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Antonio Prata

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Pra lua

Antonio Prata

Não foi assim logo de cara. Claro, seu Julião e dona Neuza j?tinham reparado numa
coincidenciazinha aqui, uma sorte acol? mas s?foram perceber que Julinho tinha
mesmo um dom especial no verão de 1984, em Caraguatatuba, assim que o
moleque acabou de chupar o quinto picol? de manga.

Quinze minutos antes, ao acabar o primeiro sorvete, um Fura-bolo, Julinho pulou


de alegria: o palito viera premiado, dando direito a mais um. At?a? nada de mais...
Acontece que o segundo sorvete (um Esquim? também dava direito a outro, assim
como o terceiro (de coco), o quarto (tangerina) e provavelmente todos os que
chupasse se, no quinto picol?— a barriga do garoto j?estava parecendo uma tela do
Pollock, tantas as gotas de diversas cores que escorriam em direção ?sunga verde-
limão—, o sorveteiro não tivesse dado com a tampa de isopor em sua cabeça e
saído soltando os palavrões mais cabeludos, cujos significados Julinho s?viria a
descobrir muitos anos mais tarde, na perua do colégio, numa tarde de maio — o
que não vem, absolutamente, ao caso.

O que nos interessa ?que nessas férias Julinho ganhou três quilos e o respeito de
toda a criançada de Caragu? com quem trocava os palitos premiados por pipas,
baldinhos de areia, favores e at?uma bicicleta com buzina, cestinha e farol. (A
bicicleta, infelizmente, teve que ser devolvida assim que uma mãe apareceu no
guarda-sol da família, trazendo um filho choroso numa mão, 45 palitos premiados
na outra e exigiu a anulação da troca.)

Apesar de j?saberem que ali tinha coisa, foi s?quando Julinho estava na quinta
série, na época que surgiram as Raspadinhas, que seus pais realmente se deram
conta do potencial econômico de seu dom. Enquanto a maioria dos mortais gastava
tubos do dinheiro naqueles cartões lotéricos e, na melhor das hipóteses, ganhava
50 centavos — gastos em mais uma Raspadinha que, claro, não dava em nada —,
Julinho sempre tirava a sorte grande: era s?raspar a camada prateada e sair pro
abraço.

Em alguns meses, a família comprou uma cobertura, casa na praia, carro importado
e jet ski. Não fosse o processo promovido pela Associação Brasileira dos Donos de
Casas Lotéricas — que deu queixa na polícia dos prejuízos causados pelo gordinho
que aparecia sempre chupando um picol? comprava uma Raspadinha e limpava os
caixas dos estabelecimentos — e a família, em pouco tempo, entraria nas listas das
mais ricas do Brasil.

Em entrevista ao vivo no programa do Gugu, logo após serem absolvidos no


processo — com o acordo de que Julinho jamais jogasse em qualquer tipo de loteria
federal —, seu Julião, o pai, disse que não tinha truque nenhum: "O garoto ?assim,
desde pequeno: rabudo. Pede par, sai quatro, ímpar, d?cinco e, no amigo secreto
do Natal, sempre ?tirado pelo tio Leôncio, meu cunhado, que d?os melhores
presentes." Dona Neuza, a mãe, acrescentou orgulhosa: "Hum-hum..,"

Desde o lance das Raspadinhas, seu Julião e dona Neuza j?não trabalhavam: como
os pais de um craque ou de um desses cantores mirins, dedicavam-se
exclusivamente a desenvolver o talento do filho. Passavam o dia colocando tampas
de margarina e embalagens de chocolate em envelopes e respondendo a perguntas
tipo “qual ?o sabão que deixa limpão"; "a bateria que nunca arria"; "o refrigerante
que faz splash" ou "o absorvente da executiva moderna". Toda manh? antes de ir
para a escola, Julinho punha as cartas no correio: eram casas, caiaques, home
theatres, férias em estâncias hidrominerais, fins de semana em hotéis-fazenda, um
ano de supermercado grátis e outros prêmios que não acabavam mais.

Dona Neuza pôs botox, silicone, clareou os cabelos e entrou numas de Feng-Shui;
seu Julião fez implante capilar, montou um bar espelhado na sala da cobertura e
fazia churrasco todos os domingos; Julinho tinha um minibugue, f?clube, todos os
bonequinhos dos Comandos em Ação, Passaporte da Alegria vitalício no Playcenter
e a Tilibra estava prestes a lançar uma linha de cadernos com sua foto na capa.

Apesar de todo o sucesso, Julinho estava entediado. Não havia nada que quisesse
que não conseguisse: quando jogava futebol, para qualquer lugar que chutasse, a
bola entrava; todo dia tropeçava com carteiras cheias de dinheiro e, quando ficava
doente e perdia uma prova na escola, o professor faltava. Era muito fácil. Além do
qu? não agüentava mais chupar picol? Sem uma dificuldade, por menor que fosse,
um empecilhozinho qualquer, as coisas perdiam a graça. Andando de l?para c?com
seu minibugue pelas ruas do condomínio, Julinho lamentava: "Se ao menos eu
tivesse que preencher algum formulário, ou pagar uma mensalidade, ou fazer
duzentas abdominais toda manh? eu sentiria que estou tendo algum trabalho, mas
assim, do nada, não tem graça!". Tudo o que ele queria, como sempre nesse tipo
de história, era ser como as outras crianças. Mas como?

Foi por acaso, caminhando pelo Centro de São Paulo, num dia desses em que o céu
cinza parece apenas a metáfora que um escritor previsível criou para espelhar a
nossa nublada configuração interna, que Julinho deu de cara com o lugar mais
impressionante que seus olhos j?haviam visto, um mercado onde se podiam
encontrar ovos de dinossauros vietnamitas, videocassetes chineses, múmias maias,
DVDs pornográficos da Hungria, parentes distantes, lança-mísseis russos e at?amor
verdadeiro — a galeria Paj? E foi ali, entre um Rolex falsificado e um cachorrinho de
pelúcia (que era ao mesmo tempo dicionário eletrônico, liquidificador e chapinha
para cabelos), que Julinho encontrou a lâmpada árabe. Haddad, o vendedor,
garantiu que a preciosidade era do século XIII e havia sido roubada pessoalmente
do Museu de Bagd? durante a invasão americana. Julinho, contando, como sempre,
com a própria sorte, não vacilou.

Assim que chegou em casa e começou a lustrar a lâmpada com a manga da


camisa, o ambiente encheu-se de fumaça, ouviu-se uma explosão e, depois de uma
chuva de purpurina e lantejoulas, l?estava ele, translúcido e obeso, pairando a um
metro do chão: o gênio da lâmpada!

— ?amo querido, me libertaste da terrível prisão! Como recompensa, concedo-te


três pedidos. Diz-me apenas quais são teus desejos e logo os satisfarei!

Julinho nem pestanejou:

— Primeiro eu queria ser como os outros, não ter tanta sorte: me dar bem às
vezes, mal em outras, ter que me esforçar para conseguir o que quero. Segundo, j?
que a sorte me abandonar? quero apenas garantir uma regalia: que todas as
mulheres que posam para a Playboy queiram fazer sexo comigo at?o fim da vida.
Terceiro, desde criança que penso nisso: por que chamam esse objeto dourado de
lâmpada, se ele mais parece um bule?

O gênio, com aquela cara séria e atenta que gênio faz nessas horas, respondeu:

— Meu amo: teus desejos são uma ordem!

Mais fumaça, mais chuva de purpurina e lantejoulas e, quando tudo se acalmou, no


lugar que antes o gênio sobrevoava, havia um bilhete:

“Caro amo, temo avisar-te que ocorreu uma falha na execução de teus desejos.
Acontece uma vez a cada mil anos o que nós, gênios da lâmpada, chamamos de
paradoxo retroativo. Teu primeiro desejo foi imediatamente aceito e teu azar,
portanto, começou ali mesmo, fazendo com que os efeitos desse gênio não tenham
efeito nenhum. Em outras palavras: tudo continuar?como antes, tu continuarás
sortudo. Se fizeres sexo com playmates ou descobrires por que esse bule ?uma
lâmpada ser?porque nasceste virado para a lua, não por conta de meus serviços.
Agora, devo ir-me, haver?uma convenção de gênios da lâmpada no Rotary Club de
Ribeirão Preto e não posso perd?la por nada. Adeus e obrigado."

Julinho, desesperado, resolveu jogar a toalha. E a toalha, no caso, era ele mesmo:
olhou seu quarto pela última vez, derramou uma lágrima de despedida e saltou
pela janela da cobertura. Enquanto caía, pensava no infortúnio de não ter nenhum
infortúnio, na desgraça da graça a ele concedida e, sabe-se l?por qu? num short
amarelo de que gostava muito quando era pequeno.

Vinte e cinco andares e sete segundos depois, para surpresa dos pedestres, l?
estava ele, vivo e consciente, estatelado sobre uma Kombi azul. Naquele momento,
ainda zonzo por causa da queda e surdo com o esporro do japonês, que reclamava
dos estragos causados ao veículo e perguntava como era que ele ia fazer agora
para trazer o shimeji de Cotia todo dia, Julinho compreendeu sua sina: era imortal,
sortudo demais para morrer.

Uns dizem que foi o tombo, outros comentam que a coisa j?vinha de longe, que ele
sempre teve um parafuso a menos, mas o fato ?que todo dia, desde o salto, Julinho
tenta, inutilmente, tirar a própria vida. Depois de beber cianeto (estava vencido),
cortar os pulsos (a faca quebrou), enforcar-se (a árvore tombou) e tentar todos os
outros métodos conhecidos e desconhecidos de suicídio — chegou at?a alimentar-se
por uma semana s?de detergente de maçã —, Julinho perdeu de vez o juízo. Vaga
doido pelo mundo, magro, descalço e barbudo. De vez em quando, engole espadas,
caminha sobre brasas, deixa jamantas passarem por cima de seu corpo e faz
cooper em campos minados de Angola, sempre em vão. Para piorar, uma multidão
de fiéis o segue aonde v? acreditando ser a volta de Jesus ?Terra. Alguns rabinos
discutem se ?ou não o messias, as playmates não lhe dão sossego e produtores de
televisão ligam todo dia, insistindo em fazer um documentário para o Discovery
Channel.

Agora, por exemplo, Julinho est?em Foz do Iguaçu, chorando arrependido da


remota manh? em que foi pedir aquele maldito Fura-bolo em Caraguatatuba. Em
instantes se atirar?do alto da mais alta das cataratas — de onde ser?resgatado,
alguns minutos depois, vivo e limpinho, pelos bravos homens do Corpo de
Bombeiros do Brasil.

Antonio Prata (24/08/1977) ?paulista e tem os seguintes livros publicados:


"Cabras, Caderno de Viagem", com Paulo Werneck, Chico Matoso e Z?Vicente da
Veiga, "Douglas e outras histórias", “As pernas da tia Corália” ,"Estive pensando" e
"O inferno atrás da pia".

Fernando Morais, escritor reconhecido no Brasil e no exterior, assim se manifestou


sobre “Douglas": ”... Seria um livro de contos? De ensaios? De reflexões sobre o
mundo? Não sei dizer. O que eu sei ?que ?um dos mais espirituosos e divertidos
livros que li nos últimos tempos. Não me pejo, assim, de (mais uma vez?) valer-me
da fantasia de Ruy Castro: aconselho-os a acompanhar a carreira do jovem escritor
Antonio Prata. Ele tem espantoso futuro. Continuem lendo e observando-o". E
termina:"Pela qualidade do texto, fica dispensado o teste do DNA: Antonio ?mesmo
filho de Marta Góes e de Mario Prata".

Da página 37 do livro "O inferno atrás da pia", Editora Objetiva - Rio de Janeiro,
2004, extraímos o texto acima.

Privada I: o homem e sua obra

Antonio Prata

"Este ódio de tudo o que é humano, de tudo


o que é 'animal' e mais ainda de tudo que é
'matéria', este horror dos sentidos (...) tudo isso
significa (...) vontade de aniquilamento,
hostilidade à vida, recusa em se admitir
as condições fundamentais da própria vida".
Nietzsche

O Homem é o novo rico da natureza. Assim que nos demos conta de que éramos os
únicos na vizinhança que falávamos, fazíamos as quatro operações e conseguíamos
encostar o dedão no mindinho, ficamos profundamente, irremediavelmente bestas.
Cobrimos a pele com panos, penteamos o cabelo pra trás, passamos uma salivinha
na sobrancelha, dissemos: adeus, bicho! e saímos da selva.

Nem mal deixamos o bosque, passamos a esnobá-lo e a condenar as atitudes de


todos os seus habitantes. Nós éramos superiores! Nós dominávamos a natureza!
Nós usávamos ferramentas, meias e fio dental!

Novo rico que se preze, no entanto, dá bandeira. Há sempre um douradinho além


da conta, um sotaque suburbano escapando num momento de exaltação, um
conversível rosa com a placa mom ou dad. Com a humanidade também é assim.
Por mais que consigamos trocar nossos odores naturais por mentol, eucalipto ou
tutti-frutti, gastemos um bilhão de dólares em pesquisa para criar lâminas capazes
de raspar perfeitamente nossos pêlos e cubramos toda a crosta da terra com
asfalto e carpete sintético, um ato sempre nos denunciará o passado selvagem, a
natureza animal: a cagada. Ali não tem desculpa, não tem disfarce.

A merda é nossa ligação perene com a floresta, com o barro de onde viemos. Aí
não tem talher nem tailleur nenhum que nos diferencie da arara ou do tamanduá.
Nus como as trutas, acocorados como os cães, expelimos a verdade universal,
fisiológica, cilíndrica e obscura que por tanto tempo tentamos ocultar. Somos
animais!

Temendo uma reflexão mais elaborada sobre o assunto, e sabendo das


conseqüências que tamanha verdade traria uma vez revelada, desde cedo cuidamos
de camuflar o assunto. Fizemos com a bosta o que fazemos com as putas, as
drogas e tudo aquilo que é necessário existir, mas não é preciso divulgar;
marginalizamo-la. Condenamos as fezes ao ostracismo.

No início, enquanto vagávamos nômades, a coisa era bem fácil. O sujeito


simplesmente se afastava um pouco da horda, fazia o que tinha de fazer e ia
embora, deixando as sujeiras para trás. Estávamos literalmente cagando e
andando.
Quando os primeiros povos dominaram as técnicas de irrigação e, portanto, a
agricultura, passaram a viver fixos num determinado local, e defecar ficou um
pouquinho mais complicado. O sujeito tinha que sair da aldeia, andar um pouco,
achar uma moita, cavar um buraco, fazer e enterrar. Durante muito tempo a coisa
rolou assim, trabalhosa, mas sem maiores problemas.

Foi o crescimento da população e das aldeias que começou a complicar o processo.


A moitinha ia ficando cada vez mais longe de casa, corria-se sempre o risco de se
encontrar um conhecido por lá e, pior de tudo, cavar um buraco de segunda mão.

Dizem que foi um bretão chamado Walter Collins que teve a brilhante idéia: cavar
um buraco bem fundo no quintal de casa e cercá-lo por paredes. Em pouco tempo a
invenção de Walter, assim como suas iniciais, já podiam ser vistas em grande parte
do mundo. Parecia que o problema havia sido solucionado. Mas veio a revolução
industrial, o grande êxodo para as cidades e os quintais, como se sabe, foram pra
cucuia.

Talvez tenha sido esse o momento mais difícil da humanidade frente aos seus
excrementos, o clímax entre o Homem e sua sombra animal. Tivemos que trazer a
bosta para dentro de nosso próprio lar. Para que isso fosse possível, bastava que
jamais assumíssemos o verdadeiro fim do aposento que covardemente,
eufemisticamente, chamamos de banheiro. Sim, meus caros, para não dar nas
vistas, inventamos o chuveiro, a banheira, a higiene bucal, o secador de cabelo, o
rímel, o blush e o batom, a acne e os tratamentos antiacne e todas as outras coisas
para se fazer ali. Além disso, criou-se um arsenal para se disfarçar o cocô: sprays
com odor de rosas, sachês que deixam a água da privada azul, verde ou rosa,
exaustores, bidês e papeis higiênicos perfumados.

Ali, naquele ambiente cientificamente controlado, podemos aliviar as nossas


necessidades com o máximo distanciamento possível. Após dar a descarga, nosso
cocô é mandado para esgotos submersos, que desembocam em rios que vão dar lá
longe no oceano. Sanamos o problema por enquanto, mas é só uma questão de
tempo.

Todo esse cocô está se unindo, formando o maior movimento underground do


mundo. Nossas cidades, nossos países estão boiando sobre rios de merda. Fala-se
muito no fim do petróleo e no fim da água, mas não será assim que nós
morreremos. Numa incerta manhã um cidadão dará a descarga e, como na piada,
ouvirá o estrondo: o subsolo, entupido, explodirá. A verdade, reprimida por séculos
e séculos, emergirá. Só nesse dia todos perceberão o tamanho da cagada em que
nos metemos desde o dia em que resolvemos sair da floresta. E não haverá sachê
nem bom ar que dê jeito. Como se sabe, só as baratas sobreviverão.

Antonio Prata (24/08/1977) tem os seguintes livros editados: "Cabras, Caderno


de Viagem", com Paulo Werneck, Chico Matoso e Zé Vicente da Veiga, "Douglas e
outras histórias", e o recém lançado "As pernas da tia Corália". Fernando Morais,
escritor reconhecido no Brasil e no exterior, assim se manifestou sobre
ele: "... Seria um livro de contos? De ensaios? De reflexões sobre o mundo? Não
sei dizer. O que eu sei é que é um dos mais espirituosos e divertidos livros que li
nos últimos tempos. Não me pejo, assim, de (mais uma vez?) valer-me da fantasia
de Ruy Castro: aconselho-os a acompanhar a carreira do jovem escritor Antonio
Prata. Ele tem espantoso futuro. Continuem lendo e observando-o". E
termina:"Pela qualidade do texto, fica dispensado o teste do DNA: Antônio é
mesmo filho de Marta Góes e de Mário Prata".
Da página 25 do livro "Douglas e outras histórias", Azougue Editora - Rio de
Janeiro, 2001, extraímos o texto acima.

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