Livro - Sociologia Jurídica
Livro - Sociologia Jurídica
Livro - Sociologia Jurídica
JURÍDICA
MARIA NAZARETH DA PENHA VASQUES MOTA
GUILHERME GUSTAVO VASQUES MOTA
CELSO LINS FALCONE
Organizadores
SOCIOLOGIA
JURÍDICA
AUTORES
Antonio José Cacheado Loureiro
Camila Bertoni Carneiro dos Santos
Carla Thomas
Carlos Antonio de Carvalho Mota Júnior
Celso Lins Falcone
Devane Batista Costa
Edmara de Abreu Leão
Fernando Figueiredo Prestes
Gracireza Azedo de Farias
Higor Luís de Carvalho Silva
Juliana Mayara da Silva Sampaio
Lenice Maria de Aguiar Raposo da Câmara
Marcelo Antunes Santos
Márcio Alexandre Silva
Maria Nazareth da Penha Vasques Mota
Mário Vinícius Rosário Wu
Monique de Souza Arruda
Rômulo de Souza Barbosa
Tiago Oliveira Lopes
Timóteo Ágabo Pacheco de Almeida
Vinícius Ribeiro de Souza
© Maria Nazareth da Penha Vasques Mota; Guilherme Gustavo
Vasques Mota; Celso Lins Falcone, 2018
310 p.
ISBN 978-85-7512-868-8
CDD 340.115
22. ed.
2018
Editora VALER
Av. Rio Mar, 63, Cj. Vieiralves – Nossa Senhora das Graças
Cep: 69053 180 – Manaus, AM
Tel.: [92] 3184 4568
www.editoravaler.com.br
Sumário
Apresentação
Eid Badr 7
7
Ao encerrar estas breves linhas à guisa de apresentação, registro os meus
efusivos parabéns aos organizadores, aos autores e ao Programa de Pós-Gra-
duação Stricto Sensu em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Ama-
zonas, o qual propiciou as condições necessárias para o desenvolvimento deste
relevante trabalho científico.
8
SOCIOLOGIA
JURÍDICA
COTAS X OUTSIDERS: ANÁLISE DO SISTEMA BRASILEIRO
DE COTAS SOB A ÓTICA DE HOWARD S. BECKER
QUOTAS X OUTSIDERS: ANALYSIS OF THE BRAZILIAN QUOTA
SYSTEM FROM THE PERSPECTIVE OF HOWARD S. BECKER
Antonio José Cacheado Loureiro1
Higor Luís de Carvalho Silva2
11
ABSTRACT: This paper has as its object the analysis of the Brazilian quo-
tas system, under the optics of Howard Saul Becker’s “Outsiders; studies in the
sociology of deviance”. Although, this paper tries to expose fundamental con-
cepts to understand the problem, as well as deeply exam on aspects about the
theme, pointing positives and negatives views, showing critics and doctrinaires
positions that use to circle the problem. It is worth mentioning that this paper
seeks to analyze the Brazilian quotas system since its origins and how the Brazi-
lian model matches Becker’s ideas.
KEYWORDS: Quotas System. Sociology of Deviance. Outsiders.
INTRODUÇÃO
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tica do referido sistema e em como as ideias do sociólogo americano refletem-se
sobre ele.
O primeiro capítulo trata sobre o sistema de cotas, no Brasil e no exterior,
trazendo aspectos históricos, classificações e espécies de cotas, bem como a le-
gislação pertinente ao tema exposto. Já o segundo capítulo versará sobre a obra
Estudos de Sociologia do Desvio – Outsiders, sobretudo no que diz respeito aos
conceitos e espécies de outsiders. Por fim, o terceiro capítulo traz perspectivas
futuras acerca do tema, além de determinar o ponto de intercalamento entre os
dois objetos de estudo do artigo: cotas e outsiders.
13
dos entre os Estados do norte e sul do país. Mas o que restou claro foi a ineficácia
de tais ações para abarcar toda a população negra.
Para Adriano Lesme (2010, p. 1), “a liderança do movimento de direitos
civis tinha em mente propor reformas econômicas, além da execução de leis an-
tidiscriminativas. Mas o declínio da economia na década de 1970 não permitiu
que essas ideias fossem colocadas em prática”.
Hoje, os sistemas de cotas raciais, que eram adotadas principalmente em
escolas nos EUA, foram abolidos. Em junho de 2007, a Suprema Corte dos Esta-
dos Unidos decidiu que a raça de uma criança não seria mais requisito prepon-
derante para determinar onde ela deveria estudar.
Vale ainda aduzir que as cotas são, também, realidade em outros países,
sobretudo no que diz respeito aos portadores de necessidades especiais, ou seja,
são cotas em razão de condições físicas, não são cotas raciais, uma vez que tais
cotas (raciais) são consideradas inconstitucionais em grande parte desses Esta-
dos, conforme o apanhado realizado por Juliana Marton:
PORTUGAL
Art. 28, da lei n.º 38/2004, estabelece a cota de até 2% de trabalhadores com defi-
ciência para a iniciativa privada e de, no mínimo, 5% para a administração pública.
ESPANHA
A lei n.º 66/97 ratificou o Art. 4.º do Decreto Real n.º 1.451/83, o qual assegura o
percentual mínimo de 2% para as empresas com mais de 50 trabalhadores fixos.
Já a lei n.º 63/97 concede uma gama de incentivos fiscais, com a redução de 50%
das cotas patronais da seguridade social.
FRANÇA
O Código do Trabalho Francês, em seu Art. L323-1, reserva postos de trabalho
no importe de 6% dos trabalhadores em empresas com mais de 20 empregados.
ITÁLIA
A lei n.º 68/99, no seu Art. 3.º, estabelece que os empregadores públicos e privados
devem contratar pessoas com deficiência na proporção de 7% de seus trabalhadores,
no caso de empresas com mais de 50 empregados; duas pessoas com deficiência, em
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empresas com 36 a 50 trabalhadores; e uma pessoa com deficiência, se a empresa
possuir entre 15 e 35 trabalhadores.
ALEMANHA
A lei alemã estabelece para as empresas com mais de 16 empregados uma cota
de 6%, incentivando uma contribuição empresarial para um fundo de formação
profissional de pessoas com deficiência.
ÁUSTRIA
A Lei Federal reserva 4% das vagas para trabalhadores com deficiência nas em-
presas que tenham mais de 25 anos, ou admite a contribuição para um fundo de
formação profissional.
BÉLGICA
Existe sistema de cotas, porém não há um percentual legal para a iniciativa pri-
vada. Este é negociado por sindicatos e representantes patronais para cada ramo
da economia.
HOLANDA
O percentual varia de 3% a 7%, sendo este firmado por negociação coletiva, de-
pendendo do ramo de atuação e do tamanho da empresa.
IRLANDA
A cota é de 3%, sendo aplicável somente para o setor público.
REINO UNIDO
O Disability Discrimination Act (DDA), de 1995, trata da questão do trabalho,
vedando a discriminação de pessoas com deficiência em relação ao acesso, à
conservação e ao progresso no emprego. Estabelece, também, medidas organi-
zacionais e físicas para possibilitar o acesso de pessoas com deficiência. O Poder
Judiciário pode fixar cotas, desde que se constate falta de correspondência entre
o percentual de empregados com deficiência existente na empresa e no local
onde a mesma se situa.
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ARGENTINA
A lei n.º 25.687/98 estabelece um percentual de, no mínimo, 4% para a contrata-
ção de servidores públicos. Estendem-se, ademais, alguns incentivos para que as
empresas privadas também contratem pessoas com deficiência.
COLÔMBIA
A lei n.º 361/97 concede benefícios de isenções de tributos nacionais e taxas de
importação para as empresas que tenham, no mínimo, 10% de seus trabalhadores
com deficiência.
EL SALVADOR
A Lei de Equiparação de Oportunidades, o Decreto Legislativo n.º 888, em seu
Art. 24, estabelece que as empresas com mais de 25 empregados devem contratar
uma pessoa com deficiência.
HONDURAS
A Lei de Promoção de Emprego de Pessoas com Deficiência, o Decreto n.º 17/91,
em seu Art. 2.º, fixa cotas obrigatórias para a contratação de pessoas com deficiência
por empresas públicas e privadas, na seguinte proporção: uma pessoa com deficiên-
cia, nas empresas com 20 a 40 trabalhadores; duas, nas que tenham de 50 a 74 fun-
cionários; três, nas empresas com 75 a 99 trabalhadores; e quatro, nas empresas que
tenham mais de cem empregados.
NICARÁGUA
A lei n.º 185 estabelece que as empresas contratem uma pessoa com deficiência a
cada 50 trabalhadores empregados.
PANAMÁ
A lei n.º 42/99 obriga os empregadores que possuam em seus quadros mais de 50
trabalhadores a contratar, no mínimo, 2% de trabalhadores com deficiência. O
Decreto Executivo n.º 88/93 estabelece incentivos em favor de empregadores que
contratem pessoas com deficiência. O governo também está obrigado a empregar
pessoas com deficiência em todas as suas instituições.
16
PERU
A Lei Geral da Pessoa com Deficiência, em seu capítulo VI, estabelece a conces-
são de benefícios tanto para as pessoas com deficiência quanto para as empresas
que as contratem, como a obtenção de créditos preferenciais e financiamentos de
organismos financeiros nacionais e internacionais; preferência nos processos de
licitação e dedução da renda bruta de uma percentagem das remunerações paga
às pessoas com deficiência.
URUGUAI
A lei n.º 16.095 estabelece, em seu Art. 42, que 4% dos cargos vagos na esfera
pública deverão ser preenchidos por pessoas com deficiência e, no Art. 43, exige,
para a concessão de bens ou serviços públicos a particulares, que esses contratem
pessoas com deficiência, mas não estabelece qualquer percentual.
VENEZUELA
A Lei Orgânica do Trabalho, de 1997, fixa uma cota de uma pessoa com deficiên-
cia a cada 50 empregados.
CHINA
A cota oscila de 1,5% a 2%, dependendo da regulamentação de cada m
unicípio.
JAPÃO
A Lei de Promoção do Emprego para Pessoas com Deficiência, de 1998, fixa o per-
centual de 1,8% para as empresas com mais de 56 empregados, havendo um fundo
Mantido por contribuições das empresas que não cumprem a cota, fundo este que
também custeia as empresas que a preenchem.
No Brasil, o sistema de cotas ganhou destaque no início dos anos 2000, foi
primeiramente utilizado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
que foi a universidade pioneira do país a adotar um sistema de cotas em vestibu-
lares para cursos de graduação por meio de uma lei estadual que disponibilizava
50% (cinquenta por cento) de suas vagas no processo seletivo para alunos egres-
sos de escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro.
17
Após a experiência da UERJ, foi a vez da Universidade de Brasília (UnB)
implementar uma política de ações afirmativas para negros em seu vestibular de
2004, ou seja, cotas raciais, em meio a muita polêmica, discussões e dúvidas le-
vantadas pelos próprios vestibulandos. A instituição em comento foi a primeira
no Brasil a utilizar o sistema de cotas raciais.
Com o passar dos anos, apesar de poucas, outras universidades também
foram aderindo às cotas em seus processos seletivos, reservando parcela de suas
vagas não apenas para negros, como também para indígenas, pardos e mem-
bros de comunidades quilombolas (cotas raciais), bem como para portadores de
necessidades especiais (PNE’s) e estudantes de baixa renda advindos de escolas
públicas (cotas sociais). Percebe-se, então, que no Brasil, o sistema de cotas não
tutela, alcança exclusivamente a questão racial (MARTON, 2016, p. 1).
Hodiernamente, esse cenário encontra-se bem diferente, visto que prati-
camente todas as instituições de ensino superior públicas destinam vagas para
o sistema de cotas em seus processos seletivos. No início, muitas viam no siste-
ma uma medida provisória e que não duraria por muito tempo. No entanto, ele
acabou tornando-se fixo, já que as universidades observaram que o processo
para uma melhora efetiva e significativa por meio de uma reforma no ensino das
escolas públicas seria lento e acompanhado de muita inércia.
De acordo com Lesmes (2016, p. 1),
18
para pretos, pardos e indígenas, conforme o último Censo Demográfico do Insti-
tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na região.
1.3 Conceituação
19
Vale ainda ressaltar que o ideal de raça utilizado nas ações afirmativas não
é o superado conceito biológico, mas sim o de construção social. A justificati-
va para o sistema de cotas é que certos grupos específicos, em razão de algum
processo histórico depreciativo, teriam maior dificuldade de mobilidade social
e oportunidades educacionais ou que surgem no mercado de trabalho, bem
como seriam vítimas de discriminações nas suas interações com a sociedade
(LESMES, 2016, p. 1).
As cotas raciais têm por escopo o critério da raça, ou seja, do grupo étnico.
Logo, enquadram-se nessa espécie de cota, as ações que visem reservar vagas
aos negros, pardos, indígenas, descendentes de quilombolas, bem como outras a
serem privilegiadas por lei.
No Brasil, como já citado, no ano de 2014, passou a vigorar a lei 12.990, que
reserva uma porcentagem das vagas de concurso público para negros e pardos,
no âmbito do executivo da União. A lei em comento traz alguns critérios de
admissão e operação dessa reserva, conforme dispõe o artigo 1o da referida lei:
Art. 1.º – Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas
oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empre-
gos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das
fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista
controladas pela União, na forma desta lei.
§ 1.º – A reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas
no concurso público for igual ou superior a 3 (três).
§ 2.º – Na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas
a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subse-
quente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído
para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5
(cinco décimos).
20
§ 3.º – A reserva de vagas a candidatos negros constará expressamente dos editais
dos concursos públicos, que deverão especificar o total de vagas correspondentes
à reserva para cada cargo ou emprego público oferecido.
Art. 2.º – Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que
se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, con-
forme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística - IBGE.
Parágrafo Único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será
eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da
sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo
em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de
outras sanções cabíveis.
Cumpre ressaltar, que a lei 12.711/12, diploma que trata das cotas em uni-
versidades federais, também traz um dispositivo que dispõe sobre a reserva de
cotas em razão da raça. Assim, vale colacionar o artigo 3.º da lei em comento:
Art. 3.º – Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o Art.
1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos
e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção
ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indí-
genas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está
instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE (Redação dada pela lei n.º 13.409, de 2016).
Parágrafo Único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios
estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completa-
das por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas.
21
os hipossuficientes econômicos, ou seja, aqueles que necessitam de uma equipa-
ração, de uma tutela econômica por parte do Estado.
De acordo com Arabela Olive (2005, p. 5) “as vagas para estudantes de es-
cola pública são vistas como a melhor forma de política de cotas, uma vez que
os argumentos de quem discorda da medida são de que o problema brasileiro é
social e não racial”. Assim, as cotas sociais iriam abranger, indiretamente, todas
as raças e beneficiar aqueles que realmente não têm condições de concorrer no
vestibular com alunos vindos de escolas particulares.
Dentro desse cenário, foi elaborada e passou a vigorar a lei 12.711, a emble-
mática Lei de Cotas, que trata sobre a reserva de 25% das vagas em instituições e
universidades federais para alunos que tenham cursado integralmente o Ensino
Médio na rede pública de ensino. Desse percentual, 50% é destinado a estudantes
de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita.
Não obstante, vale aduzir trechos do diploma normativo em análise para
ilustrar o exposto:
22
1.4.3 Cotas para portadores de Necessidades Especiais
23
I – o número de vagas existentes, bem como o total correspondente à reserva
destinada à pessoa portadora de deficiência;
II – as atribuições e tarefas essenciais dos cargos;
III – previsão de adaptação das provas, do curso de formação e do estágio proba-
tório, conforme a deficiência do candidato; e
IV – exigência de apresentação, pelo candidato portador de deficiência, no ato da
inscrição, de laudo médico atestando a espécie e o grau ou nível da deficiência,
com expressa referência ao código correspondente da Classificação Internacional
de Doença – CID, bem como a provável causa da deficiência.
Art. 41 – A pessoa portadora de deficiência, resguardadas as condições especiais
previstas neste Decreto, participará de concurso em igualdade de condições com
os demais candidatos no que concerne:
I – ao conteúdo das provas;
II – à avaliação e aos critérios de aprovação;
III – ao horário e ao local de aplicação das provas; e
IV – à nota mínima exigida para todos os demais candidatos.
A lei reserva um percentual de vagas para deficientes, exceto quando o cargo ou
emprego público exija aptidão plena do candidato.
O termo outsider tem a ver com a transgressão de uma norma social. Tal
norma é um modelo, uma regra de comportamento que se refere a um determi-
nado grupo social. Uma vez que alguém incorre contra a norma em comento,
torna-se um estrangeiro dentro do grupo social ao qual pertence. Outra forma
de ser considerado um outsider é, dentro de seu próprio grupo, pensar de forma
diferente dos demais membros (BECKER, 2008, p. 27).
O termo, em tela, é fruto do trabalho do sociólogo americano Howard S.
Becker, que por meio dos seus estudos, tornou-se um expoente no tema “desvio”,
desenvolvendo ideias acerca da relação crime e desvio, supondo, sempre, uma
relação social e sendo este o foco, ou seja, o crime relaciona-se com as relações e
não com o indivíduo analisado de per si. Assim, temos as regras sociais que de-
24
vem ser observadas e, uma vez descumpridas, gera-se o desvio. Vale ressaltar que
para Becker (2008, p. 27) “Desvio não é uma qualidade que reside no próprio
comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas
que reagem a ele”.
De acordo com Cristina Moura (2009, p. 1):
Becker nos leva a conhecer usuários de maconha, músicos de casas notur-
nas, “quadrados” e empreendedores morais, todos esses “tipos” sendo agentes
em processos que produzem carreiras, estilos de vida e visões de mundo que não
deixam de ser reais por serem socialmente construídos. O mundo social, ou me-
lhor, os mundos sociais concebidos por Becker são compostos por pessoas que,
agindo juntas, com diferentes graus de comprometimento, produzem realidades
que também as definem.
Segundo Becker, regras, desvios e rótulos são sempre construídos em pro-
cessos políticos, nos quais alguns grupos conseguem impor seus pontos de vista
como mais legítimos que outros.
25
Já no campo político, é possível vislumbrarmos o surgimento de políticos
outsiders, ou seja, aqueles que possuem ideias e defendem pontos de vista contra
majoritários, frente aos grupos dominantes. Tais ideias refletem como os grupos
desviantes estão presentes na sociedade brasileira e que os referidos políticos,
parte desses grupos, paulatinamente vêm ocupando posições de destaque nas
últimas eleições, como Jean Willys e Jair Bolsonaro, ambos representam grupos
minoritários, sendo o segundo o maior exponente da extrema direita no Brasil.
A academia é um ambiente favorável aos outsiders, uma vez que suas ideias
podem ser difundidas e, muitas vezes, acabam encontrando guarida na comuni-
dade acadêmica. No entanto, é possível que alguns grupos desviantes não encon-
trem acesso facilitado a este ambiente, já que o acesso ao ensino no Brasil, sobre-
tudo ao ensino superior, é bastante restrito, sendo considerado um privilégio, em
regra, alcançado por quem possui melhores condições econômicas.
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outros pensando que assim lhes farão bem, sem nunca se questionarem sobre a
vontade ou necessidade dos outros de incorporarem o sentido moralizante das
suas regras, ou seja, desde uma perspectiva superior dirigida a seres inferiores”.
Para Nilo Batista e Raúl Zaffaroni (2010) “os empresários morais tanto podem
ser comunicadores sociais, políticos, religiosos, policiais ou organizações que re-
clamam da impunidade exigindo sempre medidas mais duras para os c riminosos”.
Fomentar novos grupos desviantes é um ato de coragem e ousadia, pois no
caso está se incentivando o surgimento de opiniões fora do padrão dentro da
sociedade.
Anualmente, surgem Projetos de Lei com o objetivo de criar novas ações
afirmativas visando prestigiar novos grupos desviantes. Assim, o Legislativo age
ratificando a existência desses grupos que vão ganhando destaque, por meio de
iniciativas que buscam tutelar os desviantes, sempre em razão da observância do
princípio constitucional da isonomia, sobretudo em seu aspecto material.
27
mero de mulheres eleitas prefeitas diminuiu. Segundo dados do Tribunal Superior
Eleitoral, as mulheres representaram 7,39% dos prefeitos eleitos em 2000; 11,84%
em 2012; e 11,57% em 2016.
Como visto, as mulheres no campo político-partidário são consideradas
outsiders por excelência, uma vez que não se adequam às normas do grupo do-
minante da situação, ou seja, os pertencentes ao grupo do gênero masculino,
ocupando posições minoritárias nos rankings políticos.
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Existem, atualmente, dois projetos de Lei que visam cumprir os manda-
mentos isonômicos. O primeiro tramita na Câmara dos Deputados, que aprovou
a criação de uma cota em licitações públicas para a contratação de dependentes
químicos em processo de recuperação. A medida foi aprovada dentro do projeto
que altera o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas, permitindo a internação
involuntária de dependentes com base em pedido de familiares ou trabalhadores
da área da saúde.
A reserva de vagas é de 3% dos empregos em licitações de obras públicas
que gerem mais de 30 postos de trabalho. O plenário, porém, manteve a exi-
gência de abstinência do uso para ser beneficiado. Além de se manter longe do
vício, o dependente em recuperação terá de atender os requisitos solicitados pela
empresa, cumprir as normas do empregador e seguir seu plano individual de
atendimento.
Já o segundo refere-se a uma proposta legislativa do Estado de Minas Ge-
rais, em que os políticos cogitam a hipótese de ser criada uma cota de 10% para
usuários de drogas, considerados dependentes químicos nas vagas de concursos
públicos.
Ambos geram bastante polêmica, visto que receberam duras críticas nega-
tivas da sociedade civil e do próprio corpo político do qual surgiru, uma vez que
“prestigiam” algo considerado imoral pelo grupo dominante.
CONCLUSÃO
29
lho, ao funcionalismo público e ao ensino superior àqueles que estão inseridos
em grupos sociais não dominantes. Logo, é, de fato, positivo para a sociedade
brasileira a execução de tais programas.
No entanto, o sistema brasileiro de cotas não é isento de críticas, pelo con-
trário. Algumas críticas pontuais merecem ser tecidas. A primeira é a duração
do programa de cotas no Brasil. Outra é o âmbito em que o sistema é aplicado.
Por fim, a terceira crítica é a constante criação e inclusão de novos grupos sociais
abrangidos pela tutela do referido sistema, sendo aplicáveis neste ponto os con-
ceitos de Howard Becker.
Sobre a primeira crítica, vale ressaltar que a duração do sistema de cotas
brasileiro é indeterminada, o que gera grande insegurança jurídica, uma vez que
as ações afirmativas visam sanar os reflexos gerados por anos de desigualda-
de social entre os grupos divergentes e o grupo social dominante. Logo, deve
ser marcado um prazo razoável de duração dessas ações para que não ocorra a
perpetuação do sistema, o que não se mostraria adequado perante o princípio
constitucional da isonomia.
Sabe-se que o âmbito de aplicação das ações afirmativas, no Brasil, é bas-
tante amplo, envolvendo o mercado de trabalho, ou seja, a iniciativa privada, o
ingresso em universidades públicas e os certames para preenchimento de cargos
públicos. Críticos ao sistema afirmam que o espaço de incidência das cotas é de-
masiadamente amplo, o que conjugado com duração indeterminada do sistema
pode prejudicar, justamente, o princípio foco do sistema, ou seja, a isonomia.
A terceira crítica é contra o “empreendedorismo social”, termo criado por
Howard Becker, que, por sua vez, significa a criação de novos grupos sociais des-
viantes. O sistema de cotas brasileiro baseia-se na isonomia e para isso traz ações
afirmativas visando equiparar os grupos desviantes ao grupo social dominante.
No entanto, o Poder Legislativo brasileiro é um exemplo de empreendedor so-
cial, uma vez que constantemente cria, por meio de Leis, novos grupos desvian-
tes e os inclui no sistema de cotas.
O sistema de cotas deve ser operado por exceção. Dessa forma, a criação
de novos grupos desviantes deve ser medida excepcional, e não como tem sido
utilizada pelos membros do Poder Legislativo, sem parâmetros, desproporcio-
nalmente, ferindo, em alguns casos, o próprio princípio informador do sistema,
qual seja, a isonomia.
30
Diante do exposto, percebe-se que o sistema de cotas brasileiro se coaduna
com as ideias de Howard Becker, desenvolvidas na obra supracitada. O referido
autor constrói sua emblemática figura, o outsider, e este é a síntese daqueles que
são albergados pelas cotas no Brasil, ou seja, são aqueles que não se adequam,
são os grupos sociais marginais e por questões de isonomia recebem a tutela do
Estado brasileiro.
Por fim, reitera-se que o sistema de cotas merece elogios, já que, frente às
políticas atualmente adotadas, tem mostrado-se eficaz. É um modelo moderno,
vanguardista e que busca sanar as desigualdades históricas que marcam o Brasil,
tendo por princípio guia, informador, a isonomia, positivada na Constituição
Federal de 1988.
REFERÊNCIAS
31
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 17 ed. São Pau-
lo: Malheiros, 2009.
MARTON, Juliana. Lá fora: A história das cotas raciais nos EUA. Publicado em
31 de março de 2010. Disponível em: http://vestibular.brasilescola.uol.com.br/
cotas/la-fora-historia-das-cotas-raciais-nos-eua.htm
32
FUNÇÃO SOCIAL DA CIÊNCIA JURÍDICA
SOCIAL FUNCTION OF JURIDICAL SCIENCE
Camila Bertoni Carneiro dos Santos1
Celso Lins Falcone2
33
secure society for its citizens, making it possible for the decision to be stipulated
in advance not by arbitrariness, but by the limits of what was imposed by the
legal order. This article aims to demonstrate that the uncertainties generated by
the complexity of personal relationships are brought to a degree of lesser social
disruption if they are controlled by the dogmatic way, which consists in predic-
ting the pragmatic consequences for all concrete cases, in order to bring the best
possible solution to Minimize social disruption. For that, an inductive methodo-
logy was used, based on how many to the means, in bibliographical research and,
for purposes, in the qualitative method.
KEYWORDS: Social Role. Legal Science. Legal Dogma. Decidability.
INTRODUÇÃO
34
para compensar circunstâncias sociais desiguais. Aliás, isso se considera prima-
do da própria República e possui, portanto, cunho constitucional.
Logo, vê-se claro que o pensamento iluminista e sobretudo os movimentos
sociais do século XIX foram os responsáveis por possibilitar, no século XX, a
passagem do Estado liberal (individualista e patrimonialista) para o Estado So-
cial Democrático, matriz geradora das teorias das funções sociais, seja no âmbito
público, seja no privado.
Dessa forma, é preciso se investigar qual o papel da Dogmática Jurídica no
desenvolvimento da sociedade. No entanto, para chegar à correta apreensão da-
quilo que se entende por “função social da dogmática jurídica”, principalmente
num mundo complexo e dinâmico como o atual, torna-se imprescindível inves-
tigar seu conceito ao longo da história, especialmente a partir da construção do
pensamento romano que indubitavelmente é o grande responsável pela estrutu-
ração do pensamento jurídico nos Estados Ocidentais.
3 FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Max Limonard, 1998, p.35.
35
Na Idade Média, a ciência do Direito se desenvolveu no mundo ocidental
pelo advento da Universidade de Bolonha, Itália, cuja data de fundação se deu
em 1088. O estudo aprofundado de obras romanas, notadamente do corpus iuris
civilis, pelos glosadores, cultivou o nascimento do Direito como uma expressão
de pensamento dogmático. O trabalho desses pensadores era a elaboração de
glosas, anotações interlineares e marginais com alto conteúdo filosófico ou gra-
matical, que possibilitou uma atividade altamente exegética.
No entanto, não se pode esquecer que no processo de comentários e
adaptações dos glosadores houve a influência direta de aspectos históricos vi-
venciados, já que a Igreja, ao difundir sua ideologia, resgatou a fronesis grega,
assumindo-se como poder dominante no lugar do Império Romano. Nesse
momento, inicia-se o pensamento racional que irá dominar nos séculos se-
guintes. Trata-se do pensamento jurídico dogmático que “se transforma em
um instrumento de poder”.4
A técnica desenvolvida pelo jurista da época, baseada na análise de casos e
textos, cria o estilo “argumentativo da retórica prudencial” apta a reduzir a teoria
jurídica como disciplina universitária, dando preponderância racional ao “bem
comum” em detrimento dos “interesses individuais”. Tal pensamento tornou-se
a gênese do Estado Moderno e, nessa época, ocorreu, pois, a progressiva tecni-
zação da teoria jurídica como instrumento político, porquanto “só o jurista é
que domina, àquela altura, as operações analíticas através das quais a complexa
realidade política pode ser devidamente dominada”.5
A teoria jurídica da Era Moderna é marcada pelos estudos clássicos que se
iniciam no fim do século XV. O ponto de partida do pensamento desse período
é o de restaurar a verdade romana construída na busca de soluções técnicas para
o controle da natureza, para a sobrevivência harmônica social.
A fórmula aqui encontrada foi a da positivação do Direito Natural, até en-
tão fortemente arraigado. Mormente após o desenvolvimento da teoria sistêmica
baseada na razão proposta por Pufendorf,6 a teoria jurídica tem sua serventia
4 Ibid., p. 40.
5 Ibid., p. 41.
6 SAMUEL VON PUFENDORF (1632 - 1694) “A principal contribuição de Pufendorf foi a ênfase na “socia-
bilidade” da humanidade como fundamento do Direito Natural. “Qualquer homem deve, na medida
em que possa”, escreveu, “cultivar e manter frente aos outros uma sociabilidade pacífica, consistente
com sua característica natural e a finalidade da humanidade em geral.” A sociabilidade, no entanto,
está ameaçada pela característica decaída da condição humana. “O que teria sido a vida dos homens
se não houvesse a lei para os conciliar?”, pergunta o autor, “uma matilha de lobos, leões e cães lutan-
36
social na medida em que se organiza para almejar seus propósitos. Buscou-se a
“funcionalidade jurídica”.
A lei passou a ser considerada como um instrumento com caráter formal
e genérico na procura da convivência dos cidadãos. Houve o afastamento da
tradição romana de até então e instaurou-se um novo modelo revolucionador da
técnica jurídica: o empírico-analítico. Sob o ponto de vista pragmático, o Direito
Natural passou então a servir de paradigma para que, no plano ideológico, se
possibilitasse a reprodução artificial dos processos naturais.7 Isso significa que
pela experiência sensorial, é possível conhecer de forma abstrata a essência hu-
mana e se fazer proposições para o controle de suas reações.
Dessa forma, numa concatenação de pensamentos entre causa/efeito foi
possível se chegar a fórmulas jurídicas funcionais e obrigatórias para a convi-
vência humana. Este mecanismo de controle se colocou a serviço do Estado, o
que gerou sua unidade e seu domínio. A sistematização se tornou muito clara
a ponto de eliminar a prudência romana, paulatinamente, enquanto ocorria a
reconstrução do Direito.
Essa forma particular de pensar encontra sua função social na medida em
que criou sistemas normativos com propósitos próprios como, por exemplo, o
estabelecimento da paz, bem-estar social, vida atrelada aos ditames da dignida-
de, etc. Isso significa que as leis passaram a regular a ordem jurídica por meio de
critérios formais e gerais, aptos a balizar e harmonizar as relações sociais.
No entanto, nesse momento, descobriu-se um problema já esperado: nem
sempre é possível se fazer abstrações diante da enormidade de condutas e que-
reres humanos. A sociedade estava se tornando por demais complexa a ponto
de que nem sempre haveria possibilidades de prever suas expectativas e gerar
seu controle. Começou a ocorrer a perda da sua funcionalidade, o que atacou
diretamente os próprios métodos utilizados até então e passou a gerar o questio-
namento da Dogmática Jurídica8 ser ou não uma teoria científica.
do até o fim.” Por isso Deus, o divino legislador, instituiu as leis para ordenar a vida social do homem.
Como escreve Pufendorf: “Assim como a vida dos homens sem a sociedade seria semelhante à vida
das feras, da mesma forma, a lei da natureza se baseia, principalmente, no princípio da preservação
da vida social dentre os homens”. Disponível em: <http://pt.acton.org/historical /samuel-von-pufen-
dorf-1632-1694>. Acesso em 5 ago. 2017.
7 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Op. cit., p. 50.
8 Nos dizeres de Miguel Reale, a Ciência Jurídica se manifesta como Dogmática Jurídica, quando aquela
tem por objeto de estudo o Direito Positivo. Esclarece-se que a palavra dogma traduz a ideia daquilo
37
Esses questionamentos nortearam os séculos a seguir.
A partir do século XIX, a Dogmática passará por profundas revoluções,
sobretudo em virtude da necessidade de seu diálogo com as demais ciências,
bem como decorrente de seu desdobramento com o positivismo. A ciência jurí-
dica passa a receber novas funções, qual seja a atividade de fazer e de construir
os objetos que conhece. Nos dizeres de Camon de Passos,9 função é “um atuar a
serviço de algo que nos ultrapassa”.
Aqui, o plano do ideal perde sua característica metafísica e adquire a feição
de valores, estes mutáveis de acordo com a alteração das concepções sociais e
necessidades de adaptações funcionais.
Inicia-se, nesse particular, a negação sistemática jusnaturalista e seus ar-
gumentos passam a ser fundamentados na razão humana. Com Gustav Hugo
gera-se um marco daquilo que veio a influenciar Savigny e a Escola Histórica.
Hugo criou em seu pensamento a distinção da Ciência do Direito e Dog-
mática Jurídica, esclarecendo que esta é apenas uma continuidade histórica
daquela, como se a dogmática fosse uma contextualização funcional histórica
e momentânea do querer social traduzido em lei. Surge, então, o racionalismo
com uma postura mais ampla.
No racionalismo não se deve construir a Dogmática apenas em expe-
riências e fatos obtidos pelos cinco sentidos, pois estes são insuficientes e não
oferecem condições de certeza. Quem faz a captação e ordenação do conhe-
cimento dos dados obtidos pelos sentidos humanos é a inteligência. Segundo
Miguel Reale,
que é posto como princípio ou doutrina, ou seja, traduz a afirmação de certo aspecto absoluto como
cognoscível (In: Filosofia do Direito. V. 1, São Paulo: Saraiva, 1975, p. 145).
9 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Função social do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862,
Teresina, ano 7, n.º 58, 1 ago. 2002. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/3198>. Acesso em 5
ago. 2017.
10 REALE, Miguel. Op. cit., p. 85.
38
Nesse pormenor teorizado, entre os séculos XVI e XVIII, o Direito viven-
ciou o crescente aumento de leis escritas, bem como o reconhecimento da exis-
tência de fontes hierarquizadas de Direito. Pela cultura racionalista preponderou
a importância da legislação escrita sobre a costumeira. Experimentou-se ainda
no século XIX a crescente Codificação do Direito.
Esses fatos acabaram por conceder ao Direito grande autonomia, uma vez
que cumpria sua função, como a de aumentar a segurança jurídica, divulgar e
dar maior precisão de seu conhecimento, além de limitar sua aplicação. Notada-
mente, verificou-se que para se atingir à complexidade decorrente das relações
humanas, o Direito positivado precisa ser genérico de forma a abordar a maior
gama de situações.
Nada obstante, por mais paradoxal que seja, isso acabou legitimando a con-
centração de Poder para o Estado, o que fez surgir o Estado Absolutista e a concen-
tração do ato de legislar. As consequências históricas dessas atitudes são notórias.
Paulatinamente, também por conta de só se valer o direito posto, os juristas
da época começaram a perceber o surgimento de outros problemas, como as
lacunas, sendo necessárias propostas para sua solução.
Pode-se concluir, segundo Tércio Sampaio, que todos esses fatores, em con-
junto, foram os responsáveis pela transformação do raciocínio dogmático em Teo-
ria Dogmática, marcado essencialmente por uma nova forma de pensar: a reflexão.
Ressalta-se, ainda, que a Revolução Francesa foi um grande marco na de-
monstração da complexidade social como reação ao Absolutismo. No intento
de conquista das liberdades individuais, a Revolução veio a substituir a “estabi-
lidade” das relações sociais para trazer outros instrumentos de rápida e efetiva
solução: notadamente a maior positivação abstrata de leis.
Isso significa dizer que os preceitos tradicionais que davam a legitimidade ao
Direito (como sinônimo de sua estabilidade) se deixaram substituir por mecanis-
mos dinâmicos de solução, especialmente quando advindos de situações injustas,
ou seja, novas leis traçadas conforme se justificasse o interesse em sua criação.
Assim, constata o autor:
39
vinculação aos dogmas, nem com a exigência da decisão de conflitos – proibição
do non liquet.11
[...] no século XIX, a Dogmática se instaura como uma abstração dupla: a própria
sociedade, na medida em que o sistema jurídico se diferencia como tal de outros
sistemas – do sistema político, do sistema religioso, do sistema social stricto sensu
–, constitui, ao lado das normas, conceitos e regras para a sua manipulação autô-
noma. Ora, isto (normas, conceitos e regras) passa a ser o material da Dogmática,
que se transforma numa elaboração de um material abstrato, num grau de abs-
tração ainda maior, o que lhe dá, de um lado, certa independência e liberdade na
manipulação do Direito [...] pois tudo aquilo que é Direito passa a ser determi-
40
nado a partir de suas próprias construções. [...]. De outro lado, porém, paga-se
um preço por isso: o risco de um distanciamento progressivo, pois a Dogmática,
sendo abstração da abstração, vai preocupar-se de modo cada vez mais preponde-
rante com a função de suas próprias classificações, com natureza jurídica de seus
próprios conceitos.12
Pelo que até aqui foi delineado, mostra-se claro que a função social da
Dogmática do século XIX está ligada justamente ao caráter abstrato dado às
leis, pois ela foi capaz de emancipar as necessidades cotidianas, trazendo novas
fórmulas a permitirem a liberdade, criando elementos sistêmicos para dar total
autonomia ao Direito, desvinculando-o do Direito Sagrado.
12 Ibid., p. 76.
41
povo tem papel fundamental de interferir no rumo ou no resultado dessas deci-
sões, pela via direta ou indireta. Tem-se como questão de fundo a decidibilidade.
Mas como se falar em decidibilidade se: a) na atualidade está-se diante de
uma sociedade de massas?; b) se o campo de aplicação jurídica está diante de
infindável inflação legislativa, com o crescente número de abstração de conceitos,
dito esses abertos?; c) se, pela pragmática, cada receptor pode fazer um juízo de
valor diferente?; d) se ouve-se dizer na ruptura da clássica dicotomia público/pri-
vado?; e) se verifica-se um insustentável crescimento demográfico; f) se há cada
vez mais necessidade de diálogo da Dogmática Jurídica com as outras ciências?
Questiona-se, portanto, a própria essência da Dogmática Jurídica e suas
capacidades de mutabilidade para atender a seus próprios reclames. Será ela,
como instrumento de solução de conflitos, capaz de atender à complexidade so-
cial atual? A Dogmática ainda está apta a atender suas funções?
A crítica pode ser exemplificada no contexto da área acadêmica, em uma
breve exposição de Tércio Sampaio sobre o tema “Visão crítica do ensino jurídico”:
A ideia do próprio profissional como ente especializado, que começou a ser reque-
rido pela sociedade, cada vez maior. Na verdade, esse tipo de especialização ocorre
também com a manifestação do ensino, a partir dos anos setenta. A explosão de-
mográfica ocorre dentro das universidades brasileiras e essa especialização acaba
ocorrendo no momento em que também a massificação do ensino ocorre pela
pressão da demanda estudantil e o desaparecimento daquela velha elite estudan-
til. Ora, o ensino massificado, junto com essa tendência à especialização acabou
transformando o Direito em objeto – ciência do Direito em disciplina que o estu-
da, e o profissional do Direito naquele que o exerce, numa espécie de instrumento
de segundo grau para todas as demais disciplinas.13
13 Revista do Advogado, AASP, São Paulo, 1983, p. 39-50. Disponível em: <http://www.terciosampaiofer-
razjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/50> . Acesso em 5 ago. 2017.
42
Sob esse horizonte, muitos pensadores creem que a Dogmática se encontra
em crise, precisando descobrir se na atualidade há realmente uma Função Social
da Dogmática Jurídica.
43
Dessa forma, se faz crer que apenas as premissas ou pressupostos só poderão
ser modificados caso ocorra a alteração da Dogmática pela autoridade compe-
tente e vias hábeis, ou seja, conforme o que está presente no Texto Constitucio-
nal ou mesmo nas normas infralegais incidentes.
Conclui-se, portanto, que a Dogmática procura instaurar uma sociedade
política e juridicamente segura aos seus cidadãos, possibilitando que a decisão
esteja previamente estipulada não pelo arbítrio, mas pelos limites daquilo que foi
imposto pela ordem jurídica.
Outro grande ponto de apoio se encontra no legado deixado pela Escola da
Exegese que nada mais é do que permitir ao operador do direito uma interpreta-
ção coerente do sistema, respeitando-o.
Nessa perspectiva, são oportunas as palavras de João Maurício Adeodato:
Nesse mesmo sentido Miguel Reale orienta que pela construção de princí-
pios basilares é capaz de diminuir crises evidenciadas na atualidade, reduzindo
as angústias, havendo de se enxergar a Dogmática Jurídica como sinônimo de
Ciência do Direito, pois aquela
15 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 32.
44
põem o ordenamento jurídico. [...] quando esta determina as estruturas lógicas da
experiência jurídica, no âmbito e em função das exigências normativas constantes
do ordenamento em vigor, toma o nome de Dogmática Jurídica.16
45
No entanto, a articulação da Dogmática Jurídica se dá por diferentes mo-
delos teóricos que estão agrupados em três grupos para proporcionar subsídios
à decidibilidade. São eles:
18 Ibid., p. 121.
19 Ibid., p. 121.
20 Ibid., p. 121.
46
mover o bem comum, que implica em justiça, segurança, bem-estar, progresso.
O Direito na atualidade, é fator decisivo para o avanço social. Além de garantir
o homem, favorece o desenvolvimento da ciência, da tecnologia, da produção de
riquezas, o progresso das comunicações, a elevação do nível cultural do povo. Pro-
movendo ainda a formação de uma consciência nacional.21
21 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 27.
22 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Op. cit., p. 84-85.
47
Dogmática consiste em prever as consequências pragmáticas para todos os casos
concretos, de modo a trazer a melhor solução possível para minimizar a pertur-
bação social.
O papel do aplicador do Direito é justamente iniciar a investigação pela
via da lógica-dialética lançando-se mão da tópica, desembocando-se em dois
métodos investigativos diferentes, qual seja a zetética e a dogmática. Se o método
colimado dá-se a partir de questionamentos, pois se está diante de uma postura
crítica, hipotética, problemática, visualiza-se a Zetética. Por outro lado, se há a
predominância de decidibilidade, afetando propriamente o caso concreto, tem-
-se a Dogmática.
Assim, a função social da Dogmática não é a de engessar o arbítrio do apli-
cador do Direito, mas sim de legitimar a elasticidade de sua decisão, interpre-
tando aquilo que foi decidido. Isso significa que a Dogmática não consiste na
“inegabilidade dos seus pressupostos fundamentais”, mas é seu dependente para
movimentar o sistema. As incertezas geradas pela complexidade das relações
pessoais são trazidas a um grau de menor perturbação social controladas pela
via dogmática.
Tércio Sampaio pondera que “a Dogmática se estabelece como um instru-
mento mediador entre a generalidade das normas e a singularidade dos casos
concretos”.23 Por isso, deve-se relacionar o que é ou não juridicamente possível,
tendo na decidibilidade a máxima liberdade do jurista.
CONCLUSÃO
23 Ibid., p. 98.
48
neste contexto é que ganha enorme importância o princípio da legalidade para
se conceder segurança jurídica à sociedade. Verificou-se que o aplicador do di-
reito deve estar atento a duas premissas essenciais para a efetivação da decidibi-
lidade: a Dogmática e a Zetética.
Entende-se que o questionamento sem fim, típico na Zetética, atrapalharia
a decisão e a ação, o que pode causar excessiva impossibilidade a justiça. Por isso
é necessário o respeito à Dogmática, posto que procura instaurar uma sociedade
política e juridicamente segura aos seus cidadãos, possibilitando que a decisão
esteja previamente estipulada, não pelo arbítrio, mas pelos limites daquilo que
foi imposto pela ordem jurídica.
Há de se concluir, pois, que a função da Dogmática consiste em prever as
consequências pragmáticas para os casos concretos, de modo a trazer a melhor
solução possível para minimizar a perturbação social.
REFERÊNCIAS
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo:
Max Limonard, 1998.
______. Visão crítica do ensino jurídico. Fonte: Revista do Advogado, AASP, São
Paulo: 1983. Disponível em: <http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/pu-
blicacoes-cientificas/50>. Acesso em 5 ago. 2017.
PASSOS, José Joaquim Calmon de. Função social do processo. Revista Jus Navi-
gandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n.º 58, 1 ago.2002. Disponível em: <ht-
tps://jus.com.br/artigos/3198>. Acesso em 5 ago. 2017.
49
SAMUEL VON PUFENDORF (1632-1694). Disponível em: <http://pt.acton.
org/historical/samuel-von-pufendorf-1632-1694>. Acesso em 5 ago. 2017.
50
A VULNERABILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS
DIANTE DA DESIGUALDADE COMO FATO
GERADOR DE VIOLÊNCIA URBANA
THE VULNERABILITY OF HUMAN RIGHTS DUE THE
INEQUALITY AS GENERATOR OF URBAN VIOLENCE
Carla Thomas1
Lenice Maria Aguiar Raposo Câmara2
RESUMO
51
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Vulnerabilidade. Desigualdade.
Violência Urbana.
ABSTRACT: In the article, we intend to verify, from a brief historical di-
gression, the emergence of human rights until their consecration as fundamental
rights and to observe inequality as a factor that generates urban violence and
causes human rights violations. The subject is important in the face of the news
released by the media that present data on the growth of inequality in the world,
as well as the news about everyday urban violence. It was possible to find out
about the vulnerability of fundamental human rights to the reality that shows
a growing inequality that contributes to fomenting violence that affects consti-
tutionally declared rights. The methodology used was the qualitative research
that consists of identifying and interpreting the necessary information about the
investigated subject and promoting an analysis, as well as the deductive method
through bibliographical research, using doctrine and legal text.
KEYWORDS: Human Rights. Vulnerability. Inequality. Urban Violence.
INTRODUÇÃO
52
humana que se espraia de forma generalizada no seio da sociedade e denota a
violência gerada diante do modo de vida vigente.
Dentre as mazelas que atingem o convívio social, têm-se destacado a cres-
cente violência urbana, que fere de morte direitos humanos e, em muitos casos,
tolhe abruptamente o indivíduo do direito à própria existência, ao lhe retirar o
bem mais precioso que é a própria vida. Dentre os fatores que podem ser aponta-
dos como causa da violência urbana, um dos principais que se verifica é a ques-
tão da desigualdade, mormente a desigualdade econômica geradora de outras
tantas, trazida corriqueiramente para discussão por muitos estudiosos, dentre
sociólogos, filósofos e economistas.
No Brasil, se por um lado, no plano idealista a Constituição prevê como
sendo um de seus objetivos fundamentais a redução das desigualdades sociais
e regionais e consagra dentre os direitos individuais o direito à igualdade, por
outro lado, em realidade, vimos sendo assolados diariamente por problemas
atrelados direta ou indiretamente à questão da desigualdade, em suas mais va-
riadas formas: acesso à alimentação, à saúde, à educação, à moradia, todos estes
revestidos formalmente de direitos sociais constitucionalizados.
Trazer à reflexão a questão da desigualdade mostra-se relevante e atual,
mormente num país que acolhe os direitos humanos e traz na Constituição di-
reitos fundamentais, incluído o direito à igualdade, assim formalmente declara-
do, e que busca, dentre seus objetivos fundamentais, a redução da desigualdade,
pois atrelado a uma das mais repetidas notícias, veiculadas diuturnamente nos
meios de comunicação de massa, que é a crescente violência urbana. Por sua vez,
tal reflexão induz a outra reflexão: quanto ao modo de vida e valores, pautados
numa sociedade de mercado e consumo, em que, por vezes, parece preterir, em
nome de direitos de liberdade – embora estes também estejam incluídos no rol
de direitos humanos –, outros direitos humanos, tão arduamente conquistados
ao longo da história da civilização humana, como o é o direito à igualdade.
53
que ocorriam naquela sociedade. Trata-se do Código de Hamurabi “uma compi-
lação de 282 leis da antiga Babilônia (atual Iraque), escrito por volta de 1772 a.C..
Hamurabi era o sexto rei da Babilônia, responsável por decretar o código conheci-
do com seu nome”.3 Considerado pela maioria como precursor do próprio Direito.
O Código de Hamurabi foi uma legislação composta por vários fragmen-
tos: de direito de família, patrimonial, sucessão, penal, direito do trabalho, regu-
lamentação profissional, dentre outros, bem como aplicado no contexto de uma
sociedade estratificada em classes desiguais, inclusive de escravos. Embora fosse
uma lei extremamente rígida, evidencia-se, ao menos, a busca por uma justiça,
embora pautada num idealismo social de época, isto é, marcada por dispositivos
que hoje são tidos como severos e intransigentes, os quais não encontram mais
correspondência com as ideias contemporâneas de justiça. Uma de suas leis mais
conhecidas era a Lei do Talião, do que se originou o dito popularmente conhe-
cido do “olho por olho, dente por dente” que nos remete exatamente à ideia do
rigor daquela lei.
Ao avançar na linha do tempo, para d.C., encontra-se a publicação da Mag-
na Carta da Inglaterra de 1215, firmada pelo Rei João Sem-Terra, bispos e barões
ingleses, consoante Sarlet (2017, p. 309). Esta Carta tem sido considerada por
muitos como os primeiros acordes positivados dos direitos humanos. Em seu
artigo 39 dispõe o seguinte: “Nenhum homem livre poderá ser mantido preso,
privado de seus bens, posto fora da lei ou banido, ou de qualquer maneira mo-
lestado, e não procederemos contra ele nem o faremos vir, a menos que por jul-
gamento legítimo de seus pares e pela lei da terra”.4 Essas declarações passaram
a ser absorvidas pelas Constituições, pois revelavam direitos, os quais deveriam
ser acolhidos e respeitados, de molde a assegurar a limitação do poder do Estado
e a garantia de direitos individuais.
Destarte, pode-se dizer, consoante Sarlet (2017, p. 309), que os direitos hu-
manos são os precursores dos direitos fundamentais, ou seja, os direitos funda-
mentais podem ser tidos como os direitos humanos abarcados pelas Constitui-
ções na fase constitucionalista dos Estados. No mesmo sentido é o que se retira
de Arruda Jr. e Gonçalves (2002, p. 166): “[...] os direitos humanos tornam-se
54
também direitos fundamentais, justificáveis de modo objetivo a partir de suas
positivações em Constituições, que são textos essencialmente nacionais [...]”.
Assim, percebe-se que, ao falarmos de direitos humanos tratamos dos direitos
surgidos inicialmente antes da fase constitucionalista dos Estados, no âmbito
internacional, o que não exclui a introdução deles no âmbito interno dos Esta-
dos, em suas Constituições, ao passo que, internalizados constitucionalmente,
passam a denominarem-se direitos fundamentais.
Já no século XVIII, exsurgem dois importantes documentos responsáveis a
ordenar a vida em sociedade, são eles: Declaração de Direitos do Bom Povo da
Virgínia (USA),5 publicada em 16 de junho de 1776, e A Declaração de Direitos
do Homem e do Cidadão, publicada na França em 26 de agosto 1789, ambas
formuladas por representantes do povo, reunidos em assembleia geral e livre,
cujo objetivo era positivar direitos usuais daquela sociedade, como base e fun-
damento do Estado, bem como limitação ao poder, garantindo-se direitos aos
indivíduos governados.
A Declaração de Direitos da Virgínia, composta por 16 ordenamentos, pre-
gava direitos que vemos positivados nas Constituições atuais, tais como a liber-
dade, a vida, a igualdade e independência entre os homens. Que todo poder seria
inerente ao povo e, consequentemente, dele procederia e que seria instituído, ou
deveria sê-lo, para proveito comum, proteção e segurança do povo, resguardan-
do o direito de opor-se a ele quando inadequado ou contrário a tais princípios.
Estes direitos, por maioria da comunidade, poderiam ser reformados, alterados
ou abolidos da maneira considerada mais condizente com o bem público. A se-
paração dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário foi prevista, os homens
teriam o direito de sufrágio e não poderiam ser submetidos à tributação, nem pri-
vados de sua propriedade por razões de utilidade pública sem seu consentimento.
Quanto ao Direito Penal, o acusado teria o direito de saber a causa e a natureza
da acusação, preservando-lhe de obrigá-lo a testemunhar contra si próprio. Os
cidadãos jamais poderiam ser submetidos a castigos cruéis ou inusitados. Quanto
à imprensa, lhes seria assegurada a liberdade. A prática da religião seria voltada
para a crença de um Criador e a maneira de cumprimento dos rituais regidos
5 Declaração de direitos do bom povo da Virgínia – 1776. Disponível em: <http://www. direitoshu-
manos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Socieda-
de-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-bom-povo-de-virgi-
nia-1776. html> Acesso em 20 jul. 2017.
55
pela razão e pela convicção, não pela força ou violência. Esse documento teve
um significado muito importante para o estado da Virgínia, foi elaborada para
proclamar os direitos naturais inerentes ao ser humano, positivando-os, dentre os
quais o direito de se rebelar contra um governo “inadequado”.
Posteriormente à Declaração da Virgínia, em 1789, na França, foram de-
clarados solenemente os direitos naturais do homem, através da Declaração de
direitos do homem e do cidadão, com o objetivo maior de zelar pela conservação
dos direitos naturais, inalienáveis e imprescritíveis do homem. Tais direitos mui-
to têm a ver com a Declaração de Virgínia, pois também defendiam a liberdade,
a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Previam a soberania da
Nação e asseguravam que o exercício dos direitos naturais de cada homem não
tinha por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade
o gozo dos mesmos direitos. Estes limites deveriam ser determinados pela lei.
Assim, como tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado, ninguém
poderia ser constrangido a fazer o que a lei não ordenasse.
Naquela Declaração pode-se confirmar a presença de direitos, hoje consi-
derados e reconhecidos como fundamentais por muitas Constituições no mun-
do afora, tal como a presunção de inocência: “todo acusado é considerado ino-
cente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor
desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela
lei”.6 A expressão ou manifestação de ideias e opiniões foi assegurada. Além dos
direitos, surgiram, ainda, deveres de contribuição para manter a força pública e
a administração.
Mais à frente, já no séc. XX, em 1948, no contexto do pós-guerra, entre-
meio ao choque vivenciado pela humanidade diante das atrocidades cometidas
pelo ser humano contra o próprio ser humano, emerge a Declaração Universal
dos Direitos dos Homens, aprovada em Assembleia Geral da Organização das
Nações Unidas – ONU. Trata-se de diploma internacional que em seu preâmbu-
lo reconhece a “dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos
seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz no mundo”.7
6 Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo. Comissão de Direitos Humanos.
In: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em: <http://escoladegesto res.mec.gov.
br/site/8-biblioteca/pdf/direitos_homem_cidadao.pdf> Acesso em 10 ago. 2017.
7 Declaração Universal dos Direitos dos Homens. Disponível em: <http://www.pcp.pt/ actpol/temas/dhu-
manos/declaracao.html> Acesso em 10 ago. 2017.
56
Revela-se, assim, que a partir daí a preocupação da sociedade para com os
Direitos Humanos passou a ser tão evidente que, hodiernamente, tais preceitos
encontram-se positivados em diversas Constituições – inclusive na CRFB/88,
Art. 5.° – como forma de buscar assegurar a proteção dos direitos humanos,
considerados inerentes ao indivíduo.
Vale lembrar que a doutrina traz uma classificação quanto ao surgimen-
to dos direitos fundamentais nas Constituições, relacionando-os em direitos de
primeira, segunda e terceira geração ou dimensão8 e, para alguns, pode-se falar
até em quarta, quinta e sexta geração ou dimensão (SARLET, 2017, p. 312).
Nesse sentido, Sarlet (2017, p. 312-313) informa que o surgimento dos di-
reitos fundamentais de primeira dimensão ocorreu a par do Estado Liberal, isto
é, a partir do século XVIII, mormente com a Revolução Francesa, e são tidos
como direitos civis e políticos que se caracterizam por seu cunho abstencionista
ou negativo do Estado, isto é, são ligados ao valor liberdade, por exemplo, liber-
dade de ir e vir, liberdade de culto e de opinião etc.
Quanto aos direitos de segunda dimensão exsurgem dos movimentos em
busca da efetividade dos direitos de liberdade e igualdade, ocorridos desde o
século XIX, cujo objetivo era a busca por uma ação positiva do Estado, daí de-
nominados “prestacionais”, são os direitos denominados sociais que buscam as-
segurar a saúde, alimentação, moradia, educação etc. Contudo, Sarlet (2017, p.
315) alerta para o fato de que os direitos de segunda dimensão não se restringem
somente aos direitos de cunho positivo, mas também englobam as denominadas
“liberdades sociais”, tais como a liberdade de sindicalização, direito de greve, di-
reito a férias e limitação de jornada.
No que se refere aos direitos fundamentais de terceira geração ou dimen-
são, Sarlet (2017, p. 316) aduz que se traduzem nos direitos de fraternidade e
solidariedade, cuja nota distintiva advém do desprendimento da figura homem-
-indivíduo como titular para envolver grupos humanos como sujeitos desses
direitos, daí denominarem-se direitos transindividuais, mas adverte que outros
entendem que tais direitos tomam o gênero humano como sujeito, dentre os
8 Insta observar que o termo gerações de direitos por vezes tem sido criticado por remeter à ideia da so-
breposição ou substituição de um conjunto de direitos por outro, daí muitos consideram inadequada
a sua utilização e optam pelo termo dimensões de direitos, o qual reflete melhor, semanticamente, a
ideia de que os conjuntos de direitos que surgem são complementares aos anteriores e não excluden-
tes, havendo coexistência, por exemplo, Sarlet (2017, p. 312).
57
quais exemplifica com o direito à paz, à autodeterminação dos povos, desenvol-
vimento, meio ambiente e qualidade de vida entre outros.
Finalmente, Sarlet (2017, p. 317) aponta que a admissão de novas dimen-
sões de direitos, além das três já discorridas, enseja controvérsias, pois que,
na essência, as demandas relacionadas aos direitos fundamentais ligam-se ou
entrelaçam-se “em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, liberdade,
igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na base, o princípio maior da
dignidade da pessoa humana.”
Feita essa breve digressão acerca do que a doutrina aponta sobre as dimen-
sões dos direitos fundamentais, retorna-se aos direitos humanos. Segundo Cas-
tro (2005, p. 121) há três grandes grupos de direitos humanos:
58
No dizer de Lemisz,9 “o reconhecimento e a proteção da dignidade da
pessoa humana pelo Direito é resultado da evolução do pensamento humano”.
Significa dizer que a humanidade já se sentia portadora desse direito de forma
intrínseca, pois ele tem a ver com a condição humana, apenas não se encontrava
positivado.
Entrementes, em que pesem as conquistas da humanidade com relação às
declarações dos Direitos Humanos, mormente acolhidos no Brasil pela Consti-
tuição de 1988, não se pode olvidar das dificuldades que ainda se para em efeti-
var tais direitos e conferir concretude à vida humana digna. Nessa senda, Bobbio
(2004, p. 44) prelecionava:
Não se pode pôr o problema dos direitos do homem abstraindo-o dos dois gran-
des problemas de nosso tempo, que são os problemas da guerra e da miséria, do
absurdo contraste entre o excesso de potência que criou as condições para uma
guerra exterminadora e o excesso de impotência que condena grandes massas hu-
manas à fome. Só nesse contexto é que podemos nos aproximar do problema dos
direitos com senso de realismo.
9 LEMISZ, Ivone Ballao. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Disponível em: <http://www.direitonet.
com.br/artigos/exibir/5649/O-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana>. Acesso em 11 ago. 2017.
59
2. PENSAMENTOS CONTEMPORÂNEOS SOBRE A DESIGUALDADE
60
Nesse ínterim, vale reverberar acerca do que se compreende por desigual-
dade. Na lição do sociólogo Fábio Medeiros:10
[...] primeiro intelectual a falar sobre a desigualdade entre as classes foi o alemão
Karl Marx, criador da doutrina comunista moderna. A visão de Karl Marx, que
era muito mais economista do que mesmo sociólogo, deu uma contribuição mui-
to grande ao estudo sociológico. A desigualdade social está atrelada necessaria-
mente ao modo de produção capitalista que não é justo, não é igual. Possibilita
um processo de desigualdade muito intenso. Então o modo de produção que visa
o lucro, através do acúmulo de capital e da exploração de trabalho, na visão mar-
xiana é uma visão que possibilita a gente a entender porque essa desigualdade se
estabelece.
Ainda sobre a obra, Costa explana acerca das atuais tendências das desi-
gualdades globais, por meio de comparações internacionais e transnacionais,
com ênfase para Portugal, países e regiões europeias ou considerando a Europa
no seu todo. Analisa, citando exemplos, a evolução das desigualdades nos EUA
e no Japão que considera “países desenvolvidos”, e no Brasil e na China os quais
reputa como “países emergentes”.
Wacquant (2005, p. 7), em sua obra Os condenados da cidade, observa que
as sociedades da América Latina, da Europa e dos Estados Unidos dispõem to-
10 MEDEIROS, Fábio. Professor explica a desigualdade social a partir da visão de Kant. Disponível em:
<http://g1.globo.com/pernambuco/vestibular-e-educacao/noticia/2012/11/professor-explica-desi-
gual dade-social-partir-da-visao-de-karl-marx.html>. Acesso em 16 ago. 2017.
11 In: Desigualdades Sociais Contemporâneas. Disponível em: <https://observatorio-das-desigualdades.
com/2014/04/23/desigualdades-sociais-contemporaneas-de-antonio-firmino-da-costa/>.Acesso
em 16 ago. 2017.
61
das de um termo específico para denominar comunidades estigmatizadas e si-
tuadas na base do sistema hierárquico de regiões que compõem as metrópoles,
para onde a população menos favorecida é empurrada, são elas as favelas no
Brasil, problaciones no Chile, villa miseria na Argentina, cantegril no Uruguai,
banlieue na França, gueto nos Estados Unidos. Na lição do autor a desigualdade
social que se evidencia nessas comunidades são resultados de diferentes motivos.
Em umas a desigualdade possui cunho racial, e em outras, caráter econômico,
educacional ou imigracional, mas todas congregam problemas sociais, e atraem
a atenção dos meios de comunicação, dos políticos quando interessa e das au-
toridades de forma desigual, e, por vezes, negativamente, pois têm a conotação
de áreas problemáticas, violentas e proibidas. Esse estereótipo das comunidades
contribui para o descaso na implantação de formas positivas de governança e
remete à configuração de um autêntico cenário de espoliação urbana, consoante
menciona Kowarick (1979, p. 79). 12
Bauman (2015, p. 26), pensador polonês, na obra A riqueza de poucos be-
neficia todos nós?, chama a atenção para uma análise da relação existente entre a
crescente desigualdade de renda e os problemas sociais:
12 Na obra A espoliação urbana, Lúcio Kowarick, nos traz a problemática do crescimento urbano pau-
listano e da segregação da população pobre, que acaba ocupando locais longínquos e sem acesso à
infraestrutura e aos serviços públicos necessários e adequados. Disponível em: < https://pt.scribd.
com/ document/34151 8846/KOWARICK-Lucio- a-Espoliacao-Urbana> Acesso em 5 fev. 2017.
13 Disponível em: <http://desigualdade-social.info/desigualdade-social-no-brasil.html> Acesso em 22
ago. 2017.
62
fica atrás no ranking apenas de países muito menores e menos ricos, como Haiti,
Madagascar, Camarões, Tailândia e África do Sul.
Esse fenômeno vivido por milhares de famílias no Brasil atinge a popu-
lação no seu aspecto mais íntimo: a autoestima. As pessoas, em geral, buscam
melhorar sua qualidade de vida e de seus familiares, mas a carência de escolas de
qualidade, transporte público adequado, saneamento básico, acesso à assistência
à saúde, dentre outros, contribuem de forma direta e negativa para o sentimento
de desesperança, de menos valia e, até, a geração de doenças psicossomáticas,
desaguando, ainda, para a violência urbana.
Ainda segundo Bauman (2015, p. 20):
Como se pode ver, o próprio título do livro é uma afirmativa que chama
atenção em razão de sua fantasia, pois nos parece que os ricos estão cada vez mais
afastados da convivência com pessoas consideradas de classes sociais inferiores,
sejam nas escolas, nos clubes, nos centros de compras ou nos bairros residenciais.
O que evidencia uma segregação social, construída a partir do viés econômico.
Thomas Piketty, economista contemporâneo, defende em sua obra, O ca-
pital no século XXI, a ideia de que, diante do crescente aumento da desigualdade
econômica, parta-se para um sistema de taxação da riqueza como meio para
63
reduzir as desigualdades.14 O autor em entrevista sobre sua obra esclarece que,
o que, cabe evitar, é que se chegue ao ponto de uma desigualdade extrema, mas
admite que algum grau de desigualdade seja desejável:
É claro que é melhor ter desenvolvimento com desigualdade do que pobreza com
igualdade, como na China dos anos 1970. Não tenho problema com a desigualda-
de, desde que seja do interesse comum, em particular do interesse dos segmentos
mais pobres da sociedade. Não há nenhuma dúvida, do meu ponto de vista, que
algum grau de desigualdade é desejável. Mas, quando a desigualdade se torna ex-
trema, ela não é mais útil para o crescimento. Pode até atrapalhar. A desigualdade
extrema tende a vir com pouca mobilidade e cria estruturas que perpetuam a desi-
gualdade ao longo do tempo. Na Europa antes da Primeira Guerra Mundial, 90%
da riqueza nacional pertencia aos 10% mais ricos. Era excessivo. Não queremos
retornar a isso.15
De toda a riqueza gerada no mundo em 2017, 82% foi parar nas mãos do 1% mais
rico do planeta. Enquanto isso, a metade mais pobre da população global – 3,7 bi-
lhões de pessoas – não ficou com nada. No Brasil, não é muito diferente. Hoje temos
14 Conforme explica o crítico de Pikety, David Harvey: “Piketty reúne uma grande quantidade de dados
para sustentar sua argumentação. Sua descrição das diferenças entre renda e riqueza é persuasiva
e útil. E faz uma defesa cuidadosa da tributação sobre herança, do imposto progressivo e de um
imposto sobre a riqueza global como possíveis (embora quase certamente não politicamente viável)
antídotos contra o avanço da concentração de riqueza e poder.” In: Harvey: reflexões sobre “O capital”,
de Thomas Piketty. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2014/05/24/harvey-reflexoes-
-sobre-o-capital-de-thomas-piketty/> Acesso em 31 ago. 2017.
15 In: Thomas Piketty: esclarecendo um dos maiores best-sellers de economia, p. 2. Disponível em:
<http://www.fronteiras.com/entrevistas/thomas-piketty-esclarecendo-um-dos-maiores-best-
-sellers-de-economia> Acesso em 31 ago 2017.
64
cinco bilionários com patrimônio equivalente ao da metade mais pobre do país,
chegando a R$ 549 bilhões em 2017 – 13% maior em relação ao ano anterior. Ao
mesmo tempo, os 50% mais pobres do Brasil tiveram sua riqueza reduzida no mes-
mo período, de 2,7% para 2%.16
65
liberdade de apropriação privada – também tidos como direitos fundamentais
à vida humana digna, tais como os direitos sociais de alimentação, moradia, se-
gurança, educação etc. – determinantes dos direitos de igualdade, denominados
de segunda geração ou dimensão –, ou seja, como o Estado poderia assegurar o
mínimo vital, de onde adviriam os recursos senão da taxação da riqueza?
Por outro lado, diante do posicionamento da filosofia utilitarista, também
emerge um questionamento: sobre qual seria o limite razoável à taxação da ri-
queza pelo Estado para retirar desta o que é necessário para atender as necessi-
dades dos menos favorecidos, ou seja, qual o ponto de equilíbrio, e, mais, como
e quem os definiria.
Tais são os dilemas contemporâneos que envolvem a questão da desigual-
dade e que mereceriam uma discussão com grande seriedade por parte da so-
ciedade, a fim de que fosse encontrada a melhor solução possível, de molde a se
aproximar da pretensa efetivação dos direitos humanos a todos os indivíduos do
planeta e, desta forma, também, minimizar a violência urbana, cada vez mais
crescente nos grandes centros.
66
O significado de desigualdade traduz-se em “caráter ou condição do que
não é igual”,17 logo, subtende-se que há uma desigualdade de condições ou de
proporções. Essa desigualdade pode ser positiva ou negativa, mas comumente
denota um desequilíbrio. A desigualdade se apresenta de várias formas. Pode
ser econômica, social, regional, de gênero, dentre outras. Esse fenômeno social
geralmente ocorre em sociedades com limitações de desenvolvimento.
No Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-
lios (PNAD-2011) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),18 as
regiões mais afetadas pelos problemas sociais são o Norte e Nordeste do país, os
quais apresentam os piores IDH’s (Índice de Desenvolvimento Humano). Esse
desequilíbrio social contribui para elevar os índices de violência urbana.
Ainda, segundo análise de dados constante do Atlas da Violência – 2017,
de autoria de Cerqueira et al.,19 a violência no Brasil teve um salto, ao se com-
parar que entre 2005 e 2007 foram 48 a 50 mil mortes por homicídio ocorridas,
enquanto que, em 2015, foram 59 mil e oitenta homicídios, o que denota uma
mudança de patamar nesse indicador, passando em uma década para a ordem
de 59 a 60 mil casos por ano, isto é, um significativo aumento, em torno de 1 mil
mortes a mais do ano que passou.
Tais fatos podem, em maior ou menor grau de intensidade, advir do pro-
blema social de uma brutal desigualdade, seja ela de acesso à alimentação, de
acesso à moradia, de acesso à educação, enfim, de acesso às oportunidades pelo
indivíduo que compõe o seio da sociedade e que, na maior parte das vezes, é
colocado à margem e integra um vicioso ciclo de crescimento e concentração de
riqueza e renda em mãos de pouquíssimos privilegiados.
Trata-se de um fenômeno da desigualdade maléfica, capaz de gerar exclu-
são social, fome, miséria, ignorância e capaz de subjugar indivíduos, contribuin-
do para o desencadeamento da violência urbana, o que tem sido reiteradamente
alvo e tema de estudos e abordagens por parte de sociólogos.
Destarte, denota-se, diante deste cenário, que a violência urbana deságua e
tem relação estreita com a miséria e pobreza decorrentes da desigualdade, afe-
67
tando mais diretamente a população desprovida, fazendo-os algozes e vítimas da
violência crescente a cada dia, em que muitos são tolhidos abruptamente da pró-
pria vida e da liberdade. Nesse sentido, extrai-se de Zaffaroni e Pierangeli (2015,
p. 4): “[...] na grande maioria dos casos os que são chamados de “delinquentes”
pertencem aos setores sociais de menores recursos. Em geral, é bastante óbvio
que quase todas as prisões do mundo estão povoadas por pobres.” 20
Vargas,21 citando Wacquant, enfatiza que, para a compreensão social e po-
lítica da desigualdade social, deve haver uma análise essencial em relação a ca-
tegorias como cor, etnia e classe social. Esse critério de avaliação tem o efeito de
limitar ou prejudicar o status de um determinado grupo, classe ou círculo social.
Carvalho22 em seu artigo sobre o pensamento de sociólogo Boaventura
afirma que:
68
ça: “defender a igualdade sempre que a diferença gerar inferioridade e defender
a diferença sempre que igualdade implicar descaracterização”. É a tensão entre
igualdade e diferença, entre a exigência de reconhecimento e o imperativo da
redistribuição. Sustenta Boaventura Santos que necessitamos construir a eman-
cipação a partir de uma nova relação entre o respeito da igualdade e o princípio
do reconhecimento da diferença.
Percebe-se, desta forma, que os sistemas de desigualdade e de exclusão se
retroalimentam, atingindo as populações mais carentes que estão sempre subor-
dinadas às decisões dos detentores do poder econômico-político e colocadas à
margem da sociedade, isto é, do acesso aos direitos sociais, pressupostos essen-
ciais à concretização de uma vida digna, a qual está prevista na Constituição Fe-
deral brasileira, no Art. 1.º, inciso III, com um dos seus princípios republicanos
fundamentais, bem como, vêm especificados no Art. 6.º que prevê:
Art. 6.º – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a mo-
radia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à mater-
nidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
69
mercado a vida das pessoas, o comportamento da sociedade e a política dos go-
vernos. O mercado absolutista não aceita nenhuma forma de regulamentação’. [...]
Tal sistema de princípios e valores exime o Estado de grande parcela de sua res-
ponsabilidade, limitando-lhe a intervenção e atuação a garantir o mínimo de bens
para todo cidadão. Ao ajustar e estabilizar a economia capitalista para as grandes
burocracias e as elites financeiras internacionais, o neoliberalismo acabou, na es-
teira dessas manobras, contribuindo para acelerar imensos desequilíbrios econô-
micos, elevadas taxas de desemprego, profundas desigualdades sociais, acentua-
dos desajustes no cotidiano das comunidades locais e o genocídio cultural.
CONCLUSÃO
70
reitos estes ditos prestacionais do Estado e que cobram uma atuação positiva por
parte dos administradores públicos, por vezes, demonstram não alcançarem todos
os indivíduos, especialmente a população hipossuficiente economicamente.
Ao reverberar os primórdios e mais destacados documentos que abarca-
ram os direitos do homem, erigidos ao longo da história da humanidade, desde
o Código de Hamurabi, passando pelas Declarações da Virgínia em 1776 e da
Revolução Francesa em 1789, até chegar as atuais declarações internacionais e
às Constitucionais nacionais, percebe-se a busca por um ideal de justiça que se
vincula, ao longo da história, aos interesses do poder então vigente.
Destacaram-se as preocupações com os direitos individuais frente ao poder
absolutista, até avançar para uma das mais importantes, ou quiçá a mais im-
portante Declaração dos Direitos do Homem, que surge após os horrores da 2.ª
Grande Guerra Mundial e do qual 26 países foram signatários, originariamente,
com fortes indícios, aí, de uma tentativa de construir uma sociedade global, com
possibilidades, em tese, para assegurar a todos os indivíduos um mínimo de dig-
nidade frente ao poderio dos Estados e de seus representantes.
Por fim, ainda, chegou-se aos ditames Constitucionais brasileiros que con-
ferem aos seus indivíduos, tabularmente, direitos sociais como direitos humanos
fundamentais, mas que, diante das mazelas sociais, mormente a desigualdade,
ainda carecem de efetividade.
Finalmente, sobre a questão da desigualdade, reverberou-se que esta existe
sob diversos aspectos: a desigualdade econômica, cultural, étnica, social, política
etc., bem como traz consigo consequências que atingem frontal e mortalmente
os direitos humanos fundamentais, tais como a falta de acesso aos alimentos, à
moradia, à educação, à saúde, sem os quais, é praticamente esperada, como con-
sequência, a violência urbana que assola nossas cidades e fere de morte um dos
direitos humanos fundamentais, o mais importante por sinal, que é o próprio
direito à vida.
REFERÊNCIAS
71
BAUMAN, Zygmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós? Tradução de Re-
nato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.
CERQUEIRA, Daniel et. al. Atlas da violência – 2017. Ipea e FBSP. Disponível
em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.
pdf> Acesso em 5 set. 2017.
72
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM. Disponível em:
<http://www.pcp.pt/ actpol/temas/dhumanos/declaracao.html> Acesso em 10
ago. 2017.
KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Dis-
ponível em: <https://pt.scribd.com/ document/341518846/KOWARICK-Lucio-
a-Espoliacao-Urbana> Acesso em: 05 fev. 2017
73
MEDEIROS, Fábio. Professor explica a desigualdade social a partir da visão de
Kant. Disponível em: <http://g1.globo.com/pernambuco/vestibular-e-educa-
cao/ noticia/2012/11/professor-explica-desigualdade-social-partir-da-visao-de-
-karl-marx.html> Acesso em 16 ago. 2017.
74
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito
Penal Brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. Dispo-
nível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divul-
gacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2016/
Bol17_03.pdf> Acesso em 6 fev. 2018.
PÁGINAS ELETRÔNICAS:
<https://www.oxfam.org.br/assim-nao-davos?gclid=EAIaIQobChMIgeyNx--P-
2QIV RYGRCh2SEAkIEAAYASAAEgKI3vD_BwE>
<https://www.todamateria.com.br/desigualdade-social/>
75
OS REFLEXOS DA PÓS-MODERNIDADE DA SOCIEDADE
DE CONSUMO DE MASSA NO INDIVÍDUO, NO
TRABALHO E NAS RELAÇÕES SOCIAIS
THE REFLECTIONS OF THE POST-MODERNITY OF THE SOCIETY OF MASS
CONSUMPTION IN THE INDIVIDUAL, AT WORK AND IN SOCIAL RELATIONS
Devane Batista Costa1
Monique de Souza Arruda2
77
dológica adotada nesta pesquisa é a qualitatitiva dedutiva, sendo que o estudo se
desenvolveu a partir de pesquisas bibliográficas e documentais.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedade de consumo de massa. Hiperconsumi-
dor. Fases do capitalismo de consumo. Pós-modernidade.
ABSTRACT: The present study aimed to identify the phase of mass con-
sumption capitalism in which the Brazilian consumer society fits, after analyzing
the consumption cycles proposed by Gilles Lipovetsky. The development of capi-
talist models of production, environmental impact and the way these productive
models made possible the birth of the current hyperconsumption society and the
cycles or phases of capitalist consumption were highlighted. The survey conduc-
ted by the IBOPE Intelligence Institute was based on the consumption patterns of
Brazilians. As a counterpoint, in the end, the postmodern society of Bauman was
analyzed, with the scope to make considerations about the homo consumericus
produced by this postmodernity and to demonstrate in the end the reflexes of
the postmodern mass consumption society in the individual, at work, in social
relations and in the environment, from a human rights perspective. The metho-
dological approach adopted in this research is the qualitative deductive one, being
that the study developed from bibliographical and documentary researches.
KEYWORDS: Society of mass consumption. Hyperconsumer. Phases of
consumer capitalism. Postmodernity.
INTRODUÇÃO
A sociedade de consumo nasceu no século XIX, por volta dos anos de 1880,
migrando de pequenos para grandes mercados com a elaboração de máquinas de fa-
bricação contínua que permitiram a expansão da produção em larga escala e o con-
sequente surgimento das sociedades de consumo de massa (LIPOVETSKY, 2008).
Sociedade de consumo, sociedade de consumo de massa, sociedade de hi-
perconsumo, pós-sociedade de consumo de massa, sociedade da pós-moder-
nidade, modernidade líquida são expressões cunhadas ao longo dos processos
permanentes de transformação do consumo e dos estilos de vida da humanida-
de, tendo como seu nascedouro e ponto em comum o sistema capitalista de pro-
dução - a hegemonia crescente da esfera mercantil -, que, gradualmente, alterou
a fisionomia das sociedades e ampliou sua escala de poder entre as nações.
78
As discussões em torno da economia de mercado, da sociedade de consu-
mo de massa e do trabalhador-consumidor fabricado pelo modo de produção
capitalista estão em meio aos debates sobre a transição da sociedade de consumo
moderna para a sociedade de consumo pós-moderna.
Os modelos de produção desenvolvidos pelo sistema econômico capitalista
(Taylorismo, Fordismo e Toyotismo) cunharam os modelos de sociedade de con-
sumo que conhecemos hoje e que, segundo Lipovetsky, desenvolveram-se naqui-
lo a que o filósofo denominou fases, eras ou ciclos do capitalismo de consumo.
De acordo com Lipovetsky, a humanidade transcorreu três fases ou eras do
consumo, encontrando-se atualmente na sociedade do hiper ou turboconsumo,
caracterizadora da pós-modernidade.
A sociedade analisada por Lipovetsky é a avançada sociedade francesa con-
temporânea. Em face disso, o presente estudo objetivou identificar em qual fase,
das propostas por Lipovetsky, enquadra-se a sociedade de consumo brasileira,
enfocando aspectos, tais como o desenvolvimento dos modelos capitalistas de
produção, o impacto ambiental e o modo como esses modelos produtivos possi-
bilitaram o nascimento da atual sociedade de hiperconsumo e dos ciclos ou fases
do consumo capitalista. Utilizou-se como base a pesquisa realizada pelo instituto
Ibope Inteligência, que realizou um minucioso levantamento acerca dos padrões
de consumo dos brasileiros. Como contraponto, ao final, analisou-se, neste estu-
do, a sociedade pós-moderna de Bauman com o escopo de tecer considerações
acerca do homo consumericus produzido por essa pós-modernidade e para de-
monstrar, ao final, os reflexos da sociedade de consumo de massa pós-moderna
no indivíduo, no trabalho, nas relações sociais e no meio ambiente, na perspec-
tiva de direitos humanos.
A abordagem metodológica adotada nesta pesquisa é a qualitativa dedu-
tiva, tendo em vista que se elaborou uma análise da sociedade de consumo de
massa de Lipovetsky e da sociedade pós-moderna (modernidade líquida) de
Bauman para, ao final, enquadrar-se a sociedade brasileira em determinada fase
capitalista de consumo, dentro das fases propostas por Lipovetsky, bem como
nos padrões gerais da sociedade pós-moderna de consumo de massa.
O estudo se desenvolveu a partir de pesquisas bibliográficas e documentais,
tendo como parâmetros livros nacionais e internacionais, artigos científicos e
textos normativos nacionais e estrangeiros.
79
1. A SOCIEDADE DE CONSUMO DE MASSA
80
Sociedade de consumo, sociedade de consumo de massa, sociedade de hi-
perconsumo, pós-sociedade de consumo de massa, sociedade da pós-moder-
nidade são expressões cunhadas ao longo dos processos permanentes de trans-
formação do consumo e dos estilos de vida da humanidade, tendo como seu
nascedouro e ponto em comum o sistema capitalista de produção - a hegemonia
crescente da esfera mercantil -, que, gradualmente, alterou a fisionomia das so-
ciedades e ampliou sua escala de poder entre as nações (idem, 2007).
Diante dessa crescente escala de consumo, questiona-se: Os protestos eco-
logistas, os debates ambientais em torno da finitude dos recursos naturais basta-
rão para fazer frente ao trem-bala consumista, à avalanche dos novos produtos
com ciclo de vida cada vez mais curto, à obsolescência programada, à mercanti-
lização da experiência e dos modos de vida?
A sociedade de consumo nasceu no século XIX, por volta dos anos de 1880,
migrando de pequenos para grandes mercados com a elaboração de máquinas
de fabricação contínua que permitiram a expansão da produção em larga escala
e o consequente surgimento das sociedades de consumo de massa (LIPOVET-
SKY, 2008).
Desenvolve-se, nesse período, o modelo taylorista-fordista de produção, prin-
cipal responsável pela criação das sociedades de consumo de massa (LIPOVETSKY,
2007), pelo despontamento da pegada ambiental tão debatida em nosso tempo.
O advento da sociedade de consumo de massa está, portanto, indissocia-
velmente ligado ao desenvolvimento dos principais sistemas de produção capi-
talista, sendo eles o taylorismo, o fordismo e o toyotismo.
2.1 Taylorismo
81
Nesse sistema de organização racional do trabalho (ORT) o trabalhador
desenvolvia uma única atividade, com o controle do tempo e da execução da
tarefa e padronização de métodos e de máquinas, visando a alcançar um maior
rendimento na produção (CHIAVENATTO, 2003).
A racionalização da prestação do trabalho e da produção foi fruto do tay-
lorismo, com Taylor introduzindo a primeira tentativa de definir e estabelecer
racionalmente cargos e tarefas.
2.2 Fordismo
82
2.3 Toyotismo
83
que, segundo Lipovetsky, desenvolveram-se naquilo a que o filósofo denominou
fases, eras ou ciclos do capitalismo de consumo.
84
Na fase II o modelo taylorista-fordista de produção, antes adstrito à indús-
tria automobilística e a outros poucos ramos industriais, difunde-se na organi-
zação da produção dos mercados. Como consequência da sua expansão para
outros setores da economia, despontam a exploração das economias de escala,
os métodos científicos de gestão e de organização do trabalho, a divisão intensiva
das tarefas, o volume de vendas elevado, preços os mais baixos possíveis, mar-
gem de ganho fraca e rotação rápida das mercadorias (LIPOVETSKY, 2007). Há
uma excepcional alta da produção, em razão da especialização, da padronização,
da repetitividade e da elevação dos volumes de produção (idem, 2007).
No 2.º ciclo edifica-se, propriamente falando, a sociedade de consumo de
massa como projeto de sociedade e objetivo supremo das sociedades ocidentais.
A sociedade da fase II – dita sociedade do desejo – substituiu a coerção pela se-
dução, o dever pelo hedonismo, a poupança pelo dispêndio, a solenidade pelo hu-
mor, o recalque pela liberação, as promessas do futuro pelo presente (idem, 2007).
Desenvolve-se a época hipertrófica, com a criação de necessidades artifi-
ciais e esbanjamento organizado – o homem é contaminado pelo vírus da com-
pra e inebriado pela paixão pelo novo, por um estilo de vida centrado nos valores
materialistas (idem, 2007).
Encerrado o segundo ciclo no fim dos anos 1970, tem início o terceiro ato
das economias de consumo no palco das sociedades desenvolvidas.3 A terceira
fase do capitalismo de consumo é marcado pelo hiperconsumo, pelo hiperindi-
vidualismo, pelo hedonismo, pelo consumo subjetivo e emocional.
As pessoas querem objetos “para viver” mais que para exibir. Compram
menos isto ou aquilo para se pavonear, alardear uma posição social que para
satisfações emocionais e corporais, sensoriais e estéticas, relacionais e sanitárias,
lúdicas e distrativas (idem, 2007). O consumo para si suplantou o consumo para
o outro. Dominam a sociedade, o império da mercadoria e o individualismo
extremo (idem, 2007). O valor distrativo da mercadoria (valor de distração, do
prazer individual que a compra pode nos proporcionar) superou o valor hono-
rífico (o valor que distingue o consumidor socialmente, que o faz ter destaque
85
e ascensão social; valor decorrente da notabilidade de determinada marca no
mercado, sua identidade econômica) (LIPOVETSKY, 2007).
Os hábitos de consumo à moda antiga tornavam visível a identidade eco-
nômica e social das pessoas. Na fase III, entretanto, os atos de compra traduzem
muito mais as diferenças de idade, os gostos particulares dos consumidores e a
identidade cultural e singular de seus autores, ainda que os produtos não tenham
o valor honorífico distinto da Fase I e ostentem características mais banalizadas
(idem, 2007).
O marketing sensorial ou experimental da Fase III exorta o consumo emo-
cional, o consumo sensorial. O que se expõe à venda não estampa mais a fria
funcionalidade dos produtos das Fases I e II, mas evidencia uma atratividade
sensível e emocional. É justamente nesse ponto que atua o marketing sensorial
da Fase III: ele visa a melhorar as qualidades sensíveis, táteis, visuais, sonoras e
olfativas dos produtos e dos locais de venda (idem, 2007).
A atuação da publicidade e do marketing deslocou o imperativo da imagem
do produto do campo social para o individual. O modelo de consumo demons-
trativo da fase II, do consumo, do esnobismo, do gosto de brilhar foi resgatado
na Fase III sob um novo viés: o do neoindividualismo, que cria satisfações mais
para si do que para admiração e estima alheias (idem, 2007).
Houve uma ressignificação dos fetichismos das marcas e do luxo para uma
perspectiva individual. Já não é indigno gastar aqui e economizar ali, comprar ora
em loja de grife ora em loja de departamento ou em hipermercado (idem, 2007). O
homus consumericus do terceiro ciclo do capitalismo não se preocupa tanto com o
reconhecimento social notabilizado pelas marcas superiores, mas sim com o pra-
zer narcísico de sentir uma distância em relação à maioria (idem, 2007).
Há uma regressão da lógica da posição social e da imagem viril dos pro-
dutos. O hiperconsumismo da Fase III é mais emocional que demonstrativo,
mais sensitivo que ostensivo (idem, 2007). A “vontade de poder” do hipercon-
sumidor denota o desejo de exercer uma dominação sobre o mundo e sobre si.
Crescem as despesas ligadas aos sabores do lazer, da cultura e da comunicação.
O capitalismo centra-se não mais na produção material, mas no divertimento e
nas mercadorias culturais. Exorta-se o hedonismo (LIPOVETSKY, 2007). A ex-
pansão do consumo hedonista, não despropositadamente, é objeto das múltiplas
estratégias comerciais (idem, 2007). O consumo atrai por si mesmo, como papel de
novidade e de animação em si. O apetite consumerista é uma maneira bem-sucedida
86
de expurgar o cotidiano, de escapar da perpetuação do mesmo. Nasce na Fase III a
febre pela mudança perpétua.
O ciclo 3 do capitalismo de consumo constitui-se de uma sociedade pós-for-
dista de consumo, chamada de sociedade de hiperconsumo ou de turboconsumo,
em que as satisfações pessoais, o prazer individual a todo custo (hiperindividua-
lismo) dominam as formas de consumo do homem contemporâneo (compra-
-prazer), cada vez mais preocupado com o bem-estar próprio e com a própria
felicidade, procurando resolver seus dilemas existenciais e seus conflitos pessoais
por meio da impermanência perpétua da renovação da oferta (idem, 2007).
A era do turboconsumismo é a era da hipersegmentação dos mercados. O
consumidor final desse ciclo tornou-se uma espécie de comandante do produto.
A diversificação da produção procura acompanhar o diacronismo do consumo,
adequando-se ao gosto do freguês (compra-prazer, compra hedônica), em con-
traposição ao modelo fordista de produção em série, que implementou a com-
pra-corveia4 (idem, 2007).
O imperativo categórico desse ciclo do desenvolvimento econômico é a
criação de novos produtos, a exigência do hiperconsumidor pelo “sempre novo”.
A impermanência perpétua domina os mercados. A era da economia da velo-
cidade é a nova lei mercantil. A renovação extremamente rápida da oferta e as
demandas de consumo cada vez mais instáveis e emocionais estão na origem da
aceleração da obsolescência programada dos produtos em todos os setores da
economia.
Esse é o universo traçado pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky para expli-
car as fases do capitalismo de consumo das nações desenvolvidas, sendo que a
avançada sociedade francesa contemporânea se enquadra na terceira fase dessa
Nova Economia de Mercado.
Diante de tais ilações, questiona-se: A sociedade de consumo de massa, no
Brasil, enquadra-se em qual desses ciclos de consumo, atualmente? Podemos
dizer que o hiperconsumismo, o hiperindividualismo, o hedonismo, a sociedade
pós-fordista de consumo caracteriza o consumidor brasileiro contemporâneo,
assim como a desenvolvida sociedade econômica francesa? Não estaríamos vi-
vendo hoje no Brasil uma espécie de fase de transição entre os segundo e terceiro
4 Também chamada de compra-prática por Lipovetsky. É a compra em que o consumidor obtém o que
lhe é oferecido pelo mercado para consumir.
87
ciclos do capitalismo de consumo desenhado pelo filósofo francês, levando-se
em consideração o padrão de consumo do homem médio brasileiro?
O Ibope Inteligência (2015), por meio da base de dados da Pysxis Consu-
mo, divulgou, em 2012, um prognóstico sobre a economia brasileira. As pro-
5
jeções indicavam que o consumo das famílias brasileiras iria crescer 13,5% em
2012, alta comparável ao desempenho de países com elevados indicativos de
crescimento econômico, como a China. De acordo com o Ibope, até o final do
ano de 2012, os gastos nacionais totalizariam R$ 1,3 trilhão, valor este equivalen-
te à soma dos PIB’s da Argentina e da Suécia (IBOPE INTELIGÊNCIA, 2015).
A pesquisa apontou, na ocasião, um crescimento vertiginoso do uso de tec-
nologias de ponta, como smartphones e televisões de tela fina. Constatou, ainda,
que o país era o quarto maior mercado global de carros, o terceiro de cosméticos
e de cerveja e que liderava com folga negócios tão diversos quanto produção de
gravatas (resultado direto do então aumento da oferta de cargos executivos) e de
achocolatados (com mais dinheiro, a classe C passou a ser um consumidor as-
síduo de chocolate em pó e em caixinhas) (IBOPE INTELIGÊNCIA, 2015). De
acordo com os dados levantados pelo Ibope Inteligência (2015), esse fenômeno
foi alimentado pelo enriquecimento da população brasileira à época. Os brasilei-
ros passaram a comprar mais e com qualidade.
A classe média, responsável por quase 80% do consumo das famílias, alte-
rou consideravelmente seus hábitos de consumo na ocasião. Trocou carros com
motor 1.0 por veículos mais potentes e robustos, o frango por carne nobre e o
óleo de soja por azeite, isso somente para parametrizar a sofisticação do consu-
mo dessa classe socioeconômica.
Os dados demonstraram que a revolução do consumo no Brasil estava criando
em nossa sociedade hábitos de consumo próximos aos das nações ricas. O mapa do
consumo no país, em 2012, era o retrato acabado dessa transformação (idem, 2015).
O levantamento revelou, ainda, a predominância das forças econômicas de Sul
e Sudeste sobre o consumo, embora o volume de vendas nacionais tenha então
crescido em proporções maiores nas Regiões Norte e Nordeste (idem, 2015).
88
Mas esses dados revelam o que foi o quadro desenhado pela sociedade de
consumo brasileira até 2012. Em recente pesquisa realizada pelo Ibope Inteli-
gência (2015),6 mais precisamente na segunda metade de 2015, após o desen-
cadeamento das crises econômica e política no país, constatou-se que o padrão
de consumo do brasileiro já não é mais o mesmo. Sentindo no bolso as conse-
quências da crise econômica, 59% dos brasileiros disseram ter perdido poder de
compra entre 2014/2015, o que representa 6 em cada 10 brasileiros (Idem, 2015).
O estudo demonstrou os ajustes que os brasileiros fizeram no consumo:
16% mudaram de residência para reduzir custos e 13% trocaram os filhos de
escola privada para escola pública (idem, 2015).
Os habitantes das regiões Sul e Sudeste foram os que mais sentiram a perda
no padrão de consumo: 65% nos dois casos. Em sequência aparecem as regiões
Norte e Centro-Oeste, com 56%, e Nordeste, com 51%. E nada menos do que
83% dos brasileiros afirmaram se preocupar com a possibilidade de perder o
padrão de vida que têm hoje (IBOPE INTELIGÊNCIA, 2015).
Ainda segundo o levantamento do Ibope Inteligência (2015), mais brasilei-
ros ajustaram seus comportamentos consumeristas do que na crise de 2008/2009.
57% dos entrevistados alteraram hábitos de consumo ou planejamento financei-
ro e outros 21% disseram que pretendiam alterar.
O estudo revela, também, que mais da metade dos entrevistados (53%) se
endividou sem planejamento: 37% disseram ter se endividado para pagar despe-
sas pessoais e 48% consideram difícil ou muito difícil pagar seus empréstimos e
financiamentos com a renda atual. Do total de entrevistados, 60% disseram ter
enfrentado dificuldades para pagar as contas ou compras a crédito (idem, 2015).
Quanto aos ajustes nos padrões de consumo, os dados levantados eviden-
ciaram ainda que 90% das pessoas passaram a pesquisar mais os preços antes de
comprar, 77% mudaram os locais de consumo, 74% reduziram as despesas da casa
porque o dinheiro estava mais curto, 72% trocaram produtos por similares mais
baratos e 63% adiaram a compra de produtos de bens de maior valor (idem, 2015).
Essas linhas gerais sobre a montanha russa dos padrões de consumo dos
brasileiros foram propositalmente aqui delineadas para demonstrar, de forma
despretensiosa, que a sociedade de consumo de massa brasileira ainda não pode
ser totalmente enquadrada como uma sociedade de consumo do Terceiro Ciclo
6 Pesquisa realizada pelo Ibope Inteligência para a Confederação Nacional da Indústria (CNI) em setem-
bro/2015.
89
da economia capitalista, que ostenta características próprias de consumidores
médios das nações desenvolvidas.
Diante desse quadro descortinado pelo levantamento do Ibope Inteligên-
cia, percebe-se que a sociedade brasileira de consumo de massa encontra-se (ou
encontrava-se até antes da atual crise econômico-política) caminhando em tran-
sição da segunda para a terceira fase do capitalismo de consumo concebido por
Lipovetsky, isso se levar-se em consideração a classe socioeconômica que mais
consome no Brasil: a classe média.
Embora uma fração da sociedade possa ser configurada dentro das carac-
terísticas que compõem a sociedade do hipersonsumo ou do turboconsumismo
em alguns aspectos – como o da hiperconexão, do hiperindividualismo e do
imediatismo –, observa-se, da leitura atenta da análise levantada pelo instituto
de pesquisa, que grande parte dos consumidores brasileiros anseia, mas não tem
como manter, como sustentar financeiramente o acelerado e vertiginoso pata-
mar de consumo de um hiperconsumidor, cuja principal característica é jus-
tamente o apetite voraz pelas compras, a satisfação imediata, o prazer de curto
prazo e a necessidade de constante impermanência dos produtos.
No contexto das aspirações de consumo, em que a sociedade vive uma
constante perspectiva de troca, de mercadoria, de inovação, de conexão, de he-
donismo, de individualismo, pode-se inferir que a sociedade de consumo de
massa brasileira ostenta os mesmos interesses da sociedade de turboconsumo,
porém, quando se extraem esses interesses do campo meramente abstrato e os
traduzem em dados objetivos econômicos, denota-se o quão distante a socieda-
de de consumo brasileira está de alcançar o padrão pleno de consumo de uma
sociedade desenvolvida, que já atravessou integralmente cada ciclo do capitalis-
mo de consumo aqui examinado.
4. DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
90
Como acentuado por Harvey (2008), o modernismo objetivou libertar o
indivíduo das amarras do misticismo e do mundo ideal. O desenvolvimento de
formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento
prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição,
liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa pró-
pria natureza humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades
universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade, ser reveladas.
Em contrapartida, introduziu o modo de viver do homem numa modernida-
de pesada, sólida, sistêmica, com tendência ao totalitarismo e inimiga da instabili-
dade, da variedade e das condições idiossincráticas, como analisado por Bauman
(2001), ao tecer considerações acerca da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt:
91
cultural’. A fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os
discursos universais ou (para usar um termo favorito) ‘totalizantes’ são o marco
do pensamento pós-moderno.
(....)
O pós-modernismo assinala a morte dessas ‘metanarrativas’, cuja função terrorista
secreta era fundamentar e legitimar a ilusão de uma história humana ‘universal’. Es-
tamos agora no processo de despertar do pesadelo da modernidade, com sua razão
manipuladora e seu fetiche da totalidade, para o pluralismo retornado do pós-mo-
derno, essa gama heterogênea de estilos de vida e jogos de linguagem que renunciou
ao impulso nostálgico de totalizar e legitimar a si mesmo... (HARVEY, 2008).
Assim sendo, que é esse pós-modernismo de que muitos falam agora? Terá a vida
social se modificado tanto a partir do início dos anos 70 que possamos falar sem
errar que vivemos numa cultura pós-moderna, numa época pós-moderna? Ou
será simplesmente que as tendências da alta cultura deram, como é do seu feitio,
mais uma circunvolução e que as modas acadêmicas também mudaram sem um
único vestígio ou eco de correspondência na vida cotidiana dos cidadãos comuns?
92
das vaidades e da individualidade. Trata-se do mundo do transitório, da reno-
vação constante. A transitoriedade da vida cotidiana dificulta a preservação de
todo sentido de continuidade histórica. Não há solidez, não há estabilidade, não
há o fetiche da totalidade, não há a ilusão de uma história humana universal.
A nova era é a da pós-modernidade. Uma nova ordem de poder, baseada
no consumo, na frivolidade, na superficialidade, na individualidade, domina as
sociedades. A partir do momento em que as pessoas passam a sustentar suas
vidas apenas tentando fazer algo em benefício próprio, por seu próprio prazer
e individualidade, a superficialidade parece também triunfar nos demais segui-
mentos da vida humana, como o trabalho, a escola e a política. A frivolidade, a
superficialidade, a imediatidade, a impermanência, o hedonismo, a ausência de
referenciais coletivos e o hiperindividualismo que caracterizam a sociedade de
consumo de massa também cunham o modo de ser da sociedade pós-moderna,
da sociedade líquida.
93
e aos direitos humanos. A crise ambiental do mundo moderno colocou no epi-
centro dos debates mundiais os riscos de esgotamento dos recursos naturais e o
risco em potencial de as gerações presentes não assegurarem às futuras gerações
a conservação do bem ambiental.
Até Revolução Industrial, ante a falta de problemas agudos, havia um en-
tendimento generalizado de que a natureza seria capaz de absorver materiais
tóxicos lançados no ambiente e, por um mecanismo natural, o equilíbrio seria
mantido automaticamente.
O crescente consumo geral, que se refletiu na crise ambiental de nosso
tempo apontou ao homem o destino de um caminho sem volta: a necessidade
de maior prudência nos estilos de desenvolvimento das nações e nos padrões
de consumo das sociedades desenvolvidas. Somente na década de 1940, com
a edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o meio am-
biente foi reconhecido como um direito fundamental, sendo a década de 1960
(o Pós-Segunda Guerra) o marco divisor de uma nova consciência dos proble-
mas ambientais no âmbito internacional. A questão ambiental ganhou relevo e
compeliu as nações ao debate acerca da degradação dos recursos ambientais,
com destaque para a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
Humano (Estocolmo – 1972).
Esse breve escorço da questão ambiental no mundo tem por escopo contex-
tualizar os riscos que os modelos produtivos e os padrões de consumo impuseram
sobre todas as nações do globo. A riqueza daqueles que se beneficiam da explo-
ração desmedida do recurso ambiental é concentrada, mas os riscos são ubíquos.
A sociedade turboconsumidora, produto do sistema capitalista de produ-
ção, é a origem e a consequência do seu padrão de consumo; ressente-se dos
efeitos de seu consumo desregrado em seu meio ambiente, em todos os aspectos:
natural, artificial, do trabalho etc.
Os modos de organização da Nova Economia produziram também impli-
cações diretas sobre o indivíduo, em particular sobre o seu caráter, sobre o aspec-
to de longo prazo de sua experiência emocional.
A sociedade da Nova Economia Capitalista Flexível (a sociedade pós-mo-
derna) é uma sociedade impaciente, que se concentra no imediato. Como uma
sociedade que é impaciente e imediatista pode estabelecer para si valores dura-
douros? Como compromissos e termos de fidelização podem ser sustentados em
94
instituições que estão constantemente sendo fundidas, incorporadas ou cindidas
ou tendo suas estruturas reconfiguradas? (SENNET, 2004)
A busca da flexibilidade no sistema produtivo criou novas estruturas de
poder e de controle, ao invés de criar condições para nos deixar livres de novas
formas de controle e submissão (SENNET, 2004). Nos novos mercados os com-
promissos institucionais das empresas e dos consumidores estão cada vez mais
escassos. Ora, por que você se comprometeria com uma instituição que não se
compromete com você?
A modernidade líquida da sociedade de hiperconsumo carrega em si a in-
dividualização do mundo e o derretimento dos parâmetros sociais, como tão
bem colocado nas palavras do Sumo Pontífice da Igreja Católica, o Papa Francis-
co: os desertos externos estão aumentando no mundo porque os desertos internos
estão vastos.
Segundo o economista brasileiro Eduardo Gianetti (2017), dados da Uni-
versidade de Cambridge demonstram o quão nociva a lógica do consumo exa-
cerbado tem sido para a humanidade, especialmente para os menos favorecidos
economicamente. Dos 7 bilhões de habitantes da Terra, 1 bilhão é responsável
por produzir 50% dos gases que levam ao efeito estufa. Outros 3 bilhões pro-
duzem 45% desses gases, enquanto os últimos 3 bilhões, sem acesso a bens de
consumo, produzem 5% e sofrem todas as consequências, o que demonstra que
a sociedade de consumo de massa é a mesma sociedade de risco oriunda da
Revolução Industrial e, também, a mesma sociedade da escassez decorrente da
exploração sem medidas dos recursos naturais.
Os dados sobre a emissão de gases do efeito estufa da Universidade de
Cambridge (GIANETTI, 2017) denotam que os riscos produzem, dentro de seu
raio de alcance e entre as pessoas por eles afetadas, um efeito equalizador.
A sociedade de risco produzida pela sociedade de consumo possui um
ponto peculiar: o padrão distributivo dos riscos, que possuem uma tendência
imanente à globalização. A sociedade de risco decorrente da industrialização e
do consumo desordenado trouxe consequências políticas e sociais inteiramente
diversas e em diferentes pontos do planeta. Países com ampla cobertura florestal
e que sequer dispõem de muitas indústrias poluentes têm que pagar pela emis-
são de poluentes de outros países altamente industrializados com a extinção de
sua fauna e flora, desastres ambientais e propagação de doenças. Risco da pobre-
95
za, risco da qualificação, riscos à saúde, riscos de desastres ambientais são todos
riscos do desenvolvimento industrial e do crescimento exacerbado do consumo.
Os riscos da modernização emergem ao mesmo tempo vinculados espa-
cialmente e desvinculados por um alcance universal. São incalculáveis e impre-
visíveis os intricados caminhos de seu alcance global (BECK, 2010), sendo um
exemplo evidente disso a poluição transfronteiriça, que atinge espaços territo-
riais de dimensões incomensuráveis. A atração latente da vida de consumo tem
objetivo certo e benefício manifesto e puramente utilitário: proporcionar o pra-
zer, as frivolidades imediatas.
Bauman (2001, p. 90) assevera que a sociedade pós-moderna envolve seus
membros primariamente em sua condição de consumidores, porque esse com-
portamento é sempre baseado em desejos crescentes e quereres voláteis:
96
pela impermanência contínua. As identidades dos indivíduos são formadas e
trocadas na mesma velocidade em que se trocam os aparelhos eletrônicos.
A pós-modernidade incutiu no indivíduo uma nova forma de dominação:
a velocidade da informação. A possibilidade de controlar diversas ações, em lo-
cais diferentes, sem se comprometer diretamente com nenhum deles domina o
ideário dos atores sociais. O trabalho se tornou uma rede fluida de flexibilizações
e de insegurança, pois se torna cada vez mais difícil aos trabalhadores estabe-
lecerem uma relação de forças minimamente disputáveis com as vontades e os
objetivos da economia de mercado.
A modernidade líquida que caracteriza a pós-modernidade diluiu toda a
estrutura social montada em torno da relativa fixidez das sociedades modernas
das fases I e II do capitalismo de consumo. As relações sociais dessa sociedade
pós-moderna (sociedade do turboconsumo) tornaram-se voláteis, dissolvendo
os parâmetros concretos de classificação social (BAUMANN, 2001). A indivi-
dualização do mundo deixa o sujeito “livre”, em certos pontos, para ser o que
conseguir ser mediante suas próprias forças. A liquidez, da modernidade líqui-
da, refere-se justamente à inconstância e à incerteza que a falta de pontos de
referência socialmente estabelecidos e generalizadores gera.
A era atual está passando de uma fase de grupos de referência predetermi-
nados a uma outra fase de comparação universal, em que o destino dos trabalhos
de autoconstrução individual não está pronto e acabado, mas tendem a sofrer
numerosas e profundas mudanças antes que atinjam seu único objetivo genuíno:
o fim da vida do indivíduo (BAUMAN, 2001).
O “derretimento” dos parâmetros sociais modernos é obra das mesmas
forças de desconstrução dos paradigmas das sociedades tradicionais anteriores
às sociedades modernas. Não há, entretanto, uma reconstrução de parâmetros
“sólidos”. Estes permanecem em sua forma fluida, podendo tomar a forma que
as forças sociais e individuais, em momentos específicos, determinarem – é a
liquidez do comportamento social (idem, 2001).
Dessa forma, temos o sujeito líquido – aquele indivíduo superficial, volá-
til em que inúmeras identidades se manifestam em momentos diferentes, sem
que haja parâmetros ou referenciais coletivos sólidos. A sociedade dá forma à
individualidade de seus atores e estes formam a sociedade de acordo com suas
dependências.
97
A contínua modernização e a sede insaciável de destruição criativa ou de
criatividade destrutiva em nome da produtividade e da competitividade, como
explica Bauman (2001, p. 37), é o que distingue a sociedade pós-moderna:
A sociedade que entra no século XXI não é menos “moderna” que a que entrou
no século XX; o máximo que se pode dizer é que ela é moderna de um modo
diferente. O que a faz tão moderna como era mais ou menos há um século é o
que distingue a modernidade de todas as outras formas históricas do convívio
humano: a compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta mo-
dernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou
de criatividade destrutiva, se for o caso: de ‘limpar o lugar’ em nome de um ‘novo
e aperfeiçoado’ projeto; de ‘desmantelar’ ‘cortar’ ‘defasar’ ‘reunir’ ou ‘reduzir’ tudo
isso em nome da maior capacidade de fazer o mesmo no futuro - em nome da
produtividade ou da competitividade).
98
liberdade e autonomia individuais não podem prescindir do bem comum. Daí, a
importância fundamental do Estado Democrático de Direito na garantia, simul-
tânea, dos direitos individuais, da igualdade e da justiça social.
Aliás, não só o Estado como também a comunidade devem se ativar nas
prestações necessárias ao alcance do bem-estar social fundado na igualdade, afas-
tando a frivolidade e a hiperindividualidade da sociedade de consumo de massa.
CONCLUSÃO
99
No contexto das aspirações de consumo, em que a sociedade vive uma
constante perspectiva de troca, de mercadoria, de inovação, de conexão, de he-
donismo, de individualismo, pode-se inferir que a sociedade de consumo de
massa brasileira ostenta os mesmos interesses da sociedade de turboconsumo
pós-moderna, porém, quando se extraem esses interesses do campo meramen-
te abstrato e os traduzem em dados objetivos econômicos, denota-se o quão
distante a sociedade de consumo brasileira está de alcançar o padrão pleno de
consumo de uma sociedade desenvolvida, que já atravessou integralmente cada
ciclo do capitalismo de consumo aqui examinado.
Por outro lado, em termos gerais, pode-se afirmar que a sociedade atual,
mesmo a sociedade brasileira, vive um momento de supervalorização do consu-
mo, da instantaneidade, das vaidades e da individualidade. Trata-se do mundo
do transitório, da renovação constante. A transitoriedade da vida cotidiana di-
ficulta a preservação de todo sentido de continuidade histórica. Não há solidez,
não há estabilidade, não há o fetiche da totalidade, não há a ilusão de uma his-
tória humana universal, concepções então presentes no movimento modernista.
O homem pós-moderno trocou um quinhão de suas possbilidades de segu-
rança por um quinhão de felicidade (BAUMAN, 1998). A liberdade da procura
do prazer e da individualidade domina o homem pós-moderno das economias
de mercado, que cada vez mais sacrifica sua segurança individual e despreza a
perda de valores e de referências sociais.
Não se olvide que os impactos do sistema capitalista de produção se fizeram
sentir também, e a toda evidência, no contexto ambiental, mormente porque a
questão ambiental está ligada às necessidades elementares de sobrevivência do
homem e aos direitos humanos. A crise ambiental do mundo moderno colocou
no epicentro dos debates mundiais os riscos de esgotamento dos recursos natu-
rais e o risco em potencial de as gerações presentes não assegurarem às futuras
gerações a conservação do bem ambiental.
A sociedade de risco produzida pela sociedade de consumo possui um
ponto peculiar: o padrão distributivo dos riscos, que possuem uma tendência
imanente à globalização. A sociedade de risco decorrente da industrialização e
do consumo desordenado trouxe consequências políticas e sociais inteiramente
diversas e em diferentes pontos do planeta. Países com ampla cobertura florestal
e que sequer dispõem de muitas indústrias poluentes têm que pagar pela emis-
são de poluentes de outros países altamente industrializados com a extinção de
100
sua fauna e flora, desastres ambientais e propagação de doenças. Os riscos da
modernização emergem ao mesmo tempo vinculados espacialmente e desvin-
culados por um alcance universal.
A vida social se tornou cada vez mais volátil: não há empregos fixos, não há
comunidades para se sentir seguro, ninguém mais é apoiado por nenhuma tra-
dição, por nenhuma instituição. O trabalho se tornou uma rede fluida de flexi-
bilizações e de insegurança, pois se torna cada vez mais difícil aos trabalhadores
estabelecerem uma relação de forças minimamente disputáveis com as vontades
e os objetivos da economia de mercado.
A modernidade líquida que caracteriza a pós-modernidade diluiu toda a
estrutura social montada em torno da relativa fixidez das sociedades modernas
das Fases I e II do capitalismo de consumo. As relações sociais dessa sociedade
pós-moderna (sociedade do turboconsumo) tornaram-se voláteis, dissolvendo
os parâmetros concretos de classificação social (BAUMANN, 2001).
Nesse momento em que a sociedade passa a reverenciar padrões exacer-
bados de consumo, de exploração do bem ambiental, de prazer individual, em
detrimento dos referenciais coletivos, questiona-se se o homem pós-moderno
não está a colocar suas preferências individuais, seus valores internos à frente
dos interesses coletivos, sobrepujando as necessidades e direitos da maioria pre-
sente e daqueles que estão por vir. Seria a presente geração pós-moderna capaz
de assegurar o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a sadia qualidade de
vida das futuras gerações? Poder-se-ia falar em uma sociedade inclusiva, pauta-
da na defesa dos direitos humanos, quando o parâmetro que se tem é o de uma
sociedade pautada na individualidade de seus membros? A hiperindividualida-
de da sociedade turboconsumidora permite a construção de uma sociedade que
harmoniza, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que o primeiro direito de
todo indivíduo é o direito de ter direitos e o de que os direitos de um indivíduo
convivem com direitos de outros indivíduos?
A constatação é clara e não poderia ser outra: a liberdade e autonomia indi-
viduais não podem prescindir do bem comum. Daí, a importância fundamental
do Estado Democrático de Direito e da presença da comunidade na garantia,
simultânea, dos direitos individuais, da igualdade, da justiça social e das presta-
ções necessárias ao alcance do bem-estar social de toda a coletividade.
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REFERÊNCIAS
102
ros-alteram-habitos-de-consumo-ou-planejamento-financeiro-em-funcao-da-
-crise.aspx> Acesso em 28 set. 2017.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 4.ª ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2017.
SENNET, Richard. The culture of the new capitalism. Connectcut: Yale Univer-
sity, 2004.
103
AGROTÓXICOS, ALIMENTOS TRANSGÊNICOS, INFORMAÇÃO
E A SOCIEDADE DE RISCO NO CONTEXTO ATUAL
AGROCHEMICALS, TRANSGENIC FOODS, INFORMATION AND
THE RISK SOCIETY IN THE CURRENT CONTEXT
Edmara de Abreu Leão1
Márcio Alexandre Silva2
105
and chemical sectors, which often also have a share in the drug market, puting
the health of the population, biodiversity, the smallholder economy and global
food security at risk. Within this conception of the economic model, the risk
society paradigm emerges, characterized by the consumption of threats resul-
ting from a production process, representative of new market opportunities,
highlighting the power to manipulate scientific information about such risks.
Based on this perspective, the present study was developed from a doctrinal and
factual analysis, adopting, as a research methodology, the qualitative bibliogra-
phy and the exploratory method of the proposed theme.
KEYWORDS: Pesticides. Genetically modified products. Mergers of com-
panies. Society of risk. Power of information.
INTRODUÇÃO
106
Observatório da Indústria dos Agrotóxicos da Universidade Federal do Paraná
(ANVISA; UFPR, 2012).
Tal situação reflete mundialmente, tendo em vista que a Organização das
Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)5 estimam que, até o ano de
2025, o Brasil se tornará o maior exportador de alimentos do mundo.
Inúmeros são os problemas de saúde relacionados com o uso de agrotóxicos,
com destaque para o aumento do número de casos de cânceres, alergias respira-
tórias, lesões hepáticas, arritmias cardíacas, doença de Parkinson, dermatites de
contato, efeitos neurotóxicos retardados, alterações cromossomiais, dentre outras.
No que diz respeito aos alimentos transgênicos, não há consenso científico
quanto aos seus efeitos nocivos à saúde da população, surgindo daí um verda-
deiro sentimento de medo quanto ao seu consumo, que acaba sendo controlado
com a manipulação das informações pelos agentes econômicos da iniciativa pri-
vada. Os riscos com o uso de agrotóxicos e o consumo de alimentos transgênicos
passam a ser globais, ameaçando a vida do planeta sob todas as suas formas.
Evidencia-se, então, o que Ulrich Beck (2010) denominou de sociedade de
risco, como um mundo de dúvidas fabricadas, por meio de inovações tecnoló-
gicas e respostas sociais mais aceleradas, produzindo um novo cenário de risco
global, de incertezas não quantificáveis.
Na sociedade definida por Beck (2010):
Nesse contexto, a fusão das empresas Monsanto e Bayer passa a ter relevân-
cia não apenas à economia brasileira, mas à sociedade global, principalmente, no
que diz respeito à saúde e à segurança alimentar mundial.
Sob essa perspectiva, o presente artigo abordará as questões relacionadas
à fusão das empresas multinacionais, ao aumento do uso dos agrotóxicos e do
107
consumo de produtos transgênicos no Brasil e os reflexos mundiais daí decor-
rentes sob o enfoque da sociedade de risco atual e do poder da informação.
108
mente conhecidos como PCBs e atualmente banidos; o poliestireno; o insectici-
da DDT; as dioxinas; os fertilizante a base de petróleo; o aspartame, o hormônio
de crescimento bovino (rBGH) e os cultivos geneticamente modificados (OGM/
GMO/GM).
Conforme estudos independentes,9 o uso dessas substâncias é associado
ao aparecimento, principalmente, de cânceres, danos aos nervos, depressão, mal
formação, infertilidade, destruição do sistema imunológico, tumores, funções
orgânicas alteradas, mortes por intoxicação.
Os danos ambientais decorrentes da utilização dos referidos produtos são
enormes. Com o Roundup, um dos responsáveis pelo desaparecimento das abe-
lhas, as plantas envenenam e matam os insetos e mamíferos que as devoram,
persistindo nelas inclusive depois do seu processamento até chegar ao consu-
midor. E, com o vento e os insetos sobreviventes, ocorre o transporte dos agro-
tóxicos e das mutações genéticas para a natureza selvagem, comprometendo o
ecossistema global
Já o Poliestireno além de gerar resíduos difíceis de reciclar é fatal para a
vida marinha, pois flutua na superfície do oceano e se decompõe em pequenas
esferas que os animais comem. As tartarugas marinhas, por exemplo, perdem
sua capacidade de mergulhar e morrem de fome.
A empresa também é responsável pela produção das sementes Terminator,
desenvolvidas para produzir grãos estéreis incapazes de germinar, obrigando os
agricultores todos os anos a comprar novas sementes da Monsanto, no lugar de
guardar e reutilizar as sementes de suas colheitas, como fizeram durante séculos.
De outro lado, a empresa alemã Bayer, com atuação global nos setores de
saúde, agronegócios e materiais inovadores, que sustenta ter como missão ajudar
na melhoria da saúde das pessoas, dos animais e das plantas. Fundada em 1863,
a empresa química e farmacêutica, que já chegou a comercializar heroína como
remédio para tosse e depois, aspirina, fazia parte, na década de 30, da corporação
alemã IG Farben, juntamente com a Basf, a Hoechst AG e outras empresas quí-
micas e farmacêuticas. Com a contrapartida de apoio para sua expansão e o in-
vestimento em uma tecnologia estratégica para suas empresas, o cartel doou 400
mil marcos para a campanha que ajudou a nomear Adolf Hitler chanceler, além
de desenvolver uma borracha sintética, combustíveis de alta performance (utili-
109
zados pelas Forças Armadas), óleo combustível e ainda o famigerado Ziklon-B
(gás utilizado nas câmaras de extermínio). Segundo a obra “IG Farben - From
Anilin to Forced Labor”, as fábricas da corporação utilizava trabalhadores força-
dos como cobaias em seus experimentos com novos medicamentos e vacinas.10
O portfólio de produtos da Bayer para a agricultura inclui 26 inseticidas,
dois herbicidas e um fungicida, dentre eles se destacam: o Lactofem,11 herbicida
utilizado na soja, considerado cancerígeno e proibido na União Europeia; Ti-
ram,12 fungicida autorizado para uso em diversas culturas alimentícias, como
arroz, feijão, milho, trigo, ervilha, cevada e amendoim, além de soja, pastagens e
algodão, considerado mutagênico, que causa toxicidade reprodutiva e desregu-
lação endócrina, tendo sido retirado do mercado nos EUA e os Neonicotinóides,
proibidos na União Europeia e em diversos países13 por serem tóxicos às abelhas,
de acordo com vários estudos.14 É com base em tal realidade que foi criada a
maior empresa mundial de agrotóxicos e produtos transgênicos com a fusão das
empresas Monsanto e Bayer em 2016.
Para o Brasil, considerado o segundo maior produtor de transgênicos do
mundo (ISAAA, 2016), e ocupando primeiro lugar no ranking mundial de con-
sumo de agrotóxicos (INCA, 2015), essa fusão representa um risco à segurança
alimentar, aos produtores agrícolas, à economia nacional e à saúde da popula-
ção. Em que pese uma das maiores promessas dos transgênicos ser a possível
diminuição do uso dos defensivos, verifica-se que isso não aconteceu no Bra-
sil. Ao contrário, segundo a Anvisa, em pesquisa realizada em 2012, o uso de
agrotóxicos no país cresceu em 190% relacionado ao crescimento do plantio de
transgênicos.
110
Dados da Consultoria Céleres,15 empresa especialista em análises de agro-
negócio, apontam que, no Brasil, a utilização de sementes transgênicas chegará a
93,4% nas plantações de soja, algodão e milho. Isso significa que o país possuirá
49,1 milhões de hectares destinados a sementes geneticamente modificadas para
estas culturas na safra 2016/2017.
A venda casada de sementes geneticamente modificadas com agrotóxicos,
a exemplo da soja Roundup da Monsanto - que é produzida para aguentar cargas
altas de glifosato sem morrer, enquanto tudo que é ser vivo no seu entorno, de
alguma forma, fenece e se contamina - é cada vez mais incorporada à rotina da
atividade agrícola brasileira.
Isso se dá, principalmente, porque 77% dos transgênicos cultivados atual-
mente apresentam, como diferencial, a característica de serem resistentes a her-
bicidas (agrotóxicos que matam plantas), ou seja, se antes o agricultor precisava
utilizar o agrotóxico com cuidado, sob risco de danificar a própria lavoura, com
os cultivos resistentes a herbicidas ele pode pulverizar o produto à vontade, que
todas as plantas morrerão, salvo a cultura transgênica.16
Augusto,17 pesquisadora que foi membro titular da Comissão Nacional de
Biossegurança no período de 2005-2006, concorda com Nodari (2007), e enfa-
tiza que as plantas transgênicas resistentes aos herbicidas aumentam o grau de
dependência dos agricultores aos agrotóxicos. A venda de sementes transgênicas
é casada com a dos agrotóxicos, produzidos, em geral, pelas mesmas empresas.
A trajetória que levou à imbricação entre transgênicos e agrotóxicos é re-
sultado do modelo tecnológico hegemônico que considera o agrotóxico o único
caminho para aumentar a produtividade agrícola e alimentar a crescente popu-
lação mundial, justificativa que a Monsanto e a Bayer argumentam para ampliar
as safras por meio do uso combinado de agrotóxicos e produtos transgênicos.
Todavia, já restou comprovado que os transgênicos desenvolvidos até hoje não
foram produzidos para aumentar a produtividade das plantações. Além disso, o
aumento do uso de agrotóxicos e dos cultivos transgênicos agravam a situação
econômica do agricultor em razão da dependência gerada pela tecnologia im-
posta para o desenvolvimento de tais culturas, do sistema de patentes das semen-
111
tes transgênicas, dos contratos de proibição de reutilização de sementes e dos
altos preços impostos pelas empresas multinacionais pelo uso de tais insumos
agrícolas, resultando na diminuição da sua renda.
Antes da mecanização da agricultura, toda a alimentação era baseada em
sementes crioulas, tradicionais. Os agricultores detinham o controle sobre suas
sementes e poderiam fazer melhorias, armazenar, vender, expor ou trocar livre-
mente. Com a Revolução Verde,18 houve controle de mercado e escassez provo-
cada por efeito de legislação, patenteamento ou alteração genética, com o agri-
cultor passando a ter dependência de quem tem controle sobre as sementes.
A questão é transversal e afeta de grandes a pequenos produtores, além da
soberania de produção dos próprios países. Antes, o Brasil tinha o controle de
patenteamento de sementes, sendo soberano sobre sua própria produção. De-
pois, essa produção passou a ter que contar com autorização e pagamento de
direitos às empresas transnacionais, que têm controle de mercado sobre elas.
Como a agricultura afeta a alimentação de toda a população brasileira, a perda
da soberania prejudica o país como um todo, mas tem um efeito diferenciado
sobre o pequeno produtor.
Hoje, na aquisição das sementes, o valor da propriedade intelectual já
está incluído. Mas, na hora da compra, existe uma produtividade estimada:
se o produtor produzir mais do que isso, ele paga royalties novamente. “E um
grande produtor tem mais capacidade de absorver impactos como esse do que
um pequeno”, afirma Dallagnol.19 Sobre a patente de sementes, Vandana Shi-
va20 explica que:
18 O termo Revolução Verde surgiu na década de 1970. Pesquisadores do Primeiro Mundo prometiam,
por meio de um conjunto de técnicas, aumentar estrondosamente as produtividades agrícolas e re-
solver o problema da fome nos países em desenvolvimento. O modelo se baseia na intensiva utiliza-
ção de sementes melhoradas, insumos industriais (fertilizantes e agrotóxicos), mecanização e mão
de obra barata. Os efeitos perversos da Revolução Verde foram o aumento das despesas com o cultivo
e o endividamento dos agricultores, o crescimento da dependência dos países, do mercado e da lu-
cratividade das grandes empresas de insumos agrícolas, o agravamento da uniformidade e da erosão
genética das espécies agrícolas e a expulsão dos agricultores do campo. Disponível em: <http://www.
unicamp.br/fea/ortega/agenda21/candeia.htm> Acesso em 8/8/2017.
19 Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2016/09/01/transgenicos-ja-chegam-a-93-da-a-
rea-plantada-com-soja-milho-e-algodao/> Acesso em 8/8/2017.
20 Disponível em: <http://outraspalavras.net/posts/vandana-shiva-e-a-batalha-das-sementes/> Aces-
so em 8/8/2017.
112
a sociedade não se beneficia de sementes tóxicas e não renováveis. Estamos per-
dendo biodiversidade e diversidade cultural, estamos perdendo nutrição, sabor
e qualidade em nossos alimentos. Sobretudo, estamos perdendo nossa liberdade
fundamental de decidir quais sementes plantaremos, como iremos cultivar nosso
alimento e o que iremos comer. De bem comum, as sementes transformaram-se
em commodities de empresas privadas de biotecnologia. Se elas não forem prote-
gidas e colocadas novamente nas mãos de nossos agricultores, corremos o risco de
perdê-las para sempre. Quando conservamos uma semente, também renovamos e
restauramos o conhecimento – o conhecimento da reprodução e da conservação,
o conhecimento do alimento e da agricultura. A uniformidade tem sido usada
como medida pseudocientífica para criar monopólios de propriedade intelectual
sobre sementes. Uma vez que uma empresa tem patente sobre sementes, ela em-
purra para os agricultores suas produções patenteadas para receber royalties. Hoje
estamos condenados a comer milho e soja geneticamente modificados de diferen-
tes formas. Quatro culturas principais – milho, soja, canola e algodão – têm sido
todas cultivadas às custas de outros cultivos, porque geram royalties por cada hec-
tare plantado. A Índia, por exemplo, cultivava 1.500 tipos diferentes de algodão, e
agora 95% são Algodão Bt, geneticamente modificado, pelo qual a Monsanto rece-
be royalties. Mais de 11 milhões de hectares de terra são empregados no cultivo de
algodão. Destes, 9,5 milhões são usados para cultivar a variedade Bt da Monsanto.
21 Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e Organização para a Coopera-
ção e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
113
destaca-se que cada brasileiro consome em média 5,2 litros de veneno por ano,
segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca).22
Segundo o Dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, 70%
dos alimentos in natura consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos
e, desses, de acordo com a Anvisa, 28% contêm substâncias não autorizadas. “Isso
sem contar os alimentos processados, que são feitos a partir de grãos genetica-
mente modificados e cheios dessas substâncias químicas”, diz Karen Friedrich, da
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz). De acordo com ela, mais da metade dos agrotóxicos usados no Brasil
hoje são banidos em países da União Europeia e nos Estados Unidos.23
De acordo com um levantamento da Anvisa,24 o pimentão é a hortaliça mais
contaminada por agrotóxicos (segundo a Agência, 92% pimentões estudados esta-
vam contaminados), seguido do morango (63%), pepino (57%), alface (54%), ce-
noura (49%), abacaxi (32%), beterraba (32%) e mamão (30%). Há diversos estudos
que apontam que alguma substâncias estão presentes, inclusive, no leite materno.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que, entre os países em
desenvolvimento, os agrotóxicos causam, anualmente, 70.000 intoxicações agu-
das e crônicas.25 O uso dessas substâncias está altamente associado à incidência
de doenças como o câncer e diversos outros problemas de saúde.
Em 2014, a pesquisadora norte-americana Stephanie Seneff, da área de
computação do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT (Instituto de Tec-
nologia de Massachusetts), apresentou um estudo anunciando mais um dado
alarmante: “Até 2025, uma a cada duas crianças nascerá autista”, disse ela, que
fez uma correlação entre o Roundup, o herbicida da Monsanto feito a base do
glifosato e o estímulo do surgimento de casos de autismo.26 De acordo com o
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea),27 o uso de
114
agrotóxicos é uma das mais graves e persistentes violações do direito humano à
alimentação adequada no Brasil porque impede o acesso da população a alimen-
tos livres de veneno e saudáveis.
Quanto ao consumo de produtos transgênicos, ainda existe muita contro-
vérsia em relação aos possíveis danos à saúde, ao meio ambiente e à soberania
alimentar da população. Enquanto instituições, como a Academia Nacional de
Ciência dos Estados Unidos, divulgam que os alimentos transgênicos não cau-
sam riscos à saúde, estudos que seguem diferentes metodologias dizem o con-
trário. Ainda que não haja consenso científico quanto aos seus riscos, a opinião
pública em relação aos efeitos negativos dos transgênicos vem diminuindo, em
contrapartida ao consumo dos produtos transgênicos que se intensifica.
115
de modernização e nem as fronteiras do que é (ecológico medicinal, psicológica
ou socialmente) aceitável?”
Para o primeiro paradigma, o processo de modernização tinha a pretensão
de diminuir as desigualdades sociais com a distribuição da riqueza socialmente
produzida. Já para o segundo, o processo de modernização, além de distribuir ri-
queza, provoca a distribuição de riscos, pois, cada vez mais, as forças destrutivas
acabam sendo desencadeadas.
Dentro dessa nova concepção produtiva, os riscos seriam mais democráti-
cos e globalizados. Sendo assim, ninguém, nem pobres, nem ricos, estaria total-
mente imune às ameaças produzidas e agravadas pelo progresso. Embora admita
que muitos riscos possam ainda ser distribuídos conforme a classe social, Beck
não concebe mais as ameaças como situações de classe. Para o autor:
116
conhecida como “Vila da Morte”28 e em Bhopal, na Índia, onde ocorreu uma
explosão em indústria pesticida.29
Entretanto, a pauperização do risco no Terceiro Mundo é contagiosa para
os ricos. O efeito bumerangue também acaba por afetar os países ricos, que jus-
tamente se haviam livrado dos riscos por meio da transferência, mas que aca-
bam reimportando-os juntamente com os alimentos baratos. Assim, os riscos
são globais, afetando toda a humanidade, inclusive grupos que são mais bem e
ativamente informados.
Tal característica marcante da sociedade de risco descrita por Ulrich Beck
é verificada quando se comparam os diferentes resultados das pesquisas científi-
cas relacionadas aos efeitos negativos à saúde provocados pelo uso de agrotóxi-
cos e produtos geneticamente modificados.
Como os riscos passam a representar oportunidades de mercado e afetam a
todos, a consciência sobre eles adquire uma nova relevância política e econômi-
ca, com a ciência assumindo um papel central na produção dessa nova “moeda”
por meio da disseminação do conhecimento sobre os riscos.
Nas palavras de Beck (2010, p. 368):
117
A cientifização leva a indistinções marcantes entre ciência e política, atravessando
todas as esferas da vida social e a especializabilidade produz um caráter delimi-
tável e monopolizável do conhecimento científico e da ação política, através das
instituições que compõem o sistema científico e político.
Com a sociedade de risco, irrompe uma era especulativa de percepção do pensa-
mento cotidiano. Ninguém é capaz de conhecer os riscos, enquanto isso significar
tê-los experimentados. Deixam de ser ameaças e passam a ser aqueles que as reve-
lam os que provocam a inquietação generalizada (BECK 1997, p. 263).
30 Carson trouxe prestígio ao conceito de ecologia, influenciando várias gerações. Foi além de denunciar
os efeitos do DDT, escrevendo sobre o direito moral de cada cidadão saber o que estava sendo lançado
de forma irresponsável na natureza pela indústria química. E foi mais além, despertou a consciência
ambiental de uma nação para reagir e exigir explicações e soluções.
31 Disponível em: <http://www.abrasco.org.br/dossieagrotoxicos/wp-content/uploads/2013/10/Dos-
sieAbrasco_2015_web.pdf> Acesso em 8/8/2017.
118
Já para a retórica da justificação, o risco é um efeito colateral latente do
progresso, uma espécie de licença, um destino natural civilizatório. Assim, pela
imposição da racionalidade tecnocrática sobre a opinião pública, toda técnica
destinada a solucionar o desafio alimentar no mundo é moralmente justificável
e, portanto, deve ser aplicada, consagrando a tese do mal necessário, pela qual os
efeitos negativos dos agrotóxicos são uma necessidade social inevitável.
Pela retórica da desqualificação procura-se deslegitimar os adversários
portadores de proposições e críticas de interesse público, por meio de reações
específicas a denúncias e/ou resultados inconvenientes de pesquisas relaciona-
das aos efeitos dos venenos agrícolas, obrigando os defensores dos agrotóxicos
ao embate frontal com seus oponentes. Embora seja formulada como reação a
críticas específicas, a narrativa da desqualificação adota uma linha de argumen-
tação genérica, justamente buscando atribuir aos críticos uma postura ideológi-
ca reacionária, apontando-os como supostamente avessos ao progresso técnico,
econômico e social.
Ainda, o poder corporativo possui extensas redes de autodefesa que se ra-
mificam em instituições científicas e políticas a fim de se prevenir de desviantes
indesejáveis. Assim, essas redes premiam as pesquisas comprometidas com os
seus interesses. É o que se verifica quando analisado o relatório Genetically Engi-
neered Crops: Experiences and Prospects,32 da Academia Nacional de Ciências,
Engenharia e Medicina dos Estados Unidos, órgão que recebe recursos finan-
ceiros das empresas de indústrias agrícolas e biotecnológicas,33 e afirmou que
os transgênicos são seguros para a alimentação e que não possuem impactos
ambientais negativos, além de propiciarem a redução no uso de pesticidas.
Além disso, as principais academias de ciências do mundo e instituições,
como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), são unânimes em dizer que os
transgênicos são seguros e que a tecnologia de manipulação genética realizada
sob o controle dos atuais protocolos de segurança não representa risco maior do
que técnicas agrícolas convencionais de cruzamento de plantas.34
119
Souza Silva (2014) analisa o fato como “o quadro de institucionalização da
mentira, no qual a mentira premiada se converte em verdade legitimada, passan-
do a mentira a funcionar como filosofia de negociação pública.”
Como se vê, com o potencial de ameaça das forças produtivas, a margem de
manobra das pesquisas científicas torna-se cada vez mais evidente e a consciên-
cia dos riscos passa a representar uma luta entre pretensões de racionalidades
científica e social concorrentes.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
120
______________. Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Ali-
mentos (PARA). Relatório de Atividades de 2011 e 2012. Brasília: Agência Na-
cional de Vigilância Sanitária. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/do-
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123
DIREITO ALTERNATIVO OU USO ALTERNATIVO DO
DIREITO EM DIÁLOGO COM O DIREITO AMBIENTAL
ALTERNATIVE LAW OR ALTERNATIVE USE OF THE LAW
IN DIALOGUE WITH ENVIRONMENTAL LAW
Fernando Figueiredo Prestes1
125
analysis of the norms of Environmental Law by the bias of alternative law. The
methodology used in the research was the deductive method and, in terms of
the means, the research was bibliographical and as to the purposes, qualitative.
KEYWORDS: Alternative Law. Environmental Law. Hermeneutics. Sociology.
INTRODUÇÃO
126
servação dos recursos naturais e manutenção da biodiversidade sem aniquilar o
direito positivado.
Ao final da presente exposição, faremos uma breve passagem a respeito da
teoria geral dos direitos fundamentais, com foco nas gerações ou dimensões do
direito e sua possível influência interpretativa nas normas ambientais. A meto-
dologia utilizada na pesquisa foi o método dedutivo e, quanto aos meios a pes-
quisa foi bibliográfica e quantos aos fins, qualitativa.
1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO MOVIMENTO
DO DIREITO ALTERNATIVO
127
ocorrer com mais frequência, despertando o interresse crítico no meio académi-
co e na sociedade civil.
O episódio histórico responsável pelo surgimento do movimento Direito
Alternativo ocorreu no dia 25 de outubro de 1990, quando um importante jornal
denominado Jornal da Tarde, de São Paulo, com a manchete “JUÍZES GAÚ-
CHOS COLOCAM DIREITO ACIMA DA LEI”, a reportagem buscava desmo-
ralizar o grupo de estudos e, em especial, o magistrado Amílton Bueno de Car-
valho. Ao contrário do esperado, o artigo acabou dando início ao movimento no
mês de outubro de 1990, com a realização do Primeiro Encontro Internacional
de Direito Alternativo, realizado na cidade de Florianópolis, Estado de Santa
Catarina, com ciclo de palestras, lançamentos de livros e intensas discussões aca-
dêmicas, conforme Carvalho (1997, p. 17).
O movimento não possui uma ideologia, mas pontos teóricos comuns en-
tre seus membros, tendo como características a não aceitação do sistema capita-
lista como modelo econômico, o combate ao liberalismo burguês como sistema
sociopolítico, o combate irrestrito à miséria da grande parte da população bra-
sileira e luta por democracia, entendida como a concretização das liberdades
individuais e materialização de igualdade de oportunidades e condição mínima
e digna de vida a todos, uma certa simpatia de seus membros em relação à Teoria
Crítica do Direito (CARVALHO, 1997, p. 18).
Há uma unanimidade de crítica ao positivismo jurídico (paradigma liberal-
-legal), entendido como uma postura jurídica técnica-formal-legalista, de apego
irrestrito à lei e de aplicação de uma pseudo interpretação lógica dedutiva, soma-
da a um discurso apregoador da neutralidade ou avaloratividade, do formalismo
jurídico ou anti-ideológica do Direito, da coerência e completude do ordenamen-
to jurídico e da fonte única do Direito e da interpretação mecanicista das normas
efetuada por um método hermenêutico formal/lógico/técnico/dedutivo.
Os juristas alternativos, em desacordo com a teoria e a ideologia juspo-
sitiva, denunciam que ser o Direito, político, parcial e valorativo representa o
formalismo jurídico, uma forma de escamotear o conteúdo perverso de parte
da legislação e de sua aplicação no seio da sociedade, não ser o Direito coerente
e completo, suas antinomias (contradições) e lacunas (vazios) são várias e ex-
plícitas, ser a lei fonte privilegiada do Direito, mas a ideologia do intérprete dá
o seu sentido, ou o sentido por ele buscado. A exegese de um texto legal não é
128
declarativa de seu conteúdo, mas, bem ao contrário, e axiológica e representa os
interesses e fins perseguidos pelo exegeta (CARVALHO, 1997, p. 19).
O movimento defende o positivismo de Combate, hoje chamado de posi-
tivação combativa. Trata-se de uma luta pelo cumprimento de várias leis, todas
com conteúdos sociais, em pleno vigor, mas não cumpridas de fato, o uso alter-
nativo do Direito é uma atividade hermenêutica. Realiza-se uma exegese exten-
siva de todos os textos legais com cunho popular e uma interpretação restritiva
das leis que privilegiam as classes mais favorecidas, privilegiando-se a Consti-
tuição Federal. Trata-se de uma interpretação social ou teleológica das leis, ou
seja, dar um sentido à norma buscando atender (ou favorecer) as classes menos
privilegiadas ou a maioria da sociedade civil. É o contrário do realizado pelos
juristas tradicionais, quando restringem as normas populares e ampliam as be-
neficiadoras das classes que lhes interessam.
O Direito Alternativo em sentido estrito é o ponto mais polêmico e ex-
trapola os limites deste artigo. Trata-se de uma visão do Direito sob a ótica do
pluralismo jurídico. Privilegia-se, como novo paradigma para a Ciência Jurídica,
o Direito existente nas ruas, emergente da população, ainda não elevado à condi-
ção de lei oficial. Admite-se como Direito as normas não estatais, inclusive como
fonte legitimadora do novo paradigma jurídico.
Neste ponto, há divergências teóricas no próprio movimento. Eu não con-
cordo com esse entendimento, pois até o momento, a meu ver, não conseguiu
sustentação teórica capaz de justificar uma teoria jurídica alternativa. Acaba cain-
do nos mesmo equívocos do juspositivismo criticado. De todas formas, o Direito
Alternativo é uma movimento que se legitima por sua postura transformadora,
de busca de mudança da tétrica situação socioeconômica do Brasil, cuja respon-
sabilidade também é das instituições jurídicas (CARVALHO, 1997, p. 20).
O crescimento do movimento foi vertiginoso, alastrando-se por todo o
Brasil, América Latina e parte da Europa, tornando-se objeto de inúmeros gru-
pos de estudos, artigos científicos, livros, seminários, monografias de conclusão
de curso, dissertações e teses, sendo, inclusive, disciplina curricular em algumas
faculdades de direito e escolas da magistratura (CARVALHO, 1997, p. 43).
129
2. DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Po-
der Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações ( BRASIL, 1988).
130
Ao tratar da definição de meio ambiente, Mazzilli (2005, p. 142-143) des-
taca que:
O conceito legal e doutrinário é tão amplo que nos autoriza a considerar de forma
praticamente ilimitada a possibilidade de defesa da flora, da fauna, das águas, do
solo, do subsolo, do ar, ou seja, de todas as formas de vida e de todos os recursos
naturais, como base na conjugação do Art. 225 da Constituição com as Leis ns.
6.938/81 e 7.347/85. Estão assim alcançadas todas as formas de vida, não só aque-
las da biota (conjunto de todos os seres vivos de uma região) como da biodiversi-
dade (conjunto de todas as espécies de seres vivos existentes na biosfera, ou seja,
todas as formas de vida em geral do planeta), e até mesmo está protegido o meio
que as abriga ou lhes permite a subsistência.
131
sível, do qual são titulares pessoas indeterminadas e ligadas entre si por circuns-
tâncias de fato.
Ademais, este caráter difuso do Direito Ambiental é revelado quando o
próprio texto Constitucional diz que é dever da coletividade e do poder públi-
co defender e preservar o meio ambiente, ou seja, a consagração da dimensão
Constitucional de solidariedade.
Assim, o interesse difuso estrutura-se como interesse pertencente a todos e
a cada um dos componentes da pluralidade indeterminada de que se trate. Não é
um simples interesse individual, reconhecedor de uma esfera pessoal e própria,
exclusiva de domínio, o interesse difuso é o interesse de todos e de cada um ou
é o interesse que cada indivíduo possui pelo fato de pertencer à pluralidade de
sujeitos a que se refere a norma em questão.
O objeto dos interesses difusos é indivisível e tal característica fica mais
evidente quando, referido objeto diz respeito ao meio ambiente. Utilizando o
exemplo citado por Mazzilli (2005, p. 51-52), pode-se afirmar que a pretensão ao
meio ambiente hígido, posto compartilhada por número indeterminável de pes-
soas, não pode ser quantificada ou dividida entre os membros da coletividade.
Também o produto da eventual indenização obtida em razão da degrada-
ção ambiental não pode ser repartido entre os integrantes do grupo lesado, não
apenas porque cada um dos lesados não pode ser individualmente determinado,
mas por que o próprio interesse em si é indivisível. Destarte, estão incluídos no
grupo lesado não só os atuais moradores da região atingida, como também os
futuros habitantes do local.
Assim, por caracterizar-se o meio ambiente como um bem transindividual,
pois pertencente a todos e a cada um ao mesmo tempo, indivisível e sendo os seus
titulares unidos por circunstâncias fáticas conexas e não por vínculos jurídicos ou
origens comuns, como ocorre, respectivamente, nos direitos coletivos e indivi-
duais homogêneos, enquadra-se perfeitamente na categoria dos direitos difusos.
O meio ambiente ecologicamente equilibrado foi consagrado constitucio-
nalmente como direito fundamental de tríplice dimensão: individual, social e
intergeracional.
Na dimensão Individual porque, enquanto pressuposto da sadia qualidade
de vida, interessa a cada pessoa, considerada na sua individualidade, como de-
tentora do direito fundamental à vida sadia.
132
Com base no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o
indivíduo tem direito a uma vida digna, não basta manter-se vivo, é preciso que
se viva com qualidade, o que implica a conjunção de fatores como saúde, educa-
ção e produto interno bruto, segundo padrões elaborados pela Organização das
Nações Unidas (MACHADO, 2002, p. 46), sendo certo que, em tal classificação,
a saúde do ser humano alcança o estado dos elementos da natureza como a água,
solo, ar, flora, fauna e paisagem.
Na dimensão social porque, como bem de uso comum do povo, portanto
difuso, o meio ambiente ecologicamente equilibrado integra o patrimônio co-
letivo. Não é possível, em nome deste direito, apropriar-se individualmente de
parcelas do meio ambiente para consumo privado, pois a realização individual
deste direito fundamental está intrinsecamente ligada à sua realização social.
Segundo Machado (2002, p. 46): “Os bens que integram o meio ambiente
planetário, como a água, o ar e o solo, devem satisfazer as necessidades comuns
de todos os habitantes da Terra”.
Na dimensão intergeracional porque a geração presente, historicamente
situada no mundo contemporâneo, deve defender e preservar o meio ambiente
ecologicamente equilibrado para as futuras gerações.
A proteção dos recursos naturais é a única forma de se garantir e preservar
o potencial evolutivo da humanidade. Este especial tratamento existe para evi-
tar que ocorram no seio da sociedade perigosos conflitos entre as gerações oca-
sionados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade
desse bem essencial.
O direito ao meio ambiente e o seu reconhecimento como um direito fun-
damental do ser humano surgiu com a Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente Humano, realizada pela ONU em 1972, na cidade de Estocol-
mo, a qual deu origem ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
Como resultado das discussões dessa conferência, foi elaborada a “Declaração
de Estocolmo”, conjunto de 26 proposições denominadas Princípios.
No Princípio 1 e 2 dessa Declaração proclama-se:
133
2 - Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna
e, especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devem ser
preservados em benefício das gerações atuais e futuras, mediante um cuidadoso
planejamento ou administração adequada.
134
drão de vida. Toda a questão suscitada pelos interesses difusos é essencialmente
política.
Neste contexto, Bobbio (1992, p. 78) afirma que vivemos uma “era dos di-
reitos”, na qual as reivindicações sociais se ampliam e buscam referenciais es-
táveis em uma nova positivação de aspirações formuladas por movimentos de
massa. O Direito, portanto, esvazia-se de seu conteúdo de instrumento de do-
minação para se constituir em um instrumento cristalizador de reivindicações.
Se observarmos o caput do artigo 225 da Constituição Federal, veremos
que, dentro dos esquemas tradicionais, não é possível compreender o meio am-
biente como um “direito de todos”, pois até agora a noção de direito, salvo al-
gumas exceções, estava vinculada à ideia da existência de uma relação material
correspondente. A defesa dos interesses difusos, não estando baseada em cri-
térios de dominialidade entre sujeito ativo e objeto jurídico tutelado, dispensa
esta relação prévia de direito material. Não dispensa, entretanto, uma base legal
capaz de assegurar a proteção buscada perante o Poder Judiciário.
135
Ligados ao valor igualdade, os direitos fundamentais de segunda dimensão
são os direitos sociais, econômicos e culturais. São direitos de titularidade cole-
tiva e com caráter positivo, pois exigem atuações do Estado.
Os direitos fundamentais de terceira geração, ligados ao valor fraterni-
dade ou solidariedade, são os relacionados ao desenvolvimento ou progresso,
ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao direito de
propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e ao direito de co-
municação. São direitos transindividuais, em rol exemplificativo, destinados à
proteção do gênero humano.
Nos séculos XVII e XVIII foram positivados os direitos fundamentais indi-
viduais baseados na liberdade, os quais deram origem aos chamados direitos hu-
manos de primeira dimensão, como exemplos os direitos civis e políticos. Cons-
tituíam liberdades negativas, pois esses direitos serviam de escudo ou oposição
contra o Estado, impedindo que invadisse a esfera jurídica dos indivíduos. Com
o surgimento da Revolução Industrial, em que ficaram evidenciadas as diferen-
ças entre os cidadãos, notadamente pelo prisma do capital versus trabalho, o Es-
tado se deu conta de que não podia partir da premissa de que todos eram iguais
naturalmente, pois de fato não o eram. Foi assim que nasceu o Estado Social e
que surgiram os direitos humanos de segunda geração, como exemplos os direi-
tos sociais, econômicos e culturais, representando o rol de liberdades positivas.
Também por ocasião da Revolução Industrial surgiu a sociedade de massa e,
por consequência, os conflitos de massa, necessitando o Estado criar novos direi-
tos para garantir e harmonizar a convivência dos indivíduos considerados em seu
conjunto, ou seja, coletivamente. Há aqui uma mudança do enfoque: do individual
para o coletivo. Foi neste contexto que surgiram os direitos humanos de terceira
geração ou dimensão, como exemplos os direitos coletivos, transindividuais, in-
fluenciados por valores de solidariedade. Segundo Ferreira Filho (2000, p. 58), os
principais direitos de solidariedade são: direito à paz, direito ao desenvolvimento,
direito ao meio ambiente e direito ao patrimônio comum da humanidade.
Bobbio (1992, p. 43), ao se referir ao problema dos direitos humanos de
terceira geração, afirmou que o mais importante deles é o reivindicado pelos mo-
vimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. No mesmo
sentido, Ferreira Filho (2000, p. 62): “De todos os direitos de terceira geração,
sem dúvida o mais elaborado é o direito ao meio ambiente”.
136
Trata-se, conforme já o proclamou o Supremo Tribunal Federal, de um di-
reito típico de terceira geração que assiste, de modo subjetivamente indetermi-
nado, a todo gênero humano, pois quando se viola o direito ao meio ambiente,
também se viola os direitos humanos.
Os direitos humanos estão se ampliando, pois a sociedade vem dando ao
fenômeno da massificação social e as dificuldades crescentes para que todos pos-
sam vivenciar uma sadia qualidade de vida, ainda que a violação dos direitos
humanos seja mais evidente que o seu respeito. O fato é que, se há violação é
porque existe uma norma a ser violada ou respeitada.
Esta realidade desempenha um papel fundamental na conscientização
de todos aqueles que, subjetivamente, consideram que os seus direitos funda-
mentais foram violados. É por isso que se fala na terceira geração de direitos
humanos, direitos estes que não se limitam àqueles fruíveis individualmente
ou por grupos determinados, como foi o caso dos direitos individuais e dos
direitos sociais.
É preciso que se perceba que, embora dotado de forte conteúdo econô-
mico, não se pode entender a natureza econômica do Direito Ambiental como
um tipo de relação jurídica que privilegie a atividade produtiva em detrimento
de um padrão de vida mínimo que deve ser assegurado aos seres humanos. A
natureza econômica do Direito Ambiental deve ser percebida como o simples
fato de que a preservação e sustentabilidade da utilização racional dos recursos
ambientais deve ser encarada de forma a assegurar um padrão constante de ele-
vação da qualidade de vida dos seres humanos que, sem dúvida alguma, neces-
sitam da utilização dos diversos recursos ambientais para a garantia da própria
vida humana.
O reconhecimento definitivo do Direito Ambiental como direito humano
já começa a ser feito pelos Tribunais Administrativos e Judiciais de vários países
do mundo. No regime constitucional brasileiro, o próprio caput do artigo 225 da
Constituição Federal impõe a conclusão de que o Direito Ambiental é um dos
direitos humanos fundamentais.
Assim o é por ser o meio ambiente considerado um bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida. Isto faz com que o meio ambiente e os
bens ambientais integrem-se à categoria jurídica. Daí decorre que os bens am-
bientais são considerados interesses comuns. Observe-se que a função social da
propriedade passa a ter como um de seus condicionantes o respeito aos valores
137
ambientais. Propriedade que não é utilizada de maneira ambientalmente sadia
não cumpre a sua função social.
Não bastassem os argumentos acima expendidos, é de se ver que o próprio
artigo 5.º da Lei Fundamental faz menção expressa ao meio ambiente, conforme
deixa claro o teor do inciso LXXIII ao arrolá-lo como um dos objetos da ação
popular. Desta forma, confirma-se, no Direito positivo, a construção teórica que
vem sendo elaborada pela doutrina jurídica mais moderna.
Como é elementar, o artigo 5.º da Constituição Federal cuida dos direitos e
garantias fundamentais. Ora, se é uma garantia fundamental do cidadão a exis-
tência de uma ação constitucional com a finalidade de defesa do meio ambiente,
tal fato ocorre em razão de que o direito ao desfrute das condições saudáveis do
meio ambiente é, efetivamente, um direito fundamental do ser humano.
O direito ao meio ambiente, por ser um direito fundamental da pessoa
humana, é imprescritível e irrevogável, constituindo-se em cláusula pétrea do
sistema constitucional brasileiro, sendo inconstitucional qualquer alteração nor-
mativa que tenda a suprimir ou enfraquecer esse direito. Além disso, por força
da cláusula aberta do artigo 5.º, parágrafo 2.º, da Constituição Federal, os pactos,
tratados e convenções relativas ao meio ambiente aprovadas pelo Brasil, desde
que mais favoráveis, integram imediatamente o sistema constitucional dos direi-
tos humanos fundamentais.
Pelo princípio da prevalência da norma mais protetiva ao meio ambiente
na aplicação e interpretação da legislação internacional e nacional, deve prepon-
derar a norma que mais favoreça ao meio ambiente. O ato normativo que terá
preferência será sempre aquele que propiciar melhor defesa a esse bem de uso
comum do povo e direito de todos, constitucionalmente garantido, que é o meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Dentro desse contexto, o artigo 225 da Carta Maior deve ser interpretado
em consonância com o artigo 1.º, III, que consagra como fundamento da Repú-
blica o princípio da dignidade da pessoa humana; o artigo 3.º, II, que prevê como
objetivo fundamental da República o desenvolvimento nacional; e o artigo 4.º,
IX, que estipula que o Brasil deve reger-se em suas relações internacionais pelos
princípios da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, de
maneira a permitir maior efetividade na preservação ao meio ambiente.
A qualificação do meio ambiente como um direito humano fundamental
confere-lhe uma proteção mais efetiva, seja no plano interno, seja no plano in-
138
ternacional, propiciando a eventual responsabilização do país perante os orga-
nismos internacionais de defesa dos direitos humanos.
Neste contexto, o Direito Alternativo ou o uso alternativo do Direito surge
como um importante viés teórico a orientar os operadores do direito a enxergarem
as normas num aspecto mais amplo, menos formal, mais próximo da realidade
social. Pois o Direito ao meio ambiente é consagrado como o direito de terceira
dimensão, sendo que seu objeto de proteção a todos aproveita e sua não proteção a
todos o prejudica, não só na presente geração como para as gerações futuras.
O Direito Alternativo como instrumento de exegese, de interpretação,
como técnica de hermenêutica, influencia os operadores do direito, de um modo
geral, a ter uma visão mais crítica da realidade, mais próxima do fato social, com
um aspecto mais amplo na aplicação da norma, seja pelo aspecto espacial seja
pelo aspecto temporal.
Ademais, o movimento do Direito Alternativo é fruto do questionamento
teórico das normas, da constante busca pela quebra dos paradigmas hermenêu-
ticos, visando a aplicação de um direito como prioridade a realidade social, e não
um direito formal e restrito às paredes dos tribunais.
O Direito Alternativo, portanto, é preocupação com o Direito, é a busca por
uma sociedade radicalmente democrática, e neste aspecto entendo ser pertinen-
te esse diálogo com o Direito Ambiental pela própria dimensão que este ramo
do direito objetiva tutelar e alcançar. O Direito Alternativo ou o uso alternativo
do direito se apresenta como um movimento consolidado, que possibilitou uma
crítica radical das leis e da forma de julgar, podendo servir como instrumento de
maior efetivação social do Direito Ambiental com o objetivo de buscar a efeti-
vação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, mesmo entendendo que o
desequilíbrio ambiental não desestabiliza o sistema ambiental.
A análise das normas ambientais deve sempre refletir que nenhum outro
interesse tem um aspecto difuso maior do que o ambiental, pois pertence a to-
dos e a ninguém em particular, sua proteção a todos interessa e sua degradação
a todos prejudica. O Direito Alternativo em diálogo com o Direito Ambiental
deve buscar assegurar os instrumentos legais para preservação da vida, em suas
diferentes formas.
139
CONCLUSÃO
140
A vida tutelada pela Lei Fundamental, portanto, transcende os estreitos li-
mites de sua simples atuação física, abrangendo também o direito à sadia quali-
dade de vida em todas as suas formas. Sendo a vida um direito universalmente
reconhecido como um direito humano básico ou fundamental, o seu gozo é con-
dição essencial para a fruição de todos os demais direitos humanos, aqui incluso
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
A integridade do meio ambiente, erigida em direito difuso pela ordem jurí-
dica vigente, constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva. Isso reflete,
dentro da caminhada de afirmação dos direitos humanos, a expressão significa-
tiva de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade,
mas num contexto abrangente da própria coletividade.
Essa titularidade coletiva permitiu o reconhecimento do meio ambiente
como um direito humano de terceira dimensão, influenciado por valores de so-
lidariedade, com vistas a garantir e harmonizar a convivência dos indivíduos
considerados em seu conjunto, inseridos num contexto de sociedade.
A consagração do meio ambiente como um direito fundamental da pessoa
humana introduz no Estado e no seu corpo social um novo paradigma que deve
ser respeitado e seguido por todos, pois esse é o caminho escolhido politicamen-
te pelos fundadores da nossa ordem jurídica para assegurar a sobrevivência nas
suas mais diversas formas.
O operador do direito deve buscar nas diferentes formas do processo her-
menêutico, aproximar a norma ao fato social, assim, o Direito Alternativo ou o
uso alternativo do direito se apresenta como um movimento consolidado, que
possibilita uma crítica radical das leis e da forma de julgar, podendo servir como
instrumento de maior efetivação social do Direito Ambiental com o objetivo de
atender os interesses difusos deste importante ramo jurídico.
REFERÊNCIAS
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Público, n.º 9. março/abril/maio, 2007. Disponível em http://www.direitodoes-
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142
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MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em Juízo. São Paulo: Sa-
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143
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. rev. e atual. São
Paulo: Malheiros, 2013.
144
PRINCIPAIS TEORIAS CRIMINOLÓGICAS E SUAS
CONTRIBUIÇÕES À CIÊNCIA DA CRIMINOLOGIA NO QUE
SE REFERE AO ENTENDIMENTO DO FENÔMENO DELITO
MAIN CRIMINOLOGICAL THEORY AND ITS CONTRIBUTIONS
TO THE SCIENCE OF CRIMINOLOGY WITH RESPECT TO THE
UNDERSTANDING OF THE CRIMINOLOGICAL PHENOMENON
Gracireza Azedo de Farias1
145
ABSTRACT: The present scientific article has proposed to analyze the con-
tributions of criminological theories to the science of criminology with regard to
the crime phenomenon and for this we discuss about the emergence of crimino-
logy as a science, its traditional schools, that is, the Classical and the Positivist, as
well as such as unitary schools with a sociological bias, such as Social Disorga-
nization Theory, Anomia and Criminal Subcultures, Labeling Approach Theory
and we conclude by discussing the role of Critical Theory, we seek to identify the
motives that lead the human being to commit crime, and solutions proposed by
the abovementioned theories for the reduction of violence and crime. We used
to reach the proposed objectives the methodology based on the deductive and
qualitative method and the technique was basically based on bibliographical re-
search with the aid of doctrine, legislation and jurisprudence.
KEYWORDS: Criminology; Science; Critical Theory; Criminality.
INTRODUÇÃO
O delito é uma ação ou omissão voluntária ou culposa que possui uma conse-
quência – a penalização. É uma violação das normas impostas num dado momen-
to. Um fenômeno que desde os primórdios sempre existiu em nossa sociedade.
E desde a antiguidade os pensadores procuram explicações quanto aos
motivos que levam um ser humano a delinquir ou agir de forma desviada dos
padrões estabelecidos.
Inicialmente se acreditava que os suplícios, as penas tortuosas poderiam
inibir o cometimento do crime e durante mais de um século ela foi a resposta
encontrada. As mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais fizeram com
que esse modelo fosse sendo gradativamente substituído.
A troca do poder do Estado Absolutista para a classe emergente – Burguesia–
e a ideia de humanidade, vinda do Iluminismo, como limite de aplicação do poder,
entre o suplício do século XVII e a reforma do século XVIII, correspondeu a uma
nova economia punitiva: como punir mais eficazmente sem recorrer à dor física.
Além da preocupação com a economia e eficiência, a iniciativa de agir com
humanidade dizia respeito a não se igualar ao nível do condenado, no que tange
à violência. O objetivo era resguardar a humanidade dos que exerciam o poder,
e não exatamente a de quem cometeu o crime.
146
Nesse ínterim, surge a Criminologia como ciência, buscando analisar a cri-
minalidade e as razões deste fenômeno persistir.
Este trabalho visa, por meio de um escorço histórico das escolas do pensa-
mento criminológico, desde a Escola Clássica, passando pela Escola Positivista,
as Escolas com viés Sociológico e, mais recentemente, a Teoria Crítica Radical,
discutir e investigar os fatores apresentados por estas supracitadas teorias que
levam à prática do delito.
Ainda examinaremos as soluções apresentadas pelas teorias criminológicas
para a redução do crime em nossa sociedade, isto é, as contribuições teóricas
para a Ciência da Criminologia no que tange ao entendimento do delito, para
tanto utilizaremos para alcançar os objetivos propostos a metodologia baseada
no método dedutivo e qualitativo. A técnica foi basicamente fundamentada em
pesquisa bibliográfica, com o auxílio da doutrina e legislação.
1. NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA
147
Criminologia é a ciência que estuda as causas, as concausas da criminalidade e a
periculosidade preparatória da criminalidade; estuda também as manifestações
dos efeitos da criminalidade e da periculosidade preparatória da criminalidade e;
a política a opor, assistencialmente à etimologia da criminalidade e da periculosi-
dade preparatória da criminalidade, seus efeitos e suas manifestações.
148
social e ainda o sistema penal e os processos de criminalização. Razão pela qual a
Criminologia se caracteriza como uma ciência interdisciplinar, pois se comunica
com variadas esferas sociais e possui ligação com diversas áreas do conhecimen-
to humano, por exemplo, Direito Penal, Direito Processual Penal, Antropologia,
Sociologia, Psicologia, Psiquiatria, Biologia etc.
Direito e Criminologia são ciências denominadas sociais ou culturais e li-
dam com as diversidades das personalidades e suas complexidades, contudo, a
Criminologia tem um objeto de estudo mais abrangente, pois não se atém ape-
nas causa e ao agente criminoso, pelo que sua contribuição ao Direito Penal e
Processual Penal é extensa.
Na realidade sua presença se faz sentir tanto na fase investigatória (extra-
judicial) quanto na fase judicial, isto é, os estudos em Criminologia permitem
um melhor entendimento de institutos como a confissão em juízo, delação pre-
miada, transação penal, suspensão condicional do processo e na execução penal
pode ser requisito para a concessão de progressão de regime.
Embora a redação dada pela lei 10.792, de 2003, tenha alterado significativa-
mente o Art. 112, da Lei de Execuções Penais, substituindo a necessidade do exa-
me criminológico para a progressão do regime por um simples atestado de bom
comportamento carcerário, ainda é possível a sua exigência pelo magistrado quan-
do entender necessário o exame, desde que devidamente fundamentado. E o que
inferimos da leitura da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
149
nológico, o juiz singular da Vara de Execuções Criminais ou mesmo o Tribunal
de Justiça Estadual podem, de forma devidamente fundamentada e diante das
peculiaridades do caso concreto, determinar a realização do referido exame para
a formação do seu convencimento acerca do implemento do requisito subjetivo.
Inteligência da Súmula n.º 439/STJ. 3. No caso vertente, em que a promoção do
paciente ao regime intermediário foi feita pelo juiz das execuções, após a realiza-
ção de exame criminológico e de avaliação psiquiátrica complementar, favoráveis
a ele, não se mostra suficiente a fundamentação lançada no acórdão impugnado
para embasar a realização de novo exame criminológico. 4. Habeas corpus não
conhecido. Ordem concedida, de ofício, para restabelecer a decisão de primeiro
grau (STJ – HC: 290841, SP 2014/0060417-4 – DJE 10/06/14).
150
século XVII e a reforma do século XVIII, correspondeu a uma nova economia
punitiva: como punir mais eficazmente sem recorrer à dor física. Além da preo-
cupação com a economia e eficiência, a iniciativa de agir com humanidade diz
respeito a não se igualar ao nível do condenado, no que tange a violência. O ob-
jetivo era resguardar a humanidade dos que exercem o poder, e não exatamente
a de quem cometeu o crime (FOUCAULT, 2014).
Buscava-se uma utilidade e função para as penas, sem a qual, qualquer pu-
nição era tida como simples crueldade gratuita e injustificável.
151
clássico a conduta do criminoso deriva simplesmente do livre arbítrio do de-
linquente e não de causas patológicas ou influências ambientais. O homem é
um ser livre e racional, podendo tomar decisões e arcar com suas consequên-
cias (MARIS, 2016).
Assim, a função da pena não é intervir sobre o criminoso para reformá-lo,
mas apenas subsiste como efeito de prevenção geral, atinge os que cometeram
os crimes, mas principalmente os que não cometeram, pois os induziria a não
praticar delitos (TEIXEIRA, 2015).
152
Por sua vez, Enrico Ferri, em sua obra Sociologia Criminal, em 1892, re-
velou o trinômio causal do delito, quais sejam: fatores biológicos (herança), so-
ciológicos (religião, moral, opinião pública) e físicos (clima, solo, temperatura).
Considerado o criador da Sociologia Criminal, foi ele quem acirrou a polê-
mica entre os defensores do “livre arbítrio” e os adeptos do “determinismo”. Ferri
não acreditava na liberdade da vontade psíquica do homem e defendia a teoria
da responsabilidade pessoal (AQUINO, 2015).
Defendeu que os métodos de prevenção dos crimes deveriam ser o pilar
para o cumprimento da lei, em oposição à punição de criminosos após haverem
cometido seus crimes, pois não acreditava na capacidade de ressocialização das
instituições penais quanto aos criminosos. Pregava a aplicação por parte do Es-
tado dos substitutos penais, medidas de caráter econômico, político, educativo,
familiar etc, para atuar nas causas originadoras dos delitos. Contudo, entendia
tais substitutos penais serem insuficientes para conter os criminosos natos, lou-
cos e passionais, legitimava a utilização de medidas de segurança para tanto.
Já Rafaelle Garofalo considerou os estudos de Ferri e Lombroso, voltados
apenas para o delinquente, pelo que fixou sua pesquisa no crime também. Foi o
criador do termo Criminologia e construiu sua teoria na tríplice análise da cri-
minalidade, do delito e da pena. Pregava que existiam duas espécies de crimes:
os legais e os naturais.
Os delitos legais variavam de país para país, não ofendiam o senso moral,
nem revelavam anomalias e as penas decorreriam da vontade do legislador. Por
sua vez, os delitos naturais eram os que ofendiam os sentimentos altruístas fun-
damentais de piedade ou probidade, na medida em que são de propriedade de
uma comunidade, e indispensáveis para a adaptação do indivíduo à sociedade,
fundamentando seu pensamento a partir da ideia de Lombroso do criminoso
nato. E por sua vez era defensor da pena de morte aos anormais.
Em linhas gerais, a Criminologia Positivista entende que o crime se origina
de uma livre opção por parte do delinquente, exceção a Ferri, e um dos fatores
que influenciam é o meio circundante. Alega, ainda que o indivíduo que comete
um crime está em um estado de anormalidade, ainda que temporária, pois a
pessoa normal é aquela que está apta a vida em sociedade.
153
4. TEORIAS UNITÁRIAS COM VIÉS SOCIÓLOGICO
154
propagação e aprofundamento da investigação acadêmica acerca dos fenômenos
sociais que os cercavam, exemplo gratia, o crime.
Esse panorama histórico fez crescer junto aos primeiros sociólogos norte-
-americanos um interesse por estudos e investigações empíricas que pudessem
não só explicar os problemas sociais que surgiam nos seus grandes centros, Nova
York, Detroit e Chicago, mas também soluções para dissipar o problema da inte-
gração e do controle de uma realidade social heterogênea e conflitiva.
As transformações sociais foram muito rápidas, num curto espaço de tem-
po a sociedade agrícola rural rústica americana passou para uma sociedade in-
dustrializada, formada por massas de imigrantes dos mais variados países po-
bres da Europa, com costumes, línguas e culturas diferentes.
Nesse ínterim, nasce “o Departamento de Sociologia da Universidade de
Chicago, um dos primeiros sobre essa disciplina em todo o mundo, foi fundado
por Albion W. Small (1854-1926) em 1892” (ANITUA, 2008, p. 412). Também
denominada de “Escola de Chicago”, ela desenvolveu ideias e respostas sob o
prisma sociológico às questões sociais. “Com efeito, esta Escola não apenas rece-
beu do positivismo as primeiras noções sociológicas, mas também as impregnou
de conceitos biológicos, motivo pelo qual chamariam também seu trabalho de
‘ecologia social’” (ANITUA, 2008, p. 414).
Mas, afinal, o que os teóricos da Escola de Chicago entendem por desor-
ganização social? Eis um conceito de suma importância para a análise do que
propõe essa corrente, até porque ela se aplica ao indivíduo e ao coletivo.
Vamos nos valer mais uma vez dos ensinamentos de Anitua, para quem
desorganização social:
155
É a diminuição da influência das regras de conduta, existentes e reconhecidas, que
controlam os indivíduos do grupo. A sociedade moderna se desorganiza porque
os meios de “controle social” realmente importantes, os baseados na comunidade
e nos grupos de relação primários, enfraqueceram-se por conta da heterogenei-
dade cultural, do anonimato, do individualismo e da concorrência social. Essa
desorganização social determina a desorganização individual e, por conseguinte,
tem-se que estudar a primeira, juntamente com os novos métodos de “controle
social” para solucionar os problemas de marginalização e atraso que produzem,
entre outras coisas, delito (2008, p. 415).
156
E o que caracteriza uma comunidade desorganizada? Nos Estados Unidos,
berço da teoria em tela, lembramos logo dos guetos nos centros urbanos povoados
por negros e latinos. No Brasil, podemos citar as favelas e as invasões de terras:
157
uma mesma unidade. Essa nova abordagem social recebeu o nome de funciona-
lismo (BARATTA, 2011, p. 62-63).
Ele ainda trabalha com a ideia de normal e patológico, mas se diferencia
dos positivistas, ao identificar o fato normal como geral, isto é, aquilo que se
produz com mais frequência numa determinada sociedade e o fato patológico
como incomum:
Nesse sentido, ele considera o delito um fato social normal, sempre e quando não
alcançasse índices exagerados: ‘O delito não se observa somente na maioria das
sociedades desta ou daquela espécie, mas sim nas sociedades de todos os tipos.
Não existe nenhuma sociedade em que não haja criminalidade’ (ANITUA, 2008,
p. 441).
Anomia é uma palavra de origem grega cujo significado nos remete à ex-
pressão “ausência de lei”. Em geral, por anomia se entende uma situação em que
158
se constata a falta de normas que vinculem as pessoas num contexto social, isto é,
anomia denota ausência de referências na sociedade. Não se trata somente de um
problema dos indivíduos que transgridem regras de comportamento, nem de uma
situação de conflito e deveres em casos concretos mas de uma crise social de cará-
ter amplo, na qual os membros de grandes grupos sociais não sabem o que fazer.
O sociólogo norte-americano Robert King Merton (1910-2003) foi o me-
lhor autor a desenvolver os conceitos durkheiminianos de função e de anomia:
159
uma forte discrepância entre normas e fins culturais, por um lado, e as possibili-
dades socialmente estruturadas de agir em conformidade com aquelas, por outro
lado (BARATTA, 2011, p. 63).
160
sanções àqueles que deixam de cumprir as leis, a subcultura violenta pune com
o ostracismo, o desdém ou a indiferença os indivíduos que não se adaptam aos
padrões do grupo.
Outro trabalho importante para delimitar os traços da teoria da subcul-
tura criminosa foi a obra Jovens delinquentes: a cultura das gangues (1955), de
Albert Cohen. O autor entendia gangues como um grupo organizado integra-
do por jovens que se reuniam com habitualidade, tinham estrutura hierárquica
e adotavam critérios de admissão. Os jovens buscavam nesses grupos resolver
problemas de adaptação causados pela cultura dominante, por meio de uma
identificação a crenças e valores baseados em modelos delinquenciais, ou seja,
Cohen tenta realizar uma síntese entre as teorias da anomia e a das associações
diferenciais (ANITUA, 2008).
Há ainda o trabalho do teórico Richard Cloward, que também trabalhou
a ideia da subcultura nas gangues juvenis, mas contrapondo Cohen, afirmava
quem nem todos os jovens de classe baixa desejam viver como a classe média
vive. E o grupo que poderá desenvolver uma subcultura delinquencial é o que
não aceita os valores culturais da classe média, mas aspira ter mais dinheiro e
como as oportunidades legítimas para o seu alcance são limitadas, obterão por
meio ilícitos.
Constata-se, na subcultura criminosa, que o meio social é um requisito im-
portante, tanto para o bem quanto para o mal, ele pode oferecer os meios para o
encorajamento dos comportamentos reprováveis ou ele pode produzir os meios
de controle para regular o comportamento delitivo.
Desse modo, a teoria da subcultura criminosa tem como fundamento prin-
cipal o fator econômico como causador da criminalidade. Os seus adeptos ale-
gam que somente uma redução nas desigualdades sociais é possível a diminui-
ção e, quiçá, a erradicação do crime.
Outro importante teórico a contribuir com a teoria das subculturas crimi-
nais foi Edwin H. Sutherland, este integrou a Escola de Chicago, como egresso e
como pesquisador, razão pela qual suas obras foram bastante influenciadas pelas
teorias da ecologia social, e como tal, criticava veementemente as teorias biolo-
gicistas que tentavam explicar a criminalidade por meio de causas biológicas e
psicológicas, bem como também a chamada teoria da desorganização social que
vinculava delinquência e pobreza (ANITUA, 2008).
161
Sutherland passou boa parte da sua vida acadêmica elaborando uma teoria
geral que pudesse explicar todo e qualquer tipo de delinquência, coisa que o
positivismo criminológico não havia conseguido, pois suas explicações eram ba-
seadas na pobreza ou problemas psicológicos. E na prática se verificava que tais
causas não eram absolutas, pois ora o delito ocorria e elas não estavam presentes,
ora elas estavam presentes e os sujeitos não delinquiam.
Desse modo, sua obra sofreu outras influências e se valeu de conceitos de
vários autores na formação de sua teoria, por exemplo, de Shaw e Mckay, extraiu
a ideia de desorganização social como fator de delito e o chamou de organização
social diferenciada; de Mead adotou o interacionismo simbólico e de Thorsten
Sellin emprestou a ideia do conflito cultural. Esse conjunto de ideias permitiu a
Sutherland elaborar a teoria das associações diferenciais:
Eis que Sutherland alcançou o que almejava: elaborou uma teoria geral, a
teoria das associações diferenciais, em que analisa as formas de aprendizagem do
comportamento criminoso aplicada em particular à delinquência de colarinho
branco (BARATTA, 2011, p. 71).
Outra grande contribuição teórica de Sutherland para a Criminologia foi
a criação do conceito da criminalidade do colarinho branco, em 1939, que foi
muito importante no desenvolvimento da teoria da crítica radical.
Verificamos, assim, que a relação entre a teoria funcionalista e a teoria das
subculturas criminais não é uma relação de exclusão recíproca, mas uma relação
de compatibilidade.
162
5. LABELING APPROACH THEORY OU TEORIA
DO ETIQUETAMENTO SOCIAL
163
Destarte, a Teoria do Etiquetamento Social é uma ruptura com a Teoria
Criminológica Positivista, uma mudança do paradigma etiológico determinista
para a Criminologia crítica com base na teoria marxista do conflito de classes,
isto é, a reação social deslocou os estudos da pessoa do criminoso para as pes-
soas que definem quem é delinquente:
A criminalidade primária produz a etiqueta ou rótulo, que por sua vez produz a
criminalização secundária (reincidência). A etiqueta ou rótulo (materializados em
atestado de antecedentes, folha corrida criminal, divulgação de jornais sensacio-
164
nalistas etc) acaba por impregnar, causando a expectativa social de que a conduta
venha a ser praticada, perpetuando o comportamento delinquente e aproximando
os indivíduos rotulados uns dos outros. Uma vez condenado, o indivíduo ingressa
numa “instituição” (presídio), que gerará um processo institucionalizador, com
seu afastamento da sociedade, rotinas de cárcere etc.
165
6. CRIMINOLOGIA CRÍTICA OU RADICAL
166
Esquerda e direita reacionária ideologicamente convergiam na busca por
uma alternativa ao modelo liberal, um modelo capaz de organizar novas formas
sociais, recusando a cultura do ter e a valorização do ser, uma nova moral.
Neste diapasão, esse modelo econômico, político e cientifico já não servia
mais a uma grande leva de pessoas, inclusive pensadores, e as críticas foram se
acirrando surgindo daí uma leitura radical da questão criminal.
Assim o foi, que a ruptura a esse modelo de bem-estar ideal primeiramente
ocorreu no centro mais avançado de estudos em Criminologia na época, locali-
zado no campus de Berkeley, na Universidade da Califórnia. Professores e alunos
decidiram formar a União de Criminólogos Radicais, seus estudos superaram a
supremacia da Criminologia Clínica, que explicava as causas do delito a partir de
bodes expiatórios sancionados pelo sistema e evitavam a cifra negra (criminosos
de colarinho branco). Mudaram o objeto de pesquisa da criminalidade para os
aparelhos que a geram e a manipulam.
O termo Criminologia Radical surgiu na Escola de Frankfurt, na Alema-
nha, mas seu desenvolvimento ocorreu mesmo nos Estados Unidos, nos anos
1970, e num primeiro momento unificou grupos adeptos do interacionismo e
grupos adeptos do materialismo.
Conforme Juarez Cirino (2008, p. 05), “um dos primeiros estudos siste-
máticos do desenvolvimento da teoria criminológica sob um método dialético,
aplicando categorias do materialismo histórico, é o trabalho coletivo The New
Criminology”.
Na realidade, comumente na literatura especializada é mencionada como a
obra mais importante no âmbito da Criminologia Crítica e com maior repercus-
são dentro e fora de seu país de origem, pois empreenderam uma das primeiras
exposições críticas sobre a história dos pensamentos criminológicos, relacionan-
do essas teorias aos sistemas de produção e consumo vigentes.
No Brasil, o maior expoente dessa teoria é o professor Juarez Cirino dos
Santos (1942), doutor em Direito Penal (UFRJ), professor universitário aposen-
tado, pesquisador, escritor e advogado brasileiro, e suas obras Uma crítica ao
positivismo em Criminologia (1979), A Criminologia Radical (1981) e As raízes de
um crime (1984) compõem o tripé que sustenta a criação da moderna Crimino-
logia Crítica no Brasil.
167
[...] Nas sociedades capitalistas, a indicação das estatísticas é no sentido de que
a imensa maioria dos crimes é contra o patrimônio, de que mesmo a violência
pessoal está ligada à busca de recursos materiais e o próprio crime patrimonial
constitui tentativa normal e consciente dos deserdados sociais para suprir carên-
cias econômicas (SANTOS, 2008, p. 12).
2 Lumpens é o grupo do proletariado em condição marginal, de acordo com a sociologia marxista. A prin-
cipal característica do lumpemproletariado é a ausência de consciência de classe e consequente desin-
teresse na revolução e luta dos trabalhadores. O termo foi utilizado pela primeira vez na obra a Ideologia
alemã, em que Karl Marx os definiu como um grupo de degradados, que tem meios de vida duvidosos.
A origem do termo vem do alemão Lumpenproletariat, que une a palavra proletariado, que significa a
classe trabalhadora, à lumen, que quer dizer trapo ou pode ser ligado a uma característica pejorativa
no comportamento humano, como alguém que fez alguma coisa errada ou fora da lei. Disponível em:
https://www.significados.com.br/lumpenproletariado/ Acesso em 7 de ago. de 2017.
168
sões fiscais, comércio irregular etc.- na gênese histórica da futura criminalidade
de “colarinho branco”. [...]. A nova ‘tecnologia do poder’ da sociedade capitalista
desloca o direito de punir, da vingança do soberano para a ‘defesa social’- obvia-
mente entendida como defesa das condições materiais e ideológicas da sociedade
capitalista -, com base na teoria do contrato social, segundo a qual a condição de
membro do corpo social implica aceitação das normas sociais, e a violação dessas
normas, a aceitação da punição (SANTOS, 2008, p.74-75).
Podemos depreender do que foi exposto até o momento que a classe domi-
nante adequou o aparato judiciário as suas necessidades, por meio de regulamen-
tos conformes seus interesses, tolerância as suas irregularidades e a manutenção
do status quo. Por conseguinte, a concepção da Criminologia radical parte do
reconhecimento que a questão penal não está somente ligada a contradições que
se exprimem sobre o âmbito das relações de distribuição, mas sobretudo às con-
tradições estruturais que derivam das relações sociais de produção. Razão pela
qual a alternativa apresentada como política criminal por esta teoria não pode
ser apenas a política de substitutos penais que se limitem vagamente a reformas
humanitárias, necessário se faz que haja uma reforma social e institucional para
que a igualdade material seja realizada.
Assim, são objetivos da teoria radical a despenalização, significando a subs-
tituição das sanções penais por formas de controle legal não estigmatizantes,
exemplo, sanções administrativas e/ou civis; a privatização dos conflitos onde
fosse possível e a redução das desigualdades materiais e, sobretudo, uma reforma
profunda da organização judiciária e polícia, no intuito de rever os fatores de
criminalização seletiva, instituídos pela classe dominante.
Como Alessandro Baratta leciona: “a derrubada dos muros do cárcere tem
para nova Criminologia o mesmo significado programático que a derrubada dos
murros do manicômio tem para a nova psiquiatria” (2014, p. 203).
Enfim, é uma teoria que traz alternativas de política criminal de ruptura
parcial com o sistema ainda vigente.
169
CONCLUSÃO
170
Concluindo, a Teoria Crítica Radical traz uma abordagem sui generis no
tratamento do crime e suas consequências, quase uma ruptura total com o sis-
tema vigente, mas ate então não aplicado e que pode vir a ter o efeito esperado,
a extinção ou ao menos a redução da escalada da criminalidade. Talvez a substi-
tuição da prisão por sanções administrativas ou civis onde fosse possível, a redu-
ção das desigualdades materiais e a tipificação também dos crimes de colarinho
branco como crimes de grande monta, poderíamos trazer uma luz a esse cenário
caótico em que nos encontramos em termos de criminalidade.
REFERÊNCIAS
AQUINO, Maria Paula Meirelles Thomas de. O Pensamento de Enrico Ferri e sua
herança na aplicação do Direito Penal no Brasil contemporâneo. Disponível em:
http://www.revistaliberdades.org.br/_upload/pdf/23/Liberdades18_Historia.
pdf Acesso em 15 jul. 2017.
171
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A Criminologia no século XXI. Disponível
em: https://www.google.com.br/amp/s/eduardocabette.jusbrasil.com.br/arti-
gos/121937415/a-Criminologia-no-seculo-xxi/amp Acesso em 9 set. 2017.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 2014.
HORTA, Ana Clélia Couto. Evolução histórica do Direito Penal e escolas penais.
Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=re-
vista_artigos_leitura&artigo_id=514 Acesso em fev. 2018.
172
PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de Criminologia. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 3. ed. Rio de Janeiro: Lu-
men Juris, 2008.
173
PÓS-MODERNIDADE, PLURALISMO JURÍDICO
E O DESAFIO DA CRISE AMBIENTAL
POSTMODERNITY, LEGAL PLURALISM AND THE
CHALLENGE OF THE ENVIRONMENTAL CRISIS
Juliana Mayara da Silva Sampaio1
Rômulo de Souza Barbosa2
RESUMO: O presente artigo buscou fazer uma reflexão acerca das impli-
cações trazidas para o Direito e para a produção da norma jurídica com a tran-
sição do paradigma da modernidade para o ainda em construção paradigma da
pós-modernidade. Abordou-se também a importância do que se vem chamando
de pluralismo jurídico diante da crise no modelo de produção jurídico monista.
Também se buscou refletir ao longo do trabalho se, diante da crise ambiental
que afeta a humanidade e coloca em risco a própria sobrevivência da espécie hu-
mana, as normas produzidas apenas pelo Estado, que nem sempre atendem aos
interesses reais de todas as comunidades existentes em uma sociedade complexa,
como é o caso do Brasil, conseguem enfrentar esse problema com a devida efi-
ciência que se faz necessária ou, se o pluralismo jurídico, embora não reconhe-
cido pelo Estado, possa ser um instrumento jurídico que traga uma melhor res-
posta ao desafio da proteção ambiental. Dessa maneira, chegou-se à conclusão
da ineficiência do Direito em atender às necessidades e interesses da sociedade,
175
como a proteção devida do meio ambiente, e que a complexa sociedade brasilei-
ra não se vê representada por um direito monista, positivista e hegemônico, que
consagra apenas um modelo de vida.
PALAVRAS- CHAVE: Pós-modernidade. Monismo. Pluralismo Jurídico.
Crise Ambiental.
ABSTRACT: The present article sought to reflect on the implications
brought to the Law and to the production of the legal norm with the transition
from the paradigm of modernity to the still under construction paradigm of
what has been called postmodernity. It was also discussed the importance of
what is being called legal pluralism in the face of the crisis in the model of mo-
nistic legal production. It was also sought to reflect throughout the work if, in
the face of the environmental crisis that affects humanity and jeopardizes the
very survival of the human species, norms produced by the State alone do not
always reflect and serve the real interests of all existing communities such as
Brazil, are able to address this problem with the necessary efficiency, or if legal
pluralism, although not recognized by the State, can be a legal instrument that
brings a better response and adequacy to the issues environmental sustainability.
A critical-inductive methodology was used, analyzing isolated studies to reach
a conclusion, and a bibliographical research was done in books and articles re-
levant to the research. What has been concluded is that the inefficiency of the
Law in meeting the needs and interests of society, such as due protection of the
environment, is a fact and that complex Brazilian society is not represented by
a monistic, positivist and hegemonic right that only consecrates a model of life.
KEYWORDS: Postmodernity. Monism. Legal Pluralism. Environmental
Crisis.
INTRODUÇÃO
O presente artigo busca fazer uma reflexão acerca das implicações trazidas
para o Direito e para a produção da norma jurídica com a transição do paradig-
ma da modernidade para o ainda em construção paradigma da pós-modernida-
de. É inconteste o fato de que o Direito estatal está passando por um momento
de crise e, dentro desse cenário, entra-se em evidência e discussão o também in-
contestável fato da existência de ordenamentos jurídicos paralelos ao produzido
pelo Estado, o que se vem chamando de pluralismo jurídico.
Também se pretende refletir, ao longo deste trabalho, se, diante da crise
ambiental que afeta a humanidade e coloca em risco a própria sobrevivência da
espécie humana, as normas produzidas apenas pelo Estado conseguem enfren-
tar esse problema com a devida eficiência que se faz necessária ou, se o plura-
lismo jurídico, embora não reconhecido pelo Estado, possa ser um instrumento
jurídico que traga uma melhor resposta e adequação às questões da sustentabi-
lidade ambiental.
A fim de alcançar uma melhor compreensão dos problemas apresentados e
de uma possível conclusão para eles, utilizou-se de uma metodologia crítica-in-
dutiva e fez-se uma pesquisa bibliográfica, em livros e artigos relevantes para a
pesquisa. Este artigo encontra-se dividido em três capítulos.
No primeiro capítulo, faz-se uma breve incursão nas transformações histó-
ricas e paradigmáticas pelas quais vêm passando as sociedades desde a constru-
ção do Estado moderno, demonstrando os fundamentos que embasaram a cons-
trução do que se passou a denominar de sociedade moderna, bem como seus
ideais, princípios, forma de organização e, sobretudo, a construção e a produção
do conhecimento, os quais se pautaram na busca pela verdade e por investigação
científica, o discurso predominante dessa sociedade e, em seguida, na mesma
linha, será dada uma abordagem para o que se vem chamando de pós-moderni-
dade, paradigma ainda em desenvolvimento.
No segundo capítulo, verifica-se as consequências inevitáveis trazidas,
tanto pelo paradigma modernista quanto pelo paradigma em desenvolvi-
mento pós-modernismo para a produção da norma jurídica. O Monismo e
o Positivismo caracterizaram o modelo de produção da norma jurídica des-
de a construção do Estado Moderno e vem prevalecendo até os dias atuais,
contudo, diante da crise nos fundamentos da sociedade moderna e diante das
novas necessidades e anseios sociais, decorrentes de uma formação complexa
de sociedades, como a brasileira, esse modo de produção do Direito torna-se
ineficiente e deixa de ser, portanto, a única forma de regulamentação das re-
lações sociais, desencadeando, consequentemente, o que atualmente se tem
denominado de pluralismo jurídico.
Por fim, no terceiro capítulo, traça-se, brevemente, um panorama crítico
da crise ambiental e da ineficiência desse Direito estatal em responder adequa-
177
damente a esse problema, pois esse Direito não só ignora a existência de outras
realidades e de outros modos de viver e de se relacionar com a natureza, como
também ignora as produções normativas3 existentes no interior das comunida-
des tradicionais e que conseguem melhor atender às necessidades de proteção
ambiental e de um desenvolvimento sustentável. Neste capítulo, ilustra-se essa
realidade de pluralismo jurídico e adequada proteção ambiental que esse me-
canismo consegue promover com um trabalho de pesquisa desenvolvido por
Trevisan e Leão (2014)4 dentro de uma comunidade de pescadores.
3 Autores como Boaventura de Souza Santos (1988) e Antônio Carlos Wolkmer (2001) reconhecem
haver produções normativas paralelas não-oficiais, não-estatais, paralelas ao Direito Estatal.
4 Revista Sociedade e Estado, v. 29, 2014. Disponível em <http://www.scielo.br> Acesso em 1 de out. de
2017.
178
modernidade “ligada ao ambicioso projeto dos modernos de construir um mun-
do de acordo com seus desejos” (CASA et al. 2011).
Assim, conforme análise de Alain Touraine (1995, p. 38-40), a sociedade
moderna caracteriza-se pela: predominância da forma (método empírico), bus-
ca da autonomia pela razão (rejeição das verdades religiosas), visão materialista
da busca pelo progresso, com o domínio da natureza pelo homem.
No plano social, recorrendo ao pensamento marxista, verifica-se a espe-
cialização do trabalho e condicionamento da luta política pelas classes sociais
(burguesia e proletariado). O espírito da modernidade é bem definido por Boa-
ventura de Souza Santos:
179
África e Ásia, evidenciando-se problemas decorrentes da construção e da
ordenação social moderna.
De fato, os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
especialmente as revelações dos horrores do holocausto e do poder das ar-
mas nucleares sobre a população civil de Hiroshima e Nagasaki, contribuem
essencialmente para o momento de inflexão (vivenciado na década seguin-
te), responsável pela transição para o pós-modernismo, ainda hoje em cons-
trução (MORRINSON, 2006, p. 355).
Enfim, abala-se irreversivelmente a certeza no poder da razão e no pro-
gresso tecnológico como elementos suficientes para o progresso e evolução
da sociedade e vida no planeta. Não há mais a convicção no progresso ou a
certeza de que a história nos leva para uma sociedade melhor. O século XX é, por
todas as alternâncias e conflitos experimentados, caracterizado como a era das
incertezas – conforme expressão consagrada pelo economista de Harvard John
Kenneth Galbraith em série televisionada pela BBC e em livro de mesmo título.
É didática a consideração apresentada por Jurgen Habermas acerca do re-
corte histórico representado pelo séc. XX, conforme se pode observar:
180
modernidade. Tal período é associado à ruptura da era moderna e nascimento
da sociedade pós-industrial ou pós-modernidade, menos uma era e mais um
processo de mudanças (ainda hoje inconcluso), referentes a novas concepções
quanto às regras da vida, instituições, valores e necessidades coletivas.
Instead of singing the idea of the advent of liberal democracy and the capitalism
market in the euforia of the end of history, instead of celebrating ‘the end of the
ideologies’ and the end of the great emancipatory discourses, let us never forget
this obvious macroscopic fact, made up of innumerable sites of suffering: no de-
gree of progress allows one to ignore that never before, in absolute terms, never
181
have so many men, women and children been subjugated, starved or exterminat-
ed on the Earth5 (DERRIDA, 1994, p. 85).
Para descrever essas mudanças, os teóricos sociais criaram vários rótulos, inclu-
sive sociedade de mídia, sociedade do espetáculo, sociedade de consumo, socie-
dade burocrática de consumo controlado, sociedade pós-industrial, sociedade
globalizada, sociedade do capitalismo mundial avançado, ordem de informação
pós-capitalista e, por último, o rótulo que se tornou dominante: pós-modernismo
(MORRINSON, 2006, p. 615-616).
5 Em vez de cantar a ideia do advento da democracia liberal e do mercado capitalista na euforia do fim
da história, em vez de celebrar o ‘fim das ideologias’ e o fim dos grandes discursos de emancipação,
não nos esqueçamos nunca deste óbvio fato macroscópico, criado à custa de um sofrimento infinito:
nenhum grau de progresso nos permite ignorar que, em termos absolutos, nunca antes, no mundo,
tantos homens, mulheres e crianças morreram de fome, foram subjugados ou exterminados.
182
A pluralidade de nomenclaturas expressa as nuances de pensamento so-
bre a mesma problemática, que até o presente momento não se esgota. O termo
“pós-modernismo” parece ser o que abriga todas as demais designações pela ên-
fase temporal. Além disso, a análise semântica do termo já se presta a anunciar
a própria complexidade do tema, uma vez que “representa alguma espécie de
reação ao ‘modernismo’ ou afastamento dele. Como o sentido de modernismo
também é muito confuso, a reação ou afastamento conhecido como ‘pós-moder-
nismo’ o é duplamente” (HARVEY, 1992, p. 19).
A propósito, sobre o característico processo de mudança do ethos neste pe-
ríodo, Eduardo C. Bittar define-o como:
183
onipotência do racionalismo tendente à revelação das verdades. E, assim, sem
voltarmos ao irracionalismo e dogmas medievais, mas conscientes dos limites
da razão para governar toda e quaisquer relações. Conforme Rouanet (2000, p.
12-13), “precisamos de um racionalismo novo, fundado numa nova razão. A
verdadeira razão é consciente dos seus limites, percebe o espaço irracional em
que se move e pode, portanto, libertar-se do irracional”.
Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos, ao mencionar o momento
de crise e transição histórica, na sua conceituação de transição paradigmática,
como marca dos tempos atuais, afirma que:
Não é arriscado dizer que nunca houve tantos cientistas-filósofos como actual-
mente, e isso não se deve a uma evolução arbitrária do interesse intelectual. De-
pois da euforia cientificista do século XIX e da consequente aversão a reflexão
filosófica, bem simbolizada pelo positivismo, chegamos a finais do século XX
possuídos pelo desejo quase desesperado de completarmos o conhecimento das
coisas, isto é, com o conhecimento de nós próprios. A segunda faceta desta refle-
xão é que ela abrange questões que antes eram deixadas aos sociólogos. A análise
das condições sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da
investigação científica, antes acantonada no campo separado e estanque da so-
ciologia da ciência, passou a ocupar papel de relevo na reflexão epistemológica
(SANTOS, 2002, p. 30).
184
-positivista, a tradução jurídica fiel ao espírito da pós-modernidade, bem como
pelo pluralismo jurídico, assunto este que será abordado do tópico seguinte.
uma concepção do direito que nasce quando “direito positivo” e “direito natural”
não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas direito positivo passa
a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do positivismo ju-
rídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é
excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não
é direito. A partir deste momento o acréscimo do adjetivo “positivo” ao termo
“direito” torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula
sintética (BOBBIO, 2006, p. 26).
185
passa a ser desconsiderado como uma categoria do direito. Dessa forma, a socie-
dade vai assumir, segundo Bobbio:
Para Cunha (2013), o monismo jurídico perpassa por quatro fases dentro
da sociedade moderna. O momento de queda do feudalismo representa a pri-
meira fase do monismo jurídico. Já o segundo momento, “compreende o perío-
do que vai da Revolução Francesa até a conclusão das principais codificações do
século XIX. Trata-se de um momento histórico fundamental para a definição
político-ideológica da classe burguesa-capitalista e para a estruturação e solidifi-
cação da legalidade estatal no Ocidente” (CUNHA, 2013).
Essas transformações na forma de conceber o direito trouxeram uma ine-
vitável associação entre Estado e Direito, inviabilizando o reconhecimento de
outras formas de solução de conflitos ou de regras que não advenham do Estado,
ou seja, não reconhecendo regras que nasçam da própria sociedade civil. Nesse
sentido, Bobbio (2016, p. 29) dispõe que: “com a formação do Estado moderno
é subtraída ao juiz a faculdade de obter as normas a aplicar na resolução das
controvérsias por normas sociais e se lhe impõe a obrigação de aplicar apenas
as normas postas pelo Estado, que se torna, assim, o único criador do direito.”
Corroborando esse pensamento, de monopolização do Direito pelo Estado
e sua redução a Direito positivo, Cunha faz uma importante observação acerca
desse fato:
186
A terceira fase pode ser identificada, conforme o autor acima citado, “com
o crescente intervencionismo socioeconômico do Poder Público amparado por
uma legalidade dogmática de rígidas pretensões de cientificidade e que atinge o
seu auge entre os anos 1920 e 1960 do século XX” (CUNHA, 2013). E, por fim, o
autor apresenta o quarto momento do monismo, assim dispondo:
O quarto momento do monismo jurídico pode ser situado a partir dos anos 60. Esta
época marca o surgimento de novas diretrizes do Capitalismo avançado constatável
na urgência de reordenação e globalização do capital monopolista aliada à debili-
tação política do Welfare State (déficit público e ingovernabilidade do Estado do
Bem-Estar Social) (CUNHA, 2013).
Esta crise, que pode ser caracterizada por uma extrema inadequação do monismo
jurídico em responder eficazmente às constantes e crescentes demandas sócio-
-políticas e socioeconômicas, ao crescimento dos conflitos entre classes sociais
e entre grupos de interesses conflitantes, e às complexas contradições culturais
e materiais vivenciadas pela sociedade de massa, tem provocado o consequente
esgotamento desse paradigma (CUNHA, 2013).
187
Seja como for, o esgotamento do monismo jurídico, apesar das tentativas neo-po-
sitivistas de fazê-lo persistir em diferentes tendências formalistas, é uma realidade
inevitável no contexto da normatividade estatal. Nesse contexto, em que se con-
fronta a dogmatização do Direito moderno, é que se pode divisar a questão da
possibilidade ou não da formulação do Direito sem Estado. Assim, a questão que
diz respeito se é possível existir “Direito sem positividade” e/ou se a “positividade
só resulta do Estado”, encontra-se problematizada em duas tendências antagôni-
cas: o monismo e o pluralismo jurídico (CUNHA, 2013).
Um dos temas que vem sendo refletido e defendido nas últimas décadas
por renomados autores como Boaventura de Sousa Santos e Antônio Carlos
Wolkmer é a questão do pluralismo jurídico, sobretudo em países do capitalismo
periférico da América Latina.
O que sem tem apontado é o fato indiscutível dos reflexos que a crise da
racionalidade e da ciência, associada às inúmeras crises que decorrem das socie-
dades de massa, do capitalismo devastador que coloca o mercado como meio e
fim de todas as ações humanas, sem se preocupar com as condições de vida do
homem, e que têm provocado extrema desigualdade social, bolsões de pobreza,
sociedades altamente violentas, trouxe para o Direito e, principalmente, para o
monismo jurídico.
O modelo positivista e monista de produção da norma jurídica não con-
segue atender às necessidades e anseios da sociedade emergente. As leis postas
pelo Estado são ineficientes para garantir os direitos dos cidadãos e solucionar
com a devida presteza os conflitos cada vez mais variados e velozes com que a
sociedade de massa passou a ter que lidar.
Há uma crise no paradigma de produção do Direito, em especial, em países
como o Brasil, país da periferia capitalista da América Latina e com problemas
188
peculiares. É diante desse cenário de insatisfação e descrédito no direito estatal
que emerge na sociedade o pluralismo jurídico, ou seja a produção de normas
paralelas às oficiais. Nesse sentido, Wolkmer afirma que:
sua intenção não está em negar ou minimizar o Direito estatal, mas em reconhe-
cer que este é apenas uma das muitas formas jurídicas que podem existir na so-
ciedade. Deste modo, o pluralismo legal cobre não só práticas independentes e
semi-autônomas, com relação ao poder estatal, como também práticas normati-
vas oficiais/formais e práticas não-oficiais/informais. A pluralidade envolve a coe-
xistência de ordens jurídicas distintas que defini ou não relações entre si (WOLK-
MER, 2001, p. 222).
189
cia, repensar a questão do “pluralismo” nada mais é do que a tentativa de buscar
outra direção ou outro referencial epistemológico que atenda à modernidade na
virada do século XX e nos primórdios do novo milênio, pois os alicerces de funda-
mentação – tanto das Ciências Humanas quanto da Teoria Geral do Direito - não
acompanham as profundas transformações sociais e econômicas por que passam
as sociedades políticas pós-industriais e as sociedades de industrialização tardia.
A crise da racionalidade formal e as novas condições globais das forças produtivas
capitalistas, que permeiam a complexa cultura burguesa de massas, estendem-se
ao saber sacralizado e hegemônico das estruturas lógico-formais que mantêm os
envelhecidos padrões de legalidade estatal (WOLKMER, 2001, p. 170).
Um importante autor que tem debruçado parte de sua pesquisa para abordar
o pluralismo jurídico na América Latina é Boaventura de Souza Santos. Este autor,
no início da década de 1970, no âmbito da preparação de sua tese de doutoramen-
to apresentada na Universidade Yale, realizou uma pesquisa empírica de sociologia
do direito sobre as estruturas internas de uma favela no Rio de Janeiro, a que deu o
nome fictício de Pasárgada. Na obra O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia
da retórica jurídica, que é, todavia, um texto autônomo de sua tese, o autor aponta
a coexistência de um direito paralelo ao estatal nessa comunidade.
190
Nessa obra, Boaventura analisa com profundidade uma realidade de plu-
ralismo jurídico, a fim de elaborar uma teoria sobre as relações entre Estado e
Direito nas sociedades capitalistas, em especial as da América Latina. O autor
busca, assim, nesse trabalho fazer um contraste entre o direito de Pasárgada e o
direito estatal brasileiro. Ele demonstra que, no mesmo espaço geopolítico, neste
caso o estado-nação brasileiro, existe mais do que um direito ou ordem jurídica,
ou seja, existe um pluralismo jurídico.
As relações normativas observadas pelo autor resumiram-se, basicamente,
quanto à posse e à habitação da terra e quanto às relações de vizinhança, que
eram dirimidas e solucionadas pela associação de moradores. Dessa forma, Boa-
ventura explicita que:
Tais relações têm uma estrutura homológica das relações jurídicas. No entanto,
à luz do direito oficial brasileiro, as relações desse tipo estabelecidas no interior
das favelas são ilegais ou juridicamente nulas, uma vez que dizem respeito a tran-
sacções sobre terrenos ilegalmente ocupados e a construções duplamente clan-
destinas. Dentro da comunidade, contudo, tais relações são legais e como tal são
vividas pelos que nelas participam. A intervenção da associação de moradores
neste domínio visa constituir como que um ersatz da proteção jurídica oficial de
que carecem (SANTOS, 1988, p. 14).
191
período de ruptura social como, por exemplo, um período de transformações
sociais, bem como, assim como no caso de Pasárgada, emergir do conflito de
classes numa área determinada da reprodução social, nesse caso, a habitação.
Portanto, a pluralidade jurídica não pode ser ignorada, pois a oficialidade do
Estado não tem conseguido contemplar todas as realidades emergentes dentro
da sociedade.
No próximo tópico, tratar-se á de um problema comum pelo qual a hu-
manidade vem passando e de reconhecimento internacional: a crise ambiental.
Bem como se verificará como o Direito não-estatal, ou seja, o que decorre do
interior de comunidades as quais não se encontram representadas pelo direito
estatal, trata a questão ambiental, mais precisamente o direito forjado dentro das
comunidades tradicionais.
192
e à ideologia comunista, religião de salvação terrestre, que chegava a prometer o
“paraíso socialista” (MORIN, 1995, p. 79).
Outro grave problema também apontado por Boff como efeito dessa crise
é o aquecimento global. Segundo o autor, “Nos últimos séculos, desde o começo
193
do processo de industrialização, estão sendo lançados na atmosfera bilhões de
toneladas de gases de efeito estufa como o dióxido de carbono, nitritos, metano –
que é 23 vezes mais agressivo que o dióxido de carbono – e outros gases” (BOFF,
2015, p. 27).
As consequências do aquecimento global afetam drasticamente a vida e a
sadia qualidade de vida de toda a humanidade, conforme afirma Boff:
194
O Direito Estatal, quando não reconhece a produção normativa dos povos
tradicionais,6 contribui para a padronização de um modelo de vida que tem co-
locado em perigo a própria espécie humana, o capitalismo irracional. A crise no
modelo monista e positivista de produção do direito perpassa por uma crise da
ineficiência das normas para atender as novas necessidades que emergem den-
tro do atual contexto histórico e solucionar os problemas atuais da sociedade,
como os do meio ambiente, os das minorias e, também, por ignorar a produ-
ção normativa das comunidades tradicionais, que traz impactos positivos para a
sustentabilidade ambiental. O Direito monista, portanto, corrobora para o não
enfrentamento adequado da crise ambiental.
6 De acordo com o Decreto 6040 de 2007, povos tradicionais são formalmente caraterizados pela ge-
ração e transmissão de conhecimentos e de práticas vernaculares, utilizando territórios e recursos
naturais como condição de sua reprodução cultural, social, religiosa e econômica, adotando formas
próprias de organização social.
195
o meio ambiente no desenvolvimento de uma pesquisa em uma Reserva Extra-
tivista – dentro de uma unidade de Conservação de Uso Sustentável, comunida-
de tradicional de pescadores artesanais –, localizada no litoral sul do Estado da
Bahia, denominada Campinhos, demonstrando o pluralismo jurídico existentes
nesses locais.
Nessa trabalho, cujo resultado encontra-se materializado no artigo intitu-
lado “Pluralidade jurídica: sua importância para a sustentabilidade ambiental
em comunidades tradicionais”, disponibilizado nas referências bibliográficas, os
autores demonstram como essa comunidade utiliza-se de normas costumeiras
para a resolução dos conflitos que emergem no local e as implicações positivas
que isso traz à preservação do meio ambiente. Trevizan e Leão afirmam que:
196
pacidade de resolução dos membros da comunidade, como bem apontam os
autores:
197
como bem ficou demonstrado pelos autores, essa também é uma realidade das
comunidades tradicionais brasileiras.
Os autores também demonstram a importância da utilização dessas normas
costumeiras dentro desses locais para a proteção ambiental, pois a relação dessas
comunidades com a natureza guarda extrema sincronia com os ideais de susten-
tabilidade, que são imprescindíveis para o enfrentamento da crise ambiental que
assola o planeta Terra e vêm não só diminuindo a qualidade de vidas das pessoas,
mas também colocando em risco a própria sobrevivência da espécie humana.
CONCLUSÃO
198
curso científico como os únicos meios de se alcançar a verdade e produzir o
conhecimento, ignorando todos os outros meios de produção do conhecimento.
Nesse cenário, disciplinas como a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia,
desprestigiadas dentro da sociedade moderna, retomam o lugar de grande im-
portância da produção do conhecimento. Tudo isso, inexoravelmente, traz refle-
xos diretos para o Direito, que é produção social.
Essa forma de produção do direito centrada, portanto, apenas no Estado,
sem se abrir para a inclusão e participação das diversas comunidades na cons-
trução de suas normas, não tem conseguido enfrentar, de forma mais adequada,
problemas reais, como a grave crise ambiental.
O Estado, quando ignora diversas formas de vida e de relação do homem
com a natureza, como é o caso das comunidades tradicionais, que mantém com
o meio ambiente uma ligação profunda e de respeito, tendo em vista utilizarem-
-no apenas para sua subsistência, preservando-o e conservando-o, e represen-
ta apenas o discurso do capitalismo, do desenvolvimento e do progresso, não
produz soluções reais e efetivas para a construção de um novo modo de vida,
fundado no respeito à natureza.
Sem dúvida, reconhecer a importância dessas comunidades e de sua forma
de organização e a própria produção jurídica que desenvolvem para atender às
suas necessidades pode contribuir significativamente para um novo caminhar
de um país periférico como o Brasil e com problemas que lhes são peculiares,
mas detentor de uma diversidade natural que precisa ser protegida e de uma
rica pluralidade não só jurídica, mas cultural, social, entre tantas, que vem sendo
ignorada.
REFERÊNCIAS
ARRUDA, José Jobson de A.; PILLETI, Nelson. Toda a História: História Geral e
História do Brasil. 7 ed. São Paulo: Editora Ática, 1997.
199
BOBBIO. Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São
Paulo: Ícone, 2006.
COSTA. Beatriz Souza. Meio ambiente como direito à vida: Brasil, Portugal e
Espanha. 3 ed. Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2016.
200
HABERMAS, Jurgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Tradução de
Márcio Seligman-Silva. São Paulo: Litetra-Mundi, 2001.
201
___________. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade.
Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/
view/15095/13750> Acesso em 10 de out. de 2017.
DA BIOPOLÍTICA À CONFORMAÇÃO DA ECOPOLÍTICA
FROM BIOPOLITICS TO THE CONFORMATION OF ECOPOLYTICS
Marcelo Antunes Santos1
203
INTRODUÇÃO
204
Trata-se [...] de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramifica-
ções [...] captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, prin-
cipalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que o organizam e
delimitam [...] Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos
jurídica de seu exercício (Foucault, 1979, p. 182).
205
quanto ao modo com que com o Estado lidava com o corpo até o marco conside-
rado. Foi principalmente em Vigiar e punir (1975) e nos cursos que ministrou no
Collège de France, nos anos de 1970, que Foucault mostrou como surgiram, a par-
tir do século XVII, técnicas de poder que, centradas no corpo dos indivíduos, cha-
madas por Foucault em seus estudos e teorias de disciplinas (FOUCAULT, 1979).
Defende Foucault que o indivíduo é um produto da disciplina; é uma rea-
lidade fabricada por ela. Neste ponto, o Estado cria de forma incessante e cons-
tante, instrumentos aptos a tornar efetivo esse controle. Sustenta o filósofo que a
sociedade que se desenvolveu nos séculos XVII e XVIII pôs em funcionamento
uma tecnologia de poder que constituiu efetivamente os indivíduos como ele-
mentos correlatos de poder e de saber. Diz Foucault:
[...] o corpo também está diretamente mergulhado num corpo político; as rela-
ções de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o diri-
gem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe
sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações comple-
xas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força
de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas
em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está
preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento
político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado; o corpo só se torna
força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição
não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; […] pode haver
206
um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e
um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e
esse controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e
esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo
(2013, p. 28-29).
O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num
mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde
individual e coletiva, forças que se podem modificar, e um espaço em que se pode
reparti-las de modo ótimo. Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico
reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que
só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em
parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder (FOUCAULT,
1988. p. 134).
207
Nesta nova perspectiva, diferente do que se defendia no pensamento ante-
rior, o Estado encarregava-se então da vida, de modo que a apropriação de pro-
cessos biológicos era instrumento de controle dos indivíduos e da coletividade.
Nesse sentido, “Governar a população está relacionado à gestão do cálculo por
meio das estatísticas, visando intervir para garantir a longevidade dos corpos,
manter o corpo são para o Estado, mas também como tecnologia que pretende
obstruir sua configuração como povo ou classe” (PASSETTI, 2013).
Com efeito, para Foucault, o conceito de Biopolítica encerra uma visão que
faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explí-
citos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana. Neste
contexto, a Biopolítica passou a se ocupar com um novo corpo, múltiplo, e seus
aspectos biológicos (FOUCAULT, 1988, p. 134).
Nesse processo de controle levado a efeito pelo Estado, estudos foram
necessários como intuito de compreender e conhecer melhor esse corpo, não
sendo suficiente apenas descrevê-lo e quantificá-lo, por exemplo, em termos de
nascimento e de mortes, de fecundidade, de morbidade, de longevidade, de mi-
gração, de criminalidade, mas também relacionar estes dados quantitativos de
modo que se possa com base no presente e passado prever o que se apresentará
no futuro. Neste cenário, desenvolve se múltiplos saberes, como a Estatística, a
Demografia e a Medicina Sanitária (FOUCAULT, 1999, p. 292).
Ante a finalidade de se controlar a sociedade por meio do corpo, de se pro-
mover a vida, o estabelecimento da norma, de imperativos regulamentadores se
mostraram como providência necessária. Isto é, dito de outro modo, um poder
como esse, que tem como tarefa principal a garantia da vida, terá sempre a ne-
cessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. E esse mecanismo
seria a norma (FOUCAULT, 1988, p. 135).
Nesse sentido, afirma Foucault que “uma sociedade normalizadora é o
efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida”. Foi a norma que
conseguiu estabelecer um elo entre o elemento disciplinar do corpo individual
(disciplinas) e o elemento regulamentador de uma multiplicidade biológica
(biopoder) (1988, p. 135).
É sabido, como bem expôs Edgardo Castro (2012: 69-98), que o conceito
de Biopolítica em Michel Foucault funciona relacionado à normalização biológi-
ca do humano e que o conduziu à questão da governamentalidade.
208
Tem-se, deste modo, que a Biopolítica como regulação da população é uma
política de Estado que também não prescinde das diversas práticas da sociedade
civil que deram conta da produção de um corpo saudável, mesmo sob as condi-
ções de desigualdades, algumas vezes amenizadas como efeitos do sindicalismo
e da ameaça revolucionária (PASSETTI, 2013).
Tecidas as considerações acima, tem-se que pela Biopolítica pretendiam se
governar os corpos vivos, a população, instituindo que a vida de cada um dependia
da política. A Biopolítica se constitui, portanto, tendo por alvo totalizante o corpo-
-espécie (população e território) e funciona articulada com os poderes disciplina-
res individualizantes (utilidade e docilidade), atrelando o conjunto e o individual,
e intimamente relacionada ao dispositivo de segurança (PASSETTI, 2013).
209
te, portanto) sobre a vida. Trata-se, segundo o filósofo, de um poder de “causar a
morte ou deixar viver” (2012, p. 150).
Essa característica do poder vigente do século XVIII caracteriza o dispo-
sitivo da soberania, no entanto, passa a ser apenas uma engrenagem a mais nos
dispositivos de poder a partir do momento em que, na passagem do século co-
meça a ser complementado por um poder que funciona de modo inverso, ou
seja, que se exerce direta e positivamente sobre a vida.
Trata-se do “poder de causar a vida ou devolver à morte” (FOUCAULT,
2012, p. 150), ou seja, “um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer
e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las” (FOUCAULT,
2012, p. 148). Nesse sentido, o poder passa a ser exercido sobre a vida dos indi-
víduos. É esse poder que Foucault denominará Biopolítica, representando uma
estratégia ao mesmo tempo de proteção e de maximização da força representada
pela vida dos indivíduos, vida que passa a valer muito, “não em nome de uma
pretensa filantropia, mas porque ela é essencialmente força de trabalho, isto é,
produção de valor.” Nesse contexto, a vida “só é útil porque é, ao mesmo tempo,
sã e dócil, ou seja, medicalizada e disciplinarizada” (REVEL, 2006, p. 55-56).”
Para Foucault, o sistema capitalista pressupunha a inserção controlada dos
corpos no aparelho de produção (disciplina), bem como um ajustamento dos
fenômenos de população aos processos econômicos. É nesse sentido que a bio-
política não se apropria da vida para suprimi-la, mas sim para administrá-la em
termos regulativos, ou seja, trata-se de distribuir o vivente em um domínio de
valor e de utilidade (CASTRO, 2011).
É nesse movimento que Foucault evidencia como a potência da vida hu-
mana passa a ser aproveitada pelo Estado e pelas instituições como elemento de
poder, ou seja, passa-se a incluir a vida humana nos cálculos do poder. Afinal, a
lógica do biopoder é justamente essa: cuidar/maximizar a vida humana para que
ela seja produtiva dentro da lógica capitalista.
No sistema capitalista de produção, portanto, torna-se imprescindível ins-
trumentalizar o saber sobre a vida, de modo a viabilizar tanto o controle quanto
a inserção das pessoas (da população) nos processos de produção, ajustando,
assim, os fenômenos naturais como o nascimento, a reprodução e a morte, aos
processos econômicos. O objetivo é controlar as consequências dos fenômenos
naturais de modo que elas signifiquem ganhos econômicos. Assim, “o que se
produziu por meio da atuação específica da Biopolítica não foi mais apenas o
210
indivíduo dócil e útil, mas a própria gestão calculada da vida do corpo social”
(DUARTE, 2010, p. 222).
2. DA CONFORMAÇÃO DA ECOPOLÍTICA
211
fosse pelo comportamento de denúncia, que permite efetivamente suprimir, ou
fazer suprimirem, aquele que está a seu lado”.
A guerra, no regime nazista, é colocada como um objetivo político, ou seja,
a política deve resultar na guerra, sendo que “a guerra deve ser a fase final e
decisiva que vai coroar o conjunto”. Como decorrência disso, o regime nazis-
ta não objetiva apenas a destruição das outras raças: busca-se também expor a
própria raça ao perigo universal da morte. Isso significa que a defesa da vida e a
produção da morte encontram-se em um patamar de indistinção. Logo, “o risco
de morrer, a exposição à destruição total, é um dos princípios inseridos entre os
deveres fundamentais da obediência nazista, e entre os objetivos essenciais da
política”. Busca-se o ponto no qual toda a população esteja exposta à morte, dada
a compreensão de que “apenas essa exposição universal de toda a população à
morte poderá efetivamente constituí-la como raça superior e regenerá-la defi-
nitivamente perante as raças que tiverem sido totalmente exterminadas ou que
serão definitivamente sujeitadas” (FOUCAULT, 2010, p. 218-219).
Nesse contexto, tem-se, conforme Edson Passetti, que “a biopolítica não
tratava mais da população em conjunto, mas a considerava diante de um novo
quadro de profilaxia, paradoxalmente complementado pela disseminação de di-
reitos, estratificando a população, e respaldada pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948.
Assim, o conceito de Biopolítica foi se exaurindo a partir deste momento,
segundo as sugestões metodológicas de Michel Foucault a respeito da história do
presente em que um conceito somente tem relevância diante de sua história efe-
tiva. Biopolítica não é um conceito universal, diz respeito à sociedade disciplinar.
A noção de Ecopolítica procura responder a algumas destas novas institu-
cionalizações. Não se trata de disciplina acadêmica ou componente da gestão do
governo sobre a população ou o meio ambiente, mas de prática de governo do
planeta nos tempos de transformação (de si, dos outros, da política, das relações
de poder e do planeta no universo), com desdobramentos transterritoriais e va-
riadas estratificações conectadas (PASSETTI, 2011b; 2011c).
Conforme preceitua Edson Passetti (2013), Ecopolítica trata-se de prática
de governo do planeta nos tempos de transformação (de si, dos outros, da po-
lítica, das relações de poder e do planeta no universo), com desdobramentos
transterritoriais e variadas estratificações conectadas.
212
Defende o autor que Ecopolítica não se restringe aos usos atuais, pautados
estritamente na ecologia ou ao ambientalismo. Sustenta que:
213
se mostre vivo para o futuro; não mais vida no presente, mas o presente repleto
de práticas voltadas ao futuro melhor de si e do planeta.
Conforme exposto alhures, a Biopolítica, considerava os indivíduos em
grupos, na sua coletividade, enquanto a Ecopolítica considera as subjetividades.
Para Edson Passetti, “É preciso viver para fora e por dentro, do lado de
fora e conectado com vários ambientes resilientes, o Estado e organizações
transterritoriais: é preciso fazer parte de tecnologias sociais, ser reconhecido e
premiado, mas também saber fazer negócios sociais sustentáveis e estar ocu-
pado. Uma subjetividade resiliente em ambientes resilientes deve reduzir vul-
nerabilidades, ampliar a qualidade de vida, produzir riqueza sustentável para
o planeta: empresariado (capital) e o capital humano (empreendedores de si)
produzem nova cooperação liberal, nomeada como produção compartilhada
e competitiva. E todos amam ou devem amar sua condição no processo de
erradicação da pobreza” (PASSETTI, 2013).
Esse novo formato, aqui defendido como nova forma de governo, de re-
lação e poder desenvolvida, na mesma linha defendida por Edson Passetti,
decorreu de um fluxo derivado do final da II Guerra Mundial que articula, si-
multaneamente, Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, Guerra
Fria, situação de confronto entre capitalismo e socialismo autoritário, eclosão de
rebeldias no final da década de 1960, com o início das procedências da sustenta-
bilidade com o Clube de Roma (entre 1968-1972), repercutindo na Convenção
de Estocolmo, 1972, no relatório Brundtland, 1987, na Eco 92, em Johanesburg,
2002, na Rio+20, 2012 (PASSETTI, 2013).
Pela análise das forças que engendram essa nova política/poder, nota-se
que não se trata de um encadeamento institucional pelo qual as resultantes pres-
sionam os Estados a tomarem decisões internas conforme a dinâmica da civili-
zação. Não se trata de um circuito de poder de cima para baixo, agora projetado
em âmbito internacional. Não se trata de uma configuração das políticas nacio-
nais sob a hegemonia das relações internacionais.
Defende Edson Passetti que nesse novo cenários
214
mento sustentável na medida em que todos são convocados a conservar o planeta
diante dos efeitos devastadores do antigo progresso industrial, mas também da
conduta presente de cada um, gerando uma governamentalidade planetária (PAS-
SETTI, 2013).
Assim, “O corpo útil e dócil que perdurou nas técnicas das disciplinas não
desaparece, apenas começa a ceder lugar a um corpo que deve produzir inteli-
gência: na empresa, nas fundações, institutos, ONGs etc. A cultura do castigo
ganha seus novos contornos com políticas de tolerância, cálculos de vulnerabili-
dade, qualidade de vida e cultura de paz (PASSETTI, 2013).
Os elementos que se evidenciam nessa nova etapa não estão adstritos às
políticas de governo, mas estão conectados às gestões levadas adiante pela so-
ciedade civil organizada. Neste novo contexto, as políticas não mais se assentam
nas polícias médicas, dos saneamentos urbanos e de investimentos em força de
trabalho sã. Conforme destaca Edson Passetti, “o alvo biopolítico que é a popula-
ção ainda permanece presente, mas agora é pluridimensionado pela convocação
à participação na gestão do planeta, do Estado, de empresas, comunidades e na
governamentalidade ambiental. A biopolítica vai consolidando sua ultrapassa-
gem pela ecopolítica” (PASSETTI, 2013).
Agora, governa-se com os governados de modo democrático de baixo para
cima e de cima para baixo, marca indelével da Ecopolítica.
215
social, cresce o investimento em redutores de vulnerabilidades, aplica-se com
rigor o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), convoca-se à participação
para medidas pacificadoras e missões de paz, amplia-se o leque de seguranças,
incluindo alimentação, clima, securitizações e leva-se adiante as Metas do Milê-
nio, para a qual a Rio +20 apresentou-se como fórum de tendências e espaço para
implementações da economia verde e de institucionalização da cultura de paz;
sinalizou ainda para a sobreposição de novas metas intermináveis com acenos de
substituição da economia verde pela economia azul combinada à necessidade de
implementação da próxima agenda voltada à elaboração das metas do desenvol-
vimento sustentável que viriam substituir as Metas do Milênio (PASSETTI, 2013).
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Po-
der Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações. § 1.º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao
Poder Público: Omissis VI - promover a educação ambiental em todos os níveis
de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
Art. 229. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, es-
sencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade
216
o dever de defendê-lo e preservá-lo § 1.º O desenvolvimento econômico e social,
na forma da lei, deverá ser compatível com a proteção do meio ambiente, para
preservá-lo de alterações que, direta ou indiretamente, sejam prejudiciais à saúde,
à segurança e ao bem-estar da comunidade, ou ocasionem danos à fauna, à flo-
ra, aos caudais ou a o ecossistema em geral. Art. 230. Para assegurar o equilíbrio
ecológico e os direitos propugnados no Art. 229, desta Constituição, incumbe ao
Estado e aos Municípios, entre outras medidas: I – promover a educação ambien-
tal e difundir as informações necessárias à conscientização pública para as causas
relacionadas ao meio ambiente;
217
ambiente como um dispositivo, normatizando-se condutas para o que é permi-
tido e o que é obrigatório, no intuito de condicionar os indivíduos a praticarem
atos preestabelecidos sem contestá-los.
CONCLUSÃO
218
REFERÊNCIAS
219
AS BARRAGENS DE REJEITOS DE MINERAÇÃO E O
DIREITO AMBIENTAL NA SOCIEDADE DE RISCO
THE DAMS OF MINING REJECTS AND ENVIRONMENTAL LAW IN THE RISK SOCIETY
Mário Vinícius Rosário Wu1
1 Mestrando em Direito Ambiental, pela Universidade do Estado do Amazonas. Oficial de justiça, ava-
liador Federal.
221
o desenvolvimento econômico promovido pela indústria da mineração não deve
ser tolerado a qualquer custo e que, se há disponibilidade de técnicas que miti-
gam os riscos, elas devem ser implementadas, mesmo sendo mais caras que as
técnicas atuais, pois é imoral lucrar expondo desnecessariamente a vida, a saúde,
a integridade física e a segurança de pessoas a um nível demasiadamente alto de
risco, como a indústria da mineração faz com as barragens. Isso por que, antes e
acima da lógica da compensação, nossa Constituição estabelece os princípios da
prevenção e precaução como valores superiores e centrais da tutela ambiental.
Diagnosticamos que o Estado como responsável pelo bem-estar e controle dos
abusos do capitalismo mostrou-se ineficaz e que somente com a efetiva consi-
deração e respeito ao direito dos cidadãos à qualidade do ambiente poderemos
alcançar o verdadeiro bem-estar-geral em longo prazo. Quando não se realiza
satisfatoriamente a atividade de gestão de riscos e se aplica defeituosamente os
princípios da precaução e da prevenção na tomada das decisões de atuação ou
abstenção, nasce o direito subjetivo de exigir atuação preventiva e adoção de
medidas precaucionais. Após a constatação de tal falha de mercado, passamos
a analisar a efetivação do direito ao meio ambiente por meio do controle judi-
cial, em especial, avaliamos a importância da tutela inibitória no novo Código
de Processo Civil para controlar a ineficiência ambiental da gestão dos resíduos
minerários. Foram utilizados os métodos hermenêutico e comparativo.
PALAVRAS-CHAVE: Barragens de rejeitos de mineração. Direito Am-
biental. Sociedade de risco. Tutela inibitória.
ABSTRACT: In this work, we address the deficit in the constitutional stan-
dard of environmental protection that represents the mining tailings dams. Our
analysis came from the critique of how institutions understand risk in the pre-
sent age of uncontrol: as a necessary evil, which we are obliged to tolerate in the
name of progress or general well-being. We examine the dilemmas of postmo-
dernity and its implications for the management of mining tailings, emphasizing
the sensitivity, importance, and potential of the Amazon region for new mining
ventures. We analyze that the tension between economic development and the
preservation of environmental quality is the main issue to be weighed. We con-
clude that, in this consideration, the postmodern argument that individual sacri-
fices for the benefit of the whole must be regarded as anti-liberal and undemo-
cratic thinking is very strong, because the human being is an end in itself - not
a resource for the benefits of others - and society should not be regarded as an
222
entity superior to the human beings that comprise it. On the other hand, market
rules argue: profit maximization in the name of “general welfare” and the eco-
nomized world (blind market laws above the laws of nature) that imposes stan-
dards for the creation of needs. From there, we criticized utilitarianism and con-
cluded that the economic development promoted by the mining industry should
not be tolerated at any cost and that, if risk mitigation techniques are available,
they should be implemented, even though they are more expensive than the cur-
rent techniques, as it is immoral to profit from unnecessarily exposing the lives,
health, physical integrity and safety of people to an excessively high level of risk
as the mining industry does with dams. This is because, before and above the
logic of compensation, the Constitution of Brazil establishes the principles of
prevention and precaution as the highest and central values of environmental
protection. We diagnose that the state as responsible for the welfare and for the
control of abuses of capitalism has proved to be ineffective and that only with the
effective consideration and respect of the right of the citizens to the quality of
the environment can we achieve the true general welfare in the long run. When
the risk management activity is not carried out satisfactorily and the principles
of precaution and prevention are taken into account in the decision making pro-
cess or abstention, the subjective right to require preventive action and adoption
of precautionary measures is born. After verifying this market failure, we began
to analyze the effectiveness of the right to the environment through judicial con-
trol, in particular, we evaluated the importance of the injunction in the new bra-
zilian civil procedure code to control the environmental inefficiency of mineral
waste management. Hermeneutic and comparative methods were used.
KEYWORDS: Mining tailings dams. Environmental law. Risk society.
Prohibitory injunction.
INTRODUÇÃO
223
priedade da Samarco Mineração S. A., sofreu um rompimento que acarretou a
erosão da barragem de Santarém e resultou no derramamento de milhões de
metros cúbicos de rejeitos de mineração na região conhecida como Vale do Rio
Doce. A lama formada por esses rejeitos era composta de resíduos de ferro, altos
níveis de metais pesados e outros produtos químicos tóxicos, e atingiu centenas
de quilômetros de corpos hídricos, carregando resíduos até a foz do rio Doce, no
oceano Atlântico, já no Estado do Espírito Santo.
O desastre resultou em morte de pessoas, no desalojamento de populações,
na devastação de localidades, na destruição de milhares de hectares de vege-
tação, na mortandade de biodiversidade aquática e fauna terrestre; na perda e
fragmentação de habitats, na interrupção da pesca e do turismo, na alteração da
qualidade da água, na interrupção do abastecimento de água e na dificuldade de
geração de energia elétrica.
Esse colapso deixa muito clara uma lição: nos processos de licenciamento
e de autorização, os critérios estabelecidos pela Administração Pública não po-
dem ser afirmados, em termos absolutos, como corretos e suficientes para evitar
ou diminuir o risco de vazamentos em barragens de rejeitos de mineração. O
ocorrido em Mariana revela a ineficácia das instituições na tarefa de primeiro
prever e, em seguida, controlar esses riscos. Veremos que é de extrema impor-
tância que se lide adequadamente não apenas com os efeitos dos riscos, mas com
a própria existência deles. Esse é o problema que objetivamos enfrentar ao longo
deste artigo: a permanência de um modelo inadequado para lidar com a existên-
cia dos riscos produzidos pela mineração. Para isso, verificaremos quais direitos
estão em jogo e qual a resposta que o ordenamento jurídico oferece para em-
preendimentos que promovem um risco demasiadamente alto e desnecessário.
Pretendemos, portanto, examinar a questão da justiciabilidade dos ris-
cos. Para tanto, precisaremos analisar se a existência das barragens de rejeitos
de mineração consistem violação ou ameaça concreta, real e iminente a di-
reitos e interesses das gerações presentes e futuras, relativos ao bem jurídico
qualidade ambiental. A catástrofe de Mariana revela a atualidade e pertinência
desse problema.
A tensão entre desenvolvimento econômico e a preservação da qualidade
ambiental é a principal questão a ser sopesada. Analisaremos se as barragens de
rejeitos de mineração representam um déficit no padrão constitucional de pro-
teção do ambiente. Para tanto, precisaremos fazer um estudo da interpretação e
224
aplicação normas jurídicas constitucionais, pois, além de positivar os princípios
do desenvolvimento sustentável, da precaução e da prevenção, a Constituição de
1988, ao estabelecer os fundamentos do Estado Democrático de Direito, incluiu,
entre os deveres do Poder Público, o de controlar a produção, comercialização e
emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a
qualidade de vida e o meio ambiente. Por outro lado, argumenta de forma muito
intensa o direito fundamental ao progresso.
No argumento em favor do progresso e do desenvolvimento econômico,
examinaremos o maior impeditivo para que inovações técnicas que aumentam
a segurança dos empreendimentos minerários sejam adotadas: o mercado. Fare-
mos uma crítica à visão do risco como um mal necessário, que somos obrigados
a tolerar, em nome do progresso ou do bem-estar geral. Isso porque há alterna-
tivas técnicas com maior eficiência ambiental, que utilizam menos água ou que
implicam no aproveitamento dos subprodutos, mas que não são adotadas por
questões de mercado, uma vez que representam um custo maior às mineradoras.
Nessa análise do mercado, identificaremos os dilemas da pós-modernidade
e observaremos suas implicações à gestão dos rejeitos de mineração, enfatizando
a sensibilidade, a importância e a potencialidade da região amazônica para no-
vos empreendimentos minerários. Com recorrência, a tensão entre desenvolvi-
mento econômico e a preservação da qualidade ambiental precisa ser sopesada
em casos difíceis apreciados pelo Poder Judiciário. Pretendemos aqui fazer uma
crítica ao utilitarismo e seus argumentos imorais, antiliberais e antidemocráti-
cos, que com frequência são levantados nessa ponderação.
Será feito um diagnóstico acerca de eventual falha de mercado na gestão dos
resíduos minerários, por meio da análise do desempenho do Estado como respon-
sável pelo bem-estar e controle dos abusos do capitalismo. Temos em vista que,
somente com a efetiva consideração e respeito ao direito dos cidadãos à qualidade
do ambiente, poderemos alcançar o verdadeiro bem-estar-geral em longo prazo.
A partir daí, pretende-se demonstrar a importância da efetividade do Di-
reito ambiental na sociedade de risco, em especial, para controlar os riscos de-
masiadamente altos e desnecessários que representam as barragens de rejeitos
de mineração. Analisaremos a efetivação do direito ao meio ambiente previsto
na Constituição por meio do controle judicial. Veremos que o desenvolvimen-
to econômico promovido pela indústria da mineração não deve ser tolerado a
qualquer custo e que, se há disponibilidade de técnicas que mitigam os riscos,
225
elas devem ser implementadas, mesmo sendo mais caras, que as técnicas atuais,
pois é imoral lucrar expondo desnecessariamente a vida, a saúde, a integridade
física e a segurança de pessoas a um nível demasiadamente alto de risco, como a
indústria da mineração faz com as barragens. Isso por que, antes e acima da ló-
gica da compensação, nossa Constituição estabelece os princípios da prevenção
e precaução como valores superiores e centrais da tutela ambiental.
Para superarmos a tendência institucional do simbolismo do Direito Am-
biental, é importante que haja mecanismos processuais que permitam o controle
da gestão dos riscos envolvendo os resíduos minerários e que a construção de no-
vas barragens para descarte dos resíduos importe no reconhecimento de um ilícito
ambiental, por ferir princípios centrais e superiores do ordenamento jurídico-am-
biental, como os mandados de precaução e prevenção, uma vez que há disponibi-
lidade no mercado de técnicas mais eficientes e seguras para lidar com os rejeitos.
Quando não se realiza satisfatoriamente a atividade de gestão de riscos e
se aplica defeituosamente os princípios da precaução e da prevenção na tomada
das decisões de atuação ou abstenção, nasce o direito subjetivo de exigir atuação
preventiva e adoção de medidas precaucionais.
Por fim, avaliaremos a importância das novas regras do processo civil bra-
sileiro sobre tutelas provisórias de urgência, com a finalidade de promover uma
adequada, efetiva, segura e célere prestação jurisdicional. Daremos um merecido
destaque à tutela inibitória, cujo objetivo é a remoção de um ato ilícito, já que a
opção por um modelo menos seguro para lidar com os rejeitos minerários é um
ato ilícito, que precisa ser controlado. Avaliaremos a importância da tutela inibi-
tória para controlar a ineficiência ambiental da gestão dos resíduos minerários.
O método de abordagem mais útil a captar o que se quer desvendar é o
hermenêutico, pois não é pela forma, nem pela gramática, que a solução jurídica
para o problema pode ser compreendida, mas pelo seu entorno e contexto. Nos-
sa preocupação é com a sensibilidade e a percepção adequada para compreender
o problema e sua solução. Também utilizaremos o método comparativo como
método de procedimento, pois ele nos permite romper com a singularidade,
formulando leis capazes de explicar o geral, isto é, identificando continuidades
e descontinuidades, semelhanças e diferenças, e explicitando as determinações
mais gerais que regem os fenômenos específicos.
226
1. A JUSTICIABILIDADE DOS RISCOS
227
das técnicas de lavra e beneficiamento, visando o máximo aproveitamento na lavra
e a melhoria da eficiência das usinas. Já existem tecnologias disponíveis para redu-
zir e eventualmente eliminar as barragens de rejeitos, transformando, em algumas
situações, os resíduos em coprodutos ou subprodutos, e recuperando toda a água
utilizada nos processos. O desafio, entretanto, é o volume de investimentos e a
competitividade do negócio. Como muitos equipamentos são importados, o valor
do investimento passa a ser um impeditivo (GT BARRAGENS, 2016).
Ulrich Beck (2010) constata que uma característica fundamental da socieda-
de contemporânea é o não oferecimento de condições de segurança técnica, cien-
tífica e informativa, necessárias para os processos de tomada de decisão. Enfrenta-
mos sérias dificuldades na organização de alternativas funcionais e, sobretudo, efi-
cientes para a fundamentação e justificação das escolhas e das decisões (respostas),
que permitam ser atingido o ponto ótimo de proteção do ambiente. Entendemos
que o desastre de Mariana põe em evidência essa faceta da crise ambiental.
Por isso, entendemos que um Direito Ambiental dotado de efetividade ne-
cessariamente abrange a justiciabilidade dos riscos. O Direito Ambiental não pode
ser indiferente à ideia de que decisões e escolhas devem ser realizadas para a con-
cretização dos objetivos de proteção do ambiente, nem ao problema de como su-
perar da melhor forma possível o conjunto de imprevisões, incertezas e indefini-
ções dos processos que nos cercam diariamente, na chamada “sociedade do risco”.
Há, no Brasil, um conjunto de problemas que incorpora simultaneamente
a ineficácia e à inadequação das medidas normativas de proteção do ambiente.
É possível identificar déficits nos padrões de proteção, que não conseguem se
aproximar dos objetivos de garantia ótima do bem ambiental, dado negativo,
que não consegue ser progressivamente mitigado com a reprodução e multipli-
cação do sistema normativo. A maneira como as instituições compreendem ou
pretendem compreender o risco permite a constituição desse quadro de desfun-
cionalidade (LEITE; AYALA, 2004, p. 127).
Portanto, a justiciabilidade dos riscos é imprescindível para que não sejam
consideradas “letra morta” algumas normas constitucionais, como o Art. 225,
que dispõe que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra-
do, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-
-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações”, e também o inciso VI, do Art. 170, que dispõe que
a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado confor-
228
me o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elabora-
ção e prestação” é um princípio geral da atividade econômica. Afinal, é o próprio
texto constitucional que assevera que, para assegurar a efetividade do direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbe ao Poder Público “contro-
lar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substân-
cias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”, de
acordo com o parágrafo primeiro e seu inciso V, do Art. 225.
A justiciabilidade dos riscos, em última análise, consiste na necessária substi-
tuição da lógica patrimonialista, tradicional e clássica da reparação ou compensa-
ção de danos, pelos princípios da prevenção e da precaução, positivados nos dispo-
sitivos constitucionais citados no parágrafo anterior. Ulrich Beck (2010) alerta que
a natureza não pode mais ser concebida sem a sociedade, e vice-versa, bem como
que, atualmente, muitos problemas ambientais passam a ser considerados também
problemas sociais (o que também ficou muito claro na tragédia de Mariana). Desse
modo, é preciso romper com a ideia de que o risco é um efeito colateral latente do
progresso, uma espécie de licença, um destino natural civilizatório. Entendemos
que os riscos demasiadamente altos e desnecessários devem ser tratados atos ilíci-
tos, passíveis de serem controlados pela via jurisdicional.
Isso por que a atuação preventiva e a adoção de medidas precaucionais
são instrumentos fundamentais da implementação dos sistemas de proteção do
ambiente, nos termos da Constituição de 1988. Isso significa que, quando não
se realiza satisfatoriamente a atividade de gestão de riscos e se aplica defeituo-
samente o princípio da precaução na tomada das decisões de atuação ou abs-
tenção, estamos diante de uma violação do direito de todos ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Isso significa que, conhecida a existência de riscos,
todos devem ter assegurado o direito de exigir, em face de todos os responsáveis,
o oferecimento de propostas idôneas para lidar com tais riscos. Entendemos que
somente assim será atingido o ponto ótimo de proteção do ambiente.
229
é o fruto da aplicação da norma ao caso concreto, não é suficiente para lidar com
as situações que envolvam colisões de princípios ou de direitos fundamentais.
Nesses casos, há várias premissas maiores e apenas uma menor, e, se aplicar-
mos a subsunção, estaremos elegendo uma única premissa maior e descartando
as demais. Isso não seria constitucionalmente adequado, por violar o princípio
da unidade da Constituição. Então, os múltiplos elementos em jogo devem ser
considerados na medida de sua importância e pertinência para o caso concreto,
por meio da técnica da ponderação. O princípio da proporcionalidade é o fio
condutor de todo esse processo (BARROSO, 2009, p. 333).
Portanto, não obstante toda a ideia de justiciabilidade dos riscos desenvol-
vida ao longo do tópico anterior, estamos conscientes de que existe na sociedade
contemporânea um pensamento muito forte que compreende o risco como um
“mal necessário”. Pretendemos nos próximos tópicos abordar os fundamentos e
alguns desdobramentos desse pensamento, para que os múltiplos elementos em
jogo sejam considerados, pois a justiciabilidade dos riscos envolve colisões de
princípios ou de direitos fundamentais, e o princípio da unidade da Constituição
deve ser respeitado.
Existe uma forte tensão entre desenvolvimento econômico e a preservação
da qualidade ambiental. Um dos maiores exemplos dessa tensão é a exploração
mineral. Se olharmos rapidamente ao nosso redor agora mesmo, não impor-
ta em qual recinto estejamos, certamente encontraremos metais à nossa volta.
Impressiona a quantidade de metais em todos os ambientes que frequentamos
diariamente. Não obstante isso, a mineração é uma das atividades que mais de-
grada o ambiente. Impressiona também o tamanho do estrago que é feito pelas
mineradoras para efetuar a lavra e o beneficiamento de metais.
Nessa ponderação, é muito forte o argumento pós-moderno de que sacri-
fícios individuais em benefício do todo devem ser encarados como um pensa-
mento antiliberal e antidemocrático, pois o ser humano é um fim em si mesmo,
e não um recurso para benefícios de outros, e a sociedade não deve ser encarada
como um ente superior aos seres humanos que a compõem.
O argumento econômico não pode ser usado para que se deixe de utilizar
as melhores técnicas para lidar com os resíduos minerários, tendo em vista o
risco intolerável que as barragens representam. O direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, é um direito
humano fundamental, classificado como de terceira dimensão. Todos têm o
230
direito e o dever de proteger e preservar a qualidade dos recursos ambientais
para as gerações presentes e futuras. Assim sendo, o desenvolvimento da socie-
dade promovido pela indústria da mineração não deve ser tolerado a qualquer
custo. Se há disponibilidade de técnicas que mitigam os riscos, elas devem ser
implementadas.
Defender o contrário significa adesão à já superada ideia imoral de que o
ser humano não é um fim em si mesmo, para permitir que grandes empresas lu-
crem pondo em risco a vida, a integridade física, a saúde e a segurança da popu-
lação mais vulnerável. A tutela ambiental visa, em última análise, salvaguardar
os interesses fundamentais da pessoa humana.
Assim sendo, a continuidade do atual modelo de gestão das barragens de
rejeitos de mineração é um risco inaceitável – tanto pelo seu tamanho, como
também por ser evitável pela adoção de técnicas alternativas disponíveis. Vere-
mos a seguir que o mercado não pode ser um impeditivo para a implementação
de tais técnicas.
Para Ronald Dworkin (2010), ao decidirem casos difíceis, aqueles cuja res-
posta não está claramente definida nas regras vigentes do ordenamento jurídico,
os juízes não podem recorrer a argumentos de política, como a ideia utilitarista
de se alcançar o bem-estar geral. Isso viola o princípio democrático. Os juízes de-
vem decidir os casos difíceis utilizando tão somente o Direito. Se a resposta não
está nas regras, o jurista deve recorrer a argumentos de princípios. Argumentos
de política são legitimamente utilizados pelos Poderes Executivo e Legislativo,
por meio dos seus representantes democraticamente eleitos para a definição de
políticas, mas não pelo Judiciário. Podemos dizer que uma pessoa tem direito à
implementação de uma política, mas os argumentos que devem ser utilizados
para se chegar a essa conclusão são argumentos de princípio, pois são eles que
vão dizer qual direito deve prevalecer num caso difícil.
3. O MERCADO E O UTILITARISMO
231
insustentável de produção: em nome de um pretenso bem-estar geral imediato,
os recursos imprescindíveis ao verdadeiro bem-estar geral duradouro e susten-
tável são sacrificados, gerando-se riscos, caos e incerteza. Somente com a supe-
ração da visão positivista e utilitarista podemos garantir a efetividade do direito
humano fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial
à sadia qualidade de vida.
Zygmunt Bauman (2010) ensina que, na era pré-moderna, o Estado entrou
numa guerra contra todas as formas de vida que pudessem ser vistas como bolsões
potenciais de resistência contra o seu domínio. Exigia-se nada menos que a aceita-
ção da expertise do Estado na arte de viver; tinha-se de admitir que o Estado e os
especialistas que ele nomeava e legitimava sabiam o que era bom para os súditos,
e como eles deviam viver suas vidas e se guardarem de agir em prejuízo de si mes-
mos. Aos súditos foi negada sua capacidade de viver a vida humana sem vigilância,
assistência e intervenção corretiva daqueles que tinham conhecimento de causa.
O que se buscava era o reconhecimento por seus súditos da superioridade
da forma de vida que o Estado representa e da qual deriva a sua autoridade.
Tendo concordado que os modos de vida pregados pelos detentores de poder
são superiores de fato, os súditos atribuem superioridade ao saber que os seus
governantes possuem. Desse modo, o modernismo se caracterizou por um pen-
sar universal e absoluto.
Contudo, o pós-modernismo é marcado pelo respeito às diferenças e pela
ideia de pluralismo: somos diferentes pessoas, de diferentes grupos, que vivem
em mundos diferentes. Essa foi a transição do absolutismo para o relativismo.
Portanto, sacrifícios individuais em benefício do todo devem ser considerados
como um pensamento antiliberal e antidemocrático. A sociedade não deve ser
encarada como um ente superior aos seres humanos que a compõem.
Zaffaroni (2012) ensina que, na sociologia de Edmund Burke, a sociedade
não é um simples conjunto de indivíduos, mas um sistema com suas próprias
leis. A conclusão era a prioridade do organismo, e não da pessoa, que podia ser
sacrificada em benefício do todo – um pensamento antiliberal e antidemocrá-
tico. A lei não devia servir primariamente aos seres humanos, mas sim à socie-
dade, como ente superior e, definitivamente, o único importante. Todavia, há aí
um elemento idealista inverificável: considerar a sociedade um organismo ou
algo que responde às mesmas leis que um organismo. Poucas coisas são mais
inverificáveis e, por conseguinte, anticientíficas.
232
Dworkin, ao longo da obra Levando os direitos a sério, tece uma crítica
àquilo que ele chama de a Teoria Dominante do Direito, que é composta, basi-
camente, por duas outras teorias, a Teoria do Positivismo Jurídico e a Teoria do
Utilitarismo. Na verdade, ele entende que essas duas teorias são partes da teoria
dominante. Dworkin afirma que a teoria dominante possui uma parte conceitual
e uma parte normativa.
A Teoria do Positivismo Jurídico é a parte conceitual da teoria dominante,
que se preocupa em delimitar o que é o Direito. Ela define as condições neces-
sárias e suficientes para a verdade de uma proposição jurídica. De acordo com
tal teoria, uma proposição precisa passar por alguns testes para que se possa
considerá-la como jurídica.
Dworkin critica principalmente a versão do positivismo desenvolvida por
Hart, por considerá-la a mais sofisticada, e assevera que não podemos pensar o
Direito como um conjunto especial de regras, pois nele há importantes padrões
que não funcionam como regras.
A Teoria do Utilitarismo é a parte normativa da teoria dominante, que se
preocupa em dizer o que o Direito deve ser e de que modo que as instituições
jurídicas devem se comportar. De acordo com o utilitarismo, o Direito e as insti-
tuições devem estar a serviço do bem-estar geral e tão-somente isso.
A crítica ao utilitarismo reside, basicamente, nos seguintes questionamen-
tos: É certo tratar as pessoas como meios, e não como fins? Podemos tratar as
pessoas como um recurso para benefícios de outros? Dworkin (2010) assevera
que, de acordo com as convenções e práticas da nossa sociedade, não há insulto
maior e mais profundo do que esse. O professor norte-americano critica profun-
da e analiticamente a teoria utilitarista e sua ideia de que o Direito e as institui-
ções devem estar a serviço do bem-estar geral e tão-somente isso. Somente com
o respeito às individualidades e aos direitos dos cidadãos poderemos alcançar o
verdadeiro bem-estar-geral a longo prazo.
Bauman (2010) afirma que, apesar da assinalada transição do absolutismo para
o relativismo do respeito às diferenças e da ideia de pluralismo, um certo absolutis-
mo permanece. Não mais o Estado, ou a sociedade, mas agora o mercado é o abso-
luto. Ele substitui a repressão pela sedução, a autoridade pela propaganda, e impõe
normas pela criação de necessidades, transformando desejos em necessidades.
Bauman (2001) assinala, ainda, que a sociedade de produtores está sendo
substituída pela sociedade de consumidores. Estes são a ênfase, mas aqueles não
233
deixam de existir. O mercado não tem limitações. O Estado como responsável
pelo bem-estar e controle dos abusos do capitalismo mostrou-se ineficaz. Vi-
vemos numa sociedade competitiva, globalizada, de pouca solidariedade, com
reverência quase religiosa ao consumo, como fórmula mágica de se obter felici-
dade. Busca-se a satisfação instantânea, e ter objetivos distantes e buscar uma
felicidade futura não parece uma proposição atraente e razoável: “vivemos em
tempos líquidos, onde nada é para durar”. O professor emérito de sociologia das
universidades de Leeds e Varsóvia conclui que o projeto de modernidade fracas-
sou e, portanto, precisamos superar as imposições do mercado.
Segundo Enrique Leff (2003), a origem da crise ambiental está na econo-
mização do mundo. Na modernidade, o mercado se apresenta como um novo
Deus capaz de salvar a humanidade da necessidade e da pobreza, e ergue-se por
cima das leis da natureza. Isso tem desencadeado uma mania de crescimento e
produção sem limites. A natureza foi dominada pela ciência e pela razão tecno-
lógica, mas o mundo dominado e assegurado chegou ao seu limite com o caos
e a incerteza. Vivemos num mundo que está sendo arrastado por um processo
incontrolável e insustentável de produção. A lei globalizadora e totalizadora do
mercado tem gerado um conhecimento do mundo que tem sustentado a cons-
trução de um mundo insustentável. As leis cegas de mercado têm determinado a
economização do mundo e o predomínio da razão instrumental sobre as leis da
natureza, desembocando na crise ambiental.
O mercado possui, portanto, falhas que precisam ser controladas. Diante
disso, ganha importância a atuação do sistema jurídico como um todo, para
garantir a efetividade da proteção dada pela Constituição da República ao bem
jurídico qualidade ambiental, pois “[...] uma ineficaz e deficiente implemen-
tação de um modelo adequado de política do meio ambiente também pode
contribuir expressivamente para o agravamento desse quadro” (LEITE; AYA-
LA, 2004, p. 127).
Michael Sandel (2014) aborda a questão dos limites morais do mercado, “o
nível de ganância que alguns certamente têm na alma ao se aproveitar de outros
que sofrem”. O mercado existe para proporcionar o maior bem-estar possível
ao maior número de pessoas. Contudo, em alguns casos o livre mercado acaba
proporcionando ultraje público, revolta, raiva, abuso e extorsão, em meio a dor
e sofrimento. Não é virtuoso ser ganancioso e explorar os outros em momento
de sofrimento.
234
O mesmo raciocínio pode ser transplantado para a questão das barragens
de rejeitos de mineração: o nível de ganância incrustado na alma do mercado e
do governo levam seus agentes a argumentar em favor da manutenção de um
sistema mais barato, porém, mais deficiente do ponto de vista da segurança am-
biental. Contra, pesa o argumento de ser imoral lucrar expondo desnecessaria-
mente a vida, a saúde, a integridade física e a segurança de pessoas a um nível
demasiadamente alto de risco.
Beck (2010) ensina que as riquezas se acumulam em cima, os riscos em
baixo. Assim, os riscos reforçam a sociedade de classes. A abstinência políti-
ca da população em geral permite a potenciação dos lucros e riscos em favor
das grandes indústrias, sob o argumento da necessidade e da impossibilidade de
controlá-los.
Justiça é dar o máximo de felicidade para o maior número possível de pes-
soas mesmo que isso signifique sacrificar um direito fundamental humano de
alguém? Sandel (2014) conclui que não é possível traduzir todos os bens morais
numa única moeda corrente sem perder algo na tradução. A análise custo-bene-
fício comporta erros e é imoral valorar a vida humana.
O livre mercado nem sempre é justo. A base moral do direito é que so-
mos humanos, logo, somos merecedores de respeito. Devemos tratar as pes-
soas como fim em si mesmas. Os limites morais de mercado e uma política de
comprometimento moral fazem parte da avaliação crítica da ideia de justiça
(SANDEL, 2014).
Portanto, é preciso abandonar a cegueira econômica em relação aos riscos
que as barragens de rejeitos de mineração implicam e não podemos continuar
a aceitar o mito da imprevisibilidade de seus efeitos. Como os problemas am-
bientais passaram a ser também problemas sociais, precisamos, ainda, discutir
a sensibilidade, a importância e a potencialidade da região amazônica para no-
vos empreendimentos minerários, para decidirmos melhor se de fato queremos
continuar vivendo na “sociedade do bode expiatório”, permitindo a construção
de novas barragens de rejeitos de mineração.
235
4. A SENSIBILIDADE, A IMPORTÂNCIA E A
POTENCIALIDADE DA REGIÃO AMAZÔNICA PARA
NOVOS EMPREENDIMENTOS MINERÁRIOS
236
jazidas de classe mundial já foram dimensionadas. Ele assevera que a Amazô-
nia deverá ocupar posição de destaque na produção de alguns bens minerais,
tais como minério de ferro, alumínio, cobre, ouro, manganês, caulim, estanho e,
eventualmente, gás.
O Estado do Amazonas tem algumas das maiores reservas minerais do
mundo. Alguns importantes exemplos são reservas de caulim, em Rio Preto da
Eva, próximo a Manaus, e de potássio, na região de Autazes e Itacoatiara (leste do
Estado). O Brasil hoje importa cerca de 95% do potássio que utiliza, principal-
mente como insumo para a agricultura. Com a exploração, Amazônica pode se
tornar autossuficiente. Presidente Figueiredo tem potencial para se transformar
no maior produtor mundial de tântalo, mineral muito utilizado pela indústria de
componentes eletrônicos. A grande quantidade de nióbio e tântalo encontrada
no município foi avaliada em US$ 55 bilhões (“Leis garantem preservação e se-
gurança para os investidores” (Jornal Folha de S. Paulo).
A projeção de cenários futuros para a Amazônia aponta para uma amplia-
ção da quantidade de autorizações de projetos de pesquisa e de lavra de recur-
sos minerais, dada a grande potencialidade constatada na região. Caso essa ex-
pectativa se concretize, será grande a degradação ambiental e o risco de danos
ambientais aumentará significativamente. O direito ambiental deve ser utilizado
como instrumento para implementação de medidas que possibilitem a produ-
ção da menor degradação ambiental possível, e que sejam capazes de evitar ou
reduzir os riscos de danos ambientais existentes.
5. AS FALHAS DE MERCADO
237
a situação de alguém sem piorar a de nenhuma outra pessoa. Isso não existe no
mundo real, por isso é necessária a intervenção do Estado na economia.
A história e a experiência provam que o mercado falha em gerir riscos e
em bem alocar recursos, com consequências sociais e econômicas desastro-
sas. Tem grande impacto na política a noção de Adam Smith de que empresas
maximizando seus lucros, interagindo com consumidores racionais em mer-
cados competitivos, conduzem como uma mão invisível a uma sociedade de
bem-estar geral. Contudo, Smith já se preocupava com as limitações do mer-
cado: situações em que ele produz muito da mesma coisa (como poluição, por
exemplo) e bem menos de outras coisas (como inovação, por exemplo). Assim,
não há presunção de que o mercado é eficiente. Em verdade, o mercado quase
nunca é completamente eficiente. Mesmo quando os mercados são eficientes,
eles falham em produzir melhorias justas e socialmente desejáveis. É isso o que
legitima a intervenção do Estado na economia: a falibilidade humana. Erros
são inevitáveis. A regulação econômica serve para minimizar os custos dos
erros. Ela deve combinar as preocupações de equidade com a noção de falhas
de mercado (STIGLITZ, 2009).
Fabio Nusdeo (2015) afirma que as falhas de mercado são imperfeições que
correspondem à ausência de pressupostos que haviam lastreado a concepção li-
beral na sua formulação original (segundo a qual a função única do Estado con-
sistia em garantir a ordem pública, para o livre desenvolvimento das atividades
privadas na sociedade civil, e, assim, as empresas, ao maximizarem seus lucros,
interagindo com consumidores racionais, em mercados competitivos, conduzi-
riam como uma mão invisível a uma sociedade de bem-estar geral). Essas inope-
racionalidades do mercado acabam por produzir resultados falhos, distanciados
do esperado e, em muitos casos, francamente inaceitáveis.
Uma das principais falhas diz respeito a custos ou benefícios circulando
externamente ao mercado: são as externalidades, também denominadas falha
de sinalização. Elas decorrem da constatação de que, numa atividade econômica,
nem sempre, ou raramente, todos os custos e os respectivos benefícios recaem
sobre a unidade responsável pela sua condução. Por limitações institucionais, o
mercado não consegue imputar um preço às externalidades. Isso permite que
alguns fatores escassos sejam utilizados gratuitamente, sem ter a sua escassez
devidamente sinalizada. Esses fatos ou efeitos ocorridos fora do mercado podem
ser vistos como efeitos parasitas. O sinal dos preços falha. Quando as externali-
238
dades redundam em algum custo para alguém, são chamadas negativas. Quando
beneficiam alguém, são chamadas positivas.
A tendência natural dos agentes econômicos (em decorrência do espírito
hedonista, pressuposto psicológico-comportamental do sistema de mercado) é
externalizar os custos. Assim, vão servindo-se de bens escassos como se livres
fossem, exaurindo-os ou deteriorando-os em sua qualidade.
Portanto, como o produtor hedonista voltado para a redução de seus cus-
tos terá sempre todo o impulso em tornar ou manter externos os custos que não
conseguir reduzir, somente com uma decidida ação do poder público haverá a
internalização das externalidades negativas. Tendo em vista que as externalidades
são uma falha de mercado que consiste em custos e benefícios transferidos sem
preços, bem como que a escassez impõe a contenção no uso do bem escasso, e
que a contenção só é obtida pela imposição de um preço, o antídoto baseia-se em
mecanismos aptos a promoverem a internalização de tais efeitos, levando os custos
e benefícios a incidirem sobre as próprias unidades responsáveis pela sua geração.
O direito ambiental encontra no fenômeno em análise sua justificativa,
por, em última análise, propor-se a realizar essa tarefa. O princípio do po-
luidor-pagador é um exemplo típico do processo de internalização de custos
sociais. Forçosa é a intervenção do Estado no domínio econômico para cor-
rigir essa disfunção do mercado, que leva a sociedade a consumir mais meio
ambiente do que faria ou do que quereria caso existisse um preço associado a
seu uso (NUSDEO, 2015).
Stiglitz (2009) afirma que o governo deve intervir em áreas em que as fa-
lhas do mercado se mostram mais evidentes. Intervenções do governo podem
potencialmente aumentar a eficiência social e a equidade do mercado. Governos
devem impor regulações para prevenir explorações injustas e perseguir alguns
fins sociais. A regulação, pois, restringe. Muitos afetados reclamam dizendo
que a regulação gera efeitos adversos na inovação. Porém, a intervenção é para
alcançar consequências potenciais que vão além das partes envolvidas direta-
mente com a regulação. Destarte, nessas situações, o benefício particular não é
boa medida do impacto social, pois a regulação é para se alcançar inovações de
bem-estar. A regulação serve, portanto, para aprimorar o mercado e proteger
aqueles que sofrem com a desregulação. A regulação do mercado deve promover
uma melhor governança corporativa, reduzindo a probabilidade de incentivos a
239
comportamentos perversos. Outrossim, não há regulação do mercado apenas
para prevenir, mas também para encorajar comportamentos construtivos.
Assim, o princípio do protetor-recebedor determina que haja políticas
que recompensem aqueles que utilizam técnicas que representam um ganho de
qualidade ambiental, internalizando os benefícios que serão gozados por toda
a coletividade, corrigindo uma falha de sinal do mercado, fazendo com que a
unidade produtora não sofra prejuízos por promover o bem geral, e até mesmo
legitimamente obtenha ganhos por promover a proteção ou a recuperação do
meio ambiente.
A catástrofe de Mariana evidenciou que existem falhas na gestão das bar-
ragens de rejeitos de mineração de nosso país. As empresas de mineração ins-
taladas no Brasil seguem as leis de mercado e buscam o maior lucro com o me-
nor gasto possível, expondo a um alto risco os recursos ambientais, que todos
têm o direito a usufruir, e que ninguém tem o direito de dispor. Sem regulação
do governo para corrigir essas falhas, o setor minerário continuará utilizando
técnicas ultrapassadas por serem mais baratas, quando existe a possibilidade de
adoção de novas tecnologias que já são uma realidade em muitos outros países,
que propiciam a redução do volume dos rejeitos gerados, desaguamento e apro-
veitamento deles.
Assim sendo, o modelo de desenvolvimento adotado pela indústria de
mineração do país tem se revelado insustentável. Ofende o sentido de justiça
permitir que mineradoras possam maximizar os seus lucros degradando o am-
biente e matando pessoas, ignorando as já mencionadas tecnologias adotadas
em outros países para reduzir e eventualmente eliminar as barragens de rejeitos,
transformando em algumas situações os materiais em coprodutos ou subpro-
dutos, e recuperando toda a água utilizada nos processos, visando o máximo
aproveitamento na lavra e a melhoria da eficiência das usinas.
240
Ambiental e, no esforço para superar a ineficácia da proteção do bem jurídico
qualidade ambiental, buscar a efetividade desse direito.
Nas valiosas lições de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988), o acesso à
justiça deve ter dois enfoques. Primeiro, um sistema pelo qual as pessoas podem
reivindicar seus direitos e ver seus litígios resolvidos sob os auspícios do Estado,
que deve ser acessível a todos. Segundo, um sistema que deve produzir resulta-
dos individual e socialmente justos. O primeiro enfoque jamais pode perder de
vista o segundo. Por isso, temos o desejo de tornar efetivos, e não meramente
simbólicos, os direitos que dizem respeito à qualidade ambiental e ao equilíbrio
ecológico do ambiente.
A crescente crise ambiental e a complexidade da sociedade de risco, que
rege as relações da atualidade, são um sinal da necessidade de implementação de
direitos relativos à qualidade do meio ambiente.
A dificuldade de implementação do direito ambiental reside no fato de que
vivemos em complexos contextos sociais que possuem o risco como padrão con-
dutor das relações. Assim sendo, o Estado (em todas as suas esferas de poder) e
o mercado acabam deixando a desejar na adequada regulação dos efeitos negati-
vos do desenvolvimento econômico e tecnológico sobre o meio ambiente. Nesse
cenário, é inevitável que o Poder Judiciário, na sua inafastável missão de dizer
o Direito, seja chamado para apreciar a gestão dos riscos ambientais no Direito
brasileiro. Muitas decisões ainda representam déficits de eficácia e de implemen-
tação do Direito Ambiental. Contudo, em alguns casos, já é possível perceber o
caminho inverso, quando tribunais começam a valorizar concretamente a ne-
cessidade de se estabelecer um compromisso com a efetividade da proteção do
meio ambiente.
A pretensão de proteção do ambiente e o enfrentamento da crise ambiental
nas sociedades contemporâneas passa pela análise e definição da forma como o
direito do ambiente se relaciona com os problemas ambientais qualificados pela
questão do risco.
A Constituição da República, no Art. 225, garantiu a tutela do bem jurídico
qualidade ambiental. Isso significa que a norma constitucional determina a atuação
protetora do Estado, que detém o monopólio da força física, para proteger o equilí-
brio e a higidez do meio ambiente como um todo. Nossa Lei Maior faz uma grande
promessa de segurança ecológica, sendo que seu principal obstáculo é o risco.
241
O princípio da inafastabilidade da jurisdição, por sua vez, determina que a
atividade jurisdicional seja adequada e efetiva. Assim, a tutela jurisdicional não
deve abranger apenas reparações de lesões, mas também meios de evitá-las. Isto
é, a jurisdição deve exercer a tutela da ameaça ao Direito, em nome da efetivida-
de do processo e de sua aproximação com o direito material. Nesse sentido, Leite
e Ayala (2004, p. 151) ensinam que:
242
mente equilibrado (Art. 225, caput). [...] A proteção do meio ambiente na ordem
constitucional brasileira não se fundamenta nem na noção de dano ou em uma li-
mitada leitura do ilícito, mas sim na de risco (LEITE; AYALA, 2004, p. 198).
243
7. AS TUTELAS PROVISÓRIAS DO NCPC E A TUTELA
INIBITÓRIA: AS BARRAGENS DE REJEITOS DE MINERAÇÃO
COMO UM ILÍCITO QUE DEVE SER REMOVIDO
Nas disposições gerais da tutela provisória (Arts. 294 a 299), o NCPC es-
tabelece que a tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou evidên-
cia, devendo sempre o juiz que a conceder (ou negar, ou modificar ou revogar)
motivar seu convencimento de modo claro e preciso. A tutela de urgência pode
ser concedida em caráter antecedente ou incidental. Além disso, a tutela de ur-
gência pode ser de natureza cautelar ou antecipada. Em qualquer caso, a tutela
provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, até mesmo durante o
período de suspensão do processo, salvo decisão judicial em contrário.
O Art. 300 do NCPC dispõe sobre os requisitos da tutela de urgência, que
estão relacionados com a importância desse instituto para a efetividade do Direi-
to: a probabilidade do Direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do
processo. A depender da urgência, ela pode ser concedida liminarmente ou após
justificação prévia. Contudo, a tutela de urgência de natureza antecipada não
será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.
Sobre a tutela de urgência de natureza cautelar, dispõe o Art. 301 do NCPC
que ela “pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens,
registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea
para asseguração do direito”.
Sobre a tutela antecipada requerida em caráter antecedente (casos em que
a urgência é contemporânea à propositura da ação), dispõe o Art. 303 do NCPC
que “a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à
indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se
busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo”.
Caso essa tutela seja concedida, a petição inicial deverá ser complementada, com
o seu devido aditamento.
Instituto muito interessante é o da estabilização da tutela previsto no Art.
304. A tutela antecipada requerida em caráter antecedente torna-se estável se da
decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso e, em seguida, o
processo é extinto. Não faz coisa julgada a decisão que concede essa tutela, mas
a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir,
244
reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes dentro do
prazo de 2 (dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo.
Sobre tutela cautelar requerida em caráter antecedente, dispõe o Art. 305
do NCPC que a petição inicial deve conter a exposição sumária do direito que
se objetiva assegurar e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do proces-
so, indicando também a lide e seu fundamento. Efetivada a tutela cautelar, o
pedido principal terá de ser formulado pelo autor nos mesmos autos, podendo
ser aditada a causa de pedir. Contudo, nada impede que o pedido principal seja
formulado conjuntamente com o pedido de tutela cautelar.
Sobre as normas da tutela da evidência, destacamos que, quando a petição
inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do
direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável,
a tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de
perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo. Contudo, nesses casos,
o juiz não pode decidir liminarmente (inciso IV e parágrafo único do Art. 311).
Portanto, revela-se de grande atualidade e importância a utilização da tute-
la inibitória, oferecendo resposta mais adequada à tutela de direitos relativos ao
ambiente. As tutelas provisórias de urgência são tutelas diferenciadas nas quais
não se exige o conhecimento amplo da causa pelo magistrado, para se afastar o
perigo de ineficiência e injustiça. Ou seja, elas garantem a proteção do direito
ainda que controvertido.
O objetivo principal da tutela inibitória é a remoção de um ilícito ambiental.
Ela pode se dar em três momentos distintos. Quando o dano ambiental ainda não
ocorreu e quer-se inibir sua ocorrência; quando o dano está ocorrendo e quer-se
inibir sua continuidade; por fim, quando o dano já ocorreu e quer-se inibir a repe-
tição. Este último momento diz respeito ao caráter pedagógico da tutela ambiental.
A lógica das tutelas de conteúdo preventivo difere em muito do clássico
esquema patrimonial da responsabilidade civil, conforme ensinam Leite e Ayala
(2004, p. 195):
245
quadro das relações jurídicas: impedir a prática, impedir a continuação e, por fim,
impedir a repetição do ilícito, entendido como a possibilidade de qualquer conduta
contrária ao direito. A notável aptidão dessa espécie de tutela preventiva à prote-
ção jurisdicional da biodiversidade é evidente quando se pensa na versatilidade das
pretensões admissíveis e, principalmente, no objetivo legitimador da pretensão, a
simples ameaça de violação, v. g., da legislação ambiental, na instalação de ativida-
des industriais em área inadequada ou, mesmo, sem o atendimento das restrições
ou implementação das medidas necessárias a impedir o dano ambiental, exigidas
previamente pela legislação pertinente.
As principais ações que tutelam o meio ambiente são a ação popular, a ação
civil pública, o mandado de segurança e as ações diretas de inconstitucionali-
dade. Nas tutelas ambientais inibitórias preventivas, só há preocupação com re-
lação ao ilícito e, portanto, não há preocupação com o dano, nem nexo causal,
nem dolo ou culpa, havendo responsabilidade objetiva.
O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a legitimidade da utilização
da Ação Civil Pública como controle difuso de constitucionalidade de quaisquer
leis ou atos do Poder Público, quando, nesse processo coletivo, a questão cons-
titucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se
como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal
246
(Rcl 1.733, relator ministro Celso de Mello, DJe de 12/3/2003). O juiz de primei-
ro grau também exerce parte das funções compartilhadas de controle, exercendo
poder de restrição constitucional da liberdade de conformação do legislador, da
liberdade de atuação do administrador público e dos empreendimentos indus-
triais nas ações de tutela dos direitos transindividuais. É o que se observa, por
exemplo, na Lei da Ação Civil Pública, que elege o momento que antecede o
dano como merecedor de uma tutela diferenciada, ao mesmo tempo que auto-
riza a utilização de medidas que sejam adequadas à proteção dos direitos, con-
sistentes em obrigações de fazer ou não fazer e de execução específica. Dispõe o
Art. 4.º da lei n.º 7.347/85 que:
Poderá ser ajuizada ação cautelar para os fins desta Lei, objetivando, inclusive,
evitar dano ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à
honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, à ordem urbanística
ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
247
duta representa em abstrato um dano ao meio ambiente), ou autor hipossufi-
ciente (capacidade processual diminuta), inverte-se o ônus da prova para que o
potencial autor do dano prove com anterioridade que a sua conduta não causará
danos ao meio ambiente (BADR; BARBOSA JUNIOR, 2014).
De acordo com Leite e Ayala (2004, p. 201):
A medida preventiva inibitória pode ser concedida junto com a inversão do ônus,
quando o potencial agente infrator terá que se desincumbir do ônus, provando
que sua conduta não é lesiva, não havendo, portanto, condição para o prossegui-
mento da ação.
248
CONCLUSÃO
249
Por fim, analisamos as tutelas provisórias do NCPC e concluímos que as
barragens de rejeitos de mineração são um ilícito que deve ser removido por
meio da tutela inibitória. Isto é, as barragens de rejeitos de mineração repre-
sentam riscos desnecessários e demasiadamente altos. Soluções mais seguras e
ambientalmente mais eficientes não são implementadas em razão da necessida-
de de manter a competitividade do negócio. Apesar disso, nossa Constituição
positivou como norma jurídica os princípios da prevenção da precaução, e do
desenvolvimento sustentável. Portanto, para atingirmos o ponto ótimo de prote-
ção do ambiente na gestão dos resíduos minerários e superarmos o déficit no pa-
drão de proteção ambiental conferidos pelas barragens de rejeitos de mineração,
urge que o Direito Ambiental seja manejado para que seja cumprida a obrigação
de fixação dos melhores critérios ou das exigências mais seguras possíveis na
atualidade, por meio da tutela inibitória, a fim de impedir a continuidade de um
modelo que expõe a sociedade a um risco intolerável.
REFERÊNCIAS
250
rocaba e Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relator ministro Celso de
Mello. 12 de março de 2003. In: Diário da Justiça Eletrônico (Brasília).
DWORKIN, Ronald Myles. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2010.
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo Ayala. Direito Ambiental
na sociedade de risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2014.
251
SANTOS, Breno Augusto dos. Recursos Minerais na Amazônia. Estudos Avança-
dos, São Paulo, vol. 16, n.º 45, p. 123-152, maio/agosto, 2002.
STIGLITZ, Joseph. Regulation and failure. In: Moss, David, and John Cisterni-
no, eds. New perspectives on regulation. Cambridge, MA; The Tobin Project, p.
11-23, 2009.
252
CRÍTICAS AO “HOMEM MÉDIO” À LUZ DE BECKER
REVIEWS FOR “AVERAGE MAN” IN LIGHT OF BECKER
Tiago Oliveira Lopes1
Vinícius Ribeiro de Souza2
253
KEYWORDS: Middle man. Criminal. Critic. Crime. Becker. Concrete
case.
INTRODUÇÃO
254
médio, mas a quem, está utilizando para realizar o julgamento. Sob quais parâ-
metros o magistrado guia-se para encontrar o padrão de comportamento consi-
derado ponderado por toda a sociedade.
Justificam-se os presentes à medida da necessária crítica que deve ser feita
ao indiscriminado uso do termo homem médio para a aferição de tipicidade,
ilicitude e culpabilidade, sem o devido respaldo diante o caso concreto objeto
do julgamento, podendo até mesmo configurar nulidade constitucional diante a
ausência de fundamentação.
A problematização, conforme alhures abarcado nas linhas anteriores, é
a seguinte: qual o parâmetro utilizado pelo magistrado ao julgar determinada
conduta perante o “homem médio”? Aliás, busca-se também realizar uma crítica
a respeito de quem é o julgador que vai considerar um padrão de comportamen-
to como mediano.
A hipótese da presente oportunidade insurge-se da necessidade da des-
consideração do homem médio para aferição de crime, levando-se em consi-
deração, outrossim, as peculiaridades do caso concreto, especialmente quanto à
personalidade da vítima e o meio social a qual está inserida para realizar o juízo
de valor no que tange à conduta e seus consectários.
Emprega-se a metodologia referente à pesquisa bibliográfica e documental,
analisando artigos científicos, livros e dissertações referentes à temática, bem
como a jurisprudência espraiada pelo país no que concerne à utilização do ho-
mem médio como parâmetro de verificação de imputação criminal.
Segue a pesquisa com considerações gerais e necessárias a respeito da Teo-
ria Finalista do Direito Penal e suas consequências na observação da culpabili-
dade do agente, assim como sua abordagem em face da teoria de Howard Becker.
Ato contínuo, serão abordados o conceito de homem médio e seu trato
quanto aos estratos do crime em sua perspectiva analítica, analisando-se a dou-
trina e a jurisprudência a respeito da temática.
Por fim, será estudada a Teoria de Howard Becker, no que se refere ao des-
viante, realizando-se um cotejo com o uso do homem médio do Direito Penal,
surgindo uma crítica ao desenfreado uso do termo em questão sem se verificar
uma análise casuística diante o caso em julgamento.
255
1. TEORIA FINALISTA DE WELZEL
A finalidade, portanto, é nota distintiva entre esta teoria e as que lhe antecedem. É
ela que transformará a ação num ato de vontade com conteúdo, ao partir da pre-
missa de que toda conduta é orientada por um querer. Supera-se, com esta noção,
a “cegueira” do causalismo (CUNHA, 2016, p. 182-183).
Para explicar a razão da teoria ser considerada evolutiva, cita, também, He-
leno Cláudio Fragoso:
256
observação de que na culpa cumpre distinguir a valoração do objeto e o objeto
da valoração (Graf zu Dohna). O dolo (destacado da consciência da ilicitude, que
é momento normativo) integra a conduta típica, ilícita, ou seja, integra o objeto
valorado e não pertence à culpabilidade (FRAGOSO, 2003, p. 240 apud CUNHA,
2016, p. 183).
257
fixadas a partir de padrões socialmente dominantes”, o que será analisado minu-
ciosamente á luz das críticas de Becker no que tange à rotulação do desviante.
258
Nessa medida, um dos elementos estudados no crime culposo é a viola-
ção de um dever de cuidado objetivo, o qual, para Cunha, o comportamento
do agente não atende ao que é esperado pela lei e pela sociedade (2015, p. 196).
Continua o autor ao abordar a violação de dever de cuidado objetivo, em
que o julgador, na averiguação deve, “considerando as circunstâncias do caso
concreto, pesquisar se uma pessoa de inteligência média, prudente e responsá-
vel, teria condições de conhecer e, portanto, evitar o perigo decorrente da con-
duta (previsibilidade objetiva)” (2015, p. 197).
Quanto á previsibilidade objetiva, mister salientar o que Greco abordar a
respeito do tema, citando Hungria, a saber:
259
de causalidade, a previsibilidade e, por fim, a tipicidade. 2. O cotejo de todo o
conjunto fático-probatório demonstra a ausência de culpabilidade e também de
previsibilidade por parte do acusado, não havendo qualquer tipo de culpa aponta-
da ao motorista do caminhão, eis que estava parado no acostamento onde ocorreu
o acidente em razão de problemas mecânicos, quando da incidência do acidente
fatal que vitimou José Pedro Bazone Selestine. 3. Dessume-se, portanto, a ine-
xistência de comprovação de imprudência, negligência ou imperícia quando do
acidente de trânsito, muito menos a previsibilidade necessária para se inferir tal
tipo penal. 4. Recurso ministerial improvido, mantendo-se incólume a sentença
absolutória proferida no Juízo a quo.
Apesar de muitos ainda insistirem que a idoneidade (ou não) do meio fraudu-
lento utilizado pelo agente se extrai da percepção do homem médio (homem de
diligência mediana), preferimos, com o devido respeito, analisar o caso concreto,
aquilatando as condições da vítima (idade, grau de instrução etc.), dados impor-
260
tantes para concluir pela eficácia (ou não) do artifício utilizado pelo estelionatário
(2015, p. 324).
261
Sem a pretensão de densificar o tema, até porque não é o momento pro-
pício, é de suma importância destacar que a inexigibilidade de conduta diversa,
excludente de culpabilidade, possui duas hipóteses legais (coação moral irresis-
tível e obediência hierárquica). Além do mais, há a possibilidade de observação
de outras causas supralegais de excludente de culpabilidade no que tange à ine-
xigibilidade de conduta diversa (FENATO, 2016).
É nesse condão que se retorna à discussão da questão da previsibilidade
anteriormente discutida nos crimes culposos. De acordo com o relatado em li-
nhas anteriores, a previsibilidade discutida em crimes culposos era a objetiva.
Contudo, a doutrina também discute a previsibilidade subjetiva, esta já voltada
ao cotejo com o caso concreto.
Realizando um paralelo entre os dois tipos de previsibilidades, afirma
Greco:
Continua o autor:
262
cias que o envolveram, bem como das condições do agente, chegando-se à con-
clusão de que dele e não era exigível outra conduta, embora o fato seja típico, não
será culpável e, portanto, não será objeto de reprovação pela lei penal (GRECO,
2015, p. 257-258).
263
O conceito de homem médio é a mais estapafúrdia evidência de um classicismo
dogmático ainda presente que, por vias naturais do aspecto historicista da evolu-
ção humana, não pode perdurar no campo da aplicação. Se fosse possível imagi-
nar um ser a quem se pudesse imputar a perfeita diligência de abstenção e, assim
sendo, de não cometimento de eventual fato descrito como crime diante de uma
situação inesperada, estaríamos a imputar um aspecto de competência ontológica
platônica a pessoas naturalmente compostas no erro e no equívoco. Afinal, como
é admissível avaliar as condições íntimas de uma pessoa no momento em que
supostamente não age com a pretensa diligência aguardada?
264
Como dito alhures, anteriormente a Becker o foco da investigação sociológica
sobre o crime estava na Etiologia do crime, ou seja, na busca de suas causas; as
causas, por seu turno, se concentravam ora na sociedade, ora naquilo que se defi-
nia como desvio. Nesta perspectiva investigatória, que se dava a partir de padrões
socialmente estabelecidos, o problema sempre estava com o desviante, ou seja,
nele é que sempre havia algo de errado, que o fazia colocar-se fora do regramento
imposto. Partia-se, então, do pressuposto de que o catálogo de regras e valores so-
ciais estava certo, verdadeira corporificação do bem, imune às críticas. Assim, as
indagações norteadoras das pesquisas destinavam-se tão somente aos desviantes,
tais como: Por que as pessoas desviam das regras impostas? O que há de errado
nelas, que as fazem desviar? Não se dava conta de questionar a estrutura social e
suas incongruências e reações, mas, a partir de Becker, a investigação concentra-
-se na reação social (rotulação, etiquetamento) em relação ao cometimento de um
ato criminoso (SILVA, 2013).
Becker aduz que usa o termo outsiders para designar aquela s pessoas que
são consideradas desviantes por outras, situando-se fora do círculo dos mem-
bros ‘normais’ (2008, p. 27). Continua o autor, afirmando que regras sociais
são criações de grupos sociais específicos. Grupos sociais criam os desvios ao
fazer as regras, cuja infração constitui desvio e rotulam a pessoa que o comete
como outsider (BECKER, 2008).
Afirma Becker (2008) que as sociedades modernas não são tão simples.
Há diferenças entre os grupos que as compõem: classes sociais, linhas étnicas,
culturais etc. As tradições levam a conjuntos diferentes de regras. Na medida
em que as regras de determinados grupos se chocam e se contradizem haverá
desacordo quanto a que tipo de comportamento deve ser considerado apro-
priado à determinada situação. Observa-se, nessa medida, que a construção de
um comportamento desviante nasce da concepção do que determinado grupo
considera como desviante.
Como bem pondera Becker (2008, p. 137), regras específicas “encontram
suas origens naquelas declarações vagas e generalizadas de preferência que os
cientistas sociais chamam muitas vezes de valores”. Segue informando que os
valores são guias insatisfatórios, posto que os padrões de seleção que corpori-
ficam os valores são gerais e, assim pode haver valores conflitantes sem haver
consciência de tal conflito (idem, 2008, p. 137).
265
É bastante peculiar a visão do autor retromencionado ao abordar o tema
valor, haja vista que a doutrina defende a inexistência de um magistrado neutro,
mas sim imparcial, posto que a neutralidade não combina com um julgador ei-
vado de valores que carrega perante a vida.
Ora, mas ao julgar um caso concreto, lançando mão de um termo extrema-
mente genérico como homem médio, o julgador lastreia o objeto de julgamento
com suas concepções de mundo em momento inapropriado, posto que a análise
do caso concreto, tendo em vista as ordens sociais e econômicas, por exemplo,
são preponderantes sobre qualquer preconcepção de mundo que o juiz possa
considerar, o que vai de encontro às críticas de Becker.
De acordo com Braga (2017), “o tema, por conseguinte, perpassa por uma
análise conjuntural do sistema social, do qual, igualmente, não se pode pres-
cindir, na medida em que se torna prejudicial à análise do mérito da pena, e da
eficácia, in totum, do princípio da responsabilização subjetiva”.
Ainda o autor acima citado realiza uma reflexão no que tange à conside-
ração do homem médio e os diversos conflitos que àquele a quem está sendo
imputado um fato criminoso resta inserido. É curial a transcrição de trecho do
seu estudo:
266
em um lugar, e em outro não; em um tempo, e em outro tempo não”. Da mesma
forma, ele afirma que há relatividade quanto a considerar um comportamento
desviante “quanto a quem a comete: se cometida por alguém pode ser desvio,
mas se cometida por outra pessoa, pode não ser desvio”.
Resta cristalino, diante do que se propõe, que uma análise embasada em
parâmetros meramente objetivos caracterizados por um suposto padrão médio
de comportamento não mais se coaduna com a realidade encarada em uma
sociedade tão complexa.
Becker traz à discussão o outsider e seu processo de rotulação. Estuda
o fenômeno em baila à luz da visão social e não do comportamento de per si
do desviante. Evidenciou que a consideração de determinado comportamento
como desviante é uma construção da sociedade na qual está inserido o indiví-
duo, dentre uma série de especificações contidas na obra de Becker, a qual em
uma monografia não haveria espaço. Ademais, há crítica aos valores que deter-
minado agrupamento humano semeia para construir as regras que imputam
determinando comportamento como desviante, uma vez que são genéricos e
até mesmo conflitantes.
Nessa seara, considerar um homem médio como parâmetro de conduta
em uma análise apriorística de cometimento de crime ou não, sem levar em
consideração as peculiaridades do caso em concreto, é ir de encontro ao que vem
sedimentando a doutrina mais moderna em relação ao Direito Penal.
CONCLUSÃO
Perante o que foi debatido, restou construída uma sólida crítica ao uso do
termo “homem médio” para a imputação de determinada conduta como crimi-
nosa, tendo como parâmetros, ou a ausência destes, o comportamento mediano
que se espera de um cidadão comum.
Percorreu-se a Teoria Finalista do Direito Penal e suas consequências
quanto à culpabilidade do agente. Da mesma forma foram vistos os elementos
que compõem o conceito de crime, bem como a jurisprudência e a doutrina
mais tradicional frente ao conceito de homem médio.
267
Nessa medida, constatou-se forte entendimento a considerar a figura do
“homem médio” embutida nas decisões que imputam comportamento crimino-
so a determinado indivíduo, sem considerar as nuances do caso concreto.
Noutro giro, verificou-se que há entendimento moderno, acompanhado,
também, por precedentes dos Tribunais pátrios, que não levam em considera-
ção, para o deslinde da demanda penal, o conceito de homem médio, mas sim as
circunstâncias que permeiam a situação fática que outrora está sendo analisada.
Nesse diapasão, foi exposta a visão de Howard Becker no que tange ao sujeito
considerado desviante, examinando-se sua teoria em confrontação à doutrina e
jurisprudência tradicional, sugerindo-se como resultado a mudança de visão ju-
risprudencial no que concerne ao uso do homem médio como parâmetro de com-
portamento a ser seguido quando da confrontação do réu em sua conduta.
Ora, conforme alhures demonstrado pelo pensamento de Becker, quem
julga um determinado comportamento como desviante é a sociedade, eivada de
valores genéricos e até mesmo contraditórios, construtoras de regras específicas.
A observância do caso concreto, com as vicissitudes oriundas de problemas
sociais, econômicos, políticos, dentre outros, devem constar no julgamento do
comportamento de determinado suposto criminoso, desde a tipicidade, trans-
passando por excludentes de ilicitude, bem como pela consideração de inexigi-
bilidade de conduta diversa.
Na tese de lançar mão do homem médio como parâmetro a ser seguido,
deve o julgador realizar uma atividade de investigar a realidade vivida pelo agen-
te objeto de análise, desmiuçando os detalhes sociais, econômicos, e mesmo
políticos, para efetivar um escorreito juízo de valor a respeito da pessoa e da
conduta do agente delitivo.
Portanto, verifica-se que há mudança no entendimento doutrinário e juris-
prudencial a respeito do tema, buscando-se cada vez mais a análise pormenori-
zada do indivíduo acusado de um crime e as perspectivas sociais e econômicas
que norteiam o seu agir, o que pode ter como plano de fundo a teoria alavancada
por Becker.
268
REFERÊNCIAS
BRAGA, Luiz Felipe Nobre. A morte do homem médio. In: Âmbito Jurídico, Rio
Grande, XIII, n.º 82, nov. 2010. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.
com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8668> Aces-
so em set. 2017.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral (Arts. 1.º ao
120). 4 ed. Salvador: JusPODIVM, 2016.
___________. Manual de Direito Penal: parte especial (Arts. 121.º ao 361). 7 ed.
Salvador: JusPODIVM, 2015.
269
jusbrasil.com.br/artigos/326172116/inexigibilidade-de-conduta-diversa-como-
-causa-supralegal-de-exclusao-da-culpabilidade> Acesso em 20 de setembro de
2017.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 17 ed. Rio de Janeiro: Edi-
tora Impetus, 2015.
270
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UTOPIA DA
SOCIEDADE DE RISCO, MARCA DA MODERNIDADE
LÍQUIDA OU IDEIA DEMOCRÁTICA VÁLIDA?
SUSTAINABLE DEVELOPMENT: UTOPIA OF THE RISK SOCIETY, MARK
OF THE LIQUID MODERNITY OR VALID DEMOCRATIC IDEA?
Timóteo Ágabo Pacheco de Almeida 1
271
democrático e voltado, prioritariamente, à tutela ambiental, perde por completo
sua finalidade e sua essência.
PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento sustentável. Sociedade de Risco.
Modernidade Líquida.
ABSTRACT: There is no doubt that, in the modern social context, sustain-
able development is an idea that is present in the most heated legal discussions.
The concept attempts to unite two seemingly incompatible worlds: human tech-
nological development, marked by the high amount of waste produced and the
need of constant consumption of environmental assets, and the sustainability
of the environment in which we live. The present article sought to analyze this
paradox and to associate it with the ideas of the risk society and the premises of
liquid modernity, which permeate the studies on contemporary sustainability.
In a society of risk, as Ulrich Beck teaches, the idea is mixed with several social
factors in constant shock, which permeate the tenuous line of risks inherent in
the social life. As if that were not enough, with the fluidity of modern times,
the notion of what is ‘sustainable’ seems to be relativized in time and space. All
this leads to a final question: would sustainable development be a valid and de-
mocratic idea? Or is it just a covert utopia? In this context, the present article
approached the mentioned points, in own topics, drawing connections between
the themes and, finally, establishing a brief conclusion on the relevant thematic
exposed, in the sense that this principle, if not thought in a democratic way and
aimed, primarily, to the environmental protection, loses completely its purpose
and essence.
KEYWORDS: Sustainable development. Society of Risk. Liquid Modernity.
INTRODUÇÃO
272
Não demorou muito, todavia, para que o mencionado modelo fosse colo-
cado em xeque, mormente devido aos catastróficos eventos ao redor do planeta,
que apenas comprovavam que a prática empresarial puramente exploratória se
portava, ao fim e ao cabo, como autodestrutiva e tendente ao pleno esgotamento
dos recursos naturais mundiais.
Nesse emaranhado de fatores colidentes, difundiu-se, especialmente a par-
tir de 1972, o protagonismo do Direito Ambiental. Nos dizeres de Romeu Tho-
mé, “a Conferência de Estocolmo Sobre o Meio Ambiente Humano pretendeu
marcar a inserção dos Estados no âmbito de um debate global sobre o ambiente
no mundo” e, diante de tal influência, “surgia a noção de desenvolvimento so-
cioeconômico em harmonia com a preservação do meio ambiente, mais tarde
batizada de ‘desenvolvimento sustentável’” (2016, p. 41-42).
Entretanto, não tardou muito para que acordos e convenções internacio-
nais esculpidos no aparentemente forte alicerce do desenvolvimento sustentável
começassem a ser questionados. Isso porque, como uma das principais marcas
dos tempos modernos, o risco faz-se intrínseco à própria ideia de desenvolvi-
mento, pois este não evolui sem inovação, a qual se amolda aos diversos matizes
dos riscos científicos e sociais. Desse modo, a Sociedade de Risco, como retrata
Ulrich Beck, recebe destaque, representando uma nova forma de organização
social, distinta da sociedade industrial clássica, e distanciando a modernização
simples da modernização reflexiva. Segundo o autor, os riscos econômicos, po-
líticos, sociais e ambientais ganham tamanha proporção que acabam por trans-
bordar a clássica tutela das instituições de controle. E mais, é o próprio avanço
técnico-econômico o principal causador destes fatores. A modernização vê em
si mesma a principal vilã, em um processo autofágico que impede que diversos
riscos, como os ambientais, sejam diminuídos, enquanto o desenvolvimento se
apresentar como diretriz permissiva daqueles.
Em outros tempos, mas de modo similar, Zygmunt Bauman retrata que
o ser humano sofre dos males da volatilidade de ideias, princípios e definições.
Vivemos em tempos líquidos, nada foi feito para durar: com tal explanação o
autor, expoente da sociologia humanística, introduz a sua principal teoria, a sa-
ber, a modernidade líquida. Segundo esta, vivemos tempos “líquidos e voláteis”,
uma era dinâmica que suplantou a modernidade sólida, marcada por ideias bem
definidas, não volúveis e raramente relativizáveis. Não por outro motivo, o autor
ensina que o mundo atual faz-se repleto de sinais confusos, propenso a mudar
273
com rapidez e de forma imprevisível. Essa imprevisibilidade dificulta ainda mais
a efetivação do desenvolvimento sustentável, não por apenas volatilizar seus pro-
pósitos finais, mas também por tornar fluida sua exata conceituação.
Desse modo, destaca-se a indagação sobre a pertinência e funcionalidade
dos ideais pregados pelo desenvolvimento sustentável, ou, no mínimo, sobre a
atualidade de suas premissas, que parecem se tornar estanques, numa realidade
dinâmica. Porém, para que se examine criticamente essa problemática, surge, ab
initio, um questionamento nuclear ao tema: No que consistiria o sistema capita-
lista contemporâneo?
274
Não obstante, com o processo mundial de globalização, a definição de ca-
pital – antes vinculada à “mais valia” marxiana – restou mais confusa e, nas pa-
lavras de Bauman, muito mais volátil e líquida. A inovação e a expansão da rede
mundial de computadores ocasionaram a miscigenação de ideias, oriundas de
pontos globais distintos, e a crescente necessidade de consumo no itinerário so-
cial do ser humano. Nesse cenário, Gilles Lipovetsky (2007), em seu estudo cien-
tífico sobre a felicidade na contemporaneidade, delineia a influência do citado
fator, ao aclamar estar-se diante de uma nova “era do hiperconsumo”, comparan-
do os tempos modernos com a mitológica figura do deus Dionísio, responsável
pela distribuição de alegrias em abundância à humanidade e pela incitação ao
pleno gozo de vida.
No mesmo sentido, Fabio Scorsolini-Comin (2008, p. 203) afirma que o
ethos de alegria, no contexto do sistema capitalista moderno, “foi redescoberto
pelo homem atual, insistindo na nova cultura cotidiana, que presta culto às sen-
sações imediatas, aos prazeres do corpo e dos sentidos, às volúpias do presente”.
Como consequência, isso ocasiona um retorno ao carpe diem do romantismo e
ao próprio hedonismo clássico; olvidando-se que o princípio de vida hedonista
sempre repercutia em temores sociais e insegurança, fatores que geram liquidez
nas relações sociais – tidas como sólidas na Era Clássica – e acentuam a socieda-
de de risco narrada por Beck.
275
Ao trazer a mesma problemática para a análise das desigualdades verifi-
cadas no livre mercado, elemento expoente das modernas mazelas capitalistas,
Michael J. Sandel (2012, p. 109) aduz que:
276
graves consequências ao bem-estar planetário, especialmente à saúde humana e
aos principais recursos naturais presentes no meio ambiente terrestre. Ademais,
tais riscos ainda se apresentam com origens e causas desconhecidas a longo pra-
zo e, mesmo quando descobertas, já irreversíveis.
Explanando o ideário de Beck, Júlia S. Guivant (2001, p. 95) ressalta que:
Entre esses riscos, Beck inclui os riscos ecológicos, químicos, nucleares e gené-
ticos, produzidos industrialmente, externalizados economicamente, individuali-
zados juridicamente, legitimados cientificamente e minimizados politicamente.
Mais recentemente, incorporou também os riscos econômicos, como as quedas
nos mercados financeiros internacionais.
Com razão, essa sociedade seria definida pelos principais traços da con-
temporaneidade, composta por um leque de riscos inerentes às mais diversas
atividades sociais, os quais gerariam “uma nova forma de capitalismo, uma nova
forma de economia, uma nova forma de ordem global, uma nova forma de so-
ciedade e uma nova forma de vida pessoal” (BECK, 1999, p. 2-7).
Não por outro motivo, a própria definição de Sociedade de risco se entre-
laça com os nuances introduzidos no meio social pela globalização. Outra inte-
ressante característica é que tais riscos são transfronteiriços, pois não obedecem
a barreiras ou limites geográficos. Usualmente também se apresentam como de
abrangência democrática, afetando distintas classes sociais, muito embora em
proporções distintas.
Ulrick Beck, influenciado pela crise ambiental mundial que se propagou
em maior escala no planeta a partir da década de 1980 – cujo principal exemplo
até hoje repercute nos arredores de Chernobyl –, além de outros fatores políticos
e sociais, como o fracasso do socialismo e a queda de Muro de Berlim, assimi-
lou-os com os exponenciais avanços tecnológicos ao perceber uma constante
nuclear: tal como a sociedade industrial suplantou o regime feudal, a sociedade
de risco está eliminando a primeira.
A primeira passagem, chamada pelo autor de modernização simples ou
modernização da tradição, abriu espaço para a segunda transição: a moderni-
zação reflexiva.
Os riscos passam, então, a repercutir nos campos políticos, econômicos,
sociais e ambientais. Não apenas repercutem, como são elevados a graus cada vez
277
mais altos, com ofertas e demandas em grande porte. Assim, à guisa de exemplo,
tem-se como insuficiente a oferta oferecida pelas pequenas bases de abasteci-
mento, as quais devem ceder espaço para as volumosas incursões petrolíferas.
Não é, portanto, difícil perceber que o avanço tecnológico acabou por gerar esses
riscos, os quais se mostram incontroláveis pelos entes e instituições de contenção
da sociedade moderna, inclusive no que tange aos recursos ambientais.
Como resultado, a modernização aparenta voltar-se contra si mesma, em
um processo de implosão; uma modernização de efeitos reflexivamente nefas-
tos. Beck vai além e leciona que fatores antes vistos como matrizes da socieda-
de clássica – família, casamento etc. – começam a ser liquefeitos e substituídos,
perdendo seu protagonismo na sociedade de risco. Surge, também, o efeito boo-
merang, pelo qual os riscos deixam de afetar tão somente as classes mais pobres,
que ainda são seus principais alvos, e passam a lesar diretamente até mesmo os
indivíduos com privilégios de mercado, como aqueles que fabricam, produzem,
comercializam e/ou se beneficiam destes mesmos riscos.
Na seara jurídica, a questão ganha maior relevo com o surgimento do Prin-
cípio da Precaução. Nos moldes deste, deve-se sempre buscar evitar o dano am-
biental, ainda que a conduta potencialmente lesiva não possua consequências
danosas pré-determinadas; ou, em breves palavras, mesmo que os riscos, espe-
ráveis à atividade, ainda não sejam conhecidos.
Internacionalmente, o marco normativo da mencionada ideia se deu com a
Conferência do Rio, de 1992, que delineou, em seu Princípio 15, verbis:
Princípio 15
Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser
amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando
houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científi-
ca absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas eco-
nomicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental (grifos nossos).2
278
Art. 1.º Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização
sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a trans-
ferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercia-
lização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos
geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o
estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a pro-
teção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio
da precaução para a proteção do meio ambiente (g. n.).3
Nesta simultaneidade, estão presentes três tipos de ameaças globais, que podem se
complementar e acentuar entre si: 1) aqueles conflitos chamados bads: a destrui-
ção ecológica decorrente do desenvolvimento industrial, como o buraco na ca-
mada de ozônio, o efeito estufa e os riscos que traz a engenharia genética para
plantas e seres humanos; 2) os riscos diretamente relacionados com a pobreza,
279
vinculando problemas em nível de habitação, alimentação, perda de espécies e da
diversidade genética, energia, indústria e população; 3) os riscos decorrentes de
NBC (Nuclear, Biological, Chemical), armas de destruição de massas, riscos que
aumentam quando vinculados aos fundamentalismos e ao terrorismo privado. O
relevante desta classificação é mostrar que não existem riscos globais como tais,
mas que eles estão permeados por conflitos em torno de questões étnicas, nacio-
nais e de recursos, os quais têm lugar desde o fim do confronto Oriente/Ocidente
(grifos nossos).
280
gerando um mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez
e de forma imprevisível.
O autor resume essa inconstância, ao afirmar que:
São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos
selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar
depois guiar, que estão cada vez mais em falta. Isso não quer dizer que nossos
contemporâneos sejam livres para construir seu modo de vida a partir do zero e
segundo sua vontade, ou que não sejam mais dependentes da sociedade para ob-
ter as plantas e os materiais de construção. Mas quer dizer que estamos passando
de uma era de ‘grupos de referência’ predeterminados a uma outra de ‘comparação
universal’, em que o destino dos trabalhos de autoconstrução individual (…) não
está dado de antemão, e tende a sofrer numerosa e profundas mudanças antes
que esses trabalhos alcancem seu único fim genuíno: o fim da vida do indivíduo
(BAUMAN, 2001).
281
meio da negação de tais responsabilidades, da relativização de sua imprescindi-
bilidade ou, apenas, do total descaso para com estas. Em síntese, esse indivíduo,
perdido na modernidade líquida, começa a sofrer de uma “impotência social”.
Desse modo, questões de grande monta, como a preocupação com a tutela
ambiental e sua preservação contra nefastos e crescentes atos humanos lesivos ao
meio ambiente, muitas vezes se perdem nesse emaranhado de fluidez, resultan-
do em um punhado de argumentos vazios e desculpas insólitas. Não por menos,
o próprio autor afirma que ainda estamos em uma sociedade líquida, mas em
que nascem sonhos de uma sociedade menos líquida.
O indivíduo, por consequência, deixa de ter seu próprio lugar na socieda-
de, passa a ocupar “lugar nenhum” e busca incansavelmente alcançar um status
que, de fato, não possui qualquer noção de qual seja. Tiago de Oliveira Fragoso
(2011, p. 110) sintetiza a problemática, ao descrever que:
282
existentes no planeta? Seria o discurso da autopreservação ainda eficaz contra a
total apatia que persegue a atualidade?
Esse grão de poeira cósmica é um mundo. Mundo por muito tempo desconhecido
dos homens que não obstante haviam recoberto o planeta há várias dezenas de
milhares de anos ao se separarem uns dos outros. A exploração sistemática da
superfície da Terra efetuou-se ao mesmo tempo que se desenvolveu a era pla-
netária, e dela expulsou paraísos, titãs, gigantes, deuses ou outros seres fabulosos,
para reconhecer uma Terra de vegetais, de animais e de humanos. A partir do
século XVIII, a investigação científica penetra os subsolos terrestres e começa a
estudar a natureza física do planeta (geologia), a natureza de seus elementos (quí-
mica), a natureza misteriosa de seus fósseis (paleontologia). A existência da Terra
não é mais apenas de superfície, mas de profundidades. Ela não é mais estática, é
evolutiva. Descobre-se que a Terra tem uma história (...). A Terra é um pequeno
cesto de lixo cósmico transformado de maneira improvável não apenas num
astro muito complexo, mas também num jardim, nosso jardim. A vida que ela
produziu, da qual ela usufrui, da qual usufruímos, não surgiu de nenhuma neces-
sidade a priori. Ela é talvez única no cosmos, é a única no sistema solar, é frágil,
rara, e preciosa por ser rara e frágil (2002, págs. 49-66 (grifos nossos).
283
to sustentável’ põe em dialógica a ideia de desenvolvimento, que comporta aumen-
to das poluições, e a ideia de meio ambiente, que requer limitação das poluições”.
No entanto, para que se logre alcançar uma real percepção do problema
exposto, faz-se mister uma breve análise histórica do que seria esta ideia, poste-
riormente elevada a valor e hoje consagrada mundialmente como princípio – na
maioria dos ordenamentos jurídicos, de estatura constitucional –, qual seja, a
ideia de um desenvolvimento mundialmente sustentável.
284
Nesse ínterim, o grande mérito da Conferência de Estocolmo, de 1972, foi
levantar mundialmente a bandeira da tutela ambiental como questão fundamen-
tal de discussão nas mesas jurídicas, sociais e políticas planetárias, sob pena de,
com o passar do tempo e a majoração dos danos ambientais em largo espectro,
o ser humano se autodestruir, como o lobo do próprio homem, premissa profe-
tizada por Thomas Hobbes há séculos.
Nos dizeres de Moacir Gadotti (2000, p. 105), em Pedagogia da Terra, com
a aludida Conferência houve não apenas a inauguração da temática, mas tam-
bém um destacado protagonismo da matéria ambiental.
O mesmo autor retrata aquele contexto, aduzindo que:
Foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Estocol-
mo, julho de 1972), que introduziu, pela primeira vez na agenda internacional, a
preocupação com o crescimento econômico em detrimento do meio ambiente.
Pela primeira vez, percebeu-se que o modelo tradicional de crescimento econô-
mico levaria ao esgotamento completo dos recursos naturais, pondo em risco a
vida no planeta (...). O principal resultado desta Conferência foi a Declaração so-
bre o Ambiente Humano, conhecida como a Declaração de Estocolmo, sustentan-
do que ‘tanto as gerações presentes como as futuras tenham reconhecidas, como
direito fundamental, a vida num ambiente sadio e não degradado’. A Conferência
de Estocolmo é considerada um divisor de águas no despertar da consciência eco-
lógica. Todavia, é preciso reconhecer que ‘nem a publicação do Clube de Roma,
nem a Conferência de Estocolmo caíram do céu. Elas foram consequências de
debates sobre os riscos da degradação do meio ambiente que, de forma esparsa,
começaram nos anos 60 e ganharam no final dessa década e no início dos anos 70
uma certa densidade, que possibilitou a primeira discussão internacional culmi-
nando na Conferência de Estocolmo em 1972’ (...) (grifos nossos).
285
O ideal vingou, sendo retornado em outros tratados, convenções e con-
ferências internacionais, como a destacada Conferência do Rio, de 1992 (ECO
92). Nesta, foi elaborada e publicada e Declaração do Rio sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento, a qual esmiuça, dentre os seus destacados princípios, que:
Princípio 1
Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento
sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a
natureza. (...)
Princípio 4
Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá
parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada
isoladamente deste.
Princípio 5
Para todos os Estados e todos os indivíduos, como requisito indispensável para
o desenvolvimento sustentável, irão cooperar na tarefa essencial de erradicar a
pobreza, a fim de reduzir as disparidades de padrões de vida e melhor atender às
necessidades da maioria da população do mundo. (...)
Princípio 8
Para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma qualidade de vida mais
elevada para todos, os Estados devem reduzir e eliminar os padrões insusten-
táveis de produção e consumo, e promover políticas demográficas adequadas.
(...)
Princípio 27
Os Estados e os povos irão cooperar de boa fé e imbuídos de um espírito de par-
ceria para a realização dos princípios consubstanciados nesta Declaração, e para
o desenvolvimento progressivo do direito internacional no campo do desenvolvi-
mento sustentável (grifos todos nossos).
286
realização da referida Conferência, mas já inspirado nas premissas ambientais
propagadas desde o surgimento do conceito, o Poder Constituinte de 1988 asse-
gurou que constasse em nosso Texto Constitucional, ainda que sob outro nomen
juris, a salvaguarda expressa e necessária à tutela, defesa e promoção do desen-
volvimento sustentável.
O Legislador Constituinte procedeu de tal forma que não apenas o previu
no contexto da preservação ambiental, marcadamente presente no Art. 225, da
CRFB/88, como também o assegurou no bojo do Art. 170 da mesma Carta, que
expõe os princípios que devem dirigir toda a ordem econômica. Tais dispositi-
vos assim prescrevem:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Po-
der Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações.
§ 1.º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo eco-
lógico das espécies e ecossistemas;
II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fisca-
lizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus com-
ponentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão per-
mitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a in-
tegridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
287
IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente
causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impac-
to ambiental, a que se dará publicidade;
V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e
substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio am-
biente;
VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscienti-
zação pública para a preservação do meio ambiente;
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem
em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam
os animais a crueldade.
Logo, por mais de uma vez, conforme os grifos destacados nos dispositivos
supra, busca a Constituição da República: (a) destacar a essência dos conceitos
ambientais de primeira prioridade; (b) assimilar a preocupação com a preserva-
ção do meio ambiente às diretrizes do próprio sistema econômico; (c) destinar
os deveres de defesa e preservação às presentes e futuras gerações, expondo o ca-
ráter intergeracional do desenvolvimento sustentável e (d) destacar a incumbên-
cia de primordial controle dos meios de produção, comercialização e emprego
das demais técnicas e métodos do sistema capitalista, “que comportem risco para
a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”.
Resta, portanto, nítida a prudência constitucional em zelar pelo princípio
em voga. Porém, a despeito da louvável medida de elevar-se a norma à estatura
protetiva constitucional – não apenas no Brasil, como também na maioria dos
ordenamentos jurídicos mundiais –, a positivação daquela não solucionou sua
colisão com a crescente exploração do capital ao redor do planeta e, consequen-
temente, com a majoração da poluição em graus, lugares e formas distintas.
Dessa constatação fática, emana a inevitável indagação: seria o desenvolvi-
mento sustentável um freio à poluição mundial, a solução para o evitamento de
catástrofes mundiais, ou um mero discurso legitimador de uma poluição atual,
dessa vez ‘legitimada’ e ‘regulamentada’ pela regra do “pode-se poluir, desde que
seja de modo sustentável”?
288
4.2 Premissa de Preservação Ambiental ou Mito Dissimulado?
Desenvolvimento sustentável
(1) O uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade
de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações
futuras.
(2) Forma socialmente justa e economicamente viável de exploração do ambien-
te que garanta a perenidade dos recursos naturais renováveis e dos processos
ecológicos, mantendo a diversidade biológica e os demais atributos ecológicos
em benefício das gerações futuras e atendendo às necessidades do presente
(2015, p. 282).
289
Devido a tais motivos, a volatilidade da modernidade líquida ganha espa-
ço, gerando a relativização de preceitos fundamentais de defesa ambiental, como
a permissão para poluir, desmatar ou degradar à vontade, desde que haja o res-
sarcimento em dinheiro; ou mesmo o discurso da ‘vital’ necessidade da explora-
ção dos recursos naturais para a existência humana – como se o lucro obtido por
alguns fosse realmente mais imprescindível do que a sobrevivência dos recursos
planetários básicos à vida de todos.
Quando não, essa liquidez também se apresenta nas mentes do poluidor
indiferente, figura presente nas sociedades mundiais, culminando na sua total
apatia à problemática ambiental. Este, ao virar suas costas à árdua realidade
ecológica, não apenas ignora a lesividade de diversas condutas nocivas ao meio
ambiente, ou mesmo nega seus efeitos mais óbvios, como também as pratica
rotineiramente, fundamentando-se nos mais variados e incorretos motivos. É o
clássico exemplo do jovem que, após ingerir sua bebida, joga a lata de alumínio
na via urbana, afirmando estar “dando trabalho” aos funcionários públicos de
limpeza. Eis a fluidez dos valores mais básicos!
De outro lado, o empresário também ignora, em seu cotidiano, a realidade
da sociedade de riscos dos dias atuais. Ao assim proceder, descumpre inúmeras
normas de proteção ambiental, aplicáveis na atividade comercial e industrial,
buscando, com isso, poupar custos de produção e melhorar seu lucro final.
Não há, nesse cenário, como se alegar surpresa ou desconhecimento, quan-
do da ocorrência de grandes desastres ambientais, como a recente tragédia em
Mariana, na bacia hidrográfica do rio Doce, que foi tomada por tóxicos resíduos
sólidos e hídricos, devido ao rompimento de uma barragem que – a despeito
da permanente fiscalização e dos constantes clamores do Ministério Público e
demais entidades responsáveis – demonstrou o inaceitável descaso dos seus pro-
prietários, na previsão e contenção de riscos inerentes à atividade.
Riscos não previstos, perigos não evitados, conceitos fluidos relativizados
e uma consciência muito mais exploratória do que ecologicamente planetária
vêm, dia após dia, minando forças dos maiores defensores do desenvolvimen-
to sustentável. Como exemplo, os tratados ambientais mostram-se como os de
mais difícil implemento e execução prática.
Luís Paulo Sirvinskas (2017), a par dessa problemática, expressa certa pre-
ferência pela superação dessa definição técnica, haja vista que “desenvolvimento
provém da área da economia dominante. Já sustentabilidade provém da biologia.
290
São expressões contraditórias e inconciliáveis” (p. 143). Como solução a essa
dicotomia, o autor apresenta a superação da colisão com o incremento da sus-
tentabilidade na própria cadeia da atividade econômica de base, ao narrar que:
Todos os humanos estão ameaçados pela morte nuclear e a morte ecológica. To-
dos os humanos sofrem a situação agônica da transição do milênio. Precisamos
fundar a solidariedade humana não mais numa ilusória salvação terrestre,
mas na consciência de nossa perdição, na consciência de nossa pertença ao
complexo comum tecido pela era planetária, na consciência de nossos problemas
comuns de vida ou de morte, na consciência da situação agônica de nosso fim de
milênio (...) Somos solidários desse planeta, nossa vida está ligada à sua vida.
Devemos arrumá-lo ou morrer (2002, p. 186) (grifos nossos).
291
Desse modo, tal solução alternativa vai mais a fundo, modificando o sus-
tentáculo da própria semântica social, intrínseca à ideia de desenvolvimento sus-
tentável. Isso porque, para sua execução, os fundamentos do regime capitalista
precisam ser alterados. Para que a solidariedade humana seja adotada nas práti-
cas econômicas, acima do lucro individual e da atividade comercial exploratória,
deve sempre estar presente o foco na preservação ambiental.
Por conseguinte, a noção de mercado também seria afetada. À guisa de
exemplo, na atualidade, aquele que descumpre normas ambientais costumase
beneficiar economicamente disso, por ver-se livre de um leque de ‘burocracias’,
ônus e deveres legais, que restringiriam sua atividade, a fim de que a sustentabi-
lidade ambiental fosse, ao fim, assegurada.
Sob a ótica de Morin, a própria consciência humana, ainda muito influen-
ciada pelas clássicas lições capitalistas do lucro como fim maior, deve evoluir
para uma consciência planetária, banhada pela premissa da solidariedade, de
modo a que não haja mais quem se beneficie de poluições, mas que todos se
beneficiem conjuntamente e em solidariedade, ainda que em menor grau, a fim
de que nosso planeta possa subsistir e ter sobrevida.
Há ainda outras teorias que buscam explicar a citada colisão, ora negando
a possibilidade de coexistência dos dois elementos – desenvolvimento e susten-
tabilidade –, ora buscando harmonizá-los. Fato é que, nos dias atuais, é utópico
afirmar-se que alcançamos o grau esperado de miscigenação entre progresso e
preservação ambiental. Afinal, como seria possível se concluir dessa forma, se
mais de 5.200 (cinco mil e duzentas) espécies de animais encontram-se ameaça-
das de extinção, com a perspectiva, assustadoramente tida como otimista, de um
total de extinção de pelo menos 10 (dez) espécies da fauna mundial por ano? 4
Como igualmente defender-se que a sustentabilidade hoje seja uma preo-
cupação do sistema capitalista de produção, se, a cada ano, segundo a Organiza-
ção Mundial de Saúde, a poluição mata mais de 1,5 milhão de crianças ao redor
do globo terrestre?
De fato, não é preciso expertise temática para que se note que não logramos
ainda alcançar o apresentado por Sirvinskas, tendo em vista que o lucro – que
ainda hoje legitima a ocorrência mínima de quaisquer despesas no processo de
produção, o que, por certo, finda por incluir as de cunho ambiental –, elemento
292
central e clássico do sistema capitalista, sobrepuja-se às preocupações com a saú-
de ambiental do planeta. Em claras palavras, a sustentabilidade não apenas não
se mostra componente do processo industrial e comercial, como também é vista,
muitas vezes, como fator negativo a ser evitado nessas atividades.
Sem embargo, muito mais longe mostra-se estar da solidariedade ambien-
tal global, rememorada por Morin, uma vez que, ao contrário do que deveria ser,
os bônus são monopolizados, mas os ônus da exploração ambiental terminam
sendo democratizados e distribuídos a toda a sociedade global, afetando, de for-
ma mais intensa, as camadas mais pobres. Ironicamente, apenas a poluição, no
resultado final de todo esse processo, termina por se tornar solidarizada entre os
cidadãos mundiais.
CONCLUSÃO
293
um descaso ou apatia com as consequências imprevisíveis e a agonia da incerte-
za quanto a fatores da existência humana.
Tudo isso deságua na definição do princípio do desenvolvimento sustentá-
vel. Isso porque, em tese, na sociedade delineada por Beck, os riscos instáveis e
crescentes tornariam o referido desenvolvimento sustentável uma utopia, visto
que, cada vez que fossem definidos seu conceito e sua abrangência, o surgimento
de novos riscos, inerentes ao meio de produção capitalista e à crescente explora-
ção econômica, levaria à defasagem da norma em voga.
Do mesmo modo, a liquidez da modernidade em que vivemos, marcada
pela imprecisão de valores e ideais, daria margem, por um lado, à incerteza sobre
o real conceito de sustentabilidade nos tempos modernos – especialmente pelo
discurso, defendido por alguns atores do mercado, de que a sustentabilidade é,
de fato, inimiga do crescimento econômico. Por outro lado, a mesma fluidez
legitimaria que o princípio fosse mitigado e diminuído, ano após ano, a ponto de
perder por completo sua essência e finalidade, tal como ocorre, em semelhança
não meramente coincidente, com a diminuição anual de reservas ambientais e
unidades de conservação, em detrimento da atividade agropastoril.
Além de toda essa problemática e a par de sua relevância teórica, sabida-
mente inquestionável, a norma ainda sofre fortes críticas, seja pela aparente im-
precisão de termos colidentes no mesmo ideário comum, seja pela fraquíssima
efetividade, diante de seu desestímulo e descrédito por parte de grandes expoen-
tes políticos e econômicos do planeta. Como consequência, caso não seja eleva-
da à importância merecida e efetivada em todas as searas, inclusive dentro dos
grandes salões industriais, a norma tende a se limitar ao campo das ideias, sem
ter a força normativa e a coercitividade que lhe seriam necessárias.
Todavia, a especializada doutrina apresenta resoluções a tal inquietude,
sem que, com isso, tenha-se que abdicar do princípio. A inclusão da preserva-
ção ambiental no próprio processo capitalista de produção e a elaboração de
uma consciência planetária, fincada na solidariedade humana ambiental, são
exemplos que buscam responder ao problema, concretizando o ideário final da
norma.
Se adicionada a variável ambiental aos processos de produção, como defen-
de Sirvinskas, ou, indo mais além, caso incorporado o princípio do desenvolvi-
mento sustentável à própria consciência planetária, como fim a ser alcançado em
todas as atividades humanas, tais como as industriais e as econômicas, em ideia
294
defendida por Morin, boa parte dos riscos ambientais da sociedade de riscos de
Beck poderiam ser diminuídos e a fluidez da modernidade líquida de Bauman
possuiria, pelo menos, uma base sólida: o compartilhamento solidário e mun-
dial da preservação ambiental, como prioridade do cidadão planetário.
A bem da verdade, sabe-se que o ser humano ainda não está diante deste
nível de maturidade e de cidadania planetária, necessário à efetivação de tais
ideias. Porém, o desenvolvimento sustentável já representa uma força inibitória
das mazelas ambientais, bem como uma premissa incentivadora do debate a res-
peito de sua relevância.
Seu enfoque prestigia o desapego ao preconceito e à subvalorização do
tema, cuja abrangência, na atualidade, apresenta forte semelhança com a ideia
dos imperativos categóricos de Kant, ou seja, o meio ambiente não pode mais ser
visto como um simples instrumento para se alcançar o lucro, mas, no âmago do
desenvolvimento sustentável, como uma variável presente e relevante em todas
as condutas humanas, visando-se a autopreservação.
A ideia se destaca, sem dúvida, como uma das últimas opções de resposta
à mencionada autodestruição do ser humano, para que este aprenda a priorizar
a tutela ambiental acima do lucro exploratório e, quiçá, logre êxito em preservar
sua “única casa planetária”, antes de definitivamente perdê-la.
REFERÊNCIAS
295
GUIVANT, Júlia S. A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entre o diagnós-
tico e a profecia. Disponível em: <http://r1.ufrrj.br/esa/V2/ojs/index.php/esa/
article/view/188> Acesso em 26.9.2017.
MILARÉ, Édis. Dicionário de Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2015.
MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. 3 ed. Porto Alegre: Sulina,
2002.
SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução por Heloísa
Matias e Maria Alice Máximo. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
SILVA, Romeu Faria Thomé da. Manual de Direito Ambiental – 6 edição rev.
ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2016.
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 15 ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2017.
296
A VISÃO DE NORBERTO BOBBIO NA SOLUÇÃO DE
ANTINOMIAS ENTRE A LEI INDÍGENA E A LEI PÁTRIA
Carlos Antonio de Carvalho Mota Júnior1
Maria Nazareth Vasques Mota2
1 CARLOS ANTONIO DE CARVALHO MOTA JR. Mestre em Direito Ambiental – PPGDA/UEA, especialista
em Direito Processual Civil/Ciesa. Advogado.
2 MARIA NAZARETH VASQUES MOTA. Doutora em Ciências Políticas – PUC/SP, mestre em Ciências
Penais/Ucam–RJ, especialista em Direito Público e Privado – FGV/Isae/AM e em Direito Penal e Pro-
cessual Penal − UFAM/AM.
297
indigenouos policies gained importance in the context of the protection of the
traditional tribes and communities culture.
Norberto Bobbio studied the judicial systems and scientifically developed
methods for policy conflicts, including between different legal frameworks. The
present article will investigate the solution found by Bobbio and verify if it cor-
rectly applies to the problem of conflicts between western and tradicional norms.
KEYWORDS: Federal Constitution of 1988. Antinomies. Indigenous Law.
Customary Law. Norberto Bobbio.
INTRODUÇÃO
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens
(C.F., Art. 231).
298
No caso de conflito entre norma indígena e norma pátria caberiam as solu-
ções de antinomias propostas por Norberto Bobbio para se resolvê-las?
299
A título exemplificativo, veja-se a Constituição da Bolívia (2009), em que há trata-
mento do direito indígena em 80 dos 411 artigos. Ressalte-se os seguintes direitos:
cotas para parlamentares que sejam oriundos dos povos indígenas; garantia de
propriedade exclusiva da terra, recursos hídricos e florestais pelas comunidades
indígenas; equivalência entre a justiça indígena e a justiça comum. Todas essas
alterações positivam os valores propostos pelo novo constitucionalismo: plura-
lidade, inclusão, participação efetiva e maior legitimidade da Constituição e da
norma jurídica (ALVES, 2012, p. 142).
300
3. TIPOS DE ANTINOMIA
301
praeter legem, nunca contra legem, sendo esta a solução apresentada pelo reno-
mado jurista.
Então ao menos teoricamente, na visão do renomado jurista, uma norma
jurídica indígena não poderá prevalecer sobre uma norma jurídica escrita em
nosso ordenamento, o que ficará resolvido em nosso ordenamento com o julga-
mento da ação sobre o bloqueio noturno por imposição indígena na Br. 174 em
trecho de reserva no Estado de Roraima.
Para o caso de ordenamentos onde o costume tem mais força, Bobbio lem-
bra que pode ser adotado o critério cronológico ou o da especialidade, como era
solucionado nos antigos direitos romano, inglês e medieval, onde ao costume era
atribuído peso maior que o da lei, e a única forma de uma lei prevalecer sobre o
costume seria por meio dos critérios mencionados.
Além do critério de as normas incompatíveis estarem no mesmo ordena-
mento para ser considerada antinomia, Bobbio informa que ambas devem pos-
suir o mesmo âmbito de validade, que segundo ele são os quatro, a seguir: a)Va-
lidade Temporal; b)Validade Espacial; c)Validade Pessoal; d) Validade Material.
Sendo assim, caso duas normas incompatíveis pertencentes ao mesmo or-
denamento coincidam em um ou mais dos quatro âmbitos acima, configurada
está a antinomia. Com base nessas informações, Bobbio conceituou as antino-
mias como : “(...) podemos definir a antinomia jurídica como aquela situação
entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e com
o mesmo âmbito de validade”.
Com base nos critérios acima elencados, Bobbio dividiu os tipos de antino-
mia conforme o seu âmbito de validade. Iremos, a seguir, explicitar os tipos mais
usuais de antinomias, no entendimento de Norberto Bobbio, utilizando-se dos
exemplos demonstrados pelo Mestre:
302
caso a antinomia subsiste somente para a parte em que se encontra o conflito, e
que as normas possuem em comum. Ex:
“É proibido aos adultos fumar cachimbo e charutos, das cinco às sete, na
sala cinematográfica.”, e
“É permitido aos adultos fumar charuto e cigarros, das cinco às sete, na sala
cinematográfica.”
303
das duas por uma falha na construção de mais harmonia entre ambas, o que
Bobbio considerou mais uma lacuna do que uma antinomia propriamente dita.
Um exemplo de antinomia teleológica seria a citação por carta, posto que
esta pode ser recebida por pessoa diversa da real destinatária da citação, não
garantindo a finalidade da citação pessoal, posto que a pessoa que recebeu pode
não informar àquela que se pretendía citar. Poderíamos citar normas da Funai
que em tese desagradariam alguns líderes indígenas e agradariam a outros, nor-
mas emitidas pelo órgão com a finalidade estatutária de defender seus direitos.
As antinomias de valoração demonstram inconsistências (não incompati-
bilidades de per si) axiológicas dentro de um mesmo ordenamento, exemplifica-
das pelo renomado estudioso com o Direito Penal, quando o legislador confere
determinada sanção a um delito de gravidade inferior, e uma sanção mais leve
para delito visivelmente mais grave, implicando em verdadeira injustiça.
Igualmente em nosso Direito Penal podem ser encontradas antinomias de
valoração, podendo ser citado o exemplo do crime previsto do Art. 159, § 2.º do
CP, qual seja, extorsão mediante sequestro, se do fato resulta lesão corporal de
natureza grave, apenado com 16 a 24 anos, perfazendo média maior do que o
crime de homicídio, cuja pena prevista é reclusão de 6 a 20 anos.
No caso de dicotomias entre o Direito pátrio e o Direito indígena, em que
um aceita a pena capital e outro não, a prática de infanticídio e penas conside-
radas degradantes por uma ou outra sociedade configuram dicotomias axioló-
gicas, pois todos eles por definição ferem outros direitos fundamentais como o
direito à vida ou o princípio da dignidade humana.
As antinomias também podem ser divididas entre reais ou aparentes, sen-
do que no caso da primeira ocorre uma contradição ou incompatibilidade que
não tem solução, conforme as regras do próprio ordenamento onde estão inseri-
das (antinomia no mesmo Código).
Em uma antinomia real, não existe solução oferecida pelo ordenamento
pois os três critérios de cronologia, hierarquia e especialidade são insuficientes
para a sua devida e definitiva solução, e quando o Poder Judiciário resolve o pro-
blema casuisticamente, apenas o faz de forma pontual, sem que a antinomia real
tenha sido eliminada do sistema.
304
4. CRITÉRIOS PARA A SOLUÇÃO DE ANTINOMIAS APARENTES
305
6. CONFLITOS DE CRITÉRIOS
CONCLUSÃO
Bobbio oferece uma solução jurídica, que, teoricamente, pode ser utilizada
na solução de conflitos entre o Direito ocidental e o indígena. Ressalte-se que a
solução oferecida não consiste em uma entronização do Direito positivo ante ao
consuetudinário, pois prevê pesos diferentes conforme o ordenamento.
Mas, ao analisar-se a legislação pátria, descobrimos fundamentos de que
o Direito Indígena (e consuetudinário por excelência em nosso país) fica em
segundo plano, pelo menos sob a ótica do próprio Direito pátrio. Não deixa de
ser previsível a declaração, por parte de um sistema de direito, sobre a sua preva-
306
lência sobre todos os outros. Será que encontraríamos normas indígenas, apre-
goando também sua superioridade sobre todos outros ordenamentos?
A solução de Bobbio guarda consonância com a proibição de atos atentató-
rios contra direitos fundamentais. É sabido da prática de infanticídio no interior
da floresta amazônica, por exemplo. A solução de conflitos com base na visão de
Norberto Bobbio não iria permitir o ato, posto que, apesar de a cultura ancestral
estar aqui há mais tempo, a sociedade ocidental entende que alguns direitos são
devidos a todos os seres humanos não importando sua etnia ou credo, direitos
estes como o direito à vida. Caberia aqui uma crítica a esta mesma sociedade,
que tem como punição prevista a capital, que fere o direito à vida.
A sociedade brasileira colhe hoje os frutos de eras de subjugação dos povos
indígenas, posto que, em busca de uma justiça histórica, procurou reaver as ter-
ras destas pessoas cujos ancestrais foram espoliados, escravizados e extermina-
dos. Essa reposição do status quo vem vindo a passos lentos, desde a criação do
SPI depois da Funai, com a alteração na forma de relação da sociedade “branca”
com os povos da floresta.
Primeiramente, o Estado procurava contatá-los com fins de integração,
posto que deveriam também os índios gozar dos benefícios da “sociedade de-
senvolvida”, com resultados desastrosos como a proliferação de doenças nas al-
deias, o empobrecimento dos indígenas, que passaram a depender do Estado, e a
alocação destes nos estratos mais inferiores da sociedade. No final do século XX,
sob a tutela do sertanista Sidney Possuelo (que chegou a exercer a presidência da
Funai), a política de não-contato foi estabelecida e agora etnias são monitoradas
à distância, sem qualquer ingerência no seu estilo de vida.
O restabelecimento dos índios em suas terras e a proteção legal do seu es-
tilo de vida não veio sem reclamações de outros setores da sociedade, que bus-
cam mitigar os seus direitos. As duas últimas administrações federais avançaram
pouco na demarcação de terras, investindo em projetos grandiosos na Amazô-
nia, que estão deslocando comunidades tradicionais e criando cidades aonde
somente havia a floresta, e com isso ocasionando grandes fluxos de imigração
de trabalhadores.
Temos no Congresso algo como uma bancada agrária que defende inte-
resses corporativos agrários em detrimento de comunidades tradicionais, o que
seria democrático se as comunidades tradicionais e os índios dispusessem de
assentos permanentes no Congresso Nacional, afinal foram eles os primeiros
307
brasileiros e hoje são uma minoria sem potencial demográfico para colocar re-
presentantes pelos modos eletivos adotados atualmente.
Outras medidas recentes, mitigadoras dos direito indígenas, seriam as con-
dicionantes para o exercício de seus direitos constitucionais, colocadas pelo STF
em verdadeira atividade legislativa de um Tribunal Superior.
Somente um índio chegou a deputado no Brasil, o cacique Juruna, em toda
a história política brasileira desde o descobrimento, sem no entanto ficar livre de
chacotas por parte da imprensa, que costumava ridicularizá-lo.
Os problemas gerados pelas incompatibilidades entre a sociedade moder-
na e a tradicional ainda estão muito longe de serem resolvidos, gerando maiores
danos para as minorias, como índios e ribeirinhos. Na ausência de ações mais
efetivas por parte do Estado, a lei do mais forte continua a viger.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIACHI, Patrícia. Eficácia das normas ambientais. São Paulo, Ed. Saraiva, 2010.
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do Direito, 3 ed. São Paulo: Martins Martins
Fontes, 2010.
BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. A incrível saga de um país. São Paulo:
Ed. Ática, 2003.
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico, 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
308
Hiléia: Revista de Direito Ambiental da Amazônia, ano 4, n.º 7. Manaus: Edições
do Governo do Estado do Amazonas, SEC, UEA, 2006, p. 191-202.
SIRVINKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 13. ed. São Paulo, Sarai-
va, 2015.
WEHLING, Arno. Formação do Brasil Colonial. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1999.
309
Este livro foi impresso em Manaus, em dezembro
de 2018. O projeto gráfico – miolo e capa – foi
feito pela Editora Valer.