O Tempo e A Cidade
O Tempo e A Cidade
O Tempo e A Cidade
O TEMPO E A CIDADE
Porto Alegre
Editora da Universidade – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
2003
Série Humanas
Coleção Academia 2, volume 1
© 2003 UFRGS
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por
qualquer meio, sem a prévia autorização desta Universidade.
Revisão:
Nara Widholzer
Editoração eletrônica:
João Flávio de Freitas Rodrigues
Este livro tem por objeto o estudo do caráter temporal da experiência humana presente
no mundo contemporâneo e as suas repercussões nas práticas e saberes que os indivíduos e
grupos urbanos tecem em suas relações com a cidade.
Como nenhum trabalho de pesquisa antropológica pode atingir sua maturidade no
isolamento subjetivista das produções individuais dos investigadores, nestes diversos
capítulos, trazemos a público o fruto de mais de quatro anos de desenvolvimento de
pesquisas antropológicas na cidade de Porto Alegre a partir do projeto integrado CNPq
Estudo antropológico de itinerários urbanos, memória coletiva e formas de sociabilidade
no mundo urbano contemporâneo, que associa nossas pesquisas. A obra reúne os dados e
fatos etnográficos que entrelaçam nossos projetos individuais, respectivamente,
Antropologia do cotidiano e estudo das sociabilidades a partir das feições dos medos e das
crises na vida metropolitana e Coleções etnográficas, itinerários urbanos e patrimônio
etnológico: a criação de um Museu Virtual de Porto Alegre. Esse projeto vem sendo
realizado junto ao Núcleo de Pesquisa sobre Culturas Contemporâneas e Laboratório de
Antropologia Social, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, no Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas e sediado no Instituto Latino Americano de Estudos
Avançados, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Cabe ressaltar as inúmeras parcerias intelectuais, algumas eventuais, outras mais
duradouras, que teceram direta ou indiretamente as teias de nossa comunidade de diálogo,
pares nas trocas antropológicas, amigos nas reciprocidades cotidianas, familiares no afeto
constante: queremos agradecer a todos os que participaram da produção das idéias aqui
apresentadas. Em especial, à nossa incentivadora nos caminhos embrionários deste projeto
integrado, Profa. Dra. Clarissa Eckert Baeta Neves, e ao Professor Luis Antônio Rocha,
pela presença constante nos desvendamentos dos mistérios da Informática.
Agradecemos aos professores Ruben George Oliven, então Coordenador do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social, José Vicente Tavares dos Santos, Diretor do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, e Mario Costa Barberena, então Diretor do
Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados, os quais permitiram, com seu apoio
institucional, o nascimento concreto de nosso centro de pesquisa no decorrer do ano de
1997.
Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
CNPq – e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS
– pelo financiamento do projeto integrado consolidado no centro de pesquisa Banco de
Imagens e Efeitos Visuais, do Laboratório de Antropologia Social, no nosso Programa.
Essas instituições, assim como a Pró-Reitoria de Pesquisa de nossa Universidade,
permitiram a viabilidade de formarmos as equipes de trabalho através do Programa de
Bolsas de Iniciação Científica, sem as quais o projeto geracional de compartilhar nossos
conhecimentos e de formar novos pesquisadores não se constituiria em bases sólidas.
Nosso reconhecimento a esses alunos de iniciação científica pelo trabalho coletivo,
tanto aos que iniciaram conosco esta aventura no mundo urbano contemporâneo, em 1997,
quanto aos que os sucederam e aos atuais bolsistas, que ainda vêm possibilitando o
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AGRADECIMENTOS
CAPITULO I
A RETÓRICA DE UM MITO: “BRASIL, UM PAÍS SEM MEMÓRIA!”
1.1 Contemplando as imagens da retórica de um tempo finalista
1.2 A estética temporal das cidades brasileiras na poética na instabilidade
1.3 Uma passagem enigmática: do esquecimento à narrativa das experiências temporais
1.4 A transgressão da retórica
CAPITULO II
O ANTROPÓLOGO NA FIGURA DO NARRADOR
2.1 A tradução dos significados culturais: o que está por cima dos ombros
2.2 Texto oral / texto escrito: o ser e ausência do ser
2.3 A figura do narrador e a morte da arte de narrar
2.4 A cidade moderna, a figura do narrador e a reinvenção da arte de narrar
2.5 Fábulas de um narrador praticante, das artes de dizer à arte de ouvir
2.6 O compromisso ético da restauração da voz do Outro
CAPITULO III
ELIPSES TEMPORAIS E O INESPERADO, ETNOGRAFANDO A CIDADE
3.1 A gente acaba tendo que conviver com o medo, com cuidado...
3.2 Eu passei a ter medos, toda uma coisa que eu tinha medo... medo do inesperado...
3.3 Em busca da fábula, o encontro casual com as ruínas do medo
3.4 Nascido sob o signo do medo
3.5 O trabalho de tecer os acontecimentos sob a estética do medo
CAPITULO IV
A CIDADE COMO OBJETO TEMPORAL
4.1 Os contornos do pensiero debole nos estudos das culturas contemporâneas
4.2 Desafios a uma interpretação das formas turbulentas
4.3 Itinerários e narrativas urbanas: a urdidura do “viver a cidade”
4.4 A luta contra dissolução do tempo
4.5 Em torno da investigação antropológica no mundo urbano
CAPITULO V
NOS JOGOS DA MEMÓRIA, AS CURVATURAS DO TEMPO
5.1 O fim da arte de narrar segundo a mística das imagens
5.2 A memória e seus duplos
5.3 A dialética das épistèmés do Mesmo e do Outro
CAPITULO VI
A INTERIORIDADE DA EXPERIÊNCIA TEMPORAL COMO CONDIÇÃO DA
PRODUÇÃO ETNOGRÁFICA
6.1 Sob a égide do sujeito da consciência
6.2 A dramática da interioridade da consciência do antropológico
6.3 O método etnográfico e a prática do “ si-mesmo como um outro ”
6.4 A transfiguração do ato etnográfico : do “ estar lá ” ao “ eu estou aqui ”
6.5 A guisa de conclusão
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CAPITULO VII
IMAGENS DO TEMPO: POR UMA ETNOGRAFIA DA DURAÇÃO
7.1 Contestando as antíteses bergsonianas
7.2 Da consciência do real a continua invenção temporal
7.3 Depois do jogo de idéias...
CAPITULO VIII
A CIDADE, O TEMPO E A EXPERIÊNCIA DE UM MUSEU VIRTUAL
8.1 A paisagem urbana como composição de olhares
8.2 Registros do tempo, inovações tecnológicas e museologização do mundo
8.3 Projeções do tempo, os museus e a cultura visual da tela
8.4 As mídias eletrônicas e digitais: naturalismo, realismo e metarrealismo
APRESENTAÇÃO
A HORA DAS CIDADES
Este livro ocupa-se de dois temas fundamentais nas Humanidades: tempo e cidade. Ao
invés de retratá-los como duas realidades estanques, contudo, as autoras optaram por tomá-
los como elementos de uma relação indissociável. A cidade é assim compreendida como
um fenômeno temporal que remete à questão da memória.
O livro começa enfrentando a idéia de que o Brasil é um país sem memória. A seguir,
analisa a figura do antropólogo como parte do exercício etnográfico, na medida em que
narrar significa criar. O próximo tema é o medo como condição cotidiana de vida que
permeia as grandes cidades brasileiras. As questões subseqüentes são a temporalidade da
cidade, os jogos da memória e a curvatura do tempo, a interiorização da experiência
temporal como condição da prática etnográfica e as imagens do tempo. O livro termina
discutindo a experiência da criação de um museu visual que trata da memória coletiva em
Porto Alegre, buscando captar o tempo e a cidade.
Cidades constituem fenômenos complexos. Elas existem há muitos séculos e em
diferentes culturas; fala-se em cidades bíblicas, cidades asiáticas, cidades gregas, cidades
medievais, cidades modernas, cidades pequenas, cidades médias, metrópoles e
megalópoles. Mas a tendência de a maior parte da população mundial viver em cidades é
relativamente recente e marca o processo de urbanização da humanidade. O fato de,
atualmente, o número de pessoas vivendo em grandes cidades aumentar cada vez mais e o
de nos encontramos em um mundo que é essencialmente urbano criam situações novas. As
grandes cidades são espaços de contradição nos quais o tradicional convive com o
moderno e onde culturas nacionais são reinterpretadas por subculturas étnicas ou de classe.
A urbanização da humanidade implica a coexistência, em espaços demograficamente
densos, de diferentes realidades, que caracterizam a riqueza da vida urbana atual. Os
tempos desses diferentes grupos que convivem dentro do espaço urbano também são
diferentes. O Brasil evidencia isso de forma muito plástica; basta olharem-se as avenidas
de nossas cidades onde pessoas locomovem-se a pé, em carroças, em ônibus e em
automóveis para se ter uma idéia dos diferentes ritmos que convivem lado a lado.
Tempo e cidade são duas preocupações centrais da Antropologia. Desde o começo do
desenvolvimento de sua ciência, os antropólogos constataram que tempo e espaço são
categorias de entendimento que variam de acordo com diferentes épocas e culturas. Existe
um tempo que é totêmico, assim como existe um tempo que é chamado histórico. Tempos
podem ser medidos por estações do ano ou por frações de segundos. Horários são muito
flexíveis em algumas sociedades; em outras, a pontualidade é uma obrigação.
A Antropologia nasce como uma ciência preocupada com sociedades consideradas de
pequena escala e sem noção de um tempo histórico. À medida que o mundo foi se
urbanizando, contudo, os antropólogos foram acompanhando as mudanças e começaram a
se dedicar ao estudo de grupos vivendo em cidades. O interesse do antropólogo que estuda
o fenômeno urbano é compreender sua diversidade, a riqueza dos grupos que habitam as
cidades modernas e as diferentes culturas que nelas convivem.
Ana Luiza Rocha e Cornelia Eckert são duas das mais importantes antropólogas
brasileiras pesquisando o meio urbano. As autoras desenvolvem o projeto integrado de
pesquisa Estudo Antropológico de Itinerários Urbanos, Memória Coletiva e Formas de
Sociabilidade no Mundo Urbano Contemporâneo, junto ao Banco de Imagens e Efeitos
Visuais (ILEA/UFRGS), no Núcleo de Antropologia Visual e no Núcleo de Pesquisas
sobre Culturas Contemporâneas do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH/UFRGS), onde elas atuam e têm o
apoio do CNPq, da Fapergs e da Propesq/UFRGS.
Com experiência de trabalho de campo no Brasil e na França, as autoras desenvolveram
uma metodologia e uma teorização originais, aliando um raciocínio científico a uma sólida
pesquisa de campo. O trabalho caracteriza-se por um diálogo com os mais importantes
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autores das Ciências Sociais, ao mesmo tempo em que constitui uma criativa prática de
pesquisa etnográfica. Esta última se vale dos instrumentos clássicos da Antropologia, como
a investigação etnográfica, e da utilização de recursos visuais, como a fotografia, o vídeo e
o filme.
Um aspecto importante de O Tempo e a Cidade a ser ressaltado é que os recursos
visuais não são utilizados como meros apêndices a serem incluídos no final ou no meio do
texto, mas eles mesmos são textos que falam por si próprios. As autoras utilizam uma
metodologia nas quais fotos, vídeos e outras formas de expressões visuais são também
textos a serem lidos e interpretados pela comunidade de leitura. Essa perspectiva é
inovadora e significa captar-se a realidade sob diferentes formas.
Este livro sugere novas formas de pesquisar e teorizar o tempo e a cidade, constituindo-
se numa referência fundamental para aqueles que fazem da Antropologia o seu oficio e
também para aqueles que atuam na área visual.
Ruben George Oliven
Professor Titular do Departamento de Antropologia da UFRGS
CAPITULO I
CAPITULO 1
modernas brasileiras, mesmo tão diferentes dos distantes antepassados europeus (lugares
de acampamentos de caçadores nômades, fortificações rendilhadas da Idade Média,
fortificações renascentistas em forma de estrela), foi projetado sobre um fundo de cores, de
relevos e de odores afetos à geografia legendária dos Trópicos. Mesmo considerando-se
uma reflexão sobre o desequilíbrio patológico no homem da civilização, cercado de uma
cintura de fábricas, de favelas, de arranha-céus, de fome e de miséria, de uma rede de vias
utilitárias, a cidade "sem forma" encontra sempre, enquanto realidade vivida, as figuras
diversas que encarnam a imagem de um território refúgio.
Resistindo ao reducionismo de um tempo finalizado, as cidades no Brasil, assim,
permanecem fiéis a uma visão pluralista do tempo, único modo de preservarem, nelas
mesmas, a consagração da ordem polissêmica do corpo coletivo de seus habitantes. A
destruição da Cidade no Brasil tem, portanto, uma natureza sintética: significa a maturação
do fim dos Tempos e, assim, a imortalidade prometida. Industrialização, modernização e
urbanização expressam muitos mitos cíclicos e operatórios do Ocidente cristão: acelerar a
história e domesticar o tempo.
CAPITULO II
2.1 A tradução dos significados culturais: o que está por cima dos ombros
Nas últimas décadas, após o tribunal de júri instituído pelos pós-modernos, temos
assistido à obrigatória formação metodológica dos antropólogos no estudo do complexo
problema da tradução de significados culturais que encerra a produção de narrativas
etnográficas. Em sua maioria, os estudos problematizam o desencaixe espaço-tempo que
transcorre do trabalho de campo à escrita etnográfica quando essa se dirige para os estudos
de sociedades marcadas pela presença de uma tradição oral. Inúmeros desses estudos, aos
quais nos filiamos, apontam para a importância da reinvenção de técnicas e de
procedimentos metodológicos da Antropologia, em razão do processo através do qual o
antropólogo transforma o enunciado oral em literatura escrita, derivando daí a criação de
novos domínios do conhecimento nesse campo, como o caso dos atuais estudos de
narrativas a partir do uso de recursos audiovisuais na descrição etnográfica.
Certamente, a partir dos clássicos estudos da Escola Sociológica Francesa a respeito das
categorias de pensamento, de Émile Durkheim a Claude Lévi-Strauss, passando por Lucien
Lévy-Bruhl, não há intelectual no cenário do pensamento antropológico contemporâneo
que não reconheça serem, em maior ou menor grau, as narrativas orais faladas ou cantadas
e os relatos míticos, ficcionais ou históricos, “bons para pensar”, ou seja, formas
diferenciadas das sociedades e culturas humanas “fabricarem” conhecimento sobre o
mundo. Entretanto, apesar de concordarem no reconhecimento do status “científico” do
pensamento “nativo” tomado como paradigmático de sociedades tradicionais, alguns
discordam sobre a questão de superar o antagonismo dessas “formas de pensar”
(“mentalidades lógicas versus pré-lógicas”, “pensamento selvagem versus civilizado” ou
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dado empírico, sendo a escrita, neste processo, elemento importante de resgate da interação
social vivida pelo antropólogo com a comunidade investigada. Sob o ponto de vista dos
comentários vygotskianos, se os atos de escrita dirigem-se ao domínio e controle dos dados
empíricos é precisamente porque eles se dirigem ao controle da subjetividade do próprio
etnógrafo em situação de pesquisa. Nesse sentido, o trabalho de campo, ao ser mediado por
atos de escrita, revela seu potencial de “lembrança voluntária”, por parte do antropólogo,
de fatos e de situações vividas em campo. Logo, o diário de campo tanto quanto a
descrição etnográfica são momentos singulares de internalização de formas culturais do
comportamento “nativo”, pois é por meio da escrita que a voz do Outro se torna a base da
“fala interior” do próprio antropólogo. Dito de outra forma, a escrita etnográfica ao
configurar-se na própria tríade autor/tradutor/texto oportuniza ao antropólogo a
sistematização de seus pensamentos interiores e a construção de ações estáveis em relação
à cultura e à sociedade pesquisadas. Ao mesmo tempo, a leitura desta escrita projeta as
afirmações dos antropólogos para muito além daquilo que encerra a obra etnográfica no
contexto de sua comunidade lingüística de origem.
Fugindo-se abertamente de qualquer tendência a uma análise introspectiva da prática
antropológica, torna-se significativo, entretanto, que aprofundemos, aqui, um pouco mais
a função da prática da leitura e da escrita etnográfica através da propriedade que elas detém
de operar o pensamento antropológico em relação à captura da realidade das coisas
investigadas. Neste artigo estamos reivindicando ser o pensamento antropológico
ontologicamente instável, na linha dos comentários de Bronislaw Malinowski (1978) ao
apontar para o lento processo de construção de um pensamento conceitual por parte do
antropólogo a partir de sua prática de campo. Entretanto, acreditamos, falta-nos
compreender em que medida os atos de leitura e escrita etnográficas, a partir de suas
indeterminações, revelam-se como fenômenos fecundos da conformação do ato de
conhecer em Antropologia. Ao mesmo tempo, é precisamente na fragilidade
epistemológica presente a estes atos que o pensamento antropológico revela sua grandeza
como condição de interpretação do Outro, pois, no próprio ato de escritura, despontam os
duplos sentidos das coisas descritas ou narrados e a impossibilidade de afirmação das suas
propriedades intrínsecas. Essa característica prospectiva da leitura e da escrita na
construção do pensamento antropológico é que possui o poder de colocar sob suspeita a
condição de transparência entre as coisas ditas, vividas, faladas para e pelo antropólogo e
aquelas que a sua escrita pode capturar da voz do Outro.
A perfeição operatória da narrativa etnográfica depende, portanto, da capacidade de o
pensamento antropológico libertar-se das percepções oriundas das situações e dos
acontecimentos vividos ao longo do trabalho de campo, ou seja, a instauração da
objetividade, tanto quanto da subjetividade do pensamento antropológico, reside na
presença de uma “estrutura dramática” presente em qualquer pensamento humano. Parece-
nos importante voltarmo-nos para alguns “achados” de teorias que se autodenominam
“construtivistas pós-piagetianas”, que tentam compatibilizar a “teoria genética da
inteligência” e os achados da psicanálise. Em especial, atemo-nos aos estudos de Sara
Pain12 sobre a função da ignorância na constituição do pensamento concreto, nos quais a
autora afirma que todo o processo de construção do conhecimento aponta para o
entrelaçamento entre estruturas lógicas (cognitivas) e dramáticas (simbólicas) no
indivíduo.
Visto haver uma dupla estruturação do pensamento, na medida em que ele reflete
reciprocamente tanto a biografia do sujeito quanto os instrumentos cognitivos com os quais
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Utilizamo-nos aqui da obra de Sara Pain intitulada A função da ignorância (Porto Alegre, Artes Médicas,
2000), em especial a leitura do Capítulo 1, “O pensamento da ignorância” e do Capítulo 2, “Do instinto ao
pensamento”.
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ele opera sua coerência e unidade, podemos reivindicar a démarche fortemente heurística
da escrita etnográfica uma vez que ela pode revelar, como tratamento lógico, os dados
empíricos recolhidos em campo, tendendo à criação de um universo provido de coerência,
e que ela se configura como espaço à “subjetivação integrada” da própria etnografia, sendo
a responsável por evocar, no leitor, a presença de um objeto ausente e por preencher o
vazio que a inteligência mesma engendra na análise do dado etnográfico. Dessa forma,
podemos afirmar que os efeitos de realidade que presidem a narrativa etnográfica ancoram-
se ao mesmo tempo na “biografia cognitiva” do antropólogo, ou seja, na história do
percurso objetivo de seu pensamento, e na ordem dramática a partir da qual ele designa um
sentido a uma série de acontecimentos e situações vividas durante seu trabalho de campo.
Inspirando-nos ainda na leitura de Sara Pain (2000), podemos propor que toda a
narrativa etnográfica consiste em fazer-se voltar um objeto ao seu ponto de partida,
movimento que depende da capacidade do antropólogo promover um diálogo entre duas
estruturas do pensamento diferentes, mas complementares à formalização do pensamento
lógico: as estruturas “lógicas” e as “dramáticas”. A primeira “utiliza a linguagem, isto é,
opera por meio de palavras, no entanto, produz conceitos e não palavras”; a segunda
“possui a mesma estrutura da linguagem, são feitos da mesma substância”, permitindo-lhe
ir ao encontro de seu próprio inconsciente (Pain, 2000: 17).
Podemos ainda conceber a prática etnográfica como parte da história das práticas da
leitura e da escrita no Ocidente, seguindo a linha dos trabalhos de Roger Chartier (1993;
1996; 1999) e Walter Ong (1998), fato que nos ajudaria a pensar a produção do texto
etnográfico como filiada não só à história de longa duração dos grafismos na gênese do
pensamento, o que remonta ao paleolítico (Leroi-Gourhan 1965), mas à história de curta
duração da escrita, que cobre os últimos cinco mil anos, bem como à das invenções
técnicas a ela paralelas, como a do papel (I a.C.) e da imprensa (II d.C.), na China, apenas
para usarmos pouquíssimos exemplos para uma lacuna expressiva de tempo. Na
perspectiva da longa duração, poderíamos até mesmo apontar a filiação da escrita
etnográfica ao processo que implicou a passagem da forma oral primitiva da língua para
uma forma gráfica codificada. Isso porque a narrativa etnográfica seja a do diário de
campo, seja a da “descrição densa” (terminologia de Clifford Geertz), representa uma
tentativa de se reproduzirem os acontecimentos vividos em campo pelo antropólogo numa
seqüência sucessiva de palavras escritas. Para aqueles antropólogos que estudam a tradição
dos textos orais, o estudo da narrativa etnográfica ganharia outro nível de constrangimento,
como veremos a seguir, isto é, a busca de superação das dificuldades das correspondências
entre a seqüência gráfica da escrita do antropólogo e a seqüência falada por parte de seus
informantes, o que nos convoca a refletir a respeito das diferentes correspondências
possíveis entre o ato de falar e o de ouvir e entre ambos e o ato de ler e escrever para o
caso do método etnográfico em Antropologia. Se, por um lado, a leitura e a escrita
etnográfica originou-se da “tradução” de sistemas de pensar e de agir de sociedades
tradicionais, fundadas na enunciação oral (sempre um ato intransferível), interpessoal e
circunstancial, por outro lado, a leitura e a escrita dos antropólogos, ao liberar os
enunciados originais dessas culturas oriundas da palavra falada e dita, substituindo-os por
sua notação gráfica numa folha de papel, permitiu que o próprio ato de pensar na pesquisa
antropológica se afirmasse como um ato de exegese intelectual, ou seja, de busca de um
sentido profundo da fala “nativa”, ao final do qual pensamos nos aproximar da afirmação
de uma verdade pela coerência formal do récit.
Embora se pontue freqüentemente que o texto etnográfico funde-se nas tensões
envolvendo a tríade tradução/tradutor/traidor, traduzir-se a fala “nativa” para a linguagem
escrita não significa fazer-se emergir a voz do Outro por meio de constrangimentos
lingüísticos do código escrito, mas de transformar-se seu status, alterando-se a relação que
ele tenha com sua língua, que transforma a sua própria fala ao inseri-la no jogo social de
construção de sentido que lhe é estranho. Entretanto, mesmo pontuando as diferenças entre
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texto oral e texto escrito, acreditamos que não é possível se construir relações de ordem
total entre ambas, pois tanto a palavra dita quanto a escrita, conforme Jack Goody (1981:
45), podem ser “objeto de monopólio ou de transmissão restrita” assim como podem sofrer
do mal da opacidade seja em sociedades de tradição puramente oral, seja em sociedades
que se pautem por uma comunicação escrita. A entrada de civilizações no mundo da escrita
não elimina a transmissão oral nas sociedades humanas, embora muitos tenham
diagnosticado tal fim. Para alguns autores, como veremos a seguir, é precisamente essa
mutação cultural que conduziria ao fim de uma arte, a arte de narrar, no Ocidente moderno.
em que a “subjetividade do narrador comprova-se na força para produzir esta ilusão”, com
a passagem do tempo, ela se pretende herdeira do gesto que cria o romance moderno em
sua pretensão de desvelar o “acarretar ilusório da coisa representada” ao pontuar “a
mentira da representação” contra a própria figura do antropólogo narrador (Adorno
1978:272).
Ampliando o quadro reflexivo aqui exposto, para além das pesquisas de mito e folclore,
os estudos das práticas de leitura e escrita na história do Ocidente moderno, reunidos às
pesquisas recentes sobre a perseverança de uma tradição oral no contexto das grandes
metrópoles contemporâneasii0, podem ser ainda mais fecundos para se compreender o
antropólogo na figura do narrador e refletir sobre a arte de narrar em Antropologia como
parte integrante da construção de sua autoridade etnográfica. Da mesma forma, tais
estudos, associados a pesquisas em torno da disseminação de uma tradição oral no contexto
das grandes metrópoles contemporâneas, podem ser ainda mais fecundos para se
compreender a falácia de um pensamento antropológico que constrói a dissociação
antagônica entre escrita e oralidade a partir da dicotomia entre sociedades modernas
urbano-industriais e sociedades tradicionais, seguindo estudos taxonômicos das situações
históricas vividas pelas sociedades ocidentais.
A controversa entre autenticidade e a fidedignidade do texto escrito pelo antropólogo
face à tradição oral do falante nativo, sob o pano de fundo do debate em torno das relações
de poder que subjazem o fluxo da interação do antropólogo com a cultura que esta sendo
investigada, é aqui uma provocação para todos nós que estamos preocupados com a
construção do encontro etnográfico durante o trabalho de campo, ou, logo após, com a
autoridade etnográfica durante o processo de escritura dos resultados de nossas pesquisas.
Referimo-nos aqui, em particular, a preocupação com a fixação escrita do discurso narrado
e/ou texto oral nativo enunciado e os riscos de sua descontextualização no momento em
que o antropólogo, ao transcrevê-los, separa a fala nativa das “províncias de significado” e
dos “códigos de emoções” (Velho, 1979) aos quais fazem alusão na vida cotidiana dos
indivíduos e/ou grupos sociais investigados.
Contrariamente ao que pretendiam muitos dos críticos da Cidade moderna, para aqueles
que, como nós, nos dedicamos à pesquisa da memória do cotidiano a partir das histórias
vividas e narradas pelos habitantes nos grandes centros urbano-industriais, a experiência
etnográfica da fala nativa, ao ser transposta para o texto escrito, contrariando as previsões
de Adorno (1978) e Benjamin (1978), não adquire o caráter de uma mera informação a ser
traduzida a uma comunidade lingüística particular, a dos antropólogos.
As histórias vividas pelos “nativos” urbanos que chegam até nós através de repertórios
de narrativas que são registradas por câmeras de vídeo e gravadores digitais (a partir,
inclusive o uso de diversos tipos de microfones) continuam a longa tradição das técnicas e
procedimentos de pesquisa antropológica tais quais as clássicas anotações à mão no diário
de campo. Entretanto, apesar de tais histórias serem capturadas por instrumentos
sofisticados que dão ênfase a autenticidade e fidelidade ao contexto social no qual estas
narrativas foram tradicionalmente contadas, nem por isto, se apresentam como fenômenos
que dispensam as exigências de cumprimento de uma pronta verificação científica. Neste
ponto, um (texto escrito) e outros (registros sonoros e visuais) acabam sendo reconhecidos
como depositários do próprio “encontro etnográfico” do antropólogo com o grupo e/ou
comunidades pesquisadas, no sentido de serem o “estatuto de testemunho” da voz do Outro
no contexto de uma paisagem urbana em constante transformação.
E importante reconhecer que, inúmeras vezes, é o caráter testemunhal dos registros dos
antropólogos, neste caso, precisamente por sua condição de documento textual fixo pela
escrita ou de documento sonoro e visual descrito pela imagem técnica, desvenda o
complexo compromisso da narrativa etnográfica com o destino de uma comunidade e/ou
grupo em vias de extinção. Por sua condição de “guardiões” da memória a escrita, assim
como os registros sonoros e visuais, ao fixarem os traços da tradição dos grupos
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alfabetização nas aglomerações urbanas européias do século XVIII. Entretanto, uma tal
interpretação apesar de nos permitir uma reflexão sobre as praticas sociais da leitura e da
escrita no Ocidente moderno, pode gerar alguns equívocos, tal como apontar para o fim da
arte de narrar e para a morte da figura do narrador como condição da vida mental nas
grandes metrópoles contemporâneas, como o fizeram pensadores como Theodore Adorno
(1978) e Walter Benjamin (1978).
Em particular, os estudos antropológicos que vimos realizando sobre o tema da
memória coletivas, itinerários urbanos e formas de sociabilidade no mundo urbano
contemporâneo têm nos revelado exatamente o contrário, isto é, a perseverança das
narrativas orais e isto, em particular, entre os “praticantes” ordinários de uma grande
metrópole para quem as “enunciações pedestres” tem mais valor do que a autoridade dos
textos escritos sobre os lugares da vida urbana (De Certeau 1994: 155-167). Por outro lado,
temos constatado que a produção de narrativas etnográficas da cidade como parte
expressiva de uma cultura urbana transmuta a figura do antropólogo na figura do narrador,
em especial quando o antropólogo beneficia-se da “gesta ambulatória” (De Certeau 1994:
176-191) que orienta as formas dos indivíduos e/ou grupos se apropriarem dos espaços e
territórios da cidade como processo de re-configuração dos acontecimentos por eles
narrados.
Mais uma vez distanciando-nos dos estudos de tradições orais como parte dos estudos
de mito, gostaríamos de situar aqui a retomada da polêmica da morte da figura do narrador,
agora na pessoa do antropólogo, e em decorrência da controversa instaurada pelos pós-
modernos no que tange ao tema da autoridade etnográfica que tece a escrita antropológica
por ser ela uma tradução/traição da “fala” nativa, aliada a sua condição de fixação do oral
para o escrito.
Atendo-nos ao enfoque da escrita etnográfica como ato de narrar ao invés de reduzi-la a
sua condição de texto escrito, buscamos aqui valorar positivamente a polêmica pós-
moderna no sentido do que ela significou, ainda que de forma equivocada, um alerta para a
rarefação da arte de narrar no corpo das tradições e paradigmas adotados pela
Antropologia. Da mesma forma, gostaríamos de refletir sobre os efeitos de uma tal
polêmica no sentido de ensejar, entre os antropólogos, o debate acerca do compromisso
desmedido que todos assumimos com a pronta verificação das informações obtidas em
campo por meio do método etnográfico, e isto, em particular, no momento em que nos
propomos à dura tarefa de fixar no texto escrito a experiência humana vivida em campo
para a comunidade lingüística da qual fazemos parte.
Embora contendo ranços positivistas, no coração da polêmica introduzida por essa
corrente de pensamento, o que podemos deter como lição é o questionamento da
propriedade do pensamento antropológico capturar o sentido das coisas ouvidas, vividas e
experimentadas pelos grupos com os quais trabalha. Seus efeitos benéficos, se assim é
possível dizer, foi apontar para a origem “desconhecida” do método etnográfico, isto é, as
formas simbólicas pelas quais se expressa a linguagem humana. Valendo-se dos
comentários de J-P. Benoist sobre a figura de Sócrates tal qual apresentada por Platão em
seus Diálogos, poderíamos dizer que a polêmica instaurada pelos pós-modernos contribuiu,
ao contrário de expectativas mais funestas, para que o método etnográfico retorne “às suas
origens indeterminadas, adormecidas num tempo encoberto”, ao conferir à escrita
etnográfica “uma espécie de evocação aos mortos cujo pensamento encontra-se tão distante
quanto esses” (Benoist, 1975:53).
Temos que reconhecer que a partir dos pós-modernos, subverte-se, na consecução do
método etnográfico, todo o interior da relação entre o autor e seu texto ou entre o autor e
seus personagens, assim como as próprias palavras do autor original encontram-se
misteriosamente aprisionadas na rede de significados do autor do texto. A persistência do
uso da categoria do “próprio” que configurava a autoridade do texto etnográfico, isto é, a
conservação da identidade ontologicamente determinada do antropólogo e do suporte de
29
Verdadeira gnose do tempo e do espaço, as narrativas que se teciam diante de nossos olhos
revelavam-nos seu caráter iniciático, uma vez que elas nutriam-se de sua adaptação às
vidas vividas por eles.
Por isto mesmo, acompanhar o registro de suas narrativas no sentido de restaurar seus
movimentos e desenhos no intervalo de espaço-tempo da sua enunciação significava,
consistiu para nós, uma conversão às coisas contadas, em aderência viscosa a ponto de
vista dos velhos narradores. Seus relatos eram carregados de segredos e de mistérios que
não eram os seus próprios, mas os da própria linguagem que configurava o passado de sua
gente, não se tratava mais de descobrir ou desvendar esses segredos e mistérios, mas de
decifrá-los seguindo a voz do narrador cuja palavra enunciada procurava pela decifração de
si mesma a decifração da sua identidade do mundo.
O que as experiências vividas em campo com tais mestres da narração tiveram o poder
de nos revelar foi que todo o conhecimento, mesmo aquele que o antropólogo gera durante
o processo de domesticação de seu pensamento por meio da escritura etnográfica, é
revelação do seu próprio ato de conhecer. Foi essa experiência etnográfica junto a velhos
contadores de causos nas mais diversas cidades no interior do Estado do Rio Grande do Sul
que nos permitiu repensar as relações entre pensamento, linguagem e escrita na
conformação do método etnográfico.
Sem dúvida, embora a tecnologia da escrita seja o berço da construção de nossos
argumentos e pensamentos científicos, é na tradição oral que submergimos durante a
realização do trabalho etnográfico. Mesmo quando nosso olhar se debruça sobre as
condições materiais e tecnológica das produções culturais humanas, não pode prescindir da
tradição oral dos grupos com os quais trabalhamos para atingir a compreensão de sentido
de tais produções. Ainda que tenhamos procurado ampliar nosso “olhar” etnográfico ao ato
fotográfico e aos registros videográficos ou fílmicos das falas de nossos informantes,
durante o trabalho de campo realizado em 1998, jamais conseguimos prescindir da atenção
da “escuta etnográfica” como aspecto fundamental para a compreensão dos sentidos que
teciam o relato de suas próprias experiências de vida. Neste ponto, acabávamos por
reconhecer que não era a fixação da imagem visual ou sonora do Outro numa folha de
papel ou numa película o que mais nos impelia a pratica etnográfica, bem ao contrario, era
o compartilhamento da riqueza da vida vivida dos nossos “nativos” que nos tornava
antropólogos. Era o sentido quase intangível das ações humanas e das suas intenções que
nos interessávamos em compartilhar, pois confrontados com vestígios de uma cultura, os
restos indiretos das ações humanas no mundo, são a descoberta, por inferência, da lógica
do sentido de tais obras que movia nosso fazer antropológico.
Hoje, tendo se passado mais de 5 anos desse encontro, não temos duvida alguma de que
Dona Maria nos acenava para o sentido de movimento intrínseco que constitui a palavra,
na tradição de uma cultura oral, mesmo quando enunciada para letrados. Na sabedoria de
vida dessa velha senhora, a palavra é o lugar de uma memória e, ao ser enunciada, gira,
desdobra-se e não se exaure no que é dito; girando, a palavra movimenta-se, ecoa no
ouvinte, fazendo-o cúmplice da coisa narrada. Sim, a palavra enunciada tem a força de se
perpetuar no dom da escuta e, assim, ela retorna àqueles que dela se valem. A palavra
enunciada, para sobreviver, precisa do ouvinte. Escutar-se a palavra enunciada desdobra-
se, portanto, num compromisso oculto com ela, isto é, em conservar-se coesa sua força de
germinação, propagando-a no tempo. A lembrança do som voz nos evoca, ainda hoje, o
tipo de comprometimento ético que deve pautar a entrega do antropólogo ao que lhe esta
sendo relatado assim como nosso compromisso com a perpetuação das palavras proferidas
projetando-as para alem daquele que as enuncia. E precisamente nesse contexto que a
descrição etnográfica assume a perspectiva de um esforço, por parte do antropólogo, para
reatar o sentido dessa experiência no tempo só possível de ser alcançado pelo benefício da
narrativa etnográfica.
Por tudo o que vimos afirmando neste artigo é que insistimos aqui na idéia de que a
produção etnográfica em Antropologia revela-se herdeira da grande linhagem de
narradores. Nessa perspectiva, o fazer antropológico entra em movimento juntamente com
a própria matéria de onde surgem suas histórias, a finitude que abarca a vida vivida dos
grupos humanos. Como bem afirmou Walter Benjamin (Benjamin, 1995:207), a morte é a
“sanção de tudo o que o narrador pode relatar”. Essa afirmação se adensa aos olhos do
antropólogo quando sua experiência etnográfica abarca a tradição de uma cultura oral, pois
a continuidade das coisas narradas depende da responsabilidade e do comprometimento
daquele que as escuta.
Dito isso, vem-nos à lembrança outro comentário colhido em campo, durante o registro,
em vídeo, dos “causos” misteriosos vividos pelo Seu Pércio, na cidade de Santo Ângelo,
região das Missões, no decorrer de sua infância e adolescência nos “rincões” da terra natal.
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Trata-se de projeto de pesquisa desenvolvido pela equipe do Banco de Imagens e Efeitos Visuais (LAS,
PPGAS, UFRGS), coordenado por Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert, tendo por base uma
pesquisa de campo em regiões rurais do estado do Rio Grande do Sul, entre as quais a região missioneira do
noroeste do Estado. Este projeto objetiva o desenvolvimento de um documentário, ainda em andamento, sob
a direção da pesquisadora Ana Luiza Carvalho da Rocha, com imagens captadas pelo antropólogo Rafael
Devos, pesquisador associado do BIEV. As regiões aqui referidas e visitadas, nos anos 2000 e 2001,
consistem no universo de pesquisa etnográfica do antropólogo Flávio Silveira, pesquisador associado do
BIEV.
32
Da mesma forma que Dona Maria, Seu Pércio, ao ressaltar a importância do acontecimento
narrativo que ali estava sendo vivido por todos nós, parou, olhou-nos e disse:
Hoje em dia, tudo mudou. Tá tudo explorado. Mas tem coisas bonitas na vida da gente.
A história, as nossas histórias. Essas pesquisas que vocês estão fazendo. Ela é a
continuação de histórias, a continuação de vidas, das nossas raízes que vêm de lá do
fundo do chão. E as raízes são vida. Uma árvore que não tem raiz não tem vida, não é?
Ela tem que ter raiz.
Logo, como sugere Seu Pércio, uma vez ouvinte, o antropólogo imediatamente se torna,
ele também, parte da coisa narrada. Assim, é lícito ressaltarmos aqui, em face do que
vimos expondo, que a autoridade do antropólogo reside justamente na origem da narrativa
etnográfica, derivando sua força escritural da própria morte das vidas vividas que sua
escritura evoca. Ironicamente, toda a narrativa etnográfica pretende capturar o movimento
da vida vivida, sendo por ele capturada, tornando-se o antropólogo, tragicamente, preso
desse encadeamento insondável do próprio sentimento do tempo. Isso porque quem ouve
uma história está na companhia do narrador, e mesmo quem a lê compartilha de sua
companhia.
Em nosso trabalho de campo, quase sempre mais orientado para as teorias da ação
social, poucas vezes damo-nos conta de que não se trata de uma relação ingênua aquela
que existe entre a escuta do antropólogo e a fala do nativo. Como nos lembra Seu Pércio,
somente a figura do etnógrafo, travestido na pele do narrador, pode garantir a eternidade da
palavra recém enunciada, pois, na escrita, reside a possibilidade de reprodução e
continuidade das histórias vividas. A indiferença do antropólogo para com as coisas que
lhe são narradas pode, assim, gerar a morte da figura do narrador na sua própria pessoa e,
conseqüentemente, a morte das vidas vividas do Outro.
Concordando com Adorno e Benjamin, neste ponto, podemos afirmar que não é,
portanto, meramente no conteúdo informativo que reside o vigor criativo da produção
antropológica passado mais de um século de sua fundação como campo disciplinar.
Acreditamos que o segredo de sua força de germinação está, certamente, na relação que o
etnógrafo, como narrador, institui com a matéria do conhecimento, traduzido, nas diversas
obras da cultura humana, territórios onde se mescla não só a própria experiência
antropológica, mas a dos outros com quem convive, ambas alimentando sua arte de narrar.
Não se pode excluir aqui o ato de narrar, obra da voz, daquele que os gestos expressam,
incluindo-se os gestos da mão na produção da escritura etnográfica que realiza
solitariamente o antropólogo, após seu retorno do campo, ou os gestos de coordenação
aprendidos no trabalho de registro de imagens visuais ou sonoras, na ação artesanal de
fazer durar aquilo que o olho vê durante o próprio trabalho de campo.
Paradoxalmente o método etnográfico aplicado ao estudo da memória coletiva nas
modernas sociedades complexas é que nos permite visualizar que a morte da arte de narrar
não esta associada ao avanço da civilização urbano-industrial e de sua tradição escrita.
Bem ao contrário, a Cidade moderna revela a frágil condição humana ao apontar para a
impossibilidade dos povos e culturas se perpetuarem no tempo e no espaço sem atribuir, ao
ato de narrar, o nobre lugar de construção do conhecimento de si a partir do testemunho
legado pelo Outro, pois a vida urbana situa todos nós nas experiências tecidas por
memórias compartilhadas.
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CAPITULO III
AS ELIPSES TEMPORAIS E O INESPERADO, ETNOGRAFANDO A CIDADE
O ato de etnografar a cidade a partir dos fragmentos de sua antiga paisagem urbana é
um processo de investigação antropológica que vem permitindo, de forma cada vez mais
profícua, a construção de novas interpretações sobre as dinâmicas sociais no mundo
contemporâneo a partir de contextos históricos singulares. Abordamos esse tema baseadas
na experiência etnográfica na cidade de Porto Alegre, em pesquisa iniciada em 199719 que
tem como ponto central a idéia da construção de etnografia da duração como modalidade
compreensiva das feições da crise e do medo nos “tempos modernos”. Trata-se de
investigarem-se as representações simbólicas através das quais os habitantes dessa cidade
constroem seu tempo social ao lhe conferirem sentido segundo as lembranças selecionadas
dos ritmos vividos em suas trajetórias sociais e de seus itinerários urbanos.
Nossa pesquisa iniciou-se tendo como lócus de reflexão o postulado da pluralidade de
memórias coletivas que configuram as atuais formas de sociabilidade dos diferentes grupos
que conformam o teatro da vida urbana porto-alegrense, tendo por interesse o estudo das
formas diversas de os sujeitos sociais interpretarem e narrarem o seu viver na cidade e, em
particular, apontando, na linha de alguns comentários de Norbert Elias (1994, p.61-125),
para o tema das auto-imagens consubstanciadas no medo de indivíduos e sociedades.
Perseguindo o questionamento em torno dos lugares onde se enraízam os medos
individuais e coletivos na atualidade, tratava-se, assim, de perscrutarmos, como sugere
Jean Delumeau (1989), a respeito do que os habitantes de uma grande cidade têm medo.
Refletindo sobre as indagações de Gilberto Velho, ao afirmar que, em face dos anúncios
do aumento desmesurado da violência nas grandes cidades brasileiras e diante da
insegurança quanto à ação de setores do próprio Estado, a questão da sobrevivência nas
grandes cidades assumiria aspectos especialmente dramáticos para alguns segmentos
sociais, passamos, então, ao longo da pesquisa etnográfica no contexto urbano de Porto
Alegre, a “especular que essas seriam variáveis importantes para compreender uma espécie
de individualismo agonístico que se tornou cada vez mais freqüente nas camadas médias
brasileiras” (Velho, 1987, p.4).
Numa primeira aproximação com essa problemática através de análise de material
veiculado pelas imprensas escrita e televisiva local e nacional, os dados etnográficos
indicavam que, não raro, a imprensa brasileira, ao divulgar as causas da violência urbana,
revelava uma tendência a identificar, como um dos personagens centrais da trama urbana
violência-criminalidade-medo, a figura genérica do “pobre” e a vincular tais eventos e
19
Dando ênfase à observação do comportamento concreto e da prática cotidiana dos grupos urbanos, o
exercício etnográfico que desenvolvemos no projeto integrado CNPq intitulado Estudo Antropológico de
Itinerários Urbanos, Memória Coletiva e Formas de Sociabilidade no Mundo Urbano Contemporâneo
insere-se no objetivo amplo da pesquisa de conhecer o significado associado ao fluxo de experiências,
interações cotidianas e situações concretas dos habitantes da cidade estruturadas pelo sentido de suas
ordenações temporais. Isso nos remete a estudar a dimensão das representações na maneira pela qual os
sujeitos constroem seu tempo social e conferem sentido às experiências individuais e coletivas na sociedade
moderna atual a partir de lembranças selecionadas e de ritmos vividos na suas trajetórias e histórias pessoais,
de família, de redes diversas.
36
3.1 A gente acaba tendo que conviver com o medo, com cuidado...
A assertiva que abre esta seção foi uma das tantas afirmações de Roberta, artista
plástica, 48 anos, moradora de um bairro típico de classe média em Porto Alegre,
entrevistada em 1998, que narrou, minuciosamente, suas observações cotidianas do bairro
onde morava, uma vez que estva sempre muito atenta aos acontecimentos considerados
violentos, por ter dois filhos e temer pela integridade de ambos. Segundo Roberta, a
característica da vida cotidiana no bairro era a de esse ser um território sistematicamente
“visitado” por gangues que ameaçavam a tranqüilidade de seus moradores. A recorrência
de tais “visitas” era lógica, sobretudo pelo fato de ser esse território da cidade o itinerário
de fornecedores de drogas para responderem às demandas de seus clientes das camadas
médias locais.
Interrogada sobre o conhecimento acerca de possíveis formas de reivindicação e/ou
organização dos moradores do bairro por maior segurança, policiamento, etc., Roberta
ponderava, nas suas reflexões, a respeito da inexistência dessas manifestações devido ao
fato de as pessoas, de modo geral, temerem a própria estrutura e dinâmica do policiamento
20
A forma de registro dos relatos consistiu-se ora de gravador K-7 e ora de vídeo digital. Este capítulo,
porém, utiliza-se apenas de relatos captados em gravador e transcritos para análise, tendo-se empregado
nomes fictícios para personalizar os entrevistados.
37
aquelas que armam estratégias de convívio nos territórios urbanos nos termos da
manutenção da continuidade de suas práticas e sociabilidades cotidianas. Sob esse ângulo,
ao “experienciar” esse complexo campo das feições da crise e da violência urbana no
mundo contemporâneo, Roberta percebia fatores e forças externas atuando na forma como
configurava a dinâmica de suas interações e sociabilidades cotidianas.
3.2 Eu passei a ter medos, toda uma coisa que eu tinha medo... medo do inesperado...
Questionando as suas experiências de insegurança, de ameaça à integridade física e
psicológica no dia-a-dia da coletividade, Roberta sugeriu nos apresentar uma amiga que
poderia fornecer mais indícios para a pesquisa. Letícia, moradora do mesmo bairro, atriz,
51 anos, viúva, segundo ela, teria passado por experiências singulares de violência urbana
que a conduziram a freqüentes “crises de pânico”. Letícia, ao receber-nos para nossa
primeira entrevista, logo nos familiarizou com suas experiências de vitimização que a
levaram aos sintomas da doença do pânico, encontrando-se assim sob acompanhamento
médico.
Letícia era a décima sétima pessoa pertencente cultural e economicamente às camadas
médias intelectualizadas em Porto Alegre que havíamos entrevistado desde 1997.
Comparando a vida cultural de Porto Alegre à de outras metrópoles, relatou que, há três
anos, havia sido convidada por uma amiga para fazer uma viagem a Buenos Aires a fim de
assistir ao show da cantora Lisa Minelli. Alguns dias antes de embarcar, percebendo um
caroço no seio, desistiria da viagem, iniciando, a partir daquele momento, um percurso
doloroso de tratamento contra o câncer, até, finalmente, sua luta culminar com uma
intervenção cirúrgica que lhe possibilitou a reconquista da tranqüilidade. Em particular,
rememorando esses momentos passados, Letícia pontuou o início de suas “crises de
pânico” ao relatar que, após a cirurgia, ao voltar ao hospital para fazer curativo, o
enfermeiro que lhe atendera, aliás “um bicha, embora não tenha nada contra os veados”, ao
olhar para ela, comentou: Como é que tu deixaste chegar a esse ponto? A minha irmã
deixou e está morrendo agora”. Identificando esse incidente como o responsável por sua
desagregação emocional posterior ao associar os comentários do enfermeiro com outras
situações de “ameaças” vindas do mundo social, ela complementou seu relato:
Para mim, isto foi uma baita violência, uma violência verbal, como todas as coisas que
vêm de tudo que é lado, pelo jornal, pela televisão, é muita violência. No outro dia, eu fui
ao médico e contei para ele, aí ele disse que eu não devia me preocupar, que não era nada.
Daí, ele sugeriu que eu procurasse uma enfermeira que eu conhecesse para tirar os pontos,
eram cinco. Era para eu evitar encontrar o enfermeiro de novo.
Segundo Letícia, essa situação teria sido responsável por um “efeito dominó” em sua
vida, uma vez que, antes dessas duas experiências vividas no hospital, ela nunca havia
experimentado, com tamanha intensidade, a sensação de medo. Até então, sempre fora
alguém que saía, freqüentemente, passeando com sua filha, indo a jantares, rotinas essas,
segundo ela, absolutamente normais. Em razão dos episódios traumáticos, Letícia recorria
às visitas regulares de uma enfermeira, responsável por seu tratamento pós-cirúrgico em
casa. Na seqüência de seu relato, ela lembrou que, em 1996, devido à falta de pontualidade
da enfermeira contratada, em um determinado dia, sua filha decidiu levá-la de carro até a
casa onde a profissional morava. Entretanto, sem querer esperar pela filha, resolveu ela
mesma dirigir o carro até a farmácia do bairro próximo de sua casa na busca de auxílio
médico:
A farmácia fica ali esquina da Assis Brasil com a Benjamim. A enfermeira era
professora de faculdade e disse que era barbada [fazer o curativo]. Aí me levou para uma
salinha e tirou os pontos. Depois me deixou bem à vontade para eu me vestir e voltou para
atender no balcão junto com um rapaz que trabalha com ela e é também seu aluno na
faculdade. Eu botei a minha roupa, peguei a minha carteira e vim em direção ao balcão,
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por dentro, e quando eu perguntei para a enfermeira quanto eu devia, eu olhei para a porta
e vi entrarem três homens. Um veio na minha direção, e isso eu não vou me esquecer
nunca. Ele abriu seu casaco e tirou lá de dentro um 38 [revólver] e botou na minha cabeça
e já foi me levando lá para dentro da salinha. Eu virei, e baixei a cabeça, e fui entrando,
fiquei ajoelhada, e ele dizia: - Não levanta a cabeça, não olha para mim que eu te dou um
tiro na cara! O rapaz ficou junto comigo, os outros dois estavam depenando a farmácia, e
os outros três fregueses que estavam ali. Eu peguei a mão do rapaz que trabalha na
farmácia e comecei a rezar baixinho e dizia para ele pensar no filhinho, porque eu sabia
que a mulher dele estava grávida. Em cima da nossa cabeça, tinha um armário que esse
homem desconfiou que tinha barbitúricos, remédios, aí ele abriu o armário e levou tudinho.
E foram embora, eu não sei quanto tempo durou, porque toda a minha vida passou ali na
minha cabeça, a minha mãe, a minha filha, o medo que tive da minha filha ir até lá atrás de
mim. Saímos dali, eu e um senhor de quem tinham levado o carro, e fomos para a
delegacia de polícia dar parte e ligar para os bancos, porque tinham levado todos os nossos
documentos. E, de lá, eu vim para casa, de táxi e catatônica. Eu me sentei na cama e fiquei
olhando para frente, até que a minha filha veio aqui em casa. Naquele dia, eu fiquei
catatônica, tal o pavor que eu senti, foi muito louco. No outro dia, os mesmos caras
mataram o professor de Educação Física que ia pegar a namorada para ir numa festa, eles
deram seis tiros à queima roupa. Eu abri o jornal e dei de cara com aquele que tinha ficado
com o revólver apontado para a minha cabeça. Aí, me liga o senhor que te falei, para dizer
que todos os meus documentos estavam dentro do carro dele, usado no assalto, e que eu
podia ir buscá-los. Eu fui lá, os meus documentos estavam todos ensangüentados, eu
rasguei tudo, mandei fazer tudo de novo e, por medo, não fui reconhecer os caras na
delegacia. Porque eu conheço bem o sistema penitenciário brasileiro, e eles tinham meu
telefone, endereço. Por medo, eu não fui, eu quis esquecer isso. Eu tenho medo, tenho
medo, me neguei. O homem também não foi, e a enfermeira também não, e ainda por cima
fechou a farmácia e foi dar aula na universidade, coisa que já fazia. E isso deixou em mim,
gurias, um sentimento... bom, eu nunca mais dirigi, eu... olha, que eu dirigia sem o menor
problema. Eu trabalhei seis anos no centro, no atelier que eu tinha com a Rosane, e ainda
largava ela em Ipanema [bairro distante da área central da cidade] depois do trabalho.
Agora, eu vendi o meu carro, por medo. Eu passei a ter medos, toda uma coisa que eu tinha
medo... da família... pois na minha casa era uma ditadura... passei pelo medo da ditadura e,
agora, que, na maturidade, eu pensava em aproveitar, de dois anos para cá, eu passei a
sofrer desses medos.
Ao solicitarmos a Letícia que falasse acerca dessa sensação de medo que lhe
provocavam as lembranças das situações vividas, a qual seu médico diagnosticara como
“doença do medo”, ela nos descreveu como o medo do inesperado. Segundo ela, tratava-se
do medo de qualquer coisa que pudesse ocorrer na sua vida que lhe causasse angústia e
sofrimento, medo de ameaçarem tanto sua integridade física, quanto a de sua filha. As
“crises de pânico” mencionadas por Letícia, na época da entrevista, estavam sendo
controladas por medicação, ainda que persistisse sua tendência a restringir sua vida
cotidiana à ambiência de seu apartamento, sem dirigir seu carro ou sair sozinha à rua.
Embora o sentimento de insegurança pontuado no depoimento de Letícia diferencie-se
da experiência de violência e vitimização que indicaria índices de dinâmica criminal (cf.
Soares, 1995), até certo ponto, a situação, de clausura em que ela se encontrava pode aludir
ao sentimento de crise e medo constatado em camadas médias urbanas, o qual é um dos
responsáveis, em determinados bairros de Porto Alegre, pela visível recorrência ao uso,
nos prédios de apartamentos e condomínios horizontais, dos mais diversos sistemas de
alarmes e vigilância, de grades e muros e, inclusive, de campos elétricos em torno de pátios
residenciais, além de sofisticados aparatos tecnológicos de sistema interno de televisão, à
disposição no mercado, que se aprimoram com a finalidade de defender contra assaltos,
seqüestros e roubos. A mudança de hábitos de Letícia convergia, de forma evidenciada,
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presídio, decidiu pela interrupção das atividades ali desenvolvidas. Entretanto, um ano
após, as funções de presídio foram reativadas com o propósito de o lugar tornar-se uma
“prisão castigo”, aonde seriam levados os indivíduos considerados de alta periculosidade.
Certamente esse período já nos insere em questões mais recentes relativas ao aumento da
criminalidade no meio urbano. Nos anos 1990, uma nova comissão de deputados visitou a
ilha, ocasião em que foi constatada a precariedade referente ao funcionamento do presídio,
ficando decidida, finalmente, a suspensão total das atividades carcerárias no local.
Do processo relatado aqui, hoje, só restam as ruínas com uma densa vegetação
cobrindo, aos poucos, os seus escombros. A presença insidiosa do passado político vivido
por nós, pesquisadoras, rememorado através das imagens gravadas, além de remeter às
nossas próprias trajetórias e itinerários na vida urbana de Porto Alegre nos anos 1970/80,
apontava para um problema téorico-conceitual a ser investigado no cômputo da etnografia
da duração como modalidade do estudo das feições da crise e do medo na cidade de Porto
Alegre.
A noção de ruína imediatamente remeteu-nos à obra de Georg Simmel O Conceito e
Tragédia da Cultura, em particular a seu ensaio cujo título é Ruína, onde o autor apropria-
se dessa imagem como expressão do conflito de forças contrárias, a Cultura e a Natureza,
na produção das obras humanas. Aqui, a ruína apresenta-se como vingança das forças da
Natureza em face da arrogância do espírito colonizador do homem em sua marcha
civilizatória. Refletíamos, então, em oficinas teóricas, sobre os dados da pesquisa
etnográfica no que tangia à questão da temporalidade e da ruína. Discutíamos, assim, as
formas de expressão da domesticação do tempo expressas nas transformações estéticas
presentes na paisagem urbana de Porto Alegre no sentido de compreendermos o sentido
atribuído por seus habitantes a sua matéria edificada e, posteriormente, supliciada.
O tema da ruína desafiava-nos, portanto, para a compreensão de sua força de
transcendência, não como mera submissão aos trabalhos do tempo, mas como referência a
sua matéria perecível, eternamente retratada na lembrança da gênese da sua antiga forma,
evocada por seus fragmentos. Seja pela indiferença, seja pelo abandono, diante da imagem
de uma ruína, o homem, finalmente, liberta-se de sua própria obra, pensada e construída,
deixando-a livre a autopoéisis de suas formas. Nesse sentido, com a ruína, a natureza
vinga-se, então, da violência que foi imposta à sua matéria pela mão humana que a
domesticou, moldando-a e conformando-a à sua imagem e ideal. A natureza cobre a ruína,
como o perpetra nos escombros que restam, ainda, na ilha do Presídio, desgastando-a com
suas energias temporais (erosão, chuva, vento, etc.).
Ao refletir sobre os efeitos provocados em nós, pelos restos da antiga cadeia, na
experiência de campo na ilha do Presídio, acabamos por constatar que as ruínas constituem
um universo melancólico unindo a memória ao esquecimento, na referência benjaminiana.
Sua alegoria revela a transitoriedade dos homens e da consciência dos sentidos depositados
nas coisas, mas que persistem, para além do esquecimento, na natureza enlutada. A ruína
aqui seria, então, a reminiscência de um gesto humano que ultrapassa a destruição criativa
da cidade dos homens, a memória involuntária que configura a própria inversão da
efemeridade do projeto moderno, despertando o melancólico para o trabalho de reordenar
as camadas de lembranças no presente; ecos que interrogam a respeito das camadas de
estruturas espaço-temporais da memória coletiva que encerra essa imagem-território da
ambiência urbana porto-alegrense, de conflitos e tensões de viver na cidade no fluxo da
história.
Passamos, assim, lentamente, a ajustar nossos questionamentos sobre o lugar da ruína
nos jogos da memória e esquecimentos dos porto-alegrenses, seguindo nossas próprias
experiências como moradores da cidade. A imagem visual estimulava a interpretação
desses restos e escombros para além da estética comum no ambiente da cidade, um
território-mito na memória de tempos traumáticos da vida urbana do País. A ruína parecia,
então, como afirma o pensamento benjaminiano, as experiências do presente que nos
43
CAPÍTULO IV
A descoberta das formas de vida social no meio urbano, como objeto de estudos,
obrigou o antropólogo a voltar-se para sua sociedade na busca do entendimento de seus
próprios sistemas de significações, através de uma preocupação singular com o conteúdo
simbólico das cidades “enquanto representação do universo pelo homem e mediação na
integração do homem nesse universo” (Leroi-Gourhan, 1965).
Nesse percurso de conformação do campo conceitual da disciplina, é notório o quanto a
Antropologia do mundo contemporâneo deve aos intelectuais da Escola de Chicago, os
primeiros a interessar-se pelo problema da desorganização, desestruturação e anomia
acarretadas pela concentração das massas nas megalópoles contemporâneas. A essa
vertente de estudos e pesquisas sobre a cidade, responderam outros intelectuais, formados
nos quadros de uma sociologia européia e dedicados ao estudo do mundo urbano e dos
problemas das relações entre capital, trabalho, lazer, individualismo, etc.
Parte do legado do qual usufruímos sobre os estudos das modernas sociedades
industriais deve-se à obra de Georg Simmel e a sua atração intelectual pela diversidade
indefinida das formas de vida social no mundo contemporâneo. Em suas análises sobre a
vida metropolitana e a filosofia do dinheiro, Simmel revelou-se, para o campo de estudos
da Antropologia das sociedades contemporâneas, um pensador eternamente fascinado tanto
pela riqueza das formas de vida social e sua capacidade de acolher uma infinidade de
conteúdos, quanto pela riqueza de tais conteúdos, que podem, da mesma maneira, acolher
uma multiplicidade de formas.
A vida metropolitana, apreendida no contexto do pensamento simmeliano, revela-se
como ponto de interseção de vários mundos, isto é,
uma continuidade não-regularizada de formações, informações e deformações de
conteúdos novos e antigos que se individualizam nas formas que os animam, de tal modo
que no desenvolvimento vital aquilo o que é cada vez formado ultrapassa a forma
momentaneamente adotada (Freund, 1992, p.219).
Essas formas são dadas pela diversidade de combinações das afiliações dos indivíduos
aos grupos, em que as interações estão sujeitas ao espírito da vida moderna.
cujas narrativas expressam uma linguagem coletiva que comunica uma pluralidade de
identidades e memórias, remetendo seus territórios aos pretextos e às manipulações
humanas. Neste sentido, os espaços públicos ou outros do domínio privado fornecem o
suporte material de um investimento simbólico referido ao cotidiano afetivamente
significativo de seus grupos sociais. Não se pode esquecer aqui que toda obra humana
remete a uma produção simbólica, sendo os territórios de sociabilidade urbana nichos de
sentidos produzidos por uma comunidade, não para se concluir aí apenas sobre os sistemas
de dominação subjacentes, mas para se interpretarem sobre os significados que configuram
as diferentes formas e planos de existência social em seu interior. Assim, indiferente ao
desaparecimento dos referentes materiais dos espaços sobre os quais os grupos e
indivíduos fundam sua identidade (mobilidade residencial, remoção de bairros antigos,
transformação espacial e destruição urbana), a cidade, em sua polissemia, torna-se o
testemunho dos jogos da memória de seus “agentes”, espaço fantástico onde eles podem
“colar” sua existência a certos momentos de interação social vividos em seus territórios e
investi-los do próprio ritmo construído no corpo da duração de biografias de vida.
face das agitações temporais, eles reatualizam sua vida familiar e reconfiguram redes
sociais diversas de pertencimento, atribuindo sentido as suas práticas urbanas.
Observar-se o ritmo das ações de construção de sentido que tecem os indivíduos e
grupos para o seu “viver a cidade” é perceber-se o processo de consolidação de um tempo
coletivo urbano que os ultrapassa, mas que lhes confere um lugar determinado na forma
como suas decisões alocam-se num espaço determinado. É através da sobreposição de
tempos vividos e de tempos pensados pelos habitantes das grandes cidades, reencontrados
na vida do dia-a-dia, que se pode pensar o tempo social como durée.
Somente considerando-se tais tempos repensados e espaços reencontrados é que se pode
desvendar o fato de que, no mundo urbano contemporâneo, malgré o niilismo de muitos, a
vida comunitária reconstitui-se, não sem um certo esquecimento (seletivo) do passado ou
sem as rupturas dolorosas que representam as experiências novas. Para se compreender a
estética da vida urbana que se processa nas modernas sociedades industriais, há que se
atribuir, aos fenômenos temporais, um lugar estratégico nos estudos antropológicos do
mundo contemporâneo, pois, cada vez mais, o desafio que o pensamento das Ciências
Sociais sofre apresenta-se menos como a compreensão dos fenômenos da cultura a partir
de seus arranjos espaciais e mais como sua dispersão enquanto decisões de indivíduos e
grupos no tempo.
Tendo em vista que a análise temporal conduz o antropólogo a pensar a ondulação
dramática dos fenômenos culturais no mundo urbano, ela lhe dá acesso a refletir sobre a
unidade dos fenômenos culturais como uma adesão global de grupos e indivíduos a
determinadas ações, desejos e expectativas comuns tanto quanto a pensar a sua diversidade
como recusa a outras, numa sucessão descontínua. Nesse ponto, parafraseando Gaston
Bachelard (1988, p.27), podemos afirmar que a matéria dos fenômenos culturais no mundo
contemporâneo dependeria de decisões de indivíduos e grupos mais no tempo que no
espaço. O tempo é, portanto, contemporaneamente, uma dimensão significativa para se
investigar a experiência humana nas grandes cidades industriais. Sem se observarem as
feições do tempo que engendra o mundo urbano nas sociedades atuais, torna-se quase
impossível desvendar-se o significado da apropriação e reelaboração das referências
culturais e sociabilidades que fazem com que a vida coletiva nas grandes metrópoles dure
no tempo no sentido do arranjo de suas descontinuidades.
Longe do tratamento “museal” das identidades culturais no meio urbano, o que é
fundamental é investigar-se o modo como se processam as ordens de figuração da
inovação, da evolução e da mutação de tradições culturais no meio urbano que expressam
sempre uma invariância a ser constantemente relembrada e reatualizada, mesmo que se
refiram a passados reais ou irreais que compõem a memória do tempo. A cidade é, assim,
restituída a sua função primeira: cenário da anamnese de sua comunidade, pois, em seus
espaços, emergem as lembranças e signos das representações culturais de seus habitantes,
onde o jogo das origens não tem fim e não se submete à ordem e à classificação dos signos.
investigador, no exame mais acurado da sua prática etnográfica, atingir as profundezas das
atitudes éticas e estéticas que orientam a lógica da desordem da vida citadina local.
Metodologicamente, sugerimos aqui enfocar-se o acontecimento macroscópico do
conjunto civilizacional das cidades brasileiras como totalidade de ordem parcial,
engendrada numa multitude de comportamentos coletivos sustentados por uma tradição
cotidianamente reinventada através dos efeitos de agregação de seus grupos urbanos em
interação (Simmel, 1984). Sob a ótica do mundo urbano contemporâneo, trata-se de
atribuir importância à interpretação dos seus fenômenos culturais a partir do estudo da
memória coletiva, das lembranças e reminiscências históricas dos seus habitantes e do
arranjo espacial das formas de vida social apresentadas por eles em seu cotidiano ao longo
do tempo.
Considerando-se a feição macroscópica da configuração desordenada e
pluridimensional da geografia urbana do Brasil, torna-se prioritário, portanto, dimensionar-
se o estudo das práticas cotidianas de grupos urbanos como porta de acesso à compreensão
da lógica interna que regula a vida citadina do País, deslocando-se o foco de análise da
descrição realista da cidade na história para um conhecimento compreensivo da cidade
segundo os acontecimentos anódinos que ocorrem no seu interior e a efervescência que
rege a vida ordinária de seus habitantes. Trata-se, então, de se construírem parâmetros de
interpretação e análise da cidade nos termos de uma perspectiva do “pensamento da
Diferença”. Essa intenção metodológica que aborda o fenômeno urbano a partir de uma
“razão hermenêutica” remete ao enfoque da “unidade estilística” da cidade como objeto
temporal, fora de um círculo vicioso. A cidade desponta, assim, como fruto da criação
perpétua de um querer-viver coletivo plural capaz de estabelecer para si, no cotidiano, uma
composição durável no tempo de elementos os mais díspares possível (diferenças étnicas,
sociais, econômicas, políticas, etc.).
Vista em sua heterogeneidade fundamental, da qual é testemunha a vida de seus
habitantes, a cidade ocupa um lugar estratégico para o modelo de interpretação que
pressupõe a ambiência urbana no Brasil, tecendo-se a partir da sinergia entre os devaneios
do trabalho e do repouso dos grupos humanos que nela habitam (Ansay & Schoonbrodt,
1989).
Para além dos acidentes e circunstâncias diversas que os moradores das grandes cidades
brasileiras enfrentam no seu cotidiano, trata-se de enfocar a cidade e seus territórios como
fruto de uma consolidação temporal vivida na errância das formas de vida social dos
grupos urbanos que a ela pertencem, configuradas e reconfiguradas em suas narrativas
biográficas.39 A arquitetura dos vínculos sociais e coletivos na urbe reveste-se, assim, dos
significados que ela tem para os seus diversos atores sociais. É, portanto, no coração da
descontinuidade de tempos e espaços sociais sobrepostos que o antropólogo deve situar-se
para melhor compreender o acontecimento ambíguo das experiências cotidianas dos
habitantes da cidade, onde se tecem os fenômenos da estética urbana e da memória
coletiva.
Debruçar-se sobre a heteronomia da vida social e mergulhar-se no arranjo das formas
diversas de vida coletiva que configura o fenômeno urbano no Brasil significa, para o
etnógrafo, indagar-se sobre o lugar que ele ocupa no diálogo com seus interlocutores, os
moradores do local. De um lado, trata-se de investigar o “tempo do mundo” que rege o
ritmo dos acontecimentos da vida dos grupos urbanos e, de outro, repertoriar o “tempo
imanente” dos sentimentos e emoções coletivas de tais grupos humanos, inclusive do
antropólogo.
Pensando criticamente o realismo etnográfico propagado pela Antropologia em tempos
coloniais, este artigo vislumbra a possibilidade de experimentos etnográficos no meio
39
Sobre os atos configurantes e reconfigurantes que engendram o tempo na narrativa, seguimos Paul Ricoeur
(1994, v. I e II).
58
CAPITULO V
NOS JOGOS DA MEMORIA, AS CURVATURAS DO TEMPO
vida e matéria, bem como o paroxismo que encerram os atos humanos, não se trata mais de
refletirmos sobre a memória apenas sob os efeitos do ato de rememorar.
Na trilha de um bergsonismo mais instaurador, Walter Benjamin (1990, p.137)
considera a sociedade na relação com a experiência histórica, mostrando que o conceito de
duração em Henri Bergson, ao se afastar da história, suprimindo a morte, exclui a
possibilidade de acolher a tradição. Seguindo as pistas deixadas em aberto por aquele
autor, Benjamin ultrapassa a noção de memória promovida pelo pensamento bergsoniano
ao criticar o aspecto de uma imaginação tímida a ela atribuído, beirando o ideal de dedução
absoluta do mundo das coisas.
Ao longo das imensas rupturas e descontinuidades provocadas por revoluções
tecnológicas e científicas do séc. XX, das quais somos tributários em nossa “arte de
pensar” o mundo e o tempo, não é ao acaso que se constata que os estudos da memória, ao
pautarem-se por uma reflexão sobre a vida e a matéria, atribuem, ao ato de narrar, um valor
simbólico de construção de sentido de uma história vivida entre tantas outras para serem
vividas. Nesse ponto, o tema do “fantasma do esquecimento”, tão caro à obra de Walter
Benjamin, anuncia, de forma comovente, o sentimento de “crise da civilização” que se
manifesta na crise epistemológica das “ciências do homem” geradas no mundo
contemporâneo.
não se configura apenas num tradicionalismo de cunho nostálgico e sentimental, mas nos
mitos, saberes, fazeres e tradições que são perenizados, ordinariamente, no interior das
manifestações culturais humanas, a contragosto das intimações objetivas de um devir,
“numa seqüência de fixações no espaço da estabilidade do ser” (Durand, 1984). Da mesma
forma, as ações discursivas que o próprio antropólogo faz acerca da memória enraízam-se
no espaço dos mitos e das crenças da sociedade e do grupo social ao qual pertence.
Voltando-se progressivamente as costas à dimensão intangível que configura as memórias
coletivas, sociais ou individuais, o que resta, para os estudiosos da memória no mundo
contemporâneo, é a nostalgia das imagens: do fim das guerras, do fim das lutas, do fim dos
tempos.
Como ensinam os estudos da cultura ocidental faustiana, nos dias atuais, a memória
guarda sua expressão intangível em cidades mundiais que se exteriorizam numa expansão
infinita, numa filiação arqueológica à arquitetura gótica e à perspectiva na arte
renascentista, só para citarmos duas de suas filiações. Portanto, o estudo da memória, nos
dias de hoje, não escapa à sua relação íntima com a inteligibilidade dos símbolos e mitos
criados pelas sociedades humanas. Assim, no corpo dos gestos fundadores do mundo
contemporâneo, como em outros tempos, a memória autoriza a liberdade de criação
humana uma vez que, através dela, valores, crenças, costumes e tradições perpetuam-se
entre os grupos humanos que nela habitam; reservatório de símbolos e imagens, a memória
faz parte do gigantesco patrimônio da humanidade. À disposição de todos, a memória
autoriza, de forma correlata, não só conflito de liberdades e sua afirmação, mas as trocas
sociais e simbólicas que nela existem.
A partir de Maurice Halbwachs, poder-se-ia dizer que o “esquecimento”, a “nostalgia”,
a “tragédia da cultura”, a “crise da civilização”, temas caros a autores tão diferentes como
Walter Benjamin, Charles Baudelaire, Georg Simmel e Oswald Splenger, tornam-se
sentimentos tributários do corpo de tradições e crenças do patrimônio cultural legado pela
era moderna, eles próprios narradores de uma “memória épica” que busca a redenção dos
mitos, lendas, crenças e valores ético-morais que caracterizaram a idéia de uma conquista
progressiva da autonomia moral do Sujeito e que não se esgotam nas formas do
individualismo que herdamos da época da Luzes. Neste ponto, é importante reter-se o que
o estudo da memória ensina a todos que com ela operam: uma repulsa a um pensamento
que separa o “eu” que pensa da compreensão daquilo que é pensado, pois, no limiar da
memória há, sempre e eternamente, uma elaboração ética progressiva da vida social e da
figura de homem. Habitar-se o espaço da memória é conviver-se com memórias coletivas,
individuais e sociais negociadas, e não, simplesmente, domesticar-se um território vazio e
opaco, lugar de reativação de tradições perdidas ou da nostalgia do passado.
Essas colocações conduzem a uma dialética suis generis na forma como é possível
operar-se com a dimensão ética e estética dos estudos da memória (valores, crenças,
tradições, visões de mundo e estilos de vida diferenciais): pensar-se a sociedade
contemporânea como reservatório concreto e efetivo de memórias coletivas e de vontades
de indivíduos e grupos que, compartilhando um mesmo território plural de existência,
agem em conjunto e reinventam quotidianamente a sua condição humana primordial, na
busca de se eternizarem no tempo.
71
CAPITULO VI
65
A linha de argumentação aqui apresentada tem por base as obras de Paul Ricoeur (1991 e 1994) e a obra de
Jean Piaget (1997).
66
Marcel Mauss, já em 1902, recomendava, aos etnógrafos, “buscar os fatos profundos, inconscientes quase,
porque eles existem apenas na tradição coletiva”. Segundo Roberto Cardoso de Oliveira, Mauss recorre à
noção de inconsciente para melhor dar conta da natureza das representações coletivas (“categorias do
entendimento”): “Para Mauss, a noção de inconsciente parecia indispensável para explicar não apenas a
categoria, mas igualmente o costume, os hábitos em geral” (Cardoso de Oliveira, 1988, p.38).
67
O problema da identidade pessoal, segundo Paul Ricoeur, apresenta a questão da identidade-idem,
evocando as questões da “permanência do tempo”, em que a mesmidade relaciona-se a um conceito de
relação, a um critério de continuidade ininterrupta e de similitude. Trasladado para o método etnográfico, o
tema da identidade pessoal do antropólogo, no corpo desse método, significaria paradoxos que aí se ligam em
termos da irredutibilidade da experiência etnográfica enquanto busca de uma invariante relacional do
antropólogo com a alteridade, em que se coloca em jogo o “quem sou eu” do investigador, logo o aspecto da
identidade-ipse, irredutível à determinação de um substrato (Ricoeur, 1991).
74
5.4 O declínio do ato etnográfico? “Do estar lá” ao “eu estou aqui”
83
Trasladamos, sem muita sofisticação, as considerações de Paul Ricoeur (1994, v. II) a respeito da mimese I
e mimese II no plano da análise do método etnográfico.
84
Escreve Paul Ricoeur (1991, p.169): “Aplico o termo configuração a essa arte de composição que faz
mediação entre concordância e discordância”.
81
OLAVO RAMALO MARQUES, Jardim Botânico, Porto Alegre, 2002 (Acervo do BIEV)
85
CAPITULO VII
IMAGENS DO TEMPO : POR UMA ETNOGRAFIA DA DURAÇÃO
ROSANA PINHEIRO MACHADO, Praça XV, Centro, Porto Alegre, 2002, (Acervo BIEV)
CAPITULO 7
equivalência simples ou complexas, na unidade entre pensamento simbólico (da ordem das
imagens) e pensamento conceitual. Trata-se de instâncias que apresentam “interseções
segundo combinações” diversas que se solidarizam, gerando a unidade do pensamento e de
suas expressões simbólicas, topos a partir do qual pode se pensar a estruturação simbólica
da memória.
Em particular, cabe uma primeira decifração de ordem particular: a relevância de se
indagar sobre a magnitude dos golpes administrados pelo bergsonismo na idéia de um
continuum da consciência quando o pensamento filosófico do Ocidente moderno
permanecia conferindo, à imagem e à imaginação, funções meramente reguladoras da
existência. Por outro lado, trata-se aqui, sem dúvida, de uma crítica à doutrina bergsonista,
que atribui, à imagem, um papel secundário, espécie de “totalidade mnésica da
consciência”, pela forma como ela aparece no interior do par antitético, vida e matéria.
Acima de tudo, cabe salientar que, mesmo refém das armadilhas da Psicologia clássica, a
obra Matéria e Memória (concebida em 1896), de Henri Bergson, permanece, ainda nos
dias de hoje, a fonte de inspiração para muitos estudos antropológicos sobre memória.90
Em suma, pretende-se instaurar, neste capítulo, outras vias para o estudo da memória,
na linha de uma fenomenologia da imaginação que não a introspecção bergsonista ou o
monismo do cogito sartriano, em que a imagem aparece sempre cumprindo um papel
suspeito de regressão, “estreitamente empirista, tanto mais quanto se pretende que ela
esteja separada de um pensamento puramente lógico”.91
Contra até mesmo a teoria geral da relatividade e a hipótese einsteniana dos tempos
múltiplos, diversamente ritmados, relativos aos diferentes observadores, o bergsonismo vai
afirmar uma duração que não possui propriedade métrica nem espacial, embora suscetível
de dilatação ou de contração, segundo seu conteúdo, e na qual o tempo passado sobrevive
sob duas formas distintas, em mecanismos motores (imagem-cérebro-ação) e em
lembranças independentes,92 ignorando que o tempo supõe velocidade, “a dos processos
externos, percebidos ou observados, ou a dos processos internos da atividade mental”.93
No contexto da duração bergsoniana, a antítese entre a duração vivida e do espaço físico
faz com que esse autor derive daí sua tese central segundo a qual o tempo, sendo invenção,
nada mais é que construção contínua de seu conteúdo. Nessa perspectiva, “o tempo é
invenção ou não é absolutamente nada”, daí resultando o fato de a duração vivida ter a
propriedade, portanto, de não ser nem métrica, nem espacializada; ela desenvolver-se-ia
numa velocidade que não é “nem nula nem infinita”, o que acaba, paradoxalmente, por
reduzir sua dimensão do fenômeno temporal.94
Na época em que foi concebida a obra Matéria e Memória, evidentemente
mecanicismo, organicismo e vitalismo eram alternativas clássicas para os estudos sobre a
memória, apresentando-se tal fenômeno como “uma inadaptação congênita da inteligência
humana às realidades vitais”.95
Submerso na antítese entre vida e matéria, o tempo bergsoniano reserva à imagem, pura
e simplesmente, um papel de “contadora de histórias” que não se reporta ao passado, “a
menos que seja no passado que efetivamente eu vá buscá-la” (Durand, 1984). Nesse
sentido, uma lembrança, à medida que se atualiza num tempo espacializado, tendendo a
viver numa imagem, torna-se, por assim dizer, esvaziada de seu conteúdo.
Seguindo-se o princípio da duração bergsoniana, resta, pois, o confronto da
subjetividade pura (o espírito) e a pura exterioridade (a matéria). No plano da subjetividade
pura, encontra-se o fenômeno da memória e da duração; no outro, o da pura exterioridade,
a percepção. Uma vez que a duração é continuidade imediata e profunda, julgamento
positivo que afirma um pensamento liberado da vida, ela não pode romper-se senão
superficialmente no exterior através da linguagem que a pretende descrever. Depreende-se
daí que a inteligência humana é inapta para compreender a vida, adaptando-se ao espaço e
à matéria inorganizada somente em seus aspectos estáticos e descontínuos. Em decorrência
da memória aparece como um fio contínuo que se tece em decorrência à oposição entre a
matéria e a vida, ou seja, a memória e a imagem, ao lado da duração e do espírito, opõem-
se à inteligência e à matéria, estas ao lado do espaço (Bosi, 1987, p.15).
Certamente, em sua obra Matéria e Memória, Henri Bergson ultrapassa seu próprio
esquematismo ao relacionar a memória ao reino da imaginação, apesar de atrelá-la à
atenção receptiva da vida. Assim, “é a memória que colore a imaginação de resídios a
priori”,96 pois “é dos elementos sensórios-motores da ação presente que a lembrança retira
o calor que lhe confere vida e é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança
responde” (Bergson, 1990, p.125).
No pensamento bergsoniano, portanto, a inteligência humana só conhece
92
Sobre o assunto, ver as reflexões de Jean Piaget (1978, p.128-33). Ver ainda as análises das duas
memórias, memória-hábito e memória-imagem, segundo Henri Bergson (1990) e as críticas a elas dirigidas
por Ecléa Bosi (1987) e Sylvia Borelli (1992).
93
Sobre o assunto, ver as reflexões de Jean Piaget (1978, p.131).
94
Conforme Jean Piaget (1978, p.131), citando Henri Bergson, “o tempo supõe, pois a velocidade, a dos
processos externos percebidos e observados, ou a dos processos internos da atividade mental, e esse é um
primeiro ponto essencial que o estudo psicogenético do tempo parece revelar”. Da mesma forma, ver os
comentários de Gaston Bachelard (1989, p.1-25) a respeito da psicologia da plenitude em Bergson.
95
Novamente, utilizamos aqui os comentários contundentes de Jean Piaget (1978, p.131) sobre a afirmação
do bergsonismo a respeito da “intuição como único modo de conhecimento adaptado à vida”.
96
Referência aos comentários de Gilbert Durand (1984, p.16) sobre o aprisionamento do pensamento de
Henri Bergson ao associacionismo que norteava a psicologia clássica.
89
próprio fenômeno intratemporal que constitui a duração da matéria, joga-se com os seus
aspectos de descontinuidade qualitativa (encadeamentos de seus ritmos) e quantitativa
(intensidade, força e comprimento), cuja vibração rítmica regular permite, à vida, travestir-
se em continuidade substancial. Sem dúvida, a duração bachelardiana não recusa a
microfísica como a duração bergsoniana, ao contrário, absorve-a empregando um conceito
mais sutil de matéria, isto é, o de matéria referida ao mundo vibrante e múltiplo dos
átomos.
Diferentemente do bergsonismo, a duração bachelardiana é aqui nossa guia e nossa
mestra uma vez que, por seu intermédio, vida e matéria dialogam sem cessar. Segundo
Gaston Bachelard anunciava já nos anos 1950, basta que se desmaterializem um pouco as
inquietudes pessoais com o tempo para que se possa ver o próprio tempo ondular. Não se
trata mais de operar com a locução bergsoniana “durar no tempo”, mas de substituí-la por
outra, “permanecer no espaço”, já que os jogos da memória referem-se aos trabalhos da
imaginação criadora humana que desejam “materializar o tempo” (Bachelard, 1989, p.32).
A matéria que se reconcilia com a vida é aqui tratada não como unidade essencial, pois
ela não está disponível a olho nu e nem se encontra à disposição da experiência ordinária
dos fenômenos vividos. Nos termos da duração bachelardiana, a matéria e a vida não se
traduzem na simples oposição de sujeito e objeto, mas se reconciliam no movimento de
troca incessante entre ambos e, na ausência de um, ainda está lá, automaticamente, a
presença do outro.104
Atendendo-se à idéia de que o tempo é hesitação, assim como a continuidade
substancial da matéria só intervém tardiamente, a compreensão da duração bachelardiana
exige, do estudioso da memória, uma singular atenção à vacuidade e à hesitação tanto da
matéria quanto da vida, exigindo-lhe uma recusa à idéia ingênua da plenitude do mundo
das coisas, posto que a idéia da continuidade do tempo não é um dado em si mesmo, mas
uma obra.
Opondo-se ao bergsonismo, segundo o qual “pensar o tempo é enquadrar a vida”, a
perspectiva da duração bachelardiana, em convergência com a crítica piagetiana, considera
que pensar o tempo “não é tirar da vida uma aparência particular, que se captaria de modo
tanto mais claro quanto mais se tiver vivido”. Ao contrário, pensar o tempo é quase
fatalmente “propor que se viva de outro modo, que se retifique antes de tudo a vida e em
seguida que se a enriqueça”, ou seja, a meditação temporal demonstra a flexibilidade da
inteligência humana em face das construções sucessivas da matéria (Bachelard, 1986,
p.76).
No corpo das teses piagetianas e bachelardianas, o esquema da análise temporal da
memória torna-se, para o investigador, uma ação complexa, adotando este o ponto de vista
de um arqueólogo da vida humana,105 uma vez que a duração constrói-se através de
diferentes níveis de operações simbólicas e cognitivas, cuja coerência de arranjos permite
que memória funcione como uma estrutura de conhecimento que prepara e mede a justa
causalidade psicológica e biológica humana e cuja unidade da matéria resulta da adesão
global do ser a um caráter afirmativo da vida contra sua dispersão. Em particular, para o
caso do pensamento bachelardiano, a memória constitui um fenômeno que se realiza a
partir de decisões do sujeito no tempo, precedida de hesitação no interior de uma
ondulação dialética em que o ser busca a consecução de uma ordem às ações vividas.
104
As teses bachelardianas em torno do fenômeno da duração encontram inúmeros pontos de ressonância nos
estudos na área da epistemologia genética, firmados por Jean Piaget sobre o nascimento da inteligência e a
formação do símbolo na criança, além dos clássicos trabalhos sobre as operações de pensamento que
configuram as noções de espaço e tempo como construções produtivas e criadoras das estruturas que
configuram as noções de espaço e tempo como construções produtivas e criadoras das estruturas dinâmicas
do conhecimento humano.
105
Aqui, as obras de Marcel Proust Le Temps Retrouvé e Du Côté de Chez Swann, ambas da Editora
Gallimard, podem servir de inspiração.
92
tempo, numa série de rupturas e onde a matéria das ações passadas se desenvolve e se
manifesta sob a forma de ritmos, os quais conservam sua substância.
(Bachelard, 1988, p.51), ou seja, sem que ali estejam presentes as estruturas espaço-
temporais através das quais a memória configura-se como construção de um ato de
duração.111
111
Incorporando-se as idéias bachelardianas ao pensamento de Jean Piaget, dir-se-ia que, através da dialética
da duração, a “inteligência utiliza e prolonga a ação” ao interiorizar o fluxo temporal, logo, tornando as suas
operações reversíveis (Piaget, 1978, p.168-9).
95
CAPITULO VIII
A CIDADE, O TEMPO E A EXPERIENCIA DE UM MUSEU VIRTUAL
CAPITULO 8
Como sugere cada vez mais a análise compreensiva dos fenômenos da memória e do
patrimônio no mundo contemporâneo que vimos desenvolvendo, o tempo torna-se humano
na medida em que está articulado de forma narrativa e em que as ações, as situações, e os
acontecimentos vividos esboçam traços da experiência temporal humana. 113
Em particular, no que diz respeito ao estudo do processo de patrimonialização do
mundo urbano contemporâneo, o uso das novas redes eletrônicas e digitais orientadas para
a criação de um site para a dinamização do projeto denominado Banco de Imagens e
Efeitos Visuais (site BIEV), desenvolvido por nós junto ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi desafio que nos
levou a pesquisar, a partir de 1997, as condições epistemológicas de produção do texto
etnográfico dirigido aos usuários da Internet.
Inicialmente concebido como espaço privilegiado de acesso dos usuários das redes
eletrônicas e digitais às coleções etnográficas sonoras e visuais, antigas e recentes, de Porto
Alegre, recolhidas no âmbito de um projeto acadêmico de pesquisa, o site do BIEV acabou
ganhando os contornos de uma pesquisa em torno do tema de um “museu extramuros”, ao
usar tecnologias da Informática com o tratamento da memória coletiva114. O uso de tais
tecnologias ajuda-nos a problematizar a noção do tempo linear da história no estudo da
agitação temporal nas modernas sociedades urbano-industriais em proveito da noção de
duração, onde o tempo aparece como realidade composta de um continuum de instantes
logicamente hierarquizados e não como “monumentos de lembranças”.
Propomos, aqui, uma reflexão pontual, mas não menos importante, a respeito do uso das
novas tecnologias do pensamento como suporte da pesquisa antropológica em sociedades
contemporâneas, ou seja, pensar os jogos de simulação com base no tratamento digital da
memória como parte do processo de criação de formas mais integrativas e interativas de
resgate, recuperação, criação e produção de coleções etnográficas nas sociedades
complexas.
A partir de alguns esquemas enunciativos oriundos da Antropologia urbana e da
Antropologia visual, investimos no estudo das condições de existência de “comunidades
interpretativas”115 no âmbito das redes digitais e eletrônicas, em particular, no que se refere
112
Texto apresentado na XXII Reunião Brasileira de Antropologia no Fórum Especial Os Museus
Etnográficos no Contexto da Antropologia Contemporânea, realizado em Brasília, de 16 a 19 de julho 2000,
sob o título Relato de uma Experiência de Criação de um Museu Virtual na Área de Antropologia Urbana.
113
Conforme Paul Ricoeur em Tempo e Narrativa (1994, v. II).
114
O endereço do portal ao qual estamos nos referindo neste captulo é www.estacaoportoalegre.ufrgs.br, o
qual faz parte de um pesquisa em torno do uso das novas tecnologias como suporte de produção e geração de
narrativas etnográficas visuais e sonoras sobre o mundo urbano contemporâneo.
115
Essa expressão é utilizada aqui no sentido crítico a ela atribuído por Paul Rabinow em Antropologia da
Razão (1999, p.92-98), isto é, ao se considerar, na produção do texto etnográfico experimental pela via das
novas tecnologias, as relações que ele possibilita entre as formas representacionais da memória e patrimônio
e as práticas sociais locais. Nesse sentido, o autor alerta-nos, citando Max Weber, que o processo de
“museologização” do mundo tende a ignorar o perigo de obliteração das diferenças dos significados culturais
98
aderir ao estilo flutuante e difuso através do qual o mundo urbano revela-se aos olhos de
seus habitantes, ou seja, segundo seus “mapas mentais”, a paisagem de Porto Alegre pode
ser explorada como impressão de conjunto, com ambiências e atmosferas centradas em
torno da “estética da desordem”.119
Apresentar-se uma visita guiada a partir do fragmento de uma história em torno da
cidade pode adquirir, na arquitetura de um site que explore a noção de sobreposição
espaço-temporal, uma forma própria, sui generis, de se operar com o teatro da vida urbana
como parte de mapas mentais de seus moradores, dando-se, à tela, uma geometria que
deverá ser bastante peculiar. Sob esse enfoque, o do fragmento, as imagens da antiga Porto
Alegre e de suas histórias, incrustadas na vida urbana local, podem ser indicados como
início de consulta ao site, para, logo após, situar tais “documentos” no seu contexto de
origem. Essa abordagem de desconstrução da lógica temporal da documentação exige, do
usuário, uma ruptura com uma temporalidade fundada na construção de uma historicidade
de fatos, ao lhe propor, de forma evidenciada, uma idéia da memória como reconstrução e
fabulação.120
Nunca é demais insistir, ao se explorar a idéia de fragmento como sistema de navegação
num “museu extramuros”, buscarem-se os traços de um tempo e de um espaço concreto de
representação da memória e do patrimônio locais para o usuário do site, visando restaurar a
idéia da cidade como uma obra moldada e configurada pelo depósito de muitos gestos e
intenções dos grupos humanos que nela habitaram, isto é, “los tesoros culturales de una
época”.121
Uma idéia seria a de se pesquisarem, por exemplo, os processos de transformação da
cidade a partir do presente-ausente de lugares urbanos com base na exploração de
processos de destruição de prédios, alterações nos traçados de ruas em função de
aterramentos e aberturas de perimetrais, modificações de bairros a partir da construção de
viadutos, pontes e túneis, etc. Trata-se de um conjunto variado de experiências dramáticas
para os habitantes de uma grande cidade e que permitem ao usuário, através de tais
incidentes e acontecimentos, ao usuário, agenciar a dialética lembrança-esquecimento que
preside os jogos da memória.
Há, portanto, no processo de destruição e reconstrução da cidade, uma singularidade
específica que nos possibilita interpretar a cidade seja como detalhe, seja como fragmento,
o que implica considerar-se a visita a um museu “extramuros”, por exemplo, a partir da
metáfora da ruína. Propõe-se, assim, a cidade como o ponto de encontro entre o estudo da
memória da civilização urbana local e a adesão dos habitantes ao processo de destruição de
seus territórios, pois, longe de ser um objeto-depósito, a cidade concebida como um objeto
temporal possui a capacidade de absorção de todas as histórias dos grupos humanos que
por ali passaram tanto quanto de dissolução de seus signos culturais, os quais se tornam,
aqui, objetos etnográficos, ou seja, pré-textos para a geração de novas histórias a serem
narradas.
Do ponto de vista das potencialidades narrativas da memória coletiva a partir da
construção de um museu virtual, segundo vimos abordando até o momento, torna-se
significativa a importância de se recorrer tanto à presença de morfologias estáveis nas
manifestações culturais da cidade, em seu apelo estético à ordem e à simetria na
119
A propósito do trajeto imaginário dos habitantes das cidades segundo a idéia de mapas mentais, ver Kevin
Linch em A Imagem da Cidade (s.d.).
120
Pensamos aqui no cruzamento das idéias de autores como Gilbert Durand em Les Structures
Anthropologiques de l´Imaginaire (1984) e R. Giordanim em De l´Utilisation des Témoignages Oraux:
aspects deontologiques (1978), para o caso do tratamento das formas de exposição dos documentos em telas
de consulta.
121
Conforme Georg Simmel em Concepto de la Tragédia de la Cultura y otros Ensayos (1935).
100
tratamento conceitual dos registros do tempo e suas formas de exposição tanto quanto
modificações nas formas de produção e consumo cultural da imagem-técnica.
A idéia de temporalidade, portanto, da tela clássica dos museus, em que os dispositivos
da imagem são estáticos, difere, assim, daquela veiculada pela tela dinâmica cujos
dispositivos da imagem movem-se no tempo presente. Nesse sentido, se, por um lado, as
formas de exposições adotadas pelos atuais museus cumprem ainda, rigorosamente, sua
filiação à pintura renascentista ao explorar a tela clássica, diante da qual o espectador adota
uma visão frontal (confrontando-se com escalas de representação diferenciais), por outro, o
cinema, o vídeo e as instalações, mais contemporaneamente, inauguram a presença das
atuais telas de computadores na ambiência museal ao investirem progressivamente no
processo de imersão do espectador numa tela dinâmica onde os limites entre o espaço da
representação e o espaço físico esvaecem-se. Cabe, assim, reconhecer-se que, hoje, no
âmbito de museus os mais diversos, além da fotografia, o cinema, o vídeo e as instalações
têm participado como instrumentos eficazes de tratamento documental, cada um a seu
modo, de uma cultura visual determinada pelo nascimento de novas formas de tratamento e
registro documental do tempo nas modernas sociedades urbano-industriais. Assim, salas de
exposições compartilham a ambiência museal com salas de projeções de filmes, instalações
e quiosques interativos como formas distintas de disponibilizar acervos documentais
diversos aos seus usuários.
A exibição de coleções à admiração pública, quando o espectador situa-se fora do
espaço da representação, no sentido de manter sua distância psicológica da imagem
projetada na tela, mescla-se à tendência contemporânea de se tornar esse espectador
cúmplice do olho ilusionista da tela dinâmica, que lhe permite ver, observar e participar, do
melhor ângulo possível, de tais coleções. Museus enciclopédicos incorporam, à sua
pretensão de reunir exemplares das obras da cultura humana, o processo de passagem da
tela estática para a tela dinâmica como dispositivo de apresentação de seus acervos.
Galerias e salas de exposições dividem o espaço dos museus com as salas escuras de
projeção, não resistindo ao dinamismo da tela cinematográfica e à sua ilusão cinemática,
onde os espectadores imóveis e passivos, situados em frente à tela, assistem às imagens
que são projetadas por um “engenho” encoberto, atrás de suas cabeças.129
Na maioria desses dispositivos, entretanto, à exceção das instalações e dos quiosques
interativos, a realidade representada é recortada pelo retângulo de uma tela que constrói o
mundo sob um ponto de vista subjetivo a partir de dois sentidos: o espaço corporal do
espectador e o espaço virtual de uma imagem na tela estática, situados em escalas de
espaço-tempo diferenciais. Somente os primeiros dispositivos propõem usos, manuseios e
intervenções por parte do espectador como aspecto central do tratamento de coleções
museais, atribuindo-lhes um lugar de autoria de trajetos e percursos, e não mais uma
posição periférica diante da tela/enquadre. O advento da realidade virtual (VR) no âmbito
das formas de exposições de conjuntos documentais, certamente, deverá seguir esse
processo de incorporação das novas tecnologias ao interior do ambiente cultural dos
museus, papel que as instalações, até certo ponto, já vêm cumprido.
uma distância do leitor com relação ao livro, coloca-o “fora de seus gestos corporais
usuais”, pois o universo que ele contempla “é forçosamente um mundo de telas”. Da
mesma forma, no âmbito museal, o uso dos atuais computadores e de seus dispositivos, nos
quais interfaces e realidade virtual (VR) combinam-se para um outro regime de imagens
com base na idéia de uma tela dinâmica, coloca as formas convencionais de tratamento e
exposição dos conjuntos documentais no mundo das telas-janelas dinâmicas com a qual o
observador interage, segundo um processo de identificação singular.130
Vejamos, aqui, em particular, o caso do advento da dinâmica da tela/interface dos
computadores no âmbito dos espaços museais. Conforme vimos afirmando, na tela
cinematográfica das salas de projeções, a imagem cria, no observador, uma ilusão de
realidade que exige dele uma suspensão de suas antigas formas de se apropriar das
representações do mundo na medida em o ilusionismo gerado pela imagem em movimento
só é atingido por meio do desprendimento do meio circundante por parte desse sujeito.
Diferentemente do cinema, em que a imagem movimenta-se independente do
observador, situado em posição neutra, agora, o espectador deve se mover em torno do
espaço físico para experienciar o movimento no espaço virtual. Ele deve, então, operar
com a imagem para que seu movimento se processe, através de dispositivos especialmente
criados para tais fins.131
Os avanços das novas tecnologias no sentido da VR (realidade virtual) têm permitido
um aprimoramento da moderna cultura visual da tela “dinâmica” rumo à supressão da
própria tela/enquadre. Assim, com o advento da VR e de seus dispositivos (capacetes,
luvas, joysticks, óculos, etc.) conectados por cabos ao computador, a imagem-movimento
tende a preencher completamente o campo de visão do espectador, que é obrigado, então, a
situar-se, por efeitos de simulação, em outro espaço-tempo onde “the real physical space
and the virtual simulated space” coincidem. Nesse ponto, sim, podemos afirmar, com
propriedade, que estaríamos rumando para a criação de um museu virtual stricto sensu
(Manovich, 1995, p.4). Até esse ponto ser atingido, restam-nos os casos mais
“convencionais” de uso das novas tecnologias em museus, em que a tela funciona não mais
como tela/enquadre, mas como uma janela-interface, podendo se desmembrar em muitas
janelas, concebidas como uma coleção de diferentes blocos de informações, todos de igual
importância para o seu usuário.132 Esse mesmo fenômeno é igualmente reconhecido por
Roger Chartier ao observar a revolução nas práticas da leitura e da escrita do livro quando
de sua passagem à memória eletrônica ou digital – isto é, “sem inscrição no papel” – pela
possibilidade que essa memória oferece de “embaralhar, entrecruzar, reunir” informações e
dados: todos os traços que, segundo o autor, indicam uma revolução nas estruturas do
suporte material da memória. O manuseio do livro “eletrônico” passa, assim, pelos
mesmos dispositivos que criam a interface homem/computador no caso de um museu
virtual: teclas, mouse, tela.
Sem dúvida, coerentemente com o que vimos afirmando até o momento, a tela dinâmica
do computador insere-se no curso da conformação de uma cultura visual peculiar às
sociedades moderno-contemporâneas, traduzida pela presença de uma informação visual
numa tela retangular e plana, colocada a uma certa distância do olho do observador, dando-
130 Da mesma forma, conforme Arlindo Machado (1997), poder-se-ia remontar as origens da tela original do
cinema aos antigos espetáculos ilusionistas dos séc. XVIII e XIX (lanterna mágica, fantasmagorias, teatro de
sombras, dioramas, etc.) que, por sua vez, remeteriam às pinturas paleolíticas nas cavernas em que o homem
já estaria dentro de um regime de imagens cinematográfico, antes mesmo da “invenção” do próprio cinema.
131 Segundo Lev Manovich (1995, p.16), o corpo do espectador torna-se “a giant mouse, or more, a giant
joystick”, no sentido de que no momento em que se move o mouse, o usuário do computador move seu
próprio corpo.
132
Inúmeros autores aludem às aproximações entre a tela do computador e as formas usuais televisivas do
zapping, em que não há a tela que predomine na atenção do espectador, permitindo-lhe a coexistência de
imagens em apenas uma tela, e onde o espectador pode assistir a inúmeros programas simultaneamente.
105
Para os “museus extramuros”, valeria o mesmo que Roger Chartier (1999, p.117)
comenta a respeito da criação das “bibliotecas sem paredes”, ou seja, “pela primeira vez,
na história da humanidade, a contradição entre o mundo fechado das coleções e o universo
infinito do escrito perde seu caráter inelutável”. Com as novas tecnologias, acredita-se que
a busca do universal oferece, a todos os indivíduos, “o que poderia tornar mais potente o
seu olhar sobre si mesmo e sobre o mundo da comunicação à distância de textos
transformados, numerados e convertidos em textos eletrônicos, colocados em rede” (Ibid.,
p.118).
No caso aqui proposto, pensar-se o processo de museologização do mundo149 através da
criação de webs sites que tematizem coleções etnográficas sobre as transformações da
paisagem da vida urbana das sociedades contemporâneas é perseguir-se, de forma ainda
mais acurada, uma reflexão em torno do tema da “obliteração das diferenças” no interior
do empreendimento enciclopédico que formata as redes digitais e eletrônico como uma das
modalidades de uma cultura visual nas modernas sociedades complexas. Em especial, para
nós, trata-se de refletir eticamente a respeito dos perigos da dimensão formal da
representação com que genericamente a cultura visual do mundo contemporâneo criou e
produziu a imagem do Outro (seja qual for seu status: analógico, digital, eletrônico) e que
será, logo após, disponibilizada, acessada e apropriada pelos usuários das redes. Essa
reflexão conduz-nos a pensar criticamente, no caso da disposição arquitetural de conjuntos
documentais referidos ao patrimônio etnológico de uma comunidade urbana qualquer, o
sonho de “democratização da cultura”, associado às atuais redes digitais e eletrônicas, que
atribui ao usuário comum das redes digitais e eletrônicas o lugar de intérprete soberano de
sistemas culturais (Rabinow, 1999, p.99).
and the means by wich they are standardized need to be standardized as well, isto é, the
private and individual is translated into public and becomes regulated” (Manovich, 2000,
p.1). Dessa forma, para o caso dos estudos antropológicos das culturas contemporâneas,
convém que se possa refletir sobre a especificidade da experiência de criação de museus
“extramuros” no sentido de pontuar o lugar histórico complexo e frágil que nele ocupa a
produção de novas narrativas etnográficas. Isso porque se torna premente, à Antropologia
das sociedades complexas, incorporar uma reflexão a respeito das atuais redes digitais e
eletrônicas e, no seu interior, o estudo das relações problemáticas entre imagem,
subjetividade, verdade e representações.
Por um lado, parafraseando Paul Rabinow (1999, p.100), trata-se de ver que tais
inovações reafirmam a idéia de que, para o caso das modernas sociedades contemporâneas,
cada vez mais vivemos in-between, isto é, “no meio” da reificação de identidades locais ou
de construção de identidades universais. Por outro, em face de nossas ilusões de um museu
“extramuros”, tal qual a “fantasia da biblioteca universal”, não podemos ignorar que há
determinadas convenções de dialogicidade/interatividade/telepresença nas redes mundiais
eletrônicas e digitais, o que faz com que elas não garantam, por si mesmas, uma
“democratização da cultura”, uma vez que as novas tecnologias, como forma possível de
escritura etnográfica, não “reprime o inescapável fato da textualização” (Rabinow, 1999,
p.85-7).
“Situações discursivas”, hipertextos multimídia, “comunidades interpretativas”,
telepresença, “interlocutores individuais”, interatividade, “convenções e operações
textuais”, universalismo, são termos que podem ser empregados para o estudo dos novos
suportes da memória com base nas redes eletrônicas e digitais se remetermos tais estudos a
uma reflexão a respeito dos novos velhos lugares de “subjetividades interiorizadas e suas
relações com normas e relações definíveis no âmbito das políticas das representações” nos
termos amplamente empregados por Paul Rabinow (1999, p.98).
Por tudo o que vimos comentando, consideramos que a pesquisa antropológica
documentada em um museu virtual proporciona formas mais criativas e interativas de se
operar e recuperar o patrimônio etnográfico do mundo urbano contemporâneo, tornando-se
um espaço privilegiado de construção de novas narrativas justamente porque, através delas,
obtém-se uma importante chave de interpretação dos seus tempos e espaços sociais.
111
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