R. Cover - Nomos e Narração
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ABSTRACT
This paper aims to reconsider the main theses of Robert Cover, North American jurist barely
known in Brasil and whose thinking has been little exploited within the theory of law.
Considering the fragmented character of his work, the article privileges two texts that are central
to understand the author: Nomos and Narrative – essay where Cover suggests that the creation
of legal meaning (jurisgenesis) takes place outside state domain – and Violence and the Word
– later text where the author consider legal interpretation and violence as inseparable. These
essays place Cover before a dilemma between production and elimination of legal meanings.
*
Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). E-mail:
mauriciopflores@gmail.com
Teorias do Direito e Realismo Jurídico | e-ISSN: 2525-9601 | Salvador | v. 4 | n. 1 | p. 109 – 130 | Jan/Jun. 2018
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Maurício Pedroso Flores
1 INTRODUÇÃO
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outro, a estrutura institucional vigente exigia que a lei positiva fosse respeitada pelos agentes
estatais. (COVER, 1975).
Em outros trabalhos, Cover debateu sobre práticas de revisão judicial de programas
sociais (COVER, 1967), discutiu as formas de ativismo judicial na defesa de minorias (COVER,
1982), discorreu acerca das possíveis vantagens da sobreposição de jurisdições estaduais e
federais no sistema legal dos Estados Unidos (COVER, 1981) e, de forma irreverente, formulou
um quiz que relacionava juízes da Suprema Corte a jogadores de beisebol, seu esporte favorito.
(COVER, 1995). Apesar de abreviada por sua trágica morte, a fragmentada obra de Cover
exerce grande influência sobre a teoria do direito, ainda que essa influência esteja quase que
restrita ao seu país de origem. 1 Mas uma vez que não conseguiu sistematizar seus escritos de
uma forma relativamente coerente, o autor deixou a comentadores e críticos muitos
questionamentos sobre a sua obra. As diferentes interpretações e apropriações realizadas
demonstram que ela ainda é, em grande parte, um livro aberto.
O ponto central do debate em torno de sua obra tem relação com a (des)continuidade
presente naqueles que são provavelmente seus textos mais famosos: Nomos e Narrativa
(COVER, 1983) e Violência e a Palavra (COVER, 1986b). Pode-se dizer que Nomos e
Narrativa foi o ensaio que alçou Cover à condição de teórico do direito. Se esse ensaio não
conta com os elementos estruturantes que marcam os grandes tratados sobre direito, Cover
oferece em contrapartida um texto denso, carregado de insights que contestam as formas
tradicionais de se compreender o fenômeno jurídico. Em um condensado de pouco mais de
sessenta páginas, o autor reúne uma ampla gama de leituras e reflexões acumuladas durante
anos de estudo. A primeira parte de nosso artigo se ocupa de apresentar as principais teses
contidas nesse texto, bem como a centralidade que os conceitos de nomos e jurisgenesis
assumem no pensamento de Cover.
Nomos e Narrativa é uma espécie de apelo à teoria e à jurisprudência para que
enxerguem a criação do direito para além do Estado, como uma prática essencialmente cultural,
enraizada nos atos e compromissos interpretativos assumidos por diferentes grupos e
comunidades. Mas não se trata apenas de atentar para a existência de múltiplas normatividades,
1
Para se ter uma noção dessa influência, basta mencionar o fato de que um dos textos mais célebres de Cover,
Nomos e Narrativa, foi apontado como o 16º artigo mais citado em periódicos jurídicos norte-americanos de
acordo com o estudo de Shapiro e Pearse (2012). Ademais, o fato de ser citado por autores preocupados com as
tendências globalizantes do direito, como Teubner (2016), Benhabib (2006), Berman (2007) e Dunoff (2012),
mostra que suas categorias teóricas permanecem úteis para compreender fenômenos jurídicos que o próprio
Cover não pode acompanhar, como a formação de uma constelação de regimes jurídicos transnacionais em
diversas áreas como economia, ciência, internet, transportes etc.
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variadas formas de organizar o espaço normativo (nomos) que habitamos: Cover sugere também
que devemos incentivar a proliferação de significados jurídicos como forma de enriquecer os
nossos universos normativos.
Mas nem sempre – e aí reside seu grande problema teórico – é possível tolerar
normatividades provenientes de fontes sociais diversas sem colocar em risco a própria
integridade de um universo normativo. Muitos significados jurídicos são possíveis, mas nem
sempre eles são compossíveis – e essa circunstância se torna ainda mais dramática em universos
normativos que operam exatamente como o direito ocidental moderno costuma operar: com a
presença de um Estado dotado de uma estrutura institucional disposta a tomar comportamentos
violentos contra interpretações jurídicas concorrentes.
Porém, em vez de relativizar ou negligenciar essa violência latente, Cover sugere que
devemos colocá-la no centro de nossas preocupações. Em Violência e a Palavra, ensaio
publicado três anos após Nomos e Narrativa, o autor evoca um “campo de dor e morte” como
presente, em maior ou menor medida, em toda interpretação jurídica. As reflexões desse ensaio
ocuparão a segunda parte de nossa exposição, compondo uma espécie de antítese ao aparente
otimismo com que Cover enxerga a criação de significado jurídico em Nomos e Narrativa.
Depois de exaltar a riqueza do nomos, Cover desvela as engrenagens que sustentam a
interpretação dos tribunais, chamados por ele de jurispáticos – eles eliminam o direito “em
excesso” em nome dos preceitos estatais recorrendo necessariamente à violência, seja ela física
(sobre os corpos) ou epistêmica (sobre as interpretações divergentes).
Ao apresentar em linhas gerais o pensamento de Cover, este artigo procura situá-lo em
meio ao aparente dilema suscitado pela leitura conjugada entre Nomos e Narrativa e Violência
e a Palavra. Mesmo sabendo que essa leitura corre o risco de relativizar alguns aspectos
importantes para compreender sua obra, como a profunda influência que os estudos judaicos
provocaram no autor, optamos por fornecer aqui uma visão mais sintética de seu pensamento,
dando maior relevância àquelas contribuições de Cover que provavelmente são as mais
originais para a teoria do direito.
O primeiro aspecto da visão que Robert Cover possui sobre o direito salta aos olhos
logo nas primeiras linhas de Nomos e Narrativa: o direito não se resume ao que o Estado
entende – e produz – como direito. A despeito de jamais ter se subscrito ao programa dos
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A quantidade de informações trazidas por Cover nos impele a uma análise minuciosa
desse parágrafo. Em primeiro lugar, cumpre destacar o objeto de estudo estabelecido pelo autor:
estudar direito significa estudar o universo normativo que ele cria. O direito é uma forma de
organizar o mundo através de classificações do tipo certo/errado ou, conforme a linguagem
propriamente jurídica 3, válido/inválido e lícito/ilícito. Essas distinções operam na realidade
para manter ou modificar determinados estados de coisas, e quando nossas ações são
empregadas com essas finalidades elas passam, automaticamente, a fazer parte do universo
normativo. Em suma, o direito dá vazão a um nomos, um mundo normativo que é "tão 'nosso
mundo' quanto o universo físico de massa, energia e movimento". (COVER, 1983, p. 5).
Embora a afirmação de que nós habitemos um nomos seja anterior a qualquer
argumentação dentro do texto, Cover evidentemente não concebeu esse universo normativo por
pura obra da sua imaginação. Boa parte da densidade de Nomos e Narrativa – assim como de
seu primeiro parágrafo – se deve à presença de argumentos e pressupostos que o autor não
explicita no texto. Um dos pressupostos mais importantes remete à sociologia do conhecimento
2
Todas as traduções do inglês são livres.
3
Com isso queremos dizer que o par certo/errado pode pertencer ao campo da moral, o que não ocorre com os
outros dois, cujo uso é específico do tipo de regulação de conduta estabelecido pelo direito. Para Cover, no
entanto, a distinção certo/errado também faz parte do mundo jurídico.
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direito não é apenas o que é e o que deveria ser, mas também o que poderia ser. Ao pensar o
direito em termos do que ele “poderia ser”, o autor demonstra uma sensibilidade sociológica
em relação às diferentes ordens normativas presentes na sociedade. O direito é uma ponte ou,
como Cover (1985, p. 181), formulou de maneira simples em outro texto, “comportamento
social comprometido que constitui a forma por meio da qual um grupo de pessoas procura ir
daqui para lá” – ou seja, do “aqui” da realidade existente para o “lá” de uma alternativa
imaginada.
Contudo, o elemento da alternidade não deve alimentar ilusões quanto à realidade
existente: se fosse mera possibilidade ou imaginação, o direito cairia facilmente na utopia ou
na pura visão 4. As narrativas oferecem modelos de ação 5, mas nem sempre esses modelos são
realizáveis. Se determinada visão não for capaz de fornecer o contexto para uma ação humana
viável, então ela não é, de acordo com Cover, uma narrativa propriamente jurídica:
Se o direito reflete uma tensão entre o que é e o que pode ser, então ele só pode ser
mantido enquanto ambos estiverem próximos o suficiente para revelar uma linha de
esforço humano capaz de reconciliá-los de forma temporária ou parcial. Todos os
movimentos utópicos ou escatológicos que não se afastam da insularidade arriscam
falhar em converter a visão em realidade e, portanto, rompem a tensão. Nesse ponto,
eles podem até ser movimentos, mas não são mais movimentos do direito. (COVER,
1983, p. 39).
Somente dessa forma o direito “mantém nossa realidade apartada de nossas visões e
nos resgata da escatologia que é a colisão das construções de nossas mentes com o mundo
material e social” (COVER, 1983, p. 10). Essa ressalva em relação à especificidade da narrativa
jurídica é importante, uma vez que a amplitude do modelo inicial de Cover – um universo
normativo baseado em noções de certo e errado – pode levar a interpretações equivocadas. Ao
eliminar do âmbito do direito as narrativas incapazes de mobilizarem a ação humana, o autor
reduz significativamente esse universo. Mas é preciso ir além, é preciso compreender –
colocando de uma forma mais direta – como se faz direito. É aqui que Cover defende o seu
conceito de jurisgenesis como forma de explicar a origem da normatividade social:
O nomos que descrevi não requer Estado. E de fato, é a tese desse ensaio que a criação
de significado jurídico – “jurisgenesis” – acontece sempre através de um meio
essencialmente cultural. Embora o Estado não seja necessariamente o criador do
4
Esse é um possível ponto de divergência entre as concepções de Cover e as que Steiner identifica como sendo
pertencentes a Ernst Bloch, para quem o instinto utópico é a mola da política. (STEINER, 2005, p. 237).
5
“Narrativas são modelos de ação por meio dos quais estudamos e experenciamos transformações que acontecem
quando um dado estado de coisas simplificado é forçado a passar através do campo de força de um conjunto de
normas igualmente simplificado.” (COVER, 1983, p. 10).
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poder (COVER, 1983, p. 18). Ao entender que o direito é inicialmente sentido, o modelo de
Cover é capaz de identificar como jurídicos alguns discursos ou manifestações tipicamente
classificadas como éticas, morais ou religiosas. Um grupo ou comunidade 6 que se proclame
autônomo (ou seja, que literalmente cria um nomos próprio) em relação ao Estado não possui,
por exemplo, uma visão ética ou religiosa particular sobre determinado preceito constitucional;
possui, na verdade, outro direito. Mas isso evidentemente levanta uma questão: todo grupo
social pode afirmar que possui um direito próprio – um nomos que possa chamar de seu? Cover
não parece oferecer um critério fechado nesse aspecto. 7 Julen Etxabe (2010) encontra, no
entanto, ao menos quatro características comuns a todos os exemplos fornecidos pelo autor em
Nomos e Narrativa: a formação de um nomos parece pressupor um grupo humano bem
constituído, uma autoconsciência em relação à identidade do grupo, uma percepção de
compartilhamento e delimitação baseada em textos comuns e determinados projetos de vida
normativos. (ETXABE, 2010, p. 122).
Contudo, para além das características, é possível afirmar que o conceito de
jurisgenesis, para além de seu apelo a uma visão não estritamente estatal sobre o direito,
também parece exercer uma função de “qualificação” das narrativas no pensamento de Cover
como efetivamente jurídicas. Como já mencionamos, o primeiro passo é separar planos de ação
realizáveis de expectativas ilusórias ou utopias puras. Não basta afirmar que podemos ir de um
“aqui” para um “lá”; é preciso mostrar como. Para além da interpretação, o significado jurídico
necessita, na visão de Cover, também de comprometimento. O comprometimento vai além da
narrativa, além da visão que projetamos sobre a realidade – trata-se do esforço necessário para
se chegar até elas. A construção de universos normativos só é possível na medida em que se
colocam, conforme a expressão que Cover utilizará em Violência e a Palavra, os “corpos à
6
Falamos em “grupo ou comunidade” porque, na visão de Cover, o nomos é necessariamente um processo social,
e nunca individual. Um indivíduo certamente pode formular uma interpretação jurídica própria, e pode até
conseguir viver sob ela. Nesse caso, contudo, não haveria qualquer processo social envolvido. A menos que se
torne inteligível a uma comunidade mais ampla e possa constituir um modelo de comportamento adotável, essa
intepretação constitui por si só um nomos. Nesse sentido, argumenta Cover: “Qualquer pessoa que tivesse uma
vida normativa inteiramente idiossincrática seria bastante louca. O papel que você ou eu escolhemos assumir
pode ser singular, mas o fato de que nós podemos situá-lo em um ‘script’ comum o torna ‘são’ – é uma garantia
de que nós compartilhamos um nomos.” (COVER, 1983, p. 10).
7
Uma objeção provável aqui é: seguindo essa lógica, devemos considerar que um grupo terrorista também pode
constituir um nomos. E de fato, a resposta seria afirmativa – não se pode dizer que o Estado Islâmico, por
exemplo, não possua suas próprias interpretações e não se comprometa (de uma forma extrema, devemos dizer)
com elas. Mas disso não se segue que, reconhecendo um nomos, devemos necessariamente preservá-lo. Cover
não chegou a tratar especificamente dessa questão, mas pode se concluir, a partir de sua discussão sobre a
violência do direito estatal, que um nomos não deve impor seus preceitos de maneira violenta, declarando
qualquer manifestação alternativa como inimiga – como é o caso das manifestações extremistas do tipo “guerra
justa”.
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prova (bodies on the line)” (COVER, 1986b, p. 1605). Ou seja, o significado jurídico depende
de uma narrativa relativamente estável, com a qual seja possível se compreender de modo a
torná-la realidade objetiva para os demais atores sociais envolvido. Interpretação,
comprometimento e objetivação – na falta de algum desses três elementos não é possível,
segundo Cover, falar em direito.
A manifestação arquetípica presente em Nomos e Narrativa é o nomos criado por uma
comunidade religiosa que vive conforme suas próprias intepretações de textos sagrados. Além
da clara influência que as narrativas bíblicas exercem no pensamento de Cover, a centralidade
dos exemplos religiosos tem a ver com o fato de que comunidades anabatistas 8 como os amish
e os menonitas manifestaram-se como amicus curiae no caso analisado pelo autor, o Bob Jones
University. Esses exemplos também se encaixam perfeitamente na descrição fornecida por
Cover sobre a base social da jurisgenesis. Do lado das comunidades, verifica-se um processo
de criação do direito; do ponto de vista do tribunal, interessa a estabilização dos significados
jurídicos aceitos pelo Estado. Diante dessa contraposição de forças, o autor aponta para a
existência de dois modelos distintos de constituição do nomos.
Cover denomina o primeiro tipo como paideico. Nesse modelo, de forte inspiração
religiosa, grupos ou comunidades articulam seu próprio espaço normativo a partir de
determinado corpo de preceitos e narrativas e um sentido de unidade entre seus membros. A
possibilidade de novas interpretações encontra-se permanentemente aberta, e o direito assume
um caráter pedagógico: os indivíduos são educados na lei, de modo que a obediência é fruto de
um processo de entendimento, e não de coerção normativa (COVER, 1983. p. 12-13). O vínculo
entre os indivíduos é de obrigação recíproca e de responsabilidade individual com o bem-estar
geral do grupo. Já ao segundo modelo, responsável mais por manter os universos normativos
do que criá-los, Cover dá o nome de imperial. Esse modelo caracteriza-se pela objetividade de
seus preceitos – normas jurídicas abstratas e universais – e pelo fato de que sua aplicação fica
a cargo de instituições devidamente constituídas para esse fim. Os compromissos interpessoais
são fracos, uma vez que só se exige que os indivíduos evitem determinados tipos de condutas
legalmente reprováveis. É como o direito moderno funciona em sua maior parte; uma forma de
garantir que o nomos não se desintegre em razão de suas tendências plurais e potencialmente
8
A origem dessas comunidades cristãs sectárias remete à ala mais radical (e também a mais perseguida) da
Reforma Protestante, que propunha, entre outros aspectos, a “re-batização”, ou seja, que a cerimônia do batismo
fosse repetida na idade adulta, quando o indivíduo pudesse realizar o ato de forma consciente. Ainda que em
número bastante reduzido, essas comunidades sobrevivem até hoje em colônias espalhadas por diversas partes
do mundo.
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“Em nosso próprio mundo normativo, não há um texto obviamente central, certamente nenhum que forneça as
narrativas e os preceitos de forma exaustiva. Não obstante, a constituição dos Estados Unidos se autodeclara
como ‘lei suprema’.” (COVER, 1983, p. 25). Não há dúvidas que essa afirmação também se impõe no contexto
constitucional brasileiro, em que pese a presença de normas derivadas de tratados internacionais, por exemplo.
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Os juízes são pessoas de violência. Por conta da violência que comandam, os juízes
caracteristicamente não criam direito, mas o eliminam. Seus escritórios são
jurispáticos. Enfrentando o exuberante crescimento de uma centena de tradição legais,
eles afirmam que apenas uma é direito e destroem ou tentam destruir o resto. Mas os
juízes também são pessoas de paz. Entre seitas antagônicas, cada uma delas envolta
no manto de seu próprio direito, eles afirmam uma função reguladora que permite uma
vida de direito ao invés de violência. A extensão da violência que eles poderiam
comandar (mas geralmente não comandam) mede a extensão da paz e do direito que
eles constituem. (COVER, 1983, p. 53).
Cover parece enunciar o problema de forma bastante clara. No entanto, sua reflexão
parece longe de pretender solucioná-lo. Mesmo com um aprofundamento posterior, em
Violência e a Palavra, a reflexão do autor sobre a violência dos tribunais não escapará de
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críticas bastante razoáveis. Deixando essa questão em aberto, Nomos e Narrativa se encerra
com a seguinte mensagem:
Não é o romance da rebelião que deveria nos levar a olhar para o direito desenvolvido
por movimentos sociais e comunidades. Bem pelo contrário. Assim como é a nossa
desconfiança e o reconhecimento do Estado como realidade que nos leva a ser
constitucionalistas no que diz respeito a ele, então o nosso reconhecimento e
desconfiança em relação à realidade do poder dos movimentos sociais que deveria nos
levar a examinar os mundos nômicos que eles criam. E assim como o
constitucionalismo é parte daquilo que pode legitimar o Estado, da mesma forma o
constitucionalismo pode legitimar, dentro de uma estrutura distinta, comunidades e
movimentos. O significado jurídico é um enriquecimento desafiador da vida social,
enriquecimento desafiador da vida social, uma potencial limitação ao poder arbitrário
e à violência. Nós devemos parar de circunscrever o nomos; nós devemos recepcionar
novos mundos. (COVER, 1983, p. 68).
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Em The Bonds of Constitutional Interpretation, Cover assinala radicalmente a diferença entre a interpretação no
contexto judicial e no contexto literário ou filosófico: “A prática da interpretação constitucional é tão
inextrincavelmente ligada à ameaça real ou à prática de atos violentos que ela é – e deveria ser – uma disciplina
essencialmente diferente da ‘interpretação’ na literatura e nas humanidades”. (COVER, 1986a, p. 816).
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descrição feita em Nomos e Narrativa. Nesse último caso, a despeito do privilégio que o próprio
autor concede ao papel da construção de sentido ou de realidades alternativas, não se pode
esquecer que mesmo a jurisgenesis não estatal tem de prestar contas com a violência, uma vez
que “todo grupo deve acomodar no seu próprio mundo normativo a realidade objetiva do outro”
(COVER, 1986a, p. 28-29). Adotando um tom mais passional, característico de uma
conferência, Cover reforça essa ideia ao final de The Bonds of Constitutional Interpretation:
No direito, ser um intérprete é ser uma força, um ator que cria efeitos mesmo através
ou em face da violência. Hesitar diante do sofrimento ou da imposição de violência é
entregar o direito para aqueles que estão dispostos a agir desse modo. O Estado é
organizado para superar escrúpulo e medo. Todos os outros serão meros peticionários
se não atacarem de volta. (COVER, 1986a, p. 833).
Para Cover, o lugar central da interpretação jurídica não é o texto, mas um campo de
batalha. Trata-se de uma interpretação que “envolve instrumentos tanto da guerra como da
poesia” (COVER, 1986a, p. 817). Isso não deve significar o fim de qualquer aspiração
constitucional de enfrentar a violência, mas apenas o fim das visões excessivamente românticas
sobre a constituição. Se há algo de romântico nas visões que Cover invoca em Violência e a
Palavra, também há, em igual ou maior medida, algo de violento em cada uma delas. Para
Cover, o ato de sentenciar um réu pode fazer parte do cotidiano de qualquer juiz, mas ainda
assim “é imensamente revelador sobre o modo como a interpretação é marcada de forma distinta
pela violência”. (COVER, 1986b, p. 1607). Porém, quem espera a seguir uma condenação
veemente da violência por parte de Cover, se depara com uma inusitada afirmação: “Se posso
ter mostrado algum tipo de simpatia em relação às vítimas dessa violência, trata-se de um
engano. Com grande frequência o equilíbrio de terror é, nesse tipo de situação, justamente como
eu queria que fosse” (COVER, 1986b, p. 1608). Essa passagem é sintomática de uma
ambiguidade que persiste ao longo do ensaio, e que pode ser resumida da seguinte forma:
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O fato é que temos percorrido um bom caminho, desde 1914, no que diz respeito a
nossas expectativas de que as pessoas acusadas de crimes capitais tenham um
julgamento, sejam apropriadamente sentenciadas e vivam para ver o tempo marcado
para a execução de sua sentença. De fato, hoje esperamos uma coordenação quase
perfeita entre aqueles cujo papel seja o de infligir violência, sujeita às decisões
interpretativas dos juízes. Esperamos inclusive uma cooperação coordenada de modo
a assegurar todas as interpretações jurídicas plausíveis sobre o assunto. Uma forma
bem coordenada da violência como essa é uma conquista. Os delicados compromissos
sociais destinados a executar essa violência que é a punição capital, ou para evitar esse
ato, não são produtos fortuitos ou casuais das circunstâncias. (COVER, 1986b, p.
1624-1625).
Nós fizemos algo estranho em nosso sistema. Nós separamos rigidamente o ato de
interpretação – de compreensão do que deveria ser feito – da execução “do que deveria
ser feito” por meio de violência. Ao mesmo tempo, ao menos no direito penal,
estabelecemos uma rígida conexão entre a execução das ordens judiciais e o ato de
interpretação judicial, por meio de hierarquias relativamente inflexíveis de
pronunciamentos judiciais e obrigações firmes da parte dos agentes públicos
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Essa circunstância é celebrada por Cover como “algo intrínseco a qualquer sucesso
possível na tarefa de domesticar a violência” (COVER, 1986b, p. 1628). Cover destaca aqui a
importância das regras que Hart (2006) chamou de secundárias, que orientam a “ordem
hierárquica de vozes judiciais”, e assinalam os defeitos de um modelo de interpretação judicial
que se concentra no trabalho de uma única mente coerente e consistente”. (COVER, 1986b, p.
1625).
Por mais coerente que seja, uma única mente não é capaz, segundo Cover, de carregar
a “força da violência coletiva” que caracteriza o direito não só como um caso particular de
violência, mas também de interpretação. Cover admite que a decisão de um “Hyporcules”
provavelmente será mais articulada e coerente que uma decisão coletiva de vários juízes. Mas
diante da tarefa de domesticar a violência do direito, prefere sacrificar as expectativas de se
atingir um significado comum do que descartar as regras secundárias que instituem uma
estrutura de múltiplas vozes para a tomada de decisões. Assim, Cover aceita que as
consequências de sua leitura sobre a interpretação jurídica não sejam muito animadoras: “Só
nos resta, portanto, esse mundo real da organização do direito-como-violência, com decisões
cujo significado, se for comum, provavelmente não será coerente – e se for coerente,
provavelmente não será comum”. (COVER, 1986b, p. 1629).
Ainda que essa postura pode ser vista como problemática para o próprio projeto de
reconstrução de universos normativos de Nomos e Narrativa, o Cover de Violência e a Palavra
não está disposto a ocultar as conclusões de seu reconhecimento sobre a centralidade da
violência no direito:
Sejamos então explícitos. Ainda que seja um pensamento desagradável que dor e
morte estejam no centro da interpretação jurídica, que assim seja. Não seria melhor se
houvesse apenas uma comunidade argumentativa formado por leitores e escritos de
textos – de intérpretes. Na medida em que dor e morte sejam parte de nosso mundo
político, é essencial que elas estejam no centro do direito. A alternativa é
verdadeiramente inaceitável: que eles estejam dentro de nossa política, mas fora da
disciplina das regras de decisão coletiva e dos esforços individuais para atingir
resultados por meio dessas regras. É algo intrínseco a qualquer sucesso possível na
tarefa de domesticar a violência. (COVER, 1986b, p. 1628).
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que prescreve que a “responsabilidade pela violência deve ser compartilhada para que se possa
exercê-la de forma segura e efetiva” (COVER, 1986b, p. 1628), o que envolve uma gama de
atores sociais e não o trabalho de uma única mente judicial. Por outro lado, há um limite ainda
mais profundo, fruto do caráter díspar das experiências envolvidas nos dois polos da
interpretação jurídica:
Assim, com o mesmo tom sombrio que utilizou ao invocar o “campo de dor e morte”
no começo do ensaio, Cover (1986b, p. 1629) conclui: “Entre a ideia e a realidade do significado
comum cai a própria sombra da violência do direito”.
As experiências da organização social do direito como significado e como violência
parecem colidir frontalmente, e não houve mais tempo para que Cover, morto poucos meses
após a publicação de Violência e a Palavra, pudesse responder aos questionamentos que esse
confronto – talvez o mais fundamental de sua obra – suscita. A partir desse ponto, restaram
apenas especulações, críticas e comentários. Há quem considere a tentativa de Cover de
conciliar direito e violência como uma vã esperança (SARAT; KEARNS, 2001); há quem
enxergue problemas cruciais em sua análise, embora reconheça seus méritos (SIMON, 2001);
há quem procure ressignificar o “campo de dor e morte” do direito como a nossa única
experiência possível em termos de significado comum (CONSTABLE, 2001); por fim, há quem
veja Cover como um autor fundamental para entender que o direito é necessário para entender
o nosso sofrimento, vendo o direito como a constante transgressão de si mesmo (McVEIGH et.
al., 2001; MINOW, 1987).
Não cabe aqui debater sobre cada um desses caminhos, senão apontá-los como forma
de demonstrar que o pensamento de Cover permanece vivo e – o que ao mesmo tempo
surpreende e encoraja quem se propõe a estudá-lo – ainda pouco explorado.
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Maurício Pedroso Flores
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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