2008 - Véu Semblante e Mascarada - Ana Lucília Rodrigues (Prefácio) PDF
2008 - Véu Semblante e Mascarada - Ana Lucília Rodrigues (Prefácio) PDF
2008 - Véu Semblante e Mascarada - Ana Lucília Rodrigues (Prefácio) PDF
Christian Ingo Lenz Dunker
O trabalho que o leitor tem em mãos aborda o cinema de Pedro Almodóvar em sua
forma peculiar de representar a feminilidade. Ele é também uma discussão histórica e
metodológica sobre as relações entre psicanálise e cinema. Ocorre que em algum ponto do
estudo esta relação, inicialmente arbitrária, entre os meios de representação (o filme) e o
objeto representado (a mulher), começam a produzir um conjunto tal de afinidades que nos
levam a pensar em uma conexão necessária. Ou seja, Ana Lucília começa a mostrar como uma
reformulação de nossas práticas de representação, figuração e narrativização são elementos
constitutivos da emergência da feminilidade como questão candente senão para a psicanálise
para a cultura ocidental.
Psicanálise e cinema nascem em fins do século XIX, ambos condicionados por uma
consciência possível da própria ilusão. Quando entramos em uma sala de projeção sabemos
que encontraremos uma ilusão capaz de nos despertar uma crença. Nos primeiros filmes
diante da imagem de um trem em movimento as pessoas corriam para fora da sala. Sabiam
tratar‐se de uma imagem, mas não sabiam quais seriam seus limites. Uma imagem animada
produzida por um aparelho que iluminava fotogramas. Um casamento feliz entre a fotografia e
o teatro?
Charcot levava consigo fotógrafos e desenhistas que retratavam as grandes histéricas
da Saltetrière. Freud teve contato com este ritual que era a expressão da aspiração clínica da
época. Retratar o instante, o transe, a passagem pela qual se podia verificar que a histeria não
era apenas um fenômeno moral, mas uma sucessão regular de signos mais ou menos
previsíveis. Charcot costuma ser apresentado como aquele que colocou a histeria mais além da
mentira e da dissimulação. Freud recolheu esta lição, mas de um outro ponto de vista. Ele
percebeu que a histeria não era apenas um conjunto de espasmos que podiam ser
fotografados, desenhados ou pintados. A histeria, em sua forma charcotiana, estava
intimamente ligada ao ritual do mestre seguido por discípulos ao qual se apresentava a
paciente. A voz de Charcot comandava a cena, mas havia os escrivãos, os enfermeiros. A
platéia e os atores deste teatro involuntário, definido por dois atos: os sintomas e os ataques
histéricos.
Ates disso Henry Matisse já havia dito: pinto quadros, não pinto mulheres. Ou seja, a
idéia de que o teatro manipula e produz ilusões, assim como a de que a pintura engana
premeditadamente o olhar, não é suficiente para a invenção da escuta psicanalítica. É preciso
ainda que se dissemine uma consciência clara de que o processo de produção da ilusão possui
mais que uma analogia com o processo de produção do desejo. Há algo na forma específica do
cinema que se transmite para a forma adquirida pelo desejo para que este pudesse ser
compatível com a experiência psicanalítica. Não é um acaso que ele tenha sido pensado por
Freud como (a) recalcado, logo sujeito a uma gramática de deformações, (b) sexual,
conseqüentemente sujeito a uma determinação pela alteridade e (c) infantil, portanto sujeito
a uma história. Ocorre que a ilusão propiciada pelo cinema compreende uma nova estrutura
de ficção. Nem o tempo do instante, nem o tempo da ação, nem o tempo da combinação entre
ambos. Como dizia Eisenstein: a essência do cinema é o corte. É o corte que permite o
deslocamento da câmera de uma tomada longa ou curta, que estabelece rupturas de
significação que independem do fluxo narrativo e na verdade o constituem de outra forma.
Se o teatro parecia ser suficiente para pensar a histeria, a partir do cinema que se pode
pensar a feminilidade. Isso parece ser um fato culturalmente plausível se acompanharmos com
Ana Lucília, a importância que o cinema teve para a determinação do papel social da mulher,
principalmente na comparação entre o pós‐guerra e a virada do século XX. Mas, além de
mímesis de uma contradição social o cinema introduziu novas formas coletivas de relação com
a própria imagem. Esta gramática dos modos de ilusão e das estruturas de ficção necessárias
para a enunciação da verdade pode ser encontrada no cinema, particularmente o de
Almodovar, quanto na própria teorização psicanalítica de Jacques Lacan. Aqui a autora destaca
três categorias fundamentais para a reflexão psicanalítica sobre o feminino: véu, semblante e
mascarada. Categorias um tanto heterogêneas. A noção de mascarada emerge na pena de
Joan Rivière para referir‐se à autonomização do jogo de máscaras que caracteriza a
feminilidade como uma espécie de retórica do desmascaramento sem rosto. A expressão véu é
utilizada por Lacan designar um artifício utilizado pelo sujeito em sua relação com a falta,
relação de encobrimento e revelação. O conceito de semblante é tardio na obra de Lacan e
refere‐se principalmente a um lugar no discurso, o lugar no qual constituímos autorias ou
dominantes de um discurso.
No cinema de Almodovar há uma combinação entre estas três estratégias de figuração
do feminino. Isso se torna visível, pois seu interesse maior parece ser justamente o de mostrar
estas estratégias enquanto estratégias. Por exemplo, a mascarada define‐se pela indução
sistemática no outro da suposição de que aquela mulher possui a chave, a causa ou o objeto
de determinação do desejo. Mas ela não o possui como um fragmento, traço ou adereço, mas
possui em toda extensionalidade de seu ser. Ela é capaz de reverter a lógica do ter, na qual em
geral os personagens masculinos desenvolvem sua própria comédia, em uma lógica do ser de
conseqüências eminentemente trágicas. Trata‐se, por exemplo, do tema romântico do amor
que começa como uma brincadeira ou uma aposta (como em Ligações Perigosas), mas que
repentinamente “sai do controle” e adquire um poder de se impor àquele que antes
imaginava‐se seu senhor. A máscara opera, portanto por inversão entre amante e amado,
sujeito e objeto, dominante e dominado.
Se a máscara sugere engano, representação e dissimulação, a noção de véu aparece de
outra maneira. O véu tematiza as falsas relações entre o amor e o desejo. Os equívocos
decorrentes do apego às imagens típicas da narrativa amorosa como uma espécie de garantia
para a perenidade do desejo. O véu protege, encobre, mas principalmente adia o encontro
com o desejo. Por exemplo, o tema do amor por quem não se deseja e do desejo por quem
não se ama sustentam‐se à base deste corte efetuado pela função do véu. É por isso que em
Casablanca o sucesso depende do desencontro.
O caso da noção de semblante implica não apenas no corte entre amor e desejo, mas
possibilidade de ironizar a própria aparência de ser. Se a mascarada funciona sugerindo uma
essência que se esconde por trás da aparência (quando na verdade a essência é este
deslocamento de aparências ele mesmo) o semblante mostra como esta aparência é produzida
revelando o truque em sua própria construção (como em Felinni de 8 e ½). Se o véu funciona
mostrando o valor essencial da aparência, ou seja, que ela não é apenas engano e ilusão
quanto ao objeto, mas trabalho e costura improvável entre amor e desejo, o semblante indica
que esta costura é um problema incompleto, ou seja, que mais além das relações de troca e
intercâmbio de palavras, gestos e desejos há algo que não possui equivalente nas relações
entre homens e mulheres. Assim cada qual esforça‐se por executar um personagem
(supostamente adequado para o outro) infiltrando neste teatro o valor real do desejo e do
amor (supostamente adequado para si), o semblante é o reconhecimento ou o saber da forma
postiça destas duas estratégias. Ou seja, é a aparência tomada em sua valor de aparência, sem
nada por trás dela e sem nada em nome da qual ela funcione. O semblante é no fundo
semblante de gozo. A imagem impossível da satisfação que nos escapa, realizada no outro.
A mascarada apresenta‐se segundo a imagem tipo da mulher viril ou inversamente da
mulher que reduz sua satisfação à satisfação de sua imagem. O véu, por sua vez figura‐se bem
tanto na imagem da maternidade quanto inversamente nas narrativas baseadas no encontro
ou no desencontro amoroso: as tragédias do desejo, concluídas ou inconcluídas. Finalmente o
funcionamento ao modo de semblante, que encontramos amplamente nas conjecturas de
Almodóvar sobre mulheres figuradas por corpos em coma, por travestis ás voltas com a
paternidade, por estupros exagerados ao paroxismo de banalizarem sua violência, por
masoquistas cientes de seu próprio sadismo deslocado. Ou seja, figuras que não são nem
propriamente passivas nem ativas, como o manejo da mascarada costuma enfatizar. Podem
ser tão explicita e exageradamente passivas que incitam o reconhecimento de algo além da
oposição simples entre atividade e passividade. Por outro lado não são nem fálicas nem
castradas. Podem ser tão explicitamente castradas ou tão proteticamente fálicas que
despertam uma espécie de cinismo involuntário na interpretação da personagem. Ou seja, elas
figuram muito bem a idéia de uma satisfação que não é toda fálica, mas que nem por isso
dispensa o falicismo, ou ainda de uma satisfação que não é toda nomeável.
Ver para descrer, é este o convite desta aventura guiada por Ana Lucília entre
psicanálise, cinema e feminilidade.