Os Velhos Surdos
Os Velhos Surdos
Os Velhos Surdos
Numa aldeia distante, onde havia moradores, as pessoas conheciam
histórias de visaje, mas nem tanto. Ninguém naquele lugar tinha visto nenhuma
manifestação sobrenatural. O pajé dizia que a aldeia era abençoada e, por isso,
impossível nela aparecerem visajes. A maioria sabia de casos acontecidos
noutros lugares, que as pessoas contavam ao pôr do sol, como é o costume do
povo indígena Maraguá. Mas era só.
Até que, de certo dia em diante, o que parecia impossível, aconteceu.
Visajes de todos os tipos e espécies passaram a rondar a aldeia e a
assombrar os moradores. Mesmo quem nunca havia ouvido história de visajes,
agora tinha medo delas. Todo dia, circulavam casos de fantasmas, bichos que
apareciam no porto, na roça, dentro de casa à meia-noite. E cada vez que
alguém ficava sabendo de uma visaje, mudava-se dali para outro lugar, uma
outra aldeia. Família por família, todas foram indo embora. Aos poucos, a aldeia
ficou vazia.
Nessa aldeia, morava um casal de velhinhos muito bondosos. Tratavam
bem as pessoas, faziam remédios e curas de pajelança. Porém, quase surdos,
conversavam em voz alta e tinham dificuldade de ouvir as notícias que corriam.
Não consideravam isso um problema, mas, a cada dia, ficavam mais surdos. E,
como não ouviam as histórias de visajes como os demais, no que perceberam,
estavam sozinhos. Em todas as cercanias da aldeia, não havia mais ninguém
para lhes fazer companhia.
Então o velho falou para a velha:
- NÃO SEI POR QUE TODOS FORAM EMBORA, MAS NÃO VAMOS SAIR
DAQUI. ESSE É NOSSO LUGAR E ONDE MORREREMOS, QUANDO CHEGAR NOSSA
HORA.
- SIM, MEU VELHO, VOCÊ TEM RAZÃO. NADA NOS FARÁ SAIR DAQUI.
E continuaram a morar na aldeia.
Um dia, o velho convidou:
- VAMOS À BEIRA DO RIO TOMAR UM BANHO?
Banharam-se no porto da aldeia e voltaram para casa, alegres como
sempre. O velho, sentindo fome, perguntou:
- O QUE TEMOS PARA COMER?
- NÃO TEMOS NADA! - respondeu ela.
- ENTÃO VOU PEGAR ALGUNS PEIXES PARA O JANTAR. FIQUE FAZENDO O
FOGO, POIS VOLTAREI LOGO!
Pegou sua canoa e foi. Chegou ao lago, flechou dois tucunarés, ficou
contente e voltou para casa. Colocou os peixes em um jirau próximo e falou com
voz bem alta:
- VELHA, AQUI ESTÃO OS PEIXES!
Como ouvia cada vez menos, ela respondeu:
- O QUÊÊÊÊÊ??!!!
O velho repetiu:
- OS PEIXES ESTÃO NO JIRAU. PEGUEI DOIS BELOS TUCUNARÉS.
Só depois que ela os viu, é que foi limpá-los e colocá-los para assar no
fogão de lenha, que havia feito para a ocasião. Assou os peixes e chamou:
- VENHA COMER, VELHO, A JANTA ESTÁ PRONTA!
- O QUÊÊÊÊ??!!!
Ela repetiu:
- VENHA JANTAR. ESTÁ PRONTO. OS PEIXES ESTÃO ASSADOS!
Finalmente, o velho entendeu. Jantaram, lavaram as mãos e sentaram em
suas redes. Era luar. O silêncio da surdez, que os limitava, também os fazia
amigos da lua. Começaram, então, a conversar bem alto.
Depois se calaram.
Estava tudo escuro.
De repente, surgiu um brilho um pouco distante.
No início, estava imóvel, mas, depois, deslocou-se na direção do porto. O
velho sentou em sua rede e ficou prestando atenção.
Ao observar a luz, notou que ela ficava mais forte a cada minuto. Por um
instante, apagou-se, mas logo voltou com mais intensidade, iluminando o
caminho, já perto de casa.
Assustado, o velho pegou na beira da rede de sua mulher e murmurou:
- Velha, tem alguém focando ali.
Mais que depressa, ela se sentou e, sem entender o que o velho dizia,
perguntou:
- O que está acontecendo?
Como ele não a ouviu, falou novamente:
- VELHA, TEM ALGUÉM FOCANDO ALI.
Ela continuou a perguntar:
- O QUE DISSE?
O velho voltou a falar:
- TEM ALGUÉM FOCANDO ALI.
Finalmente, a velha entendeu. E, quando olhou, o fogo já estava perto.
Então, sem poder fugir, trancaram a porta do quarto, abraçaram-se e ficaram
esperando para ver o que aconteceria.
Eram duas visajes, que começaram a bater na porta.
- Abram esta porta, senão vamos arrombá-la e comer vocês!
Os velhos, como não escutavam, continuaram em total silêncio.
A visaje continuou batendo: pá, pá, pá…
- Estamos famintos, se não abrirem a porta, vamos comer vocês.
Mas nada de os velhos ouvirem.
As visajes já estavam em dúvida: “Será que tem alguém aqui?”
- Vamos tentar pela última vez. Se ninguém atender, vamos embora.
Os velhos não abriram e as visajes partiram.
Bem devagar, o marido olhou para o porto, pela brecha da janela do
quarto, e viu o fogo indo longe.
- VELHA, VENHA VER, OS BICHOS ESTÃO INDO.
A mulher, sem ouvir nada, perguntou:
- O QUE ESTÁ ACONTECENDO?
Para que ela entendesse rápido, o marido a pegou pelas mãos e a levou
para ver com ele. Feliz da vida, a mulher se empolgou e, com voz bem alta, falou:
- OLHA, MARIDO, FORAM EMBORA.
- FOI O QUE EU DISSE, MINHA VELHA. OS BICHOS FORAM EMBORA!
Nisso, as visajes, que já iam longe, ouviram as vozes dos dois.
- Vamos voltar, tem gente naquela casa.
Os velhos continuavam olhando, quando notaram que os fogos se
aproximavam novamente. O velho, assustado, avisou à mulher:
- VELHA, ESTÃO VOLTANDO. SERÁ QUE OUVIRAM NOSSAS VOZES?
- MAS ESTAMOS FALANDO TÃO BAIXO.
E com voz bem alta, o velho mandou:
- VAMOS NOS ESCONDER.
Os bichos, impacientes, chegaram e empurraram a porta com força. Os
velhinhos ainda tentaram se esconder no canto do quarto, mas foram pegos e
mortos pelas visajes.
Dias depois, pescadores chegaram à aldeia para visitar os velhinhos.
Entraram na casa e viram tudo desarrumado. Chamaram por eles, mas os
encontraram torrados pela quentura das visajes.
Foram embora assustados e nunca mais ninguém voltou a morar naquela
comunidade, que passou a ser chamada de “a comunidade assombrada dos
velhinhos”.
Fonte: YAMÃ. Yaguarê. Contos da floresta. S ão Paulo: Peirópolis, 2012. p. 47-53