Dialética Do Inconsciente
Dialética Do Inconsciente
Dialética Do Inconsciente
ANDRÉ DANTAS
Nesse trecho, vemos Jung está sempre falando das relações compensatórias entre
a consciência e o inconsciente ao interpretar as mais diferentes imagens psíquicas, como
a anima, animus, sombra, persona, puer, senex, o herói, o dragão, o vaso alquímico, etc.
Todas elas são formas que a consciência tem de se relacionar com o inconsciente. Por
isso aparecem juntos, aparecem em pares que simbolizam as diferentes formas através
da qual a compensação pode ocorrer. O inconsciente e a consciência são, então, as
polaridades primeiras e as diversas imagens analisadas por Jung são interpretadas como
estilos de manifestação dessa polaridade primária. Mas se penetrarmos naquilo que Jung
entende como consciência e inconsciente, vemos que aquilo que os define é a
predominância de uma gramática regida pela diferença, no caso da consciência, e de
uma gramática da unidade, no caso do inconsciente. “Até onde a lógica humana alcança,
a unificação dos opostos equivale a um estado de inconsciência, pois o estado de
consciência pressupõe, ao mesmo tempo, uma diferenciação e uma relação entre sujeito
e objeto. Onde não existe um ‘outro’, ou ainda não chegou a existir, cessa a
possibilidade de se tornar consciente”.2
Deve-se conceder decerto que em nenhum outro setor exista tão grande perigo de o
pesquisador se tornar vítima de suas pressuposições subjetivas. Deve ele certamente
estar consciente no mais alto grau de sua situação subjetiva. Por mais recente que seja a
psicologia dos processos inconscientes, já conseguiu fazer que fossem assegurados
certos fatos, que de modo crescente gozam do reconhecimento geral. Entre eles está o
fato de a psique apresentar uma estrutura de dados opostos, da qual ela partilha com
todos os processos naturais. São esses fenômenos energéticos, que sempre provém de
um estado menos provável de tensão entre dados opostos. Esta formulação é até de
especial importância para a psicologia, pois o inconsciente, de maneira geral, fica
hesitando em reconhecer e conceder o caráter de oposição reinante em suas próprias
origens, de onde ele tira diretamente a energia que tem. A psicologia, de certo modo,
deixou há pouco de caminhar às apalpadelas para atingir essa estrutura... 6
Inconsciente também pode ser a divisão interna com algo que parece ser uno.
Em um dos seus escritos, Jung discorre acerca de um caso clínico em que o inconsciente
atua separando a consciência de uma paciente por demais unida a uma amiga.
A “alma” que se une de novo ao “corpus” é o Um que nasce do Dois como “vinculum”
comum a ambos. A alma aparece, portanto, como uma essência de relação. Em sua
qualidade de representante do inconsciente coletivo, a anima psicológica também possui
o caráter do “coletivo”. O inconsciente coletivo tem existência óbvia e universal; assim
sendo, toda vez que aparece, ele acarreta uma identificação inconsciente, ou seja, uma
“participation mystique”. Na medida em que a personalidade consciente nisso estiver
aprisionada e não opuser resistência a esse envolvimento, este último vai personificar-se
como anima (por ex. no sonho), como uma personalidade parcial relativamente
autônoma, que exerce influências essencialmente perturbadoras. Mas depois que uma
profunda e demorada crítica e uma dissolução das projeções permitiram que se realize
uma diferenciação entre o eu e o inconsciente, a anima vai pouco a pouco deixando de
ser uma personalidade autônoma. Desse momento em diante, ela se torna a função de
relação entre o consciente e o inconsciente. (...). Devo ressaltar aqui, no que se refere ao
equivalente na psicologia feminina, as formulações são fundamentalmente diversas,
uma vez que nesse caso não estamos lidando com uma função de relação, mas uma
função de diferenciação, isto é, do animus. (...). A alma que no decorrer do opus vem
acrescer-se à consciência do eu tem, pois, a marca do feminino no homem, e na mulher
a do masculino. A anima dele procura unificar e unir, o animus dela quer diferenciar e
entender. É uma rigorosa antítese que na “rebis” alquímica, símbolo de uma unidade
transcendente, representa a “coincidentia oppositorum”.10
Todo produto psíquico que tiver sido por algum momento a melhor expressão possível
de um fato até então desconhecido ou apenas relativamente conhecido, pode ser
considerado um símbolo se aceitarmos que a expressão pretende designar o que apenas
é pressentido e não está ainda claramente consciente. Na medida em que toda teoria
científica encerra uma hipótese, portanto é uma descrição antecipada de um fato ainda
essencialmente desconhecido, ela é um símbolo. Além disso, todo fenômeno
psicológico é um símbolo, na suposição que enuncie algo mais e algo diferente que
escape ao conhecimento atual.11
Houve alquimistas que admitiram nunca terem conseguido produzir ouro ou a pedra;
também eu devo confessar que não resolvi o mistério da coniunctio. (...). A descrição da
coniunctio em palavras humanas é tarefa que pode levar ao desespero, pois se está
obrigado a encontrar expressões e formulações para um processo que ocorre “in
Mercúrio” e não no plano do pensamento e linguagem humanos, isto é, não na esfera da
consciência discernente. Do lado de cá da barreira epistemológica temos de separar os
opostos para chegar a uma linguagem compreensível. Temos de constatar que a não é b,
que em cima não é embaixo, que o bom odor do Espírito Santo não é o malus odor
sepulchrocum sive inferni e que as nuptiae spiritualis não são a união carnal dos corpos.
Contudo, no acontecimento arquetípico inimaginável, que constitui a base da
apercepção consciente, a é b, mau cheiro é perfume, sexualidade é amor Dei tão
inevitavelmente quanto a conclusão de que Deus é a complexio oppositorum. (...). O
fato é que as figuras atrás da cortina epistemológica, isto é, os arquétipos, são uniões
“impossíveis” de opostos, seres transcendentais que só podem ser percebidos através da
confrontação com seus opostos. Bom só pode ser entendido como “não mau’, dia como
“não noite”, etc. A alquimia tenta expressar o bom, o esplêndido, a luz, o ouro, o
Incorruptibile et Aeternum pela materia vilis e, por isso, se vê obrigada a falar de morte,
putredo, incineratio, nigredo, venenum, draco, malus odor, pestilentia, leprositas,
etc.Uma vez que a coniunctio é um processo essencialmente transcendental, isto é,
arquetípico, e a nossa atitude mental é ainda essencialmente cristã, enfatizando o
Espírito, o Bem, a Luz, o Acima, o espiritualizado, isto é, o sutil, a pureza, a castidade,
etc. e separamos tudo isso do seu oposto; contudo somos forçados a mencioná-lo,
mesmo que para negá-lo, desprezá-lo ou condená-lo. O oposto está ali porque ele
pertence inevitavelmente à realidade transcendental, arquetípica. (...). “In Mercúrio”,
espírito e matéria são uma coisa só. É um mistério que ninguém jamais resolverá. 12
Mas até agora ficamos muito presos a determinadas peculiaridades externas das
expressões inconscientes, por exemplo, à linguagem arcaica do inconsciente, e levamos
tudo ao pé da letra. A linguagem do inconsciente é uma linguagem forte, rica em
imagens como podem prova-lo nossos sonhos. Mas esta é a linguagem primitiva, como
sempre foi – imagem fiel do mundo rico e colorido. Da mesma forma é constituído o
inconsciente. É um reflexo compensatório ou complementar do mundo. Acho que não
podemos atribuir ao inconsciente uma natureza puramente instintiva, nem uma realidade
metafísica, e muito menos elevá-lo à condição de fundamento universal. Devemos
entende-lo como fenômeno psíquico, exatamente como o consciente. (...) A imagem
exterior do mundo nos faz compreender tudo como efeito da atuação de forças físicas e
fisiológicas, enquanto a imagem interior do mundo nos faz compreender tudo como
resultado da ação de seres espirituais. A imagem do mundo que nos é transmitida pelo
inconsciente é de natureza mitológica. Ao invés das leis da natureza encontramos
desejos de deuses e demônios, e ao invés dos instintos naturais atuam almas e espírito.13
A forma dos mitos e dos contos de fada é antitética, porque eles são expressões
personificadas da tensão entre conteúdos psíquicos que são opostos e complementares.
Como são numinosos, os afetos presentes neles são ambíguos. Enquanto a lógica
analítica dissocia os opostos, a lógica simbólica os conecta e, por isso, Jung a compara
ao Tao, que não só mostra os polos unidos como os mostra também aparecendo no
interior um do outro no momento em que cada um se expande ao máximo.
A natureza medicinal e renovadora desta água simbólica, sob a forma do Tao ou como
água batismal, ou panaceia, revela o aspecto terapêutico das conexões mitológicas a que
pertence esta representação. Os próprios médicos de orientação alquímica estavam
conscientes de que seu “arcanum” curava, ou pelo menos devia curar, não somente
certas enfermidades do corpo, como também as da alma; a psicoterapia moderna sabe
que há muitas soluções intermediárias, tratando-se no fundo de um problema moral de
opostos, racionalmente insolúvel, e que só terá solução mediante um terceiro elemento
de natureza superior, isto é, mediante um símbolo que exprima ambas as partes. (...). Os
problemas que a integração do inconsciente traz ao médico e psicólogo moderno só
podem ser resolvidos dentro da linha histórica que acabamos de traçar, e o resultado
equivalerá a uma nova recepção do mito transmitido, sendo, porém, pressuposta a
continuidade da evolução. A tendência moderna à destruição e perda de consciência de
toda tradição poderá, entretanto, interromper o processo normal de evolução durante
vários séculos, e constituir um intervalo de barbárie.16
Mas e quanto aos povos antigos que tinham as narrativas míticas como aquilo
que lhes era mais evidente? Se os mitos eram parte do seu cotidiano, se eram a fonte
primária de transmissão da tradição, não seria o caso de afirmar que, para eles, a
linguagem da unidade ocupava o primeiro plano, como é o caso da psique “feminina”?
Jung responde a essa questão afirmando que a consciência primitiva não havia se
diferenciado o suficiente e tinha a mitologia como sua realidade cotidiana por ainda
estar por demais próxima do inconsciente. Mas de que tipo de inconsciente e de
consciência ele está falando? Vemos aqui como Jung, novamente, ignora seu próprio
insight a respeito de um tipo de consciência que funciona por meio do eros ao
interpretar as produções das antigas culturas. Jung não pensa que os antigos tinham um
tipo de consciência regido por eros, uma consciência para qual os mitos são a linguagem
primária enquanto a linguagem da diferença ficava em segundo plano.18 Daí porque os
antigos valorizavam tantos as produções psíquicas na qual a unidade predominava,
chegando a decidir questões importantes para toda a sociedade a partir de sonhos e
visões. O imperador Constantino, p.ex., decidiu converter Roma ao cristianismo a partir
da visão de uma cruz nos céus na véspera de uma batalha. Até hoje, os integrantes da
tribo amazônica dos Achuar decidem o que irão fazer ao longo dia após contarem os
sonhos que tiveram à noite uns para os outros19, algo completamente absurdo para uma
consciência solar que toma decisões a partir de considerações racionais. Quando Davi
Kopenawa, um líder Yanomami, afirma que “os brancos dormem muito, mas só
conseguem sonhar com eles mesmos”, ele está afirmando a oposição psíquica entre a
forma de pensar comum-unitária, onírica, e a forma racional de pensar que dissocia as
diferenças individualizando-as. Jung se deparou com a negação de uma forma psíquica
pela outra em uma de suas viagens pela África.
Conversamos certa vez com o laibon, o velho chefe medicine-man. Ele apareceu vestido
com um manto maravilhoso de pele de macaco azul: era um suntuoso traje de
cerimônia. Quando o interroguei acerca dos seus sonhos, explicou-me com lágrimas nos
olhos: “Outrora, os laibons tinham sonhos e sabiam quando haveria guerra ou doenças,
se a chuva viria e para onde os rebanhos deviam ser levados”. Seu avô ainda sonhara.
Mas desde que os brancos haviam chegado à África, ninguém mais sonhava. Não havia
mais necessidade de sonhos, pois agora os ingleses sabiam de tudo. Sua resposta
mostrou-me que o medicine-man perdera sua razão de ser. A voz divina que aconselha o
clã tornara-se inútil, pois os ingleses “sabem ainda mais”. Outrora o medidcine-man
negociava com os deuses ou com o poder do destino e dava conselhos a seu povo.
Exercia uma grande influência, da mesma forma que na Grécia antiga as palavras da
Pítia gozavam de uma grande autoridade. Mas agora a autoridade do medicine-man fora
substituída pela do D.C. [Comissário do Distrito]. 20
O que não significa que o tipo de pensamento no qual a diferença predominava
não estivesse presente na psique antiga. Basta olhar para as acuradas observações
astronômicas e para monumentos antigos como as pirâmides do Egito e os megalitos de
Stonehenge, para vermos a eficiência do raciocínio matemático e técnico na
antiguidade. Mas essa forma de pensar capaz de fazer medições acuradas e de criar
formas de transportar toneladas de pedras por enormes distâncias encaixando-as de
modo tão preciso, estava a serviço da linguagem da unidade, enxergando divindades nos
corpos celestes e construindo monumentos, cuja utilidade primária era servir de local
para a celebração de rituais para os deuses.
Uma lógica que se deixasse impregnar pela “mais fantástica de todas as leis
psicológicas”27, a enantiodromia, teria que levar realmente a sério a ideia de que algo se
inverte em seu oposto no momento em que se torna mais intensamente si-mesmo, teria
que pensar o si-mesmo de um fenômeno psíquico como um outro-em-si. Nessa lógica
enantiodrômica, a consciência e o inconsciente não seriam lugares, mas relações de
movimento na qual uma afirmação contém uma contra-afirmação como um ponto cego
no núcleo do seu ser. O inconsciente seria a negação intrínseca a uma determinada
afirmação consciente. Isso significa que temos que repensar os esquemas clássicos da
teoria junguiana em que o inconsciente é visto como uma região onde primeiro está a
sombra, depois o animus/anima e assim por diante.
No primeiro contato com o inconsciente, com aquilo que nega a afirmação com
a qual nos identificamos e que por isso é consciente, ele aparece como sombra, como o
inimigo, como algo malévolo, já que tendemos a achar bons os valores com os quais nos
identificamos. À medida que o diálogo com a contraposição se aprofunda, a negação se
diferencia deixando de ser simplesmente o mal. Isso ocorre, porque a própria
consciência também se diferenciou, relativizando sua posição. Dessa maneira, o
inconsciente, essa outra forma de consciência que nega a consciência egóica, começa a
mostrar sua complexidade aparecendo na forma de outras figuras que se opõem e
complementam as múltiplas características com as quais o ego se identifica. O ego é o
próprio processo de identificação, o ato de assimilar determinadas características para si
enquanto expulsa outras. O ego é o ato de dizer “eu sou isto”. Ao dizer que é “isto”, ele
nega ser “aquilo” que o contradiz. Ao afirmar-se como masculino, ele nega sua
feminilidade, e todas as características que se opõem ao seu modo de ser masculino, e
que precisamente por isso lhes são logicamente internas, tornam-se inconscientes. A
identificação ocorre sob um fundo de diferenciação e essa diferenciação é a face
assumida pelo inconsciente. “Sabe-se que a máscara do inconsciente não é rígida, mas
reflete o rosto que voltamos para ele”.30
Por isso o esquema extensivo onde primeiro vem a sombra, depois a
anima/animus para depois se chegar ao si-mesmo é o resultado de mais uma
compreensão superficial da obra junguiana.
De 1918 a perto de 1920, tornou-se claro para mim que a meta do desenvolvimento
psíquico é o Si-mesmo. A aproximação em direção a este último não é linear, mas
circular, isto é, “circum-ambulatória”. Uma evolução unívoca existe quando muito no
princípio; depois, tudo não é mais que referência ao centro. 31
Quando se defrontou com essa dificuldade, ele sonhou com um enorme barco fora do
porto, carregado de maravilhosas mercadorias para a humanidade; o barco devia ser
trazido para o porto e as mercadorias distribuídas ao povo. Ligado a esse enorme barco
estava um cavalo árabe branco, muito elegante, bonito e delicado. Era um animal arisco
e supunha-se que era ele quem ia puxar o barco até o porto. Mas o cavalo era
absolutamente incapaz de fazê-lo. Nesse momento um enorme gigante de cabelos e
barbas vermelhos atravessou a multidão empurrando todo mundo. Ele pegou um
machado, matou o cavalo branco e pegando a corda puxou o barco até o porto, num
único élan. Assim Jung percebeu que teria de escrever sob o fogo emocional do que
sentia e não se apegar a esse elegante cavalo branco. Daí ele foi levado por um
tremendo impulso de trabalho ou emoção e escreveu o livro praticamente de uma só
vez, levantando toda manhã às três horas da madrugada. 32
A atitude cartesiana de Jung era personificada pelo cavalo árabe branco, que por
si só era incapaz de levar o barco da sua obra adiante. O sonho compensou essa atitude
através de uma outra forma de consciência personificada pelo gigante ruivo e a matança
do cavalo representa o sacrifício do intelecto necessário quando se lida com os produtos
do inconsciente. As duas figuras personificam duas formas de consciência, uma
emocionalmente bruta e a outra mentalmente refinada. O aparecimento de uma
significava a morte da outra, e o sonho poderia ser descrito como um movimento
enantiodrômico no qual o excesso de lógica cartesiana transforma-se no seu oposto.
Mas a lógica cartesiana, matriz do sujeito moderno, é personificada no sonho por um
animal, enquanto a emoção bruta é personificada por uma figura humana. O animal
possui uma bela e delicada brancura espiritual, enquanto o gigante possui uma
brutalidade rubra e animalesca. As imagens negam uma à outra, ao mesmo tempo em
que partilham uma identidade profunda. Cada uma nega, mas é em sua própria negação
a afirmação da identidade com a outra negada. O fruto do sonho é a obra na qual Jung
envolveu-se mais extensamente com a tradição histórica do logos. Quando as chamas
emocionais incendiaram o seu pensamento ele pôde assumir a forma implicitamente
dialética que conhecemos hoje.
Para a psicologia dialética, o que torna arque/típica uma imagem não é sua
semelhança com algum mito, mas sua numinosidade, sua carga emocional ambígua que
lhe dá uma expressão antinômica. As narrativas míticas são vazias, são palavras mortas
se não possuem mais sua carga numinosa, senão afetam mais a psique, se não são mais
a expressão viva da tensão entre as oposições que energizam o movimento psíquico. O
teste de associação de palavras usado por Jung mostrava que palavras significativas para
a psique produziam modificações corporais possíveis de serem captadas pelo
psicogalvanômetro, como a aceleração da pulsação e o aumento da umidade da pele.
Essas modificações corporais denunciavam a presença de afetos muitas vezes
inconscientes para a própria pessoa que fazia o teste. As ideias numinosas modificam
não só a mente como o corpo, pois elas movem o corpo, elas orientam o sentido dos
movimentos corporais de acordo com as coordenadas estabelecidas por elas.
Ela também se queixava de que sua memória era péssima. Era comum ela sair
de casa para resolver algo importante e esquecer o que era no meio do caminho. Ela
contou que tentava controlar sua risada lembrando de certas cenas tristes da sua vida,
apesar de ter esquecido a maioria. Mas uma que sempre recorria para se conter era a
morte do pai ocorrida na sua infância. Ela guarda poucas imagens dele na memória, mas
lembra que ele traia sua mãe constantemente e que por causa disso eles brigavam muito.
Ele morreu assassinado por uma das suas amantes. Apesar das esparsas lembranças, ela
recordou de algumas cenas da infância, das brigas que tinha com a mãe, que ela sentia
como bastante controladora e que se enfurecia porque ela a desafiava constantemente.
Às vezes as brigas acabavam em surras violentas e ela decidiu sair de casa em uma vez
que sua mãe lhe agarrou pelos cabelos e a jogou contra a parede.
Relendo esse sintoma como um símbolo da arque psíquica, vemos que seu riso
portava uma característica bastante agressiva, porque era comum que sua manifestação
compulsiva constrangesse as pessoas ao ponto de lhes fazerem sentirem-se ridículas. E a
principal forma que de controlar esse riso compulsivo, era a lembrança de cenas tristes
de sua vida, principalmente o enterro do pai assassinado por uma amante.
O que o riso compulsivo ocultava, era a tragicidade que atravessava sua vida, a
agressividade negada por estar associada a uma série de experiências tristes e por
demais pesadas. Essa desidentificação com a agressividade ocorreu por meio de uma
excessiva identificação com a alegria, com ela se vendo no presente como uma pessoa
leve por esquecer rapidamente as tristezas que a afligiam. Mas aquilo que é negado
retorna no núcleo daquilo que o nega, e nos momentos de maior alegria, nos momentos
em que ela mais ria, seu riso se tornava agressivo. As gargalhadas descontroladas e as
falhas de memória eram sintomas que serviam de cura para sua infância dolorosa. Ao
servir de barreira, esse sintoma presentificava, em sua própria forma de ser, aquilo que
tenta ausentificar, pois seu riso era permeado por uma agressividade que não hesitava
em humilhar as pessoas de quem ria, como se seus dentes expostos ameaçassem
mastigar a dignidade delas. O que o sintoma revelava em seu próprio ocultar, era o seu
outro interno, e o trabalho psicológico desenvolveu-se na busca da explicitação do
modo como esses opostos se complementavam por se determinarem mutuamente. Era
importante que ela levasse a sério os aspectos trágicos da sua vida, respeitando sua
importância, e ao mesmo tempo não os levasse a sério demais, sabendo rir mesmo das
piores situações, permitindo-se esquecer a tristeza o suficiente para recomeçar a vida
sem que o ressentimento a paralisasse. O sintoma contém em si-mesmo sua própria
cura, e reconhecê-lo significou a iniciação da sua consciência no mistério tragicômico
da vida, onde a gravidade do trágico anda de mãos dadas com a leveza do cômico.
Nesse caso, o recurso à mitologia foi útil ao fornecer versões análogas das
mesmas polaridades em ação. A imagem do bobo da corte, p.ex., personifica de uma
outra maneira essa polaridade, no sentido de que ele era o único que podia criticar
contundentemente o rei sem ser punido, porque o fazia a partir do humor. Na cultura
pop, temos a imagem do Coringa, o inimigo do sério e sombrio Batman que,
literalmente, mata as pessoas de tanto rir com um gás que traz o caos para a cidade que
o homem-morcego tenta a todo custo pacificar e ordenar. Na cultura cearense, esse tipo
de humor é bastante popular, ao ponto de que aqueles que vão a uma apresentação local
evitarem de sentar nas primeiras filas para não se tornarem um alvo para as agressivas
troças do humorista. Todas essas imagens são arque/típicas, pois tipificam, cada uma da
sua maneira singular, a arque oposicional da psique. No livro que reúne seus seminários
sobre Alquimia, Von Franz enumera outros exemplos da polaridade comédia/tragédia
também presente na vida da paciente.
Trata-se de um ritmo normal em reações humanas, ilustrado, por exemplo, no teatro clássico
grego, onde três tragédias são seguidas por uma comédia. Ninguém podia ir para casa depois de
ter visto Édipo Rei e duas outras peças no mesmo tom; tinha de haver no final uma das comédias
de Aristófanes, para que todos os espectadores rissem a bandeiras despregadas. Ou existe o
mecanismo típico em que, no momento mais solene de um funeral, uma pessoa vê subitamente
algo burlesco e tem uma reação nervosa que a faz querer rir. É o clímax de excitação que se
converte no desejo de rir; ninguém pode suportar por muito tempo uma condição trágica
exagerada, de modo que, ocasionalmente, sente-se compelida a levá-la para o lado da troça. Isso
também explica a Missa Jocosa da Idade Média. Durante 364 dias por ano, a Missa e a Hóstia são
recebidas com a maior seriedade e, um dia por ano, a liturgia era simplesmente um motivo de
chistes. Ou, no ritual dos índios norte-americanos, onde existe um palhaço que pertence ao clã
Thunderbird, que escarnece das cerimônias mais sagradas, fazendo comentários obscenos e
chistes a respeito delas.37
1.JUNG.C.G, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/2, § 427. Petrópolis: Editora Vozes,
1990. Itálicos no original.
2.JUNG.CG, AION – Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo, Obras Completas Vol IX/2, § 301.
Petrópolis: Editora Vozes, 1982.
4. JUNG.CG, Tipos Psicológicos, Obras Completas Vol VI, § 641. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
5. JUNG.CG, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/1, §§ 217, 221. Petrópolis: Editora
Vozes, 1985.
7. JUNG.CG, Estudos Sobre Psicologia Analítica, Obras Completas Vol VII, §127. Petrópolis: Editora
Vozes,1981.
8. “Freud aprovou a resenha crítica que Jung fez do livro de Adler, porque isso acabaria com os rumores
de que estava tomando o partido deste. Jung replicou que até mesmo os ‘camaradas de Adler’ o
considerariam ‘um deles’, e era ‘deplorável’ que Freud insistisse em tratar a ciência da psicologia como
uma ‘profissão de fé’. Infelizmente, quando Jung se descreveu como não sendo um dos ‘deles’, usou o
pronome ‘seu’ em vez de ‘deles’. Num golpe mortal, Freud aproveitou-se disso perguntado se ‘o caro
dr.Jung’ (como agora o chamava) era ‘suficientemente objetivo para pensar [no deslize] sem raiva’”.
BAIR.D, Jung: Uma biografia. Volume I, p.308. São Paulo: Globo, 2006.
10. JUNG.C.G, Ab-Reação, Análise dos Sonhos, Transferência, §§ 504, 505, 522. Petrópolis: Editora
Vozes, 1987.
12. JUNG.C.G, Cartas Volume III, pp.110,111-112. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
13. JUNG.C.G, Civilização em Transição, Obras Completas Vol X/3, § 23. Petrópolis: Editora Vozes,
1993.
15. JUNG.CG, AION – Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo, Obras Completas Vol IX/2, §§ 280-
281. Petrópolis: Editora Vozes, 1982.
17. JUNG.CG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p.194. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.
18.“Essas imagens são míticas e, portanto, simbólicas, porque expressam a harmonia do sujeito que
experimenta, com o objeto experimentado”. JUNG.C.G, A Natureza da Pisque, § 738. “Mas a que tipo
de linguagem corresponde a maneira de expressar simbólica ou metafórica? Ela corresponde à
mentalidade do homem primitivo, cuja linguagem não possui termos abstratos, mas apenas analogia
naturais e “não-naturais”. (...) todo o mundo antigo acreditava, como o primitivo ainda hoje acredita na
magia por analogia – pois trata-se aqui do fenômeno psíquico que está na raiz da magia por analogia”.
JUNG.C.G, op.cit., §§ 309, 313.
19. “Pouco antes do amanhecer, eles [os Achuar] se reuniam ao redor da fogueira para decidir o que
fariam durante o dia em função daquilo que haviam sonhando à noite”. DESCOLA.P, Outras Naturezas,
Outras Culturas, p.11. São Paulo: Editora 34, 2016.
21. “É impossível inferir qualquer sistema filosófico a partir do pensamento primitivo da humanidade.
Podemos, isto sim, inferir uma quantidade de antinomias que constituem, em todas as épocas e em todas
as culturas, o inesgotável fundamento de toda problemática espiritual”. JUNG.C.G, Civilização em
Transição, § 144.
22. “Há, porém, um tipo de relação impessoal que exige às vezes uma compensação inconsciente. Em tais
casos aparecem imagens coletivas de caráter mais ou menos mitológico. Trata-se, em primeiro lugar, de
problemas morais, filosóficos e religiosos que, devido à sua validez universal, provocam compensações
mitológicas”JUNG.C.G, Estudos Sobre Psicologia Analítica, Obras Completas Vol VII, § 284.
23. “Como já mostrei, a Psicologia se acha em uma situação incômoda, se comparada com outras
Ciências naturais, porque lhe falta uma base fora de seu objeto. Ela pode traduzir-se apenas em sua
própria linguagem ou copiar sua própria imagem. Quanto mais ela amplia o seu campo de investigação e
quanto mais complexo este último se torna, mais lhe faz falta um ponto de vista distinto do seu objeto.
(...). Qualquer outra ciência tem, por assim dizer, um objeto exterior a si mesma, o que não acontece com
a Psicologia cujo objeto é o sujeito de todas as ciências”. JUNG.C.G, A Natureza da Pisque, § 429.
24. Essa biologização excessiva é o que leva Jung a abordar masculino e feminino como homem e mulher
em vez de repensá-los como símbolos da dialética psíquica. “Se observarmos que a mulher, já na segunda
metade do século XIX, começou a assumir profissões masculinas, a tomar parte ativa na política, a fundar
associações e dirigi-las etc., será fácil constatar que está pronta para romper com um padrão de
sexualidade essencialmente feminino, de inconsciência e passividade aparentes, e fazer uma concessão à
psicologia masculina, para erigir-se em membro visível da sociedade. A partir daí ela não precisa mais
dissimular-se atrás da máscara de Sra. Fulana de Tal, para conseguir que o homem satisfaça todos os seus
desejos, ou para fazê-lo sentir que as coisas não estão correndo como ela deseja. Esse passo para a
autonomia social foi uma necessária resposta aos fatores econômicos e outros, mas não passa de um
sintoma, não sendo o ponto central da questão. Sem dúvida, é admirável a coragem e abnegação dessas
mulheres, e seria cegueira não ver os benefícios trazidos por esses esforços. Mas ninguém pode escapar
desta realidade: a mulher, ao abraçar uma profissão masculina, ao estudar e trabalhar como o homem,
passa a fazer algo que no mínimo não corresponde à sua natureza feminina, podendo mesmo ser
prejudicial. Está fazendo algo que dificilmente seria possível, a menos que fosse chinês: por exemplo,
será que ele seria uma boa babá ou uma professora de escola maternal? E quando falo de prejudicar, não
me refiro apenas ao dano fisiológico, mas antes de tudo ao dano psíquico. É característico da mulher ser
capaz de fazer tudo por amor a uma pessoa. Mas as mulheres que se entregam a trabalhos importantes por
amor a uma coisa são raras exceções, pois isso não coaduna com a sua natureza. O amor pelas coisas é
prerrogativa masculina. Mas, como o ser humano reúne em si elementos masculinos e femininos, pode
acontecer que um homem viva a parte feminina, e uma mulher a parte masculina. No homem, o elemento
feminino fica relegado ao plano de fundo, acontecendo o mesmo com o elemento masculino na mulher.
Quando se vive o que é próprio ao sexo oposto, vive-se, em suma, no plano de fundo, como prejuízo do
primeiro plano que é o essencial. O homem deveria viver como homem e a mulher como mulher”.
JUNG.C.G, Civilização em Transição, §§ 242-243.
27. “O velho Heráclito, que era realmente um grande sábio, descobriu a mais fantástica de todas as leis da
psicologia: a função reguladora dos contrários. Deu-lhe o nome de enantiodromia (correr em direção
contrária), advertindo que um dia tudo reverte em seu contrário”. JUNG.CG, op.cit., §111.
28. VON-FRANZ.ML, A Sombra e o Mal nos Contos de Fadas, p.11. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.
33.JUNG.C.G, AION – Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo, Obras Completas Vol IX/2, § 58.
Petrópolis: Editora Vozes, 1982.
35. JUNG.C.G, A Vida Simbólica, Obras Completas Vol XVIII/1, §§ 589-590, 592, 595, 596. Petrópolis:
Editora Vozes, 2008.
36. “A libido enquanto fenômeno energético contém os pares de opostos, do contrário não haveria
nenhum movimento da libido”. JUNG.C.G, Seminários sobre Psicologia Analítica (1925), p.111.
Petrópolis: Editora Vozes, 2014.
38. JUNG.C.G, Estudos Sobre Psicologia Analítica, Obras Completas Vol VII, § 78.