A Literatura Portuguesa Séc. XX .12ºano PDF
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Parte
A literatura
portuguesa do
século xx
• L iteratura modernista: contexto e características 130
— Fernando Pessoa 134
— Mário de Sá-Carneiro 140
— Almada Negreiros 142
• Literatura contemporânea até 1974:
contexto e características 144
— Geração da Presença 146
— Prosa até 1974 148
— Teatro até 1974 156
• Prosa pós-1974 158
129
As vanguardas
Uma vitalidade extraordinária e tumultuosa, que se manifesta num contínuo
experimentalismo à procura de novas linguagens expressivas, percorre a literatura
e as artes plásticas no início do século XX. Surgem, uma após outra, as vanguardas,
grupos de escritores e de artistas plásticos, que elaboram programas, lançam manifestos,
organizam conferências ou eventos com a finalidade de desestabilizar as convenções
que regem a comunicação na sociedade burguesa.
Uma delas, o Futurismo, alcança uma enorme projeção pela maneira radical e iconoclasta
com que recusa todas as formas artísticas tradicionais, julgando-as inadequadas à nova
civilização das máquinas criada pela revolução industrial. No Manifesto do Futurismo (Paris,
1909), o escritor italiano Marinetti contrapõe à literatura do passado, que «exaltou até hoje
a imobilidade pensativa, o êxtase, e o sono», uma nova literatura que exalte o «movimento
agressivo, a insónia febril, o passo da corrida, o salto mortal, a bofetada e o soco», e celebre
a beleza do moderno:
«Cantaremos as grandes multidões agitadas, pelo trabalho, pelo prazer e pela rebelião;
Filippo Marinetti.
cantaremos as marés multicolores ou polifónicas das revoluções nas capitais modernas,
cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por
violentas luas elétricas, as estações […]; as pontes semelhantes a ginastas que galgam
os rios, balouçando ao sol com um brilho de facas; os paquetes aventurosos que farejam
o horizonte, as locomotivas […] e o voo deslizante dos aeroplanos.»
a adesão entusiasta ao mundo moderno por parte dos futuristas contrasta com a atitude
dos artistas finisseculares. Como vimos, estes reagiam com desgosto e repulsa perante
as transformações causadas pela revolução industrial, refugiando-se num isolamento
aristocrático. Os futuristas, pelo contrário, querem intervir ativamente na vida social
e política das nações, para destruir tudo o que trava a expansão da energia vital do moderno.
a experiência das vanguardas teve efeitos diferentes na área da literatura e na das artes
plásticas. Neste segundo caso, as criações de artistas de extraordinário valor modificaram
definitivamente o conceito tradicional de obra de arte.
LEITURA
Futurismo e Intersecionismo
Fernando Pessoa, em carta assinada por Álvaro de Campos, O Futurismo é dinâmico e analítico por excelência. Ora se
engenheiro e poeta sensacionista, e dirigida ao Diário há coisa que seja típica do Intersecionismo (tal é o nome do
de Notícias, que não chegou a ser enviada, assinala movimento português) é a subjetividade excessiva, a síntese
as diferenças entre o Futurismo e o Intersecionismo. levada ao máximo […]. E o tédio, o sonho, a abstração são as
«O que quero acentuar, acentuar bem, acentuar muito bem atitudes usuais dos poetas meus colegas naquela brilhante
é que é preciso que cesse a trapalhada, que a ignorância revista. […] No 2.º número do Orpheu virá a colaboração
dos nossos críticos está fazendo, com a palavra ”futurismo”. realmente futurista, é certo. Então se poderá ver a diferença,
Falar em Futurismo, quer a propósito do 1.º número do Orpheu, se bem que seja não literária mas pictural essa colaboração.
quer a propósito do livro do sr. Sá-Carneiro, é a coisa mais São quatro quadros que emanam da alta sensibilidade
disparatada que se pode imaginar. Nenhum futurista tragaria moderna do meu amigo Santa-Rita Pintor. […] A minha
o Orpheu. O Orpheu seria para um futurista uma lamentável “Ode triunfal”, no 1.º número do Orpheu é a única coisa que
demonstração do espírito obscurantista e reacionário. se aproxima do Futurismo. Mas aproxima-se pelo assunto
A atitude principal do Futurismo é a objetividade absoluta, que me inspirou, não pela realização — e em arte a forma
a eliminação da arte de tudo quanto é alma, quanto de realizar é que caracteriza e distingue as correntes
é sentimento, emoção, lirismo, subjetividade em suma. e as escolas.» (com adaptações).
LEITURA
O Sensacionismo
Como vimos, a colaboração nos dois números da revista Há algo de americano, com a barulheira e o quotidiano
Orpheu revela-se heterogénea. Ao lado de composições omitidos, no temperamento intelectual deste povo.
de caráter vanguardista, encontram-se textos que ainda Ninguém como ele se apropria tão prontamente
permanecem substancialmente no âmbito da estética do das novidades. Nenhum povo despersonaliza tão
Simbolismo. Todavia, para Fernando Pessoa, que projetava magnificamente. Essa fraqueza é a sua grande força.
divulgar a literatura de Orpheu no mundo anglo-saxónico, Esse não regionalismo é o seu inusitado poder. É essa
esta aparente diversidade tinha a sua origem nas próprias indefinidade de alma que o define.
características do movimento literário a que pertenciam, Quanto a derivação, pois: a enumeração das nossas origens
ou seja, o Sensacionismo. Este movimento, que ultrapassa será o primeiro elemento para qualquer coisa de parecido
e engloba o Paulismo e o Intersecionismo, nas palavras de com uma explicação integral do movimento. Descendemos
Pessoa «difere de todas as atitudes literárias em ser aberto de três movimentos mais antigos — “simbolismo francês”,
e não restrito». Na passagem transcrita a seguir, retirada o Panteísmo transcendentalista português e a baralhada
do que devia ser provavelmente uma primeira versão do de coisas sem sentido e contraditórias de que o Futurismo,
prefácio de uma antologia organizada para o público inglês, o Cubismo e outros quejandos são expressões ocasionais,
Pessoa sublinha a originalidade da literatura sensacionista embora, para sermos exatos, descendamos mais do seu
em relação à de outros movimentos literários modernos. espírito do que da sua letra […]. Derivamos do Simbolismo
«O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando francês a nossa atitude fundamental de atenção excessiva
Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Provavelmente é difícil às nossas sensações, a nossa, por conseguinte, frequente
destrinçar a parte de cada um na origem do movimento, preocupação com o tédio, a apatia, a renúncia ante as coisas
e com certeza absolutamente inútil determiná-la. O facto mais simples e mais normais da vida. Isto não nos caracteriza
é que ambos lhe deram início. a todos nós, embora todo o movimento seja impregnado
Mas cada sensacionista digno de menção é uma personalidade pela análise mórbida e acerada das sensações.
à parte, e, naturalmente, todos exerceram uma atividade Vejamos agora as diferenças. Rejeitamos por completo,
recíproca. exceto ocasionalmente, com fins puramente estéticos,
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro estão mais a atitude religiosa dos simbolistas […]. Além disso, rejeitamos
próximos dos simbolistas. Álvaro de Campos e Almada e abominamos a incapacidade simbolista de esforço
Negreiros são mais afins da moderna maneira de sentir prolongado, a sua incapacidade de escrever poemas extensos
e de escrever. Os outros são intermédios. e a sua “construção” viciada […]. Quanto às influências por
Os sensacionistas portugueses são originais e interessantes nós recebidas do movimento moderno que compreende
porque, sendo estritamente portugueses, são cosmopolitas o Cubismo e o Futurismo, devem-se mais às sugestões
e universais. O temperamento português é universal; esta, que deles recebemos do que à substância das suas obras
a sua magnífica superioridade. O ato verdadeiramente propriamente ditas. Intelectualizámos os processos.
grande da História portuguesa — esse longo período dos A decomposição do modelo que realizam (fomos
Descobrimentos — é o grande ato cosmopolita da História. influenciados não pela literatura — se é que têm algo
Cauteloso, científico, nele se grava o povo inteiro. Uma que com a literatura se pareça — mas pelos seus quadros)
literatura original, tipicamente portuguesa, não o pode ser situámo-la nós na que julgamos ser a esfera própria
porque os portugueses típicos nunca são portugueses. dessa decomposição — não as coisas, mas as nossas
sensações das coisas.»
BIOGRAFIA
A heteronímia
através da despersonalização heteronímica, Fernando Pessoa escreve em seu nome
e no de vários poetas, alberto Caeiro, Álvaro de Campos, ricardo reis. Cada um deles
possui um estilo próprio e uma particular visão do mundo.
Numa nota publicada no número 17 da revista Presença, em 1928, Pessoa distingue
de forma clara a obra pseudónima, que «é do autor em sua pessoa, salvo no nome que
assina», da obra heterónima, que «é do autor fora da sua pessoa, de uma individualidade
completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer
drama seu». Pessoa, deste modo, assimila a heteronímia à criação dramática, definindo-a
como «um drama em gente, em vez de atos».
este fenómeno de fragmentação, ou multiplicação do eu em várias personalidades
literárias, está também relacionado com a poética do fingimento, que Pessoa define
Objetos de Fernando Pessoa
em exposição (Casa Fernando numa breve composição e que se opõe à conceção da poesia, de matriz romântica,
Pessoa, Lisboa). que correspondia à expressão imediata, emocional e sincera de um sujeito.
Alberto Caeiro
alberto Caeiro, segundo os dados fornecidos por Pessoa, nasceu em 1889, em Lisboa,
mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação, ficou
órfão muito cedo e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos.
Morreu de tuberculose em 1915.
Na sua poesia manifesta-se um objetivismo radical («o único sentido íntimo das cousas
/ é elas não terem sentido íntimo nenhum») que se contrapõe a todo o género de
misticismo ou transcendentalismo. alberto Caeiro recusa qualquer tipo de pensamento
metafísico e a sua realidade é fruto daquilo que os seus sentidos apreendem: «eu não
tenho filosofia: tenho sentidos…»; «Pensar é estar doente dos olhos.»
a sua linguagem poética é profundamente antilírica e escreve em verso livre, sem qualquer almada Negreiros, Alberto Caeiro
preocupação rítmica. O léxico é essencial, a adjetivação pouco elaborada, a sintaxe resume-se (Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa).
Ricardo Reis
Fernando Pessoa informa-nos de que ricardo reis nasceu em 1887, no Porto,
foi «educado num colégio de jesuítas», é médico e «vive no Brasil desde 1919»,
já que «se expatriou espontaneamente por ser monárquico».
É um poeta de inspiração clássica para o qual, em oposição à simplicidade do seu mestre
Caeiro e à impetuosidade de Campos, a métrica é um elemento essencial e indispensável
da expressão poética. Como afirma, «a poesia é superior à prosa porque exprime não um
grau superior de emoção mas, por contra, um grau superior de domínio dela, a subordinação
do tumulto em que naturalmente se exprimiria […] ao ritmo, à rima, à estrofe».
Na sintaxe dos seus poemas é frequente o recurso ao hipérbato, ou seja, a inversão
da ordem normal das palavras, e à elipse, o que confere ao verso um peculiar andamento
rítmico, ao mesmo tempo que realça o valor de cada palavra. O léxico apresenta numerosos
latinismos, arcaísmos e, por vezes, termos utilizados com o seu significado etimológico.
a este estilo corresponde uma visão do mundo, que uma outra personagem criada por
Pessoa, o irmão, Frederico reis, define sinteticamente com as seguintes palavras: «resume-se
num epicurismo triste toda a filosofia da obra de ricardo reis […]. Cada qual de nós — opina
almada Negreiros, Ricardo Reis o poeta — deve viver a sua própria vida, isolando-se dos outros e procurando apenas,
(Faculdade de Letras dentro de uma sobriedade individualista o que lhe agrade e lhe apraz. Não deve procurar
da Universidade de Lisboa).
os prazeres violentos e não deve fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas.»
Nos versos de reis encontram-se glosados alguns dos mais conhecidos tópicos da lírica
de Horácio, a aurea mediocritas e o carpe diem, que, todavia, mais do que expressar
uma tranquila aceitação da realidade e da existência, parecem traduzir um sentimento,
moderno, de angústia e de medo perante a inevitabilidade da morte.
Não queiras, Lídia, edificar no ’spaço Não te destines, que não és futura.
Que figuras futuro, ou prometer-te Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
Amanhã. Cumpre-te hoje não ’sperando E ela de novo enchida, não te a sorte
Tu mesma és tua vida. Interpõe o abismo?
Pertencem a esta segunda fase algumas das composições mais brilhantes e notáveis
de Pessoa, como «aniversário», «Poema em linha recta», «Lisbon revisited» e, ainda,
«tabacaria».
Campos escreve, na maioria dos casos, em verso livre, que se diferencia do de Caeiro,
pela preocupação em criar um ritmo através da repetição de palavras ou sintagmas,
da pausa final de cada verso, e em conferir aos poemas uma rigorosa arquitetura.
O seu léxico é aberto aos mais variados registos linguísticos e pode afirmar-se que
com a obra de Campos a oralidade entra definitivamente na linguagem da poesia
portuguesa moderna.
a estas duas fases que seguem a evolução, digamos, natural do heterónimo,
Pessoa acrescentou outra que corresponde ao período em que Campos ainda
Comenta Pessoa: este «foi dos poemas que tenho escrito o que me deu mais que fazer,
pelo duplo poder de despersonalização que tive de desenvolver».
entre os heterónimos, Álvaro de Campos tem um estatuto diferente. Há, em primeiro
lugar, como vimos, uma evolução na sua poesia que permite delinear um trajeto
biográfico, e depois Álvaro de Campos teve até uma vida pública: colaborador
do Orpheu e do Portugal Futurista, foi um dos mais destacados expoentes da vanguarda
modernista com os seus manifestos e as suas cartas que suscitaram polémicas nos
jornais lisboetas. além disso, ele intervém inclusive na vida privada de Fernando Pessoa
obstaculizando a relação amorosa que o poeta manteve com Ofélia Queiroz. esta última,
de resto, não esconde a sua antipatia por ele: «Quando me estiveres a escrever,
o teu amigo Álvaro de Campos que não esteja ao pé de ti, ouviste? Olha, manda-o
para a Índia…»
Dissemos que devemos chamar canção a um poema que contém emoção para parecer que
nele se está cantando. Não se pode cantar o que é longo; não se pode cantar o que é duro;
não se pode cantar o que é rígido e formal. Por isso a canção exclui o poema longo, exclui
o poema satírico, exclui o epigrama e todo o poema que se serve de uma forma rígida como,
por exemplo, o soneto […]. Não pode chamar-se canção o que exclui o elemento musical.
Por isso não pode chamar-se canção a um poema em verso irregular ou livre, nem a um poema
onde não haja rima.
São também assinados pelo ortónimo os poemas em língua inglesa não atribuídos
a alexander Search e, finalmente, o único livro de poesia em língua portuguesa que
publicou em vida: Mensagem. trata-se de um livro complexo, uma interpretação mítica
da história e do destino de Portugal, que obedece a uma estrutura tripartida de inspiração
esotérica.
a primeira parte («Brasão»), dividida nos cinco elementos que formam o brasão
(Os Campos, Os Castelos, as Quinas, a Coroa, O timbre), repercorre, através
da evocação de uma série de figuras históricas ou lendárias (como Ulisses), a história
de Portugal até à formação do Império.
a segunda parte, que tem por título «Mar Português», reúne doze poemas dedicados
à época dos Descobrimentos, que celebram os feitos dos navegadores portugueses,
Frontispício de Mensagem relembrando o arrojo, o esforço e a dor que implicaram. a última parte («O encoberto»),
(Biblioteca Nacional). a obra
inicialmente era para ter o título dividida em Os Símbolos, Os avisos e Os tempos, trata do destino que aguarda
Portugal. a nação portuguesa.
O esoterismo
Na obra de Fernando Pessoa ortónimo, o esoterismo ocupa um lugar de destaque.
São numerosas as páginas que o autor deixou sobre o assunto. Entre os vários poemas
de tema esotérico consta «O último sortilégio», publicado na revista Presença, n.º 29,
em dezembro de 1930.
Já repeti o antigo encantamento, Já as sacras potências infernais,
E a grande Deusa aos olhos se negou. Que, dormentes sem deuses nem destino,
Já repeti, nas pausas do amplo vento, A substância das coisas são iguais,
As orações cuja alma é um ser fecundo. Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou. A música partiu-se do meu hino.
Só o vento volta onde estou toda e só, Já meu furor astral não é divino
E tudo dorme no confuso mundo. Nem meu corpo pensado é já um deus.
Outrora meu condão fadava as sarças […]
E a minha evocação do solo erguia Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Presenças concentradas das que esparsas Tu, Lua, cuja prata converti,
Dormem nas formas naturais das coisas. Se já não podeis dar-me essa beleza
Outrora a minha voz acontecia. Que tantas vezes tive por querer,
Fadas e elfos, se eu chamasse, via, Ao menos meu ser findo dividi —
E as folhas da floresta eram lustrosas. Meu ser essencial se perca em si.
Minha varinha, com que da vontade Só meu corpo sem mim fique alma e ser!
Falava às existências essenciais, Converta-me a minha última magia
Já não conhece a minha realidade. Numa estátua de mim em corpo vivo!
Já, se o círculo traço, não há nada. Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Murmura o vento alheio extintos ais, Anónima presença que se beija,
E ao luar que sobe além dos matagais Carne do meu abstrato amor cativo,
Não sou mais do que os bosques ou a estrada. Seja a morte de mim em que revivo;
[…] E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!
O Livro do Desassossego
a publicação, nos anos 80, do Livro do Desassossego, foi um verdadeiro acontecimento.
a revelação desta ulterior faceta do autor descobriu de improviso um dos maiores prosadores
do século XX. autor deste diário íntimo é Bernardo Soares, que Pessoa define como
um semi-heterónimo, pela razão que «não sendo a personalidade a minha, é, não diferente
da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade».
Pessoa não chegou a dar uma estrutura definitiva ao Livro do Desassossego, por este SABIA QUE…
motivo. Depois da edição organizada por Prado Coelho, saíram as de antónio Quadros,
teresa Sobral Cunha e richard Zenith, que divergem na sequência em que são
apresentados os textos, por obedecerem a critérios editorais diferentes. Contos policiais
Pessoa teve sempre, desde
os tempos da África do
Sul, um grande interesse
LEITURA
pela ficção policial. Numa
primeira fase projetou
Bernardo Soares vários contos em inglês
Neste breve trecho temos a descrição física de Bernardo Soares. atribuindo-os a Horace
James Faber. Mais tarde
«Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado
criou a personagem
exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo
do Dr. Quaresma. Planeava
não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento
publicar uma série de
não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava —
volumes, mas não chegou
parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que
a concluir nenhum dos
provém de ter sofrido muito. Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça.»
contos esboçados.
BIOGRAFIA
Poesia
a poesia foi a primeira forma de expressão literária cultivada por Mário de Sá-Carneiro,
como documenta a obra Poemas Juvenis, editada em 1986 e composta por um grupo
de poemas que o jovem autor anotara num caderno. todavia, a partir de certa altura,
abandonou a lírica para se dedicar ao teatro e, sobretudo, à ficção. a sua estreia literária
dá-se com a peça Amizade (1912), escrita em colaboração com tomás Cabreira Junior.
O regresso à escrita poética acontece em Paris, no dia 1 de maio de 1913 e de forma
inesperada, como o próprio autor narra numa carta dirigida a Fernando Pessoa. estava ele
sentado na esplanada de um café, «quase a dormir, num aborrecimento atroz, com a cabeça
esvaída», quando de repente começou «a escrever versos, mas como que automaticamente».
ao reler as quadras que compusera achou-lhes «um sabor especial, monótono […] boa
tradução do estado sonolento, maquinal, em que escrevera esses versos». No dia seguinte
completou o poema, desta vez «num estado normal e refletidamente». No fim, envia-os ao
amigo, a quem pedia um juízo franco, acrescentando que aqueles versos marcavam «bem
o ritmo amarfanhado» da sua alma, «o sono (não o sonho — o sono) em que muitos dias» vivia.
O poema que acabava de escrever era um dos doze textos que integraria o volume
Dispersão, editado em 1914. O livro descreve uma viagem interior que vai da «Partida»
(«saltar na bruma», «correr no azul à busca da beleza») à «Queda» («eu morro de desdém
em frente dum tesoiro»), passando por momentos de exaltação nessa busca do ideal
(a consciência de ser diferente e de ter um destino «alto e raro») e momentos de desencanto
quando o eu lírico se apercebe de que lhe faltou sempre algo para atingir o que almejava:
Prosa
ainda estudante de Liceu, colabora na revista Azulejos com oito breves narrativas e,
em 1912, publica o volume de contos Princípio, onde se encontram em esboço alguns
temas desenvolvidos nas obras da maturidade: a novela A Confissão de Lúcio, editada
em 1914, e os contos reunidos em Céu em Fogo (1915).
Há uma estreita relação entre a poesia e a prosa de Mário de Sá-Carneiro, quer no plano da
linguagem quer no plano temático. este último aspeto explica a sua predileção pelo género
fantástico, praticado segundo módulos decadentistas, que se lhe devia afigurar como
a forma mais adequada e eficaz para ficcionar motivos como o desdobramento do eu.
Com efeito, o tema do duplo, que em geral representa o que foi recalcado, tem uma longa
tradição no fantástico oitocentista e deu origem a brilhantes e famosos textos narrativos como
o conto de edgar allan Poe, «William Wilson», e os romances The strange case of Dr. Jekill and
mister Hyde, de robert Louis Stevenson, e O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.
Na ficção de Mário de Sá-Carneiro, na qual são frequentes os motivos autobiográficos,
o duplo está associado a algumas fantasias e desejos paradoxais que desafiam as leis Frontispício de Dispersão
que regem a natureza humana e física, e por vezes configura-se como a projeção de um (Biblioteca Nacional).
pensamento, quase uma obsessão do próprio autor, que encontramos descrito nestes
termos numa carta a Fernando Pessoa: «O que eu desejo, nunca posso obter nem possuir,
porque só o possuiria sendo-o.»
LEITURA
BIOGRAFIA
Obra
A primeira fase da obra literária de Almada Negreiros, que vai de 1915 a 1917, coincide
com a afirmação do Modernismo. Colabora no primeiro número da revista Orpheu
com um conjunto de breves poemas em prosa, «Frizos», ainda marcados pela estética
simbolista. «A cena do ódio» que escreveu para o terceiro número da revista é uma longa
composição em verso livre que o autor assina como «poeta sensacionista e Narciso do
Egito». Nela, a sátira une-se à provocação e a um egocentrismo exacerbado. Na parte final
acumulam-se, torrencialmente, as invetivas contra o burguês, encarnação de tudo aquilo
que a vanguarda rejeita:
Há vários pontos de contacto entre este poema e os textos de intervenção pública que
o autor escreve na mesma altura. Com efeito, Almada Negreiros, com uma coerência
que o demarca dos outros modernistas, identifica-se plenamente com a vanguarda
futurista. Por um lado, no plano especificamente criativo, procura novas linguagens
expressivas através de uma experimentação ousada quer na poesia, como nos poemas
«Litoral» e «Mima-fataxa» em verso livre e com peculiares soluções gráficas, quer na prosa,
com os textos K4 o Quadrado Azul e Os saltimbancos (contrastes simultâneos). Por outro,
desenvolve uma atividade de intervenção pública, que agita e escandaliza o meio social
e político.
LEITURA
A flor
Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se
no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direção, outras noutras;
umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança
quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração
para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas
dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas
as linhas com que Deus faz uma flor!
Contexto político
a 28 de maio de 1926, um golpe militar liderado pelo general Gomes da Costa, antigo
combatente da Primeira Guerra Mundial, substituiu a Primeira república por uma ditadura
militar, que culminou no estabelecimento do estado Novo, regime autoritário que se
manteria até à revolução do 25 de abril de 1974.
a 27 de abril de 1928, antónio de Oliveira Salazar torna-se ministro das Finanças.
em 1932, e após ganhar progressivamente um prestígio crescente a nível político, este antigo
professor da Faculdade de Direito de Coimbra torna-se Presidente do Conselho de Ministros.
a aprovação, em 1933, da Constituição Política da república Portuguesa marca o início do
regime do estado Novo.
À semelhança do que sucedeu noutros regimes autoritários da europa, como o de Benito
Mussolini, em Itália, o de Francisco Franco, em espanha, ou o de adolf Hitler, na alemanha,
este sistema político de moldes fascistas centrava-se na figura do líder, razão pela qual Salazar
antónio de Oliveira Salazar. era encarado como «salvador da pátria». além disso, apoiava-se num modelo de partido
único: a União Nacional, que passou a designar-se, em 1970, e já sob o comando de Marcelo
Caetano, acção Nacional Popular.
Muito embora se realizassem eleições, estas eram, à partida, comprometidas pela perseguição
movida aos partidos da oposição. O Partido Comunista Português, por exemplo, foi obrigado
a sobreviver na clandestinidade. além disso, os resultados eleitorais eram sempre
manipulados, de modo a dar a vitória ao candidato ou à lista apoiados pela União Nacional.
O caso mais flagrante sucedeu nas eleições presidenciais de 1958, em que Humberto
Delgado, que ficou conhecido como «o general sem medo», se candidatou à Presidência da
república como opositor a américo tomás, que era apoiado pela União Nacional. Quando
interrogado sobre que medidas tomaria em relação a Salazar caso fosse eleito, Humberto
Delgado não hesitou em proferir uma frase que se tornou histórica: «Obviamente, demito-o.»
apesar da enorme adesão popular que a sua candidatura gerou, visível nas manifestações
públicas de apoio de que foi alvo, Humberto Delgado acabou, como seria de esperar,
por ser derrotado num processo eleitoral fraudulento.
O general exilou-se, primeiro no Brasil e depois na argélia, nunca desistindo, no entanto,
de lutar contra a ditadura. em 1965, foi atraído pela PIDe a uma emboscada em espanha,
onde foi assassinado, juntamente com a sua secretária. O Governo português negou,
na época, qualquer envolvimento na sua morte.
a PIDe (Polícia Internacional de Defesa do estado) foi um dos pilares fundamentais nos
quais se apoiou o regime do estado Novo. Foi criada em 1945, sucedendo à PVDe
(Polícia de Vigilância e de Defesa do estado), mas mantendo, no geral, os seus objetivos
e métodos violentos de atuação. a função desta polícia política era reprimir qualquer
oposição ao regime do estado Novo. Para tal, recorria à tortura e à prisão, tendo ficado
célebres as prisões de Caxias e de Peniche. alguns presos políticos foram enviados para
o Campo do tarrafal, em Cabo Verde, onde muitos acabavam por morrer em virtude
Sede da PIDe em Lisboa. das terríveis condições de detenção ou das pesadas punições a que eram submetidos.
A revista Presença
O primeiro volume da revista Presença foi publicado em março de 1927, em Coimbra.
Da sua direção faziam parte Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões e José régio,
tendo sido este último o único a desempenhar esta função até ao fim. Foram publicados
cinquenta e seis números da revista até à sua extinção, em 1940.
De entre os seus colaboradores, destacam-se adolfo Correia da rocha, mais conhecido
pelo pseudónimo de Miguel torga, edmundo de Bettencourt, Vitorino Nemésio, João
Gaspar Simões, antónio Botto, Irene Lisboa, adolfo Casais Monteiro, Mário Dionísio
e os brasileiros Cecília Meireles e Manuel Bandeira.
Como é anunciado no seu subtítulo (Folha de Arte e Crítica), a par da publicação de
textos literários, esta revista privilegiava a crítica textual. Foi neste âmbito que teve
um contributo fundamental na divulgação da obra dos principais autores do Primeiro
Capa da revista Presença. Modernismo: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e almada Negreiros.
O seu programa estético-literário é apresentado por José régio no
primeiro número, num artigo intitulado «Literatura viva». De acordo
com este autor, a literatura deveria libertar-se do academismo e do
exagerado gosto pela retórica em que se encontrava mergulhada,
através da valorização da originalidade e da sinceridade. O grupo
da Presença valorizava assim o movimento introspetivo no processo
de criação literária, na medida em que, através dele, seria possível
ao escritor desvendar aquilo que estava oculto no seu inconsciente
e, desta forma, expressar-se com o máximo de autenticidade.
em 1930, três colaboradores da Presença afastar-se-ão do grupo:
adolfo rocha, edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca,
substituído na direção por adolfo Casais Monteiro. estes afirmam,
Casa-Museu José régio, em carta aberta publicada nesse ano, que, apesar de a Presença
em Vila do Conde. fazer a apologia de liberdade, havia, na revista, uma certa limitação ao exercício
da autonomia. Na verdade, é possível que este afastamento se tenha ficado a dever
a incompatibilidades pessoais.
apesar das polémicas em que esteve envolvida, a Presença teve um papel fundamental
na divulgação da literatura e da arte em Portugal. Com efeito, além de ter contribuído
decisivamente para a consagração dos elementos do Orpheu, deu a conhecer,
em Portugal, a obra de autores estrangeiros, como andré Gide, Paul Valéry e Marcel
Proust. teve ainda relevo na valorização da pintura, da música e do cinema da época.
José Régio
(1901-1969)
Um dos autores que mais se destacaram no grupo da Presença foi José régio.
De seu verdadeiro nome José Maria dos reis Pereira, nasceu em Vila do Conde, mas
José régio. viveu grande parte da sua vida em Portalegre. Cursou Filologia românica em Coimbra,
Miguel Torga
(1907-1995)
Muito embora Miguel torga se tivesse afastado do grupo da Presença em 1930, este inicia
estátua de Miguel torga
a sua produção poética no seio do grupo, ainda com o seu verdadeiro nome, adolfo (Parque dos Poetas, Oeiras).
rocha.
De origens transmontanas humildes, começa por trabalhar como serviçal numa casa.
Passa depois um curto período no seminário, em Lamego, partindo, em seguida, SABIA QUE…
para o Brasil, onde vive durante cinco anos na companhia de um tio, em Minas Gerais.
regressa a Portugal e matricula-se na Universidade de Coimbra, onde se forma
Os nomes de Torga
em Medicina.
Com o seu pseudónimo,
a sua vasta obra reparte-se pela poesia, pela prosa ficcional e autobiográfica, pelo Miguel Torga homenageia
texto dramático e pelo ensaio. entre a sua produção poética, contam-se títulos como Miguel de Cervantes
O Outro Livro de Job (1936), Libertação (1944), Odes (1946), Nihil Sibi (1948), Cântico e Miguel de Unamuno,
do Homem (1950), Orfeu Rebelde (1958) e Poemas Ibéricos (1965). também no escritores ilustres da
Diário (1941-93) é possível encontrar alguns dos seus poemas mais importantes. literatura espanhola, assim
Miguel torga publicou, em vida, uma antologia de poesia, intitulada Antologia poética, como a torga, arbusto
em 1981. Mais recentemente, foi editado um volume no qual se encontra reunida toda da montanha, que tem
a sua poesia: Poesia Completa (2000). a nível da prosa, salientam-se as coletâneas a capacidade de
de contos Bichos (1940), Contos da Montanha (1941) e Novos Contos da Montanha (1944). sobreviver e florir em
condições adversas.
Miguel torga é autor de uma obra de caráter autobiográfico, intitulada A Criação
Como médico
do Mundo (1937-81). a nível dramático, destacam-se as peças Terra Firme e Mar
otorrinolaringologista,
(ambas de 1941). o escritor manteve
É possível apontar como principais linhas temáticas da sua poesia: a exaltação o nome Adolfo Rocha,
da liberdade absoluta do Homem, que deve levá-lo a erguer-se contra tudo aquilo tendo-se tornado conhecido
que lhe é imposto, ainda que isto implique revoltar-se contra Deus; a valorização o seu consultório, onde
do sonho e da luta para o alcançar, um meio de dignificação do Homem; a revolta contra trabalhava, na cidade
as injustiças; a reflexão sobre o poeta e a poesia; a introspeção e a comunhão com de Coimbra.
a Natureza.
Seara Nova
a revista Seara Nova foi publicada pela primeira vez em Lisboa, em outubro de 1921.
Faziam parte da sua direção aquilino ribeiro, augusto Casimiro, Faria de Vasconcelos,
Ferreira de Macedo, Francisco antónio Correia, Jaime Cortesão, José de azeredo Perdigão,
Câmara reys, raul Brandão e raul Proença. Mais tarde, desempenharam também estas
funções antónio Sérgio, augusto abelaira, rodrigues Lapa, entre outros.
Os objetivos desta publicação são apresentados no editorial do primeiro volume:
o grupo de intelectuais que participava na Seara Nova assumia-se como independente
de partidos políticos, mas não alheado da política, pretendendo refletir criticamente
sobre o nosso país e assumir-se como uma voz interventiva, com o objetivo de renovar
a sociedade.
a par de artigos sobre temáticas diversas, a Seara Nova teve um papel fundamental
Capa da revista Seara Nova. no campo da literatura não apenas através da publicação de textos e de ensaios sobre
autores portugueses e estrangeiros na revista, mas também de uma importante
atividade editorial.
Aquilino Ribeiro
(1885-1963)
apesar de ter estudado em colégios religiosos e de ter ingressado no seminário
de Beja, aquilino ribeiro, oriundo do distrito de Viseu, não envereda pela vida eclesiástica.
em 1906, abandona o seminário, indo para Lisboa, onde adere aos ideais republicanos.
É nesse contexto que se dá o rebentamento de explosivos no seu quarto, quando
dois dos seus companheiros os manipulavam. ambos morrem e aquilino ribeiro
é preso na esquadra do Caminho Novo, de onde se evade. Decide então partir
para o exílio, fixando-se em Paris. Começa a estudar na Sorbonne e publica o seu
primeiro livro de contos: O Jardim das Tormentas (1913).
regressa definitivamente a Portugal, após o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914.
apesar de não ter concluído a licenciatura, leciona no Liceu Camões. em 1919, passa
a desempenhar as funções de segundo-bibliotecário na Biblioteca Nacional. em 1927,
é acusado de participar na revolução de Fevereiro, fugindo para Paris. No entanto,
regressa clandestinamente. Participa na conspiração militar de Pinhel contra a ditadura
e é novamente preso, conseguindo evadir-se de forma verdadeiramente extraordinária:
aquilino ribeiro.
serra as grades do cárcere, enquanto uma grafonola toca, para abafar o som. Volta
para Paris, mudando-se, em 1931, para a Galiza. regressa, novamente, a Portugal, onde
vive ilegalmente até ser amnistiado. em 1956, torna-se o primeiro presidente
da associação Portuguesa de escritores.
esta vida rica e aventurosa deixou marcas na sua vastíssima obra, composta por mais
de sessenta volumes, dos quais se destacam: Terras do Demo (1919), Andam Faunos
pelos Bosques (1926), O Malhadinhas (inserto pela primeira vez em Estrada de Santiago,
de 1922, e depois ampliado), S. Banaboião Anacoreta e Mártir (1937), A Casa Grande
LITERATURA E ARTE
O Neorrealismo na prosa
apesar de as principais características do Neorrealismo terem sido já apontadas
a propósito da poesia, os objetivos deste movimento coadunavam-se sobretudo com
a ficção. assim, esta nova referência tem como fim delinear as relações do Neorrealismo
com a prosa.
Como foi referido, o Neorrealismo foi um movimento, impulsionado por ideais marxistas,
que se desenvolveu entre os anos 30 e 50 em Portugal. a publicação de Gaibéus, de alves
redol, em 1939, é considerada um marco decisivo na introdução do Neorrealismo
no nosso país. a epígrafe inicial deste romance ilustra claramente os objetivos deste
movimento: «este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte.
Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no ribatejo. Depois disso,
será o que os outros entenderem.»
Capa de Gaibéus, de alves redol.
através destas palavras, é possível verificar que o Neorrealismo dava primazia, acima
de tudo, ao conteúdo da obra literária, na medida em que este permitiria divulgar os
seus pressupostos ideológicos, com recurso ao retrato da realidade. Para atingir os
seus objetivos, a ação da maioria das obras neorrealistas ocorre em ambiente rural,
principalmente no latifúndio, de modo a realçar a exploração dos trabalhadores.
a nível da ficção, destacaram-se, além de alves redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel
da Fonseca, Carlos de Oliveira e Vergílio Ferreira. este último autor, depois de publicar
obras de cariz neorrealista, os romances Onde Tudo Foi Morrendo (1944) e Vagão «J» (1946),
afasta-se do movimento. Quanto a Carlos de Oliveira, apesar de aderir aos pressupostos
ideológicos do Neorrealismo, nunca abdica da individualidade da sua obra, que
é claramente marcada, entre outros aspetos, por um exigentíssimo trabalho a nível
formal. até o próprio alves redol, nas suas últimas publicações, nomeadamente em
Barranco dos Cegos (1962), considerada a sua obra-prima, evidencia claramente uma
preocupação com a dimensão estética e técnica da narrativa.
Carlos de Oliveira
(1921-1981)
Carlos de Oliveira foi um dos autores mais importantes do Neorrealismo. a sua relevância
a nível da poesia é igualada pelo seu trabalho na prosa. Na verdade, os seus romances são
considerados emblemáticos quando se fala de Neorrealismo, como um exemplo
de destaque na expressão deste movimento em Portugal.
as suas duas primeiras obras enquadram-se já no contexto do Neorrealismo: Casa na
Duna (1943) e Alcateia (1944). Segue-se-lhes o romance Pequenos Burgueses, publicado
em 1948. em Uma Abelha na Chuva (1953), apesar de assistirmos à degradação do mundo
burguês da Gândara, é, no entanto, visível um afastamento deste movimento, entre
outros aspetos, pelo aprofundamento da dimensão psicológica das personagens.
a este nível, destaca-se a figura de D. Maria dos Prazeres, na qual se conjugam a solidão
e a revolta reprimida inerentes a uma vida profundamente infeliz.
À exceção de Alcateia, que será renegado por Carlos de Oliveira, muito embora
tenha sido também reeditado com alterações em 1945, quase todos os outros
romances voltarão a ser publicados com alterações. este processo de aperfeiçoamento
contínuo, no qual o autor envolve também a sua obra poética, é revelador de uma
exigência estética que o afasta do Neorrealismo. em 1978, é publicado o seu último
romance, com o título Finisterra. Paisagem e Povoamento, no qual a paisagem da Gândara,
omnipresente tanto na sua obra ficcional como poética, perde substância e se torna um
meio de refletir sobre os problemas da representação da realidade.
De referir ainda a obra O Aprendiz de Feiticeiro (1971, com edição corrigida em 1979),
na qual se reúnem textos de diferentes géneros, como, por exemplo, de reflexão sobre
a escrita ou de caráter autobiográfico.
LITERATURA E ARTE
Vergílio Ferreira
(1916-1996)
Vergílio Ferreira nasceu em Melo, uma aldeia do concelho de Gouveia, próxima
da serra da estrela, espaço que deixará marcas importantes na sua obra. Dos 10 aos 16 anos,
frequentou o Seminário do Fundão, experiência negativa mais tarde ficcionada no
romance Manhã Submersa (1954). Depois de abandonar o seminário, ingressa no Liceu da
Guarda, inscrevendo-se, em seguida, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
onde termina a licenciatura em Filologia Clássica.
torna-se professor e, depois de alguns anos a lecionar em Faro e em Bragança,
é colocado em Évora, onde permanece durante catorze anos. esta época no alentejo
vai ser importante na sua obra. Será Évora o cenário de um dos seus romances mais
emblemáticos: Aparição, de 1959. a paisagem do campo alentejano e a sua ligação com
as personagens estará presente na narrativa. Vergílio Ferreira fixou-se posteriormente
em Lisboa, onde lecionou no Liceu Camões.
Vergílio Ferreira.
Numa fase inicial, as obras deste autor enquadram-se na estética do Neorrealismo,
sobretudo as que se seguiram ao seu volume de estreia: Onde Tudo Foi Morrendo (1944)
e Vagão «J» (1946).
Mais tarde, no entanto, Vergílio Ferreira distancia-se deste movimento, demonstrando
um interesse crescente pela filosofia existencialista e pelo «nouveau roman». esta nova
modalidade de romance pretendia refletir, através da sua própria estrutura, o caos
do mundo contemporâneo, pondo em causa a possibilidade de representação do real.
Quanto ao existencialismo, manifesta-se, sobretudo, a partir de Aparição.
Nesta obra, o protagonista, no sentido do que é teorizado por esta corrente filosófica,
é confrontado com a «morte de Deus», proclamada por Nieztsche, assumindo-se como
indivíduo totalmente livre e, consequentemente, como ser inteiramente responsável
pelos seus atos. a necessidade de exercer adequadamente este poder leva-o a tentar
descobrir quem é, processo de autognose que lhe é proporcionado através de uma série de
aparições; daí o título da obra. O confronto com o mistério maravilhoso que habita dentro
de si leva-o a aperceber-se do valor intrínseco de cada ser, do caráter supremo da vida e, por
conseguinte, do absurdo da morte, que é representado pela personagem de Cristina.
a arte, materializada na música, assume neste romance um papel fundamental,
na medida em que, na ausência de Deus, é ela que permite ao Homem reencontrar,
de alguma forma, uma ligação ao transcendente e à eternidade.
a problematização da condição humana, da vida, da morte e da arte prolongar-e-á nos
romances que se seguem, na medida em que a obra deste autor é feita de uma interrogação
constante centrada nestes temas. esta necessidade de questionar permanentemente
a realidade levou o próprio Vergílio Ferreira a utilizar a designação «romance-ensaio».
LITERATURA E ARTE
Manhã Submersa
O romance Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira, foi adaptado ao cinema por Lauro António,
tendo o filme estreado em 1980.
O próprio Vergílio Ferreira participou no filme como ator, desempenhando o papel
de reitor do seminário.
LITERATURA E ARTE
Agustina Bessa-Luís
(1922)
agustina Bessa-Luís nasceu no seio de uma família de proprietários rurais oriundos
da zona de entre Douro e Minho, espaço e realidade que deixariam marcas importantes
nos seus textos.
LITERATURA E ARTE
Nuno Bragança
(1929-1985)
Nuno Bragança deixou uma obra que se destacou no panorama da literatura portuguesa
do século XX, sobretudo pelo romance com que se estreou, em 1969: A Noite e o Riso.
esta obra assemelha-se a um tríptico, na medida em que se estrutura em três partes,
denominadas painéis.
No primeiro painel, é apresentada a evocação de uma infância marcada por ambiente
familiar e escolar opressores, num discurso marcado por uma profunda ironia.
No segundo painel, é traçado o retrato da noite lisboeta, na qual o protagonista
se movimenta. É também narrada a história da sua relação amorosa com Zana bem como
o seu percurso de aprendizagem da escrita. No terceiro painel, acentua-se o caráter
fragmentário da narrativa, já presente, ainda que com menos intensidade, nos painéis
anteriores, instituindo-se estes textos como um enorme desafio ao leitor.
em 1977, é publicado outro romance deste autor: Directa. Neste, como é anunciado Nuno Bragança.
pelo título, o protagonista faz uma direta, tentando conciliar as diversas vertentes
de uma vida demasiadamente preenchida: a necessidade de internar uma esposa
marcada pela alienação, de deixar os filhos em casa dos avós e de levar até à fronteira
um homem em perigo, em virtude da sua oposição ao regime do estado Novo.
apesar de não ser tão inovador como A Noite e o Riso, trata-se, ainda assim, de um
romance muito interessante.
Nuno Bragança publicou ainda Square Tolstoi (1981) e uma coletânea de contos,
intitulada Estação (1984). após a sua morte, foi editada a novela O Fim do Mundo (1990),
obra inacabada.
A evolução do teatro
desde a Presença até 1974
De entre o grupo da Presença, a figura que mais se destacou no teatro e o seu único
teorizador foi José régio. este autor estreou-se como dramaturgo em 1934, com Três
Máscaras. Segue-se-lhe Jacob e o Anjo (1937), Benilde ou a Virgem-Mãe (1947),
El-Rei Sebastião (1951) e A Salvação do Mundo (1954).
No âmbito do Neorrealismo, é de salientar a produção de alves redol, composta pelas
peças: Maria Emília (1946), Forja (de 1948, proibida pela Censura e apenas representada
em 1969, pois nela era simbolicamente apresentada uma reflexão crítica sobre o mundo
da época), O Destino Morreu de repente (1967) e Fronteira Fechada (obra publicada
postumamente, em 1972). Outro nome que se destacou nesta época foi romeu Correia.
Muito embora este autor nunca se tivesse submetido aos princípios do Neorrealismo,
a sua obra revela afinidades com este movimento, pela incidência na temática social
e pelo facto de se centrar em cenários de recorte neorrealista. entre as suas peças
de teatro, contam-se Casaco de Fogo (1956), O Vagabundo das Mãos de Ouro (1960)
e Jangada (1963), entre outras.
a nível do Surrealismo, a obra dramática de maior relevo é assinada por Natália Correia.
Depois de se estrear, em 1957, com o poema dramático O Progresso de Édipo, publica,
em 1964, O Homúnculo, sátira feroz a Salazar. Segue-se-lhe Pécora, em que é feita
uma violenta crítica à Igreja. apesar de escrita em 1966, foi apenas publicada em 1983.
em O Encoberto (1969), é abordado o mito de D. Sebastião e Erros Meus, Má Fortuna,
Amor Ardente (1982) centra-se na figura de Camões.
a partir dos anos 50, e graças à influência de Samuel Beckett, eugène Ionesco, Harold
Pinter e Jean Genet, é divulgado no nosso país o teatro do absurdo, no qual se reflete
sobre o sem-sentido da condição humana. Neste âmbito, destacaram-se os nomes de:
Jaime Salazar Sampaio, com títulos como O Pescador à Linha (1961), Nos Jardins do Alto
Maior (1962), entre outros; Norberto Ávila, cuja obra se encontra reunida com o título
de Teatro Completo (1997-2005); e Helder Prista Monteiro, autor, por exemplo
de A Bengala (1972) e A Caixa (1980). Nesta época, é de salientar também a produção
de Jorge de Sena, cujas peças estão ligadas ao teatro do absurdo, apresentando também
traços de Surrealismo. De entre a sua obra dramática, destaca-se a sua peça de estreia:
Indesejado, António, Rei (1951).
O teatro épico de Brecht terá fortes implicações a nível da produção dramática em
Portugal nos anos 60. este autor considerava que o teatro tinha uma função didática,
devendo levar o público a refletir sobre uma dada situação histórica, que, ao ser colocada
em paralelo com o presente, lhe permitiria posicionar-se criticamente face à sociedade
do seu tempo. Para que o espectador mantivesse esta atitude crítica, era necessário
impedir que ele criasse qualquer tipo de empatia com as personagens, o que passava
pelo recurso a mecanismos que provocassem o seu distanciamento da ação.
estátua de Natália Correia O Render dos Heróis (1960), de José Cardoso Pires, foi uma obra decisiva na introdução
(Parque dos Poetas, Oeiras). do teatro épico em Portugal. a ação, centrada na revolta da Maria da Fonte, ocorrida
Brecht terá também grande influência na obra dos dois autores que mais se destacaram
na produção teatral anterior a 1974: Bernardo Santareno e Luís de Sttau Monteiro. Teatro aristotélico
vs teatro épico
José Saramago
(1922-2010)
apesar de se ter iniciado na escrita como poeta (Os Poemas Possíveis, 1966),
José Saramago virá a consagrar-se pelas suas obras de ficção. após mais dois
volumes de poesia, Provavelmente Alegria (1970) e O Ano de 1993 (1975), é editada
uma coletânea de contos do autor, intitulada Objecto Quase (1977).
apesar de ter publicado um primeiro romance em 1947 (Terra do Pecado), o autor
renegou esta obra durante muito tempo. Só trinta anos mais tarde sai um novo romance,
Manual de Pintura e Caligrafia (1977). Neste, através da narração do percurso de um pintor
que se começa a dedicar à escrita, é apresentada uma interessante reflexão sobre a arte
e a responsabilidade do artista na sociedade.
José Saramago. Na década de 1980, Saramago começa a ganhar um lugar de destaque na literatura
portuguesa, graças à publicação de Levantado do Chão (1980). Neste romance é-nos
narrada a história de uma família alentejana e relata-se a exploração a que o povo estava
sujeito nesta zona de latifúndios antes da revolução do 25 de abril.
em 1982, sai Memorial do Convento, romance que leva José Saramago a afirmar-se
definitivamente como um dos mais importantes escritores nacionais. Na obra, é traçado
o retrato da sociedade portuguesa na segunda metade do século XVIII, à época
da construção do Convento de Mafra. No entanto, como é característico
do Pós-Modernismo, assistimos a uma reescrita da história, que não se centra
nas figuras consagradas pelo discurso historiográfico oficial, mas sim na massa anónima
que participou na construção do monumento.
Os protagonistas são: Baltasar, um soldado maneta; Blimunda, uma rapariga que, sendo
filha de uma feiticeira, tem o dom de ver o interior das pessoas, e o padre Bartolomeu
Lourenço de Gusmão, que tem o sonho de construir uma passarola voadora e de se
elevar nos ares. a pedido do sacerdote, Blimunda usará o seu poder para recolher
o elemento que permitirá ao seu invento voar: a vontade dos homens.
a par desta alegoria, reveladora do poder da Humanidade, destaca-se a belíssima
história de amor vivida por Baltasar e Blimunda, apelidados, respetivamente, de Sete-Sóis
e Sete-Luas, e o retrato dos profundos contrastes que marcavam a sociedade da época.
em relação a este aspeto é denunciada a exploração a que estavam sujeitas as classes
mais baixas.
LITERATURA E ARTE
LEITURA
LEITURA
No excerto que se segue de Cão Velho entre Flores, o protagonista evoca o seu avô, uma
das figuras que marcaram a sua infância e uma personagem muito tocante pela sua
singularidade.
«Perguntei ao meu avô:
— Avô, que é um artista?
— Ora aí está uma pergunta a que não sei responder.
O meu avô estava sentado sobre as raízes expostas do velho carvalho da calçada e havia sol,
breve.
— O meu pai é um artista.
— O teu pai é um bom homem: é o chefe nominal de uma família empobrecida e gosta
de sonhar.
— Sonhar é ser artista?
— Chamam-me sonhador — disse o avô.
— Então o avô também é um artista?
— Lá me vou defendendo.
Coçou as partes, repousadas sobre as raízes expostas, e reparei que nesse sítio das calças
havia uma grande mancha amarela.
— Que mancha é essa?
— É a mancha de um sol velho — disse o meu avô.»
Teolinda Gersão
(1940)
teolinda Gersão licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra em 1963. Foi leitora de Português na Universidade técnica
de Berlim, tendo posteriormente desempenhado funções de docente na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa. Mais tarde, passou a lecionar na Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde se tornou professora
catedrática. ensinou Literatura alemã e Literatura Comparada até 1995, ano em que se
aposentou, passando a dedicar-se exclusivamente à escrita. teolinda Gersão.
LEITURA
Um dos contos mais belos de Histórias de Ver e Andar é «A velha», narrativa de que se
transcreve o início.
«A velha era felicíssima. Pois não é verdade que tinha uma boa vida e nada lhe faltava?
Só nessa manhã tinha encontrado um lugar vago num banco de jardim, nem demasiado
à sombra nem demasiado ao sol, o elétrico não vinha excessivamente cheio e também
conseguiu lugar, o padeiro disse-lhe bom dia com um ar tão simpático, quando ela deixou
em cima do balcão o dinheiro de três carcaças, e o empregado da mercearia ficou a
conversar depois de lhe dar o troco e perguntou-lhe se gostava daquela nova marca de café.
O mal de muita gente era não saber dar o devido valor às coisas. A maioria esbanjava tempo
e felicidade, da mesma forma que esbanjava dinheiro. Se se fosse a ver, poucos sabiam
aproveitar o que tinham.»
Mário Cláudio
(1941)
Mário Cláudio é o pseudónimo de rui Manuel Pinto Barbot Costa. Licenciado em Direito
pela Universidade de Coimbra, concluiu posteriormente o curso de bibliotecário-
-arquivista. realizou uma pós-graduação na Universidade de Londres, tendo obtido
o grau de Masters of Arts in Library and Information Studies.
a sua vasta obra reparte-se pela ficção, pela poesia, pelo teatro e pelo ensaio. É também
autor de traduções. a nível da poesia, editou Ciclo de Cypris (1969), Sete Solstícios (1972)
e Dois Equinócios (1996), entre outras. entre os seus textos dramáticos, contam-se Noites
de Anto (1988), sendo que a figura de antónio Nobre foi alvo de interesse da sua parte
nos textos ensaísticos, e O Estranho Caso do Trapezista Azul (1998).
No que respeita ao romance e à novela, publicou Um Verão assim (1974), As Máscaras
de Sábado (1976), Damascena (1983), Amadeo (1984), Guilhermina (1986), A Fuga para
Mário Cláudio. o Egipto (1987), Rosa (1988), A Quinta das Virtudes (1990), Tocata para Dois Clarins (1992),
As Batalhas do Caia (1995), O Pórtico da Glória (1997), O Último Faroleiro de Muckle Flugga,
LEITURA
No excerto desta crónica, incluída em Primeiro Livro de Crónicas (1998), é bem visível o tom
satírico que António Lobo Antunes muitas vezes adota na sua narrativa, ao qual se alia
frequentemente uma crítica feroz.
Os pobrezinhos
«Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros. Na minha
família os animais domésticos eram os pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre
pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana, buscar com
um sorriso agradecido a ração de roupa e de comida.
Os pobres, além de serem obviamente pobres (de preferência descalços para poderem
ser calçados pelos donos, de preferência rotos para poderem vestir camisas velhas que
se salvavam desse modo de um destino natural de esfregões, de preferência doentes
a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características
imprescindíveis: irem à missa, batizarem os filhos, não andarem bêbados e sobretudo
manterem-se orgulhosamente fiéis à tia a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver
um homem de sumtuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder ofendido
e soberbo a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum
de nós queria:
— Eu não sou o seu pobre, eu sou o pobre da menina Teresinha.»
LEITURA
Um dos romances mais emblemáticos de Mário de Carvalho é Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. O excerto que se segue
corresponde ao início da obra.
«Brilha o céu, tarda a noite, o tempo é lerdo, a vida baça, passei o que passei, peno longe, como ser feliz?
o gesto flácido. Debaixo das sombras irisadas, leio e releio Mara, mais além, borda, sentada numa cadeira alta de
os meus livros, passeio, rememoro, devaneio, pasmo, vime, junto aos degraus da porta. Há pouco, ralhava com as
bocejo, dormito, deixo-me envelhecer. Não consigo escravas. Agora ri-se com as escravas. Em breve ralhará com
comprazer-me desta mediocridade dourada, pese o convite as escravas. Do local em que me encontro não consigo
e o consolo do poeta que a acolheu. Também a mim, como ouvi-la, mas quase adivinho as razões dos risos e dos ralhos.
ao Orador, amarga o ócio, quando o negócio foi proibido. É-me agradável saber que Mara está perto, e reconhecer-lhe
Os dias arrastam-se, Marco Aurélio viveu, Cómodo impera, tão bem, desde há tantos anos, os trejeitos e os modos.»
LITERATURA E ARTE
LEITURA
Neste excerto do início do romance Gente Feliz com Lágrimas, é visível a oscilação partir/ficar,
que marca a problemática da insularidade.
«Com exceção dos nomes e das cores, que se haviam delido no tempo, seriam apenas
os barcos — os mesmos nesse dia feliz em que papá decidira levá-la a vê-los de perto
pela primeira vez. Porque lá estavam ainda, emborcados por cima do convés, os mesmos
escaleres cobertos pelas lonas. Estavam as torres, as vigias redondas como olhos de peixe e
as mesmas bóias ressequidas, presas dos ganchos. Quando largaram da doca — e o focinho
cortante das proas rasgou o pano azul das águas atlânticas, rumo a Lisboa — havia também
a mesma chuva ácida do princípio da noite. Além disso, dera-se a chegada das mesmíssimas
vacas ao cais de embarque, sendo elas destinadas aos matadouros continentais. E o pranto
da muita gente que ali ficou a agitar lencinhos de adeus fora-se logo convertendo num uivo,
o qual acabou por confundir-se com o rumor do vento a alto mar.
Depois um e outro viram a Ilha ir fenecendo na distância das luzes enevoadas e extinguir-se
aos poucos, submersa pelos véus de cinza que se desprendiam das nuvens.
À medida que os rolos de espuma se distendiam à ré, num risco que espalmava e tornava
liso aquele globo saltitante, a cordilheira vulcânica ia-se lentamente afundando ao longe.
Do lado de cá do vento, e da eletricidade que metaliza e faz correr a noite marítima,
a última visão da Ilha é mesmo essa cabeça de égua aflita, agitando-se na crista da serra
a que chamam Pico da Vara.»