. ed. vol. III. Trad. Aldo Della Nina. São
Paulo: Opus Editora, 1991.

MORAIS, Márcia Marques de. A travessia dos fantasmas: literatura e psicanálise em


Grande Sertão: Veredas. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

MORAIS, Márcia Marques de. Encontros de Riobaldo: travessias do sujeito. In: Scripta
(edição especial do seminário Internatiional Guimarães Rosa). Belo Horizonte: PUC-
MINAS, CESPUC, 1997.

MORAIS, Márcia Marques de. Riobaldo e suas más devassas no contar. In: Outras
Margens: estudos da obra de Guimarães Rosa. ORGS. Lélia Parreira Duarte, Maria
Theresa Abelha Alves. Belo Horizonte: Autêntica/PUC Minas, 2001.

MOREIRA, Terezinha Taborda. O vão da voz: a metamorfose do narrador na ficção


moçambicana. Belo Horizonte: Editora PUC Minas e Edições Horta Grande Ltda.,
2005.

MOST, Glenn W. Da tragédia ao trágico. In: Filosofia & Literatura: o trágico. Org.
Kathrin Holzermayr Rosenfield. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

MOURÃO, Cleonice Paes Barreto. Diadorim: corpo nu da narração. In: Seminário


Internacional Guimarães Rosa. (1998: Belo Horizonte). Veredas do Rosa. ORG. Lélia
Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2000.

MUHANA, Adma. A Epopéia em Prosa Seiscentista. São Paulo: Ed. Unesp, 1997.

MUELLNER, Leonard. The Anger of Achilles. Ithaca: Cornell University Press, 1996.

MURICY, Kátia. Alegorias da dialética — Imagem e pensamento em Walter Benjamin.


Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.

NASCIMENTO, Zaeth Aguiar do. Diadorim Uma Estranha Revelação — O Feminino


no Grande Sertão: Veredas. João Pessoa: Idéia, 2000.
230

NASCIMENTO, Zaeth Aguiar do. Diadorim: um “mau amor oculto” In: Seminário
Internacional Guimarães Rosa. (2001: Belo Horizonte). Veredas do Rosa II. ORG.
Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2003.

NIETZSCHE, Friedrich. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. P.
Süssekind. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras, 2000.

NUNES, Benedito. Guimarães Rosa. In: O Dorso do Tigre. 2 ed. São Paulo:
Perspectiva, 1976.

NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: Guimarães Rosa: coleção
Fortuna Crítica. 2 ed. Eduardo Coutinho (org). Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1991.

NUNES, Benedito. O mito em Grande Sertão: Veredas. In. Scripta (edição especial do
seminário Internacional Guimarães Rosa). Belo Horizonte: PUC-MINAS, CESPUC,
1997.

NUNES, Benedito. O tempo no romance. São Paulo: Ática, 1988.

NUTO, João Vianney Cavalcanti,. Diadorim e o diabo nas veredas do sertão. In:
Seminário Internacional Guimarães Rosa. (2001: Belo Horizonte). Veredas do Rosa II.
ORGS. Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2003.

OLIVEIRA, Luiz Cláudio Vieira de. Crítica e semiótica: Guimarães Rosa no


suplemento: a recepção crítica da obra de Guimarães Rosa no suplemento literário de
Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Letras, Estudos Literários, Belo
Horizonte: UFMG, 2002.

OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Satanás e Lúcifer — a ambigüidade do mito em


Imagens do Grande Sertão, de Arlindo Daibert. In: Seminário Internacional Guimarães
Rosa. (2001: Belo Horizonte). Veredas do Rosa II. ORG. Lélia Parreira Duarte et al. —
Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2003.

OVÍDIO. As metamorfoses. Trad. David Jardim. Rio de Janeiro: Tecnorpint, 1983.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica, vol. I,


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1970.
231

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Hélade: Antologia da Cultura Grega. Coimbra:


Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra/ Instituto de Estudos Clássicos, 4.ed,
1982.

PEREZ, Renard. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio,
1968.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. Ática: São Paulo, 1993.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas Literaturas. Companhia das Letras: São Paulo,


1998.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

PIMENTEL, Deise de Souza. Riobaldo: no rio do destino, nome é destino? In:


Seminário Internacional Guimarães Rosa. (2001: Belo Horizonte). Veredas do Rosa II.
ORGS. Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2003.

PIRES, Francisco Murari. A morte do herói(co). In: Filosofia & Literatura: o trágico.
Org. Kathrin Holzermayr Rosenfield. Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed., 2001.

PLATÃO. Diálogos. Trad. José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa.
São Paulo: Abril Cultural, 1972.

PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Augusto dos Anjos e outros ensaios. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1959.

PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Trad. Jasna Paravich Sarhan. Rio
de Janeiro: Forense-Universitária, 1984.

PROPP, Vladimir. As transformações dos contos fantásticos. In: EIKHENBAUM, B. et


al. Teoria da literatura; Formalistas russos. Trads. Ana Mariza Ribeiro, Maria
Aparecida Pereira, Regina Zilberman, Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Globo,
1971.
232

PROPP, Vladimir. Raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: Martins Fontes,
1997.

RABEL, Robert. Plot and Point of View in the Iliad. Ann Arbor: The University of
Michigan Press, 1997.
RAGUSA, Giuliana. Fragmentos de uma deusa: a representação de
Afrodite na lírica de Safo. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.

RAMALHO, Erick, Guararavacã do Guaicuí e a rede de Rosa. In: Seminário


Internacional Guimarães Rosa. (2001: Belo Horizonte). Veredas do Rosa II. ORG.
Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2003.

REDFIELD, James M. Nature and Culture in the Iliad: The Tragedy of Hector.
University of Chicago Press: Chicago, 1975.

REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. S. Paulo:


Ática, 1989.

ROCHA, Karina Bersan. Veredas do amor no grande sertão. In. Seminário


Internacional Guimarães Rosa. (2001: Belo Horizonte). Veredas do Rosa II. ORGS.
Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2003.

ROCHA, Zildo. Uma leitura de Grande Sertão: Veredas. In. Seminário Internacional
Guimarães Rosa. (1998: Belo Horizonte). Veredas do Rosa. ORG. Lélia Parreira
Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2000.

ROMILLY, Jaqueline de. Fundamentos de literatura grega. Trad. Mário da Gama


Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

ROMILLY, Jacqueline de. Homero. Introdução aos Poemas Homéricos. Trad. Leonor
Santa- Bárbara, Lisboa: Ed. 70, 2001.

RÓNAI, Paulo. Rosiana: uma coletânea de conceitos, máximas e brocardos de João


Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Salamandra, 1983.

RONCARI, Luiz. O Brasil de Rosa (mito e história no universo rosiano) o amor e o


poder. São Paulo: UNESP Editora, 2004.
233

RICHARDSON, Nicholas. The Iliad: a commentary. Vol. VI Books 21-24. Cambridge:


Cambridge University Press, 2000.

ROBERT, Marthe. Roman Des Origines et Origines Du Roman. Paris: Grasset, 1972.

ROSA, João Guimarães. Ave Palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

ROSA, João Guimarães. Estas Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.

ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim(Corpo de Baile). 4 ed. Rio de Janeiro:


José Olympio, 1972.

ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá no Pinhém(Corpo de Baile). 4 ed. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1972.

ROSA, João Guimarães. Noites do Sertão(Corpo de Baile). 4 ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1972.

ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 6 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.

ROSA, João Guimarães. Magma. Rio de Janeiro: nova Fronteira, 1997.

ROSA, João Guimarães. Sagarana. 25 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

ROSA, João Guimarães. Tutaméia. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 9 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1975.

ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos: Guimarães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2002.

ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 2002.


234

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Fingir a verdade. In: Outras Margens: estudos da


obra de Guimarães Rosa. ORGS. Lélia Parreira Duarte, Maria Theresa Abelha Alves.
Belo Horizonte: Autêntica/PUC Minas, 2001.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Grande sertão: veredas: roteiro de leitura. São


Paulo: Editora Ática, 1992.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. J.G. Rosa — O mestre do amálgama Lírico-


Narrtivo. In: NONADA – Letras em revista. Porto Alegre: Faculdade Ritter dos Reis.
Ano 1, n. 1, ago/dez 1997.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. O segredo dos poetas trágicos. In: Filosofia &
Literatura: o trágico. Org. Kathrin Holzermayr Rosenfield. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2001.

SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

SANTOS, Edna Maria dos. Grande Sertão: Veredas — do régio-nacional à


mundialização (invenção da história). In. Seminário Internacional Guimarães Rosa.
(1998: Belo Horizonte). Veredas do Rosa. ORGS. Lélia Parreira Duarte et al. — Belo
Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2000.

SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa. Sujeito, Tempo e Espaço
Ficcionais – Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SANTOS, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática,


1980.

SCHULER, Donald. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado, 1985.

SCHULER, Donald. Definições do épico. In: As Formas do Épico: da epopéia


sânscrita à telenovela. Organizado por Myrna Bier Appel e Míriam Barcellos Goettems.
Porto Alegre: SBEC/ Movimento, 1992.

SCHULER, Donald. A Construção da Ilíada: uma Análise de sua Elaboração. São


Paulo: L&PM, 2004.

SCHULER, Donald. Teoria do romance. S. Paulo: Ática, 1989.


235

SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova
pedagogia de leitura. 7. ed. São Paulo: Cortez, 1996.

SILVA, Márcia Ivana de Lima. Guimarães Rosa: A Arte de Narrar. In: NONADA —
Letras em revista. Porto Alegre: Faculdade Ritter dos Reis. Ano 1, n. 1, ago/dez 1997.

SNELL, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. Trad. Pérola


de Carvalho. Coleção Estudos. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001.

SNODGRASS, Anthony. Homero e os Artistas: Texto e pintura na arte grega antiga.


Trads. Luiz Alberto Machado Cabral e Oedep José Trindade Serra. São Paulo:
Odysseus Editora, 2004.

SOARES, Claúdia Campos. A constituição da voz narrativa em Grande Sertão


Veredas. In. Seminário Internacional Guimarães Rosa. (1998: Belo Horizonte).
Veredas do Rosa. ORG. Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS,
CESPUC, 2000.

SÓFOCLES, A trilogia tebana. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: J.


Zahar,1994.

SOUSA, Eudoro. Mitologia II - história e mito. Brasília: UNB, 1988.

SOUSA, Manuel Aveleza. Atitudes românticas de Homero na Ilíada. 2. ed. Rio de


janeiro: Thex. Ed., 1998.

SOUZA, Cláudio Mello e. Helena de Tróia: (o papel da mulher na Grécia de Homero).


Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 2001.

SOUZA, Ronaldes de Melo e Souza. Atualidade da tragédia grega. In: Filosofia &
Literatura: o trágico. Org. Kathrin Holzermayr Rosenfield. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2001.

SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário da mitologia greco-latina. Belo Horizonte:


Editora Itatiaia, 1965.

SPERBER, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática, 1982.
236

STARLING, Heloísa Maria Gurgel. Lembranças do Brasil: teoria política, história e


ficção em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Revan: UCAM, IUPERJ, 1999.

SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.

SÜSSEKIND, Flora. Papéis Colados. Rio de Janeiro: UERJ, 1992.

SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.

TERRA, João Evangelista Martins. O Deus dos Indo-Europeus: Zeus e a Proto-


Religião dos Indo-Europeus. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

TODOROV, Tzvetan, As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São


Paulo: Editora Perspectiva, 1979.

TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. Trad. Elisa Angotti Kossovitch.


São Paulo: Martins Fontes, 1980.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa


Castello. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1975.

TODOROV, Tzvetan. Teorias do símbolo. Trad. Enid Abreu Dobranszky. Campinas:


Papirus,1996.

UTÉZA, Francis. JGR: Metafísica do Grande Sertão. Trad. José Carlos Garbuglio. São
Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1994.

VALADARES, Napoleão. Os personagens de Grande Sertão: Veredas. Brasília: André


Quicé, 1982.

VALADARES, Nelly. A visão erotizada do amor em Grande Sertão: Veredas. In:


Seminário Internacional Guimarães Rosa. (1998: Belo Horizonte). Veredas do Rosa.
ORG. Lélia Parreira Duarte et al. — Belo Horizonte: PUC MINAS, CESPUC, 2000.
237

VELOSO, Cláudio William. Aristóteles Mimético. São Paulo: Discurso Editorial, 2005.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os Gregos. Tradução de H. Sarian.


São Paulo: Difel, 1973.

VERNANT, Jean-Pierre. O Universo, Os Deuses, Os Homens. Tradução de R.F.


d'Aguiar. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

VIGGIANO, Alan. Itinerário de Riobaldo Tatarana. Belo Horizonte: Ed.


Comunicação, 1974.

WILLCOCK, Malcolm M. A companion to the Iliad. Chicago: The University of


Chicago Press, 1997.

ZACHARAKIS, Georges E. Mitologia Grega: genealogia das suas dinastias. Trad.


Vera Luciana Morandin. Campinas: Papirus, 1995.

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática,


1989.

ZILBERMAN, Regina. A Leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1989.

ZILBERMAN, Regina. Como os gregos se entendiam. In: Filosofia & Literatura: o


trágico. Org. Kathrin Holzermayr Rosenfield. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

ZILBERMAN, Regina. Grande Sertão: Veredas do Mito. In: NONADA — Letras em


revista. Porto Alegre: Faculdade Ritter dos Reis. Ano 1, n. 1, ago/dez 1997.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Trads. Amálio Pinheiro e


Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Você também pode gostar