Estudar Antes de Falar
Estudar Antes de Falar
Estudar Antes de Falar
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 13 de agosto de 2013
O Milagre da Solidão
Olavo de Carvalho
Bravo! nº 13, outubro de 1998, edição de primeiro aniversário
Lima Barreto foi, com Cruz e Sousa e Machado de Assis, um dos meus heróis
carlylianos de juventude — “the hero as man of letters” —, o tipo do sujeito que pela
força da auto-educação se eleva acima do meio opressivamente burro e se torna um
educador de seus opressores.
Que os três fossem pretos era coisa que não me comovia especialmente. A
discriminação que você sofre como parte de um grupo tem sempre o contrapeso da
solidariedade entre a multidão de coitados: quanto mais o expelem de um grupo, tanto
mais você se sente integrado no outro, e sempre resta a esperança coletiva de que os
oprimidos de soje sejam os opressores de amanhã. Ruim, mesmo, é a discriminação
que você sofre sozinho, sem o consolo da palavra nós e das ideologias salvadoras,
rejeitado, graças ao estima da diferença, mesmo pelos seus companheiros de raça, de
religião, de bairro, de geração. Aí você não tem para onde correr. Você é o próprio
Cristo na cruz, abandonado por todos, desprovido de semelhantes. Nenhuma ONG vai
fazer lobby em seu favor, nenhuma assembléia da Unesco vai denunciar que você é
vítima de uma grossa sacanagem, a rainha da Inglaterra não vai estipendiar nenhuma
fundação para socorrê-lo, nenhum editorial do The New York Times vai dizer que você
é lindo e maravilhoso como o João Pedro Stédile. Para todos os efeitos, você está
excluído até mesmo da classe dos dscriminados. Você é aquela mancha de meio
milímetro no canto de uma foto do Sebastião Salgado.
Só o sujeito que passou por essa situação sabe que existe, no mundo, um tipo de mal
que supera tudo o que a mídia denuncia, e que pensando bem, é a raiz da porcaria
universal.
Explico-me. O herói do primeiro romance de Lima Barreto, Recordações do Escrivão
Isaías Caminha, não sofre somente porque é preto e pobre. Ele sofre porque é um
sujeito honesto num meio de vigaristas, um autêntico homem de letras num meio de
farsantes, um gentleman no meio de carreiristas vorazes e grosseiros. Enquanto preto
e pobre, consolava-se olhando a multidão de seus companheiros de infortúnio. Mas
quantos semelhantes teria ele nas qualidades excelsas que o destacavam e o
isolavam? Quantos irmãos tinha Cristo na cruz? A parte de Isaías que mais dói não é
sua inferioridade social: é sua superioridade moral.
Mas Isaías traz ainda a marca do ressentimento racial. Ao escrevê-lo, Lima Barreto
sente-se ainda o membro de uma determinada comunidade excluída e fala em nome
dela. O livro resvala às vezes para o desabafo direto e, quanto mais se aproxima de
uma cópia literal da realidade empírica, mais perde em altitude. O próprio Isaías
também é de pouca estatura: ele é melhor que os outros, não mais forte: débil e tímido,
reduz-se a uma vítima passiva das circunstâncias, tudo se resolve numa
horizontalidade deprimente e, como dizia Antonio Machado, “cuán dificil es/ cuando
todo baja/ no bajar también”!
No romance seguinte, Lima Barreto abdica de toda referência a uma injustiça social
presente. O major Quaresma não pertence a nenhum grupo discriminado.
Não tem nenhum handicap que o identifique a esta ou àquela multidão de vítimas. Ele
é auto-suficiente na luta pela vida. É mais forte, mais inteligente e mais valente que seu
antagonista, o presidente Floriano. Quaresma não é discriminado porque algo lhe falte,
mas porque tem força de sobra e a generosidade de querer ajudar a seu povo. Este
segundo herói de Lima Barreto adquire assim uma altitude que faltava a Isaías. Ele já
não é o personagem de um mero drama social, mas o herói de uma tragédia. Segundo
Aristóteles, é essencial que o herói trágico seja um homem poderoso e especial: fora
disso suas desventuras assinalariam apenas uma conjunção acidental de
circunstâncias, suprimível e sem o alcance de uma fatalidade cósmica inexplicável.
Mas a derrota do major ainda é parcialmente explicável. Ele é um gênio criativo, mas,
convenhamos, suas idéias são bem esquisitas. Ele tem esse resíduo de fraqueza, a
meia loucura que o coloca a meio caminho entre o herói e o anti-herói. É por esse
flanco que o inimigo consegue feri-lo. A morte de Quaresma nos deprime, mas não nos
escandaliza como um absurdo completo. Há nela algo de razoável: o ideal do
reformador era incompatível não só com o ambiente mesquinho da República
florianista, mas com a reaidade tout court.
Esse último pretexto da injustiça é enfim abolido num romance seguinte de Lima
Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Gonzaga é um Policarpo Quaresma
sem demência, um Isaías sem o handicap da juventude e da timidez. É um grande
homem em toda a extensão da palavra — e sua vida termina no isolamento e na
resignação, mas não na derrota. Solitário entre seus livros, o sábio desenganado
observa o mundo com um olhar sem ressentimento nem sentimentalismo, cheio de
uma compreensão serena que lembra, por mais de um aspecto, a do conselheiro Aires,
mas livre daquele resíduo de negativismo schopenhaueriano que foi até o fim a marca
registrada de Machado de Assis.
A trilogia barretiana mostra-nos a evolução do ideal do humano do grande escritor,
retratada na gradação espiritual dos heróis: o jovem talentoso esmagado pelo mundo, o
combatente exaltado e semilouco, o sábio estóico soberano e calmo que permanece de
pé enquanto o mundo em torno cai. De personagem a personagem, há uma
progressiva depuração e interiorização do ideal, que vai se afastando da situação
empírica imediata para se tornar cada vez mais universalmente humano e, na mesma
medida, se desliga de todo ressentimento coletivo para encontrar o sentido de uma
vida não na vingança, mas no perdão.
O perdão, aqui, não deve ser entendido na acepção beata e sentimental, mas no
sentido etimoçógico de per-donare, completar o dom: o mundo não nos persegue
porque é mais forte que nós, mas porque é mais fraco. Ele nos persegue porque algo
lhe falta: a sabedoria. Como no verso de Santayana: “O world, thou choosest not the
better part!” . Ao superar o ressentimento coletivo, o sábio “escolhe a melhor parte” e é
o único que, no fim das contas, é rico o bastante para ter o que dar. Gonzaga não é
verdadeiramente derrotado. Expelido do mundo, prossegue a busca da verdade,
sempre disposto a compartilhá-la com o discípulo que o procure. “The hero as man of
letters”: o oprimido tornou-se educador do mundo opressor.
Juntas, as três obras maiores de Lima Barreto formam um poderoso Bildungsroman —
o romance da vitória de uma alma sobre si mesma e, por meio disto, sobre o mundo(*).
A transfiguração do oprimido em benfeitor é um milagre que se repete incessantemente
na história. Raramente houve um sábio, um santo, um mestre cujos prodígios de
generosidade não brotassem dos extremos de discriminação e solidão padecidos na
infância, vencidos e superados pela alquimia da maturidade. É a mensagem final do
Rei Lear: “Ripeness is all”.
Mas isso só acontece àqueles que sofreram a discriminação sozinhos, sem ter uma
raça, um partido, uma ideologia, uma ONG e fundações internacionais a que se
agarrar. Quem tem essas coisas não precisa atravessar o caminho da ascese interior.
Pode encontrar alívio e reconforto na ilusão de que o ódio dos vencidos é um
sentimento moralmente superior ao orgulho dos vencedores. Pode escapar da solidão
fundindo-se na massa vociferante dos comparnheiros de partido, sonhando morticínios
justiceiros que serão, na sua cabecinha imunda, a apoteose do bem. Foi dessa ilusão
sangrenta que a leitura da trilogia de Lima Barreto me libertou, mais de trinta anos
atrás.
A diferença entre povo opressor e povo oprimido é apenas quesão de ocasião, e a
“solidariedade com os primidos” é apenas o véu ideológico que bsuca embelezar e
legitimar, de antemão, os massacres de amanhã. Esse reconforto “ético” é, no fundo,
uma fuga da consciência: todo povo orpimido esconde os lances vergonhosos de sua
própria história, para poder acreditar-se melhor que os opressores. Não há um só
movimento de libertação e de direitos que não se funde nessa mentira essencial, em
que se afiam os espetos de futuros holocaustos. Durante um milênio faraós negros
arrancaram sangue do lombo semita, para terminar sendo vendidos como escravos e
hoje tentar comover o mundo com seu discurso contra os judeus comerciantes de
escravos. Os alemães encontraram na humilhação coletiva a inspiração para perseguir
os judeus, e a fumaça do holocausto ainda santifica o fuzil isralense a cada tiro que
dispara sobre um palestino armado de pedras.
Reihold Niebuhr assinalava a diferença de nível ético, estrutural e intransponível, entre
o indivíduo e a comunidade. Para o indivíduo, o sofrimento pode ser o princípio da
sabedoria. Para a comunidade, é o motor da violência, que puxa o carro da história na
direção da fornalha ardente em cuja beirada um cartaz anuncia: “Justiça e Paz”. Em
face disso, a serenidade de M. J. Gonzaga de Sá é a resposta final aos padecimentos
do jovem Isaías Caminha, e o heroísmo semilouco de Policarpo é uma etapa, a ser
vencida, no caminho do entendimento.
Ciência e demência
Olavo de Carvalho
TV Stalin
Olavo de Carvalho
Girard: A revolução
Olavo de Carvalho
Provas científicas
Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 28 de maio de 1998
Os esforços devotados de intelectuais e da mídia para provar que o Brasil é um país
racista seriam desnecessários se o Brasil fosse racista. Ninguém teve de provar
cientificamente o racismo da África do Sul. Quando a prova tem de ser obtida mediante
contorcionismos estatísticos, o que fica provado é apenas o desejo incontido que uma
certa elite tem de produzir, desde cima, um conflito racial que jamais brotaria de baixo
espontaneamente, como de fato não brotou.
Mas essa política pode considerar-se vencedora desde que foi apadrinhada pela Rede
Globo de Televisão, fabricante monopolística da mentalidade nacional. Não passa um
dia sem que mensagens a atestar as supostas inclinações racistas do nosso povo
sejam marteladas e remarteladas por meio de noticiários, entrevistas e novelas, até
tornar-se, pela repetição goebbelsiana, verdade evangélica, cuja contestação acabará
por se tornar, por sua vez, crime de racismo: está próximo o dia em que louvar a
democracia racial brasileira dará cadeia.
Não sei se a responsabilidade, no caso, incumbe aos proprietários da Rede Globo ou
aos iluminados da esquerda ali inseridos, que, agindo segundo uma técnica muito
conhecida nos anais da estratégia revolucionária, se aproveitam de algum cochilo da
direção e se apressam a mandar na empresa como se já fosse propriedade do futuro
Estado comunista.
Afinal, muito antes de o “politicamente correto” tomar de assalto a cultura do Novo
Mundo, já circulava a ordem do Comintern, de 1931, para que os comunistas
buscassem acirrar a luta entre as raças, dando-lhe um sentido de luta de classes
(William Waack, Camaradas , São Paulo, Cia. das Letras, 1993). Como diria
Vicentinho: “A luta continua”; agora, em rede nacional de televisão.
O novo capítulo da série vem sob a forma de mais uma mentira impingida ao público
como verdade científica. Uma pesquisa da assistente social Maria Inês da Silva
Barbosa, celebrada pela GNT como prova final (mais uma!) do racismo brasileiro,
informa que negros e brancos, em São Paulo, não morrem das mesmas causas: os
brancos sucumbem mais de enfarte (9,8%), os negros, de homicídio (7,5%, contra
2,5% de brancos). A sociedade racista branca , conclui a pesquisadora, está
exterminando sistematicamente os negros .
Os números podem ser válidos, mas a conclusão é pura fraude. Em primeiro lugar, a
raça branca é mais sujeita a doenças cardíacas do que a negra, o que já basta para
explicar a diferença do número de enfartes. Quanto ao de homicídios, para concluir que
se deve a um racismo exterminador seria preciso provar que foram, na maioria,
cometidos por brancos. Pois caso seja maior entre os negros não somente o número
de vítimas, mas também o de assassinos, o resultado da pesquisa sugerirá apenas, se
tanto, que os negros são mais violentos que os brancos. Ora, esta conclusão,
declarada em público, seria instantaneamente rotulada de racista, mas não o é menos
a sua contrária, que resulta em atribuir aos brancos, mediante a ocultação de um dado
essencial, a responsabilidade global pelos homicídios de vítimas negras, mesmo os
cometidos por negros. Ou não haverá racismo algum em forçar o resultado de uma
pesquisa para acusar de homicida uma raça inteira, contanto que seja a branca?
A pesquisadora escondeu muito mal suas intenções ao declarar que o racismo da
África do Sul ou do Alabama, com seus morticínios, seus guetos, sua virtual proibição
de casamentos mistos, nunca foi nada pior que o nosso “racismo sutil” – tão sutil, digo
eu, que só se materializa sob a forma abstrata de frações numa estatística, e mesmo
assim não se torna visível senão aos olhos da fé.
“Para mim, racismo é racismo”, afirmou a entrevistada, atestando sua carência do
senso das proporções.
Ora, entre uma sociedade que diluiu tão bem as desavenças raciais que elas, se não
sumiram de todo, acabaram por se reduzir a uma vaga e evanescente tendência
subconsciente, e uma outra que as exacerbou numa cultura que enfatiza a identidade
racial acima da unidade do gênero humano, qual a mais racista e perversa, qual a mais
justa, bondosa, sábia?
Mas há outra diferença. Foi por seus méritos próprios, pela sua sabedoria espontânea
e quase sem a intromissão do Estado que o povo brasileiro conseguiu reduzir ao
mínimo a discriminação racial neste país. Na África do Sul, nos Estados Unidos, uma
cultura arraigadamente racista teve de ser controlada pela polícia e pelos tribunais, e,
sob todo o peso da máquina repressiva, ainda explode, de vez em quando, em
descargas de uma violência sem paralelo na nossa história.
Quem pode negar essa diferença sem uma considerável dose de cegueira intelectual
ou de interesses políticos maliciosos?
O capital
Olavo de Carvalho
Esquerda inteligente
Olavo de Carvalho
atos e mexericos
Olavo de Carvalho
O direito de investigar
Olavo de Carvalho
Ética sociopática
Olavo de Carvalho
Época, 18 de novembro de 2000
Maquiavelismo revolucionário camuflado em luta pela ética faz mal à saúde moral
do país
Outro dia escrevi que Fidel Castro começara sua carreira assassinando um político
qualquer só para cavar favores de um inimigo da vítima. Alguém replicou, indignado,
que não era justo polemizar contra o regime cubano mediante “ataques à vida pessoal”
de seu representante. Estão vendo por que digo que o atual esquerdismo brasileiro não
é um fanatismo simples, mas um fanatismo de sociopatas? O simples fanático não
chega ao desvario de proclamar que um homicídio político é puro assunto de foro
íntimo do homicida, sem peso no julgamento de seu desempenho de homem público.
Para tanto é preciso que ele tenha sacrificado no altar de sua fé o último vestígio de
discernimento ético. Fanatismo, por si, não implica dessensibilização moral. Essa é, em
contrapartida, a definição mesma da sociopatia.
Não se trata, evidentemente, de sociopatia individual e espontânea, mas coletiva e
induzida. Milhões de brasileiros estão se deixando reduzir à completa obtusidade pela
prostituição de seu senso ético a uma formidável mentira eleitoral. Um partido que, em
seus planos estratégicos, se propõe implantar no país um regime comunista de tipo
cubano, mas em sua propaganda escamoteia esse dado essencial e vende uma
imagem ideologicamente inócua de probidade administrativa, está, com toda a
evidência, introduzindo um grave desvio de foco nas discussões públicas. O PT, de
fato, parece ter menos corruptos que os outros partidos. Ao sugerir, porém, que essa
diferença o torna especialmente apto a governar com lisura num regime democrático,
ele omite que ela é apenas um subproduto da disciplina revolucionária voltada à
destruição desse regime. Todo partido revolucionário é, nesse sentido aparente,
“honesto”: não porque respeite as leis e a ordem, mas porque os rigores da guerra
contra a lei e a ordem não lhe permitem o luxo de sacrificar a estratégia geral a
ambições individuais. Ele não pode dizer isso em público, mas pode se aproveitar
dessa mesma circunstância para fazer da luta em favor da moral a mais perfeita
camuflagem de uma radical insinceridade. Não foi à toa que Antonio Gramsci fez do
partido revolucionário a nova encarnação do Príncipe de Maquiavel.
Falando em nome dos mais altos anseios éticos, usando de sua falsa identidade até
mesmo como instrumento de chantagem psicológica para instilar sentimentos de culpa
nos eleitores que votassem contra ele, o bem-sucedido discurso petista ficou muito
abaixo, não digo das injunções superiores de uma ética de virtudes, mas das
exigências mais comezinhas do Código de Defesa do Consumidor.
Nunca, na história psicológica deste país, uma estratégia tão visceralmente fraudulenta
logrou colocar a seu serviço, mediante propaganda enganosa, os sentimentos mais
nobres e elevados de tantos eleitores. Nunca aquilo que há de melhor na alma dos
cidadãos foi tão maquiavelicamente usado, desvirtuado, prostituído.
Corruptio optimi pessima: não há improbidade administrativa que possa se comparar,
na malignidade de seus efeitos profundos, a essa propositada deformação da
inteligência moral de um povo. Não espanta, pois, que pessoas submetidas a tamanha
deseducação acabem se estupidificando a ponto de julgar que homicídios políticos
sejam detalhes da vida pessoal, inaptos a manchar no mais mínimo que seja uma bela
carreira de homem público
Precauções de leitura
Olavo de Carvalho
O Globo, 18 de novembro de 2000
Uma grande bobagem que você pode fazer ao estudar a história das idéias filosóficas é
compará-las umas às outras no mesmo plano, como teorias científicas ou visões da
realidade, diferentes apenas segundo o ponto de vista adotado, os talentos pessoais de
seus criadores e a mentalidade das épocas.
Muitas doutrinas famosas não são de maneira alguma teorias sobre a realidade, nem
tiveram jamais a pretensão de sê-lo. Surgidas no bojo de grandes projetos de ação
política, são ficções propositais calculadas para produzir impressões na opinião pública
e predispô-la às condutas que se supõem adequadas à consecução desses projetos.
São, no sentido mais estrito, informação estrategicamente manipulada. Não se
destinam a diagnosticar, descrever ou compreender a realidade, mas a produzi-la – ou
melhor, a produzir uma falsa realidade que atue sobre a realidade efetiva, no
mesmíssimo sentido em que um falso rumor de traição conjugal, soprado aos ouvidos
de um marido ciumento, pode induzi-lo a um crime passional de verdade.
Não são teorias: são atos políticos. Discuti-las como teorias pode ser útil apenas para
desmascarar a falsa identidade científica que se arrogam, mas, precisamente, esse
desmascaramento não pode ser feito sem um conhecimento prévio do projeto que
encobrem e que ocultamente as modela.
Uma precaução elementar no estudo de qualquer doutrina é averiguar se seu autor
corresponde ao tipo do homo theoreticus, do estudioso sincero que irá às últimas
conseqüências na investigação da verdade, pouco importando a quem favoreçam ou
desfavoreçam os resultados de suas investigações, ou se, ao contrário, é um líder, um
chefe, um homem de ação e revolucionário interessado em transformar o mundo.
Neste último caso, a hipótese de que a verdade objetiva prevaleça em seu pensamento
é uma casualidade que pode se dar aqui ou ali, em afirmações parciais, mas que no
conjunto deve ser considerada improvável e remota.
Há, evidentemente, o caso intermediário do educador, que é homem de ação e produz
teorias. A diferença é que a ação do educador visa a transformar almas individuais – as
de seus alunos atuais e virtuais – e não o Estado, as leis e a sociedade, pelo menos de
maneira direta e intencional. Esse tipo de ação não só é compatível com a fidelidade ao
saber objetivo, mas de certo modo a exige.
Até certo ponto, todo filósofo é um educador e não pode deixar de sê-lo. Idêntica
observação pode-se fazer, mutatis mutandis, quanto ao “médico de almas”, que é um
tipo especial de educador.
Há também a possibilidade de que o autêntico homem de saber, em certas
circunstâncias, tome posição em questões políticas específicas, sem comprometer-se
num plano de reforma do mundo que chegue a determinar, por si, os princípios de sua
doutrina. Se esse é o caso, suas opções políticas refletirão sua orientação teórica geral
(ou as mudanças dela), e não ao inverso.
Mas, feitas estas ressalvas, vigora a distinção entre o homo theoreticus e o homo
politicus. A noção marxista de ideologia, com sua hipótese pueril de que todas as idéias
têm, por igual, objetivos políticos inconfessados, só serviu para obscurecer essa
distinção, que não obstante continua indispensável.
Platão, por exemplo, é caracteristicamente homo politicus. Na sua famosa “Carta
sétima”, ele admite que o objetivo de sua obra é a reforma do Estado. Mas não seria
preciso isso para alertar-nos da conveniência de ler os seus escritos não como
descrições da realidade, e sim como montagens de uma realidade postiça que ele quer
impingir a seus discípulos em vista de um resultado. Como autor de um projeto político,
Platão não deve ser julgado só pelo teor intelectual de suas idéias, mas segundo a
elevação das intenções, a lisura dos métodos e o caráter útil ou danoso dos resultados
de sua ação na História.
Se não fosse por isso, certas argumentações capciosas que ele atribui a Sócrates — e
que não teriam o menor sentido justamente no contexto de uma disputa entre o novo
espírito de rigor socrático e o arsenal consagrado de prestidigitações sofísticas que ele
pretende desmascarar – teriam de ser explicadas como lapsos de lógica ou como
mentiras gratuitas.
A primeira hipótese deve ser afastada porque muitos desses erros são demasiado
grosseiros para alguém que não podia ignorar os critérios dialéticos que, na sua própria
academia, já vinham sendo ensinados por um seu discípulo (Aristóteles). A segunda
faria de Platão um leviano indigno de atenção.
Platão, pois, quando mente, tem algo em vista, como é próprio dos políticos, e muitos
de seus erros são mentiras propositais. Isto deve ser levado em conta na interpretação
da sua obra, enquanto a de Aristóteles se coloca mais na pura dimensão teorética e
pode ser compreendida de maneira mais literal. Quando ele diz algum absurdo (y que
los hay, los hay), é simples erro científico, que pode danificar em mais ou em menos o
conjunto do sistema, mas não requer a sondagem de motivações ocultas.
Mas, se tais precauções são indispensáveis no estudo dos clássicos, quanto mais não
o seriam no da produção científica de uma época em que praticamente toda a classe
acadêmica vive a soldo de governos, serviços secretos, partidos políticos, ONGs e
outras organizações decididas a moldar o mundo? Nessa época, a autoridade
intelectual em estado puro é tão rara quanto o puro heroísmo ou a pura santidade. A
quota de ação política embutida na produção acadêmica é tão imensa que, num
impressionante número de casos, a leitura de teses universitárias só é proveitosa para
técnicos em informação estratégica, aptos a identificar e neutralizar, nelas, o elemento
de desinformação. Para os demais, é apenas auto-intoxicação mental.
O leninismo eterno
Olavo de Carvalho
O Globo, 11 de novembro de 2000
Durante anos a imprensa ocidental assegurou que havia um grave conflito entre os
governos socialistas da Rússia e da Albânia. A fonte da notícia eram as rádios estatais
dos dois países, captadas pelo serviço secreto americano, que transmitiam pesadas
recriminações mútuas entre os déspotas soviéticos e os altivos governantes de uma
naçãozinha que se cansara de ser satélite. As dissensões internas, afirmavam os
comentaristas, prenunciavam a dissolução do monolito soviético, a modernização do
regime, a abertura ao Ocidente, o retorno das liberdades civis. Enquanto isso, o
intercâmbio diplomático e comercial entre Rússia e Albânia continuava normalmente,
os representantes de cada lado eram bem recebidos no outro, mas a imprensa de
Nova York e Londres explicava que eles estavam apenas tentando “resolver suas
divergências”.
Passados 40 anos, ex-agentes da KGB revelaram que as emissões da rádio albanesa,
além de vir em língua praticamente desconhecida na Rússia, só eram ouvidas em
Moscou pelos funcionários do serviço secreto, ao passo que as russas nem sequer
chegavam até a Albânia, porque não havia retransmissão pelas torres locais. A troca de
insultos tinha sido, enfim, uma emissão exclusiva para o público ocidental…
Os habitantes de países democráticos, onde os jornalistas vasculham tudo e a
oposição revela documentos secretos dos órgãos de segurança para esculhambar com
o Governo, dificilmente podem imaginar a facilidade com que um regime totalitário,
controlando as fontes de informação, logra impor, para aquém ou além de suas
fronteiras, uma imagem totalmente falsa do que nele se passa.
De modo mais geral, o movimento socialista, no poder ou fora dele, notabilizou-se pelo
talento de mostrar-se tanto mais dividido e debilitado – e por isto mesmo menos
ortodoxo e mais aberto a inovações democráticas – justamente nos momentos em que
mais estreitamente cerrava fileiras para um esforço conjunto em estratégias de longo
prazo.
Poucos não-militantes compreendem o sentido dialético do raciocínio socialista, onde
cada decisão traz em seu bojo o resultado oposto, calculado para germinar em segredo
e vir à luz de repente, pronto e realizado, como se surgido do nada, confundindo e
paralisando os adversários. Pelo menos três vezes o truque obteve sucesso em escala
planetária, levando o mundo a acreditar que o socialismo havia desistido de sua
ortodoxia e de seus planos de expansão, precisamente quando ele se preparava para
ampliar seus domínios e exercer sobre eles um controle ainda mais rígido.
A primeira foi em 1921, quando Lenin abriu a Rússia aos investimentos estrangeiros.
Foi uma onda mundial de alívio. Capitais acorreram em profusão, celebrando o fim do
pesadelo revolucionário. Quando a injeção acabou de produzir seus efeitos curativos
sobre a economia russa, veio a brutal antítese dialética: a repentina estatização total da
indústria, dos bancos e da agricultura, a consolidação do Estado policial.
A segunda foi a dissolução do Comintern, em maio de 1943, um aceno de boa vontade
aos aliados antinazistas, que o interpretaram como prova de que o comunismo
abandonara suas ambições revolucionárias e se transformara em puro progressismo
patriótico. Franklin Roosevelt chegou a assegurar que Stalin não era comunista de
maneira alguma. O resultado, logo depois, foi a ocupação de meia Europa pelos
exércitos soviéticos e a implantação do comunismo na China.
A terceira foi a “desestalinização”, em 1956, entre aplausos gerais do Ocidente à
cansada ideologia revolucionária que generosamente abdicava de si mesma.
Resultados: revolução cubana e expansão formidável do socialismo na Ásia e na
África.
Por isso mesmo, não é nada estranho que, quanto mais a esquerda brasileira proclama
seu estado de divisão, a perda de sua identidade ideológica e sua conseqüente
disposição de abrir-se à modernização capitalista, mais firme e coesa ela avance rumo
à conquista do poder, mais ela consolida seu braço armado, seu serviço de
espionagem, sua posição de mando na mídia e seu domínio sobre a linguagem, o
imaginário e as reações emocionais das classes cultas.
Ninguém mais, fora da esquerda, sabe o que é dialética ou como funciona o princípio
leninista do “centralismo democrático”. Por isso ninguém entende que uma aparência
de anarquia e pluralismo é a melhor e a mais tradicional fachada para a consecução de
uma estratégia unitária de longo prazo.
Pela mesma razão, todas as análises do desempenho eleitoral do PT que li até agora
se dividem em duas espécies: metade é falta de informação, a outra metade é
desinformação.
Solidamente protegida da luz pela geral ignorância de seus métodos, a estratégia, no
entanto, às vezes deixa o rabo à mostra. Numa entrevista recente, o sr. Luiz Inácio Lula
da Silva, após dar por implícito que a meta do PT é o socialismo, rejeitou
categoricamente a hipótese de uma social-democracia, inviável, segundo ele, num país
tão pobre (ou que tal lhe parece). Mas um socialismo, se não é social-democracia, que
raio de coisa há de ser senão o bom e velho leninismo?
A verdadeira direita
Olavo de Carvalho
Trágica leviandade
Olavo de Carvalho
Época, 21 de outubro de 2000
Incapazes de transformar a si mesmos, os esquerdistas buscam transformar o
mundo
Jamais conheci um esquerdista que chegasse a sê-lo por etapas, por experiência
acumulada e avaliação ponderada dos fatos. Todos tomam posição logo de cara na
entrada da adolescência, antes de saber coisa alguma do mundo, e passam o resto da
vida julgando tudo à luz dessa opção inicial. Nada lhes parece mais normal, portanto,
que presumir que as opiniões contrárias às suas tenham se originado de escolhas
igualmente irracionais, apenas com signo invertido.
Acontece que a quase totalidade dos pensadores anticomunistas é constituída de
indivíduos que um dia foram comunistas e depois mudaram de idéia por um lento, difícil
e doloroso processo de autodesmascaramento. As obras de Arthur Koestler, Irving
Kristol, David Horowitz, Whittaker Chambers, Milovan Djilas, Daniel Bell e tantos outros
– hoje excluídas do mercado livreiro – não são apenas “argumentações” em favor de
uma “posição”: são expressões de uma experiência longamente amadurecida no
isolamento e na árdua conquista de si. Cada um desses homens pagou um alto preço
moral por suas idéias, enquanto as dos comunistas foram recebidas, prontas e
gratuitas, de um ambiente juvenil onde circulavam como frases feitas.
É verdade que, para muitos comunistas, sua escolha ideológica trouxe provações e
riscos. Mas justamente isso lhes deu um pretexto edificante para que se dispensassem
de questionar as doutrinas às quais tinham oferecido a vida. Quem, depois de passar
por perseguições, prisão, tortura, há de querer reconhecer que sofreu tudo isso por
uma mentira? Assim, o heroísmo esquerdista é de ordem apenas física e social, sem
profundidade interior: quanto mais o militante tem a coragem de padecer por suas
crenças, mais covardemente foge do risco de se decepcionar com elas. Ademais, seu
sofrimento tem sempre o reconforto da solidariedade coletiva, organizada, mundial.
Sozinho, no cárcere, ele tem a certeza de que milhões lutam a seu lado. Quem haverá
de querer, no fundo do poço, abdicar desse último consolo?
Mas é precisamente esse heroísmo em dose dupla que se encontra nos homens que,
após sofrer perseguição de seus adversários políticos, consentiram em suportar,
solitários, o ódio de seus antigos companheiros. Heroísmo, na verdade, triplo, pois
entre a primeira e a segunda provação vem o mais difícil: a travessia do deserto, a luta
para vencer a si mesmo. Por isso os clássicos do anticomunismo têm aquela tensão
moral, aquele peso das decisões plenamente responsáveis e aquela high seriousness
que faltam por completo às obras de seus adversários. Se as biografias pessoais de
Marx, Lênin, Mao, Stálin e Fidel são uma galeria de baixezas (envolvem desde rituais
satanistas e crueldade para com os familiares até pedofilia), não são menos
deprimentes os perfis intelectuais de um cínico imoralista como Brecht (o homem que
disse dos acusados no Processo de Moscou: “Se eles são inocentes, merecem ser
fuzilados precisamente por isso”), de um sabujo profissional como Lukács, sempre
pronto a mudar de opinião sob comando, ou de um palhaço verboso como Jean-Paul
Sartre, sem falar nas dúzias de vigaristas acadêmicos que o famoso experimento Sokal
desmascarou definitivamente.
Há uma trágica leviandade em homens que, incapazes de transformar a si mesmos, se
dispõem a “transformar o mundo”. Que mundo pode nascer daí senão uma pantomima
sangrenta?
O futuro da liberdade
Olavo de Carvalho
O Globo, 21 de outubro de 2000
Na sua última entrevista, publicada postumamente em setembro de 1997, François
Furet dizia que o maior problema da sociedade liberal-capitalista é sua dificuldade de
construir um corpo político, pois a idéia mesma que funda o liberalismo, a doutrina da
autonomia individual, resiste a encarnar-se na forma de uma estrutura política, de um
Estado. O sucesso do comunismo e do fascismo, prosseguia o historiador, deveu-se ao
fato de que, em contraste com essa incapacidade crônica do liberalismo, pensavam o
corpo social como unidade e davam a essa unidade uma expressão política também
unitária, por meio do Partido-Estado.
Esse diagnóstico fornece a melhor explicação para o fato de que no próprio seio do
liberalismo as tendências centralizadoras e estatizantes ressurgem ciclicamente sob
novas roupagens e novas denominações, algumas delas diabolicamente enganosas
porque alegam inspirar-se nos próprios ideais do liberalismo.
A constatação desse estado de coisas sugere automaticamente uma pergunta: uma
sociedade politicamente centrífuga não tem outra alternativa senão ceder de vez às
ofertas de unificação totalitária ou viver eternamente de arranjos de ocasião entre a
liberdade de jure e as concessões de facto a um crescente poder centralizador?
Furet não dá nenhuma resposta, mas passa de raspão por ela e nem percebe que é
uma resposta. A dificuldade de encontrar uma fórmula política, segundo ele,
manifestou-se da maneira mais patente naquela sucessão de crises que foi a
Revolução Francesa, ao passo que “permaneceu escondida no caso da Revolução
Americana, revolução demasiado fácil, transcorrida sob as bênçãos da religião a um
povo cristão, que não teve a necessidade de renegar um passado aristocrático e feudal
e teve ainda a sorte de encontrar uma centena de grandes homens políticos”.
Não é muito certo dizer que os americanos tiveram “dificuldade” de encontrar uma
fórmula política. O que eles tiveram foi uma profunda indiferença pela busca dessa
fórmula. O testemunho é de Aléxis de Tocqueville: meio século depois da
independência, as pequenas comunidades, núcleos da vida americana, ainda se
orgulhavam de viver à margem de toda autoridade central, unidas às comunidades
vizinhas tão-somente pelos laços de comércio, religião e cultura. A dificuldade apareceu
mais tarde e, de certo modo, artificialmente. Apareceu por iniciativa da própria classe
política, que buscou forçar a unificação jurídico-administrativa do país, condição prévia
para a consecução dos grandes planos imperiais que tinha em vista. Conforme
assinalei em meu livro “O jardim das aflições” (cinco anos antes da dupla Negri & Hardt
a quem a nossa intelectualidade símia credita essa descoberta), as ambições
centralizadoras e imperialistas germinavam no espírito dessa classe já antes mesmo da
Revolução e cresceram inteiramente por fora das aspirações da sociedade americana,
a qual, sendo indiferente ao Estado, teria de sê-lo mais ainda ao crescimento dele para
além-fronteiras.
Se essa sociedade pôde evitar os conflitos que viriam a marcar a História da França, foi
graças a três fatores. Primeiro, a religião, uma religião tanto mais arraigada na alma do
povo quanto mais livre da contaminação estatal, pois fora justamente para proteger seu
culto religioso de toda interferência governamental que os pioneiros tinham vindo para
o Novo Mundo. Essa religião, popular e extra-oficial, mas ao mesmo tempo
conservadora e apegada às tradições, dava aos americanos sua unidade moral, mais
funda e decisiva que qualquer unidade política. Em segundo lugar, a economia. Sua
base, religiosa até à medula, era a “sociedade de confiança” de que fala Alain
Peyrefitte, ou a “ethics of loyalty” enaltecida por Josiah Royce: a liberdade de comprar
e vender, fundada na comum expectativa da lealdade espontânea de todos para com
todos.
Por fim, a cultura. Até hoje a elite americana – presidentes de empresas, oficiais do
Exército, homens de letras – provém de uns 200 colégios particulares, que,
desprezando os supostos avanços tão afoitamente assimilados pela pedagogia estatal,
conservaram quase intacto o método educacional de antes da Revolução, baseado nos
“três rr” – reading, writing, arithmetics – e na leitura dos clássicos: a boa e velha liberal
education. Esse método produziu a “centena de grandes homens” que decidiu o
destino da América.
Religião livremente fiel às tradições, economia sã fundada na moral religiosa e uma
elite de homens conscientes dos valores básicos da civilização: eis os três fatores que
puderam superar a contradição entre liberalismo e estrutura política, poupando ao povo
americano os fracassos sangrentos da Revolução Francesa. Pois esta, em
contrapartida, ocorreu numa sociedade onde a religião era burocratizada e infectada de
mundanismo, a economia era centralizada pelo Estado sanguessuga e a cultura era um
festival de insanidades, obra da nova classe intelectual leviana e fútil, vaidosa e cheia
de afetado desdém pelo que estivesse acima da sua compreensão. Não podendo
apostar nem na religião, nem na cultura, nem na economia, a França arriscou tudo – e
tudo perdeu – na busca insana do corpo político perfeito.
Eis aí a lição que François Furet nos deu sem perceber: o futuro de uma sociedade
baseada na liberdade individual não depende do utópico e insaciável “aperfeiçoamento
das instituições”, mas da religião sincera, da ética nos negócios e da formação
intelectual da elite: de tudo aquilo, enfim, que é desprezado por um país louco que, à
imitação da França revolucionária, deposita todas as suas esperanças na política e no
Estado.
Da piedade ao orgulho
Olavo de Carvalho
Época, 7 de outubro de 2000
O trajeto do catolicismo de esquerda termina na beatificação do Mal
“Lênin era completamente indiferente ao sofrimento humano, que só o comovia quando
apto a sublinhar seu ódio ao capitalismo.” Quem diria que essa observação de Franz
Borkenau sobre o inimigo jurado do cristianismo viria um dia a poder aplicar-se, ipsis
litteris, aos sacerdotes da Igreja de Cristo?
No entanto, quem ler as declarações de certos bispos brasileiros nos últimos anos
haverá de reparar que, nelas, a piedade e a compaixão, longe de ocupar o centro e o
topo de seu universo de valores, estão sempre subordinadas a um projeto político,
reduzidas a instrumentos e adornos retóricos da luta de classes: não é qualquer
sofrimento que merece a atenção dessa gente – é só aquele que, exposto, sirva para
despertar o ódio e a revolta contra o governo, os ricos ou o FMI.
Isso é empiricamente verificável por simples análise textual, e basta para comprovar
que tais indivíduos não são cristãos nem mesmo num sentido remoto e figurado da
palavra. São simplesmente comunistas. São movidos pela mesma ambição milenarista
que tornava Lênin tão insensível ao padecimento alheio quanto sensível às
oportunidades de aproveitá-lo politicamente.
Compaixão é sofrer junto, é partilhar de uma dor que nem sempre se pode aliviar. É
afeição que não entra em nosso peito sem trazer consigo a lembrança de nossa
fragilidade, portanto a exigência incontornável da humildade e da paciência. Um dos
atrativos mágicos do socialismo é justamente a perspectiva de nos libertar desse
sentimento constrangedor, absorvendo-o e superando-o na síntese moral de um
serviço prestado à História. O Bem, aí, identifica-se com a vitória sobre o presente, com
a criação do “mundo melhor”. A convicção de servir ativamente a esse Bem infunde no
homem tamanho amor-próprio que ele já não precisa das virtudes passivas, restos
sombrios de uma era de submissão e impotência.
Por isso o comunista não se deixa afetar pelo sofrimento de seus contemporâneos. Ele
já lhes deu o que há de melhor: sua luta pelo futuro, sua promessa de construção do
socialismo. Que mais poderiam exigir?
Com as velhas virtudes abandonadas, vai embora também a consciência de culpa – e
o neovirtuoso, com a maior naturalidade, subtrai-se aos julgamentos humanos. Aponte-
lhe os pecados, e ele não verá em você senão a obstinação do Mal antigo que resiste
ao advento do novo Bem. Já não há outro pecado no mundo senão o “reacionarismo”:
quem está livre deste é puro por definição e eternamente imaculado e imaculável, faça
o que fizer.
É por isso que o saldo de 100 milhões de mortos e a miséria indescritível criada pelas
economias socialistas não abalam em nada a boa consciência esquerdista, imersa de
uma vez por todas numa atmosfera embriagante de autobeatificação que transfigura
em expressões supremas do Bem e do amor todos os crimes e desvarios: L’amour en
action voilà la révolution. É também por isso que com tanta desenvoltura a mais
anticristã das ideologias se adorna do encanto residual de um cristianismo em
dissolução. Esse fenômeno encontra sua cabal explicação, com séculos de
antecedência, na fórmula de Agostinho: “Todos os vícios se apegam ao Mal, para que
se realize; só o orgulho se apega ao Bem, para que pereça”.
É dos pastores desse novo culto que o rebanho foge, buscando abrigo nas igrejas
evangélicas
Socialismo e cara-de-pau
Olavo de Carvalho
A mão esquerda
Olavo de Carvalho
Época, 30 de setembro de 2000
Hoje ela é poderosa porque é invisível; a outra mão ainda nem começou a se
mexer
Algo que os eleitores ignoram completamente hoje em dia é que os partidos de
esquerda não funcionam como os outros partidos. Estes se constituem exclusivamente
de seus membros inscritos, de seus funcionários, diretores e representantes no
Legislativo e no Executivo. A esquerda, além de tudo isso, conserva toda a rede de
conexões secretas que sempre formou a base da militância revolucionária, que se
expandiu formidavelmente durante os anos de clandestinidade e, após a restauração
democrática, ampliou-se mais ainda sob a proteção da mentalidade conciliadora e
preguiçosa da direita.
Para fazer face a isso, simplesmente não há direita organizada. Confiando na
soberania do processo eleitoral, os partidos conservadores ocupam-se exclusivamente
dos mecanismos ostensivos de propaganda e coleta de votos. Estão completamente
fora das áreas extra-oficiais, que foram deixadas à mercê da voracidade esquerdista,
num convite a que arrombasse uma porta aberta. Hoje eles não têm sequer militantes
para contrabalançar a gritaria da esquerda em manifestações de massa. Nunca mais,
neste país, se viu um confronto de rua, violento ou pacífico, entre grupos de direita e de
esquerda. Onde quer que apareça o povão reunido, é sob as ordens da esquerda. A
esquerda tem o monopólio das ruas, a direita faz intrigas de gabinete: o estereótipo
publicitário esquerdista tornou-se realidade.
Mas, além das organizações de massa, a esquerda tem quatro armas decisivas, todas
secretas ou discretas: a rede de espiões e informantes; a rede de disciplinados agentes
de influência na mídia e nas universidades; a rede de colaboradores bem encaixados
em postos essenciais da polícia, da Justiça, da administração pública; e a rede de
ONGs sempre prontas a dar respaldo internacional a toda palavra de ordem das
lideranças locais.
Isso permite ações de grande envergadura, cujos efeitos chovem de vários lados
simultaneamente, dando a impressão de uma harmonia espontânea das várias
correntes da opinião pública. Em cada emergência, basta acionar as redes e pronto:
daqui vem uma notícia de TV, de lá uma manifestação pública, de acolá uma peça de
teatro infantil, de mais adiante um comentário na imprensa de Paris ou de Londres, um
sermão repetido em todas as igrejas, um parecer técnico firmado por autoridade
científica sempre insuspeitíssima. Eis como se cria, sob encomenda, a fachada de
unanimidade avassaladora que parece brotar do coração do povo tão naturalmente
quanto o sol nasce ou o vento sopra. Tais operações não são, de maneira alguma,
raras e excepcionais. São o dia-a-dia de um movimento que, há mais de um século,
cultiva a prática das ações encobertas e tem no espírito de clandestinidade um dos
componentes tradicionais de seu modo de ser.
Este país não conhecerá a normalidade democrática enquanto a esquerda não abdicar
de sua eterna vocação de agir por baixo do pano sob a desculpa de que é perseguida e
coitadinha demais para ser sincera e franca. Há também a hipótese de a direita
começar a conspirar, por seu lado, para quebrar a mão invisível que hoje move os
cordões da opinião pública. Mas então restará a pergunta temível: uma das mãos
paralisará a outra ou as duas se unirão para nos estrangular?
Astúcias Indígenas
Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 31 de agosto de 2000
Os índios que anarquizaram os festejos de 500 anos de Brasil e foram reprimidos pela
polícia estão exigindo uma indenização bilionária. Um dos pretextos é: “danos
culturais”. Mas quanto o Estado deveria cobrar deles pelo dano que, a serviço de
potências estrangeiras, infligem à cultura nacional ao negar publicamente a
legitimidade da existência do Brasil enquanto nação? Sim, quando proclamam que o
território é deles, que todos os que viemos nas caravelas ou nas levas de imigrantes
somos intrusos e usurpadores, o que reivindicam é a reintegração de posse do maior
latifúndio que já existiu na face da Terra, e a conseqüente dissolução do Estado
indevidamente instalado na sua propriedade por um bando de posseiros, arrivistas e
criminosos.
Um Estado que aceita discutir nesses termos não precisa nem mesmo ser destruído:
ele já acabou. Pois o protesto dos índios não se voltou contra o governo, contra o
regime, contra esta ou aquela lei: voltou-se, com toda a força de uma irracionalidade
fingida, contra a civilização brasileira no todo – excetuado o elemento indígena – e
portanto contra a existência do organismo estatal que é a cristalização jurídica e
política da sua obra de cinco séculos. Que o façam de maneira acentuadamente
paradoxal, abrigando-se à sombra das leis de um Estado soberano para negar a
soberania do mesmo Estado, é um curto-circuito lógico que poderia ser atribuído à
ingenuidade pretensiosa de povos ainda mal despertos para as realidades complexas
da civilização moderna, se não fosse antes um nonsense planejado, obra da astúcia
dos estrategistas europeus e norte-americanos que os orientam, todos eles bem
treinados na técnica de suscitar crises pela estimulação contraditória da opinião
pública, na arte de desarmar a reação de um povo pelo choque dos sofismas
paralisantes. Criar “movimentos sociais” no Terceiro Mundo é hoje uma profissão
especializada, ensinada a alunos europeus e norte-americanos em cursos de alto nível
nos organismos internacionais. Nenhuma, absolutamente nenhuma reivindicação ou
agitação se elevou neste país nos últimos vinte anos sem ser planejada por
engenheiros sociais estrangeiros, subdiada por fundações e governos estrangeiros,
respaldada pela mídia estrangeira e enquadrada meticulosamente numa estratégia
global em que os interesses dos reclamantes entram apenas como gatilhos para
desencadear transformações que vão muito além do que esses enfezados marionetes
possam imaginar.
Cada um desses movimentos é pura chantagem, calculada para desferir um golpe
mortal na soberania do Estado brasileiro. É mais um passo na marcha incessante e
brutal de centralização, onde um poder maior, com pretensões ao monopólio, dissolve
os poderes intermediários com a ajuda dos grupos menores, descontentes com a
situação local.
Já escrevi, outrora, em defesa das culturas indígenas. Mas, hoje, discutir a justiça ou
injustiça da causa indígena em abstrato e fora do contexto político mundial é cair num
engodo lógico, num jogo de diversionismo hipnótico. Ninguém que queira justiça
começa por negar a autoridade do próprio tribunal ao qual recorre. O que os índios e
seus mentores estão exigindo não é justiça: é a destruição do tribunal.
A manifestação ocorrida nos festejos tem as marcas inconfundíveis de uma operação
planejada por cientistas comportamentais para gerar artificialmente um
constrangimento sem saída: permiti-la seria dar caráter oficial à negação da
legitimidade do Estado brasileiro; reprimi-la é expor-se a humilhações na mídia
internacional e a chicanas jurídicas como esse grotesco pedido de indenização.
Os índios, um dia, foram povos indefesos, que só sobreviveram à derrota graças à
generosidade do vencedor, generosidade que eles próprios jamais tiveram para com as
tribos que guerreavam. Hoje, eles são uma arma temível nas mãos das potências que
regem o mundo, e aproveitam-se dessa situação para tirar vantagens abusivas e
destruir o Estado que os acolheu e lhes deu direitos especiais. A malícia de sua
estratégia revela que já não têm mais nada do pretenso caráter “primitivo” que um dia
justificou a promulgação desses direitos: alcançaram a maioridade, tornaram-se um
grupo político moderno, astucioso e perigoso, aliado de interesses imperialistas e
inimigo jurado da nação brasileira.
Nacional-masoquismo
Olavo de Carvalho
Época, 12 de agosto de 2000
O nacionalismo brasileiro quer
conservar os anéis e sacrificar os dedos
“Pseudomorfose” é formação simulada. Na filosofia de Oswald Spengler, designa a
cultura que começa a tomar impulso próprio, mas depois se revela nunca ter passado
de apêndice, de sombra de uma vizinha mais forte.
O Brasil é uma pseudomorfose da cultura americana? Não sei, mas, se algo pode ser
alegado em favor dessa hipótese, está justamente no modo brasileiro de ser
nacionalista. É no estilo de nossa auto-afirmação nacional que se vêem com nitidez os
traços de um espírito servil e dependente, que quanto mais clama por autonomia mais
o faz nos termos ditados de fora, e quanto mais se remexe mais aperta o laço que o
prende.
A política de dominação global age em quatro frentes: a abertura econômica, a
implantação de padrões culturais, a conquista da hegemonia territorial e o
enfraquecimento divisionista dos Estados nacionais. Dos quatro pontos, o menos
perigoso é o primeiro: a experiência mundial já provou que qualquer país pode
beneficiar-se da globalização econômica sem perder nada da identidade cultural e da
soberania territorial e política. Mas nosso nacionalismo oferece obstinada resistência à
penetração estrangeira no campo econômico e se abre gostosamente, deleitosamente,
canalhamente a ela em tudo o mais. Por exemplo, quem não viu, ainda há pouco, as
mesmas pessoas que fervem de indignação ante a venda de empresas estatais irem
engrossar o cordão do indigenismo importado, que além de lutar pela transferência de
fatias inteiras de nosso território para a administração de ONGs estrangeiras ainda tem
a impérvia cara-de-pau de negar, em nome de direitos ancestrais recém-inventados em
Nova York e Genebra, a unidade da cultura brasileira e a legitimidade mesma da
existência do Brasil enquanto nação? Nada neste mundo pode explicar que uma ou
duas ou 100 empresas públicas sejam bens tão mais vitais e mais dignos de ser
preservados que a unidade cultural, o território e a soberania juntos.
Na mesma linha de conservar os anéis sacrificando os dedos, os apóstolos de estatais
não vêem nada de mais em que parcelas da administração pública sejam transferidas
para ONGs financiadas do Exterior, como se vem fazendo com o “serviço civil”, que
anualmente porá a mão-de-obra gratuita de milhões de jovens brasileiros à disposição
de entidades notoriamente ligadas a interesses estrangeiros.
Pior ainda, esses mesmos sujeitos estão na linha de frente do combate destinado a
destruir o modelo brasileiro de integração racial para implantar, em lugar dele, o
americano. O modelo brasileiro não é perfeito, mas é, até agora, o melhor do mundo.
Ele consiste em dissolver as diferenças de raça no convívio diário, no sincretismo
cultural e na miscigenação, com um mínimo de interferência estatal no processo. O
americano constitui-se de grupos separados, cada um fortemente impregnado de sua
identidade racial, convivendo sob a proteção do Estado-bedel e de uma parafernália de
leis que fomentam a suspeita de todos contra todos, na base cínica do dividir para
reinar. Trocar aquele por este é um despropositado sacrifício masoquista, é importar o
problema em vez de exportar a solução.
Com nacionalistas como esses, quem precisa de imperialistas?
A escolha fundamental
Olavo de Carvalho
O Globo, 12 de agosto de 2000
Para o cristianismo, o judaísmo, o islamismo e todas as tradições espirituais do mundo,
cada vida humana tem um propósito, um sentido, que permanece amplamente invisível
às pessoas em torno, que para o próprio indivíduo só se revela aos poucos, e que só
se esclarecerá por completo quando essa vida, uma vez encerrada, puder ser medida
na escala da suprema perfeição, da suprema sabedoria, da suprema santidade. Essa
escala é essencialmente a mesma para todas as épocas e lugares, e se torna
conhecida pelos exemplos dos santos e profetas – no cristianismo, o exemplo do
próprio Deus encarnado. O problema humano fundamental é descobrir o meio de cada
um se aproximar desse ideal unitário através da variedade de suas expressões
simbólicas e doutrinais, bem como das contradições e mutações da vida mesma.
Para as modernas ideologias revolucionárias, a vida individual não tem nenhum sentido
e só adquire algum na medida da sua participação na luta pela sociedade futura. É a
consecução desse objetivo que servirá de medida para a avaliação dos atos
individuais. Atingida a meta, tudo o que tenha concorrido para “apressá-la”, mesmo o
pecado, a fraude, o crime e o genocídio, será resgatado na unidade do sentido final e
portanto considerado bom. O que contribua para “atrasá-la” será mau. O mal e o bem
resumem-se, em última análise, no “reacionário” e no “progressista”. No entanto, como
não há prazo predeterminado para o desenlace salvador, o “apressar” e o “atrasar” têm
sentidos ambíguos, que se alternam conforme as contradições do movimento histórico.
Um déspota, um tirano, o supra-sumo do reacionarismo para seus contemporâneos,
pode se tornar retroativamente progressista caso se descubra que contribuiu, “malgré
lui”, para acelerar um processo que desconhecia por completo. Numa outra fase, o
julgamento pode inverter-se, conforme as novas interpretações de “atraso” e
“aceleração” pertinentes no momento. Luís XIV, Ivan o Terrível, Robespierre ou Stalin já
passaram várias vezes do céu para o inferno e vice-versa.
Os modelos de conduta do homem espiritual formam um panteão estável, um
patrimônio civilizacional adquirido, onde cada indivíduo pode buscar a inspiração que o
habilite a agir bem, independentemente das convicções reinantes na sua época e no
seu meio, ao passo que os modelos do revolucionário são entidades móveis que nada
valem sem a aprovação do consenso contemporâneo. Joana d’Arc e Francisco de
Assis puderam ser santos contra a autoridade coletiva. Mas ninguém pode fazer a
revolução contra o consenso revolucionário.
Na perspectiva espiritual, a meta da existência é cada um buscar sua perfeição na vida
de agora, fazendo o bem a pessoas de carne e osso que podem lhe responder e julgá-
lo, dizendo se foi um bem de verdade ou um falso bem que só lhes trouxe o mal. Na
ótica revolucionária, o que importa é “transformar o mundo” e beneficiar as gerações
futuras, pouco importando o mal que isto custe à geração atual. O destinatário do bem
está portanto ausente e não pode julgá-lo, exceto através de seus autonomeados
representantes, que são precisamente aqueles mesmos autonomeados benfeitores.
Na visão tradicional, os exemplos de perfeição são muitos e sua conduta está
meticulosamente registrada nos livros sacros e nos depoimentos dos crentes. Já a
sociedade perfeita nunca existiu e o único modelo à nossa disposição é uma hipótese
futura, cuja descrição idealizada é em geral muito vaga e alegórica, quando não
completamente evasiva.
“Tudo o que sobe, converge”, dizia Teilhard de Chardin. O estudo das religiões
comparadas mostra a profunda unidade e coerência das grandes tradições no que diz
respeito às virtudes essenciais. Por isto os profetas judeus são modelos de perfeição
para os cristãos, os sábios hindus para os muçulmanos, e assim por diante. Já na
esfera revolucionária, quanto mais um homem encarne a sua própria ideologia com
perfeição, como Lênin e Stalin, Hitler e Mussolini, tanto mais ele se torna odioso e
abominável aos seguidores de outros partidos. No máximo pode haver entre eles a
mútua admiração invejosa de quem desejaria apropriar-se dos talentos do inimigo para
mais facilmente poder destruí-lo. Não há virtude fora da fidelidade partidária.
As virtudes do homem espiritual são explícitas e definidas, têm um conteúdo conceitual
identificável: piedade, generosidade, sinceridade, etc. As do revolucionário são
ocasionais, utilitárias e instrumentais. Na terminologia de Max Scheler, a ética do
religioso é “material”, visa a condutas e atos específicos; a do revolucionário é “formal”,
reduz-se a uma equação genérica de fins e meios. Por isso o homem espiritual,
conhecendo o conceito da conduta certa, pode se guiar a si mesmo, fazendo o bem de
acordo com a sua consciência sem ter de seguir ninguém. Já o revolucionário só pode
estar na conduta certa quando age de acordo com a “linha justa” do movimento
revolucionário tal como esta é formulada, a cada etapa, pela liderança e pelas
assembléias. A possibilidade de conduta independente é aí nula e autocontraditória.
Não existe a mínima possibilidade de acordo entre as éticas das grandes tradições
espirituais e a mentalidade revolucionária de qualquer espécie que seja. Um dia cada
homem terá de escolher. Aqueles que escamoteiam a fatalidade inescapável dessa
escolha, buscando embelezar as ideologias revolucionárias com frases copiadas das
tradições espirituais, fazem isso porque, na verdade, já escolheram. Como dizia
Simone Weil, estar no inferno é imaginar, por engano, que está no céu.
URSS
Mensagem do passado
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 2 de abril de 2015
A Editora Boitempo publicou em tradução o romance de Leonardo Padura, “El Hombre
que Amaba a los Perros”, com o título de “O Homem que Amava os Cachorros”.
Eu teria preferido “Cães”, porque, ao lidar com uma língua irmã da sua própria, o
tradutor deve ter o bom gosto e bom senso de escolher, seja palavras de igual raiz com
significado idêntico nas duas línguas, seja palavras que inexistem no idioma original,
jamais palavras idênticas com significado diverso. “Cachorro”, em espanhol, é “filhote”.
Talvez o tradutor achasse que “cão” é termo do vocabulário “burguês”.
Mas o problema maior não é esse. Dedicada eminentemente à promoção de ideias e
autores comunistas, a equipe da Boitempo mostrou que é capaz de traduzir e divulgar
um dos grandes romances do século, ganhando algum dinheiro com ele, sem se deixar
afetar pelo seu conteúdo no mais mínimo que seja.
É um caso de insensibilidade literária que raia a psicastenia. Pois raramente, no
mundo, o comunismo, não nos detalhes do imensurável horror físico que produziu, mas
nas profundezas da deformidade psicopática que o inspira, foi descrito em termos tão
cruamente realistas como nesse livro: é uma imagem do inferno ou, para usar as
palavras do autor, algo que se parece “antes a um castigo divino do que a uma obra de
homens”.
Com base em farta documentação, só complementando-a com a especulação
imaginativa nos pontos onde isso é indispensável, o livro conta a história dos últimos
anos de vida de Leon Trotski e do seu assassino, Ramon Mercader, paralelamente à do
narrador, um escritor cubano reduzido à impotência criadora pelas imposições da
burocracia castrista empenhada em tudo rebaixar e mediocrizar.
Os três são homens que apostaram tudo no socialismo e aos quais só resta, no fim da
história, a consciência amarga da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.
Embora a maior parte do enredo se passe no tempo de Stalin, o romancista não apela
ao expediente costumeiro de trocar “comunismo” por “stalinismo”, usado para
branquear a imagem do regime nas épocas subsequentes, mas mostra com muita
clareza que, de um modo ou de outro, a mistura de violência assassina e mendacidade
alucinante que caracterizou o stalinismo se conservou em ação em todos os países
comunistas, muitas décadas depois da morte do ditador.
Padura, que nasceu e ainda mora em Cuba, publicando seus livros no México, viveu
tudo isso de perto e colocou no personagem do narrador de “El Hombre que Amaba a
los Perros” muito da sua experiência pessoal.
Hoje os brasileiros se espantam ante um governo que lhes rouba bilhões de reais
enquanto, com a maior cara dura, continua posando de paladino da moralidade, e,
rejeitado por noventa por cento da população, ainda se faz de porta-voz do “povo”
contra a “elite”.
Se conhecessem algo da história do comunismo, como a trama urdida por Stalin para
dar cabo de Trotski, entenderiam que a mendacidade psicopática, em proporções tão
vastas que raiam o diabolismo puro e simples, não é uma invenção do PT: é inerente à
mentalidade comunista em todas as épocas e lugares.
Os capítulos finais deste livro mostram o próprio assassino de Trotski, Ramon
Mercader, consciente de haver jogado sua vida fora numa farsa demoníaca, concebida
para fazer de Trotski, então um exilado sem dinheiro e quase sem seguidores, chutado
de cá para lá por todos os governos do mundo, o todo-poderoso líder de uma
conspiração global para derrubar o governo soviético com a ajuda simultânea – porca
miséria! — dos nazistas e dos americanos.
Durante décadas, Mercader foi adestrado para odiar Trotski com todas as suas forças,
só para descobrir, depois, que na realidade nada sabia contra ele além de balelas e
invencionices absurdas e antinaturais, injetadas em sua cabeça com violência
comparável à do golpe de picareta no crânio com que ele deu fim à existência da sua
vítima.
Após ter ido parar na cadeia num dos muitos expurgos que eram rotina na política
soviética, o próprio agente secreto que treinou e disciplinou a mão assassina de
Mercader tem, na velhice, a mesma consciência de ter servido apenas aos caprichos
insensatos de um ditador enlouquecido pelo medo, que não se acalmaria antes de
haver eliminado da face da Terra todos os seus inimigos reais, hipotéticos, virtuais ou
totalmente imaginários.
Especialmente significativa é uma personagem secundária, a mãe de Mercader,
Caridad. Mulher frígida que o marido burguês corrompe para ver se desperta nela o
desejo sexual, ela se entrega então a uma vida devassa e ao consumo de drogas,
chegando a uma tentativa de suicídio.
Só emerge da depressão quando encontra uma saída existencial no comunismo e
reestrutura sua personalidade com base nos valores da militância, tornando-se uma
combatente fanática, odiando o marido e o capitalismo como se fossem uma só
entidade e contribuindo decisivamente para fazer do filho um assassino a soldo de
Stalin.
Eu não poderia ter encontrado melhor ilustração para o conceito do outsider como
militante, que descrevi em artigo recente neste mesmo jornal (leia aqui).
No fim, o desencanto de Caridad é o mesmo de Ramón e de seu instrutor, com a
diferença de que ela não tem nem mesmo a força deles para meditar sobre a
insensatez do seu passado.
O vazio, a secura, a tristeza vã e desesperançada que são tudo o que resta a esses
homens quando compreendem a pantomima tola e sangrenta da qual se fizeram
servidores e agentes, são a mensagem derradeira legada pelo século XX à presente
geração, aí incluídos os editores brasileiros incapazes de ouvi-la.
Não é preciso dizer que perseguições em massa, cruéis e insensatas, no mais puro
modelo stalinista, aconteceram também na China comunista, em Cuba, no Vietnã, no
Camboja, em todos os países-satélites da URSS e por toda parte onde a opinião
comunista tenha saído do subsolo psicopático que lhe é natural e conquistado um lugar
de respeito na sociedade.
O modelo universalizou-se. A única coisa que varia é a dosagem respectiva da
violência e da mendacidade que a fórmula da loucura comunista assume em distintos
lugares do mundo.
Nos países onde não tem força bastante para tomar o poder pelas armas, o
comunismo apela à estratégia gramsciana do engodo geral e, por isso mesmo, como
aconteceu no Brasil, rouba mais do que mata, pelo menos até que o produto do roubo,
crescendo até dimensões oceânicas, lhe assegure a posse dos meios de matar.
Aceita ainda no Brasil, como dogma inquestionável, a visão popular da Guerra Fria
como uma luta sorrateira e implacável entre duas potências que se odiavam pode hoje
ser atirada à lata de lixo como um estereótipo enganoso, história da carochinha
inventada para dar aos cérebros preguiçosos a ilusão de que entendiam o que se
passava.
Nos últimos decênios, tantos foram os fatos trazidos à luz pela decifração dos códigos
Venona (as comunicações em código entre a embaixada da União Soviética em
Washington e o governo de Moscou) e pela pletora de documentos desencavados dos
arquivos soviéticos, que praticamente nada da opinião chique dominante na época
permanece de pé.
Na verdade, a ocupação principal do governo e da mídia soviéticos no período foi
mentir contra os Estados Unidos, enquanto seus equivalentes americanos se
dedicavam, com igual empenho, a mentir a favor da URSS. Não só mentir: acobertar
seus crimes, proteger seus agentes, favorecer seus interesses acima dos de nações
amigas e, não raro, da própria nação americana.
Em lugar do equilíbrio de forças que, secundado ou não por um obsceno
equivalentismo moral, ainda aparece na mídia vulgar e nas Wikipédias da vida como
retrato histórico fiel, o que se vê hoje é que o conflito EUA-URSS foi aquilo que mais
tarde se chamaria “guerra assimétrica”, em que um lado combate o outro e o outro
combate a si mesmo.
Não que não houvesse, da parte americana, um decidido e vigoroso anticomunismo,
disposto a tudo para deter o avanço soviético na Europa, na Ásia, na África e na
América Latina. Tantas foram as personalidades que se destacaram nesse combate –
jornalistas, escritores, artistas, políticos, militares, agentes dos serviços de inteligência
– e tão gigantescos foram os seus esforços, que daí deriva o que possa haver de
legítimo na visão dos EUA como o inimigo por excelência do movimento comunista.
Basta citar os nomes de George S. Patton, Douglas MacArthur, Robert Taft, Whittaker
Chambers, Joseph McCarthy, Eugene Lyons, Sidney Hook, Fulton Sheen, Edgar J.
Hoover, James Jesus Angleton, Robert Conquest, Barry Goldwater, para entender por
que o anticomunismo se projetou como uma imagem típica da América, não só no
exterior como perante os próprios americanos.
Porém, examinado caso por caso, o que se verifica é que em cada um deles a força
inspiradora foi a iniciativa pessoal e não uma política de governo; e que, praticamente
sem exceção, todos os que se destacaram nessa luta foram boicotados, manietados
pelas autoridades de Washington (mesmo quando eles próprios faziam parte do
governo) e achincalhados pela mídia, pelo sistema de ensino e pelo show business, em
vida ou pelo menos postumamente. Não raro, sabotados e perseguidos pelos seus
próprios pares republicanos e conservadores, temerosos de parecer mais
anticomunistas do que o anti-anticomunismo vigente no mundo chique permitia.
Em suma: enquanto a sociedade americana fervilhava de anticomunismo, a política
oficial, de Roosevelt em diante, e com a exceção notável da gestão Ronald Reagan, foi
sistematicamente a do colaboracionismo nem sempre bem disfarçado.
O que explica isso é que os agentes soviéticos infiltrados no governo e na grande mídia
não eram cinquenta e poucos, como pensava o infeliz Joe McCarthy, o qual pagou por
esse cálculo modestíssimo o preço de tornar-se o senador americano mais odiado de
todos os tempos. Eram – sabe-se hoje – mais de mil, muitos deles colocados em
postos elevados da hierarquia, onde às vezes fizeram muito mais do que “influenciar”:
chegaram a determinar o curso da política externa americana, sempre, é claro, num
sentido favorável à URSS. O exemplo mais clássico foi a deterioração das relações
entre EUA e Japão, que culminou no ataque a Pearl Harbor – um plano
engenhosíssimo concebido em Moscou para livrar a URSS do perigo de uma guerra
em duas frentes, jogando contra os americanos a fúria nipônica mediante um jogo bem
articulado entre a “Orquestra Vermelha” de Richard Sorge em Tóquio e o conselheiro
presidencial Harry Hopkins em Washington.
Mas os capítulos da saga colaboracionista se acumulam numa profusão alucinante até
a gestão Clinton, quando o estímulo governamental a investimentos maciços na China
fez de um país falido uma potência inimiga ameaçadora.
Não creio que essa história – talvez a mais bem documentada do século XX – tenha
sido jamais contada no Brasil. Mesmo nos EUA ela circula apenas entre intelectuais e
historiadores de ofício, enquanto o povão ainda segue a lenda oficial. É uma história
demasiado vasta e complexa para que eu pretenda resumi-la aqui.
O que posso fazer é sugerir alguns livros que darão ao leitor uma visão do estado das
pesquisas hoje em dia:
Diana West, American Betrayal. The Secret Assault on Our Nation’s Character(St.
Martin’s, 2013).
Herbert Rommerstein and Eric Breindel: The Venona Secrets. Exposing Soviet
Espionage and America’s Traitors (Regnery, 2000).
John Earl Haynes and Harvey Klehr: Venona. Decoding Soviet Espionage in America
(Yale University Press, 1999).
Allen Weinstein and Alexander Vassiliev: The Haunted Wood. Soviet Espionage in
America. The Stalin Era (Random House, 1999).
Paul Kengor: Dupes. How America’s Adversaries Have Manipulated Progressives for a
Century (ISI Books, 2010).
Arthur Hermann, Joseph McCarthy: Reexamining the Life and Legacy of America’s
Most Hated Senator (Free Press, 2000).
M. Stanton Evans: Blacklisted by History. The Untold Story of Senator Joe McCarthy
(Crown Forum, 2007).
Robert K. Willcox: Target: Patton. The Plot to Assassinate General George S. Patton
(Regnery, 2008)
Eurasianismo e genocídio
Olavo de Carvalho
Folha de São Paulo, 19 de junho de 2014
Não é muito difícil entender que uma ideologia voltada à reconstrução de um dos
impérios mais sangrentos de todos os tempos acabará, mais dia menos dia, revelando
a sua própria índole cruel e homicida.
Estudantes da Universidade Estatal de Moscou estão exigindo a demissão do prof.
Alexandre Duguin por ter defendido, desde o alto da sua cátedra, a matança
sistemática dos ucranianos, que segundo ele não pertencem à espécie humana.
“Matem, matem, matem”, disse ele. “Não há mais o que discutir. Digo isso como
professor.”
A declaração integral e exata está aos 17m50s deste vídeo: http://goo.gl/YSjcB3
O Império Eurasiano tal como o concebem Alexandre Duguin e seu principal discípulo,
o presidente Vladimir Putin, é uma síntese da extinta URSS com o Império tzarista.
Como a teoria que fundamenta o projeto é por sua vez uma fusão de marxismo-
leninismo, messianismo russo, nazismo e esoterismo, e como dificilmente se encontra
no Ocidente algum leitor que conheça o suficiente de todas essas escolas de
pensamento, cada um só enxerga nela a parte que lhe é mais simpática, comprando às
cegas o resto do pacote.
Os saudosistas do stalinismo veem nela a promessa do renascimento da URSS.
Conservadores aplaudem o seu moralismo repressivo soi disant religioso. Velhos
admiradores de Mussolini e do Führer apreciam a sua concepção francamente
antidemocrática do Estado, bem como seu desprezo racista pelos povos destinados à
sujeição imperial.
Esoteristas, seguidores de René Guénon e Julius Evola, julgam que ela é a encarnação
viva de uma “metapolítica” superior, incompreensível ao vulgo, mais ou menos como
aquela que é descrita pelo romancista (e esoterista ele próprio) Raymond Abellio, em
La Fosse de Babel. Muçulmanos acabam às vezes aderindo ao projeto por conta do
seu indisfarçado e odiento anti-ocidentalismo, na vaga esperança de utilizá-lo mais
tarde como trampolim para a criação do Califado Universal, que por sua vez os
“eurasianos” acreditam poder usar para seus próprios fins.
Não seria errado entender o eurasianismo como uma sistematização racionalizada do
caos mental internacional. Neste sentido, sua unidade essencial não pode ser buscada
no nível ideológico, mas na estratégia de conjunto que articula num projeto de poder
mundial uma variedade de discursos ideológicos heterogêneos e, em teoria,
conflitantes.
Não se deve pensar, no entanto, que esse traço definidor é único e original. Ao
contrário do que geralmente se imagina, todos os movimentos revolucionários, sem
exceção, cresceram no terreno fértil da confusão das línguas. O eurasianismo só de
destaca dos outros por cultivar, desde a origem, uma consciência muito clara desse
fator e, portanto, um aproveitamento engenhoso do confusionismo revolucionário.
Qualquer que seja o caso, o uso da violência genocida como instrumento de ocupação
territorial está tão arraigado nos seus princípios estratégicos que, sem isso, o projeto
inteiro não faria o menor sentido.
Essa obviedade não impede, no entanto, que cada deslumbrado do eurasianismo
continue vendo nele só aquilo que bem entende, tapando os olhos para as partes
desagradáveis. Se milhões de idiotas fizeram isso com o marxismo durante um século
e meio, recusando-se a enxergar o plano genocida que ele trazia no seu bojo desde o
princípio – e explicando “ex post facto” os crimes e desvarios como meros acidentes de
percurso – , por que não haveriam de dar uma chance ao mais novo e fascinante
estupefaciente revolucionário à venda no mercado?
***
A propósito do xingamento coletivo à Sra. Dilma Rousseff, que tanto indignou o ex-
presidente Lula e o levou abrir guerra contra os que “não sabem do que somos
capazes”, coloquei na minha página do Facebook estas duas notinhas, que se
tornaram imediatamente virais e que acho oportuno reproduzir aqui:
(1) O governo petista habituou a população a desrespeitar tudo – a ordem, a família, a
moral, as Forças Armadas, a polícia, as leis, o próprio Deus. Se esperava sair ileso e
ser aceito como a única coisa respeitável no meio do esculacho universal, então é até
mais louco do que parece.”
(2) O sr. Lula xingou o então presidente Itamar Franco de “f. da p.”, disse que a cidade
de Pelotas é “exportadora de veados”, gabou-se (por brincadeira, segundo Sílvio
Tendler) de tentar estuprar um colega de cela e confessou (em entrevista à Playboy) ter
nostalgia dos tempos em que os meninos do Nordeste faziam – se é que faziam – sexo
com cabritas e jumentas. É a pessoa adequada para dar lições de respeitabilidade à
nação brasileira. Todo mundo sabe do que ele é capaz.”
Debilidades
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 2 de junho de 2013
A história invertida
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de abril de 2013
O confronto entre militares e terroristas na América Latina dos anos 60-70 foi um
episódio da Guerra Fria, onde os atores locais, sem prejuízo de suas convicções e
decisões próprias, ecoavam, em última instância, as estratégias respectivas das duas
grandes potências em disputa: os EUA e a URSS.
Nada do que então se passou no continente pode ser compreendido sem ter isso
em conta.
Se perguntarmos qual dos dois protagonistas estrangeiros interferiu mais
profundamente no cenário latino-americano, a única resposta honesta é: a URSS.
Do ponto de vista militar, isso é de uma obviedade gritante. Os EUA jamais
chegaram a ter, na época, quarenta mil soldados, quinze mil técnicos em armamentos,
setecentas baterias anti-aéreas, 350 tanques e cento e tantos mísseis balísticos
intercontinentais instalados em nenhum dos seus países aliados na América Latina,
como a URSS teve em Cuba já a partir de 1962 na chamada “Operação Anadyr”. (v.
Gus Russo and Stephen Molton, Brothers in Arms. The Kennedys, the Castros and the
Politics of Murder, New York, Bloomsbury, 2008, p. 158 e aqui).
No que diz respeito à espionagem propriamente dita, a superioridade soviética
surge ainda mais nítida no caso do Brasil em especial. Nada do que a CIA ou qualquer
outro serviço secreto norte-americano possa ter feito aqui se compara às proezas da
KGB, que chegou a instalar um grampo no gabinete do presidente João Figueiredo (v.
George Schpatoff, KGB. História Secreta, Curitiba, Juruá, 2000, pp. 381 ss.),
interceptar 21 mil mensagens sigilosas do nosso Ministério das Relações Exteriores e
ter a seu serviço, como agente pago, nada menos que um embaixador brasileiro em
Moscou (v. Christopher Andrew and Vasili Mitrokhin, The World Was Going Our Way.
The KGB and the Battle for the Third World, New York, Basic Books, 2005, p. 105).
Se daí passamos ao campo das chamadas “medidas ativas” (desinformação,
infiltração, guerra psicológica, agentes de influência etc.), a supremacia soviética no
Brasil daqueles anos assume as proporções de um poder absoluto e incontrastável. Em
1964, a KGB tinha várias dezenas de jornalistas brasileiros na sua folha de
pagamentos (confissão do próprio chefe da agência soviética no Brasil, Stanislav
Bittman, em The KGB and Soviet Disinformation: An Insider’s View). Que o número
deles se multiplicou nos anos seguintes não é algo de que se possa duvidar. Muitos
jornalistas brasileiros, naquele período, fizeram estágios na URSS, na China, na
Tchecoslováquia, na Alemanha Oriental, na Polônia e em Cuba. Uns poucos gabam-se
disso até hoje, seguros de que o público amestrado já não verá aí o menor motivo de
suspeita. Mas naqueles países, onde todos os órgãos de mídia nada mais eram do que
extensões da polícia secreta, é quase impensável que algum jornalista estrangeiro
fosse admitido sem ser em seguida recrutado como agente de influência. Como
assinalam John Earl Haynes, Harvey Klehr e Alexander Vasiliev em Spies: The Rise
and Fall of the KGB in America (Yale University Press, 2009), os soviéticos foram
sempre os campeões absolutos no recrutamento de jornalistas. Nos EUA, hoje
conhecem-se um por um os nomes daqueles que, na mídia americana, serviram à KGB
e ao GRU (serviço secreto militar). No Brasil, esse capítulo da história do nosso
jornalismo é ainda um tabu, mas é evidente que sem ele nada se compreende do
período, principalmente porque em plena ditadura militar os comunistas chegaram a
controlar praticamente toda a grande mídia no país
(v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/111124dc.html,http://www.olavodecarvalho.o
rg/semana/111125dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/111130dc.html) e a
dominar também o mercado livreiro através das suas grandes casas editoras
(Civilização Brasileira, Brasiliense, Vitória etc.). Nem falo, é claro, dos agentes de
influência que vindo do bloco soviético se espalharam pelos EUA e pelas democracias
européias, forjando aí a imagem demoníaca do governo brasileiro que acabou por se
consagrar como dogma internacional inabalável.
O conjunto forma uma orquestra formidável, ao lado da qual a voz do
imperialismo ianque mal soava como o miado de um gatinho doente. Ao longo de toda
aquela época, e depois mais ainda, tanto os EUA quanto o governo brasileiro se
abstiveram de fazer qualquer esforço sério para ganhar os “corações e mentes” dos
formadores de opinião neste país. Em plena ditadura, os jornalistas “de direita” nas
redações contavam-se nos dedos das mãos e eram abertamente hostilizados por seus
colegas.
Por fim, até hoje não se fez uma avaliação razoável da quantidade de recursos
mobilizados pelas ditaduras de Cuba, da China, da URSS e seus países satélites para
treinar, equipar e financiar não só os terroristas brasileiros mas os militantes
encarregados de lhes dar apoio político sem participar dos combates. Foi uma
operação de proporções gigantescas, que na imagem pública hoje em dia só aparece
sob a forma de menções esporádicas a “exilados”, como se os comunistas só fossem
para aqueles países quando obrigados a isso pelo governo militar.
Em comparação com a profundidade e amplitude da intervenção cubano-soviética no
continente, e especialmente no Brasil, a ação dos EUA naqueles anos caracterizou-se
pela raridade, timidez e omissão, limitando-se no mais das vezes a acordos entre
governos. Se a imagem que se consagrou na mídia e no ensino foi exatamente a
inversa, isso é mais uma prova do sucesso de uma operação que prossegue ainda
hoje, tendo a seu serviço tanto os megafones quanto as mordaças.
Onipresente e invisível
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de março de 2012
Ao ouvir dizer que vive numa “democracia”, o cidadão comum imagina que, malgrado
algumas tramas sórdidas urdidas pelos políticos por trás das cortinas, o esquema de
poder que domina a sociedade coincide com a estrutura visível das instituições e, em
última instância, pode ser controlado mediante a pressão do clamor público ou o
exercício do voto. Algum resíduo oculto, aqui e ali, será mais cedo ou mais tarde
revelado pelos bravos jornalistas que destampam as latrinas e vasculham os esgotos,
expondo os ladrões e conspiradores à luz do dia para que sofram as penas da lei. Não
obstante falhas ocasionais, no conjunto o sistema, aerado pelos bons ventos da
liberdade de imprensa, encarna os ideais iluministas da transparência e da
racionalidade.
Lamento informar que há pelo menos vinte anos esse sistema cessou de existir. O
poder dos governos sobre as populações civis já é praticamente incontrolável,
reduzindo cada vez mais a um mero formalismo jurídico a diferença entre democracia e
ditadura. Não, não se trata de nenhuma “teoria da conspiração”. Conspirações existem,
mas não são elas que produzem esse estado de coisas. Ao contrário, é ele que torna
viável, hoje em dia, a criação de um governo global onipotente, imunizado contra
qualquer tentativa de controle popular. O fenômeno resulta da convergência de três
fatores:
Primeiro: A complexidade crescente da administração pública, continuamente
fortalecida pelos aportes da tecnologia e das ciências sociais, fornece aos governos
toda sorte de instrumentos para implantar as medidas que bem desejem sem ter de
passar pelo controle legislativo nem muito menos pelo debate público. Das decisões
fundamentais que alteraram a estrutura de poder no mundo nas últimas duas décadas,
diluindo soberanias e transferindo a autoridade dos Estados para organismos
internacionais, somente uma parte ínfima chegou a ser matéria de discussão
parlamentar, e a maioria nem sequer recebeu da mídia uma cobertura proporcional à
vastidão das conseqüências políticas que produziu.
Segundo: A progressiva concentração dos meios de comunicação nas mãos de um
reduzido número de grandes grupos econômicos íntimos do poder estatal, associada à
tomada das redações por uma nova geração de jornalistas ideologicamente
comprometidos, transformou jornais, revistas e canais de TV, de veículos de
informação e debate, em agências de engenharia comportamental e controle político. A
censura de notícias inconvenientes, a exclusão das opiniões divergentes, a promoção
descarada dos ídolos da esquerda, a militância sistemática em favor dos objetivos
propugnados pela revolução globalista tornaram-se quase que normas de redação,
cinicamente impostas por toda parte como a expressão pura do jornalismo mais neutro
e objetivo. Da noite para o dia, valores e critérios explosivamente revolucionários,
hostis aos sentimentos de quase toda a população, passaram a ser apresentados
como se fossem a opinião majoritária e obrigatória, o padrão supremo da normalidade.
Em todo o Ocidente não há, por exemplo, um só grande jornal ou canal de TV que não
trate toda oposição às propostas gayzistas e abortistas como conduta aberrante e
criminosa, dando a impressão de que os novos códigos de comportamento que se
deseja implantar são consensos universais milenares, só rejeitados por fanáticos e
doentes mentais. É evidente que isso não é jornalismo nenhum, é um teatro psicológico
planejado para produzir mudanças comportamentais. É a engenharia da complacência,
da qual já falei.
Terceiro: a queda da URSS deixou desorientadas e órfãs as massas militantes por toda
parte, liberando um enorme potencial humano que, não sabendo viver sem uma “causa
social” que justifique sua existência, foi facilmente remanejado para servir, agora
fartamente subsidiado pela elite financeira, sob as novas bandeiras da revolução
global. Foi a vitória completa do fabianismo e do gramscismo sobre as versões mais
arcaicas do movimento comunista. Com velocidade impressionante, as militâncias
locais foram unificadas, criando, pela primeira vez na História humana, a possibilidade
de mobilizações de massa quase instantâneas em escala mundial – a mais formidável
máquina de pressão política e intimidação psicológica que o mundo já conheceu.
Sob o influxo desses três fatores, a velha democracia representativa tornou-se apenas
a camuflagem jurídica e publicitária de novos esquemas de poder que a maioria dos
cidadãos não compreende e em geral não conhece.
Graças a isso, o avanço da tirania global é hoje tão rápido, tão intenso, tão
avassalador, que para registrar, simplesmente registrar a sucessão diária dos fatos que
o exemplificam, seria preciso um jornal inteiro, não este pobre comentário semanal.
Não se passa um dia sem que se criem novas estruturas de poder, novos meios de
controle social, novos instrumentos de manipulação psicológica destinados a ter um
impacto brutal, quase sempre destrutivo, não só na política e na economia, mas na vida
privada e na mente de todos os seres humanos colocados sob a sua órbita. E esses
fatos se desenrolam, quase todos, à margem da atenção pública, seja porque são
produzidos por meios burocráticos discretos, contornando o debate, seja porque não
chegam a ser noticiados, seja porque o são de maneira propositadamente deficiente,
sumária e eufemística, de modo que somente uma fração mínima e inofensiva da
população se dê conta do seu verdadeiro alcance e significado.
O sonho de Antonio Gramsci, o “poder onipresente e invisível”, já é uma realidade em
todo o mundo ocidental.
Saltos qualitativos
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de dezembro de 2011
Quando falo da transmutação de direitos humanos elementares em instrumentos de
controle opressivo, por favor resguardem-se de ver nesse fenômeno um processo
histórico-social espontâneo, um “resultado impremeditado das ações humanas”, como
diria Max Weber. É transformação planejada. Estrategistas de grande porte controlam o
processo, sabendo que os resultados finais serão muito diferentes daqueles esperados
pela massa ignara de militantes, idiotas úteis e, é claro, inimigos também. Nenhuma
proposta social vinda de cérebros marxistas tem jamais – repito: jamais – as finalidades
nominais com que se apresenta ao público geral. As verdadeiras finalidades só são
conhecidas daqueles que têm as qualificações intelectuais para participar das
discussões sérias num círculo mais discreto de planejadores e líderes. Nada é secreto,
mas, na prática, a lógica da coisa é inacessível tanto aos militantes comuns quanto,
mais ainda, ao público leigo.
Um exemplo clássico é a estratégia Cloward-Piven
(v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/090305dc.html), alardeada como um plano
de ajuda aos desamparados, mas, no círculo íntimo, admitida francamente como um
artifício para gerar crise econômica, quebrar a previdência social e deixar, no fim das
contas, os desamparados ainda mais desamparados – o que será em seguida
explorado para impelir ao movimento um “salto qualitativo”, passando das meras
reivindicações previdenciárias ao clamor revolucionário ostensivo do Occupy Wall
Street. Tudo isso pensado com meio século de antecedência. O público leigo e mesmo
os analistas políticos usuais logo perdem o fio da meada e não atinam com a
continuidade do processo, enquanto os planejadores comunistas, habituados a cálculos
de longuíssimo prazo, vão conduzindo o fluxo da transformação desde uma confortável
invisibilidade, disfarçados em “fatores estruturais”, “causas sociais” e mil e uma
camuflagens verbais elegantes que impedem o público de enxergar os verdadeiros
agentes por trás de tudo.
A expressão “salto qualitativo” é a chave do negócio. Nenhum intelectual marxista de
certo gabarito ignora essa teoria de inspiração hegeliana, exposta por Mao Dzedong
mas implícita na doutrina de Marx desde o começo. Diz ela que qualquer acumulação
quantitativa, ultrapassado um certo limite, produz uma mudança da qualidade, do
estado, das propriedades do fator acumulado. O exemplo clássico dado por Mao é o da
água que, aquecida, se transforma em vapor, perdendo propriedades que tinha no
estado líquido e adquirindo novas que são inerentes ao estado gasoso.
Não é, como pensava Mao, uma lei universal, aplicável a todas as esferas da realidade.
É no entanto uma constatação empírica, que vale para certos conjuntos de fenômenos,
especialmente da sociedade humana. Baseei-me nela, por exemplo, para descrever a
figura do “metacapitalista”: o sujeito que enriquece tanto com a liberdade econômica
que, depois de um certo ponto, já não pode mais sujeitar-se às oscilações do mercado
e tem de passar a controlá-lo. A transfiguração do capitalista em monopolista é um
“salto qualitativo”. A imagem da água e do vapor não é uma fórmula geral, é apenas um
símbolo, que condensa analogicamente vários processos similares. Mas, dentro de
certos limites, esses processos funcionam.
Sempre que a intelligentzia revolucionária lança campanhas que persistentemente
impelem a sociedade numa certa direção, é porque sabe que o acúmulo de forças
nessa direção chegará por fim a um “salto qualitativo”, desviando o conjunto para um
rumo totalmente diverso e produzindo resultados que a maioria sonsa contemplará
atônita, sem saber de onde vieram. Só à luz do cálculo marxista esses resultados
fazem sentido, mas mesmo dentro do movimento revolucionário só os happy
few sabem fazer esse cálculo e gerenciar sua aplicação racional. Não é assunto para
qualquer militante bobão, nem para qualquer bobão liberal-conservador que meça o QI
dos comunistas pelo dele próprio.
A facilidade com que os artífices da mutação revolucionária levam a sociedade para
onde bem desejam contrasta da maneira mais patética, é verdade, com a sua total
incapacidade de criar uma economia decente a partir do momento em que destróem o
último inimigo e assumem o controle absoluto do poder estatal.
Os liberais, que só pensam em economia e vêem a impotência do socialismo nessa
área, deduzem daí que o marxismo é falso em tudo, um amontoado de besteiras que
não merece atenção. Mas o marxismo só é uma teoria econômica em aparência. Ele é,
a rigor, a teoria e estratégia da transformação revolucionária da sociedade – e, nesse
campo, é perfeitamente realista e eficiente. O fato de que não sirva para fazer uma
economia prosperar não significa que seja incapaz de destruir muitas economias,
muitas sociedades, muitas nações, e, mesmo no meio do mais majestoso fracasso
econômico, aumentar o poder internacional da elite revolucionária, como de fato
aconteceu desde a queda da URSS. O sentimento de superioridade que os liberais têm
ante o marxismo é como o de um empresário de boxe que, por saber fazer dinheiro
com esse esporte, se imaginasse também habilitado a subir ao ringue e nocautear
Wladimir Klitschko. Não existe superioridade absoluta, transferível automaticamente a
todos os domínios da ação humana. Eu, por exemplo, sou capaz de fazer em
picadinhos qualquer debatedor comunista que se meta a besta comigo, mas, se fosse
competir com um deles em matéria de sugar verbas estatais, não saberia nem por
onde começar. Quanto mais eles perdem a discussão, mais se enchem de dinheiro.
opiando os russos
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 19 de agosto de 2011
No extraordinário relato que publicou sob o título Darkness at Dawn. The Rise of the
Russian Criminal State(Yale: Universty Press, 2003), David Satter, ex-correspondente
do Wall Street Jounal em Moscou, conta que o novo regime russo subseqüente à
queda da URSS já nasceu criminoso porque a comissão de privatizações, no governo
Yeltsin, não ligava a mínima para saber de onde vinha o dinheiro com que as empresas
estatais eram compradas às pencas em leilões bilionários. Em geral vinha do próprio
governo, pelas mãos de funcionários ladrões. Ou vinha do narcotráfico. Ninguém nem
perguntava. Só o que queriam era privatizar tudo o mais rápido possível, para criar do
nada uma classe capitalista sem lei, nem ordem, nem moralidade. Nem mesmo
combater as quadrilhas criminosas lhes parecia necessário: afinal, elas faziam dinheiro,
que era tudo o que importava.
Somada à súbita liberação geral dos preços, essa política, perto da qual o assalto
estatal à nação e à Igreja na Revolução Francesa de 1789 fica parecendo uma rifa em
colégio de freiras, não demorou a produzir os resultados logicamente previsíveis: em
poucos meses, 99 por cento das poupanças tinham desaparecido, deixando o povo à
míngua, enquanto no topo da sociedade uma nova casta de barões ladrões abria
caminho mediante expedientes singelos como explodir as casas dos seus concorrentes
ou abater a tiros os funcionários do Estado que não se rendessem à sedução das
propinas, àquela altura tidas como instrumentos normais de negociação.
Se perguntamos por que os responsáveis pelas privatizações russas optaram por uma
estratégia tão obviamente suicida, a resposta é simples e vem da boca dos próprios
personagens, com uma candura admirável: eram todos homens de formação marxista,
não só acostumados a um ambiente de crueldade incomum, mas persuadidos de que a
“acumulação primitiva do capital” só é possível através do roubo, do saque, da
desumanidade e da violência descontrolada. Para eles, o que estava acontecendo na
Rússia era simplesmente natural, inevitável, imune a todo julgamento humano.
Ao abdicar do comunismo, adotaram o capitalismo tal como o comunismo o concebia.
Simplesmente passaram a achar bom o que antes achavam ruim, sem modificar no
mais mínimo que fosse a imagem que faziam dele até então.
Essa imagem é obviamente falsa. O próprio Karl Marx sabia disso quando a inventou
como engodo proposital, falsificando os dados estatísticos do Parlamento britânico (os
famosos Blue Books) para dar a impressão de que o capitalismo era filho do
banditismo, quando a verdade era exatamente o contrário: um capitalismo selvagem
primitivo, incipiente, só veio a ganhar força e vigor quando o ambiente social e
psicológico foi saneado pelo império da lei e da ordem, incluída aí a influência da fé
religiosa. Se a noção marxista já era falsa com relação ä Inglaterra, que Marx tomara
como modelo universal, mais absurda ainda ela se revelava no confronto com o
exemplo americano, onde um sistema de leis e instituições humanitárias, fortemente
impregnado de moral cristã, antecedera de décadas o florescimento capitalista que aí
viria a brotar com energia mais pujante do que em qualquer outro país.
Logo no começo de “O Capital”, Karl Marx avisa que seu modelo de capitalismo não se
baseia na sondagem dos fatos históricos, mas na “força da abstração”. Ele despe o
capitalismo de todos os elementos sociais, culturais, psicológicos, éticos e religiosos
que o prepararam, e o descreve como simples esquema econômico descarnado,
fundado na exploração de algo que ele chama a “mais-valia”. Com a ambigüidade
característica dos pensadores revolucionários, porém, ele se esquece da advertência
que acabou de fazer e logo passa a tratar esse capitalismo abstrato como se fosse
realidade histórica concreta. O dano que com isso ele trouxe à economia mundial foi
duplo: primeiro, o fiasco monumental da economia soviética; depois, o descalabro do
capitalismo criminal russo.
Mas houve um terceiro dano, mais sutil e de conseqüências incalculáveis: ele inoculou
o abstratismo econômico na mente de seus adversários, levando-os a apoiar
entusiasticamente o desatino das privatizações soviéticas e a acreditar, com maior
insanidade ainda, que a introdução da economia de mercado na China traria consigo a
liberalização do regime político.
É uma trágica ironia que a crença cega no primado da economia como motor da
História tenha se impregnado tão profundamente nas almas daqueles que mais
deveriam contestá-la. Tal como os privatizadores russos, muitos “formadores de
opinião” ocidentais em matéria de política e economia amam o capitalismo, mas
pensam como marxistas. É como achar que entre os encantos peculiares de uma bela
mulher se encontra o fato de a referida sofrer de AIDS.
Uma coisa que sempre me impressionou entre os liberais é a paixão com que aderem
à escola austríaca de economia, tratando-a como um conjunto de fórmulas gerais
abstratas, transportáveis às mais diferentes situações, sem jamais mostrar o mínimo
interesse pelas condições culturais muito peculiares que na Viena do começo do século
XX permitiram e fomentaram a emergência dessa escola. Esse desinteresse, mais
pronunciado entre os economistas brasileiros que entre os de qualquer outra
nacionalidade, é tanto mais imperdoável porque aquele período da história cultural
austríaca foi um dos mais vigorosos e criativos de todos os tempos, e não se pode
imaginar um surto de genialidade eclodindo entre meia dúzia de economistas sem ter
nada a ver com o que se passava em torno. A Viena daquela época era um ambiente
de intercâmbio intelectual intenso, propiciando a fecundação mútua entre os mais
diversos campos da atividade intelectual e artística. A economia de Ludwig von Mises e
Friedrich von Hayek não é uma “coisa em si”, brilhando isolada no céu das ideias
puras: é o fruto de uma atmosfera intelectual de intenso diálogo entre todas as
disciplinas das artes e das ciências, atmosfera que, por sua vez, não se pode
compreender sem a referência ao quadro político do Império Austro-Húngaro.
Ironicamente, duas das fontes mais valiosas para o estudo desse período têm
traduções brasileiras. “O Mundo que Eu Vi”, memórias de Stefan Zweig, e dezenas de
estudos sobre obras e idéias austríacas ao longo dos “Ensaios Reunidos” de Otto
Maria Carpeaux foram bastante lidos no Brasil nos anos 50 e 60. Hoje estão
completamente esquecidos, e a simples sugestão de que um economista as leia deve
soar como apelo a um diletantismo indigno de profissionais sérios. “The Austrian Mind:
an Intellectual and Social History, 1848-1938”, de William M. Johnston (University of
California Press, 1972) dará aos interessados uma visão da prodigiosa riqueza
intelectual e humana de onde brotaram as intuições econômicas não só de von Mises e
Hayek, mas também de Joseph Schumpeter, Carl Menger e tantos outros. Não há
desculpa para a ignorância satisfeita dos economistas liberais que acreditam poder
compreender a escola austríaca sem saber de onde ela saiu. Essa atitude reflete uma
obsessão dinheirista que, por sua vez, tem sua origem remota no íncubo marxista que
há décadas se apossou da mente antimarxista. Os que hoje pontificam sobre a
economia brasileira desde um ponto de vista liberal sem levar na mais mínima conta os
fatores intelectuais, culturais, psicológicos éticos e religiosos do destino econômico das
nações são privatizadores russos mal disfarçados.
América Latina
Crocodilos em pânico
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 24 de julho de 2013
Antes de analisar qualquer coisa que o sr. Mauro Santayana escreva, é preciso saber
que ele trabalhou como comentarista político da Rádio Praga, órgão oficial do governo
comunista checo, e foi nada menos que redator-chefe das emissões em português da
Rádio Havana. Essas estações nunca praticaram o jornalismo, no sentido normal do
termo. Eram órgãos de desinformação, partes integrantes da polícia política comunista.
A segunda ainda é. Chamar o sr. Santayana de “jornalista” tout court, sem esclarecer o
uso específico que ele faz dessa fachada profissional, é sobrepor um formalismo
burocrático-sindical à realidade substantiva do trabalho que ele exerce. Ele é, sob
todos os aspectos possíveis e imagináveis, um agente de influência comunista. O
jornalismo é o canal, não a substância da sua atividade.
Um agente de influência não faz propaganda comunista. Mantém-se numa
posição discreta, equilibrada, e só procura influenciar as autoridades e os formadores
de opinião em pontos determinados, precisos, para induzi-los a decisões que sirvam à
estratégia comunista sob pretextos que não pareçam comunistas de maneira alguma.
Esse esforço só se intensifica e sobe de tom quando se trata de medidas urgentes,
vitais para a sobrevivência do movimento comunista. É só aí que o lobo perde a
compostura ovina, rosna, mostra os dentes e sai mordendo.
No momento a coisa mais urgente e vital para o comunismo na América Latina é
afastar a ameaça de uma investigação fiscal no Foro de São Paulo. É urgente e vital
porque há 23 anos essa entidade gasta fortunas incalculáveis, transportando
incessantemente centenas de politicos, intelectuais, militantes e terroristas entre todas
as capitais do continente, hospedando-os nos melhores hotéis, sem jamais informar à
população de onde veio o dinheiro. O envolvimento de alguns de seus membros mais
prestigiosos no narcotráfico é fato notório, comprovado por depoimento do traficante
Fernandinho Beira-Mar e pelos computadores do ex-comandante das Farc, Raul
Reyes, apreendidos pelo exército colombiano.
O Foro de São Paulo é o comando estratégico do movimento comunista latino-
americano. Faz e desfaz governos, interfere na política interna de dezenas de países,
decide os destinos do continente, fornece cobertura a terroristas e narcotraficantes e,
segundo confissão do seu fundador e nosso ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, faz
tudo isso de modo calculado para que “as pessoas não percebam do que estamos
falando” (sic). Chamar isso de conspiração não é portanto uma “teoria”. É usar o termo
apropriado para definir um fato tal como descrito pelo seu autor principal.
Durante dezesseis anos o Foro cresceu em segredo, sob a proteção da mídia
cúmplice que negava a sua existência e que, quando não pôde mais fazer isso, passou
a mostrá-lo sob aparência maquiada, como um inofensivo “clube de debates”. A
desconversa não pegou, é claro, em primeiro lugar porque nenhum clube de debates
emite resoluções unânimes repletas de comandos a ser seguidos pelos participantes;
e, em segundo lugar, porque o próprio fundador da coisa deu com a língua nos dentes,
no discurso que pronunciou no décimo-quinto aniversário de fundação da entidade.
A simples ajuda mútua entre os partidos legais e as quadrilhas de teroristas e
narcotraficantes que o compõem já bastaria para fazer do próprio Foro, como um todo,
uma organização criminosa no sentido mais estrito e legal do termo, mesmo sem
levantar a hipótese, praticamente inevitável, de que a troca de vantagens políticas
importasse em benefícios financeiros ilícitos para qualquer das partes.
No entanto, entre tantos segredos que preenchem a história do Foro, as finanças
são ainda o mais bem guardado. Mesmo depois que, forçado pelas circunstâncias a
passar do silêncio ao exibicionismo histriônico, o seu atual dirigente Valter Pomar
decidiu embelezá-lo como entidade transparente e aberta ao público, nem uma palavra
veio à sua boca em resposta à pergunta decisiva e proibida: Quem paga a festa?
Quem pagou durante 23 anos? As Farc? O governo brasileiro? O petróleo do sr. Hugo
Chávez? Cadê os recibos? Cadê as notas fiscais? Cadê as autorizações de despesa?
Quem lançou essa pergunta, semanas atrás, fui eu
(v.http://www.olavodecarvalho.org/semana/130626dc.html). Esperava que, como todas
as anteriores que coloquei no ar, ela caísse em ouvidos moucos. Para minha surpresa,
alguns grupos de jovens, que não conheço e que não me consultaram em nada,
deram-lhe atenção e fizeram dela uma das bandeiras do seu movimento “Marcha das
Famílias”. Embora a passeata que organizaram contra o comunismo reunisse não mais
de cem pessoas, ela espalhou pelas ruas e pela internet o mais óbvio, inegável e
legítimo dos pedidos: auditoria no Foro de São Paulo, já!
Aí, é claro, foi o pânico. Antes mesmo que qualquer solicitação formal de uma
investigação fosse enviada ao Ministério Público ou à Receita Federal, era preciso criar
contra ela uma predisposição hostil para dissuadir as autoridades, a priori, da tentação
de atendê-la.
Primeiro veio então a página do “Opera Mundi” que, naquele tom lacrimejante
próprio dos crocodilos, se queixava de que o Foro “sofria ameaças violentas”.
Coitadinho. Ele só tem, para defendê-lo, os exércitos de Cuba e da Venezuela, as
tropas das Farc e a militância armada do MST e da Via Campesina, sem contar o
governo brasileiro. Não é mesmo para ficar aterrorizado ante umas dezenas de
estudantes que o xingam pela internet?
Mas logo depois dessa palhaçada entrou em cena, como era de se esperar, o sr.
Mauro Santayana. E veio com uma conversa muito mais interessante. Veremos no
próximo artigo.
A história invertida
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de abril de 2013
O confronto entre militares e terroristas na América Latina dos anos 60-70 foi um
episódio da Guerra Fria, onde os atores locais, sem prejuízo de suas convicções e
decisões próprias, ecoavam, em última instância, as estratégias respectivas das duas
grandes potências em disputa: os EUA e a URSS.
Nada do que então se passou no continente pode ser compreendido sem ter isso
em conta.
Se perguntarmos qual dos dois protagonistas estrangeiros interferiu mais
profundamente no cenário latino-americano, a única resposta honesta é: a URSS.
Do ponto de vista militar, isso é de uma obviedade gritante. Os EUA jamais
chegaram a ter, na época, quarenta mil soldados, quinze mil técnicos em armamentos,
setecentas baterias anti-aéreas, 350 tanques e cento e tantos mísseis balísticos
intercontinentais instalados em nenhum dos seus países aliados na América Latina,
como a URSS teve em Cuba já a partir de 1962 na chamada “Operação Anadyr”. (v.
Gus Russo and Stephen Molton, Brothers in Arms. The Kennedys, the Castros and the
Politics of Murder, New York, Bloomsbury, 2008, p. 158 e aqui).
No que diz respeito à espionagem propriamente dita, a superioridade soviética
surge ainda mais nítida no caso do Brasil em especial. Nada do que a CIA ou qualquer
outro serviço secreto norte-americano possa ter feito aqui se compara às proezas da
KGB, que chegou a instalar um grampo no gabinete do presidente João Figueiredo (v.
George Schpatoff, KGB. História Secreta, Curitiba, Juruá, 2000, pp. 381 ss.),
interceptar 21 mil mensagens sigilosas do nosso Ministério das Relações Exteriores e
ter a seu serviço, como agente pago, nada menos que um embaixador brasileiro em
Moscou (v. Christopher Andrew and Vasili Mitrokhin, The World Was Going Our Way.
The KGB and the Battle for the Third World, New York, Basic Books, 2005, p. 105).
Se daí passamos ao campo das chamadas “medidas ativas” (desinformação,
infiltração, guerra psicológica, agentes de influência etc.), a supremacia soviética no
Brasil daqueles anos assume as proporções de um poder absoluto e incontrastável. Em
1964, a KGB tinha várias dezenas de jornalistas brasileiros na sua folha de
pagamentos (confissão do próprio chefe da agência soviética no Brasil, Stanislav
Bittman, em The KGB and Soviet Disinformation: An Insider’s View). Que o número
deles se multiplicou nos anos seguintes não é algo de que se possa duvidar. Muitos
jornalistas brasileiros, naquele período, fizeram estágios na URSS, na China, na
Tchecoslováquia, na Alemanha Oriental, na Polônia e em Cuba. Uns poucos gabam-se
disso até hoje, seguros de que o público amestrado já não verá aí o menor motivo de
suspeita. Mas naqueles países, onde todos os órgãos de mídia nada mais eram do que
extensões da polícia secreta, é quase impensável que algum jornalista estrangeiro
fosse admitido sem ser em seguida recrutado como agente de influência. Como
assinalam John Earl Haynes, Harvey Klehr e Alexander Vasiliev em Spies: The Rise
and Fall of the KGB in America (Yale University Press, 2009), os soviéticos foram
sempre os campeões absolutos no recrutamento de jornalistas. Nos EUA, hoje
conhecem-se um por um os nomes daqueles que, na mídia americana, serviram à KGB
e ao GRU (serviço secreto militar). No Brasil, esse capítulo da história do nosso
jornalismo é ainda um tabu, mas é evidente que sem ele nada se compreende do
período, principalmente porque em plena ditadura militar os comunistas chegaram a
controlar praticamente toda a grande mídia no país
(v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/111124dc.html,http://www.olavodecarvalho.o
rg/semana/111125dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/111130dc.html) e a
dominar também o mercado livreiro através das suas grandes casas editoras
(Civilização Brasileira, Brasiliense, Vitória etc.). Nem falo, é claro, dos agentes de
influência que vindo do bloco soviético se espalharam pelos EUA e pelas democracias
européias, forjando aí a imagem demoníaca do governo brasileiro que acabou por se
consagrar como dogma internacional inabalável.
O conjunto forma uma orquestra formidável, ao lado da qual a voz do
imperialismo ianque mal soava como o miado de um gatinho doente. Ao longo de toda
aquela época, e depois mais ainda, tanto os EUA quanto o governo brasileiro se
abstiveram de fazer qualquer esforço sério para ganhar os “corações e mentes” dos
formadores de opinião neste país. Em plena ditadura, os jornalistas “de direita” nas
redações contavam-se nos dedos das mãos e eram abertamente hostilizados por seus
colegas.
Por fim, até hoje não se fez uma avaliação razoável da quantidade de recursos
mobilizados pelas ditaduras de Cuba, da China, da URSS e seus países satélites para
treinar, equipar e financiar não só os terroristas brasileiros mas os militantes
encarregados de lhes dar apoio político sem participar dos combates. Foi uma
operação de proporções gigantescas, que na imagem pública hoje em dia só aparece
sob a forma de menções esporádicas a “exilados”, como se os comunistas só fossem
para aqueles países quando obrigados a isso pelo governo militar.
Em comparação com a profundidade e amplitude da intervenção cubano-soviética no
continente, e especialmente no Brasil, a ação dos EUA naqueles anos caracterizou-se
pela raridade, timidez e omissão, limitando-se no mais das vezes a acordos entre
governos. Se a imagem que se consagrou na mídia e no ensino foi exatamente a
inversa, isso é mais uma prova do sucesso de uma operação que prossegue ainda
hoje, tendo a seu serviço tanto os megafones quanto as mordaças.
A promessa autoadiável
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 30 de agosto de 2010
Quando o nosso presidente diz: “Ainda não sabemos que tipo de socialismo
queremos”, ele ecoa aquilo que é talvez o mais clássico Leitmotiv do pensamento
revolucionário. Karl Marx já opinava que era inútil tentar descrever como seria o
socialismo, já que este iria se definindo a si mesmo no curso da ação anticapitalista. O
argumento com que Lula justifica sua afirmativa – leiam em America Libre – é
exatamente esse. Em 1968, entre as explosões de coquetéis Molotov que tiravam o
sono do establishmentfrancês, Daniel Cohn-Bendit declarava, com orgulho, que os
estudantes revolucionários queriam “uma forma de organização social radicalmente
nova, da qual não sabem dizer, hoje, se é realizável ou não”. E a versão mais
sofisticada do marxismo no século XX, a Escola de Frankfurt, baseou-se inteiramente
na convicção de que qualquer proposta definida para a construção do socialismo é
bobagem: só o que importa é fazer “a crítica radical de tudo quanto existe”. Critiquem,
acusem, caluniem, emporcalhem, destruam tudo o que encontrem pela frente, e
alguma coisa melhor vai acabar aparecendo espontaneamente. Se não aparecer, tanto
melhor: a luta continua, como diria Vicentinho. Herbert Marcuse resumiu o espírito da
coisa em termos lapidares: “Por enquanto, a única alternativa concreta é somente uma
negação.” Tal como o Deus da teologia apofática, o alvo final do movimento
revolucionário é sublime demais para que seja possível dizer o que é: só se pode dizer
o que não é – e tudo o que não participa da sua indefinível natureza divina está
condenado à destruição. Destruição que não virá num Juízo Final supramundano, com
a repentina absorção do tempo na eternidade – coisa na qual os revolucionários não
acreditam –, e sim dentro da História terrestre mesma, numa sucessão macabra de
capítulos sangrentos: não podendo suprimir todo o mal num relance, só resta ao
movimento revolucionário a destruição paciente, progressiva, obstinada, sem limite,
nem prazo, nem fim. Cumpre-se assim a profecia de Hegel, de que a vontade de
transformação revolucionária não teria jamais outra expressão histórica senão “a fúria
da destruição” (v. meu artigo “Uma lição de Hegel”, aqui publicado em 14 de novembro
de 2008, http://www.olavodecarvalho.org/semana/081114dc.html).
Nessas condições, é óbvio que duzentos milhões de cadáveres, a miséria e os
sofrimentos sem fim criados pelos regimes revolucionários não constituem objeção
válida. O revolucionário faz a sua parte: destrói. Substituir o destruído por algo de
melhor não é incumbência dele, mas da própria realidade. Se a realidade não chega a
cumpri-la, isso só prova que ela ainda é má e merece ser destruída um pouco mais.
É claro que, na política prática, os revolucionários terão de apresentar algumas
propostas concretas, uma aqui, outra acolá, seduzindo mediante engodo os patetas
que não compreendem a sublimidade do negativo. Mas essas propostas não visam
jamais a produzir no mundo real os benefícios que anunciam: visam somente a
enfatizar a maldade do mundo e a aumentar, na mesma proporção, a força de empuxe
do movimento destruidor. Eis a razão pela qual este último não conhece fracassos:
como o processo avança mediante contradições dialéticas, todo fracasso de uma
proposta concreta, aumentando a quota de mal no mundo, se converte
automaticamente em sucesso da obra revolucionária de destruição. Nada incrementou
o poder do Estado comunista como o fracasso retumbante da coletivização da
agricultura na URSS e na China (50 milhões de mortos em menos de dez anos). O
fracasso de Stalin em usar o nazismo como ponta-de-lança para a invasão das
democracias ocidentais converteu-se em aliança destas com os soviéticos e na
subseqüente concessão de metade do território europeu ao domínio comunista:
precisamente o objetivo inicial do plano. A queda da URSS, em vez de extinguir o
comunismo, espalhou-o pelo mundo todo sob novas identidades, confundindo o
adversário ao ponto de induzir os EUA à passividade cúmplice ante a ocupação da
América Latina pelos comunistas. E assim por diante.
Mais ainda: como as propostas concretas não têm nenhuma importância em si
mesmas, não apenas cabe trocar uma pela outra a qualquer momento, mas pode-se
com igual desenvoltura defender políticas contraditórias simultaneamente, por exemplo
incentivando o sex lib, o feminismo e o movimento gay no Ocidente, ao mesmo tempo
que se fomenta o avanço do fundamentalismo islâmico que promete matar todos os
libertinos, feministas e gays. Só se escandaliza com isso quem seja incapaz de
perceber a beleza dialética do processo.
Se não têm nenhum compromisso com qualquer proposta concreta, muito menos
podem os revolucionários ter algum sentimento de culpa ante os resultados medonhos
das suas ações. O que quer que aconteça no trajeto é sempre explicado, seja como
destruição necessária, justa portanto, seja como reação do mundo mau, que deste
modo atrai sobre si novas destruições, ainda mais justas e necessárias. Isso é tanto
mais assim porque o estado paradisíaco final a ser atingido (ou a demonstrar-se
impossível por ser o mundo ainda mais mau do que o revolucionário supunha no
começo) não pode ser descrito ou definido de antemão, mas tem de criar-se por si
mesmo no curso do processo. Por isso o movimento revolucionário não pode
reconhecer como obra sua nenhum estado de coisas que ele venha a produzir
historicamente. O que quer que esteja acontecendo não é jamais – “ainda” não é – o
socialismo, o comunismo, a jóia perfeita na qual o movimento revolucionário poderá
reconhecer, no momento culminante do Fim da História, o seu filho unigênito: é sempre
uma transição, uma etapa, uma conjuntura provisória, criada não pelo movimento
revolucionário, mas pelo confronto entre este e o mundo mau; confronto que por sua
vez faz parte, ainda, do próprio mundo mau, ao qual portanto cabem todas as culpas.
Por sua própria natureza, a promessa indefinida é auto-adiável, e nenhum preço que se
pague por ela pode ser considerado excessivo, não sendo possível um cálculo de
custo-benefício quando o benefício também é indefinido.
A oitava maravilha do mundo, na minha modesta opinião, é que pessoas alheias ou
hostis aos ideais revolucionários imaginem ser possível uma convivência pacífica e
democrática com indivíduos que, pela própria lógica interna desses ideais, se colocam
acima de todo julgamento humano e só admitem como medida das suas ações um
resultado futuro que eles mesmos não podem nem querem dizer qual seja ou quando
virá. Só o conservador, o liberal-democrata, o crente devoto da ordem jurídica, pode
imaginar que a disputa política com os revolucionários é uma civilizada concorrência
entre iguais: o revolucionário, por seu lado, sabe que seu antagonista não é um igual,
não é nem mesmo um ser humano, é um desprezível mosquito que só existe para ser
esmagado sob as rodas do carro da História.
Rabo à mostra
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 3 de agosto de 2010
Que o PT não tenha nenhuma ligação com as Farc é uma alegação que não se pode
aceitar nem a título de hipótese. Mesmo sem levar em conta as atas completas do Foro
de São Paulo, nem os favores obscenos do governo Lula ao representante farqueano
Olivério Medina, nem a completa omissão governamental ante as provas de atividade
criminosa das Farc no nosso território, nem a revelação dos serviços de leva-e-traz
oferecidos pelo sr. Marco Aurélio Garcia entre a narcoguerrilha colombiana e o então
ministro Luiz Felipe Lampreia, até uma criança de cinco anos é capaz de compreender
os seguintes fatos e juntar os pontos:
1. O Foro de São Paulo é a coordenação estratégica do movimento comunista na
América Latina.
2. O sr. Luís Ignácio Lula da Silva e o líder das Farc, Raul Reyes, já presidiram juntos
uma assembléia do Foro, e juntos participaram de todas as outras.
3. É impossível conceber que os dois coordenadores máximos de uma estratégia
comum não tenham nenhuma ligação, nenhuma comunidade de interesses, nenhuma
atividade conjunta.
Quem fez a afirmação número 1 foi o próprio PT, no vídeo preparatório do seu III
Congresso. A número 2 veio da boca do próprio Raul Reyes em 2003, em entrevista
à Folha de S. Paulo, e nenhum representante do PT jamais a desmentiu desde então. A
número 3 é uma exigência incontornável da inteligência humana. Negá-la é fazer-se de
besta. Ou ser besta sem precisar fazer-se tal.
E não venham dizer que tudo isso é coisa de antigamente, que uma vez na presidência
o PT cortou todos os laços com as Farc. Só para dar um exemplo, um modesto
exemplo de como as coisas não são assim: em plena gestão Lula o seu assessor de
imprensa, Gilberto Carvalho, continuou dirigindo, de parceria com o chefe militar das
Farc, Manuel Marulanda Vélez (“Comandante Tirofijo”), a revista de propaganda
comunista “América Libre”. Como poderiam fazê-lo sem ter ligação nenhuma é algo
que só se alcança conceber, se é que se alcança, em estado alterado de consciência.
A propalada ausência de ligações não é algo que mereça discussão, nem mesmo
atenção. É uma desconversa insultuosa, inadmissível, que falta ao mais elementar
respeito para com o ouvinte, o eleitorado em geral, a nação inteira, as leis e a
moralidade. A simples tentativa de impingir ao público uma mentira tão grosseira, tão
boba, tão pueril, já é mostra daquele cinismo ilimitado que caracteriza a mentalidade
sociopática, incapaz de medir, seja a feiúra dos seus atos, seja a inverossimilhança das
palavras que os encobrem.
Quem quer que venha com esse tipo de subterfúgio só prova duas coisas. Primeira:
que tem muito a esconder. Segunda: que ao tentar esconder-se está deixando o rabo à
mostra.
O Brasil, como vários outros países da América Latina, é governado por bandidos
perigosos, frios, calculistas, organizados, firmemente decididos a sujar-se até à
medula, a cometer as mais inconcebíveis baixezas para manter e ampliar
ilimitadamente o seu poder. Felizmente, não são tão espertos quanto se imaginam.
Retorcendo-se em dores para fingir um sorriso de tranqüilidade superior, só o que
conseguem produzir é um sorriso amarelo. Desmentem-se, atrapalham-se, gaguejam
e, no fim das contas, dão a cara a tapa. Só não levam o tapa porque neste país não há
mais homem que o desfira. Nunca um crime esteve tão patente à vista de todos, nunca
tantos desviaram o olhar para não ter de enxergá-lo.
Com aquela ligação esses bandidos estão fazendo o mesmo que fizeram com o Foro
de São Paulo inteiro: primeiro negarão peremptoriamente a sua existência; depois
buscarão dar-lhe aparência de coisa mínima, inofensiva, sem peso nem substância; por
fim, quando sentirem que o perigo do escândalo já passou, começarão a trombeteá-la
aos quatro ventos como façanha gloriosa, merecedora da gratidão da espécie humana.
Contarão, para isso, com a colaboração servil da mídia inteira e de praticamente todas
as lideranças políticas, empresariais, religiosas, culturais, judiciais e militares deste
país. Aqueles que, dessa massa de escravos e sicofantas, se levantarem por um
minuto para esboçar um vago muxoxo, para encenar um débil lamento entre prudentes
pedidos de desculpas e depois voltar ao confortável silêncio de sempre, serão
celebrados como heróis, porque a alma popular se aviltou tanto que já não consegue
conceber o heroísmo senão como paródia, como chanchada, como jogo de cena.
Sun-Tzu às avessas
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 13 de julho de 2010
Talvez seja preciso estar na América Latina para enxergar este fenômeno e crer nos
próprios olhos: o fracasso econômico do socialismo e o desmantelamento da URSS
não debilitaram no mais mínimo que fosse o movimento comunista. Transmutado,
reorganizado, investido de novas estratégias de uma complexidade e sutileza
alucinantes, ele avança com passo mais seguro que nunca, subjugando nação após
nação, consolidando seu domínio nos organismos internacionais, nos órgãos de mídia,
nas instituições de alta cultura e no sistema judiciário até mesmo dos países que mais
valentemente se opunham ao comunismo uma década e meia atrás. O mais
impressionante de tudo foi a rapidez com que cacoetes mentais e critérios automáticos
de julgamento criados por ideólogos comunistas para desmantelar a cultura adversária
se impregnaram, com força hipnótica, nos círculos de “formadores de opinião” em todo
o Ocidente, erigindo uma formidável barreira de preconceitos paralisantes contra
qualquer veleidade de anticomunismo. Em menos de quinze anos, cada item do
programa comunista, com nome apenas levemente alterado, se impôs ao mundo como
um dogma inatacável, sacrossanto, imbuído da autoridade moral de tudo julgar e
condenar sem poder jamais ser ele próprio submetido a exame. O simples ato de
denunciar a origem comunista desses slogans e chavões é estigmatizado como prova
de fanatismo ou paranóia. Mesmo homens que jamais desejariam vê-los postos em
prática se esmeram em protegê-los dos ataques da “extrema direita”, termo redefinido
para abranger tudo o que esteja à direita do centro – um centro que se move cada vez
mais para a esquerda.
Investida do privilégio do inomeável, a ação comunista torna-se invisível e onipresente
ao ponto de poder com a maior facilidade debitar seus próprios crimes na conta do
adversário, induzindo-o a lutar contra si mesmo no momento em que ele mais
precisaria reunir forças para resistir ao ataque. Em muitos países do Ocidente, a
investida islâmica, apoiada e municiada pelos comunistas, desencadeou uma onda de
ódio, não ao Islam, mas à religião em geral e, para cúmulo de absurdo, especialmente
à cristã, fazendo com que muitos povos reneguem a única tradição religiosa que jamais
possuíram, a única que poderia restaurar seu senso de unidade cultural sem o qual
toda resistência se mostra impossível. Essa reação autodestrutiva não é, decerto,
espontânea. Como já se repetiu tantas vezes na História, um exército de liberais
“progressistas”, embriagado de abstratismo doutrinal e cego ante a realidade histórica
concreta, se aproveita da confusão do momento para tentar novamente destruir seu
desafeto de sempre, sem querer ver que, com isto, só fomenta a derrota geral e o
advento de uma tirania que, com toda a certeza, estará nos antípodas de todo
liberalismo. Sun-Tzu ensinava que o segredo da vitória é conhecer o adversário e
conhecer-se a si mesmo. Com a ajuda dos “progresistas”– por desgraça, os
dominadores absolutos da mídia ocidental –, o front comunista-islâmico logrou fazer
com que o adversário o ignore e se ignore a si mesmo, ao ponto de querer furar
alegremente os próprios olhos na véspera da batalha decisiva.
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Antonio Gramsci
Onipresente e invisível
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de março de 2012
Ao ouvir dizer que vive numa “democracia”, o cidadão comum imagina que, malgrado
algumas tramas sórdidas urdidas pelos políticos por trás das cortinas, o esquema de
poder que domina a sociedade coincide com a estrutura visível das instituições e, em
última instância, pode ser controlado mediante a pressão do clamor público ou o
exercício do voto. Algum resíduo oculto, aqui e ali, será mais cedo ou mais tarde
revelado pelos bravos jornalistas que destampam as latrinas e vasculham os esgotos,
expondo os ladrões e conspiradores à luz do dia para que sofram as penas da lei. Não
obstante falhas ocasionais, no conjunto o sistema, aerado pelos bons ventos da
liberdade de imprensa, encarna os ideais iluministas da transparência e da
racionalidade.
Lamento informar que há pelo menos vinte anos esse sistema cessou de existir. O
poder dos governos sobre as populações civis já é praticamente incontrolável,
reduzindo cada vez mais a um mero formalismo jurídico a diferença entre democracia e
ditadura. Não, não se trata de nenhuma “teoria da conspiração”. Conspirações existem,
mas não são elas que produzem esse estado de coisas. Ao contrário, é ele que torna
viável, hoje em dia, a criação de um governo global onipotente, imunizado contra
qualquer tentativa de controle popular. O fenômeno resulta da convergência de três
fatores:
Primeiro: A complexidade crescente da administração pública, continuamente
fortalecida pelos aportes da tecnologia e das ciências sociais, fornece aos governos
toda sorte de instrumentos para implantar as medidas que bem desejem sem ter de
passar pelo controle legislativo nem muito menos pelo debate público. Das decisões
fundamentais que alteraram a estrutura de poder no mundo nas últimas duas décadas,
diluindo soberanias e transferindo a autoridade dos Estados para organismos
internacionais, somente uma parte ínfima chegou a ser matéria de discussão
parlamentar, e a maioria nem sequer recebeu da mídia uma cobertura proporcional à
vastidão das conseqüências políticas que produziu.
Segundo: A progressiva concentração dos meios de comunicação nas mãos de um
reduzido número de grandes grupos econômicos íntimos do poder estatal, associada à
tomada das redações por uma nova geração de jornalistas ideologicamente
comprometidos, transformou jornais, revistas e canais de TV, de veículos de
informação e debate, em agências de engenharia comportamental e controle político. A
censura de notícias inconvenientes, a exclusão das opiniões divergentes, a promoção
descarada dos ídolos da esquerda, a militância sistemática em favor dos objetivos
propugnados pela revolução globalista tornaram-se quase que normas de redação,
cinicamente impostas por toda parte como a expressão pura do jornalismo mais neutro
e objetivo. Da noite para o dia, valores e critérios explosivamente revolucionários,
hostis aos sentimentos de quase toda a população, passaram a ser apresentados
como se fossem a opinião majoritária e obrigatória, o padrão supremo da normalidade.
Em todo o Ocidente não há, por exemplo, um só grande jornal ou canal de TV que não
trate toda oposição às propostas gayzistas e abortistas como conduta aberrante e
criminosa, dando a impressão de que os novos códigos de comportamento que se
deseja implantar são consensos universais milenares, só rejeitados por fanáticos e
doentes mentais. É evidente que isso não é jornalismo nenhum, é um teatro psicológico
planejado para produzir mudanças comportamentais. É a engenharia da complacência,
da qual já falei.
Terceiro: a queda da URSS deixou desorientadas e órfãs as massas militantes por toda
parte, liberando um enorme potencial humano que, não sabendo viver sem uma “causa
social” que justifique sua existência, foi facilmente remanejado para servir, agora
fartamente subsidiado pela elite financeira, sob as novas bandeiras da revolução
global. Foi a vitória completa do fabianismo e do gramscismo sobre as versões mais
arcaicas do movimento comunista. Com velocidade impressionante, as militâncias
locais foram unificadas, criando, pela primeira vez na História humana, a possibilidade
de mobilizações de massa quase instantâneas em escala mundial – a mais formidável
máquina de pressão política e intimidação psicológica que o mundo já conheceu.
Sob o influxo desses três fatores, a velha democracia representativa tornou-se apenas
a camuflagem jurídica e publicitária de novos esquemas de poder que a maioria dos
cidadãos não compreende e em geral não conhece.
Graças a isso, o avanço da tirania global é hoje tão rápido, tão intenso, tão
avassalador, que para registrar, simplesmente registrar a sucessão diária dos fatos que
o exemplificam, seria preciso um jornal inteiro, não este pobre comentário semanal.
Não se passa um dia sem que se criem novas estruturas de poder, novos meios de
controle social, novos instrumentos de manipulação psicológica destinados a ter um
impacto brutal, quase sempre destrutivo, não só na política e na economia, mas na vida
privada e na mente de todos os seres humanos colocados sob a sua órbita. E esses
fatos se desenrolam, quase todos, à margem da atenção pública, seja porque são
produzidos por meios burocráticos discretos, contornando o debate, seja porque não
chegam a ser noticiados, seja porque o são de maneira propositadamente deficiente,
sumária e eufemística, de modo que somente uma fração mínima e inofensiva da
população se dê conta do seu verdadeiro alcance e significado.
O sonho de Antonio Gramsci, o “poder onipresente e invisível”, já é uma realidade em
todo o mundo ocidental
Onipresente e invisível
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de março de 2012
Ao ouvir dizer que vive numa “democracia”, o cidadão comum imagina que, malgrado
algumas tramas sórdidas urdidas pelos políticos por trás das cortinas, o esquema de
poder que domina a sociedade coincide com a estrutura visível das instituições e, em
última instância, pode ser controlado mediante a pressão do clamor público ou o
exercício do voto. Algum resíduo oculto, aqui e ali, será mais cedo ou mais tarde
revelado pelos bravos jornalistas que destampam as latrinas e vasculham os esgotos,
expondo os ladrões e conspiradores à luz do dia para que sofram as penas da lei. Não
obstante falhas ocasionais, no conjunto o sistema, aerado pelos bons ventos da
liberdade de imprensa, encarna os ideais iluministas da transparência e da
racionalidade.
Lamento informar que há pelo menos vinte anos esse sistema cessou de existir. O
poder dos governos sobre as populações civis já é praticamente incontrolável,
reduzindo cada vez mais a um mero formalismo jurídico a diferença entre democracia e
ditadura. Não, não se trata de nenhuma “teoria da conspiração”. Conspirações existem,
mas não são elas que produzem esse estado de coisas. Ao contrário, é ele que torna
viável, hoje em dia, a criação de um governo global onipotente, imunizado contra
qualquer tentativa de controle popular. O fenômeno resulta da convergência de três
fatores:
Primeiro: A complexidade crescente da administração pública, continuamente
fortalecida pelos aportes da tecnologia e das ciências sociais, fornece aos governos
toda sorte de instrumentos para implantar as medidas que bem desejem sem ter de
passar pelo controle legislativo nem muito menos pelo debate público. Das decisões
fundamentais que alteraram a estrutura de poder no mundo nas últimas duas décadas,
diluindo soberanias e transferindo a autoridade dos Estados para organismos
internacionais, somente uma parte ínfima chegou a ser matéria de discussão
parlamentar, e a maioria nem sequer recebeu da mídia uma cobertura proporcional à
vastidão das conseqüências políticas que produziu.
Segundo: A progressiva concentração dos meios de comunicação nas mãos de um
reduzido número de grandes grupos econômicos íntimos do poder estatal, associada à
tomada das redações por uma nova geração de jornalistas ideologicamente
comprometidos, transformou jornais, revistas e canais de TV, de veículos de
informação e debate, em agências de engenharia comportamental e controle político. A
censura de notícias inconvenientes, a exclusão das opiniões divergentes, a promoção
descarada dos ídolos da esquerda, a militância sistemática em favor dos objetivos
propugnados pela revolução globalista tornaram-se quase que normas de redação,
cinicamente impostas por toda parte como a expressão pura do jornalismo mais neutro
e objetivo. Da noite para o dia, valores e critérios explosivamente revolucionários,
hostis aos sentimentos de quase toda a população, passaram a ser apresentados
como se fossem a opinião majoritária e obrigatória, o padrão supremo da normalidade.
Em todo o Ocidente não há, por exemplo, um só grande jornal ou canal de TV que não
trate toda oposição às propostas gayzistas e abortistas como conduta aberrante e
criminosa, dando a impressão de que os novos códigos de comportamento que se
deseja implantar são consensos universais milenares, só rejeitados por fanáticos e
doentes mentais. É evidente que isso não é jornalismo nenhum, é um teatro psicológico
planejado para produzir mudanças comportamentais. É a engenharia da complacência,
da qual já falei.
Terceiro: a queda da URSS deixou desorientadas e órfãs as massas militantes por toda
parte, liberando um enorme potencial humano que, não sabendo viver sem uma “causa
social” que justifique sua existência, foi facilmente remanejado para servir, agora
fartamente subsidiado pela elite financeira, sob as novas bandeiras da revolução
global. Foi a vitória completa do fabianismo e do gramscismo sobre as versões mais
arcaicas do movimento comunista. Com velocidade impressionante, as militâncias
locais foram unificadas, criando, pela primeira vez na História humana, a possibilidade
de mobilizações de massa quase instantâneas em escala mundial – a mais formidável
máquina de pressão política e intimidação psicológica que o mundo já conheceu.
Sob o influxo desses três fatores, a velha democracia representativa tornou-se apenas
a camuflagem jurídica e publicitária de novos esquemas de poder que a maioria dos
cidadãos não compreende e em geral não conhece.
Graças a isso, o avanço da tirania global é hoje tão rápido, tão intenso, tão
avassalador, que para registrar, simplesmente registrar a sucessão diária dos fatos que
o exemplificam, seria preciso um jornal inteiro, não este pobre comentário semanal.
Não se passa um dia sem que se criem novas estruturas de poder, novos meios de
controle social, novos instrumentos de manipulação psicológica destinados a ter um
impacto brutal, quase sempre destrutivo, não só na política e na economia, mas na vida
privada e na mente de todos os seres humanos colocados sob a sua órbita. E esses
fatos se desenrolam, quase todos, à margem da atenção pública, seja porque são
produzidos por meios burocráticos discretos, contornando o debate, seja porque não
chegam a ser noticiados, seja porque o são de maneira propositadamente deficiente,
sumária e eufemística, de modo que somente uma fração mínima e inofensiva da
população se dê conta do seu verdadeiro alcance e significado.
O sonho de Antonio Gramsci, o “poder onipresente e invisível”, já é uma realidade em
todo o mundo ocidental.
Mau exemplo
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 22 de fevereiro de 2010
Que o sr. Marco Aurélio Garcia e Dona Dilma Roussef cochichassem entre si alguma
opinião sobre a vida intelectual brasileira já seria, da parte deles, uma presunção
descabida. Mas quando a emitem em público, e o fazem dando-se ares de quem dita
regras de perfeição, entram em cheio no campo da obscenidade.
Pessoas que ocupam ou disputam cargos públicos deveriam refrear um pouco os seus
impulsos exibicionistas antes de sair dando o mau exemplo de pontificar ex
catedra sobre assuntos que estão acima da sua competência e até da sua
compreensão.
Nem o ministro nem a candidata escreveram jamais um livro, deram um curso ou
proferiram uma conferência que se notabilizasse pela amplitude da erudição, pela
profundidade do pensamento ou pela criatividade das idéias. Nada produziram, sequer,
que os ombreasse à estatura mediana da classe acadêmica. Não são pensadores, nem
artistas, nem educadores, nem profissionais da ciência. Não são sequer jornalistas.
Não têm com a vida intelectual senão a relação distante — e até inversa — de quem se
beneficia das aparências dela para fins de propaganda partidária ou promoção pessoal.
No mundo da alta cultura, não passam de parasitas e aproveitadores. O único direito
que lhes cabe, em tais matérias, é o de calar-se humildemente e dar ouvidos a quem
sabe mais. Que se atrevam a ir um passo além disso, e devem ser escorraçados de um
recinto onde sua presença só serve para tudo aviltar e prostituir.
No fundo, o atrevimento da sua crítica aos “subintelectuais de direita”
(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1602201005.htm) revela menos uma empáfia
consciente do que uma falha de percepção, uma total incapacidade de apreender, não
o mero sentido das palavras que empregam, mas as dimensões e proporções da
situação de discurso, a relação entre fala e realidade, a diferença abissal entre aquilo
que dizem e aquilo que são. Eles falam como autoridades no assunto precisamente
porque ignoram que o desconhecem. Tomam-se a si próprios como unidades de
medida porque não percebem o imensurável da distância que dele os separa.
Nada têm nisso, porém, de excepcionais e singulares. Sua conduta mental está entre
as mais típicas da burrice geral brasileira, tal como a literatura a exemplifica e qualquer
educador com algum senso de observação pode confirmar. Essa conduta não se
compõe só da alienação existencial, do abismo entre pensamento abstrato e
experiência concreta, mas da fusão desse handicap com um talento todo especial para
o mimetismo lingüístico. O brasileiro, com efeito, capta num relance os novos giros
verbais que lhe chegam do ambiente e passa de imediato a utilizá-los com um agudo
senso de eficácia persuasória, desacompanhado, porém, de qualquer compreensão da
sua carga semântica efetiva. Só para dar um exemplo tirado da minha própria
experiência pessoal, quando meus dois livros sobre a ciência da argumentação
repuseram em circulação a velha expressãoargumentum ad hominem, a nova geração,
que a desconhecia por completo, notou o potencial ofensivo do termo e passou a
empregá-lo a torto e a direito para fins de ataque, com a desenvoltura mais
autoconfiante, sem ter a menor idéia das distinções e precauções que esse emprego
exige (por exemplo, um exemplum in contrarium, logicamente uma das refutações mais
legítimas, é com freqüência apresentado sob a forma aparente de mera
argumentação ad hominem). Centenas de expressões extraídas diretamente dos meus
escritos circulam hoje por aí com sentido diminuído, coisificado, prova de que foram
copiadas por mimetismo instantâneo e não absorvidas mediante compreensão séria do
seu significado. A velocidade mesma com que se operam esses golpes de parasitagem
verbal faz com que se tornem, por sua vez, infinitamente reprodutíveis e se alastrem
em proporções epidêmicas, daí resultando que, no fim das contas, todo o debate
público nacional se reduza a um obsessivo intercâmbio de camuflagens.
Juntem à deficiente ancoragem na realidade o mimetismo lingüístico superficial, e terão
a fórmula exata do impostor inconsciente, do vigarista que só consegue ludibriar os
outros porque primeiro se ludibriou a si próprio ao ponto de poder praticar a vigarice
com um elevado sentimento de idoneidade e mérito.
Dona Dilma e o ministro Garcia exemplificam perfeitamente essa síndrome, cuja
disseminação em escala nacional consolida a incultura presunçosa como uma espécie
de título acadêmico, de especialidade científica ou prova de superioridade. Tal é hoje o
típico “intelectual de esquerda” que se apresenta como modelo normativo e cobra da
direita o dever de copiá-lo, sob pena de condená-la como “subintelectual”.
Não que subintelectuais inexistam na direita. Existem, e o primeiro a apontá-los ao
descrédito sou em geral eu mesmo. Porém o mais burro deles é ainda superior a Dilma
Roussef e Marco Aurélio Garcia, que só são “intelectuais” no sentido elástico e figurado
que o termo possui em Antonio Gramsci.
Obra-prima de vigarice
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 12 junho de 2009
“Queimada”, dirigido em 1969 por Gillo Pontecorvo e estrelado por Marlon Brando,
Evaristo Marquez e Renato Salvatori, é um dos pontos altos do cinema comunista
italiano – uma espécie de segundo neo-realismo, nascido nos anos 60 sob a inspiração
de uma década e meia de leitura das obras de Antonio Gramsci pelos intelectuais
militantes, tanto do PCI quanto das organizações maoístas e trotsquistas. A escola,
intelectualmente sofisticada, de uma coerência ideológica e estratégica notável, foi
inaugurada por “O Bandido Giuliano”, de Francesco Rosi, e “O Assassino”, de Elio Petri
(ambos de 1961), e, com a ajuda do esquema de propaganda de Hollywood, veio a
alcançar sucesso internacional ainda maior que o do que seu antecessor do imediato
pós-guerra, muito menos uniforme ideologicamente.
Outros marcos na história desse movimento foram “Accatone”, de Pier Paolo Pasolini
(1962), “A China Está Próxima”, de Marco Bellocchio (1967), “Investigação sobre um
Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”, de Elio Petri (1969), “O Conformista”, de
Bernardo Bertolucci (1970), “A Classe Operária Vai ao Paraíso”, de Elio Petri (1971) e
“O Caso Mattei”, de Francesco Rosi (1972).
A tônica desses filmes é mostrar a sociedade capitalista como uma infernal engenhoca
protofascista de dominação, fundada na alienação das consciências, na prática
endêmica da violência real e simbólica e na desinformação sistemática das multidões.
Não há mal, desde a criminalidade até os amores fracassados e as doenças mentais,
que aí não seja atribuído à ação maligna e camuflada da elite capitalista. Com um estilo
narrativo frio e impessoal, evitando com cuidado o tom abertamente propagandístico e
simulando investigação documentária dos acontecimentos (recurso usado com outros
fins pelo primeiro neo-realismo), a escola consegue dar ares de pura realidade às mais
prodigiosas falsificações históricas e sociológicas, ludibriando as multidões de patetas
que guincham e se retorcem de prazer diante dessas coisas nos festivais de cinema
como macaquinhos eletrizados por uma máquina de orgasmos.
“Queimada” é uma verdadeira aula de interpretação marxista da História, tanto mais
persuasiva porque compõe com detalhes históricos bastante exatos um conjunto
perfeitamente ilógico, cuja absurdidade só aparece quando o espectador, se advertido
– o que raramente acontece –, se dá conta dos pontos essenciais astutamente
omitidos.
A história é a seguinte. Em 1815, Sir William Walker (Marlon Brando), guerreiro e
agente secreto mercenário, é contratado para armar um golpe de Estado na ilha de
Queimada, colônia portuguesa, e, sob o pretexto de republicanismo e abolição da
escravatura, transferir da monarquia portuguesa para uma companhia privada britânica
o monopólio da produção local de açúcar. Ele realiza seus objetivos por meio de três
operações sucessivas e articuladas: primeiro, uma rebelião de escravos, artificialmente
fomentada para desestabilizar o governo local, encenada sob a liderança do negro
José Dolores, que o próprio Sir Walker adestra para isso; segundo, a tomada do poder
por um grupo de intelectuais e políticos ambiciosos, insatisfeitos com o regime colonial
e chefiados por um idealista bocó, Teddy Sanchez; terceiro, a instalação de um regime
republicano liberal e corrupto sob a presidência de Teddy Sanchez, com a conseqüente
assinatura de uma cessão de direitos para a exploração da cana-de-açúcar e a
contratação dos antigos escravos como assalariados da companhia inglesa. Sir William
volta para a Inglaterra, onde leva uma vida de bebedeiras e arruaças (dando-se a
entender que a sórdida operação antiportuguesa arruinara o seu caráter). Passados
dez anos, os trabalhadores das plantações de cana, insatisfeitos com os salários de
fome recebidos dos novos patrões, iniciam nova rebelião, sob a liderança do mesmo
José Dolores, agora porém a sério e decididos a tomar as rédeas do governo em suas
próprias mãos. Teddy Sanchez, aterrorizado, incapaz de controlar a situação, pede
ajuda aos empresários ingleses, que vão buscar Sir William num botequim nojento
onde ele se diverte em campeonatos de pugilismo com a ralé de Londres, e o enviam
de volta à ilha, com plenos poderes para sufocar a revolta. Vendo que a coisa tomara
as proporções de uma verdadeira revolução social, Sir William apela ao expediente
extremo, mandando atear fogo às plantações e queimando vivos os trabalhadores
rebeldes junto com suas famílias. Quando, vitorioso pela segunda vez, o guerreiro
genocida vai embarcar de volta para a Inglaterra, o sobrevivente José Dolores,
disfarçado de carregador, mata-o a facadas.
Há muitos elementos historicamente verossímeis nesse enredo: a ação inglesa por trás
dos movimentos de independência das colônias portuguesas e espanholas; a liderança
republicana verbosa e sem iniciativa própria; o aproveitamento de um arremedo de
revolta popular como pretexto para a tomada do poder por uma elite corrupta; a
transformação dos escravos em mão-de-obra barata para o capital estrangeiro; e até o
agravamento da situação dos ex-escravos, soltos no mundo para lutar pela vida em
condições desiguais. Abrilhantado por uma direção ágil de Pontecorvo e pela
interpretação contundente de Marlon Brando, “Queimada” tem tudo para passar por um
condensado esquemático fiel e quase científico dos movimentos de independência de
muitas colônias portuguesas, inclusive o Brasil, onde o filme, exibido durante a fase
mais dura da repressão militar às guerrilhas, sugeria a histéricas platéias estudantis a
explicação mais fácil do que estava acontecendo no país e assim indicava o exemplo
de José Dolores como o mais óbvio caminho a seguir.
Naquela época, pouquíssimos espectadores poderiam ter reparado em duas omissões
capciosas que, no fundo, eram todo o segredo do impacto da narrativa. Desde logo, se
até para encenar uma rebelião incipiente seguida de um golpe de Estado os habitantes
da ilha – escravos mais elite branca – precisaram da ajuda estrangeira, como poderiam
os escravos, sozinhos, sem armamento, sem nenhum treino político e só com as duas
ou três artimanhas de guerrilheiro amador que Sir William ensinara a José Dolores,
montar uma verdadeira revolução social capaz de derrubar o regime republicano?
Jamais ocorreu uma rebelião desse tipo em nenhuma nação do Terceiro Mundo sem a
maciça ajuda estrangeira, e nada, além do puro embuste narrativo, explica que possa
ter ocorrido em Queimada. Para os fins propagandísticos visados por Gillo Pontecorvo,
era necessário associar capitalismo com imperialismo e revolução comunista com
espontaneidade popular autóctone, condensando na tela o velho ardil da propaganda
estalinista – ainda hoje inspirador do Fórum Social Mundial – que pinta o livre mercado
como traição a serviço do estrangeiro e o comunismo como patriotismo.
Em segundo lugar, impressionadas com o retrato aparentemente verossímil do frio
maquiavelismo capitalista, as platéias também se esqueciam de perguntar que raio de
cálculo econômico era aquele, que, para a suposta salvaguarda de interesses
empresariais, destruía pelo fogo a matéria-prima, os meios de produção e praticamente
a totalidade da mão-de-obra disponível, tornando inviável qualquer atividade
econômica na ilha por muitas décadas à frente e instaurando ali o monopólio do nada.
Sir William emerge da sua segunda excursão à ilha como vencedor, sob a aparente
satisfação das classes dominantes, mas, se algum equivalente dele do mundo real
cometesse um desatino militar e ecômico como o que ele promoveu em Queimada,
quem logicamente desejaria matá-lo não seria José Dolores, e sim os donos da
empresa.
Observado segundo os critérios da própria verossimilhança histórica da qual se
pavoneia, “Queimada” perde todo impacto dramático e se revela uma farsa idiota,
postiça até o desespero, composta por um pseudo-intelectual de meia idade para a
deleitação masturbatória de jovens aspirantes a pseudo-intelectuais.
Não há um só filme dessa escola que não se baseie nesse mesmo tipo de engodo
miserável, e, compreensivelmente, não há um só deles que não tenha sido louvado
uniformemente pela crítica mundial como uma obra-prima de realismo e honestidade
narrativa.
Mais grotesco ainda esse gênero de filme se torna quando considerado não apenas na
sua composição interna, mas nas condições sociológicas da sua produção. Se o
capitalismo é mesmo como eles o descrevem, um sistema de escravização mental e
física destinado a manter as multidões na total ignorância das causas da sua miséria,
como se explica que a indústria mundial de espetáculos, infinitamente mais rica do que
os usineiros de Queimada, subsidie e aplauda tantos filmes anticapitalistas como os de
Gillo Pontecorvo, Francesco Rosi e tutti quanti, em vez de espalhar nos cinemas a
apologia visual das belezas do livre mercado? A separação estanque entre as idéias
dos intelectuais ou artistas e a sua condição existencial e social concreta é uma doença
mental endêmica nas classes letradas do mundo Ocidental e, decerto, um dos pilares
em que se assenta hoje em dia a efetiva escravização das consciências pela elite
globalista.
Tanto no Brasil quanto em vários outros países, as obras do segundo neo-realismo
italiano fizeram as cabeças de duas gerações de espectadores e, na condição de
“clássicos”, desfrutam ainda de um prestígio considerável . Não duvido que milhares ou
milhões de Emires Sáderes tenham absorvido desses filmes, e não dos livros que não
leram, a substância mesma da sua ideologia e do seu modo de ser.
Os insuspeitíssimos
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 9 de março de 2009
Se você se interessa pelos rumos da política mundial, chega um dia em que tem de
escolher entre compreender os fatos e continuar tentando parecer um sujeito normal e
equilibrado. Normalidade e equilíbrio são coisas altamente desejáveis, mas um esforço
exagerado para simular calma e ponderação quando na verdade você está perplexo e
desorientado prova apenas que você é um neurótico incapaz de suportar suas próprias
emoções. Como o calmante artificial mais popular consiste em negar as realidades
perturbadoras, há muito tempo os estrategistas revolucionários e os engenheiros
sociais a seu serviço já aprenderam a usá-lo como instrumento de controle da opinião
pública. O truque é de um esquematismo espantoso: eles simplesmente adotam o
curso de ação mais ousado, estranho, inesperado e inverossímil, e ao mesmo tempo
estigmatizam como louco paranóico quem quer que diga que estão fazendo algo de
anormal. De cada dez cidadãos, nove caem no engodo. A insegurança mesma da
situação faz a maioria apegar-se a falsos símbolos convencionais de normalidade,
sufocando os fatos estranhos sob o peso dos lugares-comuns consagrados e assim
ajudando a tornar ilusoriamente secreto o que na verdade está à vista de todos.
Os exemplos de aplicação dessa estratégia desde o início do século XX são tantos,
que seu estudo bastaria para constituir uma disciplina científica independente. Vou aqui
citar apenas um, cuja magnitude contrasta com a escassez de interesse geral em
conhecê-lo.
Desde a década de 20, enquanto os regimes comunistas promoviam a mais brutal e
ostensiva perseguição aos cristãos nos seus territórios, os grandes estrategistas do
comunismo – numa gama que vai de Stálin a Antonio Gramsci – já haviam chegado à
conclusão de que, nas nações democráticas, o ataque frontal à Igreja não ia funcionar:
o que era preciso era infiltrar-se nela, corrompê-la e destruí-la por dentro, esvaziá-la de
todo conteúdo espiritual e usá-la como caixa de ressonância para as palavras-de-
ordem emanadas do comando revolucionário.
Todo mundo já ouviu falar disso. Não há quem não saiba que há comunistas na Igreja.
Mas quantos são eles? Quem são? Quais as suas formas de ação? Como identificá-
los, denunciá-los e expulsá-los? Será razoável imaginar que a substância letal injetada
no corpo da Igreja se reduza aos mais óbvios e barulhentos “padres de passeata”,
como os chamava Nelson Rodrigues, e que não haja por trás deles agentes de nível
incomparavelmente mais alto, agindo de maneiras mais discretas, camufladas e
decisivas? Aí, de súbito, cessa toda curiosidade. As perguntas mais naturais –
inevitáveis mesmo, para o fiel que se preocupe com a integridade da Igreja – começam
a parecer, de repente, inconveniências de mau gosto, sinais de doença mental,
manifestações de desrespeito à hierarquia eclesiástica. A pretexto de evitar o
escândalo, reprime-se a investigação do crime, semeando escândalos mil vezes
maiores no futuro.
Recentemente, Bella Dodd, ex-agente soviética que já denunciara a infiltração
comunista na Igreja em seu livro “The School of Darkness”, consentiu em dar ao
público, pela primeira vez, uma idéia mais exata das dimensões do fenômeno. Ela
disse que havia milhares de agentes encarregados da operação, cada um tratando de
colocar em seminários e outras instituições religiosas o maior número possível de
“adormecidos”, isto é, agentes sem nenhuma missão imediata, encarregados de
apenas permanecer dentro da Igreja, construindo identidades aparentes de católicos
fiéis, aguardando instruções que poderiam vir dentro de uma, duas ou três décadas.
Bella Dodd, sozinha, colocou na Igreja mais de mil e duzentos “adormecidos”. O total
dos agentes infiltrados só nas décadas de 30 e 40 dificilmente estará abaixo de cem
mil, sem contar os que vieram depois, quase que certamente em número maior. Muitos
desses só entraram em ação na época do Concílio Vaticano II. Outros continuam
subindo discretamente na hierarquia ou em organizações leigas, onde uma de suas
mais óbvias funções é apagar os sinais da sua própria presença e, sob os pretextos
mais santos, desestimular todo anticomunismo sistemático, boicotando os grupos e
organizações que insistam em continuar obedecendo à ordem de Pio XII, transmitida a
todos os católicos do mundo, para que combatessem o comunismo até com risco de
suas próprias vidas.
Mais nefasta do que a tagarelice dos notórios padres vermelhos é a ação
amortecedora, castradora, empreendida desde dentro e desde cima por prelados e
líderes leigos aparentemente respeitáveis, imunes a qualquer suspeita, cuja função
estratégica não é pregar o comunismo, mas simplesmente secar as fontes do
anticomunismo católico até que a Igreja se resuma, como no Brasil de hoje se resume,
à Igreja esquerdista militante e agresssiva de um lado, e de outro a Igreja apolítica,
omissa, silenciosa, manietada, debilitada e doente.
Muitos, para justificar o injustificável, alegam o primado do espiritual. Nossa missão,
dizem, é orar e buscar a santidade, não sair em campo de armas em punho. Mas a
hipocrisia desses indivíduos revela-se da maneira mais patente tão logo são testados:
se permanecem silenciosos e tímidos quando suas organizações e a Igreja como um
conjunto são difamadas e cobertas de injúrias pela esquerda, muito outra é sua reação
quando alguém os critica desde um ponto de vista cristão e denuncia sua omissão e
preguiça. Aí reagem com a fúria de mil demônios, desancando o infeliz como se fosse
um rebelde, um heresiarca, um dinamitador de sacristias.
Muitos dos que fazem isso, é claro, não são agentes infiltrados. São apenas covardes
genuínos, afetados da síndrome de simulação de normalidade que mencionei no início
deste artigo. Mas é impossível que estes, tímidos por natureza, entrem em combate
com tanta presteza sem ser incitados pelos primeiros. Simplesmente não é verossímil
que tanta omissão em face do comunismo, aliada a tanta virulência contra o
anticomunismo, não tenha nada de comunista nas fontes que a inspiram.
Brasil
A lição de um sonho
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 30 de dezembro de 2013
A moral do Brasil
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 17 de outubro de 2013
Se você quer entender e não tem medo de perceber em que tipo de ambiente mental
está metido nesse nosso Brasil, nada melhor do que estudar um pouco a Teoria do
Desenvolvimento Moral de Lawrence Kohlberg. Enunciada pela primeira vez em 1958 e
depois muito aperfeiçoada, ela mede o grau de consciência moral dos indivíduos
conforme os valores que motivam as suas ações, numa escala que vai do simples
reflexo de autopreservação natural até o sacrifício do ego ao primado dos valores
universais.
Kohlberg, que foi professor de psicologia na Faculdade de Educação em Harvard,
desenvolveu alguns testes para avaliar o desenvolvimento moral, mas os críticos
responderam que isso só media a interpretação que os indivíduos testados faziam de si
mesmos, não a sua motivação efetiva nas situações reais. Essa dificuldade pode ser
neutralizada se em vez de testes tomarmos como ponto de partida as condutas reais,
discernindo, por exclusão, as motivações que as determinaram.
Os graus admitidos por Kohlberg são seis. No mais baixo e primitivo, em que a conduta
humana faz fronteira com a dos animais, a motivação principal das ações é o medo do
castigo. É o estágio da “Obediência e Punição”. No segundo (“Individualismo e
Intercâmbio”), o indivíduo busca conscientemente a via mais eficaz para satisfazer a
seus próprios interesses e entende que às vezes a reciprocidade e a troca são
vantajosas.No terceiro (“Relações Interpessoais”), os interesses imediatos cedem lugar
ao desejo de captar simpatia, de ser aceito num grupo, de sentir que tem “amigos” e
distinguir-se dos estranhos, dos concorrentes e inimigos.
No quarto (“Manutenção da Ordem”), o indivíduo percebe que há uma ordem social
acima dos grupos e empenha-se em obedecer as leis, em cumprir suas obrigações. No
quinto (“Contrato Social e Direitos Individuais”), ele se torna sensível à diversidade de
opiniões e entende a ordem social não como imperativo mecânico, mas como um
acordo complexo necessário à convivência pacífica entre os divergentes.
No sexto e último (“Princípios Universais”), ele busca orientar sua conduta por valores
universais, mesmo quando estes entram em conflito com os seus interesses pessoais,
com a vontade dos vários grupos ou com a ordem social presente.
Essas seis motivações refletem três níveis de moralidade: os dois primeiros expressam
a “moralidade pré-convencional”; os dois intermediários, a “moralidade convencional”,
e os dois últimos, a “moralidade pós-convencional”.
Se não atentamos para os discursos, mas para as escolhas reais que as pessoas fa
zem na vida, não é preciso observar muito para notar que os indivíduos que nos
governam, bem como os seus porta-vozes na mídia e nas universidades, não passam
do terceiro estágio, o mais baixo da moralidade convencional, em que a identidade, a
coesão e a solidariedade interna do grupo prevalecem sobre a ordem social, as leis, os
direitos dos adversários e quaisquer valores universais que se possa conceber (e que
desde esse nível de consciência são mesmo inconcebíveis, embora nada impeça que
sua linguagem seja macaqueada como camuflagem dos desejos do grupo).
Duas condutas típicas atestam-no acima de qualquer dúvida possível. De um lado, a
mobilização instantânea e geral em favor dos condenados do Mensalão. O instinto de
autodefesa grupal predominou aí de maneira tão ostensiva e tão pública sobre as
exigências da lei e da ordem, que até pessoas identificadas ideologicamente ao partido
governante se sentiram escandalizadas diante dessa conduta.
De outro lado, não havendo nenhum movimento político “de direita” que se oponha ao
grupo dominante, este dirige seus ataques contra meros indivíduos e movimentos de
opinião sem a menor expressão política, fingindo e depois até sentindo ver neles uma
ameaça eleitoral ou o perigo de um golpe de Estado. Aí o instinto de autodefesa grupal
assume as dimensões de uma fantasia persecutória que se traduz na necessidade de
calar por todos os meios qualquer voz divergente, por mais débil e apolítica que seja.
Também não é preciso nenhum estudo especial para mostrar que essa conduta, normal
na adolescência, quando a solidariedade do grupo é uma etapa indispensável na
consolidação da identidade pessoal, não é de maneira alguma aceitável em cidadãos
adultos investidos de prestígio, autoridade e poder de mando. Aí ela passa a
caracterizar precisamente a associação mafiosa, a solidariedade no crime.
É evidente que, numa sociedade onde essa é a mentalidade do grupo dominante, os
níveis superiores de consciência moral (pós-convencionais) se tornam cada vez mais
abstratos e inapreensíveis, de modo que o máximo de moralidade que se concebe é o
quarto grau, o apego à lei e à ordem. Os indivíduos cuja conduta evidencia essa
motivação tornam-se então emblemas do que de mais alto e sublime uma sociedade
moralmente degradada pode imaginar, e são quase beatificados. O ministro Joaquim
Barbosa é o exemplo típico.
Os dois graus superiores da escala são exemplificados por um número tão reduzido
de pessoas, que já não têm nenhuma presença ou ação na sociedade e passam a
existir apenas em versão caricatural, como fornecedores de chavões para legitimar e
embelezar as condutas mais baixas.
A autopreservação paranooica do grupo dominante envolve-se com frequência na
linguagem dos “direitos humanos” (quinto grau), e qualquer imbecil que tenha lido a
Bíblia já sai usando a Palavra de Deus (sexto grau) como porrete para atemorizar os
estranhos e impor a hegemonia do grupo “fiel” sobre os “infiéis” e “hereges”.
Isso, e nada mais que isso, é a moralidade nacional.
Monopólio e choradeira
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 4 de setembro de 2013
Quando os comunistas da internet vociferam contra a mídia burguesa, é bom saber que
a mídia burguesa são eles mesmos atuando em dois níveis: dominam os grandes
jornais e canais de TV desde dentro para usá-los como veículos de desinformação e ao
mesmo tempo descem o porrete neles desde fora para dar mais credibilidade à
desinformação.
Isso é uma regra básica dos manuais de desinformátsiya. Desinformação só funciona
quando a mentira não vem da boca de um inimigo notório e sim de alguém de
confiança da vítima. Se você lê no Vermelho.org, no blog de Paulo Henrique Amorim ou
no Baixamiro Borges alguma grossa denúncia contra os Estados Unidos, contra a
Igreja, contra Israel, contra os militares ou contra os liberais e conservadores, pode
desconfiar que é propaganda esquerdista. Mas se lê a mesma coisa na Folha, no
Globo ou no Estadão, imagina que é informação idônea, imparcial, puro jornalismo.
Para que servem então o Vermelho.org, o Paulo Henrique Amorim, o Baixamiro Borges
e similares? Servem precisamente para isso. São a substância de contraste que dá
credibilidade à “grande mídia” quando esta, num estilo mais comedido, mente
igualzinho a eles.
Secundariamente, podem servir também para alimentar de bobagens estimulantes a
militância partidária. Para enganar o público maior, politicamente indefinido, é preciso
veículos com uma fama de “direitistas”, criada exatamente para esse fim.
Se você examinar caso por caso, verá que desde a década de 60 – em pleno regime
militar –, os altos cargos da nossa mídia são quase todos ocupados por militantes ou
simpatizantes da esquerda, que ao mesmo tempo, ou em fases alternadas da sua
carreira profissional, publicam semanários “nanicos” ou, hoje em dia, blogs
“alternativos”, dando à plateia ingênua a impressão de que são a arraia miúda em luta
contra a poderosa indústria de comunicações.
Isso é a essência mesma do trabalho de desinformação.
Os leitores em massa ignoram que o próprio modelo do jornalismo profissional
“moderno”, de corte americano, foi implantado no Brasil principalmente por comunistas,
que o modularam para que servisse aos seus próprios fins sem dar muito na vista.
Confiram na tese “Preparados, Leais e Disciplinados: os Jornalistas Comunistas e a
Adaptação do Modelo de Jornalismo Americano no Brasil, de Afonso de Albuquerque e
Marco Antonio Roxo da Silva, da
UFF(http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1052-1.pdf).
Foi graças a essa operação que, por exemplo, os setenta milhões de vítimas do
comunismo chinês, quarenta milhões do comunismo soviético, dois milhões do
comunismo cambojano e cem mil do comunismo cubano praticamente desapareceram
dos nossos jornais e canais de TV, onde, ao contrário, sempre houve espaço e tempo
de sobra para umas dúzias de guerrilheiros mortos pelo regime militar. Deformar o
senso das proporções é essencial para dessensibilizar a população ante os crimes dos
comunistas e hipersensibilizá-la para tudo quanto seja nocivo ao comunismo.
Para dar somente um exemplo, basta notar que nunca a presença maciça de
comunistas em postos de destaque nas redações foi denunciada como sinal de viés
ideológico, mesmo quando se tratasse de aparatchniks treinados em Moscou e
Pequim.
Ninguém jamais se queixou de que Otávio Brandão, Nabor Caires de Brito, Mário
Augusto Jacobskind, Mauro Santayana, Cláudio Abramo, Élio Gaspari, Roberto Múller,
João Sant’Anna, Alcelmo Góis, Fernando Morais, Paulo Moreira Leite e mais uma
infinidade – alguns até líderes do PCB, do PC do B ou de organizações trotsquistas;
outros, notórios empregados de governos comunistas – fossem diretores de jornais ou
tivessem colunas de página inteira à sua disposição.
Basta, entretanto, que algum jornalista sem qualquer vínculo partidário, apenas não
muito simpático pessoalmente à esquerda, assuma um cargo de editor ou ganhe um
espacinho em qualquer jornal, revista ou programa de TV, e imediatamente chovem
protestos de todo lado.
Os casos de Augusto Nunes e Reinaldo Azevedo são apenas os mais recentes. Minha
estréia em O Globo foi imediatamente respondida por uma campanha para que minha
coluna fosse suprimida.
Milhares de blogs comunistas financiados por ONGs internacionais pululam na internet
sem que ninguém ache estranho, mas basta aparecer um blog “de direita”, mesmo sem
qualquer vínculo organizacional e subsidiado apenas com o parco dinheiro de seus
editores, e imediatamente a coisa é alardeada como um escândalo intolerável, um
crime de lesa-pátria.
O leitor comum não tem a menor ideia de como essas coisas funcionam, nem das
dimensões do poder esquerdista que transforma a mídia nacional praticamente inteira
em órgão de desinformação comunista (sem isso teria sido impossível esconder por
dezesseis anos a existência do Foro de São Paulo ou continuar escondendo até hoje a
denúncia do ex-agente soviético Ladislav Bittman sobre jornalistas brasileiros pagos
pela KGB). E os profissionais que sabem de tudo não têm, é claro, o menor interesse
em dar o serviço.
Com toda a evidência, os comunistas da nossa mídia acham que a coisa mais normal
e natural do mundo é possuir o monopólio do espaço jornalístico no Brasil – e ainda
choramingar como se fossem uns coitadinhos desprovidos do direito à palavra.
Essa impressão postiça de naturalidade já se alastrou para todas as classes letradas,
infectando o “senso comum” ao ponto de ninguém mais enxergar o monopólio como
tal, e mencioná-lo é candidatar-se ao rótulo de “teórico da conspiração”. A mentira
alcança a perfeição quando impugná-la se torna uma doença mental.
A primeira vítima
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 19 de junho de 2013
Autoridades
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 25 de abril de 2013
Quanto mais tempo fico nos Estados Unidos, mais nítida se torna, aos meus olhos,
uma diferença crucial entre o Brasil de hoje e as nações civilizadas: é a completa
ausência, no nosso país, de qualquer debate científico ou filosófico, pelo menos audível
em público, ou mesmo de qualquer consciência, entre as classes alfabetizadas, de que
esses debates existem em algum lugar do planeta.
Só esse fenômeno, por si, já basta para mostrar que algo aí deu muito errado, que a
vida dos brasileiros está indo numa direção francamente regressiva, incompatível com
o estado da nossa economia e com a pretensão nacional de representar algum papel
significativo no cenário do mundo.
Nos EUA e na Europa, não há ideia, não há doutrina, não há crença estabelecida, por
mais oficial e majoritária que seja, que não sofra contestações e desafios o tempo todo,
que não se veja obrigada a buscar argumentos cada vez mais elaborados para
defender um prestígio que assim não arrisca jamais congelar-se em ídolo tribal, em
tabu sacrossanto.
Qualquer professor universitário ou intelectual público que, desafiado, se feche em
copas e fuja à discussão sob o pretexto de que suas crenças são lindas demais para
rebaixar-se a um confronto com a ideia adversária, cai imediatamente para o segundo
escalão, quando não se torna objeto de chacota. Os próprios correligionários do prof.
Richard Dawkins arrancaram-lhe o couro quando ele, afetando inatingível superioridade
olímpica, se esquivou a um debate com o filósofo William Lane Craig.
Nem mesmo a classe jornalística, tão burra e presunçosa em Nova York como em toda
parte, confunde o consenso escolar – aquele corpo de teorias e crenças que o apoio
majoritário consagrou como aptas para ser transmitidas às crianças – com a vida nas
altas esferas intelectuais onde tudo, mesmo o aparentemente óbvio, pode e deve ser
desafiado, contestado, forçado a buscar novos e cada vez mais sólidos fundamentos.
No Brasil só existe o consenso escolar. Ele impera sobre as cabeças dos intelectuais
com a mesma autoridade indiscutível com que se impõe, nas salas de aula, aos
trêmulos e indefesos corações infantis.
Basta você questionar de leve algum item do Credo ginasiano, e as reações indignadas
mostram o escândalo, o horror que você despertou nas almas virgens, jamais tocadas
antes pelas dúvidas que, em outros países, pululam por toda parte e alimentam
discussões sem fim.
Especialmente os ídolos da ciência popular, Newton, Galileu, Darwin ou Einstein,
adquiriram no Brasil o estatuto de divindades intocáveis, e não só entre meninos de
ginásio, mas entre professores universitários, cientistas e formadores de opinião.
Critique um desses habitantes do Olimpo, e o tom das respostas lhe mostrará, por a +
b, que neste país até mesmo banalidades arqui-sabidas dos historiadores por toda
parte são novidades escandalosas e provas incontestáveis de que você é um louco.
Quando mencionei, por exemplo, as consequências nefastas que o mecanicismo
newtoniano espalhou na cultura europeia – fato que já é de domínio público pelo
menos desde o século 19 –, só não me xingaram a mãe porque não acreditavam que
alguém capaz de atentar contra a memória do autor dos Princípios Matemáticos da
Filosofia Natural pudesse jamais ter tido mãe.
Quando escrevi que o próprio Charles Darwin fora o inventor do design inteligente, hoje
tão abominado pelos evolucionistas – coisa que não pode ser ignorada por ninguém
que tenha lido algo mais que as orelhas de A Origem das Espécies –, fui imediatamente
rotulado como fanático religioso indigno de ocupar um espaço na mídia.
Quando expliquei que sem o conhecimento do simbolismo astrológico é impossível
compreender direito as concepções cosmológicas de Sto. Tomás de Aquino ou a
estética das catedrais góticas – o que é a obviedade das obviedades para quem haja
estudado o assunto –, passei a ser chamado pejorativamente de “astrólogo” pelos srs.
Rodrigo Constantino e Janer Cristaldo, que, como ninguém ignora, são autoridades
insignes em História medieval.
Adistância, em suma, entre o que se discute desses assuntos na Europa e nos EUA e o
que se sabe a respeito no Brasil já se ampliou de tal modo, que ter algum
conhecimento nessas áreas se tornou realmente perigoso: a ignorância completa e
radical é hoje a única fonte de credibilidade, o único depósito de premissas onde o
opinador pode buscar argumentos com a certeza de que soarão razoáveis ante uma
plateia ainda mais ignorante que ele.
Tendo violado essa regra, tornei-me o único comentarista brasileiro de mídia ao qual
incumbe, sempre e sistematicamente, o ônus da prova – com o detalhe de que, quando
termino de provar tudo direitinho, os fulanos mudam de assunto e encontram outro
motivo qualquer para continuar achando ruim.
Às vezes chegam, nisso, a requintes de imbecilidade jamais alcançados antes no
universo. Indignados de que, num artigo aliás excelente sobre Otto Maria Carpeaux, o
prof. Maurício Tuffani citasse de passagem o meu nome, alguns leitores ofereceram a
singela sugestão de que eu fosse excluído para sempre de toda mídia. O autor do
artigo, então, com a maior paciência, explicou que no caso isso não era possível, por
ter sido eu mesmo o editor de um dos livros de Carpeaux ali mencionados.
Com toda a evidência, os remetentes prescindiam de ter lido o livro para decidir quem
podia ou não podia ser citado num comentário a respeito. Era o argumentum ad
ignorantiam elevado às alturas de um mandamento divino: quanto menos você sabe,
maior a sua autoridade na matéria.
Ideólogo é a mãe
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 20 de março de 2013
Como sempre
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 8 de outubro de 2012
Vivendo num país onde, malgrado a corrupção nas altas esferas, o empenho diário de
evitar o mal e fazer a coisa certa ainda é uma realidade vivente no seio de tantas
famílias e uma referência incontornável até mesmo para a mídia mais mentirosa e
vendida, a degradação dos padrões de julgamento moral no Brasil surge aos meus
olhos com uma clareza estonteante. Notem bem: eu não disse padrões de conduta,
disse padrões de julgamento. A prática do crime aí tornou-se tão normal e corriqueira
que ela própria determina os critérios com que será julgada, nivelando tudo por baixo.
O bem, o heroísmo e a santidade desapareceram do repertório das possibilidades
humanas, até mesmo imaginárias, de tal modo que as virtudes mais banais e
obrigatórias se tornaram a medida máxima de aferição das ações, e o simples fato de
um funcionário cumprir o regulamento basta para elevá-lo ao céu dos modelos divinos.
No julgamento do Mensalão, todo mundo esperava que os juízes agissem da maneira
usual, isto é, se deixassem vender. Como não fizeram isso, como não fizeram vista
grossa àquilo que até um cego podia enxergar com nitidez cristalina, foram
instantaneamente transfigurados nas encarnações mais sublimes das virtudes pátrias,
recebendo louvores que nunca foram concedidos a José Bonifácio de Andrada e Silva,
ao Duque de Caxias ou ao Beato José de Anchieta.
Não vai nisso, é claro, qualquer crítica ou tentativa de depreciar o desempenho
de Suas Excelências. Quem está julgando errado não são os juízes, é a sociedade
brasileira, que elevou a vigarice e o crime a símbolos convencionais da normalidade e
já se deslumbra até o ponto do desvanescimento e do orgasmo quando alguém
simplesmente se abstém de praticar a esperada sacanagem.
Nessa escala diminuída, não é de espantar que a própria extensão dos delitos
cometidos e punidos tenha sido reduzida à sua medida mínima, como se fossem meros
pecados individuais e não a expressão direta, racional e inevitável da estratégia política
global que dirige o curso dos acontecimentos neste país desde há uma década.
Nenhum dos réus do processo agiu por conta própria, nem no seu interesse
pessoal exclusivo. Todos tinham a consciência clara – e por isso mesmo, a seus
próprios olhos, totalmente limpa – de trabalhar para a glória e o poder do seu partido,
para a consolidação da hegemonia esquerdista, que se colocava acima das leis não
por um desvio acidental, mas com o propósito deliberado de destruir o sistema vigente
e legitimar, pelo hábito repetido, o império soberano de uma nova autoridade: o “poder
onipresente e invisível” de que falava Antonio Gramsci.
Esquecer a dimensão estratégica desses crimes, usando as culpas individuais como
cortina de fumaça para encobrir o plano global que os gerou, não é de maneira alguma
fazer justiça: é inocentar o grande culpado, punindo em vez dele os seus
colaboradores. O fato é que nem os juízes, nem os analistas de mídia, nem os
formadores de opinião em geral conhecem, seja os planos estratégicos da esquerda
brasileira como um todo, seja, mais ainda, a tradição marxista que os inspira e
determina. Todos julgam, assim, desde uma visão minimalista onde os detalhes
aparecem soltos e o projeto maior permanece incólume por trás do sacrifício de seus
estafetas e office boys. Quem quer que tenha estudado um pouco de estratégia
comunista – o que não é o caso de nenhum desses ilustres opinadores – sabe que
toda a conduta do partido revolucionário se orienta com o propósito de usar
temporariamente o direito burguês como instrumento não só para impor em nome dele
um direito novo e antagônico, mas de apressar a desaparição de todo o direito,
substituindo-o pelos decretos onipotentes da elite iluminada que comanda o processo.
Onde quer que um partido imbuído da ambição revolucionária de mudar a sociedade
de alto a baixo ascenda ao poder, usando para isso os pretextos mais respeitáveis da
moralidade convencional – como o fez o PT ao longo da sua fulgurante carreira de
denunciador da corrupção alheia –, a imoralidade e o crime se imporão logo em
seguida, não como desvios e aberrações, mas como instrumentos preferenciais para
demolir o senso estabelecido da moral e da justiça e, na subseqüente confusão geral
das consciências, impor um novo padrão de julgamento, onde a vontade revolucionária
é o critério supremo e único do bem e da verdade.
Tudo isso está ocorrendo bem diante dos olhos sonsos e cegos de uma opinião pública
que não apenas se contenta, mas entra em êxtase quando o partido criminoso entrega
à justiça seus agentes menores para preservar-se politicamente, limpando-se na sua
própria sujeira, como sempre.
Comunismo
O ovo e o pinto
Olavo de Carvalho
Folha de São Paulo, 3 de agosto de 2014
Assassinos da inteligência
Olavo de Carvalho
Folha de São Paulo, 17 de junho de 2014
Pensar, até um burro pensa. O que distingue a espécie humana é sua capacidade de
confrontar o pensado com o conjunto dos conhecimentos disponíveis e regular o curso
do pensamento pela escala de credibilidade que vai do possível ao verossímil, ao
provável ou razoável e, em certos casos, à certeza.
Aristóteles já ensinava isso.
Infelizmente, no Brasil, raros opinadores têm o senso dessas distinções. A maioria
imagina que para pensar com proveito basta um pouco de lógica formal e algum
domínio dos chavões mais caros ao coraçãozinho da plateia.
Em debate recente, o professor Igor Fuser, uma estrela do “cast” universitário
esquerdista, assegurou que “não se pode julgar um regime pelo número das suas
vítimas”. Dez minutos depois, desmentia-se fragorosamente ao alegar que a ditadura
brasileira “perseguiu milhares de pessoas” e que o número de cristãos assassinados no
mundo está muito abaixo dos 100 mil por ano –subentendendo, portanto, que a
ditadura foi um horror e que os matadores de cristãos nos países islâmicos e
comunistas não são tão maus quanto se diz.
Mas o pior não é isso. Mesmo sem esses autodesmentidos grotescos, a afirmativa
geral que os antecedeu –a mais comumente alegada por devotos comunistas
empenhados em salvar a honra dos governos mais assassinos que o mundo já
conheceu– é perfeitamente desprovida de sentido. Para perceber isso basta medi-la
com a escala de credibilidade.
Em política, admite-se universalmente, as certezas absolutas são raras ou inexistentes.
O meramente possível reflete a liberdade da fantasia, o verossímil é apenas questão
de opinião, gosto ou preferência. Não servem como argumentos. Resta a probabilidade
razoável. Quem quer que argumente seriamente em política procura nos convencer de
que a razão, com altíssima probabilidade, está do seu lado.
Acontece, para a tristeza dos tagarelas, que todo argumento de probabilidade depende
eminentemente do elemento quantitativo que o fundamenta explícita ou implicitamente.
Se digo que o candidato X vai vencer as próximas eleições com uma probabilidade de
zero a cem por cento, não disse absolutamente nada. Tanto vale dizer que um governo
é igualmente malvado se não matou ninguém ou se matou milhões de pessoas.
Quando um comunista esperneia contra o que chama de “contabilidade macabra”, tem,
é claro, uma boa razão para fazê-lo. Contados os cadáveres, é impossível negar que o
comunismo foi o flagelo mais mortífero que já se abateu sobre a humanidade. Diante
disso, só resta apegar-se ao subterfúgio insano de que o macabro não reside em fazer
cadáveres e sim em contá-los.
Somando à insanidade o fingimento, a proibição de contar tem de ser suspensa
quando se fala de regimes “de direita”, donde se conclui que os 400 terroristas mortos
no regime militar –a maioria deles de armas na mão– são um placar muito mais
hediondo e revoltante do que os 100 milhões de civis desarmados que os heróis do
comunismo assassinaram na URSS, na China, na Hungria, em Cuba etc.
O senso das quantidades e proporções é a exigência mais básica e incontornável não
só da conduta honesta, mas da racionalidade em geral. Dissolvendo-o pouco a pouco
na plateia, os fúseres da vida destroem não só a moralidade pública, mas as próprias
condições elementares do funcionamento normal da inteligência humana.
Se nas universidades brasileiras há uma quota de 40 a 50% de alunos analfabetos
funcionais, isso não se deve só a uma genérica “má qualidade do ensino”, mas ao fato
de que há décadas o discurso comunista e pró-comunista onipresente espalha, nas
mentes dos estudantes, doses maciças de estimulação contraditória e obstáculos
cognitivos estupefacientes
O comunismo real
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 13 de abril de 2014
O nariz do viking
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 12 de dezembro de 2013
Desculpem voltar ao assunto, mas a inépcia da classe universitária neste país é uma
fonte de inspiração inesgotável para este deslumbrado colunista. Há coisas que o gênio
mais excelso não conseguiria inventar, que não existem nem entre o céu e a terra nem
na nossa vã filosofia, mas que jorram da idiotice aos borbotões, num fluxo incessante
de criatividade que só encontra igual, mutatis mutandis, no primeiro capítulo do
Gênesis.
Leiam esta frase da nossa já conhecida profa. Luciana Ballestrin: “Mesmo os velhos e
os contemporâneos clássicos do liberalismo político moderado são capazes de aceitar
a tolerância, a diferença, a liberdade de expressão…”
O tom de superior condescendência sugere que a tolerância, o respeito à diferença etc.
são virtudes tão bem repartidas entre vários regimes políticos, que até mesmo os
liberais são capazes de praticá-las um pouquinho.
No mundo real, porém, ninguém ignora que essas virtudes foram inventadas pelos
liberais e só existem nos sistemas políticos que o liberalismo criou ou nos quais deixou
sua marca profunda. Elas são o liberalismo. Em todos os outros regimes, só o que se
vê é rigidez, intolerância, perseguição, encarceramento e matança dos divergentes.
Não podendo negar esse fato, mas odiando reconhecê-lo, a articulista da Carta Maior
apela ao expediente pueril de atenuá-lo mediante o uso do modo comparativo. Mas
comparações só funcionam quando há elementos a ser comparados, e no caso não há
nenhum.
No mundo moderno não há exemplos de tolerância e liberdade fora do liberalismo. Não
se trata portanto de uma comparação autêntica, mas de um fingimento, de uma
comparação postiça, absurda, produzida à força para fins puramente pejorativos.
Fingindo louvar um mérito, a professora o achincalha ao dividi-lo com quem não o tem,
deixando ao seu portador único e genuíno só um tiquinho, uma lasquinha da virtude
supostamente geral, como quem dissesse: “Até mesmo os ovíparos botam ovos.”
Para piorar um pouco mais as coisas, ela não reconhece essas virtudes políticas nem
mesmo em todos os liberais, mas só nos “moderados”. Fica subentendido que existem
liberais radicais que as negam. Mas a única facção radical que existe nas hostes
liberais é o libertarianismo, que em vez de negar a tolerância e a liberdade as amplia
até à demência. Se alguém entre os liberais aceita moderá-las em vista de outras
considerações, são precisamente… os moderados.
Vem mais: “Seria um tanto contraproducente esboçar nessas linhas argumentos e
razões que tentem comprovar que o Brasil não é governado por comunistas e que a
universidade brasileira não está intoxicada pelo marxismo.” Se ela dissesse que
esboçar esses argumentos é “desnecessário”, entenderíamos que, na sua opinião, são
pontos pacíficos, fatos notórios que nem é preciso provar.
É obviamente isso o que ela deseja que o leitor acredite. Mas, ao escolher a palavra
com que vai dizê-lo, ela se trai e diz o inverso. Reiterar a demonstração do óbvio pode
ser desnecessário, tedioso, supérfluo. “Contraproducente”, nunca: uma demonstração
é contraproducente quando, em vez de dar o resultado esperado, produz o seu oposto
e, no esforço de repetir a pretensa certeza adquirida, acaba por demoli-la. A professora
sabe que é precisamente isso o que aconteceria se ela tentasse provar a inexistência
da hegemonia marxista nas nossas universidades, pela simples razão de que essa
hegemonia é um fato.
Em tão constrangedora circunstância, ela tenta fazer o leitor engolir como verdade
notória e arquiprovada algo que ao mesmo tempo ela confessa não poder provar de
maneira alguma. Tentando ser esperta, só prova que é mesmo uma boboca. Numa das
tiras de Hagar, o Horrível, o robusto viking encontra seu amigo magrinho, cujo nome
esqueci, esmurrando vigorosamente o próprio nariz. “Que raio de coisa é essa?”,
pergunta o chefe. E o outro, todo orgulhoso: “Um guerreiro precisa vencer-se a si
mesmo.” A professora Ballestrin estudou nessa escola.
Completando: “Da mesma maneira estéril, argumentar que o eurocentrismo, o
colonialismo e o progresso moderno não são completamente afastados do marxismo e
que justamente por isso, ele encontra resistência nos movimentos decoloniais latino-
americanos.”
Não liguem para a palavra “decoloniais”: é o neologismo pedantíssimo com que alguns
intelectuais anticolonialistas de Nova York insinuam que ainda são colonizados,
coitadinhos. O que a professora está dizendo é que eles se irritam com os parágrafos
em que Marx reconhece o papel positivo do colonialismo europeu no desenvolvimento
das forças produtivas.
Contudo, ver nessa ranhetice de detalhe uma “resistência ao marxismo” é como dizer
que Lênin “resistiu ao marxismo” quando achou que podia fazer a revolução com meia
dúzia de intelectuais em vez de esperar pelo proletariado.
Não faz o menor sentido ressaltar a “importância das várias correntes do marxismo, do
vulgar e ortodoxo para o crítico e arejado” (sic), e depois imaginar que as diferenças
que as separam sejam “resistências ao marxismo”. Todas essas divergências e uma
infinidade de outras brotam dentro de um marco conceitual que permanece
estritamente marxista.
Cada vez que os comunistas divergem uns dos outros, isso é explicado, dentro do
movimento, como uma prova da sua pujança e riqueza de perspectivas, e, fora, como
uma prova de que o comunismo acabou e de que preocupar-se com ele é “paranoia”.
A professora Ballestrin pensa que pode fazer as duas coisas de uma vez. Por isso
mesmo, acaba não fazendo nem uma, nem a outra.
Bobinha
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 1 de dezembro de 2013
Na Carta Maior desta semana, uma professora de ciências políticas da Universidade
Federal de Pelotas, Luciana Ballestrin, adverte que enxergar alguma
hegemonia comunista nas instituições superiores de ensino é “paranóia” e insinua que,
ao contrário, o verdadeiro perigo que se esboça no horizonte nacional é o do fascismo.
A prova que ela oferece desse deslumbrante diagnóstico é que três pessoas
reclamaram contra o comunismo universitário. Firmemente disposta a dizer qualquer
coisa contra essas três minguadas vozes, ela as acusa, ao mesmo tempo, de provir de
“um gueto” e de obter “grande repercussão na mídia”.
É notório que, entre os estudantes universitários brasileiros, quatro em cada
dez são analfabetos funcionais. Temo que entre os professores da área de humanas
essa proporção seja de nove para dez. A profa. Ballestrin é mais um exemplo para a
minha coleção. Ela fracassa tão miseravelmente em compreender o significado das
palavras que emprega, que no seu caso o adjetivo “funcional” é quase um eufemismo.
Desde logo, se os direitistas vivem num “gueto”, quem os colocou lá?
Enclausuraram-se por vontade própria ou foram expelidos da mídia, das cátedras e de
todos os ambientes de cultura superior pela política avassaladora de “ocupação de
espaços” que a esquerda aí pratica desde há mais de meio século? Um gueto, por
definição, não é um hotel onde a minoria se hospede voluntariamente para desfrutar os
prazeres de uma vida sombria, fechada e opressiva, sem perspectivas de participação
na sociedade maior. É uma criação da maioria dominante, um instrumento de exclusão
usado para neutralizar ou eliminar as presenças inconvenientes. A maior prova de que
o esquerdismo domina o espaço é que a direita vive num gueto. Ao acusá-la
precisamente disso, essa porta-voz do esquerdismo oficial só dá testemunho contra si
própria.
Com igual destreza ela maneja a segunda acusação: a de que as três vozes
obtiveram “grande repercussão na mídia”. Que grande repercussão? Alguma delas foi
manchete de um jornal, foi alardeada no horário nobre da Globo, deu ocasião a uma
série infindável de reportagens, congressos de intelectuais e debates no Parlamento
como acontece com qualquer denúncia de “crimes da ditadura” ocorridos cinqüenta
anos atrás? Nada disso. Foram apenas noticiadas aqui e ali, discretamente, num tom
de desprezo e chacota. Mas, para a profa. Ballestrin, mesmo isso já é excessivo. Ela
nem percebe que, ao protestar que três direitistas saíram do gueto, ela os está
mandando de volta para lá.
Mas onde ela capricha ao máximo em não entender nada é ao enxergar uma
“paranóia” em três denúncias isoladas, só notáveis pela raridade, e nenhuma nos gritos
de alarma contra a “ameaça fascista” que pululam aos milhares, com estridência
obscena, em publicações e salas de aula por todo o país. Na própriaCarta Maior o
toque de alerta antifascista ressoa diariamente. Qualquer observador isento nota a
desproporção entre a iminência objetiva desses dois perigos e a intensidade do temor
real ou fingido que despertam. Apontar o avanço comunista é apenas registrar as
vitórias que centenas de organizações comunistas alardeiam e celebram nas
assembléias do Foro de São Paulo (prontas, decerto, a negá-las em público quando
lhes convém). Mas e o fascismo? Onde estão as organizações que o representam, os
partidos que buscam elevá-lo ao poder, as verbas bilionárias que o sustentam, a
militância adestrada para impô-lo a um povo inerme, os milhares de livros que infectam
com o vírus fascista as prateleiras das livrarias e as bibliotecas das universidades?
Nada disso existe. Nada, absolutamente nada. Tanto não existe, que, para fingir que
existe, é preciso até mesmo chamar de fascistas as massas de agitadores comunistas
pagos pelo governo para espalhar o terror nas ruas e forçar a transição para o
socialismo explícito e descarado.
A inversão das proporções é, decerto, um dos traços mais típicos e constantes
da mentalidade revolucionária, mas nem todos a ostentam com a cândida desenvoltura
dessa mulherzinha boba.
Saber qual orientação ideológica predomina em determinado ambiente social não
deveria ser muito difícil para uma “cientista política”, especialmente quando esse
ambiente é o dela própria – o seu departamento universitário. Ela poderia perguntar,
por exemplo, quantos de seus colegas votam na esquerda, quantos na direita. Ou
poderia, com um pouco mais de esforço, averiguar a linha ideológica majoritária dos
autores cuja leitura eles recomendam a seus alunos. Poderia até, se quisesse, fazer
inspeção semelhante em outros departamentos de ciências humanas pelo Brasil a fora,
para verificar se as várias correntes de pensamento estão aí representadas
equitativamente ou se uma delas predomina até o ponto do monopolismo absoluto.
Tudo isso, no entanto, para a profa. Ballestrin, é esforço excessivo, cruel e
desumano. Tudo o que se pode exigir dela é que raciocine pelo método histérico da
auto-impregnação auditiva. Eis como funciona. Nos seus anos de estudante, você faz
um esforço danado para macaquear o discurso dos seus professores. Ouve, presta
atenção e imita cada
de linguagem, cada cacoete, cada chavão. Quando por fim consegue falar como eles,
você ouve o que você próprio diz e, orgulhoso de tamanha realização, acredita que é
tudo verdade. Então está maduro para lecionar e para escrever artigos na Carta Maior.
Monopólio e choradeira
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 4 de setembro de 2013
Quando os comunistas da internet vociferam contra a mídia burguesa, é bom saber que
a mídia burguesa são eles mesmos atuando em dois níveis: dominam os grandes
jornais e canais de TV desde dentro para usá-los como veículos de desinformação e ao
mesmo tempo descem o porrete neles desde fora para dar mais credibilidade à
desinformação.
Isso é uma regra básica dos manuais de desinformátsiya. Desinformação só funciona
quando a mentira não vem da boca de um inimigo notório e sim de alguém de
confiança da vítima. Se você lê no Vermelho.org, no blog de Paulo Henrique Amorim ou
no Baixamiro Borges alguma grossa denúncia contra os Estados Unidos, contra a
Igreja, contra Israel, contra os militares ou contra os liberais e conservadores, pode
desconfiar que é propaganda esquerdista. Mas se lê a mesma coisa na Folha, no
Globo ou no Estadão, imagina que é informação idônea, imparcial, puro jornalismo.
Para que servem então o Vermelho.org, o Paulo Henrique Amorim, o Baixamiro Borges
e similares? Servem precisamente para isso. São a substância de contraste que dá
credibilidade à “grande mídia” quando esta, num estilo mais comedido, mente
igualzinho a eles.
Secundariamente, podem servir também para alimentar de bobagens estimulantes a
militância partidária. Para enganar o público maior, politicamente indefinido, é preciso
veículos com uma fama de “direitistas”, criada exatamente para esse fim.
Se você examinar caso por caso, verá que desde a década de 60 – em pleno regime
militar –, os altos cargos da nossa mídia são quase todos ocupados por militantes ou
simpatizantes da esquerda, que ao mesmo tempo, ou em fases alternadas da sua
carreira profissional, publicam semanários “nanicos” ou, hoje em dia, blogs
“alternativos”, dando à plateia ingênua a impressão de que são a arraia miúda em luta
contra a poderosa indústria de comunicações.
Isso é a essência mesma do trabalho de desinformação.
Os leitores em massa ignoram que o próprio modelo do jornalismo profissional
“moderno”, de corte americano, foi implantado no Brasil principalmente por comunistas,
que o modularam para que servisse aos seus próprios fins sem dar muito na vista.
Confiram na tese “Preparados, Leais e Disciplinados: os Jornalistas Comunistas e a
Adaptação do Modelo de Jornalismo Americano no Brasil, de Afonso de Albuquerque e
Marco Antonio Roxo da Silva, da
UFF(http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1052-1.pdf).
Foi graças a essa operação que, por exemplo, os setenta milhões de vítimas do
comunismo chinês, quarenta milhões do comunismo soviético, dois milhões do
comunismo cambojano e cem mil do comunismo cubano praticamente desapareceram
dos nossos jornais e canais de TV, onde, ao contrário, sempre houve espaço e tempo
de sobra para umas dúzias de guerrilheiros mortos pelo regime militar. Deformar o
senso das proporções é essencial para dessensibilizar a população ante os crimes dos
comunistas e hipersensibilizá-la para tudo quanto seja nocivo ao comunismo.
Para dar somente um exemplo, basta notar que nunca a presença maciça de
comunistas em postos de destaque nas redações foi denunciada como sinal de viés
ideológico, mesmo quando se tratasse de aparatchniks treinados em Moscou e
Pequim.
Ninguém jamais se queixou de que Otávio Brandão, Nabor Caires de Brito, Mário
Augusto Jacobskind, Mauro Santayana, Cláudio Abramo, Élio Gaspari, Roberto Múller,
João Sant’Anna, Alcelmo Góis, Fernando Morais, Paulo Moreira Leite e mais uma
infinidade – alguns até líderes do PCB, do PC do B ou de organizações trotsquistas;
outros, notórios empregados de governos comunistas – fossem diretores de jornais ou
tivessem colunas de página inteira à sua disposição.
Basta, entretanto, que algum jornalista sem qualquer vínculo partidário, apenas não
muito simpático pessoalmente à esquerda, assuma um cargo de editor ou ganhe um
espacinho em qualquer jornal, revista ou programa de TV, e imediatamente chovem
protestos de todo lado.
Os casos de Augusto Nunes e Reinaldo Azevedo são apenas os mais recentes. Minha
estréia em O Globo foi imediatamente respondida por uma campanha para que minha
coluna fosse suprimida.
Milhares de blogs comunistas financiados por ONGs internacionais pululam na internet
sem que ninguém ache estranho, mas basta aparecer um blog “de direita”, mesmo sem
qualquer vínculo organizacional e subsidiado apenas com o parco dinheiro de seus
editores, e imediatamente a coisa é alardeada como um escândalo intolerável, um
crime de lesa-pátria.
O leitor comum não tem a menor ideia de como essas coisas funcionam, nem das
dimensões do poder esquerdista que transforma a mídia nacional praticamente inteira
em órgão de desinformação comunista (sem isso teria sido impossível esconder por
dezesseis anos a existência do Foro de São Paulo ou continuar escondendo até hoje a
denúncia do ex-agente soviético Ladislav Bittman sobre jornalistas brasileiros pagos
pela KGB). E os profissionais que sabem de tudo não têm, é claro, o menor interesse
em dar o serviço.
Com toda a evidência, os comunistas da nossa mídia acham que a coisa mais normal
e natural do mundo é possuir o monopólio do espaço jornalístico no Brasil – e ainda
choramingar como se fossem uns coitadinhos desprovidos do direito à palavra.
Essa impressão postiça de naturalidade já se alastrou para todas as classes letradas,
infectando o “senso comum” ao ponto de ninguém mais enxergar o monopólio como
tal, e mencioná-lo é candidatar-se ao rótulo de “teórico da conspiração”. A mentira
alcança a perfeição quando impugná-la se torna uma doença mental.
Respostas infalíveis
Olavo de Carvalho
Em 2002, tivemos uma disputa presidencial entre quatro candidatos que em uníssono
alardeavam a condição de esquerdistas como o seu mais elevado título de glória. Tão perfeita
homogeneidade ideológica, que nem mesmo os militares tinham ousado impor ao cenário
político nacional, só se vira, antes, nas eleições soviéticas ou chinesas, mas a “grande mídia”
inteira fez questão de abafar a estranheza do fenômeno e, com aquela mistura de cinismo e
estupidez genuína que tão bem a caracteriza, celebrou o pleito como uma apoteose da
democracia.
Em 2006, o candidato tido como de direita por seu adversário rejeitava esse rótulo e, provando-
se bom menino, evitava qualquer demonstração de anti-esquerdismo, por tímida que fosse. O
simples fato de que ele tampouco se declarasse esquerdista foi aceito universalmente como
prova cabal de “pluralismo”. Quod erat demonstrandum.
Se a administração estatal logrou controlar a economia ao ponto de emitir notas fiscais antes
que algum comerciante tenha a ousadia de fazê-lo, o aparato político-ideológico da esquerda
conseguiu dominar tão bem o universo mental da nacionalidade que já ninguém, dentro do
território pátrio, pode desviar-se um só milímetro da semântica oficial, ou ao menos não pode
fazê-lo sem o sentimento constrangedor de ter cometido uma gafe imperdoável, talvez um
crime hediondo.
Para maior felicidade geral, o fato de que esse estado de coisas coincida, no tempo, com a
prosperidade dos grandes grupos econômicos que têm negócios com o governo é festejado
como prova de sucesso do capitalismo nacional, embora, na ciência econômica e no são
entendimento humano, ele defina precisamente o socialismo. Mas os brasileiros já se
habituaram tão confortavelmente a chamar as coisas pelos nomes inversos que já nem reparam
nesse detalhe. Por exemplo: decorridos vinte anos da fundação do Foro de São Paulo, o fato de
que esse monstrengo domine uma dúzia de países e ocupe a presidência da OEA é evidência
irrefutável de que ele é apenas um bando de velhinhos saudosistas, sem força ou
periculosidade que mereçam atenção. Experimente lançar dúvida sobre essa certeza augusta
num encontro de empresários, e agüente, se puder, os olhares de desprezo.
Nada, nenhuma demonstração lógica, evidência factual ou desgraça espetacular – nem mesmo
a tragédia rotineira dos cinqüenta mil brasileiros assassinados por ano – parece capaz de
despertar as nossas classes rechonchudas do seu otimismo beócio, sustentado nos quatro
pilares da ortodoxia elegante, quatro fórmulas infalíveis que a tudo respondem como se
tivessem saído fresquinhas da oficina literária de Bouvard e Pécuchet:
1. “Lula mudou.”
2. “O comunismo acabou.”
democracia
Recordações inúteis
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 7 de março de 2012
Uma fraqueza crônica do pensamento liberal é que, em sua resistência obstinada e não
raro heróica ao crescimento do poder estatal, acaba por fazer vista grossa ao fato de
que nem sempre os movimentos revolucionários e ditatoriais concentram o
poder no Estado, mas às vezes fora dele. Na verdade, nenhum movimento poderia se
apossar do Estado se primeiro não se tornasse mais poderoso que ele, criando meios
de ação capazes de neutralizar e sobrepor-se a qualquer interferência estatal adversa,
bem como, é claro, de manobrar o Estado desde fora e utilizá-lo para seus próprios
fins. Qualquer principiante no estudo do leninismo sabe disso.
Que a esquerda petista e pró-petista estava destinada a dominar por completo o
Estado brasileiro sem encontrar a mais mínima resistência, é coisa que para mim já
estava clara pelo menos desde 1993, quando as famosas CPIs mostraram ser o nosso
Parlamento nada mais que um bichinho dócil às injunções da grande mídia, alimentada
e manobrada por sua vez pelo onipresente e onissapiente serviço de informações do
PT. Foi naquele ano que publiquei A Nova Era e a Revolução Cultural, dando ciência –
a quem não desejava ciência nenhuma, por achar que já possuia todas – de que a
petização integral do Brasil era apenas questão de tempo. Mal havia então, entre os
liberais, quem imaginasse sequer que o PT pudesse vir a ter alguma chance de eleger
um presidente da República. E todos me olhavam como a um egresso do Pinel quando
eu lhes dizia que, quando isso viesse a acontecer, como fatalmente aconteceria, seria
numa ocasião em que o Estado já estivesse completamente dominado por dentro e por
fora, a conquista do governo federal nada mais constituindo que a oficialização
derradeira de um fato longamente consumado.
Enquanto isso, a intelectualidade liberal gastava todos os seus neurônios no empenho
idealístico de defender no plano doutrinário a economia de mercado e a liberdade
democrática, duas coisas que a esquerda nem pensaria em atacar muito seriamente
naquele momento, já que precisava de ambas para poder parasitá-las e continuar
crescendo até ficar forte o bastante para subjugá-las, deformá-las e, no devido tempo
(que só agora está chegando) extingui-las.
Havia até quem celebrasse a proliferação das ONGs como um progresso notável da
democracia liberal, na medida em que, consagrando as vias não-oficiais de ação social
e política, fortalecia a sociedade civil contra as pretensões avassaladoras do
gigantismo estatal.
Em vão advertia eu a essas criaturas que a “sociedade civil” era o terreno de escolha
para a penetração das forças revolucionárias, decididas a só se lançar à conquista do
poder de governo quando estivessem seguras de controlar, por vias não-oficiais, todos
os meios possíveis de modelagem da opinião pública, assim como todos os canais de
financiamento estatal e privado de uma multidão de empreendimentos revolucionários
maiores e menores, setorizados e discretos o bastante para que seu efeito de conjunto
simulasse uma transformação espontânea da mentalidade popular. A própria
disseminação do termo, insistia este insano colunista, refletia a influência crescente e
anônima do pensamento de Antonio Gramsci, naquela época já o autor mais estudado
e mais citado em todas as faculdades de letras e de ciências humanas no Brasil, só
ignorado por aqueles que mais interesse deveriam ter em defender-se da revolução
gramscista.
O primeiro sinal de que alguém havia me prestado alguma atenção não veio senão
decorrida quase uma década, e não veio dos liberais. Um artigo memorável do general
José Fábrega, publicado em jornal de pequena circulação, mostrou que entre os
militares havia ainda alguma inteligência desperta, o que veio a se comprovar nos anos
seguintes com os dois livros espetaculares, tecnicamente perfeitos, do general Sérgio
Augusto de Avelar Coutinho, A Revolução Gramscista no Ocidente (Rio, Estandarte,
2002) e Cadernos da Liberdade (Belo Horizonte, Grupo Inconfidência, 2004),
infelizmente publicados tarde demais para poder inspirar qualquer ação eficaz contra o
projeto de controle hegemônico da sociedade brasileira, àquela altura já praticamente
vitorioso. O general Coutinho faleceu em 27 de dezembro de 2011
(v. http://www.forte.jor.br/tag/general-sergio-augusto-de-avellar-coutinho/), amargurado
de ver a facilidade estonteante com que a malícia organizada – que a estratégia de
Gramsci não passa disso – havia se apoderado do país. O que mais o entristecia era
que um processo de dominação tão óbvio, tão patente, tão bem explicado de antemão
e tão fácil de compreender, pudesse ter sido aplicado a toda uma nação de maneira tão
anestésica e imperceptível que qualquer gemido de protesto acabasse soando como
extravagância intolerável e quase sinal de demência. Se no resto do mundo a vida imita
a arte, no Brasil ela imita a piada: nossa democracia realizou à risca, com séculos de
atraso, a boutade de Jonathan Swift sobre o cidadão que morreu mas, não tendo sido
avisado disso, continuava acreditando que estava vivo.
Recordações inúteis
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 7 de março de 2012
Uma fraqueza crônica do pensamento liberal é que, em sua resistência obstinada e não
raro heróica ao crescimento do poder estatal, acaba por fazer vista grossa ao fato de
que nem sempre os movimentos revolucionários e ditatoriais concentram o
poder no Estado, mas às vezes fora dele. Na verdade, nenhum movimento poderia se
apossar do Estado se primeiro não se tornasse mais poderoso que ele, criando meios
de ação capazes de neutralizar e sobrepor-se a qualquer interferência estatal adversa,
bem como, é claro, de manobrar o Estado desde fora e utilizá-lo para seus próprios
fins. Qualquer principiante no estudo do leninismo sabe disso.
Que a esquerda petista e pró-petista estava destinada a dominar por completo o
Estado brasileiro sem encontrar a mais mínima resistência, é coisa que para mim já
estava clara pelo menos desde 1993, quando as famosas CPIs mostraram ser o nosso
Parlamento nada mais que um bichinho dócil às injunções da grande mídia, alimentada
e manobrada por sua vez pelo onipresente e onissapiente serviço de informações do
PT. Foi naquele ano que publiquei A Nova Era e a Revolução Cultural, dando ciência –
a quem não desejava ciência nenhuma, por achar que já possuia todas – de que a
petização integral do Brasil era apenas questão de tempo. Mal havia então, entre os
liberais, quem imaginasse sequer que o PT pudesse vir a ter alguma chance de eleger
um presidente da República. E todos me olhavam como a um egresso do Pinel quando
eu lhes dizia que, quando isso viesse a acontecer, como fatalmente aconteceria, seria
numa ocasião em que o Estado já estivesse completamente dominado por dentro e por
fora, a conquista do governo federal nada mais constituindo que a oficialização
derradeira de um fato longamente consumado.
Enquanto isso, a intelectualidade liberal gastava todos os seus neurônios no empenho
idealístico de defender no plano doutrinário a economia de mercado e a liberdade
democrática, duas coisas que a esquerda nem pensaria em atacar muito seriamente
naquele momento, já que precisava de ambas para poder parasitá-las e continuar
crescendo até ficar forte o bastante para subjugá-las, deformá-las e, no devido tempo
(que só agora está chegando) extingui-las.
Havia até quem celebrasse a proliferação das ONGs como um progresso notável da
democracia liberal, na medida em que, consagrando as vias não-oficiais de ação social
e política, fortalecia a sociedade civil contra as pretensões avassaladoras do
gigantismo estatal.
Em vão advertia eu a essas criaturas que a “sociedade civil” era o terreno de escolha
para a penetração das forças revolucionárias, decididas a só se lançar à conquista do
poder de governo quando estivessem seguras de controlar, por vias não-oficiais, todos
os meios possíveis de modelagem da opinião pública, assim como todos os canais de
financiamento estatal e privado de uma multidão de empreendimentos revolucionários
maiores e menores, setorizados e discretos o bastante para que seu efeito de conjunto
simulasse uma transformação espontânea da mentalidade popular. A própria
disseminação do termo, insistia este insano colunista, refletia a influência crescente e
anônima do pensamento de Antonio Gramsci, naquela época já o autor mais estudado
e mais citado em todas as faculdades de letras e de ciências humanas no Brasil, só
ignorado por aqueles que mais interesse deveriam ter em defender-se da revolução
gramscista.
O primeiro sinal de que alguém havia me prestado alguma atenção não veio senão
decorrida quase uma década, e não veio dos liberais. Um artigo memorável do general
José Fábrega, publicado em jornal de pequena circulação, mostrou que entre os
militares havia ainda alguma inteligência desperta, o que veio a se comprovar nos anos
seguintes com os dois livros espetaculares, tecnicamente perfeitos, do general Sérgio
Augusto de Avelar Coutinho, A Revolução Gramscista no Ocidente (Rio, Estandarte,
2002) e Cadernos da Liberdade (Belo Horizonte, Grupo Inconfidência, 2004),
infelizmente publicados tarde demais para poder inspirar qualquer ação eficaz contra o
projeto de controle hegemônico da sociedade brasileira, àquela altura já praticamente
vitorioso. O general Coutinho faleceu em 27 de dezembro de 2011
(v. http://www.forte.jor.br/tag/general-sergio-augusto-de-avellar-coutinho/), amargurado
de ver a facilidade estonteante com que a malícia organizada – que a estratégia de
Gramsci não passa disso – havia se apoderado do país. O que mais o entristecia era
que um processo de dominação tão óbvio, tão patente, tão bem explicado de antemão
e tão fácil de compreender, pudesse ter sido aplicado a toda uma nação de maneira tão
anestésica e imperceptível que qualquer gemido de protesto acabasse soando como
extravagância intolerável e quase sinal de demência. Se no resto do mundo a vida imita
a arte, no Brasil ela imita a piada: nossa democracia realizou à risca, com séculos de
atraso, a boutade de Jonathan Swift sobre o cidadão que morreu mas, não tendo sido
avisado disso, continuava acreditando que estava vivo.
Excesso de democracia
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 3 de janeiro de 2011
Faz seis meses que Alejandro Peña Esclusa está preso na Venezuela. Pesa contra ele
o testemunho de Francisco Chávez Abarca, segundo as autoridades venezuelanas um
perigosíssimo terrorista equatoriano que o teria apontado como seu contato local. Não
se sabe exatamente o que significa “ser um contato”. Um agente de viagens, por
exemplo, é um contato. Um carregador de malas no aeroporto não o é menos. Pareceu
irrelevante aos acusadores de Peña Esclusa o detalhe de que jamais tenha se
comprovado entre ele e a testemunha alguma ligação tão íntima quanto a de um turista
com um carregador de malas. A periculosidade apocalíptica de Chávez Abarca pode-se
medir pelo único crime que ele comprovadamente cometeu: roubo de carros. A
confiabilidade do seu testemunho avalia-se pela circunstância de que, preso ao
desembarcar na Venezuela, foi rapidamente interrogado e em seguida enviado a Cuba,
tornando-se invisível e inacessível, não só aos advogados de defesa como ao próprio
juiz do processo. A idoneidade deste último, por sua vez, torna-se evidente pelos
sucessivos e furibundos ataques públicos que desferiu contra o réu, praticamente
anunciando a sentença antes do julgamento.
Tudo isso é a prova inequívoca de que o nosso presidente tinha toda a razão ao
declarar que a Venezuela padece de um excesso de democracia: diante de tão sábias
palavras de um amigo e conselheiro, o governo Chávez decidiu eliminar a
excrescência, mandando à prisão um dos mais destacados líderes democráticos do
país e limitando portanto o exercício da democracia às proporções compatíveis com a
ditadura. Afinal, não é democrático discriminar uma proposta política só porque é
ditatorial. A democracia perfeita exige dosar igualitariamente as pretensões dos dois
tipos de regimes, assegurando ao cidadão, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão
e a certeza de ir para o cárcere no caso de exercê-la.
Peña Esclusa alimentou essa certeza desde a ascensão do chavismo. Quando em
março de 2010 nos encontramos no Estado do Alabama, cuja Assembléia Legislativa
lhe prestava as homenagens devidas a um campeão da democracia na América Latina
(v. http://fuerzasolidaria.org/?p=3006), ele já me anunciou que seus dias de liberdade
estavam contados. Sugeri que pedisse asilo político nos EUA, mas ele preferiu
aguardar que se cumprisse aquilo que lhe parecia ser, mais dia, menos dia, o destino
de todos os combatentes pela liberdade no seu país.
Segundo informações da família, ele está resistindo bem ao tratamento carcerário.
Fisicamente vigoroso (ex-campeão venezuelano de caratê), esse homem de uma
calma imperturbável sabe que já se pode considerar moralmente vitorioso sobre um
poltrão abjeto que só se notabilizou pela constância com que enfia o rabo entre as
pernas sempre que desafiado cara a cara.
Se essa vitória moral pode se transmutar em triunfo político, só o tempo dirá. Mas uma
das condições para isso é não permitir que uma das farsas processuais mais patentes
da história jurídica latino-americana venha a ser esquecida, somando ao
encarceramento injusto a penalidade ainda mais injusta do silêncio cúmplice.
Posso um dia esquecer tudo o que Alejandro Peña Esclusa fez pela democracia no
continente, mas jamais esquecerei o que ele não fez contra ela: ele está tão
comprometido com o terrorismo quanto eu com a campanha pela beatificação de São
Lula.
Presenças honrosas
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 1 de outubro de 2010
Entre os quase sessenta mil signatários do “Manifesto em Defesa da Democracia”, há
decerto um bom contingente de cidadãos – nos quais me incluo – que jamais se
deixaram enganar pelo “novo paradigma” imposto à política brasileira desde a
ascensão das esquerdas ao primeiro plano do espetáculo nacional. Mas há também
uma parcela de celebridades da mídia, do show business, da política e do mundo
empresarial, das quais não se pode dizer o mesmo. O próprio site do Manifesto
incumbe-se de distinguir os dois grupos, reunindo o segundo nos links “Assinaturas em
destaque” e “Artigos em destaque”
(v. http://www.defesadademocracia.com.br/categorias/artigos/page/2/).
Significativamente, a quase totalidade dos nomes aí “destacados” são de pessoas que
integram uma das seguintes categorias:
(1) Contribuíram ativa e entusiasticamente para a criação do monstro petista e até hoje
não lhe fazem restrições – quando as fazem – senão limitadas e pontuais.
(2) Sem ser petistas ou simpatizantes, julgaram a ascensão do PT um fenômeno
positivo para a democracia e a defenderam galhardamente contra quem quer que, com
base na leitura dos próprios documentos internos do partido, advertisse que se tratava
de uma organização revolucionária de alta periculosidade.
(3) Fizeram tudo o que podiam para bloquear ou inibir a divulgação da existência e das
atividades do Foro de São Paulo, entidade com que o PT salvou e restaurou o
movimento comunista latino-americano, ameaçado de extinção no começo da década
de 90.
(4) Repetidamente denunciaram toda veleidade de anticomunismo como uma ameaça
temível e um abuso inaceitável, ajudando a criar assim a atmosfera de hegemonia
esquerdista na qual o triunfo do PT, como personificação mais pura do esquerdismo
nacional, se tornava claramente inevitável (v. meu artigo de setembro de 2004,
“Assunto encerrado”, http://www.olavodecarvalho.org/semana/040212jt.htm).
Atribuindo a esses indivíduos um lugar de revevo, o site do Manifesto dá a entender
que a presença de suas assinaturas infunde no documento um valor a mais,
revestindo-o de uma autoridade moral que a mera quantidade de signatários não
poderia lhe conferir.
O critério de julgamento aí subentendido é, por si, toda uma lição de sociologia quanto
à mentalidade daquilo que o sr. Presidente chama de “azé-lite”. Basta assimilar essa
lição para compreender por que o país chegou ao ponto em que se tornou necessário
arrebanhar às pressas sessenta mil pessoas para defender uma democracia que, ainda
meses atrás, tantas delas proclamavam firmada e consolidada – vejam vocês – pelo
fato mesmo da ascensão petista.
O que os destaques do site evidenciam, desde logo, é que, no sentimento geral da
“azé-lite”, o mérito supremo, em política, não consiste em perceber os perigos em
tempo de preveni-los, mas em recusar-se obstinadamente a enxergá-los, ou a deixar
que alguém mais os enxergue, até quando já nada mais reste a fazer contra eles senão
assinar um manifesto – o último recurso dos derrotados.
Com toda a evidência, as opiniões, nesse meio, não valem pelo seu coeficiente de
veracidade, de oportunidade estratégica ou de eficácia preditiva, mas, justamente ao
contrário, só são admitidas como dignas de alguma atenção – ainda assim parcial e
seletiva – quando obtêm finalmente o nihil obstat dos últimos a saber. Um sindicato de
maridos traídos não seria talvez tão lerdo e recalcitrante em tomar ciência das más
notícias.
Mas a lentidão paquidérmica em admitir os fatos não é causa sui. Ela vem do apego
supersticioso da “azé-lite” à lenda de que o movimento comunista não existe e de que
toda tentativa de denunciá-lo só pode ser coisa de extremistas de direita, saudosistas
da Guerra Fria, loucos de pedra e teóricos da conspiração. Essa lenda foi criada para
infundir naquelas pessoas a ilusão de que o fim do regime militar traria magicamente
ao Brasil uma democracia estável, de tipo europeu – ilusão necessária, precisamente,
para que a gradual mas inevitável ascensão de comunistas e pró-comunistas ao poder
absoluto aparecesse a seus olhos como o fruto espontâneo da “evolução democrática”
e não como o resultado de um planejamento maquiavélico de longo prazo, que os
documentos do PT e do Foro de São Paulo atestam para além de toda dúvida razoável.
A expressão “azé-lite” é tardia. Muito antes dela, em 1996, no meu livro O Imbecil
Coletivo, eu já havia dado a essa faixa social o nome de “pessoas maravilhosas”,
observando que para tornar-se uma delas você deveria antes de tudo acreditar que,
embora o comunismo não exista, ser comunista é chique e ser anticomunista é brega.
Agora, na página do Manifesto, até uma pessoa indiscutivelmente maravilhosa como o
sr. Luiz Eduardo Soares, que viu na publicação daquele meu livro um sinal alarmante
de ressurgimento da abominável direita, sai gritando, tarde demais, contra os
“bolcheviques e gambás” (sic) que se apossaram do país.
Pessoa maravilhosa é também o sr. Luís Garcia, que ainda em 2008
(v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/090113dc.html) se orgulhava de tudo ter
feito para lotar de esquerdistas as páginas de opinião de O Globo e muito se
arrependia de haver ali encaixado, mesmo a título de balanceamento fingido, um único
direitista que fosse. Num gesto inusitado para um chefe de redação, o sr. Garcia
chegou até a puxar, nas páginas do mesmo jornal, uma discussão com esse direitista –
que não era outro senão eu –, para alegar que o referido, ao alertar contra o poder
crescente do esquerdismo continental, estava era enxergando crocodilos embaixo da
cama.
Ainda ontem, crocodilos, gambás e bolcheviques só existiam na minha imaginação
perversa. De repente, surgindo do nada, tomaram posse do circo inteiro e assombram
as noites das pessoas maravilhosas que riam de quem os enxergava.
Já nem falo dos srs. Hélio Bicudo, Ferreira Gullar, Eliane Cantanhede e tantos outros,
que, ajudando a instaurar o mito do monopólio esquerdista do bem e da verdade,
criaram as condições indispensáveis para transformar a política brasileira numa disputa
de família entre organizações de esquerda, ignorando ou fingindo ignorar que a
hegemonia ideológica traz inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, o império do
partido único, contra o qual hoje esperneiam com ares de inocência surpreendida.
Todos esses, sem exceção, apostaram suas vidas na mentira mais estúpida e letal que
alguém já inventou contra a democracia: a mentira de que é possível um regime
democrático normal e saudável sem partidos de direita, ou só com uma direita
amoldada servilmente aos propósitos da esquerda. Ao assinar o Manifesto, não têm
sequer a honestidade de reconhecer que o assinam contra si mesmos. Num país onde
o fingimento é a mais excelsa das qualidades morais, isso é razão suficiente para
considerar seu apoio àquele documento uma honra digna de menção especial.
Armas da liberdade
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 17 de dezembro de 2009
A coisa mais óbvia, na análise da História e da sociedade, é que, quando a situação
muda muito, você já não pode descrevê-la com os mesmos conceitos de antes: tem de
criar novos ou aperfeiçoar criticamente os velhos, para dar conta de fatos inéditos, não
enquadráveis nos gêneros conhecidos.
É patético observar como, já em plena fase de implantação do governo mundial, os
analistas políticos, na universidade ou na mídia, continuam oferecendo ao público
análises baseadas nos velhos conceitos de ´”Estado nacional”, “poder nacional”,
“relações internacionais”, “livre comércio”, “democracia”, “imperialismo”, “luta de
classes”, “conflitos étnicos” etc., quando é claro que nada disso tem grande relação
com os fatos do mundo atual.
Os acontecimentos mais básicos dos últimos cinqüenta anos são: primeiro, a ascensão
de elites globalistas, desligadas de qualquer interesse nacional identificável e
empenhadas na construção não somente de um Estado mundial mas de uma
pseudocivilização planetária unificada, inteiramente artificial, concebida não como
expressão da sociedade mas como instrumento de controle da sociedade pelo Estado;
segundo, os progressos fabulosos das ciências humanas, que depositam nas mãos
dessas elites meios de dominação social jamais sonhados pelos tiranos de outras
épocas.
Várias décadas atrás, Ludwig von Bertalanffy (1901-1972), o criador da Teoria Geral
dos Sistemas, ciente de que sua contribuição à ciência estava sendo usada para fins
indevidos, já advertia: “O maior perigo dos sistemas totalitários modernos é talvez o
fato de que estão terrivelmente avançados não somente no plano da técnica física ou
biológica, mas também no da técnica psicológica. Os métodos de sugestionamento em
massa, de liberação dos instintos da besta humana, de condicionamento ou controle do
pensamento desenvolveram-se até alcançar uma eficicácia formidável: o totalitarismo
moderno é tão terrivelmente científico que, perto dele, o absolutismo dos períodos
anteriores aparece como um mal menor, diletante e comparativamente inofensivo.”
Em L’Empire Écologique: La Subversion de l’Écologie par le Mondialisme (1998),
Pascal Bernardin explicou em maiores detalhes como a Teoria Geral dos Sistemas vem
servindo de base para a construção de um sistema totalitário mundial, que nos últimos
dez anos, definitivamente, saiu do estado de projeto para o de uma realidade patente,
que só não vê quem não quer. Mas von Bertalanffy não se referia somente à sua
própria teoria. Ele fala de “métodos”, no plural, e o cidadão comum das democracias
nem pode fazer uma idéia da pletora de recursos hoje postos à disposição dos novos
senhores do mundo pela psicologia, pela sociologia etc. Se von Bertalanffy tivesse de
citar nomes, não omitiria o de Kurt Levin, talvez o maior psicólogo social de todos os
tempos, cujo Instituto Tavistock, em Londres, foi constituído pela própria elite global em
1947 com a finalidade única de criar meios de controle social capazes de conciliar a
permanência da democracia jurídica formal com a dominação completa do Estado
sobre a sociedade.
Só para vocês fazerem uma idéia de até onde a coisa chega, os programas
educacionais de quase todas as nações do mundo, em vigor desde há pelo menos
vinte anos, são determinados por normas homogêneas diretamente impostas pela ONU
e calculadas não para desenvolver a inteligência ou a consciência moral das crianças,
mas para fazer delas criaturas dóceis, facilmente amoldáveis, sem caráter, prontas a
aderir entusiasticamente, sem discussão, a qualquer nova palavra-de-ordem que a elite
global julgue útil aos seus objetivos. Os meios usados para isso são técnicas de
controle “não aversivas”, concebidas para fazer com que a vítima, cedendo às
imposições da autoridade, sinta fazê-lo por livre vontade e desenvolva uma reação
imediata de defesa irracional à simples sugestão de examinar criticamente o assunto.
Seria um eufemismo dizer que a aplicação em massa dessas técnicas “influencia” os
programas de educação pública: elas são todo o conteúdo da educação escolar atual.
Todas as disciplinas, incluindo matemática e ciências, foram remoldadas para servir a
propósitos de manipulação psicológica. O próprio Pascal Bernardin descreveu
meticulosamente o fenômeno em Machiavel Pédagogue (1995). Leia e descobrirá por
que seu filho não consegue resolver uma equação de segundo grau ou completar uma
frase sem três solecismos, mas volta da escola falando grosso como um comissário do
povo, cobrando dos pais uma conduta “politicamente correta”.
A rapidez com que mutações repentinas de mentalidade, muitas delas arbitrárias,
grotescas e até absurdas, se impõem universalmente sem encontrar a menor
resistência, como se emanassem de uma lógica irrefutável e não de um maquiavelismo
desprezível, poderia ser explicada pelo simples adestramento escolar que prepara as
crianças para aceitar as novas modas como mandamentos divinos.
Mas evidentemente a escola não é a única agência empenhada em produzir esse
resultado. A grande mídia, hoje maciçamente concentrada nas mãos de mega-
empresas globalistas, tem um papel fundamental na estupidificação das massas. Para
isso, uma das técnicas de emprego mais generalizado hoje em dia é a dissonância
cognitiva, descoberta do psicólogo Leon Festinger (1919-1989). Vejam como a coisa
funciona. Se vocês lerem os jornais americanos de hoje, saberão que Tiger Woods, o
campeão de golfe, um dos cidadãos americanos mais queridos dos últimos tempos,
está agora sob bombardeio cerrado dos jornais e noticiários de TV porque descobriram
que o coitado tinha umas amantes. Escândalo! Horror! A indignação geral ameaça
cortar metade dos patrocínios do adúltero e excluí-lo do rol das “pessoas maravilhosas”
que aparecem em anúncios de tênis, chicletes e dietas miraculosas. Mas há um
detalhe: ao lado dos protestos contra a imoralidade do esportista aparecem ataques
ferozes aos “extremistas de direita” que não aceitam o abortismo, o casamento gay ou
a indução de crianças à deleitação sexual prematura. Os dois códigos morais,
mutuamente contraditórios, são oferecidos em simultaneidade, como igualmente
obrigantes e sacrossantos. Excitado e impelido a todos os desmandos sexuais, mas ao
mesmo tempo ameaçado de character assassination caso venha a praticá-los mesmo
em dose modesta, o cidadão angustiado reage por uma espécie de colapso intelectual,
tornando-se um boboca servil que já não sabe orientar-se a si mesmo e implora por
uma voz de comando. O comando pode ser oco e sem sentido, como por exemplo
“Change!”, mas, quando vem, soa sempre como um alívio.
Acusar os cientistas por esse estado de coisas é tão idiota quanto jogar nas armas a
culpa dos homicídios. Homens como von Bertalanffy, Levin e Festinger criaram
instrumentos que podem servir tanto para a construção da tirania quanto para a
reconquista da liberdade. Nós é que temos a obrigação de tirar essas armas das mãos
de seus detentores monopolísticos, e aprender a usá-las com signo invertido,
libertando o nosso espírito em vez de permitir que o escravizem.