Paisagem - Euler Junior
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TEORIA
Euler Sandeville Júnior
RESUMO
ABSTRACT
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Paisagem
A paisagem diz respeito muito de perto ao arquiteto, mas não é fácil nos
darmos conta do significado do termo e do “objeto”1 designado em sua abran-
gência e complexidade. O que é fundamental para discutirmos a relação da
profissão com a paisagem, que se situa muito além da mera implantação de
melhores ou piores objetos construídos (edifícios, praças, jardins, mobiliário,
etc.). Neste texto discutiremos a adequação do termo (paisagem) ao “objeto”
de estudo (paisagem).
(1) O termo objeto é utilizado em várias acepções muito distintas neste artigo. Uma vez que está consolidada
a utilização da expressão “objeto de conhecimento”, mantemos-na. Quando empregado nesse sentido,
aparecerá entre aspas, nem tanto para diferenciar de outros sentidos que o contexto explicita, mas para
registrar um uso crítico desse termo consagrado, que ao mesmo tempo em que cumpre um papel na comu-
nicação, também traz embutido um entendimento que fica sob suspeita: o de uma relação suposta direta
entre objeto, objetividade e objetivo na ciência tradicional, com uma autonomia do sujeito. O termo, assim
destacado, propõe que se atente a um outro problema: o de uma suposta dissociação (irreal) entre sujeito
e “objeto”, e à própria natureza de unicidade que tal termo sugere (esse tipo de unicidade freqüentemente
conduz a um reducionismo analítico, decompositivo de elementos e conjuntos, de ordens e classes, e não
a um pensamento de síntese, de totalização dialética). O “objeto” paisagem não se centra em um mundo
de objetos, mas de relações entre objetos (sociais: simbólicas, funcionais, morfológicas, culturais, etc., bem
como ecológicas) e, indo mais longe, de nexos entre essas relações, e entre essas relações, objetos e sujei-
tos. Assim, ainda que paisagem constitua um “objeto” de natureza relacional e processual, não está nunca
na catalogação dos objetos ou das relações entre objetos, pois é um conceito de síntese. Aproxima-se, um
pouco, da noção de “objeto complexo”, a qual procura construir “objetos” que não são unívocos, nem
passíveis de compreensão a partir de um único olhar disciplinar. O “objeto” de conhecimento paisagem,
complexo, não comporta os reducionismos que essa expressão pode favorecer, e para os quais esperamos 49
resumidamente ter alertado. A paisagem não se encontra na constituição de um mundo de objetos a serem
descritos, nem nas relações entre esses objetos, nem na exclusão dos sujeitos dos objetos, mas em uma
formulação de síntese mais complexa. Apenas a partir desta problematização é que o termo “objeto” pode
ser lido neste artigo.
define landscape como “a wide view of country scenery”. Talvez essa polaridade
entre espaço e sua visualidade indiquem bem a natureza do problema.
(2) Também Milton Santos (2002, p.103) observa: “a paisagem é apenas a porção da configuração territorial
que é possível abarcar com a visão”. Note seu cuidado de mencionar configuração territorial e não espaço,
já que opera a partir de uma complexa definição do que seja espaço. Se pudesse se estabelecer um acordo
da paisagem como lance de vida, por que, então, esforçaríamo-nos para sua conceituação? De fato, boa
parte dos estudos sobre paisagens têm como referência a configuração territorial, mas muito raramente (ex-
50 ceto em estudos de percepção) o lance de vista. Nas abordagens clássicas da geografia, nas mais recentes
da ecologia da paisagem e na arquitetura da paisagem, o que se nota é o conceito de paisagem ultrapassa,
na prática, a idéia de lance de vista. O que mais freqüentemente ocorre é uma polarização entre forma e
conteúdo.
Nas línguas latinas, pais (AGEM) tem origem no latim pagus (marco ou ba- 51
liza metida na terra, território rural delimitado por marcos, distrito, aldeia,
povoação). Dessa palavra derivam outras como paganalia (festas de aldeia),
(3) Na abrangência mais ampla da palavra que inclui a “Idade Moderna” e “Contemporânea”, da história
universal tradicional.
(4) Obviamente, os processos naturais se inscrevem em um campo de fenômenos, enquanto os processos so-
ciais em um campo de conflitos e tensões, de intencionalidade. Porém não vemos, ao empregar a palavra
processo, nenhum dos dois pólos (sociedade-natureza) em uma perspectiva teleológica, de finalidade ou
determinação necessária, tratando-se de processos abertos à indeterminação.
(5) Estamos banindo, neste texto, a visão/representação paisagística da paisagem como cena ou pintura, pelas
razões já expostas. Tal abordagem tem sua validade como discussão do imaginário sobre a paisagem, mas
a paisagem, como tal, não pode ser definida pela mediação da pintura, que é outra coisa. Enfim, tratamos
da paisagem como espaço, com implicações que serão expostas mais adiante.
(6) Vale citar Coimbra (1985), embora entenda que a abordagem sistêmica da paisagem (assunto para outro
texto) pode também não ser suficiente para abarcar a paisagem: segundo esse autor e conforme já temos
observado, panorama implica um significado físico-estético (podemos lembrar que orama = vista, espetácu- 53
lo, coisa maravilhosa), enquanto paisagem seria o complexo de elementos os quais compõem e configuram
um lugar determinado, com estreita vinculação com a vida que nele se desenvolve, especificando-se pelo
meio geográfico e seus ecossistemas (aproximando-se, aqui, das abordagens sistêmicas da geografia e da
ecologia).
(7) Daí a insuficiência das abordagens exclusivamente analíticas (baseadas na decomposição e catalogação de
elementos, e em sua padronização, por vezes incluindo o conceito de estrutura morfológica ou tipológica).
Também as abordagens sistêmicas, embora mais complexas e dinâmicas, correm o risco de tornarem-se
insuficientes, na medida em que hierarquizam e objetivam o estudo da paisagem (não raro influenciadas por
um forte estruturalismo), deixando em um pano de fundo o campo de conflitos que a constitui como tal e
como história. Assim, embora possamos colher contribuições importantes de abordagens desse tipo, sobre-
tudo da segunda, fica faltando uma abordagem de síntese, mais próxima do que “seja” a paisagem.
(8) Utilizando dois termos sugeridos em artigo de 1986 por Miranda Martinelli Magnoli, republicado em 1994,
p. 60: “A essas conFORMAções, conFIGURAções, carregadas da interação social com o suporte temos de-
nominado PAISAGENS.”
(9) Não se pensa em uma distinção do tipo economia como infra-estrutura e cultura como superestrutura, mas se
procura reconhecer a interdependência dessas instâncias da sociedade (SANTOS, Milton, 1985, relacionava
como instâncias da sociedade o espaço, a cultura e a economia), que não se podem pensar como fatos
independentes, mas sim, necessariamente, relacionados, de modo a encontrarmos uma imbricação entre
esses pólos, os quais só se justificam pela necessidade de organizar o conhecimento.
(10) A explicação não é uma verdade, mas sua busca contínua, maculada por uma ordem que é tanto interpre-
tação quanto explicação. A explicação como um produto fechado, o qual se almeja, é, hoje, inaceitável.
Tampouco decorre de um domínio conceitual do pesquisador sobre seu objeto, mas de uma interação
complexa em que ambos são construídos (reconstruídos), o que implica em uma dimensão criativa, intuitiva
e imaginativa no processo de conhecimento em sua busca, por meio do método e do conceito, de uma
pretendida objetividade, sabida insuficiente. Razão que reforça para nós a importância do debate cultural
sobre o conhecimento pretendido, dos vínculos de sua elaboração, dos limites de sua finalidade social.
Esse é o campo político ao qual todo estudo de paisagem remete, mesmo quando não o explora.
(11) Talvez não seja possível definir uma aparência verdadeira do mundo, como foi pretendido desde o ilumi-
nismo e o positivismo, razão pela qual uma falsa aparência não implica, por antítese, na possibilidade de 55
uma verdadeira aparência. O que se pode é discutir a relevância e implicação dessas aparências, e, no
caso questionado aqui, dessa organização pela “espécie”, para dar conta do mundo. Trata-se, portanto,
de inserir a paisagem em uma perspectiva de toda discussão e todo conhecimento como uma discussão e
transformação da cultura.
Mas precisamos avançar nessa discussão. “No princípio, tudo eram coisas,
enquanto hoje tudo tende a ser objeto, já que as próprias coisas, dádivas da
natureza, quando utilizadas pelos homens a partir de um conjunto de inten-
ções sociais, passam, também, a ser objetos. Assim a natureza se transforma
56 em um verdadeiro sistema de objetos e não mais de coisas e, ironicamente,
é o próprio movimento ecológico que completa o processo de naturalização
da natureza, dando a esta última um valor.” (SANTOS, 2002, p. 65). Se
aceitarmos a distinção de Milton Santos entre coisas e objetos, como uma
(12) Segundo Cunha (1982, p. 330): “- estes(ia) elem. comp. Do gr. Aisthesía ‘sensação, percepção’, que se
documenta em vocábulos eruditos, alguns formados no próprio grego, como anestesia, e em vários outros
introduzidos na linguagem científica internacional, como alestesia, hipoestesia, etc.”
(13) O que é uma operação diferente de reconhecer a natureza na paisagem, mesmo que entendamos natureza
como domínio ou construção da cultura (SANDEVILLE JR., 1999).
58 (14) Também aqui não vemos um sentido determinístico, teleológico, nesse vir a ser. Embora as condições desse
vir a ser estejam presentes, não são determinantes. Ou seja, a paisagem que será é indeterminada nesse
contínuo vir a ser. Não se exclui daqui a existência de projetos-desígnios contraditórios (o que se considera,
seria impossível para a natureza, pois não se vê nela razão científica a existênca de vontade), colocando, de
fato, a discussão da paisagem em um campo político e ideológico inevitavelmente.
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Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Eugênio Queiroga, pela leitura atenta e minuciosa deste trabalho.