Paisagens, Territórios e Pressão Colonial
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AILTON KRENAK2
Ailton: Boa tarde a todos vocês, queridos amigos e amigas que dedicam
a sua tarde, que podia estar sendo aproveitada em qualquer outro espaço
ou situação, para estar aqui me propiciando essa ocasião de conversa, de
encontro nosso. Agradeço muito a presença de vocês e agradeço, em
especial, esse querido professor Sergio, junto com seus colegas aqui do
ILEA, que propiciaram a minha vinda para cá. Eu gostei muito de saber
que existe aqui alguma referência a um termo que a primeira vez que eu
ouvi ser pronunciado foi quando eu me juntei com os nossos parentes, o
povo Kuna, que vive no Panamá, e que chama esse continente que nós
chamamos de continente americano de “Abya Yala”. Não sei se já foi
compartilhado com vocês a origem dessa palavra que identifica essa Rede
Abya Yala. “Abya Yala” evoca um território afetivo, talvez imaginário, de
povos que viviam aqui nesse continente antes de iniciar as, digamos,
“abordagens” no continente por povos que vieram de outras paisagens.
Numa posição de resistência, numa posição de muito clara afirmação, de
identidade dos povos originários dessa região do mundo, especialmente
pensando a partir da América Central, onde estão os Maias, que
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Palestra conferida em evento promovido pela rede de pesquisa Abya Yala: epistemologias ameríndias em
rede, no auditório do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados (ILEA), Campus do Vale,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na tarde do dia 6 de novembro de 2015. Transcrição realizada
por Eduardo Schaan e Carmem Guardiola.
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Militante indígena dos direitos humanos. Nasceu em 1953, no Vale do Rio Doce, Minas Gerais, no povo
dos Krenak. Em 1987, no contexto das discussões da Assembleia Constituinte, Ailton Krenak foi autor de
um gesto marcante, logo captado pela imprensa e que comoveu a opinião pública: pintou o rosto de preto
com pasta de jenipapo enquanto discursava no plenário do Congresso Nacional, em sinal de luto pelo
retrocesso na tramitação dos direitos indígenas. Fundou e dirige a ONG Núcleo de Cultura Indígena. Dirige
o Festival de Danças e Culturas Indígenas, na Serra do Cipó (MG). Autor de textos e artigos publicados
em coletâneas no Brasil e exterior. E-mail: ailtonkrenak@gmail.com .
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origem a essa nossa vinculação com uma legenda tão forte como essa
“Abya Yala”. No final da década de 70, começo da década de 80, tinha
uma rede de pessoas indígenas que circulavam entre a Argentina, os
Mapuche, alguns outros parentes de diferentes etnias aqui do Cone Sul,
passando pelo Chile, Peru e chegando até o México, e constituindo uma
rede que intentava recuperar um pouco as relações históricas que esses
povos do continente experimentaram no tempo antigo, quando, segundo
as narrativas, chegou a existir uma rede de povos que, desde lá do
Equador, pegando um pouco o Panamá, o Equador, chegavam até aqui,
na Argentina, com o nome de “tawantisuyu”. Eu não sei se algum de vocês
já ouviu essa expressão na língua quéchua: “tawantisuyu”. E por falar em
línguas nativas, os Quéchua são falantes, são gentes de várias etnias,
várias culturas, espalhadas entre o Equador, a Colômbia, o Peru, a Bolívia,
chegando até mais abaixo da Bolívia, onde os povos têm essa língua
comum, o quéchua. Eu acho interessante o fato de ter uma língua
transnacional, uma língua que atravessa as fronteiras nacionais, as
antigas fronteiras, e uma língua que dê unidade, digamos, territorial para
os Andes todos. Nesse extenso território que constitui os Andes, e uma
parte da selva também, quando desce para a Bacia Amazônica, viveram
povos que compartilhavam a mesma língua, o quéchua. Do lado de cá,
pegando aqui pelo Atlântico, com a chegada dos jesuítas por aqui e a
coisa deles trabalharem uma gramática uniformizadora dos povos
Tupinambá e Tupi, dessas línguas parentes do tronco Tupi, eles fizeram
uma gramática do nheengatu, essa língua geral. Os jesuítas ensaiaram ela
muito bem aqui nas Missões e despacharam ela depois para o resto da
Costa Atlântica, chegando no Maranhão e subindo o Rio Negro. É
interessante a trajetória dessas línguas faladas, não sendo língua
materna, mas se constituindo em primeira língua de povos que deixaram
de falar suas línguas originais para falar essa língua inventada pelos
jesuítas, que é a gramática da língua geral, o nheengatu. Lá no Alto Rio
Negro, você chega num lugar que tem uma cultura rica de vários povos,
os Tukano, os Baniwa, os Dessana... Eu fiquei sabendo que meu amigo
Gersem Baniwa passou por aqui esse mês. O povo do Gersem, por
exemplo, além de falar baniwa, muitos deles também falam essa língua
geral. A língua geral virou uma espécie de terceira língua em São Gabriel
da Cachoeira, lá para cima do Rio Negro, Santa Isabel... Até as autoridades
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vivemos e precisamos viver, com o lugar de onde nós tiramos água para
beber, tiramos comida, tiramos tudo que a gente precisa para fazer
nossos abrigos, para nos sentir bem, para nos sentir confortáveis. Então
nós vamos, devagarzinho, fazendo desaparecer as paisagens em torno
dos lugares onde nós vivemos, que é um espelho do outro
desaparecimento, interior, que nos expomos a ele, e às vezes
contribuímos para ele, que é a erosão cultural, né? É a perda de
conhecimentos próprios sobre nossos hábitats, sobre nossas
comunidades. No caso não só de comunidade humana, mas as
comunidades em que nós nos constituímos, como culturas, e os
ambientes que nós experimentamos. É interessante que aqui nos espaços
em que nós estamos tendo essa oportunidade de encontro, nesse
Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados, vocês tenham a
oportunidade de direcionar um pouco de estudos e de atenção para temas
que não são muito privilegiados na maioria dos outros estudos que são
realizados nas nossas universidades. Muito recentemente, só muito
recentemente, é que as nossas universidades atentaram para a
possibilidade de estabelecer troca com conhecimentos que não estão
registrados, que não estão nos sistemas que o corpo de conhecimento
das universidades foi constituindo. A maneira como essas instituições
foram se consolidando acabou funcionando como maneira de exclusão e
de diferenciação dessas sociedades em que nós nos constituímos e que
são tão diversas, tão plurais, mas que essa máquina de seleção - que as
nossas instituições, e as universidades estão entre elas, são máquinas de
seleção -, ela foi selecionando só o que faz óbvia conexão e identidade
com o complexo sistema colonial a que nós somos submetidos desde que
nossos parentes chamaram essa terra de Abya Yala. E ela começou a
receber vários outros apelidos, inclusive esse apelido que é muito caro a
todos nós, que é “Brasil”, que advém de um pau que eles tiravam aqui
para colorir tecidos, que é o pau-brasil e que deu nome para esse lindo
território que nós compartilhamos com nossos vizinhos da América
Latina, orgulhosamente, depois de empurrar alguns deles para lá, como
fez o Barão de Rio Branco, quando tomou o Acre da Bolívia, Boa Vista do
Suriname, e nós fomos alargando nossos cotovelos, bem ao gosto
colonial, alargando nossos cotovelos e empurrando os vizinhos mais
fracos para o lado. Alguém pode falar: “Ah, mas o Ailton fica fazendo uma
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de arara porque os Krenak, o meu povo, não têm o costume de usar esses
adornos com a pena das aves. Os meus parentes mais antigos, antes da
gente aparecer nessa literatura do Brasil com esse nome, “krenak”, vocês
devem ter lido em alguma literatura um outro nome que nós tínhamos,
que era "aimoré". E assim como nossos parentes xokleng de Santa Cataria
e alguns kaingang, nós também éramos apelidados de “botocudos”. Esse
termo, “botocudo”, ele, na colônia, no século XVIII, por aí afora, até o
século XIX, ele era aplicado livremente aos Kayapó lá do Tocantins,
naquele corredor lá do Araguaia, aos Xokleng de Santa Catarina, aos
Kaingang do interior de São Paulo, e aos Aimoré, meus antepassados. Na
verdade, esse “aimoré” também é um apelido, não é uma palavra da nossa
língua, é uma palavra da língua tupi, porque os guias das expedições dos
bandeirantes que entravam para dentro do sertão, iam do litoral para
dentro do sertão, eles falavam tupi, e quando eles eram perguntados
pelos seus patrões lá, pelos bandeirantes, "quem são aqueles camaradas
que vivem lá dentro do Cerrado, lá naquelas serras?", os Tupi diziam para
eles: "aimoré" ou "embaré". Aí eles estavam dizendo "gente do mato". Eu
costumo brincar dizendo que esses índios do litoral sempre fizeram
alguma discriminação com os índios lá do sertão, chamando a gente de
caipira. Isso é uma velha prática carioca. Os cariocas ficavam ali em
Copacabana, Ipanema servindo de batedor para os invasores e apelidando
os caras de caipira. Mania carioca. Tem algum carioca por aqui? Eu achei
que estava bem longe do Rio de Janeiro e podia fazer uma intriga carioca.
Mas, se tiver algum carioca, por favor, me releva, está bom? Mas vocês
imaginam que os índios que falavam tupi, quando perguntavam para eles
quem eram os índios que estavam lá para dentro, nos campos lá para
dentro do sertão, eles diziam que era "gente do mato". Eles diziam que
era gente do mato, porque eles ficavam no litoral, e eles ficaram muito
tempo no litoral. Eles só ficavam pegando praia, né, gente? Ficavam
pegando praia nesse litoral todo. Acho que de Paranaguá, dessas praias
maravilhosas de Paranaguá, até lá em cima, na Paraíba... Porque lendo um
trabalho muito interessante, que vocês podiam ler uma hora se tiverem
curiosidade, uma história da Mata Atlântica, com o título A ferro e fogo,
seu autor foi Warren Dean. O Warren Dean, ele é um camarada que morreu
muito cedo, parece que com 47, 48 anos, escreveu esse monumento que
é a história natural da Mata Atlântica. Ele conta a história da Mata Atlântica
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que aquele velho índio lá na costa dos Estados Unidos, num lugar
chamado Seattle, que tem o mesmo nome desse chefe indígena que falou
para o governo dos Estados Univdos: “Olha, se vocês nos tomarem essa
terra em que nós vivemos, ensina para os seus filhos que essa terra é
sagrada. Pisem com cuidado nessa terra. Se vocês não souberem
reverenciar essa terra, e não entenderem que tudo que acontece com a
terra, tudo que fere a terra, fere os filhos da terra, verão que um dia vocês
vão despertar sufocados nos seus próprios detritos”. Essa imagem é
terrível. Roubar o futuro é isso. Roubar o futuro dos nossos filhos e dos
nossos netos é conviver com a possibilidade dos nossos rios virarem
esgotos. Olha o preço que nós estamos pagando. E as pequenas e grandes
cidades do país também estão todas com rios podres. Parece que se
tornou natural, nossos prefeitos pegam uma grana preta e mandam meter
um concreto em cima de um rio podre e entuba o rio para ninguém ver
que ali embaixo está passando um esgoto. Nós perdemos o controle
social sobre os nossos representantes, eles fazem o que querem. Se os
camaradas chamam a gente no dia 15 de novembro ou 05 de novembro,
ou outubro, a cada turno, pegam nosso voto e depois eles fazem o que
querem com os mandatos que nós atribuímos a eles para fazer todo o
tipo de besteira, inclusive mudar o Código Florestal, como fizeram
descaradamente. E agora fazendo novas mudanças, tentando imprimir na
Constituição de 88 emendas que atendem só o interesse particular desses
indivíduos e seus grupos, como se a Constituição do Brasil fosse uma
carta de condomínio. O Brasil é o condomínio desses caras e eles
nomeiam o síndico e aplica no síndico e o síndico vai lá, entra na
Constituição, corta com uma emenda. "Que mais você quer aqui, meu
filho?" "Ah, agora troca o elevador". Nós não podemos deixar que essa
recolonização se consolide de uma maneira tão automática e que isso vire
uma coisa natural, porque os nossos filhos e nossos netos é que vão
herdar esse futuro duvidoso, além desse lugar que nós aprendemos a
amar, que são os lugares dos rios, das florestas, das montanhas serem
também apropriados por gente que não sabe cuidar deles. Que vão
estragar essas paisagens cada vez mais. Eu não sei se as paisagens em
que vocês nasceram ou cresceram têm tanta importância para o seu bem-
estar emocional, para seu equilíbrio pessoal, mental. Mas para mim têm.
E eu me incomodo muito de assistir a mudança das paisagens quando a
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