John Muir e A Paixão Moderna Pela Naturezas (Donald Worster)
John Muir e A Paixão Moderna Pela Naturezas (Donald Worster)
John Muir e A Paixão Moderna Pela Naturezas (Donald Worster)
Donald Worster*
Uma classe numerosa de homens estão dolorosamente estupefatos mesmo quando eles
encontram qualquer coisa viva ou morta, em todo o universo de Deus, com a qual eles
não podem comer ou transformar de algum modo para que se torne útil a si mesmos....
Seu Deus.... é interpretado como um gentil homem civilizado, seguidor das leis cm favor
tanto de uma forma republicana de governo ou de uma monarquia limitada: crenças na
literatura e na língua da Inglaterra; é um defensor da constituição inglesa e das escolas
dominicais c sociedades missionárias; e é puramente um artigo manufaturado como um
pequeno objeto de um teatro fajutd"'ix.
estática criada uma vez sobre o tempo por uma mente distante e sem corpo. Era
um mundo dentro de um fluxo sem fim. A Terra se move, o gelo escorre sobre a
paisagem, plantas e animais se envolvem e se separam. Mas sempre aquele fluxo
divino é proposital. Sempre expressa algo de plano ou de ordem. Sempre se
move em direção da beleza.
O que os humanos encontraram nessa visão panteísta do mundo? Toda
religião oferece alguma crítica ao comportamento humano e apresenta um ideal
pelo qual nossas vidas e pensamentos podem ser conformados. Da mesma forma
ocorre com o panteísmo de Muir. Ele percebeu-se e aos humanos como um todo
como forças sem leis, desordenadamente batendo contra o mundo, humilhando-
se, precisando de aprendizado de e para a natureza. Apreciar a beleza natural
divina tornou-se sua ética.
Criticando aqueles que falharam em tratar o mundo como um local
sagrado, entretanto, Muir não se tornou um pessimista sobre os humanos. Pelo
contrário, ele entendia cada indivíduo como seu igual em potencial, capaz de
partilhar os mesmos sentimentos sobre a natureza que ele nutria. Nesse otimismo
benevolente ele incluía todas as mulheres, crianças e homens.
As visões de Muir sobre os indígenas podem contradizer sua esperança
universal sobre a espécie humana; aquelas visões têm sido às vezes entendidas
como anti-democráticas, até racistas. É verdade que, como outros igualitaristas
brancos de seu tempo, ele, de forma inconsistente, criou distinções hierárquicas
entre selvageria e civilização, ou como Muir expõe, entre sujeira e limpeza. Ele
foi repelido por "caras sujas" e especialmente pelo degradante estado das tribos
nativas remanescentes da Califórnia"". O jovem Muir lutou contra os
preconceitos raciais de sua época e nunca, em quaisquer de seus escritos,
publicou, sugeriu que algumas pessoas fossem biologicamente interiores do que
outras.
A paixão de Muir pela natureza viveu nele pelo resto de suas vidas e
transformou-o num dos maiores escritores da natureza em sua época, seguindo
sua migração para West Coast. Mas no sentido que nunca foi bem analisado,
aqueles sentimentos pela natureza diminuíram e tornaram-se cada vez mais
conservadores e comprometidos com o tempo. Ele nunca repudiou suas visões
primeiras, mas depois da década de 1870 aquelas visões passariam por um
período de ajustamento, precisamente como Muir citou, depois de encontrar seu
amigo imigrante mexicano em Eaton Canyon, "casamento e dinheiro."
Em 1881, Muir casou-se com Louisa Strentzel, filha única de um casal
de fazendeiros em Martinez, Califórnia. Saindo de sua vida de solidão por entre
as montanhas, entrou para um mundo de colonização, de prosperidade, um
mundo doméstico de classe alta. Feliz por sua mulher e por sua família, devotou
suas energias ao seu projeto de acumulação de propriedade e de produção
econômica, reiventando-se como um agricultor bem sucedido. Seu sogro deu-lhe
uma ajuda substancial, uma parte de seus extensos vinhedos, o que ajudou Muir
a construir uma fortuna também substancial. Devido também à vida de sua
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espaços semelhantes a museus. A natureza agora aparecia para eles não como
um mundo de divindade, mas como um espectro de expressões estéticas, que
variavam do grandioso ao mundano; apenas as melhores dessas expressões
precisavam aparecer, serem valorizadas, serem preservadas. E em todos esses
cenários belos os quais tentaram colecionar e preservar, trataram de providenciar
hotéis, ferrovias, rodovias e os confortos físicos da civilização.
Muir era contra a presença de hotéis em parques, mas entre seus amigos
aprendeu a canalizar e redirecionar seus sentimentos para com a natureza e,
assim como eles, passou a valorizar a natureza mais pelas suas belas expressões.
O Yosemite Valley na Califórnia aparecia no topo de sua hierarquia. Ele devotou
seus últimos anos para trazer aquele vale novamente para as mãos federais e
expandi-lo através de um segundo parque nacional. Outros ambientes
californianos que apareciam na sua lista de preservação eram o Kings Canyon no
sul da Sierra Nevada e as regiões de sequóiad.
Para promover a preservação ambiental, Muir ajudou a fundar o Sierra
Club, uma associação de voluntários que Tocqueville descreveu como
característica de sociedades democráticas'''. O clube, precisa ser dito, incluía
muitos indivíduos para os quais a natureza ainda oferecia a maior fonte de
sentimentos religiosos, incluindo professores e membros de denominações
protestantes. Mas o clube também atraía naturalistas para os quais a paixão pela
natureza tornou-se seletiva e exclusiva. Sob a influência do Club, foi possível
conservar o melhor da Sierra Nevada, porém não o Central Valley. Eles
honraram aqueles "nobres reis", as sequóias, porém não as outras árvores. Eles
buscaram salvar habitat para um elite de mamíferos, tais como bisões, enquanto
"espécies inferiores" foram ignoradas. Aquelas espécies da elite da vida e da
beleza, argumentam os membros do clube, tornaram-se as "jóias" da nação.
Enquanto Muir e seus aliados do clube trabalhavam para salvar os
últimos espaços, uma destruição sem precedentes do habitat natural ocorria em
toda a América. O continente tornou-se uma imensa indústria para a produção de
petróleo, trigo, automóveis, subúrbios, grandiosos bairros com jardins
cuidadosamente desenhados, universidades para a elite e galerias de arte.
Em 1909, quando estava prestes a completar 70 anos, Muir passou
vários meses na residência de verão do executivo E. H. Harriman, nas margens
do Lago Klamath, no Oregon, uma residência rústica rodeada por pinus e
carvalhos. Foi para lá devido à insistência de Harriman, sabendo de que Muir
dificilmente escreveria algo novo. Os amigos pressionavam-no para escrever
uma autobiografia que inspirasse outros com a história de alguém que ascendeu
socialmente de um estado de obscuridade para ser o pastor dos parques
nacionais.
Harriman tinha conseguido seu idílico retiro através da expansão de seu
império ferroviário da Califórnia para o Noroeste do Pacífico chl. O Lago
Klamath oferecia tanto um lugar para caçadas e pescarias como também uma
base da qual poderia perceber seu enriquecimento constante. Em 1905, o
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governo federal lançou um grande projeto para converter aquela região junto
com o Lago Tule em campos irrigados; Harriman percebeu rapidamente que os
fazendeiros envolvidos no projeto precisariam de vagões para transportar suas
commodities para o mercado. Criar aquela nova agricultura moderna significava
destruir um dos mais importantes habitats da vida lacustre da América do Norte.
75% daquelas terras seriam destruídas, e metade da população de pássaros
perdida`"".
Qual foi a reação de Muir àquela destruição ambiental abalizada pelo
seu generoso amigo e anfitrião, um dos maiores executivos da indústria
ferroviária nacional? Não disse uma palavra, mesmo em seus diários e cartas.
Enquanto sentava na varanda de Harriman, tentando relembrar suas primeiras
impressões de um "paraíso de pássaros" na Wisconsin de sua infância, não
dispensou atenção à perda de vida das aves e do habitat de pássaros que
começava a ocorrer poucas milhas dali.
O jovem Muir descobriu a beleza em qualquer local por onde andava, e
toda essa beleza era encarada como divina. O velho Muir, ao contrário, tendia a
pensar a natureza selvagem em termos de tesouros nacionais espetaculares. Lá, e
somente lá, havia uma natureza a ser salva, enquanto em toda a parte a natureza
poderia ser sacrificada no nome de fazendas ou minas ou homens e sua
civilização industrial.
O jovem Muir adentrou a natureza com pouco dinheiro, usando farrapos,
acampando com qualquer pessoa que encontrasse, sem distinguir cor ou classe
social. O velho Muir usava roupas finas, ocasionalmente carregando cigarros em
estojos finos, e acampava com cavalheiros influentes da nação. O velho amor
pela conservação e o cuidado com a amizade não desapareceu, mas agora falava
com "cavalheiros civilizados, obedientes às leis em favor da forma republicana
de governo ou de uma monarquia limitada."
Não podemos negar os esforços de Muir para salvar o Yosemite ou
outros espaços de beleza inigualável. Certamente estamos melhores com esses
locais de preservação oriundos de um desenvolvimento econômico. Inspirados
no seu exemplo, norte-americanos têm buscado expandir o sistema de parques
nacionais beirando quase a mil unidades, e rapidamente temos expandido nosso
senso de o que dentro da natureza precisa ser preservado; muitos daqueles
espaços preservados durante o século XX estavam longe de uma natureza
sublime — espaços sem montanhas, grandiosidade cênica ou uma megafauna
carismática. Um espírito mais igualitarista na preservação surgiu com a inclusão
de parques estaduais por Muir, parques municipais e de condados, espaços
abertos, trechos de rios e refúgios de vida selvagem. Mais radicalmente,
estendeu-se a proteção para quaisquer espécies ameaçadas, até mesmo àquelas
minúsculas. Todos aqueles esforços de preservação, protegendo o mais alto e o
menos qualificado, o comum e o extraordinário, o obscuro e o carismático
tiveram ligações importantes com a idéia de democracia. Nós não aprendemos
somente a preservar a natureza em todas as suas formas mas também abrir
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Notas
MUIR. John. The San Gabriel Mountains. The Writings of John Muir. Boston: Sierra Edition,
vol. 8, Sierra Edition (Boston: Houghton Mifflin, 1918), 147-48. A identidade do companheiro
de Muir no acampamento é desconhecida. Uma possibilidade talvez seja Carlos R. Cruz, que um
mês depois de Muir levantou um acampamento por onde Muir tinha passado. Cruz, entretanto.
era de Monterey, Califórnia, e já era casado e com dois filhos. Ver A History of Eaton Canyon
Natural Arca and Adjacent Ranches (Pasadena: County of Los Angeles Department of Parks &
Recreation, n.d.), 6-7; and Pasadena Star News, 24 February 1923.
""" MUIR, John. My Boyhood and Youth. Writings of John Muir, 4. vol. 1.
""i" Para uma introdução a esse debate, ver SOLOMON, Robert C. (org) Thinking about Feeling:
Contemporary Philosophers on Emotions. Oxford: Oxford University Press, 2004.
""i" Um provocativo começo em torno dessa questão é KELLERT, Stephen R.; WILSON,
Edward O. he Biophilia Hypothesis. Washington: Island Press, 1993.
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"" Ver, por exemplo, NICHOLSON, Marjoric Hope. Mountain Gloom and Mountain Glory: The
Development of the Aesthetics of the Infinite (1959) Seattle: University of Washington Press,
1997; NASH, Roderick Frazier. Wilderness and the American Mind. 4.ed. New Haven: Yale
University Press, 2001; THOMAS, Keith. Man and the Natural World: A History of the Modem
Sensihility. New York: Pantheon, 1983; e COATES, Peter. Nature: Western Altitudes since
Ancient Times. Berkeley/ Los Angeles: University of California Press, 1998), 125-39.
c""i LEOPOLD, Aldo. A Sand County Almanac and Sketches Here and There (1949)
Reimpressão: Oxford University Press, 1987.
Não se sabe muito sobre a infância de Muir na Escócia, de 1838 a 1849. As melhores
observações sobre o assunto podem ser encontradas em WOLFE, Linnie M. Son of the
Wilderness: The Life of John Muir (1945). Reimpressão: Madison: University of Wisconsin
Press, 1973.
""viii Os anos de Muir em Wisconsin, incluindo seus dias na universidade do estado foram
descritos por HOLMES, Steve J. The Young John Muir: An Environmental Biography.
Madison: University of Wisconsin Press, 1999. p. 39-113.
MUIR, J. A Thousand-Mile Walk to the Gulf, vol. 1, Writings of John Muir, 354-55. A
versão original, que difere um pouco da impressa pode ser encontrada em CHADWYCK-
HEALY, The Microform Edition of the John Muir Papers, published by Chadwyck-Healey
(1986), rolo 23, folha 111.
"1 MUIR, J. A Thousand-Mile Walk to the Gulf, 353. Outras espécies, argumenta, "são criaturas
companheiras de nossos amigos mortais."
TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracy in America. Garden City: Anchor Books. 1969, p.
554.
"I" idem, ibidem, p. 451-52.
Idem, p. 452.
"h" A análise do desenvolvimento da religiosidade em Muir pode ser encontrada cm STOLL,
Mark. God and John Muir. In MILLER, Sally M. John Muir: Life and Work. Albuquerque:
University of New Mexico Press, 1993, p. 65-81; WILLIAMS, Dennis C. God's Wilds: John
Muir's Vision of Nature. College Station: Texas A&M University Press, 2002; e WORSTER,
Donald. John Muir and the Roots of American Environmentalism. The Wealth of Nature:
Environmental History and the Ecological Imagination. New York: Oxford University Press,
1993. p. 184-202.
"I " Citado por WOLFE, L. M. John of the Mountains: The Unpublished Journals of John Muir.
Madison: University of Wisconsin Press, 1966.
MUIR, J. "Additional Notes ... High Sierra," 19 June 1875, In WOLFE, L. M.. John of the
Mountains, p. 208. 17. MUIR, J. My First Summer in the Sierra, vol. 2, Writings of John Muir,
p. 220.
"'vil' De acordo com o San Francisco Examiner. de 25 de Janeiro de 1916, o capital de Muir
quando morreu em 1914 somava US$250.000,00, sendo que grande parte desse montante
(US$184.000,00) estavam depositados em um banco de San Francisco, na região de Martinez.
Se fôssemos calcular esse montante com base no câmbio atual, a soma seria de
US$4.584.666,00.Ver também DOSCH, Arno.The Mystery of John Muir's Money, Sunset, 36
Fev. 1916, p. 20-22, 61-62.
BRANCH. Michael P. recentemente publicou os diários de Muir entre 1911 e 1912, intitulado
John Muir's Last Journey: South to the Amazon and East to Africa. Washington. D.C.: Island
Press, 2001.
`1 O esforço para transformar o Yosemite Valley em parque nacional pode ser interpretado através
das obras JONES, Holway R. John Muir and the Sierra Club: The Battle for Yosemite. San
Francisco: Sierra Club, 1965; e RUNTE, Alfred. Yosemite: The Embattled Wildemess. Lincoln:
University of Nebraska Press, 1990.
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COHEN, Michael P. The History of tile Sierra Club, 1892-1970. San Francisco: Sierra Club
Books, 1988,1-37.
CADMAN, William J.; CADMAN, LoEtta A. History of Rocky Point, Oregon. Klamath
Historical Society, Klamath Echoes 2 (1965): 21,48. Ver também KLEIN, Maury. The Life &
Legend of E. H. Harriman. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2000.
"" Ver LANGSTON, Nancy. Whcre Land and Water Meet: A Western Landscape Transformed.
Seattle: University of Washington Press, 2003. p. 83-87; e KITTREDGE, William. Balancing
Water: Restoring the Klamath Basin. Berkeley e Los Angeles: University of California Press,
2000. p. 54-55.