Caboclos e Orixás No Terreiro
Caboclos e Orixás No Terreiro
Caboclos e Orixás No Terreiro
1590/0100-85872018v38n1cap04
C aboclos e Orixás
modos de conexão e possibilidades de
no Terreiro:
simbiose
Miriam C. M. Rabelo*
*Universidade Federal da Bahia – Salvador
Bahia - Brasil
Ricardo Aragão**
**Universidade Federal da Bahia – Salvador
Bahia - Brasil
ta. Simbiose significa que estes seres estão relacionados por interesses
em comum, mas comum não significa ter o mesmo interesse em comum,
apenas que interesses divergentes agora precisam um do outro (Stengers
2011:60).
Provavelmente, o primeiro destes foi a bela monografia de Jim Wafer, The Taste
of Blood, de 1991. Tendo como foco as interações entre seres humanos e as diferentes
entidades espirituais presentes no candomblé de Salvador, Wafer dedica uma seção
de seu livro aos caboclos. Mas no lugar de apresentar essas entidades a partir do tema
do sincretismo, o autor oferece uma rica descrição do seu comportamento nos ter-
reiros (linguagem, maneirismos, padrões de interação). Inspirado em Bakhtin, Wafer
discerne nos caboclos uma qualidade carnavalesca que os diferencia em bloco dos
orixás e os aproxima dos exus e erês, também cultuados no candomblé (caboclos, erês
e exus compondo três modos de expressão do que Bakhtin chama de corpo grotesco,
um corpo com fronteiras permeáveis, em contínua troca e comunicação com o meio).
O livro de Jocélio Teles dos Santos, de 1995, foi o primeiro estudo sobre o can-
domblé inteiramente dedicado ao caboclo. Explorando diversas facetas da presença
dos caboclos na religiosidade afro-brasileira, Santos oferece uma outra perspectiva
à questão, que tanto mobilizou seus antecessores, de como entender a incorporação
dessas entidades nos candomblés de Salvador. Conforme conclui, “o caboclo é me-
nos brasileiro do que aparenta ser e mais africano do que se poderia crer” (Santos
1995:147). Sua entrada no candomblé, argumenta o autor, foi guiada pela lógica
deste sistema religioso; não é nem sinal de degradação do modelo “africano”, nem re-
sultado de simples articulação entre as culturas ameríndia e africana. A semelhança
entre o caboclo e orixás como Exu e Oxossi bem como o culto a entidades “donas da
terra” entre alguns dos grupos étnicos responsáveis pela formação do candomblé (no-
tadamente os povos bantu) sugerem que, apesar das diferenças significativas entre os
deuses africanos e os caboclos, existiu “um pressuposto lógico” para a inserção destes
últimos no candomblé.
Santos dedica parte importante de seu trabalho a descrever diversas facetas do
culto aos caboclos no candomblé e a contrastá-lo com o culto aos deuses africanos.
A presença dos caboclos no candomblé, observa o autor, não implica mistura ou
enfraquecimento dos princípios que regem o culto aos orixás: diferentes em quase
tudo, do comportamento aos modos de ocupação do espaço no terreiro, as duas
entidades são cultuadas em separado.
Publicado em 1994, o livro de Mundicarmo Ferreti, Terra de Caboclo, reúne um
conjunto de trabalhos que tratam do caboclo em outra religião de matriz africana:
o Tambor de Mina. Nos terreiros de Mina, observa a autora, fala-se de “uma ‘quase
invasão’ de entidades espirituais caboclas […] que, uma vez acolhidas pelos pais de
santo […] ensinaram novos cânticos e danças e aqueles passaram a realizar para elas
ritos especiais impregnados de elementos culturais indígenas…” (1994:23). Confor-
me Ferreti, diferentes tanto dos voduns (equivalentes aos orixás nos terreiros keto),
quanto dos espíritos indígenas, os caboclos na Mina são entidades maleáveis, capazes
não apenas de adotar, conforme o caso, o comportamento dos deuses africanos e dos
espíritos indígenas, como também de operar uma ligação entre eles (1994:35). Mas
sua presença na Mina está longe de representar perda ou subtração do culto aos vo-
Rabelo e Aragão: Caboclos e Orixás no Terreiro 87
duns: segundo insistem os próprios praticantes, a chegada dos caboclos para “baiar”
depois que os voduns foram honrados nas festas não implica mistura.
Assim, tanto Santos quanto Ferreti sugerem que caboclos são integrados nos
espaços de culto aos deuses africanos – mesmo subordinados aos orixás e voduns de
quem se dizem filhos – mas sempre mantidos em separado. A mesma conclusão apa-
rece em um texto de Prandi, Vallado e Souza (2001:124) sobre o culto aos caboclos
nos candomblés de São Paulo: “O candomblé de caboclo hoje é praticado paralela-
mente ao culto de divindades africanas, estando associado aos terreiros de inquices,
orixás e voduns. Tudo se passa como se houvesse duas atividades religiosas indepen-
dentes, podendo mesmo se observar separação dos espaços físicos, não se misturando
caboclo com orixá.”
Neste trabalho, pretendemos, como os autores acima, refletir sobre o lugar dos
caboclos nas religiões de matriz africana, especificamente o candomblé de Salvador. Não
mais preocupados com a determinação das suas origens (indígena, africano, brasileiro?),
ou mesmo interessados em abordar sua entrada no candomblé a partir da relação entre
tradição e inovação, importa-nos tratar do modo como se ligam nos terreiros e nos cor-
pos de seus adeptos entidades da terra e da África. Neste sentido, estaremos perseguindo
algumas das questões já colocadas sobre as diferenças e relações entre caboclos e orixás,
mas desejamos abordar essas questões do ponto de vista de uma ecologia das práticas,
atentando para as situações e oportunidades que, no dia a dia dos terreiros, se oferecem
para que essas entidades se vinculem. Interessa-nos conduzir a nossa discussão sobre
caboclos e orixás no candomblé rumo a uma reflexão mais ampla acerca das maneiras e
caminhos pelos quais práticas diferentes podem vir a se conectar nas religiões de matriz
africana no Brasil, mais particularmente no candomblé.
Como já observamos, estamos tomando os encontros entre caboclos e orixás
como eventos simbióticos no sentido proposto por Stengers, e esperamos deixar cla-
ro, no decorrer do texto, porque eles se enquadram nessa definição. Mas nosso pro-
pósito não é classificatório. Eventos, encontros e relações simbióticas produzem um
traçado muito próprio e apoiam-se sobre as oportunidades de multiplicar e estender
esse traçado: ao descrever os encontros e relações entre caboclos e orixás no terreiro,
queremos justamente pensar no tipo de espaço (e de corpo) que possibilita e resulta
dos engajamentos entre esses seres.
Em um plano mais geral, estamos experimentando com dois deslocamentos
para tratar das relações entre orixás e caboclos: convertendo-as, primeiro, em ques-
tão espacial e, segundo, em questão que remete ao tema da ética. O primeiro des-
locamento é bastante compreensível – se queremos tratar da relação entre práticas
diferentes, então uma perspectiva espacial faz-se necessária –; afinal, espaço é justa-
mente o plano em que diferenças podem se encontrar ou se conectar enquanto dife-
renças, sem serem neutralizadas: “resolvidas” a priori por uma perspectiva de síntese
futura ou reduzidas a um passado original. Desse primeiro deslocamento decorre o
segundo, que nos leva da geografia à ética: afinal, espaço é não só o terreno em que
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as diferenças se localizam, mas o meio que lhes afeta e em que elas são provocadas a
se afetar. Na medida em que dizem respeito a conexões interessadas e possibilidades
de convivência entre seres que partilham de um meio comum, eventos simbióticos
pertencem claramente ao campo da ética.
Antes de começarmos, vale notar que, embora em um terreiro de candomblé
convivam não só caboclos e orixás, mas também entidades como erês e exus, que
apresentam muitas semelhanças com os caboclos (ver Santos 1995; Wafer 1991; e
Chada 2006; entre outros), neste texto, optamos por não tratar delas. Apesar de
cientes de que nossa opção traz o risco de simplificar um universo bem mais rico e
variado, interessa-nos principalmente abordar as relações entre os deuses africanos e
as entidades brasileiras, “donas da terra”, no terreiro e no corpo dos adeptos.
Para tratar da questão da convivência no terreiro, utilizamos casos contados
por adeptos do candomblé tanto em contextos de entrevista como em conversas in-
formais. Todos são moradores de bairros populares de Salvador. Também recorremos
a descrições de eventos em que um de nós (ou os dois) figurou como participante e,
sempre que for o caso, sinalizamos a identidade do autor das descrições.
O texto está dividido em quatro seções. Na primeira, apresentamos alguns dos
percursos pelos quais adeptos do candomblé se ligaram a caboclos e orixás; enquanto
na segunda, discutimos como essas entidades vêm a fazer parte da vida de seus filhos/
médiuns. Na terceira e quarta partes, exploramos os modos como ocupam o terreiro
e o corpo respectivamente, enfocando os caminhos e passagens que se fazem nesses
processos de ocupação.
Percursos
Como Jacira, muita gente mais antiga do candomblé começou sua relação com
os orixás pela mão dos caboclos. Na história de alguns, o aviso de que precisavam
da feitura, de que eram destinados à vida no candomblé, ou de que os problemas
vividos só poderiam mesmo ser resolvidos com o ingresso no culto aos orixás, foi-lhes
dado diretamente por um caboclo – frequentemente o caboclo de um pai ou mãe de
santo, de um amigo ou de um morador do bairro. Na história de outros, seus próprios
caboclos é que, tirando-lhes subitamente o controle de seus corpos, anunciaram a
terceiros – parentes, amigos, vizinhos – o caminho que lhes fora reservado. Este foi o
caso de dona Jacira – a primeira vez que Boiadeiro baixou, foi logo dizendo à mãe da
menina que ela devia fazer o santo.
O caso de dona Jandira, que tem quase setenta anos de feita (iniciada), foi, em
alguns aspectos, parecido: sua iniciação no candomblé contou com a interferência
importante de um caboclo para enfim acontecer. Jandira nasceu em 1938 e foi feita
com 9 anos em uma casa de nação keto. Menina, era tomada por um exu de rua, que
não a deixava em paz e criava um verdadeiro caos em casa, envolvendo-a em brigas
constantes com o pai. Uma vizinha, compadecida com a situação, intermediou o con-
tato com uma mãe de santo que aceitou cuidar da menina, mesmo contra a vontade
do pai. A mãe de santo deu comida para o exu. Depois foi cuidar de Jandira:
Jandira fala de pessoas que, como ela, trazem, além do vínculo com o orixá, a
missão de caboclo. Neste caso, precisam cuidar das duas partes – a parte do orixá, no
candomblé; a parte do caboclo, na sessão (seja a mesa branca, também chamada de
sessão espírita, em que os caboclos respondem ao chamado dos presentes sentados
em oração, seja a sessão de giro em que vêm para dançar e tirar suas cantigas ao som
dos atabaques). Na época em que Jandira foi feita, cumpridas as obrigações com o
orixá, iaôs5 eram instados a doutrinar seus caboclos na sessão.
Diferentes acertos podiam regular essa situação. Embora nem sempre fosse o caso,
muitas vezes a articulação entre o culto aos orixás e o culto aos caboclos envolvia um
caminho que ligava candomblé e sessão e que ora começava em espaços domésticos,
onde os caboclos primeiro se faziam presentes, e seguia para o terreiro, onde as forças das
entidades africanas estavam já devidamente assentadas, ora partia daí em direção à casa
do filho de santo, lugar em que seus caboclos iriam trabalhar e que requeria poucas alte-
rações para abrigar as atividades de boiadeiros, índios ou marujos. Dona Jandira fala de
um tempo passado em que casas de candomblé keto procuravam controlar ou restringir
a presença de caboclos. Mas também de compromissos e obrigações que recaíam sobre
as pessoas que tinham as duas partes, conectando, através delas, entidades africanas e
entidades nativas em uma espécie de cartografia existencial.
O caso de Benedita é esclarecedor. Nascida em 1942 e feita aos 30 anos, Bene-
dita conheceu no espiritismo de mesa branca a mulher que algum tempo depois viria
a ser sua mãe de santo e que, à época (em que frequentavam juntas a sessão), já era
iniciada no candomblé. Tratava-se de dona Angelina, mãe de santo (hoje falecida)
de um terreiro angola de Salvador:
Chegadas
“Na nação keto não se pode nem receber caboclo, não era para ter, tá errado.
Não era para receber caboclo. Mas você sabe que caboclo ninguém governa ele,
quando ele quer vir, ele vem.” (Jacira). “E aí passou um caboclo…” (Jandira).
Os caboclos chegam como quem vem passando e decide parar. Se penetram
nos terreiros keto que, a princípio (assim insiste Jacira), deveriam manter-lhes as por-
tas fechadas, é porque não se submetem facilmente às fronteiras impostas pela nação.
Quando querem, entram. Mas ainda assim precisam se instalar, ou serem instalados.
A história de Paulo ajuda a entender esse ponto.
Paulo nasceu em 1957 e fez o santo nos anos 1980. Na época em que partici-
pou de nossa pesquisa, em 2008, já era pai de santo, mas ainda não tinha seu próprio
terreiro. Na sua casa, só podia dispor de dois quartos para atividades religiosas – em
um, guardava o assentamento de sua Iansã Balé (orixá ligada aos espíritos dos mor-
tos); no outro, os assentamentos dos demais orixás. Do lado de fora, tinha assentados
dois caboclos – Rei das Ervas e Serra Negra.
Anos depois, em consulta com uma mãe de santo, Paulo soube dos efeitos da
oferenda arriada:
O orixá se você tiver algo, ele vem e vai e fica por isso mesmo, mas
o caboclo tem a língua solta. Se ele chegar aí e tiver algo estranho e
diferente ele diz: “ói, diga fulano que é assim, é isso, e isso, e isso. Faça
assim, assim, assim”. E a entidade [orixá] não, você morre aí por ela. Se
ele [o orixá] chegar, você tiver com qualquer coisa de anormalidade,
não pense que ele vai deixar um remédio pra você, não. Nada pra você!
Agora o caboclo é destravado. Ele chegou… e também se tiver algo
também que não dê pra ele, que ele não gostar, ele fala. A entidade não.
Pra ele [orixá] tá tudo bom. O caboclo chega, canta, grita, pinta o que
ele quer. A entidade, se você não cantar pra ele, ele fica aí, amuado aí.
Você que tem que cantar ou ele tem que ter o ogã dele pra cantar pra
ele. Caso contrário ele fica aí. O caboclo não. O caboclo ele vem, se
ele diz que não vai ficar, ele vai embora. E a entidade não, se ele vem,
ele fica aí. Se você não despachar, o médium fica aí, ocupado com ele.
Então, é completamente diferente. Completamente diferente da entida-
de… eu não sei se eu tô falando besteira, meu Deus, eu acho superior,
viu. O caboclo. Sem distinção! Se ele gostar, ele lhe diz na cara. É
muito positivo. Se ele não gostar também, ele lhe diz. Não tem segredo.
Com ele não tem negócio de papai, nem mamãe, não. [O orixá] só se
você jogar [os búzios para ele falar], né. Se você jogar, você jogar aí, na
mensagem ele diz. Caso contrário, ele não diz. (entrevista com Dona
Jandira, 07/02/2000)
Cada entidade tem um estilo próprio de conduzir relações. Um fala pouco para
poucos e só quando interpelado de maneira correta (pelos búzios), enquanto o outro
fala muito, para muitos e sempre que quer; um opera pelo segredo, de forma reserva-
da, o outro opera às claras e desconsidera completamente o efeito que suas palavras
possam produzir nos ouvintes. Cada um faz de forma diferente o espaço da interação:
os modos do orixá desenham, por assim dizer, um espaço de lugares semi-iluminados
e profundidades parcialmente acessíveis, apenas sugeridas (o que se vê, na interação
com eles, é apenas parte da história), os modos dos caboclos parecem tornar visível e
expor ao máximo toda a extensão do lugar (o que se vê é tudo que se passa). Talvez
por conta disso Jandira veja o orixá como dissimulado, enquanto o caboclo é conhe-
cido pela sinceridade absoluta – fala o que é preciso, ali mesmo, doa a quem doer.
Acomodações
ta-se da chegada de um caboclo durante uma festa de orixá, realizada na casa de Mãe
Xagui. Nascida em 1929 e feita em 1936, Xagui lidera um terreiro angola fundado
em 1940. Presenciado por Ricardo, o caso foi depois narrado por uma ekedi11 da casa:
O caso acima nos revela questões interessantes sobre as relações entre cabo-
clos e orixás. A presença do caboclo em rituais destinados a orixá não é estritamente
proibida. É apenas não desejada, mas, no caso específico, a justificativa apresentada
foi que a festa aconteceu no dia do índio, 19 de abril. Alguns adeptos mais velhos do
candomblé contam que antigamente quase toda festa “virava pra caboclo”, isto é, se
convertia em samba de caboclo. Após o ritual dedicado aos orixás, que durava três
ou mais dias, era a vez dos donos da terra sambar.
Embora possam estar presentes no mesmo ciclo ritual, raramente caboclos e ori-
xás dançam juntos. A arquitetura do terreiro e das festas parece desenhada para man-
tê-los separados, e os adeptos procuram não misturar os lugares e tempos de cada um.
Entretanto, longe de serem indiferentes, caboclos e orixás estão vinculados por uma di-
nâmica de atração. Se Tumbansé se fez presente na festa de Zaze e se antigamente festa
de orixá virava para caboclo, é porque a celebração dos deuses africanos atrai também
as entidades brasileiras. As duas situações mencionadas acima – Tumbansé esperando
na cozinha enquanto Zaze está no barracão; o samba dos índios, boiadeiros e marujos
tendo lugar apenas quando a festa de orixá “vira” para os caboclos – ilustram menos uma
política de identidade, que vê a mistura como contaminação, do que uma etiqueta (não
menos política) destinada a manejar a distância entre termos que se atraem. A distância
entre Tumbansé e Zaze ou entre a festa dos orixás e o samba dos caboclos é o espaça-
mento que mantém e regula a atração entre eles, que permite a apresentação de cada um
como outro, evitando que suas diferenças se dissolvam no mesmo.
As cantigas de caboclo ilustram bem esse ponto. Em algumas delas, os caboclos
fazem referência aos orixás como seus pais adotivos, colocando em questão a ideia de
que pertencem a mundos que não se tocam. A seguir, uma cantiga puxada pelo Sul-
tão das Matas de uma filha de santo iniciada para Oxum: “Com três dias de nascido,
/ Minha mãe me abandonou / Me largou na folha seca / Mãe Oxum que me criou”.
Rabelo e Aragão: Caboclos e Orixás no Terreiro 97
Possessões e Passagens
No modo como caboclos e orixás ocupam os corpos de seus filhos humanos de-
senham-se também diferenças e conexões. Estas agora são diferenças de intensidade,
peso, duração e conexões que se fazem através de passagens bastante sutis.
Uma vez eu senti parecendo que uma coisa ia entrar assim pelos meus peitos,
eu ainda tentei empurrar aí já era [risos]. É, aquilo bateu aqui, né, parecendo
uma peitada, aí num sei mais o que é que foi, não. Foi Língua Guerreira. […]
Meu marido disse assim: “Poxa, Jandira, o que foi aquilo? Você caiu pra trás,
o que foi?” Eu disse: uma peitada que eu recebi. Aí, ele ficou calado. Depois,
muito tempo, aí ele disse o que foi. Ele disse: “Foi o caboco fulano”. Eu disse
é. Foi uma coisa inesperada. Não tinha nem problema de corrente nenhuma!
Foi um negócio assim estranho. A gente tava conversando, a gente vinha,
vinha conversando, assim… Fomos apanhar umas folhas. Aí eu senti assim
como que a terra quebrou assim um pedaço que eu ia subir. Aí, recebi [quan-
do Jandira relata esse episódio bate nos peitos] aquela peitada. Suspendeu o
98 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(1): 84-109, 2018
tampão da terra, parece que subiu comigo e aquilo bateu assim. Eu revirei pra
trás. (entrevista com Dona Jandira, 07/02/2012)
Meu filho, eu não gosto muito de chamar esse caboclo. Desde que meu
pai de santo chamou ele, ele me maltrata muito pra me pegar… E quan-
do ele vem, é sempre reclamando, exigindo… Meu orixá não me pertur-
ba, mas o caboclo é demais… Até pra me pegar o orixá é mais tranquilo.
Só sinto perder um pouco o chão e não vejo mais nada. Lemba é assim!
Mas Sete Serras, não! Me joga de um lado, me joga do outro, a cabeça
fica pesada, o corpo dói e tudo mais… Ele é muito brabo! (entrevista
com Mãe Xagui, 07/2010).
A comparação entre orixá e caboclo esboçada por Mãe Xagui é feita recorren-
temente por aqueles que vivenciam a presença das duas entidades no corpo:
Caboclo quando pega você, ele não quer saber é nada. Ele é mais vio-
lento quando vai se manifestar. Se deixar, ele pega você e mete você em
cima do que tiver, em cima de pau, de pedra, de vidro. Ele na hora que
vai se manifestar é mais violento. Já o orixá não. O orixá já é mais tran-
quilo, mais suave, quando a pessoa vai receber orixá. Caboclo se tiver
zangado com você deixa você todo arrebentado, já o orixá não. Quando
eu sei que vou receber caboclo eu já sinto aquela ira, aquele nervoso. Já
fico mais agitada, já com orixá já é mais calmo. (entrevista com Dona
Jacira, 16/02/2008)
A violência dos caboclos é muitas vezes atribuída ao fato de que essas enti-
dades “não passam pela doutrina”, isto é, não são sujeitas ao cuidadoso processo de
aprendizado que se desenrola na feitura. Entretanto, os percursos que fazem o cabo-
clo e o orixá para pegar o corpo do rodante sugerem ainda outra conexão causal. Os
caboclos precisam ocupar um território que a princípio não lhes pertence, razão pela
qual a ocupação é sempre, em alguma medida, uma luta; os orixás irrompem num ter-
ritório que é (desde sempre) seu13. Por isso, enquanto os orixás ocupam rapidamente
o corpo, um intervalo extenso (e sofrido) desenha-se entre a chegada do caboclo e
a conquista (ou ocupação plena) do corpo. Um pai de santo jovem, com origem na
umbanda, fornece uma explicação interessante para esse intervalo, em que o tempo
da luta é substituído pelo tempo da negociação diplomática. Segundo ele, como o ca-
boclo não faz parte do enredo do iniciado, isto é, do conjunto das entidades que com-
põem o seu ori (cabeça), “pra pegar a pessoa [ele] precisa de permissão do orixá, por
isso ele não pega logo!” (conversa entre pai de santo jovem e Ricardo Aragão, 2012).
No corpo, desenham-se, assim, diferenças significativas entre os modos de ca-
boclos e orixás. Mas também se tecem possibilidades de passagem. Vejamos duas. A
primeira refere-se a um carrego (ritual para os mortos do terreiro) realizado na casa
(angola) de Mãe Xagui:
feitura, aqui a atração não ameaça confundir as entidades que se atraem. Promove
uma reversibilidade entre elas, mas não abole completamente a distância.
Será mesmo? Vejamos, antes de concluir, entidades que são caboclo e orixá (ou
mesmo orixá, caboclo e exu).
Chico de Airá recebe Tempo desde os 8 anos de idade. Trata-se de Tempo da
Muringanga, que ele herdou de avó materna.
Eu tinha 8 anos de idade quando ele me pegou pela primeira vez… Ele
estava incorporado em minha avó e disse que iria passar pra mim, que
ele ia continuar comigo, aí ele saiu de minha avó e me pegou. Ele já
dava sessão quando pegava minha avó, ele sempre foi metá-metá, meio
Tempo, meio caboclo! Aí foi que começou tudo… Quando minha avó
morreu, eu tive que assumir a sessão dela e continuar a caridade que ele
faz sempre! (conversa gravada por Ricardo Aragão com Chico de Airá,
02/11/2016).
Quando tem sessão de caboclo no terreiro de Chico, Tempo vem como cabo-
clo, samba, tira cantiga e trabalha, embora seja tratado com deferência pelos demais
caboclos que chegam (e que provavelmente reconhecem seu lado orixá). Já quando
tem festa de orixá e especialmente nas festas celebradas em sua homenagem, Tempo
vem (é) orixá.
O Tempo de Chico é raro, mas não é um caso único. No candomblé, fala-se
de entidades que são caboclo e orixá (metá-metá) ou que podem vir nas duas for-
mas. Abaixo, o trecho interessante de uma conversa gravada entre uma pesquisadora
iniciante e um adepto rodante de um terreiro keto de Salvador, Jailton, nascido em
1961 e feito em 1997:
tudo, o pessoal me fala, eu digo que sei a parte dele de caboclo. Porque meu Ogum
ele é de Ronda. Ele vira né, até certa hora ele tá como orixá, como caboclo, depois
quando chega certa hora ele vira pra…
- Vira pra quê?
- Pra diabo.
- Ah! Então ele pode vir como orixá e depois virar pra…
- Numa certa hora, que ele não pode ficar mesmo, então ele vira pro outro lado
dele. (conversa gravada por bolsista com Jailton, 16/01/2000)
Tempo que é caboclo e orixá, Ogum que é caboclo, orixá e exu. Não seriam
estes casos de mistura e indistinção? Para efeitos da presente discussão, basta dizer
que não há confusão, mas variação nos modos – caboclo, orixá (e exu) – que parece
se dar, nos dois casos, em função da situação ou como resposta às solicitações do
contexto. É a situação que “atrai” a entidade em cada um de seus modos específicos.
Conclusão
Foi nosso objetivo aqui discutir o lugar do caboclo nos terreiros de candomblé
de Salvador. Interessou-nos tratar do caboclo no quadro de uma reflexão acerca dos
modos pelos quais, no candomblé, são admitidas e conectadas práticas diferentes –
neste caso, práticas relativas aos orixás e aquelas próprias às entidades brasileiras,
donas da terra.
Observamos que muitos dos autores que se debruçaram sobre a inserção dos
caboclos em religiões dedicadas ao culto dos deuses africanos (orixás, inquices, vo-
duns) enfatizaram que essa inserção não implica mistura: os cultos de uma e outra
entidade são mantidos separados, ocorrem em paralelo nos terreiros. Elaborando so-
bre o sentido desse tipo de composição, Anjos discerne aí um modelo afro-brasileiro
de lidar com as diferenças: “[…] a lógica rizomática da religiosidade afro-brasileira
em lugar de dissolver as diferenças conecta o diferente ao diferente deixando as di-
ferenças subsistirem enquanto tal. Um caboclo permanece diferenciado de um orixá
mesmo se cultuados no mesmo terreiro e sob o mesmo nome próprio (como por
exemplo, ogum)” (Anjos 2008:82).
De nossa parte, experimentamos com um enquadramento um pouco diferen-
te da questão, preferindo abordar a inserção dos caboclos no candomblé do pon-
to de vista da ética, isto é, descrevendo-a como um problema de convivência: de
composição do espaço (instauração de lugares, construção de fronteiras, abertura de
passagens) e manejo, por vezes bastante sutil, da distância entre seres que se atra-
em, embora tenham poucas ocasiões para efetivamente se encontrarem no terreiro.
Procuramos mostrar que esse reenquadramento é, em grande medida, fiel à manei-
ra como os praticantes descrevem as relações entre as duas entidades: caboclos os
conduzem ao candomblé, desafiam convenções das casas de culto aos orixás (que, a
Rabelo e Aragão: Caboclos e Orixás no Terreiro 103
princípio, lhes fechavam as portas), mas mantêm-se fiéis a elas, abrem passagem para
os orixás e chegam quando estes lhes cedem o lugar.
Por isso, sugerimos que o encontro entre orixás e caboclos no candomblé é um
bom exemplo do conceito de simbiose mobilizado por Stengers (2011) – um encontro
em que diferentes práticas e/ou seres se conectam sem que um ameace a existência
do outro. Encontro em que a possibilidade de coexistência (como alternativa à des-
truição) não está fundada na indiferença – como se para deixar o outro existir fosse
preciso não se interessar por ele –, mas na articulação de interesses divergentes. Ao
longo do texto, procuramos dar corpo a essa ideia.
Vimos, a princípio, que a conexão entre caboclo e orixá é (pode ser) uma conexão
entre dois lugares de culto diferentes – a sessão e o candomblé – mantida tão somente
pelo percurso de pessoas que são tomadas pelas duas entidades (que têm as duas partes) e
aceitaram esse destino com o comprometimento de quem foi afetado e é atraído em duas
direções. O espaço é feito como um caminho trilhado ora numa, ora noutra direção, mas
que muitas vezes – principalmente na história de gente mais antiga do axé – começa na
sessão e pela intercessão do caboclo (que explica a necessidade do candomblé e conduz
o médium até lá). A ligação entre candomblé e sessão não é necessária, nem há garantias
de que será preservada – ela se mantém na medida em que o caminho é percorrido.
Esse caminho é antecedido por chegadas, descobertas, surpresas, e, neste pon-
to, os espaços feitos pelo encontro com o caboclo e com o orixá mostram-se bem
diferentes. O caboclo chega e é atraído por alguma qualidade daquele de quem se
aproxima – desenha-se nesse encontro uma linha que conecta entidades separadas
(caboclo e médium), exteriores ou alheias umas às outras, mas que podem se tornar
íntimas. O orixá desperta, emerge e apresenta-se para uma relação que já flui sub-
terraneamente. Essas diferenças não são absolutas, e há certamente muitos casos em
que se embaralharam – o importante a notar é que convivem (no terreiro e no corpo
dos adeptos) como duas possibilidades de relação.
No terreiro, caboclos e orixás são assentados; as diferenças entre sessão e can-
domblé são trazidas para dentro como formas de se cuidar de entidades que agora
convivem. O terreiro – o barracão, em particular – transforma-se ora em espaço de
culto aos deuses africanos, ora em espaço de culto aos caboclos. O espaço e o tempo
são segmentados; caboclo e orixá não se misturam e aparentemente não se encon-
tram. Entre eles, um jogo de aproximação e distância, ou de inclusão parcial: os cabo-
clos são admitidos no mundo dos orixás, que, ao admiti-los, se diferencia e segmenta
(se divide em partes). Mas se não imiscuem nos assuntos dos orixás, caboclos também
não levam uma existência à parte no terreiro. Embora não se caracterizem pela sub-
missão, curvam-se perante a autoridade dos deuses africanos que os recebem – seus
pais e mães adotivos. Entre os dois, a atração é que define uma distância respeitosa
– que impede a absorção perfeita dos caboclos ao mundo dos orixás, mas que evita
que as fronteiras entre eles sejam rígidas demais, que impliquem fechamento. Entre
as partes – aposentos, nichos –, descobrem-se passagens.
104 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(1): 84-109, 2018
O drama que se encena no terreiro também se encena nos corpos dos adeptos.
Cada um, caboclo e orixá, faz o corpo à sua maneira, como uma possibilidade dife-
rente de ser afetado ou como uma coleção própria de movimentos e de ritmos. Cada
um empreende uma exploração diferente do território do corpo e entra numa relação
diferente com ele. É nesse território que caboclo e orixá quase se tocam, um dando
passagem para o outro sem jamais se encontrarem, numa relação de reversibilidade.
A passagem é também parte do modo como a distância é manejada no terreiro, figura
de uma ética que mantém os parceiros de uma relação na proximidade, mas que im-
pede a absorção de qualquer um deles pelo outro.
Em outro nível ainda, o drama que se desdobra no terreiro e no corpo pode
se encenar na carreira (ou trajetória) de uma mesma entidade. Estes são os casos
em que caboclo e orixá (e mesmo exu) se apresentam como modos de uma entidade
única. Dizemos modos, e não formas, para evitar pensar a entidade à maneira de um
espaço feito de partes ou segmentos fechados, com fronteiras bem definidas. Modos
no sentido bem coloquial em que falamos dos modos de alguém – da sua maneira de
se comportar e, portanto, de responder às situações que lhe são colocadas.
Temos assim, em diferentes níveis, modalidades de relação em que as partes
conectadas se atraem e se vinculam, sem que nenhuma delas seja reduzida aos termos
ditados pela outra. O que essas modalidades de relação nos dizem do espaço-mundo
do candomblé? Ou, ainda, em que sentido o espaço-mundo do candomblé favorece
a ocorrência de eventos simbióticos?
Talvez a primeira coisa a observar é que o espaço em que convivem orixás,
caboclos e humanos é um espaço com fronteiras abertas, em que novos elementos
sempre podem ser adicionados, enquanto outros podem ser descartados (não só por
uma decisão explícita, mas por descompromisso, falta de cuidado, esquecimento). Vi-
mos, nas várias histórias, caboclos que chegam e rearranjam a vida daqueles em quem
escolhem baixar, que põem seus médiuns em movimento (algumas vezes conectando
lugares) e que, embora alheios à ordem da feitura, podem ser admitidos no terreiro de
candomblé e vir a ocupar os corpos de pessoas já “feitas” (iniciadas).
Se novas adições são possíveis nesse espaço, é porque nem tudo está conec-
tado com tudo. O espaço-mundo do candomblé aproxima-se daquilo que William
James (1920) chamou de forma-cada: muitas coisas – mesmo distantes – podem
estar ou ser conectadas por meio de intercessores, mas sempre há algo de fora,
que escapa a essas conexões. O espaço se faz distributivamente através das muitas
maneiras das coisas se conectarem – no caso do candomblé, vimos que as pessoas
podem se ligar aos orixás via feitura e se ligar aos caboclos via afinidade, os ca-
boclos podem se ligar aos orixás via adoção, ou mesmo por vizinhança, e muitas
passagens podem conectá-los no terreiro. Mas, por maior que seja o alcance dessas
conexões, nenhuma delas arrasta o universo inteiro e nenhum conjunto de ligações
se resolve em uma unidade de nível superior16. Isso implica que sempre há um resto,
uma sobra não integrada.
Rabelo e Aragão: Caboclos e Orixás no Terreiro 105
ensina a manejar a distância de modo a evitar tanto sua dissolução completa (na pro-
ximidade excessiva que nivela), quanto sua exacerbação (no afastamento excessivo
que congela as diferenças e, no limite, produz o desinteresse).
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Entrevistas
Comunicação pessoal
Notas
1
A ecologia das práticas, esclarece a autora, não é um termo neutro para descrever práticas “tal qual
elas são”, independentemente de qualquer interesse que se tenha nos seus desdobramentos. Importa
à ecologia das práticas abordar as práticas segundo a perspectiva do que elas podem vir a ser (Stengers
2005:186).
2
Para Stengers, destruição inclui também a redução de práticas a termos e problemas que lhe são
alheios, que lhes são impostos de fora, ou, o que dá no mesmo, o rebaixamento de práticas a um
suposto denominador comum.
3
É importante observar que não estamos tomando as relações entre caboclos e orixás como refletindo
relações transcorridas entre indígenas e afrodescendentes, ou mesmo como oferecendo pistas para
entender estas últimas. Embora seja possível afirmar que a presença do caboclo no candomblé resultou
de uma longa e pouco conhecida história de contatos e trocas entre indígenas e africanos no Brasil,
não nos dedicaremos a rastrear essa história.
4
Não vamos discutir aqui os trabalhos que tratam do caboclo na umbanda.
5
Iaôs são adeptos iniciados que ainda não completaram as obrigações rituais de sete anos de feitura,
pelas quais se tornam adeptos sêniores ou ebomis.
6
A feitura faz nascer a pessoa e o seu orixá individual, manifestação única e insubstituível do orixá
geral, a quem está ligada.
7
Embora não desenvolva muito esse ponto, Santos observa que a posição diferente dessas entidades
quanto à iniciação é uma “componente de extrema significação para a compreensão da relação orixá-
caboclo na estrutura simbólica do candomblé baiano (1995:67).
8
Como observado por Ismael Girotto (comunicação pessoal, 28/07/2010), a presença dos caboclos é
mais densa nos seus locais de origem, como as matas no caso dos caboclos indígenas, o sertão no caso
dos boiadeiros e o mar, no caso dos marujos.
9
Se uma pessoa chega a um terreiro já acompanhada de caboclo, este será suspenso por ocasião de sua
feitura.
10
Essa “reversão” ressalta tanto a vinculação dos caboclos à nação angola, quanto a fluidez das fronteiras
entre nações no candomblé.
108 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(1): 84-109, 2018
11
Ekedis são mulheres iniciadas que não viram no santo (não vivenciam a possessão). Entre suas funções
no terreiro, está a de cuidar dos orixás presentes nos corpos dos adeptos virados (possuídos).
12
No candomblé, as pessoas cujos corpos são tomados por orixás e/ou caboclos são chamadas de
rodantes. Diz-se que rodam (com) ou viram no santo.
13
É bem verdade que as primeiras vezes que as pessoas viram no santo podem também ser violentas e
que, à medida que o médium e seu caboclo se acostumam um com o outro, a violência com que este
chega pode diminuir. Entretanto, dificilmente um caboclo chega sem luta – sem fazer tombar o corpo
que ocupa.
14
Descrição, produzida por Ricardo Aragão, do evento (carrego) realizado em 02/11/2014.
15
Em uma breve apresentação das ideias de Bergson acerca da moralidade, Connolly observa que
Bergson trata a ética como uma dimensão da moralidade que tem um caráter “inspiracional” e que é
sensível às mudanças de contexto. Os representantes dessa ética de inspiração, ele explica, “procedem
primariamente por atração e exemplo aplicado a novas circunstâncias, não segundo comandos ligados
a leis eternas” (Connolly 2005:117). Essa concepção de ética encontra certamente muitos ecos no
candomblé e “inspirou” nossa discussão acima.
16
Essas são as características do que James (1920) chama de “forma-tudo”.
17
Em alguns casos, as diferenças entre nações de candomblé expressam-se como diferenças entre orixás,
de modo que, em um mesmo terreiro, podem conviver orixás keto, angola e jeje (ver Aragão 2012 e
Rabelo 2016).
Recebido em: 08/05/2017
Aceito em: 17/04/2018
Resumo:
Entidades brasileiras, donas da terra, caboclos são presença marcante nos candom-
blés de Salvador, onde são cultuados os orixás, divindades africanas. Neste trabalho,
discutimos o modo como eles se conectam no terreiro de candomblé e nos corpos dos
adeptos. Procuramos mostrar que essas conexões constituem exemplo de simbiose no
contexto do que a filósofa Isabelle Stengers denomina ecologia das práticas: são co-
nexões parciais entre seres que, embora relacionados por interesses comuns, seguem
divergindo. Conforme argumentamos, oportunidades de simbiose desenham-se na di-
nâmica espacial do terreiro e apoiam-se em uma ética sutil que maneja a distância
entre termos que se atraem.
Abstract:
Brazilian spirit entities, known as owners of the land, caboclos are a strong presence
in the candomblé houses of Salvador, where African gods, the orixás, are worshipped.
In this paper, we discuss how these entities are connected in the Candomblé houses
(terreiros) and in the body of practitioners. We try to show that these connections
can be taken as examples of symbiosis in the context of what the philosopher Isabelle
Stengers calls an ecology of practices symbiosis: they are partial connections between
beings that go on diverging despite being related by common interests. We argue that
opportunities of symbiosis are given in the spatial dynamics of terreiros and rest upon
an ethics that manages the distance between entities that are attracted to one another.
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