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Circulacao Discursiva PDF

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Circulação

discursiva e
transformação da sociedade
Universidade Estadual da Paraíba

Prof. Antonio Guedes Rangel Junior | Reitor

Prof. Flávio Romero Guimarães | Vice-Reitor

Editora da Universidade Estadual da Paraíba

Luciano Nascimento Silva | Diretor

Antonio Roberto Faustino da Costa | Editor Assistente

Cidoval Morais de Sousa | Editor Assistente

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eduepb@uepb.edu.br

Circulação discursiva e
transformação da sociedade

Paulo César Castro

(ORGANIZADOR)

Campina Grande–PB

2018
Copyright © 2018 do Autor

A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou


parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.

O selo Latus segue o acordo ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor


no Brasil, desde 2009.

Editora da Universidade Estadual da Paraíba

Luciano do Nascimento Silva | Diretor

Design Gráfico e Editoração

Paulo César Castro

Divulgação

Danielle Correia Gomes

Revisão Linguística

Os autores

Normalização Técnica

Paulo César Castro

Capa

Fernanda Estevam

Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme decreto nº 1.825, de 20 de


dezembro de 1907.

Ficha catalográfica elaborada por Heliane Maria Idalino Silva – CRB-15ª⁄368

306.46

C578
Circulação discursiva e transformação da sociedade. / Paulo César Castro
(Organizador). - Campina Grande: EDUEPB, 2018.

ISBN 978-85-7879-550-4

1. Tecnologia - Aspectos sociais. 2. Análise discursiva - Redes sociais. 3.


Midiatização - Transformações sociais. 4. Senso comum - Etnometodologia. 5.
Fake news - Midiatização. I. Castro, Paulo César (Organizador).

21. ed. CDD


APRESENTAÇÃO – Circulação discursiva em tempos de sociedades
midiatizadas

Esta obra, a segunda do Centro Internacional de Semiótica e Comunicação


(CISECO) voltada à circulação discursiva1, mostra a importância que o
tema tem assumido, nos últimos anos, junto aos pesquisadores em
comunicação na América Latina. Ela é o resultado do Pentálogo VIII,
evento que, realizado em 2017 na cidade de Japaratinga, em Alagoas,
reuniu pesquisadores brasileiros e estrangeiros, pelo segundo ano
consecutivo, em torno dos processos semióticos que se dão “entre” a
produção e a recepção. Se antes as pesquisas relegaram a segundo plano
essa instância, o quadro comunicacional contemporâneo estabelecido a
partir da internet e de seus variados ambientes midiáticos (blogs, wiki, redes
sociais online, por exemplo) requer novas reflexões e, consequentemente,
novos aportes conceituais e metodológicos.

A comunicação de massa, preponderantemente unidirecional, passou a


dividir espaço com um modelo do que Manuel Castells chamou de
“autocomunicação de massa” (2009, p. 88), em que os outrora passivos
receptores têm a oportunidade de ser também emissores, inclusive com a
potencialidade de alcançar audiências globais. Para Eliseo Verón, a web
propicia condições inéditas de acesso aos discursos midiáticos para
diferentes atores, principalmente os individuais, consequentemente
“produciendo transformaciones inéditas en las condiciones de circulación”
(2013, p. 281).

Intermináveis são os fenômenos comunicacionais que requerem um olhar


mais atento a partir de suas circulações discursivas, dado o ambiente
midiatizado em que acontecem, mas as eleições de 2018, mais explicitamente
para a presidência da República, podem ser exemplares nesse sentido. O
exíguo tempo de TV de Jair Bolsonaro durante a propaganda eleitoral
gratuita no 1º turno (8 segundos), que poderia ser em outros tempos um
entrave sério para qualquer campanha política a cargos no Executivo, na
verdade parece não ter sido um grande problema para que o candidato da
coligação “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” saísse vitorioso do
pleito. O grande diferencial, no plano comunicacional, foi mesmo o uso das
redes sociais online, através das quais Bolsonaro estabeleceu seu próprio
canal de comunicação com o público. Somando as contas do Facebook,
Twitter, Instagram, Snapchat e Youtube, o candidato reuniu uma legião de
quase 23 milhões de seguidores.

Mesmo que fosse necessário excluir os bots2 desse total, ainda assim estes e
todos os perfis “verdadeiros”, em conexão “direta” com o candidato, podem
ter tido um papel decisivo no processo eleitoral: a capacidade de fazer
circular, em progressão geométrica, os conteúdos produzidos pelo
representante do PSL. Ou seja, além do consumo dos textos, imagens, vídeos
e áudios postos em circulação num primeiro estágio por Bolsonaro, e da
possibilidade de manifestar-se sobre eles a qualquer momento (com outra
mensagem), cada internauta teve a chance de também fazer circular ainda
mais os mesmos conteúdos por suas redes online, usando diferentes recursos
de circulação disponibilizados pelas ferramentas, como “retweet”,
“compartilhamento”, “like” etc. – isso sem levar em consideração o vasto
número de grupos no WhatsApp que também propagaram os discursos do
capitão reformado do Exército.

Para além do aspecto meramente quantitativo, potencializado pelas redes


sociais online, a circulação pode ser abordada a partir da defasagem que o
discurso sofre a cada vez que vai do polo da produção ao polo do
reconhecimento. Se todo discurso é produzido sob certas condições (que
podem ser, inclusive, outros discursos) e seu resultado empírico advém da
aplicação de uma gramática de produção, seu consumo, por sua vez, se dá
sob outras condições e sob as mais diferentes gramáticas de reconhecimento
tanto quanto sejam os seus receptores. Quando se avalia “o modo como o
trabalho social de investimento de sentido nas matérias significantes se
transforma no tempo” (VERÓN, 2004, p. 54) – a exemplo de posts no
Facebook, tweets no Twitter, lives no Instagram ou vídeos no Youtube –, é
da circulação que se está falando. A partir da circulação, portanto, pode-se
avaliar um dos fenômenos que teve profundos efeitos sobre os rumos de
uma sociedade inteira – neste caso, a brasileira.

A escolha da circulação discursiva como tema do Pentálogo em dois anos


seguidos – “A circulação discursiva: entre produção e reconhecimento” em
2016, e “Circulação discursiva e a transformação da sociedade” em 2017 –
resultou de formulação feita por Eliseo Verón antes de seu falecimento, em
2014. O presidente de honra in memoriam do CISECO, aliás, já se detinha
sobre a questão da circulação havia mais de 40 anos. Na proposta do
Pentálogo VIII, a circulação é tomada como instância “organizadora” de
complexas intercambialidades de sentidos, constituindo-se como um objeto
que, sob novo status a partir da internet, desafia os processos observacionais
da semiótica aberta, bem como seus diálogos com diferentes disciplinas
(sociologia, economia, direito, antropologia, política etc.).

Tais desafios, na mesma proposta, são consequência das dinâmicas que


atingem de modo vertiginoso a atividade significante na espaço-
temporalidade da vida social. Discursos circulam durante 24 horas – dos
meios massivos às redes e das redes aos meios massivos; das instituições aos
coletivos de atores individuais, e dos indivíduos e coletivos às instituições; e,
também, dos profissionais aos amadores, e vice-versa. Por isso, não existe
uma origem determinada. E outra transformação, mais importante ainda
nos processos de circulação, refere-se, antes de tudo, aos próprios discursos.
A heterogeneidade que caracteriza a produção discursiva, em termos de
enunciação, oferece tampouco um mapa de rota, um percurso fixo a seguir.

Diante do potencial de questões teóricas e metodológicas que a circulação


discursiva suscita em tempos de web, nada mais prudente do que insistir no
tema. E, assim, foram convidados 21 pesquisadores – de diferentes
instituições acadêmicas do Brasil, Argentina, França e Portugal – para,
durante cinco dias, indicarem possíveis caminhos para tratar da circulação.
A este esforço se juntaram os participantes – professores, pesquisadores e
alunos de pós-graduação e graduação – do VI Colóquio Semiótica das
Mídias, evento que compôs o Pentálogo VIII. O resultado do rico debate
pode ser encontrado nos 16 textos que compõem essa obra, que busca
complementar, atualizar e aprofundar o que já tínhamos chamado no livro
anterior de circulation turn.

No primeiro artigo, o professor emérito da Escola de Comunicação da


UFRJ, Muniz Sodré, aborda a circulação a partir das imagens, tomadas
pelo “seu interno poder circulatório de afetar a dimensão espacio-temporal,
deslocando lugares e tempos”. Mas quando tomada na sua dimensão
econômica, como acontece no campo da publicidade, não mais demarcado
pelo sagrado ou pela arte, as imagens são tomadas como signos que
circulam “destinadas a incrementar a própria existência da comunidade
compatível com a mídia”. E essas imagens circulam em alta velocidade,
como acontece com o capital financeiro, “ao modo de uma circulação
alucinada ou virótica da ‘alma’ do modo de produção”. Depois de ter se
dedicado, no texto do livro anterior, a elaborar um dispositivo analítico para
estudar a circulação vertical-horizontal do sentido (das redes sociais aos
meios massivos, e dos meios massivos às redes sociais), agora Mario Carlón,
da Universidade de Buenos Aires, se volta a um dispositivo transversal. Este
é o nome dado ao esboço metodológico que ele busca aplicar aos discursos
que circulam através de “meios de comunicação individuais” – em “Medios
individuales, medios colectivos y curculación transversal”. Esses discursos,
oriundos de um certo tipo de enunciador, o individuo, mantêm relações
tensas com instituições sociais como a família, escola, partidos políticos,
democracia etc.

O câncer e a febre Zika, que vêm sendo associados com a ideia de


sofrimento, são tomados como objetos do texto “A circulação do
sofrimento”, de Katia Lerner, Inesita Soares de Araujo, Raquel Aguiar e
João Verani Protasio, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
O interesse deles recaiu, mais especificamente, sobre os discursos de
mulheres que vivenciam o câncer e mães de crianças afetadas pela
microcefalia causada pelo vírus Zika, e sobre o modo como eles migraram
da grande imprensa escrita para o ambiente da web. Enquanto no primeiro
caso, através dos blogs de câncer, surge um sujeito do enunciado individual
– um eu interior e psicológico –, no outro, o sujeito do enunciado e da
enunciação, que se expressa por meio do Facebook, é coletivo. Através dos
dois canais, segundo os autores, acontece uma circulação dos saberes
através da atualização da relação com o saber médico e com o discurso
científico. Gastón Cingolani, por sua vez, se propõe a avaliar como a
circulação opera como pano de fundo de sentido de algumas experiências de
recepção midiatizadas nas redes sociais, que ele aponta como estéticas, em
“Circulación y mediatización de la experiencia estética”. Para isso, o
pesquisador do IIEAC de Buenos Aires elege com objeto as plataformas
musicais e, a partir delas, trabalha com o que chama de macro-operações,
ou seja, diferentes maneiras de manifestação dos signos da circulação:
buscar/encontrar música, upload/download de música, reproduzir (escutar)
música, compartilhar música e organizar música. É no momento da
circulação, aliás, que o autor defende que a experiência estética se
transforma em prática.

A partir das narrativas midiatizadas de bicicleta, Demétrio de Azeredo


Soster observa como cicloturistas têm dado ao registro e à divulgação de
suas viagens, através de sites, blogs, redes sociais e tecnologias móveis, o
mesmo nível de importância que as próprias viagens. O que deveria ser
“apenas” o relato de uma viagem de bicicleta ganha marcas típicas de um
discurso para “circular” na web, segundo o professor da Universidade de
Santa Cruz do Sul (Unisc), no texto “O cicloturismo, o jornalismo e a
midiatização das narrativas de bicicleta”. Já a semiotização do mercado dos
encontros íntimos e/ou não sexuais, em duas redes sociais especializadas em
propiciar esses encontros – Tinder e Grindr –, é o campo de interesse
apresentado no artigo de Manuel Libenson. Como não se tratam de espaços
de compra e venda de serviços sexuais, é a reciprocidade o que define o
mercado configurador dos dois dispositivos discursivos. O autor,
pesquisador da Universidade de Buenos Aires, trabalha com um conjunto
de discursos de apresentação de usuários argentinos e brasileiros que têm
perfis públicos nas duas redes e, a partir deles, busca mostrar um conjunto
de transformações que introduzem estes dispositivos nas modalidades de
circulação discursiva. Ele tenta, assim, construir hipóteses sobre como a
circulação tem incidência sobre a construção de laços sociais.

Sérgio Dayrell Porto e Célia Ladeira Mota tomam o filme Um perfil para
dois, de Stéphan Robelin, como objeto de análise, considerando-o um
acontecimento. Nas palavras dos dois autores, membros do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da FAC/UnB, acontecimento pode ser
visto como “sujeitos humanos que travam com sujeitos não humanos, como
as coisas, os lugares, os espaços, o tempo, uma relação de proximidade,
diálogos possíveis”. O filme é analisado a partir dos recursos metodológicos
da compreensão interpretativa de Heidegger e da Análise da Narrativa. A
polêmica em torno da exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na
Arte Brasileira, realizada no Santander Cultural, é o tema do texto
“Fragmentação e hackerização do Queermuseu: o reconhecimento
deslocado – dos campos regulados à disrupção em redes sócio-semio-
técnicas”, de Jairo Ferreira e Rochele Zandavalli. Os autores assumem
como hipótese que os sentidos regulados no campo das artes visuais,
constituído até o século passado, com a internet estão sendo questionados,
abrindo novas interpretações sobre a arte como produto cultural. O
exercício analítico de Ferreira e Zandavalli, da Unisinos, busca identificar
os processos de regulação relativos ao museu e às obras de arte.

No artigo de Antonio Fausto Neto, o objeto são as fake news e suas


implicações sobre as novas formas de funcionamento dos discursos
informativo e político. E para tal, o pesquisador analisa uma imagem,
oriunda de um banco de fotografias nos Estados Unidos, em que aparece
uma mulher negra, de origem etíope mas naturalizada canadense, usada
pelo candidato Jair Bolsonaro para se contrapor às críticas contra suas
posturas racista e misógina. Segundo o professor da Unisinos, em seu texto
“Trajetos do corpo de uma mulher: construção e desmontagem de fake
News na campanha digital de Jair Bolsonaro”, a campanha política
“pratica, ao invés do diálogo, a fabricação (falsa) do outro, cuja construção
resulta apenas de uma perversa produção imaginária”. A circulação do
discurso sobre a ciência na internet, analisada através das ferramentas
metodológicas da sociologia das mídias, é o campo de interesse de Suzanne
de Cheveigné com o texto “Novas circulações discursivas sobre ciência”. Ela
dirige seu olhar aos vlogs (contração de “vídeo blogs”) de cientistas –
pesquisadores, professores ou estudantes de ciências – que buscam com
esses recursos da web contornar o “filtro” das mídias tradicionais e dos
periódicos acadêmicos. Ao final, a pesquisadora do Centro Norbert Elias,
em Marselha, na França, conclui que os vlogs, assim como os programas
científicos na televisão, “são o lugar de uma competição para saber quem
controlará a interface com o ‘resto da sociedade’, com o grande público”,
“quem terá o domínio do discurso sobre a ciência”.

Laura Guimarães Corrêa aponta seu olhar para os discursos relacionados


ao ativismo e ao consumo e ao modo como os sentidos deles se transformam
ao circularem por diferentes meios e plataformas. Para lidar com o
ativismo, nas suas diferentes formas, a pesquisadora da UFMG usa o
conceito de dano de Rancière, definido como um modo de subjetivação no
qual a ideia de igualdade é posta à prova e toma uma forma política. No
artigo “Ativismo, consumo e ambivalência: circulação de sentidos entre
redes e rua”, a autora explora três casos “em que discursos oficiais e
discursos contestadores estão em diálogo numa lógica de retroalimentação
por vezes mais harmônicas, por vezes mais conflituosa”. As condições de
circulação das notícias pela internet são o tema do texto de Natalia
Raimondo Anselmino, “Prensa online y redes sociales en internet: notas
sobre la circulación de los discursos mediáticos contemporâneos en
Facebook”. Para a pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas
Científicas y Técnicas (Conicet), na Argentina, desde que foram
transformadas também em conteúdos online, as notícias deixaram de ser
unidades-produto estáveis da versão impressa e passaram à condição de
textos desarticulados – como acontece, por exemplo, quando são publicadas
por um periódico no Facebook. Em ambientes midiáticos como esse, a
pesquisadora considera que a circulação deve ser tomada, para além da
defasagem apontada por Verón, também como o movimento dos produtos
entre o polo da produção e o polo do reconhecimento.

A tragédia ambiental causada pela mineradora Samarco na cidade de


Mariana, em Minas Gerais, é a questão central do texto de Ivone de
Lourdes Oliveira. A pesquisadora da PUC-Minas analisa o acidente sob
duas dimensões: a do acontecimento discursivo – ainda em processo, pois
continua se desdobrando em diferentes aspectos – e a da ordem
hermenêutica. Ela elege como objeto mais preciso de sua pesquisa –
“Ruptura da linearidade dos sentidos em um acontecimento discursivo: a
tragédia em Marina – Minas Gerais” – os jornais produzidos pela Fundação
Renova (Juntos) e pelos atingidos de três subdistritos de Mariana (A Sirene)
e, através deles, conclui que o quadro de sentidos que circulam através dos
dois periódicos indica “divergência entre as expectativas e a proposta de
resolução dos problemas pela mineradora”. Em “Caminhos e saberes
outros: pedagogias e metodologias em circulação”, Pedro Russi propõe, a
partir de uma epistemologia da circulação discursiva/circulação de sentido,
pensar o ato pedagógico como formação de pensamento investigativo
genuíno. Para tanto, o pesquisador da UnB pergunta: “De que maneira
trabalhamos nos processos pedagógicos para que essa circulação entre
gramáticas de produção e gramáticas de reconhecimento seja
compreendida? Quais desafios metodológicos e epistemológicos, de
interpendência de saberes, estamos propondo para problematizar a
circulação de sentidos?”.

O desenvolvimento da história da midiatização como processo, mais


especificamente com metahistória, é a proposta de Oscar Traversa com o
artigo “Transformaciones sociales e historia de la mediatización”. O
pesquisador da Universidad Nacional de las Artes, em Buenos Aires, traça
dois caminhos no texto: por um lado, fixar o contorno do que se entende por
midiatização e, do outro, vincular ao contorno essa nova história, numa
posição acima (meta), em relação, por exemplo, à história dos meios, de
modo a estabelecer tanto seus alcances quanto suas restrições. Já Adriano
Duarte Rodrigues, em “A natureza etnometodológica do senso comum”,
avalia como a ordem social é inseparável da ordem da linguagem, ou ainda
que “a atividade comunicacional é inseparável do ambiente e dos recursos
que a linguagem põe à disposição das pessoas”. O pesquisador da
Universidade Nova de Lisboa tem nos diálogos que as crianças entabulam
com os adultos os objetos de sua abordagem sobre o tema, mostrando como
elas vão adquirindo as competências apropriadas para a experiência do
mundo constituída a partir da linguagem, a que Bourdieu dá o nome de
habitus.

Ainda que este seja o segundo livro do CISECO sobre a circulação


discursiva, mesmo com a riqueza dos artigos aqui presentes, fica a
impressão de que o tema ainda demanda muitos debates, que ainda é
passível de várias outras investigações. Não é por acaso. Apesar de ter sido
referida por alguns autores, principalmente por Eliseo Verón, no decorrer
dos estudos em comunicação, a abordagem sobre a circulação no geral se
deu de modo muito tímida, em grande parte porque os pesquisadores
estavam ocupados com os fenômenos que se davam ou no polo da produção
ou no do reconhecimento. Mas o fenômeno da internet, tendo contribuído
para os contornos de sociedades cada vez mais midiatizadas, fez emergir a
urgência do tratamento adequado da circulação. Que essa obra seja mais
uma das contribuições nesse sentido. Boa leitura!

1. Referências

CASTELLS, Manuel. Comunicación y poder. Madrid: Alianza Editorial,


2009.

VERÓN, Eliseo. La semiosis social, 2: ideas, momentos, interpretantes. 1ª


ed. Buenos Aires: Paidós, 2013.

1 Cf. CASTRO, Paulo César (org.). A circulação discursiva: entre produção


e reconhecimento. Maceió: Edufal, 2017. O primeiro livro foi o resultado do
Pentálogo VII, que aconteceu em 2016 também em Japaratinga, Alagoas, de
19 a 23 de setembro, com a participação de 20 conferencistas – do Brasil,
Portugal, França, Colômbia e Argentina.

2 Abreviação de robots, são normalmente utilizados para se referir à ação


de softwares programados para simular ações humanas. Conhecidos
também como internet bot ou web robot, eles tem sido bastante usados no
ambiente das redes sociais online.
Agradecimentos

Encerrado o ciclo de mais um Pentálogo e de mais um Colóquio Semiótica das


Mídias, é chegado o momento de agradecer. Nossos gestos de gratidão vão
inicialmente para a Universidade Federal de Alagoas (UFAL), cujos esforços,
através de diferentes instâncias acadêmicas – reitoria, curso de Comunicação
Social –, nas figuras de seus representantes, inclusive os alunos, têm sido
fundamentais para avançarmos na qualificação do debate sobre os problemas da
comunicação no Brasil e na América Latina.

Outro apoio essencial, também já de vários anos, tem sido o da Capes


(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Sem ele, não
seria possível tamanha contribuição para as discussões sobre os fenômenos
contemporâneas da comunicação e da semiótica que o CISECO vem realizando.
O mesmo pode ser dito, com igual ênfase, sobre a Fundação de Amparo à
Pesquisa de Alagoas (Fapeal), que, mesmo em momentos de restrição
orçamentária, tem sido sensível, através de seus dirigentes, à importância do
evento que vem sendo realizando no Estado.

Agradecemos também à Editora da Universidade Estadual da Paraíba (Eduepb),


que se juntou ao CISECO nessa empreitada de dar corpo, através desse livro, ao
resultado das conferências do Pentálogo VIII. Nosso muito obrigado ao diretor e
aos editores assistentes da editora, respectivamente Luciano Nascimento Silva,
Antonio Roberto Faustino da Costa e Cidoval Morais de Sousa.

O agradecimento é extensivo ainda ao Instituto de Comunicação e Informação


Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) e à Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pela parceria. E
também ao Ateliê de Criação da UFMG, à Escola Municipal de Ensino
Fundamental Marechal Arthur Costa e Silva e à Escola Estadual Dom Eliseu
Maria Gomes de Oliveira, ambas em Japaratinga, através de suas direções,
professores e alunos, e ao Hotel Albacora, através de seus proprietários, Ana
Nascimento e José Saraiva. E também à Capes.
A circulação das imagens

• Muniz Sodré1

D. João VI encomendou ao pintor Jean-Baptiste Debret o retrato de sua


aclamação como rei. É tida como a primeira imagem mentirosa da História do
Brasil: o monarca aparece cercado de povo, que na realidade esteve ausente da
cerimônia.

Na realidade, toda imagem é uma mentira de real, mas uma mentira


especialíssima, porque nela as diferenças ou os opostos incidem como o mesmo,
como uma mágica coincidência do ser e não ser. Etimologicamente, a palavra
imago contém tanto o sentido de “fazer” quanto o de “magia”. Daí, a
“ambiguidade profunda” a que se refere Marc Fumaroli quando vê na imagem
“uma representação fiel, o duplo verossímil no espelho, ou um falso objeto, um
fantasma, um sonho enganoso, uma vã aparência, um simulacro, uma cópia
degradada” (ABRIL, 2013, p. 40).

Na imagem, o inexistente quase existe. É de fato uma mentira (ou uma ficção, se
quiserem) que tem governado o Ocidente em todas as suas frentes, desde a
econômica à religiosa. Para começar, Deus teria criado o homem à sua imagem
e, na mesma operação, a natureza, para o uso do homem. Desta ficção teológica,
que separa homem de natureza, deriva-se a ideia de “alma”, que é um ponto de
articulação da imagem com o Criador e, ao mesmo tempo, de exclusão de tudo
que tenha a ver com natureza, inclusive o corpo humano.

Na história ocidental, religião e economia se entrelaçam por meio da imagem,


especialmente no interior da metafísica engendrada pela economia de mercado e
confirmada pela Igreja na defesa da moralidade do trabalho, do mérito e da
evolução da ordem produtiva. Desde seu começo, a doutrina dos pais da Igreja, a
Patrística, tratou de elaborar uma espécie de império político da imagem
enfeixado no conceito de oikonomia. Esta é palavra enraizada na genealogia
teológica do governo dos homens, principalmente entre o segundo e o terceiro
séculos da história da Igreja.

Aganbem cita o argumento de teólogos como Tertuliano, Hipólito e Irineu:

Deus, quanto a Seu ser e a Sua substância é certamente um; mas quanto à sua
oikonomia, isto é, a maneira como organiza a Sua casa, Sua vida e o mundo que
criou, é trino. Assim como um bom pai pode confiar a seu filho a
responsabilidade por certas funções e certas tarefas, sem contudo nada perder de
seu poder e de sua unidade, Deus confia ao Cristo “a economia”, a administração
e o governo dos homens. (AGANBEM, 2007, p. 23-24)

Na ficção em que também implica a oikonomia se incluem teologicamente os


significados de encarnação do Filho, assim como a economia da redenção e da
salvação, donde a designação gnóstica de Cristo como “o homem da economia”
(ho anthropos tès oikonomias). Por meio dela, o cristianismo introduziu os fiéis
na paixão administrada da imagem: Cristo é a imagem mortal (encarnada) de um
imortal (Deus) e, ao sacrificar-se, inaugura a imortalidade de suas imagens, que
se desdobram na gerência da fé e na imagística dos santos, progressivamente
construídas pela Igreja. No limite, não se trata apenas de encarnação e sim de
personificação e incorporação, já que a Igreja personifica Cristo e desenvolve
estratégias teológicas, pelas quais o fiel é levado a assimilar e incorporar a
imagem como se fosse uma substância com a qual ele próprio se identifica.

Assim como a imagem, a moeda – que desde a Antiguidade foi cunhada em


templos – decorre desse mesmo nomos (regra, lei, administração) e, por isso, é
chamada na Grécia Antiga de nomisma, algo que se interpõe por convenção nas
relações de troca entre mercadorias. A síntese das mercadorias presente na
moeda ou no dinheiro pauta-se por uma estruturação teológica na medida em que
aparece como uma substituição dos bens particulares de troca por uma
monovalência, uma “quintessência ideal” (Marx). Monovalente não é apenas a
divindade única, mas também, por exemplo, a relação da moeda com o ouro ou
qualquer outro material que se constitua como lastro ou padrão, embora o ouro
tenha conquistado historicamente um lugar privilegiado.

No ouro está representado o valor da mercadoria, mas para que isso aconteça,
isto é, para que se converta em dinheiro, é preciso que não seja uma mercadoria
como as outras, que exista “ao lado e fora delas”. Daí, o que Marx designou (O
Capital, vol. I) como “uma falsa aparência” ou “a magia do dinheiro”: a imagem
da substância ou da matéria é o que justifica a confiança outorgada à moeda
fiduciária. É preciso ter fé em quem a emite, no responsável por essa operação
mágica ou alquímica, em que uma relação imaginária, isto é, a identificação
ideal com o ouro, determina concretamente a forma do valor de troca. Na “alma”
da mercadoria, assim como na “alma” dos homens, abriga-se, portanto, a
imagem de uma idealidade essencial – seja o ouro, seja Deus – designada como
uma “soberania perfeita” (DESCARTES).
A imagem, portanto, pode ser fortemente política, em especial quando se
considera o seu interno poder circulatório de afetar a dimensão espácio-
temporal, deslocando lugares e tempos. Isso é fundamental na questão do
racismo, em que se revela plena a importância do traço memorial da
espacialidade. É que todo e qualquer racismo exacerba-se precisamente no
instante da proximidade, como esclarece Enriquez a propósito da rejeição ao
imigrante:

[...] no momento em que o estrangeiro vive simultaneamente como estrangeiro


(com seus costumes, seu comportamento) e como semelhante, no momento em
que pode ser acusado de não querer se assimilar e de querer ser assimilado
demais, no momento em que a sua diferença é insuportável e sua semelhança
intolerável [...]. (ENRIQUEZ, 1994, p. 103)

Não se trata, portanto, do efeito “natural” de uma identidade étnica do espírito,


mas de uma determinada associação de ideias no espírito, ou seja, de uma
imagem subitamente inaceitável. Embora em contexto diferente, esse argumento
evoca a reflexão de Hume sobre como a natureza humana ultrapassa
empiricamente o espírito por meio de regras, como, por exemplo, a da
associação. Assim,

quando colocamos corpos em ordem, nunca deixamos de posicionar contíguos


uns aos outros aqueles que se assemelham ou que, pelo menos, sejam vistos sob
pontos de vista correspondentes. Por que isso? Só pode ser porque
experimentamos uma satisfação em unir a relação de contiguidade à de
semelhança, ou a semelhança das situações à semelhança das qualidades.
(HUME apud DELEUZE, 2001 p. 15)

Para o empirista inglês, é a própria natureza humana que associa as ideias por
imaginação, por regularidade ou por relação, gerando efeitos de fácil transição
de uma ideia a outra e sugerindo uma tendência do espírito, que se corporifica
em imagens.

De fato, a semelhança sugere proximidade de territórios e de corpos, daí implicar


sempre o racismo uma desterritorialização – do Mesmo ou do Outro.
Abandonando o seu lugar predeterminado, o Outro (o migrante, o diferente)
transforma-se na imagem do intruso que ameaça dividir o lugar do Mesmo
hegemônico. O Outro é aquele que supostamente “não conhece o seu lugar” –
assim se expressa o senso comum discriminatório –, isto é, aproxima-se demais,
rompendo com a separação dos lugares em todas as configurações possíveis
(ego, corpo, vizinhança etc.) e deste modo conspurcando a pureza pressuposta de
uma hierarquia territorial. A aversão ao Outro se intensifica com o seu
deslocamento territorial: o diferente (o negro, o índio etc.) está ali onde não
deveria, assim como o suflê preparado por um grande cozinheiro, antes lindo no
prato sobre a toalha da mesa, poderia inspirar aversão se colocado sobre o lençol
da cama2.

Mas a imagem de que estamos falando até agora inscreve uma ambiguidade – a
ambiguidade do ser e não ser ao mesmo tempo – que é fonte do fazer poético,
plástico, mítico. É imagem que produz e ao mesmo tempo destrói – é a imagem
do desacerto de estrutura entre língua e linguagem, entre forma e formatividade,
entre objeto e representação, entre mundo e criação de mundos.

Mas na esfera da pura produção econômica, a imagem perde a ambiguidade em


favor de um pretenso realismo. A circulação deixa de ser interna (o
deslocamento espacio-temporal) para se exteriorizar fora dos circuitos
simbólicos, demarcados pelo sagrado ou pela arte. Assim é que o âmbito estrito
da comunicação pública caracteriza-se pela circulação publicitária de imagens-
signos, isto é, imagens destinadas a incrementar a própria existência da
comunidade compatível com a mídia. A indústria cultural concebida pela Escola
de Frankfurt já era o desenho incipiente de uma cartografia globalizada pela
cultura das imagens.

A realidade descrita meio século atrás por essa expressão referia-se à ponta mais
visível de um iceberg (televisão, cinema, rádio, revistas, discos etc.) cuja sombra
pairava sobre o núcleo erudito da cultura, ao passo que a midiatização
contemporânea corresponde a tudo isso, com o acréscimo da parte pouco visível
da infraestrutura digital, basicamente numérica. As imagens (em sentido lato,
não apenas visual) produzidas pela mídia passaram a canalizar as representações
individuais, gerando efeitos sociais e políticos, em última análise, criando
ideologicamente outro tipo de comum.

Mas a midiatização tende a competir com as mediações tradicionais, porque


implica um processo de mudanças qualitativas em termos de configuração social
por efeito da articulação da tecnologia eletrônica com a vida humana, cuja
superfície é a imagem, a ser entendida lato sensu como visualidade e como
imaginário sociocultural. Diz Abril:
O mundo-imagem é a superfície da globalização. A imagem-superfície é toda a
nossa possível experiência comum, porque não compartilhamos o mundo de
outro modo. O objetivo não é alcançar o que está debaixo da superfície da
imagem, mas ampliá-la, enriquecê-la, dar-lhe definição, tempo. Neste ponto,
emerge uma nova cultura. (ABRIL, 2013, p. 165)

Uma comparação simplificadora: na mediação institucional, uma imagem é algo


que se interpõe entre o indivíduo e o mundo para construir o conhecimento; na
midiatização, desaparece a ontologia substancialista dessa correlação, e o
indivíduo (ou o mundo) converte-se, ele próprio, em imagem gerida por um
código tecnológico. Nesta nova chave conversora do real em realidade
compatível com a lógica organizacional (no limite, o mercado como nova
teodiceia), a própria ideia de mediação se enfraquece.

Em termos organizacionais, o fenômeno gira ao redor da indústria do século


XXI: a tecnologia da informação, a partir da qual o substrato real do fenômeno
pode ser designado como inteligência artificial. Para uma adequada
compreensão, dois termos impõem-se: algoritmo e conectividade. Algoritmo é
um processo iterativo e finito destinado à resolução lógica de problemas.
Conectividade é o acesso instantâneo tanto a pessoas quanto a objetos. São
termos de uma nova utopia, que se manifesta no discurso dos especialistas em
computação como a de “um mundo inteligente, conectado e seguro”.

Quanto aos dispositivos de comunicação, confirma-se tecnologicamente a sua


natureza de rede – com predominância das técnicas digitais sobre as analógicas.
Esta característica afeta a estrutura organizacional subsumida no conceito de
mídia. Por um lado, a digitalização reticular permite derivações das formas
corporativas e centralizadas de mídia (os tradicionais “meios de comunicação”)
na direção de plataformas digitais, que podem constituir-se como pequenas
empresas de baixo custo ou de natureza cooperativa.

Por outro lado, ao se tornar evidente que a estrutura presente e futura do


mercado está assentada na concentração de dados combinada com a inteligência
artificial, percebe-se como tecnologia digital e economia de dados pavimentam o
caminho da apropriação de instituições sociais por organizações de indústria
baseadas no aproveitamento industrial da imagem. O trabalho, por exemplo.
Veja-se a Uber, uma empresa transnacional que redefine formas de trabalho
locais e fórmulas institucionais estabelecidas sob a égide da economia de dados.
Uma organização desse gênero é essencialmente mídia lato sensu, quer dizer,
não uma ferramenta de edição corporativa, mas a apropriação capitalista da
forma institucional da cooperativa por meio de uma imagem de capital fixo (já
que os equipamentos de transporte não pertencem à empresa), com lucros reais e
sem relações trabalhistas, portanto, uma derivação de capital financeiro e
tecnologia que captura, ao modo de uma máquina ou de um dispositivo
midiático, aspectos tradicionais e concretos do trabalho.

Faz-se muito pertinente o conceito foucaultiano de biopoder, que se pode


entender como um complexo de poderes disciplinares ou então como uma
antropotécnica de gerência das liberdades individuais apoiada em dispositivos
destinados a “produzir, insuflar, ampliar as liberdades, introduzir um ‘a mais’ de
liberdade por meio de um ‘a mais’ de controle e de intervenção” (FOUCAULT,
2008. p. 92). Isso é propriamente o que denominamos bios virtual, uma
ambiência magneticamente afetiva, uma recriação tecnoestética do ethos, capaz
de mobilizar os humores ou estados de espírito dos indivíduos, reorganizando
seus focos de interesse e de hábitos, em função de um novo universo menos
psiquicamente “interiorizado” e mais temporalmente relacionado ou conectado
pelas redes técnicas.

Bios midiático ou bios virtual são expressões adequadas para o novo tipo de
forma de vida caracterizado por uma realidade “imaginarizada”, isto é, feita de
fluxos de imagens e dígitos, que reinterpretam continuamente com novos
suportes tecnológicos as representações tradicionais do real. Nesse bios, os
velhos fenômenos de sociedade tornam-se objeto de uma saturação conceitual
afim a essa imaginariedade virtual. Trata-se geralmente de um imaginário
controlado e sistemático, sem potência imaginativa ou metafórica, mas com uma
notável capacidade ilocutória (portanto, um imaginário adaptável à produção)
que não deixa de evocar a dinâmica dos espelhamentos elementares ou primais.
Se antes o Estado totalitário pretendia enraizar-se na vida da nação, reunificando
(contra o liberalismo) corpo e espírito, agora é a mídia que se enraíza
culturalmente na vida social.

No âmbito de um ecossistema simulativo ou espectral de vida (a midiatização, o


bios midiático), o dispositivo fortemente cinemático da mídia mobiliza os corpos
da cidadania, instituindo um imaginário que se confunde com a realidade da vida
nua, natural, de modo a constituir uma nova esfera existencial plenamente
afinada com o capital, onde o desejo se imponha preferencialmente como desejo
de mercado. Nessa operação, reciclam-se, no mundo especializado do estético, o
bios, todas as velhas e gastas imagens, guardadas nos diferentes arquivos óticos
da civilização ocidental. Mas elas já não guardam traços dos mistérios da sombra
ou da ambiguidade, porque apenas circulam velozmente, da mesma forma que
circula o capital financeiro, ao modo de uma circulação alucinada ou virótica da
“alma” do modo de produção.

1. Referências

ABRIL, Gonzalo. Cultura visual, de la semiótica a la política. Madrid: Plaza y


Valdés, 2013.

AGANBEM, Giorgio. Qu’est-ce qu’un dispositif? Paris: Éditions Payot &


Rivages, 2007.

ENRIQUEZ, E. Caminhos para o outro, caminhos para si. Sociedade e Estado,


UnB, IX/l.2, 1994.

HUME, David. Traité de la nature humaine. Aubier, 1946.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Rio de Janeiro: Martins


Fontes, 2008.

1 Professor Emérito da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio


de Janeiro.

2 Mas é preciso levar em conta os elementos de estesia implicados no argumento


de territorialidade própria. Um exemplo: em maio de 2016, a propósito do
jogador Jérôme Boateng (filho de pai ganês e mãe alemã), do Bayern de
Munique e da seleção alemã, o político Alexander Gauland (da extrema direita
alemã) afirmou ao jornal Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung que “as
pessoas o consideram um bom jogador de futebol, mas não querem um Boateng
como vizinho”. É que a fenotipia escura costuma ser rejeitada ainda que o
indivíduo visado tenha a mesma nacionalidade dos que o rejeitam.
Medios individuales, medios colectivos y circulación transversal

Desde “adentro hacia afuera” y desde “afuera hacia adentro” (o como afecta la
nueva circulación a las instituciones sociales)

• Mario Carlón

1. Introducción

El título del VIII Pentálogo, “Circulação discursiva e transformação da


sociedade”, nos enfrenta, como pocas veces, a una de las cuestiones más
importantes de la actualidad. Lo dice claramente: el tema a tratar es la
transformación que en la sociedad actual se está desarrollando producto del
cambio que está aconteciendo en la circulación del sentido. Es una cuestión
apasionante, porque es un nivel en el que ha sido poco tratada1.

En general las transformaciones de la vida social suelen discutirse a partir de


otro tipo de cuestiones. Por ejemplo, a partir de la emergencia de revoluciones
sociales (la revolución francesa, la bolchevique, etcétera), de la implosión de
estructuras centenarias (la caída del imperio romano), de la irrupción de una
revolución tecnológica (la revolución industrial, la de la ahora llamada “cuarta
revolución industrial”, Schwab 2017 [2016]) e, incluso, de la crisis de los
grandes relatos (como sucedió en la era posmoderna a partir de la intervención
de Lyotard, 1986 [1979]). También han sido discutidas a la luz de procesos
sociales como el individualismo, la globalización, el urbanismo, el cambio
demográfico o las migraciones.

Pero pocas veces se ha puesto en el centro de la escena, al discutir la


transformación de la sociedad, el estatuto de los procesos comunicacionales. Es
cierto que durante la modernidad, por sobre todo a partir de la consolidación de
los medios masivos, comenzó a hablarse de una “sociedad de la
comunicación”2. Fue un proceso importante en el que se consideró que los
medios eran efectivos instrumentos comunicacionales de instituciones pre-
existentes que se apoyó en concepciones lineales de la comunicación
(JAKOBSON, 1985 [1960], fue tal vez el máximo exponente). En la
posmodernidad este diagnóstico fue objetado tanto porque surgieron nuevas
concepciones comunicacionales no lineales (HALL, 2004 [1973]; GIDDENS,
2015 [1984]; VERÓN, 1987; MARTÍN-BARBERO, 1987) más capacitadas para
estudiar una sociedad en la que se que empezó a poner en duda la fuerza y la
cohesión de sus instituciones dominantes, como porque los medios cambiaron de
rol en la vida social.

En estos últimos años muchos procesos se aceleraron, entre ellos, una progresiva
mediatización de la vida social. Es así que en estas últimas décadas ha
comenzado a advertirse, cada vez más, que entre los procesos que había que
considerar para entender la transformación social debía incorporarse la
mediatización (HJARVARD, 2014 [2013; VERÓN, 2001). Son diagnósticos
muy importantes pero que, a su vez, deben ser actualizados en el contexto
contemporáneo, dado el grado de aceleración del nuevo proceso de
mediatización que estamos viviendo producto de la aparición y consolidación de
Internet. El diagnóstico de los estudios de mediatizaciones sobre la situación
actual está lejos de haber concluido, tanto porque la revolución tecnológica en la
que se apoyan como las prácticas sociales que pretenden instaurar (o con las que
intentan conectar) cambian constantemente en una sociedad que se está
construyendo, más allá de la modernidad, bajo un nuevo paradigma, el del
presentismo (CARLÓN, 2016b, 2018). Sin embargo, ya ha avanzado lo
suficiente como para que quede claro que con focalizar mediatizaciones no
alcanza y que para avanzar en la comprensión de la sociedad actual es
imprescindible atender a la dimensión comunicacional (y, con ella, la
problemática de la circulación del sentido3).

Como no puede ser de otra forma, los estudios sobre la circulación del sentido en
la sociedad hipermediatizada contemporánea, que a diferencia de las sociedades
moderna y posmoderna posee dos sistemas mediáticos, el de los medios masivos
y el de los nuevos medios con base en Internet y la telefonía celular, se
encuentran en una etapa fundacional. En términos personales lo que puedo
expresar es que en este contexto mis estudios de estos últimos años estuvieron
concentrados en tratar de generar un dispositivo analítico para estudiar la
circulación vertical-horizontal del sentido, que es ascendente (va desde “abajo
hacia arriba”, es decir, de las redes sociales mediáticas a los medios masivos), y
descendente (“desde arriba hacia abajo”, de los medios masivos a las redes
sociales mediáticas), y que frecuentemente tiene un momento horizontal (por
ejemplo, entre pares en las redes sociales mediáticas). He considerado a esta
forma de circulación, que viaja entre dos sistemas mediáticos, hipermediática.
Esos trabajos se continúan4.

Pero lo que pretendo en este texto es avanzar sobre otra área de los estudios
sobre circulación del sentido, que podemos considerar transversal5. Así, en el
marco de este trabajo pondré foco en determinar algunas de las transformaciones
que se establecen desde que cierto tipo de enunciadores, los individuos, hacen
circular sus discursos a través de “medios de comunicación individuales”.
Porque esos discursos mantienen relaciones tensas y complejas con instituciones
sociales que se encuentran en crisis como la familia, la escuela, los partidos
políticos, la democracia, etcétera. Como la investigación recién esta
comenzando, lamentablemente no presentaré grandes resultados. Pero brindaré
ejemplos que permitirán comprender mejor el campo circunscripto e intentaré
distinguir formas específicas de circulación del sentido que caracterizan, más
allá de la modernidad y de la posmodernidad, a la circulación contemporánea.

2. La mediatización contemporánea. La hora de los “medios colectivos” y de los


“medios individuales”

Tanto la teoría de las mediatizaciones surgida a partir de los textos de Eliseo


Verón como importantes referentes de la nórdica sostienen desde los años
ochenta que en Occidente avanza el proceso de mediatización de la sociedad y
que su principal consecuencia es un incremento de la complejidad. Este
diagnóstico persiste en un campo en el que históricamente los análisis que parten
de las instituciones y los medios (en su sentido tradicional, por el cual también
son instituciones) han sido, hasta hace poco, dominantes, debido a que los
medios de comunicación masiva reinaron de modo hegemónico y sin
competencias durante la modernidad y la posmodernidad.

Pero es probable que el proceso de mediatización de la sociedad en que vivimos,


contemporánea, sea aún mucho mayor. Es decir, que esté sub-diagnosticado. No
porque haya aumentado el poder de las instituciones (lo más probable es que
haya disminuido, como lo atestiguan debates como el del “fin” de los medios
masivos (CARLÓN; SCOLARI, 2009) o los análisis de Jenkins, Ford y Green
(2014 [2013]) sobre las apropiaciones de contenidos de las franquicias realizadas
por los fans), sino porque el contexto mediático de la modernidad y la
posmodernidad no hizo necesario que se avanzara en la consideración de otros
medios que los institucionales. Por eso es habitual que los estudios sobre
mediatizaciones no privilegien a los individuos mediatizados, a no ser que sean
en sí mismos instituciones (como el Presidente), representantes de importantes
instituciones (diputados, jueces, senadores, etcétera) o referentes mediáticos
(celebrities). Ni siquiera ahora, que todos están veinticuatro horas los siete días
de la semana conectados.
Pero esa etapa tal como la conocimos ha acabado. Es probable que a partir de
ahora debamos ocuparnos más de otros objetos, como la mediatización de los
colectivos y de los actores individuales. No es que los actores individuales o los
colectivos hayan sido soslayados hasta ahora por las teorías de la mediatización.
El problema es que fueron pensados más en reconocimiento (en recepción) que
en producción (en emisión). Y el asunto es que dado el desarrollo acontecido tras
la emergencia de la web 2.0 y de las redes sociales mediáticas en estos últimos
años, el proceso de mediatización de todos los actores sociales (que así se
vuelven enunciadores mediáticos) se ha vuelto imparable.

Por eso nos interesa, en este contexto, plantear la necesidad de examinar la


situación actual desde otro punto de vista. Uno que pretende atender
especialmente a los discursos de los colectivos y de los individuos mediatizados
(incluyendo en estos últimos no solo los más relevantes sino, también, a los
amateurs), ya no sólo en reconocimiento, sino también en producción y, aun
más, de acuerdo a su inscripción en procesos de circulación. Es un punto de vista
que parte de la hipótesis de que para comprender a los procesos de circulación
que caracterizan a la sociedad contemporánea es necesario abandonar ciertos
esquemas mentales que funcionan como configuradores pretederminados para el
análisis y establecen situaciones fijas (por ejemplo aquellos que parten de ubicar
a las instituciones en producción y a los colectivos de actores individuales en
reconocimiento, y asumir que producción y reconocimiento son instancias que
puede ocupar cualquiera).

En este contexto partimos de la tesis de que las redes sociales mediáticas


(Facebook, Instagram, Twitter, etcétera), que son diferentes de las redes sociales,
son “redes de medios” (CARLÓN, 2012)6. Lo son porque son redes que
aglutinan diversos “medios de comunicación” (que en cierto nivel poseen, por
supuesto, diferencias entre sí) pero que comparten ser espacios en los que
diferentes enunciadores (institucionales, individuales y colectivos) pueden
apropiarse de contenidos generados por otros para difundirlos o resignificarlos y,
también, producir y dar a conocer discursos que una vez publicados circulan
libremente. Es en este marco que nos interesa detenernos en los medios
individuales7. No para evaluarlos o juzgar sus prácticas, no es eso lo que nos
interesa en este momento en este nivel. Sino para poner a prueba la tesis que
sostiene que la emergencia generalizada de enunciadores que administran
“medios individuales” (lo mismo vale para los “medios colectivos”8) que
producen discursos específicos es tan influyente a diferentes escalas y niveles de
interacción, que está transformando la circulación del sentido en la sociedad
contemporánea, generando nuevas formas, ausentes en la modernidad y la
posmodernidad, como la vertical-horizontal, a la que hicimos referencia, y la
transversal, en la que nos proponemos detener en este texto. Y que en todos los
niveles en los que esos discursos circulan la transformación que instalan, muchas
veces a contracorriente de las instituciones, tiene un efecto insoslayable9.

Obviamente esa tesis no podrá ser explorada en todas sus dimensiones en este
texto. Lo que aquí nos proponemos es identificar ciertas transformaciones que
afectan distintos niveles. En primer lugar, en el nivel de las interacciones entre
los individuos y las instituciones, es decir, en el nivel de circulación que, como
adelantamos, aquí llamamos transversal. En segundo lugar, en un nivel
interindividual, que es en el que se modifican las relaciones entre el online y el
offline.

3. La circulación transversal en la modernidad y la posmodernidad (en la era de


los medios masivos): desde “desde adentro hacia afuera” y “desde afuera hacia
adentro”. La posición del observador

Para avanzar en el análisis, determinar en qué consiste la circulación transversal


y establecer algunas de las múltiples consecuencias que se derivan de ella voy a
retomar de Eliseo Verón “Esquema para el análisis de la mediatización” (1997),
un texto en el que utilizando un lenguaje sociológico10 presentó un grafico de
relaciones entre instituciones, medios, colectivos y actores individuales (Figura
1). Voy a apropiarme de él para pasar a explicar en el próximo ítem cómo se
instala la circulación transversal en la sociedad contemporánea.

Figura 1 – Esquema para el análisis de la mediatización, de Eliseo Verón


Lo primero que hay que recordar es cuál era el objetivo de Eliseo Verón al
presentar este esquema: explicar cómo se generan los colectivos en una sociedad
mediatizada. Su respuesta, propia de una época en la que aún no existían “los
medios individuales” y los “medios colectivos” a los que nos venimos refiriendo
fue que había cuatro grandes campos de relaciones en los que se generaban los
colectivos, que denominó C1, C2, C3 y C4. Repaso rápidamente los dos
primeros, que son conocidos porque son campos habitualmente transitados en las
investigaciones sobre medios, para pasar luego a ocuparme de los otros dos.

C1) Relación de los medios con las instituciones: permanentemente asistimos a


la construcción de nuevos colectivos en la vida social por la articulación entre
medios e instituciones: por ejemplo, nuevos partidos políticos o simplemente
nuevos políticos que se dan a conocer gracias a la mediatización y representan a
nuevos colectivos. Es un campo de análisis tradicional que permite observar en
qué forma se construye (y reconstruye) en cada momento histórico el gran
colectivo ciudadanos (y en qué forma específica se construyen los colectivos
cada vez en la vida social).

C2) Relación de los medios con los actores individuales: campo que considera la
evolución de las estrategias de los actores individuales en relación con el
consumo de los medios (televidentes, lectores de prensa, etcétera). Siguiendo
análisis posteriores de Verón (2009) podemos decir que luego de la instalación
de los medios masivos en el siglo XX (prensa, radio, cine, televisión) la vida
cotidiana se vio fuertemente afectada por su presencia, que programó desde la
oferta el consumo y la vida social (a través, principalmente, de las grillas de
programación). También podría incluirse aquí un fenómeno no ejemplificado en
este texto por Verón pero teorizado por él (y estudiado también por otros) que es
el de la capacidad de los medios de construir una realidad compartida para todos
los actores individuales de la sociedad (sigo aquí a Verón, 1987 [1981]). En los
últimos años el cambio de prácticas de lectores, oyentes y espectadores ha hecho
que cada vez estén menos dispuestos a seguir los tiempos de la oferta
institucional, hecho que ha generado no sólo la “crisis” de los medios masivos
(sujetos que quieren ver y oír las cosas cuando lo desean y bajo la forma en que
lo desean) sino, también, de las “realidades sociales compartidas” que eran
capaces de construir los medios masivos de comunicación.

Dos comentarios sobre estas dos relaciones capaces de generar colectivos. Creo
que en ambos casos Eliseo Verón adoptó una posición tradicional porque se puso
“afuera” y jugó el juego de quien observa el funcionamiento de los medios y las
instituciones en la vida social de acuerdo a metodologías consolidadas de los
estudios de comunicación. La primera relación incluye una circulación típica de
la era de los medios masivos: viene “desde arriba hacia abajo” y es una
expresión de la capacidad de los medios de generar colectivos. La segunda
también viene “desde arriba hacia abajo” y se inscribe en el tradicional campo de
análisis de los “efectos”.

Veamos ahora las otras áreas delimitadas por Verón, que son aquellas en las que
nos vamos a detener.

C3) Relación de los actores con las instituciones: aquí señala la transformación
de la cultura interna de las organizaciones por obra de la mediatización. Aunque
no da un ejemplo en particular no es difícil imaginarse casos. En los años
noventa se habían vuelto muy importantes en la cultura empresaria los house
organs. Tomando a este medio como ejemplo podemos considerar como un caso
de la relación delimitada por Verón el hecho de que un empleado en particular
haya sido destacado como empleado del mes. La mediatización, como en otros
espacios de la vida social, permite destacarse a unos y relega a otros, etcétera. Y
estos procesos siempre tienen consecuencias.

C4) Cómo los medios afectan la relación entre actores e instituciones: en este
caso Verón ejemplifica con un caso de la época, la causa de coimas pagadas por
la empresa IBM para obtener el contrato de informatización del Banco Nación
de la República Argentina, y se refiere al “shock psicológico identitario del
ejecutivo de IBM” (aunque no da nombres es probable que se refiera a uno de
los imputados, que fue el subgerente, Carlos Soriani): “su relación con la
empresa en que trabaja no volverá a ser nunca como antes”, dice Verón.

Lo interesante de los dos últimos campos de relaciones es que Verón realizó un


desplazamiento como observador: se ubicó en el interior de las instituciones. En
la primera puso acento en los efectos de la mediatización de una publicación que
habitualmente viene, en el interior de las empresas, “desde arriba hacia abajo”, y
que es capaz de afectar conductas, vínculos, reglas, etcétera. En la segunda los
efectos de la mediatización vienen también “desde arriba hacia abajo”, pero
asimismo y por sobre todo desde afuera hacia adentro: se trata de cómo una
noticia publicada en los medios masivos impacta en un miembro de una
institución (y entiendo que también, obviamente, en los demás miembros que
forman parte de la empresa).
Aunque Verón no haya utilizado los términos “desde adentro” y “desde afuera”
entiendo que la distinción de este campo en particular, que según mi
conocimiento no constituye aún un área específica de investigación en nuestros
estudios, delimita una problemática que puede ser especialmente atendida por
los estudios sobre mediatización y, en particular, de circulación.

4. La era contemporánea

4.1. La circulación transversal en la era contemporánea

En la era contemporánea, en la que hay dos sistemas mediáticos, el de los


medios masivos y el que tiene su base en Internet y la telefonía, se han
instaurado un conjunto de transformaciones. Una de ellas es el modo de
circulación hipermediático vertical-horizontal al que ya hice referencia. El otro
es el transversal, en el que nos acabamos de detener. Nuestra tesis es que las
múltiples y diversas articulaciones que cotidianamente se producen entre de
ambos acentúan los procesos de divergencia en la cultura contemporánea. Pero
antes de pasar a referirnos a ese proceso de articulación entre ambos procesos
circulatorios, ¿qué ha sucedido con el modo de circulación transversal de “afuera
hacia dentro” y de “adentro hacia afuera” en la era contemporánea?

Lo primero que podemos señalar es que aquí también nos encontramos con un
panorama fuertemente afectado por el cambio en la mediatización. En este
campo la principal novedad es consecuencia del hecho de que los individuos
mediatizados no solo intercambian discursos entre sí a través de distintas “redes
sociales mediáticas” en las que se encuentran inscriptos y a las que pertenecen.
También, se encuentran “adentro” de todas las instituciones, medios y colectivos,
porque instituciones, medios y colectivos están compuestos por individuos. Por
consiguiente, los contenidos ahora no van “hacia afuera” sólo desde los voceros
o los medios institucionales de partidos políticos, empresas, iglesias, fuerzas
armadas, etcétera, como lo hacían en la modernidad y la posmodernidad. Eras en
las que acceder a información del interior de instituciones era excepcional y se
producía principalmente en determinados contextos. También lo hacen
cotidianamente, desde los “medios individuales” que administran quienes
forman parte de cada institución. Y no sólo llegan “hacia adentro”, desde los
medios masivos a las instituciones. También lo hacen desde los “medios
individuales” y desde los “medios colectivos” de las redes sociales mediáticas en
las que estos medios están emplazados. Es decir: desde la circulación
hipermediática vertical-horizontal. Esos puntos de encuentros con la circulación
transversal en los que se producen un conjunto amplio y diverso de cambios de
escala y de transformaciones.11 Veamos estos casos con más detalle. Para que
quede más claro lo que acabamos de expresar, empecemos con el análisis de la
lógica de circulación transversal más conocida:

1. Circulación “hacia adentro”, de los medios hacia la “vida interna” de la


familia, los colectivos, las instituciones, los medios. Vemos aquí principalmente
dos grandes espacios de investigación:

a. “desde arriba hacia abajo” y desde “afuera hacia adentro”: nos encontramos
aquí con un caso semejante al circunscripto por Eliseo Verón cuando ejemplificó
con IBM/Banco Nación. Se parte del conocido poder de los medios masivos de
construir agendas compartidas por todos y de producir información que puede
afectar a cualquier institución (una familia, un sindicato), un medio o un
colectivo. De acuerdo a la relevancia y al poder de la institución afectada en la
vida social puede ser desde “arriba abajo” (de un medio masivo a una familia) o
una relación más igualitaria (entre un medio de comunicación masiva y un poder
del estado, por ejemplo). Son fenómenos que cada vez hay que determinar en las
complejas y dinámicas sociedades actuales.

b. de “abajo hacia arriba” y “desde afuera hacia adentro”: en este caso la


información no parte de los medios masivos, sino de cualquier otro enunciador
desde las redes sociales mediáticas (“de abajo”) y llega al interior de una
institución. Es un proceso que es característico de la sociedad en que vivimos,
fuertemente “desintermediada”, en la que las redes sociales mediáticas se han
convertido en grandes fuentes de información12.

Los discursos que circulan desde afuera hacia adentro pueden llegar a tener gran
poder de impacto. Vemos aquí, como mínimo, tres posibles tipos de
informaciones (positivas, negativas y ambiguas) y tres modos de procesamiento
interno (repudio, reconocimiento, desinterés)13.

Veamos ahora el otro tipo de circulación, mucho menos estudiado:

2. Circulación “hacia afuera”: se focalizan aquí los cambios de escala de


circulación “hacia afuera” de discursos producidos por individuos que
pertenecen a instituciones, medios y colectivos a través de los medios que
administran en las redes sociales mediáticas.

Consideremos tres ejemplos. Los dos últimos tienen el interés de que son
semejantes desde el punto de vista de la circulación, pero son diferentes por su
contenido.

a. de “adentro (de un medio masivo) hacia afuera” (“hacia arriba y hacia abajo”):
en la Argentina, podemos citar el caso del periodista Roberto Navarro, que
trabajaba en un medio de comunicación masiva y se peleó públicamente a través
de Twitter con Federico Maya, Gerente General de Contenidos del canal de
televisión donde trabajaba (C5N) y finalmente fue despedido. La noticia fue
retomada por los medios masivos y por otras redes sociales mediáticas.14

b. de “adentro” (de una familia en la que el padre – o la madre - es un importante


funcionario público) hacia “afuera”, hacia “arriba” y hacia “adentro” (efecto
boomerang): un miembro de una familia publica algo en la red y ese contenido
“escala” más allá de sus contactos y llega a los medios masivos. El discurso
puede ser positivo o negativo para el enunciador o su familia. Veamos un
ejemplo que ya hemos comentado, como ejemplo de “fuego amigo” (CARLÓN,
2018): Camila Echegaray, la hija de Ricardo Echegaray, director de la AFIP (la
poderosa agencia recaudadora de la Argentina), publica una foto en Instagram de
un auto Audi 0 kilómetro que le regaló sorpresivamente su padre el día de su
cumpleaños. El contenido es comentado en las redes sociales mediáticas y llega
a los medios masivos, en algunos diarios en la “sección política”15. Finalmente
Echegaray debió dar una entrevista a un programa radial. El contenido salió
“hacia afuera” de la institución familiar, llegó a los medios masivos, donde fue
repudiado, y se volvió sobre Echegaray, que tuvo que responder como padre,
poniendo su voz en una entrevista radial (“cuando uno quiere a sus hijos y se lo
merecen tiene que darles lo mejor que puede”, dijo Echegaray)16. Este tipo de
circulación también puede originarse a partir de un contenido positivo.

c. de “adentro” (de una familia amateur) hacia “afuera”, horizontal y hacia


“arriba”: en 2014 Claudia Nicora, una ciudadana común hasta entonces
desconocida, publica en su cuenta de Facebook su foto con el rostro golpeado y
la de su marido, Bernabé Insaurralde, a quien denuncia por violencia de género.
Dice: “Hace años que sufro de violencia de género a causa de psicópata que
aparece en la foto. Estoy harta de hacer denuncias civiles y penales en la
comisaría de la mujer de Florencio Varela y que no hagan nada por detenerlo,
además que se ríen en mi cara. Esto va todo muy lento”. La información escala y
como noticia es publicada por diarios digitales y le hacen una nota en un canal
de televisión, TN.
4.2. La circulación del sentido entre individuos mediatizados. Transformaciones
entre el online y el offline: la generación de nuevos intertextos y contextos
interpretativos

Como venimos expresando, la emergencia y la consolidación de la circulación


vertical-horizontal y la transversal solo fueron posibles gracias a la
mediatización masiva de los individuos y la publicación, por parte de cada uno
de ellos, de discursos de todo tipo en medios individuales de administración
propia. Pero este proceso no solo tiene consecuencias a nivel de la relación entre
los individuos y las instituciones, las tiene también en las relaciones que los
individuos mantienen, en todos los niveles, entre sí. Si bien este hecho ha sido
observado falta aún avanzar en la explicación acerca de qué modo específico las
relaciones offline se ven afectadas por la circulación discursiva online.

En este campo nuestra tesis es que la publicación de discursos online producida


por individuos mediatizados genera una circulación que se continúa en el offline
(y luego en el online, después en el offline y así siguiendo). Así, por ejemplo,
uno de los modos específicos en que se desarrolla es a través de la generación
permanente de nuevos intertextos y contextos interpretativos en el offline. Es
decir que lo que cada individuo publica a través de su propio “medio de
comunicación” online, tiene efectos cuando ese individuo interactúa después con
otros offline e, incluso, cuando no interactúa17. Esto vale tanto para la
apropiación que realiza de contenidos públicos como para la publicación de
contenidos personales de carácter íntimo o privado. En el caso de la circulación
transversal este proceso afecta tanto el hacia adentro como el hacia afuera de
medios, instituciones y colectivos.

5. Los efectos de estas dos grandes formas de circulación del sentido específicos
de la cultura contemporánea

La identificación de un modo de circulación transversal, además del vertical-


horizontal, muestra la complejidad de la cultura mediática contemporánea y su
diferencia con la moderna y la posmoderna. El modo de circulación transversal,
aquí circunscripto, permite además realizar un aporte al estudio de cómo los
individuos mediatizados producen lo que Verón llamaba la aceleración de la
divergencia. Una divergencia que suma inestabilidad a la ya muchas veces
diagnosticada crítica situación de las instituciones desde la posmodernidad.

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VERÓN, Eliseo. El living y sus dobles: arquitecturas de la pantalla chica. En:


VERÓN, Eliseo. El cuerpo de las imágenes. Buenos Aires: Norma, 2001 [1984].

7. Trabajos monográficos citados

7.1. Monografías citadas

CHO, Eunice; KOMIYAMA, Geraldine; MARTINO, Lorena; MONTESANO,


Micaela; RUBINO, Maria Fátima. Cuidemos las dos vidas, Trabajo monográfico
desarrollado en el curso “Comunicación Visual” de la Universidad de San
Andrés, 2018.

CUTIGNOLA, Agostina; FERRACUTTI, Delfina; FERRO, Josefina;


GIQUEAUX, Rosario. De las redes a la calle: el pañuelazo. Trabajo
monográfico desarrollado en el curso “Comunicación Visual” de la Universidad
de San Andrés, 2018.
MARTINEZ, Aldana Micaela; PANIZZI, Laila; SOMOZA, Gabriela;
PALOMINO, Melisa; NIELD, Desirée; MUÑIZ, Camila Mía; #niunamenos,
Comisión 21 a cargo de Martina Jiménez, Semiótica de Redes de la Universidad
de Buenos Aires, 2016.

CANALE, Diego; CENTARO, Lucía; GONZÁLEZ, Pablo; GROBLY, Aldana;


SCHIFFER, Luciano; PEREYRA, Camila; VEGA, Florencia. zekiel79,
Comisión 23 a cargo de Damián Fraticelli, Semiótica de Redes de la Universidad
de Buenos Aires, 2016.

1 Este simposio es continuación del anterior, “A circulação discursiva: entre


produção e reconhecimento”, y por consiguiente una profundización de la
temática tratada. En estos últimos años, los estudios sobre circulación del sentido
han sido impulsados por autores como Antonio Fausto Neto (2015, 2012) y José
Luiz Braga (2012), quien propuso la noción circuitos. En distintos trabajos he
intentado realizar mis aportes (CARLÓN, 2015, 2016a y 2017) y la cátedra de la
Universidad de Buenos Aires Semiótica de Redes se ha concentrado en estos
últimos años esta problemática: http://semioticaderedes-carlon.com/.

2 En “El living y sus dobles: arquitecturas de la pantalla chica” (VERÓN, 2001


[1984]), el importante texto en el que distingue una sociedad mediática de una
mediatizada, señala Verón sobre el proceso de emergencia de los medios de
masas que en un primer momento fue “pensado a la luz de una concepción
representacional, característica de la modernidad y fundada en una visión
funcional e instrumental de la comunicación: todos esos nuevos soportes que han
aparecido a un ritmo cada vez más rápido son, como su nombre lo indica,
medios al servicio de un fin: la comunicación” (13).

3 A punto tal que el concepto circulación, que nos habla de la diferencia entre
producción y reconocimiento (VERÓN, 1987), es clave para conceptualizar
cómo incide para Verón el proceso de mediatización en la vida social: antes que
incrementar la unidimensionalidad, tiende a aumentar la complejidad. Dice
Verón: “Contrariamente a muchas profecías (…) que fueron formuladas ante el
surgimiento de las tecnologías de la comunicación llamadas de ‘masas’, los
soportes tecnológicos cuya emergencia han hecho posible diferentes
modalidades de comunicación colectiva, tienden en el largo plazo a acentuar el
desfase y no a reducirlo; tienden, dicho de otro modo a aumentar la complejidad
de la circulación” (VERÓN, 2001, p. 130).
4 Resultado de nuestras investigaciones ha sido, finalmente, la proposición de
una tipología sobre la circulación hipermediatica que distingue cuatro grandes
modalidades de acuerdo al sentido en que circulan los discursos (CARLÓN,
2017): a) ascendente/descendente (que surge desde la redes y luego desciende
desde los medios masivos, como Chicas bondi); b) descendente/ascendente (que
desciende desde los medios masivos y luego asciende desde las redes, como la
Campaña del miedo, del Frente para la Victoria que fue respondida por la del
BU!, con miedo votas mejor); c) descendente/horizontal (que desciende desde
los medios masivos y queda en las redes, como sucede con muchas noticias de
los medios masivos) y, d) ascendente/horizontal (que asciende desde las redes y
queda en ellas, como acontece con la comunicación de gran cantidad de
actividades, exposiciones, recitales, pequeños actos políticos, etcétera). Es un
dispositivo analítico que distingue, también, una dimensión temporal de la
circulación (a través de la identificación de distintas fases) y otra espacial (que
trabaja posicionando a los distintos enunciadores en la arena mediática a partir
de valoraciones positivas y negativas). Ambas trabajan con gráficos de alto
poder de síntesis.

5 Es el tema de investigación principal del nuevo Proyecto de Investigación


Ubacyt “La mediatización en el entretejido de los vínculos sociales. Cambios en
la circulación del sentido a partir de la nueva mediatización de individuos,
colectivos e instituciones en la sociedad contemporánea”, que hemos presentado
con un amplio grupo de trabajo entre los cuales se encuentran Damián Fraticelli,
Ana Slimovich, Rocio Rovner, Josefina de Mattei, Noelia Manso, Federico Fort
y otros investigadores.

6 Es probable que las redes sociales existan desde tiempos inmemoriales (según
autores como Michael Mann (1986-1993 [1991-1997]), por ejemplo, la sociedad
griega estaba compuesta por una serie de redes sociales de poder – esa es lectura
que realiza Peter Burke (2005 [1991]), quien destaca que Mann “aboliría el
concepto de sociedad” y lo reemplazaría por lo que llama “múltiples redes socio-
espaciales de poder superpuestas y entrecruzadas” (247)). Más allá de la
complejidad de este tema aquí llamamos redes sociales mediáticas a las que
surgen a partir de medios que tienen su base en Internet y las redes telefónicas
(Facebook, Twitter, Instagram, etcétera). Las redes sociales mediáticas son
“redes de medios”: los medios que instituciones, individuos, colectivos y otros
medios de comunicación administran dentro de dichas redes.

7 Aparentemente una de las primeras cuestiones a despejar a la hora de


considerar a los “medios individuales”, es su diferencia de estatuto. Pese a la
diversidad que existe entre las instituciones sociales, parece haberse llegado a
ciertos acuerdos acerca de sus características y función. Por un lado, las
instituciones sociales, como sostiene Stig Hjarvard (2014 [2013]), siguiendo a
Anthony Giddens (2015 [1984]) se definen por dos atributos: manejan recursos
(materiales y autoridad) y poseen reglas (normativas). Por otro lado, como
expresa Verón, tienen dos funciones: reforzar colectivos existentes y generar, en
el caso particular de los medios como instituciones, sus propios colectivos
(colectivos mediáticos). ¿Qué sucede con los “medios individuales”? Que la
diversidad parece mucho mayor. Algunos son verdaderas instituciones, con
recursos, reglas y capacidad de generar colectivos. Y otros parecen carecer de
alguno de los rasgos. Sin embargo, es difícil dejar de lado su participación en la
vida social si se pretende comprender el estado actual de la mediatización y la
circulación de sentido que caracteriza a las sociedades contemporáneas. En
primer lugar, porque muchos son padres o madres y están al frente de esa
institución social que es la familia. En segundo lugar porque aún quienes no son
padres o madres pueden ocupar lugares relevantes en muchas otras redes
sociales de las cuales forman parte: redes de amigos del colegio, de amigos del
deporte, de la clase de yoga, del trabajo, de actividades delictivas, etcétera (todas
las cuales tienen reglas explícitas o implícitas). Así en las redes sociales
mediáticas los individuos, que muchas veces administran pequeñas o grandes
instituciones, administran sus propios medios de comunicación. Gracias a ellos
pueden publicar discursos que, a diferencia de los que les permitían hacer
circular el teléfono o el correo electrónico, pueden ser públicos. Esos discursos
pueden luego circular en distintas direcciones hipermediáticas (vertical-
horizontal u transversal, por ejemplo) y construir colectivos mediáticos o ser
retomados, incluso, por los medios masivos. Algunos aspectos novedosos
ocurridos en estos años desde la emergencia de las redes sociales mediáticas es
que enunciadores individuales amateurs, que eran incapaces de generar
colectivos, fueron capaces de hacerlo desde que administran sus propios “medios
individuales” (caso Chicas bondi, por ejemplo; pero también muchísimos
youtubers e instagrameros). En estos casos es habitual que los participantes de
los colectivos surgidos a partir de la nueva mediatización, es decir, los
individuos que conforman esos colectivos mediáticos, al igual que sucede con
los que participan de colectivos generados por los medios masivos, no lleguen a
conocerse entre sí. Entendemos que en términos no antropocéntricos es
consistente sostener la existencia de “medios individuales” con la distinción del
último Eliseo Verón (2013) entre sistemas sociales y sistemas socio-individuales.
Los medios individuales, puede decirse, son administrados por sistemas socio-
individuales.

8 En general los colectivos se consideraron en reconocimiento. Como señaló


Verón (2013) en la era moderna la comunicación fluía de los dispositivos socio-
institucionales a los colectivos de actores individuales. Así, las instituciones y
los medios fueron considerados generadores de colectivos y, también, quienes
refuerzan los colectivos existentes. Pero desde la emergencia de las redes
sociales mediáticas la mayoría de los medios colectivos de la era de los medios
masivos, ya sea los surgidos como forma de expresión de colectivos sociales
preexistentes como los que se originaron a partir de fenómenos mediáticos
generados por la industria pasaron a tener su expresión en internet: blogs,
cuentas en twitter, páginas en Facebook. En estos últimos años se ha estudiado la
circulación hipermediática de varios colectivos para los cuales la mediatizacion
ha sido clave: #niunamenos (SLIMOVICH, 2018), #Ayotzinapa (SLIMOVICH;
ARELLANO, 2017). No son iguales: mientras #niunamenos surge como
resultado de un proceso que tenia ciertos antecedentes y escala y se constituye
definitivamente gracias a la mediatizacion, #Ayotzinapa surge en relación
antagónica con instituciones del poder, “desde abajo” como respuesta a
fenómenos discursivos que vienen “desde arriba”. Ahora bien, siguiendo el
desarrollo de estos procesos es posible pensar que luego de atender a cómo se
construyeron a través de la mediatización, nos encontramos a la puerta de otros
niveles de análisis, que focalicen desde una posición “meta” el estatuto de los
colectivos y, también a las manifestaciones sistémicas que mantienen entre sí. En
una monografía que analizó la circulación hipermediática de colectivos surgidos
con motivo de la votación de la ley de aborto legal en la Argentina, “De las redes
a la calle: El pañuelazo” (CUTIGNOLA; FERRACUTTI; FERRO;
GIQUEAUX, 2018), se sostuvo que hay colectivos que surgen de otros
colectivos, refiriéndose así, por ejemplo, a “línea peluda” y “actrices argentinas”,
colectivo surgido en el marco del proceso iniciado por el tuit que convocaba a un
“tuitazo” y un “pañuelazo” desde la cuenta @CampAbortoLegal. En otra
monografía, “Cuidemos las dos vidas” (CHO; KOMIYAMA; MARTINO;
MONTESANO; RUBINO, 2018) se demostró que hay colectivos que surgen en
relación antagónica a otros colectivos que acaban de manifestarse (un colectivo
de actrices argentinas surge en respuesta al video “cuidemos las dos vidas”
subido a una cuenta de YouTube por la Red de Integracion Social y Estrategica).
Esto nos permite pensar hay colectivos que son “madres” de otros colectivos
(como #niunamenos), otros que otros que surgen por fragmentación o
desmembramiento de un colectivo original, otros que emergen debido a procesos
de adhesión o de oposición a colectivos existentes, etcétera.
9 En lo que hace a la importancia de los individuos y de los discursos
individuales podemos recordar lo que expresaba Eliseo Verón en “Conversación
sobre el futuro” (2001, p. 138): “de todos los factores actuantes en el meta-
espacio social, el individualismo es sin dudas el responsable de la aceleración de
la divergencia”. Es decir que ocuparse de los discursos que hacen circular los
individuos mediatizados en relación con instituciones de la vida social es, de
algún modo también, ocuparse del principal factor de aceleración de la
divergencia en las sociedades contemporáneas.

10 Lenguaje que cambió en el último libro 2013 al utilizar una combinación de


una perspectiva no antropocéntrica influida por Jean-Marie Schaeffer (2009
[2007]) y elementos de la teoría sociológica de Niklas Luhmann (1998 [1984]).

11 Al menos en las tres dimensiones detectadas en la circulación hipermediática:


cambios de escala en la mediatización, complexificación en las direcciones
comunicacionales y cambios de estatuto del enunciador o del vinculo
enunciador-enunciatario (modificación del vinculo con pares, las instituciones y
los colectivos). A las cuales debe sumarse una más: cambios en las relaciones de
lo que se considera interno/externo, que en ocasiones puede corresponderse con
lo público/lo intimo/y lo privado.

12 Debe atenderse a que el proceso puede hacer, también, un largo y complejo


viaje hipermediático. Por ejemplo, pueden venir “desde abajo”, ascender por
parte de cualquier enunciador a los medios masivos, y luego tener impacto en el
interior de cualquier institución.

13 El caso IBM/Banco Nación es un típico caso de una noticia negativa, que


supone, según Verón, un repudio dentro de la institución. Pero las noticias
también pueden ser positivas, de reconocimiento y tener tanto impacto como una
negativa: el medio masivo publica que alguien es premiado, distinguido,
etcétera. Un tercer tipo de casos serían los ambiguos. Es obvio que estas
posibilidades pueden complejizarse y que se abra aquí un campo complejo de
investigación. Se produce aquí un típico “cambio de escala” producto de la
mediatización.

14 http://www.lanacion.com.ar/2064575-echaron-a-roberto-navarro-de-c5n

15 https://www.lanacion.com.ar/1618843-ricardo-echegaray-le-regalo-un-audi-a-
su-hija-y-estallaron-las-redes
16 https://www.lanacion.com.ar/1618948-ricardo-echegaray-justifico-el-regalo-
de-un-audi-a-su-hija-cuando-uno-quiere-a-sus-hijos-les

17 En principio pueden delimitarse, como mínimo, cuatro tipos de circulación.


A) Cuando un individuo publica un discurso en la red y ese discurso tiene efecto
en aquellos con quienes que mantiene vínculos no sólo mediatizados sino
también sociales intersubjetivos (off line). Aunque no haya recibido comentarios
mediáticos, este tipo de circulación de los contenidos afecta el vínculo
comunitario: entre amigos, familiares, el colectivo, la institución a la que
pertenece. Nos parece importante destacarlo porque este tipo de circulación es
estudiada desde otros enfoques, pero no ponen acento en la dimensión vincular.
B) Cuando el discurso que publica un individuo es comentado (dicho en sentido
amplio: compartido, “me gusteado”, criticado, etcétera), por otro con quien
mantiene un vínculo intersubjetivo fuera de la red. C) Cuando el discurso
publicado por un individuo no es comentado por otros con quienes no se
mantiene un vínculo intersubjetivo fuera de la red. D) cuando el discurso
publicado por un individuo es comentado, por otros con quienes no se mantiene
un vinculo intersubjetivo fuera de la red.
A circulação do sofrimento

Visibilidade e protagonismo em novas configurações comunicacionais

• Katia Lerner, Inesita Soares de Araujo, Raquel Aguiar e João Verani


Protasio

1. O sofrimento nas sociedades contemporâneas e suas novas formas de


visibilidade

As transformações ocorridas nas últimas décadas impactaram as condições de


circulação dos discursos sociais, particularmente com a emergência da internet.
Esta questão afetou as sociedades contemporâneas de várias formas, mas
assumiu contornos específicos no que respeita à questão do sofrimento. Se os
acontecimentos considerados traumáticos foram por muito tempo discutidos em
círculos restritos da psicanálise e psiquiatria e os eventos adversos da vida (como
doença, morte, acidente) vividos e verbalizados na esfera privada, ocorre em
nossos tempos uma profunda alteração deste cenário, em especial no que é
considerado passível de evocar sofrimento (envolvendo, também, causas e
responsabilidades), quem é considerado passível de sofrer e sua possibilidade de
expressão pública. Conforme abordado em outro momento (LERNER; VAZ,
2017), observa-se a emergência de uma nova economia moral em que o
sofrimento individual torna-se uma emoção socialmente reconhecida e
valorizada e, embora ainda permaneça a expressão de infortúnios da ordem
social, proliferam no espaço público os que antes seriam considerados privados e
íntimos. Passam, também, a ser de especial interesse crimes, catástrofes, doenças
e outros eventos adversos que atingem não apenas os reis, políticos e
celebridades, mas indivíduos comuns. Expandem-se, portanto, os atores
sofredores, mas também a natureza dos eventos considerados causadores de
sofrimento, abrangendo situações corriqueiras antes não percebidas desta forma.

No bojo deste processo, atesta-se a progressiva emergência da categoria “vítima”


como uma condição legítima, garantidora de direitos e compaixão (FASSIN;
RECHTMAN, 2009), tornando-se uma figura chave da subjetividade
contemporânea. A noção de trauma, pensada como a marca deixada por um
evento trágico, até mesmo banal, tornar-se-ia algo que poderia acometer a todos
sem distinção e que reuniria as mais distintas experiências, impactando não
apenas a política, mas as relações sociais mais amplas, nas suas novas formas de
interação, de ver o outro e de produção de autoconsciência.

Se o estatuto do sofrimento mudou nas sociedades contemporâneas, também o


novo contexto alterou as condições de sua comunicabilidade, em especial com a
emergência da internet. Dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios, realizada em 2015 (BRASIL, 2016), revelam que o percentual de
pessoas com acesso à internet alcançou 57,5% da população de 10 ou mais anos
de idade (102,1 milhões de pessoas). Esse acesso se dá por meio do computador,
utilizado em 70,1% dos casos, como dos aparelhos celulares em 92,1% dos
casos. Cabe destacar o papel das redes sociais, que conectam mais de 90% das
pessoas com acesso à internet no Brasil, como revela a Pesquisa Brasileira de
Mídia 2015 (IBOPE, 2016).

Assim, a narrativa deste tipo de experiência não apenas passa a fazer sentido
para as novas audiências, mas passa a contar com uma legião de indivíduos
desejosos por enunciá-la, desejo que é viabilizado e potencializado pela
ampliação das possibilidades tecnológicas e incorporação de novas lógicas e
racionalidades massmidiáticas. O sofrimento, que por muito tempo foi matéria-
prima da mídia tradicional e catalisador de grande interesse, transbordou para
além desse espaço e atuou como um elemento de intensificação de circulação
discursiva, seja pela solidariedade e empatia ou pelo risco compartilhado. As
formas usuais de mediação dos jornalistas, que narravam a partir da noção de
verdade aquilo que viam, passaram a conviver com os inúmeros testemunhos dos
sofredores que falam, trazendo uma verdade pessoal e reconfigurando as
distintas formas de autoridade possíveis, por exemplo, imprimindo reforço e
autenticidade à autoridade da experiência. Esse lugar de fala, associado à
vivência do sofrimento, vem marcado pelo aumento de seu capital simbólico e
está vinculado à emergência de novas identidades sociais e novas formas de
atuação política.

Se essa questão se aplica ao sofrimento de forma genérica, assume certos


contornos quando associada à experiência de adoecimento, entendido não como
um evento puramente físico e universal, mas como “processos psicobiológicos e
socioculturais” (LANGDON, 1996), onde a experiência dos indivíduos se dá em
meio a um contexto histórico e cultural, que em alguma medida angula o que e
como os indivíduos vivem como doença, como se estruturam os sistemas de
cura, as relações que a sociedade estabelece com o doente, e assim por diante
(ROSENBERG, 1992).
Esse cenário mais recente, conformado e acentuado pela ideia de “fatores de
risco”, que impactou as formas de conceituar doenças, e pelo desenvolvimento
de técnicas e procedimentos variados que possibilitaram a identificação precoce
das doenças ou sua probabilidade, trouxe o transbordamento da ideia de doença
para nosso cotidiano, ampliando e intensificando a circulação de sentidos sobre o
tema. Um bom indicador disso é sua presença nos meios de comunicação. Ferraz
(2015) aponta o aumento de noticiabilidade dos temas da saúde/doença nas
últimas décadas, tomando como referência a revista Veja. Sua análise revela a
intensa expansão das chamadas de primeira página desde sua criação, em 1968,
até 2014, indicando uma curva ascendente que atingiu o seu pico no final dos
anos 2000. Inúmeros estudos vêm mostrando e discutindo a saúde como
elemento crescente de interesse jornalístico e midiático de modo geral, tanto na
imprensa como na televisão, assim como seus dispositivos de produção de
sentidos (FAUSTO NETO, 1996; CARDOSO, 2012; LERNER;
SACRAMENTO, 2014; FERRAZ, 2015).

No entanto, nem toda doença – ou nem todo sofrimento – traz em si sua


automática classificação como um evento digno de importância. Menos do que
uma propriedade ontológica dos eventos sanitários, o reconhecimento de um
evento como “questão pública” é socialmente dado e imbricado na sua
construção discursiva (GUSFIELD, 1992). Isto confere relevo à observação
sobre os atores e os espaços de legitimação em que esses processos de atribuição
de valor e sentido ocorrem. No caso da saúde, uma das instâncias que transforma
os temas de saúde em problemas públicos, para além das instâncias
especializadas, é o trabalho do jornalismo. Romeyer e Moktefi, abordando este
tema na questão da prevenção e focalizando os processos que levam a uma
situação de crise, falam da criação de “lugares de debate, de polêmicas ou
controvérsias, lugares onde testemunhos, especialistas e outros participantes se
expressam e debatem” (2013, p. 39). Desses lugares emergiriam os problemas
públicos.

Embora Romeyer e Moktefi enfatizem a dimensão da crise, das polêmicas e


controvérsias, nem sempre um evento é alçado à condição de “questão social”
pela dimensão conflitual. Se isso é evidente no caso de epidemias, sendo a do
vírus Zika o melhor exemplo, no caso do câncer seu interesse é aguçado não
apenas por uma maior incidência epidemiológica, mas mediante o contexto em
que a saúde despontou como valor e a ideia de “autocuidado” tornou-se quase
um imperativo moral, marcado pela noção de risco, fazendo com que esta
doença emerja como assunto de “interesse coletivo”.
A constituição de um problema enquanto questão social está ligada, portanto, à
sua publicização em diversas esferas, o que exige que seja pensado, também, em
termos de sua circulação. No caso da saúde, é indispensável considerar a
importância de vários espaços e gêneros enunciativos concomitantes e
mutuamente remissivos, em circulação contínua, revelando a porosidade dos
campos. Esse contexto assume uma configuração ainda mais particular no
cenário comunicacional que vem se desenhando nos últimos anos, que permitiu a
intensificação da circulação de novos discursos, atores e modos de dizer. Isso
envolveu tanto os atores tradicionais no campo da saúde, como Organização
Mundial de Saúde, Organização Pan-Americana de Saúde, Ministério da Saúde e
seus distintos órgãos, a exemplo da Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Nacional
do Câncer (INCA) e de tantos outros, através de seus boletins, relatórios, planos
de ação, press releases, passando pelas instituições privadas de saúde, marcadas
pela profissionalização das estratégias de comunicação para criar sites, blogs e
afins, passando ainda pela proliferação de discursos de pacientes, familiares e
indivíduos nas mais diversas posições, que passam a ser uma poderosa voz
concorrendo nesse mercado simbólico (ARAUJO; AGUIAR, 2017). A saúde,
mais do que nunca, é valorizada; consequentemente, torna-se visível. Esse
movimento acaba por intensificar a circulação do sofrimento, referido, no caso,
particularmente à experiência da doença.

Tendo essas reflexões como pontos de ancoragem e buscando um entendimento


mais aprofundado dos fenômenos de deslocamentos discursivos referidos e suas
implicações para os estudos de circulação, tomamos duas experiências concretas,
correspondendo a dois diferentes agravos da saúde que, por distintas razões e
modos, vêm sendo associados com a ideia de sofrimento e têm sido objeto de
atenção midiática: o câncer, uma doença crônica, e a febre Zika, uma doença
epidêmica que tem com sua principal consequência a microcefalia. Tomamos
também duas modalidades de ocupação dos espaços de fala possibilitados pelas
tecnologias digitais: blogs pessoais de mulheres que vivenciam a experiência do
câncer e um perfil de rede social, especificamente no Facebook, criado por uma
associação de mães de crianças com microcefalia decorrente do vírus Zika. As
duas experiências em tudo são distintas: no suporte tecnológico (blogs e redes
sociais), no segmento social de pertencimento (mulheres de classes média/alta e
mulheres de classes populares), na região do país onde ocorrem (Sudeste e
Nordeste). Partindo das diferenças, mas considerando que ambas põem em cena
com muita contundência o tema do sofrimento, nossa proposta é analisar seus
dispositivos de enunciação, buscando entender o movimento de reconfiguração
dos sentidos que a mídia tradicional constitui sobre essas doenças e as pessoas
que as vivenciam. Analisaremos estes contextos separadamente, para depois
estabelecer articulações possíveis entre os diferentes dispositivos de enunciação.

2. Os blogs de mulheres que vivenciam o câncer

2.1. Contextos

2.1.1. O contexto da doença: sentidos e regimes de visibilidade em


transformação

O câncer é uma enfermidade com uma longa história nas sociedades ocidentais.
Autores afirmam haver referências à doença desde a antiguidade, quando era
fortemente associada às ideias de morte e sofrimento (TEIXEIRA; PORTO;
NORONHA, 2012). Ainda que passando por mudanças e assumindo
configurações distintas segundo os contextos particulares, esses sentidos
sombrios permaneceram por muito tempo. Sontag (1984) assinala como a
doença permaneceu envolta por estigma, em que a imediata associação com a
morte fazia com que as pessoas que sofriam da enfermidade fossem vistas como
seres contagiosos, de quem se evitava o contato a qualquer custo. Trabalhos mais
recentes apontam a permanência de sentidos correlatos, em que a palavra câncer
é muitas vezes substituída por “essa doença” ou “problema” (BERTOLLI
FILHO, 2002; AURELIANO, 2006, p. 20).

No entanto, as transformações pelas quais a doença passou nos últimos anos


impactaram fortemente os sentidos a ela associados. Tornada uma questão de
saúde pública no Brasil entre os anos 1940 e 1950 (ARAUJO NETO;
TEIXEIRA, 2017), e apresentando expressivo aumento de sua incidência
epidemiológica, passou a ser percebida como uma ameaça mais real e próxima.
Diferente de outros agravos, confinados a redutos longínquos no plano
geográfico ou simbólico, sua crescente incidência veio acometendo
progressivamente a população nas diferentes classes sociais, faixas etárias,
gênero e grupos culturais, ainda que eventualmente com concentrações segundo
o tipo de neoplasia. Ao mesmo tempo, os avanços tecnológicos a tornaram
menos letal, instituindo um sentido de cronificação e possibilitando uma
percepção alternativa à ideia de “sentença de morte”.

Essa nova sensibilidade nascente dialogava não apenas com a memória de sua
letalidade e potencial sofrimento, mas com um contexto mais amplo, ligado à
experiência dos processos de saúde e doença em geral. Sendo uma doença muito
marcada pela lógica do risco, veio se instaurando a percepção de que somos
todos doentes em potencial, portanto devemos modificar nossos hábitos e rotinas
para dele escapar, e passou-se cada vez mais a se falar no câncer em sua
virtualidade. Se certamente o diagnóstico de uma neoplasia ainda evoca a ideia
de morte e sofrimento, vemos emergir na cena pública sentidos mais amenos
associados a uma experiência que, por muito tempo, permaneceu como um tabu
na sua própria enunciação.

2.1.2. O contexto midiático: interesse crescente

Essa reconfiguração simbólica que o câncer vem sofrendo se expressa pela


natureza de sua presença no espaço público. Um primeiro elemento que ajuda a
compreender essa mudança diz respeito à intensificação da cobertura noticiosa
sobre o tema, que pode ser considerada simultaneamente efeito e um dos agentes
causadores desse processo. Embora seja antiga a presença do câncer na mídia
impressa, Ferraz observa em seu estudo uma tendência de aumento que
culminou na intensificação da circulação de textos em especial a partir dos anos
2000 (FERRAZ, 2015).

Se isso nos ajuda a compreender como é recente a presença intensa do câncer no


espaço público, também nos remete à necessária qualificação sobre os sentidos
dessa doença no contexto midiático. Ao acompanhar o jornal O Globo em
momentos diversos1, observamos algumas marcas dessa presença no jornalismo
impresso. O primeiro elemento de destaque é que se trata de uma presença
transversal: o câncer não é um tema restrito aos cadernos de saúde. Ao contrário,
em certos períodos essa editoria apresenta a menor quantidade de textos, como
ocorreu em 2013, quando a doença de Lula, Hugo Chávez e Cristina Kirchner
ocasionou grande produção noticiosa sobre o tema nas editorias O País e Mundo,
somada ainda aos textos publicados em Opinião e Página 2. Identificamos ser
esse o grande “lugar” do câncer no noticiário, pelo entrelaçamento entre as vidas
públicas e privadas dos políticos, em que a gestão da saúde e do sofrimento se
configurava como uma gramática moral a partir da qual se entendia seus feitos e
atuação.

O câncer aparece, também, associado ao debate sobre saúde pública (em especial
na editoria local, Rio), em que é o mote para se falar sobre uma suposta
incapacidade do governo federal para lidar com temas desta relevância,
repercutindo de forma vigorosa o que vários autores já sinalizaram sobre a
imagem negativa do SUS na mídia (MALINVERNI, 2011).
Textos sobre risco também estão presentes nesta editoria, assim como no
caderno de Economia, neste último caso vinculados prioritariamente a questões
ambientais. A cobertura sobre câncer aparece também sob a forma de notas
acerca de instituições privadas que se assemelham à publicidade, abordando a
modernização de equipamentos ou a oferta de tratamento gratuito a pacientes
carentes, eventos realizados pelo McDonald’s para auxílio a crianças doentes,
questões da indústria farmacêutica ou tabaqueira e assim por diante.

No caso das editorias ligadas à cultura, foram aglutinadas as publicações no


Segundo Caderno, Revista O Globo, Revista da TV, Ela, Rio Show e Prosa e
Verso. Juntas, compõem um bloco significativo e revelam a disseminação do
tema câncer no cotidiano, através de sua presença em filmes, livros, notícias
sobre a vida de celebridades, trazendo a doença de forma mais leve e corriqueira.
Essa “leveza” em alguma medida revela um processo de familiarização com o
tema, e se contrapõe ao caráter sombrio associado à experiência direta com a
enfermidade.

Por fim, mencionamos as últimas editorias que apresentam números mais


significativos sobre saúde: Ciência e Saúde. Não deixa de ser surpreendente que
as que menos apresentem textos sobre câncer sejam justamente as especializadas
ou mais próximas da saúde. Ali, preponderam os temas ligados ao risco, à
ciência e tecnologia, com uma cobertura triunfalista, que celebra de forma
acrítica e problemática as promessas das descobertas científicas.

2.1.3. O contexto do ambiente digital: os blogs

O deslocamento para o contexto do ambiente digital nos traz outra modalidade


de presença do câncer. Ao pesquisarmos no Oncoguia, portal brasileiro voltado a
temas sobre neoplasias que dispõe de um espaço para blogs de pacientes,
identificamos 84 blogs, conforme busca realizada em 2016. Diferente da
cobertura genérica da grande mídia, aqui os blogs eram específicos segundo os
diversos tipos da doença, abordando em especial o câncer de mama (36),
Linfoma de Hodgkins e não-Hodgkins (14) e câncer de ovário (4). Esses
resultados já apontam um segundo aspecto: a ausência de conexão imediata entre
incidência epidemiológica e discursividade. Dados do INCA projetando
estimativas para os anos de 2018-19 (INCA, 2018) apontaram o câncer de
próstata como o de maior incidência provável (68.220 novos casos), seguido do
câncer de mama feminino (59.700 novos casos) e de cólon e reto (ambos os
sexos, estimativa de 36.360). Ou seja, com exceção do câncer de mama, as
neoplasias mais recorrentes não figuravam entre as mais tematizadas. Outro
ponto é o recorte de gênero: observou-se a franca preponderância de mulheres
heterossexuais dispostas a abordar a doença nesses espaços digitais, em
contraposição a homens e mulheres de outras orientações sexuais.

Cabe ainda destacar um terceiro elemento que caracterizava esses blogs: seu
cunho autobiográfico, de teor testemunhal. Embora tenham sido identificados
blogs de caráter institucional ou jornalístico, eles representavam a minoria.
Vários destes, inclusive, apresentavam também espaços autobiográficos, ao
trazer trechos ou links para blogs de pacientes narrando a sua experiência com a
doença. Amaral, Recuero e Montardo (2009) assinalam que o uso dos blogs
como espaços de expressão pessoal, publicação de relatos, experiências e
pensamentos é recorrente desde a sua origem, representando até hoje sua
utilização mais frequente. Nessa mesma linha, Oliveira busca refletir sobre os
blogs como espaços de escrita de si na contemporaneidade e acrescenta que se
trata de um espaço eminentemente feminino. Citando pesquisa de 2006, aponta
que dentre os mais de 100 milhões de diários digitais identificados, as mulheres
representavam 56% desse universo, enquanto os homens eram apenas 31,9%.
Além do recorte de gênero, ela aponta também a questão geracional: 94,3% eram
feitos por blogueiros entre 13 e 29 anos (OLIVEIRA, 2009, p. 63).

A identificação destas marcas nos levou à opção por fazer uma análise das
narrativas autobiográficas sobre câncer de mama. Para tal, selecionamos os 10
primeiros blogs que apareceram no Google a partir das palavras-chaves “câncer
de mama” e “blog”, e, deles, foram excluídos os que não apresentaram
atividades após 2015 e selecionados os três que tiveram o maior número de
postagens. O material analisado foi produzido por mulheres de 25, 27 e 30 anos,
pertencentes às camadas médias urbanas (Recife, Ribeirão Preto e Brasília), e
com bom grau de instrução (estatística formada pela UFPE, doutoranda em
toxicologia pela USP/RP e bióloga).2

2.2 Dispositivos de enunciação

O teor autobiográfico, de cunho testemunhal, era, como dito, uma marca


preponderante, sendo explicitado inclusive em dois dos três títulos. O relato das
trajetórias individuais era construído a partir de um momento muito específico
de suas vidas, a ruptura biográfica ocasionada pela doença, com um apagamento
da vida pregressa, secundarizada diante do novo contexto, como vemos no
exemplo abaixo:
Parte 1 - A Descoberta do Problema

Era o dia 20 de junho de 2010. Eu tirei o meu sutiã azul-claro, e percebi uma
pequena mancha amarronzada na parte de dentro do sutiã, do lado direito. (...)
Chamei meu namorado e disse: “Minha mama tá sangrando. O que é isso? Só
pode ser câncer. Eu vou morrer. Eu só tenho 25 anos. Não quero morrer”. Ele me
disse pra ficar calma e corremos para a internet pra pesquisar sobre câncer e
sobre sangramento na mama.

A partir da descoberta/diganóstico, são narrados os sentimentos e eventos


referidos à doença: tratamentos, medicamentos e seus efeitos colateriais, busca
por terapias alternativas, desenrolar da enfermidade, questões de religiosidade,
relação com os amigos e familiares. Através do relato do cotidiano, acompanha-
se a exposição da vida privada, quando se traz a público a possibilidade de
acesso a temas e espaços antes totalmente desconhecidos, como a observação de
uma sessão de quimioterapia, o processo de queda dos cabelos ou ensinamentos
sobre sexo ao longo do tratamento. São também expostos fatos triviais,
ressignificados como eventos especiais mediante o novo contexto da doença:
como se alimentar, fazer maquiagem, cortar o cabelo e amarrar um lenço na
cabeça. O término das narrativas em geral coincidia com a finalização do
tratamento; mais raramente, com o agravamento da doença ou a ocorrência da
morte.

Esses relatos eram fartamente ilustrados através de fotografias, desenhos,


charges, imagens radiológicas, vídeos postados no YouTube, entre outros
recursos, como é recorrente no ambiente do ciberespaço. Eram, em geral,
(re)produzidos por celular ou computador, sendo portanto uma produção
autônoma e “caseira”, viabilizada pelo domínio cada vez mais difundido dos
dispositivos tecnológicos e, acima de tudo, das lógicas e racionalidades
massmidiáticas. Essa autonomia de produzir e fazer circular informações com
poucos recursos, sem necessidade de interferência ou autorização, revela uma
mudança em termos das possibilidades de visibilização do sofrimento,
tradicionalmente sob controle dos tradicionais mediadores, sejam eles os
jornalistas ou a autoridade médica.

O impulso de exposição dos eventos vividos e das emoções a eles associadas


vinha marcado pelo forte desejo de visibilidade. Diferente dos diários
tradicionais, destinados a ficarem preservados no segredo, essa escrita de si se
justificaria em grande medida pela sua condição de se tornar pública. E em que
consistiria tamanho interesse para que os relatos fossem lidos? A análise dos
blogs sugere que a escrita autobiográfica engendraria o que era visto como a
possibilidade de ajuda, tanto voltada para si como para os outros, conforme
indica o trecho abaixo:

Decidi escrever um diário que veio na ideia de um blog para que pudesse
expressar meus sentimentos de uma forma evidente e esclarecedora e ao mesmo
tempo dividir momentos não somente com quem estivesse interessado em lê-los
e compartilhá-los comigo, mas principalmente para divulgar alternativas para
pessoas em situações peculiares como câncer de mama.

A ideia de “ajuda aos outros” envolvia informar e confortar outras mulheres e


entes queridos que vivenciavam semelhante sofrimento junto à doença. As
noções de “esperança”, “vitória” e “superação” estavam permanentemente
presentes. Falar, assim, tornava-se um ato performativo, em que não apenas
comunicavam aos outros a sua condição de doentes, mas interpelavam outras
sofredoras, criavam vínculos, promoviam respostas/comentários. É interessante
que, enquanto alguns estudos (Amaral e Quadros, 2006) assinalam que o uso dos
blogs como meios de comunicação acabou por criar formas de interação nas
quais eventualmente a visibilidade instaurada e a relação blogueiros-audiência
podem gerar conflitos, disputas, xingamentos e outras reações hostis
(RECUERO, 2003), nesses casos a interação aparece preponderantemente
marcada pela construção de vínculos sociais. Pessoas que não se conhecem
trocam experiências e vão construindo redes de apoio numa forte relação de
proximidade à distância.

COMENTÁRIO – Olá! Acabei de ser diagnosticada com câncer de mama, aos


33 anos. Nesse post você fala quase que exatamente o que eu passei, rezei,
chorei, desencanei, mas aí quando o médico leu o resultado eu só lembro da
palavra “malignidade”… (...) adorei seu trabalho neste blog e vou acompanhar e
torcer por você e todas que estão passando por esse momento delicado. Força
para nós! Bjos.

Essas redes de apoio acabavam constituindo um processo terapêutico que muitas


vezes era recomendado pelos próprios profissionais da saúde. No entanto, a
recomendação era também pela dimensão catártica do ato de falar.

Em outro trabalho foi apontado como instituições oncológicas vêm criando


projetos para que os pacientes deem seu testemunho com a doença, assim como
profissionais da saúde mental estimulam seus pacientes a escreverem diários,
blogs etc. como parte do tratamento (LERNER; VAZ, 2017). A perspectiva da
narrativa como prática curativa é bastante explorada em vários campos do saber,
seja na antropologia ou ainda nos saberes psi em suas diversas vertentes. No
entanto, o que se quer assinalar é como se ampliaram, progressivamente, os
espaços de compartilhamento dessas emoções e de seu entendimento como algo
capaz de ajudar o indivíduo e o próximo. Essa prática permanece através da
ajuda de sacerdotes ou profissionais de saúde; porém, cada vez mais prescinde
desta mediação, uma vez que sua lógica e reconhecimento já foram incorporados
pelos indivíduos comuns, os quais dispõem de dispositivos tecnológicos que lhes
permitem, sozinhos, tornar públicas as suas dores.

No entanto, por que essa fala traria tanto alívio? Para além da constituição de um
coletivo, de uma comunidade de sofredores tão bem expressa pelo pronome
“nós” (“Força para nós!”), outro elemento estaria em jogo. A expressão dessas
emoções permitiria a reconfiguração do lugar social daquele que fala. Além
disso, a relativa familiarização favorecida pelo testemunho acabava por outorgar
certo sentido de “normalidade” à experiência, reforçando esse ritual de
exposição como um espaço de transformação que permitia a diminuição das
ambiguidades que caracterizariam os seres doentes, na aflitiva condição daqueles
que estão no lugar indeterminado entre a vida e a morte. Expor-se representava a
afirmação da vida:

Tudo o que eu conseguia associar à palavra câncer era: gente doente, gente na
cama, gente ficando inchada por causa do tratamento, gente sem cabelo, gente
sem cor, gente com dor, gente de lencinho com as orelhas de fora, gente sem
forma e o pior, gente sem alegria (...) Um dia antes da minha primeira
quimioterapia, veio a ideia de criar uma página no Facebook (...) assim meus
amigos me viam no Facebook feliz, cheia de novidades então muitos deles
voltaram (...) encontrei uma razão, uma sensação de estar fazendo algo
realmente importante mostrando que é possível viver e sobreviver a esta doença
sem se vitimar e encarando tudo de frente.

Esse encontro lhes auxiliava a promover uma transformação, revertendo a


liminaridade negativa desta condição e aproximando-as da vida. Empoderadas,
eram alçadas discursivamente à condição de protagonistas de suas histórias,
sobrepondo-se inclusive aos tradicionais detentores do poder sobre os processos
de saúde e doença.
Os relatos analisados abordam um sofrimento que pôde ser superado com
otimismo e bom humor, traduzido pela força interior ancorada na fé e na
autoestima. Nesta representação da doença, a morte está afastada e a categoria
“superação” é fundamental. Esta significa não apenas “vencer a doença”, mas
reestabelecer o corpo doente em uma relativa normalidade, em que ele é
abordado pela ordem do cotidiano, do rotineiro, do banal. Contar histórias servia
para dar “lições de vida”, “somar esperança”, servir como “exemplo” e
“inspiração”, falando do câncer a partir de outro lugar. A partir do lugar de
sofrimento, uma nova identidade é construída, positivada, em que o antigo
estigma que marcava os doentes como párias agora é revertido e eles são
transformados em quase heróis.

Esse outro lugar mais positivado envolvia não apenas o compartilhamento de


emoções, mas também de informações, que vinham sob a forma de detalhada
descrição de ações e acontecimentos relativos ao corpo e à doença. As noções de
“alerta”, “aconselhamento”, “ensinamento”, “dicas”, voltadas à “prevenção” dos
“riscos”, configuravam um elemento importante que motivava a criação das
narrativas. Nos blogs, muitas vezes interpelavam as mulheres a se cuidarem e
alertavam sobre os riscos de adoecimento. Observa-se a reprodução da ideia de
autocuidado presente na lógica biomédica, com a exortação para a realização de
exames, ida a médicos, busca por diagnósticos, cuidados ao longo do tratamento.
Elas mostravam didaticamente os seus percursos de modo a proporcionar às
mulheres maior autonomia no auto-diagnóstico (ensinando por imagens
radiológicas as diferenças entre cisto, nódulo, calcificação, linfonodo e tumor), a
orientar sobre tratamentos e assim por diante.

Investidas, portanto, da autoridade da experiência, elas narravam em detalhes os


eventos ocorridos, evidenciando as transformações pelas quais seus corpos
passavam e revelando grande conhecimento sobre seu funcionamento. Num
discurso híbrido, as categorias médicas eram amplamente utilizadas para
descrever sensações e sentimentos:

[sobre a quimioterapia] Sinto geralmente uma sensação de esquisitice que é


difícil de explicar, até agora um pouco de cansaço nessa fase mais recente,
algumas dores musculares (nas costas principalmente), tive mucosite (aftas), dor
de cabeça, manchas e descamação da pele, sensação de paladar alterado e gosto
ruim na boca nos primeiros dias após a aplicação, além da sensação de remédio
no corpo (essa já deve ser coisa minha), leve neutropenia e leucopenia, e uma
levíssima anemia (essas últimas são normais para quem faz químios).
Observa-se que os médicos, embora sejam várias vezes citados de forma
elogiosa, são figuras secundarizadas, ainda que em alguns casos mantenham
intocado seu lugar de detentores de um saber que as afastava da morte,
reconduzindo-as à vida.

Essa relação com o saber médico se apresenta de forma mais radicalizada no


relato de uma das blogueiras. Embora também traga conselhos, dicas e alertas,
seu relato era fortemente marcado por críticas aos profissionais, às instituições e
aos procedimentos, denunciadas a partir da autoridade que a experiência com a
doença lhes conferia. Da “saga” para se obter um diagnóstico após a mal
sucedida ida a seis médicos, passando pelo questionamento de tradicionais
instituições de saúde e chegando às recomendações das políticas públicas de
prevenção, a relação com o saber médico é plena de ambiguidades.

O 3º médico era muito sério e seco. Examinou-me e perguntou por que a minha
médica anterior não tinha me passado um exame citológico da secreção. Deve
ser porque ela era completamente idiota, burra e adorava cuidar das plásticas que
fazia nas pacientes (provavelmente ganhava mais com isso) (...) Concordo com o
INCA quando ele diz que o autoexame não é forma de prevenção, mas
particularmente no meu caso, ninguém conseguia visualizar o câncer através da
ultrassonografia (...). “Se aconteceu comigo, pode acontecer com você também.”
Então, eu diria que é de suma importância ter consultas com um mastologista
que fará o exame das mamas além de prescrever os exames por imagem
(ultrassonografia e/ou mamografia) pelo menos uma vez por ano, mas, além
disso, como complemento, FAÇA SIM O AUTOEXAME!

3. O Facebook das Mães de Anjos

3.1. Contextos

3.1.1. O contexto da doença: o vírus Zika e a microcefalia

Em 2015, os casos do vírus Zika tiveram início no Brasil, podendo-se considerar


esta sua “emergência” epidemiológica no sentido de surgimento da doença em
locais onde antes não existia. Inicialmente considerado benigno, a progressiva
associação do vírus com a microcefalia e outras alterações neurológicas,
marcadamente nas regiões mais pobres do país, provocou uma profunda
mudança no entendimento sobre este arbovírus, até então considerado como de
desfecho predominantemente benigno, e fez com que, em novembro de 2015, o
Ministério da Saúde declarasse a situação de Emergência em Saúde Pública de
Importância Nacional (ESPIN), evocando, portanto, o segundo aspecto da
“emergência” relacionada ao Zika, da ordem do risco em saúde pública. Houve
uma escalada de atenção em nível global sobre o tema, com intenso
acompanhamento pela Organização Mundial da Saúde.

O período foi marcado por forte componente de incerteza associado ao vírus,


com uma sucessão de anúncios de evidências científicas, por vezes
contraditórias, como detalhado em trabalho recente (AGUIAR; ARAUJO,
2016). Um dos consensos foi a definição das decorrências do vírus como
síndrome congênita do Zika, que pode estar associada a manifestações
neurológicas, ortopédicas e visuais, entre outras, em um amplo espectro de
intensidade, dos casos mais leves aos mais graves. Tendo em vista afetar, de
forma estigmatizante, bebês ainda na gestação, em situação indefesa, a
microcefalia (redução do perímetro encefálico) é a forma mais emblemática da
hediondez da doença.

O governo brasileiro declarou o fim do período de Emergência em Saúde


Pública de Importância Nacional em maio de 2017, sob protestos de diversos
especialistas e organizações que consideravam a medida precipitada e
inadequada, por desativar vários mecanismos de atenção às populações afetadas
pela microcefalia e desfavorecer as condições de revindicação e seus direitos.
Até aquele momento, os dados publicados pelo Ministério da Saúde apontavam
que, no total, foram notificados 13.835 casos suspeitos possivelmente
relacionados ao vírus Zika e a outras causas infecciosas, dos quais 2.753 (19,9%)
foram confirmados, 141 (1,0%) foram classificados como prováveis para relação
com infecção congênita durante a gestação e 3.211 (23,2%) permaneciam em
investigação.

A epidemia do vírus Zika expôs de forma contundente um elemento constitutivo


da saúde pública no país, que é refletir e, portanto, ajudar a consolidar as
desigualdades sociais, raciais, territoriais e de gênero (AGUIAR; ARAUJO,
2016). As decorrências do vírus atingiram sobretudo as mulheres e famílias das
regiões mais pobres, como mostrou inquivocamente o relatório “Esquecidas e
desprotegidas: o impacto do vírus Zika nas meninas e mulheres no Nordeste do
Brasil”, da organização não-governamental Human Rights Watch (2017).

3.1.2. O contexto midiático: o sofrimento como elemento central do dispositivo


A epidemia de Zika foi investida de grande noticiabilidade pelos meios de
comunicação, tanto impressos como audiovisuais, seja pela sua natureza da
incerteza científica como por outros fatores que atingiam também uma parcela
das classes sociais mais abastadas, como o risco de se contrair o vírus durante a
gravidez. A noção de “risco” foi amplamente explorada pela imprensa, assim
como também possibilitou – de forma articulada às idas e vindas da informação
oficial – uma grande onda de discursos concorrentes que apresentavam outras
possibilidades de compreensão da epidemia e suas consequências,
particularmente nas redes sociais on-line.

Tendo como indagação inicial o modo de reconfiguração das narrativas sobre a


doença e os que por ela são afetados, no movimento de circulação dos sentidos
entre imprensa e redes sociais on-line, e considerando o sofrimento como
categoria articuladora dessas narrativas, monitoramos sistematicamente o
noticiário da imprensa escrita, observando os dispositivos semiológicos a
respeito do Zika e da microcefalia. Monitoramos nove jornais3, contemplando os
principais em tiragem/circulação no país e nos estados mais afetados
(Pernambuco, Paraíba e Bahia), tomando as capas como referência para análise.
Analisamos 55 capas selecionadas de um total de 5.624 capas publicadas no
período de emergência em saúde pública associada ao Zika, entre novembro de
2015 e maio de 2016.

O principal elemento que emerge com nitidez desta análise é a presença


importante (27 capas) da ideia de sofrimento, mas com diferentes modos de
expressão e causados por diferentes fatores: a hediondez inerente à doença; o
acesso a serviços ou benefícios da competência do Estado; o abandono dos bebês
pelas famílias; a luta cotidiana associada à doença. Ao mesmo tempo, há uma
presença também significativa (21 capas) do elogio às formas de superação,
sobretudo pela via do amor maternal ou, menos frequente, do amor familiar, mas
também pela via da esperança, através do exemplo de superação de outras
crianças com microcefalia não relacionada ao Zika. Estão presentes, com menor
frequência (7 capas), enunciados híbridos, em que há elementos de sofrimento e
de superação de forma simultânea; um dispositivo dessa modalidade enunciativa
foi a contraposição de sentidos de sofrimento expressos no texto conjugados a
sentidos de superação expressos na imagem.

Quanto ao lugar reservado às mulheres que tiveram filhos com microcefalia,


com exceção de um dos jornais, conforme apontado em trabalho anterior
(AGUIAR; ARAUJO, 2016), é o de sujeito falado (PINTO, 1999). A elas não se
confere o direito a voz, na maioria das vezes nem crédito de imagem, exceção
feita às mulheres de classe média. As crianças são retratadas pelo efeito de
metonímia, mostrando-se partes do corpo (pernas, pés, mãos), mas nunca as
cabecinhas que atestam a doença.

3.1.3. O contexto da UMA

A UMA – União de Mães de Anjos é uma associação de mulheres que têm filhos
com microcefalia decorrente da epidemia do vírus Zika. Surgiu em Pernambuco,
em 22 de dezembro de 2015, quando duas mães se conheceram na fila de um
exame em um hospital de Recife e resolveram criar um grupo no aplicativo
WhatsApp para compartilhar suas experiências e se fortalecerem, convidando
outras famílias no decorrer dos dias. Oficializaram a associação alguns meses
depois, já contando com centenas de mães, em relato da entidade na página do
Facebook (“UMA – União de Mães”, 2016). Além do aplicativo, o grupo criou
uma página na internet e perfis em redes sociais (Facebook, Instagram e
Twitter), com destaque para o Facebook, com mais de 13 mil seguidores.

A identidade da UMA engloba fortemente uma dimensão de gênero, de forma


associada a uma condição peculiar do feminino que é a maternidade, mas
também relacionado a um cuidado intrínseco, o cuidado com o outro em
condição de alta vulnerabilidade; uma dimensão de território, com localização
inequívoca e reafirmada em Pernambuco, como um dos estados com maior
número de casos de malformação associada ao Zika no país; e uma dimensão de
cidadania, como compreensão de que é um grupo que tem e conhece seus
direitos.

A ideia de coletivo é central, com referência frequente a “juntas somos UMA”.


Há uma reivindicação de vocalização e representação daquelas mães. A
organização não só tenta ser instrumento para a denúncia de negligenciamento e
invisibilidade de suas pautas e reinvindicação de seus direitos, mas se configura
como agente na produção de ações efetivas, organizando campanhas, eventos,
arrecadando doações e tendo em sua sede a oferta de tratamento para os bebês.
Nota-se uma razoável articulação com diversos setores, sejam empresas de
diferentes ramos, o poder público, ONGs e veículos de comunicação. Há
profissionalização no marketing em diversos aspectos. A UMA foi inspiração e
força motora para a criação da Associação Pais de Anjos da Bahia e Associação
Mães de Anjos da Paraíba, ações de solidariedade de que se orgulham.
3.1.4. O contexto do ambiente digital: o Facebook da UMA

O perfil da UMA no Facebook teve início em 28 de fevereiro de 2016. O termo


“mães de anjos” não é, porém, sua criação nem prerrogativa. Pelo contrário, é de
uso antigo e sedimentado em várias regiões do Nordeste, fazendo referência aos
“anjos” como crianças que morreram ao nascer ou ainda quando bebês. Um
primeiro levantamento na rede social online, através da ferramenta Netvizz,
evidencia que o termo “mães de anjos” está presente no título de 100 páginas no
Facebook. Uma leitura exploratória das páginas com ranqueamento mais alto
nos critérios “fan count” (número de curtidas da página) e “talking about”
(alcance da página)4 mostra que predominam páginas relativas ao luto de mães
que perderam filhos pequenos. Há, sobretudo, enunciados sobre o sofrimento ou
compartilhamento de imagens e mensagens, provocando intensa circulação
discursiva da dor e, em alguns casos, da solidariedade. Poucas páginas valorizam
elementos de superação. Analisando as 20 primeiras páginas com maior número
de curtidas, notamos algumas exceções: duas páginas relacionadas à saúde
mental, sendo uma especificamente sobre o autismo e outra mais geral, incluindo
transtorno bipolar e síndrome do pânico (portanto, fora do registro do luto); uma
página criada em homenagem a uma criança específica, portanto o luto
individual; e uma página sobre o luto, porém formalizada como ONG.

Assim, nas páginas do Facebook que lançam mão do termo “mães de anjos” no
seu título predomina a circulação discursiva da dor, por meio de testemunhos ou
da postagem de imagens e mensagens sobre luto, enquanto a página da UMA,
num movimento diferente, valoriza a circulação discursiva da superação, como
veremos em análise específica. A página ocupa o sexto lugar do ranking quando
considerado o critério “fan count” e é a quarta pelo critério “talking about”.

3.2. Dispositivo de enunciação

O dispositivo enunciativo da UMA no seu perfil no Facebook engloba duas


vertentes, uma relativa à dimensão sensível das mulheres, outra à dimensão
cidadã. Apesar de parecerem distintas, são faces do mesmo movimento, o de
construção de um lugar onde possam se reconhecer, se ajudar e lutar por seus
direitos; onde possam ser protagonistas, contrariamente ao seu registro
midiático.

Na vertente sensível, a superação é o sentimento mais valorizado, expresso em


imagens, slogans, falas. São narrativas ancoradas em um discurso que valoriza a
sublimação, no sentido mesmo de tornar a experiência sublime, convertendo a
ideia da dor e do sofrimento em bênção e alegria. A ideia de superação
apresenta-se pela via do amor (rede semântica amor-amparo-cuidado-
acolhimento, com forte articulação com o componente da maternidade); pela via
da luta (a sublimação pela devoção, pela abnegação, também expressa na
semantização da criança como “guerreira”, sobretudo na circunstância de morte);
e pela via suprahumana (a ideia de benção/dádiva relacionada ao bebê, com a
perspectiva de mães escolhidas e/ou de missão, com um marcante componente
religioso). Uma das expressões mais emblemáticas de superação é o enunciado
“microcefalia não é o fim”, aplicado em várias circunstâncias e que em dado
momento passou a compor a “capa” do perfil (Figura 1).

Figura 1 – Foto de capa da página da UMA no Facebook

A ideia de supermaternidade é um constituinte importante do discurso da


superação, sendo notada também no posicionamento contumaz antiaborto,
vocalizado em diversas postagens, no contexto de discussões sobre a
possibilidade jurídica de admissão do aborto no caso do Zika, comparando-se a
situação da mãe que vive sob o risco dos impactos do vírus sobre o bebê como
uma condição de tortura – o que é o avesso da ideia de superação.

O sofrimento também está presente, muito fortemente pela negação, em imagens


e enunciados como “a sociedade nos chama de sofredores” e muito raramente
emergindo em situações específicas: no luto (o sofrimento pela morte, em geral
creditada ao Estado, por não atender o que é reivindicado); em algumas
situações no sentido de “luta” (versus o abandono do Estado); no ônus financeiro
relacionado à criança, sendo o Estado acusado de não cumprir com aquilo que
seria esperado dele (sofrimento não relacionado à condição da criança, mas a
uma incapacidade do Estado). Está presente também como fissura discursiva, em
pelo menos duas situações: em celebração de conquista (quando a comemoração
de uma conquista ganha contornos de hipérbole pela contraposição ao
sofrimento) e em republicações de links da mídia, como evidência e forma de
afirmação, mas na qual a publicação original tem sentidos de sofrimento.

O discurso religioso, ainda parte dessa vertente, se faz presente nas postagens da
UMA, em especial nos enunciados envolvendo o luto pela morte de suas
crianças (com enunciados como “voltar para o céu”, em que há sublimação da
perda pelo componente religioso); na condenação do aborto e no contradiscurso
sobre o preconceito/estigma. Pela narrativa ancorada na superação, associada à
sublimação advinda do discurso religioso, as mulheres da UMA transcendem de
mães sofredoras a mães privilegiadas. As imagens são emblemáticas, as mães
estão sempre sorrindo e exibem seus bebês também alegres, de corpo inteiro.
Não há ocultamento, não há vergonha. Algumas imagens podem exemplificar
esse dispositivo.

Figura 2 – Capa de página da UMA no Facebook


Figura 3 – Foto de perfil, página da UMA no Facebook

Figura 4 – Foto de capa no Facebook

A segunda vertente é marcada por uma atitude ancorada na consciência de que


são uma voz representativa de todas as mães afetadas pela microcefalia, que são
sujeitos de direitos e que delas depende em larga medida o cumprimento desses
direitos. Falando do lugar do interlocutor, a quem interpelam, manejam o
discurso jurídico, o técnico e o biomédico, cobram o cumprimento das leis,
denunciam o descaso, mas também elogiam e agradecem, quando é o caso.
Também incluem em seu universo uma relação cada vez mais intensa com os
meios de comunicação, seja reproduzindo matérias a seu respeito, como forma
de legitimação do movimento, seja rebatendo notícias que não consideram
adequadas. As imagens 5 a 7 exemplificam essa postura, sendo a 5 e 6
republicações de matérias, respectivamente, da imprensa local e nacional, e a 7,
uma referência crítica ao texto do Ministério da Saúde, fazendo recurso inclusive
à legislação.

Figura 5 – Reportagem de imprensa local / Fonte: página da UMA no Facebook


Figura 6 – Reportagem de imprensa nacional / Fonte: página da UMA no
Facebook

Figura 7 – Interpelação ao Ministério da Saúde / Fonte: página da UMA no


Facebook

Nesse dispositivo “bifurcado” ocorre um fenômeno discursivo: a linguagem


amorosa da vertente sensível cede espaço à outra, mais estruturada, usando
corretamente o jargão do campo ao qual está se referindo ou se dirigindo. Ou
seja, a linguagem se diferencia conforme o lugar de interlocução (ARAUJO,
2006), participando assim de sua instituição. A mãe que sublima lança mão de
uma linguagem marcada pela afetividade, enquanto a mãe que reivindica utiliza
os termos jurídicos e/ou da biomedicina. Assim, por exemplo, os “anjos” são
“bebês com microcefalia”, ou “crianças com deficiência”; no caso do luto pela
morte de um bebê, situação clímax de ambas identidades, o luto é
discursivamente relacionado a uma negligência/incapacidade do Estado em
prover as necessidades das crianças, em relação às quais existe uma ação
reivindicatória das mães, enquanto o sentimento de tristeza marca a identidade
da mãe que sublima. São discursividades que marcam lugares de interlocução da
ordem do privado e do público, embora ambos constituídos no espaço de
publicização da situação vivida.

4. Reconfigurações simbólicas nas novas ambiências comunicacionais


Duas doenças, movimentos inversos de reconfiguração simbólica. O câncer,
tradicionalmente associado à ideia de letalidade, passa a conviver com sentidos
mais amenos, diante da ideia de cronicidade e da lógica do risco, que traz a
prevenção como algo corriqueiro e afasta a ideia de sofrimento, o que se observa
em especial nas publicações da grande mídia. O Zika, que parte da perspectiva
de uma doença “benigna”, versão a princípio circulada por profissionais de
saúde e instâncias governamentais (AGUIAR; ARAUJO, 2016), para a
afirmação de sua gravidade, quando se associa sua causalidade com uma
síndrome congênita relacionada a malformações fetais diversas, tendo a
microcefalia como sua principal manifestação.

Movimento inverso também em outros aspectos: de um lado, uma doença já


conhecida, sobre a qual existe um conhecimento razoavelmente estável e um
arsenal de recursos terapêuticos definidos (ainda que sua etiologia permaneça
sendo investigada e persista grande número de óbitos); outra doença, cercada por
incertezas e apoiando-se em conhecimentos sempre provisórios, acompanhada
por numerosos contradiscursos em seu momento de emergência, com
conformações variadas e potencialmente cumulativas (neurológicas, cognitivas,
ortopédicas, visuais, auditivas etc.) que têm desdobramentos definitivos, em
relação aos quais se pode agir na tentativa de atenuar, mas sem a perspectiva de
reversão de danos.

Confirma-se a premissa dos espaços online como lugar de enunciação que


dispensa mediações. Através dos blogs ou de redes sociais, mulheres afetadas
por graves doenças com grande visibilidade na imprensa tradicional e, nesta,
ocupando o lugar de sujeitos dos enunciados, faladas e nomeadas por outros,
assumem protagonismo enunciativo, reconstroem suas identidades, definindo
assim um outro lugar de fala e de interlocução, que não ignora o sofrimento,
elemento central na abordagem da imprensa, mas o reconfiguram
simbolicamente, recusando o lugar de vítimas sofredoras.

Essa reconfiguração simbólica, ocorrida tanto nos blogs como no Facebook, tem
como principal elemento constitutivo e constituinte o movimento de
destigmatização da doença e dos afetados por ela. Ele é perpetrado por um modo
específico de falar e mostrar a enfermidade, marcado pela narrativa testemunhal,
que possibilita desvelar aspectos antes invisibilizados pelos dispositivos
tradicionais. No caso do câncer, por exemplo, o compartilhamento (nos seus
múltiplos sentidos) de eventos cotidianos antes fora do acesso dos que não
estavam diretamente envolvidos com a doença – sessão de quimioterapia, queda
de cabelo, raspagem da cabeça para evitar esse processo, “chá de lenço” – vem
contribuindo sobremaneira para sua rotinização e, consequentemente, maior
naturalização. Sob forma de “diários” virtuais (blogs), sites, vídeos no Youtube,
fotos no Instagram e demais formas de interação virtual produzidas pelos
indivíduos implicados na doença, permite-se o surgimento de comunidades de
sofredores que reconfiguraram antigas práticas e relações de autoridade e que
arrogam para si o direito de nomear, qualificar e explicar publicamente o que se
passa consigo

As mães da UMA reivindicam também, e muito claramente, esse direito, mas


acrescentam ao seu dispositivo discursivo um duplo caráter de denúncia:
denúncia ligada ao confrontamento do estigma/preconceito/discriminação, o que
é evidenciado em postagens que recirculam postagens ou manifestações de
estigma/preconceito/discriminação em relação aos bebês para que sejam
refutadas, mas também contra o desrespeito aos direitos de assistência que lhes
são devidos. Deste modo, a narrativa da doença e de seus afetados é
ressignificada e posta novamente em circulação, disputando sentidos com outras
narrativas que emanam de vozes tradicionalmente autorizadas.

4.1. Identidades em cena

A enunciação no espaço público, marcada pela publicização do sofrimento, pela


recusa da narrativa midiática, pela denúncia e reconfiguração simbólica do
estigma, pela instauração de um espaço de reivindicação de protagonismo e de
direitos, não ocorre de forma dissociada da constituição de novas identidades. O
principal elemento identitário, comum às mulheres dos dois grupos em cena, é a
condição de coragem e otimismo no enfrentamento das adversidades. São
mulheres que se constróem discursivamente como “guerreiras”, mulheres fortes
que tomam as rédeas de seu destino, são protagonistas e vão “à luta”.

No caso da UMA, essa identidade é atravessada fortemente pela maternidade. A


auto denominação de “guerreiras” é transmitida aos bebês na ocasião do luto
pela morte, quando os bebês são também nomeados como “guerreiros”. Mas há
outro atravessamento, o religioso. Elas são guerreiras abençoadas, escolhidas.
“Mães de anjos, anjas são” – seres abençoados, anjas que cuidam de anjos. A
sacralidade da maternidade é acionada em dobro: o cuidado do filho é sagrado, o
cuidado do filho doente é ainda mais santificado.

Na narrativa da UMA ainda há que destacar a constituição simultânea de outra


identidade: ao lado da mãe que sublima, cujo amor supera qualquer coisa (da
ordem do supra-humano), emerje a identidade da mãe que reivindica, a que se
reconhece como cidadã (da ordem dos direitos). Esta denuncia não só a negação
ou a prestação de maus serviços a seus filhos, que lhes são garantidos por lei,
mas também maneja o discurso midiático segundo seus interesses, ora
contestando, ora dele servindo-se como legitimação perante os serviços públicos.
São identidades da ordem do privado e do público, embora ambas no espaço de
publicização da situação vivida. Reiterando o fenômeno discursivo
anteriormente analisado, a linguagem é parte indissociável dessa diferenciação
identitária, constituindo-se e ajudando a constituir diferentes lugares de
interlocução, a partir dos quais se relacionam discursivamente com o mundo, a
sociedade e os poderes públicos.

Se para as mulheres da UMA a identidade de gênero é marcada pela condição


peculiar da maternidade, para as mulheres que vivenciam o câncer a questão de
gênero se dá de outra forma. O tema da maternidade também se faz presente,
mas como limite que a doença traz – em especial pelo medo do impedimento da
amamentação. Sendo a mama um dos principais símbolos da feminilidade, a
possibilidade de sua perda pela mastectomia deflagra, por outro lado, sentidos de
luta, de reinvenção do feminino a despeito da ausência desta parte do corpo. A
identidade de gênero é um elemento importante nos modos de se mostrar, em
que os signos tradicionalmente associados a esse grupo (cores rosa, laranja,
imagens de flores) estão presentes, mas são ressignificados não pela via da
fragilidade, mas pela imagem de mulheres fortes que tomam as rédeas de seu
destino e desafiam diversos tipos de autoridade.

Assim, termos como “guerreiras” também são recorrentes entre as blogueiras e


as ideias de “coragem” e “otimismo” no enfrentamento das adversidades são
presentes por via do humor, que é assumido por elas como uma forma de luta,
expresso não apenas pelo conteúdo como pela forma (com incorporação de
fotos, desenhos, charges). Prepondera na narrativa sobre a doença o otimismo,
inclusive porque, quando a enfermidade avança trazendo um prognóstico
negativo, elas somem de cena.

4.2. A relação com a ciência/saber médico

Outro ponto importante a ser mencionado nesse novo ambiente comunicacional


refere-se à ampliação do acesso ao conhecimento especializado. Impulsionado
pela hegemonia da lógica medicalizante que se instaurou no século XX e pelas
tecnologias de comunicação e informação, observa-se de um lado a apropriação
do saber médico e, de outro, o seu tensionamento, baseado na ascensão do valor
da experiência. Esse fenômeno foi visto claramente no caso dos blogs de câncer,
nos quais as mulheres dialogavam com o saber médico, utilizando amplamente
suas categorias e, ao mesmo tempo, colocavam-se no lugar de autoridade dando
conselhos e até mesmo desautorizando certas orientações de oncologistas.

No entanto, há distinções. No caso do Zika, sua incerteza enquanto evento


epidêmico se, por um lado, fomenta e exacerba a circulação de contradiscursos,
por outro torna a autoridade médico-científica menos sujeita a questionamentos
em seus achados de pesquisa, lugar que ela ocupa indiscutivelmente. No
Facebook da UMA, vemos frequentes postagens que promovem a recirculação
de outras postagens acerca de novas evidências científicas sobre a doença, sendo
frequente não haver qualquer comentário. Há assim uma diferença notável em
relação à recirculação de postagens referentes a promessas ou compromissos
anunciados pelo poder público, que quase sempre é marcada por um
contradiscurso que esvazia ou confronta o enunciado. Quando os enunciados da
UMA corroboram as ações do poder público/Estado, isso ocorre no sentido de
enaltecer a própria UMA, ressaltando seu papel reivindicatório para que tal ação
fosse realizada.

5. Pontos de chegada provisórios e novas questões sobre a circulação

Algumas questões que vêm insistentemente se apresentando no universo


investigativo da Comunicação e Saúde estiveram, de forma articulada, na origem
desse trabalho de análise sobre o qual estivemos escrevendo até aqui. Do campo
comunicacional somos instigados pela curiosidade sobre o movimento dos
sentidos em diferentes condições de produção e circulação e sobre os novos
enunciadores nos mercados simbólicos, trazendo novas narratividades; do campo
sanitário a provocação vem das ideias de risco e sobretudo de sofrimento, como
categorias sempre presentes em todos os processos humanos que lidam com a
doença e com a dor.

A partir de duas grandes pesquisas em andamento, formulamos uma questão


comum, perguntando sobre delineamentos do já percebido deslocamento
discursivo da ideia de sofrimento e, subsidiariamente, da de sofredores, quando
em diferentes contextos de produção e circulação. Mais especificamente, nos
interessamos pela migração desses sentidos da grande imprensa escrita para os
novos suportes tecnológicos online, quando operados por pessoas que não são
profissionais da comunicação e são afetadas por doenças que acarretam situações
de grande sofrimento.

Os sujeitos de pesquisa assim agregados – mulheres que vienciam o câncer e


mães de crianças afetadas pela microcefalia, em decorrência do vírus Zika – são
muito diferentes entre si, do ponto de vista de classe social, de teritório, da
natureza da doença que os atinge. Também diferentes são os suportes que
escolheram para visibilizar a si e seus discursos. Compartilham, porém, três
características: são mulheres, afetadas por doenças de grande visibilidade
midiática e buscam uma narrativa de si mesmas que prescinda de mediações
enunciativas.

Ambas as experiências trazem a ideia de coletivo, o que em parte está ligado a


essa nova ambiência comunicacional, que favorece formas de interação inéditas
e o estabelecimento de proximidades à distância. No entanto, os coletivos
formados pelos blogs de câncer são da ordem do individual, evidenciando um eu
interior e psicológico, com sujeito do enunciado individual; já a UMA é uma
entidade organizada, de caráter reivindicatório e de mobilização, na qual o
sujeito do enunciado e da enunciação é coletivo e seu perfil no Facebook reflete
essa condição. Essa distinção possibilita compreender as nuances de algumas das
percepções possibilitadas pelo estudo, que optamos por considerar com pontos
de chegada provisórios, que demandam portanto mais investimentos de pesquisa.

Dois foram os pontos de chegada mais relevantes, que entendemos como


vinculados entre si e caracterizados pela conquista de um protagonismo
enunciativo e uma consequente reinscrição discursiva no espaço público: a
mudança do lugar do sujeito enunciador, com a instauração de lugares de
interlocução mais favoráveis e a narratividade que busca a desestigmatização da
doença e do doente.

A instituição de outros lugares de interlocução, quando contrapostos aos lugares


definidos pela imprensa, pode ser vista como decorrência da recusa de um lugar
subalterno, silenciado, de uma identidade mediada e arbitrariamente instituída.
Essa recusa se estende também ao poder de nomeação dos médicos, no caso do
câncer, e dos poderes públicos, no caso do Zika. Assim, o sofrimento, sem ser
negado, é transmutado em algo a ser enfrentado com coragem e mesmo alegria.
Nessa conversão, instaura-se a mulher corajosa, “guerreira”, otimista e que toma
as rédeas do destino em suas mãos.
No entanto, se discursivamente temos uma mudança no protagonismo
enunciativo, a relação com a mídia requer uma maior atenção investigativa. No
caso da UMA, por um lado, fazem um manejo estratégico dos meios, ora
criticando, ora valorizando naquilo que lhes pode legitimar e favorecer; por
outro, não escapam à submissão à lógica midiática, que de resto é a mesma que
permeia as redes sociais e todas as instâncias societárias, no crescente processo
de midiatização da vida em sociedade.

O mesmo ocorre no caso do câncer, também fortemente marcado por essa lógica,
mas é importante assinalar que sua longa presença no imaginário coletivo teve
nos meios massivos um espaço importante de transmutação de um evento da
ordem do interdito para ser, paulatinamente, incorporado e visibilizado como
questão pública. Nesse sentido, essa relação era mais pacificada, como vemos no
caso de algumas blogueiras que adquiriram legitimidade pelos seus blogs e
tornaram-se objeto de interesse jornalístico, seja dando entrevistas, aparecendo
como “símbolo” da luta contra a doença em reportagens etc. Os textos
jornalísticos eram pouco reproduzidos, sendo o seu embate prioritário com o
discurso médico.

Por outro ângulo, ainda, se há movimentos de circularidade em relação à


imprensa, eles ocorrem em sentido inverso para um e outro grupo. Enquanto
com a UMA há um movimento de rebatimento da mídia, por contestação ou
reprodução estratégica de notícias, nos blogs esse movimento faz o caminho
invertido, dos blogs para a mídia.

A recirculação da narrativa do estigma em seu reverso opera como um potente


contradiscurso que dá visibilidade a aspectos silenciados pelos dispositivos da
grande mídia. Ao trazerem o tema para a circulação pública, sem meios termos e
colocando em cena os dois discursos antagônicos – o que estigmatiza e o que
ressignifica –, instauram um outro modo de endereçamento que torna mais
familiar aquela experiência antes cercada pelas relações de evitação. Essa nova
forma de interação, que é distinta dos dispositivos tradicionais, permite afastar
(ao menos parcialmente) o “horror” que a doença traz e promove aproximação,
cria vínculos entre doentes e doentes, doentes e não-doentes.

Tanto a construção identitária como a semantização desestigmatizante das


doenças encontram um campo de sentidos muito favorável ao seu acolhimento,
formado pela intensa circulação midiática e na linguagem do cotidiano do
discurso da superação e da imagem da “mulher guerreira”, a que luta pelo que
deseja e acredita. No entanto, só uma pesquisa de recepção/apropriação seria
capaz de avaliar o lugar que esses sentidos reconfigurados ocupam no mercado
simbólico do câncer e da mcrocefalia. No nível das hipóteses, provavelmente
circulando ainda com uma abrangência limitada, num âmbito periférico5.

Algumas categorias analíticas já experimentadas amplamente em outros


trabalhos se mostraram profícuas. O princípio da intrínseca relação entre textos e
seus contextos se mostrou indispensável, adensado pela ideia de condições de
produção e de circulação. O lugar de interlocução permitiu hiperbolizar a noção
de identidade, acentuando a dimensão relacional e falando de identidades que se
constituem em relação, em conversação, ainda que em blogs ou redes sociais.
Confirma-se a importância de se considerar os lugares de fala e de interlocução
atravessados pela classe social, particularmente por estarmos trabalhando com
contextos muito tecnologizados, que podem acarretar a ilusão igualitária de um
mercado simbólico em que todos se encontram em condições equivalentes de
disputa.

Como buscamos demonstrar, as experiências analisadas são coincidentes em


alguns aspectos e em outros se diferenciam. Isto pode apontar para a existência
de um padrão de dispositivos que seria conformado pelos meios digitais, mas
outros que seriam resultantes das especificidades das experiências. Evidencia-se,
pois, a necessidade de mais estudos empíricos.

De forma subsidiária aos achados principais, pudemos ver com muita nitidez o
sofrimento como elemento que mobiliza sentimentos de solidariedade, ajuda e
mútua proteção, mesmo entre pessoas que não se conhecem. Certamente o fato
de estar sendo mobilizado em um ambiente digital online potencializa esse
efeito, por serem esses espaços de interação social propícios à emergência de
novos coletivos. Também registramos uma visível e importante circulação dos
saberes, pela atualização – tanto nos blogs como no perfil do Facebook – da
relação com o saber médico e com o discurso científico, em nova chave de
autoridade. Por fim, nos chamou atenção como, tanto nos blogs como no
Facebook, o dispositivo de enunciação acentuava a performatividade da fala.
Aquelas mulheres não estão ali apenas expressando sua situação e marcando sua
posição em relação aos agravos de saúde, não querem só expressar o mundo,
mas também e fortemente querem afetar o mundo a partir de sua enunciação. E
certamente estão conseguindo.

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1 Foram analisados pouco menos de 500 textos jornalísticos referentes aos


períodos junho de 2012, junho de 2013, junho de 2016 e julho de 2017,
incluindo todo e qualquer formato jornalístico (com exceção de classificados e
horóscopo). Mais detalhes sobre esses resultados de pesquisa, ver LERNER,
2016.

2 Parte da análise de dois dos três blogs aqui descritos foi realizada em outro
contexto de pesquisa em colaboração com Waleska Aureliano. Os resultados
dessas análises, que envolvem outros debates, estão publicados em LERNER;
AURELIANO, 2018 (no prelo).

3 O Globo e Extra (RJ), a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo (SP), Super


Notícia (MG), Zero Hora (RS), Correio (BA), Correio da Paraíba (PB) e Jornal
do Commércio (PE).

4 Medido por uma articulação entre compartilhamentos e comentários.

5 Entre a elaboração dessa pesquisa e sua publicação, a UMA ganhou muita


visibilidade através da Rede Globo de Televisão e das principais empresas
jornalísticas pernambucanas. Podemos dizer que, no caso da Globo, a
experiência da associação foi “canibalizada” pelo dispositivo midiático, sendo
transformada em mais uma história de sucesso de uma pessoa, no caso, sua
presidente.
Circulación y mediatización de la experiencia estética

• Gastón Cingolani1

1. La circulación como diferencia

La circulación parece ocupar una escena cada vez más preponderante en la


discursividad mediatizada2. Antes de avanzar sobre esta hipótesis, es
imprescindible dejar explícito qué se entiende en este trabajo por circulación. La
noción de circulación que invoco es la que, en su Teoría de la Discursividad,
Eliseo Verón (1988, p. 129) propone como la distancia o diferencia entre la
producción y el reconocimiento de un discurso o conjunto discursivo. Se trata
del nombre teórico de un intersticio, de un hiato entre la aparición en el mundo
de un discurso (que se materializa y puede tener la forma de un acontecimiento
ubicable en tiempo y espacio) y las reacciones, respuestas o resultados
atribuibles directa o indirectamente a esa aparición, en tiempos y espacios
inmediatos o no. Como el mismo Verón explica, “no hay…propiamente
hablando, huellas de la circulación: el aspecto ‘circulación’ solo puede hacerse
visible en el análisis como diferencia entre los dos conjuntos de huellas, de la
producción y del reconocimiento. El concepto de circulación solo es de hecho el
nombre de esa diferencia”. La “recepción” del discurso puede darse a distancias
espacio-temporales muy variables del momento de la gestación de aquél, o de
modo inmediato: igualmente hay circulación. Esta conceptualización desaloja la
posibilidad de entender que la circulación es el “viaje” de un mensaje o señal de
un punto a otro u otros. Lo que se moviliza es, en todo caso, el sentido que, al
cambiar sus condiciones, expresa su dinámica.

Sin embargo, en el momento en que Verón desarrolló esta conceptualización, la


discursividad mediatizada no formaba parte de un continuum con las instancias
de su recepción. Más precisamente: los textos mediatizados producidos en el
marco de los por entonces llamados medios masivos no eran modificados por el
uso individual o colectivo de sus receptores; lo que es otra manera de decir que
no se contemplaba la intervención de los seres ajenos al medio que controlan el
soporte, salvo en espacios y dosis menores, como el correo de lectores o los
contestadores telefónicos o llamadas en vivo en radio y televisión, también
controlados por el propio medio3. Así, es notable el contraste con las
interacciones no mediatizadas (o con aquellas que mediatizan los intercambios
interindividuales), ya que en ellas la característica primordial es la generación de
un contexto unificador y coevolutivo de la comunicación, mientras que, en la
dinámica de los medios “masivos”, los contextos (el de la producción y el de sus
consumos) permanecen estrictamente disociados4.

Siguiendo esta línea, el trabajo se centra en ver en qué medida la circulación (ya
que no se manifiesta sino como diferencia o distancia) opera como trasfondo de
sentido de algunas experiencias de recepción mediatizadas en las redes. ¿Cuáles
“experiencias”? Aquellas que agrupamos tentativamente como estéticas, algunas
de las cuales se materializan luego en prácticas estéticas.

2. Experiencias estéticas/prácticas estéticas: riesgos a la hora de su


caracterización

A la hora de hablar de experiencias y prácticas estéticas, aparecen riesgos de


simplificación, que conviene evitar. En los debates contemporáneos – aunque a
partir de intercambios de larga data – sobre qué implica la cuestión estética, se
estructura una diferenciación entre dos polos: por un lado, el de la posición que
sostiene que la experiencia estética es el tipo de recepción que se produce a
partir de objetos o acciones artísticos. Esta posición – que cada vez tiene menos
defensores – expresa dos reducciones: la primera es la reducción o superposición
entre lo estético y lo artístico. Si bien es cierto que en sus orígenes en el siglo
XVIII las teorías sobre los comportamientos denominados “estéticos” (desde
Baumgarten a Kant) constituyen o forman parte de una teoría del conocimiento,
progresivamente se fueron transformando en una teoría del arte, incluso como
una lectura de su propia Crítica del Juicio: lo estético como referido
específicamente a lo artístico.

En ese mismo corrimiento, surge la segunda reducción o confusión, entre


(usando la terminología de Verón) producción y reconocimiento, es decir: si el
objeto “estímulo” es artístico, su recepción será estética.

Del otro polo tenemos una visión más funcional, la que sostiene que lo que
tipifica o caracteriza el comportamiento “estético” no es del orden del contenido,
sino del tipo de relación que se mantiene con el objeto, sea este una obra, una
práctica, un gesto, un discurso, o un conjunto complejo y heterogéneo de todo
ello. Para esta posición (en sus variantes naturalista, mentalista o cognitivista):

– toda experiencia es estética, en cuanto lo estético es una dimensión constitutiva


de toda actividad humana, que involucra sensación, percepción y conocimiento,
expresado a veces como un tipo de atención;

– la dimensión estética de las prácticas sociales puede ser dominante o recesiva


respecto de las otras dimensiones de la experiencia;

– si esa dominancia se expresa en indicadores comportamentales, incluyendo


entre ellos a de los comportamiento discursivos, podemos decir que se pasa de la
experiencia a la práctica estética.

Aproximándonos a este segundo polo, entendemos que la experiencia estética,


como tal, es una experiencia de recepción, es decir, se constituye una relación
con algo respecto de lo cual se activa una conducta dominada por una actitud
atencional específica, costosa5. Pero el riesgo que más nos interesa no es ese,
propio de las teorías del arte, sino el que mencionamos como la confusión entre
producción y reconocimiento. Así como la experiencia estética no es una
reacción o actitud privativa solo para con textos u obras considerados artísticos,
tampoco sucede que necesariamente piezas artísticas desencadenen experiencias
estéticas. Es la problemática que caracteriza los procesos de circulación,
afectados todos ellos – como ha señalado Verón – de indeterminación.

En lo que sigue de este trabajo, nos preguntamos, entonces, si la circulación


cobra lugar en la escena mediática actual, ¿cómo toma forma? ¿para qué lo
hace? ¿por qué decimos que se hace relevante? ¿hay espacio para el registro de
las prácticas estéticas? Vamos a contrastar dos tipos de espacios muy diferentes
en las redes, incluso forzando su comparación para desentrañar cómo y por qué
se hace presente la circulación, y, eventualmente, en qué medida la experiencia
estética se mediatiza.

3. Mediatizaciones de la recepción

Regreso a la hipótesis: “la circulación parece ocupar una escena cada vez más
preponderante en la discursividad mediatizada”. Si bien puede que aún señale un
proceso minoritario (los comportamientos humanos exceden por mucho lo que
sucede en las redes), esta hipótesis se interesa por su constante crecimiento,
como efecto del traspaso progresivo e inédito de instancias de la experiencia de
la recepción a las redes.

Antes que nada, es necesario aclarar que, cuando decimos que se mediatiza algo
de lo que se ha llamado desde hace bastante tiempo la recepción, somos
conscientes de que bajo este título se agrupan actividades y acciones múltiples y
heterogéneas: la atención hacia medios electrónicos (radio, TV) para
información, espectáculo, educación o entretenimiento; la asistencia al cine, al
teatro, a conciertos, a museos, a estadios, a manifestaciones y actos políticos; la
escucha o expectación hogareña de música, películas y videos, recibidos o no
por la distribución convergente; la lectura de todo tipos de impresos (diarios,
revistas, libros). Este listado es incompleto y, con certeza, altamente
heterogéneo. Pero podemos ordenar las instancias que son abarcadas, de un
modo u otro, por este concepto en:

a) el acceso a los textos, lo que comporta siempre una información o una


carencia, un recorrido entre múltiples opciones, y algunas decisiones más o
menos opacas o transparentes, para cumplimentar ese acceso, pre-contacto;

b) la instancia misma del consumo, variable según el tipo de texto de que se trate
(música, series, libros, notas periodísticas, juegos, videos, etc.) y la relación
práctica que traba el usuario con este texto, es decir, el tipo de contacto que
requiere el texto, pero sobre todo el que en definitiva activa el usuario, que
puede ser más o menos durativo, instantáneo o periódico, solitario o compartido,
único o seriado, acumulativo o seccionado, espectatorial o interactivo6, etc.;

c) el ejercicio de intervención sobre y/o a partir del texto, ejercicio que deviene
un comportamiento materializado en nuevo texto o, en el límite, una nueva
versión del texto original, o un nuevo estado del mismo texto. Esta última
taxonomía merece algunas aclaraciones: un ejemplo de texto nuevo podría ser el
comment del lector a partir de algo que leyó, escuchó, etc. (RAIMONDO
ANSELMINO, 2012, p. 120 y ss.) y que se ofrece como metatexto (GENETTE,
1989); un nuevo estado del texto es la intervención con modificación del texto
original o hipotexto, del cual resulta un hipertexto (siempre en la terminología
genettiana), como puede ser un meme (visual), un mash-up (sonoro o
audiovisual), un collage (dos recortes de diarios yuxtapuestos para comparar, por
ejemplo, diferentes tratamientos periodísticos o evidenciar contradicciones), una
cita (fragmento inserto en un nuevo texto mayor), etc.; finalmente, un nuevo
estado del mismo texto por su adquisición o cambio paratextual (reconocer que
asistimos o consumimos algo que pocos o muchos o algunos otros también, es,
frente a la vieja soledad del objeto mediático que nos hacía imaginarnos entre
muchedumbres, una concreción novedosa de la recepción mediática, que toma la
forma de likes, favs, rankings de más leídas, etc. (RAIMONDO ANSELMINO,
2012; CINGOLANI, 2016a)
Estas tres instancias se complementan, y tienen, cada una, un peso muy distinto
según el medio del cual se trate (en producción) y según también el tipo de
comportamiento de los usuarios (en reconocimiento)7.

Hasta hace poco, estas prácticas se producían en condiciones que dejaban una
baja o incluso nula proporción de “restos” en lo consumido. Esos “restos” eran
interesantes, en diferentes instancias, tanto para los medios, como para los
sociólogos, y desde ya para los propios actores sociales. Los actores tejían,
consciente o inconscientemente, redes de signos con los que hacían visible (o
daban forma, incluso disimulaban) su propio sesgo impregnado en esas prácticas
de recepción. Por cierto, algunas prácticas de recepción o consumos de medios,
artes y espectáculos eran más visibles que otras; la evolución de los mismos fue
de una etapa mayormente pública (la tertulia en las salas de teatro, la visita a los
museos, la salida al cine, las fiestas con espectáculos, los espacios bailables,
incluso las lecturas en voz alta con fines colectivos8) hacia una progresiva
domesticidad (los medios periodísticos y literarios impresos, la radio, la
fonografía, la televisión) y, en las últimas décadas, una acentuada individuación
de los consumos. Sin embargo, la escena social nunca desapareció: en todo caso,
se complejizó la discursividad intermediaria, y se amplificó el interés por lo que
los propios receptores tenían para decir, escuchar e intercambiar con los otros.
Los sociólogos, por su parte, procuraron reconstruir esas condiciones y
gramáticas de reconocimiento para conocer y comprender, de manera macro, el
carácter de esas prácticas. Las mediciones cuantitativas dominaron, porque
ofrecían, entre otras cosas, lo más tangible: el volumen cuantitativo de personas
que compraron, asistieron, etc., como dato sistemático e indicador de lo masivo.
No obstante, poco se sabía del sentido producido a partir de ello, desplegado con
profusión y detalle en la escurridiza discursividad interindividual.

Mientras funcionó así durante la era de los medios masivos, el feedback hacia
los medios y espectáculos era indirecto y escaso: además de las mediciones y
sondeos, los correos de lectores a las editoriales y diarios, las llamadas
telefónicas a la radio y la televisión, los libros de visita en exposiciones y otros
espectáculos, pese a su carácter indirecto (no eran sino el relato o procesamiento
en segunda instancia, incluso meta, de las prácticas de recepción) y no siempre
atendido, tuvieron un valor legítimo. Los investigadores, alertados, debieron
forzar algunas condiciones en instancias de laboratorio, o provocar la
“naturalidad” en otras (MORLEY, 1996; MORLEY; SILVERSTONE, 1991;
LIEBES; KATZ, 1997; VERÓN; FOUQUIER, 1986; DE CHEVEIGNÉ;
VERÓN, 1994; VERÓN, 2013). Esta pretensión siempre se construye como un
protocolo de control de los sesgos, más que como una reducción inviable
(FERNÁNDEZ, 2012).

En la etapa de las redes, las prácticas de recepción se mediatizan y las


posibilidades de registro de las mismas han aumentado fabulosamente, por lo
que su disposición creciente se hace más o menos visible para los propios
actores. A esto se suma que no se requiere de un observador humano, ya que es
el sistema mismo el encargado de capturar lo que tiene programado, luego lo
procesa y lo exhibe transformado (muy reducida y sesgadamente) en indicadores
para el gran público o los usuarios privados.

Así, esos registros ya no son solo conteos, ni recuperación de algunas cualidades


de “uso” (tiempos, repeticiones y frecuencias, acompañamiento social) sino
también se habilitan operaciones que permiten o alientan distintos tipos de
manifestaciones, como comentarios o calificaciones. Esto trae una cantidad
inédita de acciones y discursos producidos bajo condiciones de mediatización
que introduce el sesgo de la visibilidad social.

Ligado a esto, el tercer aspecto es que el sistema emplea esa información para
construir “atajos” en los recorridos de los usuarios para accionar sus consumos.
En una vida social anterior o ajena a la mediatización de estas prácticas, había
discursos “intermediarios” (discursos profesionales como la crítica, la
publicidad, el periodismo, los especialistas, pero también no profesionales como
amigos, familiares, conocidos y desconocidos) que sugerían tomar o no contacto
con determinados consumos (TRAVERSA, 1984, p. 11). En la actualidad, se
llega a una buena parte de lo que se consume en las redes (y también fuera de
ellas) por vías sugeridas en esos espacios a partir de esa acumulación de datos
registrados. Más aún, los viejos discursos intermediarios han perdido terreno
importante en la dosis de influencia, en manos de estos sistemas (TRAVERSA,
2017).

¿Qué hacen estos sistemas? Es mayormente un misterio, pero la necesidad de


adaptación permanente a sus comportamientos nos permite suponer, con cierta
aproximación, cómo funcionan en general. Básicamente se orientan a facilitar
encuentros entre productos y personas, o incluso, entre personas y personas. Así,
uno podría encontrar “más fácil” o “más rápido” films, canciones, noticias,
personas, restaurantes, servicios, imágenes, etc. que son de interés propio, por la
vocación predictiva del sistema. Como criterio general para la predicción,
aparece la elaboración de patrones (patterns) a partir de lo ya hecho
anteriormente por la misma persona o por otros a quienes considera similares.
Por minoritario que sea aún como proceso, la circulación se pone en escena, se
mediatiza, cada vez más, al menos como modo de organizar la discursividad en
las redes.

4. El caso estudiado: plataformas musicales

El fenómeno que está creciendo tiene que ver con una experiencia que podemos
simplificar así: cuando entramos en la Red (en algunos sitios o usamos algunas
aplicaciones), nos encontramos con un conjunto complejo:

a) hay elementos que en realidad están puestos allí a partir de nuestras entradas
anteriores, por lo tanto es la estela que voluntaria o involutariamente dejamos al
movernos. No son solo productos, sino productos-que-dicen-algo-de-nosotros;

b) algunos de esos elementos no necesariamente responden a nuestro pasado en


la Red, sino a aquello que se ofrece como “público” o “popular”;

c) otros elementos están ahí porque son promocionados para ser popularizados;

d) pero no sabemos bien cuánto ni qué de todo ello está allí por (a), (b) o (c)9.

Si se manifiesta la circulación, es que la distancia o diferencia se hace notar.


¿Cómo? Al menos en las plataformas musicales10 se produce según las
siguientes variantes:

– En coexistencia (o en presencia): a veces se inscribe como resultado de una


diferencia por correlación entre dos elementos coexistentes: por ejemplo, se
presenta algo (una canción, una playlist11), y a su lado se expone que recibió
una cantidad de expresiones de agrado (likes, calificaciones), de descargas, de
comentarios, etc. Esa correlación enuncia un tipo de circulación que se evidencia
por conexión presunta pero asequible entre los elementos en el nivel del
desplazamiento en la semiosis: la plataforma dispone los espacios para que el
usuario comprenda que un elemento es reacción o retoma de otro, lo que está
marcado en superficie por operadores espaciales y temporales articulados.
Habitualmente, el espacio traduce una temporalidad secuenciada: X (una
calificación contigua, un comentario debajo) es reacción a Y (una canción) y no
a la inversa; esa reacción es la circulación enunciada en los ejes temporal e
intersujetos, en coexistencia. La circulación es una memoria en superficie;
- En preexistencia (o en ausencia): otras veces solo se puede inferir a partir de un
elemento único en relación con otro elemento ahora inexistente: es el caso
cuando el usuario se encuentra con una pantalla que percibe como modificada
respecto a un ingreso anterior. Eso que se le presenta puede ser inferido como
una resultante de los datos que el propio sistema, mediante los inefables
algoritmos, ha(bría) recolectado del mismo usuario o de algún conjunto de
“otros” (“porque te gustó…”, “similares a”, “más popular”, “tendencias”)12. La
circulación allí es una memoria en ausencia, que el usuario deberá comprender
como un nuevo estado del sistema, posterior a un estado del que solo puede
recordar por su propio esfuerzo.

Como ya se expresó en trabajos anteriores (CINGOLANI, 2016a; 2016b; 2016c;


2017), para un estudio semiótico, el nivel “subdiscursivo” no está en el centro
del interés, salvo como efecto de sentido expresado en la superficie discursiva y
sus modulaciones enunciativas. El funcionamiento como caja negra (blackbox)
de muchos sitios y sistemas de recomendación, da lugar a comportamientos
basados en inferencias de este tipo, y a tácticas de los usuarios para optimizar las
posibilidades, así como para exhibir u ocultar a los otros, distintos signos de su
propio aprovechamiento. Los usos individuales o socializados de la música no
son un efecto de estas plataformas, sino que vienen de la era de la mediatización
fonográfica y radiofónica, e incluso, desde antes de ella.13

Por sencillos que parezcan estos dos modos de la circulación, aquí interesan
porque van a ser útiles para comprender cómo se manifiesta la circulación en las
plataformas musicales. Para ello, hemos analizado plataformas de distribución
de música por streaming y/o para descargar.

La noción de plataforma no está dicha al descuido: contempla un espacio para


diversos ejercicios que modulan publicidad y privacidad, memoria y contacto,
sociabilidad y personalización, colectividad e individualidad, espectación e
interacción, producción y consumo. Remitimos sumariamente a enfoques de
análisis enunciativos de las plataformas (TRAVERSA, 2014), a su uso educativo
(SAN MARTÍN; TRAVERSA 2011), así como a la revisión de las definiciones
en su espesor político (GILLESPIE, 2010). Pero el énfasis en las modulaciones
tecnológicas, de mercado y de regulaciones legales y culturales, lo encontramos
en los trabajos de Van Dijck (2016) y Fernández (2016b), en los cuales se hace
un provechoso esfuerzo por evidenciar las dinámicas ejercidas a través de
distintos tipos de plataformas, y cómo estas intervienen, con variantes, en una
acción co-orientada: ni las plataformas son todas iguales, ni son neutrales ni
determinan un solo tipo de acción o respuesta.

Al momento de la primera presentación de este trabajo, Wikipedia.org14 dice


que hay unas 73 plataformas en actividad, y que otras 33 ya han sido
discontinuadas. Hemos seleccionado diez de ellas (Amazon Music, Apple
Music, Bandcamp, Deezer, Google Play Music, Mixcloud, Napster, Spotify,
Soundcloud, Tidal) para identificar las operaciones y funcionamientos que
permiten y/o promueven.

Las plataformas permiten no solo acceder a un determinado contenido, sino


también a reproducirlo (por downloading o por streaming), a compartirlo, y en
algunos casos a alterarlo. A través de las plataformas también se puede
interactuar con otros usuarios. Y -este dato no es menor- todas esas acciones
modifican el modo en que se ofrecerá la misma plataforma al mismo usuario la
próxima vez. En los comienzos, se desarrollaron diferentes tipos de plataformas
de música: algunas similares a una como radios de música, muy próximas a la
inercia distributiva comercial clásica, centradas en la distribución por parte de
empresas o artistas masivos, para downloading o streaming (por ejemplo,
Spotify); otras enfatizaban la posibilidad de compartir música entre usuarios
individuales, preferentemente música producida y/o intervenida por el propio
usuario (en distintas etapas o grados, Souncloud o Bandcamp cumplieron ese rol,
y también Youtube); y otras funcionaron como tienda de piezas musicales
(incluso piezas musicales entre otras cosas, como sucede con Amazon).15

Es evidente que en 2017 el conjunto de las plataformas musicales está


marcadamente encaminada hacia una homogenización: en diferentes grados,
todas comprenden y posibilitan estas diferentes modalidades.

Más allá de algunas de estas especificidades en uso o en desuso, en el vasto


conjunto de modelos de plataformas musicales, se pueden hacer cinco cosas:

a. Buscar/Encontrar música

b. Reproducir (o “Escuchar”) música

c. Cargar/descargar música

d. Organizar música

e. Compartir música
Cada una de estas cinco actividades o macro-operaciones comporta diferentes
maneras de manifestar signos de la circulación, e incluso de retroalimentarse.

a. Buscar / Encontrar música

La búsqueda y/o el encuentro16 con música se inician necesariamente off line, y


con gran (o total) dependencia de la vida social. Vale decir: lo que puede parecer
un acto solitario y de estricta resolución frente al dispositivo, en verdad conlleva
una base de orientación social previa, aunque quizás no sea fácilmente
detectable. Desde que la música se ha asociado a ritualizaciones mediatizadas,
las amistades e influencias sociales y también los críticos ejecutan el trabajo de
orientar la selección (BOURDIEU, 1990; ALIANO, 2018; BENZECRI, 2012).
La música es sometida al criterio de las preferencias y los gustos, precisamente,
solo cuando se puede elegir. La búsqueda se resuelve por motores de búsqueda
que nos garantizarían cierta exhaustividad cuando se trata de una elección
resuelta de antemano: “ya sé lo que quiero escuchar, solo tengo que encontrarlo”.
Allí, donde antes había escasez (material, física o económica), hoy hay
disponibilidad. El problema se invierte cuando eso no está resuelto: no sé lo que
quiero. Es así que actualmente se han mediatizado no solo a los críticos (siempre
lo estuvieron) sino también a los amigos e relaciones de influencia (influencers)
que nos orientan, nos hacen conocer o nos ayudan a encontrar una determinada
música, un determinado artista, etc. Uno de los asuntos centrales hoy para el
oyente, y, consecuentemente, también para el artista y el mercado, no es
encontrar algo pese a la escasez, sino pese al exceso (CINGOLANI, 2016a). Ese
asunto es “resuelto” mediante los llamados sistemas de recomendación (SRs),
que buscan reducir los niveles de incertidumbre. Se produce así un ingreso más o
menos abrupto al universo mediatizado de la instancia pre-musical. Hoy día
todas las plataformas ofrecen un SR más o menos sofisticado. Incluso existen
sitios y aplicaciones que ni siquiera ofrecen la música que recomiendan, son solo
un SR (Musicovery, Gnoosic, MusicRoamer, Spotalike). Aquí se pone en juego
doblemente la tensión entre la acción individual y la vida social del oyente de
música, y su decisión articulada entre criterios no mediáticos y condicionantes
mediatizados: sus propias decisiones nutrirán las próximas recomendaciones del
sistema, a la vez que se podrán volver visibles (directa o indirectamente) al resto
de los usuarios. La circulación se expresará por diferencia.

En esa instancia la plataforma Deezer nos pregunta “qué tipo de música”


queremos escuchar (ofrece respuestas en términos de géneros) y si nos “gusta
alguno de estos artistas” que nos presenta. También nos sugiere “explorar
canales, entretenimiento y podcasts” y que “no este[mo]s solos”, alentando a
seguir otros usuarios (entre los cuales hay individuos, sellos e influencers). Por
el contrario, Soundcloud respeta el “silencio”: en el comienzo se ofrece en
blanco, con tres grandes opciones: “stream”, “listas de éxitos” y “descubre”. El
desconocimiento que tiene la plataforma respecto del usuario se manifiesta en
que no hay recomendaciones ni descubrimientos hasta tanto el usuario comience
a nutrirla con sus búsquedas y escuchas; incluso lo que se considera “éxitos”
responde a lo más escuchado en la misma plataforma. La circulación es
fuertemente autocentrada en el usuario. Las recomendaciones de usuarios y
radios están en segundo plano. En un punto casi diametralmente opuesto está la
actual versión de Napster: recibe al usuario nuevo con un muro de éxitos
clásicos, e invita insistentemente a contactar amigos y otros usuarios, a través de
la misma plataforma y por Facebook. La circulación está disminuida
musicalmente pero ampliada en la redsocialización. Spotify es una plataforma de
lo que podríamos llamar la meta-oferta: las mismas piezas musicales pueden
venir ofrecidas o recomendadas por múltiples meta-entradas. En el inicio, se
aprecia el esplendor de la abundancia: “seleccionados”, “géneros y estados de
ánimo”, “novedades”, “descubrir”, con grillas que despliegan sistemas de filas y
columnas con numerosas categorías. Luego, el centramiento y descentramiento
con respecto al usuario están equilibrados: “Similar a…” o “Because you
listened to…”, se contraponen a “fin de semana” o “playlist populares”, lo que
revela que el descentramiento no está por incentivación a escuchar la música de
otros individuos sino como escena social.17 En resumen, Spotify multiplica las
opciones para elegir, no en cuanto a los contenidos,18 sino a las entradas, a la
puesta en discurso de los criterios. La circulación propia se puede entonces hacer
más evidente (elijo volver sobre mis propios pasos, como un usuario rutinario) o
más diluida en la circulación social colectiva.

b. Cargar/descargar música

Estas son operaciones que dejan una huella simple en las plataformas: son
anunciadas para el propio usuario (y a veces, para los otros, en las secciones
“Novedades”) aquello que se agrega. Las descargas no tienen la misma
visibilidad pública, aunque sí para el propio usuario como registro de sus propias
piezas.

c. Reproducir (escuchar) música

La escucha musical individual es la experiencia estética por excelencia, así como


el musicalizar (un espacio, un momento) para otros es por excelencia el lugar de
la práctica estética. Ahora bien, la circulación de la escucha estrictamente
individual (FERNÁNDEZ s/d) revierte decisivamente sobre las próximas
experiencias del mismo individuo sobre la plataforma porque esta la registra: es
un dispositivo de la memoria (no necesariamente controlada por el usuario) de la
reproducción. La traducción de esta memoria puede darse cuando la plataforma
nos permite retomar una playlist desde donde la hemos pausado, o nos ofrece en
primera instancia volver sobre nuestra(s) última(s) escucha(s).19 Aquí estamos
ante un caso de circulación en ausencia. En otros casos, menos evidentes, y que
por lo tanto exigen aún más la imaginación del usuario, se ofrece música según
alguna relación con las escuchas anteriores. También aquí la circulación se da
por preexistencia, pero con un mix (imposible de elucidar porque la plataforma
es una caja negra) con las reproducciones ajenas, promociones, etc. Por otro
lado, la escucha colectiva solo aparece como sugerencia de elección, ambientada
en contextos (“Fiesta” en Deezer y en Tidal, o “Cena con amigos” de Spotify,
que también clasifica por tipos de escucha individual: “concentración”, “para
estudiar”, por ejemplo), pero no es una dimensión prácticamente considerada. En
cambio, la musicalización para otros está cada vez más presente, encastrada con
la dos operaciones siguientes: la de compartir y la de organizar.

d. Compartir música

Esta operación suele ser trabajada en las plataformas como redsocialización, o a


la inversa, en los sitios de redes sociales como vehículo de música
redireccionada desde las plataformas.20 Por lo pronto, está claro que es un tipo
de circulación marcada por la acción inter-individual. Las plataformas gerencian
estos modos de la socialización, y hacen una buena puesta en escena de la
circulación por coexistencia: quién comparte la música con quién, con las
variantes del “amigo” que envía música a sus amigos. Esta acción revierte sobre
la acción de Buscar/encontrar, como un acto estrictamente personal (incluso
privado), matiz que no se corresponde con la impersonalización del SR o del
influencer o usuario destacado: el “Fan spotlight” en Bandcamp, “Invitados” en
Tidal.

e. Organizar música

Finalmente, el ejercicio curatorial de la organización de la música, ejercicio que


puede mantenerse como circulación estrictamente privada (las playlists que no se
hacen visibles para los otros) o con grados de publicidad: se pueden compartir
entre individuos, en grupos o directamente exponerlos en modo abierto. También
esto retroalimenta el momento de la Búsqueda/encuentro, ya que -dependiendo
de la plataforma- es posible elegir escuchar música seleccionada por otros. La
circulación también aquí es por correlación. Y como las plataformas ofrecen la
música diseccionada por pieza (“song”, “canción”) y no por álbum, requiere la
selección y el máximo funcionamiento de la curiosidad de parte del usuario, y le
demanda poner en acción diversos criterios de búsqueda. El crecimiento
exponencial de música accesible (…) exige por esa razón un usuario que,
siguiendo a Boris Groys, deviene en curador necesariamente (2014), no sólo
porque debe ejercitar criterios de selección sino para desafiar los lugares
comunes y las zonas conocidas (KOLDOBSKY, 2016, p.73).

5. Comentarios finales

1. Es evidente que de las cinco macro operaciones que hemos descrito, las cuatro
últimas revierten sobre las operaciones de buscar/encontrar, y solo esas cuatro
expresan discursivamente la circulación con marcas en coexistencia, es decir,
con elementos que expresan el desplazamiento o diferencia articulada por un
operador y un operando contiguos en la misma superficie, ya sea el caso de un
elemento de un tiempo anterior conviviendo con uno temporalmente posterior, o
bien el de un agente (usuario, influencer, contacto, artista, sello, la propia
plataforma) en alguna relación (de recomendación-recomendado, obsequio-
obsequiado, compra-venta, colaboración) con otro agente.

2. la única circulación en ausencia, actúa en el momento de la


búsqueda/encuentro con la música, punto al que se regresa casi constantemente,
desde cualquiera de los otros puntos de acción posteriores (reproducción,
descargas, compartir, organizar) y que se retroalimenta de ellos, o al menos el
sistema nos lo sugiere. Así, la acción individual on line no deja de estar explícita
o implícitamente expresando una circulación (en presencia o en ausencia) de una
búsqueda/encuentro con la música que puede ser tanto individual como social, y
tanto on line como off line.

3. las plataformas musicales, como muchos otros espacios en la Red, van


incorporando cada vez más acciones de la vida social e individual anteriores y
exteriores, pero de ninguna manera se trata de una sustitución; por ahora es
apenas una convivencia o apoyo. De hecho, la circulación hacia “adelante”, es
decir, la que surge como resultado de una búsqueda/encuentro y una escucha,
puede ser también (¡y todavía, por suerte!) una experiencia y una práctica de la
socialización off line.

4. las plataformas musicales tienen más desarrollada una estrategia de


clasificación por los objetos (las piezas musicales) que de los otros momentos.

5. la experiencia estética se transforma en práctica en el momento en que la


circulación se materializa: en las plataformas musicales, la selección hecha en
cualquier instancia deja su rastro, aunque se suele producir como dato indirecto
para el mismo usuario, mientras que organizar y compartir música son datos
directamente observables, y además se pueden transformar en prácticas visibles
para los otros más fácilmente.

Quedan por delante una serie de preguntas que quizás puedan responderse con
más investigaciones y también con la evolución de las mismas plataformas y sus
prácticas asociadas: en la práctica estética de la socialización de nuestras
relaciones con la música ¿podemos seguir viendo como importante la dimensión
compartida de la música, pese a que las plataformas privilegian la relación
individual? ¿qué pasa con la dimensión de los estilos, la exhibición del estilo
propio y de los rechazos ajenos? ¿de qué modo esa caja negra que son los SRs
influyen sobre esa otra caja negra que son los individuos?

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1 IIEAC – UNA, Argentina. gastoncingolani@gmail.com.

2 Este trabajo se realiza en el marco del proyecto “De los medios a las
mediatizaciones (II). Mediatizaciones de la experiencia estética”, (COD
34/0410) Instituto de Investigación y Experimentación en Arte y Crítica, Área
Transdepartamental de Crítica de Artes, Universidad Nacional de las Artes.

3 Al respecto, Luhmann (2000) señala que esa figura opera como la exterioridad
del sistema mediático, en el propio sistema. Es preciso, sin embargo, evitar
confundir al receptor o espectador con las figuras de esa “exterioridad” en los
medios – confusión que entendemos, aparece en trabajos como el de Lacalle
(2001) –, sobre todo en el sistema mediático como se configuró hasta la
aparición de las redes. Ensayamos una generalización sobre su funcionamiento
en los géneros televisivos en CINGOLANI, 2006.

4 Insistimos en recomendar los aportes de Luhmann (2000, p. 2; 2002).

5 Esta apretada síntesis remite a varios debates. Recomendamos, para una


semblanza de la posición que tomamos, los siguientes trabajos: SCHAEFFER
(1996, 1999, 2006, 2013), GENETTE (2000) y BARTALESI (2007, 2015).

6 Tomamos esta distinción que Fernández (2016a, p. 20) propone para clasificar
los tipos de “posiciones de intercambios” o “prácticas de intercambio”, donde, si
entendemos bien, la interacción no es solo una espectación que deja rastros, sino
una actividad absolutamente diferenciada, y esencialmente coparticipativa.

7 Renovamos el llamado a la distinción de Fernández (2016a), coincidiendo en


que ninguna de estas prácticas de interacción es novedosa del digitalismo y las
redes. Sin embargo, es evidente que estas han progresado exponencialmente en
su mediatización. Por otra parte, el zapping radial o televisivo no eran un modo
de interactuar, y apenas puede decirse que eran una manera de intervenir el texto:
nadie más que el o los oyentes junto al receptor podían acceder a ese “nuevo
texto” compuesto por la yuxtaposición de fragmentos en reconocimiento.
8 Hay un sinfín de trabajos que estudian estos fenómenos y procesos, incluso en
distintas épocas y sociedades, y bajo diferentes vertientes sociológicas, por
ejemplo, el clásico de Sennett (1978).

9 Fernández describe a esta coyuntura como etapa post-broadcasting, posterior a


la del broadcasting (identificada por “todas aquellas situaciones en las que los
sistemas de intercambio discursivo se caracterizan por la existencia de pocos
emisores que emiten para muchos receptores”, propias de la era de los medios
masivos) y en convivencia no exenta de competencia con el networking – donde
los individuos o colectivos aprovechan las facilidades que da la digitalización en
red, el “donwloading a través del mp3 y la explosión del compartir (sharing)
musical”. (FERNÁNDEZ, 2014, p. 38)

10 Somos conscientes de que este doble comportamiento existe en muchos otros


espacios, pero no los estudiamos sistemáticamente aún.

11 Se denomina playlist a una lista de piezas musicales que selecciona y ordena


un usuario o la plataforma misma, y pone a disposición de los usuarios.

12 También puede funcionar como una actualización del sitio, en la que se


renuevan por ejemplo las ofertas, las noticias, los films, etc. o en este tipo de
plataformas, aparecen nuevas canciones.

13 También aquí la bibliografía es enorme. Mencionamos algunos trabajos que


desarrollan el tema: HAVELOCK, 1996; KITTLER, 1999; PHILIP, 2004.

14 Datos de en.wikipedia.org (english) acceso 23/09/17.

15 Puede leerse una compilación de trabajos que analiza estos y otros casos en
Fernandez (2014), Koldobsky (2014), Vargas (2014), Núñez (2014).

16 Digamos de entrada que no es lo mismo buscar que encontrar, y las variantes


son sumamente importantes (las hemos descrito ya en CINGOLANI 2016b).

17 En julio de 2015, Spotify lanzó Discover Weekly:“por primera vez,


combinamos tus preferencias musicales con las de otros usuarios con gustos
similares en la plataforma. Esto significa que cada canción en Discover Weekly,
está basada en lo que tú escuchas y en lo que otros escuchan relacionado con las
mismas canciones que tú, haciendo tu playlist única, con análisis profundo y
nuevos descubrimientos”, para competir con el servicio “For you” de curaduría
personalizada de Apple Music. https://www.engadget.com/2015/07/20/spotify-
discover-weekly-playlist/

18 Las plataformas líderes (Apple Music, Napster, Spotify, Tidal, Deezer,


Amazon, Pandora) disponen de 30 a 40 millones de canciones (incluso
Soundcloud declara 150 millones de piezas), es decir, cantidades que no hacen la
diferencia para el usuario individual.

19 Esto es lo que se supone hace un sistema de recomendación en modo de bucle


sobre el usuario mismo, y que propusimos caracterizar como sistemas de
preferencia (CINGOLANI 2016b).

20 Desde marzo de 2016 se incluyó la posibilidad de compartir listas de música


de Spotify con amigos en Facebook.
O cicloturismo, o jornalismo e a midiatização das narrativas de bicicleta1

• Demétrio de Azeredo Soster2

1. Primeiros movimentos

Este artigo parte do pressuposto, no rastro de uma tradição narrativa inaugurada


por jornalistas-aventureiros como Jack London e continuada por Jon Krakauer,
entre outros, que a midiatização afeta processualmente as narrativas de viagens,
em particular as que são realizadas de bicicleta; que se enquadram, portanto, na
categoria cicloturismo e que nos referiremos, doravante, como “narrativas de
bicicleta”. Narrativas de viagens são relatos ficcionais, não ficionais e mistos
(MARTINEZ, 2012) realizados com o objetivo de descrever viagens com os
mais diferentes fins (aventura, auto-conhecimento, pesquisa etc.). Por
cicloturismo compreenderemos o turismo que é realizado tendo a bicicleta como
meio de transporte. (CAVALLARI, 2012). “Narrativas de bicicleta” são, neste
sentido, os relatos, textuais, imagéticos ou sonoros, estruturados a partir de
viagens de bicicleta, portanto fáticos, com fins turísticos ou de entretenimento.

A midiatização das narrativas de bicicleta pode ser percebida, por exemplo,


quando um cicloturista, ao se preparar para uma viagem, preocupa-se tanto com
os equipamentos que levará em sua cicloviagem como com o que irá utilizar
para registrar seu percurso e aventuras vividas. Dito de outro modo, tão
importante quanto a aventura é o registro da mesma e sua divulgação, como
faziam os primeiros jornalistas-aventureiros, mas com uma diferença:
dispositivos como sites, blogs, redes sociais, tecnologias móveis e outros
reconfiguram toda uma ecologia comunicacional, transformando, neste
movimento, o tempo do vivido, seu registro e difusão.

É dizer, por outras palavras, que a midiatização das narrativas de bicicleta, na


perspectiva que estamos propondo observar, ganha relevo diferenciado quando
considerada em sua relação com a internet, em particular a web3. Tem-se aqui,
quem sabe, uma substancial complexificação na forma de acesso dos atores
àquilo que Verón (2013) chamou de “discursividade midiática”. É o que se
observa, por exemplo, quando um relato do que deveria ser apenas uma
cicloviagem de bicicleta traz consigo marcas que sugerem que ele foi pensado
para “circular” na web, interferindo em toda a estrutura discursiva dos
enunciados.
Partimos do pressuposto que isso ocorre porque a midiatização reconfigura este
modelo de narrativa a partir de um complexo “trabalho discursivo de
midiatização” (FAUSTO NETO, 2012), midiatizando-o. A midiatização será
aqui compreendida como: a) movimento em que a tecnologia é intercalada entre
o sujeito e a ação que realiza, mas, também, b) como uma mudança na forma
como a sociedade dialoga com ela mesma (BRAGA, 2012). Estudar as múltiplas
semioses que se estabelecem nesta processualidade implica admitir, portanto,
desde agora, que:

1) estamos diante de um problema de circulação; ou seja, de sentidos que


emergem da geração de diferenças entre gramáticas de produção e
reconhecimento (VERON, 2004, p. 53); e

2) que estas diferenças podem ser identificadas pelo viés de marcas não
homogêneas (VERON, 1980, 2004) distribuídas na superfície dos objetos
analisados na forma de operações linguísticas, à revelia de seu formato (texto,
imagem, imagem em movimento etc.).

Importante salientar que nossa perspectiva se insere naquilo que Onfray (2015)
categorizou como uma teoria da viagem, que alcançamos pelo viés das
narrativas. “Todos os viajantes narram suas peregrinações em cartas, cadernos,
relatos” (2015, p. 31), ainda que estes recortes sejam pouco diante da realidade.
“Entre a ausência de vestígios e seu excesso, a fixação dos instantes fortes e
raros transforma o tempo longo do acontecimento num tempo curto e denso: o
do advento estético” (2015, p. 53). Observar este tempo que se transforma em
objeto estético, sem desconsiderar o lugar de análise, exige, por outro ângulo,
um olhar antes de etnólogo que de turista, nas palavras de Augé (2010): “O que
difere verdadeiramente o etnólogo do turista é, sobretudo, seu método: a
observação sistemática, solitária e prolongada” (2010, p. 74).

Em relação ao objeto de nosso interesse, as bicicletas e o cicloturismo, trata-se


de fenômeno relativamente recente. Cavallari (2012), por exemplo, pontua que a
bicicleta foi inventada na aurora do século XIX, mais especificamente em 1817,
na Alemanha, pelo barão Karl von Drais – chamava-se o invento, inicialmente,
de laufmaschine, ou máquina de correr. Estamos falando de uma estrutura de
madeira de 22 quilos, sem pedais, que, mais tarde, quando de sua patente, seria
chamada de “velocípede”; mas, popularmente, draisienne, em referência ao seu
inventor.
Schetino (2010), por sua vez, afirma que foram os irmãos franceses Pierre e
Ernest Michaux, em 1861, quem aperfeiçoaram a invenção, fixando nela, junto
às rodas dianteiras, pedais. O nome bicyclette foi dado pela empresa inglesa
Tangent and Conventry Tricicle Company, em 1880. A máquina inovava, e ainda
estamos dialogando com Schetino (2010), à medida que sua tração era feita por
correntes acionadas pelos pedais, e não mais por estes estando fixos na roda
dianteira.

Se considerarmos, ainda de acordo com Cavallari (2012), que, em 12 de junho


de 1817, quando do primeiro invento, Drais pedalou 13 quilômetros na cidade de
Mannhein, pode-se pensar, quem sabe, que foi o primeiro “ciclopasseio”. Um
pouco mais tarde, a mesma fonte lembra que o jornal The Times, da Inglaterra,
publica reportagem contando aquela que seria a primeira cicloviagem, ainda que
esta nomenclatura não existisse à época: 84,8 quilômetros do Centro de Londres
até Brighton, feito realizado por John Mayall, Charles Spencer e Rowley Turner.

Muitas outras cicloviagens viriam a ocorrer desde então. Em nível de Brasil,


Schetino (2010) salienta que a bicicleta, como uma ideia de modernidade,
cumpriu importante papel na transição dos séculos XIX para o XX, à medida que
passou a representar uma prática esportiva, portanto cultural, ligada à
modernidade, desde então amplamente difundida na França, país que servia de
modelo ao Brasil neste aspecto. Não se tem, no entanto, salvo relatos dando
conta de seu uso para passeios breves ou esportivos, nenhum registro mais
consistente das primeiras cicloviagens por estes lados.

Dito isso, e para dar conta de nosso propósito metodologicamente, iniciaremos


observando o que compreendemos por circulação midiática. A visada é
importante para que possamos compreender, mais adiante, como se estabelecem
os sentidos que emergem da geração de diferenças entre gramáticas de produção
e reconhecimento nas narrativas de bicicleta. O próximo passo será a análise de
alguns modelos de narrativas; neles, das operações linguísticas deixadas em suas
superfícies como indicativos da presença de camadas mais profundas de
significação. Ou seja, da forma como a midiatização afeta as narrativas de
bicicleta, midiatizando-as.

2. Um problema de circulação

Uma estratégia possível para compreendermos como a processualidade da


midiatização afeta as narrativas de bicicleta é assumirmos, desde agora, que
estamos diante de um problema de circulação. Ou seja, de reconfigurações que
se estabelecem no âmbito dos dispositivos midiáticos – livros, sites, redes sociais
etc. – quando se vêem atravessados por circuitos informacionais múltiplos.
Defendemos que, quando isso ocorre, criam-se zonas intermediárias de
circulação (ZICs), ou, simplesmente zonas de contato, ambiências intermediárias
(FAUSTO NETO, 2010) em que as gramáticas de produção e reconhecimento
são tensionadas. Ou, em palavras mais simples, ainda, onde se complexificam os
papéis de emissão e recepção e onde os jornalistas-aventureiros podem interferir
processualmente em suas narrativas graças às transformações que se verificam
na geografia do sistema em que se inserem.

É preciso, portanto, delimitar o que entendemos por circulação. Conforme


discorremos em outro momento (SOSTER, 2016), e sem nos alongarmos mais
que o necessário no assunto, pensar a circulação nos moldes que estamos
propondo, sistêmicos, é distinto de fazê-lo em uma perspectiva jornalística. No
primeiro caso, estamos diante de um “espaço gerador de potencialidades”
(FAUSTO NETO, 2010); no segundo, do percurso existente entre uma instância
e outra de determinados processos produtivos.

Ou seja, a circulação jornalística diz respeito à forma como as informações se


deslocam quando são veiculadas em dispositivos jornalísticos (ZAGO, 2012;
MACHADO, 2008; RABAÇA, BARBOSA, 1995), independente de sua
natureza, até alcançarem a quem se destinam. “Não há dúvida que não se pode
pensar o jornalismo sem a circulação, assim como não se pode resumir esta
instância à forma como as informações de natureza jornalística transitam”
(SOSTER, 2016, p. 9), resumindo-se a circulação a uma espécie de “zona
automática” (FAUSTO NETO, 2010).

Se pensarmos, portanto, a circulação como espaço de potencialidade, ainda no


diálogo com Fausto Neto (2010), podemos, quem sabe, observá-la, antes, como
dispositivo que é meio ou mesmo mensagem. É o que Jairo Ferreira vai chamar
de “um lugar de inscrição” capaz de se transformar ele próprio em “operador de
novas condições de produção” (FERREIRA, 2013, p. 147).

Isso posto, ao pensarmos a circulação, o que temos, então, mais que intervalo, ou
lugar de passagem, é um espaço de possibilidades, nas palavras de Braga (2012);
ou, ainda, “(...) instância em que processos de enunciação, portanto de sentidos,
têm lugar” (SOSTER, 2016, p. 11), em decorrência de sua natureza complexa,
não linear.
3. Circuitos informacionais

Vejamos, agora, o que são circuitos informacionais. A delimitação é necessária,


uma vez mais, porque são os atravessamentos e interposições provocados pela
presença de circuitos informacionais na relação entre: 1) dispositivos e sistemas;
2) dispositivos, meio e sistemas; e, finalmente, 3) dispositivos, meio, sistemas e
demais sistemas que nos permitirão compreender, mais adiante, como se
estabelecem as zonas intermediárias de circulação. E, com elas, as afetações que
a processualidade da midiatização provoca nas narrativas de bicicleta, objeto de
nossa reflexão.

Pensar em uma sociedade assentada antes em fluxos informacionais que, na


perspectiva de campo, sem, evidentemente, excluí-lo do cenário analítico, tem a
ver com considerarmos que, com a midiatização, “(...) os campos sociais, que
antes podiam interagir com outros campos segundo processos marcados por suas
próprias lógicas e por negociações mais ou menos específicas de fronteiras, são
atravessados por circuitos diversos” (BRAGA, 2012, p. 15). Estes
atravessamentos não apenas interferem em todos os setores da sociedade
(dispositivos, sistemas e meio) como reconfiguram gramáticas.

O fato de que os circuitos em desenvolvimento tenham a tendência assinalada –


de “atravessar” os campos sociais estabelecidos – mesmo quando o ponto de
origem de um circuito é um desses campos (...), leva a uma espécie de
“recontextualização”. As referências habituais se encontram deslocadas ou
complementadas por referências menos habituais – fazendo com que os próprios
circuitos em desenvolvimento elaborem e explicitem os contextos requeridos
para atribuição de sentidos aos produtos e falas que circulam. (BRAGA, 2012, p.
49)

Essa recontextualização a que se refere Braga (2012) pode ser percebida, no


objeto analisado, pelo viés da análise de marcas linguísticas deixadas ao longo
da produção discursiva. Ou seja, pela interferência da circulação na linguagem,
que se daria por duas operações, a saber:

(...) a primeira trata-se da exteriorização do dizível em forma, na condição de


textos presos a lógicas e gramáticas. E a segunda, que se constitui numa
operação que se dá em um âmbito de determinado processo circulatório, quando
põe em marcha a atividade significante da qual emergem as regras através das
quais a linguagem se transforma em atividade geradora de discursividade.
(FAUSTO NETO, 2013, p. 50)

Observemos, agora, graficamente, como se dá a formação das zonas


intermediárias de circulação, as ZICs. Isso para que tenhamos condições de,
finalmente, refletir sobre a maneira por meio da qual a midiatização afeta as
narrativas de bicicleta.

4 Zonas intermediárias

No gráfico abaixo, as ZICs são representadas pelos círculos em azul gradiente,


pontilhados. Observe-se que elas se formam tanto nos:

1) atravessamentos e interposições que se verificam nas operações internas dos


dispositivos (livros, jornais, revistas, sites etc.) a partir da presença, neles, de
circuitos informacionais;

assim como

2) no sistema como um todo (círculo central).

Isso se dá dessa forma porque os sistemas são formados, como dito, pelos
dispositivos, e não podem ser pensados sem estes, mas os dispositivos não
resumem, em essência, o sistema como um todo (BERTALANFY, 2013), ainda
que o sistema não exista sem eles, de tal maneira que pensar em um implica
necessariamente levar o outro em consideração, relacionalmente.

Também importa observar que, no exemplo, os sites, redes sociais, jornais,


rádios, revistas, editoras e televisões que integram o sistema midiático em seus
aspectos organizacional ou institucional são representados pelos círculos azuis.
São dispositivos à medida que instituem interações que considerem, a um tempo,
aspectos tecnológicos (as máquinas, por exemplo), relações sociais (as redações;
mas, também, as interações que se dão entre estas e os leitores/audiouvintes) e,
finalmente, um sistema de representações (os códigos utilizados nos processos
de enunciação, à revelia de sua natureza) (FERREIRA, 2006, 2013, 2016).

As setas em vermelho representam os circuitos múltiplos que atravessa tanto


dispositivos como sistemas, interferindo no que é da ordem de um como de
outro. As setas em azul, por fim, marcam os diálogos correferenciais, uma das
características do jornalismo midiatizado4 (SOSTER, 2009). Graficamente,
então, temos o seguinte cenário:
Gráfico 1 – A formação das ZICs / Fonte: Elaboração do autor

O Gráfico 1 é importante porque, não obstante carregar consigo todas as


limitações inerentes à representação imagética de um fenômeno complexo e de
contornos pouco visíveis, portanto, permite-nos compreender um pouco melhor
como se formam processualmente as ZICs e como elas interferem tanto no
sistema como em seus dispositivos. As ZICs se tornam visíveis, por assim dizer,
quando informações que circulam pela internet “invadem” os dispositivos e
acabam por interferir na processualidade destes. Não se trata de um movimento
de autorreferência ou mesmo acoplamento estrutural, portanto sistêmicos,
provocados, em essência, pela irritação, mas de atravessamentos não autorizados
que acabam interferindo na estrutura interna dos dispositivos e do sistema como
um todo.

O Gráfico 2, ao particularizar a criação da ZIC no âmbito do dispositivo,


permite-nos observar melhor como isso se dá. O círculo azul é o dispositivo
tanto em seus aspectos organizacionais como institucionais. No caso de um site,
por exemplo, é o site em si, e o que representa, mas, também, os processos
produtivos que permitam que ele seja reconhecido, ao fim, como tal. As setas
vermelhas, por sua vez, são os circuitos informacionais. Eles podem ser tanto
uma informação que é postada em uma rede social e que “viraliza”, como algo
que é dito em uma entrevista que, por um motivo outro, foi repercutida por
alguém via Twitter ou Facebook, por exemplo. Importa observar que, ao fazê-lo,
como dissemos, interfere na dinâmica operacional interna do dispositivo, o que é
visível por meio de marcas textuais.

Gráfico 2 – Formação das ZICs no interior do dispositivo / Fonte: Elaboração do


autor

É chegado, agora, o momento de observarmos a perspectiva a partir daquelas


que estamos chamando de narrativas de bicicleta.

5 Narrativas de bicicleta

Um primeiro exemplo de como a processualidade da midiatização afeta as


narrativas de bicicleta pode ser observado por meio do projeto “Turismo pé-de-
chinelo: porque pobre também precisa viajar”, mantido pelos cicloturistas Luíd e
Stefane Monsores, da cidade de Vassouras, no Rio de Janeiro. O projeto5 nasceu
da vontade de se aventurarem, mas foi determinado em termos de forma –
cicloturismo – tanto pelos custos baixos de uma viagem de bicicleta como por
relatos lidos em sites cicloturísticos:
Já tínhamos a vontade de compartilhar um pouco de nossas viagens baixa-renda
há algum tempo, mas essa ideia nasceu oficialmente no nosso coração quando
estávamos planejando uma viagem de moto por alguns estados do Brasil. Depois
de pesquisar muito sobre dicas de como viajar barato, acabamos caindo em uns
sites super interessantes de uns doidos pessoas um pouco fora do comum, que
viajavam de bicicleta, chegando a sair do país, do continente e até mesmo a dar a
volta ao mundo em cima do pedal (what???). As ótimas leituras das aventuras
desses ciclo-viajantes e somando ao fato da gasolina e pedágios estarem cada
vez mais caros, o que acaba sendo um grande problema, nos fizeram então adiar
a viagem de motoca e despertaram em nós a lembrança de um antigo sonho, que
era o de sair pedalando por aí.

Por meio dos relatos sistemáticos que realizavam em seus blog e redes sociais
(Facebook, Instagram e Youtube, principalmente), Luid e Stefane não apenas
descreveram seus preparativos para as cicloviagens como publicizaram os
mesmos até a realização. Inseriram, dessa maneira, o que era para ser simples
viagem de bicicleta na discursividade midiática, midiatizando suas próprias
narrativas. As Imagens 1 e 2, a seguir, ilustram o que estamos afirmando.

Imagem 1 – Preparativos para a viagem / Fonte:


http://turismopedechinelo.blogspot.com.br
Imagem 2 – Apresentando canal no Youtube e objetivo da viagem / Fonte:
https://www.youtube.com/watch?v=-laGsGgPPJY

À medida que o projeto “Turismo pé-de-chinelo: (...)” evoluía, foi se


concentrando, gradativamente, na produção de vídeos para o Youtube. A
identidade visual – nome, logomarca etc. – permaneceram os mesmos, mas a
linguagem passou a ser exclusivamente audiovisual. É o que demonstra a
Imagem 3 a seguir, do vídeo no Uruguai.
Imagem 3 – Prioridade para o Youtube / Fonte: Youtube

A presença de circuitos informacionais reconfigurando as narrativas pode ser


notada, por exemplo, em janeiro de 2017, quando uma informação veiculada
inicialmente pelo Facebook não apenas se interpôs no filme que viria a ser
veiculado naquele dia como reconfigurou seu conteúdo. O objetivo do dia era
visitar, na ordem, o Jardim Japonês, o Planetário e os bosques de Palermo, mas a
meta ficou em segundo plano.

Na Imagem 4, Luid e Stefanie relatam, do interior de uma casa onde estavam


hospedados na Argentina, que um post6 veiculado no Facebook por um
cicloturista desde o Brasil, sobre a importância de se ter onde dormir durante
cicloviagens, havia servido de mote para o comentário do dia.
Imagem 4 – narrativas reconfiguradas / Fonte: Youtube

Os cicloviajantes fazem referência, no vídeo7, ao texto do Facebook, lêem seu


conteúdo, tecem comentários a respeito da importância de serviços de
hospedagem como o Warmshower8 e, finalmente, mostram o post na tela, como
podemos observar nas imagens 5 e 6, ficando o que estava previsto para aquele
dia, como dissemos, em segundo plano.
Imagem 5 – Post de cicloturista no Facebook / Fonte: Facebook
Imagem 6 – Postagem do Facebook no Youtube / Fonte: Youtube

À medida que a cicloviagem se aproximava de seu final, já em território


argentino, as narrativas de Luid e Stefane começaram a mudar de tom. Ou seja,
ao invés de descrever, de forma autorreferencial, o que estavam vivendo em seu
dia a dia, como fizeram até então, o objetivo passou a ser a produção de
conteúdos para o dispositivo Youtube. Isso pode ser constatado quando gravam
um vídeo dizendo que aderiram a um site de financiamento coletivo9 (imagem
7) para viabilizar financeiramente a próxima viagem e, ato contínuo, dizem
textualmente, nas imagens e no texto de apoio, que a ideia, agora, é, antes, fazer
filmes que viajar.

Imagem 7 – Financiamento Coletivo / Fonte: Apoia.se

Eis o excerto em que explicitam seus novos propósitos:

Nosso objetivo é mostrar a vida de uma forma mais leve, e assim, incentivar as
pessoas a serem felizes. Queremos levar entretenimento e diversão para as
famílias de forma simples e descontraída e futuramente conseguir independência
financeira, para que assim possamos dedicar a maior parte do nosso tempo de
trabalho para produzir conteúdo para vocês no canal do youtube10. (o destaque é
nosso)

Se lembrarmos do início da aventura, descrita no blog do projeto, a ideia inicial,


inspirada pelo relato de outros cicloturistas, era “sair por aí” de forma
autossuficiente e com baixo custo. Três meses depois, transformou-se em
produção de conteúdo para a internet, via Youtube.

Um segundo exemplo de como a processualidade da midiatização afeta as


narrativas de bicicleta, midiatizando-as, pode ser observado no projeto “Mochila
& Bike”11, de Aldo Lammel. Trata-se, o projeto, de uma volta ao mundo que
Lammel, um publicitário gaúcho da cidade de Charqueadas, no Rio Grande do
Sul, especializado em comunicação digital – autodefinido, em seu site, como
“produtor audiovisual, aventureiro, roteirista, escritor, cicloativista e músico” –,
está realizando de bicicleta ao redor do mundo desde janeiro de 2015. O
“Mochila & Bike” nasce, igualmente, da vontade do escritor-viajante de viajar
pelo mundo de bicicleta, mas, também, de relatar suas aventuras, o que faz por
meio das mais diferentes plataformas: Youtube12, Facebook13, livro digital14,
site15, Twitter16, Instagran17, vlog18 etc.

A diferença, comparada com o exemplo anterior, é que o projeto “Mochila &


Bike” nasce midiatizado. Ou seja, foi concebido, desde o início, como uma
cicloviagem que seria registrada tendo a internet como plataforma-base. O
projeto foi desenvolvido durante 15 meses, período em que Lammel cuidou de
registrar seus movimentos e de publicizá-los à medida que se realizavam,
conforme demonstra a Imagem 8.
Imagem 8 – Desligamento do emprego / Fonte:
https://www.youtube.com/watch?v=LkLV6YKOUsE

Nela, um mês depois de ter tomado a decisão de realizar uma cicloviagem pelo
mundo, Lammel grava um vídeo no Youtube dizendo que se desligara do
emprego; mas adiante, que terminara seu relacionamento. A Imagem 9 registra
todo o roteiro e programa da cicloviagem.
Imagem 9 – Site com etapas da viagem / Fonte: http://mochilaebike.org/roteiro-
e-cronograma.php

Além de informações sobre a viagem, o site fornece um serviço de


geolocalização – Swarm APP19 – em que torna possível saber a localização
exata no momento em que se acessa o site. No momento em que este artigo
estava sendo escrito, por exemplo, Lammel se encontrava na República Tcheca,
conforme demonstra a Imagem 10.

Imagem 10 – Geolocalização via App / Fonte: http://mochilaebike.org/roteiro-e-


cronograma.php

À medida que a viagem avançava, aos relatos em filme identificados pela tag
“Manual”, Lammel compartilha, via Youtube, o que chama de “suas
experiências para executar tarefas, conseguir algo ou vencer desafios em prol de
uma viagem mais econômica, longa, cultural e divertida”20. É o que se observa
na Imagem 11.
Imagem 11 – Dialogando via Youtube / Fonte: https://www.youtube.com/watch?
v=I4nXN_P9xKs

Na Imagem 12, em La Paz, na Bolívia, Lammel afirma, aos 5’34 de gravação,


que é a primeira vez que fará um relato de improviso, sem edição.
Imagem 12 – Relatos não planejados / Fonte: https://www.youtube.com/watch?
v=qeXII-AalFE

Com o passar do tempo, os movimentos voltam-se com cada vez mais


frequência para inserção da cicloviagem à discursividade midiática por meio da
oferta de novas tecnologias. Ou seja, passa a oferecer novas formas de acesso
aos que com ele dialogam. É o que se observa, por exemplo, quando, em sua
página no Facebook21, anuncia a criação de um aplicativo (App):

É OFICIAL – AGORA TEMOS NOSSO PRÓPRIO APP! Agora você pode


acompanhar todos os conteúdos da volta ao mundo de uma forma muito mais
rápida pelo celular: vlog, websérie, diário, manual, roteiro, estatísticas e nossas

redes sociais :)
Vale lembrar que tudo aqui é independente e ainda não colocamos nosso app na
Google Play por ser caro para nós (U$25/anual), mas ainda assim você pode
baixar direto do nosso site e instalar com segurança. Versão para iPhone e iPad,
em breve.
Baixe o App: http://mochilaebike.org22

Ou, ainda, quando promove pesquisa23 (Imagem 13) para saber quantos
cicloturistas, ao redor do mundo, estão viajando tendo como inspiração sua
experiência:
Imagem 13 – Interatividade / Fonte: Google Docs

Um último exemplo, antes de passarmos às considerações interpretativas, ilustra


como a narrativa de viagem protagonizada por Lammel tanto condiciona como
está condicionada às inferências da discursividade midiática. No post realizado
em sua página do Facebook24, no dia 26 de maio de 2016, o cicloviajante
informa aos que estão lhe acompanhando que ficará em silêncio por alguns dias
porque quer estar a só com sua namorada, Verônica, uma garota que conheceu
durante sua passagem pelo Leste Europeu e por quem se apaixonou (Imagem
14).

Tudo o que peço a quem me acompanha desde 2015 quando pus meu
apartamento pra alugar e fui pra estrada e a quem passará a me fazer companhia
desde agora, peço que respeite meu momento de estar quietinho em Praga com a
minha flor antes de termos de dizer adeus um para o outro pra seguirmos sonhos
em direções opostas por vivermos momentos de vida tão diferentes. A vida não é
preto no branco como regras escritas num manual para amadores, as histórias
são complexas e com infinitas perspectivas. Usufrua de tudo o que compartilho
no Youtube, Facebook e em meus livros gratuitos no Medium que te prometo
que vc encontrará novas possibilidades bem diante dos teus olhos, sem mágica
ou romantismo em excesso. (destaques nossos)

Imagem 14 – Em Praga, com a namorada / Fonte: Arquivo pessoal

O que vem depois disso? O anúncio, em primeiro lugar, via redes sociais, de que
a viagem está chegando ao seu fim.
Imagem 15 – Mensagem, via Facebook, sobre o fim da viagem / Fonte:
https://www.facebook.com/search/top/?q=aldo%20lammel

Mas, também, a organização, igualmente por meio de redes sociais, de sua


chegada em Porto Alegre, como demonstra a Imagem 16.
Imagem 16 – Torcida organizada / Fonte: https://www.facebook.com/avlammel

Passemos agora às considerações interpretativas.

6. Considerações interpretativas

Pensar as narrativas de bicicleta a partir das reflexões aqui propostas implica


considerar a midiatização, nas palavras de Gomes (2017), como chave de
compreensão e interpretação hermenêutica da realidade.

A sociedade percebe e se percebe a partir do fenômeno da mídia, agora alargado


para além dos dispositivos tecnológicos tradicionais. Por isso, é possível falar da
mídia como um locus de compreensão da sociedade. (GOMES, 2017, p. 78)

Ou, por outras palavras, que estamos diante de um fenômeno que reflete, em
essência, o tempo de mundo em que estamos vivendo, e onde não se pode pensar
a ação do homem sem considerar, na visada, a relação deste com o aparato
tecnológico que o cerca, compreendida a relação como processo interacional de
referência.

Ocorre que este alargamento a que Gomes (2017) se refere, conforme já


apontamos em outros momentos (SOSTER, 2009), tensiona substancialmente
noções secularmente instituídas, como a de campo, solicitando novas gramáticas
interpretativas aos fenômenos que se apresentam. É o que se verifica, por
exemplo, quando, em relação à discursividade midiática, agentes “não
autorizados” interferem nas gramáticas de produção (emissão) e reconhecimento
(recepção) do sistema midiático, sem, no entanto, ocuparem lugares
institucionais. Integram-se, dessa forma, àquilo que Ingold (2011) vai chamar,
ainda que em outro contexto, de “malha”, em oposição à metáfora de “rede”,
largamente utilizada nas discussões de matizes acentuadamente sócio-evolutivas.

A diferença entre “malha” e “rede”, não obstante de a origem de ambos ser


próxima, é que “malha” remete antes a um caminho percorrido, enquanto que
“rede” a uma forma de transporte. No primeiro caso, é o que emerge do
percurso, o que se transforma, o que se constrói: “Cada fio é um modo de vida, e
cada nó um lugar” (2011, p. 224). No segundo, espécie de mapa composto por
pontos interconectados.

A chave para esta distinção é o reconhecimento de que as linhas da malha não


são conectoras. Elas são o caminho ao longo dos quais a vida é vivida. E é na
ligação de linhas, não na conexão de pontos, que a malha e constituída.
(INGOLD, 2011, p. 224)

Vale lembrar que, até bem pouco tempo atrás, quando da sociedade dos meios,
os dispositivos que compunham o sistema midiático – rádios, televisões, jornais
etc. – eram os grandes artífices, do ponto de vista axiomático, da composição
disso que Silverstone (2002) chamou, em outro momento, de tessitura da
experiência. Um tempo de “meios e mediações”, na categorização seminal de
Barbero (2009). À medida que a sociedade se complexifica pela processualidade
da midiatização – e a internet ocupa um lugar central nesta discussão –, as
condições de acesso, no diálogo com Verón (2013), mudam substancialmente,
reconfigurando toda uma ecologia comunicacional.

Foi o que os exemplos analisados neste artigo buscaram demonstrar. Ou seja,


mesmo que ambos estejam inseridos em uma lógica discursiva antiga – as
narrativas de viagem, e que estas se vinculem seminalmente a um determinado
formato de jornalismo, a geografia do ambiente em que seus autores se inserem
dispensa mediações. Melhor dizendo, dispositivos como tablets, smartphones e
computadores, aliados às facilidades de acesso à rede e à usabilidade do sistema,
não tornam mais imperativa a presença de uma organização, ou mesmo
instituição, e seus agentes, para a oferta de sentidos, ainda que sigam existindo.

Com isso, Luid e Stefane Monsores, Aldo Lammel, e tantos outros cicloturistas
passam a tecer, por meio de seus relatos, não a rede, mas a malha da
discursividade midiática, transformando e sendo transformado neste percurso.
“À medida que os dispositivos da web permitem aos usuários produzirem
conteúdos, e tendo em conta, também, que os usuários têm controle do switch
entre o privado e o público, podemos ter uma ideia da complexidade e das
mudanças em curso”25 (VERON, 2013, p. 282). Compreender o que estas
transformações representam, portanto, é o desafio que se nos apresenta.

7. Referências

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2010.

BERTALANFFY, L. Teoria geral dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.

BRAGA, José Luiz. Circuitos versus campos sociais. In: JANOTTI JÚNIOR,
Jader; MATTOS, Maria Angela; JACKS, Nilda (orgs.). Mediatização &
midiatização. Salvador: EDUFBA; Brasília: Compós, 2012.

CAVALLARI, Guilherme. Manual e mountain bike & cicloturismo: conceitos,


equipamentos e técnicas. São Paulo: Kalapalo Editora, 2012.

DEMO, Pedro. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000.


FAUSTO NETO, Antonio. Como as linguagens afetam e são afetadas na
circulação? In: BRAGA, José Luiz; FERREIRA, Jairo; FAUSTO NETO,
Antonio; GOMES, Pedro Gilberto (orgs.). Dez perguntas para a produção de
conhecimento em comunicação. 1ª ed. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2013. v.
1. 43 p.

FAUSTO NETO, Antonio. Midiatização da enfermidade de Lula: sentidos em


circulação em torno de um corpo-significante. In: MATTOS, Maria Ângela;
JUNIOR, Jeder Janotii; JACKS, Nilda (orgs.). Mediatização e midiatização:
livro Compós 2012. Salvador-Brasília: EDUFBA-Compós, 2012

FAUSTO, Antonio. As bordas da circulação. In: VALDETTARO, Sandra;


FAUSTO NETO, Antonio. (orgs). Mediatización, sociedade y sentido: diálogos
entre Brasil y Argentina. Coloquio del Proyecto “Mediatización, sociedade y
sentido: aproximaciones comparativas de modelos brasileños y argentinos”.
Universidad Nacional de Rosario, Argentina, ago-2010.
FERREIRA, J. Como a circulação direciona os dispositivos, indivíduos e
instituições? In: BRAGA, J. L.; FERREIRA, J.; FAUSTO NETO, A.; GOMES,
P. G. (orgs.). Dez perguntas para a produção de conhecimento em comunicação.
1ª ed. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2013. v. 1. 182 p.

GOMES, Pedro. Dos meios à mediação: um conceito em evolução. São


Leopoldo, RS: Unisinos, 2017.

INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição.


Rio de Janeiro: Vozes, 2015.

LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes,


2009.

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Janeiro, v. 11, n. 2, 2008, p. 21-37.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e


hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009.

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tempo e o espaço. Intercom – RBCC. São Paulo, v. 35, n. I, p. 34-52, jan./jun.
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transição do século XIX para o XX. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010. (e-book)

SILVESTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo: Loyola, 2002.

SOSTER, D. A. A literatura, o sistema midiático e a emergência do quarto


narrador. Signo (UNISC. Online), v. 1, 2016, p. 154-161.

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midiatização e a reconfiguração dos sentidos midiáticos. São Leopoldo:
Unisinos, 2009. Tese (Doutorado em Comunicação), Programa de Pós-graduação
em Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2009.

VERÓN, Eliseo. Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e


algumas de suas consequências. Matrizes. São Paulo, v. 8, n. 1, jan/jun-2014, p.
13-10.

VERÓN, Eliseo. La semiosis, 2: ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires:


Paidós, 2013.

VERÓN, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo: Editora da Unisinos,


2004.

VERÓN, Eliseo. A produção de sentido. São Paulo: Cultrix, 1980.

ZAGO, Gabriela da Silva. Circulação jornalística potencializada: o Twitter como


espaço para filtro e comentário de notícias por interagentes. C&S, São Bernardo
do Campo, v. 34, n. 1, jul./dez. 2012, p. 249-271.

1 Importante salientar que os conceitos, referências e perspectivas aqui


dispostas, apresentadas seminalmente no Pentálogo de 2017, foram tensionadas,
posteriormente, neste mesmo 2017, nos encontros da Associação Brasileira de
Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), realizada em São Paulo (SP); e no V
Simpósio Internacional Diálogos da Contemporaneidade, em Lajeado (RS). Este
capítulo representa a síntese das reflexões que emergiram destes momentos.

2 Pós-doutor pela Unisinos. Professor do Programa de Pós-graduação em Letras


e do Curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul
(Unisc).

3 Web como sinônimo de world wide web, ou, ainda, www.

4 As demais características são autorreferência, descentralização, dialogia e


atorização.

5 Disponível em: http://turismopedechinelo.blogspot.com.br/2015/08/turismo-


pe-de-chinelo.html#more

6 Disponível em:
https://www.facebook.com/dsoster.jor/posts/10155201953529260. Acesso em:
15.jul.2017.

7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lemHD-


c8dis&feature=youtu.be. Acesso em: 15.jun.2017.

8 Cf. em: https://br.warmshowers.org/

9 Cf. em: https://www.apoia.se/tpc

10 Disponível em: https://www.apoia.se/tpc. Acesso em: 15.jul.2017.

11 http://mochilaebike.org/

12 https://www.youtube.com/channel/UCjK_6o4JAwe7Ecx7Rl26kqA

13 https://www.facebook.com/avlammel?ref=br_rs

14 https://medium.com/mochilaebike-fotos/livro-de-fotografias-7c475fd25e36

15 http://mochilaebike.org/sobre.php

16 http://twitter.com/aldolammel

17 http://instagram.com/aldolammel

18 https://www.youtube.com/playlist?
list=PLseCxrn4VPolnJ9FLq42peGW5BSBOC6oW
19 https://www.swarmapp.com/

20 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I4nXN_P9xKs. Acesso


em: 17.jul.2017.

21 Disponível em: https://www.facebook.com/avlammel?ref=br_rs

22 Disponível em:
https://www.facebook.com/avlammel/posts/10213514437518750. Acesso em:
17.jul.2017.

23 Cf. em:
https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSct21X8ALNJRIST25N_3GB0usv5Gln9hs3ro-
g7iWPTec1sgw/viewform

24 Disponível em: https://www.facebook.com/avlammel

25 No original: “En la medida que el dispositivo de la Red permite a los usuários


producir contenidos, y teniendo em cuenta, además, que por primera vez los
usuarios tienen el control de un switch entre lo privado e lo público, podemos
empezar a hacermos uma idea de la complejidad y la profundidad e los cambios
em curso”. (VERON, 2013, p. 282)
La inherencia de la circulación del sentido en la configuración semiótica de
vínculos erótico-afectivos

Un análisis cronotópico de las apps para encuentros íntimos Tinder y Grindr

• Manuel Libenson1

1. Presentación

El presente trabajo se inscribe dentro de una investigación de mayor alcance que


se interesa por los procedimientos discursivos a través de los cuales se produce
socialmente la semiotización de los mercados, esto es, las heterogéneas y
diversas configuraciones de entramados vinculares que posibilitan y restringen
intercambios de valores de cualquier tipo (dones de variada índole, productos y
servicios, trabajo, dinero, acciones, commodities, deudas, etc.). Sitúo entonces
este trabajo en un lugar preciso de observación de la semiosis; a saber: el punto
de intersección entre los tres conjuntos que definen, según la lectura que
hacemos de Levy Strauss, a la sociedad: el sistema de intercambio de discursos,
el sistema de intercambio de bienes y servicios, y el sistema de intercambio de
cuerpos.

En particular, el análisis que aquí presento se interesa por la semiotización de un


mercado específico, el de los encuentros íntimos y o sexuales (también llamado
el mercado de los lazos erótico-afectivos), a partir de la observación de dos redes
sociales especializadas en propiciar tales encuentros y cuya modalidad de acceso
es a través del teléfono celular: Tinder y Grindr. La primera se caracteriza por
ser una aplicación destinada a producir contactos heterosexuales como
homosexuales (entre hombres o mujeres) mientras que la segunda se restringe a
contactos homosexuales exclusivamente entre hombres.

Como es evidente, el mercado que configuran estos dispositivos discursivos no


consiste en la compra-venta de servicios sexuales, tal como sería el caso de la
prostitución, sino que se presenta como un mercado de dones definido por su
particularidad específica: la reciprocidad (MAUSS, 1971). En pocas palabras, al
mismo tiempo que el ego demanda un alter para el contacto, ese mismo ego está
obligado a ofertarse de manera tal de satisfacer la demanda de un alter, que por
ser también ego en su propia instancia de enunciación, se encuentra en posición
de demanda de un alter. Así, el éxito del intercambio −que supone que tanto ego
como alter se constituyen como valores para el otro de manera recíproca−
depende obligadamente de un juego discursivo en el que se desenvuelve el
cortejo como práctica ineludible para posibilitar el encuentro con el otro. El
espacio discursivo inicial en el que se juega la primera apuesta al éxito del
contacto (con su contracara en el potencial fracaso) es el discurso de
presentación de los actores a través del cual estos quedan semióticamente
construidos como sujetos dotados de una sexualidad efectiva.

En este marco, y de manera general, me propongo arrojar luz respecto de las


cualidades vinculares que expresan estas novedosas modalidades de contacto
desde una perspectiva que pone el foco en las determinaciones relacionales que
acarrean los procesos de circulación del sentido activados por estos dispositivos
semióticos específicos. En particular, me interesa generar hipótesis, por un lado,
sobre los condicionamientos estructurales que configuran estos dispositivos
sobre la semiotización de la dimensión espacio-temporal (o cronotópica) de los
vínculos erótico-afectivos que potencialmente pueden desenvolverse en estas
aplicaciones. Por el otro, me interesa indagar cómo estas articulaciones
cronótopicas estructurales se constituyen como huellas del desfasaje instancias
de producción y reconocimiento puesto que, a partir de ellas, se hacen posibles
distintas inflexiones subjetivas que permiten postular la existencia de una
variedad de gramáticas en reconocimiento. El corpus considerado para tal
análisis cualitativo está constituido por una centena de discursos de presentación
de usuarios argentinos y brasileros que han aparecido de manera pública en
ambas aplicaciones mencionadas.

El trabajo se organiza como sigue: en la sección 2 se presenta el corpus y un


conjunto de precisiones teórico-metodológicas relacionadas con el tipo de
análisis presentado, en la sección 3 se desarrolla un análisis de las articulaciones
cronotópicas que configuran estos dispositivos y en la última sección se
presenta, a modo de cierre, un conjunto de señalamientos respecto de las
transformaciones vinculares que acarrean estas aplicaciones a partir de las
modalidades de circulación discursiva que desencadenan.

2. Precisiones teórico metodológicas

Tinder2 y Gindr3 son redes que posibilitan el encuentro íntimo/sexual entre


actores sociales individuales a través del celular por medio de un sistema de
geolocalización. Esto significa que ambas aplicaciones configuran un contacto
entre los participantes de la red por medio de un “radar” que se activa cuando el
usuario ingresa a la aplicación y cuya función es detectar a aquellos participantes
que están conectados en las inmediaciones. La aplicación asigna cierto margen
de libertad al usuario en la medida en que le permite restringir o ampliar el radio
de alcance del radar tanto como el rango de edades buscadas según el tipo de
pretensiones que tenga el usuario respecto del potencial encuentro. Una vez
detectados los participantes dentro del radio, sus perfiles de presentación se
disponen bajo distintas modalidades de menú según la aplicación.

Esta estructuración del contacto a partir de la relación entre distancia e


inmnediatez/mediatez diverge de la configuración vincular que proponían los
antiguos chats, puesto que en esa lógica precedente la posibilidad de contacto
estaba habilitada a partir de un criterio de afinidad temática (salas de chats
definidas por temas, edades, intereses, lugares, afinidades), independientemente
del espacio deíctico en el que se encontraran los participantes de la interacción,
unos respecto de otros.

Desde el punto de vista del tipo de intercambio que propician, Tinder habilita la
posibilidad de que el usuario configure su búsqueda tanto para establecer
contactos heterosexuales como homosexuales entre hombres o mujeres, mientras
que Grindr, por su parte, solo admite contactos homosexuales exclusivamente
entre hombres.

En ambas aplicaciones, una vez que el usuario se registra de manera gratuita, su


discurso de perfil o presentación aparece en un menú o catálogo que varía según
la app bajo distintas características configuracionales. En otras palabras, tanto la
modalidad de acceso al potencial intercambio verbal como el tipo de
información que ofrece el discurso presentativo difieren en cada caso. En Tinder
los discursos de perfil de los participantes que se encuentran ofrecidos en
“góndola” aparecen bajo una modalidad de catálogo que exhibe de manera
sucesiva la foto de presentación de los potenciales candidatos/as al encuentro a
través del deslizamiento táctil del usuario (o “swipping”, tal como se designa a
esta acción en la actualidad). Durante este procedimiento el usuario puede
reaccionar de distintas maneras frente a la imagen de perfil de los potenciales
candidatos/as, pulsando alguno de los 4 pictogramas (corazón, estrella, cruz,
flecha hacia atrás) que aparecen en el menú. Las opciones pueden ser las
siguientes: “like” (me gusta”), “super like” (en estos casos, el usuario solo
dispone de 3 super likes si se ha registrado gratuitamente. En caso de pagar una
suma adicional puede hacer uso indiscriminado de esta función), “no me
interesa” y “deshacer” (esta opción de poder volver hacia atrás solo se hace
posible si el usuario cuenta con una suscripción paga). Ahora bien, la posibilidad
de establecer un intercambio verbal con otro participante solo queda habilitada si
se produce un “crash”, esto es, si se desencadenan una coincidencia de “likes”
recíprocos.

En Grindr, la modalidad de búsqueda difiere de Tinder puesto que los perfiles ya


no aparecen en un catálogo con opciones sucesivas sino en un menú que exhibe
las fotos de perfil (o la ausencia de foto) de los participantes de manera
simultánea y copresente desde un primer momento en la misma pantalla y sin
restricciones de acceso al intercambio verbal. En otras palabras, cada usuario
puede hacer un intento de contacto con cualquier candidato disponible sin
mediación alguna.

Tal como puede notarse, Tinder funciona como una plataforma mediadora en la
medida en que trabaja como una agencia de citas que facilita contactos a través
de la semiotización de la coincidencia entre los participantes (la aplicación “te
hace gancho” con alguien). En este sentido, y por medio de este tipo de
operatoria de acceso al vínculo, Tinder construye la estructura del contacto
apelando a cierto imaginario romántico que opera como marco.

Grindr, en cambio, funciona como una plataforma facilitadora en tanto que


articula la posibilidad de un contacto sin establecer ningún tipo de filtro.
Mediante esta lógica del contacto, no se juega la coincidencia ni una
representación imaginaria de un interés recíproco previo. Más bien, esta lógica
apela a la posibilidad de contactos sexuales o eróticos inmediatos sin ningún otro
tipo de pretensión.

Si bien se puede acceder a ambas redes de manera gratuita, cada una de ellas
ofrece ciertas funcionalidades específicas que deben pagarse con tarjeta de
crédito (de manera optativa) y que permiten explotar y diversificar aún más el
mercado de dones que estas aplicaciones configuran. Esto ocurre, por ejemplo, si
el usuario desea suspender el geolocalizador y contactarse con personas de otros
lugares, o bien si desea conocer sus estadísticas (cuantos likes recibió en
determinados plazos de tiempo) o bien si desea tener contar con más recursos
para interactuar con los perfiles (“super likes” o “deshacer la acción”), entre
otras alternativas disponibles.

En cuanto a las propiedades discursivas generales que pueden atribuirse a los


discursos de perfil o autopresentación de los usuarios, es posible advertir en este
tipo de textualidad algunos rasgos que se asemejan al papel semiótico que
desempeñan las tapas de medios gráficos (TRAVERSA, 2009) pero con
inflexiones específicas. Y es que no se trata de la presentación de un producto
masivo que tendrá una cierta identidad en el tiempo y una cierta constancia en el
espacio sino de la presentación de un actor social individual que se ofrece al
mercado de dones por un lapso de tiempo que puede ir desde una instancia de
conexión efímera hasta un intervalo de permanencia en la red, en principio
indeterminado.

Al igual que lo que ocurre con las tapas de las revistas, el discurso
autopresentativo de perfil se constituye como la primera instancia discursiva en
la que se juega el contacto entre producción y reconocimiento. En este sentido,
cada perfil individual propone un contrato de lectura vincular (con amplitudes
temporales totalmente variables) que se apoya en la mostración de los propios
dones del participante tanto como en los requisitos que se imponen a los otros a
modo de condición para acceder al intercambio verbal. Ahora bien, la lógica en
reconocimiento de este tipo de contrato de lectura difiere del que configuran los
medios masivos puesto que la concreción del vínculo entre el yo y un tú
específico dependerá de una reciprocidad de contratos de lectura. En otras
palabras, al tiempo que el yo es leído por el tú, ese tú es leído por un yo. Solo se
hará posible la extensión del contacto en la medida en que se desencadene una
afinidad en las posiciones de lectura recíprocas.

Una segunda propiedad que caracteriza a estos discursos es su performatividad.


En efecto, los discursos de perfil o presentación que funcionan como promesas
autentificantes de aquello que luego podrá ser tomado por “mentira” en caso de
que los hechos contradigan lo preanunciado (TRAVERSA, 2009).
Probablemente, y a diferencia de otras formas de presentación ya conocidas, los
discursos de los perfiles segmentan a ese tú general que aparece como el
inevitable destinatario a partir de límites o restricciones que se construyen en
torno a ciertas representaciones que se tiene de algunos subconjuntos de
destinatarios particulares (no casados, no tramposos, etc.).

Una última particularidad de los discursos presentativos en estas aplicaciones es


su carácter transitorio y efímero. El actor social individual decide en qué
momento modificar su perfil, nombre o descripción sin necesidad de defender
una identidad en la larga duración, como sí ocurre, por ejemplo, en el mercado
de los medios gráficos. La tapa o presentación es en esos casos el enlace que
permite la identificación del medio en el tiempo. En el caso de Tinder y Grindr,
el contrato de lectura tiene como vida útil mínima el tiempo de conexión.
Como adelantamos en la introducción, el análisis que se propone en la siguiente
sección intenta generar hipótesis sobre cómo se relacionan ciertas modalidades
de circulación discursiva activadas por estos dispositivos con la formación de
estructuras témporo-espaciales o cronotópicas, constituyentes de los vínculos
que quedan posibilitados en estos entornos. En este sentido, si bien reconocemos
la existencia de trabajos que ya comienzan a investigar el uso social de estas
aplicaciones desde perspectivas culturales, psicológicas, o de crítica social, no
encontramos antecedentes que hagan foco en un análisis de las lógicas
circulatorias propiamente dichas ni en su relación con la configuración de
colectivos discursivos.

Entre los trabajos que se destacan desde enfoques que no se corresponden con el
quese adoptará aquí, Lik Sam Chan (2016) o Ellison, Hancock y Toma (2012)
desarrollan investigaciones que abordan la problemática respecto de qué tipo de
uso le dan los actores sociales a estas aplicaciones y de cómo intervienen los
factores culturales en la presentación del yo. Lik Sam Chan (2016), por caso,
desarrolla un análisis intercultural por medio de entrevistas en profundidad y
compara el uso que se hace de las fotografías y de los estilos de comunicación en
el discurso de presentación de participantes homosexuales masculinos chinos y
estadounidenses en una aplicación para encuentros gay. Desde otra perspectiva,
Grosskopf, LeVasseur y Glaser (2014) realizan una investigación que se interesa
en la percepción del riesgo de enfermedades de transmisión sexual que tienen los
usuarios al hacer uso de estas redes y por la incidencia que tiene el ser usuario de
estas aplicaciones en la construcción de la identidad sociocultural de una
minoría.

Otro de los ángulos a través de los cuales se suele abordar el funcionamiento de


estas aplicaciones y que goza de gran popularidad es la cuestión de la
manipulación del texto y de las fotografías en la construcción de perfiles falsos o
fingidos (ELLISON; HANCOCK; TOMA, 2012). Por lo general, el foco de
estos trabajos reside en desarrollar un abordaje psicológico y moral de los
comportamientos sociales que surgen por la instalación social de nuevas
tecnologías vinculares.

En cuanto a los trabajos que proceden de la sociología crítica, las investigaciones


no suelen proponer descripciones semióticas puntuales sino que plantean
interpretaciones del fenómeno discursivo global a partir de establecer vínculos
ideológicos entre las modalidades de exhibición del yo y la lógica de la
“sociedad consumista del espectáculo”. Este tipo de aproximaciones suele
mostrar cierta pretensión de denunciar críticamente los procedimientos a través
de los cuales estas aplicaciones contribuirían a la construcción de la imagen de
un sujeto prefabricado, auto centrado y solitario bajo la apariencia del contacto
permanente con los otros (Baym, 2010; Hirigoyen, 2013). El problema de estos
enfoques es que, al no tratar en detalle las lógicas circulatorias del sentido,
llegan a conclusiones ideologizantes sobre el sujeto y el mercado que diluyen el
interés por las pequeñas diferencias configuracionales. Al eludir ese tópico,
muchas de las observaciones generales que realizan estos trabajos entran en
contradicción con los efectos vinculares concretos que surgen del
funcionamiento semiótico específico de los dispositivos analizados.

2.1. Una hipótesis interna y tres categorías de análisis centrales

La hipótesis interna central que guía nuestro trabajo consiste en que la


construcción de los vínculos erótico afectivos entre sujetos sexualizados son
posibles en el marco de dispositivos específicos de producción de sentido. En
otras palabras, un sujeto queda sexualizado y mostrado como dotado de dones
para el contacto íntimo con el otro a partir de su inscripción o emplazamiento en
una configuración discursiva (i.e., el celular, la cita a ciegas, la discoteca, la cita
furtiva). Quién es quién frente al otro dependerá entonces de las posibilidades de
semiotización que quedan habilitadas por el propio funcionamiento de los
dispositivos discursivos, esto es, por el funcionamiento de sus lógicas
circulatorias del sentido. En esas instancias de semiotización se proyecta el
cuerpo, los dones, la identidad del yo en la larga duración e incluso las
modalidades de búsqueda del otro de formas específicas que se estructuran en
base a un conjunto de articulaciones cronotópicas configuradas por el
dispositivo.

Respecto de las categorías de análisis para dar cuenta del fenómeno discursivo
que nos ocupa, nos apoyaremos las siguientes tres nociones fundamentales:
circulación, dispositivo y cronotopo (o más específicamente articulación
cronotópica). En primer lugar, comprendemos el fenómeno de la circulación
discursiva tal como lo define la teoría de los discursos sociales (VERÓN, 1998),
esto es, como un desfasaje o conjunto de diferencias entre las instancias de
producción y de reconocimiento. La categoría de circulación es siempre de tipo
abductivo en la medida en que solo se llena por medio de hipótesis realizadas
por el observador respecto de las diferencias que estarían operando entre dos
conjuntos discursivos dados. Podríamos decir más llanamente que la circulación
es una especie de agujero negro por el cual el pasaje de sentido es producto de
una diferencia entre gramáticas. En otras palabras, es el efecto de acople de la
diferencia: de algo que estaba surge algo que no estaba.

En este marco, asumimos aquí la noción de dispositivo tal como se la define en


la Teoría de los Discursos Sociales, esto es, como una configuración relacional
específica entre reglas constructivas (i.e, facultades del cuerpo puestas en obra
para producir signos) y reglas sociales (i.e., aquellas condiciones vinculares
relacionadas con las modalidades de instalación social de los discursos, es decir,
reglas relacionadas con la circulación social del sentido) (TRAVERSA, 2009).
Desde un punto de vista analítico, la categoría de dispositivo resulta fundamental
puesto que permite categorizar y describir las cualidades específicas de los
vínculos que se configuran entre producción y reconocimiento tanto como los
procedimientos a través de los cuales se pueden articular distintos tipos de
desfasajes entre una y otra instancia de la semiosis (TRAVERSA, 2014).

En particular para este trabajo nos interesa indagar de qué modo el dispositivo de
circulación estructura de manera novedosa y en distintos niveles de
funcionamiento la dimensión témporo-espacial (o cronotópica) de los vínculos
erótico-afectivos que se desencadenan. Por último solo queda presentar la noción
de cronotopo, categoría estructurante de la clasificación propuesta en el análisis
que sigue. Para ello, nos apoyamos en la definición clásica de Bajtin:

Conexión esencial de relaciones temporales y espaciales asimiladas


artísticamente en la literatura. Este término se utiliza en las ciencias matemáticas
y ha sido introducido y fundamentado a través de la teoría de la relatividad de
Einstein. A nosotros no nos interesa el sentido especial que tiene el término en la
teoría de la relatividad; lo vamos a trasladar (...) a la teoría de la literatura, casi
como una metáfora (casi, pero no del todo); es importante para nosotros el hecho
de que expresa el carácter indisoluble del espacio y el tiempo (el tiempo como la
cuarta dimensión del espacio) (…) En el cronotopo artístico literario tiene lugar
la unión de los elementos espaciales y temporales en un todo inteligible y
concreto.// El tiempo se condensa aquí, se comprime, se convierte en visible
desde el punto de vista artístico; y el espacio, a su vez, se intensifica, penetra en
el movimiento del tiempo, del argumento, de la historia. Los elementos del
tiempo se revelan en el espacio, y el espacio es entendido y medido a través del
tiempo. (1989, p. 2)

Esta categoría resulta fundamental para nosotros puesto que, según lo


intentaremos mostrar, los distintos cronotopos que configuran los dispositivos
analizados funcionan como huellas específicas de distintos tipos de desfasajes
entre producción y reconocimiento. Ahora bien, de aquí en adelante dejaremos
de hablar de cronotopo para hablar de articulaciones cronotópicas en tanto nos
interesa recuperar el carácter relacional y dinámico de estas configuraciones
témporo-espaciales, estructurantes de los vínculos producidos.

3. Articulaciones cronotópicas como huellas del desfasaje entre producción y


reconocimiento

3.1 Cronotopía deíctica

Como adelantamos, tanto Tinder como Grindr, considerados como dispositivos


relacionales, configuran la posibilidad de vinculación entre un ego y un alter a
partir de una lógica de geolocalización que aplica un criterio de proximidad
espacial entre los cuerpos dispuestos al contacto. El propio discurso de perfil de
los participantes contiene índices estandarizados por la aplicación para que aquel
que se conecta pueda saber no solo a qué distancia deíctica se encuentran los
potenciales contactos (la distancia que los distintos alter presentan en relación
con el ego) sino también su estatus de conexión (conectado o no conectado). La
indicación de la distancia entre ego y alter aparece debajo de los “nick names”
que cada usuario utiliza para darse una identidad, por ejemplo:

1. Calentown 39

Conectado hace 10 minutos a 4379 pies

2. 28

Conectado a 1 milla

Tal como puede advertirse, el topos o principio argumentativo habilitado por la


configuración deíctico-espacial que configuran estos dispositivos, y que
funciona como el fundamento semántico en el que se basa el cálculo de contacto
entre los participantes, manifiesta una relación indisociable entre el espacio y el
tiempo, es decir una cronotopía. En otras palabras, cercanía y potencial
inmediatez para el contacto cara a cara se articulan a partir de una argumentación
que produce una lectura temporal sobre la relación espacial. Este topos asociado
a las prácticas del sexo express –la cercanía como factor que motiva el encuentro
inmediato– deja huellas permanentes en el discurso de los usuarios, tal como
ocurre en (3):
3. HOY PUEDE SER

Con lugar y por Barracas. Quiero pasivo o versátil para ahora, sin vueltas!!!

Ahora bien, tal como puede suponerse, este topos puede quedar explotado a
partir de distinto tipo de inflexiones de sentido en reconocimiento, habilitando
una variedad de posicionamientos subjetivos (colectivos) frente a la instancia de
encuentro. En efecto, no solo pueden desencadenarse distintas lógicas que lo
aplican en forma conclusiva (cercanía por lo tanto inmediatez potencial) sino
también de manera transgresiva (cercanía sin embargo no inmediatez de
contacto). En cuanto a las modalidades de reconocimiento que explotan el topos
de manera conclusiva (cerca por lo tanto encuentro YA), identificamos tres tipos
de lógicas diferenciadas a partir de la detección de huellas en el plano de la
textualidad y de la observación no sistemática y no participante de grupos de
adolescentes que utilizan estas aplicaciones: la errancia, la itinerancia y la
pertenencia al barrio.

La lógica de la errancia por el espacio urbano recupera prácticas sociales


históricas que se relacionan con una modalidad particular de instalación del
cuerpo en el espacio urbano: el devenir por distintos lugares de la ciudad a la
cacería de potenciales candidatas/os para tener relaciones sexuales. Lo particular
de esta lógica en relación a los dispositivos analizados es que la errancia está
articulada con la posibilidad de detectar contactos en las inmediaciones, que se
actualizan y se renuevan de acuerdo con la posición espacial del usuario que se
conecta. Así, por ejemplo, grupos de adolescentes suelen moverse de barrio en
barrio conectados a la aplicación para buscar aquellos partidos que se suponen
“más atractivos”, “más fáciles”, “más chetos”, etc. Algo similar ocurre con los
usuarios solitarios que, ya cansados de ver siempre a los mismos participantes
conectados (quizás porque se conectan recurrentemente desde un mismo punto,
como por ejemplo el hogar), se trasladan a otros barrios para renovar las
posibilidades de vinculación. Huellas de esta lógica en reconocimiento quedan
indicadas, por ejemplo, en discursos como los que aparecen en (4) o (5).

4. WALT

Conectado a 4283 pies

Por zona Norte, Florida, wstp: 153XXXXX

5. Ahora???
Conectado a 425 pies

Sin lugar. No más de 30. No parejas.

En estos casos, y al igual que en la lógica de la itinerancia, el intervalo y la


frecuencia de contacto se presuponen breves. En cuanto a esta segunda lógica, la
itinerancia, se caracteriza por explotar de manera conclusiva el topos del sexo
express pero bajo una modalidad distinta de instalación del cuerpo en el espacio
social. Se trata en estos casos de usuarios que, durante un lapso de tiempo
acotado, realizan algún tipo de estancia en algún pueblo, ciudad o país, que se
reconoce distinto al lugar de pertenencia habitual (el hogar, el barrio, etc.). Se
trata de usuarios, por ejemplo, que viajan por turismo o negocios y encienden la
aplicación a la búsqueda de contactos para tener relaciones íntimas durante el
lapso que dure la estadía, tal como ocurre en (6) o en (7):

6. Andy

Estoy de paso por Buenos Aires. Escribime y vemos.

7. VIENDO

Extranjero. Tranqui. Buena onda.

En este sentido, lejos de producir la ilusión de un sujeto asilado y cada vez más
solitario, tal como afirman las perspectivas afiliadas a cierta sociología crítica
(HIRIGOYEN, 2013), las aplicaciones crean la posibilidad de un contacto
permanente en cualquier lugar, hora o situación. Y esto no es una mera ilusión.
Las posibilidades de vinculación son concretas, empíricas y reales.

En cuanto a la tercera lógica en reconocimiento que identificamos y que explota


la cercanía como factor para el contacto inmediato se encuentra la pertenencia al
barrio (i.e., “somos vecinitos!, qué bueno!). En estos casos, el intervalo de
contacto se presupone ciertamente frecuente en la medida en que los usuarios se
conectan siempre desde el mismo lugar (por lo general, la casa o el trabajo) y,
por ello, suelen tener en pantalla a otros participantes que aparecen de manera
recurrente y asidua por pertenecer al mismo barrio. El ejemplo (8) constituye
una huella de la existencia de esta lógica:

8. Leo. ZN. 38
Vicente López. De regreso al barrio.

Entre varones. #friends #sex #drinks #buenos aires

Sin dudas, estas y otras lógicas posibles de ser descriptas muestran inflexiones
de sentido sobre la base del mismo sustrato semántico-argumentativo. De todas
modos, los posicionamientos subjetivos en reconocimiento no se restringen a
una aplicación normativa del topos mencionado. Existen también
posicionamientos transgresivos que, si bien se apoyan o conceden la idea de que
la cercanía es factor para el encuentro rápido, se constituyen en oposición al
discurso resultativo que surge de la aplicación de ese principio. Tal es lo que
ocurre en (9) o (10):

9. Susana 37

A 8 km de distancia

Separada con dos hijos. Busco algo serio, un compañero, conocernos y ver qué
pasa.

10. Emi. Medellín. 26.

Medellín. Colombia. Busco algo serio. Soy re buena onda. Espero tener suerte
por aquí, jejeje. Quién se anima? No sexo express.

En todos estos casos, la inflexión de sentido en reconocimiento puede expresarse


a través de un encandenamiento argumentativo del tipo: Cercanía sin embargo
no sexo express.

3.2. Cronotopía autobiográfica

Los dispositivos bajo análisis configuran un segundo nivel de articulación


cronotópica que denominamos “cronotopía autobiográfica”. Este tipo de
articulación ya no relaciona un espacio y tiempo deícticos sino que se
corresponde con la inscripción del yo y de sus dones en un estilo de vida de larga
duración. En otras palabras, el discurso de perfil de los actores brinda una
representación del yo a partir de situarlo en cronotopías específicas de la vida
social.

Debe señalarse aquí, sin embargo, que ambas aplicaciones (Tinder y Grindr)
difieren en el modo en que emplazan a los actores dentro del espacio-tiempo
social. Tinder, por ejemplo, construye la figura de un “yo oficial” en tanto
recupera información de Facebook y define el perfil del usuario a partir de
calificadores que inscriben al yo en espacios institucionales reconocibles o bien
lo asocian a ciertos oficios o tareas. Esta inscripción del yo en el espacio social
reconocible está dotada de performatividad dado que opera como la proyección
metonímica de una promesa de continuidad del Yo más allá de los límites de la
aplicación. Esto puede verse con claridad en (11), (12) y (13):

11. Pam 26

Cajera en día Supermercado

12. Cristian 36

Becario post doc en CONICET

Farmacéutico

13. Powen 26

Masajes y dietética

Este anclaje del sujeto en cierto espacio-tiempo de la vida social (tiempo-espacio


de trabajo, por ejemplo) se complementa con la cronotopía corporal que surge de
la imagen que encabeza el discurso verbal de perfil. Allí pueden verse distintas
variantes cronotópicas que inscriben y muestran al cuerpo en el tiempo-espacio
de las vacaciones y del ocio, en el espacio-tiempo del deporte, en el espacio-
tiempo de la intimidad romántica, en el espacio-tiempo del sexo sin tapujos, en
el espacio-tiempo del trabajo, en el espacio-tiempo del estudio, etc.

En Grindr, la cronotopía autobiográfica difiere de la otra aplicación puesto que


los perfiles se construyen en oposición a las identidades oficiales de la vida
social que se da por fuera de la aplicación. Por esta razón, la aplicación no
retoma información de otras redes, como sí ocurre con Tinder. Y es que Grindr
se sintoniza con un cierto estilo particular de llevar a cabo prácticas sexuales en
la comunidad gay a través del cual el sexo con otros se practica sin
intermediación del cortejo ni de las presentaciones demasiado extensas, tal como
ocurre en los llamados “cruising bars”, “saunas” o “túneles negros” en
discotecas. Este tipo de práctica de la sexualidad, además de estar asociado a un
cierto comportamiento promiscuo habilita otro tipo de subjetividades como “el
estar de trampa” o simplemente “tapado” (i.e., aquellos que no revelan
oficinalmente su homosexualidad en sociedad sino que la practican de manera
oculta).

Este imaginario aparece de algún modo retomado en la semiosis que activan los
discursos en Grindr en la medida en que el yo jamás se define en función de la
pertenencia a un espacio institucional reconocible, un trabajo o formación
académica. Esto se evidencia no solo en la elipsis de calificadores institucionales
sino también en los parámetros estandarizados que la misma aplicación dispone
para que el actor se define de manera optativa, a saber: complexión física, origen
étnico, rol frente al sexo, estado de VIH, tribu gay (osos, leather, etc.). Por otra
parte, los textos autobiográficos que aparecen en Grindr suelen estar
exclusivamente enfocados en los dones sexuales del participante o en sus
intenciones de tener determinado tipo de relaciones sexuales. En otras palabras,
el tiempo-espacio que semiotizan los discursos de perfil es el tiempo-espacio de
la sexualidad cruda y explícita, como se observa en (14) y (15)

14. Bora 25!

Versátil. Ativo. Procurando Passivos, ativos y versáteis para sexo. Vamos nessa?

15. Observando 27.

Afim de curtir sem muito compromisso. Soy discreto e quero tudo no sigilo, blz?

Incluso la cronotopía corporal que acompaña estas descripciones suele exhibir


cuerpos en espacios íntimos, con torsos semidesnudos o participantes en ropa
interior. La cronotopía corporal es por cierto reveladora en la medida en que
prefigura al cuerpo también como un espacio a ser recorrido, tocado, habitado.

3.3. Cronotopía transvincular

Un tercer nivel de articulación espacio-temporal es lo que aquí denominamos


“cronotopía transvincular” y que configura una proyección del vínculo al
espacio-tiempo transmediático. Tinder, por ejemplo, dispone en el mismo perfil
del participante la cantidad de fotos que tiene en Instagram (con la respectiva
posibilidad de acceso siempre que el participante deje habilitada esa opción) y
sus afinidades musicales en Spotify, dentro de las cuales se destaca “el himno del
participante” con el respectivo link de acceso a la aplicación musical. Al mismo
tiempo, esta aplicación habilita la posibilidad de “recomendar a un amigo” un
determinado perfil, operación que muestra un desplazamiento vincular hacia otro
espacio y tiempo que no es el del propio participante sino el de aquel a quien se
ha hecho la recomendación.

La posibilidad de apertura al espacio transmediático puede explotarse en


reconocimiento en una temporalidad simultánea a la consulta de perfiles o bien
en un tiempo posterior. En cualquier caso, la incorporación de esta cronotopía al
dispositivo de contacto activa en reconocimiento distinto tipo de operaciones
tales como la constatación de la verosimilitud del perfil, la ampliación de
información sobre el estilo de vida de los participantes, los gustos, los rasgos
corporales y las amistades de los potenciales candidatos/as.

Sin dudas, la articulación del dispositivo Tinder a otros espacios de la red


muestra una reconversión de ciertas normas de socialidad tradicionales al
transformar los criterios de legitimación de la identidad individual. Ya no se
trataría entonces de lo que “me cuente un amigo” en relación con un potencial
candidato, o de proponer una “cita para conocernos” sino más bien de la
investigación (i.e. stalking) y la constatación de ciertos aspectos relativos al otro
que se recogen en el tránsito por las distintas redes a través de una modalidad en
reconocimiento que opera bajo el formato de sujeto “espía”, en términos de
Goffman (1981). En otras palabras, son precisamente las operatorias de lectura-
espía que se desencadenan en el tránsito por el espacio transmediático las que
permitirían reconstruir de manera complementaria a los discursos de perfil una
identidad legítima y aceptable del otro en vías a un potencial contacto.

Grindr, por su parte, aísla a los participantes de cualquier vínculo con otros
espacios de la red, precisamente porque no explota el contacto entre ellos a partir
de rasgos propios de las identidades oficialmente construidas. En este caso, el
dispositivo establece un espacio de contacto cerrado, en ruptura con otros
espacios y tiempos socialmente reconocibles. Por ello, al no nutrirse de la
inscripción del yo en otros espacios semióticos de la vida cotidiana, el
dispositivo Grindr no activa un sistema de normas de legitimación de los perfiles
por efecto de una lectura transmediática.

3.4. Cronotopía de la veda

Por último, solo nos queda presentar una última articulación del nivel espacio-
temporal del vínculo que construyen los dispositivos analizados. Nos referimos a
las restricciones que ejerce el dispositivo en las modalidades de acceso al
espacio-tiempo vincular y que constituyen, sin dudas, una transformación
novedosa en la historia de las vinculaciones sociales amorosas.

Existen dos modalidades de veda a la participación de los usuarios: una de


carácter institucional y otra de tipo individual. La primera opera bajo una lógica
de denuncia que activa un mecanismo de vigilancia entre los participantes. Ante
la eventual circulación de fotos inapropiadas, falsificación de perfiles,
intervenciones agresivas o vejatorias, los usuarios puedan denunciar a todos
aquellos que se consideren sospechosos o abusivos. La aplicación en estos casos
es la responsable de tomar la decisión de dar de baja o no al participante
denunciado. Si este es el caso, el participante es desalojado del espacio de la
aplicación.

Por su parte, la modalidad de veda individual por ghosting resulta ciertamente


llamativa dado que con la sola voluntad de uno de los participantes, este puede
bloquear a otro usuario con el que haya tenido o no contacto y borrar todo la
historia de conversaciones en común. En efecto, no forma parte de un acuerdo
entre los participantes del vínculo que se expire la historia conversacional de
ambos sino de la voluntad de uno de los dos participantes. Lisa y llanamente, al
bloquear a otro, a ese también le desaparecen todas las conversaciones que
mantuvo con aquel que lo bloqueó (i.e., esto es lo que se denomina ghosting
propiamente dicho).

Sin dudas, esta modalidad de veda no solo dota de inexistencia al otro frente al
yo (i.e., literalmente el otro queda borrado para siempre del panel de contactos
del yo) sino que al producir una extinción de los intercambios conversacionales,
elimina la historia común y con ello al tiempo mismo. No se trata entonces de
relaciones que mantienen un vínculo efímero en relación con su duración en el
tiempo sino que es el tiempo en sí lo que aparece borrado. Este rasgo nunca
antes visto en la historia de los vínculos amorosos le otorga a los lazos erótico-
afectivos que construyen estos dispositivos un carácter mucho frágil, endeble y
menos comprometido. Por las cualidades vinculares que activa el dispositivo, el
participante no debe hacerse cargo de ninguna responsabilidad frente al otro.
Simplemente lo extingue y la vida sigue como si nada hubiese ocurrido.

4. Consideraciones finales sobre las transformaciones en la circulación


discursiva y su incidencia en la construcción de los lazos erótico-afectivos
A lo largo de este trabajo hemos intentado dar cuenta de ciertos
condicionamientos estructurantes que ejercen los dispositivos analizados sobre la
semiotización de la dimensión cronotópica de los vínculos erótico-afectivos que
potencialmente pueden desenvolverse en Tinder y Grindr. Asimismo, hemos
intentado dar cuenta de cómo estas articulaciones cronotópicas se constituyen
como como huellas del desfasaje entre instancias de producción y
reconocimiento puesto que, a partir de ellas, se hacen posibles distintas
inflexiones subjetivas que permiten postular la existencia de distintas lógicas en
reconocimiento.

A partir del análisis realizado nos proponemos en esta última sección señalar de
manera sintética un conjunto de transformaciones que introducen estos
dispositivos en las modalidades de circulación discursiva para con ello intentar
hipótesis acerca de su incidencia en la construcción de lazos sociales. Cuando se
habla aquí de transformaciones, no estamos poniendo el foco en un contraste
entre un antes definitivo y un después único, sino más bien en cómo ciertas
formas novedosas de mediatización del yo ponen en evidencia distintos procesos
de circulación combinados, imbricados, a través del cuales pueden irrumpir
distintas modalidades de producción de sujetos sexualizados, esto es de
colectivos frente a la instancia de encuentro íntimo. Asumimos entonces la
circulación como un funcionamiento semiótico (ni físico ni meramente
mecánico) específico del sentido y que se produce por una operación de flechado
hacia el pasado, por medio de la recuperación de lógicas previas, y de flechado
hacia el futuro, a través del rebautismo y la inauguración de nuevas trayectorias
inusitadas.

Entre las tranformaciones que identificamos señalamos las siguientes:

a. Un desplazamiento del discurso presentativo de lo público a lo privado. Tal


como hemos podido advertir, la lógica de presentación del Ego a través de un
contrato de lectura dentro de un mercado de valores en competencia recupera
una modalidad de exhibición propia de una lógica previa asociada a los medios
gráficos. De todos modos, al tratarse de un proceso inflexionado, no estamos
ante un merco calco de esa semiosis previa sino que, como hemos revelado en
este trabajo, los discursos de perfil tienen propiedades particulares, por caso, la
reciprocidad en la aceptación de contratos de lectura cruzados para que se
inaugure el contacto.

b. La posibilidad de construir perfiles relativos al yo sexualizado en diferentes


dispositivos que semiotizan distintos nichos del mercado de dones. Tal como
analizamos, tanto una aplicación como la otra construyen distintos nichos en el
mercado de los cortejos aspecto que resulta revelador en varios sentidos. No solo
porque el cortejo y la seducción se encuentran de algún modo socializados bajo
una lógica mercadotécnica (i.e., el yo se ofrece atractivamente en góndola para
ser deseado y elegido) sino además porque esta lógica mercantil activa la
posibilidad de que un mismo actor social individual pueda construir distintos
tipos de yo frente al encuentro sexual (el yo que busca una relación estable
versus el yo que busca sexo express).

c. Transformación en la semiotización del cálculo de contacto producto de la


modalidad de circulación. En la medida en que las posibilidades de contacto
están activadas en todo espacio y a toda hora con una infinidad de participantes,
las expectativas que surgen del cálculo de contacto frente al potencial encuentro
se tornan mucho más lábiles, menos comprometidas y endebles. En otras
palabras, estas nuevas modalidades de circulación atenúan las modalidades de
fracaso y tornan más descartables los vínculos potenciales.

d. Mutación en el control de la existencia del vínculo. Hemos advertido también


que las cronotopías de la veda muestran una transformación en el modo en que
los usuarios pueden controlar la existencia de los vínculos que generan. El
ghosting, como vimos, da la posibilidad a que en cualquier momento un cierto
tipo de historia vincular quede dotada de inexistencia por efecto de una decisión
unilateral.

e. Incorporación de lógicas propias del discurso publicitario a la esfera de los


actores sociales individuales. Si bien este es un punto que no ha sido analizado
en este trabajo, resulta interesante destacar que los procedimientos de
construcción de valor del Ego se da, en general, partir de lógicas típicas del
discurso publicitario por medio de los mecanismos de denegación de discursos
estereotipados (no casados, no tríos, no parejas, no menores de 23)4. Al tratarse
de discursos que identifican al yo al tiempo que requieren dones específicos de
los otros, la denegación resulta una estrategia fundamental.

f. Nuevas articulaciones entre lógicas de instalación del cuerpo en el espacio


social y lógicas de contacto establecidas por estos dispositivos. Tal como hemos
podido ver, el funcionamiento circulatorio de estos dispositivos se articula con
distintas lógicas de comportamiento social que deben ser profundizadas a través
de futuras exploraciones, a saber: la errancia, la itinerancia y la pertenencia al
barrio.

5. Referencias

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VERÓN, Eliseo. La semiosis social, Barcelona: Gedisa, 1998.

1 CONICET – Universidad de Buenos Aires.

2 Tinder es una aplicación geosocial que propicia citas entre personas. Creada en
2012 por Sean Rad, Justin Mateen, Jonathan Badeen, Joe Munoz, Dinesh
Moorjani y Whitney Wolfe, Tinder es considerada una de las aplicaciones para
citas de mayor penetración en el mercado mundial: cuenta con 50 millones de
usuarios y se encuentra disponible en 24 idiomas. Argentina, por su parte, cuenta
con 2.5 millones de usuarios y es el segundo país de Latinoamérica con más
cantidad de usuarios detrás de Brasil, uno de los mayores mercados de Tinder,
junto a Estados Unidos, Inglaterra, Francia y Canadá.

3 Grindr es una aplicación destinada a encuentros o citas exclusivamente entre


hombres. Esta aplicación fue Creada por Joel Simkhai y se lanzó al mercado el
25 de marzo de 2009 con un éxito ascendente. Con presencia en 70 países, a tres
meses de su lanzamiento alcanzó los 100.000 usuarios. Según Wikipedia, “en
septiembre de 2010 Estados Unidos era el país que albergaba al mayor número
de usuarios de Grindr, con unos 500.000, mientras que Londres encabezaba la
lista de ciudades con 62.000 usuarios” (https://es.wikipedia.org/wiki/Grindr).
Desde su lanzamiento en 2009, Grindr cuenta con 2 millones de usuarios diarios
en 196 países.

4 En el discurso publicitario es habitual encontrar estos mecanismos


denegativos, por ejemplo, en avisos de detergentes o productos de limpieza (no
abrasivo, no daña las manos, etc.).
O filme Um perfil para dois e sua circulação discursiva em uma sociedade
tecnológica

• Sérgio Dayrell Porto e Célia Ladeira Mota1

1. Palavras iniciais

Partindo da concepção hermenêutica de Heidegger, quando propõe a


compreensão interpretativa como o caminho de análise de um determinado
objeto, adotamos nesta apresentação uma postura investigativa no sentido de
olhar para “a coisa mesma”, no caso, a coisa mesma do filme Um perfil para
dois. Como afirma Heidegger, “compreender a “coisa” que surge diante de nós
não é senão elaborar um primeiro projeto que se vai corrigindo à medida que se
avança na sua decifração” (GADAMER, 1998, p. 61). Esta postura
compreensiva, conhecida como “hermenêutica da facticidade”, nos permite
caminhar desvendando a “coisa” que nos desafia, ou seja, encontrar as
diferenças e nuances situacionais, por exemplo, entre a realidade e o mundo
virtual na análise do filme Um perfil para dois, de Stéphan Robelin, que conta a
história de um homem de idade e sua busca pela felicidade, o que acaba
acontecendo a partir do momento em que ele é iniciado em informática.

A pesquisa usa também a Análise da Narrativa, tendo como foco os significados


virtuais construídos pelo filme, num dos momentos da “Hermenêutica de
Profundidade”, proposta de John B. Thompson interpretando Paul Ricoeur
(THOMPSON, 1999, p. 365). Como nos diz Gadamer em “O problema da
consciência histórica”: “é essa oscilação perpétua de perspectivas interpretativas
(visées interprétatives) que Heidegger nos descreve, ou seja, a compreensão
como processo de formação de um novo projeto”.

Trata-se de um empreendimento audacioso que busca ser recompensado por uma


confirmação do próprio objeto. O que aqui qualificamos de objetividade não
seria outra coisa senão a confirmação de uma antecipação no curso mesmo de
sua elaboração (...). Toda interpretação de um texto deve, pois, começar por uma
reflexão do intérprete sobre as ideias preconcebidas que resultam da “situação
hermenêutica” em que ele se encontra. Ele deve legitimá-las, isto é, investigar a
sua origem e o seu valor. (GADAMER, 1998, p. 61-62)

2. O mundo real
Começamos a caminhada com os pés no chão. Um chão muito conhecido nosso,
o da realidade que nos cerca. Duarte Júnior afirma que “o real é o terreno firme
que pisamos no nosso cotidiano” (1994, p. 28). Antes do surgimento da internet,
a realidade surgiu como o único chão que levou a humanidade a evoluir em
conhecimento, em tecnologia. “A vida cotidiana a qual retornamos sempre é a
nossa realidade por excelência, é o mundo estável e ordenado no qual nos
movemos desembaraçadamente” (DUARTE Júnior, 1994, p. 29).

Mas o cotidiano não é um bloco monolítico do qual já conhecemos todas as


coordenadas. Peter Berger e Thomas Luckmann, autores do livro A construção
social da realidade, afirmam que o que é real para um monge tibetano pode não
ser real para um homem de negócios americano. Mesmo a realidade física, tão
ao nosso alcance, pode ser uma realidade diferente para cada um de nós.
Compreendemos o mundo que nos cerca de maneiras diversas, conforme a nossa
experiência e a nossa percepção da realidade. A prática de olhar o mundo e
interpretá-lo nos coloca em posições diferentes de acordo com a nossa vivência e
as informações que adquirimos sobre a mesma realidade. Esta não se impõe a
nós, mesmo quando somos um morador de um vilarejo que nos sentimos
perdidos numa cidade cosmopolita. É um exercício de decifrar a nova realidade,
compreender as novas estruturas sociais que se nos apresentam. Como afirma
Duarte Júnior, a realidade não é simplesmente construída, mas socialmente
edificada.

Este é um processo fundamentalmente social: as comunidades humanas


constroem significados e conhecimentos sobre uma dada realidade, distribuindo
tal conhecimento socialmente e, com isso, edificando a realidade. O processo se
fortalece na interação entre os indivíduos, que vão aprendendo fórmulas de
relacionamento. São regras práticas do dia-a-dia que ajudam a caminhar pela
realidade física ou humana. O que fazer em dias de chuva intensa? Como
conseguir ajuda médica? Como edificar uma casa, como preparar o material de
construção? Na medida em que as sociedades se tornam mais complexas, o
conhecimento se torna profissional e diversificado. O homem moderno não
precisa mais decidir sozinho como enfrentar um problema qualquer. Haverá
especialistas à disposição para dar conta do serviço. Assim caminha a nossa
sociedade modernista.

Foi assim que se construíram estruturas sociais diferenciadas, com rotinas


padronizadas às quais nos habituamos ou nos tornamos dependentes. Na medida
em que elas se solidificam, passam a ser percebidas como estando acima dos
homens, com vida própria, soberanas. Este é um processo que os especialistas
chamam de “reificação”, uma palavra originária do latim res, que significa
“coisa”. O desenvolvimento de práticas sociais estruturadas termina por uma
“reificação”, ou institucionalização, uma transformação da prática em coisa.

E estamos assim de volta à Heidegger, olhando para a “coisa mesma”. Uma


“coisa” que se estruturou, tornou-se soberana, impôs regras de conduta que se
tornam legitimadas. Com isso, a própria existência de qualquer estrutura social
torna-se fundamentada, e assim são consideradas pela lógica humana, a partir do
seu modo de funcionamento. A “coisa” sai do terreno físico ou social e se torna
simbólica por meio dos códigos e dos signos que a representam.

3. O lugar do signo

Entender como realidades físicas se tornam simbólicas é compreender a


operação da linguagem na transformação do real. Roland Barthes, nos seus
primeiros estudos sobre a Semiologia, afirmou que “a semantização é inevitável:
a partir do momento em que existe sociedade, qualquer uso é convertido em
signo desse uso”. (BARTHES, 1964, p. 35). Ele lembrou que a sociedade
humana produz objetos estandardizados, normatizados, que são as falas de uma
língua, as substâncias de uma forma significante, em suma, são os significados.
Esta semantização universal dos usos é, portanto, capital: traduz o fato de só
haver real inteligível e que uma vez constituído o signo, a sociedade pode
facilmente falar dele como de um objeto de uso. Para Barthes, a função-signo
tem um valor antropológico.

Nas discussões que se iniciaram sobre o conceito de signo com Saussure, restou
que o significado deve ser compreendido não como “uma coisa”, mas uma
representação da “coisa”. O próprio Saussure considerou o significado como
uma natureza psíquica do signo e deu como exemplo a palavra “boi”: “o
significado não é o animal ‘boi’ mas sua imagem psíquica” (SAUSSURE, 1969,
p. 115). Barthes preferiu uma definição funcional: o significado é um dos dois
componentes do signo. O outro é o significante. É uma operação fundamental
porque seu objetivo é destacar a forma do conteúdo. A língua tenta colar todos
os significantes aos seus significados, mas estes escapolem, seja em
interpretações poéticas, científicas, que nos permitem uma visão polissêmica de
uma determinada palavra, seja no uso pessoal de cada um.

Se os signos não podem ser considerados como a coisa mesma, mas a


representação da coisa e, portanto, saem do plano real para se tornarem visíveis
no plano virtual, como interpretar um conjunto concatenado de signos que
compõem uma narrativa, especialmente uma narrativa fílmica?

Christian Metz, em seus ensaios inaugurais sobre a significação no cinema


(1968), afirma que toda narrativa põe em jogo duas temporalidades: por um lado
a da coisa narrada, por outro, a temporalidade da narração propriamente dita.
Todo filme representa um tempo fictício onde o enredo se desenvolve. Além
disso, o filme pode apresentar o enredo jogando com tempos diversos da vida
dos personagens. Temos ainda o tempo de visibilidade do filme, o momento em
que se assiste à película. No caso do filme em análise, temos outro conceito de
tempo que se torna o pano de fundo da narrativa: como o tempo passou para o
protagonista da história? Em que tempo ele se encontra por volta dos 80 anos? A
temporalidade parece se tornar a “coisa mesma” da nossa investigação.
Buscamos ver como ela é representada no filme tanto em seus aspectos de
representação do real, como sinais de velhice, de perda de vitalidade, quanto em
aspectos de representação de significados emocionais, mentais.

De qualquer modo, a narrativa cinematográfica e seus significados se opõem ao


tempo real, porque acontece no campo da ficção. Opõem-se também ao mundo
real, dos acontecimentos que se sucedem na vida de cada comunidade humana.
Para Metz, toda narrativa se opõe ao mundo real porque ela é um relato de um
ou mais episódios relacionados a acontecimentos, narrados com começo e fim a
partir de personagens e suas ações. Num romance escrito, os protagonistas são
considerados “figuras de papel”, criações de um autor. Num filme, eles são o que
poderíamos chamar de “figuras visuais”, representações de personagens que
corporificam imagens idealizadas pelo criador ou diretor de cinema.

Partindo dos estudos de Narratologia de Tzvetan Todorov (1966), Metz chegou a


uma definição precisa de narrativa fílmica como “um discurso fechado que
“desrealiza” uma sequência temporal de acontecimentos” (1968). Mesmo nos
casos de filmes extraídos de histórias verdadeiras, para o espectador eles não se
confundem com a realidade porque não estão como ela, aqui e agora. Para
explicar como o plano cinematográfico narra e cria significados, Metz considera
prioritário compreender como a imagem significa. No sentido dado por Charles
Sanders Peirce, a imagem funciona como um índice, na medida em que ela
parece ter sido afetada na forma e no sentido do objeto ou personagem
representado. “Um índice é um signo que remete a um objeto que ele denota,
porque ele é realmente afetado por esse objeto, possui necessariamente alguma
qualidade em comum com o objeto” (PEIRCE, 1978, p. 140).

A narração está sempre presente no filme, seja ela oral ou audiovisual. E


podemos considerar uma narração fílmica, em que o diretor impõe pontos de
vista e conduz discursivamente o enredo a partir de personagens secundários ou
sequências fílmicas que dialogam com a narrativa principal. “Na medida em que
o processo fílmico implica certa forma de articulação de diversas operações de
significação (a encenação, o enquadramento, o encadeamento) é possível
elaborar um sistema de narrativa que acena para a importância do que podemos
chamar de processo de discursivização fílmica” (GAUDREAULT, 2009, p. 74).

Trata-se de uma polifonia virtual que inclui imagens e falas narradas de forma a
construir a arquitetura discursiva do filme. Neste sentido, o cinema é um
fenômeno que implica numa multiplicação de informações espaciais. Na
montagem entre primeiros planos e planos sequenciais, o filme libera uma
quantidade indefinida de informações, contextualizadas pelas narrações verbais.
Assim, a ação ganha seu quadro situacional. É um quadro espacial no meio do
qual se desenrola cada um dos eventos que constituem a trama da história.
Gaudreault (2009) lembra que a unidade básica da narrativa cinematográfica é a
imagem, que é um significante eminentemente espacial, ao contrário da maioria
dos veículos narrativos. Assim, o cinema apresenta as ações que fazem a
narrativa e o contexto de ocorrência delas.

O caráter icônico do significante fílmico vai até mesmo impor ao espaço uma
primazia sobre o tempo, conforme asseveram Jost e Gaudreault. O tempo não
começa a existir a não ser quando se opera a passagem entre um fotograma (que
já é espaço) e outro fotograma (que também é espaço). Portanto, a maioria das
narrativas fílmicas se baseia na montagem de um quadro espacial que ajuda a
construir os significados da narração. Por outro lado, o tempo da exibição de um
filme é fixo, o que ajuda a finalizar a narrativa. Deixa-se o cinema e vai-se para
casa com a memória das imagens recebidas ao mesmo tempo em que se reflete
sobre os significados não só das imagens, mas da história contada.

4. Os signos do filme

Seguindo no campo interpretativo, caminhando nas trilhas abertas por


Heidegger, podemos observar que o filme objeto da nossa análise pode ser
considerado como um “pro-jeto”, que é sempre “pré-projeto” do projeto
seguinte, sempre mais avançado, supostamente mais preciso. Em busca da “coisa
em si”, a partir de uma narrativa fílmica e seus significados, o filme Um perfil
para dois, de Stéphane Robelin, coloca no centro da narrativa um jogo de
sentidos sobre o tempo. Existe a representação do tempo real, que é a idade do
protagonista Pierre, vivido pelo ator Pierre Richard, um viúvo, que vive fechado
em casa até que descobre a internet, passando a viver num tempo virtual. Os
acontecimentos transbordam para a vida do personagem, que redescobre a
alegria de viver e de amar. O sentido profundo, que poderíamos chamar de meta-
narrativa do filme, é o que significa o tempo em nossa vida. Um jogo de sentidos
e de signos.

Os signos do tempo começam pelo simbolismo da idade do personagem,


representado como um homem aos seus oitenta anos. Inúmeras imagens fixam
esta etapa de vida, desde a escolha do ator que vai interpretar o personagem
Pierre Richard até seus pequenos gestos, que ocorrem num cenário doméstico,
marcando o espaço social onde o personagem está confinado. Um personagem
novo irrompe na narrativa, um jovem que vai ensinar Pierre a navegar na
internet. A caracterização do jovem, um ator nos seus 26 anos, cuja imagem está
marcada pela mocidade, atua como um signo de um novo tempo, simbolizando
mesmo a vida virtual como um espaço não físico onde é possível viver mais
intensamente. O cenário ainda é a casa, mas a presença do computador marca a
mudança na narrativa.

Como compreender este novo tempo, esta vida que não é a “coisa em si” posto
que virtual? Segundo o dicionário, o mundo virtual é um ambiente imersivo
simulado através de recursos computacionais, destinado a ser habitado e permitir
a interação dos seus usuários através de “avatares”, que são representações
personificadas do usuário dentro do ambiente digital. Este ser “avatar”
representa a identidade online de uma pessoa, designada por uma reprodução
imagética de seu criador, seja ela fiel às suas características físicas ou não, mas a
personalidade de um avatar é essencialmente a de seu criador, já que ele é a
essência que dá vida ao personagem inanimado, o eu virtual.

Na vida do personagem do filme tudo muda. Ele esquece rugas, cansaço, dores
nos joelhos, cabelos brancos. Parte da mágica de possuir um avatar é ter a
liberdade de ser fisicamente como deseja, é não ter que aceitar características
negativas do corpo físico, é ter a aparência que quiser por tempo indeterminado,
além de aumentar o status entre outros usuários online através do acúmulo de
riquezas virtuais, objetos e materiais de alto valor e, na maioria dos casos, sem
limites ou punições como os determinados para a vida real, apesar de cada
ambiente virtual possuir suas próprias regras.

Muitos acreditam na existência de um “mundo virtual” no qual transitamos com


uma liberdade maior do que seria, por oposição, num “mundo real”. A palavra
“virtual”, no entanto, carrega um sentido antes vinculado ao imaginário da nossa
cultura do que à existência propriamente dita. Como o minidicionário Aurélio
explica bem, “virtual” é o que “existe como potência, mas não realmente” ou
“com possibilidade de realizar-se” ou ainda, vinculado ao jargão da informática.

No livro O que é o virtual? Pierre Lévy apresenta como “fácil e enganosa” a


oposição entre real e virtual, defendendo que o virtual, na verdade, se opõe ao
atual, na medida em que tende a atualizar-se, sem chegar, contudo, a uma
concretização efetiva. O autor prossegue sua argumentação, para afirmar que o
virtual se distingue, ainda, do possível, na medida em que este último já estaria
constituído, estando somente em estado latente, pronto a se transformar no real.
Não teria, assim, a criatividade do virtual. Segundo Levy, contrariamente ao
possível, estático e já constituído, “o virtual é como o complexo problemático, o
nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento,
um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a
atualização” (LÉVY, 1996, p. 16).

Esta criatividade do virtual, como afirma Lévy, é o não realizado, mas sonhado,
uma busca do possível que leva o personagem do filme Um perfil para dois a se
aventurar na procura do amor. O virtual ganha, assim, a condição de algo que
fornece a tensão para um recomeço. No entanto, um conceito importante para a
compreensão da virtualidade é considerar o hipertexto como algo
“desterritorializado”, sem um lugar físico. Como esclarece Pierre Levy, quando
uma pessoa, uma coletividade, uma informação se virtualizam, elas se tornam
não presentes, elas se desterritorializam. Este é um conceito que é difícil de ser
representado pela narrativa fílmica. Que signo pode criar um sentido para o que
não é presente?

Para uma narrativa feita por sequências de imagens, como criar uma não-
imagem? Escurecendo a tela? E como transmitir a ideia de não-presença se
existem sites, blogs, lugares virtuais onde a pessoa passa a existir? Sempre resta
o texto, como uma prova de que por ali passou alguém. Este rastro textual vai
criar novos sentidos, vai gerar uma permanência no campo virtual. Com isso, o
signo sobrevive. Desterritorializado, sem representação física, mas produzindo
sentidos.
Seria também importante situar e condicionar o cinema, e este filme em
particular Um perfil para dois, mais do que um signo, um ícone, uma imagem de
uma situação de um homem idoso que vê sua vida prolongada virtualmente por
ação do computador, mas também como a prática de uma forma simbólica de
nossa atualidade virtual, já que para Thompson, “as formas simbólicas estão
sempre inseridas em processos e contextos socio-históricos específicos dentro
dos quais e por meio dos quais elas são produzidas, transmitidas e recebidas”.
(1999, p. 192). Fazendo parte do “festival Varilux do cinema francês” produzido
pela Paris Filmes em 2017, trata-se de um filme que trata de um tema atual e
vital para que se possa compreender as dimensões da vida de pessoas que se
encontram na terceira idade, e que erroneamente são chamadas pessoas vivendo
uma idade de ouro...

5. Pensando o tempo e suas representações opacas e transparentes

Talvez a questão do “tempo que passa” seja a “coisa em si”, que sempre nos
desafia e buscamos compreender neste filme Um perfil para dois. Ou, talvez a
fixação na ideia de poder do tempo virtual, que ocupa parte significativa da vida
das pessoas, esteja a força produtiva e ideológica deste mesmo filme.

O tempo que chega para todos, no mundo real, e que sobrevive com imponência
no mundo virtual. O tempo que condiciona a nossa existência territorializada e
que um dia nos levará a uma “não-presença”, sem direito a outros signos que
ainda possam nos representar.

Nessa linha de raciocínio pensamos no livro maior de Heidegger, Ser e tempo,


em que ele distingue, entre outras coisas, o ser aí, o ser para os outros e o ser
para a morte. Analogicamente se comporta o que podemos chamar do método
interpretativo/compreensivo, a Hermenêutica da Facticidade, quando os seres aí
estão vivencialmente neles mesmos, também os seres se relacionam entre si na
vida social e histórica, e certamente que estes seres, por força das circunstâncias,
caminham para a sua extinção, findo o seu tempo de vida. Continuando o curso
dessa analogia, os seres compreendem as coisas em si, podem compreendê-las
melhor ainda em seus relacionamentos vivenciais e históricos, e certamente
cheguem a um estado de compreensão mais acabado, que dentro de um círculo
hermenêutico e não vicioso, chegam a níveis maiores e melhores de
compreensão, a partir mesmo das substituições que produzem ideias melhores e
mais iluminadas das coisas que querem conhecer.
Paul Ricoeur concebeu a ideia de Hermenêutica da Profundidade, tão bem
trabalhada por John B. Thompson em seu livro Ideologia da cultura moderna.
Quando este nomeia a doxa como um estágio inicial de interpretação e
compreensão, isto quer dizer que mediante análises mais aprofundadas
chegaremos a níveis mais elaborados de compreensão. Reinterpretar a
interpretação inicial, no que Paul Ricoeur chama de “recovering of meaning”
mostra que passo a passo, de ante-projetos a pro-jetos, de avanços significativos
da existência, o tempo se reconfigura em seu curso, quem sabe, em dias e
tempos melhores e mais bem acabados. As nossas primeiras intuições, já
desprovidas de falsos preconceitos, poderão ser aproveitadas sempre como algo
feito com a qualidade de uma interpretação “avec justesse” – com propriedade,
como nos diz Gadamer.

A música de Caetano Veloso Oração ao tempo ilustra bem estas situações


temporais.

6. Oração ao tempo, Caetano Veloso

“És um senhor tão bonito

Quanto a cara de meu filho

Tempo, tempo, tempo, tempo

Vou te fazer um pedido

Tempo, tempo, tempo, tempo

Compositor de destinos

Tambor de todos os ritmos

Tempo, tempo, tempo, tempo

Entro num acordo contigo

Por seres tão inventivo

E pareceres contínuo
És um dos deuses mais lindos

Que sejas ainda mais vivo

No som do meu estribilho

Tempo, tempo, tempo, tempo,

Ouve bem o que te digo

Peço-te o prazer legítimo

E o movimento preciso

Quando o tempo for propício

De modo que o meu espírito

Ganhe um brilho definido

E eu espalhe benefícios

O que usaremos para isso

Fica guardado em sigilo

Apenas contigo e migo

Tempo, tempo, tempo, tempo

Não serei e nem terás sido

Ainda assim acredito

Ser possível reunirmo-nos

Num outro tipo de vínculo

Portanto, peço-te aquilo,

E te ofereço elogios
Nas rimas do meu estilo – Tempo, tempo, tempo, tempo.”

Ouvindo e interpretando esta música, perguntamos que mal existe no sonho, que
mal existe até mesmo no pesadelo, que mal existe no desejo de se ter um(a)
namorado(a), mesmo que já se tenha 80 anos, que mal existe em se acreditar nas
capacidades tecnológicas da internet, que mal existe em usufruir das benesses do
computador, que mal existe em poeticamente voar dialogando com o tempo, com
o vento e suas narrativas literárias?

Que ousadia se configura em dialogarmos com o tempo, podendo chamá-lo de


um dos deuses mais lindos, que ousadia se configura também em nos igualarmos
como sujeitos, o ser dele aí e o meu ser aqui, que ousadia existe em termos tipos
de vida diferentes, ele senhor do tempo e eu fiel do tempo, qual a ousadia de
guardamos sigilos de nossos encontros que ficam entre contigo e migo, que
ousadia existe em nivelarmos as nossas vidas na virtualidade ou na atualidade de
nossas ações, que ousadia existe em unirmos o contínuo e o descontínuo de
nossas vidas?

Ousadia de um poeta, ousadia de se aproximar dos deuses? Ousadia de poder ser


íntimo do tempo nosso e de um tempo maior que seja virtual?

7. O acontecimento anima um diálogo possível entre o deus do tempo e os seres


humanos mortais

O filme Um perfil para dois é um acontecimento, assim como é a vida virtual.


Maior acontecimento ainda é o advento da internet, que nos dimensiona a
dialogar com o tempo. Não existe mal em nada disso acima narrado e imaginado
pelo poeta e cantor Caetano Veloso, se acreditarmos no poder daquilo que
chamamos “acontecimento”; sujeitos humanos que travam com sujeitos não
humanos, como as coisas, os lugares, os espaços, o tempo, uma relação de
proximidade, diálogos possíveis. Cada um pergunta e responde à sua maneira:
“Acontecimento é o que vem a ser, that which becomes”, segundo George
Herbert Mead, em The philosophy of the Present (1932).

Esta citação de Mead, pragmatista e interacionista simbólico norte-americano, é


inspirada e extraída de seu colega de escola filosófica, John Dewey, que disse em
1925: “that which becomes merely comes to be – never truly. It is infected with
non-being”, que significa aquilo que se torna meramente vir a ser, nunca sendo
verdadeiramente. José Luiz Aidar Prado, autor das orelhas do livro
Acontecimento: reverberações, refere-se a uma de suas autoras e organizadoras,
Vera França, que diz:

ao desorganizar o presente, o acontecimento instala uma temporalidade


estendida, convoca um passado com o qual ele possa restabelecer ligações,
anuncia futuros possíveis. Se o acontecimento, por um lado, atua na divisão do
comum, na partilha do sensível (conforme Rancière), buscando redistribuir as
partes, por outro, não há garantia de que os sem-inscrição terão mais direitos à
voz do que as celebridades. (...) A disputa semiótica é luta política, combate
partilhado, “máquina de guerra” visando a redefinição do porvir comunicacional.
(PRADO, 2012)

O filme Um perfil para dois, em que se louve suas situações ligadas a uma
narrativa poética e hilariante, pode ser visto como mostra de disputa de sentidos:
o que está em jogo é a felicidade das pessoas envolvidas em sua trama temporal,
mormente do senhor de 80 anos vivido pelo ator Pierre Richard. A tecnologia da
internet, que produz uma sobrevida virtual ao personagem principal, tenta se
rebelar contra a vivência atual, real e temporal que marca a vida do personagem
em questão e da vida de cada um dos seres humanos, sempre presos como se
estivéssemos pelo menos com tornozeleiras eletrônicas.

Uma postura possível seria aceitarmos a nossa vida inteiramente subjugada aos
poderes mortais do deus Chronos, temerosos de sua ação que um dia porá fim as
nossas vidas mortais, ainda mais se este deus Chronos tenha os poderes
mórbidos dos titãs. Chronos seria então

um deus remoto e sem corpo, do tempo, que rodava o universo, conduzindo a


rotação dos céus e o caminhar eterno do tempo, aparecendo ocasionalmente
perante Zeus sob a forma de um homem idoso de longos cabelos e barbas
brancas, embora permanecesse a maior parte do tempo em forma de uma força
para além do alcance e do poder dos deuses mais jovens. (Wikipédia)

A outra postura é a do poeta, Caetano Veloso, que traz o tempo para perto de si,
sem medo de que possa um dia ser destruído por ele mesmo, o tempo, mas
tratando-o como um avatar com quem virtualmente trava relações de
aproximação e negociações, como nos diz a sua música Oração ao Sol, “quando
o tempo for propício, de modo que o meu espírito ganhe um brilho definido e eu
espalhe benefícios, o que usaremos para isso fica guardado em sigilo, apenas
comigo e migo, tempo, tempo, tempo, tempo”.
A saída virtual e poética nos parece a mais conveniente, representando um bom
negócio que podemos fazer, seres mortais, dotados de poderes simbólicos, diante
de deuses com os poderes de chronos e de titãs. O filme Um perfil para dois faz
clara opção pela vida virtual, levando seu personagem principal a se deliciar com
o seu prolongamento de vida através dos sites de relacionamento na internet. O
filme de Stéphane Robelin não tem essas inspirações poéticas e corajosas do
cantor Caetano Veloso. No entanto, ambos fazem esta opção, que eu chamaria de
política e ideológica, pois tudo pode acontecer no tempo de nossas vidas, novos
fatos e informações marcantes poderão mudar o curso de nossas vidas. E
precisamos estar preparados para tanto, para a luta, para a guerra.

Como nos diz Maurice Mouillaud, em seu livro O jornal: da forma ao sentido, a
respeito do próprio jornal, podemos adaptar o seu texto ao cinema, e assim
pensarmos fazendo as devidas substituições:

Labrosse descreve o jornal (o cinema?) como uma membrana viva, um


verdadeiro campo de atividade em que se faz um trabalho de criação sócio-
simbólica. O jornal – e a mídia em seu conjunto – não está, entretanto, face a
face ao caos do mundo. Está situado no fim de uma longa cadeia de
transformações que lhe entregam um real já domesticado. O jornal (o cinema?) é
apenas um operador entre um conjunto de operadores sócio-simbólicos, sendo,
aparentemente, apenas o último: por que o sentido que leva aos leitores
(espectadores?) estes, por sua vez, remanejam-no a partir de seu próprio campo
mental e recolocam-no em circulação no ambiente cultural. Se, na origem, o
acontecimento não existe como um dado de fato, também não tem solução final.
A informação não é o transporte de um fato, é um ciclo ininterrupto de
transformações. (MOUILLAUD, 2013)

8. Conclusão

O filme Um perfil para dois se apresenta assim como uma membrana capaz de
acolher nossas vivências e aspirações temporais. No que me toca
particularmente, Sergio Porto, um dos autores deste trabalho, quando meu filho
mais velho, que tem o meu nome, tendo visto o filme no Festival Varilux do
cinema francês de 2017, recomendando-me que fosse também vê-lo, falou-me ao
telefone: – Pai, este filme fará a tua cabeça... Depois de vê-lo, ainda sob sua
emoção, candidatei-me ao VI Colóquio do CISECO – Semiótica das Mídias. E
por uma questão de programação, aqui estou antecipando-me ao colóquio, dando
uma pequena volta e certo curso no tempo deste VIII Pentálogo, que se dedica à
“circulação discursiva e a transformação da sociedade”. A minha ansiedade, aos
76 anos, jogou-me ainda mais rapidamente numa dessas artimanhas da
virtualidade. O tempo é como o vento, já dizia a Bíblia, ninguém sabe de onde
vem, ninguém sabe para onde vai.

Para minha colega Célia Ladeira Mota, co-autora destas reflexões, também
lembrando das palavras de Vera França acima mencionadas: este filme é um
acontecimento, que desorganiza o presente, numa narrativa de temporalidade
estendida, reconvocando um passado com o qual ela estabelece ligações,
anunciando futuros possíveis.

9. Referências

BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. Lisboa: Edições 70, 1964.

BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade.


Petrópolis: Editora Vozes, 1988.

DEWEY, John. Experience and nature. New York, Dover Publications Inc.,
1925.

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FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 7ª ed., 3ª reimp. Rio de Janeiro:


Editora Forense Universitária, 2008.

FRANÇA, Vera Regina Veiga; OLIVEIRA, Luciana de (orgs.). Acontecimento:


reverberações. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. p. 21-38.

GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro:


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GAUDREAULT, André; JOST, François. A narrativa cinematográfica. Brasília:


Editora da UnB, 2009.

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LALANDE, André. Dicionaire vocabulaire technique et critique de la


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PUF, 1972.

LEVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1966

MEAD, G. H. The philosophy of the present. Chicago: Open Court Publ., 1932.

METZ, Christian. Essais sur la signification au cinema. Paris: Klincksieck, 1968.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso. princípios e procedimentos.


Campinas, Pontes, 1999.

PEIRCE, Charles. Écrits sur le signe. Paris: Seuil, 1978.

PORTO, Sergio Dayrell; LADEIRA MOTA, Célia (org.) Hermenêutica e análise


dos discursos em jornalismo. Florianópolis: Editora Insular, 2017.

PRADO, José Luiz Aidar. Orelha do livro. In: FRANÇA, Vera Regina Veiga;
OLIVEIRA, Luciana de (orgs.). Acontecimento: reverberações. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2012.

QUERÉ, Louis. A dupla vida do acontecimento: por um realismo pragmatista.


In:

SAUSSURE, Ferdinand. Cours de linguistique générale. Paris: Payot, 1974.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era


dos meios de comunicação de massa. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São


Paulo: Perspectiva, 1977.

VELOSO, Caetano. Oração ao tempo. Música. Interpretações de Caetano


Veloso, Maria Betânia e Maria Gadu.

1 Programa de Pós-Graduação em Comunicação da FAC/UnB – Membros do


grupo de pesquisa Jornalismo e Construção Narrativa da História do Presente,
inscrito no CNPq.
Fragmentação e hackerização do Queermuseu

o reconhecimento deslocado - dos campos regulados à disrupção em redes sócio-


semio-técnicas

• Jairo Ferreira1 e Rochele Zandavalli2

1. Introdução

Começamos por uma breve localização de um caso midiático. O texto da revista


Época identifica atores, instituições e meios envolvidos nesse caso, bem como
momentos de bifurcações, no fluxo que constrói o tema midiaticamente:

Eram 8h21 da quarta-feira, dia 6 de setembro, quando Cesar Augusto Cavazzola


Junior publicou um texto no site Lócus, com o título “Santander promove
pedofilia, pornografia e arte profana em Porto Alegre”. Dias antes, Cesar
visitara, com três amigos, a exposição Queermuseu, no Santander Cultural, na
capital gaúcha. Algumas das 263 obras da mostra sobre o universo LGBTQ o
chocaram. “Fiz as imagens e escrevi o texto porque algumas crianças e
adolescentes circulavam pelo local e não havia qualquer restrição ou indicação
do teor sexual da exposição”, ele diz. Cesar, um jovem advogado e professor de
Direito que escreve para o portal conservador de Passo Fundo cuja página no
Facebook tem pouco mais de 1.900 seguidores, discorreu em seu post sobre o
que considerou “os mais variados ataques à moral e aos bons costumes que se
possa imaginar”. É possível que Cesar desejasse que sua opinião repercutisse,
como deseja a maioria dos que se expressam em rede. É improvável que ele
imaginasse o tamanho da reverberação que sua publicação, rastreada como a
primeira da celeuma que viria a seguir, causaria. Postagens e comentários
contrários à exposição se alastraram. Grupos liberais e ultraconservadores
passaram a se manifestar. O Santander decidiu encerrar a exposição no domingo,
dia 10. Artistas e militantes se manifestaram em frente ao centro cultural do
banco contra o fim da mostra. O debate na imprensa e na virtualidade de caixas
de comentários e redes sociais se acirrou e se concentrou na questão dos limites
da liberdade de expressão. No plano real, o embate envolveu ameaças, agressões
e medo. (TAVARES; AMORIM, 2017)

O texto de Cesar Augusto Cavazzola Junior (Blog Lócus, 2017) sobre a


exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira é
argumentativo, articulando referências normativas, morais e de apreciação
estética. No blog, os indícios são de oposição ao que está caracterizado como
polarização (Lula versus Bolsonaro). Somente este texto já possui elementos
suficientes para um artigo. Não é este o objetivo deste artigo. O que Época
chama de “reverberação”, entretanto, pode ter sido acionado muito mais por
outros atos em rede, especialmente nas gravações de dois outros blogueiros:
Fernando Diehl, militante do DEM e defensor de Jair Bolsonaro (DIEHL, 2017),
candidato à presidência em 2018; e Rafinha BK, também militante da
candidatura de Bolsonaro, que publica um canal no Youtube (BK Tuber). A
matéria da revista informa que os dois já vêm de um percurso militante: “Em
2016, Diehl promoveu um ‘rolezinho reaça’ na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, que acabou em pancadaria”; já Rafinha é “Proibido de entrar na
Assembleia Legislativa de Porto Alegre por agredir a deputada estadual Juliana
Brizola, neta de Leonel Brizola” (TAVARES; AMORIM, 2017).

A mostra, que tinha em média 700 visitantes por dia, foi encerrada, com um
pedido de desculpas, conforme nota publicada pelo Santander Cultural em sua
página no Facebook3. O diagrama de Época mostra isso no fluxo do tempo. O
que a revista chama de caos refere-se ao que chamamos de disrupção semiótica.
A disrupção é uma situação potencial em toda interação. Revela-se, neste caso
midiático, uma derivação de dilemas, impasses e agonísticas da cultura
(comportamento e sexualidade; arte e classificações sociais subjacentes; relações
entre o museu e a arte) em suas articulações com a política (polarização) e a
economia (a instituição Santander).

De acordo com o curador da mostra, tratou-se de uma exposição contra a


ignorância em relação às artes visuais, à sexualidade e ao comportamento, o que
também depende de uma consciência política avançada com uma dimensão
inclusiva e antinormativa. Esse enfrentamento precisa ocorrer também no âmbito
da mídia, através dos meios envolvidos, e não apenas no campo da
institucionalidade museológica e acadêmica. É necessário ter em conta que, por
mais que o campo das artes visuais esteja de certa forma ligado ao fazer
expressivo e criativo, que é tangível a qualquer pessoa, ele não deixa de ser
também um campo cultural instaurado. Um circuito com seus códigos e
estratégias argumentativas, teorias e chancelas próprias ao campo, e estudos
aprofundados.

A abertura semântica nas artes visuais é ampla devido a uma menor rigidez na
sintaxe. Essa abertura é necessária à arte. Trata-se de um paradoxo inevitável;
porém, sendo a mostra em questão acompanhada de diversas pesquisas que
deram origem a textos que acompanhavam as obras, e formada em sua maioria
por trabalhos existentes há anos ou décadas, com valor artístico, cultural e
mercadológico já assegurado. A hipótese que é trabalhada neste artigo é de que
os sentidos regulados nesse campo constituído até o século passado estão em
permanente questionamento, quando os meios estão imersos em redes digitais,
por disrupções semióticas, imprevisíveis e incertas, que abrem novas
interpretações sobre a arte como produto cultural.

Logo após o polêmico fechamento por pressão de parte da sociedade em resposta


aos vídeos produzidos pelos blogueiros vinculados ao MBL, o assunto ganhou
ainda mais importância e levou à exibição de outras discussões sobre a temática
do corpo, sexualidade e comportamento, como foi o caso da grandiosa exposição
Histórias da Sexualidade, aberta em outubro de 2017 no MASP. A mostra surge
de uma extensa pesquisa que fez parte de uma série de atividades relacionadas
ao tema e que vinham sendo desenvolvidas pelo museu desde 2016. Levando em
conta o ocorrido com a Queermuseu, o MASP aderiu à classificação indicativa
para maiores de 18 anos.

***

Neste artigo, o objetivo é apresentar inferências indutivas, a partir dos materiais


sistematizados, para a configuração do caso. Em outro, apresentamos as
inferências dedutivas. O caso é compreendido como articulação destes dois
conjuntos de inferências. Só então – conforme proposta sobre o método
apresentada em Ferreira (2012) –, a pesquisa pode ser ampliada, visando
hipóteses mais consolidadas, construídas a partir de investigação estabelecida
com um caso midiático. A inferência indutiva é, em nossa perspectiva
(FERREIRA, 2012), a articulação de inferências dedutivas e abdutivas
preliminares. Ou seja, não se trata de um movimento ascendente “puro” – da
análise dos empíricos às interpretações –, mas acionamentos dedutivos e
indutivos preliminares e das abduções relacionadas. Este é o argumento que
referencia este artigo. Nesse sentido, busca não só o movimento descendente
(pensando o objeto a partir da linhagem de pesquisa Midiatização e Processos
Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos), como
também o ascendente (identificando, nas inferências realizadas a partir do campo
de observação, metáforas e aproximações necessárias a outros conceitos). Na
articulação entre esses movimentos, identificamos proposições de investigação
do caso construído.
2. O contexto reflexivo, o método e o lugar de problematização

Nesta seção, apresentamos as referências do argumento dedutivo, uma operação


necessária e preliminar à configuração do caso, mesmo quando o foco é a
construção indutiva do caso. A midiatização é uma linhagem de pesquisa que
abrange diversas possibilidades de análise. Situamos algumas que identificamos
como centrais. Em termos da história recente, a midiatização pode ser
compreendida como construção social de um tema. Essa perspectiva nos permite
compreender como atores, instituições, midiáticas e mediatizadas, constituem,
por exemplo, o tema do museu e da arte (o caso aqui apresentado). Museu e arte
são interseccionados, de forma contraditória, com tensões, entre um campo
socioinstitucional e outro, o da arte.

Mas essa perspectiva de construção social do tema, quando se aborda em termos


de caso midiático, é restrita em termos de história. A construção de coleções de
objetos culturais, que resultaria nos modernos museus, é anterior à história
recente dos meios. Remonta à própria história da espécie (colecionar seus
objetos). Nesse sentido, de produzir coleção de objetos destinados aos tempos
diferidos, o museu é parte da midiatização. O mesmo se pode dizer do que
consideramos obras de arte. Esses objetos se constituem, na medida em que
materializam experiências mentais, em meios e, portanto, em formas de
midiatização. Na perspectiva histórica, portanto, a midiatização se manifesta nas
coleções, como formas de conservar as obras em tempo (e, depois, espaço)
diferido. Esta conservação soma no sentido da ubiquidade do signo, de sua
desterritorialização, uma das características centrais dos meios quando
midiatizados (porque, em uma multiplicidade de processos de reprodução e
reconhecimento social, o processo passa a ser referência simbólica das
interações).

No grupo de pesquisa a que me vinculo, a construção do tema tem interessado


mais no plano micro-histórico. Trata-se de processos conceituados como casos
ou acontecimento midiáticos, que produzem uma coleção de objetos-signos em
fluxo conforme um tema que irrompe na cena dos meios midiáticos, isso é, no
espaço de visibilidade pública, acionados e/ou acionando processos em que se
atualizam dilemas, impasses, contraditórios ou antagônicos, na esfera da cultura
(com incidência sobre os campos da economia e da política). Este tem sido foco
em pesquisas, em situação de orientador de teses e dissertações. Citamos, sem
exaustão, as teses de Rosa (2012) e Behs (2017) e o artigo de Kaefer e Ferreira
(2017).
Essa perspectiva tem sido interessante para a compreensão de como temas
midiáticos são construídos, nas interações midiáticas, entre atores em rede,
instituições, mediatizadas e midiáticas. Perspectivas metodológicas de análise
têm permitido compreendermos processos indeterminados, incertos, bifurcados,
que revelam disposições diversas, interpretantes possíveis, num ciclo definido
pelas próprias interações. Sem dúvida, nestes processos sociomidiáticos é visível
a força da semiose aberta – que, entretanto, se cristaliza em determinadas
simbólicas sociais, muitas vezes concorrentes –, expressando-se aí os conflitos
de interpretantes que podem ser relacionados a grupos, classes e classificações
sociais.

Nesses estudos, tem sido importante definir o que está sendo conceituado como
circuito-ambiente. Entendemos essa conceituação como relações passíveis de
análise de fluxos entre configurações de meios, instituições e atores envolvidos
nas interações. Mas não só processos irruptivos são observados. Muitos
circuitos-ambientes são, também, regulados. As instituições ou atores articulam
formas de uso, práticas e apropriações tentativas em diversos sentidos,
configurando uma rede específica que visa a fortalecer as referências atualizadas
dos valores que os identificam, mas de forma ampliada, em novas narrativas
entrecruzadas, coletivos de fãs, celebridades e relações carismáticas. Isso pode
acontecer com a religião como objeto cultural (CORTES; FERREIRA, 2018).
Ao contrário da semiose aberta, aí se verifica a tentativa e, muitas vezes, o
sucesso da reprodução ampliada das instituições e atores referenciais nas
interações mediatizadas.

Uma das questões centrais nestes fluxos têm sido as operações realizadas entre o
que vem a montante e o que emerge a jusante. Esse entre não é vazio, não é
apenas passagem. É, na perspectiva dos estudos sobre circulação midiática, o
espaço de produção. Como foi caracterizado de Marx a Verón, este é o espaço de
operações. Caracterizamos essas operações como esquemas, estruturas e
sistemas de produção. O esquema é um fragmento de um discurso. Exemplo
mais nítido, hoje, é a produção musical, que fragmenta o discurso musical,
segmenta uma estrutura musical em uma biblioteca de esquemas e refaz, por
mixagem, estruturas musicais (utilizando-se das tecnologias digitais). Nessa
perspectiva, um sistema é da ordem de agenciamentos coletivos – empresariais
ou não – que consolidam normas e processos relativos às possibilidades de
fragmentação e desfragmentação, desconstrução e reconstrução dos discursos
sociais. O reconhecimento dessas operações na forma de esquemas, estruturas e
sistemas é o lugar de realização, sem o qual talvez seja impossível falar em
circulação.

Essas perspectivas não são exaustivas. A midiatização como objeto de


investigação pode ser investigada nas transições epistemológicas das ciências
sociais. É assim que identificamos os estudos de Foucault (com o conceito de
dispositivos) e de Bourdieu (com as pesquisas sobre como as lógicas dos meios
alteram as lógicas dos agentes e instituições). Essas perspectivas são instigantes,
em nossa formulação de pesquisas, quando articuladas com as possibilidades
elencadas acima.

Finalmente, em destaque, o conceito de ambiência. Este, conforme formulação


de Gomes (2013), está relacionado às imaterialidades. Nesse sentido, requisita
um conjunto de inferências, necessariamente especulativas, que transcendam os
observáveis materiais. Convida-nos à função cognitiva e heurística,
especialmente quando localiza a midiatização nos contextos históricos das
culturas. Ilustramos a força desta perspectiva: interessante explorar, nos meios e
processos midiáticos contemporâneos, contextos que se sobrepõem, mas que
também possuem as suas fortes especificidades. Podem-se relacionar os meios
de conteúdos (jornal e livro) ao Estado-Nação, à crítica ideológica, literária e
política; os meios de programação (rádio e televisão) à sociedade de consumo, à
pesquisa administrativa e à teoria crítica; os meios de indexação, ao
individualismo conectado e especulações críticas em curso; as mediações
algorítmicas com os cenários, prognósticos e ainda incertos. Portanto, as
relações entre processos midiáticos são estudadas na perspectiva da
midiatização, deslocando questões, problemáticas e inferências das ciências da
cultura – a economia, a política e a cultura (em sua especificidade).

2.1. Museu como meio na perspectiva da circulação

Verón tem formulações da midiatização nas diversas perspectivas acima.


Elencamos suas abordagens: a) os fluxos entre instituições, atores e meio; b) a
construção do acontecimento; c) relações entre o que nomina de gramática de
produção e de reconhecimento; d) operações de produção; e) meios e
dispositivos; f) e abordagens históricas, em especial quando analisa a
midiatização como condição sócio-antropológica específica da espécie.
Condensar essas diversas abordagens requer um trabalho que pode ser
especulativo ou de inferências a partir de casos de pesquisa construídos. Este
artigo se situa na busca de inferências a partir do caso de investigação. Se
considerarmos a perspectiva de Verón, colocamos em jogo as abordagens que
elencamos como “a” (fluxos), “b” (acontecimento), parte de “c”
(reconhecimento) e “e” (meios e dispositivos).

Na perspectiva de Verón, a questão do reconhecimento se situa entre gramáticas


de produção e de reconhecimento. A sua formulação acentua a defasagem entre
as duas gramáticas. Esse é o centro de sua formulação, conforme o esquema em
que a gramática de produção corresponde a uma diversidade de gramáticas de
reconhecimento. Em “Etnografia da exposição”, Verón investiga o que vai
nominar como estratégias de visita (VERÓN, 1989). Neste estudo, define
trajetórias possíveis de percurso em um museu. O diagrama sobre este processo
– que Verón já localiza nos estudos da midiatização – situa as relações entre
produção e reconhecimento considerando, por um lado, que a organização
espacial de distribuição das obras expostas é uma “gramática de produção” que
será apropriada conforme “gramáticas” de reconhecimento, conforme modelo a
seguir (Figura 1):

Figura 1 – Relações entre produção e reconhecimento / Fonte: Verón (1989)

A partir de uma metodologia que nomina como etnográfica, identifica quatro


“gramáticas”, designadas metaforicamente como: formiga, mariposa, peixe e
lagosta. As “gramáticas” são apresentadas de forma descritiva e, também, em
diagramas, relativos a cada uma das figuras. Referem-se a percursos dos
visitantes do museu investigado.

3. Interações reguladas: o reconhecimento no campo da arte

Esta seção responde ao objetivo de identificar os processos de regulação


relativos ao museu e às obras de arte, estabilizados em interações e
interpretações de artistas, curadores, crítica especializada e seus públicos. O
subtítulo da mostra – Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira
– mostrou ser bastante adequado, pois se relaciona ao próprio objeto de pesquisa,
ao mesmo tempo que indica o ineditismo do estudo relacionado ao tema e da
representatividade dada à causa LGBTQ em uma instituição cultural de grande
relevância.

A mostra no Santander Cultural apresentava 263 obras que formaram um recorte


sobre a realidade material do desejo, da sexualidade e do comportamento, com
forte teor crítico em termos sociais e políticos. A exposição, embasada em
extensa pesquisa, informada em um catálogo de mais de 170 páginas, foi a
primeira de grande importância com esse perfil na América Latina, sendo
mundialmente recente a ênfase dada ao assunto. Hide/Seek: Difference and
Desire in American Portraiture, na National Portrait Gallery, em Washington;
Ars Homo Erotica, no Museu Nacional da Polônia, em Varsóvia; e Queer British
Art, na Tate Modern, em Londres, foram apontadas pelo curador da Queermuseu
como algumas das raras mostras recentes que abrangem a produção queer.

Também foi pertinente o uso do termo “diferença” no sentido de demonstrar que


o curador estava ciente das diversas reações e discursos que tal recorte suscitaria.
Na proposta curatorial já é possível notar tal consciência em relação à
repercussão da mostra no atual âmbito político no Brasil, já que “(...) os avanços
conquistados são frágeis, não informam um caráter de permanência e podem a
qualquer momento sucumbir vertiginosamente a ondas abomináveis de
conservadorismo” (FIDELIS, 2017, p. 10). Referindo-se ao potencial embate
político que ela desperta, Fidelis comenta:

Queer é, portanto, um assunto, uma porta de entrada, um dispositivo, um gerador


de conflito, uma evidência a partir da qual se gerou esta exposição para construir
uma plataforma de investigação crítica da formação de sentido através de
exposições (FIDELIS, 2017, p. 12).

O curador considera “surpreendente que ela aconteça nesse momento tão


conservador da vida brasileira” e sublinha a importância do exercício da
diferença não apenas no âmbito da arte, mas também na vida diária das
organizações que a abrigam. No campo artístico, que é ainda extremamente
eurocêntrico, meritocrático e paternalista, essa inclusão é inclusive tardia e
aparece agora em inúmeras propostas, como a da 11ª Bienal do Mercosul – O
triângulo do Atlântico –, que busca refletir sobre essa falha histórica. Mulheres,
negros, indígenas e outros autores negados no passado passam a ser expostos por
sua produção se vincular a essa demanda social inclusiva.

Essa abertura em relação à interpretação foi utilizada inclusive em favor da


estratégia expositiva em Queermuseu, sendo aplicada uma “conversão
temporária” de obras de caráter mais formalista ou que não agendavam os
subtemas da mostra em dispositivos queer. Segundo o próprio curador,

Esse procedimento operacional da exposição habita uma zona de transição, que


constitui um estado momentâneo de indeterminação, o qual talvez possa ser
considerado uma das grandes características distintivas em desenvolvimento em
Queermuseu (FIDELIS, 2017, p. 12).

3.1. O reconhecimento das obras no campo regulado

A exposição foi configurada com obras de artistas consagrados pela história da


arte brasileira e mundialmente reconhecidos há décadas, como Volpi, Portinari,
Flávio de Carvalho, Lygia Clark, Leonilson, Alair Gomes e contemporâneos
importantíssimos, como Adriana Varejão. As obras não foram produzidas para a
mostra, mas sim escolhidas para compor o conjunto, sendo muitas delas
produzidas há bastante tempo, e pertencentes ao acervo dos artistas ou de
galerias renomadas como a Vermelho, Casa Triângulo, Nara Roesler, entre outras
instituições. Para comentar a relevância e a aceitação dessa produção dentro de
instituições de arte, basta lembrar talvez que Lygia Clark, junto com Hélio
Oiticica, é apontada pela crítica internacional como uma das mais influentes
artistas brasileiras, sendo figura de destaque dentro do grupo neoconcretista.
Interessada pela psicanálise de Freud a partir da década de 1960, a artista

testava assim, não só os limites do corpo como um ser da sexualidade, mas as


circunvoluções políticas da construção do eu, através da inclusão pela diferença
e da similaridade/dissimilaridade do corpo do outro (FIDELIS, 2017, p. 84).

Em sua produção nota-se um interesse gradual pela experiência sensorial,


influenciada pela fenomenologia da percepção de Merleau Ponty, que também
gerou manifestações bastante corpóreas pelo mundo todo nas décadas de 1960 e
1970, tais como a body art, o happening e a performance. Lygia, assim como
tantos artistas que produziram no período, também estava alinhada às demandas
sociais daquele momento histórico que passavam pela questão do corpo. É o
caso das reivindicações raciais e feministas, das reações ao modelo estereotipado
de beleza midiática propagandeado pelos meios de comunicação, e dos
movimentos que buscavam maior liberdade sexual e de crenças, entre outras
correntes que buscavam maior inclusão em um âmbito artístico ainda colonial e
patriarcal. A demanda e o contexto social parecem bastante próximos aos
reivindicados hoje, inclusive muito aproximados aos problemas levantados pela
Queermuseu.

Lygia Clark, então, inicia seus trabalhos voltados para o corpo relacionando
diferentes sensações às emoções. O público é quem ativa a obra. A artista é
apenas uma propositora ou canalizadora de experiências. Em Luvas Sensoriais,
de 1968, dá-se a redescoberta do tato, pesos e texturas; em O Eu e o Tu: Série
Roupa-Corpo-Roupa, de 1967, obra exposta no Queermuseu e alvo de polêmica,
um casal veste roupas confeccionadas pela artista com materiais diversos.
Aberturas na roupa permitem, através do tato, uma sensação feminina ao homem
e uma sensação masculina à mulher. “Com esta obra, a artista realiza uma das
mais radicais intervenções nas questões de gênero que se conhece no Brasil”
(FIDELIS, 2017, p. 84). A obra de Lygia foi acusada de apologia à
homossexualidade e de incentivar a descoberta precoce da sexualidade no caso
de participantes menores de idade, visto não haver classificação indicativa na
expografia. A instalação A Casa é o Corpo: Labirinto (1968) oferece uma
vivência sensorial e simbólica, experimentada pelo visitante que penetra numa
estrutura de 8 metros de comprimento, passando por ambientes denominados
penetração, ovulação, germinação e expulsão. Através de múltiplas estratégias
sensoriais, a artista simula o nascimento.

Adriana Varejão possui obras nas coleções de instituições importantíssimas no


mundo todo, tais como Guggenheim Museum em Nova York, Tate Modern, The
Metropolitan Museum of Art, Dallas Museum of Art, Fondation Cartier pour
l’Art Contemporain, Inhotim Centro de Arte Contemporânea e Stedelijk
Museum. Um dos pavilhões no Centro Cultural de Inhotim é dedicado somente à
produção dela. Teve seu trabalho exposto em inúmeras exposições individuais e
coletivas em centros como a Gagosian Gallery, French Academy in Rome,
Victoria Miro Gallery, Museu Reina Sophia, entre outros, e é considerada uma
das mais renomadas e valorizadas artistas brasileiras no contemporâneo.

Sua obra Cena de Interior II, de 1994, foi acusada de fazer apologia à pedofilia e
zoofilia. A tela apresenta variadas relações sexuais não convencionais, como um
casal de lésbicas, outro inter-racial, outro que, além de inter-racial, é também
homossexual e constituído de três figuras masculinas, e outro ainda que
apresenta zoofilia com uma cabra. A posição da figura da cabra (branca) e a do
homem que está em primeiro plano (negro) durante o ato sexual é passiva e
servil, e os dois se encontram na posição horizontal. Essa relação de
verticalidade e horizontalidade parece remeter a formas de poder e subserviência
exercidas em nossa sociedade. Essa mesma estratégia é usada em Filho Bastardo
II – Cena de Interior. Questões étnico-raciais se colocam fortemente nessas telas.
Varejão tem na relação entre violência e abordagens do campo acadêmico da
história o ponto-chave do entendimento de sua obra. Sua produção é uma
espécie de denúncia poética das relações de poder, dominação e violência que
ocorreram e ocorrem em nossa história colonialista. Não à toa o título Cena de
Interior tensiona relações entre o que é público e o que é privado, entre o que é
visto e o que é escondido ou censurado. Segundo a artista:

Esta é uma obra adulta feita para adultos. A pintura é uma compilação de
práticas sexuais existentes, algumas históricas (como as chungas, clássicas
imagens eróticas da arte popular japonesa) e outras baseadas em narrativas
literárias ou coletadas em viagens pelo Brasil. O trabalho não visa julgar essas
práticas. Como artista, apenas busco jogar luz sobre coisas que muitas vezes
existem escondidas. É um aspecto do meu trabalho, a reflexão adulta. (FOSTER,
2017)

No catálogo da mostra Fidelis afirma que “se trata de uma pintura que cobre um
considerável território na confluência entre sexualidade e história, revirando
literalmente as hierarquias de raça, influências, miscigenação, mestiçagem e
canibalismo queer” (FIDELIS, 2017, p 40). Fazendo uso de elementos visuais
incorporados à cultura brasileira pela colonização, como na pintura de azulejos
portugueses e nos trabalhos que simulam a carne e o sangue, ela traça relações
paradoxais entre sensualidade, dor e violência. A identidade brasileira é
apresentada de forma crua, expondo a natureza multivalente da história, da
memória, e da representação cultural. Fidelis complementa:

É uma obra extremamente política, que questiona e critica todo o processo de


colonização do país, as consequências da escravidão, além dos diversos aspectos
de raças, crenças e culturas. É uma obra histórica – diz o curador. (FOSTER,
2017)

Outra obra que toca em questões históricas e relacionadas à colonização de


forma crítica e que foi acusada de desrespeitar símbolos religiosos foi a pintura
Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva, feita em 1996, de Fernando Baril. O
artista comenta:

Aquele quadro tem 21 anos. Era uma semana santa, e eu estava lendo sobre as
santas indianas, então resolvi fazer uma cruza entre Jesus Cristo e a deusa Shiva.
Deu aquele montaréu de braços carregando só as porcarias que o Ocidente e a
Igreja nos oferecem – explica Baril, que desabafa: – Certa vez, Matisse fez uma
exposição em Paris e, na mostra, tinha uma pintura de uma mulher
completamente verde. Uma dama da sociedade parisiense disse “desculpe,
senhor Matisse, mas nunca vi uma mulher verde”, ao que Matisse respondeu que
aquilo não era uma mulher verde, mas uma pintura. Aquilo não é Jesus, é uma
pintura. (FOSTER, 2017)

Uma das denúncias mais graves que a exposição recebeu foi a de apologia à
pedofilia. Nos vídeos e textos que motivaram o fechamento da mostra há poucas
acusações a obras específicas, mas à exposição como um todo. A acusação mais
direta foi feita às obras de Bia Leite. A artista utilizou como material de
inspiração os posts do site Criança Viada – em que pessoas enviavam suas
próprias fotografias antigas quando crianças. Os participantes publicam fotos
que apresentam comportamentos e trejeitos não heteronormativos. É uma forma
de ironizar o comportamento heteronormativo justamente pelo seu viés
convencionado e, ao mesmo tempo, refletir sobre o bullying sofrido por pessoas
LGBTs durante a infância e adolescência, segundo relato da própria artista.

Nós, LGBTs, já fomos crianças. Esse assunto incomoda porque nunca viramos
LGBTs, nós sempre fomos. Todos devemos cuidar das crianças, e não reprimir a
identidade delas ou seu modo de ser no mundo. Isso é muito grave. Sou
totalmente contra a pedofilia e o abuso psicológico de crianças. O objetivo do
trabalho é justamente o contrário, é que essas crianças tenham suas existências
respeitadas – diz a artista. (FOSTER, 2017)

3.2. Inferências sobre a visitação selvagem: operações-esquemas disruptivos

Nesta seção, o objetivo é inferir sobre os pontos específicos de ruptura com o


campo regulado, focando nas operações de visitação à mostra realizada por
Felipe Diehl e Rafinha BK. Essas operações foram inferidas de leituras dos
enunciados, conforme os vídeos disponíveis no Youtube (BK TUBER, 2017;
DIEHL, 2017). Consideramos que essas operações são relativas a esquemas,
mais do que a discursos. Esses (os discursos) demandam, para sua identificação,
outro tipo de trabalho inferencial e metodológico: demandariam a análise das
relações entre esses esquemas e as formações discursivas onde estão inseridos os
mesmos. Isso não é feito neste artigo, que apresenta o caso na perspectiva
indutiva.

Aqui é importante acentuar este deslocamento conceitual: em vez de utilizar o


termo gramática, usamos os termos esquemas, estruturas e sistemas de produção.
Esses esquemas, estruturas e sistemas de produção condensam diversos níveis de
operações: os esquemas são operações ritualistas (por exemplo, relativas à
periodicidade de acessos, de usos, de práticas relativas aos meios; as estruturas já
se referem a níveis articuladores de esquemas, dão forma e configuram
discursividades sociais, conforme os meios; e, finalmente, os sistemas são níveis
em que discursos, agenciamentos de meios técnicos e tecnológicos e simbólicas
passam a se constituir em linhas de força que atravessam as interações sociais).
A análise dos esquemas, estruturas e sistemas é indissociável das identificações
das operações que atores, instituições e algoritmos realizam quando acessam e
usam os meios. A metáfora é um esquema.

Esta disrupção que emerge em redes digitais se articula com redes sociais. Este
processo disruptivo é inaugurado como uma tentativa de apropriação e
deslocamento de signos que estavam relativamente estabilizados no campo
constituído pelo cruzamento entre o museu como instituição, a arte, seus
públicos e críticos, como veremos na seção a seguir.

Nesse sentido, este caso de pesquisa não se refere especificamente às estratégias


de visitação, objeto do que Verón (1989) chama de “gramáticas” de
reconhecimento. Referimo-nos ao reconhecimento dos signos-arte como foco da
visitação ao museu – e dos fluxos observados entre atores, instituições e meios.
Nesse sentido, o fluxo que se observa em torno do tema emerge do objeto arte,
sendo que as instituições envolvidas (o museu e o Banco Santander) são trazidas
às cenas de interações entre atores diversos, em redes digitais.

As inferências a seguir são apresentadas como metáforas (BARTHES, 1981),


esquemas e descrições (transcrições dos vídeos). As inferências são feitas apenas
a partir das conversas textuais. Isso limita a sua abrangência. Considerando que
se trata de inferir sobre vídeos, seria necessário analisar também as sonoridades
e imagens que se articulam com esses textos. Mas justificamos isso assim: nas
interações a jusante, nas redes, o texto é a referência básica dos atores, quando
reportam-se ao momento de irrupção midiática do acontecimento. Seguimos esse
fio, sabendo da necessidade, posterior, de inferir sobre imagens e sonoridades em
movimento.

3.2.1. Metáfora 1: fragmentação

Deve-se lembrar aqui que a mensagem pode ser facilmente subvertida num
processo de edição. Nas redes sociais, por exemplo, circulava um único
fragmento da obra de Adriana Varejão. Um recorte da obra, um detalhe,
descontextualizado de todo o conteúdo e logística expositiva e das outras
informações contidas na própria tela. O recorte marcava apenas o coito entre o
homem e a cabra. Esse ruído que surge da fragmentação da informação marcou o
processo todo, desde as referências à curadoria em si, a produção dos vídeos dos
membros do MBL, a profusão da repercussão nas redes sociais, os debates
suscitados e, também, as conclusões.

3.2.2. Metáfora 2: hackerização

A metáfora da hackerização carrega a ambiguidade. Por um lado, refere-se a


Hans Hacker, cujo diálogo com Bourdieu (1994) situa a obra em seus contextos
econômico, cultural e político; por outro lado, a figura do hacker (como invasor,
que busca informações, valores no espaço privado dos dispositivos, visando a
sua transformação). Isso pode ser enunciado assim: formas de reconhecimento
(que nominamos de “invasão bárbara”) acionam um fluxo de interações
(“hackerização”) entre instituição, atores e meios derivado não especificamente
de operações de produção específicas (do museu como “gramática de
reconhecimento”; do reconhecimento da arte), mas sim de um circuito-ambiente
potencial (reconhecimento da atividade da rede) que é acionado disruptivamente.

3.2.3. Metáfora 3: a moral e a lei – o julgamento moral como referência de


deslocamento temático do signo – das formas artísticas aos conteúdos

A denúncia baseada no julgamento moral é um dos esquemas centrais. A


visitação segue o roteiro de busca de signos artísticos que possam ser
denunciados como afronta moral exógena ao campo da arte e dos museus. A
apreciação se desloca das formas artísticas e se orienta para os conteúdos morais
das obras, direcionando julgamentos aos públicos potenciais conforme os
receptores difusos e diferidos das redes.

O primeiro tribunal está lá na trilogia de Ésquilo, Oresteia, nas Eumênides, peça


representada pela primeira vez em 458 a.C. Agamenon, no retorno da guerra de
Troia, é assassinado na banheira de sua casa por sua mulher, Clitemnestra, e seu
amante, Egisto. Orestes, o filho desterrado de Agamenon, atiçado pelo deus
Apolo, é induzido à vingança. Até então, essa era a lei. Era a tradição. Orestes
deveria matar sua mãe (Clitemnestra) e seu amante, Egisto. E ele mata os dois.
Aí vem a culpa. É assaltado pela anoia, a loucura que acomete quem mata sua
própria gente. Ao assassinar sua mãe, Orestes desencadeia a fúria das Eríneas,
que eram divindades das profundezas ctônicas (eram três: Alepho, Tisífone e
Megera). As Eríneas são as deusas da fúria, da raiva, da vingança (hoje todas as
Eríneas e seus descendentes estão morando nos confins das redes sociais).
Apavorado, Orestes implora o apoio de Apolo. Pede um julgamento, que é aceito
pela deusa da Justiça, Palas Atena. (STRECK, 2018)

***

Rafinha – Olha só as exposições aqui do Santander. Olha só... (Obra 1 – Jesus


crucificado).

***

Rafinha – Tá, então olha só. Tem outras coisas aqui que estão cometendo crime
de pedofilia, por exemplo. Artigo 241. Tá, vamos dar uma olhadinha aqui.
Vamos dar só uma olhadinha... Olha só, pessoal, olha só... (Obra 2) ... o cúmulo
do absurdo. Olha só essa exposição, isso eles chamam de exposição. Olha isso...
Olha só... “Adriano criança viada”, olha aqui, olha isso. Olha só. É o senhor que
é o responsável aqui, dessa exposição? Olha ali, ele vira o rosto, ele vira as
costas aqui.

Amigo do Rafinha – (Obra 2) Por causa que justamente “Criança viada, travesti
da lambada”....

Rafinha – O cúmulo do absurdo...

Amigo do Rafinha – Isso aqui é praticamente prostituição infantil. Nem mesmo


um travesti vai concordar com essa imagem aqui. Nem mesmo um travesti vai
pegar e dizer que ser travesti é uma coisa boa para uma criança.

Rafinha – Olha só, pessoal, isso eles chamam de exposição aqui no Santander
Cultural.

Rafinha – (Obra 3) Olha só, pessoal, aqui, como vocês estão vendo, é uma
mulher com um pinto. Uma outra mulher ali deitada, com uma outra mulher em
cima, ali, colocando a bunda no rosto da mulher. Agora tem um outro ali em
cima, um negão ali comendo um cara. Tá, certo. Esse é o tipo de cultura e
exposição que está sendo colocado para as crianças assistirem aqui no Santander
Cultural.

***

Rafinha – Tu tá ligado que isso aí é pedofilia? Não, agora vamos falar a verdade,
vamos falar sério. Isso aí é pedofilia, isso é pedofilia, isso que tá acontecendo aí
é pedofilia. Pedofilia não é crime? Me diz uma coisa, por que que as crianças
podem entrar aqui pra ver isso aí, me diz?

***

Fernando – Esse aqui é um homem com um pinto. Mais dois homens. Pura
putaria. Zoofilia, pessoal. Presta atenção. O professor Olavo de Carvalho já
dizia: depois que quebrar o gênero, vão quebrar o número do casal, né? Da
família. Já estão pervertendo a noção de família, tão pervertendo a noção de
respeito. Agora tão fazendo exposição de pornografia, incentivo à pedofilia,
incentivo à putaria, sacanagem, até zoofilia.

3.2.4. Metáfora 4: o pastoreio – a moral enunciada em nome da pedagogia

Este esquema relaciona a denúncia moral com o projeto pedagógico (formação


das crianças), núcleo das pedagogias. Conhecer ou educar é o dilema social aqui:

Preocupação semelhante com o educar em detrimento do ensinar permeava,


também, o ideário pedagógico dos países fascistas europeus. Em 1935, Salazar,
em discurso criticando uma campanha encetada pela imprensa em prol da
alfabetização em Portugal, questionava a importância de o povo aprender a ler:
“para ler o que?” Argumentava que a instrução não trazia a
felicidade, concluindo que a verdadeira instrução era a educação moral, pois
poderia “congregar a fôrça superior do homem e elevar o seu espírito para os
pensamentos mais altos”. Emerge de forma clara do discurso salazarista a
preocupação em salvaguardar as mentes das influências trazidas pela leitura
(ALMEIDA, 1998).

***
Rafinha – Olha, tem uma criança ali ó. Dá licença? Ó, tem uma criança
assistindo ali ó. Olha só pessoal, ali ó, aberto ao público. Tá, tem uma criança
assistindo aquilo dali. Dá licença. Tem crianças assistindo aquilo ali, rapaz. Olha
só... calma, calma. Calma, cara. Vocês... olha só, os caras tão me tirando daqui à
força. Olha aqui, meu Deus do céu. Olha só o que eles tão fazendo, cara. Olha
só... Tem uma criança assistindo aquilo dali, ia filmar agora. E os caras tão me
tirando. Olha só...

Fernando – Esse é o recado que o Santander Cultural, esse é o recado que o


Gaudêncio Fidelis tem para o povo gaúcho. Só putaria, só sacanagem. Mas que
aqui em Porto Alegre, no Santander Cultural, é reconhecido como arte. Há
pouco tinha crianças olhando essas artes aqui. Escarnecendo a Cristo.

Amigo do Rafinha – Isso aqui é praticamente prostituição infantil. Nem mesmo


um travesti vai concordar com essa imagem aqui. Nem mesmo um travesti vai
pegar e dizer que ser travesti é uma coisa boa para uma criança.

3.2.5. Metáfora 5: a ameaça – a ameaça de publicação

A ameaça surge aí como um esquema de ruptura (inaugurando a disrupção).


Trata-se de um ameaça moral, em nome da pedagogia, o que lhe assegura
legitimidade.

Toda interação social face-a-face sofre dois tipos de pressões: as comunicativas


(para assegurar a boa transmissão da mensagem) e as rituais (que asseguram a
mútua preservação da face dos interlocutores). As pressões rituais são as que
mais influenciam a estrutura do discurso, pois o processo de figuração que visa
neutralizar as ameaças potenciais à face dos interlocutores influencia tanto a
realização do enunciado quanto a estruturação da troca comunicativa impondo
aos interagentes a adoção de sutilezas para levarem a bom termo a troca verbal.
A auto-imagem construída socialmente possui duas faces: uma face negativa,
que se refere ao desejo de não imposição, ou à reserva do território pessoal
(nosso corpo, nossa intimidade), o que inclui os nossos pontos fortes ou fracos.
Uma face positiva correspondente à fachada social, à nossa própria imagem
valorizante que tentamos apresentar aos outros e que necessita de aprovação e
reconhecimento. Como qualquer ritual de comunicação pressupõe no mínimo
dois participantes, existem, no mínimo, quatro faces envolvidas na comunicação:
a face positiva e a face negativa de cada um dos interlocutores (SAITO;
NASCIMENTO, 2018).
***

Funcionário 2 – Eu quero ver se isso vai ser publicado tudo assim.

Rafinha – Vai ser publicado, vai ser publicado.

Funcionário 2 – Que o senhor está atrapalhando o pessoal... Eu só estou lhe


informando isso.

Rafinha – Tá, bom trabalho. Eu só estou lhe informando também que indução à
pedofilia também é proibido, tá. Abraço.

3.2.6. Metáfora 6: o conflito – o conflito com o ator institucional – o museu em


pessoa – sob a carga enunciativa da moral, da pedagogia e da ameaça

Neste esquema, observa-se a interação face a face como sintoma da relação de


conflito com as duas instituições (o Banco Santander e o museu), mediadas pelas
obras de arte. Trata-se também de avocar posicionamento de autoautorização de
legislar sobre o que o próprio enunciador (Rafinha) adota como ação, acima do
que é enunciado como lei pela instituição representada pelo ator (f Funcionário)
em interação. Fecha-se, aí, o ciclo de ruptura.

Atos que ameaçam a face negativa do interlocutor: atos que ameaçam a


liberdade de ação do interlocutor, perguntas diretas sem demonstrar cortesia,
perguntas indiscretas, conselhos não solicitados, ordens, cobrança de
favorecimento anterior, etc. (SAITO; NASCIMENTO, 2018).

***

Funcionário – Não pode fazer filmagem aqui.

Rafinha – Não pode fazer filmagem, por quê?

Segurança – Porque não.

Rafinha – Tá, e tirar foto pode?

Funcionário – Também não.

Rafinha – Também não. Agora mudou a regra? Semana passada eu vim aqui e
podia.

Funcionário – Ordens da instituição, amigo.

Rafinha – Tá, tudo bem. Isso aqui na verdade é blasfêmia, tá. Isso aqui fere o
artigo 208 do Código Penal, vilipendiar publicamente...

Funcionário – Nosso país é laico, não existe blasfêmia.

Rafinha – Não existe blasfêmia?

Funcionário – Você está num espaço privado.

***

Funcionário 2 – Tá escrito proibido filmar.

Rafinha – Tá, proibido filmar.

Funcionário 2 – Aqui é uma área particular, certo? Aberta ao público...

Rafinha – Qual o público que está vindo aqui, que mal lhe pergunte?

Funcionário 2 – Não usa a pergunta... porque ela não é resposta nenhuma.

Rafinha – Tá, só me diz qual é o público que está vindo aqui.

Funcionário 2 – Tá escrito lá proibido filmar, certo?

Rafinha – Tá, certo.

Funcionário 2 – Então o senhor não pode filmar

Rafinha – Tá, mas o que eu estou fazendo aqui é uma denúncia. Tá, então só me
diz uma coisa... o senhor pode procurar seus direitos, fica à vontade, é teu direito
de cidadão.

Funcionário 2 – Mas é que o senhor está atrapalhando o meu serviço.

Rafinha – Mas eu só estou te fazendo uma pergunta, qual que é o público que
está vindo aqui?
Funcionário 2 – Não, eu tô só lhe informando que o senhor não pode filmar, só
isso, tá.

Rafinha – Então eu vou continuar filmando, tá, pode ser?

Funcionário 2 – Então o senhor está entrando contra uma regra.

Rafinha – Tá, então tu pode chamar a polícia. Vamos fazer o seguinte, pode
chamar a polícia.

Funcionário 2 – Não, não vou fazer isso.

Rafinha – Então eu vou chamar a polícia se continuar dessa forma, tá.

Funcionário 2 – É isso que o senhor está querendo.

Rafinha – Tá, então fica à vontade. Bom trabalho aí, tá... Eu vou continuar
fazendo a minha denúncia aqui, porque eu sou um cidadão...

Funcionário 2 – Eu só quero que o senhor entenda que o senhor está


atrapalhando o pessoal que está trabalhando.

Rafinha – Pode trabalhar, fiquem à vontade. Eu não estou impedindo ninguém de


trabalhar.

***

Rafinha – Opa, tudo bem meu amigo? Muito boa tarde, muito prazer, eu sou o
Rafael.

Funcionário 3 – Não pode filmar, nem fotografar na exposição.

Rafinha – Tá, antes podia filmar e fotografar, por que que agora não pode?

Funcionário 3 – E também não pode gravar.

Rafinha – Não posso gravar aqui? Tudo bem, amigo, pode procurar teus direitos,
pode chamar a polícia.

Funcionário 3 – Nós já chamamos a segurança.


Rafinha – Tudo bem, tudo bem. É que a gente tá fazendo apenas uma denúncia.
O senhor é o responsável aqui?

Funcionário 3 – Não pode filmar, nem fotografar.

Rafinha – Tá, tudo bem. Procure seus direitos.

Funcionário 3 – Nós já chamamos os seguranças pra retirá-lo daqui. Tá, é só isso


que eu queria dizer.

Rafinha – O senhor é o responsável? Ó, o pessoal diz aqui pra mim que não é pra
filmar, que não é pra gravar. Mas é que eles não explicam, não dão detalhes aí,
referente a essa exposição que eles estão fazendo aqui.

Funcionário 4 – Senhor, o senhor não pode filmar.

Rafinha – Não, tudo bem. Eu só vou filmar isso aqui, tá. (Obra 4)... olha só o
nível da exposição.

Funcionário 4 – O senhor não pode filmar.

Rafinha – Olha só o nível da exposição aqui, ó. As crianças estão assistindo isso


aqui também?

Funcionário 4 – O senhor não pode filmar.

Rafinha – (Obra 5) Olha só isso aqui ó, pessoal. Olha só... segundo denúncias, as
crianças também estão assistindo isso daqui.

Rafinha – Fica tranquilo, tá...

Funcionário 4 – É só isso que eu queria que tu entendesse.

Rafinha – Não, eu entendi.

Funcionário 4 – Não, tu não entendeu, porque tu tá fazendo.

***

Rafinha – Olha, tem uma criança ali ó. Dá licença? Ó, tem uma criança
assistindo ali ó. Olha só, pessoal, ali ó, aberto ao público, tá? Tem uma criança
assistindo aquilo dali. Calma, calma, meu. Calma, cara. Vocês... olha só, os caras
tão me tirando daqui à força. Tem uma criança assistindo aquilo dali, ia filmar
agora. E os caras tão me tirando. Olha só...

Segurança – Agora o senhor filma aqui a entrada, aqui.

Rafinha – Olha só, olha só, cara. Pedofilia, pedofilia, exposição à pedofilia os
caras tão fazendo. Tu tá ligado que isso aí é pedofilia? Não, agora vamos falar a
verdade, vamos falar sério. Isso aí é pedofilia, isso é pedofilia. Isso que tá
acontecendo aí é pedofilia. Pedofilia não é crime? Me diz uma coisa, por que que
as crianças podem entrar aqui pra ver isso aí?

4. Proposições e questões derivadas do argumento indutivo: a hackerização dos


signos culturais

Os esquemas inferidos indutivamente podem ser agrupados em três díades:

1. Sócio-semio-técnica: hackerização e fragmentação

2. Sociossimbólica: a moral e a lei, e o pastoreio

3. Interacional: ameaça e conflito

Não por dedução, mas por indução, as inferências se aproximam do hexágono


que tem sido um formato de identificação de processos antropológicos relativos
à midiatização (Figura 2). Esses três momentos interagem e se interpenetram no
processo.
Figura 2 – Adaptação / Fonte: Hexágono de Blanché (1996)

Certamente, este diagrama ficará mais complexo quando na análise se inferir


sobre as sonoridades e imagens em movimento dos vídeos que instalam o
processo de disrupção em redes. Na “coluna”, acentuamos a fragmentação dos
signos-artes e a hackerização, como operações sócio-semio-técnicas que
agenciam o processo disruptivo (ou de ruptura com o campo regulado); na
primeira horizontal (a moral e a lei; o pastoreio), situamos dois polos de um
embate sociossimbólico, que pode ser identificado no plano macrossocial
(remetendo a formações discursivas, de polarização); na segunda horizontal (a
chantagem e o conflito), que caracterizam as interações face a face, integradas
enquanto linguagem audiovisual, hackerizadas.

Este diagrama serve, agora, de referência para a pesquisa empírica a ser


desenvolvida, com a expansão do campo de observáveis, nos fluxos de rede,
análise dos signos materiais e novas inferências. Na pesquisa empírica a partir
do caso aqui apresentado, é importante considerar que o argumento indutivo é,
epistemologicamente, produtivo, desde que articulado com sua dimensão
dedutiva, a ser elaborada em outro artigo. Neste outro artigo, ainda não
publicado, relacionamos o processo às novas condições de produção, deslocadas
pelos acessos, usos, práticas e apropriações tentativas dos meios em rede, que
resultam em novas condições de produção, recepção e circulação dos discursos.
De forma não exaustiva, novas questões se colocam neste cenário dos processos
midiáticos enquanto sistemas de produção, objetos-signos e sistemas de
reconhecimento.

Neste processo, é possível observar o deslocamento do processo de midiatização


no momento histórico (dos meios de programação para os meios de interação e
mediações algorítmicas). Esta é a riqueza do caso midiático, como campo de
observação de construção de um caso de investigação. Nas redes digitais, as
gramáticas de produção e de reconhecimento são multiplicadas de forma
exponencial, pois cada receptor, inscrito nos meios em rede, se transforma em
produtor, gestando-se, aí, uma nova economia de produção.

Questiona-se sobre o que é este novo sistema de produção. É também industrial?


A nossa resposta é positiva. Não são mais sistemas nacionais (tipo Rede Globo).
Os sistemas de produção agora são internacionais (Facebook, Netflix, Google,
por exemplo). Estes sistemas são também oligopolizados, mas são marcados por
uma grande diferença acentuada no item anterior: a mediação algorítmica
agencia fluxos e espaços de interações, de forma relativamente demográfica,
pois os encontros entre os vários agenciamentos vêm produzindo situações
incertas e indeterminadas, manifestas em novas formas de interação “face a
face” (pois que medidas). Isso deve ser investigado empiricamente no âmbito
deste caso.

As ideologias, como bem observou Foucault, são sucedidas pelas práticas.


Afinal, não se trata mais de meios de conteúdo – nos quais a referência crítica é
o conceito de ideologia. Desde os meios de programação (rádio e televisão), a
crítica das ideologias é limitada (é só acompanhar a evolução da teoria crítica e
as proposições sobre a cultura de massa). Trata-se, desde então, de analisar os
acessos, usos, práticas e apropriações tentativas, derivadas de processos
disciplinadores e tentativas de liberdade perante os sistemas e suas reproduções
(sendo que esta face é tão importante quanto os usos, pois, do contrário, perde-se
o fio que conduz os sistemas atuais às suas articulações com a dominação
simbólica e os capitais específicos – econômicos, políticos e culturais), no fluxo
aberto pela visitação selvagem.

Nesse novo cenário, as formas de reconhecimento “canonizadas” no século


passado (meios de programação) entram em tensão com as formas de
reconhecimento em curso. Não se trata de negar a proposição de Verón segundo
a qual uma “gramática de produção” aciona “várias gramáticas” de
reconhecimento. A questão é outra. Na medida em que os receptores são situados
nos sistemas de produção, há uma multiplicação exponencial de “gramáticas de
produção”, o que gera, necessariamente, o que caracterizamos como “explosão
de defasagens”. Os esquemas, estruturas e sistemas de reconhecimento, nesse
novo contexto, expandem-se, de forma cada vez mais intensa. Enfim, o universo
de sentido se expande, em processos que podem ser caracterizados como
disruptivos.

Pode-se, nessa perspectiva, inferir que o caso midiático Queermuseu sugere um


deslocamento da arte enquanto objeto cultural: dos campos sociais regulados
(campo da arte, articulador da instituição museu e da obra de arte como meio,
referência ao amor pela expressão estética) para as irrupções (explosão das
defasagens) potenciais vinculadas aos novos processos midiáticos (em que o
valor estético é subordinado à primazia do objeto cultural como manifestação do
real).

Isto define a importância de construção epistemológica do acontecimento


midiático do Queermuseu/Santander, o que será feito em outro artigo. Na
perspectiva de Bourdieu, o acontecimento midiático objeto deste artigo pode ser
situado como uma crise do poder simbólico do museu e da arte, enquanto
instituições que demandam ritos e mitos derivados do reconhecimento mágico da
obra de arte. Pode-se inferir que os campos sociais, instituídos nos seus ritos e
mitos, transitam entre a ambiência do estruturado e a (nova) ambiência das
crises, momento em que o delírio em relação ao desconhecido se sobrepõe,
colocando em xeque os ritos e os mitos.

As sinergias em relações de força e processos midiáticos mediados por novas


tecnologias (em redes digitais) enfrentam-se com um novo cenário semiótico,
em que os imaginários, indícios e interpretantes estão em um processo
indeterminado, de incertezas e construções sociais de novos interpretantes.
Novos interpretantes podem ser identificados em processos macro-históricos,
que podem, na pesquisa empírica visitada pelas epistemologias da midiatização,
valorizar também os processos micro-históricos – o que está caracterizado na
literatura como caso ou acontecimento midiático. Nesse nível, o micro, a
identificação das operações – esquemas, estruturas e sistemas – é central para a
análise da circulação enquanto objeto epistemológico.

No artigo em que apresentamos o argumento dedutivo (a ser publicado),


buscamos soluções epistemológicas para essas inferências e questões retomando
a perspectiva de Verón, em tensões [tensão?] com as formulações de Bourdieu
sobre a arte e os museus e as propostas de Braga sobre as relações entre campo e
circuitos.

5. Referências

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derrota-vinganca-vitoria-moral. Acesso em: 1 out. 2018.

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conseguiram encerrar a exposicao Queermuseu: de um post de um site local, a
controvérsia sobre a mostra em Porto Alegre se converteu num movimento de
ameaças. Época, São Paulo. 2017, 15 setembro. Disponível em:
https://epoca.globo.com/brasil/noticia/2017/09/como-movimentos-
ultraconservadores-conseguiram-encerrar-exposicao-queermuseu.html. Acesso
em: 2 out. 2018.
VERÓN, Eliseo; LEVASSEUR, Martine. Ethnographie de l’exposition: l’espace,
le corps et le sens. Paris: Centre Georges Pompidou, 1989.

1 PPGCC – UNISINOS.

2 Ciências da Comunicação – Unisinos.

3 “Nos últimos dias, recebemos diversas manifestações críticas sobre a


exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. Pedimos
sinceras desculpas a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que
fazia parte da mostra. O objetivo do Santander Cultural é incentivar as artes e
promover o debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo, e não
gerar qualquer tipo de desrespeito e discórdia [...] Ouvimos as manifestações e
entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam
símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de
mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde
seu propósito maior, que é elevar a condição humana.” (SANTANDER, 2017)
Trajetos do corpo de uma mulher

Construção e desmontagem de fake news na campanha digital de Jair Bolsonaro

• Antônio Fausto Neto1

Examinamos, sob ângulo distinto, a questão das fake news, refletindo sobre
aspectos que envolvem suas condições de produção e de circulação no ambiente
da midiatização em processo. Quando falamos sobre o assunto, destacamos
algumas vertentes sobre as quais se ocupam especialistas de diferentes áreas de
conhecimento, além de relatos do “homem ordinário”. Se é problemático afirmar
que há uma relação direta entre a disseminação das fake news e as decisões
tomadas pelos indivíduos acerca dos temas por elas explorados, por outro lado,
elas são temas de conversação e de outras iniciativas, seja nos circuitos das redes
digitais, seja também nos âmbitos de práticas sociais diversas, muitas delas
convertidas em “laboratórios” ou, então, em “palco” de intensas disputas de
sentidos. Mas devemos também considerar aquelas leituras que têm como
pretensão desmontar algumas destas mensagens, como é a que nos motiva neste
artigo, valendo-nos de processos observacionais que se encontram na periferia
de alguns protocolos sobre os quais se funda a produção desta modalidade de
relatos.

O foco central deste artigo volta-se para examinar as implicações que as fakes
news têm com as novas formas de engendramento e de funcionamento dos
discursos informativo e político. Principalmente, nos cenários em que se dão
transformações de rituais, processos e produtos de práticas sociais que tinham
nas lógicas da mediação, e no trabalho dos seus operadores, um traço peculiar da
organização sócio-comunicacional.

Há dez anos, por ocasião do evento científico que marcava a criação do Centro
Internacional de Semiótica e Comunicação (CISECO), esta problemática foi seu
tema principal quando se discutiu a midiatização do corpo presidencial. Ali
foram relatadas várias situações de comunicação nas quais líderes presidenciais,
chefes de governos e outros agentes da política passavam a se colocar em
contato direto com os atores sociais, sem o concurso da mediação dos
dispositivos, processos e atores do campo “mass midiático”. Este cenário de “elo
de contato” entre instituições e sociedade dá lugar, de modo célere, às novas
modalidades de interação cujas dinâmicas afastam de cena a singularidade e a
importância das instâncias de mediação. Emergem os protocolos digitais que se
caracterizam “pelo fato de que informações são produzidas, enviadas e recebidas
sem mediação por meio de intermediários” (HAN, 2018, p. 35).

Todas as práticas sociais afetadas pelas lógicas e operações de midiatização


instituem, segundo suas autopoieseis, novos protocolos interacionais, cada vez
mais equidistantes das estruturas e agentes mediadores, estas até então
consideradas como “portões de acesso” à complexidade dos sistemas sociais. Os
efeitos destas mutações são objetos de reflexões pessimistas como a apresentada,
no contexto daquele congresso inaugural do CISECO, por Umberto Eco, quando
dizia ao se referir aos efeitos da mídia no tecido social que as políticas de
posicionamento de imagens representam uma séria ameaça para o futuro da
democracia representativa (FAUSTO NETO; MOUCHON; VERÓN, 2012).

Quase dez anos após, elegemos como objeto deste artigo algo que chamaríamos
como um pequeno registro desta problemática suscitada por Eco e pelos
conteúdos debatidos naquele fórum inaugural. Pretendemos refletir sobre
aspectos da estratégia construída e posta em circulação 40 dias antes do 1º turno
das eleições presidenciais de 2018, no âmbito da complexa ambiência da
campanha política do presidente eleito, cuja dinâmica se assentou em uma
equidistância crescente com os chamados “velhos” meios midiáticos. Construída
tendo como pano de fundo a noção de “grande público”, enquanto um coletivo
que dava corpo à “comunidade bolsonariana”, as ações comunicacionais foram
tecidas sob as injunções de lógicas de contato direto entre o candidato e os seus
seguidores. E, neste contexto, a estratégia engendra por conta própria a
construção de uma mensagem que tem sua gênese a partir do acesso e de
extração de dados de acervo de imagens nos Estados Unidos, segundo ação
longínqua da geografia brasileira, uma vez efetivada, mais precisamente, no
mundo digital.

Apropriando-se indevidamente do corpo de uma mulher, este foi um operador


passivo da oferta da mensagem principal da estratégia. Apontada como
personagem integrante deste “coletivo de seguidores”, “enuncia”, através de uma
montagem de um vídeo, sua adesão à candidatura do posteriormente eleito. A
mulher negra, de origem etíope, mas naturalizada canadense, tem seu corpo
transformado em suporte da campanha. Sua cor é utilizada como senha que
atestaria sua adesão a uma “política de reconhecimento”, convergente com as
hostes do presidente eleito. Seu corpo é também recipiente de uma voz que narra
em português, sobre a topografia da imagem do Twitter, não só a sua adesão,
como também sua cumplicidade com valores que se expressavam em um trajeto
que se fazia na contramão dos valores esboçados por mulheres situadas noutros
coletivos de minorias diversas.

A estratégia de apropriação e de circulação desta simbólica é uma maneira


“nova” de como a política enfrenta as diferenças que se constituem no mercado
discursivo. No lugar do diálogo, montagens que visam a atrair diferenças,
através de recurso feito a uma mediação interdiscursiva equivocada que busca
capturar o outro, evitando, assim, enfrentá-lo no contexto de uma ação
comunicativa de fundo tentativamente mais tensional e distante de
manipulações. Neste caso, o outro é apenas um semblante de convenções junto
aos quais uma campanha política pratica, ao invés do diálogo, a fabricação
(falsa) do outro, cuja construção resulta apenas de uma perversa produção
imaginária.

À revelia das lógicas e motivações que deram forma ao cenário junto ao qual
estes dados foram extraídos, a circulação da mensagem dinamiza este objeto
segundo circuitos que vão além dos postulados e das fronteiras da sua própria
organização. E, conforme mostramos a partir das leituras aqui feitas sobre a
produção desta fake news, ocorrem marcas de feedbacks em divergência com a
oferta, que tratam de denunciar a sua existência e seus efeitos presumidos. As
repercussões sobre este caso extrapolaram fronteiras nacionais bem como
aquelas de sistemas sociais diversos, como, por exemplo, o das velhas mediações
que operam, conforme mostramos neste caso, como potentes leitores
desconstruindo a estratégia.

Nossos objetivos visam, ao fazer esta leitura, mostrar que, apesar de estratégias
político-midiáticas evoluírem na sua forma de construção, elaborando-se em
torno de interpenetrações de lógicas de vários sistemas cooperantes (político,
financeiro, midiático, tecnológico etc.), sempre deixam pistas necessariamente
não aparentes (dos seus “pontos cegos”) e não previstos por suas racionalidades.
Mas elas podem ser desvendadas por leituras que valorizam impressões que são
deixadas como “sobras” para serem objeto de análises que vão além da
motivação consciencial e linear com que as estratégias são elaboradas e postas
em circulação. Pensamos que além das tentativas de regular o “mercado das fake
news”, algo que certamente as conteria sob certo aspecto, exercícios de leituras
voltadas para sua desconstrução poderiam fazer surgir outros signos que
poderiam desautomatizar, com a emergência de outros sentidos, o imponderável
ambiente da circulação.
1. Cenários em formação

Apesar de as notícias falsas serem consideradas um fenômeno que já se


manifestava há mais tempo, principalmente em sistemas informais de
comunicação, como assim eram entendidos os boatos, as fake news atualizam
antigas modalidades de produção de sentidos nos cenários de feedbacks
complexos no contexto da midiatização em processo. Efeitos de uma nova
“arquitetura comunicacional”, decorrente das injunções de tecnologias
crescentes sobre a organização social, afetam todas as práticas sociais de tal
modo que estas são permeadas por lógicas e operações midiáticas. Observa-se
que as mutações sobre processos comunicacionais manifestam-se sobre o
ambiente de produção de mensagens, através das transformações e do
desaparecimento de estruturas de mediação, instância na qual suas “expertises”
se constituíam em atores centrais. Destacavam-se como “elos de contato” entre
as instituições e os atores sociais, mas a singularidade de sua atividade passa a
ser apropriada por todos aqueles que, instalados na ambiência da midiatização,
manejam a comunicação digital de tal modo que informações:

são produzidas, enviadas e recebidas sem mediação de intermediários. Elas não


são dirigidas e filtradas por meios de mediadores. Somos, simultaneamente,
consumidores e produtores. Esse duplo papel aumenta a quantidade da
informação. Hoje todos querem estar (...) diretamente presentes e apresentar a
sua opinião sem intermediários. A instância intermediária é cada vez mais
dissolvida. (HAN, 2018, p. 35-37)

A produção da notícia, outrora regida por determinados procedimentos de


“codificação da realidade”, que era inspirada em “rotinas produtivas” – calcadas
em lógicas e regras de um campo profissional –, passa, agora, da órbita da
competência de especialistas para segmentos de atores mais amplos. A
experimentação desta atividade é, desta feita, associada apenas a exigências mais
simples, enquanto fundamentos associados ao senso comum, como condição de
apuração, expressão e de edição de mensagens.

As fakes news constituem-se em produtos gerados nesta ambiência na qual a


singularidade dos dispositivos de representação, como os que envolvem o
trabalho jornalístico, sucumbe diante de novos modelos, que acenam para, no
lugar do relato mediador, uma prometida “narrativa transparente”. O modo de
fazer em comum que inspira os fundamentos da produção jornalística dá lugar ao
ofício do “fazer por conta própria”, a partir das inércias de plataformas que
fariam circular sentidos sem restrições. É neste cenário, desobstruído de regras e
cânones que envolvem princípios éticos e de regulação, que o processo de
fabricação da notícia escapa das mãos e da responsabilidade de um nicho tecno-
organizacional determinado e passa ao controle daqueles que imprimem ao
processo produtivo racionalidades e motivações as mais difusas. Evidentemente
que a natureza deste dispositivo de produção de notícias é envolta em
motivações que tratam de permeá-lo segundo enquadramentos, valores e efeitos
(presumidos), mas crescentemente controlados por instâncias individuais, ou
mesmo nichos institucionais, e fundadas em fins estratégicos muito específicos.

Ao refletir sobre aspectos de produção de fake news no contexto das eleições


presidenciais de 2018, constataremos que a transformação de um modo de
produção por outro, envolvendo o acesso e a produção de estratégias de
produção discursivas, não se passa a céu aberto. Engendra-se em articulações
que escapam à vigilância das instituições fiscalizadoras e tomam corpo em
operações discursivas que obscurecem a finalidade dos sentidos em oferta.

1.1. Obscurecendo a transparência

Sete meses antes das últimas eleições presidenciais no Brasil, o tema das fake
news comparecia em vários círculos, principalmente naqueles de natureza
midiática, como uma questão relativamente distante, ou de forma genérica, sem
estar ainda atravessado por materialidades de produtos específicos. Porém, as
primeiras narrativas sobre sua manifestação ressalvam que o avanço de
tecnologias, e suas possibilidades de reprodução de mensagens, tornariam cada
vez mais fácil falsificar vídeos ou áudios, ensejando a divulgação de textos com
conteúdo não verdadeiro. Responsabilizavam-se dois outros fatores como
prováveis causas pelo desembarque de manifestações de fake news no país: a
velocidade no trânsito de funcionamento de circuitos de mensagens e a própria
capilaridade oferecida pela mediação de plataformas de alcance global e
instantâneo. Estes dois fatores associados ao fato de o manejo de processos
editoriais estar nas mãos de atores – situados de modo distante da observância de
processos regulatórios e de rotinas de curadorias – potencializariam a geração de
fatos eivados de imprecisões e de construções interpretativas, de caráter
duvidoso.

As lutas de sentidos desencadeadas por grupos de pressão passariam a contar


com as fake news como o “maná” alimentador de práticas em conflito. Estas
eram entendidas como um fenômeno associada a uma “desordem
informacional”, designação esta que merece ser melhor elaborada. Quando
falamos sobre fake news, costumamos nomear apenas os efeitos de algo cujas
causas mereceriam ser diagnosticadas, pois, em larga medida, estas teriam algo a
ver, por exemplo, com as consequências da “revolução do acesso” (VERÓN,
2013), ensejada pela internet sobre os modos de agir dos indivíduos e de práticas
socioinstitucionais diversas.

Como lembrado acima, a instância de mediação de contatos e de articulações


entre instituições e a sociedade, constituída através de mídias, na outrora versão
“mass midiática”, perde protagonismo no trabalho de produção e de circulação
discursos. Porém, quem suporia que a “rede (emergente) das redes” entendida
como uma instância de geração de novos padrões interativos, fundados na
transparência e no “livre” intercâmbio de signos, trairia o ideário que, por longo
tempo, proclamava os benefícios que dela se esperava? Muito cedo, ela se
transformaria em um novo campo de disputa de sentidos ou, segundo outra
formulação, em uma espécie de “zona de sombras”. Suas dinâmicas de aparente
simetria, estimuladas por uma duvidosa intercambialidade generalizada e que ia
além das ações dos polos tradicionais de produção de recepção de mensagens,
vão transformando a internet em um novo campo de disputas. Todas as práticas
sociais se deslocam para ela levando consigo suas gramáticas e lógicas. Mas
todos estes aspectos impedem prever, de modo positivo, como a internet
cumpriria os ideários que, de alguma forma, se manifestavam quando do seu
aparecimento, especialmente aqueles relacionados com a transparência e
interações simétricas.

As fake news ganham contornos de tematização, com a aproximação do


calendário das eleições presidenciais brasileiras em 2018, convertendo-se em
matéria de trabalho de vários campos sociais. Elas são transformadas em objeto
de publicações acadêmicas e delas se ocupam também a grande mídia, enquanto
uma de suas grandes “vítimas”. Esta manifesta sua temeridade sobre as fake
news segundo levantamentos que apontam os maiores sites no país produtores de
notícias falsas. E, como prenúncio de uma possível ação fiscalizatória sobre elas,
as empresas midiáticas seguem movimento internacional de caráter multi-
institucional e se organizam em torno de “consórcios” para implementar “forças-
tarefas” voltadas para checagem de fatos.

Efeitos desta questão se projetam sobre seminários acadêmicos que demonstram


seu pessimismo sobre a presença de tecnologias de comunicação permeando
práticas sociais diversas, como as de natureza política. Os efeitos da modalidade
desta interferência são associados às fake news e que são anunciadas como um
risco claro à democracia. Observações sobre as implicações destas articulações
entre tecnologias digitais e práticas políticas começam a ganhar contorno mais
específico. Aponta-se e descreve-se a gênese de uma “maquinaria complexa”,
constituída por redes sociais (Facebook, Twitter, WhatsApp etc.) e as
implicações de suas ações sobre países específicos, como o Brasil, como é
apontado na matéria “WhatsApp pode ameaçar a estabilidade no Brasil, diz
pesquisadora de Harvard” (ABRANTES, 2018).

De um modo distinto, para não dizer distante, o tema das fake news foi tratado
nos círculos governamentais como um fenômeno interno. Os debates e estudos a
cargo de grupos de trabalho governamentais se mantinham circunscritos às
rotinas de instituições: “TSE coloca sigilo em atas de reuniões sobre fake news e
eleições” (Estado de Minas, 6 ago. 2018). Poucas ações resultam de grupo de
trabalho que é criado 14 meses antes das eleições presidenciais, com objetivo de
desenvolver pesquisas e estudos sobre as regras eleitorais e a influência da
internet nas eleições, em especial o risco das fake news e o uso de robôs na
disseminação das informações (Estado de Minas, 6 ago. 2018).

Mas, sem que tais estudos tenham contemplado de modo prospectivo marcas de
circulação de notícias falsas, estas se registram pouco antes das eleições de 2018,
segundo pistas de sua materialização através de redes sociais. Alguns dos seus
efeitos são enfrentados apenas de modo emblemático. O Facebook exclui de sua
página contas falsas (de origem brasileira) cujos responsáveis faziam “parte de
uma rede coordenada que se ocultava com uso de contas falsas e escondia das
pessoas a natureza e a origem do seu conteúdo com o propósito de gerar divisão
e espalhar desinformação” (Facebook, nota em 25 jul. 2018). Porém, a ação
daquele “motor de dados” não enfrenta o problema da remoção de notícias falsas
da plataforma, atuando apenas na redução de sua distribuição, numa espécie de
ação indireta sobre a circulação.

Seria inócuo pensar que os atos de detectar e bloquear o acesso de fake news
conteriam a circulação, uma vez que o processo de levar mensagens adiante se
encontraria impulsionado por dinâmicas de complexos e bifurcantes circuitos,
cujo controle seria impossível de conter sentidos por eles dinamizados. Ou seja,
as contas foram removidas, mas, quando este ato se deu, as mensagens por elas
anunciadas já se encontravam em novos territórios de circulação e assim por
diante...
2. Antecipação dos traços da maquinaria

A maquinaria das fake news tem forma, território e atividade que vão lhe dando
contornos. E, particularmente, duas de suas manifestações, no atual contexto
político brasileiro, são apresentadas através de duas reportagens jornalísticas
emitidas pelos serviços em português da BBC (Inglaterra) e do El País
(Espanha), entre 16 e 28 de setembro deste ano. Denunciam a materialidade de
complexa aliança envolvendo redes sociais e a campanha política do presidente
eleito, segundo complexas estratégias e de protocolos de produção de fake news.
A BBC denuncia a fabricação e midiatização de uma notícia falsa, atribuída à
campanha de Jair Bolsonaro (JB), através de um vídeo que veicula mensagem de
mulher negra – referida como brasileira – anunciando seu apoio ao candidato
eleito. Trata-se de uma operação de propaganda política e que é desmascarada ao
apontar que a matéria foi produzida e posta em circulação desde o exterior.
“Canadense e executiva: a verdadeira história da ‘brasileira negra e pobre’ de
vídeo divulgado pela campanha de Bolsonaro”, diz o título da matéria (BBC
News Brasil em Washington, 16 set. 2018).

A reportagem do El País baseia-se em pesquisa acadêmica para descrever a


existência e o funcionamento do que nomeou como “A máquina de fake news
nos grupos a favor de Bolsonaro no WhatsApp” (El País, 28 set. 2018). Segundo
a matéria do El País, é possível se ter uma visão mais detalhada do “aparelho” da
militância do candidato eleito, especialmente seu processo estratégico-
organizacional, que se faz em torno de grupos com tarefas específicas voltadas
para a disseminação de ações e mensagens que envolvem fake news. A
reportagem destaca processualidades das ações dos participantes e seguidores,
citando como referência o uso do aplicativo de mensagens no WhatsApp,
chamando atenção para as práticas de uma “militância de combate” voltada para
enfrentar todos os tipos de ações midiáticas que visam a desqualificar a imagem
do presidente a vir a ser eleito. Os alvos destas ações são: a cobertura da grande
mídia, as pesquisas eleitorais, a preparação de (falsas) declarações de apoio à
candidatura, por parte de personalidades públicas, a intervenção em sites/páginas
de adversários.

Ou seja, a atividade de combate opera segundo fundamentos logísticos e


discursivos que atuam em todas as frentes nas quais o nome do candidato é
objeto de construção de vários discursos políticos e midiáticos. O coletivo que
age na campanha de JB é nomeado como “grandes públicos”, mas que agem
como ativistas que chegam a publicar mais de mil mensagens por dia, atingindo
o mais amplo espectro de pessoas, valendo-se da eficácia da plataforma do
WhatsApp. As características de funcionamento destes agrupamentos valorizam
largamente as potencialidades das redes sociais, aspecto este que já é
apresentado como uma das matrizes centrais das estratégias de comunicação que
o candidato eleito vem praticando, mesmo após vencer a eleição.

Ele esquivou-se de debates televisivos, por vários motivos – inclusive de razões


comunicacionais. Mas explicitou discriminação para com algumas mídias
tradicionais, comportamento este que se repete largamente quando na transição
da sua eleição para sua posse. Enfatizou a importância do “contato direto” com
atores sociais, ensejado pelas redes, e tem com as mídias tradicionais uma
prática “aproximação seletiva”, especialmente no âmbito de entrevistas
convocadas por sua assessoria. Filtra setores da mídia tradicional com quem não
deseja interlocução, além de dispensar a mediação de porta-voz, uma vez que,
frequentemente, vale-se de redes sociais para entrar em contato diretamente com
seus seguidores.

Em função dos objetivos deste artigo que estão voltados para descrever a
fabricação de fake news, a referência desencadeadora desta análise é a
reportagem da BBC. E, dentre as razões que justificariam tal escolha, destaca-se
o espectro que ela deu ao processo de montagem/des-montagem desta notícia
falsa. Mesmo que não se possa tirar todas as consequências do processo
observacional jornalístico, sua importância é reconhecida. Destaca ângulos que,
de alguma forma, são retomados e aprofundados por análises posteriores, como a
que se pretende aqui abordar. Também valoriza a ação pedagógica do discurso da
informação, cuja importância é destacada por outros campos analíticos, como o
sociológico, ao reconhecer que aquilo que sabemos se efetiva por causa da
existência dos meios (LUHMANN, 2006).

Feitos estes aclaramentos iniciais, situaremos em seguida uma hipótese geral em


torno da qual gira o processo de leitura e de análise da fabricação desta fake
news. Parte-se da hipótese de que são muito remotas as possibilidades de
contenção das fake news porque as potencialidades de seus efeitos de sentidos
repousam em complexa dinâmica cuja circulação não passa pelo controle,
restrição, intervenções de ações dos seus espalhadores. Considerando a
arquitetura comunicacional na qual a circulação se faz, fundada em complexa
assimetria em termos de produção/recepção de sentidos, bem como na natureza
do trabalho dos circuitos, gerando sempre horizontes de indeterminação sobre os
sentidos produzidos, entende-se que são imprevistos os efeitos de disseminação
de uma mensagem.

Porém, tal complexidade não é elaborada pelo ambiente da comunicação política


do presidente eleito ao explicar os desafios interacionais impostos às relações
entre candidato e seguidores, a partir de um modelo comunicacional de natureza
consciencialista, fundada no domínio das intencionalidades. Apenas para
exemplificar níveis de uma confusa compreensão sobre as lógicas em torno das
quais se manifesta tal interação entre campanhas e eleitores, chamamos atenção
sobre a autocompreensão que o presidente eleito tem da sua performance, na
relação com os circuitos de seus seguidores que produzem fake news e, de modo
pontual, a respeito de sua ascendência sobre as possibilidades de produção de
sentidos.

Em duas ou três falas, ele afirma que “não dissemina fake news, mas admitiu
que não tem controle sobre eventuais apoiadores que repassam informações
falsas” (Terra, 4 out. 2018). Na segunda, aponta atividade mais proativa para
com os seus seguidores, destacando a sua condição de fonte desencadeadora de
fluxos a serem cumpridos pelos seguidores. Diz que “alimenta suas redes sociais
com ‘verdades’ e que conta com um exército de seguidores para divulgá-las”
(Terra, 4 out. 2018). E, numa terceira mensagem, declarou que “não tenho
controle sobre quem espalha fake news” (CBN, 12 out. 2018). Se na terceira
afirmação exclui qualquer tipo de controle sobre quem espalha notícias falsas, na
segunda aponta uma certa contradição em relação à assertiva anterior, ao lembrar
que exerce sobre os seguidores duas formas de influências: dissemina sobre eles
verdades, expressão que aparece entre aspas e que as mesmas são por ele
repassadas para seguidores para que estes possam, em seguida, difundi-las.

As três situações colocadas pelos enunciados não contemplam dimensões que


envolvem processos interacionais de modo mais complexo. Expressam sequelas
de uma compreensão apenas mecanicista do trabalho de produção de sentido.
Situa a interação como algo que, não sendo vista como uma relação, é apenas
uma mecânica de trânsito de signos a outros, dinâmica esta da qual não se pode
tirar consequências mais refinadas sobre as condições de produção de sentidos
no contexto apresentado. Talvez devamos buscar consequências mais complexas
destas noções junto às ações que alimentaram estratégias de campanhas e que se
fizeram por meio de tecnologias, destacando as redes como principal insumo que
alimentou o processo eleitoral. Práticas que até então caracterizaram a campanha
eleitoral, como o Horário Eleitoral Gratuito, os debates televisivos foram
tragados pelos embates em redes sociais, contexto no qual o WhatsApp se
constituiu na plataforma mais organizadora de oferta dinamizadora de sentidos.

Conforme observaremos mais adiante, a própria fala de gestores jurídicos da


campanha, sobre a avaliação da produção da fake news em análise, compreende
que seu processo de produção se dá em um contexto destituído de restrições, e
que a implementação delas no âmbito da campanha depende apenas dos seus
gestores. Portanto, tratava-se de uma atividade fora de controle por parte de
instâncias da própria sociedade.

Na véspera das eleições, instituições que diziam controlar a gestão do processo –


como o Supremo Tribunal Eleitoral – se veem atônitas diante de denúncia
jornalística segundo a qual “empresários bancam campanha contra o PT” através
da compra de pacotes de disparos em massa de mensagens. De acordo com este
relato, este processo de circulação de mensagem é complexificado na medida em
que empresas que apoiam JB estariam comprando serviços chamados de
“disparo em massa”, usando a base de dados de usuários do próprio candidato.
Empresários se defendem desmentindo a existência deste expediente, mas
lembram que a campanha se faz através de milhares de apoiadores voluntários
espalhados em todo Brasil, que são criados e nutridos organicamente.

Um volumoso contrato entre empresas e serviços especializados, no valor de 12


milhões de reais, teria sido firmado entre as empresas que apoiam a candidatura
de Bolsonaro, com serviços especializados em “disparar mensagens”. O mote da
campanha contemplou vários subtemas, mas respeitou-se argumento central,
segundo o qual para se evitar que se repita tudo o que aconteceu de mal, e que
está sendo denunciado, é preciso votar em Bolsonaro (“Empresários bancam
campanha contra PT pelo WhatsApp”, Folha de S. Paulo, 18 out. 2018).

Visando examinar o trabalho de construção desta estratégia midiática, nossa


análise se ocupará da descrição de materialidades de fabricação de fake news em
favor da disseminação do discurso político de Jair Bolsonaro. Tomaremos com
referencia três registros midiáticos divulgados em setembro deste ano: 1) a
matéria da BBC denunciando a produção e circulação do vídeo como fake news;
2) a matéria do “Militantes de esquerda” descrevendo aspectos de organização e
de desconstrução da estratégia, tomando como objeto o perfil do Twitter do
deputado Bolsonaro, na qual a fake news circulou; 3) o uso da aba “O Essencial”
inserida no Diário do Centro do Mundo (DCM) que descreve o funcionamento
da estratégia no perfil do Twitter.
3. Anúncio-denúncia da fabricação

Imagem 1 – Mulher em vídeo da campanha pró-Bolsonaro / Fonte: BBC News

No dia 17 de setembro de 2018, vários campos, principalmente os de natureza


politica e midiática, eram surpreendidos com matéria publicada pelo site da BBC
News (português). Tinha como objeto mensagem inserida e posta em circulação
no Twitter do deputado Eduardo Bolsonaro. O site da mídia inglesa descreve os
elementos discursivos enunciados no perfil que estampava a imagem 1, de uma
mulher negra e nomeada pelo título como “Mulher negra e de família pobre”.
Informa que o referido perfil traz, além da exibição da foto da mulher, outro
texto inserido mais abaixo contendo fragmentos de discursos bíblico e político:
“Somente a verdade nos liberta. Quem tudo pede ao Estado, tudo lhe é retirado,
inclusive a liberdade”. A imagem da mulher negra aparece em um primeiro
plano, expondo-se ao contato direto e oferecendo-se para a leitura do leitor, mas
sem emitir nenhuma manifestação de movimento. Uma voz de (outra) mulher
“surge” do corpo da imagem verbalizando mensagem em português e cujo teor
aparece legendado. No relato, a mulher anuncia seu apoio à candidatura do
presidente eleito, conforme o relato que é reproduzido abaixo:

Sou mulher negra e vinda de família pobre, mas não passei procuração para que
ninguém fale em meu nome. Há muito me libertei do vitimismo, que ainda
insistem em me colocar sobre os ombros. Sim, sou mulher negra e de família
pobre, mas que aprendeu a lutar com as próprias forças para realizar suas
conquistas. E será assim, que também ensinarei os meus filhos. E será assim, que
em 2018 elegerei o próximo presidente do Brasil. Um presidente que não
aceitará o fato de que por sermos mulheres e negras devamos nos manter pobres
para manter o jogo da velha política do voto por esmola. Meu voto é pelo Brasil.
Meu voto é Bolsonaro. (Transcrição fidedigna do vídeo dos “Militantes de
Esquerda”).

A circulação da mensagem foi, inicialmente, negada por parte da campanha do


presidente eleito. Mas guarda, com a mesma, contiguidades e relações, algo que
é mostrado pelo processo que impulsiona a sua circulação. O vídeo foi extraído e
cedido por um seguidor da campanha para, em seguida, ser capturado pelo perfil
de Eduardo Bolsonaro no Twitter, de onde segue para os destinos vários a serem
dados por outros seguidores, curtidores etc. Uma leitura que se faz do uso dessa
estratégia faz associação com as tentativas de campanha de Bolsonaro visando a
conter os altos índices de rejeição que sua candidatura apresentava junto ao
eleitorado feminino, além de segmentos considerados minorias, como
movimentos coletivos de mulheres, ao lado de outras constituídas por gays,
nordestinos etc. Um dos aspectos centrais da construção da estratégia visava a
fazer, no plano da midiatização, uma articulação entre a imagem da mulher negra
com a declaração na qual ela expressa seu apoio à candidatura do presidente
eleito. Nela, enfatiza a justificativa da sua escolha pelo fato de candidato-eleito
“tirá-la de um lugar no qual fora sempre colocada: pobre e a serviço de uma
velha política”.

Porém, três dias após (19/09/2018), a noticia falsa começa a se desmoronar e a


página vira um caso para cobertura midiática internacional. O relato da BBC, ao
denunciar a estratégia, prometeu, ao mesmo tempo, elucidar o seu teor, conforme
título do primeiro registro: “Canadense e executiva: a verdadeira história da
‘brasileira negra e pobre’ de vídeo divulgado pela campanha de Bolsonaro”. E
lembra alguns fatos que caracterizam o caráter falso da notícia produzida pela
campanha. Em primeiro lugar, diz que “a mulher retratada mora em Toronto e
gravou vídeos (há sete anos) com outro conteúdo, junto a uma série de outros
filmes produzidos por um diretor também canadense, especializado em criar
conteúdos para bancos de imagens”. Em segundo lugar, destaca que é ex-atriz,
que tem origem etíope e um perfil bastante diferente daquele descrito na
narração usada junto à sua imagem no vídeo.

Na foto exibida pela BBC, há sobre a imagem do corpo da mulher uma palavra
como operador de identificação (shutterstock), espécie de uma marca d’água
alusiva ao nome da plataforma na qual o vídeo fora hospedado e posto à venda.
A empresa, ao se pronunciar sobre a existência do vídeo, declarou que o uso de
imagens do seu arquivo é proibido tanto pelo produtor quanto pelo banco de
dados para uso de campanhas políticas. Esta opinião contraria a versão da
assessoria jurídica da campanha, quando disse abaixo que não havia
impedimento para o uso da imagem por parte da campanha de JB. Em terceiro
lugar, o vídeo apropriado no qual a mulher aparece vestida com trajes de uma
enfermeira foi selecionado dentre outros, nos quais foi ela “filmada
interpretando uma operadora de telemarketing e uma cantora”, revela o autor do
filme em entrevista à BBC. Sobre a estratégia da campanha, ele comenta: “não
me parece muito patriótico usar as imagens de uma estrangeira, sem prévia
autorização, em um vídeo que supostamente fala pelas mulheres negras
brasileiras”.

Em dias mais ou menos convergentes com a denúncia da BCC, o caso é


amplificado em termos de circulação pelos relatos de outras mídias brasileiras ao
valorizar “micro ocorrências” que envolvem as condições de fabricação da
mensagem. Destacam o custo do vídeo da ordem de 79 dólares, mas que o
mesmo não fora comprado (O Povo, 18 set. 2018). Pertence a um arquivo de
dados de empresa americana que possui um acervo de “229 milhões imagens,
entre vídeos e fotos” (FSP, 16 set. 2018). É enfatizada a origem da mulher – uma
atriz estrangeira cuja imagem foi usada para “representar ‘mulher negra e
pobre’”, conforme O Globo (18 set. 2018).

Lembrando a importância de detalhes aparentemente “sem sentido” – os


“punctuns” que aparecem em imagens, segundo a leitura de Barthes (1990) –,
chama atenção um registro que comprova elementos do investimento de
falsificação da imagem. Na foto inserida a seguir, na página “Militantes de
Esquerda” (Imagem 2), observa-se que a marca d’água pela qual se exibe o
nome da empresa é substituída por uma tarja preta encobrindo, assim, a
verdadeira referência de sua propriedade. Este fato aponta para uma intervenção
de uma atividade enunciativa sobre a foto, modificando informação que estava
exibida na foto original, antes de sua apropriação. Nestas condições, a imagem
sem movimento do corpo da mulher recebe a nova tarja como pista ocultadora,
mas ao mesmo tempo como um espaço sobre o qual é legendada a mensagem
emitida pela voz em português, sem que a mesma apresente sotaque de pessoa
estrangeira. A voz que emanaria do corpo da mulher – durante 1min10s
(segundo O Globo, 20 set. 2018 e a FSP, 16 set. 2018) – é, de fato, de uma
mulher, segundo gravação em off, e é efeito da montagem da mensagem. Da
mensagem emitida pela voz feminina, em língua portuguesa, e prometendo votar
em Bolsonaro, infere-se que o seu verdadeiro alvo é um determinado mercado
discursivo constituído por mulheres que, longe do estrelato de peças
publicitárias, são assim interpeladas pela campanha bolsonarense.

Imagem 2 / Fonte: Militantes de Esquerda

Numa evidência de que os efeitos causados por mensagens que ingressam na


circulação não são previamente desconhecidos, chama atenção a abordagem que
o site “Militantes de Esquerda” faz sobre a notícia. Distante dos modos clássicos
como as mídias dão repercussão aos fatos, este site assume, por assim dizer, uma
estratégia de desconstrução da fabricação conforme as marcas destas atividades
exibidas na Imagem 2. Descreve operações desta fabricação a partir da
apropriação do perfil do Twitter, exibido abaixo (Imagem 3), e lança algumas
marcas textuais que são descritas na espacialidade da página do site (Imagem 2)
inserida anteriormente. Ou seja, o site desenvolve um outro processo
observacional que vai além daquele operado pela estratégia da BBC, pois
intervém diretamente no universo de produção da noticia para, pela
demonstração de pistas de sua produção, apontar a desconstrução da estratégia.

No item anterior vimos que o caso da fabricação da fake news relatada pela BBC
dá ênfase a um conjunto de “micro fatos” que vão irrigando o processo da
noticiabilidade que visa a dizer, no lugar da fabricação, a verdadeira história da
“brasileira negra e pobre da campanha de Bolsonaro”. Para tanto, ouve fontes,
inclusive o ponto de vista da campanha do presidenciável Bolsonaro, questão
que vai merecer registro especial no contexto deste artigo.

Conforme pode-se ver, junto ao site “Militantes de Esquerda”, ele desenvolve


outro nível de operação e que, de alguma forma, se aproxima mais de uma
“leitura acadêmica” ao recolher outra natureza de operações (textuais), com
objetivo de oferecer aspectos mais explicativos sobre os modos como vai
operando a desmontagem da fabricação de uma fake news. Para tanto, mapeia
outras operações a partir do seu ingresso no “Twitter – Bolsonaro SP”. Trata de
deslocar para a própria superfície do site algumas pistas, que são reveladas por
textos que mostram detalhes de como se dá a apropriação do vídeo por parte do
cedente-seguidor e sua adaptação ao Twitter por parte do responsável do perfil, o
deputado Bolsonaro. Vejamos, inicialmente, algumas referências da
desconstrução propriamente dita envolvendo diretamente a tensão entre dois
suportes de enunciação: a página do site (“Militantes de Esquerda”) e o perfil do
Twitter (deputado Bolsonaro).

Para produzir a análise de produção/deconstrução da fake news (Imagem 2), o


site apropria-se do perfil do Twitter para extrair e escrever algumas de suas
operações. Tal apropriação não possibilita imagens explicitamente do Twitter,
mas apenas de alguns dos seus elementos que, no caso, aparecem já inseridos no
que seria a página do site. Ou seja, pistas destas operações se evidenciam pela
emergência de uma pagina que vai reunir, ao mesmo tempo, elementos
discursivos da página do site apropriador e outros que emarariam do perfil do
Twitter, conforme o contexto da superfície mostrado na Imagem 2. Nestas
condições, são mantidos alguns elementos identificadores do perfil do Twitter,
especialmente referências do seu responsável.

Como elemento co-identificador da origem da página aparece um fragmento que


reúne parte do discurso bíblico e outra de discurso político que, de alguma
forma, reportam-se ao complexo e sincrético universo sobre o qual repousa o
discurso da campanha de Bolsonaro. “Somente a verdade nos liberta. Quem pede
tudo ao Estado, tudo lhe é retirado, inclusive a liberdade”, diz o enunciado, que
também se oferece ao mercado político dos “grandes públicos”, como assim são
definidos seus seguidores por Bolsonaro. Um pouco abaixo, em maiúsculas, um
enunciado (MULHER PRETA E POBRE) funcionaria parcialmente como uma
mensagem de teor informativo incompleto. Porém, quando estabelecida a sua
relação com um segundo enunciado que está inserido na parte inferior da
imagem (Imagem 2), poderá ser visto que se estabelece uma mensagem mais
especificada: USADA EM CAMPANHA DE BOLSONARO É MODELO
ESTRANGEIRA DE BANCO DE DADOS.

E, se articulados os dois enunciados que estão inseridos de modos distintos entre


a parte superior e inferior da imagem, vê-se que emitem uma terceira
informação. Esta se contraproporia àquela mensagem inicialmente emitida e
objeto da denúncia da BBC. Ou seja, trata-se de uma intervenção do site que
denuncia, pelo desmentido, a mensagem que foi veiculada pelo Twitter. No
centro da página aparece, na faixa preta afixada sobre o corpo da mulher,
mensagem que legenda o texto falado por voz feminina, em língua portuguesa,
anunciando a sua adesão à candidatura de Bolsonaro: “ELEGEREI O
PRÓXIMO PRESIDENTE DO BRASIL”.

Além destas operações de desmontagens que são feitas sobre a superfície da


própria topografia do site dos “Militantes de Esquerda”, uma última operação
sobrepõe-se à quase totalidade dos enunciados que se apresentam sobre a página:
a reprodução da imagem de um carimbo reproduz a mensagem em maiúsculas –
‘FAKE NEWS’ –, evocando a conclusão de um diagnóstico. A fim de que o
trabalho observacional realizado pelo site possa ser compartilhado pelos leitores,
este se vale de uma aba (Imagem 3) de um outro site (“Diário do Centro do
Mundo”) junto ao qual apoia o seu trabalho explicativo sobre a desconstrução do
discurso da campanha. Dentre as marcas de desmontagem, destaca-se o título
que condensa informações de várias mídias, chamando atenção para a
manipulação da imagem e externando informações sobre o perfil profissional da
mulher que aparece no vídeo: “Mulher Negra usada por Bolsonaro é modelo de
banco de imagens na Net por 79 dólares” (Imagem 3).
Imagem 3 – Intervenção na fabricação / Fonte: Diário do Centro do Mundo

A circulação dá novos destinos ao perfil do Twitter, que deixa de ser o centro da


atenção ao ser parcialmente desativado por seu responsável. Conforme a
Imagem 4, o perfil continua em funcionamento, mas trazendo apenas fragmentos
como o nome do seu editor, bem como o mote bíblico-político que parece
permear toda a sua comunicação. No espaço em que havia sido apropriada a
imagem do corpo da mulher, resta apenas uma superfície de fundo azul
sobreposta por outra mensagem, emitida em 13 de setembro de 2018, que aponta
para uma pane que o perfil enfrentaria na ambiência da circulação: “Esta
transmissão não está disponível em sua localização”. Surgem pistas sobre restos
de uma fake news mal sucedida. Mas este dado suscita a possibilidade de outras
leituras. Uma delas se relaciona com efeitos de sentido que o fragmento bíblico
ali inserido poderia oferecer para se entender a interrupção da página para além
de uma noticia evasiva; como por exemplo, a liberdade negada àquele que
pratica o mal combate.

Imagem 4 / Fonte: Twitter

4. Conclusões

As fake news resultam de complexos processos de transformações nas condições


da produção e circulação e de recepção de mensagens que ocorrem no cenário de
midiatização generalizada, no qual todos produzem e enviam informação. Esta
condição remove vários parâmetros que até então serviam como referência para
orientar os processos de enunciação da comunicação pública, como, por
exemplo, aqueles relativos aos da representação, acesso, tratamento de dados etc.
Especificidades de processos de observação que norteavam práticas de campos
sociais diversos são subsumidas ou substituídas por novos mecanismos de
produção de sentidos que atropelam princípios caros sobre os quais repousaria a
comunicação, como noções de confiança, responsabilidade, distância e
cumplicidade (SILVERSTONE, 2014).

O uso de recursos, que são manipulados para oferecer mensagens no sentido da


sociedade avaliar plataformas políticas, não obedece estes princípios acima, ao
se transformar elementos de bancos de dados em personagens centrais, como
referência da política em tempos digitais. Coletivos que constituem a
complexidade do tecido social, corpos anônimos, extraídos de geografias
estrangeiras, de história desconhecida, deles se sabendo apenas que residem em
arquivos de dados, são transformados, segundo construções discursivas, como
referência para outros coletivos que, noutras geografias, constituem a
complexidade do tecido social.

No lugar do embate da discussão pública animada pela ação comunicativa na


forma do diálogo, a nova campanha política substitui o eleitor e suas referências
por um ente condensado, fruto de investimentos de uma estratégia cuja
racionalidade argumenta que a construção da mensagem depende apenas da
vontade unilateral de qualquer um. Mas, devemos aduzir que se vale também de
agenciamentos de vários expedientes. Ouvida pela BBC, a advogada indicada
pela campanha do presidente eleito para falar sobre a fake news divulgada
expressa opinião que condensa, segundo certo modo “didático”, os fundamentos
que nortearam a fabricação da estratégia em análise:

Não há qualquer ilegalidade no vídeo do ponto de vista eleitoral. Este foi um


vídeo de um apoiador que o Eduardo gostou e republicou. A gente nem consegue
rastrear o autor. Tecnicamente, a partir da campanha, não há nenhum
questionamento quanto à produção. O apoiador, sob o ponto de vista eleitoral,
pode produzir materiais com favorecimento a determinada campanha. Qualquer
pessoa, inclusive o candidato, pode publicar o que gosta. Não vi nenhuma
ilegalidade nem por parte do eleitor, nem por parte do candidato em compartilhar
um vídeo que é público e notório. (...)”. (BBC News Brasil, 19 set. 2018).

Nenhuma propaganda é obrigada a colher depoimentos reais – claro, do ponto de


vista do marketing, é melhor – e não tem obrigação de publicar pontos de vistas
verdadeiros. A missão é informar o eleitor e isso estava sendo feito (“Canadense
e executiva: a verdadeira história da ‘brasileira negra e pobre’ de vídeo
divulgado pela campanha de Bolsonaro”, BBC News Brasil, 19 set. 2018). Mais
do que a defesa sobre procedimentos que nortearam a produção de uma
mensagem no âmbito de uma campanha eleitoral, o discurso da especialista
jurídica é uma preciosidade não apenas sobre a existência e a utilidade de uma
fake news, mas, sobretudo, porque reflete e legitima o processo de sua
fabricação. Mesmo que usuários do Twitter tenham descoberto a mensagem falsa
e mídias tenham denunciado e amplificado a sua significação no contexto das
eleições brasileiras, desencadeando fendas na topografia da circulação dos
sentidos, “nada respinga sobre a campanha”, disse ela. As fake news seguem
adiante.

5. Referências

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pesquisadora de Harvard. IHU. 2018, 3 julho. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/580472-whatsapp-pode-ameacar-
estabilidade-no-brasil-diz-pesquisadora-de-harvard.

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ARAUJO, I. S; AGUIAR, R. Los discursos concurrentes que se convertieram en


boato.El nombramiento como ejercicio de poder. Communication Paper. v. 7, n.
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BEHS, M. Disrupções e regulações em circuitos e circulações difusas: a


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FAUSTO NETO, A. Investir na apuração para enfrentar as fake news é como


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2013. In: FREIRE FILHO, J. e COELHO, M. (orgs). Jornalismo, cultura e
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Disponível
em: http://revistas.ucm.es/index.php/CIYC/article/view/50682/47076. Acesso
em: 16 ago. 2018.

1 Professor Titular do PPG Comunicação – Unisinos.


Novas circulações discursivas sobre ciência

• Suzanne de Cheveigné1

Gostaria de examinar aqui algumas características da circulação do discurso


sobre a ciência no âmago das “novas” mídias. Os suportes técnicos mudam
assim como certas práticas tanto dos produtores desses discursos quanto de seus
receptores, leitores ou espectadores. Por outro lado, os públicos evoluem mais
lentamente e isso merece ser examinado de perto, mobilizando todas as
ferramentas construídas pela sociologia das mídias. É esse apelo que já fazia
Sonia Livingstone há quase quinze anos em um artigo intitulado “The challenge
of changing audiences: or what is the audience researcher to do in the age of the
internet?” (2004)2. Nesta mesma ótica, desejo mostrar aqui a que ponto os
conceitos de circulação discursiva e de contrato de leitura são pertinentes e úteis
para a análise do discurso da ciência na internet.

Proponho, assim, analisar discursos sobre a ciência que circulam na Web


construindo paralelos com trabalhos sobre as mídias ditas tradicionais e sobre a
circulação de seus discursos (produção, textos, reconhecimento), que já
demostraram amplamente sua robustez. Apoiarei esta análise sobre uma pesquisa
sobre a circulação de discursos televisivos sobre a ciência que conduzi nos anos
1990 na França, com Eliseo Verón (CHEVEIGNÉ; VERON, 1999;
CHEVEIGNÉ, 2009; VERON 2013, capítulos 24 e 25).

1. Alguns guias metodológicos para começar

Novas formas de discurso de popularização da ciência apareceram na Internet,


sob a forma de blogs e vlogs (uma contração de “vídeo blogs”). Os blogs
viraram rapidamente uma maneira dos cientistas ultrapassarem o “filtro”, a
“barreira” das mídias tradicionais – e dos periódicos acadêmicos. Eles evoluíram
muito rápido em direção a uma nova forma de comunicação interna da
comunidade científica. Eles têm um formato principalmente escrito, ilustrado de
imagens.

Para entender melhor suas diferenças, podemos fazer referência a um texto no


qual Verón (1997) distingue diferentes formas de discurso sobre a ciência, de
acordo com a maneira como eles circulam dentro e em torno da instituição
científica3. Ele evoca inicialmente a comunicação interna da comunidade
científica, que passava essencialmente pelo intermédio de revistas acadêmicas
com avaliação por pares. Essa passagem ainda é necessária, hoje, para que um
trabalho seja reconhecido pela comunidade científica, mesmo que o digital tenha
alterado um pouco as práticas (pré-publicação de artigos aceitos, por exemplo).
Existe também uma comunicação do interior em direção ao exterior da
comunidade, destinada ao grande público, e enfim, uma comunicação produzida
no exterior com destino ao exterior, o clássico discurso das mídias, generalistas
ou mais especializadas, sobre a ciência. Verón lembra que os cientistas também
recebem os discursos destinados ao grande público – e podem, inclusive, ser
sensíveis a eles, como mostram outras pesquisas (CHEVEIGNÉ, 1997; PETERS
et al., 2008a, 2008b).

Esta categorização nos ajuda a compreender as especificidades das formas que


tomaram os blogs e vlogs, à medida que seus usos se cristalizaram. Os blogs se
especializaram, progressivamente, e o nível científico de seu conteúdo é, hoje,
muito elevado. Muitos de seus autores são pesquisadores, professores ou
estudantes de ciências e seu público é majoritariamente formado de cientistas
(JARREAU; PORTER, 2017; BLANCHARD, 2017). Retomando o termo de um
comentador de um blog, Kouper (2010) os qualificou de “virtual water cooler”4
– os franceses traduziram como “máquina de café virtual” – quer dizer um lugar
virtual de trocas informais dentro da comunidade científica. Trata-se, de fato, de
uma forma de comunicação interna. Os blogs estão acessíveis online a qualquer
pessoa, mas em termos de conteúdo e de enunciação, eles são claramente
destinados aos especialistas (RANGER ; BULTITUDE, 2016).

Por outro lado, os vlogs (“vídeo blogs” no YouTube), que são mais diretamente
comparáveis, em termos de forma, aos programas científicos televisivos, são
destinados ao grande público. É sobre eles que se foca esta análise. A questão da
construção de um corpus de estudo se coloca imediatamente. A tarefa é sempre
bem mais difícil para discursos que circulam na Internet do que nas mídias
tradicionais, para as quais uma “gama” – por exemplo diários nacionais de
informação ou revistas científicas – delimitam um universo reduzido. Bastaria
então selecionar os quatro ou cinco títulos de maior circulação e se obteria um
corpus “bem construído”, para retomar os termos de Eliseo Verón no texto que
serviu de enquadramento ao Pentalogo VII. É bem mais complicado no universo
pouco estruturado da teia. Mas os princípios subjacentes a essa exigência se
mantêm: os da comparabilidade (ficar dentro da mesma gama, na terminologia
antiga) e da diversidade em termos semióticos e sociológicos (cobrir o conjunto
da gama – e, logo, dos públicos). Para construir o corpus examinado aqui,
procedi por aproximações sucessivas, interrogando primeiro os amantes do
gênero, saqueando a literatura (DE LARA et al., 2017; MUÑOZ MORCILLO,
2016), seguindo os links propostos pelos produtores dos vlogs encontrados e
acrescentando um “filtro” em termos de audiência (número de visualizações ou
de assinantes) para selecionar os sites mais visitados. Não pretenderei ter
alcançado a exaustão, mas, para os fins desta análise, a diversidade de exemplos
encontrada é suficiente.

Não trabalharei com o reconhecimento de discursos aqui. Todavia, é necessário


ter em mente o principal ensinamento dos trabalhos sobre a recepção dos
programas científicos, a heterogeneidade das leituras. Seria muito útil estudar
toda a circulação de discursos da ciência na Internent e, mais particularmente,
seu reconhecimento. A falta de trabalhos empíricos já é muito problemática para
as “antigas” mídias, mas os pesquisadores fazem ainda menos pesquisas sobre as
novas! Uma análise dos comentários pode ser útil, mas uma verdadeira pesquisa
etnográfica/sociológica é verdadeiramente desejável.

Para caracterizar os vlogs selecionados, mobilizarei, primeiramente, a mesma


grade de análise que havíamos utilizado para distinguir formas televisivas,
partindo do princípio que os vlogs são, também, produtos do encontro – ou até
do confronto – da instituição midiática (ou, em todo caso, de atores midiáticos –
voltarei a esse ponto) e da instituição científica no momento da produção desses
discursos. O produto leva a marca desse encontro e diz algo sobre sua origem.
Vimos, nos casos dos programas de televisão, que a instituição científica podia
dominar o discurso (mesmo se o programa é produzido pela televisão). Era
tipicamente o caso de uma reportagem dentro de um laboratório onde a
instituição midiática é totalmente invisível: nem câmera, nem reporter estão
visíveis e os cientistas parecem estar executando suas tarefas rotineiras sem
reparar que intrusos estão presentes. Na etapa seguinte, a instituição midiática
podia ser mais visível, com a presença de um reporter, microfones ou câmeras na
tela. Um ponto de inversão acontecia quando o lugar do programa passava do
laboratório aos estúdios de televisão – em outros termos para dentro das paredes
da instituição-televisão. Aparelhos científicos poderiam estar presentes. O
discurso sobre a ciência poderia ser proferido por cientistas ou – vitória total da
instituição-televisão – produzido apenas por jornalistas.

2. Diferenças mas muitas similaridades

Se examinamos os vlogs com esta grade que “mede” o domínio relativo das
instituições midiática e científica, a primeira constatação é uma presença mais
fraca de suas marcas institucionais. A palavra parece ter sido “confiscada” por
usuários comuns, apresentadores que não se identificam nem como jornalistas,
nem como cientistas, mas como indivíduos interessados. Não se faz, de fato,
referência à instituição midiática, no sentido tradicional do termo. Todavia, isso
não significa que ela esteja ausente, visto que se observa processos de
organização e de agrupamento de blogs e vlogs individuais (por exemplo, em
sites como cafe-sciences.org, scienceblogs.org5...). Outros são, na verdade,
produzidos por empresas conhecidas no mundo midiático (por exemplo, os
canais de televisão ou os museus), cujos exemplos veremos na sequência.

As pessoas físicas que apresentam os vlogs são frequentemente “híbridas”. As


mesmas pessoas podem produzir tanto User-Generated Content6 (UGC –
conteúdo em princípio criado e disponibilizado gratuitamente por usuário
comuns) quanto Professional-Generated Content (PGC – conteúdo feito por
autores recrutados e pagos). Um profissional poderia também criar e
disponibilizar materiais gratuitamente, como um hobby, entrando na categoria
UGC. Mas ele mobiliza de fato seus conhecimentos e capacidades profissionais,
o que questiona o mito do usuário comum produtor... Um exemplo dessas
ligações entre o antigo e o novo mundo é dado por dois canais citados mais à
frente, The Periodic Table of Videos e Numberphile, que são produzidos por um
jornalista-cineasta independente, mas que trabalhou muito para a BBC, Brady
Haran. Já as pessoas visíveis na tela são cientistas.

Os traços da instituição científica são nitidamente mais numerosos que os da


instituição midiática. Podemos ilustrá-lo com a grade elaborada para os
programas de televisão. Começamos com a forte presença da instituição
científica, visto que nos encontramos quase sempre dentro de suas paredes,
dentro de um laboratório, com um apresentador científico bem visível e bem
identificado. Os dois vlogs mencionados acima adotam um formato sem a
presença de um mediador – o espectador é diretamente mergulhado dentro da
instituição científica. O primeiro exemplo é uma produção destinada ao grande
público, The Periodic Table of Videos7 (frequentemente chamado de Periodic
Videos) realizado no Departamento de química de uma universidade britânica. A
imagem de apresentação dos vídeos no site web é estruturada de acordo com a
tabela periódica dos elementos e cada vídeo explica a química de um dos
elementos. O mediador central é um cientista – às vezes quase caricatural com o
jaleco branco e cabelos brancos arrumados na cabeça8. De maneira geral, o
físico da pessoa é importante para a identificação do “cientista”, como suas
roupas – jaleco branco ou calça jeans e camiseta disforme. O fato de manipular
aparelhos ou escrever equações no quadro também são indícios. O conteúdo do
discurso vem confirmar essa identificação.

O vlog de matemática Numberphile, com 2,4 milhões de assinantes, nos dá um


segundo exemplo de um apresentador que se dirige diretamente ao espectador9 a
partir de uma instituição científica, identificável pour um quadro negro. Ele
comporta poucas marcas de popularização, a não ser pelo uso frequente de um
“nós”: “Comecemos com esta curva...” “vamos desenhar...”. Outro vlog da
mesma série até comporta um “mediador” invisível, de quem ouvimos a voz e
que pede explicações. Não sabemos quem ele é, colega do matemático visível ou
interlocutor externo à instituição científica.

Passemos agora a exemplos de vlogs com mediadores visíveis. O blog de Tom


Scott, com 1,1 milhão de assinantes é um deles. Seus vídeos começam
geralmente com uma imagem do mediador circulando, sozinho e à vontade, no
interior de uma instituição científica. Ele anuncia ao espectador onde se
encontra10 (em um laboratório de glaciologia, no centro de um telescópio...).
São os sinais de uma forte dominância da “instituição” midiática sobre a situação
de comunicação, a figura clássica do repórter em localidade distante. Vemos em
seguida cientistas entrevistados, com um mediador invisível mas que está
presente: ouvimos sua voz e o cientista olha pra ele às vezes11.

O mediador pode estar bem mais presente e visível, como nesse exemplo do
Veritasium12, 4,3 milhões de assinantes. Ele chega ao ponto de manipular
objetos científicos; por exemplo, uma esfera de silício ultra puro, apesar da
evidente preocupação da cientista. Esses formatos, com mediador muito visível –
e muito audível, com muitos monólogos –, são muito frequentes e têm sempre
um número bem alto de assinantes. Eles correspondem, provavelmente, ao tipo
ideal do vlog UGC: aparentemente um usuário comum, quase sempre jovem,
que parte explorar o mundo da ciência ou dos objetos técnicos do cotidiano13.

Trata-se, na verdade, de um usuário comum – as mulheres são poucas dentre os


vlogers! Isso só reforça os estereótipos sociais e as estatísticas no que diz
respeito às profissões da ciência. Duas exceções são o Physics Girl, de Dianna
Cowern14, produzido pelo canal de televisão estadunidense PBS, e The Brain
Scoop, com Emily Graslie15, produzido pelo Field Museum de História Natural
da Chicago. Seu número de assinantes não ultrapassa o milhão. E todas as duas
recebem comentários desaforados...
Assinalamos, para terminar nossa exploração do espectro, um último formato
que faz sucesso real e no qual a instituição midiática domina inteiramente: a
cadeia de desenhos animados Kurzgesagt – In a Nutshell16, com seus 6 milhões
de assinantes.

3. Discussão

Estes vlogs, lugares de produção de discursos sobre a ciência, são também,


assim como os programas científicos na televisão, o lugar de uma competição
para saber quem controlará a interface com o “resto da sociedade”, com o grande
público. Quem terá o domínio do discurso sobre a ciência: os próprios cientistas
ou alguém externo à instituição científica – o famoso “Terceiro Homem” de
Moles e Oulif (1967)? Vê-se, pela data da publicação que se trata de um velho
conflito! Muitos cientistas têm consciência de sua dificuldade para comunicar
com o grande público (CHEVEIGNÉ, 1997). As pesquisas que conduzimos
sobre os programas científicos mostraram bem que diferentes soluções eram
propostas aos telespectadores, correspondendo a uma dominação mais ou menos
forte de uma ou outra instituição. O que elas mostraram, principalmente, foi que
diferentes públicos apreciam diferentes formatos, particularmente na aceitação
ou recusa da presença de um mediador muito ativo.

Ao escapar, ao menos em parte, do cara a cara entre instituição midiática e


científica, os vlogs reproduzem mais ou menos os mesmos formatos. Parece, por
outro lado, que a presença do mediador muito visível é frequente e tem muito
sucesso (atenção para o fato que essa estimativa quantitativa esteja sujeita à
cautela na ausência de um inventário exaustivo da produção). Este formato está
alinhado ao ideal da web: o usuário comum que comunica diretamente.

Seria verdadeiramente importante estudar a recepção para entender melhor de


que maneira esses vlogs são recebidos pelo público. Deve-se notar que as
audiências não são muito numerosas: o vlog mais seguido que encontrei não
ultrapassa 13 milhões de assinantes no mundo inteiro – o que é relativamente
pouco e se caracteriza, sem dúvida, como público de nicho. Alguns autores
temem que essas produções tenham um caráter elitista, que só mobilizariam as
pessoas já interessadas (LIVINGSTONE, 2010, p. 53). Em um trabalho
quantitativo interessante sobre os números de visualizações e de assinantes,
Welbourne et Grant (2016) confirmam que os vlogs de tipo UGC têm audiências
muito maiores (a distinção, para os autores, é que o PGC tenha a marca de uma
corporação midiática, uma definição bem restritiva). O fato de se ter um
apresentador regular aumenta a audiência – o que eu interpreto como um
elemento de um contrato de leitura estável. Um trabalho sobre o reconhecimento
poderia passar pelo estudo dos comentários (MAHRT; PUSCHMANN, 2014).
Mas, de um ponto de vista sociológico, isto seria pouco satisfatório, já que
somente uma ínfima porção dos espectadores comenta. Os comentários nem
sempre têm ligação com o conteúdo do blog (SHAPIRO; PARK, 2015) e
abordam ainda menos frequentemente os modos de enunciação (FROBENIUS,
2014) do que o que poderíamos extrair de comentários em uma pesquisa direta.

A sequência das pesquisas a serem desenvolvidas está, logo, clara: esta análise
da produção dos vlogs se baseou em trabalhos anteriores sobre a produção
televisiva. Agora só falta transpor os métodos de estudo da recepção.
Continuação no próximo Pentálogo.

4. Bibliografia

BLANCHARD, Antoine. Les blogs de science dans la recherche et la médiation


scientifique: pourquoi, comment et pour qui? In: NETZER, Michel. Les sciences
en bibliothèque. Éditions du cercle de la librairie, 2017.

CHEVEIGNÉ, Suzanne de. La science médiatisée. II. Les contradictions des


scientifiques. Hermès, v. 21, Science et médias, p. 121-134, 1997.

CHEVEIGNÉ, Suzanne de. La science, c'est pas pour nous: réception des
discours sur la science à la télévision. In : GESLIN, Philippe; ALBALADEJO,
Christophe; SALEMBIER, Pascal; MAGDA, Danièle (dirs.). La mise à
l’épreuve : la circulation des connaissances scientifiques en questions. Editions
Quae, Paris, p. 55-68, 2009.

CHEVEIGNÉ, Suzanne de; VERON, Eliseo. Science on TV: forms and


reception of science programmes on french television. Public Understanding of
Science, v. 5, p. 231-253, 1996.

DE LARA, Alicia; GARCIA AVILES, José Alberto; REVUELTA, Gemma.


Online video on climate change: a comparison between television and web
formats. Journal of Science Communication, v. 16, n. 1, 2017.

FROBENIUS, Maximiliane. Audience design in monologues: how vloggers


involve their viewers. Journal of Pragmatics, v. 72, p. 59-72, 2014.
JARREAU, Paige Brown; PORTER, Lance. Science in the social media age:
profiles of science blog readers. Journalism & Mass Communication Quarterly,
v. 95, n. 1, p. 142-168 , 2017.

KOUPER, Inna. Science blogs and public engagement with science: practices,
challenges, and opportunities. Journal of Science Communication, v. 9, n. 1, p.
1-10

LIVINGSTONE, Sonia. The challenge of changing audiences: or, what is the


audience researcher to do in the age of the internet? European Journal of
Communication, v. 19, n.1, p. 75-86, 2004.

LIVINGSTONE, Sonia. Media consumption and public connection. In:


COULDRY, Nick; LIVINGSTONE, Sonia; MARKHAM, Tim (eds.). Media
consumption and public engagement beyond the presumption of attention.
London: Palgrave Macmillan, 2010.

MAHRT, Merja; PUSCHMANN, Cornelius. Science blogging: an exploratory


study of motives, styles, and audience reactions. Journal of Science
Communication, v. 13, n. 3, 2014.

MOLES, Abraham; OULIF, Jean. Le troisième homme: vulgarisation


scientifique et radio. Diogène, v. 58, p. 29-40, avril-juin 1967.

MUÑOZ MORCILLO, Jesús; CZURDA Klemens; ROBERTSON-VON


TROTHA, Caroline Y. Typologies of the popular science web video. Journal of
Science Communication, v. 15, n. 4, 2016.

PETERS, Hans Peter; BROSSARD, Dominique; CHEVEIGNÉ, Suzanne de;


DUNWOODY, Sharon; KALLFASS, Monika; MILLER, Steve; TSUCHIDA,
Shoji. Interactions with the mass media. Science, v. 321, p. 204-205, 2008.

PETERS, Hans Peter; BROSSARD, Dominique; CHEVEIGNÉ, Suzanne de;


DUNWOODY, Sharon; KALLFASS, Monika; MILLER, Steve; TSUCHIDA,
Shoji. Science-media interface: it’s time to reconsider. Science Communication,
v. 30, p. 266-276, 2008.

RANGER, Mathieu; BULTITUDE, Karen. The kind of mildly curious sort of


science interested person like me: Science bloggers’ practices relating to
audience recruitment. Public Understanding of Science, v. 25, n. 3, 361–378,
2016.

SHAPIRO, Matthew A.; PARK, Han Woo. More than entertainment: YouTube
and public responses to the science of global warming and climate change.
Social Science Information, Paris, v. 54, n. 1, p. 115–145, 2015.

VERON Eliseo. Entre l’épistémologie et la communication. Hermès v. 21, p 25-


32, 1997.

VERON Eliseo. La semiosis social, 2: ideas, momentos, interpretantes. Buenos


Aires: Paidos, 2013.

WELBOURNE, Dustin J.; GRANT, Will J. Science communication on


YouTube: factors that affect channel and video popularity. Public Understanding
of Science, Londres, v. 25, n. 6, p. 706-718, 2016.

1 CNRS, Centre Norbert Elias, Marseille. suzanne.de-cheveigne@univ-amu.fr.

2 Ou, em português: “O desafio da mudança das audiências: ou o que deve fazer


o pesquisador de audiências na idade da internet”. N.T.

3 A distinção entre instituição científica e “resto da sociedade” é bem simplista,


como bem mostraram os sociólogos da ciência, mas ela serve ao nosso propósito
aqui.

4 Em português seria “filtro de água virtual”. N.T.

5 Que fechou depois de ter funcionado durante 11 anos. Disponível em:


http://chadorzel.steelypips.org/principles/2017/10/31/go-on-till-you-come-to-
the-end-then-stop/. Acesso em: 30 de abril de 2018.

6 UGC em português seria Conteúdo Gerado pelo Usuário, e PGC seria


Conteúdo Gerado por Profissional. N.T.

7 Disponível em: http://www.periodicvideos.com/. Acesso em: 30 de abril de


2018

8 Disponível em: http://www.periodicvideos.com/videos/001.htm. Acesso em:


30 de abril de 2018
9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x-
DgL49CFlM&list=PLt5AfwLFPxWKBvUsTl8UPtmDoTFPPFQJm. Acesso em:
30 de abril de 2018

10 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?


v=d3WiRunOsWY&list=PL96C35uN7xGKyF2QKy4NF6ybamx4nQswv&index=
Acesso em: 30 de abril de 2018

11 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?


v=DTRb6G9c9wU&list=PL96C35uN7xGKyF2QKy4NF6ybamx4nQswv.
Acesso em: 30 de abril de 2018

12 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZMByI4s-D-


Y&index=4&list=PL16649CCE7EFA8B2F. (consulté le 30 avril 2018)

13 Entre outros exemplos deste formato:


https://www.youtube.com/channel/UC6nSFpj9HTCZ5t-N3Rm3-HA, 13 milhões
de assinantes, https://www.youtube.com/user/scishow (4,9 milhões de
assinantes); https://www.youtube.com/watch?v=MFzDaBzBlL0 (5,5 milhões de
assinantes) ; https://www.youtube.com/watch?v=CCuaWqhVvIc (384 000
assinantes. Acesso em: 1 de mai de 2018.

14 Disponível em:
https://www.youtube.com/channel/UC7DdEm33SyaTDtWYGO2CwdA (887
000 assinantes). Acesso em: 1 de mai de 2018.

15 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tKuiD6UeUbs (463 000


assinantes). Acesso em: 1 de mai de 2018.

16 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ulCdoCfw-bY (6 milhões


de assinantes). Acesso em: 1 de mai de 2018.
Ativismo, consumo e ambivalência

Circulação de sentidos entre redes e ruas1

• Laura Guimarães Corrêa2

No âmbito das reflexões provocadas pela temática da circulação, este capítulo


busca discutir as maneiras pelas quais os discursos relacionados ao ativismo e ao
consumo, num campo agonístico, podem circular por diferentes meios e
plataformas, fazendo com que sentidos se transformem. A intensa circulação de
sentidos consiste em um fenômeno social potencializado pelas recentes
tecnologias de produção e compartilhamento imagético-textual em rede, de
forma cada vez mais dinâmica e presente no cotidiano das pessoas. Martín-
Barbero (1987) afirma que a mediação é um constituinte crucial da nossa vida
cotidiana, e pode ser entendida como um lugar entre a cultura, a comunicação e a
política. As ruas e as redes são lugares de mediação, sistemas por onde sentidos
circulam constantemente, entre múltiplas tecnologias e diferentes contextos
institucionais e sociais.

As intervenções urbanas – e também aquelas que acontecem nas redes sociais –


são práticas comunicativas que podem produzir cenas de dissenso, termo
proposto por Rancière (2009) para designar os efeitos da emergência de vozes
que antes estavam caladas, nomeando um dano. Rancière define o dano3 como
um modo de subjetivação no qual a ideia de igualdade é posta à prova e toma
uma forma política. Estética e política estão imbricadas quando protesto e
criatividade se juntam para escrever e designar um dano, fazendo reivindicações
em diversos modos de resistência e ativismo.

Neste texto, busca-se explorar o conceito e as formas de ativismo relacionados a


um determinado dano, e como a nomeação desse dano pode ser concretizada –
em arte de rua, memes, culture jamming – e circular na sociedade midiatizada.
Apresento três estudos de caso em que discursos oficiais e discursos
contestadores estão em diálogo numa lógica de retroalimentação por vezes mais
harmônica, por vezes mais conflituosa. Os casos têm suas especificidades, mas
apresentam importantes pontos em comum para análise. A manifestação que
acontece nas superfícies urbanas é desdobrada, ressignificada e colocada em
circulação nas redes sociais online, na imprensa, na publicidade. Esses
fenômenos se dão em meio a ambivalências inerentes às disputas de sentido na
sociedade contemporânea neoliberal (BANET-WEISER, 2012), atravessada
pelos discursos das marcas e do consumo. Além do conceito de dano em
Rancière, adota-se nas análises a perspectiva teórico-metodológica proposta por
Cammaerts (2018) para compreender a circulação de protestos.

1. Ativismo político e circulação de sentidos

O termo ativismo político pode ser compreendido como as práticas e táticas de


militância de sujeitos e grupos, em favor de uma ou mais causas, geralmente
visando a transformações sociais. Os meios utilizados por ativistas podem ser
pacíficos ou violentos, e geralmente implicam o uso do corpo dos/as
manifestantes como instrumentos para o protesto e a visibilização; para a
ocupação de espaços públicos ou privados; para a obstrução de vias; como
suporte para cartazes e faixas; como corpo performático que inscreve sua
presença política. O ativismo pode estar presente também em manifestações
artísticas como dança, música, teatro, performance, ou sob a forma de escritas
urbanas verbais ou visuais, arte de rua, culture jamming, pixações etc.

O ativismo pode também assumir a forma de greves, de redução das horas de


trabalho, de lentidão, obstrução de vias etc. Há ainda as formas de ativismo não
presenciais, que por vezes são chamadas pejorativamente de ativismo de sofá.
Nas sociedades de consumo, uma das formas comuns de ativismo é o boicote a
produtos e serviços, assim como as petições online, as coletas de assinaturas
virtuais, a realização de crowdfunding por uma causa etc.

O que une essas práticas de ativismo é o alinhamento a uma causa, a uma


reivindicação. Pode-se dizer que manifestações ativistas costumam nomear um
dano, “no qual a verificação da igualdade assume figura política.” (RANCIÈRE,
2018, p. 53). Para o autor, “a ‘discussão’ do dano não é uma troca — nem
mesmo uma troca violenta — entre parceiros constituídos. Ela diz respeito à
própria situação de fala e seus atores.” (idem, p. 40). Rancière acredita que a
política é o que acontece quando aquelas pessoas que não têm direito de falar e
de ser ouvidas conseguem que seu discurso seja considerado algo mais do que
ruído. A política, essa nomeação do dano, está diretamente ligada a processos de
subjetivação, à constituição de sujeitos que se formam ao mesmo tempo em que
atuam crítica e coletivamente.

A ideia de igualdade – e, principalmente, de verificação da igualdade – é


fundamental no raciocínio do filósofo, que entende a política como “a prática na
qual a lógica do traço igualitário assume a forma do tratamento de um dano,
onde ela se torna o argumento de um dano de princípio que vem ligar-se a um
litígio determinado na partilha das ocupações, das funções e dos lugares.” (idem,
p. 49). Assim, é possível pensar algumas práticas de ativismo contemporâneo
como tentativas de tratamento de um dano, como verificação da igualdade
relacionada a grupos de alguma forma vulneráveis a formas de violência. É
importante destacar que, para Rancière (idem, p. 53), “o conceito de dano não se
liga pois a nenhuma dramaturgia de ‘vitimização’” e sim “faz parte da estrutura
original de toda política”.

A perspectiva teórico-metodológica proposta por Cammaerts em The circulation


of anti-austerity protest (2018) mostra-se adequada para se pensar as formas de
circulação de discursos ativistas e as disputas de sentido relacionadas aos
protestos, suas apropriações e ambivalências. O autor vê quatro momentos nos
processos de circulação de protestos e propõe a metáfora do “circuito de
protesto” para identificar e compreender os momentos desse processo. São eles:
1) a produção de discursos do movimento, enquadramentos e uma identidade
coletiva; 2) um grupo de práticas de mediação de si (self-mediation); 3)
representações nos grandes media (mainstream) do movimento; e 4) a recepção
dos enquadramentos e discursos do movimentos por cidadã/os não-ativistas.4
(CAMMAERTS, 2017, p. 7, tradução nossa)

É sabido que o processo de circulação é marcado por relações de poder, como


apontou Stuart Hall: “(…) a questão da circulação de sentido envolve quase
imediatamente a questão do poder. Quem tem o poder, em quais canais, para
circular quais sentidos para quem? É por isso que o tema do poder nunca pode
ser excluído da questão da representação”.5 (HALL & JHALLY, 1997, tradução
nossa). Entretanto, apesar da inegável assimetria que marca os processos de
representação e de circulação, estes podem ser também caracterizados pela sua
dinamicidade, indeterminação e incalculabilidade, pois modos de resistência
estão também em ação e circulação. Cammaerts afirma que:

(a) metáfora do circuito implica um certo dinamismo; não há conclusão


definitiva precisamente porque a circulação é um processo contínuo e, em última
análise, conflituoso, que ocorre continuamente, e em que oscilações em um
momento têm consequências inevitáveis para os outros momentos, levando
diferentes atores a mudar / adaptar suas estratégias e formas de fazer as coisas e,
às vezes, levando a resultados imprevisíveis e surpreendentes. (CAMMAERTS,
2017, p. 186-187, tradução nossa.)6
Nessa perspectiva da adaptabilidade e imprevisibilidade, meios e tecnologias
mainstream de comunicação são apropriados por sujeitos e grupos conectados
para ações de inovação, contestação e resistência. Nos termos de Rancière, para
a criação de cenas de dissenso e nomeação de um dano. Essas ações, que podem
ser disparadas / provocadas por ativistas, podem chegar a circular mais
intensamente pelos grandes media, extrapolando a comunicação entre pessoas
“convertidas” a uma causa e fazendo com que um público não-ativista, bem mais
numeroso, tenha acesso a discursos e argumentos dos movimentos de protesto.
(CAMMAERTS, 2017, p. 208)

A seguir, apresento a análise de três casos em que atores e atrizes sociais


praticam ações ativistas, utilizando-se de diferentes ferramentas, linguagens,
mídias e plataformas, em uma construção dinâmica, conflituosa e circular de
sentidos em torno de conflitos sociais, relacionados de alguma forma aos
discursos do consumo e da publicidade.

2. Quem são os miseráveis?

Enquanto a ignorância e a miséria existirem


na Terra, livros como este não serão inúteis.

Victor Hugo, prefácio d’Os Miseráveis

Numa madrugada de janeiro de 2016, o anônimo e célebre Banksy grafitou um


tapume de construção localizado em frente à Embaixada da França na região de
Knightsbridge, Londres. A obra criticava o tratamento violento dado a
refugiados num acampamento em território francês, fazendo referência ao livro
de Victor Hugo Os Miseráveis, um dos romances históricos mais populares da
França, que também pode ser lido como um manifesto humanitário.

Nessa obra, Banksy reproduziu a imagem da jovem personagem Cosette, usada


na divulgação do famoso musical Les Misérables para denunciar o uso de gás
lacrimogêneo pela polícia francesa contra refugiados e migrantes do chamado
Jungle, acampamento próximo ao porto de Calais, na França. A figura icônica no
mural traz lágrimas nas faces e, como no cartaz do musical, uma bandeira
francesa rasgada como pano de fundo. Embora a parte superior da obra de
Banksy fosse semelhante à identidade visual do musical, sua parte inferior
mostrava a imagem de uma nuvem proveniente de uma lata com as iniciais CS,
que indicam gás lacrimogêneo. O mural retrata a frágil Cosette – representando
os pobres, os fracos, os refugiados, os imigrantes – como vítima da violência
perpetrada pelas forças policiais francesas.

Esta peça de arte de rua traz várias camadas de significado, pois consegue
simultaneamente evocar um clássico da literatura francesa, um musical
mundialmente famoso e uma prática de repressão. Como muitas outras
intervenções urbanas feitas pelo artista sobre questões políticas controversas, o
trabalho de Banksy é uma mistura de ativismo, ironia e acidez. A justaposição
dos elementos contrastantes (a menina e o gás), características das práticas de
culture jamming, retrata a incoerência entre os ideais aclamados do humanismo e
as práticas reais de tratamento desumano para com os excluídos. Assim, a obra
marca um dano, uma desigualdade. Se os seres humanos devem viver e agir sob
a égide da tríade “liberté, égalité, fraternité”, cunhada na França e defendida por
Hugo, esses valores ideais parecem não se aplicar às pessoas refugiadas não-
francesas na vida real.

O mural de Banksy é uma intervenção urbana que fez sentido na época do ataque
ao acampamento, o que confirma o caráter de crônica que as intervenções
urbanas podem apresentar, apontando questões que emergem na sociedade num
dado tempo e lugar. Em 2016, a chamada “crise dos refugiados” estava sendo
discutida intensamente na Europa e especialmente no Reino Unido, em meio a
disputas relacionadas às políticas públicas, à imigração e ao Brexit, que seria
votado dali a cinco meses, em junho de 2016.

O trabalho de Banksy pode ser considerado uma obra de arte in situ, pois leva
em conta e faz sentido no seu local de realização e exposição: em frente à
embaixada da França – o que pode ser considerado bastante ousado por ser um
espaço altamente monitorado, na cidade mais vigiada do mundo7. Assim, a obra
in situ não é totalmente transportável sem perda de seu significado político,
mesmo que o tapume-tela, de dimensões manejáveis, tenha sido retirado do local
em poucas horas.

Taticamente localizada, a intervenção urbana não ficou restrita ao mural de


Knightsbridge: no canto esquerdo da tela urbana, um código QR que levava a
um vídeo no YouTube com cenas do ataque policial com gás no acampamento de
Calais. Assim, toda a imagem funciona também como uma isca para atrair a
atenção do transeunte para o vídeo. O trabalho de Banksy é um exemplo da
apropriação de linguagens e ferramentas mainstream para a realização e a
circulação de mensagens contra-hegemônicas e ativistas. Nesta narrativa
transmídia urbana (JENKINS, 2006), o artista usou recursos alternativos e
complementares para comunicar, reforçar e comprovar o que tinha a dizer;
utilizando ferramentas táticas ao interferir nos domínios do forte (CERTEAU,
1984). Da rua para o vídeo no YouTube, para as redes sociais online e para a
imprensa, a intervenção efêmera e localizada circulou nos grandes media
perfazendo um circuito de protesto (CAMMAERTS, 2018), no qual um público
maior e não-ativista fosse afetado pelo protesto visual.

Figura 1 – Intervenção de Banksy circula na imprensa / Fonte: Montagem da


autora

3. Sobre cerveja, mulheres e cartazes

There will be more no’s. Politics is the accumulation of no’s.


We can return to the start, to the shortness of the word no,

a small word with a big job to do;

a word we use because of what we have to do

to create a world in which we can be.

Sara Ahmed (2017)

O contexto histórico no qual se insere o caso Skol, a segunda metade dos anos
2010, deve considerar décadas de campanhas publicitárias anteriores
caracterizadas por discursos sexistas e exploração do corpo feminino. Por muito
tempo, a mulher representada nos comerciais de cerveja tem sido um
objeto/produto a ser consumido, assim como a bebida, pelo homem
consumidor8.

Em 2015, a Skol lança uma campanha de Carnaval que traz como mote “Aceitar
os convites da vida e aproveitar os bons momentos”. Um dos cartazes da
campanha que, desta vez, não traz a imagem de mulheres seminuas é composto
basicamente pelo texto “Esqueci o ‘não’ em casa”. O uso ambíguo do “não”
gerou indignação quase imediata, pois a palavra tem sido usada mundialmente
como uma bandeira feminista em que mulheres reclamam autonomia sobre seus
corpos e combatem o abuso e a violência sexual.
Figura 2 – Adesivo em Londres. Dados de pesquisa, 2017

Pouco tempo depois do lançamento da campanha, duas jovens mulheres, uma


jornalista e uma publicitária, intervêm – tipográfica e fotograficamente – sobre o
cartaz publicitário, divulgando a imagem em seus perfis no Facebook. Essa
intervenção ativista, muito próxima das práticas de culture jamming, assim como
a sua publicação, provocam intensa circulação de sentidos contrários ao discurso
do cartaz, da campanha e da empresa nas redes sociais online.
O grupo afetado pela frase infeliz do cartaz, composto em sua grande maioria
por mulheres, marca um dano quando protesta virtualmente, por meio de
mensagens no Facebook, contra a mensagem ambígua e irresponsável da
empresa. É possível entender essas discussões como práticas ativistas facilitadas
pelas tecnologias que possibilitam a construção de um “nós”, de uma identidade
coletiva e situacional, uma identidade constituída como resposta a uma questão
específica. Embora necessária à mobilização, é preciso lembrar que essa
identidade coletiva não é estável e nem sempre claramente definida. Pelo
contrário: é constituída em fluxo, negociada e contestada (CAMMAERTS,
2018).

Com a adesão de milhares de internautas, a polêmica passa a circular na


imprensa, ultrapassando os limites do ativismo nas redes sociais online.
Figura 3 – Intervenção circula no Facebook e na imprensa / Fonte: Montagem da
autora

Da rua (cartazes alterados) para as redes sociais (imagem das ativistas e da


intervenção no Facebook), das redes para a imprensa (matérias sobre o caso) e
para o Conar, a campanha termina por ser retirada das ruas e substituída por
outras frases na linha do novo mote: “Neste Carnaval, respeite”. A campanha
então vai para as ruas novamente, com novos significados. Partindo de atrizes
sociais com pouco poder, mas com domínio das ferramentas de comunicação e
mediação de si, alguma transformação foi possível por meio de uma circulação
de sentidos que contestaram os discursos da empresa.
Assim, observa-se que nesse caso houve a criação de uma identidade coletiva
(ou processo de subjetivação, como nomeia Rancière) a partir da designação de
um dano que põe em prova a igualdade. O protesto verbovisual das ativistas
contra a Skol coloca em cena a questão do abuso sexual contra as mulheres,
provocando uma cena de dissenso, possibilitada pelo uso tático das ferramentas
tecnológicas disponíveis a essas duas mulheres. O protesto se multiplica e passa
a circular na grande mídia mainstream, com um circulação entre o público não-
ativista que se torna intensa a ponto de fazer com que a empresa tivesse que
mudar seu discurso.

Em 2017, no Dia Internacional da Mulher, a Skol lança a campanha Reposter, na


qual cartazes antigos da empresa são alterados por mulheres a convite da marca.
A diferença é que, desta vez, a “mudança” parte da empresa, numa espécie de
culture jamming diluído. Ao convidar mulheres artistas para alterar os cartazes, a
marca tenta acrescentar autenticidade à sua imagem.

Não é novidade que a publicidade tenda a assimilar a crítica feminista contra a


própria publicidade sexista (LAZAR, 2009). Essa estratégia faz parte do
chamado brand activism (BANET-WEISER, 2012), no qual as marcas têm se
posicionado como ativistas, incorporando e se apropriando de reivindicações de
certos movimentos sociais. A companhia de cerveja tenta neutralizar as
representações sexistas do passado, supostamente dando voz a grupos
subalternizados.

O sucesso – por vezes contestado, negociado – da campanha Reposter mostra


uma adesão suave do público ao ativismo feminista (e de marca) que é
principalmente individualista, dado pronto em vez de criado coletivamente como
nos movimentos sociais. Reposter é uma estratégia de adaptação às
reivindicações contemporâneas e a um modo contemporâneo de fazer
publicidade. A interação conflituosa entre público e publicidade traz, portanto,
ambivalências inerentes ao fenômeno do ativismo de marca (BANET-WEISER,
2012) em um contexto neoliberal.

Durante os dois anos que separam a campanha “não” em 2015 e a campanha


Reposter em 2017, a cervejaria tem mudado o posicionamento: em sua página no
Facebook, postou vídeos apoiando os movimentos LGBT, promovendo a
igualdade racial, questionando o preconceito de idade e a desigualdade de
gênero, elogiando a diversidade em geral. A transformação na comunicação da
Skol é positiva, mas localizada e restrita, pois a estratégia de ativismo de marca
só está presente nos espaços em que disputas de sentido são mais comuns, como
o Facebook. A maioria das questões envolvendo a representação de pessoas
marginalizadas não aparece (ou aparece muito menos e timidamente) nas
campanhas em meios mais conservadores e caros, como a televisão9.

4. Como acabar com um protesto. E com um comercial

A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que vai de graça pro presídio

e para debaixo de plástico

Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette

O terceiro caso de circulação de sentidos entre mídias diversas acontece num


contexto de atos de violência contra a população negra estadunidense. Em 2014,
o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), movimento ativista
internacional, começa a ficar conhecido mundialmente por seus protestos. O
movimento tem origem na comunidade afro-americana e combate a violência —
principalmente policial — direcionada às pessoas negras, além de abordar outras
questões relacionadas à discriminação racial. O Black Lives Matter tem
organizado manifestações importantes e muitas vezes conflituosas contra o
assassinato de jovens negros por policiais em cidades estadunidenses. É sabido
que, não apenas nos Estados Unidos como também no Brasil,

no cenário social contemporâneo a presença de atos de violência marcados por


embates sociorraciais é rotineira nas periferias dos grandes centros (…). Se à
polícia é concedido o poder de controle e segurança pública, o uso abusivo e
desproporcional da força letal acaba sendo legitimado por esse poder e resulta
em altos índices de mortes causadas por violência policial. (CORRÊA & LAGO,
2017)

Em 2016, a foto feita por Jonathan Bachman da manifestante Iesha Evans,


participante de um protesto contra o assassinato de jovens negros em Louisianna,
circulou intensamente por imprensa e redes sociais online. A imagem mostra
uma mulher negra, magra, com um vestido leve, enfrentando policiais
fortemente protegidos por uniformes antiprotesto. A aparente fragilidade da
mulher contrasta com a sua posição ereta e confiante. Evans foi detida nesse dia
e solta no dia seguinte ao protesto, mas a imagem foi reproduzida por muitos
dias na internet, como uma síntese icônica de uma postura de resistência.

É nesse contexto que, em 2017, a Pepsi lança o filme publicitário Live for Now
Moments Anthem, que significa algo como Hino do Viva os Momentos de
Agora. A peça publicitária tem 2’40’’ e não apresenta diálogo ou narração; o
texto verbal é a letra de Lions, uma canção de Skip Marley, neto de Bob, que
convida à união com frases do tipo “Nós somos o movimento, essa geração. É
melhor você saber quem nós somos, quem nós somos.”10 A personagem
principal do clipe-comercial é a celebridade branca Kendall Jenner. Também têm
destaque um jovem músico de traços asiáticos, uma jovem fotógrafa com um
hijab e um policial. Resumidamente, o comercial retrata um protesto no qual
jovens (brancos, em sua maioria) protestam na rua com cartazes que trazem
frases como “Junte-se à conversa” em línguas diferentes e símbolos da paz e do
amor. Não há referência a uma causa específica pela qual estão se manifestando.

Figura 4 – Comercial da Pepsi / Fonte: Montagem da autora

No filme, a modelo Jenner está numa sessão de fotos. Ela vê a manifestação


passar, flerta com o músico e abandona o trabalho, juntando-se aos
manifestantes. Não sem antes arrancar sua peruca loira, mostrar os cabelos
escuros e tirar o batom com a manga da camisa. Um detalhe curioso do
comercial que se pretende antirracista é o movimento pouco educado que a
celebridade faz ao atirar a peruca à assistente negra. O refrigerante anunciado
aparece em vários momentos do comercial. Negros dançam, todos sorriem,
Jenner pega uma lata de Pepsi. O protesto se depara com um grupo de policiais
e, por alguns segundos, o clima fica tenso. Mas a modelo caminha em direção a
eles, num gesto que evoca aquele de Iesha Evans no protesto de Louisianna, e
oferece a lata de refrigerante a um dos policias, que a abre, dá um gole e sorri.
Todos comemoram e tudo fica bem no final do filme publicitário (figura 5).
Figura 5 – Comercial da Pepsi / Fonte – Montagem da autora

Em dois dias, o comercial teve cerca de 1,6 milhão de visualizações no


YouTube, sendo que as reações negativas foram cinco vezes maiores do que as
curtidas no vídeo11. Quase imediatamente à divulgação do filme publicitária,
surgiram tuítes que criticaram o comercial de forma ácida e bem-humorada,
relacionando os conflitos raciais com a sua apropriação esvaziada de sentido
pela Pepsi. O público rechaçou o comercial e, por meio desses memes, pôs em
evidência novamente o dano – a desigualdade de tratamento conferida a pessoas
negras e brancas, a violência policial contra negros, a banalização das práticas
ativistas pelo mercado. O protesto fake e descafeinado, com uma solução de
conflito inverossímil e ridícula, não foi perdoado pelos/as internautas (Figura
6)12.
Figura 6 – Memes no Twitter criticam o comercial de Pepsi / Fonte: Montagem
da autora

Respondendo às manifestações contrárias ao comercial, a Pepsi tirou a peça do


ar em poucas horas com um pedido de desculpas por banalizar um assunto sério
e colocar a modelo nessa posição. O caso Pepsi mostra, além da falta se
sensibilidade e consciência política da marca e da agência que a atendeu, o
caráter de imprevisibilidade inerente à circulação discursiva entre meios e
plataformas diversos. Das ruas para apropriação pelo discurso comercial
mainstream, da publicidade para manifestações/memes de pequenos atores no
Twitter, da circulação intensa no Twitter para a imprensa e, por fim, para a
retratação da empresa e retirada do comercial, o circuito do protesto
(CAMMAERTS, 2018) se fecha nesse caso, mas continua aberto para futuros
diálogos.

5. Discussão e considerações finais

Intervenções ativistas e protestos contra as ações do mercado e dos governos não


são um fenômeno novo. As estratégias retóricas, como a paródia e a crítica à
publicidade, bem como a apropriação desses discursos contra-hegemônicos, são
parte da lógica capitalista e do neoliberalismo. Existe também uma relação
especialmente ambivalente e entrelaçada entre cultura de rua transgressora e o
fenômeno de comodificação das cidades; e isso está ligado a questões de classe e
de raça. Nesse sentido, Harvey (2012) observa que a singularidade e a
transgressão são valorizadas à medida que rompem a homogeneidade da
produção de bens. A racionalidade neoliberal que sustenta o funcionamento do
capitalismo na vida contemporânea precisa do dissenso, que tende a ser
apropriado, transformado em consenso e vendido como marca de autenticidade e
originalidade.

Os casos aqui analisados revelaram questões em evidência e disputa nas ruas e


nas redes: migração, questões de gênero, violência racial. Nos três casos, estão
em jogo as construções discursivas midiatizadas de/sobre grupos que estão
vulnerabilizados e/ou expostos a violências: as pessoas refugiadas na Europa, as
mulheres no Brasil, a população negra nos Estados Unidos. As especificidades
geográficas não alteram substantivamente as desigualdades e reivindicações
relativas a esses grupos em outros lugares do mundo.

A obra de Banksy, embora coberta e removida no mesmo dia em que apareceu,


foi midiatizada, reproduzida na mídia do Reino Unido e no exterior, e bem
sucedida em seu objetivo político de chamar a atenção para o tratamento que
receberam as pessoas refugiadas em Calais. Banksy pode ser visto como um
exemplo de voz contra-hegemônica, pois faz críticas ao consumismo, às guerras,
à polícia, ao poder estabelecido, falando do ponto de vista de grupos excluídos.
Entretanto, sua atuação é carregada de ambivalências: ele é também um artista
hoje renomado que sabe explorar o caráter marginal de sua atividade. Banet-
Weiser (2012, p. 94-95) vê o artista como "uma marca em si mesmo" e um
"empreendedor livre" neoliberal. Seu ato audacioso de fazer arte de protesto em
uma área tão protegida agrega valor à sua intervenção, numa espécie de
autenticidade que vem com a transgressão e a ilegalidade. O trabalho de Banksy
traz à tona a contradição entre ideias humanistas e ação do governo francês;
entre o bairro rico e o acampamento de refugiados; entre a segurança/vigilância e
a instabilidade/violência. A intervenção urbana e sua circulação midiática fazem
emergir não apenas o dano, mas também as ambivalências entre protesto e
comodificação; entre a política e o consumo da arte.

No segundo caso apresentado, a Skol mostra, depois dos efeitos da intervenção


tática das ativistas, uma estratégia de adaptação a algumas reivindicações
feministas contemporâneas. A marca, depois de vários processos de circulação e
disputas de sentido online, adere pontualmente ao ativismo feminista na
campanha estratégica Reposter, que é majoritariamente individualista, com
limites de visibilidade e circulação, além de desprovida de causas que vão além
da representação do corpo feminino. Certas reivindicações do feminismo
contemporâneo são bastante comercializáveis13: a diversidade e o auto-
empoderamento das mulheres são duas delas. Outras questões urgentes e
controversas, como a descriminalização do aborto no Brasil, são obviamente
evitadas em discursos comerciais. No ativismo de marca, não parece haver lugar
para o embate/debate que sinalize um dano.

Nas narrativas publicitárias e do consumo, é comum que o produto seja


apresentado como a solução para um determinado problema ou necessidade, seja
a fome, a sede ou o desejo de status e aceitação etc. No comercial de Pepsi,
pretende-se que o refrigerante resolva um conflito na rua que se assemelha a
protestos de movimentos sociais sobre pautas graves. Assim, a solução
apresentada pela empresa foi tão inverossímil e superficial que gerou indignação
entre o público, consciente da importância das reivindicações. A fabricante de
refrigerante tentou sugerir uma solução apaziguadora tão diluída politicamente
que foi alvo de críticas imediatas nas redes sociais. Os memes em circulação
respondem às imagens da peça publicitária ao trazer o conflito – e o dano – de
volta à discussão, com uso de humor e sarcasmo.

Neste artigo, discutiu-se como os discursos ativistas circularam entre protestos e


marcas, em três diferentes casos. A perspectiva metodológica de Cammaerts
(2017, 2018) para análise do circuito do protesto mostrou-se uma ferramenta
adequada para entender os modos de circulação discursiva de ativismos
contemporâneos, que se movem de forma complexa e pouco previsível entre: a
produção dos discursos, formação e identidade coletiva do movimento; um
grupo de práticas de mediação de si (self-mediation); as representações da mídia
mainstream sobre o protesto e o movimento; e a recepção das práticas ativistas e
das representações midiáticas pelas/os cidadãs/os não-ativistas.

Buscando entender os impactos das intervenções nas ruas e redes em um sentido


político, observa-se que não há uma resposta definitiva ou "correta", pois o
impacto concreto não é mensurável. As vozes dissidentes são, sem dúvida,
fracas, não só pelas possibilidades limitadas de ação, mas também pela dinâmica
de apropriação e mercantilização que constantemente tenta neutralizá-las. Os
resultados mostram que quase nada escapa à lógica neoliberal, pois a
apropriação diminui e assimila muitos tipos de protesto. No entanto, as ações
ativistas não podem ser completamente neutralizadas. Ao causarem pequenos
distúrbios simbólicos, ao provocarem pequenas, mas significativas, rupturas e
transformações, indivíduos e grupos fazem política, na acepção de Rancière. Há
contradições em todos os casos aqui analisados, em diferentes níveis: os
discursos e seus impactos são ambivalentes, mostrando crítica e apropriação.

As intervenções ativistas como práticas de comunicação revelam as tensões, as


relações de poder, o dissenso, bem como o consenso. Essas práticas nas ruas e
redes interferem na forma como entendemos e damos sentido ao mundo,
mostrando o dano, a falta e o excesso da vida contemporânea. Elas refletem e ao
mesmo tempo produzem o movimento, a instabilidade e a imprevisibilidade da
circulação discursiva contemporânea.

6. Referências

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https://feministkilljoys.com/2017/06/30/no/. Acesso em: 23 abr. 2018.

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CAMMAERTS, Bart. The circulation of anti-Austerity protest. Londres:


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CAMMAERTS, Bart; CORRÊA, Laura G. A circulação como metáfora


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http://ciseco.org.br/index.php/noticias/entrevistas/319-a-circulacao-como-
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CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes,


2005.

CORRÊA. Laura. G. A câmera nas ruas e galerias de Londres: presença física e


simbólica da vigilância. In: CASTRO, P. C. (org.). Vigiar a vigilância: uma
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CORRÊA. Laura G.; LAGO, Filipe M. Violência sociorracial, representações


midiáticas e cenas de dissenso. In: LOPES, Mônica Sette; MATOS, Andityas
Soares de M. C.; SANTANA, Eder Fernandes (orgs.). Representações da
violência: direito, literatura, cinema e outras artes. Belo Horizonte: Editora
D’Plácido, 2017, v. 1, p. 10-25.

HALL, Stuart; JHALLY, Sut. Stuart Hall: representation & the media. Vídeo.
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JENKINS, Henry. Convergence culture: where old and new media collide. Nova
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LAZAR, Michelle. Entitled to consume: postfeminist femininity and a culture of


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HARVEY, David. Rebel cities: from the right to the city to the urban revolution.
Londres/Nova Iorque: Verso, 2012.

LINS, Letícia A. Cerveja, mulher, diversão: representações e diálogos nas


propagandas de cerveja brasileiras. 2004. 164f. Dissertação (Mestrado em
Comunicação Social) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.

LINS, Letícia A.Publicidade em interação: #Deixamos o não em casa e saímos


com o nunca. Anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, São Paulo, 2016.

LINS, Letícia A. A publicidade nas redes sociais digitais: experiência,


engajamento e diálogo na Campanha Skol Reposter. Anais do 40º Congresso
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MARTÍN-BARBERO, Jesús. De los medios a las mediaciones. Barcelona:
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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO


experimental org.; Ed. 34, 2009.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo:


Editora 34, 2018.

6.1. Vídeos

Calais Jungle police assaults (5th and 6th of January). Youtube. 6 de jan de 2016.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OQCP_inka-Q. Acesso em 3
jun. 2018.

REPOSTER. Skol. Youtube. 9 Mar. 2017. 1min17s. Produção: F/Nazca Saatchi


& Saatchi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tuaP-
7P4w2w&t=4s. Acesso em 07 mai. 2018

Live for Now Moments Anthem. Pepsi. Youtube. 4 abr. 2017. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?time_continue=9&v=dA5Yq1DLSmQ. Acesso
em: 07 mai. 2018

LIONS. Skip Marley. Youtube. 2 fev. 2017. Disponível em


https://www.youtube.com/watch?time_continue=19&v=t6Y7yQIZT4Q. Acesso
em 3 jun. 2018.

1 Este artigo é uma versão revisada e ampliada de minha apresentação no


Pentálogo VIII - Circulação Discursiva e Transformação da Sociedade e traz
reflexões iniciadas nas pesquisas “Urban writings over the official discourse:
tension, appropriation and resistance”, desenvolvida na London School of
Economics and Political Science com apoio da Capes - Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e “Escritas urbanas sobre o
discurso autorizado: expansão e internacionalização da pesquisa”, financiada
pela Fapemig – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais.

2 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Centro Internacional de


Semiótica e Comunicação (CISECO).

3 No original em francês, o autor usa a palavra “tort” para dano. Em inglês, a


tradução mais usada é “wrong”.

4 No original: “• the production of movement discourses, frames and a collective


identity • a set of self-mediation practices of the movement • the mainstream
media representations of the movement • the reception of the movement
discourses and frames by non-activist citizens”.

5 No original: “(…) the question of the circulation of meaning almost


immediately involves the question of power. Who has the power, in what
channels, to circulate which meanings to whom? Which is why the issue of
power can never be bracketed out from the question of representation”.

6 No original: “The circuit metaphor implies a certain dynamism; there is no


ultimate conclusion precisely because circulation is an ongoing and, ultimately,
conflictual process, which takes place continuously, and in which oscillations in
one moment have inevitable consequences for the other moments, leading to
different actors changing/adapting their strategies and ways of doing things and,
at times, leading to unforeseen and surprising outcomes.”

7 Ver Corrêa, 2016.

8 Ver as pesquisas que têm sido desenvolvidas por Letícia Lins (2004, 2016,
2017).

9 Depois de Reposter, por exemplo, a marca lançou um comercial que mais uma
vez retratou apenas jovens brancos como protagonistas e consumidores, em uma
espécie de amnésia conveniente sobre o que havia sido dito alguns meses antes.

10 No original: “We are the movement, this generation / You better know who
we are, who we are” (tradução nossa).

11 Fonte: https://www.wired.com/2017/04/pepsi-ad-internet-response/.

12 Tradução nossa dos textos dos memes:

“VOCÊ QUER PEPSI DIET OU NORMAL?”.

“Por favor Kendall! Dê a ele uma Pepsi!”.

Bernice King, filha de Martin Luther King tuitou: “Se Papai ao menos
conhecesse o poder da Pepsi”.

“Eu tenho um sonho _Kendall Jenner”

“Diretor: ‘Você, cavalheiro urbano do cabelo interessante. Venha por favor tocar
a lata da Srta. Jenner. Faça-a parecer autêntica’.”

“Kendall Jenner oferece Pepsi a Adolf Hitler, colocando um fim à Segunda


Guerra Mundial.”

13 Banet-Weiser (2012) usa o termo “brandable” para tratar de questões que


podem ser apropriadas pelas marcas.
Prensa online y redes sociales en internet

Notas sobre la circulación de los discursos mediáticos contemporáneos en


Facebook1

• Natalia Raimondo Anselmino

1. Exordio

La investigación que se presenta en estas páginas se orienta a comprender los


modos en que internet – y las variadas plataformas conectivas que esta Red
alberga – han alterado las condiciones de circulación de esos discursos
mediáticos que solemos calificar como “noticias”. Como ya se planteó en
Raimondo Anselmino (2012), desde que los periódicos comenzaron a publicar
sus contenidos online, la noticia dejó de ser esa unidad-producto estable y
dispuesta en el contexto de una determinada sección temática del diario, como la
conocimos en su versión papel, para convertirse en un texto desarticulado y
desarticulable, en el sentido en que se concibe a los textos en los momentos que
Simone (2001) denomina como momentos de interpolación.

Es cierto que no tiene nada de novedoso considerar al texto como una entidad
abierta, pasible de intervención por un “otro” diferente al autor, pero tampoco es
posible desconocer que los cambios socio-tecnológicos que se han dado en el
pasaje del texto impreso al texto digital y, de ahí, a su puesta online a través de
las redes sociales en internet, afectaron las gramáticas de producción, circulación
y reconocimiento de los textos. Se presenta, así, una situación que altera las
condiciones de producción de los discursos mediáticos contemporáneos y que
nos permite sumar un hito más a la larga serie de modificaciones a las
modalidades clásicas de la prensa que vienen siendo analizadas en el ámbito de
la semiótica de los medios masivos desde hace ya varios años; transformaciones
que atañen también, por supuesto, al modo en que se construye el vínculo diario-
lector.

Cuando, por ejemplo, un periódico online publica una de sus notas en la


plataforma de Facebook, la re-semantiza. Es decir, vuelve a ponerse en
funcionamiento un proceso de semantización que implica, según Verón (1971),
la combinación de dos pasos: por un lado, selección, dentro de un repertorio de
unidades disponibles, y, por otro lado, combinación de las unidades
seleccionadas. Y como producto de esta re-semantización de los discursos de la
prensa, se establecen nuevas relaciones de co-presencia y contigüidad entre los
elementos que componen originalmente la nota posteada y las unidades que son
propias del posteo en la red social: es decir, otros enunciados verbales, otras
imágenes, otros operadores paralingüísticos se ponen en juego. Y a todo esto
podemos sumarle las alteraciones que sufre la diagramación de la información –
que cada vez es más fluida y adaptativa gracias a lo que se ha dado en llamar
diseño responsivo o responsive – de acuerdo al dispositivo de acceso que es
empleado a la hora del consumo2.

Volviendo a Facebook, puede decirse que su plataforma oficia como una zona en
donde se materializan, se cristalizan, los procesos de interpenetración entre el
sistema de los medios y los sistemas psíquicos socio-individuales; una zona de
contacto, en palabras de Fausto Neto (2010). Es decir, un espacio en donde,
recuperando las perspectivas luhmanniana y veroneana, se activan procesos
autopoiéticos de dos sistemas distintos que, a su vez, funcionan cada uno como
entorno del otro. Allí se habilita que los posteos-noticia, además de ser, por
supuesto, resignificados por el acto inmaterial de la interpretación – que, como
ya sabemos, no toca el cuerpo físico del texto –, puedan ser penetrados por otros
tipos de actividades del usuario que sí dejan una marca sensible: los usuarios-
lectores pueden adherir al post una reacción de gusto, enojo, sorpresa, etc.;
pueden interpolar un comentario sobre la nota o sobre cualquier otra cosa y;
pueden compartirlo en su muro, disgregando, manipulando y re-
contextualizando el contenido producido por el medio. Incluso, no debe perderse
de vista que, de este modo, es el público el que también participa de la puesta en
circulación de los posteos – dirían Jenkins, Ford y Green (2015): colabora con su
propagabilidad – al interactuar con los mismos en tanto el algoritmo de la
plataforma establece ciertas relaciones entre el nivel de engagement obtenido por
cada entrada y su visibilidad (o nivel de accesibilidad) en el newsfeed de los
usuarios.

En este contexto, deviene fértil la categoría de infraestructuras performativas que


propone Van Dijck (2016) para referirse a las redes sociales en internet,
recuperando reflexiones de autores como Latour (2005) y Gillespie (2010). Las
plataformas como Facebook son infraestructuras performativas porque invocan
determinadas acciones y ocluyen otras – “no son cosas; permiten que pasen
cosas”, diría Gillespie (en Van Dijck, 2016, p. 54) –, están investidas de
determinadas figuraciones y funcionan como mediadores, es decir, moldean la
performance de los actores sociales.
Dicha cualidad performativa se manifiesta, asimismo, en el modo en que se ven
afectadas las gramáticas de producción, circulación y reconocimiento de los
posteos que los diarios comparten en Facebook. En otras palabras, se presenta,
así, una situación que afecta a las condiciones de producción de los discursos
mediáticos que, de este modo, también se ven transformados, en tanto, como
explicó Verón (1998, p. 138), “si las condiciones productivas asociadas a un
determinado nivel de pertinencia varían, los discursos también, en alguna parte,
varían”.

Lo dicho hasta aquí explica las razones por las cuales la investigación presentada
se propuso estudiar, concretamente, las cuentas oficiales que tienen en Facebook
los diarios argentinos de información general y alcance nacional Clarín y La
Nación3, entre 2010 y 2015, teniendo en cuenta dos instancias. Por un lado,
indagar los modos de composición de los posteos y el tipo de contenido
difundido y la frecuencia de publicación en dichas fanpages, considerando
factores como: la localización geográfica de la información, el género
periodístico, la temática de referencia, y la temporalidad de los acontecimientos
presentados en las notas. Por otro lado, analizar ciertas regularidades en términos
de estrategias discursivas de las cuentas seleccionadas. Para afrontar dichos
objetivos se trabajó sobre dos corpus: en primer lugar, un corpus denominado
corpus de base que consiste en una colección de 1129 posteos – 534 de Clarín y
595 de La Nación; en segundo lugar, otro denominado corpus total, que
comprende el universo completo de los posteos publicados por ambos diarios
durante el período de indagación y que supone 54.742 posteos – 29.341 de
Clarín y 25.401 de La Nación. Para llevar a cabo el análisis, se partió de una
estrategia metodológica cuyo diseño combina las labores artesanales propias del
análisis socio-semiótico con el empleo de herramientas digitales y métodos
computacionales que permiten la recopilación, el pre-procesamiento, el
procesamiento y la visualización de cantidades mucho más masivas de datos y
metadatos que son, inicialmente, no estructurados y que pueden ser tanto
textuales como no textuales.

En los apartados que siguen a continuación, se compartirán algunos de los


hallazgos producidos en este marco en función de poder pensar el proceso de
circulación de los contenidos mediáticos a través de las redes. Se revisarán los
elementos que componen los posteos y el tipo de contenido publicado por ambas
fanpages (esto último sobre todo en relación con los géneros periodísticos
empleados y las temáticas de referencia), en conexión con la identificación de
ciertas estrategias discursivas observadas en los primeros acercamientos a ambos
corpus, dejando de lado aquello que atiende a cantidades, frecuencias y horarios
de publicación, aspectos que sí se han trabajado con detalle en Raimondo
Anselmino, Sambrana y Cardoso (2017).

2. Sobre la composición de los posteos

Los posteos-noticia están compuestos por diferentes combinaciones que se


establecen entre cuatro elementos: texto del post; enlace/s a sitio web; imagen o
imágenes y; video. En esta ocasión nos concentraremos, sobre todo, en las
peculiaridades que asume el primero de ellos, por su centralidad para cavilar en
torno al proceso de circulación de sentido.

Además de texto lingüístico, el texto del post puede comprender otros elementos
paratextuales, tales como corchetes, emoticones tipográficos o los emojis y
presentar, en su interior, links enterrados (o buried links, como se los denomina
en inglés) producidos al insertarse un enlace corto, al etiquetarse otras cuentas o
lugares de la plataforma, o al incorporarse un hashtag. Dichos elementos
paralingüísticos no estuvieron siempre sino que fueron apareciendo
gradualmente a lo largo del período estudiado4.

Asimismo, en caso de que el posteo contenga el elemento enlace o el texto del


post tenga un link enterrado y estos reenvíen a una nota publicada en el
periódico online, se observa que el texto del post establece diferentes relaciones
de transtextualidad (GENETTE, 1989) con los elementos comprendidos en el
titular que encuadra el contenido informativo – es decir, con el título, la volanta
y la bajada del diario en la web.

Al comparar el texto de los posteos comprendidos en el corpus de base con el


titular5 original de la nota a la cual se enlaza, puede verse que el 69,92% de los
posts de La Nación poseen alguna producción textual ad hoc, lo cual supone
algún cambio o agregado textual, por más mínimo que sea, respecto de dicho
titular; situación que en Clarín obtiene un porcentaje menor (55,62%).

Por otra parte, vale agregar que aunque es diversa la configuración que asume el
texto del post a lo largo del período, la misma podría resumirse, sin pretender
exhaustividad, en el siguiente conjunto de posibilidades:

1. Fragmento del título original de la nota enlazada;

2. Titular ampliado (reconstrucción a partir de título original + bajada);


3. Sintagma entre corchetes. Por ejemplo: [Ahora];

4. Titular ampliado + enunciado interpelativo;

5. Sintagma entre corchetes + título + enunciado interpelativo;

6. Sintagma entre corchetes + enunciado interpelativo;

7. Enunciado interpelativo;

8. Enunciado interpelativo + fragmento del título;

9. Enunciado interpelativo + encuesta a usuarios.

Por cierto, la configuración discursiva de los posteos no ha sido la misma


durante los seis años analizados sino que ha ido variando a lo largo del tiempo:
de copiar el título de la nota enlazada y agregar un sintagma interpelativo –
como es habitual entre 2010 y 2013 (Imágenes 1 y 2) – se pasó,
fundamentalmente durante los dos últimos años estudiados, a construir
complejas operaciones de relaciones intertextuales, paratextuales y metatextuales
– por recuperar las distintas dimensiones de las transtextualidad que distingue
Genette (1989) – entre el texto del post, el título del enlace al sitio web y el
titular original de la nota que el diario dispone en su página web (Imágenes 3 y
4).
Imagen 1 – Publicación en fanpage de Clarín del 15 de abril de 2013
Imagen 2 – Publicación en fanpage de La Nación del 16 de abril de 2013
Imagen 3 – Publicación en fanpage de Clarín del 3 de agosto de 2015
Imagen 4 – Publicación en fanpage de La Nación del 3 de agosto de 2015

El enunciado interpelativo tiene, como es evidente, gran predominancia en los


posteos que los diarios publican en Facebook y ocupa un lugar central en las
estrategias discursivas de estos medios. En algunos casos dicho enunciado está
constituido por una interrogación mediante la cual suele requerirse a un co-
enunciador la expresión de una opinión, un juicio de gusto o una creencia en
torno al tema de la nota que se enlaza o, directamente, se inquiere sobre la propia
vida de la audiencia. De este modo, son usuales expresiones como: “¿Qué opinás
del rol de Cobos ayer?”, “¿Cómo está el tiempo en tu ciudad? ¡Envianos tu
reporte”; “¿Cuánto disfrutaste vos del fin de semana largo?”, “¿Cuál fue el mejor
equipo del año”?. No obstante, claro está, no todos los enunciados interpelativos
encontrados contienen frases interrogativas. Por ejemplo, en otros casos,
mediante el enunciado interpelativo el medio explicita un pedido de “Me gusta”.
Como se explica en Raimondo Anselmino, Sambrana y Cardoso (2017), se trata
de un procedimiento que invoca una determinada reacción del público pero, a su
vez, cumple una función de anclaje respecto del universo de sentidos posibles
que implica la participación en Facebook a través del botón “Me gusta”. Es
decir, que podría considerarse, a su vez, como una operación enunciativa de
control de la participación o de reducción de la dispersión de lo que Verón
(1998) ha definido como gramáticas de reconocimiento. Esta es una operación
que tiene escasa ocurrencia6 pero, sin embargo, es muy efectiva en términos de
lo que suele considerarse como engagement: cada uno de estos post tiene, en
promedio, 11491,18 interacciones en Clarín (sumando likes, comentarios y
compartidos) y unas 2666,89 en La Nación, mientras la media de interacciones
en el periodo analizado es 2390,28 interacciones por publicación en el primer
diario y 1522,06 en el segundo.

Asimismo, si nos circunscribimos específicamente a los diez posteos del corpus


total que obtuvieron mayor cantidad de interacciones por año en cada medio,
encontramos que en 43 (35,83%) de esas 120 publicaciones – 21 de Clarín y 22
de La Nación –, la reacción “Me gusta” es explícitamente invocada en el texto
del post, algo que también sucede en el posteo con mayor cantidad de
interacciones de todo el período analizado (Imagen 5).
Imagen 5 - Publicación en fanpage de Clarín del 21 de septiembre de 2012

La fisonomía del texto del post en las cuentas de los diarios analizados también
ha ido alterándose al aplicarse otras estrategias que procuran atraer el interés del
público y la obtención del preciado tráfico web, como son aquellas denominadas
como click-baiting y formato lista. La primera, se observa en ambos diarios y se
concentra, sobre todo, en 2015 y obedece a un procedimiento de creación de
enigma a partir de la omisión de información (tanto en el texto del post como en
el título del link) que funciona como cebo o promotor de clics. Algo semejante
puede observarse en la Imagen 6 donde se presenta un posteo que La Nación
realiza para compartir en Facebook la nota que en su web titula: “Jürgen Damm,
el mexicano-alemán que jugará contra River y es el segundo futbolista más
rápido del mundo”. La segunda estrategia, presente exclusivamente en La
Nación, no es sólo una manera de titular en Facebook – ya que, a diferencia del
click-baiting, también la encontramos en el diario online – sino que es un modo
de estructurar el contenido informativo (Imagen 7).

Imagen 6 - Publicación en fanpage de La Nación del 5 de agosto de 2015


Imagen 7 - Publicación en fanpage de La Nación del 8 de agosto de 2015

Como es posible advertir a partir de lo hasta aquí señalado, la puesta en


circulación de las noticias a través de las plataformas de la redes sociales en
internet, altera la configuración discursiva del contenido producido y divulgado
por el medio. Ahora bien, pasemos a realizar algunas consideraciones sobre el
tipo de contenido que las cuentas comparten.
3. Sobre el tipo de contenido compartido

El tipo de contenido compartido por las cuentas oficiales de Clarín y La Nación


ha sido ampliamente analizado en Raimondo Anselmino, Sambrana y Cardoso
(2017). En esta ocasión, nos detendremos, particularmente, en dos aspectos que
nos sirven para pensar cuánto está cambiando el discurso de los diarios en su
pasaje por las redes: el género periodístico, por el cual se distingue si se trata de
una noticia, una crónica, una opinión, etcétera y, la temática de referencia por
medio de la cual se discrimina entre política, economía, deportes, policiales,
entre otros.

Si bien los géneros periodísticos han asumido diferentes caracterizaciones y sus


fronteras se difuminan cada vez más, esta investigación se propuso reconocer a
qué género remitía cada contenido posteado (Tabla 1). De modo que, se
consideró como noticia, siguiendo a Peralta y Urtasun (2007, p. 48), a toda
unidad textual en la que se relata un “hecho nuevo de la realidad – entre todos
los que acontecen – que los medios periodísticos consideran que es socialmente
relevante y que por lo tanto merece ser comunicado”. Dicho género – en el que
prima (aunque cada vez menos) una estructura de pirámide invertida y “un estilo
claro, directo” (FONTCUBERTA, 2011, p. 102) –, se diferencia de la crónica,
dado que esta última presenta “una estructura textual en la que predomina el tipo
narrativo cronológico” (PERALTA; URTASUN, 2007, p. 37) y puede contener
ciertos elementos valorativos pero secundarios al hecho a informar en sí. Por su
parte, la opinión se caracteriza por tener una dimensión argumentativa explícita,
en tanto “proceso discursivo por el cual se llega a cierta conclusión y se la
defiende o sostiene” (PERALTA; URTASUN,, 2007, p. 18), mientras que la
crítica se corresponde con aquello que de Fontcuberta (2011, p. 133) nombra
como artículo o comentario y consiste en una “exposición de ideas y juicios
valorativos suscitados a propósito de hechos que han sido noticias más o menos
recientemente” pero que, no obstante, “presenta un estilo literario muy libre”.
Las entrevistas dan cuenta de un diálogo donde participan un entrevistador y un
entrevistado y no deben ser confundidas con los reportajes – también llamados
reportajes en profundidad –, entendidos como la “explicitación de hechos
actuales que ya no son estrictamente noticia (aunque a veces pueden serlo), que
intenta explicar lo esencial de los hechos y sus circunstancias explicativas”
(FONTCUBERTA, 2011, p. 132) con un estilo que puede acercarse al literario.
Finalmente, se decidió incorporar la opción anuncio o posteo de saludo a
usuarios, por la significativa presencia de esta clase de publicaciones en el
corpus de base. A diferencia de los géneros que tradicionalmente han sido
considerados como periodísticos (FONTCUBERTA, 2001), el anuncio o posteo
de saludo a usuarios no necesariamente refiere a algún tipo de acontecimiento
noticiable ni tampoco a ideas expresadas o defendidas argumentativamente,
presentándose como un híbrido muy peculiar entre géneros discursivos primario
y secundario7.

Tabla 1 – Distribución de los posteos del corpus de base según género


periodístico

Analizando la distribución de los posteos del corpus de base según género


periodístico (Tabla 1) se observa que la mayor parte de los mismos enlazan con
el género más tradicional de la prensa de masas, la noticia, siendo esta presencia
más destacada en Clarín que en La Nación. No obstante, un aspecto de singular
interés para el análisis se desprende de los siguientes puestos en el ranking por
géneros, en donde se destacan tanto la categoría denominada en esta
investigación como anuncio o posteo de saludo a usuarios como la heteróclita
clase de los otros, es decir, de aquellos que no pudieron ser identificados ni como
noticia, crónica, crítica, entrevista, etc.

Sobre la extraordinaria cantidad de otros, puede agregarse que la dificultad para


inscribir contenidos compartidos en Facebook en las categorías más
tradicionales de la prensa se traslada también a otras variables como, por
ejemplo, la temática de referencia. Por citar un caso, en el corpus de base el
16,67% de los posteos (n=21) de la fanpage de La Nación dispuestos como
“otros” en género son también “otros” en temática y, a su vez, la mayor parte de
las publicaciones indicadas con “otros” en temática está clasificada de modo
similar en género. Asimismo, vale aclarar que mientras que la clase “anuncio o
posteo de saludo” están dispuestos a lo largo de todo el período relevado – con
excepción del año 2012 en Clarín, cuando casi todos los posteos se corresponden
con dicho género –, los clasificados como “otros” se concentran principalmente
en 2014 y 2015, para el caso de Clarín, y en 2015 para La Nación.

Por otra parte, la frecuente ocurrencia tanto del “anuncio o posteo de saludo”
como de los “otros” manifiesta una peculiaridad propia del tipo de mensajes que
circulan en esta red social en particular y cuyo funcionamiento parece
frecuentemente relacionado con la dimensión retórica que – al pensar los textos
televisivos – se designa en Morley (1996) como homología. La misma “consiste
en la coincidencia entre temporalidades textuales y experimentadas” (p. 302) y
permite explicar ciertas operaciones por medio de las cuales las fanpages de los
diarios estudiados procuran adaptarse y ajustarse a las rutinas domésticas y
cotidianas de su potencial audiencia. Es esta una clase de posteo representativa
del tipo de vínculo que las cuentas oficiales de los diarios digitales les proponen
a sus públicos.

Por otro lado, y para cerrar con lo expresado en torno a los géneros, resta decir
que las notas clasificadas como reportaje también tienen una presencia destacada
– el 11,09% en La Nación y el 8,05% en Clarín, dejando en un lugar más
relegado al resto de los géneros cuya preponderancia es menor en los dos
periódicos en cuestión. Esto último, por ejemplo, también llama la atención si
consideramos el exiguo lugar otorgado a la opinión, tan representativa del diario
La Nación que tradicionalmente se ha distinguido por tener un nutrido staff de
columnistas tanto en su versión papel como online. Como se advierte en
Raimondo Anselmino, Sambrana y Cardoso (2017), la opinión queda, así,
relegada en el discurso de este medio en Facebook, al tiempo que sí se solicita,
casi constantemente, una reacción afectiva o una apreciación por parte de la
audiencia. Como excepción, el único momento en donde se observó un
promedio significativamente mayor a lo habitual de posteos que enlazan a notas
de opinión en la fanpage de La Nación fue durante la semana seleccionada por
2015 para el corpus de base, que coincide con las elecciones presidenciales de
primera vuelta en Argentina.
En síntesis, se evidencia en las fanpages analizadas una fuerte predilección por
aquellas notas que le permiten a su público de usuarios-seguidores conocer
hechos y compartir emociones. Una preponderancia de los denominados géneros
informativos que, como señala de Fontcuberta (2011), son aquellos centrados en
dar a conocer hechos – en detrimento de los géneros de opinión, que dan a
conocer ideas – así como de los que podríamos denominar, momentáneamente,
géneros del contacto en redes o géneros del contacto en plataformas de red.

Por otra parte, en relación con las temáticas de referencia identificadas en el


corpus de base, en Tabla 2 puede verse que en ambas fanpages las notas sobre
acontecimientos de orden político son las más publicadas, aunque en la cuenta
de La Nación ocupan una mayor cantidad de posteos que en la de Clarín.
También se advierte que el segundo y el tercer lugar de esta clasificación están
intercambiados en ambos diarios. Mientras en lanacion la segunda temática más
representada es “Sociedad” y la tercera es “Deportes”, en clarincom el segundo
puesto lo ocupan los posteos relacionados con el ámbito del “Deporte” – que se
diferencia sólo por algo más de 6 puntos de “Política” – y el tercero, por su
parte, “Sociedad”.
Tabla 2 – Distribución de los posteos del corpus de base según temática de
referencia

Ahora bien, si en vez de considerar las temáticas en términos generales las


analizamos por cada año estudiado en el marco del corpus de base (gráficos 1 y
2), vemos que su distribución no es necesariamente uniforme. El gráfico de La
Nación nos muestra, por ejemplo, que “Política” y “Sociedad” son temáticas
presentes a lo largo de todo el período, mientras que “Deportes” está ausente en
los posteos de 2010, 2011 y 2012, apareciendo recién en 2013, y aumentando
superlativamente en 2014 y 2015. Algo similar sucede con “Espectáculos”, que
aparece recién tematizado durante el último año. El gráfico de Clarín, por su
parte, nos muestra que el comportamiento en el tiempo de la variable “temática
de referencia” es muy diferente en Clarín, donde las cinco principales temáticas
aparecen ya desde 2010 y su frecuencia relativa ha sido más inestable.

Gráfico 1 – Distribución de las 5 principales temáticas por año en fanpage de La


Nación
Gráfico 2 – Distribución de las 5 principales temáticas por año en fanpage de
Clarín

A su vez, además de la creciente presencia de las denominadas noticias blandas,


puede indicarse que una parte importante de las notas clasificadas en “Sociedad”
– especialmente en la fanpage de La Nación – versan sobre lo que suele
denominarse como historias de interés humano (Hughes, 1981) y parecen
orientarse a la conformación de una especie de comunidad de sentimientos o
comunidad de emociones (Imagen 8).

Imagen 8 – Publicación en fanpage de La Nación del 15 de abril de 2013

4. Sobre estrategias discursivas prevalentes

Como se ha dicho al inicio, esta investigación se propone, también, reconocer la


modalidad discursiva prevalente en cada uno de los posteos recopilados en el
corpus de base, empleando la clasificación de los cuatro tipos de modalidades
inter-sujetos que recuperan Fisher y Verón (1986) de Culiolí, con el objetivo de
poder estudiar cómo enuncian los diarios en Facebook.

Si bien éste es uno de los aspectos aún no concluidos del estudio, a partir del
primer acercamiento al corpus de base puede decirse que la presencia de las
Modalidades-4 es constante en los posteos de ambos diarios. Es decir, hay
proliferación de enunciados que proponen “una relación modal que pone en
juego Ego y Alter, el enunciador y el co-enunciador” (FISHER; VERÓN, 1986,
s/n), cuyo ejemplo más expresivo es, precisamente, el de la interpelación. Como
ya lo han explicado Fisher y Verón (1986), los enunciados en los que está
presente este tipo de modalidad, son aquellos que se dirigen a un co-enunciador
anónimo que se propone como co-presente, co-temporáneo de la enunciación (es
decir, como no habiendo desface temporal) y pueden caracterizarse por la
presencia de frases interrogativas u otras marcas como la segunda persona (del
singular o el plural) o el modo del verbo. Para el caso del texto del post de los
posteos-noticia advertimos, asimismo, que esto supone un cambio, al menos en
parte, en las operaciones de encuadre (VERÓN, 2004, p. 82) que conlleva el
titular (sobre todo en su función metalingüística).

Se ha podido observar, también, la presencia de ese tipo estrategias discursivas


que Biselli y Valdettaro (2004) califican como estrategias discursivas del
contacto y que, básicamente, consisten en un modo peculiar de configuración del
vínculo enunciativo que pone en acto “un tipo de apelación afectiva y
singularizante” (p. 219) que apela a la seducción del destinatario. También fue
Verón (2013) quien propuso que en los usos relacionales que se configuran en
las redes predomina la dimensión del contacto, “de la reacción, [y] la
contigüidad metonímica de las relaciones interpersonales” (p.280).

En este sentido, podría decirse que ambos diarios emplean estrategias tendientes
a emular el contacto interpersonal, aunque en La Nación se observa, también,
particularmente, otro tipo de estrategia que se orienta, más bien, a la
conformación de un nosotros poco habitual en el tipo de discurso que estamos
analizando – casi exótico en el discurso de información al que estábamos
habituados en otros espacios—, un nosotros en donde los co-enunciadores
parecerían estar ocupando más bien el lugar de Ego y no de Alter. Y bien podría
asociarse esto con una modalidad que propende a generar procedimientos de
identificación y al establecimiento de lazos, en cierto modo, comunitarios, en
clara afinidad con la retórica de la socialidad online preponderante en este tipo
de plataformas.
5. Breve epílogo

El estudio llevado a cabo permite avanzar en el conocimiento del modo en que el


discurso de la prensa se ha ido adaptando para hacerse pasible de circulación a
través de redes sociales como Facebok. Circulación ya no sólo entendida como
desaface o diferencia sino, también y al mismo tiempo, como movimiento de los
productos, tránsito, entre los dos polos entre los que circula el sentido,
producción y reconocimiento (VERÓN, 1998). Es decir, como aquella
dimensión fundamental del proceso de mediatización que Verón (2013) describe
como el lugar de las reglas que definen las condiciones de acceso a los discursos
sociales.

Así como en la Grecia Antigua la difusión de la escritura sobre cuero de


animales favoreció la circulación de la palabra en una escala y con una velocidad
que no había sido posible mediante la inscripción en piedra (LIVOV;
SPANGERBERG, 2012), así también el pasaje de los cuerpos densos de los
códices a los cuerpos efímeros – dentro de los que podemos incluir aquellos
productos que Verón (2011) denomina como papeles de noticias – supone nuevas
y continuas tensiones entre persistencia o perdurabilidad y propagabilidad.

Atravesados por los cambios que internet ha propiciado en casi todas las facetas
de la vida cotidiana, los medios en general, y los periódicos en particular, se han
visto ante la necesidad de seguir los desplazamientos de un público cada vez más
inasible. Y es precisamente así como los diarios llegaron a las redes, en donde un
posteo se convierte en un dispositivo de materialización de los textos diferente a
aquellos empleados hasta entonces por la prensa. Y esta no es la única novedad:
la noticia compartida en una plataforma como la de Facebook está encastrada en
una secuencia cuyo contrato temporal no es periódico, es decir, se inscribe en un
espacio-tiempo cuya regularidad de publicación es sustancialmente distinta tanto
a la del diario papel como al del online; en ruptura, por ello, con aquello que
Verón (2011, p. 297) identifica como el “núcleo duro inicial del periodismo
moderno”.

6. Referencias

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1 La investigación que aquí es presentada se llevó a cabo con la denodada
colaboración de Alejandro Sambrana y Ana Laura Cardoso. Una parte de los
resultados que se exponen ha sido publicada en RAIMONDO ANSELMINO;
SAMBRANA; CARDOSO (2017).

2 Considérese, por ejemplo, que en Argentina el consumo de contenido


informativo crece un 99% (es decir, se duplica) si al ingreso a través de PC y
laptop sumamos el que se realiza vía tablets y smartphones (COMSCORE,
2017).

3 A saber: www.facebook.com/clarincom/ y www.facebook.com/lanacion/.

4 Los corchetes fueron utilizados en ambas cuentas por primera vez en 2011,
momento en que la fanpage de Clarín se sirve, también, de los emojis. La Nación
hará esto último recién en 2012. Los sintagmas construidos a partir de asociar el
símbolo numeral (#) con una o varias palabras también aparecen por ese
entonces, aunque los hashtags pueden usarse en esta plataforma como etiquetas
de hipervínculo recién a partir de junio de 2013.

5 Se emplea el término titular para referir al conjunto de elementos usualmente


integrado por volanta, título y bajada.

6 Se trata de un recurso que sólo está presente en 883 posteos del corpus total (a
saber, un 1,61% del universo completo), de los cuales el 70%, aproximadamente,
pertenecen a la cuenta de La Nación.

7 Recordemos que, para Bajtín (1998, p. 248), los géneros son “tipos
relativamente estables de enunciados” entre los cuáles, más allá de su enorme
diversidad y heterogeneidad, es posible distinguir los géneros primarios de los
géneros secundarios. Los géneros discursivos primarios, simples, son
“constituidos en la comunicación discursiva inmediata” (p. 250). Por su parte,
los géneros discursivos secundarios, son aquellos que “surgen en condiciones de
comunicación cultural más compleja, relativamente más desarrollada y
organizada, principalmente escrita” (p. 250) y entre ellos el autor ubica a los
“grandes géneros periodísticos” (p. 250).
Ruptura da linearidade dos sentidos em um acontecimento discursivo

A tragédia em Mariana – Minas Gerais

• Ivone de Lourdes Oliveira1

Neste artigo pretendemos refletir sobre o rompimento da barragem de rejeitos de


Fundão, da mineradora Samarco, ocorrido em Mariana (Minas Gerais), no dia 5
de novembro de 2015, e considerado a maior tragédia ambiental do Brasil. Dado
o potencial de reverberação na vida comum dos atingidos, em dinâmica de
circulação própria, essa tragédia será analisada a partir de duas dimensões do
acontecimento: o da ordem hermenêutica (QUÉRÉ, 2005) e o acontecimento
discursivo (PÊCHEUX, 1990).

Partimos da premissa de que o rompimento da barragem é um acontecimento


ainda em processo, porque ele continua se desdobrando, seja nos embates entre a
Fundação Renova2 e a comunidade dos atingidos, seja na configuração da
opinião pública. Nesse cenário, elegemos para pesquisa os processos de
comunicação entre a Renova e os atingidos dos subdistritos de Mariana, Bento
Rodrigues e Paracatu de Baixo, considerando os enunciados de seus respectivos
jornais, Juntos e A Sirene. Esses dois subdistritos foram destruídos pelo rejeito
da barragem, e os seus moradores assumiram uma postura de polarização em
relação à Fundação Renova, resultando em duas instâncias de produção, que
colocam novos discursos em circulação e que se confrontam.

O percurso metodológico deste artigo é baseado no acompanhamento da mídia


sobre a questão do rompimento e dos avanços da Renova e comunidades de
Bento e Paracatu no processo comunicacional. Não é objetivo descrever as
particularidades desses atores envolvidos, mas, sim, compreendê-las à luz de
quadros de sentidos acionados nas práticas discursivas.

Este trabalho é fruto das discussões desenvolvidas pelo grupo de pesquisa


Dialorg: aspectos teóricos conceituais da comunicação no contexto das
organizações, formado por pesquisadores da PUC-Minas e da UFMG, que tem
se dedicado aos estudos da comunicação nas organizações há mais de uma
década, com ênfase especial às empresas de mineração, sobretudo após o
rompimento da barragem de Fundão. Essa tragédia reavivou debates sobre a
atividade extrativista e estabeleceu múltiplas conexões com outras áreas como:
jurídica, política, social, econômica e cultural. Neste sentido, o acontecimento se
reconfigura a partir do embate entre empresa e a comunidade dos atingidos,
apoiado pelos enquadramentos midiáticos na construção da opinião pública.

2. Quéré, Pêcheux e o acontecimento

Com o rompimento da barragem de Fundão, 32 milhões de metros cúbicos de


rejeitos de minério de ferro varreram os quase 700 quilômetros do leito do Rio
Doce, que ligam os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, e comunidades
ribeirinhas. Dezenove pessoas morreram. Uma pessoa ainda continua
desaparecida. Cerca de 1.300 ficaram desabrigadas.

Dezenas de municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo foram atingidas.


Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, destruídos pelo mar de lama, serão
reconstruídos até 2019. No Espírito Santo, as cidades mais afetadas foram Baixo
Guandu, Colatina e Linhares, onde fica a foz do Rio Doce. Ambientalistas
temem pela recuperação do Rio Doce, que abastece meio milhão de pessoas e
que já sofria com a poluição. A maior parte dos desabrigados mora na cidade
histórica de Mariana, em casas alugadas pela mineradora.

Figura 1 – A lama de rejeito deixou um rastro de destruição / Fonte: Jornal A


Sirene
A Samarco é uma joint venture da brasileira Vale e da anglo-australiana BHP
Billiton. Produz pelotas de minério de ferro, usadas especialmente na
alimentação de altos-fornos em siderurgias. Mais de dois anos após o
rompimento da barragem, a Samarco ainda não retomou suas operações. A
empresa argumenta que a retomada é necessária, para honrar os compromissos
de reparação e recuperação. Contudo, ainda depende de licenças ambientais e do
consentimento das comunidades vizinhas.

Em constante reconfiguração, como um acontecimento em processo, o


rompimento da barragem de Fundão se desdobra incessantemente nos embates
entre empresas, atingidos e enquadramentos midiáticos, e em ações concretas,
como a criação da Fundação Renova e a organização dos atingidos – reações e
respostas sobre as quais Quéré (2005) nos fala. Segundo ele, os acontecimentos
rompem com a normalidade, afetam e transformam a vida daquele que atinge,
suscitando reações, respostas e criando novos possíveis. Os acontecimentos
carregam consigo um caráter inaugural que pode marcar o fim de uma época e o
começo de outra; são reveladores, na medida em que interpelam e pedem não
apenas para ser explicados por causas, mas, sim, compreendidos.

Dessa maneira, o acontecimento tende a funcionar como abertura e fechamento


de uma sequência de eventos, tem o potencial de esclarecer uma problemática e,
ao mesmo tempo, de revelar outra ou suscitar um novo olhar. Quando se realiza,
somos impelidos a buscar novos arranjos, numa ação deliberada ou a partir da
perspectiva do outro. Se num primeiro momento o acontecimento se caracteriza
pela ruptura, pela desorganização do presente, para sair do impasse, suscita
sentidos, faz pensar e buscar saídas (FRANÇA, 2012). O enfrentamento estaria,
então, na capacidade de o sujeito se posicionar frente ao acontecimento e o que
ele impõe ou suscita – o que confere caráter pragmático ao fenômeno.

A tragédia de Mariana é tratada também como acontecimento discursivo


(PÊCHEUX, 1990), pois “os enunciados passaram a incorporar sentidos até
então inexistentes” (CARNEIRO, 2017, p. 84), dando início a um processo de
circulação de discursos diferentes dos que existiam. Além de todas as questões
humanas, sociais, políticas e econômicas que perpassam o acontecimento, é
considerado discursivo porque, no momento em que os atores sociais
envolvidos, direta ou indiretamente, lançam mão de estratégias discursivas
diferentes das usadas anteriormente, elas se reconfiguram na dinâmica de
produção e disputa de sentido (BALDISSERA, 2010).
Considerando essa perspectiva, os enunciados, durante e após a ruptura da
barragem, congregam sentidos desconhecidos, fora do repertório e das condições
de produção antes existentes. Novas interpretações passam a integrar o mundo
de sentidos e, a partir do momento em que se instauram novos sentidos – em
condições de produção específicas –, eles “transbordam e rompem com a
linearidade” (CARNEIRO, 2017, p. 85).

Se antes o foco era conhecer a posição da mineradora Samarco e suas


justificativas, com sua morosidade e relativização da gravidade dos impactos
decorrentes do rompimento da barragem, o olhar se volta para a extensão da
tragédia. As imagens impactantes e os depoimentos dos atingidos, veiculados
exaustivamente pela imprensa convencional e as mídias sociais, se sobrepõem ao
discurso da empresa, enfraquecendo sua posição de enunciadora.

À Samarco sobram críticas sobre a gestão da crise e a lentidão na tomada de


decisões. A controladora Vale, por exemplo, no primeiro momento, parece ter se
eximido de suas responsabilidades, uma vez que, como registrou em seu site, o
controle das operações era exclusivo da Samarco. Seis dias depois, a Vale se
prontificou a apoiar a condução dos trabalhos de recuperação e resgate.

Como um acontecimento discursivo, evidencia-se a questão teórica “do estatuto


das discursividades que trabalha um acontecimento, entrecruzando proposições
de aparência, logicamente estável, suscetíveis de resposta unívoca (é sim ou não
é X ou Y, etc.) e formulações irremediavelmente equivocadas” (PÊCHEUX,
1990, p. 28).

2.1. Fundação Renova: nova roupagem do acontecimento

A Fundação Renova nasce em 2 de agosto de 2016, nove meses após o


rompimento da barragem da Samarco (05/11/2015), por meio de um Termo de
Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC). Comprometida com a missão de
“gerir e de executar ações de recuperação e reparação das áreas atingidas e das
comunidades agredidas”3, a Fundação é uma organização peculiar, devido a sua
constituição de governança, na qual têm participação acionistas e vários outros
atores do governo e de entidades ligadas ao meio ambiente.

Com 500 empregados e 3.500 consultores4, o modelo de governança sob o qual


se estrutura parece dificultar a gestão da organização. A Fundação é mantida por
um fundo bilionário (aproximadamente 20 bilhões de reais), garantido pelas
empresas acionistas Vale e BHP Billinton. O seu plano de trabalho é dividido em
três eixos temáticos: pessoas e comunidade; terra e água; e reconstrução e
infraestrutura. Entre os compromissos da organização está a construção dos
assentamentos que vão abrigar as famílias de Bento Rodrigues e Paracatu de
Baixo, até 2019.

O plano de trabalho é ambicioso e a participação da comunidade na execução é


um desejo expresso da Fundação em diversas peças promocionais: “[...] tudo
está em construção e precisamos estar juntos”. Apenas 2% do plano de trabalho
foram desenvolvidos até o momento, e, segundo informações de um dos
profissionais de comunicação da Fundação, a lentidão e a morosidade do
processo são consequências da atuação desordenada dos vários atores sociais no
Conselho Interfederativo (CIF), composto aproximadamente por 80 instituições
(Ministério Público, ONGs, órgãos federais e estaduais ligados ao meio
ambiente, comunidade dos atingidos etc.).

A existência de contradições na gestão da Fundação Renova, devido ao grande


número de atores no processo de decisão, se evidencia na tomada de decisões,
como observa o profissional de comunicação entrevistado. Outro ponto que nos
chama a atenção é o papel das empresas acionistas: são mantenedoras da
Fundação, mas não têm poder de decisão. De acordo com o site institucional, a
Renova vem construindo seu discurso fundamentada nas noções de futuro e de
diálogo. Declara acreditar na construção coletiva, na promoção do encontro e
das conexões para sanar os problemas provocados pelo rompimento da
barragem. Entretanto, é importante ressaltar que a organização carrega em seu
DNA as marcas de uma tragédia que abalou o Brasil e que ainda causa
indignação na sociedade. Esta formação peculiar também traz dificuldades no
processo de relacionamento com a sociedade, porque amplia a desconfiança em
relação ao seu compromisso real e suas práticas discursivas da Fundação
continuam presentes.

Para se comunicar com a sociedade, especialmente com as comunidades


atingidas, foram criados vários meios virtuais, como perfis no Facebook,
Instagram, Linkedin, além do uso do Youtoube, Ouvidoria, Fale Conosco e 0800.
Foi criado, também, um jornal, nosso objeto de estudo, que começou a circular
em julho de 2017, quase dois anos após o rompimento da barragem, com a
proposta de conversar com as comunidades atingidas e de informar sobre o
andamento das ações relacionadas à construção do novo espaço comunitário e
demais ações de reparação e recuperação. O jornal nasce sem nome. E a
manchete do número zero é um convite ao leitor/atingido: “Vamos escrever este
jornal juntos?”. A Fundação os convida também para escolher o nome do jornal.

Figura 2 – O número zero do jornal da Fundação: convite à parceria / Fonte:


Fundação Renova

Por meio da ferramenta, o que a Fundação se propõe é fazer uma comunicação


dirigida. Para cada grupo de atingidos em Minas Gerais e no Espírito Santo, foi
produzida uma versão do jornal, considerando proximidade e similaridade dos
problemas. O número zero circulou com oito páginas e é um convite ao fazer
juntos, à parceria e, especialmente, ao diálogo e ao esclarecimento.

Esse jornal, que ainda não tem nome, é um espaço de informação. Saber o que
está acontecendo é seu direito e é importante para você tomar decisões seguras.
Nossa vontade é que você participe com suas dúvidas, críticas e possa perguntar
o que gostaria de entender. (JORNAL FR, 2017, nº 0, p. 5).

A Fundação edifica seu discurso no jornal, a partir da ideia de construção


contínua após o acontecimento. “Reconhecemos que surgimos a partir de um
acontecimento muito grave e existimos para ajudar e, principalmente, para unir
esforços que transforme essa realidade” (JORNAL FR, 2017, nº 0, p. 2). Por
outro lado, os sentidos circulantes indicam que falta à organização legitimidade
perante a comunidade. Os discursos que circulam carregam o sentido de
suspeição, como declara um profissional de comunicação da Renova: “para os
atingidos a Fundação é uma máscara da Samarco, um arranjo para enganar as
pessoas”.

2.2. Comunidade dos atingidos: Bento e Paracatu

As comunidades analisadas são constituídas pelos subdistritos Bento Rodrigues


e Paracatu de Baixo, locais destruídos pelo rompimento da barragem.
Atualmente, essas comunidades se encontram organizadas e contam com o apoio
de instituições como o Ministério Público, Arquidiocese de Mariana, além da
assessoria da Cáritas brasileira5 e do Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB)6.

Com a ajuda das assessorias já mencionadas, os atingidos criaram o jornal A


Sirene, em fevereiro de 2016, com edições mensais e o propósito de garantir voz
aos atingidos das comunidades de Mariana e Barra Longa, para denunciar os
efeitos da tragédia, assegurar direitos, acompanhar a reparação socioambiental
dos danos provocados pelo rompimento e preservar a memória e a história de
vida dos atingidos. Tem, aproximadamente, 70 pessoas envolvidas no processo
de elaboração do informativo, incluindo atingidos e grupos técnicos da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG).

As edições têm 16 páginas, em média. O jornal circula sempre no dia 5 do mês,


data que marca a tragédia ambiental, e o nome faz referência à “sirene” que
deveria ter sido acionada pela Samarco para alertar as comunidades à jusante
sobre o rompimento da barragem. Como ela não tocou, as comunidades foram
avisadas sobre a tragédia que se aproximava, de boca em boca, minutos antes da
lama cobrir os subdistritos.

Figura 3 – Exemplares do jornal A Sirene, criado com o propósito de dar voz aos
atingidos / Fonte: Jornal A Sirene

Inicialmente, A Sirene foi escrito na primeira pessoa, para valorizar a voz do


atingido. A partir do segundo semestre de 2017, o jornal entrou numa nova fase,
mais informativa, com espaço para mais vozes. “O jornal foi criado para dar voz
aos atingidos. E esta missão continua”, afirma o editor Rafael Martins. A ideia
da reformulação editorial foi ampliar a circulação, para reforçar a luta dos
atingidos, especialmente no momento em que o rompimento da barragem deixa
de ser pauta da grande imprensa.

Igualmente importante é ressaltar que, além do jornal, a sociedade civil de


Mariana, junto com os atingidos, fundou o Coletivo #UmMinutoDeSirene, para
continuar dando voz e preservar a memória das comunidades vítimas da
tragédia. Para que o maior acidente ambiental do Brasil não caia no
esquecimento, a cada dia 5 do mês, o Coletivo toca a sirene às 5 horas da tarde
(horário do acidente) e promove um ato público em Mariana. Esta é uma
maneira de trazer novamente para a comunidade a lembrança do acontecimento
e reavivar a perda irreparável das pessoas que não recuperaram seus pertences da
vida vivida. A preservação da memória ganha uma dimensão de luta e de
lembrança.

3. Sentidos incompletos e divergentes

Emergem desses veículos (Juntos e A Sirene) dinâmicas de circulação que vão se


configurando em um processo de mescla entre a organização instituída, a
comunidade dos atingidos, a mídia e a sociedade, que participam do
acontecimento como atores que vivenciam, de forma diferenciada, a situação. O
ambiente provocado pelo acidente se envolve em práticas discursivas complexas
e traz elementos da produção dos enunciados e da forma como lhes é dado
sentidos.

Como declara Fausto Neto (2010, p. 92), a ambiência da midiatização sustenta


que “novos tipos de dispositivos se contatam ou se entrecruzam em suas
dinâmicas e manifestações de natureza sociotécnicas que dá, por sua
configuração e fluxos, conformidade a ambiência midiatizante”. Nesta
perspectiva, consideramos que a Fundação Renova constitui um novo modo de
enunciação, para atualizar sua função. Ela “está envolta em uma rede discursiva
que desloca para um âmbito complexo – o da plataforma circulatória – as lógicas
sobre as quais se assentaria a produção de um novo trabalho da enunciação”
(FAUSTO NETO, 2010, p. 92).

Entendemos a comunicação como um processo interacional no qual a emissão, a


recepção e a circulação se tecem, redesenhando as relações de produção e
recepção, gerando outros espaços de produção de sentidos (FAUSTO NETO,
2013). No caso estudado, a mineradora teve, a princípio, a força da emissão, mas
com a pressão midiática e a adoção, por assim dizer, de uma postura defensiva e
distante dos públicos impactados, perdeu seu espaço de enunciação, tornando-se
refém da mídia. Paralelamente, a comunidade atingida adquiriu o vigor da
produção de enunciados, favorecidas pela extensão dramática do rompimento de
Fundão e da abertura de espaços de fala nas imprensas nacional e internacional e
nas mídias sociais digitais. Posteriormente, com a criação do jornal A Sirene,
esse lugar de fala foi ampliado.
Estão presentes, na enunciação das duas instâncias o jogo e a luta na busca do
reconhecimento social. A circulação é um “processo através do qual o sistema de
relações entre condições de produção e condições de reconhecimento é, a sua
vez, produzido socialmente” (VÉRON, 1996, p. 20). Assim, o foco na circulação
ganha destaque e se torna fundamental para entender os enfrentamentos
discursivos entre a Fundação Renova e a comunidade dos atingidos.

A circulação desponta como um território que se transforma em lugares de


embates de várias ordens, produzidos por campos e atores sociais e que pode ser
reconhecida como uma instância geradora de desarticulação entre produção e
recepção caracterizada por incompletudes e divergências entre termos de
sentidos. (FAUSTO NETO, 2013, p. 55)

No acontecimento em estudo evidencia-se a fluidez das instâncias da emissão e


da recepção e o reconhecimento do espaço da circulação como uma forma de
legitimação. Ele se reconfigura a partir do momento em que cada instância se
revela emissora no contexto onde as práticas discursivas emergem. A situação
singular transformou Mariana em um palco, no qual múltiplos atores
aproveitaram para conquistar a confiança das instâncias, oferecendo ajuda,
trabalho, consultoria, transformando também o acontecimento em espaços de
disputa de interesses pessoais e políticos.

Não se pode deixar de reconhecer que a produção discursiva dos atores


envolvidos é orientada por jogos de poder para assegurar uma representatividade
no que é circulado. “A circulação da comunicação é um processo que está
afastado do equilíbrio [...] e a circulação discursiva é uma das principais fontes
de complexidade social (não a única)” (VÉRON, 2008, p. 108). A partir da
perspectiva da circulação (FAUSTO NETO, 2010) e da noção de Pêcheux de
“prefigurar discursivamente o acontecimento” (1990, p. 20), ou seja, pressupor e
imaginar, é que se pretende entender o acontecimento em processo – o
rompimento da barragem de Fundão e o atravessamento no vivido – como um
campo de possibilidades de enfrentamentos discursivos e de circulação de
sentidos.

Nesse sentido, podemos considerar que o acidente em Mariana rompeu a


linearidade dos sentidos estabelecidos e possibilitou “a emergência de novos
dizeres possíveis” (CARNEIRO, 2017, p. 85) sobre o rompimento da barragem,
a relação com a mineradora Samarco e com a atividade de mineração. A partir de
Charaudeau, Carneiro (2017) nos lembra que o ato de comunicação não se
determina previamente. “Apesar de inscrito em uma troca linguageira
estabelecida por um contrato de comunicação”, o sujeito tem a possibilidade de
escolher o seu próprio modo de fala, movimento que propicia as estratégias
discursivas.

4. Práticas discursivas da Renova e dos atingidos

Para entender a ruptura dos sentidos tradicionais da atividade de mineração e da


Samarco, a pesquisa e a análise desenvolvidas partem do corpus constituído por
três edições do jornal A Sirene e a primeira edição do jornal da Fundação
Renova. No jornal A Sirene elegemos para análise os números 5, produzido nove
meses após o rompimento da barragem; o 8, que é uma edição comemorativa de
um ano do rompimento da barragem; e o número 18, que traz a primeira reforma
editorial do jornal.

4.1. A Sirene: manifestações discursivas da comunidade dos atingidos

Nas três edições analisadas, o sentimento de desconfiança dos atingidos pela


mineradora se faz presente. Na edição de número 5, passados nove meses da
tragédia, os atingidos ainda reclamavam das indefinições no plano de reparação
e recuperação dos danos e da morosidade da mineradora para executar as ações
emergenciais. O perfil beligerante da interlocução se evidencia logo na página 2,
com a publicação de uma lista com os cuidados que o atingido deve ter, antes de
assinar qualquer documento a pedido da mineradora (A SIRENE, 2016, nº 5, p.
2).
Figura 4 – Recomendações do jornal A Sirene para os atingidos / Fonte: Jornal A
Sirene

A tensa relação com a mineradora carecia até mesmo de parâmetros para


definição do conceito “atingido” – fundamental para indenização e reparação dos
danos pela mineradora. “A definição sobre quem deve ser considerado atingido
ainda é uma disputa, o que dificulta o entendimento e a luta pelos direitos”,
como destaca o editorial da edição de número 5 (A SIRENE, 2016, nº 5, p. 2).
Para ampliar a discussão, especialistas discorreram sobre o assunto nas páginas 8
e 9, que trazem o seguinte título: “ATINGIDO – Um conceito em disputa”.

Muitas pessoas que não perderam casa ou emprego, mas perderam terrenos,
plantações, criações, pasto para gado, perderam com isso muitos trabalhos e
tiveram também suas vidas alteradas de diversas formas pelo rompimento da
barragem. Assim deveriam ser indenizadas imediatamente. A definição de quem
vai ser incluído e quem será deixado de fora não deveria se tornar uma disputa
entre os atingidos. Um levantamento a partir da perspectiva dos atingidos seria
essencial. Direitos não deveriam ser negociados dessa forma, externa à realidade
das pessoas envolvidas, que traz sofrimentos e perdas adicionais às vítimas.
(Andrea Zhouri, professora da UFMG e coordenadora do Grupo de Estudos em
Temáticas Ambientais – Gesta)

Por meio do depoimento da enfermeira Jacqueline Aparecida Dutra, viúva de


Vando dos Santos, que foi carregado pela lama, um lamento ao tratamento dados
às mulheres que perderam seus maridos na tragédia. “Ninguém teve a visita da
Samarco para saber o que estava acontecendo”7, declara a enfermeira, referindo-
se às outras 12 viúvas. “Deu a entender que eles só enxergavam os bens
materiais.”

Em seu depoimento, Jacqueline (2016, nº 5, p. 15) não reclama do pagamento da


indenização. Para além do dinheiro, a reivindicação da enfermeira residia na
esfera do sensível. “Nossos direitos... o valor financeiro não tinha jeito, eles (a
Samarco e a Integral, tinham que liberar). A parte do atendimento mesmo, de
estar interessado no meu bem-estar, eles não me deram apoio.” Vando era
empregado de uma empresa terceirizada da Samarco, a Integral. “Você perdeu
uma vida, mas o que além disso você perdeu? Ninguém te pergunta isso.” (A
SIRENE, 2016, nº 5, p. 15).

A edição de número 8, de novembro de 2016, apela para os recursos visuais e


depoimentos profundos, para marcar o primeiro ano do rompimento da
barragem. Com uma capa marrom, da cor da lama do rejeito, a edição traz 32
páginas com histórias de “luto e luta”. O jornal expressa a dimensão da tragédia
e as matérias estão relacionadas à dor física e emocional que os desabrigados
viveram ao longo do último ano, e muitos são relatos sobre o incômodo de morar
fora de suas casas. Um ensaio fotográfico eterniza a rotina dos moradores e
histórias de preconceito contra os atingidos e as incertezas de um futuro ganham
forma nas matérias.
Figura 5 – A edição comemorativa do primeiro ano de rompimento da barragem
eterniza a história de “luta e luta” dos atingidos / Fonte: Jornal A Sirene

A edição comemorativa mostra também que a tragédia provocou marcas


indeléveis àqueles que foram atingidos diretamente. O editorial reaviva a
saudade das pessoas, das coisas, reforçando o drama daqueles que perderam
casas e parentes, e expressa a ideia de relembrar as histórias de luto e de luta, no
sentido de construir memórias e esclarecer fatos que ainda precisam ser
esclarecidos.

A matéria da página 3 fala da dificuldade dos atingidos em se adaptar às casas


alugadas pela mineradora em Mariana. A nova rotina não deixa espaço para as
brincadeiras nos quintais – um modo de vida que passou de geração a geração.
“Em minha memória, sinto o cheiro do mato pisado e repisado na vivência de
todos os dias. Sem esforço, ouço a risada das nossas crianças subindo em
árvores” (A SIRENE, 2017, nº 8, p. 3). “Viver o luto e ao mesmo tempo ter que
se fortalecer para não perder ainda mais. Nesse caminho, o exercício de contar a
própria história se faz cada vez mais importante” (A SIRENE, 2016, nº 8, p. 2.)

Nas páginas 14 e 15, os relatos dos moradores de São Bento e Paracatu que
sobreviveram à tragédia chamam a atenção: “Já era noite e o nosso paraíso tinha
sido destruído rapidamente. A tarde radiante deu lugar para a agonia e o
anoitecer trouxe uma tristeza quer persiste até hoje”, registra a página 14, sobre
Bento Rodrigues. Na página seguinte, o relato é sobre a chegada da lama a
Paracatu. “A lama chegou à ponte. Veio arrebentando tudo. [...] Tudo foi
destruído. Casas. Igreja. Escola. Choradeira. Angústia. Impotência. Todos sem
casa. Sons de destruição. A força da lama arrastou tudo que estava pela frente”
(A SIRENE, 2017, nº 8, p. 14 e 15).

Já a edição 18, de setembro de 2017, reforça a ideia do jornal como espaço de


resistência. Como marca discursiva desta postura elegemos a matéria “Porque
Dizemos Não Ao Jornal da Renova”, que é uma resposta à proposição da
Fundação de buscar soluções conjuntamente, inclusive para a produção do
informativo da organização. “Não vamos escrever com eles porque já temos o
nosso próprio jornal, e que nos representa muito bem. Por isso, não vejo a
necessidade de ter outro”, declara Mônica dos Santos, da Comissão de Bento
Rodrigues. “[...] já temos o jornal A Sirene, que é o veículo que nos dá a
liberdade para contar as nossas histórias, passar as informações e fazer os
esclarecimentos. Nós sabemos que a Renova não tem essa preocupação”,
assegura Luzia Queiroz, da Comissão de Paracatu de Baixo.

Ao longo dessa edição, relatos de muita saudade, saudades de um dia a dia ao


lado de uma vizinhança que agora está espalhada pelos bairros da cidade
histórica de Mariana. “Alessandra e Luiz, meus vizinhos, eu tenho vontade de
ver vocês todos os dias. Aqui (em Mariana) é mais difícil, então fica pra quando
der certo. Abraço, José Marques (Bento Rodrigues)”, “Dona Laura, vontade de
comer aquele pastel. Abraço, Reginaldo (Paracatu)”, “Antônio, Heleno e Paulo,
sinto falta de chegar em casa, ligar o som do carro e gritar vocês. Reginaldo.
(Paracatu)” são alguns dos relatos publicados.
Figura 6 – Jornal A Sirene, nº 18: espaço de luta e resistência / Fonte: Jornal A
Sirene

Tais relatos nos indicam que as demandas dos atingidos vão além de um espaço
adequado para viver. Mais que isso, eles choram pela perda de sua história, dos
vizinhos, do espaço social e da convivência familiar e afetiva presentes naquele
local. Apesar de saberem que a memória acerca da vivência é irrecuperável,
sofrem as consequências do abandono e a incerteza do começo de uma outra
forma de vida. Assim, exigem da Fundação a tarefa árdua de cuidar não só da
recuperação da casa, de coisas concretas, mas, também, da dimensão emocional
e sentimental – revelando, ao que nos parece, delicado espaço para os
enfrentamentos discursivos. Retomando a ideia da circulação, Fausto Neto
mostra que ela se transforma em local de embate de várias origens. Percebe-se aí
o jornal A Sirene como uma instância geradora de desarticulação entre o que é
dito pela Renova e o que é vivido e dito pelos atingidos. A prática discursiva dos
atingidos demonstra uma organização com consciência do que aconteceu e eles
reivindicam uma posição da mineradora, dando a essa relação um caráter
também político.

A despeito dos enquadramentos determinados pela organização, o autor nos


ajuda, ao afirmar que “um discurso produz não um efeito, mas suscita a
possibilidade de vários, os quais não são conhecidos a priori” (FAUSTO NETO,
2013, p. 53). Dessa forma, como salienta, o “sentido não estaria a serviço de
uma intenção unilateral, mas preso em feixes de relações – situação que afastaria
a interação das possibilidades de equilíbrio e linearidade” (FAUSTO NETO,
2013, p. 45).

4.2. Fundação Renova: convite para fazer juntos

Nas oito páginas do número zero do jornal da Fundação Renova fica clara a
proposta da organização de trabalhar em conjunto com os atingidos, tornando o
processo de reparação mais transparente, especialmente em relação aos projetos
de reassentamento da “Nova Bento Rodrigues” e do “Novo Paracatu”.
Igualmente, a disposição da Fundação Renova em conversar com os atingidos,
por meio dos diversos veículos existentes e reuniões periódicas. Já na página
três, a Fundação trata de informar que é uma organização autônoma em relação
aos seus mantenedores:

É verdade que a Fundação Renova é mantida como fruto do compromisso direto


das empresas com a recuperação dos impactos gerados com o rompimento da
barragem. Mas isso não significa que são elas que decidem pela Renova ou por
você. Todas as decisões tomadas passam por um sistema de governança que
assegura isso. (JORNAL FR, 2017, nº 0, p. 3)

Na primeira edição, ricamente ilustrada por Eduardo Campos, marido de Thaís,


nascida e criada em Bento Rodrigues, a Fundação Renova procura se posicionar
em relação aos questionamentos feito pelos atingidos e já presentes no jornal A
Sirene. “Não temos todas as respostas para as suas perguntas e pedimos
desculpas por isso! Tudo é muito novo também para a gente” (JORNAL FR,
2017, nº 0, p. 5). Na mesma página, a Renova fala sobre a razão da criação do
informativo. “A gente sabe que esse jornal não vai explicar tudo o que você
precisa. Mas é mais uma oportunidade para estarmos juntos, pois é conversando
que a gente se entende.” Na mesma página, a Renova convida o leitor para
ajudá-la a “escrever uma nova história”, por meio da participação na produção
do jornal, incluindo a escolha do nome. “Sabemos que depois do rompimento da
barragem sua vida mudou completamente. Por isso, para recomeçar e tomar uma
decisão importante, precisamos pensar juntos, porque tem coisas que só você
pode explicar” (JORNAL FR, 2017, nº 0, p.4).

É importante salientar que os discursos veiculados são formulações sustentadas


também pela presença da Samarco na vida dos atingidos e da importância da
empresa para a economia do município de Mariana. Nesse sentido, na primeira
edição, o Jornal da Renova toca em um tema bastante delicado: a convivência
entre os atingidos e os moradores de Mariana. No primeiro momento do
rompimento, toda a cidade se mobilizou para ajudar os atingidos. Contudo, a
falta de empregos provocada pela suspensão da atividade da Samarco e de suas
prestadoras de serviços fez com que a relação de solidariedade desse lugar a um
clima de animosidade. Mais ainda: marianenses acreditam que os beneficiados
pelo cartão de auxílio-financeiro oferecido pela Samarco (cerca de 2.300,00 reais
por mês) estariam se aproveitando da condição de atingido.

Pode ser que tenha gente que acha que as empresas pararam por sua causa e
alguns podem pensar até que seus direitos, como por exemplo o cartão de
auxílio-financeiro, são maneiras de se aproveitar da Fundação Renova. [...]
Somos todos solidários à angústia das famílias cujos membros perderam seus
empregos e tiveram queda em sua renda. Precisamos entender que o momento é
complicado para todos. É tempo de mais compreensão, pois os problemas não se
resolvem jogando a culpa um no outro. (JORNAL FR, 2017, nº 0, p. 6 e 7)

Sobre a criação da organização, o informativo procura explicar os tempos e


movimentos da Fundação na resolução dos danos causados pelo rompimento da
barragem.

Hoje você convive com novas pessoas e vizinhos e tem uma outra rotina que
exigiu da sua família adaptar-se a uma realidade diferente e que vocês não
pediram para ter. É por isso que a gente conversa tanto, discute, duvida, erra e
acerta até encontrar uma solução. (JORNAL FR, 2017, nº 0, p. 4)

Analisando a prática discursiva do jornal da Renova, percebe-se que a


organização perdeu o foco, diferentemente dos posicionamentos da Samarco,
que era uma empresa que parecia estar na vanguarda de uma comunicação
relacional. A Renova, no entanto, indica em seu discurso uma postura defensiva.
São claros os esforços e medidas adotadas pela Fundação para se aproximar dos
atingidos, mas tais movimentos, no entanto, não parecem produzir os sentidos
desejados. Mais ainda: é vazio, especialmente quando adota a bandeira da
parceria, do fazer junto, demonstrando que, ao invés de oferecer, de liderar e ser
protagonista dos planos de reparação, ela convida os atingidos para assumir
junto esse trabalho. E ao convidar os atingidos para tal empreitada, enfraquece a
postura perante os atingidos, que depositam na Fundação a esperança da
retomada da rotina.

Há de considerar que a prática discursiva da Renova está associada ao acidente.


O seu discurso, contrariando os objetivos da criação da organização, parece não
ter autonomia. É dependente dos acionistas, dos membros da organização, da
sociedade e dos atingidos. Quando parte para fazer um jornal com a participação
do outro, indica que não tem o que falar, diferentemente do extenso plano de
trabalho. Assim, a prática discursiva do jornal demonstra uma Fundação frágil
em relação ao protagonismo no programa de recuperação e reparação, ao seu
conceito e propósitos. A Fundação está buscando um diálogo com um grupo que
está se constituindo contra ela mesmo. Ou seja, perdeu o momento e o lugar de
fala.

A falta de homogeneidade no quadro de valores faz emergir estratégias


discursivas (Charaudeau, 2008), construídas para buscar a posição de
legitimação e reconhecimento. Na disputa de sentido, as lógicas e gramáticas de
cada um são consideradas parte do repertório que vai se consolidando no mundo
vivido, em todos os âmbitos: econômico, histórico, social, político e pessoal.

5. Considerações finais

O processo que atravessa o rompimento da barragem, as reverberações na


sociedade e, especialmente, os sujeitos afetados e envolvidos com o
acontecimento constituem o quadro de sentidos que indica a divergência entre as
expectativas e a proposta de resolução dos problemas pela mineradora. Se por
um lado o discurso da Renova é de dialogar com a comunidade e buscar resolver
os trâmites burocráticos para entregar à comunidade o espaço prometido, por
outro, A Sirene denuncia a lentidão para a resolução do problema e as falhas da
Fundação na condução do processo. Como nos lembra Pêcheux (1990), o
acontecimento pode ser compreendido como o ponto de encontro entre o que se
deu e a memória acerca do acontecimento e da vivência.

A multiplicidade de discursos marca o ambiente de desconfiança e de cobrança


presentes na relação de comunicação estabelecida. O embate que se dá é
impregnado de valores e repertórios da vida comum. Nós nos comportamos,
tomamos decisões e construímos a prática discursiva a partir dos valores que
acreditamos, mas “sabemos bem que esse quadro de valores não é homogêneo;
múltiplos valores circulam e se fazem valer num ambiente social, e nem sempre
eles são harmônicos. Em alguns momentos, inclusive, eles se mostram
contraditórios e coexistem sob a forma de tensão e conflito” (FRANÇA, 2015, p.
1). A Samarco era um exemplo de empresa sustentável, de projeção
internacional, premiada em várias categorias, reconhecida e respeitada pela
comunidade de Mariana, e hoje o que se percebe é uma desconfiança em relação
a ela – estendida também à Fundação Renova. Isso só reforça os múltiplos
valores que circulam sob um clima de conflito que ainda marca a conversação
entre os atingidos e a Fundação.

Diante dessa complexa relação, a falta de clareza por parte das comunidades
sobre o significado da criação da Fundação Renova gera sentidos ambíguos. E a
Fundação contribui para a criação desse distanciamento, pois assumiu a
liderança no processo quase um ano após o rompimento da barragem. Houve
uma ausência da emissão. Situação semelhante ocorre com o Jornal Juntos,
criado um ano e meio depois da tragédia. E o primeiro número chega ao leitor
ainda sem identidade, vazio de informação, sem emoção, representando a
dificuldade da Fundação de superar um fosso quase intransponível entre a
emissão e a recepção. Fica evidente que a Fundação está tendo dificuldade para
agir e lidar com os grupos de atingidos, porque sabe que não conseguirá
devolvê-los a vida, a história, e a solidariedade da vizinhança. A Fundação sabe
da extensão dos problemas provocados pelo rompimento da barragem – e da sua
incapacidade de recompor os laços afetivos. A relação com os atingidos será
sempre marcada pelos fantasmas que a circundam e que estão inseridos em um
contexto de dor, raiva e medo.

Hoje, a Renova já produziu a segunda edição do jornal. Ainda está sem nome.
Por enquanto, chama-se Jornal da Renova.

6. Referências

BALDISSERA, Rudimar. Organizações como complexus de diálogos,


subjetividades e significação. In: Margarida Maria Krohling Kunsch (org.). A
comunicação como fator de humanização das organizações. 1ª. ed. São Caetano
do Sul, SP: Difusão Editora, 2010, v. 3, p. 61-76.

CARNEIRO, Dayana Cristina Barboza. Comunicação organizacional e discurso:


disputa de sentidos na fanpage da Samarco a partir da ruptura da barragem de
Fundão em Mariana-MG. 318 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) –
Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2017.

CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo:


Contexto. 2008.

FAUSTO NETO, Antônio. Como as linguagens afetam e são afetadas na


circulação. In: GOMES, P. G.; FERREIRA, J.; BRAGA, J. L.; FAUSTO NETO,
A. (orgs.). Dez perguntas para a produção de conhecimento em comunicação.
São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2013.

FAUSTO NETO, Antônio. Epistemologia do zigue-zague. In: FERREIRA, J.;


PIMENTA, J. P.; SIGNATES, L. (orgs.). Estudos de comunicação:
transversalidades epistemológicas. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2010. p. 79-
100.

FRANÇA, Vera. Dossiê Mariana: Rio Doce – muito além de Bento Rodrigues.
GRIS – Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade, 26 nov. 2015.
Disponível em http://www.fafich.ufmg.br/gris/. Acesso em: 23 fev. 2017.

FRANÇA, Vera. R. V. O acontecimento para além do acontecimento: uma


ferramenta heurística. In: FRANÇA, Vera Regina Veiga; OLIVEIRA, Luciana.
(orgs.). Acontecimento: reverberações. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p. 39-
51.

OLIVEIRA, Ivone de Lourdes; LIMA, Fábia. O discurso e a construção de


sentido no contexto organizacional midiatizado. In: MARCHIORI, Marlene
(org.). Contexto organizacional midiatizado. São Caetano do Sul, SP: Difusão
Editora; Rio de Janeiro: Editora Senac Rio de Janeiro, 2014. p. 85-97 (Coleção
Faces da Cultura e da Comunicação Organizacional; v. 8)

PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP:


Pontes, 1990.
QUÉRÉ, L. Entre o facto e sentido: a dualidade do acontecimento.
In: Trajectos: Revista de Comunicação, Cultura e Educação, nº 6. Lisboa: ISCTE
/ Casa das Letras / Editorial Notícias, 2005, p. 59-75.

VÉRON, Eliseo. Do contrato de leitura às mutações na comunicação. In:


MARQUES, José Marques de; GOBBI, Maria Cristina; HERBERLÊ, Antônio
Luiz Oliveira (org.). A diáspora comunicacional que se fez escola latino-
americana: as ideias de Eliseo Véron. São Bernardo do Campo: Cátedra
Unesco/Metodista, UMESP, 2008.

VÉRON, Eliseo. La semiosis social. Barcelona: Gedisa, 1996.

1 Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Professora do Programa de


Pós-graduação em Comunicação Social da PUC-Minas. Coordenadora do Grupo
de Pesquisa Dialorg: aspectos teóricos conceituais da comunicação no contexto
das organizações. E-mail: ivonepucmg@gmail.com.

2 Renova é uma Fundação criada em 2016, por determinação do Governo


Federal, com recursos financeiros das empresas controladoras da Samarco (Vale
S/A e BHP Billiton), com o objetivo de recuperação e reparação dos impactos
decorrentes do rompimento da barragem Fundão. Em Mariana, os esforços se
voltam, especialmente, para a recuperação ambiental e o reassentamento das
comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, que tiveram suas casas e
pertences destruídos pela lama de rejeito.

3 Fundação Renova. Disponível em: www.fundacaorenova.org/. Acesso em: 28


fev. 2018.

4 Os dados sobre número de empregados e consultores foram repassados pela


consultora da Fundação, Juliana Machado Matoso, em palestra realizada na
PUC-Minas, em outubro de 2017.

5 Entidade de atuação internacional em defesa dos direitos humanos, ligada à


Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e presente na luta pela
defesa dos excluídos.

6 Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB): organização sem fins


lucrativos de defesa dos direitos dos atingidos por rompimento de barragens no
Brasil.
7 A visita de técnicos da Samarco, de acordo com o depoimento da enfermeira
Jacqueline Aparecida Dutra, teria ocorrido apenas dois meses após o
rompimento da barragem.
Caminhos e saberes outros

Pedagogias e metodologias em circulação

• Pedro Russi1

…o pessimismo é um otimismo bem informado

O. Wilde

Venho de forma feliz ou, melhor, “sem medo de ser feliz”, a compartilhar alguns
afetos (porque me afetam) sobre a necessidade de assumir de forma intensa e
vivencial – não meramente nos projetos cativos as normas e demandas dos
ministérios para avaliação – nosso lugar de fala epistémico e de razão criativa2.
Aliás, feliz, que palavra mais ausente dos domínios científico-acadêmico,
fazendo-a parecer brega, cafona e ridícula. Venho a experimentar reflexões para
entender a circulação de saberes (pelas nossas inferências e inquirições), como
ações de “sentido de circulação” como próprio da nossa ética3 (ethos) –
periceanamente falando – e não como a busca de modelos fundacionais e
doutrinários – veremos isto daqui a pouco.

A ciência está orientada à ação, porém, essa ação também é jogo, elemento
estético, liberdade. Em todo conhecimento, em toda aventura da ciência, há parte
de jogo – como contemplação ou também como musement4 – e parte de
trabalho, sempre em interlocução (d’ORS, 1995). Pensar desde essa perspectiva
potencializa os movimentos para desburocratizar, desindustrializar os atos de
pesquisa para sair do capitalismo e neoliberalismo das ideias acadêmicas, do
intelectualismo, dirá Weber (1997). Para reforçar e recuperar aquilo que torna as
pesquisas vitais: o simples e intenso anelo de entender o mundo, isto é, nos
entender.

A vida cotidiana é uma fonte de produção de sentidos e, portanto, lugares de


comunicação, isto é, processos de intercambio, de negociação de sentidos
(mensagens) desenhando o social, uma vida em cena que é social. Pode-se
avançar e compreender que,

[d]el sentido materializado en un discurso que circula de un emisor a un receptor,


no se puede dar cuenta con un modelo determinista. Esto quiere decir que un
discurso, producido por un emisor determinado en una situación determinada, no
produce mamás un efecto solo y un solo. Un discurso genera al ser producido en
un contexto social dado, lo que podemos llamar de un campo de efectos de
sentidos posibles. Del análisis de las propiedades de un discurso no podemos
deducir cuál es el efecto de sentido que será en definitiva actualizado en
recepción. Lo que ocurrirá probablemente, es que entre los posibles efectos que
forman parte de ese campo, un efecto se producirá en unos receptores y otros
efectos en otros. De lo que aquí se trata es de una propiedad fundamental del
funcionamiento discursivo, que podemos formular como el principio de
indeterminación del sentido: el sentido no opera según una causalidad lineal.
(VERÓN; SIGAL, 1986, p. 15-16)

Nesse cotidiano, todas nossas ações por mínimas que sejam, são atos de
interação de sentido, portanto, interpretativos e inferenciais. Para nos ajustar no
cenário pedagógico, desde essa perspectiva epistémica, um plano de
ensino/bibliografia, fala do nosso lugar de fala. Não do lugar administrativo
(professor), senão, daquele que sustenta significativamente nossas escolhas e
que, como ação mental, são resultados dos sentidos e conceitos vivenciados, eis
a experiência no sentido semiótico no qual e pelo qual o sujeito se expressa.

Diante de tanta economia produtiva e industrial dos saberes, na carreira


quantitativa das mensurações, propositalmente quero falar desde uma outra
coreografia de pensamento, daquela dita por Cortázar: pensar-escrever de
maneira despenteada, desgrenhada, porém, intensa e aguda. Nessa linha, para
d’Ors o instinto humano impede a estagnação porque ele vai desenhando,
“diversidades fictícias, novas irracionalidades” (1995, p. 61). Tudo isso, lembra-
me dos cafés, não do produto em si que poderíamos cheirar/comprar nas
prateleiras do supermercado, senão, a la Proust na sua recherche du temps perdu.
O café como lugar de fala. Nassim Taleb quando se refere à escritra do Cisne
Negro disse, “[ese libro] lo escribí en gran parte en cafeterías: prefiero los cafés
decrépitos (pero elegantes) de barrios modestos, lo menos contaminados posible
de gente que se dedique al comercio” (2014, p. 21).

Eis o convite de Cortázar (1997) para relacionar o irrelacionável. Aliás, Peirce5


também dirá, “é a ideia de juntar o que nunca antes havíamos sonhado juntar que
faz brilhar a nova sugestão [explicativa] ante nossa contemplação” (CP 5.181).
Tensionando àqueles que, cotidianamente, ditam as formas e caminhos
procurando estabelecer-se como os guardiães da moral e das relações
interpretativas possíveis (isto pode, isto não pode, isto deve, isto não deve), em
nome de um puritanismo e obscurantismo normativo que nada mais faz do que
impedir o caminho da inquirição e das inferências – retomando Peirce.

Avançando no convite de cortazariano, o fato de que certos elementos, para as


leis naturais, não estariam nem poderiam estar relacionados, não quer dizer que
não possam entrelaçar-se instantaneamente, criando um tipo ou espécie de figura
que não tem porque ser de tipo material; podem produzir-se a partir de ideias,
sentimentos, cores. É importante destacar que, ao pensar em pesquisa ou nas
disciplinas relacionadas a essa esfera, o criativo, o emocional, o amoroso
bakhtinianamente falando, não entra nas salas de aulas ou grupos de trabalhos.
Os fluxos curriculares, as instancias de monografias, dissertações e teses, retiram
o caráter humano (des-humanizam) da pesquisa, embora ela seja nosso lugar de
fala, de compreensão do mundo, nós estamos na pesquisa muito além do papel
de pesquisador em si. Como destacamos anteriormente,

[e]l hombre completo trabaja y juega, porque en todo trabajo ve el juego y lo


comprende, como asimismo en todo juego siente el trabajo y lo ama. (…)
Acción y contemplación son dos aspectos de una y la misma realidad íntima, el
sentido del hombre, su inteligencia, el Seny, tan sutilmente henchido por
Eugenio d’Ors de un significado profundamente histórico. (MORENTE, 1914,
p.43)

Omar Prego (1997, p. 314), parafraseando ao professor espanhol, da Faculdade


de Humanidades em Montevidéu, José Bergamín, adverte que todo escritor –
para nós, pesquisador-estudante – possui uma Poética6, um modo de entender e
abarcar a arte que, ao mesmo tempo, propõe uma nova e própria representação
da realidade, através da poesia e a narrativa. Nessa linha interpretativa, interessa-
me recuperar ideia de Ética de Peirce7, e relacioná-la com a Poética de
Bergamín, não como a “ciência do belo”, mas sim como a ciência dos fins
admiráveis da conduta e do pensamento (BARRENA, 2007, p. 199), assim como
as suas implicações para outro modelo de racionalidade, não
utilitarista/instrumentalista, senão, que demanda uma abertura do coração, já ele
é “também é um órgão perceptivo” (PEIRCE, CP 6.493).

Observe-se que, para Cortázar (1997, p.315), a novela é uma ação subversiva,
um ato de consciência, portadora de interrogantes acerca do sentido e destino, de
carga reflexiva, onde o novelista deve ser um “dinamitador”. Portanto, muito
felizmente, podemos espelhar-nos nessa acentuada ideia, compromisso e
perspectiva, para pensar o pesquisador-estudante, assim como também o nosso
lugar de docentes – ser “dinamitadores”.
Visto que a relação pesquisa-humano não é um entendimento dualista ou
dicotômico, que “empreende suas análises com um machado, deixando para trás
pedaços não-relacionados do ser” (PEIRCE, CP 7.570). Destarte, se pesquisar é
problematizar, observar não dicotomicamente, ter um olhar periférico, ser
radicais (ir até a raiz) para “escovar a história a contrapelo”, como dirá Benjamin
(1985), então, podem ser levantadas algumas questões iniciais: o que ensinamos
quando ensinamos nos cursos de metodologia? Porque a euforia de manualizar
esses cursos? Estamos propondo operadores para reformar as ressignificações
estruturais? Em qual lugar ancora-se a luxúria pelos manuais, pelas técnicas
higienizadas, pela domesticação dos instrumentos?

Diante das aulas manualizadas, invés de docentes buscam-se não mais os


profetas, parafraseando Weber (1997), senão um coach – se for ontológicamente
melhor – que nos libere, mostre o caminho das pedras, comande o que e o como
fazer. Pois, como o avestruz, haverá que enterrar a cabeça na terra8; Pink Floyd,
em The Wall, não estava tão errado e, menos ainda, a AIT9 quando falaram das
máquinas industriais e educação. Verón (1974), nesse sentido, já advertia e
apelava para não deixar de interrogar-nos sobre a necessidade da denúncia da
penetração do imperialismo e sobre a possibilidade de fazê-lo a través de
investigações críticas sobre a cultura massiva.

Provocação que toma força diante do percurso exponencial de quantificações


que estamos vivendo; medições bibliométricas, avaliações quantitativas, longas
jornadas que naturalizam e normalizam as demandas da industrialização dos
saberes, das formações. Por isso, como falamos, não há tempo a perder com as
questões humanas, a concorrência–competência é mais importante. Uma lógica
que vem sendo sistematizada desde a OCDE10, durante os anos 1960-1970, e se
expande até hoje e – lamentavelmente – promete continuar vivamente,
respaldada em pesquisas bibliométricas dos anos 1950 e 1960. Existe uma lógica
pela qual se medem os PPGs11, ancorada em uma espécie de livre mercado
capitalista de oferta e demanda, onde se assegura a esperança de progresso
fundamentada unicamente sobre uma determinada e catalogada produção
científica. Estamos diante de uma liberalização da ciência respaldada pela lógica
onipresente da maquinaria industrial, da produtividade vista pela bibliometria,
isto é, uma cientometria que justifica a estratificação da ciência. Caminhamos na
linha da notoriedade e produtividade da ciência de tendência meritocrática. Aqui
poderíamos falar do “Efeito Mateus”, proposto por Merton, mas avançaríamos
em outros mares (SHINN, 2008).
Diante desse cenário, embora sintético, vem à minha mente a resposta-pergunta
feita pelo sábio Rafiki diante da interpelação do futuro rei leão naquela longa
caminhada: “você não deve se perguntar quem sou eu, você deve perguntar-se...
‘quem é você’”. Enfrentar essa questão é uma dimensão necessariamente livre e
que requer outra (nova) epistemologia, que, ao dizer de Peirce, é “um modo de
vida” (MS, 1334)12. Perguntas dispensadas quando as preocupações na
formação são mais administrativas do pedagógicas.

Recomendo, aos que somos professoras e professores, pôr, no primeiro dia de


aula (mais ainda em pós-graduação), essa pergunta de ida-e-volta. Convido-as/os
a registrar as reações, a transpiração dos signos da ordem da interação – dirá
Goffman (1983) –, diante de uma pergunta gramaticalmente tão simples. Essa
pergunta teria o efeito daqueles takes do jazz nos ensaios antes de gravar uma
peça e que nunca serão iguais, convertendo o jazz no próprio princípio da
criativa improvisação. Verón provocava nesse sentido ao dizer que devemos ser
mutantes intelectuais, não buscar os modelos fundacionais para idolatrar13;
navegar a contracorrente, caminhar a contrapelo, eis nosso desafio de ser
pesquisadores, ir além das caixinhas “interpretativas”. Ser pesquisador não está
diretamente fundeado no diploma de doutor. Em tal caso, o que nos faz
pesquisadores, muito além da nossa titulação, é, na perspectiva que venho
desenvolvendo, aquilo que Celso Furtado (1962) irá destacar como
“trabalhadores do pensamento”, ou, melhor ainda, podemos dizer, destacar-nos
como “artesãos” do pensamento. Veja-se que o artesanato que é por essência
criativo e não reprodutivo está longe da manualização que substancialmente
instrumentaliza.

À vista disso e pela perspectiva semiótica que venho compartilhando, podemos


pensar naquilo que Rancière (2007) dirá sobre a necessidade de inverter
(subverter) a lógica do sistema explicador ou de aplicador instrumental.
Devemos problematizar a incapacidade de compreender, parafraseando Bachelad
(1996), compreender para melhor questionar. Isto é, pensar a educação como
emancipação, uma “descolonização permanente do pensamento”, dirá Viveiros
de Castro (2015, p. 20), para não ficarmos felizes pelas “cabeças bem-feitas”
(BACHELARD, 1996).

A situação que vivemos hoje demanda parar e pensar o que estamos fazendo
como professores e estudantes? Devemos colocar e propor outras perguntas,
outras pautas que provoquem distância do lugar comum, da mediocridade e
indústria que se diz analítica. Pensar a educação como processo, subverter –
transtornar, inverter, revolver; colocar embaixo o que está acima – o saber como
ação transformadora e de resistência.

Então proponho, a partir de uma Epistemologia da Circulação Discursiva /


Circulação de Sentido, pensar o ato pedagógico (educação) como formação do
pensamento investigativo (genuíno), isto é, de que maneira trabalhamos nos
processos pedagógicos para que essa Circulação entre Gramaticas de Produção e
Gramáticas de Reconhecimento seja compreendida? Quais desafios
metodológicos14 e epistemológicos, de interdependência de saberes estamos
propondo para problematizar a circulação de sentidos? A partir de quais lugares
epistémicos – que desenham nosso lugar de fala – elaboramos nossas dinâmicas
pedagógicas interpretativas para compreender a circulação discursiva de
sentidos?

Compartilho estas dúvidas porque em algumas instâncias parece que elaboramos


armadilhas, porque tentamos compreender a circulação de sentidos a partir de
modelos engessados. Paradoxalmente estamos fixando uma circulação.
Compreendo que, neste ponto, ganha força aquela provocação de Verón de
sermos mutantes intelectuais, como uma descolonização permanente no sentido
de processo de alteridade radical. Entretanto, a manualização antepõe o modelo à
circulação. Assim, axiomaticamente a circulação deve ser encaixada no modelo,
no instrumento, na técnica.

Não obstante, Cortázar (1997) chama a atenção de que é o próprio trabalho que
vai delineando o método – a forma de caminhar, as dinâmicas das descobertas.
Assentindo isso como desafio ao contexto individualista, megalômano,
egocêntrico, de eliminação do diverso (do alter, isto é, da secundidade na
categoria semiótica) do cenário imediatista e fabril. A curiosidade é eliminada, é
deslocada. Portanto, estamos diante da necessidade de projetar e repensar os
processos pedagógicos para formular, problematizar e não só para responder. Eis
um paradoxo, pedimos e manualizamos para que se trabalhe dentro do
“admirável mundo novo” e concomitantemente discursamos para que elaborem a
“revolução dos bichos”. Verón destaca a necessidade da versatilidade, a não
estagnação do pensamento para render-se aos modelos; não são estes os que vão
permitir as experimentações e experiências inferenciais.

No se puede abordar un texto de manera interesante sin movilizar innumerables


percepciones, informaciones, hipótesis y conceptos “extratextuales”, sin los
cuales ni siquiera se podría justificar por qué se está analizando ese texto y no
otro (…). Lo interesante no es nunca el texto en cuanto tal, sino las marcas de la
semiosis de la cual es portador, semiosis que siempre, necesariamente, trasciende
el discurso que se están analizando en un momento dado. (VERÓN, 2013, p.
105)

Retomando o que foi mencionado – valendo ser redundante –, não é por simples
acaso que Verón problematiza nossas matrizes e suscita o pensamento na
contramão, a contrapelo, como mutantes ou transeuntes intelectuais, como trota
mundos, buscando a emancipação…. Mas para quê? Precisamente, para
compreender as marcas, huellas15, como circulação de sentidos entre as
gramáticas de produção e de reconhecimento. Isto é, a relação identificada entre
uma marca e outra – presente nas condições de produção (elaboração) e o
discurso (objeto); não seria mais a marca, senão; falamos de huella. Isso quer
dizer que a análise de uma produção é a busca das huellas que relacionem o
discurso enquanto objeto às condições de produção.

Me parece necesario introducir la idea de una pluralidad articulada de procesos


productivos en el plano cultural; dicho de otra manera, la producción del sentido
aparece organizada en diferentes prácticas. Cada una de ellas está sometida, en
parte, a diferentes condiciones estructurales en cuanto a la producción, la
circulación y el consumo. En la medida en que los grupos sociales que
desenvuelven estas diferentes prácticas no están relacionados del mismo modo
con la estructura de clases (y, por lo tanto, con la estructura de poder), las
condiciones históricas para el desarrollo de cada práctica productiva no son
siempre las mismas. (…) esta difusión no se produce de manera uniforme, como
una transferencia lineal de una cultura a otra. (VERÓN, 1974, p. 97)

Todo exercício abdutivo e inferencial demanda desenvolvimentos epistêmicos,


com a virtude de incentivar, seja de maneira explícita ou implícita, articulações
com outras formas de pensar, com outros problemas propostos, planejados em
outras esferas e saberes de conhecimento. Ou seja, considerar a alteridade dos
outros caminhos que estão sendo percorridos, para pensar desde e com saberes
coletivos. Não de forma inter-multi-pluri disciplinar – que ainda mantem o
sufixo “disciplina” –, senão, de caráter e ação interdependente. Entregar-se à
interdependência dos heterogêneos, ecléticos e hereges saberes, daqueles saberes
que o apartheid epistêmico16 deixa fora: saberes quilombolas, negros, indígenas,
periféricos, femininos… Se não fazermos isso, não há forma de “escrever a
história a contrapelo” e nem sermos mutantes intelectuais. Diante dessas
perspectivas discriminatórias, instala-se o desafio proposto por Colapietro na
presença de que

[n]ossa reação instintiva é a de rejeição do que é desconhecido, tratando-o como


algo a ser evitado, destruindo-o ou fugindo dele. Em suma, nossa tendência é
tratar o estranho como algo mau, ou como objeto de ódio. Entretanto, o ideal de
razoabilidade requer superar esse ódio; positivamente, existe uma conexão vital
entre a razoabilidade concreta e o amor criativo. (COLAPIETRO, 1989, p. 93)17

Para romper esse obstáculo epistemológico da marginalização epistémica, é


primordial levar em consideração a noção de tempo. Um tempo de concepção
que não é automático, que é justamente do amor criativo. Não obstante, temos
por um lado o sentido de Cronos (Khronos) que se refere ao tempo cronológico,
ou sequencial, que pode ser medido, é a duração de um movimento, de uma
criação (dissertação, tese, monografia…), exacerbado, como foi destacado
anteriormente, pela cientometria18 (ou cienciometria), fundado no capitalismo e
indústria do conhecimento e liberalismo pedagógico. E, por outro lado, a
necessidade vital de trabalhar no sentido do Kairos, que se refere a um momento
indeterminado no tempo, em que algo especial acontece ao percurso de
compreensão. É a experiência do momento oportuno, os pitagóricos lhe
chamavam Oportunidade. Kairos é o tempo em potencial, tempo eterno e que é
união de tempo e espaço – “tempos lentos”, pensará Milton Santos (2002).

Questiono: como docentes e pesquisadores, em que tempo ancoramos nosso


entendimento profundo de inferência? Como provocar o entendimento de que a
formação de pesquisador não está aferrada ao diploma, aos dois ou quatro anos
do fluxo curricular? De que formas o cotidiano é burocratizado ao invés de
entendê-lo como um laboratório? Um dos caminhos pode ser deixar de trabalhar
com manuais, para compreender que o entendimento da circulação de sentidos
não precisa de autoajuda, senão de operar experimentos interpretativos. Qual é a
dificuldade de entender que a pesquisa demanda pensar promiscuamente, de
maneira travessa, zombadora?

Logo dessas questões sinto-me na exigência ética de retomar a provocação de


Cortázar, na rememoração de O. Prego (1997, p. 324), quando ao iniciar o libro
Imagem de John Keats, nos coloca em guarda contra os estereótipos, os lugares
comuns, os valores aceitos, as classificações fáceis e, dessa forma, nos propõe
uma leitura – como busca – diferente. E, à vista desses “caminhos outros”,
podemos avançar no sentido de potencializar a suspeita (inquirição) genuína –
amor criativo –, a dinâmica mental de musement como exercício de puro jogo,
jogo que não possui regras a não ser a própria lei da liberdade (PEIRCE, CP
6.458, 1908). Assim, imaginar um itinerário analítico que considere nosso
cotidiano como laboratório desafiando-nos intempestivamente, quer dizer,
semioticamente pensar com o cotidiano e não sobre o cotidiano. De fato, a
percepção é interpretativa (interpretatividade), dirá Peirce, e “não é necessário ir
além das observações ordinárias da vida comum para encontrar toda uma
variedade de maneiras extremamente diferentes em que a percepção é
interpretativa” (CP 5.183-185, 1903).

Então, o que é surpreender-se? Como singularidade da criatividade, é pensar


livremente, pensar curiosamente. Peirce nos convidará para subir

al bote del musement, empújalo en el lago del pensamiento y deja que la brisa
del cielo empuje tu navegación. Con tus ojos abiertos, despierta a lo que está a tu
alrededor o dentro de ti y entabla conversación contigo mismo; para eso es toda
meditación” (CP 6.461, 1908).

O musement como uma experiência e estado mental ímpar em relação-jogo


abdutivo, pela qual a mente vai livre, solta, de uma coisa a outra, um puro jogo
desinteressado. Um jogo a contrapelo, sem outro propósito do que deixar de lado
todo propósito sério, (CP 6.458, 1908). Eis a necessidade de reinterpretar as
aulas como laboratórios, porque não é impossível concordar com a ideia de que
se poderá entender mais sobre o homem em geral através do estudo e
entendimento do homem como criativo.

Se avançarmos nesse sentido, observamos que a problemática do self (a


consciência de si) é de compreendermos que o pesquisador/a deve ter a
necessidade de ser um Ser (self) que se movimenta nas margens, nos
submundos, nas periferias mentais (DOSTOIEVSKI, 2000) e, a partir desse
espaço, gerar e aprontar obscenamente19. Como contraponto às particularidades
e exigências mecanicistas atuais que o/a puxam para o centro, para uma
homogeneidade centralista do pensamento – um anti-jogo, uma colonialidade do
saber (QUIJANO, 2005), contradizendo a moralidade e o autoritarismo dos
manuais-e-modelos, as instruções higienizadoras do que pretende descolar-se e
direcionar-se às margens.

Dessa forma, a razoabilidade, que faz possível avançar no conhecimento, não


seria possível sem a consideração intensa daquilo que nos chama a atenção –
surpreende – nos nossos universos de experiências. O pensamento não seria
possível sem a meditação pausada a respeito desses fenômenos, sem o musement
– como jogo e peculiar estado mental. Deixamos fora o mundo que nos afeta,
sem essa atenção ao mundo, sem nos deixar de algum modo invadir pelos
fenômenos e permitir que as nossas faculdades conjuguem as diferentes
possibilidades. Sem tudo isso, estagnamos ou cristalizamos nosso pensamento
(BARRENA, 2007, p. 83). Uma experiencia peculiar que não fica aprisionada às
primeiras impressões dos sentidos.

Nessa linha, é importante voltarmos ao conceito de alienação de Marx, como


sendo o afastamento e abismo entre o que se apreende como simples ato
burocrático, como sendo um elemento a mais da maquinaria, do mecanismo do
sistema para que a engrenagem funcione (bibliometria, cientometria), e uma
formação que permita redesenhar, ressignificar nossas potencialidades
inferenciais. Em um texto nesta linha de raciocínio, aparece a seguinte
indagação, que compartilho: “você já pensou se a educação, como é praticada a
seu redor, procura dar condições ao [estudante] para que se desenvolva por
inteiro ou se responde apenas a objetivos limitados pelas circunstâncias?”
(FERRARI, 2008, p. 3). Ou seja, “não vamos fingir duvidar filosoficamente
daquilo que não duvidamos em nossos corações” (PEIRCE, CP 5.265), não
como contraponto ao racional, senão que essa concepção opera em harmonia
(continuidade) com a razão, porque a imaginação não está cegamente submissa
às regras da razão (NUBIOLA; BARRENA, 2013, p. 289).

De fato, o indivíduo e as palavras educam-se reciprocamente uns aos outros.


Cada incremento de informação de um indivíduo implica e é implicado por um
incremento correspondente de informação da palavra (PEIRCE, CP 5.313,
1868). Quer dizer que a alienação é justamente o extremo oposto aos processos
interpretativos na esfera das dinâmicas abdutivas. A alienação apaga todo jogo
proposto pelo musement. Como “um jogo bastante selvagem da imaginação, sem
dúvida, é um prelúdio inevitável e provavelmente até útil para a ciência” (CP
1.235, 1902). Que lugar têm esses prelúdios de jogos selvagens da imaginação
interpretativa, no âmbito das nossas aulas de metodologia e de pesquisa?

Novamente, reforçamos a provocação de Verón (2013), de não podermos


abordar nenhum tipo de texto de forma interessante se não mobilizamos
inumeráveis informações, hipóteses e conceitos periféricos aos textos. Em outras
palavras peirceanas, se não nos deixarmos levar pelo exercício do puro jogo,
pela experiência de perceber a generosa conexão entre as qualidades sensíveis,
suas regularidades, semelhanças, diferenças, intensidades e também seu
crescimento (CP 6.464 – 6.465, 1908), o que, abdutivamente, “simplesmente
sugere que alguma coisa pode ser [may be]” (CP 5.171, 1903).

Esse movimento germinado pela curiosidade – surpresa ou observação


problematizadora –, que demanda o interesse de pesquisa sobre um determinado
tema/assunto, em desvantagem de outro, requer caminhos e relações criativas
que vinculam elementos. Caminhos que não são dados de antemão, senão
pensados vivamente no perpassar do estudo/pesquisa, da inquirição.

Com frequência eu caminho à noite, por volta de uma milha, por toda uma
estrada deserta, em um descampado sem uma casa à vista. As circunstâncias não
são favoráveis para um estudo severo, mas o são para uma calma meditação. Se
o céu está limpo, observo as estrelas em silêncio, pensando em como uma
sucessiva abertura de um telescópio revelaria muito mais delas do que jamais
visto antes. O fato de que os céus não revelam um pano de luz prova que há
muito mais corpos escuros, por exemplo planetas, do que há sóis. Eles devem ser
habitados, e muito provavelmente milhões deles por seres muito mais
inteligentes do que nós (...). (CP 6.501)

Pensar desse modo demanda a superação de uma atitude simplista e imediata,


fortalecendo a capacidade de ser surpreendido e da criatividade, do trabalho
analítico-reflexivo. De forma ilustrativa, corresponde a pensar, no processo
intelectual desse contexto, sobre o choque do imprevisto (aleatório-estocástico),
que não pode ser confundido como se fosse um erro de observação. A resistência
a algo que é distinto a si mesmo – a irrupção do espontâneo constitutiva da
origem das mudanças imperceptíveis e notórias, que impedem que as tendências
se fossilizem como materialidade pura e rígida (ANDACHT, 200620); a força do
Tiquismo (tyché)21.

Estarmos epistémica e metodologicamente preparados para tais irrupções – do


inesperado – possibilita avançar no modo e força da evolução, como agapismo
(agapism – CP 6.302-305, 1891), crescimento contínuo da complexidade
(circulação de sentido, semiose social). A forma de nos compreendermos como
sendo parte do mesmo em constante expansão, suas definições “padecem”
transformações, configurando o que Peirce entende como semiose, para se opor
à estagnação dos formalismos, dos modelos.

Avançando no entendimento de Peirce, tudo isso implica uma “ação


metodológica” (methodeutic) que propicia ao pesquisador um saber sobre o que
foi e está sendo realizado, por conseguinte, uma razoabilidade de toda a sua
dinâmica. Barrena, com relação a este conceito, estabelece que

[e]sta peculiar idea de razón como algo en desarrollo supone un cambio en la


concepción del ser humano, pues éste ya no es un ser que posee una razón (…),
y esa perspectiva permite superar las limitaciones y escisiones del racionalismo.
Si se toma como horizonte la idea más amplia de razonabilidad frente a la idea
moderna de racionalidad seremos capaces de explicar muchas más cosas, de
comprender algo más de nuestro modo de ser, de reconocernos a nosotros
mismos. (2007, p. 240)

Isso pode ser também um gesto da livre voluptuosidade do pensar, “que somente
pode-se conseguir [esse pensar] quando se mistura, uma grande atividade de
espírito, [com] uma significativa partícula do divino ócio” (d’ORS, 1995, p. 52).
São processos que pleiteiam a crítica à banalidade, ao naturalizado, ao
normalizado e definido, ao inquestionável e auto evidente, ao lugar comum.
Devemos escutar mais a Mafalda... No mesmo percurso e voltando ao café,
Galeano dirá em uma das últimas entrevistas:

… soy hijo de los cafés. Todo lo que sé se lo debo a ellos. Sobre todo, el arte de
narrar. Lo aprendí escuchando, en las mesas de los bares, a aquellos maravillosos
narradores orales cuyos nombres ignoro, que contaban mentiras prodigiosas y las
contaban de tan bella manera que todo lo que contaban volvía a ocurrir cada vez
que ellos lo narraban. Soy hijo de esos cafés y de ese Montevideo donde había
tiempo para perder el tiempo.22

Gostaria de inserir um ponto e vírgula, com um coroar cortazariano – como


epígrafe para outras reflexões –, um fragmento do capítulo 9 d’La Rayuela:

¿Qué es un absoluto, Horacio? – Mirá – dijo Oliveira –, viene a ser ese momento
en que algo logra su máxima profundidad, su máximo alcance, su máximo
sentido, y deja por completo de ser interesante.

* * *

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1 Professor no PPG-Comunicação/Universidade de Brasília (UnB) | Diretor do


Ciseco | Coordenador do Núcleo de Estudos de Semiótica em Comunicação
(Nesecom) - Contatos: pedrorussiunb@gmail.com | pedrorussi@gmail.com

2 Tenho como base reflexões compartilhadas em diversas esferas [falas/textos]


vindas de uma longa jornada, como docente da chamada disciplina de
Metodologia na Graduação e pós-graduação, de várias experiencias educativas-
curriculares em diferentes níveis educativos com docentes e estudantes, estudos
sobre outras epistemes interpretativas propostas pelas intervenções urbanas nas
suas diversidades, do teatro de rua dentro e fora do Brasil – trabalhando com
atores e não atores, ocupando fábricas para montar peças de teatro –,
participando e promovendo eventos-encontros contra o epistemicídio e
colonização vivenciado como apartheid epistêmica. Cf. RUSSI, 2003; 2005;
2007ab.

3 Para avançar nesse sentido da ética, recomendo a leitura de HAACK, 2013 e


1996. Reflexões que serão retomadas mais na frente neste texto.

4 Seguindo outros estudiosos de Peirce, recomendo e prefiro deixar o termo


musement em inglês pelo fato de não encontrar uma tradução mais ajustada para
o que ele queria dizer.

5 Citarei – conforme a convenção – a obra de C. S. Peirce do seguinte modo: CP


X.XX (número vol./ seguido do número do parágrafo) em referência à edição
dos Collected Papers.

6 Destaque do autor (PREGO, 1997).

7 Recomendamos como mencionamos anteriormente em nota neste texto:


HAACK, 2013 e 1996.

8 Embora isto seja uma metáfora (um mito), porque o avestruz não faz tal coisa,
serve, pela sabedoria popular como ilustração da negação da realidade etc.

9 Associação Internacional de Trabalhadores. Recomendo a leitura de MUSTO


(2014). Especialmente os capítulos “Trabalho” e “Educação”, nas páginas 113-
136 e 223-231, respectivamente.

10 Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

11 Logica, pela qual se medem, quantificam e qualificam os Programas de Pós-


graduação [PPGs], a avaliação de 1 até 7 dos programas de pós-graduação
brasileiros, é realizada pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior) desde 1976. Cf. http://site.stelaexperta.com.br/como-e-feita-
a-avaliacao-quadrienal-da-capes/,
http://www.capes.gov.br/acessoainformacao/perguntas-frequentes/avaliacao-da-
pos-graduacao/7421-sobre-avaliacao-de-cursos.

12 A notação MS faz referência aos Manuscritos de Charles S. Peirce.

13 Recomendo nesse sentido reflexivo o texto de MAX-NEEF (1991).

14 Metodologia como pensamento e estudo sobre o Método, entendido este como


caminho, estratégias, idas-vindas do pensamento, experimentações, inferências,
janelas pelas quais buscamos compreender o mundo, como o ato de tatear
possíveis desenhos analíticos. Metodologia no sentido de Mills (1975) de serem
nossos próprios metodólogos, de serem artesãos intelectuais; não a metodologia
como técnica/instrumentalista; a metodologia como processo mental.

15 Prefiro manter a palavra huellas sem fazer a tradução, porque pegadas na


tradução ao português reduz a intensidade trabalhada pelo autor. Mas, se tivesse
que escolher uma palavra poderia designar gesto, como uma aproximação
intensa a huellas.

16 Recomendo para avançar nessa discussão como forma de trazer outras


epistemes – outros saberes –, os textos de CUSICANQUI (2010); NOGUERA
(2011); GROSFOGUEL (2016); HERRERA HUERFANO (2016); ARÉVALO
ROBLES (2015); CABNAL (2010).

17 Utilizo aqui – agradeço – a tradução feita por Flávio A. Queiroz e Silva em


“Eugenio d’Ors e Charles S. Peirce: dois pensadores em busca da
razoabilidade”.

18 É uma rama da sociologia das ciências e da ciência da informação que busca


estudar os aspectos quantitativos da ciência e da produção científica. Articulada
diretamente também com a bibliometria. Duas caraterísticas muito presentes nas
políticas neoliberais da educação, pelas quais, por exemplo, o Banco Mundial /
FMI impõem, a partir de doutrinas bem unificadas, as suas demandas/exigências
“educativas”. Neste momento, falar de ensino, de pesquisa e não adentrar nessa
discussão é não considerar elementos fundamentais nos processos pedagógicos e
de formação de pesquisadores, especialmente para América Latina, para ficar no
nosso contexto imediato.

19 Obsceno no sentido teatral de “contra a cena”, obscenus (enfrentamento ou


oposição) e scenus (cena), isto é, que são coisas que acontecem e não se
mostram na obra teatral, mas podem ser imaginadas. Cf.
http://etimologias.dechile.net/?obsceno

20 Próximos parágrafos imediatos têm com base neste texto (ANDACHT,


2006).

21 “The Law of Mind”, CP 6.102, 1892.

22 Disponível em: http://www.lanacion.com.ar/1784034-la-ultima-entrevista-de-


eduardo-galeano-con-la-nacion. Acesso em: abril. 2015 (destaques meus).
Transformaciones sociales e historia de la mediatización

• Oscar Traversa

1. Exordio

Las transformaciones de la sociedad resultan de procesos que se manifiestan de


manera diversa en desempeños, sea de actores colectivos como individuales, que
la discursividad da cuenta a partir de narraciones, el ordenamiento de esas piezas
se manifiesta con fines cognitivos por medio de una disciplina que recibe el
nombre de Historia. Los criterios de ordenamiento o los propósitos que los guían
son materia controversial, de lo que sí existe acuerdo es acerca de la necesidad
de algún modo de realizarlo privilegiando, según diferentes puntos de vista, la
zona o el tipo de fenómenos a tratar.

La Historia como tal, en nuestro tiempo, se ha subdivido en una pluralidad de


segmentos que hacen referencia a entidades o procesos muy diversos: la historia
política y militar constituye un segmento si se quiere clásico, la historia
económica o la del arte están en vías de serlo, la que concierne a sectores
sociales no privilegiados, la gastronomía o la del vestido, son zonas a explorar
más recientes, la de los medios (nos referimos a lo que agrupa a los periódicos
hasta la web), es fruto del siglo XX, con unos pocos antecedentes en el XIX. De
esta última, su presencia en la investigación o en la enseñanza superior, es débil
de prestarse atención al papel y espacio social ocupado por su objeto, no solo
cuantitativo sino de diversidad y novedad fenoménica.

La propuesta de desenvolver la historia de la mediatización en cuanto proceso,


asunto del que nos ocuparemos en estas páginas, en particular como
metahistoria, es reciente y cuenta con menos de diez años; parte del supuesto que
los resultados del particular ordenamiento que propone de ese fenómeno,
ayudarían a aclarar aspectos que conciernen al presente. Buena parte de esos
fenómenos son calificables de cruciales para la vida colectiva, bastaría pensar en
la incidencia que es posible adjudicar a la mediatización en la vida política o en
la salud pública1 para mostrarlo.

Tal afirmación de pertinencia nos obliga a cumplir con una doble exigencia: por
un lado fijar el contorno de aquello que se entiende como mediatización y, por
otro, dar cuenta de la propiedad de adjudicarle a ese contorno el ser materia
historiable y, además susceptible de ser situada, esa nueva historia, un peldaño
más arriba, en una posición meta, respecto de alguna otra, la Historia de los
Medios para el caso, de la que se debe, entonces, fijar tanto sus alcances como
sus restricciones, respecto de sus vecinos.

Subyace, de atenerse a la propuesta del título, al menos otra exigencia de


naturaleza parcial: distinguir el papel de lo que corresponde a la narratividad2,
como procedimiento a no dejar de lado, asunto que exigirá precisiones
definicionales que conciernen tanto al objeto como al intervalo de existencia y,
no menos, lo que se ha dicho acerca de ese componente discursivo.

Llevar adelante esa metahistoria nos excede largamente, podríamos darnos por
satisfechos si estas páginas sirven para impulsar la discusión acerca de la
pertinencia o acierto de la propuesta, no es otro el alcance que adjudicamos a
estas páginas.

2. Verón, inventor de la metahistoria de la mediatización aunque no de su posible


denominación disciplinar

Las exigencias que nos hemos propuesto cumplir requieren, ante todo, un
reconocimiento de origen de lo que trataremos. El pensar la mediatización en su
historia (¿metahistoria?, sin designarla de este modo) corresponde a Eliseo
Verón, tanto en lo que concierne a lo que consta en sus escritos como al
desenvolvimiento docente que sostuvo por varios períodos en la cátedra – fruto
de su creación – de Historia de la Mediatización3, de una innegable singularidad
pues se sitúa en lo que ha sido señalado como historia larga de ese proceso (se
remonta a millones de años pues, coincide con el proceso de hominización).

El programa de ese curso es encabezado por media docena de líneas de texto que
indican su objeto: “Lo que aquí llamamos mediatización es la secuencia histórica
del surgimiento de los fenómenos mediáticos, dispositivos técnicos de
producción y circulación de los signos que han participado en los procesos de
comunicación de las sociedades humanas…”. La noción de mediatización de la
que nos valdremos, en este texto, es la empleada en ese curso; al igual que otras
nociones que vieron la luz en distintos momentos de ese autor, de presentar
alguna diferencia o matiz que se les refiera tendremos cuidado en consignarla.

Tal historia entonces se ocupa de los fenómenos mediáticos (acentúa el


surgimiento, pero que los desborda) entendidos como los productos de la
capacidad semiótica del Homo sapiens, manifiestos en la exteriorización de los
fenómenos mentales a través de diferentes organizaciones materiales o
energéticas (dispositivos) al alcance de la percepción4. La señalada
exteriorización da lugar a tres consecuencias fundamentales de la mediatización:
el “poner afuera”, del modo que sea, es el primer paso de la autonomía, tanto de
emisores como receptores, de los signos materializados; el segundo conlleva la
persistencia temporal y espacial de esas materialidades que aportan a la
modificación de escala de su alcance social; el tercero compete, para su
persistencia, el cumplimiento de reglas constructivas y de uso para su empleo,
del tipo: “esto se hace así”, “esto se emplea en…”, que se las puede suponer
como necesarias desde momentos tempranos de la mediatización5.

Verón no ahorro esfuerzos para justificar la pertinencia de una aproximación


histórica al fenómeno de la mediatización, en la Semiosis social, 2 en el contexto
de presentar “la cuestión del origen del lenguaje” (p. 151 en adelante) evoca el
curioso curso de la reflexión acerca del origen del lenguaje, cuyo punto
culminante fue la prohibición formal a sus miembros, por parte de la institución
que reunía a los lingüistas, a discutir ese tema por considerarlo ocioso. Consigna
también que por un largo periodo, manifiesta pero no exigida, en que se
privilegió la sincronía por encima de la diacronía (incluye en ese movimiento
una extensión que va “de Durkheim hasta la lingüística estructural”)6.

Señala que ha llegado el momento de asumir la continuidad entre las “ciencias


duras” y las “ciencias blandas”, los fenómenos de la semiosis, entonces, deben
articularse con los esquemas de la evolución natural, destacando dos razones
para hacerlo: por una parte clarifican los fenómenos actuales de la semiótica –no
menos los del pasado, agregamos – y, por otra, despejan el camino delas
especulaciones y profetismos acerca de los destinos de la especie. Pero, más allá
de estos comentarios de carácter general, en la continuación del capítulo se hace
evidente que, en especial el primer aspecto, la ayuda o clarificación aludida de
los fenómenos actuales no es una formulación abstracta. Dado que discusiones
tales como la “adquisición del lenguaje”, con sus derivados, sea en cuanto a
perturbaciones o consecuencias relacionales en su desarrollo suscitan
precisamente la “continuidad”, evocada por Verón, como indispensable vía de
acceso. La noción de continuidad, despeja ciertas otras como la de “integración”
o “unificación” que procuran especialmente a este autor, pues tal decisión de
método implica una discusión acerca del carácter de la complejidad que entraña
el proceso de mediatización.

3. Acerca de las exigencias respecto de la mediatización como espacio


historiable

De entenderse la mediatización en estos términos, el despliegue temporal y sus


encadenamientos se hacen evidentes en distintas disciplinas científicas propias
de muy diferentes objetos, métodos y puntos de vista: vale citar la paleontología
antropológica, la historia de la literatura o la del cine, por casos extremos y
diferentes. Esta diversidad – lo veremos más adelante – se constituirá en
argumento para fundamentar nuestra propuesta. Los ordenamientos diacrónicos
de los diferentes fenómenos mediáticos propios de esas distintas disciplinas dan
cuenta, por una parte, de un interés social generalizado y extendido en el tiempo
y, por otra, de la fragmentación de un objeto de conocimiento (los accidentes
semióticos de la especie), exento de términos de pasaje –de existir, son parciales
y no bien formulados- que liguen entre sí esas diferentes instancias del hacer
colectivo.

La Historia de la Mediatización, como cualquier otra, debe fijar tanto sus


dimensiones constitutivas como las constituyentes, las primeras corresponden a
su objeto, localización en un intervalo de tiempo y espacio; a lo que deben
sumarse las propiedades que aúnan la sucesión de los hechos, lo que involucra
establecer relaciones estables y pertinentes en el curso de las observaciones, que
liguen la mediatización con las cualidades de los hechos mediáticos (por caso el
carácter singular o múltiple del fenómeno en cuestión. Por ejemplo el
advenimiento de la imprenta). Las segundas son los hechos en su condición
particular que comportan para tratarlos, prestar atención a la diversidad: la voz y
la escritura por casos – al menos en nuestra lengua – presentan diversos rasgos
comunes pero, asimismo, grandes diferencias, tanto en su instalación social
como en los recursos de que se han valido para cumplir con sus roles en su larga
existencia7. Valgan los casos, frecuentes desde hace un largo tiempo, que el
componente narrativo (ficcional o no) puede coincidir pero se altera el soporte,
las llamadas transposiciones o versiones, frecuentes en los discursos religiosos,
políticos o artísticos.

La voz, acompaña al Homo sapiens desde momentos tempranos de la


maduración de la semiósis, y su empleo es universal y definitorio de la especie;
la escritura en cambio es un hallazgo reciente, unos seis o siete mil años, y aun
no se ha impuesto plenamente en las sociedades de nuestros días. En su trayecto
se han articulado de maneras diversas, sustituido e intercambiado papeles,
asociadas, separadas o juntas, según recursos técnicos de complejidad creciente,
de los que debe suponerse una capacidad de producción de sentido heterogénea,
con la consiguiente facultad de articular y producir entre sus actores y usuarios,
heterogéneas relaciones.

Es fácil notar que una historia como la que proponemos –el caso que
presentamos es uno entre tantos más complejos – tiene como requisito principal
el prestar atención a las cualidades específicas de cada una de las singulares
manifestaciones de los hechos mediáticos, es decir prestar atención a su
especificidad8 en cuánto dispositivos9. Estos últimos son los modeladores
finales del tránsito semiótico, asocian a la materia plástica discursiva con los
recursos que la instalan para dar lugar a los vínculos sociales. Basta pensar en las
variedades en que se nos hace presente la voz o la escritura: la voz en el ágora
ateniense o una emisión política radial, el escrito funerario en una tumba del bajo
Nilo o el obituario de un periódico, no dieron ni dan lugar a los mismos vínculos
y, en consecuencia, a similares producciones de sentido.

Regresando por un momento a las dimensiones constitutivas. En lo que


concierne al objeto, basta decir por el momento, que se trata de la historia de los
hechos mediáticos, las precisiones son contingentes, de naturaleza plural y
localizada, lo veremos enseguida pues corresponden a otro momento del análisis
del asunto. En cuanto a la extensión espacial como fenómeno, a mi entender es
universal, las manifestaciones localizadas son episódicas y forman parte, hasta el
momento, de la condición de existencia de la especie como tal y han sido y son
una pieza básica de su desenvolvimiento tanto filogenético como de su obra, la
llamada cultura. Tales episodios frutos del tiempo y lugar, son el resultado de
largas cadenas de transformaciones que experimentó una raíz común, la especie
Homo sapiens, único exponente de un género – otrora plural – que el azar y la
necesidad dejó en pie y que, gracias a sus cualidades, emprendió el poblamiento
del planeta con variada suerte. De ese fabuloso vagabundaje resulta la singular
obra de la especie: lo que se designa como cultura.

Llegados a este punto podríamos señalar que la Historia de la mediatización es


una mirada sobre los accidentes de su objeto, es decir los hechos mediáticos. De
estos últimos se han hecho cargo múltiples disciplinas a lo largo del tiempo, son
ellas las fuentes de las que podemos abrevar, pues sus observaciones son fruto de
una larguísima experiencia: ¿Cómo hacerlo, como tratar los puntos de vista,
seguramente múltiples a los que han recurrido? Y múltiples también por las
cualidades de sus objetos, pensemos por un instante en la música, un paso en la
producción semiótica del sapiens posiblemente crucial, nada menos que la
organización del sonido. Pero los testimonios de sus modos y posibles efectos
han sido muy tardíos en cuanto a las posibilidades de conservarlos para su
estudio. La escritura musical, o la conservación del sonido más aún, son
lejanísimos de sus orígenes y estos últimos solo accesibles a una distancia menor
de dos siglos.

En cuanto a esto, finalmente es posible afirmas que la historia de la


mediatización es una historia segunda cuya referencias son otros textos, la
posición del observador de nuestros días no puede más que remitirse a lo dicho
por otros, que en buena medida pueden remitirse a otros que los precedieron.
Situación de observación plural pues ciertas evidencias de la paleo antropología
pueden súbitamente acortar las distancias, los hallazgos de restos de
instrumentos en momentos lejanos pueden revelar presencias y elaboraciones
hasta ese momento ausentes, que nos instruyen acerca de cierto tipo de
extereorizaciones de los procesos mentales. Al igual que fenómenos
sorprendentes en el campo musical a partir de hallazgos de registros escritos –
partituras – producidas en las misiones jesuíticas en los siglos XVII y XVIII, un
fenómeno mediático localizado de raíz estética.

4. En relación a ciertas observaciones metahistóricas

En los escritos como en la estructura del programa de la asignatura Historia de la


Mediatización, Verón, realiza un conjunto de observaciones acerca de los
cambios en el tiempo e, incluso, nos ofrece un conjunto de exámenes de casos –
regidos en la Semiosis social, 2 –, que se ocupan de ciertos aspectos de las
posiciones del observador.

Para referirse a los fenómenos concernientes a la mediatización relacionados con


la escritura recurre a los trabajos Jack Goody10, menciona que más allá de su
frontal inclusión en los debates acerca del estructuralismo de Lévi-Strauss,
atiende a sus referencias a propósito de las “consecuencias” (comillado de
Verón), en cuanto al valor de su aporte.

Como es bien conocido, Goody señala un conjunto de esas “consecuencias”, las


recordamos: la primera alude a lo que denomina la “objetivación del lenguaje”
que consiste en que la manipulación de las formas que propicia la escritura da
lugar a una reflexión pormenorizada de la actividad lingüística. En cuanto a la
segunda: da lugar a promover y posibilitar, de manera persistente el espíritu
crítico, posibilitar a posteriori de su realización las cualidades de un discurso. En
tercer lugar: instala y estructura espacios mentales sobre el tiempo histórico,
permite que un “antes” se haga presente como tal de un modo permanente. En
cuanto lugar: conmueve y transforma los valores de la comunicación oral, la
escritura genera instrumentos cognitivos diferentes y autónomos del habla
(clasificaciones, listas), de carácter trascendente. En quinto lugar: interviene en
el gobierno social, dando lugar a instrumentos de control, de organización
burocrática y, finalmente a instrumentos de dominación. En sexto lugar:
promueve cambios de las condiciones de individuación la remisión al pasado,
propio de la escritura, actualiza las diferencias individuales como permanentes y
efímeras, los distintos de “yo” de las sociedades ágrafas, en cambio, se pensaban
como recurrentes y, con frecuencia, eternos .

Verón destaca los avances de Goody pues acentúan una cuestión que se tornará
crucial para el Homo sapiens, pues la escritura fue la que permitió desenvolver la
conceptualización de dos grandes entidades: por una parte las que dan lugar a la
organización colectiva distinta (y opuesta) a las que competen al singular, que
denomina: sistemas sociales y sistemas socio individuales. Así se favorecerá un,
la escritura mediante, abandono de cierto tipo de temporalidad, basada en la
recurrencia y la repetición para dar lugar a otra basada en la diferencia y la
singularidad: ya no abra un “hoy” que recurre sino “uno” que discurre, gracias a
la mediación de un soporte permanente – el texto escrito – que indica la
existencia singular e irrepetible de un pasado. El que observa desde el “ayer” –
desde el texto – no está en el mismo lugar que el que lo hace desde “hoy”, así
surgirán mundos resultado de lo escrito, el observador (el lector) no podrá sino
adscribirse a alguno de ellos.

Llegados a este punto el comentario que realiza Verón al texto de Goody, nos
regresa a lo que señalábamos más arriba, respecto al lugar en que se sitúa el
observador de la Historia de la Mediatización, y aquí Verón lo muestra, digamos,
en acción. El análisis del proceso de las consecuencias de la mediatización son,
al fin, el análisis de los textos de Goody, los que resultan a su vez de una
integración de exámenes de otros textos y de observaciones empíricas de terreno.

Verón, para el caso, desenvuelve dos análisis diferenciados: uno acompaña a los
resultados de Goody, que integra con los propio, y otro corresponde al
señalamiento de sus límites (o carencias) de ese mismo camino. Esto da lugar a
dos posiciones: una, diferente a lo invalidante, la que podemos llamar integrativa
y, a la otra, limitante. Una y otra son metahistóricas exigidas pues estarán
siempre presentes en el operador de ese saber, incluso desde el punto de partida
de su trabajo, ya que con suma frecuencia (¿siempre?) se verá exigido a elegir
entre posibles fuentes para construir sus referencias11. La razón, entonces, de
esta última exigencia nace de las características de sus observables (otros textos)
los que indefectiblemente deben ser tratados de modo deliberadamente parcial y
descontextualizados, base para la reconstrucción-reinterpretación de un
momento o proceso. No es menor, de ser cierta esta advertencia, el cuidado tanto
en la elección de las fuentes como la discusión de las posibles diferencias; es
precisamente este punto de vista – limitante – el que sostiene la consistencia de
las proposiciones metahistóricas y sus eventuales resultados.

5. ¿Cómo continuar con el trabajo?

El empeño histórico de Verón12 en la Semiosis social,2 se extiende abarcando


los grandes procesos de la mediatización partir del proceso de hominización que
culmina en nuestra especie (Homo sapiens) hasta las redes de nuestros días. El
criterio aplicado para la selección de los diferentes estudios consistió en
detenerse en momentos cruciales de la puesta en obra de un hallazgo tecnológico
en occidente, en cada uno de los casos opera un proceso de reconstrucción
reinterpretación de los fenómenos en cuestión, a partir de los tres principios
básicos que propician los cambios en la mediatización: cambios de escala,
rupturas de escala y en otra esfera los efectos radiales13.

Al aludido estudio a partir del texto de Goody le sigue otro, “El nacimiento de
los cuerpos densos”, referido al pasaje del rollo al códice, transito que se articula
con la cristianización del Imperio Romano. Le sigue “La proliferación” alude a
los procesos ligados con el desarrollo de la imprenta, centrándose en la Reforma
Religiosa. “Los cuerpos efímeros: de los panfletos a los papeles de noticias” se
centra sobre el plural desarrollo de un conjunto de materiales que preceden a la
prensa moderna (panfletos, almanaques, que culminan en los periódicos), alude a
la expansión de la escritura, en concordancia con la segunda revolución
industrial. Le siguen dos textos: “La máquina del tiempo”, aludiendo a la
fotografía y “La mediatización de la temporalidad”, referido a la fonografía.
Coronan este segmento de la Semiosis social, 2 otros dos textos: uno que alude a
la televisión, ¿Seguimos en contacto? y otro a Internet: “La revolución del
acceso”14.

Como puede observarse, el recorrido realiza un conjunto de escalas en


cuestiones cruciales a través de, asimismo, cruciales y heterogéneos fenómenos
que han impuesto e imponen tanto transformaciones técnicas en la producción
discursiva, como cambios relacionales que pueden situarse a niveles
institucionales diversos (religiosos, instituciones económicos y políticas,
procesos productivos, desarrollos de oficios y profesiones) como junto a
contingencias individuales (ejercicios del cuerpo y de los hábitos perceptivos,
costumbres ciudadanas, de organización del ocio y el trabajo). Podría decirse que
Verón en este periplo se ha ocupado de la cima de las montañas, en cuanto a la
singularidad y proyección de los fenómenos es posible, entonces, que la tarea
futura de la metahistoria de la mediatización deba ocuparse de los valles que
unen esas alturas, es posible que esa tarea nos ayude a comprender y acercarnos
a los episodios más cercanos, propios del espacio que habitamos.

6. Referencias

METZ, Christian. Langage et cinéma. Paris: Larousse “Langue et langage”,


1971.

TRAVERSA, Oscar. Dispositivo – enunciación: en torno a sus modos de


articularse. En: Inflexiones del discurso: cambios y rupturas en las trayectorias
del sentido. Buenos Aires: Santiago Arcos editor, 2014.

VERÓN, Eliseo. Espacios mentales: efectos de agenda 2. Barcelona: Gedisa


Editorial, El mamífero parlante, 2001.

VERÓN, Eliseo. Los cuerpos efímeros. En: VERÓN, Eliseo. Papeles en el


tiempo. Buenos Aires: Paidós, 2011.

VERÓN, Eliseo. La semiosis social,2: ideas, momentos, interpretantes. Buenos


Aires: Paidós Estudios de comunicación 38, 2013.

VERÓN, Eliseo. Mediatization theory: a semio-antropological perspective. En:


LUNDBY, Knut. Mediatization of communication. v. 21, De Gruyter Mouton,
2014. p. 163.

1 Diversas figuras de primera magnitud, políticas e intelectuales, en


Latinoamérica, han adjudica a la prensa – medios en general – roles de
responsabilidad primaria en su derrocamiento, u organismos internacionales han
adjudicado a la publicidad de los medios respecto a la salud infantil, el
incremento de la obesidad, por casos. Uno y otro no menores en cuanto defectos,
en un contexto en el que no se le otorga más mérito que el de ser poderosos sin
proponérselo.
2 Se trata del componente estructurante principal que organiza la textualidad
mediática sea esta ficcional o “realista”, muy especialmente en el dominio de la
información.

3 Dictó “Historia de la mediatización” entre 2011 y 2014, año de su muerte. En


la Semiosis social, 2 incluye múltiples referencias a episodios, que se
desenvuelven en el tiempo, referidos a la Historicidad del proceso de
mediatización, no faltan tampoco en diversos otros puntos del extendido de sus
textos. Haremos mención más adelante a esos episodios. Tuve la fortuna de
acompañarlo a partir del 2012 en el dictado de ese curso, lo que me permitió
notar tanto la cualidad heurística como explicativa de tratar la mediatización con
criterios históricos.

4 Agregamos, como un aporte, a la adjudicación de material, relacionada con la


permanencia, la de energética, relacionado con lo efímero. Esto con el propósito
en incluir la voz y el gesto como un componente preformativo de los procesos
mediáticos, que incluso persiste en modalidades actuales.

5 Una presentación sucinta de estas condiciones puede leerse en “Mediatizatión


theory: a semio-antropologica perspective”, trabajo póstumo de Eliseo Verón.

6 Se agrega a ese comentario un severo reproche a las corrientes posmodernistas


que “…completó el trabajo de destrucción de toda visión diacrónica al
transformar las inquietudes relativas a la historicidad de las formas en un
bricolaje cínico del pasado, que funcionó como una suerte de “marketing” de la
contemporaneidad”. Finaliza poco después “Mal que le pese a los
posmodernistas, hoy tenemos algunos Grandes Relatos que contar: uno de ellos
es la historia de la semiosis humana” (p. 151, 152 y 153). Podrá observarse en la
lectura de estos pasajes una cierta exasperación al tratar este tema,
completamente ajena a la prosa de este libro. Esta diferencia podría ponerse en el
rubro “interés” o “urgencia”, en el tratamiento de este tópico, por parte del autor.

7 Se ha escuchado, y es posible también leerlo, extrañeza frente a las reflexiones


de Verón referidas a la larga historia de la mediatización, ¿los estrañados
pensarían que es un fenómeno sin origen? Quizá también que su configuración
estructural es insignificante. Lo constitutivo y lo constituyente es lo que
patentiza la unidad del fenómeno.

8 La noción de especificidad ha sido tratada de modo detallado por Metz en


Langage et cinéma, en 1971, lamentablemente esta noción ha sido frecuentada
en los estudios semióticos, esa carencia ha sido con frecuencia el origen de
confusiones a partir de no distinguir los rasgos pertinentes que caracterizan a un
proceso discursivo en cuanto a la singularidad de los dispositivos de que se vale.

9 La noción de dispositivo ha sido tratada en cuanto a la relación con fenómenos


enunciativos en “Dispositivo-enunciación: en torno a sus modos de articularse”
(TRAVERSA, 2009), se articula con la noción de especificidad pues tiene en
cuenta la participación de la articulación entre “materialidad” de los
componentes discursivos y las reglas que organizan su funcionamiento de base
(es decir el modo en que intervienen las dimensiones corporales en el
reconocimiento). No son idénticas las posiciones de lectura que se adoptan frente
a una escritura monumental y la lectura de una página de revista. De hecho tales
distingos son cruciales en la Historia de los Medios y, en consecuencia, en la
Historia de los procesos de Mediatización.

10 Menciona “The consequences of literacy” (1963) realizado junto con Ian Watt
y The domestication of the Savage Mind (1977).

11 La observación que Verón realiza acerca de Goody (autor por el que


manifiesta en todo momento un enorme respeto científico) apunta a la carencia
de una clara distinción de posiciones entre el actor y el observador: “El problema
de la validez de los modelos científicos, no tiene una relación necesaria con la
cuestión de la coincidencia o no coincidencia con eventuales “modelos” usados
por los actores en el seno de una cultura estudiada”(p.196), señala frente al uso
por Goody de la noción de “teoría oral” en contraposición a las prácticas de la
escritura, “…reconocer una contribución no implica compartir los presupuestos
epistemológicos del”.

12 Verón puso un empeño especial en destacar de discutir lo correspondeinte a


los fenómenos históricos, y hacerlo público como tal, en un pie de página, el
número 4 de su trabajo del 2011, Los cuerpos efímeros, donde reenvía a un libro
en preparación “…sobre historia de la mediatización…”, sin duda lo que será
dos años después La semiosis social, 2.

13 Estas tres nociones se encuentran en diferentes trabajos de Verón, en sus


inicios pueden leerse en el parágrafo titulado “Circulación y rupturas de escala”
en la página 129 de Espacios mentales: efectos de agenda 2 (2001) o bien una
versión más concisa en Mediatization theory: a semio-anthropological
perspective (2014, p. 2) o en “Interludio: alteraciones de escala” (Semiosis
social, 2, 2013, p. 235 en adelante).

14 Como se señala más arriba se trata de capítulos de la Semiosis social, 2, cada


uno de ellos comporta una discusión particular a partir de la lectura contrastiva
de diversos autores, en cada caso a partir de esas operaciones infiere una
conclusión o un comentario hipotético que se abre sobre el proceso de
mediatización y sus transformaciones en diferentes aspectos de los vínculos
sociales y de las construcciones imaginarias que los acompañan.
A natureza etnometodológica do senso comum

• Adriano Duarte Rodrigues1

– Mamãe, onde o papá vai?

– Vai trabalhar.

– Porque é que o papá vai trabalhar?

– Para ganhar dinheiro.

– Porque é que o papá vai ganhar dinheiro?

– Para podermos comprar o que precisamos?

– Porque é que temos que comprar o que precisamos?

– Para podermos viver?

– Porque é que temos que viver?

O diálogo continuou ainda por mais algum tempo e, pouco depois, foi
interrompido, pela mãe:

– Agora já chega. Vai arrumar as tuas coisas para ires para a escola.

Já todos tivemos certamente ocasião de observar diálogos idênticos a este entre


crianças pequenas e os pais. Escolhi começar este texto citando este diálogo,
porque nos coloca perante a maior parte das questões de que pretendo tratar.

Peço que esqueçam por momentos aquilo que as perguntas e as respostas


expressam e procurem simplesmente responder a esta questão: o que é que neste
diálogo está em jogo? Esqueçamos tudo aquilo que sabemos sobre análises do
discurso, disciplina que, como veremos, parte de uma ideia errada, a de que,
quando comunicam, as pessoas estão a transmitir ou a partilhar ideias ou
sentimentos, informações ou conteúdos. Neste diálogo, nem a criança nem a mãe
estão propriamente transmitindo nada; o que estão fazendo é a envolverem-se na
realização de uma atividade. Vamos tentar descobrir em que consiste essa
atividade.
Ao fazer a primeira pergunta, a criança não pretende propriamente levar a mãe a
informá-la de coisas que ela já não saiba: a criança não pretende propriamente
obter informações. A prova é que, durante vários dias, ela irá desencadear o
mesmo diálogo, mesmo depois de já de saber perfeitamente as respostas para as
perguntas que formula. Tenho uma vizinha de cinco cinco anos que todos os
dias, quando me encontra à porta de casa, tem comigo este diálogo:

– Tens um cão?

– Não, não tenho cão.

– Porque?

– Porque não quero.

– Tens um gato?

– Também não tenho.

– Porque?

– Porque não quero.

É claro que, pelo menos a partir do segundo dia dos nossos encontros à porta do
meu apartamento, ela já sabia perfeitamente a resposta às perguntas que me ia
fazer. E, no entanto, a sequência das perguntas continuava sempre a mesma, até
que o pai ou mãe a viesse buscar. O que é que ela estava fazendo então? Estava
evidentemente exercitando os mecanismos da linguagem e a descobrir que, para
eu falar com ela, para conseguir obter a minha atenção, para estabelecer
interação comigo, havia um mecanismo extraordinariamente apropriado, o de
fazer perguntas.

A nossa maneira de encarar o que a criança está a fazer é considerar que ela está
brincando. Mas esta é uma maneira de os adultos verem as coisas
completamente diferentes da maneira como as crianças as vêem; o que as
crianças desta idade fazem não é propriamente brincar. Bem vistas as coisas, só
os adultos é que são capazes de brincar, quando adotam comportamentos que
jogam com os dispositivos interacionais que precisamente a criança está
descobrindo nesta fase da sua vida; o comportamento da criança é todo ele muito
sério, porque, nesta fase da vida, ela não tem possibilidade de adotar outro
comportamento a não ser aquele que ela adota.

A propósito, recordo-me que, no dia em que uma das minhas netas fez dois anos,
quando me viu rir de uma resposta que ela tinha acabado de dar à mãe, virou-se
para mim e disse: “não tem graça nenhuma”. Ela tinha razão: nestes primeiros
anos, as crianças não brincam; realizam aquilo que lhes compete, adotando os
comportamentos apropriados para interiorizarem aquilo a que nós damos o nome
de senso comum, os saberes práticos que constituem o nosso mundo. O que elas
estão o tempo todo fazendo é a adquirir aquilo a que Bourdieu, seguindo neste
ponto a terminologia de Aristóteles, dava o nome de habitus, as competências
apropriadas à experiência do mundo que constituímos pela linguagem,
competências que nos levam a adotar os comportamentos apropriados às
situações com que nos confrontamos todos os dias quando interagimos uns com
os outros.

Mas voltemos de novo ao diálogo com que comecei este texto. A saída do pai
todas as manhãs é uma rotina e aquilo que a criança está descobrindo é, por um
lado, que as atividades rotineiras que as pessoas adotam não ocorrem ao acaso,
mas têm explicações ou razões de ser e, por outro lado, que estas razões seguem
normas, são organizadas. As relações em que as pessoas se envolvem umas com
as outras, em particular as pessoas com as quais a criança está ela própria
diariamente envolvida, têm uma razão de ser, não são aleatórias e, por
conseguinte, podem ser explicadas. O que a criança está fazendo é testar as
razões que podem ser dadas para justificar os comportamentos rotineiros, a que
nos dedicamos habitualmente no nosso dia a dia. Os sociólogos, seguindo de
perto Émile Durkheim, costumam dar o pomposo nome de normas sociais a
estas razões.

Mas o que é extraordinário neste diálogo é o facto de a criança estar testando a


relação indissociável entre, por um lado, a ordem que regula a vida social, isto é,
as razões pelas quais as pessoas adotam os comportamentos que ela observa, e,
por outro lado, a ordem que regula a própria linguagem. Ela está descobrindo
que a ordem social é inseparável da ordem da linguagem. E qual é o princípio
desta ordem que a criança descobre? É, antes de mais, a sua natureza ilimitada, o
facto de as sequências que ela regula não terem em si mesmas um termo. O que
ela está descobrindo é que, se fossem deixadas entregues apenas à sua lógica
própria, tanto a ordem social como a ordem da linguagem funcionariam
indefinidamente até o fim do mundo, alimentando uma ordem sequencial em
princípio ilimitada. O que a criança está testando, encadeando as suas perguntas
com as respostas da mãe, é a natureza indefinida e ilimitada da ordem sequencial
das palavras, verificando que não existe propriamente uma palavra final que dê
por terminada a ordem que regula as interações das pessoas com as quais ela se
envolve, tal como não há uma explicação última e definitiva para os
comportamentos que as pessoas adotam. Descobre que cada pergunta que ela
formula pode sempre ser seguida por uma outra e uma outra e uma outra, sem
termo logicamente determinado. Ela está praticando esta lógica, fazendo com
que cada uma das respostas que ela obtem da mãe se encadeie sempre com uma
nova pergunta.

Mas, ao mesmo tempo que descobre que a ordem sequencial das interações
verbais é por natureza ilimitada, a criança faz uma outra descoberta
extraordinária, a de que é só a intervenção de uma palavra exterior à sequência
das perguntas e respostas em que ela e a mãe estão envolvidas, de que é só a
palavra autoritária da mãe, que a manda ir arrumar as suas coisas para ir para a
escola, que pode dar por finalizada a ordem das sequências interacionais. Está
fazendo uma descoberta temível, a de que é só a força de uma intervenção
exterior à ordem que regula, tanto as sequências da atividade comunicacional, o
encadeamento das intervenções, como as sequências das interações sociais, que
pode dar por terminadas as sequências interacionais em que as pessoas se
envolvem. Descobre, deste modo, a necessidade inevitável da ordem
institucional, neste caso assumida pela mãe, dotada do poder de coagir o livre
encadeamento das sequências do diálogo em que está envolvida.

Como vemos, com este diálogo a criança não está brincando nem propriamente
procurando respostas para as perguntas que faz; está testando a organização da
ordem sequencial da atividade comunicacional que constitui o mundo em que
está entrando e no qual vai construir as suas próprias identidades, o acesso ao
lugar que lhe está destinado na comunidade humana pelo funcionamento da
ordem da linguagem. Está descobrindo não só que as pessoas mobilizam
recursos para se obrigarem mutuamente a interagir umas com as outras, mas
também que essa ordem é inevitavelmente coagida pela ordem institucional que
põe termo ao seu fluxo, por natureza, logicamente ilimitado. Por outras palavras,
está descobrindo, por um lado, que tem o poder de desencadear a ordem
interacional, ao mobilizar aquilo a que Harvey Sacks dava o nome de
“maquinaria conversacional” e que a sequência de perguntas e respostas é
provavelmente uma das maquinarias mais eficazes. Mas também está
descobrindo, por outro lado, que este seu poder é constantemente controlado,
vigiado e finalizado por uma instância externa. É claro que acabará também por
descobrir que existem outros recursos que as pessoas utilizam para se obrigarem
a interagir, tais como, por exemplo, a troca de saudações, de olhares ou de
sorrisos. Mas formular perguntas é a maneira como a criança, ao desencadear
este diálogo, está constituindo e alimentando a sua interação com a mãe,
aprendendo o mecanismo apropriado, tendo em conta a situação. Está
aprendendo, ao provocar a ordem com que a mãe dá por terminada a conversa,
que dar por terminada as interações não é uma questão simples nem natural, mas
o resultado de uma intervenção externa, institucional, que funda inevitavelmente
a constituição da autoridade e daquilo a que os adultos dão o nome pretensioso
de poder.

Bem vistas as coisas, a intervenção que a mãe realiza para dar por terminadas as
sequências das perguntas e respostas inicia todo o conjunto de intervenções
institucionais que regularão, ao longo da vida, as sequências interacionais que
pontuarão a sua experiência do mundo. Está aprendendo, por conseguinte, que
há dois momentos cruciais da comunicação: o primeiro e o último. O primeiro,
porque é aquele em que tudo se joga, porque é aquele em que alguém obriga o
outro a encadear um segundo e a fazer as escolhas dos recursos ou dos
dispositivos apropriados à situação criada pelo primeiro. O último, porque é
aquele em que uma intervenção exterior torna impossível continuar o
encadeamento de outras sequências posteriores.

Poderíamos fazer muito mais descobertas com a observação atenta deste diálogo.
Gostaria ainda de chamar a atenção para mais uma descoberta extraordinária: ao
formular cada uma das perguntas, a criança faz com que a mãe categorize o
mundo. Está deste modo adquirindo o domínio de mais um dos dispositivos
interacionais importantes que as pessoas utilizam quando se envolvem em
atividades comunicacionais, para constituírem em conjunto o seu mundo, o
dispositivo de categorização, a que Sacks nas suas primeiras lições dedicou uma
atenção particular. Com o domínio deste dispositivo, ela aprende que as pessoas
constituem em conjunto as suas múltiplas identidades, assim como a
multiplicidade das identidades das pessoas, das coisas, dos acontecimentos e das
atividades rotineiras a que se referem quando, no seu dia a dia, interagem umas
com as outras. Com este diálogo está testando categorias que pertencem a
conjuntos, tais como o da família, o da divisão social do trabalho, o da
organização do tempo.

Ao interiorizar estes conjuntos de categorias, ela está descobrindo que as pessoas


e as coisas são identificadas por identidades relacionadas entre si, que cada uma
dessas identidades é constituída pela linguagem e que, por isso, tem à sua
disposição unidades da linguagem que ela pode utilizar para as constituir e para
as designar ou referir. Mas o que é mais importante ainda é que descobre que as
escolhas que fizer das unidades da linguagem para referir as pessoas, as coisas,
os acontecimentos dependerá em cada ocasião particular da natureza da relação
interacional em que estará envolvida. Assim, por exemplo, o indivíduo a que
chama pai, categoria pertencente ao conjunto família, é o conjunto também
utilizado para a identificar, porque serve para o pai se referir a ela como filha ou
filho, mas aprende que o pai também é trabalhador, categoria que pertence a
outro conjunto, ao conjunto profissão, com a qual é identificado na relação que
estabelece com outras pessoas, inclusivamente pela mãe quando é intimada pela
pergunta dela a referir aquilo que o pai vai fazer quando sai de casa. Ela irá
observar que a mesma pessoa a quem chama pai será referida noutras
circunstâncias como empregado, noutra como engenheiro, noutra como colega, e
uma infinidade de outras categorias, em função da circunstância em que alguém
se referir a ele.

Reparemos que a descoberta das categorias da linguagem para referir as pessoas,


as coisas e os acontecimentos é crucial para aprender a fazer inferências, não só
acerca daquilo que as pessoas dizem e acerca daquilo que observa diariamente à
sua volta, mas também para encontrar as explicações ou as razões de ser daquilo
que dizem e fazem. Não tenho evidentemente tempo para desenvolver aqui este
importante componente da análise das categorizações.

Façamos um resumo daquilo que descobrimos até este momento como a


observação do diálogo com que comecei este texto. Descobrimos que a criança
está aprendendo:

1. a utilizar os dispositivos de categorização que identificam as pessoas, as


coisas e os acontecimentos;

2. que a ordem sequencial que constitui a atividade comunicacional é em si


mesma interminável;

3. que, para terminar a sequência interminável das interações verbais, tem que
haver uma intervenção exterior à ordem que a regula;

4. que a atividade comunicacional é inseparável do ambiente e dos recursos que


a linguagem põe à disposição das pessoas.
Mas, além destas descobertas, a criança está também aprendendo uma outra
coisa maravilhosa, a de que, para fazer com que a mãe lhe preste atenção e fale
com ela, basta formular uma pergunta, isto é, basta utilizar o recurso da
linguagem apropriado para esse efeito. A partir de agora, sempre que os adultos
estiverem envolvidos noutras tarefas e se esqueçam dela, sabe que basta dizer:

– Sabes uma coisa?

para atrair a atenção sobre si e provocar da outra pessoa uma intervenção que lhe
confere o direito de prosseguir a interação:

– O que foi?

Ela sabe agora que pode obrigar o adulto a fazer uma pergunta e que, deste
modo, ela própria adquire o direito de falar, de prosseguir com a interação, de
entrar no fluxo interacional da atividade comunicacional. Foi precisamente isto
mesmo que se passou no diálogo com a mãe com que iniciei este texto.

É por isso que Harvey Sacks (1992, p. 656-664) lembra que, quando as pessoas
querem interagir com alguém que desperta a sua atenção, fazem habitualmente
uma pergunta:

– Pode dizer-me as horas?

ou então:

– Não o(a) conheço de algum lado?

– Pode-me dizer a que horas é próximo voo para Nova Iorque?

A mobilização do dispositivo da pergunta força a outra pessoa a responder,


aceitando e eventualmente prosseguindo a interação. O dispositivo da pergunta,
ao ser utilizado pela mãe (que foi?), dá-lhe também a ela o direito de falar.

Mas há ainda um outro dispositivo que a criança aprende a mobilizar neste


diálogo para o qual gostaria de chamar a atenção, o da repetição. A criança
repete, em cada uma das suas perguntas, componentes da resposta dada antes
pela mãe à pergunta que ela própria formulou:

– Onde é que o pai foi?


– Foi trabalhar.

– Porque é que o pai foi trabalhar?

A repetição do termo utilizado pela mãe para responder à sua pergunta é um dos
mecanismos mais poderosos que alimentam a ordem sequencial das interações
verbais, e a criança está a descobrir este mecanismo fascinante. Ao repetir a
expressão utilizada pela mãe, ela descobre que faz pelo menos duas coisas
extraordinariamente importantes: assinala à mãe que entendeu a resposta que ela
deu à sua pergunta anterior e, ao mesmo tempo, constitui a nova situação que
viabiliza a formulação de uma nova pergunta e, deste modo, alimenta a ordem
sequencial da atividade comunicacional.

Reparemos que, ao contrário do que as análises do discurso supõem, as


perguntas raramente realizam aquilo que gramaticalmente significam e, mesmo
que por vezes o façam, fazem quase sempre muitas outras coisas, tais como, por
exemplo, iniciar uma interação, confirmar aquilo que já sabíamos, mostrar que
entendemos o que nos disseram, fazer pedidos ou sugerir determinados
comportamentos de maneira cortês, como podemos observar nos seguintes
exemplos:

– Não se importa de eu tome outro café?

– Porque não escolhe o Brasil para passar as férias?

– Sabe que dia é hoje?

– Sabe o que eu vou escolher?

Cada uma destas perguntas gramaticais fazem coisas sempre diferentes, não só
em função do ambiente em que forem formuladas, mas também dependendo
daquilo que está em jogo em cada uma das atividades comunicacionais. “Sabe
que dia é hoje?” é raramente uma verdadeira pergunta. Pode ser um aviso, uma
promessa, a provocação de uma recordação e uma infinidade de muitas outras
coisas. A análise do discurso não têm instrumentos para descobrir o que fazem
perguntas como esta, porque habitualmente ignora o ambiente e a natureza da
atividade comunicacional em que ocorrem os enunciados que as pessoas trocam
entre si. É por isso uma disciplina imprópria para os estudos da comunicação.

1. A constituição do senso comum


Os exemplos que apresentei são aparentemente banais, podem ser observados
por qualquer de nós e revelam os dispositivos que as crianças interiorizam muito
cedo naquilo a que podemos dar o nome de competência comunicacional,
durante o processo de aprendizagem da língua materna, entre os dois e os cinco
anos ou provavelmente ainda mais cedo. São, no entanto, extraordinariamente
reveladores da importância daquilo a que damos o nome de conhecimentos do
senso comum e que constituem os scripts ou os cenários das atividades
comunicacionais.

Muitos cientistas sociais e estudiosos da comunicação pensam que o senso


comum é a maneira de as pessoas legitimarem e de encobrirem as determinações
e a dominação das macro estruturas sociais. Os exemplos que vos dei mostram
precisamente o contrário: são antes os saberes práticos do senso comum que
constituem as determinações e as dominações da macro estrutura social. É cada
um de nós que, sem se dar conta, as constitui, ao mobilizar os dispositivos
interacionais de que é dotado.

De que é então constituído o senso comum?

O senso comum é formado por todo um conjunto dos conhecimentos práticos,


interiorizados, logo na primeira infância, com a aprendizagem da língua
materna. São os saberes que dotam os seres humanos de competência
comunicacional. São estes conhecimentos práticos que constituem os recursos
que mobilizamos para adotarmos os comportamentos apropriados a cada uma
das atividades comunicacionais em que nos envolvemos uns com os outros.
Constitui aquilo a que também costumo dar o nome de experiência do mundo.

2. Acerca da invenção dos dispositivos mediáticos

Como os estudiosos da comunicação costumam atribuir uma grande importância


ao estudo dos media2, gostaria agora de abordar a relação daquilo que acabamos
de descobrir com o funcionamento dos dispositivos mediáticos. Começo por
mostrar que os saberes do senso comum destinados a regular a atividade
comunicacional ou, melhor dizendo, a ordem sequencial das interações, estão
integrados nos próprios dispositivos mediáticos que mobilizamos para a realizar.
Nem poderia ser de outro modo, uma vez que os media são artefactos inventados
por seres humanos, por seres dotados de competência comunicacional, para
intervirem na realização de ambientes indispensáveis para dessa competência.
Os media são dispositivos inventados, ao longo da história da humanidade, e
respondem à necessidade de os seres humanos constituírem o seu mundo, ao
contrário das outras espécies animais, que têm os seus dispositivos naturais
ajustados ao intercâmbio com o meio ambiente em que vivem. O diálogo com
que comecei a minha intervenção mostra a maneira como a criança está
aprendendo a mobilizar o principal medium que todos os seres humanos têm ao
seu dispor, a língua materna. Com a aquisição da competência comunicacional,
adquirimos, por isso, ao mesmo tempo, a competência que nos habilita a
mobilizar todos os outros media. Não é por acaso que hoje podemos observar
que, logo que começam a falar, as crianças sabem perfeitamente utilizar um
telefone celular. A língua é o primeiro e o mais importante medium, aquele que
interiorizamos para constituirmos o nosso mundo logo a partir da primeira
infância e ao mesmo tempo o dispositivo que nos habilita a inventar e a
mobilizar todos os outros dispositivos mediáticos. É o mais importante medium
porque é aquele que torna possível a invenção e a interiorização de todos os
outros media.

Sem começarmos por perceber a intervenção da linguagem na constituição do


nosso mundo, é impossível perceber a intervenção dos outros media, uma vez
que são os dispositivos da linguagem que cada um deles à sua maneira realiza
tecnicamente. É porque ignoram esta dimensão antropológica e linguística dos
dispositivos técnicos que a maior parte dos estudos sobre media que costumo ler
não é sobre os media, mas sobre muitas outras coisas, em particular sobre o que
as pessoas fazem nos diferentes ambientes que eles constituem.

Como vemos, a função dos media é constituir o nosso mundo e, por conseguinte,
sem darmos por isso, estão presentes em todas as nossas atividades
comunicacionais. Para compreender aquilo que pretendo dizer, basta imaginar
que éramos baleias vivendo no oceano e que alguém nos perguntava se sabíamos
o que é a água. Acharíamos a pergunta incompreensível, uma vez que a água
seria o ambiente em que viveríamos. É esta a característica fundamental dos
artefactos a que damos o nome de media, dispositivos, uma espécie de artefactos
que se distinguem dos instrumentos, dos utensílios e das máquinas pelo facto de
funcionarem tanto melhor quanto menos nos dermos conta deles.

Os media, os dispositivos que constituem o nosso mundo, intervêm ao longo de


toda a atividade comunicacional, mas é particularmente importante a sua
intervenção na regulação dos seus momentos cruciais, que são o seu início e o
seu fim. Reparem, por exemplo, na importância que a invenção do relógio teve
para a marcação do início, do ritmo e do fim da maior parte das atividades
comunicacionais. Reparem que, no caso do telefone, é o toque da campainha que
desencadeia o início da interação, tal como, no caso dos dispositivos
electrónicos, é o toque do dispositivo electrónico que dá início à interação. Por
seu lado, se observarem com atenção o fim das atividades comunicacionais,
verificarão que ele exige habitualmente uma negociação particularmente
arriscada, ao longo de etapas preparatórias mais ou menos longas. É este risco
que é habitualmente regulado pela intervenção do funcionamento dos media,
dispositivos que regulam de antemão o limite para o desenrolar das interações. É
este mesmo mecanismo de regulação dos riscos inerentes à negociação do fim
das interações que podemos observar nas que ocorrem nos ambientes
constituídos, por exemplo, pelos dispositivos radiofónico e televisivo.

3. As principais características do senso comum

Gostaria agora de me debruçar sobre as principais características do senso


comum, conceito que nos acompanhou até este momento. A principal
característica do senso comum é a sua natureza indiscutível (taken for granted).
O grande problema das ciências sociais é conseguirem maneira de o tomarem
como objeto de pesquisa. O ponto de partida para resolver este problema foi
dado, a meu ver, pela fenomenologia de Edmund Husserl, que fundamentou
aquilo a que eu daria o nome de atitude de disponibilidade para observar aquilo a
que ele dava o nome de mundo da vida (Lebenswelt) e a que eu dou o nome de
experiência. Husserl dava o nome de epoché, termo que ele foi buscar ao grego e
que significa corte para com as nossas próprias crenças e os nossos
conhecimentos, a suspensão ou o pôr entre parêntese dos nossos juízos acerca
dos fenómenos que observamos. (HUSSERL, 1986, p. 17 e ss.)

Os saberes do senso comum não são aprendidos de maneira formal, mas


interiorizados ao longo do processo de socialização, passando a fazer parte
daquilo que achamos natural e, por isso, indiscutível. Discutir conhecimentos do
senso comum é sempre considerado um comportamento estranho, porque
equivale a pôr em causa a racionalidade ou o sentido dos comportamentos
observados. O senso comum é formado pelos saberes que temos que pressupor
para dar sentido tanto àquilo que as pessoas dizem e fazem, como àquilo que
ouvem os outros dizer e fazer. Quando, por exemplo, observo alguém perto de
um carro, a procurar alguma na bolsa, sou levado a pensar que está procurando a
chave do carro ou, quando vejo alguém acenando na minha direção, suponho que
me está saudando.
Como estamos a ver, não é possível termos consciência dos conhecimentos do
senso comum, enquanto eles estão dirigindo e regulando a atividade em que
estamos envolvidos. Só nos damos conta deles reflexivamente, depois de
deixarmos de estar por eles envolvidos, quando os rememoramos ou então
quando não nos comportamos como era esperado ou quando violamos os
princípios que eles regulam. “– O que é que se diz?”, pergunta a mãe à criança
que não agradeceu o presente que acabou de receber do avô ou que não
respondeu à saudação de uma pessoa conhecida. Com esta pergunta, a mãe leva
a criança a tomar consciência reflexiva dos saberes de senso comum que
regulam os seus comportamentos quando recebe presentes ou saudações.

Para fazer compreender esta característica dos conhecimentos do senso comum,


Harold Garfinkel (1967) propunha aquilo a que dava o nome de breaching
experiments e que consistia em pedir aos alunos para, nas férias, adotarem
comportamentos que iam contra as expectativas das pessoas da família, como,
por exemplo, saudar de maneira formal e cerimoniosa os pais ou os irmãos ou
pedir autorização à mãe para tirar um iogurte do frigorífico. O resultado destas
experiências foi de tal modo inquietante e perturbador que abandonou estes
exercícios.

A melhor maneira de nos darmos conta destes saberes práticos que regulam os
nossos comportamentos é, de facto, verificar o que se passa quando verificamos
comportamentos que não os respeitam. Se, por exemplo, a pessoa a quem
dirigimos uma saudação não nos responde, somos inevitavelmente levados a
procurar se há alguma razão que o levou a não o fazer, isto é, só procuramos as
razões dos comportamentos quando parecem não acontecer de acordo com as
expectativas: será que a pessoa não ouviu o que eu disse? Será que está zangada
comigo? Procuramos razões que impeçam ou justifiquem o facto de a nossa
saudação não ter desencadeado a sua retribuição por parte da pessoa que
saudámos.

Como estamos a ver, os conhecimentos do senso comum são muito diferentes


dos conhecimentos científicos. Enquanto os conhecimentos científicos obedecem
a normas racionais explícitas, os conhecimentos do senso comum obedecem a
normas implícitas, interiorizadas nos comportamentos que as pessoas,
inclusivamente os cientistas, adotam habitualmente. Mas seria impossível
produzir conhecimentos científicos se não fossemos dotados de saberes do senso
comum, porque os conhecimentos científicos pressupõem inevitavelmente os
saberes do senso comum, tanto a montante como a jusante. A montante,
enquanto saberes que constituem as evidências de que o cientista parte para
poder formular as questões que pretende estudar; a jusante, para encontrar
expressões ou formulações compreensíveis das suas descobertas.

4. A importância da descoberta dos saberes do senso comum para o estudo da


comunicação

Se consegui fazer entender o que apresentei até aqui, creio que já fiz
compreender porque razão decidi dedicar este texto ao senso comum. A principal
razão tem a ver com a insatisfação que muitas vezes sinto perante os estudos da
comunicação que tenho lido. Vejamos algumas das razões desta insatisfação.

Grande parte destes estudos pretende, por um lado, que existe uma boa
comunicação, uma comunicação autêntica e, por outro lado, que os estudos da
comunicação se destinam a descobrir e a aprender instrumentos eficazes para a
sua implementação. Se quiséssemos caraterizar a atitude destes estudos da
comunicação, poderíamos dizer que partem de uma atitude suspeita em relação à
atividade comunicacional em que as pessoas se envolvem, mobilizando
simplesmente os saberes espontâneos do senso comum. Estes estudos partem do
princípio de que a atividade comunicacional em que as pessoas se envolvem
seria melhor, mais autêntica ou mais eficaz se utilizassem as descobertas
científicas dos estudiosos da comunicação. Esta maneira de ver está
fundamentalmente errada e é perniciosa porque nos impede de estudar
efetivamente a comunicação, porque nos distrai da observação dos fenómenos
que constituem a comunicação.

As pessoas não precisam dos nossos estudos para aprenderem a comunicar


adequadamente. Pelo contrário! Somos nós, os estudiosos de comunicação, que
precisamos aprender o que é a comunicação observando aquilo que as pessoas
fazem quando adotam os comportamentos apropriados a cada uma das situações
com se confrontam. A atitude etnometodológica permite endireitar a perspectiva
enviesada que referi.

A etnometodologia não é uma metodologia de pesquisa, mas o nome que


Garfinkel (1967) deu à atitude do pesquisador que adota a perspectiva
fenomenológica no estudo dos fenómenos observados. Consiste em adquirir
disponibilidade para observar, registrar e descrever os métodos que as próprias
pessoas, os ethnoi, utilizam:
1. para compreenderem aquilo que está em jogo em cada uma das situações
interacionais;

2. para escolherem os comportamentos apropriados a cada uma dessas situações


de interação com as outras pessoas;

3. para entenderem os comportamentos que as outras pessoas adotam, quando


interagem com elas.

Para adquirir esta disponibilidade, o pesquisador tem que pôr entre parêntese as
suas próprias convicções, as suas crenças, as suas causas que impedem um olhar
descomprometido sobre os comportamentos observados. A comunicação não se
aprende em escolas nem nas universidades. A comunicação é a atividade
intersubjetiva que aprendemos a realizar logo na primeira infância, com a
aprendizagem da língua materna. São estas competências interiorizadas pelas
pessoas que a atitude etnometodológica procura identificar e compreender. É
uma evidência de tal modo óbvia que costuma cegar os estudiosos da
comunicação.

As pesquisas em comunicação que ignoram esta evidência tornam-se um


instrumento, ora de conspiração ora de propaganda. O que está em jogo na
perspectiva etnometodológica é uma inversão da maneira de encarar a natureza
crítica inerente ao espírito científico. Enquanto, para o cientista, é a sua
perspectiva de pesquisador que é objeto de crítica, para os estudiosos da
comunicação costuma ser lamentavelmente a perspectiva da comunicação dos
outros que se converte em objeto da sua crítica. A meu ver é esta viragem
coperniciana que os estudos da comunicação precisam fazer para atingirem a
maturidade científica.

Os estudos da comunicação que ignoram os saberes do senso comum concebem


a comunicação como maneira de forjar instrumentos que visam a imposição das
perspectivas, das crenças, das convicções, das causas do pesquisador. Dito de
outro modo: a comunicação é apresentada como aprendizagem dos instrumentos
destinados a formar bons profissionais e a inventar técnicas úteis para divulgar
boas práticas nos mais diversos domínios da vida coletiva. Aquilo que torna esta
perspectiva insustentável são os seus pressupostos implícitos, a definição
implícita daquilo que se entende por bons profissionais e por boas práticas. A
quem compete defini-los? Será que os estudiosos da comunicação receberam
algum mandato de alguma instância transcendente para definirem aquilo que é a
boa comunicação?

O que torna insustentável esta maneira suspeitosa e instrumental de abordar a


comunicação, que observamos infelizmente em muitos estudos, é o facto de
pressupor que os comportamentos que as pessoas adotam habitualmente não
seguem uma lógica própria, mas determinações que lhes são impostas, que as
controlam e a que obedecem cegamente. Essas determinações seriam inventadas
pelas diferentes instituições sociais, tais como a religião, o poder, a cultura. Este
pressuposto não resiste a uma observação atenta e não preconceituosa do
comportamento habitual das pessoas.

5. Conclusão: a natureza etnometodológica do senso comum

Aquilo que as pessoas querem dizer raramente coincide com aquilo que palavras
que elas dizem significam e aquilo que elas dizem quer dizer sempre coisas
diferentes de cada vez que falam. É a solução destes enigmas que a perspectiva
etnometodológica da comunicação pretende descobrir, observando os métodos
que as pessoas seguem para os resolver. A solução está no facto de as pessoas
mobilizarem em permanência saberes do senso comum, que constituem aquilo a
que costumo dar o nome de experiência. Trata-se de saberes indiscutíveis que
regulam, até ao mais ínfimo pormenor, os comportamentos de todos quantos
tomam parte localmente nas interações uns com os outros em que se envolvem.

Os saberes implícitos do senso comum distinguem-se dos conhecimentos


construídos pelas disciplinas científicas. Pretender dar conta destes saberes
implícitos equivale a descobrir os etnométodos, nome que damos aos
dispositivos que as pessoas mobilizam, em cada momento, para escolherem os
comportamentos adequados a cada uma das situações em que se envolvem e para
entenderem os comportamentos dos outros. Trata-se, por isso, por um lado, de
descobrir a extraordinária riqueza destes saberes práticos que constituem o senso
comum e, por outro lado, de mostrar alguns dos dispositivos utilizados pelas
pessoas para os mobilizarem.

Como sabemos o que uma pessoa está fazendo, por exemplo, quando a vemos
junto a um carro a mexer na bolsa, quando a vemos a mexer os dedos sobre o
ecrã do celular, quando a vemos contrair os músculos faciais de uma
determinada maneira ou quando a vemos a olhar para cima? Podem
evidentemente responder-me que não sabemos exatamente o que as pessoas
estão fazendo quando observamos estes comportamentos, mas, na maior parte
das vezes, se alguém me perguntar o que está fazendo a pessoa que adota um dos
comportamentos referidos, eu sei dizer o que ela está fazendo. Assim, por
exemplo, se me perguntarem o que está fazendo a pessoa junto a um carro
mexendo na bolsa, responderei que está provavelmente procurando as chaves do
carro. O mesmo se passa quando alguém me pergunta o que está fazendo a
pessoa que mexe os dedos sobre o ecrã do celular, pelo facto de responder que
está navegando na internet ou digitando o número de telefone da pessoa a quem
pretende telefonar. Não preciso sequer que alguém me pergunte o que está
fazendo a pessoa que eu observo para mostrar que sei o que ela está fazendo;
basta que eu próprio adote o comportamento que se ajusta ao que ela adoptou.
Assim, por exemplo, quando vejo alguém olhando para cima, sou também eu
levado a olhar na mesma direção. Deste modo, estou mostrando que entendi que
aquilo que ela faz, adoptando também eu um comportamento ajustado ao que
observo, provocado pela percepção do comportamento observado.

A perspectiva etnometodológica não é, por conseguinte, uma teoria nem uma


metodologia de pesquisa, mas uma atitude fenomenológica preocupada em
observar os fenómenos que os comportamentos da atividade comunicativa
manifestam, de modo a dar conta da sua organização.

6. Algumas referências

GARFINKEL, H. Studies in ethnomethodology. Englewood Cliffs, N. J.,


Prentice-Hall, 1967.

GEERTZ, C. Saber local: novos ensaios de antropologia interpretativa. 9ª ed.


Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007. (original: Local knowledge: further
essays in interpretive anthropology, 1983, Basic Books).

HUSSERL, E. Méditations cartésiennes: introduction à la phénoménologie,


Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1986.

LEECH, G. Principles of pragmatics. London: Longman, 1983.

PLATÃO. Teeteto. 9ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015.


Tradução brasileira disponível em: http://www.verlaine.pro.br/txt/platao-
teeteto.pdf.

SACKS, H. Lectures on conversation. 2 volumes. Oxford: Basil Blackwell,


1992.
SCHÜTZ, A. The phenomenology of the social world. Evanston, I.L.,
Northwestern University Press, 1967.

TEN HAVE, P. Understandig qualitative research and ethnomethodology.


London, Thousand Oaks; New Delhi, Sage Publications, 2004.

WATSON, R.; GASTALDO, E. Etnometodologia & análise da conversa.


Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2015.

WITTGENSTEIN, L. Tratado logico-filosófico – Investigações filosóficas.


Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

1 Licenciado em Sociologia e doutor em Comunicação. Professor catedrático


emérito da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade
Nova de Lisboa (UNL). Autor de vários livros, entre eles Estratégias da
comunicação (Presença, 2001, 3ª ed.), Comunicação e cultura (Presença, 2010,
3ª ed.), A partitura invisível (Colibri, 2005, 2ª ed.) e O paradigma
comunicacional (Calouste Gulbenkian, 2011).

2 Utilizo os termos latinos medium, no singular, e media, no plural, para designar


os dispositivos técnicos que constituem os ambientes em que as pessoas se
encontram para realizarem a atividade comunicacional. Apesar de ter tentado
durante muitos anos, não consigo habituar-me à utilização de mídia e de mídias,
termos muito generalizados no Brasil.
Table of Contents
1. Capa
2. Primeira folha de rosto
3. Créditos Eduepb
4. Folha de rosto
5. Créditos
6. Agradecimentos
7. APRESENTAÇÃO - Circulação discursiva em tempos de sociedades
midiatizadas
8. A circulação das imagens
1. Muniz Sodré
9. Medios individuales, medios colectivos y circulación transversal
1. Mario Carlón
10. A circulação do sofrimento
1. Katia Lerner, Inesita Soares de Araujo, Raquel Aguiar e João Verani
Protasio
11. Circulación y mediatización de la experiencia estética
1. Gastón Cingolani
12. O cicloturismo, o jornalismo e a midiatização das narrativas de bicicleta
1. Demétrio de Azeredo Soster
13. La inherencia de la circulación del sentido en la configuración semiótica de
vínculos erótico-afectivos
1. Manuel Libenson
14. O filme Um perfil para dois e sua circulação discursiva em uma sociedade
tecnológica
1. Sérgio Dayrell Porto e Célia Ladeira Mota
15. Fragmentação e hackerização do Queermuseu
1. Jairo Ferreira e Rochele Zandavalli
16. Trajetos do corpo de uma mulher
1. Antônio Fausto Neto
17. Novas circulações discursivas sobre ciência
1. Suzanne de Cheveigné
18. Ativismo, consumo e ambivalência
1. Laura Guimarães Corrêa
19. Prensa online y redes sociales en internet
1. Natalia Raimondo Anselmino
20. Ruptura da linearidade dos sentidos em um acontecimento discursivo
1. Ivone de Lourdes Oliveira
21. Caminhos e saberes outros
1. Pedro Russi
22. Transformaciones sociales e historia de la mediatización
1. Oscar Traversa
23. A natureza etnometodológica do senso comum
1. Adriano Duarte Rodrigues

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