Aspis RenataPereiraLima D PDF
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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
TESE DE DOUTORADO
Campinas
2012
i
iii
iv
Dedico este trabalho a todos os meus ancestrais do império austro-húngaro, aos ciganos e, também, aos
meus ancestrais presos à terra, imigrantes italianos trabalhadores de lavouras, aos portugueses originais, a
todos os brasucas, índios e neguinhas que eu devenho e a todos os amigos, a todos os nômades que não se
movem, aos que pensam de modo liso, que viajam sem sair do lugar.
v
Ao meu companheiro Paulo Aspis, sempre presente, pelo precioso apoio e colaboração em
momentos decisivos e aos meus filhos Tali, Julio, Caroline e Miguel, sempre dispostos a me
ajudar, a me aguentar e a se orgulharem de mim e às mulheres que trabalharam em casa lavando,
cozinhando e etc., Terezinha e Zilda, isso é imprescindível. Aos meus pais Dora e Leonardo e às
minhas irmãs Lili, Ana Paula, Monique e Ana Maria pelo apoio incondicional. Aos amigos todos
que me ajudaram, estudando comigo e me inspirando ideias, que me apoiaram, Alda Romaguera,
Gláucia Figueiredo, Simone Gallina, Valéria Aroeira, Elenise Andrade, Juliana Jonson, Ana
Godoy, Nildo Avelino, e também à Davina Marques, à Laisa Guarienti, Marcus Novaes e Juliana
Bom-Tempo, nosso animadíssimo sub-trans. Aos professores e colegas do DiS, a todos os
colegas do Transversal, às professoras estrangeiras que me acolheram: Cristina Donda, na
Argentina e Eugénia Vilela, em Portugal, ao amigo Ivo Minkovicius pelo apoio e tratamento das
imagens. Ao pessoal da secretaria da pós-graduação, sempre disposto a me ajudar, aos membros
da banca que me deram incômodos muito profícuos e me ampararam com ideias e dúvidas, na
qualificação, o que contribuiu enormemente para o trabalho. Aos nossos cachorros, aos deuses
todos, e ainda à Bruna Callegari, ao Jaime Díaz Gavier y Magdalena Pino, ao André La Salvia,
pelo interesse e pela ajuda, à Ana Godoy de novo, pelo acompanhamento na escrita. E
especialmente ao Silvio Gallo, meu orientador e amigo de muitos anos que me proporcionou as
condições de experimentação de pensamento necessárias, pelo precioso apoio, e à FAPESP
vii
viver é super-difícil
o mais fundo
está sempre na superfície
Paulo Leminski
Não há diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito [...]
escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar,
mesmo que sejam regiões ainda por vir.
ix
RESUMO
Pesquisar as possibilidades do ensino de filosofia para o nível médio nas condições políticas e
econômicas da contemporaneidade tem como objetivo criar novas formas de pensar esse ensino e
novas formas de agir como resistência através desse ensino. A pesquisa se expressa por uma
escrita crazy-patchwork, remendando-louco, assim como a vida, assim como se compõem as
subjetividades. Aglomerado de relações, multiplicidade de conexões, de possibilidades de
entradas e saídas. Reativa-se conceitos de Nietzsche, Foucault e Deleuze e Guattari, assim como
se encontra com pensadores contemporâneos, que também seguem a linha das chamadas
filosofias da diferença, na busca de ressonâncias para produzir um diagrama das relações de
poder que compõem o campo de tensões onde se dão os modos de subjetivação atuais. A hipótese
é a de que se possa inventar um determinado ensino de filosofia para jovens, hoje, na escola, que
se configure como vetor de enxame de re-existências. Um ensino de filosofia a partir de um
planejamento nômade, por meio de aulas-acontecimento, que ensine como vírus, afetando, que
exercite rigorosamente as ferramentas da filosofia de problematizacão, de argumentação, de
conceituação, fluxos de pensamentos filosóficos, história das filosofias, de criações filosóficas de
sentido, para a criação de sub-versões do mundo. Que a resistência, como re-existência, por meio
de um ensino de filosofia remendando-louco, seja a criação de versões menores, versões próprias
e originárias dos problemas que se possa elaborar, sub-versões como insistência no vivo. Afirma-
se que é possível inventar um objeto estranho no ciberespaço – espaço de combate na disputa de
criação do que é real e do que é verdadeiro –, que, por meio das ferramentas da filosofia, enuncie
novos mundos possíveis, tornando-se arma.
xi
ABSTRACT
Researching for possibilities of teaching philosophy at high school level in the political and
economic conditions of contemporaneity has the objective of creating new ways of thinking of
that same teaching and creating new ways of acting as resistance through that teaching. This
research is expounded by a crazy-patchwork writing, crazy-patchworking, just like life, just as
subjectivities are composed. Cluster of relations, multiplicity of connections, of possibilities of
inputs and outputs. Nietzschian, Foucaultian and Deleuzian and Guattarian concepts are
reactivated, and encounters with contemporary thinkers – who also follow the so-called
philosophies of difference – are traced, in search for resonances in order to produce a diagram of
the power relations that compose the tension field where current modes of subjectivation take
place. The hypothesis is that it is possible to invent a certain teaching of philosophy for
youngsters in school, nowadays, which is given as a vector of a hive of re-existences. A teaching
of philosophy from nomadic planning, from event-classes, teaching as viruses, affecting,
rigorously exercising the tools of philosophy – of questioning, reasoning, conceptualization,
philosophical thought flows, history of philosophies, of philosophical creations of sense – in
order to create sub-versions of the world. Resistance, as re-existence, through crazy-patchwork
teaching of philosophy, is creating smaller versions, versions originating from one´s own
elaborated problems, sub-versions as insistence on living. It is claimed that it is possible to invent
an odd object in cyberspace – a combat space in quest for creation of what is real and what is true
–, that, with the tools of philosophy, articulates new possible worlds, becoming a weapon.
xiii
SUMÁRIO
Nós ....................................................................................................................... 19
xv
Do ensino de filosofia como re-existência: ferramentas e armas ... 163
xvi
Porque não há uma apresentação
Ela decidiu que a tese não teria apresentação. E quando ela decide alguma coisa é preciso dez
leões pra fazê-la mudar de ideia. É assim que funcionam os guerreiros, esses tipos complicados
que tem uma relação não menos complicada com as normas, as regras, as leis. Mas é porque o
guerreiro não combate por nenhuma forma de totalização, mas pelas partes, diante delas. É como
se nele ressoassem as palavras de Heráclito: “o mundo mais belo é como um monte de pedras
lançado em confusão”. É disso que se trata esta tese: do combate e da afirmação do mundo mais
belo, sobretudo da invenção da arma que o torna possível. Arma que não é maior e nem melhor
do que aquele que a inventa, tampouco superior àquilo que combate. Assim a tese se dá o seu
começo sob o título “O que podem crazy-patchworks?”. Cada título descreve uma zona de
combate, com suas flutuações, seus aliados, seus inimigos. Já dizia Nietzsche que “não basta
bater, é preciso saber em quem se bate”, é preciso encontrar adversários dignos. “Nós” é então o
primeiro adversário de um combate em que a educação e a filosofia são lançadas. Chega-se assim
A Maurits Escher. Há apenas intervalo e desde lá se afirma: há apenas ação. É neste intervalo que
o leitor deverá preparar-se para os próximos combates, pois nesta apresentação nietzschiana, feita
à revelia do autor (qual?), é a ação que arranca os fundamentos da ética e da política tornando
tudo possível. Ilusão acreditar que o ensino de filosofia não está imediatamente articulado a estas
dimensões. É nos títulos que se seguem – “Biopolítica-vírus e educação-governamentalidade e
escapar”, “A governa-mentalidade e o homem verdadeiro”, “Comunicação e enunciação.
Problemas e sub-versões” –, em que os combates se acirram, que encontraremos, diria Nietzsche,
“as memórias involuntárias” de um guerreiro nos forçando a perceber que as produções da
educação e da filosofia estão e precisam estar em relação com algo que ultrapassa a dimensão
humana das boas intenções e da boa vontade. Estas produções são expressão de avaliações
inseparáveis dos modos de existência e, se quem avalia são as forças, é nesse combate que toda a
vida, toda a potência de invenção é lançada. Neste ponto, a aliança da educação com a filosofia
recebe seu nome: re-existência e explicita-se sua zona de combate - dentro e fora ao mesmo
tempo - e define-se seu estilo de luta, o nomadismo: “Do ensino de filosofia como re-existência:
estar fora e dentro ao mesmo tempo. Viajar sem sair do lugar”. Aí as zonas de combate
experimentam variações segundo o problema formulado, e de problema em problema cada
1
subtítulo é o próprio movimento do combate, sua qualidade, pois se trata de “ocupar o espaço
viroticamente, o espaço da educação, o ciberespaço, o espaço político, em defesa do vivo,
destruição criativa”, indicando que o encontro entre a filosofia e a educação, que um ensino de
filosofia, não é apenas possível, mas vivo, porque incita a avançar, a lançar-se corajosamente
sobre novos horizontes, a lutar por mais, por mais vida, calcando “os pés sobre a desprezível
espécie de bem estar com que sonham merceeiros, cristãos e vacas”, porque a questão de um
ensino de filosofia é aquele de um ensino propriamente filosófico: combativo, ousado, duro
contra si, rigoroso, leve, à altura do mundo, porque o mundo é combate em seu incessante devir.
Chega-se assim ao final do texto. O guerreiro, assim como o mundo, é sem descanso, e só o é
porque está sempre em relação com a impossibilidade de continuar. Este é o breve trecho final,
mas é dele que se podem extrair as mais altas consequências de um ensino de filosofia, de um
ensino filosófico.
O leitor atento notará que, ausente do sumário, há pequenos textos, de procedências as mais
diversas, que não devem ser tomados como meras citações. Eles são o fôlego necessário para
fazer as passagens entre zonas de início nebulosas. Estão ali para o leitor do mesmo modo que
estiveram para o autor: para que se faça o uso que se queira, segundo as circunstâncias de luta,
por isso eles são uma espécie de “aurora” que acompanha uma certa filosofia e uma certa
educação.
Talvez esta apresentação seja de pouca valia para o leitor, mas ela é a aposta de quem leu sobre a
aposta daquele que escreveu e que dirige o olhar em volta em busca de seus afins, “daqueles que
de sua força [lhe] estendessem a mão para a grande obra de destruição”.
Ana Godoy
2
...O que podem crazy-patchworks?...
3
[U]ma ética dos devires, mais do que uma filosofia política... e,
portanto, associada a uma ecologia especulativa das práticas, toda
uma política da filosofia, para “resistir ao presente” e “inventar
novas possibilidades de vida”.
Uma questão de método? Sim, talvez uma questão de método, bem no começo, à moda antiga,
não seja uma má ideia. Não temer falar disso. Não temer sermos explicativos e/ou antiquados.
Não se trata de falar de método como modelo a ser seguido, mas como a explicitação dos
caminhos seguidos ao segui-los, dos caminhos e dos desvios, dos atalhos, das picadas abertas a
facão, das possibilidades de caminhos. Tratam-se também de decisões sobre as formas, formas
que não são fôrmas, já que se deformam a cada passo do caminho, são maneiras de fazer
conexões. Maneiras de pensar, de perceber o mundo, de senti-lo, viver nele, fugir dele e fazê-lo
fugir; formas de pensar e de escrever: sinapses e sintaxes, composições, patchworks. Falar disso,
aqui, antes de tudo começar, parece próprio: defender esse quinhão nesse jogo acadêmico
bastante complexo.
Método (do grego methodos, de meta: por, através de; e hodos: caminho) pode-nos fazer entender
os passos do caminho para se chegar a algo que já estava lá, a revelação de algo dado
previamente. Desde Descartes, pelo menos, que método é entendido como o caminho que garante
que se alcance, por meio de um conjunto de procedimentos e regras (simples e racionais), em
movimento linear crescente de julgamentos válidos, a Verdade. Não acreditamos na Verdade.
Não podemos falar em método. Não acreditamos em caminhos garantidos para chegar. Não
acreditamos em chegar, já estamos lá. Não podemos falar em método como Descartes o fez.
Tecnologia (do grego tekhnologia, de tekhno, tékhne: arte, habilidade; e de logia, logos:
linguagem, razão, proposição). A palavra logos, que aparece ao Ocidente como um conceito
5
fundamental da filosofia grega e, portanto de toda sua filosofia subsequente, foi usada com
inúmeros significados: palavra, verbo, sentença, discurso, pensamento, inteligência, razão,
definição, etc., até, por vezes, variando no pensamento de um mesmo filósofo. No entanto,
queremos nos agarrar aqui naquilo que nela não varia: seu suposto sentido etimológico de reunir,
em que “estaria contido o caráter de combinação, associação e ordenação do logos, que daria
assim sentido às coisas” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 167). Encanta-nos o pensamento
heraclitiano ao pensar logos como uma racionalidade, como princípio cósmico subjacente ao
fogo, que é para Heráclito o elemento primordial relacionado à inteligência humana. Pensando
assim teríamos tecnologia como a inteligência da maneira de fazer combinações-associações-
ordenações para criar mundos. Pensada desta maneira, ela pode nos servir. Para os gregos
antigos a tékhne como habilidade, como arte de fazer, estava separada da episteme, da ciência, do
conhecimento verdadeiro (oposto à doxa, a opinião). Mas na tecnologia que estamos pensando
aqui não há esta separação. Tecnologia patchwork: um aparato de construção de algo que vai se
compondo no movimento próprio da composição. Não há nada posto a priori e não há um aonde
chegar. Não é a realização de uma ideia, não é caminho, não é formação de um sujeito. É
movimento de reunir, colar pedaços, tecnologia crazy-patchwork: assim então se compõem os
mundos, sempre em movimentos transientes, e também as subjetividades. ...Re-talhos... devires...
Esta é a proposição desta tese. Proposição de funcionamento de pensar, de escrever, de ensinar.
Ação.
6
multiplicidades em movimento, em velocidade imponderável, mutante. A junção pode, ela
também, ser louca: ao invés de uma costura invisível, uma costura colorida. A costura ela mesma
é um pedaço, fios díspares, nós diversos, arremates embaraçados. Bordados no meio. Coisas
penduradas, trançados, camadas, minúcias. Traçados. Um remendando assim, se for louco
mesmo, não tem avesso (quilt-edredon), não tem lado certo, não tem sentido; funcionará
multifacetadamente, indiscernivelmente, uma multiplicidade de singularidades. Conceber o
pensamento assim, como um gigantesco remendando-louco: multiplicidade em movimento.
O método é simples. Aqui está uma maneira de fazê-lo. Pegue uma página.
Como esta página. Agora corte do meio para baixo. Você tem quatro seções: 1,
2, 3, 4... um dois três quatro. Agora rearranje as seções colocando seção quatro
com seção um e seção dois com seção três. E você tem uma nova página. Às
vezes diz a mesma coisa. Às vezes uma coisa bem diferente [...] Pegue qualquer
poeta ou escritor que você admira, digamos, ou poemas que você tenha lido
muitas vezes. As palavras perderam significado e vida por anos de repetição.
Agora pegue o poema e datilografe passagens selecionadas. Encha uma página
com excertos agora corte a página. Você tem um novo poema. Tantos poemas
quanto você queira (BURROUGHS, [20--?], s/p).
Método perturbador muito semelhante à receita de Tristan Tzara (1896-1963), poeta romeno
imigrado para a França, um dos fundadores do Movimento Dada, citado por Burroughs na
descrição de seu método: “Tristan Tzara disse: „A poesia é para todos‟. [...] Diga de novo: „A
poesia é para todos‟.”1 (BURROUGHS, [20--?], s/p).
1
No original leia-se: “Tristan Tzara said: „Poetry is for everyone‟.” (BURROUGHS, 1963, s/p).
7
Pegue um jornal. Pegue a tesoura. Escolha no jornal um artigo do tamanho que
você deseja dar a seu poema. Recorte o artigo. Recorte em seguida com atenção
algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco. Agite
suavemente. Tire em seguida cada pedaço, um após o outro. Copie
conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco. O poema se
parecerá com você. E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma
sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público2 (BURROUGHS,
[20--?], s/p).
Talvez os poemas e romances criados por Tzara e Burroughs não sejam produtos de rearranjos de
textos de jornal, talvez não devamos tomar sua ironia literalmente, mas, seja como for, sua ideia
de fazer explodir o mundo para a criação de outro diverge da nossa: não há um mundo-todo para
ser explodido e rearranjado. Nosso remendando-louco estaria, assim, mais para o pick-up de
Deleuze:
Os pedaços não são pedaços porque são por si mesmos partes de um todo perdido, anterior; eles
tornam-se pedaços ao entrar no movimento de participar numa multiplicidade. A discussão sobre
a relação parte-todo é bastante cara à história da filosofia. Vamos desviar disso. Não é o que nos
interessa. Apenas comece agora a imaginar algo que passa a ser parte de uma multiplicidade que
não é um todo, que é ela também uma parte, uma parte como uma possibilidade que muda. Uma
coisa que se transmuta a cada momento, desbotando e colorindo, diminuindo e aumentando,
complexizando e simplificando, ajuntando e abandonando, brotando dimensões, alisando e
estriando, uma possibilidade mutante, deviresca. Não se trata de desorganizar a realidade,
2
No original leia-se: “Take a page. Like this page. Now cut down the middle and cross the middle. You have four
sections: 1 2 3 4 ... one two three four. Now rearrange the sections placing section four with section one and section
two with section three. And you have a new page. Sometimes it says much the same thing. Sometimes something
quite diferente – (cutting up political speeches is an interesting exercise) – in any case you will find that it says
something and something quite definite. Take any poet or writer you fancy. Heresay, or poems you have read over
many times. The words have lost meaning and life through years of repetition. Now take the poem and type out
selected passages. Fill a page with excerpts. Now cut the page. You have a new poem. As many poems as you like.
As many Shakespeare Rimbaud poems as you like.” (BURROUGHS, 1963, s/p). Disponível em:
<http://www.writing.upenn.edu/~afilreis/88v/burroughs-cutup.html> Acesso em: 7 maio 2012
8
estilhaçando-a e reordenar os pedaços, não é cut-up, não é poema dadaísta, porque não há uma
realidade anterior, um mundo dado, assim como não há um mundo posterior, um todo formado,
um sujeito, uma verdade. Não é quebra-cabeças. Não há totalidade a ser recomposta, não há
encaixes necessários, mas moventes. Sempre o meio. Não há começo e nem final, não há a
formação de um objeto e tampouco, e isso é importante salientar, de um sujeito. Tanto as ideias
dos dadaístas (Europa, ápice por volta de 1920) quanto dos cubistas (França, as duas primeiras
décadas do século XX aproximadamente), assim como as de Burroughs (E.U.A., ao longo do
século XX), exprimem a necessidade de estilhaçar o real, de cortar os discursos em pedaços para
fazer surgir, no rearranjo desses mesmos pedaços outras possibilidades de significado, outras
realidades. A diferença dessas ideias em relação à ideia de remendando-louco que colocamos
aqui – como tecnologia de pensamento e de escrita e de criação de realidade/mundo e de ensino –
é que a nossa não pressupõe uma realidade/mundo dados anteriormente. Partir do meio. Colocar-
se em órbita. Apenas começar agora a entender a ação remendando-louco como tecnologia de
criação de subjetividades e como maneira de pensar/escrever/ensinar: pedaços heterogêneos
conectados desigualmente em um complexo descentralizado, em constante movimento que cria
novas dimensões e ao fazê-lo muda.
Subjetividade remendando-louco: aglomerado de relações díspares entre esse homem que vejo na
minha frente neste momento e aquele menino no colo do avô que se vê no álbum de família e as
batatas comidas no almoço que estão girando na barriga produzindo gases e aquela piada ouvida
sobre alguém que fazia sexo com animais que se seguiu de pesadelos eróticos e a prestação do
financiamento da casa que foi paga ontem com atraso e a preocupação com o encontro marcado
para o próximo domingo e esse cheiro de assado que lembra os natais na praia e etc. (e mais
outros tantos milhões de pedaços): crazy-patchwork-remendando-louco que em um registro
identitário poderia ser assim nomeado: Maurício Ricardo Varllicz Rezende, RG: 20.4X6.734-3,
sexo masculino, natural da cidade de Itevu, São Paulo, Brasil, etc. (e outros tantos pontos fixos
em tabelas de classificação, sempre os mesmos nos tempos e espaços diversos).
Contra os que pensam „eu sou isto, eu sou aquilo‟, e que pensam assim de uma
maneira psicanalítica (referência à sua infância ou destino), é preciso pensar em
termos incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas
necessárias, não-narcísicas, não-edipianas [...] desfazer a organização humana
do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um
9
descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies que
os habitam (DELEUZE, 1992, p. 21).
“Louco não significa disparatado. Significa que não há padrão fixo.”5 (SO CRAFTY, 08/14/2010
– tradução livre).
3
Palimpsesto: do grego antigo "riscar de novo", é o nome que se dá a um pergaminho cujo texto foi eliminado para
permitir sua reutilização. Esta prática foi adotada na Idade Média devido à escassez do pergaminho. A eliminação do
texto era feita através de lavagem ou, mais tarde, de raspagem com pedra-pomes, no entanto, não era completa,
deixando visíveis caracteres de textos precedentes, apresentando assim o pergaminho a escrita sucessiva de textos
superpostos. A recuperação dos textos eliminados tem sido possível em muitos casos, através do recurso a
tecnologias modernas. Com relação a isso cf.a série Lousas, 2009, do artista plástico José Spaniol, em que “o artista
desenha sobre as pedras com pastel seco e giz, experimentando com a transformação de cada uma das composições.
Além disso, as Lousas ficam no pátio de seu ateliê sujeitas as mudanças do tempo, da luz do dia, frio e calor, que
deixam sua impressão na superfície porosa”. Disponível em: <http://barogaleria.com/exposicao/jose-spaniol-2/>
Acesso em: 7 maio 2012
4
“É preciso que a diferença se torne o elemento, a última unidade, que ela remeta, pois, a outras diferenças que
nunca a identificam, mas a diferenciam. É preciso que cada termo de uma série, sendo já diferença, seja colocado
numa relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries, desprovidas de centro e de convergência.
É preciso afirmar a divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada ser deve ver sua própria
identidade tragada pela diferença, cada qual sendo só uma diferença entre as diferenças. É preciso mostrar a
diferença diferindo.” (DELEUZE, 2006a, p. 94).
5
No original leia-se: “Crazy doesn‟t mean mad. It means no fixed pattern.”.
10
Não é desordem porque não é madness. Não é arbitrariedade. Há no remendandum-louco uma
força de reunião e composição. Não é entrega ao “qualquer coisa”, deriva de pluma no vendaval.
É um pouco do caos, mas não desordem entendida como perda ou ausência de uma determinada
ordem.
E.
Não é ordem na medida em que não comunga com a “ordem do mundo”, não se presta às regras
de ordenação da razão iluminista. Não quer ordenar no sentido de encaixar em uma estrutura
padrão. Não se conforma com o reducionismo cartesiano-técnico de logos. Não reconhece
Aristóteles como seu guia: não exclui o terceiro excluído: não há contradições em suas
composições, nada que se opõe se exclui.
Desde os primórdios essa nossa filosofia ocidental acredita que a razão opera segundo
determinados princípios, seus próprios, que concordam com a realidade razão pela qual podemos
conhecê-la. O princípio da identidade é aquele que pode ser enunciado como: “A é A” ou “O que
é, é”, que nos leva a acreditar que só podemos pensar uma coisa e conhecê-la se ela mantiver sua
identidade, se a percebermos constantemente como ela mesma (e a linguagem dá bem conta de
operar essa redução e retorno ao mesmo). O segundo princípio é o da não-contradição, cujo
enunciado é “A é A e é impossível que, ao mesmo tempo e na mesma relação, seja não-A”.
Afirmar e negar uma coisa ao mesmo tempo e na mesma relação gera uma mútua negação e,
portanto, uma mútua destruição, sua inexistência. O princípio do terceiro excluído é enunciado da
seguinte maneira: “A é x ou A é y não há terceira possibilidade”, sendo x e y predicados. Ou.
Toda a lógica que Aristóteles organiza está baseada nesses princípios e fundamenta o pensamento
ocidental até hoje – a despeito de algumas das criações das filosofias e das ciências e das artes. A
forma como pensamos, como construímos as opiniões, como julgamos, a forma pela qual
tomamos decisões no dia a dia, todo o senso comum, está submetida a esses princípios da razão.
O normal é determinado por esses princípios. A vigília é determinada por esses princípios. A
consciência é determinada por esses princípios. A vida fica submetida a esses princípios. Em
geral, todo o conhecimento comum que baseia o mundo – e suas linguagens ‒ está fundado
nesses princípios. O louco, a criança, todo tipo de esquisito, o índio, o velho, esses sim podem,
temporariamente ou permanentemente, viver isentos da dependência desses princípios racionais
11
da nossa mente domada por essa civilidade, e assim eles estão apartados de nós, os normais, mas
submetidos a nós.
Para Deleuze e Guattari, passados por Leibniz e Tarde6, o mundo é virtual. Turbilhão de
“variabilidades” infinitas em velocidade infinita, caos. Impossível viver aí, desagradável
fugacidade das ideias que desaparecem quase imediatamente ao aparecer, transformando-se em
outras; “velocidades infinitas que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso
que percorrem, sem natureza e nem pensamento [...] perdemos sem cessar nossas ideias”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 259). Para evitar isso, segundo os filósofos, nos agarramos à
opinião. Inventamos regras que nos protegem do caos. Ordenamos nossas ideias segundo regras
constantes, que evitam a “„fantasia‟ (o delírio, a loucura)”, e que para nos proteger do caos nos
separam dele. Além disso, no intuito de não haver contradição entre coisas e pensamento, nos
obrigamos a reproduzir sensações, obrigamos os órgãos do corpo a perceber o presente
obrigatoriamente conforme o passado. Rígidas regras de pensamento e reproduções de sensações
são a matéria prima para a formação de uma opinião que deve funcionar “como uma espécie de
„guarda-sol‟ que nos protege do caos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 260). A filosofia, a
arte, a ciência, no entanto, vão além e traçam planos sobre o caos. Criam conceitos, afectos e
perceptos, e funções. Criam em comunhão com o caos.
Cada acontecimento é a criação de um possível que se enuncia por signos, e que se deve efetuar
na ação. Cada ato de criação é uma diferença, a afirmação de uma singularidade, que é efetuada
no crazy-patchwork do mundo, tecido de relações, e ali se propaga, se repete, se repete, com
efeitos imprevisíveis, dando ensejo a criações. Filosofia, arte e ciência, três formas do
pensamento, três modos de criar a partir do caos, criar mundos, enfrentar o caos criando filosofia,
arte e ciência. “Numa palavra, o caos tem três filhas segundo o plano que recorta: são as Caóides,
6
A este respeito cf. Lazzarato (2006).
12
a arte, a ciência e a filosofia, como formas do pensamento ou da criação. Chamam-se de caóides
as realidades produzidas em planos que recortam o caos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.
267). Para essas três formas de criação há ainda um outro combate que surge e se faz mais
necessário: o combate contra a opinião, justamente esta que surgiu para nos proteger do caos.
Combate contra a opinião, que oprime a criação, que é pensamento de ordenação do caos,
determinação de métodos necessários para se chegar à verdade, saber anterior que proíbe o que é
vivo. Sufocamos: é necessário rasgar, abrir brechas nesse guarda-sol para que entre um pouco de
caos, como Lawrence diz que a poesia faz, segundo Deleuze, “num texto violentamente poético”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 261). “Significa dizer que o artista se debate menos contra o
caos (que ele invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que contra os „clichês‟ da
opinião.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 262).
Não é desordem porque não é madness, mas sim ausência de padrão fixo, ausência de lógica
anterior aos remendandos com grudes incertos. Não deseja se estruturar, não há eixo, não há
centro, não deseja ser modelo. Não deseja ser. Há uma ordem própria, a da reunião, aquela dada
pelo remendandum, determinada no ato do remendar.
13
não há relação entre os termos que se opõem sendo um a negação do outro. Trocar a negação pela
afirmação, a afirmação da diferença. Disjunção sem exclusão. “[...] as duas proposições só
cessam de se excluir no ponto exato em que sua disjunção é suprimida [...] a não-relação torna-se
uma relação, a disjunção, uma relação” (ZOURABICHVILI, 2004a, p. 103-4).
A disjunção que engloba uma possível conjunção o faz porque as proposições se opõem
diretamente, mas não termo a termo. Um não necessariamente exclui, não nega, não impossibilita
a existência do outro apesar de serem distintos, opostos.
Convém, para compreendê-lo [ao Deleuze] bem, considerar sua lógica: todo
devir forma um „bloco‟, em outras palavras, o encontro ou a relação de dois
termos heterogêneos que se „desterritorializam‟ mutuamente. Não se abandona o
que se é para devir outra coisa (imitação, identificação), mas uma outra forma de
viver e de sentir assombra ou se envolve na nossa e a faz „fugir‟. A relação
mobiliza, portanto, quatro termos e não dois, divididos em séries heterogêneas
entrelaçadas: x envolvendo y torna-se x’, ao passo que y tomado nessa relação
com x torna-se y’. Deleuze e Guattari insistem constantemente na recíproca do
processo e em sua assimetria (ZOURABICHVILI, 2004a, p. 48-9).
Deleuze e Guattari (1995a, p. 13) explicitam claramente que a lógica binária das dicotomias e as
relações biunívocas não compreendem a multiplicidade, pois o pensamento binário, o
pensamento do „ou‟ é um pensamento que necessita de uma forte unidade principal. O
pensamento calcado nos princípios aristotélicos da razão é como uma árvore. Ele não dá conta
das multiplicidades, que têm estrutura de rizomas. E:
Ora, porém, cuidado: não seremos nós a tentar restaurar um dualismo ao opor remendando-louco
e modelo identitário-representativo. Remendando-louco não é modelo, já é o universo do E. No E
não há bipolaridade. Tudo é possível. Não se trata de se opor, mas multiplicar criando novas
dimensões, tudo cabe.
14
Remendando-louco é composição de imanência. É transversal, sem preocupação de demarcação
anterior de domínio de objeto ou de objetivos específicos: atravessa. É composto de trajetos,
move-se, multiplica-se e se dobra, e se transforma sem cessar por conexões desiguais,
remendandos. Transforma-se sem cessar a cada nova conexão, a cada criação de nova dimensão.
Imagine um olho não governado pelas leis de perspectiva feitas pelo homem, um
olho imparcial, sem preconceitos de lógica, um olho que não reage a nomes de
tudo, mas descobre cada objeto através de uma aventura de percepção. Quantas
cores existem num campo gramado para um bebê engatinhando que não sabe o
que é "verde"? Quantos arco-íris pode a luz criar para um olho não instruído?
Quão atento a variações em ondas de calor este olho pode estar? Imagine um
mundo vivo com objetos incompreensíveis e vislumbrado com uma variedade
infinita de movimentos e inúmeras graduações de cor. Imagine um mundo antes
de „No Princípio era o Verbo...‟7 (BRAKHAGE, [20--?], s/p – tradução livre).
Fendas no caos, não sufocar, deixar passar um pouco de caos, contra a opinião, criar, contra a
asfixia das regras da lógica: ir além, ir aquém, escapar, criar, movimento, ação, mergulho no
imprevisível. Stan Brakhage é um filmmaker americano, contemporâneo, que desenvolveu um
vasto trabalho dedicado às formas não-narrativas, realizou alguns filmes que partem de imagens
documentais, mas tratando-as de tal forma que, apesar de muito concretas, fogem de qualquer
representação. Assim é em The Act of Seeing with One’s Own Eyes8, feito com imagens do
necrotério de Pittsburgh, imagens contundentes que nos fazem pensar em Francis Bacon e nos
deslocam da nossa percepção usual. O que há por trás das regras que nos fazem reproduzir o visto
no já visto? O que vemos se vemos o que vemos e não o que já vimos? Impossível reduzir as
imagens de Brakhage ao já foi visto, ao já foi vivido: estão vivas e nos obrigam a ressuscitar.
Sobre a intenção de Brakhage nesse filme: “[T]rabalhar de tal forma o símbolo de maneira que
nele sejam deflagradas forças que destruam todo o seu potencial simbólico. A partir do símbolo,
temos o acesso a uma experiência primitiva, inconsciente que arrasa o próprio sentido da
7
No original leia-se: “Imagine an eye unruled by man-made laws of perspective, an eye unprejudiced by
compositional logic, an eye which does not respond to the name of everything but which must know each object
encountered in life through an adventure of perception. How many colors are there in a field of grass to the crawling
baby unaware of “Green”? How many rainbows can light create for the untutored eye? How aware of variations in
heat waves can that eye be? Imagine a world alive with incomprehensible objects and shimmering with an endless
variety of movement and innumerable gradations of color. Imagine a world before the 'beginning was the word‟.”
Disponível em: <http://www.goodreads.com/author/quotes/296541.Stan_Brakhage> Acesso em: 24 mar. 2012
8
Disponível em: <vimeo.com/31369640> Acesso em: 24 mar. 2012
15
simbolização.” (SOARES JUNIOR, [20--?], s/p). Não-narrativo, não-representativo, não-sujeito.
Há um filme de Brakhage em particular, muito lindo, que pareceu uma ótima imagem de
remendando-louco, é Water for Maya9.
Como pode ser política remendando-louco? Como pode ser “criar novas possibilidades de vida”
se a sociedade está pensada como um grande remendando-louco? “[U]m general é de fato
necessário para n indivíduos chegarem ao mesmo tempo ao momento do disparo?” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995a, p. 27). Remendando-louco não tem hierarquia, não tem centro, não é uma
“ordem do mundo”, mas possibilidade de criação de n ordens-caóides de mundos compossíveis.
“É pretensão do Estado ser imagem interiorizada de uma ordem do mundo e enraizar o homem”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 36).
Política remendando-louco: o poder dos peões do Go. “Sozinho, um peão do go pode aniquilar
sincronicamente toda uma constelação, enquanto uma peça de xadrez não pode.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995a, p. 14).
9
O filme encontra-se disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=BVNWq3gOBl4> Acesso em: 25 mar.
2012
16
macropolítica e micropolítica” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 90), portanto, uma
transpolítica: remendando-louco: atravessa. Fazer transpolítica: modo de operar remendando-
louco que politiza o politizável, na ação de resistir à destituição do poder das subjetividades
singulares sobre a vida. Vida-bios desviante que escapa de qualquer governamento10. Uma
política que não sacrifica a vida, ao contrário, é ação de defesa da vida, ação de re-existência.
Uma transpolítica que é modo de operar de singularidades aquém-indivíduo e além-indivíduo
chamamos subjetividades remendando-louco, em movimentos incessantes, de colar pedaços
díspares, de conectar singularidades, gerando novas dimensões: mundos e mundos compossíveis.
Movimentos no macro e no micro, no maior e no menor, na versão oficial e nas sub-versões:
atravessamentos: transpolítica. Política sem representação, política sem sujeito, outras formas de
fazer circular e defender a vida.
Educação sem representação, educação sem sujeito, outras formas de fazer circular e defender a
vida. Opressão é oposição ao movimento, ser de direita é oposição ao movimento, educar como
formação é oposição ao movimento. Como pode ser um ensino remandando-louco? Ensino que
não acredita em formação. Ensino que “enxameie em máquinas de pensar, de amar, de morrer, de
criar, que dispõem de forças vivas” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 18). Professor que
abdica do exercício do poder como instrumento “educacional” e funciona como intercessor: “O
essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra.”
(DELEUZE, 1992, p. 156).
Admitir o escrever e o ensinar como atos remendando-louco é um desvio que pode levar à
invenção de outro tantos possíveis, de novas re-existências, de novas aberturas para novas
possibilidades de vida.
10
Sobre a adequação do uso do vocábulo governo utilizado indiscriminadamente nas traduções para o português dos
trabalhos de Foucault e a sugestão de usar em seu lugar a palavra governamento, a esse respeito cf Veiga-Neto
(2002).
17
obrigação de se formar como um sujeito coerente à sua identidade, resistir à educação-formação,
resistir ainda a ser classificado como avesso: crazy-patchwork-quilt não tem avesso. Resistir e
fazer re-existir. Insistir na vida, no novo, na criação: re-existir.
Crazy-patchwork-quilt. Remendando-louco-multi-face11.
Tentar escrever assim. “Escrever como um cão que faz seu buraco, um rato que faz sua toca.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1977b, p. 28). Seguir o fluxo do pensamento assim. Aguçar a
percepção e viver o mundo assim. Novas conexões-sinapses-sintaxes. Propor um ensino assim.
11
De qualquer forma não podemos deixar de notar pontos de contato entre todos esses métodos, técnicas/tecnologias:
cut-up, pick-up, poema dada, remendando-louco e outros ainda: conexões desiguais aglomerando singularidades em
multiplicidade – “o múltiplo elevado ao estado de substantivo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 12). Burroughs
afirma sobre seu romance Almoço Nu: “Podemos abordar Almoço Nu de qualquer ponto de intersecção”
(BURROUGHS, 2005, p. 230), assim como o livro-rizoma de Deleuze e Guattari, Mil Platôs, capitalismo e
esquizofrenia: “Chamamos „platô‟ toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de
maneira a formar e estender um rizoma. Escrevemos este livro como um rizoma. [...] Cada platô pode ser lido em
qualquer posição e posto em relação com outro.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 33).
18
Nós
19
Perder-se a si mesmo. – Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é preciso
saber, de tempo em tempo, perder-se – e depois reencontrar-se: pressuposto que
se seja um pensador. A este, com efeito, é prejudicial estar sempre ligado a uma
pessoa. (NIETZSCHE, 2000, § 306, p. 150)
Usamos a primeira pessoa do plural ao nos referirmos à autora desta tese. Nós: não estar ligado a
uma pessoa. Se entendermos as subjetividades como remendandos-louco não podemos mais usar
a primeira pessoa do singular, não há um sujeito, um “eu”, mas uma multiplicidade de
singularidades em relações moventes.
Não temos certeza alguma de que somos pessoas [...] Félix e eu, e muito mais
gente como nós, não nos sentimos precisamente como pessoas. Temos antes
uma individualidade de acontecimentos, o que não é em absoluto uma fórmula
ambiciosa, já que as hecceidades podem ser modestas e microscópicas.
(DELEUZE, 1992, p. 177)
No entanto, cautela, desse modo parece que surge um impedimento ao uso do “nós”. Será o “nós”
o melhor para designar esse coletivo? “Nós” é uníssono de vozes que buscam, no consenso,
propor algo, nem que seja apenas sua identidade aglutinada, nós do partido, nós dessa família,
nós os empresários. Não podemos usar o “nós”, não desejamos o consenso, não desejamos
propor, não há identificação e representação. Não desejamos correr o risco de parecer assumir um
12
Raul Seixas, S.O.S. Metamorfose ambulante, 1988 e 1993.
21
modelo maior, de representar um grupo, as organizações, o instituído. Um coletivo fala de si na
terceira pessoa, como uma criança ainda muito nova designa a si por seu nome, como se falasse
de outrem, não usa o “eu”, não usaremos o “nós”.
Renato Janine Ribeiro revisita “Os intelectuais e o poder” (RIBEIRO, 2000) para investigar o que
é ainda atual nas posições políticas explicitadas naquela entrevista de Foucault e Deleuze, em
1972, e de lá, a cerca de “o povo” este breve trecho:
A fala de um povo enquanto algo que virá não é a fala do sindicato, as palavras da ordem
instituída, as palavras de ordem. O “nós” é sempre aquele das organizações, é maioria, é modelo.
Não, não somos um “nós”. Quem fala? Seria necessário encontrar uma forma indefinida, porém
não geral. Indefinida porque movediça, vetorial, transmutante.
22
da qual ninguém fala
e ele é a voz da quarta pessoa do singular
pela qual ninguém fala
e que todavia existe13.
A quarta pessoa do singular pela qual ninguém fala que, todavia existe. Como pronunciar a quarta
pessoa do singular? Ela? Ela, a singularidade, ou ainda, uma multiplicidade de singularidades:
ela. Perder-se a si mesmo, não estar ligado a uma pessoa: ela. Vive-se, fala-se. “[E]sse „on‟ que
aparentemente não deveria ser senão o signo da opinião, do lugar-comum, é convertido, em razão
de sua própria impessoalidade, em índice da mais alta potência de vida.” (SCHÉRER, 2000, p.
23). Um remendando-louco, singular, fala. Não fala em nome de um sujeito, mas atravessado por
acontecimentos, experiências, problemas; fala sem no entanto ainda estarem dadas as condições
para sua fala. “Acreditamos num mundo em que as individuações são impessoais e em que as
singularidades são pré-individuais: o esplendor do „SE‟.” (DELEUZE, 2006a, p. 17). Escapar ao
“nós”, passar do “eu” ao “ele” para tornar-se um outro que é ninguém, um qualquer, toda a
gente... fala-se. A passagem do “eu” ou do “nós” para o “ele” ou “ela” é libertadora. Libertar-se
da necessidade de se ter de corresponder a determinados grupos, de se ter obrigações sociais para
com identidades ideológicas e de se ter de manter determinadas maneiras de pensar que as
representam. “O on é a marca da passagem, da entrada no movimento, o índice do agenciamento
coletivo; ele dá consistência ao que se passa entre dois (ou vários) e, contra o „eu penso‟.”
(SCHÉRER, 2000, p. 31). Contra o eu penso: desviar das interioridades pessoais e das
intersubjetividades que devem fidelidade à representação de identidades. Chove, o impessoal que
preenche o mundo com sua singularidade. “Fala-se, vive-se, morre-se. Sim, existem sujeitos: são
os grãos dançantes na poeira do invisível, e lugares móveis num murmúrio anônimo. O sujeito é
sempre uma derivada. Ele nasce e se esvai na espessura do que se diz, do que se vê.”
(DELEUZE, 1992, p. 134).
Uma subjetividade remendando-louco, ela, fala. Sua fala é enunciação de um ensino de filosofia
como resistência, o que nos leva, a ela e ao leitor, ao caráter de minoria dessa fala.
13
No original: “And he is the mad eye of the fourth person singular / of which nobody speaks / and he is the voice of
the fourth person singular / in which noboby speaks / and which yet exists.” (FERLINGHETTI, 1967, p. 26). O
trecho em português do poema “He”, de Lawrence Ferlinghetti, é citado por René Schérer (2000).
Em francês, pronome de indeterminação do sujeito, que equivale ao nosso “se” ou “a gente”.
23
As minorias e as maiorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode
ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é o modelo ao qual
é preciso estar conforme [...] Ao passo que uma minoria não tem modelo, é um
devir, um processo [...] sua potência provém do que ela soube criar, o que
passará mais ou menos para o modelo, mas sem dele depender (DELEUZE,
1992, p. 214).
A minoria é sempre menor, por mais que seja numerosa: o povo, as mulheres... Enunciar um
ensino de filosofia como resistência e tentar inventar um ensino-remendando-louco menor. Os
jovens como minoria que se debate nas grades maiores das instituições escolares, grades
curriculares, grades de horário, grades nas janelas14.
Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma
minoria faz em uma língua maior
[...]
a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização [...]
nelas tudo é político
[...] tudo adquire um valor coletivo (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 25, 26 e
27).
Ela, essa multiplicidade de singularidades, essa subjetividade remendando-louco fala com. Com
Deleuze e Guattari e com Nietzsche e com Foucault e com mais incontáveis outros notáveis e
14
É necessário distinguir uma minoria que se cria a ela mesma como minoria, que não corresponde a modelos,
mutante, que cria saídas a cada captura, de uma minoria instituída como peça de encaixe na ordem maior: os
adolescentes. Escapar dessa produção e reprodução capitalista “os adolescentes”, literatura para adolescentes nas
prateleiras, clínica para adolescentes destoantes, política para adolescentes, saúde, música, moda comida, toda uma
série de produtos para o consumo dos adolescentes, modelo de comportamento adolescente, modelo de sonhos
adolescentes, desejos, sentimentos, problemas pré-moldados e modulados.
15
Cabe aqui a mesma distinção da nota anterior. Professor-filósofo é pensado como minoria em oposição ao
professor-funcionário. O primeiro problematiza seu ensino, faz filosofia do ensino de filosofia, remenda sua prática e
o outro cumpre planejamentos, usa como guia livros didáticos, grades todas, sem questionar, reproduz. Essa
distinção tende não a uma bipolarização do “ou”, mas sim pretende apontar para a necessidade de criação de saídas a
cada captura, ambos estão em movimento constante de captura e escape, de um passar pelo outro.
24
não, e com outros ainda, cujo atravessamento a afeta e a obriga a pensar, a criar saídas, um
incômodo potente que instiga e a faz ir com. Orlandi em “Deleuze e nós”:
“Espinosa e nós”: esta fórmula pode querer dizer diversas coisas, e, entre outras,
“nós no meio de Spinosa”. Então, estar no meio de Spinosa é estar nesse plano
modal (plano comum de imanência em que estão todos os corpos, todas almas,
todos os indivíduos), ou melhor, instalar-se nesse plano; o que implica um modo
de vida, uma maneira de viver.” (DELEUZE, 2002, p. 127).
Assim, ela enuncia com. Enuncia-se. Agenciamento coletivo minoritário no meio de Deleuze e
toda uma bibliografia viva vivente e mais outros tantos atravessamentos, convergindo e
divergindo para “instalar-se nesse plano; o que implica um modo de vida, uma maneira de viver”
(DELEUZE, 2002, p. 129). Uma outra maneira de viver, uma outra maneira de pensar, em
movimento, em movimento remendando-louco como “círculo de convergência”, preenchendo,
“distribuição nômade”, diria Deleuze (1974, p. 105). Remendandum é nada começa, é o meio,
sempre voltando, afirmando o pensamento em seu inacabamento, pois “[u]ma filosofia não é
25
jamais uma casa, mas um canteiro de obras” (BATAILLE, 1993, p. 8). Subjetividade
remendando-louco, ela, vive-se, escreve-se um ensino de filosofia, um modo resistência.
26
Maurits Escher, tudo se tornou intervalo
27
M. Escher. Desenhar, litografia, 1948.
A mão que desenha a mão que desenha a mão que desenha... Não há começo. Tudo é meio.
Quem desenha quem? Não há quem. Não há sujeito, apenas ação. Uma parte da gravura é precisa
como uma fotografia, outra apenas esboço, sem conflito ou choque uma coisa torna-se a outra,
devir. É possível que a qualquer momento a mão solte o lápis e despregue a tacha que prende o
papel, que a prende como desenho.
29
M. Escher. Répteis, litografia, 1943.
Os répteis igualmente saem do papel onde estão desenhados no mesmo movimento em que
entram no papel onde estão desenhados e estarão desenhados e estavam desenhados. Em uma
parte duas dimensões e em outra parte três dimensões, embora sejam duas, é uma gravura em
papel. Não há passado ou futuro, não é linear, mas também não é cíclico, devém. É possível que
um desses jacarés faça um movimento mínimo e desvie em outra direção. No papel, jacarés
pretos e brancos preenchem..., nada é um, tudo é meio, é dois, não são dois, tudo dois, muitos,
multiplicidade.
31
32
M. Escher. Limite circular IV, xilogravura, 1960.
Preencher todo o espaço com figuras contraditórias, claras e escuras, anjos e demônios, uma
dependendo da outra para se configurar, em esfera, em círculo.
33
34
M. Escher. Circulação, litografia, 1938.
35
36
À direita, em cima, há o movimento de um homenzinho que desce as escadas de uma construção
arquitetônica até chegar na parte inferior da gravura onde se vê todo o espaço preenchido
regularmente com homenzinhos que se tornam figuras geométricas brancas e pretas até vazarem
indefinidamente para baixo, para além de sua moldura. As mesmas figuras geométricas brancas e
pretas que fazem o movimento de subir pela esquerda e ir se tornando cada vez maiores e
definidas a ponto de tornarem-se cubos bem definidos, os mesmos que servem de padrão para o
pavimento ladrilhado do piso do andar superior, murado, que tem ou não tem ligação com o
espaço de onde saem os homenzinhos descendentes? São essas mesmas figuras tridimensionais
tornadas bidimensionais que se tornam os homenzinhos? Ou não há conexão. Suposições.
Relações são possíveis, não estão dadas. Circulação. Além disso tudo há ainda um terceiro plano,
um terceiro movimento que foge à esquerda e acima, para o infinito da paisagem que se perde no
horizonte indefinido, cortado por uma estrada que corre para o além. Tudo isso ao mesmo tempo.
E tudo isso ao contrário. O homem sobe as escadas de costas e foge, alegremente...
37
M. Escher. Belvedere, litografia, 1958.
Exterior e interior são indiscerníveis. Uma escada de mão que começa com os pés apoiados
dentro e termina com a parte superior apoiada fora do belvedere. Mesma mutação que torna
possível a forma cuboide, usada para nos instigar a imaginação e a vontade de criar possíveis, a
forma que muitas vezes serviu de modelo para tentativas de criações tridimensionais, como é o
caso da Grade Louca.
39
Acima a Grade louca, fotografada por Dr. Cochran, de Chicago, cujo modelo, porém, “consiste
em duas partes separadas que só se assemelham ao cuboide se forem vistas dum ponto
determinado”. (ERNST, 2007, p. 91)
Pormenor de Belvedere.
O afortunado personagem que tem o cuboide nas mãos, em Belvedere, tem um esboço
bidimensional à sua frente. Tenta decifrá-lo? Verifica-o? Nada disso importa, Escher desenha
outras maneiras de perceber e de sentir e de pensar...
41
M. Escher. Esquema da Grade Louca.
43
Louis Albert Necker. Variante da Grade Louca. s/d16
16
Disponível em: <www.cs.technion.ac.il/~gershon/EscherForReal/> Acesso em: 7 maio 2012
45
Biopolítica-vírus e educação-governamentalidade e escapar
47
Chuviscos na tela. Chiado. Pane. Snow crash. Ausência. Tchchchchchch. Snow Crash, romance
de Neal Stephenson, no Brasil traduzido como Nevasca, ficção científica que conta a história de
um hacker que é tornado o herói da história, quando consegue salvar o mundo do poder absoluto
de uns poucos que dominam quase todos (que não percebem essa dominação) por meio de um
vírus-droga-religião. “Um livro de filosofia deve ser, por um lado, um tipo muito particular de
romance policial e, por outro, uma espécie de ficção científica.” (DELEUZE, 2006a, p. 17).
Ficção científica no sentido do “esplendor do SE” e também porque nesse tipo de literatura “os
pontos fracos se revelam”. Um livro de filosofia ou esta tese, tanto faz, “como escrever senão
sobre aquilo que não se sabe ou que se sabe mal?” (DELEUZE, 2006a, p. 18).
O que não se sabe ou sabe-se mal: biopolítica e educação. Arriscar: biopolítica como vírus e
educação como governamentalidade. Criar saídas, também como vírus.
A replicação dos vírus no interior das células pode se dar até o esgotamento destas, o que causa
as doenças. No entanto, embora as viroses tenham sido descobertas e caracterizadas por meio das
doenças que provocam, muitas viroses são benéficas. Algumas técnicas para tratamento genético,
por exemplo, envolvem o auxílio de viroses para substituir genes defeituosos em todas as células
de um organismo. Além disso, experiências com o uso de vírus para levar medicamento às
células já estão sendo feitas, veja-se este relato como exemplo:
49
Os químicos Trevor Douglas da Temple University e Mark Young da Montana
State University encontraram um novo uso para os vírus. Após terem esvaziados
os seus capsid (capa proteíca que envolve o material genético do vírus), eles o
utilizaram como um pequeno “frasco reacional” e como um sistema de “drug
delivery”. O vírus escolhido foi o cowpea chlorotic mottle virus – um RNA-
vírus que ataca plantas; seu capsid, livre do RNA, tem uma cavidade de cerca de
18 nanometros (cerca de 4.000 vezes menor do que um fio de cabelo). É espaço
suficiente para abrigar algumas moléculas. Pode funcionar como um “nano”
tubo de ensaio, para abrigar e por em contato íntimo os reagentes ou, ainda,
servir de envelope para o transporte de certos fármacos no sangue. Como o vírus
tem a habilidade de penetrar na célula, ele pode entregar a droga diretamente no
interior das células alvo.Um exemplo é a já bem sucedida envelopagem da
heparina (um inibidor da coagulação do sangue) com o capsid viral. Este
trabalho foi publicado na revista Nature, em 1988 (Nature, vol 393, p. 152)
(QMCWEB, [20--?], s/p).
Vírus não é bom, nem mau. Vírus é um modo de operar: tecnologia de invadir e usar a energia do
hospedeiro para se replicar. Invadir e tomar posse, transmutando o hospedeiro.
Biopolítica como vírus: seguindo a imaginação de Stephenson, a transmissão do vírus pode se dar
tanto por códigos, verbalmente, quanto fisicamente, pela troca de fluídos corporais. Vírus que
entra pelo ouvido, por meio de determinadas palavras e se aloja diretamente no cérebro,
funcionando como um receptor de ordens e que pode entrar também pelas veias ou mucosas e
causar o mesmo efeito. Almas e corpos e enunciação e maquinação.
50
Para Deleuze, ainda seguindo sua herança leibniziana, o mundo é virtual (conceito chave da
“ontologia” deleuziana, que nada tem a ver com o jargão informacional usado atualmente), isto é,
uma multiplicidade de acontecimentos, de conexões: rizoma desdobrado à enésima potência
intensiva, um proliferado de enunciações e máquinas, complexo descentrado de possíveis
atualizados, conectados; criações: crazy patchwork.
Observar: o controle é muito eficaz quando penetra essas duas dimensões: do falar, do enunciar e
anunciar, da informação, da expressão, da tão atual comunicação, blá-blá-blá, televisão-opinião, e
aquela da ação dos corpos e nos corpos, das condutas, do mover-se embarcado em fluxos
preestabelecidos, rebanhos pastoreados, autoestrada, GPS, fila para campanha de vacinação,
acotovelado atrás do trio elétrico, as ondas.
Uma ideia viral pode ser disseminada- como aconteceu com o nazismo, calças
boca de sino e camisetas do Bart Simpson-, mas Asherah, por ter um aspecto
biológico, pode permanecer latente no corpo humano. Depois de Babel, Asherah
ainda era residente no cérebro humano, sendo transmitida de mãe para filho e de
amante para amante. Todos somos suscetíveis ao impulso das ideias virais.
Como histeria em massa. Ou uma melodia que fica na sua cabeça e você fica
cantarolando o dia inteiro até espalhá-la para mais alguém. Piadas. Lendas
urbanas. Religiões malucas. Marxismo. Não importa o quanto inteligente
fiquemos, há sempre uma parte irracional profunda que nos torna hospedeiros
em potencial de informações auto-replicantes (STEPHENSON, 2006, p. 368-
69).
Asherah, no romance, é uma deusa, de uma religião pós-racional, cultuada por milhões de
pessoas infectadas por um vírus que é transmitido, como já foi dito, tanto por contágio físico
quanto por fluxos verbais de dados, que entram nas estruturas profundas dos cérebros e fazem
com que os infectados ajam de forma obediente às palavras de ordem.
Poder sobre a vida: além das disciplinas coreografias docilizantes corpo-máquina, a biopolítica
corpo-espécie. “Docilidade” levada ao limite máximo: até às células, não mais de um corpo-
indivíduo, mas do corpo-população. Os homens tornam-se “hospedeiros em potencial de
informações autorreplicantes”.
51
Foucaultianamente: a partir do século XVII todo um feixe de relações se desenvolve entre dois
pólos de poder sobre a vida, um deles, que surge primeiro, assalta as forças do corpo tomando-o
como máquina, o adestra, amplia determinadas aptidões úteis à produção, dociliza por meio de
“procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano”
(FOUCAULT, 1980b, p. 131). O segundo aparece já nos meados do século seguinte, caracteriza-
se por controlar e intervir nos processos biológicos, nascimentos e mortes, doenças e saúde, etc.,
centra-se no corpo-espécie, transpassa o corpo da população regulando-o, “uma série de
intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população” (FOUCAULT, 1980b, p.
131). Tecnologia dupla face, anatômica e celular, do indivíduo e da população, do corpo e dos
processos da vida, é característica de um poder cuja função já não é mais o poder de “causar a
morte ou deixar viver”, mas de investir na vida e investindo-a “causar a vida ou devolver à
morte” (FOUCAULT, 1980b, p. 130).
[D]everíamos falar de „bio-política‟ para designar o que faz com que a vida e
seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-
saber um agente de transformação da vida humana (...) Não é necessário insistir,
também, sobre a proliferação das tecnologias políticas que, a partir de então, vão
investir sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as
condições de vida, todo o espaço da existência (FOUCAULT, 1980b, p. 134-5).
52
Todo o espaço da existência.
Poder individualizante e totalizante ao mesmo tempo. “Acho que nunca, na história das
sociedades humanas – mesmo na antiga sociedade chinesa -, houve, no interior das mesmas
estruturas políticas, uma combinação tão astuciosa das técnicas de individuação e dos
procedimentos de totalização.” (FOUCAULT, 1995, p. 236). Cada corpo importa, sujeitado às
intervenções estatais, abstrações/generalizações que pouco se importam realmente com o que
cada um deseja, violência econômica, política, ideológica, que sujeita às decisões científicas e
administrativas determinantes. Poder pastoral da Igreja, cada ovelha e todo o rebanho, não mais
restrito ao pastor, mas elevado ao Estado17.
Foi Maurizio Lazzarato (2006) quem faz com que se atente para o fato de que não é apenas o
corpo que está reduzido ao organismo pela disciplina e a população que está regulada pela
biopolítica, ambas, tecnologias espaciais, mas o tempo, o tempo da existência que é capturado.
Há a necessidade de acrescentar a dimensão temporal aos processos biológicos da espécie. Todo
o espaço da existência: espaço de tempo, inclusive, mas não apenas tempo cronológico, mas
tempo de existência, tempo do virtual, o tempo dos possíveis ainda não criados e atualizados, o
tempo da imprevisibilidade, das criações, da potência de transformações, do devir. E esse
acréscimo nos leva a pensar como objeto da biopolítica não apenas a “população”, mas também o
“público”. Conceito este fundamental para pensarmos as sociedades de controle: o controle é
feito por modulação, em espaço aberto, modulação das intensidades do público, seus desejos,
crenças, memória. E a noção de público está diretamente ligada ao tempo, mais que ao espaço.
17
A este respeito cf. Foucault (2008b, p. 172-3).
53
Lazzarato retoma o sociólogo Gabriel Tarde usando usar a noção de público na intenção de
diferenciar as técnicas de poder do controle em relação às da disciplina, este diz que no final do
século XIX entrava-se na era dos públicos.
[O] grupo social não se constituía mais nem por aglomerações, nem pela classe,
nem pela população, mas pelo público (ou melhor, pelos públicos). Por público
ele entende o público dos meios de comunicação, o público de um jornal: „O
público é uma massa dispersa em que a influência das mentes, umas sobre as
outras, se torna uma ação à distância‟ (Gabriel Tarde, L’Opinion et la foule,
Paris, PUF, 1989) [...] A subordinação do espaço ao tempo define um bloco
espaço-temporal encarnado, segundo Tarde, nas tecnologias da velocidade, da
transmissão, do contágio e da propagação à distância [...] as técnicas de controle
e de constituição dos públicos colocam em primeiro plano o tempo e suas
virtualidades (LAZZARATO, 2006, p. 75).
O corpo organizado pela disciplina, a vida celular da população regulada pela biopolítica, o
público modulado em seus possíveis, imaginação, ideias, desejos, crenças, formas de pensar, de
sentir: controle. Tantas dimensões da vida capturadas. Mas, sempre alguma coisa escapa...
18
Há um instigante filme norte americano produzido por Robert de Niro e Dustin Hoffman, que no Brasil se chamou
Mera Coincidência, e no original Wag the Dog, que cria, de forma irônica, uma história sobre as realidades criadas
pelos meios de comunicação, realidades criadas em estúdios e que se tornam absolutamente verossímeis e vividas,
sentidas e lembradas, pela população. Wag the Dog quer dizer abane o cachorro. Assim que o filme começa há um
letreiro que diz: Why does a dog wag its tail? Because a dog is smarter than its tail. IF the tail were smarter, the tail
woud wag the dog. (Em uma tradução livre leia-se: Por que o cachorro abana o rabo? Porque o cachorro é mais
esperto do que o rabo. Se o rabo fosse mais esperto, ele abanaria o cachorro.)
54
objetivos e metas, métodos, planejamento da vida, vida morta, prever, capturar, conduzir,
administrar o campo de possíveis, anular o fora, rechaçar o novo, péééé, sinal, mover-se,
imobilizar-se, população infantil marche!, representações, medir, encaixar, prever, orientar,
coordenar, aplicar, direcionar: todo o espaço da existência. Domínio totalizante sobre cada ovelha
na escola: formação. Formação controlada, contínua: sujeitamento. Individuação assistida,
disciplinada e modulada: escola. Inocular com o vírus da obediência, da covardia, da descrença
na possibilidade de criação. Formar para trilhar os caminhos percorridos, para sonhar os sonhos
sonhados, para pensar os pensamentos pensados, as ideias tidas: segurança. Reprodução. Escola:
formação de matriz. Reprodução.
Escapar: criar novas formas de subjetividade, resistência: novas formas de aprender e ensinar,
novas maneiras de invadir e se replicar na escola, reproduzir-se pela invasão e tomada da
maquinaria de autorreprodução celulo-escolar, como vírus. Resgatar o fora, o imprevisível, o
imponderável.
Resistir. Foucault: para todo poder, intrínseco a ele, há formas de resistência. “[...] não há relação
de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual.” (FOUCAULT, 1995,
p. 248). Definir o exercício do poder como governo dos homens uns sobre os outros, isto é, como
um tipo de ação sobre as ações dos outros, ação de limitar e modular as possíveis ações dos
outros, nos leva, necessariamente, a supor que haja essa liberdade de ação, que exista esse campo
de possíveis. Em uma situação de dominação não há relação de poder, pois não há liberdade, esse
campo de possíveis está eliminado. Assim Foucault nos mostra como a liberdade é precondição e
condição permanente das relações de poder entendidas como governo, como ação de uns sobre o
campo de ações de outros. Não há um antagonismo, mas um agonismo entre poder e liberdade,
não se trata de uma oposição termo a termo em busca de anulação mútua, mas de uma
“provocação permanente” (FOUCAULT, 1995, p. 245). Assim sendo, considerando que não há
sociedade sem relações de poder, o agonismo entre poder e liberdade é uma tarefa incessante,
uma tarefa política inerente à existência social, à existência de qualquer um na sociedade, vale
dizer: a luta pela liberdade, a luta pelo desgoverno, a resistência ao aprisionamento das
possibilidades de ação pertence ao homem comum, é sua tarefa política. Insistir em existir, existir
enquanto múltiplas possibilidades, existir enquanto sobreposição de sis (si e si e si e), sempre
renovados, palimpsesto, movimentos constantes de reinvenção, remendandos-loucos, dervixes
dançantes, devires, insistir em existir de novo e de novo: re-existir.
56
dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos [...] Temos que
promover novas formas de subjetividade através da recusa desse tipo de
individualidade que nos foi imposto há vários séculos (FOUCAULT, 1995, p.
239).
“[R]ecusar o que somos” dentro da escola. Parafraseando Foucault, talvez o mais evidente dos
problemas educacionais (e filosóficos!) seja a questão do tempo presente e daquilo que somos,
enquanto educadores, nesse exato momento. Talvez o necessário seja “promover novas formas de
subjetividade”. Como? Ensino acontecimento é uma hipótese. Acontecimento: enunciação e
efetuação de possíveis, criação. Como despedagogizar os movimentos de aprendizagem?
Despedagogizar: não acreditar em processos lineares ascendentes, nem em formação.
Definitivamente declinar do poder de controlar os campos de possíveis dos alunos. Ensinar como
potlatch.
57
Potlatch: uma festa cerimonial entre certos povos nativos da costa noroeste da América do Norte.
Nela o homenageado distribui todas as suas riquezas acumuladas entre parentes e amigos. A
palavra potlatch significa dar, a expectativa do homenageado é que ele receba bens daqueles para
os quais deu os seus, quando esses forem homenageados. Ser homenageado em uma festa
potlatch é desejável, já que o status do homenageado, dentro de seu grupo social, aumenta
consideravelmente quando isso ocorre.
Gilles Deleuze e Félix Guattari mencionam o trabalho de Marcel Mauss, no qual o potlatch é
mostrado, segundo a sua leitura, como “um mecanismo que impede a concentração de riqueza”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 19). Anticapitalismo. Antes que a acumulação excessiva se
institucionalize, dar. Aumentar o status por meio do dar. Ficar sem nada.
Ensino como potlatch: criação de conjunções em conexões múltiplas, livres, rizomáticas. Ensinar
doando o que se tem, seus “saberes”, seus não-saberes, seus problemas, suas dúvidas, seus
achados, suas teorias, suas indignações, suas alegrias, seus conhecimentos, suas aspirações, etc.,
principalmente o etc., que é o imprevisível. Ensinar como jogar sementes ao vento, aspergir
acontecimentos, despertando os sentidos nos jovens, nada esperando em troca, não há
reciprocidade, não há dívida. Dar por dar, sementes ao vento, vento que junta e disjunta, e os dois
ao mesmo tempo. Ensino acontecimento. E irredutível, será o que será. Tornar possível
experiências, experiências de pensamento genuínas, experiências filosóficas. Permitir significa
deixar de controlar, desapegar.
58
formação. Ao contrário, aquela outra educação é somente libertação, extirpação
de todas as ervas daninhas, dos dejetos, dos vermes que querem atacar as tenras
sementes das plantas, ela é efusão de luz e calor, o murmúrio amistoso da chuva
noturna; ela é imitação e adoração da natureza no que esta tem de maternal e
misericordioso, ela consuma a natureza quando, conjurando os acessos
impiedosos e cruéis, os faz levar a bom termo, quando lança o véu sobre suas
intenções de madrasta e as manifestações de sua triste cegueira (NIETZSCHE,
2003, p. 141-42).
Afetar e ser afetado, movimento turbilhonar, potência de transformação. Nada esperar. Não saber
o que esperar. Não esperar. Novas formas de aprender e ensinar, novas formas de subjetividade,
novas formas de tomar a escola.
No romance de Stephenson, a disseminação da deusa Asherah só era tão devastadora porque unia
a ideia viral ao vírus biológico. Mas havia uma forma de combatê-lo, a única maneira de fazer
com que não estivesse tudo dominado: a multiplicidade.
[E]star fisicamente infectado com uma variedade do vírus Asherah torna você
muito mais suscetível [às ideias virais]. A única coisa que impede que essas
coisas tomem o mundo inteiro é o fator Babel [...] Monoculturas, como uma
plantação de milho, são suscetíveis a infecções, mas culturas geneticamente
diversas, como uma pradaria, são extremamente robustas (STEPHENSON,
2008, p. 369).
Monocultura. Os vírus configuram a maior diversidade biológica do planeta, mais diversos que
bactérias, plantas, fungos e animais juntos. Monocultura versus pradarias e florestas e sua
multiplicidade possibilidades de vida, de trajetos, de conexões, assim as estepes, o deserto,
59
espaço nômade, espaço liso, móvel, feito de desvios. Em Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia,
Deleuze e Guattari desenvolvem seus conceitos baseados na lógica de disjunção inclusiva, lógica
da co-implicação. Nesta lógica, a coexistência de duas coisas contrárias é aceita. Elas não são
consideradas excludentes porque a oposição não se dá termo a termo, não há contradição que leve
à exclusão. Antidialética, considera o mundo como uma multiplicidade em movimento.
O espaço liso opõe-se ao espaço estriado, este, espaço do aparelho do Estado, em constante
transversão, mistura, metamorfoseia-se com o outro, liso, nômade, da máquina de guerra. Há um
constante movimento de um tornar-se outro, chegando ao limite: provar sua irredutibilidade e
escapar. Contravírus: desvio, por menor que seja. Pequeno movimento de devir, imperceptível.
Devir outro e outro, sem cessar, devir, criar os possíveis, mutiplicidade de possíveis, ocupar o
espaço turbilhonarmente, revolvendo o uno, em espiral, sem linearidade progressiva de pares de
opostos. Em bandos, como vírus, também como vírus: contravírus.
[C]omo o espaço [liso] escapa aos limites de seu estriamento. Num pólo escapa
pela declinação, isto é, pelo menor desvio infinitamente pequeno entre a vertical
de gravidade e o arco de círculo ao qual essa vertical é tangente. No outro pólo,
escapa pela espiral ou pelo turbilhão, isto é, uma figura em que todos os pontos
do espaço são ocupados simultaneamente, sob leis de freqüência ou acumulação,
de distribuição
[...]
O espaço liso é constituído pelo ângulo mínimo, que desvia da vertical, e pelo
turbilhão, que extravasa a estriagem (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 198-
9).
Paulo Leminski: a vida varia, / o que valia menos, / passa valer mais, / quando desvaria. (1985, p.
78)
60
experiências de escola não-escola, escola quase-escola. Não é isso que interessa discutir aqui.
Escolher não querer a reforma da escola, querer um ensino de filosofia que não colabore com a
escola. Ensino de filosofia máquina de guerra, ensino de filosofia como resistência, não é parte
dessa escola, é um câncer, uma doença degenerativa que denuncia; um vírus, um contra-vírus.
Ensino de filosofia como experiência filosófica, atravessar os alunos, a filosofia como uma lança,
transversalmente percorrendo os corpos, um choque elétrico, um curto circuito, um
acontecimento.
61
A governa-mentalidade e o homem verdadeiro
63
[...] não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem
inversão eventual (FOUCAULT, 1995, p. 248).
Truman (true-man, truth, verdade), o “homem verdadeiro”, é o único participante do reality show
que não sabe que aquilo não é a vida real, tudo é cenário, os outros são atores, tudo é
meticulosamente governado, é um show, é uma vida.
O “homem de verdade” nasceu em cena e vive em cena entre cinco mil câmeras espalhadas pela
ilha-cenário-estúdio onde mora. De todas essas câmeras, talvez a mais instigante seja uma que há
atrás do espelho do banheiro. As coisas mais autênticas do estranhamento, ao acordar de novo no
mesmo mundo a cada manhã, que lhe vêm à cabeça; as coisas das frustrações frescas nas manhãs,
que serão em minutos submersas pelo primeiro gole de café da rotina reproduzida; essas
inconfessáveis sensações de estranhamento com o mundo; essas verdades de si mesmo; esses
desejos originais que só existem para estarem submissos nessa vida, esses o homem verdadeiro
deixa fluir na frente dessa câmera, para milhões e milhões de espectadores espalhados pelo
mundo real - o mundo real - sem saber que está sendo assistido.
19
Fala de Christof, o criador e diretor do show.
65
Truman está sujeitado ao governo, tanto quanto possível total, da produção e direção do
programa de televisão onde vive. E também está submisso a si mesmo, à consciência que tem de
si mesmo, à sua identidade à qual deve fidelidade, deve coerência, como qualquer um, como
todos. E talvez seja por isso que tanta gente do mundo todo assiste The Truman Show todos os
dias com tanta avidez, tanto prazer e empatia. Nesse programa - assim como também nos
programas chamados reality shows que são transmitidos aqui na vida real – o público pode
acompanhar passo a passo a submissão dos participantes às condições impostas a eles, submissão
essa que é explicitada e às vezes até comporta a participação desse público. Os espectadores
assim podem ver a si mesmos se debatendo contra a redução quase total das possibilidades de
suas ações e por isso torcem por Truman, eles torcem para que Truman consiga escapar do
governo determinante das condições de sua vida, assim como eles desejariam escapar.
Félix e eu, e muito mais gente como nós, não nos sentimos precisamente como
pessoas. Temos antes uma individualidade de acontecimentos, o que não é em
absoluto uma fórmula ambiciosa, já que as hecceidades podem ser modestas e
microscópicas (DELEUZE, 1992, p. 177).
Certamente Truman não é uma dessas hecceidades de que fala Deleuze. Truman se debate. Um
tal embate – aquele contra o aprisionamento da vida por uma identidade, contra o controle dos
devires, da criação dos possíveis mundos, das possíveis subjetividades, seria uma luta contra uma
forma de poder muito particular: o governo. Foucault: as relações de poder são imanentes ao
campo social. Poder é relação. Ação de uns sobre os outros, só existe no ato, é sempre relacional.
O poder não é uma exclusividade do Estado, não se dá apenas verticalmente, o poder constitui e
atravessa relações humanas, e todas as dimensões da existência: sexo, amor, trabalho, família,
etc. Poder não é consentimento - como aparece nas teorias contratualistas do século XVII- poder
tampouco é violência. Consentimento e violência podem ser instrumentos do poder, mas não sua
natureza. No entanto, há uma forma específica de poder que vem se desenvolvendo e
aprimorando sem parar desde o Estado moderno: a governamentalidade. Foucault afirma que esse
é um tipo de poder que é sujeição e que, desde que o Estado incorporou uma velha técnica de
poder, o poder pastoral, tornou-se muito poderoso porque opera ao mesmo tempo técnicas de
individuação e de totalização, o que faz ser possível a biopolítica; cada vida importa, cada corpo
e todos os corpos. Na governamentalidade o alvo é a população, o saber é a economia política e o
66
instrumento técnico é a segurança. No século XVIII o poder pastoral passa a não estar mais
restrito à Igreja, pois ele “[...] ampliou-se subitamente por todo o corpo social; encontrou apoio
em uma multiplicidade de instituições [...].” (FOUCAULT, 1995, p. 238). Havia uma tática
individualizante que caracterizava uma série de poderes: da família, da medicina, da psiquiatria,
da educação e dos empregadores.
Assim, Foucault deixa claro que o Estado moderno não se desenvolveu como uma entidade
aparte dos indivíduos, mas, ao contrário, sua sobrevivência até hoje e seu fortalecimento se dão
baseados numa estrutura muito sofisticada na qual os indivíduos são integrados, se sujeitando a
um conjunto determinado de modelos, recebendo do Estado a forma de sua individualidade.
Truman. A luta de resistência hoje, mais importante, portanto, é contra essa governamentalidade
do Estado, que age sobre o campo de criação de mundos possíveis de cada subjetividade, de cada
singularidade pré- individual que assim previamente governada se torna sujeito. Sujeito porque
está sujeitado a determinações anteriores, está sujeitado a ter seus fluxos de desejo e de crenças
modulados, sujeitado a um poder que age sobre o campo de possibilidades de criação de cada um
e do mundo.
Do teto do maior cenário já construído no mundo, visível do espaço como a Muralha da China,
onde mora Truman, cai no meio da rua, bem à sua frente, um holofote de iluminação da cena da
manhã. Ele fica intrigadíssimo, olha para cima, para todos os lados, dá umas cutucadas no objeto.
A produção do programa percebe o ocorrido por meio de uma das câmeras que controlam
Truman e agilizam imediatamente uma solução para o problema da possibilidade dele começar a
desconfiar de algo. Próxima cena: Truman no carro, indo para o trabalho, ouve no noticiário que
há poucos momentos havia caído em sua rua uma peça de uma aeronave que por ali passava.
Meramente controlado. Governado.
“Governar [...] é estruturar o eventual campo de ação dos outros” (FOUCAULT, 1995, p. 244), é
controlar as possibilidades, determinar os modos possíveis, modular os fluxos. Não é proibição
20
Fala de Norman, o amigo de infância de Truman, no filme The Truman Show, de 1998.
67
sumária, não é causar a morte, “ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou
limita, torna mais ou menos provável” (FOUCAULT, 1995, p. 243).
Truman vai crescendo e tem o ímpeto de ser um explorador, quer viajar pelo mundo, ver o que
acontece além da ilha onde vive. No momento em que fica insustentável criar empecilhos para
esses seus impulsos, Christof, o governo, tem uma ideia definitiva: o pai sai com Truman em um
pequeno barco. A produção do programa causa uma imensa tempestade de vento e grandes
ondas. Eles naufragam e o pai é retirado do show, ficando como morto afogado. Truman fica com
trauma de acidentes no mar. Não consegue mais ultrapassar os limites da ilha. Meramente
controlado. Governado.
68
Governar não é luta, não é violência, não é consentimento, contrato, governar é um exercício
específico de poder que consiste em conduzir condutas. Trata-se de dirigir a conduta dos outros.
É um tipo de poder que age sobre as possibilidades de ação dos outros. Trata-se de estruturar,
formatar e assim determinar o campo de possíveis das ações dos outros. Governo é um tipo de
poder que sujeita os homens na medida em que determina de antemão modelos de subjetivação.
A livre criação de si mesmo, a criação autônoma das subjetividades é capturada e transformada
em reprodução de modelos preestabelecidos.
Foucaultianamente: o exercício do poder faz parte das relações humanas e a resistência é inerente
ao poder, no entanto o que a governamentalidade nos aponta é o fenômeno de as diversas e
intrincadas relações de poder da sociedade hoje ter tomado a forma Estado. “Ao nos referirmos
ao sentido restrito da palavra „governo‟, poderíamos dizer que as relações de poder foram
progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizadas na
forma ou sob a caução das instituições do Estado.” (FOUCAULT, 1995, p. 247). Assim sendo
poderíamos dizer que a humanidade de um indivíduo está na sua participação em um sistema de
verdades predeterminadas sobre si mesmo e sobre o mundo, um único e possível mundo, este
também dado previamente; peça de um jogo de tabuleiro. O ponto que se quer salientar aqui é
que a governamentalidade captura a multiplicidade. O que essa forma de poder sobre as
subjetividades faz é reduzir a multiplicidade a um conjunto de pares de opostos. No reducionismo
do capitalismo e também do comunismo todos os “n” devires possíveis são diminuídos a pares de
opostos como operário/capitalista, homem/mulher, adulto/criança, natureza/sociedade,
trabalho/lazer, etc. e é em torno disso que se cria “uma série de aparelhos específicos de
„governo‟ [...] e toda uma série de saberes” (FOUCAULT, 2008b, p. 144).
69
com a invenção do modo capitalista de viver –, passa-se a institucionalizar a sociedade por meio
de classificações das subjetividades que incluem e excluem de determinados conjuntos. Até hoje
é assim. É louco ou não é. É criança ou adulto, homem ou mulher, explorador ou explorado, ou.
É o mundo do ou. O mundo da escolha entre dois polos díspares. Ou bem isso ou aquilo, cada
coisa em seu lugar. Nas disciplinas os corpos são docilizados pelo aprisionamento das
multiplicidades: o espaço e o tempo são predeterminados, os ritmos, os movimentos, os
enunciados, os desejos. Bate o sinal, faz-se a fila, direita volver! Palavras de ordem para obedecer
e palavras de ordem para discordar. As sociedades disciplinares instauram a reprodução, assim
roubam a imprevisibilidade, o imponderável, o novo; o vivo. Toda potência de diferenciação da
vida, toda possibilidade de criação são neutralizadas, sendo subordinadas à reprodução, aos
moldes. Para Deleuze (1992), hoje além dessa modelação dos indivíduos, resultado direto das
disciplinas, vive-se, adicionada a isso, uma modulação, modulação dos fluxos de crenças e
desejos, o que poderia equivaler a dizer, um governo, um guia dado previamente às ações dos
indivíduos. Estradas e rotas predeterminadas, agora com GPS, não mais a criação de possíveis
caminhos quaisquer no acontecimento. Estradas e rotas predeterminadas também para a forma de
pensar, a forma-Estado de pensar também monitorada eletronicamente. Para Deleuze, atualmente
o que é capturado é “o fora”, ou seja, o devir, o imprevisível, aquilo que poderia acontecer a
partir da criação, a diferença. Dessa forma, para além de apartar os indivíduos do “fora”, como é
característico nas sociedades disciplinares, nas sociedades chamadas de controle, o “fora” está
capturado na medida em que é modulado. Não se trata mais apenas de disciplinar os corpos em
espaço fechado, mas de controlar a céu aberto, “animal numa reserva, homem numa empresa
(coleira eletrônica)” (DELEUZE, 1992, p. 224). Não mais apenas o homem está separado do
“fora” pelo aprisionamento nas instituições de disciplina, mas, além disso, tem-se hoje o “fora”
capturado pela modulação do Estado e das empresas, o que vale dizer, aquilo que poderia devir
de possíveis criações é antecipado e colocado em ondas controladas. Essa modulação, como
exercício de poder para neutralizar a potência de proliferação da diferença, é uma sobreposição à
disciplinarização. Não foram deixados de lado as instituições disciplinares e os pensamentos
disciplinares, isto está evidente, há a escola, a fábrica etc., até hoje, o que se passa é que foram
somadas a isso tecnologias de subordinação do espaço ao tempo. Controle, sociedades de
controle. “Nas sociedades de controle, as relações de poder se expressam pela ação a distância de
70
uma mente sobre a outra, pela capacidade de afetar e ser afetado dos cérebros, midiatizada e
enriquecida pela tecnologia.” (LAZZARATO, 2006, p. 76).
1984/1948 Winston quer escrever em seu diário. Ter um caderno em branco e um lápis, escrever
livremente suas impressões e sentimentos sobre a vida é absolutamente proibido pelo Partido. É
absolutamente proibido ter ideias próprias. Winston se esgueira em uma fresta entre paredes,
único lugar da sala onde não pode ser visto pela teletela. Teletela: aparelho que tanto passa
programas do Partido, para justamente programar as mentes, quanto pode vigiar dentro das casas.
É impossível desligar a teletela.
1984/2012 Winston não quer escrever um diário. Winston tem um perfil em alguns sites de
relacionamento e se relaciona: expõe suas ideias e sentimentos, que tirou da TV. Winston não
quer se esconder, ele se expõe para todo o mundo. Winston não sai de casa sem seu celular. Ele
posta tudo o que se lhe acontece, imediatamente, na internet: todos devem saber, caso contrário
não aconteceu. Winston não pode estar desconectado. É impossível desligar o computador21.
Pode-se pensar então que o grande problema político de hoje seria o de se livrar da forma como o
Estado sujeita. É todo um conjunto de práticas de governo que determina as coreografias dos
corpos, a sintaxe dos pensamentos, as correntezas das mentes, governa mentalidade, governa
mente. Mente. E o Estado pode não ter tanta importância, não se deve atribuir-lhe tanta
importância, pensando como Estado. Resistir ao Estado é mais ignorar-lhe, subtrair-se de sua
forma imposta ao pensamento, desviar. Encontrar linhas de fuga, criar novas formas, novas
formas de pensar, de ocupar os espaços, de amar, etc., principalmente o etecétera, talvez, que é o
imprevisível, o não nomeado. “Temos que promover novas formas de subjetividade através da
21
Em 1984, romance do escritor britânico George Orwell escrito em 1948, lê-se a história de uma sociedade
totalmente vigiada de maneira rigorosa onde ter suas próprias ideias era crime. Essa sociedade era regida por um
governo totalitário e opressor. O mundo todo é dominado ostensivamente pelo Estado, o Partido, e o chefe é o
Grande Irmão (Big Brother). Todos são levados a amá-lo e a mais ninguém. Não há vida privada, todos são vigiados
por teletelas o tempo todo em todos os lugares tanto públicos como privados. Essas máquinas de recepção e
transmissão de imagens e sons não podiam ser desligadas e controlavam qualquer mínimo deslize, que era punido
severamente. A marcante frase “O Grande Irmão te vigia!” (“The Big Brother is watching you!”) é uma constante no
cotidiano das pessoas. Todos devem lealdade ao Partido e somente a ele. Não há arte. O sexo é praticado
exclusivamente para a reprodução. Todos estão dominados. A língua foi simplificada, a memória é controlada. A
verdade é determinada pelo Partido. Dois mais dois podem ser cinco se o Partido quiser, ou três, ou quatro. (p. 233).
71
recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos.” (FOUCAULT, 1995,
p. 239). Salientar: criar novas formas de subjetividade através da recusa desse tipo de
individualidade que o governo de Estado nos impõe.
Estado aqui não quer dizer o aparelho institucional dos poderes Legislativo, Executivo,
Judiciário, não se reduz à instituição Estado Moderno que vem sendo arrastada desde o século
XVII. Estado quer dizer o aparelho de modulação: forma de pensar-Estado, forma de sentir-
Estado, forma de agir-Estado. Reprodução-Estado.
72
dentro do modo de pensar de cada um. São os pais, desde os mais intelectualizados, que pensam
ser necessário vacinar seus filhos desde paralisia infantil até a inofensiva catapora, desejam:
nenhuma criança pode ficar doente de nada, nunca. Os mesmos pais que fazem as crianças
engolirem antibióticos preventivamente a qualquer febre sem pensar no problema além do corpo
de seus filhos, ecológico que estão avolumando ao escolherem isso. Talvez antes de lamentar os
corpos empilhados no campo de concentração tenha-se que verificar o quanto não se pensa como
o nazista. Os microfascismos: reprodução de fascismos na esfera individual e cotidiana, quase
imperceptíveis, porém devastadores.
Ainda segundo aquele texto de Deleuze e Guattari (1997b), a imagem clássica do pensamento
tem duas cabeças antitéticas e complementares, mutuamente necessárias: um imperium do
pensar-verdadeiro e uma república dos espíritos livres. “Há um hegelianismo de direita que
continua vivo na filosofia política oficial, e que solda o destino do pensamento e do Estado.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 45, nota 36). A realização da racionalidade de indivíduos
livres é estarem organizados no interior de Estados. A forma de organização social contratual
vem da decisão racional dos indivíduos que compõem os Estados. É como se o julgamento de
suprema racionalidade de um indivíduo fosse o de decidir só obedecer a si mesmo, à sua própria
73
razão, obedecendo ao Estado. Segundo os autores, Estado e pensamento, ambos, ganham com
isso: o pensamento apoia-se no Estado e o Estado dilata-se no pensamento. O pensamento ganha
uma gravidade que jamais conseguiria por si só, seu movimento emite uma força centrípeta que
faz crer que é devido a sua eficácia que se dá a existência de todas as coisas, inclusive a
existência do Estado. Por seu lado a forma-Estado ao distender-se assim por todo pensamento
ganha “algo de essencial”: todo um consenso. É assim que o pensamento faz aquilo que só ele
poderia fazer: inventar a ficção de uma universalidade para o Estado por direito, a ficção de
“elevar o Estado ao universal de direito”. Não se trata mais de bandos estranhos e organizações
extrínsecas poderosas, o homem moderno racional usa sua liberdade para conformar-se a si
mesmo na forma-Estado. O Estado assim se transforma no único princípio com poder de separar
os rebeldes, os selvagens, dos homens dóceis, que obedecem à sua razão na medida em que
reproduzem o Estado.
É uma curiosa troca que se produz entre Estado e razão, mas essa troca é
igualmente uma proposição analítica, visto que a razão realizada se confunde
com o Estado de direito, assim como o estado de fato é o devir da razão
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 45).
Pensar como Estado: legitimar a qualidade pela quantidade, acreditar na representatividade como
forma de relação humana, aceitar a cisão entre o que se pensa e o que se faz como inevitável,
aceitar a injustiça e a miséria como decorrentes de uma “natureza humana”, acreditar na razão
(cogitatio universalis) como ápice da perfeição do instrumento para solucionar os problemas da
existência, acreditar em um mundo único, acreditar na linearidade progressiva da vida, acreditar
no poder como uma força vertical contra a qual podemos resistir opondo força contrária,
fidelidade como monogamia, amor materno como incondicional, “todo um consenso” etc., são
alguns exemplos.
75
E a isso ainda se deve acrescer, atualmente, algo que já tinha sido previsto por Deleuze, nos
tempos dos primórdios da era da internet: o poder das empresas. Empresas transnacionais,
empresas cuja alma torna-se a de todos: o marketing. O poder das empresas que subjuga o poder
dos Estados nacionais em muitos casos. O poder das empresas com o qual os Estados têm de
compor para poder governar. Governam juntos. Governam a todos, governam a vida. Biopolítica
mais controle: todos participam. Não de um lado um Estado-empresa ativo subjugando cidadãos-
capturados passivos. Não há lados. Há uma globalidade do aparelho de Estado nas sociedades de
controle que pressupõe a participação ativa das subjetividades na captura da vida.
O controle opera não mais por confinamento, como nas sociedades disciplinares, mas pela
comunicação instantânea, midiatizada, mediada pelas mídias de comunicação, pela colaboração
entre os cérebros realizada por controle remoto. “Os indivíduos tornaram-se „dividuais‟,
divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou „bancos‟ (DELEUZE, 1992, p.
222). Fala-se demais. “Não nos falta comunicação, ao contrário, nós temos comunicação demais,
falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 140). A
tentativa incessante de se estabelecer todo um consenso, visando elevar “o senso comum à
condição de bom senso” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 247) por meio de “discussões” de
opiniões, movida pelo desejo de criar uma opinião, uma única opinião, compartilhada pela
maioria, a opinião do público, a opinião pública, legitimadora da realidade, é a tentativa de
captura das possibilidades de criação. É a captura da multiplicidade. Pois “[c]riar foi sempre
coisa distinta de comunicar” (DELEUZE, 1992, p. 217). Silvana Tótora leva a questionar a onda
de defesa da democracia participativa, bastante difundida a partir da década de 1970 do século
XX até hoje, que surge como alternativa às críticas à democracia representativa. A conclamação
insistente pela participação direta dos indivíduos nas tomadas de decisões políticas, que se torna a
76
participação ativa dos cidadãos na sua própria governamentalidade, passa a ser um direito a ser
defendido não apenas por ele, mas também por muitas Constituições inclusive a brasileira. “Os
chamados direitos do cidadão à participação traduzem o anseio por inclusão na maioria.”
(TÓTORA, 2006, p. 242-3). Captura da multiplicidade, modulação de possíveis desvios.
O grande problema político de hoje: re-existir. Criar outras formas de existir para rebater as pré-
programadas impostas formas de individualização governada. As formas a priori impostas à vida
reduzindo a multiplicidade a pares de opostos, reduzindo os possíveis a um mundo único. Criar
novas subjetividades, insistindo em existir, vivo. Movimentos constantes de existir, sem governo,
desgoverna-demente re-existir. Movimentos descontínuos, porém incessantes, de criação de
subjetividades remendando-louco, que mudam de natureza quando acrescidas de novas
dimensões a cada pedaço que se junta ou se desprega, a cada nova composição.
Christof, o criador do reality show da vida de Truman, concede uma entrevista na TV, que tem a
interação do público. É apresentado como o maior televisionário do mundo. Uma moça que era
atriz do show, Sylvia, por quem Truman se apaixonou na adolescência, ela que tentou avisá-lo da
farsa em que ele vive e que foi drasticamente retirada da trama do show, agora consegue falar
com Christof e o acusa de ser mentiroso e manipulador:
77
– Ele pode sair quando quiser. Se tivesse mais que uma mera ambição, se tivesse
realmente determinado a descobrir a verdade, não haveria maneira de detê-lo.
Acho que o que realmente a perturba é que no fim Truman prefere sua cela,
como você mesma a chamou.
– É aí que você se engana, se engana tanto. E ele vai provar isso.
Sylvia torce por Truman. Todos os milhões de espectadores do mundo torcem por Truman. O que
pode Truman?
Truman engana as câmeras, nada o detém, ele pega um barco, desgovernado vai, certo de sua
fuga, já sem trauma de água (resiste, devém), vai navegando pelo mar. As câmeras do programa o
acham, a produção, sob a direção de Christof manda uma enorme tempestade, ele se segura, grita
para o céu: “– Você vai ter de me matar!” Truman continua, o sol volta a brilhar, ele sorri, está
confiante, determinado, o barco vai, ele navega, navega e PLÁFT, subitamente a ponta da proa de
seu barco bate. Bate no horizonte. Tranco, o barco para, Truman está atônito, os espectadores
também. Truman chega ao limite do cenário, ele se choca contra a parede que delimita seu
mundo. A vida de Truman acaba ali. Ou começa. Vê uma escada, na enorme parede de fundo
infinito pintada de azul celeste com nuvens. Sai do barco e caminha com a água pelos joelhos.
Sobe a escada, há uma porta onde se lê: saída. Está prestes a entrar, ou sair, quando Christof fala
com ele com sua voz de Deus que vem do céu:
– Truman ...
– Quem é você?
– Sou o criador do show de televisão que dá esperança, alegria e inspiração a
milhões.
– Então, quem sou eu?
78
Ora, claro, se a vida é um “show” governado por outrem, quem sou eu? Quem sou eu que
supostamente deveria governar minha vida ou desgovernar. Quem sou eu, quem é essa criatura
que não decide nada que já não esteja planejado?
Tanto faz se nosso personagem é o único que não sabe que tudo isso não passa de uma farsa ou se
ele é o único que sabe. Não importa se ainda não inventaram uma tecnologia para injetar chips e
células de comando nas mentes ou se sim. Quem governa as mentalidades?
O que pode o homem verdadeiro, Truman? O que pode o “verdadeiro homem”?22 O imprevisível,
o devir, a criação. Truman sai do cenário e entra pela porta que encontrou no fim do horizonte
com o qual se chocou. Todos os milhões que assistiram sem respirar a cena da decisão de Truman
comemoram emocionados, se abraçam, choram. “Ele conseguiu!”, todos ficam felizes pelo
homem verdadeiro. É como se dissessem “– Agora ele é um „homem de verdade‟!”, como o
boneco de madeira Pinóquio quando é transformado em menino “de verdade” porque não precisa
mais do grilo falante preparando-lhe todas as decisões, ele adquire sua própria consciência, ele
pode agir por si mesmo. O homem de verdade decide, ele resiste, ele age: criação. Truman recusa
esse tipo de individualidade que estava sendo imposta a ele. Truman pode escapar de sua
identidade! Não deve mais coerência a seu eu, pode ser vários, pode transmutar, devir outro, não
ser. Liberta-se e é por isso que todos comemoram.
(Mas, ai, que crueldade do cineasta que na sequência dessa triunfal cena de libertação e regozijo
mostra os telespectadores retornando às suas vidas como se nada tivesse acontecido, como se
Truman, o homem verdadeiro, nunca tivesse existido não causando tanta empatia, adoração,
22
“O verdadeiro homem quer duas coisas: perigo e jogo. Por isso quer a mulher: o jogo mais perigoso”
(NIETZSCHE, 2011, Das velhas e novas mulherzinhas, p. [6-?]) Nietzsche. Para ele o “verdadeiro homem” é o que
vive de forma dionisíaca (um deus artista, para além da moral e da lógica, dos valores estabelecidos), com vontade
de potência (que nada tem a ver com vontade de ter poder de dominar, mas que é criação), em defesa da vida.
79
torcida. O capítulo Truman acaba e a “vida” volta ao normal, o normal, escolhe-se outro canal
para assistir...).
Quem é o verdadeiro homem? O verdadeiro homem pode ser qualquer um. Qualquer um pode
criar. Qualquer um pode sempre e de novo re- existir, insistir de novo em existir, insubmisso à
imposição de um eu, uma identidade-prisão e insubmisso às ondas que envolvem e levam,
inconformar-se de que a vida seja só isso, negar-se a deliciar-se com o regurgitado. “A invenção
não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência
do homem comum.” (PELBART, 2003, p. 23). O qualquer um que declina qualquer identidade,
não se opõem ao Estado termo a termo, recusando-se a espelhá-lo, escapa, cria, recusa a forma-
Estado/empresa.
“Todo mundo sob um ou outro aspecto, está tomado por um devir minoritário que o arrastaria por
caminhos desconhecidos caso consentisse em segui-lo.” (DELEUZE, 1992, p. 214). Consentir:
ser arrastado por um devir minoritário. Re-existir criando suas versões de si mesmo, dervixes
dançantes, suas versões, seus possíveis, mundos devires. Suas sub-versões, pois.
As relações de poder, como Foucault as coloca e como já foi dito, são sempre ação. São
especificamente o tipo de ação que age sobre a ação do outro. Esse tipo de ação está presente nas
relações sociais das mais diversas, desde as de trabalho até as sexuais. Não são, portanto, uma
exclusividade de alguns, são propriamente a trama das relações sociais, estão imbricadas no
micro da vida social, não se poderia pensar viver em sociedade sem as relações de poder. “Viver
em sociedade é, de qualquer maneira, viver de modo que seja possível a alguns agirem sobre a
ação dos outros.” (FOUCAULT, 1995, p. 246). As maneiras e ocasiões em que essas relações se
dão em uma sociedade são múltiplas, elas “superpõem-se, entrecruzam-se, limitam-se e anulam-
se, em certos casos e forçam-se em outros” (FOUCAULT, 1995, p. 247).
A invenção de saídas por parte de um indivíduo que tem suas possíveis ações determinadas por
outrem é, portanto, um exercício político fundamental para o Truman, o homem verdadeiro, para
o homem comum, para qualquer um. A resistência como re-existência, como forma de tentar
manter livre de governo as ações possíveis, mantê-las assim realmente possíveis de serem
atualizadas, é inseparável do exercício do poder, é parte constituinte do tecido social e, muito
importante, o é para qualquer um. É para qualquer um exercício de existência, de insistência em
80
existir, de re-existência. Assim, a resistência ao governo e ao controle, mais ainda, seria uma
exigência para qualquer um, como ação no mundo. Em princípio qualquer um pode desviar essa
ação que premedita e modula seus possíveis e um desenho simples de linha de fuga é o de criar
novos possíveis, imprevisíveis, imponderáveis, impenetráveis a planejamentos, esquivos a
premeditações, como vírus, o homem comum como quantum político, criando possíveis,
desgovernados, microscópicos, cotidianamente, como um imperativo contra o Império. Porém,
talvez, não se sabe o que se pode. E talvez, mais um talvez, caiba aos educadores, caiba aos
filósofos professores enunciar: educação como des-governamentalidade. Ensino de filosofia
como incitamento à criação de sub-versões, versões próprias. “[S]uscitar acontecimentos, mesmo
pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempo, mesmo de superfície ou
volume reduzidos.” (DELEUZE, 1992, p. 218). Talvez caiba aos professores filósofos denunciar
o intolerável de nosso tempo. O pensamento extemporâneo de Nietzsche: “agir de uma maneira
extemporânea, quer dizer, contra o tempo, portanto sobre o tempo e em favor (espero-o) de um
23
tempo que virá” . Pensar o ensino de filosofia contemporâneo de forma extemporânea. Pensar
contra o seu tempo é pensar o devir, devirescamente. Devir não é história. O devir foge, escapa à
história, para criar algo novo.
As filosofias políticas do século XVII estão tomadas pela tarefa de pensar filosoficamente o
Estado, tal qual ele vem se configurando desde então até os dias atuais. São filosofias
contaminadas pela noção de contrato, ou seja, pela ideia de que o estado social dos homens é uma
espécie de progresso em relação a um seu suposto estado de natureza. Progresso esse advindo de
uma decisão racional, que faz com que os homens escolham viver juntos, escolham firmar um
contrato, um contrato social, criando suas leis para garantir a segurança de cada um
individualmente, garantir o direito natural ao trabalho e à propriedade privada. Assim, a decisão
23
Esta frase de Nietzsche se encontra em Considerações Extemporâneas II - Da utilidade e desvantagem da história
para a vida, escrita em 1874. No entanto, o trecho em que ela aparece não foi contemplado na seleção feita por
Gérard Lebrun para o volume Obras Incompletas, publicado pela Abril Cultural. Deleuze a cita em Diferença e
repetição na página 17, em O que é a filosofia?, na página 144 e, ainda, no livro Nietzsche e a Filosofia, na página
122. Para uma simples conferência sugere-se cf. Nietzsche (2003b, p. 7) e Nietzsche (1999a, p. 39).
81
racional em defesa da vida se dá por meio da forma-Estado. São também, portanto, as filosofias
baseadas na ideia hegeliana de história que sustentam a ideia de utopia. A forma
hegeliana/marxiana de entender o mundo é uma forma de submissão à história, como em outras
referências encontraríamos a submissão a Deus. Trata-se de uma submissão necessária, isto é,
inexorável, à potência da história – e daí decorre o movimento de oposição bipolar/ da
contradição/ da impossibilidade de não-contradição/ da impossibilidade do compossível, isto é, a
impossibilidade do e, pois nesta perspectiva tudo é ou. Há aí um respeito aos movimentos
necessários dos fatos, respeito pelo sentido evidente dos fatos, respeito pelo fato em si, crença na
verdade e na existência do fato. Respeito esse que nada mais é que respeito pelos poderes/saberes
cujo interesse é manter a crença na verdade dos fatos, esses fatos e não outros; verdade e
existência que os tornam necessários como únicas possibilidades de criação do mundo, um
mundo. Trata-se de uma submissão aos poderes/saberes para os quais interessa a manutenção
dessa ordem, do mundo como está, como é; bem como todas as instituições que sobrevivem dessa
e nessa ordem dada: os Estados, as Igrejas, governos, o mercado, capital, empresas, os
marketings..., a escola. Essa obediência ao fato por si vem da crença ontológica na verdade como
a priori necessário, no homem como aquele que pode – como ato máximo de excelência
epistêmica, realizar essa verdade, revelando-a. Homem este fortemente centrado em sua
identidade, seriamente comprometido com a formação dessa identidade e preocupado com a sua
participação em um consenso geral e universalizante, a democracia: sujeitos racionalmente
organizados em Estados, “livres”, comerciando, defendendo suas vidas não-loucas. Mundo único
do ou, onde tudo está organizado, classificado, dividido em pares de opostos. Ou isto ou aquilo,
terceiro excluído, oprimidos ou opressores, homens ou mulheres, patrão ou empregado, adulto ou
criança, trabalho ou lazer, comunista ou capitalista, etc., ou. Mundo que, ou é esse ou terá de ser
outro, idealizado (lá no mundo das ideias), um mundo melhor, justamente ideal, transcendente.
Utopia: a possibilidade de resistência ao intolerável não está aqui, está em algum outro lugar, em
um não-lugar. O sonho da revolução. No entanto, esse não-lugar nunca chegará, ele está para
além de qualquer possibilidade de vida. Talvez por isso Deleuze tenha dito: “A utopia não é um
bom conceito: há antes uma "fabulação" comum ao povo e à arte. Seria preciso retomar a noção
bergsoniana de fabulação para dar-lhe um sentido político.” (DELEUZE, 1992, p. 215).
A resistência no mundo único do ou é a luta de acabar com um mundo para colocar outro em seu
lugar, a resistência ao intolerável é transcendente à vida do aqui e agora, é um ato histórico. Além
82
disso, ela é pensada como macro: grandes revoluções, grandes associações de classes, greve
geral, etc. Resistência remendando-louco é o próprio ato de existência remendando-louco. Não é
negação, não é oposição. Resistência é devir, é criação do novo, promoção da vida, na vida ela
mesma, aqui e agora. É a “revolução” do homem comum, ao alcance de qualquer um, como
plano de imanência, como movimento infinito de lançar e relançar lutas para conjurar a vergonha
e responder ao intolerável, a cada vez que a possibilidade de vida tenha sido capturada. “A
revolução é desterritorialização absoluta no ponto mesmo em que esta faz apelo à nova terra, ao
novo povo.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 131).
Porque é preciso retomar a noção bergsoniana de fabulação para dar-lhe um sentido político: “o
povo que falta”. Porque a arte é que resiste, resiste por fabulações. O povo também pode: resistir
por confabulações.
A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha. Mas
o povo não pode se ocupar de arte. Como poderia criar para si e criar a si próprio
em meio a abomináveis sofrimentos? Quando um povo se cria, é por seus
próprios meios, mas de maneira a reencontrar algo da arte [...] ou de maneira que
a arte reencontre o que lhe faltava (DELEUZE, 1992, p. 215).
Truman tem de trabalhar, levanta cedo, obedece ordens, tem contas a pagar. Não se trata de
torná-lo um artista para que possa criar suas saídas. Criar “o povo que falta” é o povo que vai
fazer, do seu jeito. Movimentos incessantes de ajuntar sempre outros pedaços, traçar rotas, criar
saídas, “desterritorializar-se de si mesmo renunciando, indo a outra parte” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997b, p. 14). Resistência remendando-louco, existência remendando-louco.
83
Devir é criar algo novo: vida. História não é devir. Talvez o que interesse a Deleuze (e a Guattari
e a tantos outros, ao leitor), seja a vida. Assim como a Nietzsche. Nas Considerações
Extemporâneas (ou Intempestivas, conforme a tradução), na segunda, intitulada Da utilidade e
desvantagem da história para a vida, Nietzsche afirma a necessidade de um certo
“esquecimento” para o agir (“sentir a-historicamente”)24, do mesmo modo que, para a
manutenção da vida daquilo que é orgânico, há a necessidade de trevas, além da luz. Viver
sempre historicamente e não esquecer-se nunca, acaba com a vida. História não é devir25.
Deleuze desconfia da palavra utopia, apesar de que ainda a use “(embora talvez a utopia não seja
a melhor palavra, em razão do sentido mutilado que a opinião lhe deu.)” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 131). A usa para significar uma outra coisa, quase o oposto do sentido
mutilado que a opinião lhe deu. “A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler, 'Erewhon',
não remete somente a 'No-Where', ou a parte nenhuma, mas a 'Now-Here', aqui-agora.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 130).
Eis aqui. Eis a reversão total do conceito de utopia: de não-lugar para aqui-agora; do lugar lá,
longe, sonhado, idealizado, para o lugar imediato, lugar carne viva, vivo, a vida como ela é, aqui
e agora, o melhor lugar do mundo, o único lugar do mundo (o que não significa dizer mundo
único). Da transcendência à imanência num desembaraçar de letras. Da utopia à fabulação.
O povo é sempre uma minoria. “Pois a raça invocada pela arte ou a filosofia não é a que se
pretende pura, mas uma raça oprimida, bastarda, inferior, anárquica, nômade, irremediavelmente
menor.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 141).
É verdade que toda obra de arte é um monumento, mas o monumento não é aqui
o que comemora o passado, é um bloco de sensações presentes que só devem a
si mesmas sua própria conservação, e dão ao acontecimento o composto que o
celebra. O ato do monumento não é a memória, mas a fabulação. Não se escreve
com lembranças de infância, mas por blocos de infância, que são devires-criança
do presente (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 218).
24
A este respeito cf. Nietzsche (1978, II, §1).
25
“Graças a Nietzsche, descobrimos o intempestivo como sendo mais profundo que o tempo e a eternidade: a
Filosofia não é Filosofia da história, nem Filosofia do eterno, mas intempestiva, sempre e só intempestiva, isto é,
„contra este tempo, a favor, e assim o espero, de um tempo por vir‟.” (DELEUZE, 2006a, p. 17).
84
Arte não é história. Arte não se faz com memória, mas com fabulação, com devires, do presente,
imanentes, acontecimentais, now-here.
A fabulação criadora nada tem a ver com uma lembrança mesmo amplificada, nem
com um fantasma. [...] Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de
tentar fazê-lo em um combate incerto. Os perceptos podem ser telescópicos ou
microscópicos, dão aos personagens e às paisagens as dimensões de gigantes, como se
estivessem repletos de uma vida à qual nenhuma percepção vivida pode atingir.
[...]
toda fabulação é fabricação de gigantes. Medíocres ou grandiosos, são
demasiadamente vivos para serem vivíveis ou vividos (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 222-3).
Fazer transbordar de vida, “[s]aturar cada átomo” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 223), que é
como os filósofos dizem que Virgínia Woolf responde à pergunta sobre como fazer um
monumento durar. E também Kafka sobre as literaturas menores “O que no seio das grandes
literaturas [...] provoca um tumulto passageiro, aqui não provoca nada menos do que uma
sentença de vida ou de morte” (KAFKA, Journal, p. 182 apud DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.
26). Criar linhas de fuga que façam com que a vida possa se liberar, criar gigantes, grandes
demais para não ser apenas vida, não vivíveis no futuro ou vividos no passado, mas vivos now-
here. Fabular em política, ao invés de inventar utopias, é criar o povo que falta. O artista não
pode criar o povo, o povo pode criar-se a si, como na arte, por fabulações. Criar gigantes, fazer a
vida extravasar. O povo cria o povo. O povo cria-se a si mesmo no remendando-louco da vida, na
imanência das enunciações e ações no aqui agora, qualquer um pode isso, Truman, o homem de
verdade faz, cria formas de sair. “A fabulação criadora nada tem a ver com uma lembrança
mesmo amplificada, nem com um fantasma. [...] Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é
prisioneira, ou de tentar fazê-lo em um combate incerto.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.
222).
Eis a oportunidade, neste exato momento do pensamento, para deixar o conceito que não é bom –
utopia, e começar a usar fabulação no sentido político. O pensamento extemporâneo está fora de
seu tempo não por outro motivo qualquer que não seja porque ele pensa contra o seu tempo. Ele
denuncia o intolerável do seu tempo, ele pensa o presente contra o presente e o faz esperando que
85
esteja fazendo em favor de um tempo por vir. Nada disso, no entanto, se dá na unidade, trata-se
de multiplicidade de mundos possíveis. Uma diferença fundamental, talvez, seja justamente esta:
não se trata de, a partir da observação crítica do mundo presente, considerado como único,
formado por universais (o Homem, a História, o Trabalho, a Felicidade, etc.), disposto em pares
de opostos sem terceira possibilidade, propor uma oposição, uma apenas, idealizando um outro
mundo para tomar o lugar desse, usando os mesmos universais e os mesmos pares de opostos. O
revolucionário, hoje, é não desejar a revolução, não desejar o reducionismo dessa revolução.
“[U]ma postura realista exige não apenas que desistamos de esperar pela „Revolução‟, mas
também que desistamos de deseja-la.” (BEY, 2004, p. 18). Ao invés disso, como Nietzsche,
pensar o presente contra o presente, “agir de maneira extemporânea”. Pensar e agir, como diz
Nietzsche (trata-se de ação, não só do pensamento), de forma extemporânea é transformar o lugar
em movimento. O lugar e o não-lugar não são mais pontos, pontos fixos; não se está mais
obrigado a passar de um para outro para realizar o homem, a história, a razão. O lugar passa a ser
a linha, o movimento, o próprio deslocamento, nômade. O pensamento que pensa contra seu
tempo é o pensamento que reativa sua relação com a vida, o novo, a criação, remendar
loucamente.
No mundo único das filosofias políticas do sujeito e da utopia, ou estamos bem no presente, ou
não estamos e idealizamos um outro mundo. Nesse outro mundo tudo é grandioso, tudo é
universal, superior, exterior. Ao passo que quando se pensa em fabular mundos, outros mundos
compossíveis, há uma multiplicidade infinita de infinitesimais forças turbilhonando de forma des-
organizada. A ação e o pensamento extemporâneos não são a realização de um possível
anteriormente idealizado, os possíveis têm de ser criados, eles mesmos.
26
A dificuldade conceitual aqui é entender que Deleuze usa termos modernos, iluministas, humanistas – tudo quanto
sua filosofia não é -, como por exemplo, mundo, revolução, resistência, povo etc. para criar noções completamente
distintas das que automaticamente nos vêm à cabeça. Peter Pál Pelbart tem um excelente artigo onde aborda essa
dificuldade de compreensão da filosofia de Deleuze quando se tenta classificá-la. Cf. o capítulo “Deleuze e a Pós-
Modernidade” em Pelbart (2003).
86
sentir, novas crenças, que liberem a vida onde ela foi capturada no presente, sonhar com esse
mesmo presente, sonhar na ação, não por meio dos universais modernos, mas das moléculas que
podem cria n possíveis. Resistência é criação, na arte e na política, na ética, na criação de si
mesmo.
No curso de 1978, intitulado Segurança, Território, População, fica explícito que, para Foucault,
a análise dos tipos de governamentalidade é indissociável da análise das formas de resistência. Há
ali um detalhado estudo arqueológico dos movimentos de resistência ou “contraconduta” na
Idade Média em relação ao poder pastoral, assim como na Modernidade em relação à razão de
Estado. Esses movimentos de, como chama Foucault, contracondutas, movimentos de oposição e
escape à condução da conduta, como ação política de re-existência são, como já foi dito,
inerentes ao exercício do poder na constituição do viver em sociedade.
No final do livro, que é a transcrição do curso, há uma nota de Michel Senellart, o organizador da
edição, em que ele fala de um trecho dos manuscritos de Foucault para o curso no qual a
governamentalidade é definida como “generalidade singular”.
27
Há uma inserção na nota no texto original indicando que esta é uma parte do manuscrito sobre a
governamentalidade, escrito à mão, e a supressão que aparece no texto se deve ao não entendimento da caligrafia de
Foucault.
87
Cabe-nos perguntar quais são as formas de “contraconduta”, de resistência, ou ainda re-
existência, que esses movimentos podem adquirir atualmente na educação e especificamente no
ensino de filosofia?
88
Comunicação e enunciação. Problemas e sub-versões
89
Fala-se demais.
O que se tem para comunicar? Todos conectados, o importante é estar conectado à grande rede de
comunicação global, televisão-internet, cartazes-rádio, todos nessa onda, todos faladores-
minutos-ilimitados, fale, fale, fale, expresse sua opinião, nião, ão, ão, participe da enquete, éte, o
que você acha, a, a, a? Participe, vote, quem vai para o paredão? Não é preciso criar nada, apenas
reproduza blá-blá-blá, tagarelice, não fique sem assunto: leia a revista Seja, comunique-se:
reproduza o blá. Requente-se o blá: reproduza o blá. Blá-blá-blá. Regurgite-se o blá: reproduza o
blá. Não importa o que falar, torpedo, falar-blá. Repita comigo: blá. Palavras de ordem, de ordem
de pensamento. Comandos, respostas, respostas, nenhuma pergunta, nenhuma questão, não há
problemas: reproduzir as decisões de marketing: blá-blá. O que têm para comunicar, os
faladores? Opinião.
A filosofia, de sua parte, nada tem a ver com comunicação. Filosofia pode ser busca de
conhecimento das essências, método de se chegar à verdade, dependendo da filosofia, pode ser
pensamento autônomo, pode ser reflexão, crítica, filosofia pode ser criação de conceitos.
Filosofia não é comunicação. Não há o que comunicar. Fazer valer aqui as palavras do líder do
movimento modernista Dadaísta, Tristan Tzara (1987, p. 12): “Dada não quer dizer nada” 28. –
Filosofia não quer dizer nada. Não tem nada a dizer. Não tem nada a comunicar-blá.
28
Tradução livre da versão em inglês onde se lê: “dada means nothing.” Disponível em:
<http://www.mariabuszek.com/kcai/DadaSurrealism/DadaSurrReadings/TzaraD1.pdf> A referência no texto
pertence à tradução portuguesa disponível em: <http://www.scribd.com/doc/43205231/Tristan-Tzara-Sete-
Manifestos-DADA-Hiena-Editora-1987> Acesso em: 7 maio 2012 (para os dois endereços).
91
Filosofia é criação. Filosofia é experiência de pensamento. Filosofia é experiência de pensamento
a partir de problemas. E dirá Deleuze (2006a, p. 267): “O problema, como objeto da Ideia,
encontra-se ao lado dos acontecimentos, das afecções, dos acidentes, mais do que da essência
teoremática.”
O acontecimento para Deleuze tem duas dimensões: o da enunciação, feita por meio dos signos e
o da efetuação nos corpos, através da ação. “[O] acontecimento é inseparavelmente o sentido das
frases e o devir do mundo; é o que, do mundo, deixa-se envolver na linguagem e permite que
funcione.” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 17). Portanto o acontecimento é produção de sentido e
devir.
O malogro em criar novos mundos, outros possíveis, é dado pelo fato de a enunciação não passar
de anunciação, o blá-blá-blá, a propaganda, a palavra de ordem, o assunto da semana que o
público médio tem de discutir. E a efetuação se restringe a reprodução, o regurgitar do mundo
pronto, o mundo-marketing. “Criar não é comunicar mas resistir. Há um liame profundo entre os
signos, o acontecimento, a vida, o vitalismo.” (DELEUZE, 1992, p. 179). Mesmo quando se
consegue enunciar outros mundos, outras possibilidades de vida, outros modos de ensinar, no
neste caso específico, raramente se consegue efetuar, na ação concreta, essas enunciações.
Citamos Deleuze:
29
Raul Seixas. “Mosca na Sopa”, álbum Krig-ha, Bandolo, 1973.
92
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o
mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente
suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou
engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos [...]
É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao
contrário, a submissão a um controle (DELEUZE, 1992, p. 218).
Como “acreditar no mundo” perante os alunos, sim, talvez essa seja uma forma de efetuar estas
enunciações de outros ensinos: acreditar no mundo perante os alunos. Não se trata de fazê-los
acreditar porque isso seria doutrinação, seria dominação, não se trata de fazê-los acreditar neste
ou naquele mundo, mas sim de, perante eles, acreditar em um mundo possível, em mundos
possíveis, a serem inventados. E isto é prático. “Acreditar no mundo” perante os alunos pode ser
uma prática de ensino.
30
Referência ao homem da Indústria Cultural de Theodor Adorno e Max Horkheimer. Cf. A Dialética do
Esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
93
comunicam a comunicação, “quem não se comunica se trumbica”31. Por que? Por que têm de se
comunicar, os faladores? Tem-se de estar ligado, plugado, conectado. Do que tanto tem-se de
falar? O que tanto é falado? A quem interessa que se esteja distraído dos próprios problemas,
tagarelando inúteis reproduções? Trata-se de suscitar acontecimentos que resistam à
obrigatoriedade de reprodução do blá-blá, suscitar acontecimentos que resistam à obrigatoriedade
de reprodução dos modos de vida dados, pré-determinados, resistir ao preenchimento do tempo
de nossas vidas.
Segunda tentativa: “suscitar acontecimentos que escapem ao controle” pode ser suscitar
acontecimentos que fujam ao controle de quem os suscita. Suscitar acontecimentos talvez deva
ser justamente isso: o imprevisível, o sem controle. Como por exemplo, ensinar algo que não se
sabe, ao modo de Jacotot32. E no caso específico do ensino de filosofia poderia ser: ensinar o que
não se sabe onde vai dar, e no que vai chegar. Aula-acontecimento. Instigar a criação sem saber o
que poderá vir à tona. Criação de subversões. Que coragem, senhores, que coragem é preciso ter
para isso! Diria o símio kafkiano em seu relatório para a academia.
Ensino de filosofia aqui é entendido como prática. Praticar junto. O que poderia ser “suscitar
acontecimentos” no ensino de filosofia? Ensino de filosofia como experiência. Citar Burroughs,
escritor estadunidense contemporâneo: “[...][E]xperimental no sentido de ser algo a fazer [...]
Não algo sobre o que falar ou discutir. Filósofos gregos assumiram logicamente que um objeto
duas vezes mais pesado que outro, cairia duas vezes mais rápido. Não ocorreu a eles empurrar os
dois objetos além da mesa e ver como eles caem.”33 (BURROUGHS, [20--?], s/p). Burroughs não
31
Referência ao bordão do memorável Chacrinha, Abelardo Barbosa, show-man debochadíssimo, apresentador de
programa de auditório, que beirava o grotesco, apesar de ter sido espaço para revelação de muitos artistas, na
televisão brasileira entre as décadas de 50 e 80 do século XX. Considerado um grande “comunicador”, é o autor da
célebre frase: “Na televisão nada se cria, tudo se copia”.
32
Em 1987, Jacques Rancière, filósofo francês, lança seu livro intitulado O Mestre Ignorante, cinco lições sobre
emancipação intelectual, livro que chega ao Brasil em 2002 e no qual ele reativa a experiência pedagógica, bastante
singular, realizada em 1818, pelo também francês Joseph Jacotot. Por meio de uma experiência pedagógica ocorrida
na Holanda, o pedagogo francês passa a questionar a fundamental função explicativa do professor, desembocando
em uma crítica à sociedade pedagogizada. Trata-se de uma experiência filosófica muito particular que resulta na
teoria do Ensino Universal. “Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode
compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um
mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes (RANCIÈRE, 2002, p.24). Tanto naquela época como hoje
– e, segundo Rancière, é justamente a atualidade da obra de Jacotot que o leva a reativá-la – a educação é concebida
como o instrumento de progressão dos sujeitos submetidos a ela.
33
“It is experimental in the sense of being something to do. Right here write now. Not something to talk and argue
about. Greek philosophers assumed logically that an object twice as heavy as another object would fall twice as fast.
It did not occur to them to push the two objects off the table and see how they fall. Cut the words and see how they
94
estava falando de ciência, como se poderia pensar, estava falando de como fazer poemas e estava
falando de experiência. O que poderia ser ensinar filosofia como experiência? Como poderia ser
deixar de falar sobre, de discutir sobre, de comunicar, para se passar a experimentar?
Experimentar juntos. Como poderia ser experimentar fazer filosofia com os alunos?
Para que a aprendizagem seja experiência, o ensino tem de ser experiência. E isso se dá por meio
de problemas. A experiência filosófica no pensamento se dá a partir de problemas. Os problemas
originalmente formulados, não se necessita dos problemas de outrem, nada teria-se de
experimental a fazer com eles. Os problemas de que trata a filosofia todos têm, são os problemas
da existência humana. Cada um está sensibilizado por eles de formas distintas, com diferentes
intensidades e interesses, uns são mais incômodos que outros, uns mais insistentes, alguns
reincidem. Debatem-se contra eles e tem-se que fazer algo para se protejer. O senso comum é
uma forma muito difundida para cumprir essa função. Esse consenso é tão eficiente para proteger
do incômodo dos problemas, que os põem a parte e faz com que eles sumam. Atualmente é muito
fácil ter uma opinião: ela passa na TV. Ela é emitida como vírus: transmissão, ela é o blá. Blá-
blá. É a comunicação-marketing. Não é necessário muito esforço, pois não há que se escolher
uma opinião, ela é uma só, ela está lá, está em todos os lugares e entra pelas nossas gargantas e
enche todo o nosso corpo, preenche todo o nosso tempo e se instala como um receptor-
transmissor em nossos cérebros que colaboram entre si, em sintonia, em uníssono. “O importante
talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle”
(DELEUZE, 1992, p. 217). Interruptores. Criar desvios na onda. Elaborar problemas que calem
as respostas. Escapes. Criar novas formas de vida. Criar outros mundos possíveis que não o
mundo único das empresas.
Ensinar filosofia como experiência é uma prática. Afeta-se os alunos, causa-se choques, bons e
ruins, instiga-se a eles a formularem filosoficamente seus problemas, causa-se paralisia nas
ideias que eles já têm, provoca-se confusão, esfola-se a eles, opera-se a vontade de buscar,
pratica-se os instrumentos específicos da filosofia, estuda-se alguns modelos, decifra-se seus
modos de funcionamento, ensaia-se versões próprias.
95
Sementes ao vento. A árvore sem folhas, carregada de vargens cheias de sementes, como um
flamboyant. As vargens se ressecam e racham e dos vãos que se abrem em cada uma delas, se
desprendem e escapam sementes de seda finíssima, que voam, voam ao vento. Centenas, talvez
milhares. Uma pousou aqui, no pires do café, se encharcou e descerá pelo ralo com a água do
enxágüe do detergente, na pia. Quantas outras pousaram onde? Sementes ao vento.
[O] cinema não nos dá a presença do corpo, e não pode dar, talvez seja também
porque se propõe outro objetivo: estende sobre nós uma „noite experimental‟ ou
um espaço branco, opera com „grãos dançantes‟ e „poeira luminosa‟, afeta o
visível com uma perturbação fundamental, e o mundo com um suspense, que
contradizem toda percepção natural. Produz assim a gênese de um „corpo
desconhecido‟, que temos atrás da cabeça, como o impensado no pensamento,
nascimento do visível que ainda se esconde à vista (DELEUZE, 2005a, p. 241).
O cinema não nos dá a presença do corpo tanto quanto o ensino não nos dá a presença da
filosofia. É proposto, então, um outro objetivo: um dia experimental, sementes ao vento, afetar os
corpos com uma perturbação fundamental, criar um suspense, contradizer a percepção natural,
produzir o impensado no pensamento.
Ensinar filosofia como experiência é se permitir que os alunos passem por experiência filosófica.
A experiência é um estado de atravessamentos. Algo muda nas subjetividades. Coisas são
acopladas, vão se juntando, remendando em movimento. As ferramentas que a filosofia tem para
lidar com os problemas da existência humana são específicas. E é com elas que os alunos vão
aprender a lidar para poderem ensaiar as suas próprias versões de mundo, ensaiar enunciações de
outros mundos possíveis.
96
ensino-modulação, essas coisas nada tem a ver com filosofia. Trata-se de um ensino-
acontecimento. Sementes ao vento. Como falava Zaratustra: “A melhor sabedoria é esquecer e
passar.” (NIETZSCHE, 2011, O regresso, p. [17-?]). Diferentemente do ensino de linguagens,
como por exemplo, o português ou a matemática regularmente dados nas escolas, que fornecem
também eles ferramentas aos alunos, porém com o objetivo estrito de produção de enunciados
consonantes à ordem instituída, aos significados estabelecidos.
É desejável que as ferramentas da filosofia possam ter usos imprevisíveis para criar o novo, e
portanto, imponderáveis. Ferramentas, como as dos artistas, de criação, invenção e não de
produção como realização de pré-planejados, como o é para os operários.
Há atualmente toda uma discussão em torno da questão de que não há aprendizagem necessária a
partir de um ensino, nunca se sabe como se aprende. Mas ainda, além disso, não se quer poder
controlar o que se vai fazer com o que se aprende e como se vai realizar: que os ensinamentos da
filosofia possam servir para alçar devires. Não querer esse poder. Reivindicar essa impotência,
necessária. Como os personagens de Beckett que brincam com o possível sem realizá-los, como
afirma Deleuze. Veja-se isto mais de perto: o esgotado (DELEUZE, 2010) esgotou todo o
possível, é mais do que o cansado que não tem mais nenhuma possibilidade subjetiva e por isso
não pode realizar mais qualquer possível, mas, no entanto, o possível permanece, já que nunca se
realiza todo o possível, sendo este é criado no próprio movimento da sua realização. “O cansado
apenas esgotou a realização, enquanto o esgotado esgota todo o possível. O cansado não pode
mais realizar, mas o esgotado não pode mais possibilitar.” (DELEUZE, 2010, p. 67). Sempre que
um possível é realizado o é em função de determinados objetivos, escolhas, planos que se faz. A
dinâmica das escolhas é excludente: passa-se de uma a outra, escolhe-se uma em detrimento da
outra. A linguagem enuncia o possível, mas o faz em função de uma determinada realização que
97
varia, pois se escolhe uma coisa e depois outra, escolhe-se uma coisa ao invés de outra, em um
movimento de exclusão. E Deleuze diz que são essas variáveis e substituições que cansam. No
esgotamento outra coisa se passa, pode-se estar cansados de alguma coisa, mas quando esgotado,
se está de nada. No esgotamento não há determinação de objetivos e escolhas e sem escolhas a
disjunção é inclusiva.
Não é que se esteja cansado das realizações de ensino de filosofia já empreendidos, esgotem!
Esgotem-se os possíveis do ensino de filosofia quer dizer, deixe-se que tudo aí seja possível, que
sejam os alunos a realizarem algum possível, que sejam eles a tomarem as decisões e
determinarem os objetivos do que farão com o que se ensina a eles. Renunciar a determinar uma
ordem e um significado. Clamar por novas sintaxes, outras, para que os alunos possam criar as
suas próprias versões dos mundos e que as criem com o auxílio luxuoso da filosofia. Essas
possíveis versões dos alunos são desvios da versão maior do mundo-único-das-empresas. São
versões menores. Gilles Deleuze e Félix Guattari a respeito de Kafka: “Uma literatura menor não
é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior [...] nelas tudo é
político [...] tudo adquire um valor coletivo.” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 25, 26 e 27). As
versões dos alunos de filosofia, portanto, seriam versões menores: sub-versões. Sub-versões de
mundos possíveis a partir de um ensino de filosofia como prática de enunciar problemas. A
filosofia é viva, de forma que se trata de sub-versões como resistência. Insistência: entender
resistência como re-existência. Insistir em existir, insistir na vida, reincidir na existência a cada
vez que a vida é capturada. Pensamos em um ensino de filosofia assim, como re-existência.
Trata-se de um determinado ensino de filosofia que pode ser a atualização nos corpos dessa
enunciação da possibilidade de resistência como re-existência na criação de novos mundos. Um
determinado ensino de filosofia que seja acontecimento, ou seja, que transforme as subjetividades
porque faça mudar o jeito de sentir não sendo mais suportável aquilo que suportavam
98
(LAZZARATO, 2006), acontecimento que opera uma redistribuição dos desejos e das crenças.
Como se sabe, o acontecimento é enunciado e depois deve ser atualizado para devir realidade. O
acontecimento atravessa as subjetividades trazendo novas formas de sentir e de julgar.
Repetir: está enunciado aqui ser possível a criação de sempre outros mundos e outras
subjetividades. Enunciou-se a criação como resistência, re-existência, insistência do desejo de
des-governar as mentes. A partir disso querer pensar uma prática dessa criação que possa se
configurar como a atualização desse enunciado, criando uma nova realidade, um novo mundo:
um acontecimento. Uma prática de ensino de filosofia como acontecimento, como poderia se dar
isso?
Entende-se aqui que a filosofia não é uma reflexão crítica sobre um objeto. A filosofia não é
discussão. Ela é criação. Esta é a concepção de Deleuze.
O conceito, criação da filosofia por excelência, é uma resposta a uma necessidade. A necessidade
de um conceito se impõe a partir de um problema. A elaboração de problemas e a elaboração de
possíveis respostas a esses problemas é mais da atividade filosófica do que teorias, críticas ou
reflexivas. É o problema que incomoda que move o pensamento. O pensamento precisa ser
provocado, deve haver um incômodo a ser transposto, uma estranheza insuportável que gere a
99
necessidade de pensar. “[...] é absolutamente necessário que ele [o pensamento] nasça, por
arrombamento, do fortuito do mundo. O que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a
violência, é o inimigo [...]” (DELEUZE, 2006a, p. 203).
Pensa-se um determinado ensino de filosofia que propicie aos jovens condições para ensaiarem
filosoficamente a criação de sub-versões à versão oficial do mundo. Quer-se que eles formulem
seus próprios problemas e que lidem com eles na escola, filosoficamente. Defende-se que os
jovens criem suas próprias versões de si mesmos e do mundo e para isso é necessário
instrumentalizá-los filosoficamente. Seria o incentivo à criação de versões menores. Não se trata
de ensino para a democracia, a formação do cidadão, a instrumentalização para o pensamento
temente ao deus Mercado. Não se trata de comunicação, não se trata de transmissão, de despertar
da consciência, não é moralização ou consenso. A filosofia não vai compactuar com a ordem
imposta do mundo único e seus pares de opostos impotentes.
Enfrentar a vergonha de ser homem “nas condições insignificantes, ante a baixeza e a vulgaridade
da existência que impregnam as democracias, ante a propagação desses modos de existência e de
pensamento-para-o-mercado, ante os valores, os ideais e opiniões de nossa época” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 140) por meio de um ensino de filosofia que incite à criação de sub-
versões: fazer como um animal, rosnar, relinchar, cavar tocas subterrâneas. Não se pensa em
democracias, democracias são pensamento de Estado, democracias são maiorias.
Deleuze e Guattari quando escrevem Kafka, por uma literatura menor estão menos interessados
em analisar a obra do escritor austro-húngaro/tcheco, do que a usam como suporte para pensarem
as questões da enunciação e da expressão, do desejo e dos agenciamentos. Ao criarem o conceito
de “menor” usando-o em relação à literatura, abrem para todos os pensantes quaisquer, a
100
possibilidade de usar também esse conceito em outros problemas. Menor ali está sendo entendido
não no sentido moderno de menoridade intelectual como baixa capacidade de discernimento
racional e conseqüente menor capacidade no uso da liberdade. Menor aí se refere a um uso
específico que uma minoria faz da língua oficial, maior. “Uma literatura menor não é a de uma
língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1977, p. 25). Neste tipo de literatura tudo é político, cada caso particular adquire
um valor coletivo. Cada caso particular está conectado a outras dimensões, um triângulo familiar
se conecta a um triângulo comercial, outro econômico, jurídico, burocrático, que vão definindo os
valores do primeiro. Segundo os autores, Kafka renuncia à bipolaridade do sujeito de enunciação:
o narrador e o personagem. Troca esse sujeito de enunciação pelo agenciamento coletivo de
enunciação. Esta literatura que faz uma enunciação coletiva exprime uma outra comunidade
potencial, forja os meios de uma outra consciência e sensibilidade. “[...] „menor‟ não qualifica
mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que
chamamos de grande (ou estabelecida).” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 28). É uma literatura
acontecimental. Um exercício específico, menor, revolucionário, dentro de uma língua maior é o
que a torna uma máquina coletiva de expressão. É expressão de uma minoria que se refere a um
povo. Minoria aqui, no entanto, não diz respeito à quantidade.
É neste sentido que se quer usar estes dois vocábulos conectados por um hífen: sub-versões, no
sentido de versões menores, ou seja, versões que façam a enunciação coletiva de uma minoria.
Pensa-se um determinado ensino de filosofia que trate de criar as condições para que os
estudantes possam, pela filosofia, enxamear suas versões próprias, que eles se tornem máquinas
de expressão e que suas versões sejam máquinas de guerra contra os aparelhos de Estado de hoje:
contra o capitalismo financeiro nanotecnológico de controle que nos captura a vida, contra a
forma Estado/empresa de pensar e de sentir.
101
O sentido que normalmente se encontra para subverter é, via de regra, um sentido negativo, de
destruição. Subverter pode significar revolver de baixo para cima, destruir, arruinar, transtornar a
ordem estabelecida, revoltar-se contra as instituições, contra a moral instituída, tumultuar,
perturbar o funcionamento normal, insubordinar-se contra a autoridade aceita pela maioria.
Assim como também, em um sentido político, subversão pode ser “conjunto de ações
sistemáticas, efetuadas por elementos internos, que visam minar e derrubar um sistema político,
econômico ou social” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1784). Ou seja, os significados todos
convergem para o sentido de negar, de oposição a algo para destruí-lo. No entanto, a sub-versão
está sendo pensada como criação, isto é, como uma ação afirmativa. Que seja uma sub-versão por
ela mesma, não sendo uma reação, não condicionando sua existência a algo a que se opor.
Seriam, portanto, sub-versões afirmativas, afirmativas da vida, criações de re-existências.
Assim sendo, pode-se assumir também outros significados de versão e versar. Versar pode
significar fazer estudo minucioso, examinar, fazer exercício ou treino, tratar de um assunto, assim
como também pode ser pôr em versos.
Versão pode ter o sentido de tradução de um texto de uma língua para outra ou ato de esclarecer
algum fato ou assunto, interpretação.
O verso pode ser a subdivisão de um poema ou também o verso é a parte de trás, a face posterior,
o lado oposto ao principal, o reverso.
Desta maneira, quando se fala em criação de sub-versão pode-se estar falando da criação de um
pedaço menor do poema principal ou um pedaço do poema principal que se situa na sua face
posterior ou de um pedaço do poema que seja um seu reverso ou de tudo isto ao mesmo tempo.
De qualquer maneira, seja qual for a composição que se faça com as palavras e seus significados
entende-se que a criação de sub-versões é, no sentido dado, ato de resistência como re-
existência, insistência em existir, afirmação da vida. Resistência que pode ser alegre, que é sim
oposição aos mecanismos e dispositivos desse capitalismo que reiteradamente se lançam contra
nós nos suprimindo a vida, mas essa oposição não é termo a termo, não se dá no mesmo plano,
por isso pode ser de dentro criando o fora. Se fala, aqui, de ensino que incentive a criação de sub-
versões como invenção de novas armas.
102
Dessa mesma forma se pensa em um ensino de filosofia como acontecimento: um ensino menor
de filosofia que seja um movimento propulsor e uma instrumentalização para os jovens ensaiarem
suas próprias versões dos mundos possíveis. Os jovens desterritorializados em seus corpos
mutantes, na infância, na sexualidade, na vida adulta, nos seus desejos, nas expectativas dos
outros, na impossibilidade de se comunicar34, podem ser ensinados a praticar filosofias como
forma de enunciação coletiva de suas ideias e formas de sentir, de suas versões do mundo, suas
sub-versões, portanto. Os jovens estudantes são uma comunidade potencial que pode, por meio
de um determinado ensino de filosofia, ensaiar a criação de novos mundos, suas versões, suas
versões menores, sub-versões. Ensinar a criação filosófica de outros versos, versos e reversos,
sem governo, em defesa da multiplicidade, em defesa da criação do novo, da vida. Assim os
instrumentos da filosofia serão armas.
Trata-se de um determinado ensino de filosofia que trate de criar as condições para que os
estudantes possam, pela filosofia, enxamear suas versões próprias, que eles possam enunciar
novos mundos e que suas versões sejam armas contra as técnicas de captura da vida a qual se está
submetido hoje, que sejam resistência, re-existência. Que possam elaborar problemas que calem
as respostas, as respostas prontas, as respostas do mundo sem questões. Que suas próprias
versões, versões menores, sub-versões sejam armas para enfrentar o embarque em ondas de
modulação de desejos e crenças, para combater o governo das mentes e corpos, desenhando
linhas de fuga à governamentalidade, ao controle, criando, devirescamente. Sub-versões são
enunciações, não são comunicação.
34
Cf. Paranoid Park de Gus Van Sant, EUA, 2007.
103
os índios e a corrida de toras
105
Do ensino de filosofia como re-existência: estar fora e dentro ao mesmo tempo.
Viajar sem sair do lugar
107
Sabe-se, a partir de Foucault, que o poder soberano desenvolve suas ações baseado na máxima
“deixar viver e fazer morrer”, que posteriormente é trocada- nas sociedades administradas pelas
disciplinas e reguladas pela biopolítica-, pela máxima “fazer viver e deixar morrer”. Como se
poderia pensar esta máxima dentro da escola, especificamente? Fazer viver e deixar morrer, fazer
viver justamente para deixar morrer. De que vida se trata? O que poderia estar significando a
morte, nesse caso?
Escola aprisionamento dos corpos, em rígidas disciplinas. Cada coisa em seu lugar. Pré-
estabelecido. Por outrem. Cada coisa na sua hora. Espaço e tempo determinados para a formação
da vida. Enformação. Formatação. Em formação. Salas determinadas, fileiras e colunas de mesas
e cadeiras. Uniformes. Sentar e levantar ao sinal. Sair e entrar ao sinal. Recrear. Jogar bola.
Brincar no parque sob os olhos do vigilante. Ele vigia. Bimestres, trimestres, cronogramas. Fila
da merenda, fila da cantina. Lanchar. Ao sinal. Sentar, ouvir, copiar, responder o que o professor
quer. “– Professor, posso ir ao banheiro?”, “– Não!”. Sentar, ouvir, copiar. Urgente: desenvolver
técnicas de sobrevivência: dissimular.
E ao mesmo tempo.
E ao mesmo tempo.
Escola aprisionamento das sensibilidades. Não ria, não chore. Não queira. Deixe seus problemas
do lado de fora. O conhecimento é mental, calcule, raciocine, habilidades. Treinar, repetir.
Esqueça seu estômago, decore, as fórmulas, a história, avante! Dentro dessa sala, repita, atenção,
copie, não é necessário gostar, não desgoste, faça. Ao sinal. Não tem nexo com o mundo, é para o
seu bem, não tem nada de vivo, um dia você saberá dar importância a isso. Urgente: desenvolver
técnicas de sobrevivência: desistir.
109
A educação: um sistema de meios visando a arruinar as exceções em favor da
regra. A instrução: um sistema de meios visando a elevar o gosto contra a
exceção, em proveito dos medíocres. Visto assim, isto parece duro; mas, de um
ponto de vista econômico, é completamente racional. Pelo menos para o longo
período em que uma cultura se mantém ainda com sacrifício, onde toda exceção
representa um dispêndio de força (algo que desvia, seduz, torna doente, isola).
Uma cultura de exceção, da experimentação, do risco, do matiz – uma cultura de
estufa para as plantas excepcionais não tem direito à existência senão quando há
muitas forças para que mesmo o dispêndio se torne “econômico” (NIETZSCHE,
2003a, p. 227).
Muito oportuna essa lembrança de Nietzsche. Criar todo um sistema de destruição das exceções;
temê-las, detestá-las, eliminá-las ou tão simplesmente se apossar delas e fazê-las maioria,
mercadoria de butique, moda. Na época atual, quão rentável não tem sido a apropriação das
exceções para fim imediato de lucro, fim “econômico”, mas como fim último o controle dos
fluxos de pensamento e criação, dos possíveis, o controle tornado desejo e encarnado na
comunicação. Irônico, nunca, nem na imaginação mais sagaz de um comunismo do século
passado, teve-se tamanha consonância social. Qualquer possibilidade nietzschiana de
desenvolvimento do espírito que arrisca, atualmente é matéria de escola de economistas, a
experimentação é incentivada nas escolas de marketing, como busca de renovar táticas de venda.
“Se um criador não é agarrado pelo pescoço por um conjunto de impossibilidades, não é um
criador. Um criador é alguém que cria as suas próprias impossibilidades, e ao mesmo tempo cria
um possível.” (DELEUZE, 1992, p. 167).
110
Quais são impossibilidades do ensino de filosofia? As impossibilidades na sala de aula? Quais
possíveis temos de criar? Dois regimes de impossibilidades. As impossibilidades do ensino de
filosofia, em geral: impossível estar fora da escola, impossível fazer com que os alunos se
interessem pela filosofia, impossível ensiná-los a ler filosofia, impossível fazê-los entender a
importância da filosofia, do papel que a filosofia poderia ter em suas vidas... E as
impossibilidades de um ensino de filosofia como experiência filosófica: impossível estar dentro
da escola, impossível não recair em tentar que façam algo que se pensa ser bom para eles,
impossível não esperar que eles façam como se fez, impossível lidar com um curso movediço que
não tem ilusões de garantias.
Para Nietzsche, ao tentarmos conciliar o exercício da filosofia com o seu ensino regular em
instituições educacionais, estamos em um beco sem saída. Segundo ele, o Estado, que submete ao
seu poder as instituições de ensino, atribui a si mesmo o direito de selecionar alguns filósofos
para ocupar suas cátedras como se ele pudesse decidir entre bons e maus filósofos. Além disso,
este professor de filosofia escolhido é obrigado a submeter-se a atividades e horários
predeterminados para pensar em público sobre coisas também predeterminadas. Seria ele então
um servo filosófico (o professor-Estado, o professor-funcionário do Estado-empresa) e isso é um
problema: a filosofia não é funcionária. Reduzida ao ensino regulado, o que sobra?
[E]le [o Estado] obriga aqueles que escolhe a permanecer num lugar determinado,
entre homens determinados, e aí exercerem uma atividade determinada; eles têm de
instruir, todos os dias, em horários fixos, todos os jovens acadêmicos que manifestem
desejo de instrução. Uma questão: poderia propriamente um filósofo, conscientemente,
comprometer-se em ter todos os dias algo para ensinar? [...] não se despojaria ele da
sua magnífica liberdade, aquela de seguir seu gênio quando este o chama e para onde o
chama? [...] E se por acaso, num belo dia, ele tivesse a seguinte percepção: hoje, não
posso pensar nada, nada de inteligente me vem ao espírito – e apesar disso, tivesse de
ocupar seu posto e parecer pensar!? (NIETZSCHE, 2003a, p. 211).
Como superar a tensão entre fazer filosofia e ensinar filosofia, que a posição nietzschiana
explicita? Como pode a filosofia ser libertadora (no sentido nietzschiano: “teus educadores
não podem ser outra coisa senão teus libertadores”) (Cf. NIETZSCHE, 2003a, p. 141-2),
dentro da escola?
111
Arriscar afirmar: é possível permanecer fora, estando dentro. É possível, estando dentro, criar
um saber de fora. Sim.
112
Será possível que no momento em que já não existe, vencida pelo Estado, a
máquina de guerra testemunhe ao máximo sua irrefutabilidade, enxameie em
máquinas de pensar, de amar, de morrer, de criar, que dispõem de forças vivas
ou revolucionárias suscetíveis de colocar em questão o Estado triunfante? É no
mesmo movimento que a máquina de guerra já está ultrapassada, condenada,
apropriada, e que ela toma novas formas, se metamorfoseia, afirmando sua
irredutibilidade, sua exterioridade: desenrolar esse meio de exterioridade pura
que o homem de Estado ocidental, ou o pensador ocidental, não param de
reduzir? (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 18).
Há muito tempo Fitzgerald dizia: não se trata de partir para os mares do sul, não é isso
que determina a viagem. Não só existem estranhas viagens numa cidade, também
existem viagens no mesmo lugar; não estamos pensando nos drogados, cuja
experiência é por demais ambígua, mas antes nos verdadeiros nômades. É a propósito
desses nômades que se pode dizer, como o sugere Toynbee: eles não se movem. São
nômades por mais que não se movam, não migrem, são nômades por manterem um
espaço liso que se recusam a abandonar, e que só abandonam para conquistar e morrer.
Viagem no mesmo lugar, esse é o nome de todas as intensidades, mesmo que elas se
desenvolvam também em extensão. Pensar é viajar
[...]
Em suma, o que distingue as viagens não é a qualidade objetiva dos lugares, nem a
quantidade mensurável do movimento – nem algo que estaria unicamente no espírito –
mas o modo de espacialização, a maneira de estar no espaço, de ser no espaço. Viajar
de modo liso ou estriado, assim como pensar... (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p.
189-190).
113
Pensar é viajar. O que determina o liso ou o estriado é a maneira de ocupar o espaço. Viajar no
mesmo lugar. Ocupar a escola, as aulas de filosofia, de modo liso, modo resistência. Ocupar o
espaço do pensamento no modo resistência.
Viajar de modo liso é todo um devir, e ainda um devir difícil, incerto. Não se
trata de voltar à navegação pré-astronômica, nem aos antigos nômades. É hoje, e
nos sentidos os mais diversos que prossegue o afrontamento entre o liso e o
estriado, as passagens, alternâncias, e superposições (DELEUZE; GUATTARI,
1997b, p. 189-90).
114
professor-guardião, professor-pregador, professor-terapeuta
[...]
A escola, por sua própria natureza, tende a exigir o tempo integral e todas as
energias de seus freqüentadores. Isso, por sua vez, transforma o professor em
guardião, pregador e terapeuta. Ao representar esses diferentes papeis, o
professor baseia a sua autoridade em diferentes exigências. O professor-guardião
atua como mestre de cerimônias que dirige seus alunos através de um ritual
labirinticamente traçado. É arbitro da observância das normas e ministra as
intrincadas rubricas de iniciação à vida. No melhor dos casos, coloca os
fundamentos para a aquisição alguma habilidade, à semelhança daquela que os
professores sempre possuem. Sem pretensões de conduzir a uma aprendizagem
profunda, treina seus alunos em algumas rotinas básicas.
115
Problema: existe algum meio de conjurar a formação de um aparelho de Estado (ou seus
equivalentes) na sala de aula?
O professor-Estado entra na sala, os alunos estão todos conversando, de pé, alguns gritam, outros
ouvem música, tudo fora do seu “devido lugar”. O professor-Estado fecha a porta com força para
fazer barulho e ser percebido, os alunos sabem que ele está lá e nada ou quase nada muda, o
professor pede silêncio, pede que eles se sentem, e aos poucos a maioria o faz, ele faz a chamada
e eles conversam, ouvem música, digitam em seus telefones celulares, escrevem em seus
cadernos coisas que não se sabe o que, algum objeto pode passar voando. O professor-Estado está
lá para dar sua aula e deve fazer isso. A tensão está colocada. Os alunos não querem aquela aula,
ou talvez nenhuma aula. É uma guerra civil. O professor-Estado tem o poder de ditar e fazer valer
as leis da ordem do mundo. Os alunos se entocam, respondem com guerrilha, pequenas armas
caseiras são disparadas, manifestações ininteligíveis de repulsa pipocam constantemente em
vários focos, imponderáveis. O professor-Estado pode fazer o jogo de manter a ordem
formalmente, profere suas palavras, passa tarefas, determina datas para atividades futuras, faz
ameaças. Debaixo de seu nariz o que acontece é a negligência, a ausência, a dissimulação, a
improvisação, o zunzunzum do aqui - agora que desvia: outros compromissos são marcados,
outras palavras são trocadas, outros planos: desviam. O professor-Estado pode seguir fazendo,
sem esperança, seu papel: manter a ordem da escola, a ordem do planejamento, a ordem da
apostila, do calendário, da grade. Pode também, em algum momento, fazer uso de seu aparato
bélico e soltar suas bombas, provas-surpresa, recolher a lição sem aviso prévio, lançar nota de
comportamento, pode usar de seu poder ordenador e de governamento e expulsar alunos da sala,
distribuir punições. Os alunos podem responder com dissimulações, podem também implorar que
suas vidas sejam poupadas ou podem fazer algo para que isso aconteça, cumprindo algum castigo
ou pode acontecer de serem vencidos, aí ficam para recuperação, repetem na matéria, repetem o
ano. É quando o Estado vence exemplarmente. Pode acontecer também do professor fraquejar:
chora, adoece (e tem de ser medicado para seguir adiante), desiste. Os alunos triunfam na sua
oposição sem enfrentamento quando isso acontece, mas também quando conseguem passar de
ano com a ajuda das estratégias de desvio que criam. O professor quase sempre sai das aulas com
117
sensação de vazio, acaba os anos com sensação de vazio, pode desagradá-lo a ideia de estar
reduzido a cumpridor-de-tarefas-funcionário ou, ao contrário, pode ser justamente essa a ideia
que o ampara no naufrágio: se convence de que está cumprindo sua função ou sua missão.
Não é governar.
Para Foucault as relações de poder, que permeiam todo o tecido social, se repetindo nas múltiplas
relações entre os homens, são caracterizadas por serem ações sobre ações. Uma relação de
violência age sobre um corpo. Uma relação de poder age sobre a ação do outro.
Ele [o poder] é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o
campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos;
ele incita, induz, desvia ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou
menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre
uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou
são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações (FOUCAULT, 1995, p. 245).
118
O exercício do poder será, então, para ele, “conduzir condutas” e administrar as possibilidades da
conduta. Poder não é, portanto, enfrentamento, mas sim mais da “ordem do governo”:
[A] maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças,
das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes [...] modos de ação mais ou
menos refletidos e calculados, porém todos destinados a agir sobre as possibilidades de
ação dos outros indivíduos. Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de
ação dos outros (FOUCAULT, 1995, p. 244).
Governar como forma de poder não é menos do que se faz em sala de aula, agir antecipando e
direcionando as possibilidades de ação dos alunos: modulação. Teorias da aprendizagem que
balizam as ações educacionais, planejamentos específicos de período por período, avaliações de
verificação de aquisição dos conteúdos e habilidades ensinados, preparação de aulas, etc. Todas
essas ações, perfeitamente plausíveis em um universo de ensino, são ações de governo,
estruturação do campo de possíveis dos alunos. Possibilidades capturadas na modulação, não é
proibição sumária, mas “ele incita, induz, desvia ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna
mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede” (FOUCAULT, 1995, p. 245). É
conhecido isso na escola. Tanto em relação aos comportamentos físicos dos corpos quanto aos
seus pensamentos e sensações.
“Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de
individualidade que nos foi imposto há vários séculos.” (FOUCAULT, 1995, p. 239).
Individualidade governada. Como se pode pensar em efetivar a promoção de novas formas de
subjetividade recusando que outrem (o Estado, o professor-Estado, o marketing-Estado, o
médico-Estado, etc.) conduza as condutas, todas as dimensões das condutas, os fluxos de
pensamento, de desejo, imaginação, sexo, devires, mundos possíveis. Quais ações de professor
não são governo? Como promover novas formas de subjetividade dentro do curso de filosofia
para jovens, dentro da escola? Como promover novas formas de subjetividade que não sejam da
esfera da reprodução, mas sim do acontecimento?
119
Não é formação-interioridade.
O que “move a história” – se houvesse uma coisa assim para Deleuze e Guattari – na análise que
fazem do capitalismo, não são as lutas de classes, as contradições, mas os desvios, a criação de
linhas de fuga, o nomadismo das minorias.
A resistência que interessa aqui, no ensino de filosofia, não é combate no sentido de oposição
termo a termo, não é utopia, não é negativa (uma resistência assim existe sempre em função
daquilo que quer negar), ela afirma: disjunção inclusiva, fabulação, criar, remendadum. Não se
trata de um ensino de filosofia formador, não há forma previsível para um remendando-louco,
não é fundamento, não há fundo, só raso, imanência. Uma resistência por si mesma, afirmativa,
uma resistência como movimento contra a sujeição sim, mas porque antes afirma a vida, seria
uma re-existência, uma insistência em existir enquanto vivo, re-existências devirescas,
multiplicidade em movimentos constantes, embora variados. Pensar em movimentos de
120
resistência como movimentos de criação, o resgate do “fora”, do devir , imprevisível e, quiçá
contagiante, o que pode escapar ao Estado-empresa, o que pode escapar à governamentalidade.
É certo que Deleuze é muitas vezes citado na sua ideia de que a arte é resistência. “A arte é o que
resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha.” (DELEUZE, 1992, p. 215) Mas a
filosofia também é criação, criação de conceitos e pode-se dizer que viver a vida filosoficamente,
tornar a filosofia viva, atualizá-la na ação, é um modo de viver que se pode aproximar do que
Foucault chamou de “a vida como obra de arte”. Assumir a criação como motor do viver, atentos
para reconhecer e desviar das governamentalidades que são impostas a cada dia, é resistência,
pois é criação de novos mundos e novas subjetividades. Mesmo que esses venham a ser
capturados rapidamente, funcionam como movimentos de implantação de pequenos vácuos no
Mesmo, areia na máquina de moer carne do The Wall35, como descontinuidades da Reprodução,
funcionam como “buracos brancos” que ao invés de sugarem objetos para fazê-los desaparecer,
enxameiam novos possíveis, pedacinhos de caos para confundir o dualismo rude que nos prende
ao Uno. Resistência, re-existência, que é criação, é afirmativa da vida. São resistência ao
pensamento único educação-formação de um sujeito identitário estanque.
Vale a pena retomar Nietzsche na segunda das Considerações Extemporâneas, (ou Intempestivas,
conforme a tradução), intitulada Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida, texto de
1874, “[...] há uma grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente chega a
sofrer dano e por fim se arruína, seja ele um homem ou um povo ou uma civilização”
(NIETZSCHE, 1978b, p. 58).
Para Nietzsche o agir requer “esquecimento” do mesmo modo que a manutenção da vida daquilo
que é orgânico necessita de luz, tanto quanto necessita de trevas. Viver sem poder “esquecer-se”
é impossível, como seria impossível viver sem dormir ou sobreviver da ruminação
exclusivamente. Viver sempre historicamente e não “esquecer-se” nunca, acaba com a vida. O
homem moderno, de sua época, é criticado por Nietzsche, pois sua fé excessiva no progresso e no
processo da história aniquila a vida.
35
Pink Floyd The Wall, filme de Alan Parker, 1982, EUA
121
A história pensada como ciência pura e tornada soberana seria uma espécie de
encerramento e balanço da vida para a humanidade [...] com que violência é
preciso meter a individualidade do passado dentro de uma forma universal e
quebrá-la em todos os ângulos agudos e linhas, em benefício da concordância
(NIETZSCHE, 1978b, p. 60-1).
Perguntar com Nietzsche: com que violência é preciso meter a multiplicidade de possíveis
subjetividades dentro de uma fôrma universal e quebrá-las em todos os ângulos agudos e linhas,
em benefício do processo educativo de formação de um determinado sujeito?
Nessa sua obra Nietzsche faz uma crítica ao homem moderno ao opor a vida a uma certa
interioridade que esse homem inventou e colocou como mais valiosa que qualquer outra coisa.
Para ele, o homem moderno vive um inédito espetáculo que é “a ciência do vir-a-ser universal”
(NIETZSCHE, 1978b, §4, p. 61), a história mostra sob o lema: haja verdade, pereça a vida. Ou
seja, para Nietzsche, aquilo considerado verdade era sempre algo morto, sem potência de
transformação. Sabe-se que o que se vivia na Alemanha em 1874 era um certo encantamento com
a produção cultural francesa, a partir de uma realidade ainda quase feudal, Alemanha pré-
unificação, sem uma produção cultural autêntica e viva (com exceção de Wagner, para Nietzsche,
como se sabe). Assim sendo o homem erudito alemão foi considerado alguém que se empanturra
de “saber histórico”, de “cultura histórica”, desmedidamente, mesmo sem fome, mesmo sem
necessidade, saberes esses desconexos e contrários entre si, que se aglomeram em uma certa
“interioridade” desse homem, que se esforça em ordená-los e honrá-los. Toda essa cultura
histórica, estrangeira e de outros tempos, depositada em um certo interior desse homem não traz
consigo nenhum ímpeto transformador. Como “enciclopédias ambulantes” os homens modernos
se orgulham desse depósito de saberes alheios que guardam dentro de seu interior e que não os
impele para fora, não se tornam ação, não é vivo. A cultura europeia moderna não é uma cultura
efetiva, “mas apenas uma espécie de saber em torno da cultura; fica no pensamento-de-cultura,
no sentimento-de-cultura, dela não resulta nenhuma decisão-de-cultura” (NIETZSCHE, 1978b, p.
62). Há uma distinção entre interioridade e exterioridade (“mas, em todo vivente, esta é uma
oposição completamente indevida”) e, além disso, uma valorização muito maior para aquilo que
está dentro, escondido, que não se vê e tampouco age no mundo, não muda nada no mundo, não
cria nada. Ao passo de aquilo que está do lado de fora é passível de desconfiança, é imitação,
122
coreografia social convencionada. Nesse “tempo que sofre de cultura geral” a filosofia está
reduzida a um saber recolhido no interior do homem moderno a quem falta coragem, saber sem
efeito, pois
Por muitos anos se costumou pensar o que acontece na escola entre alunos e professores como
um processo de ensino-aprendizagem, o que leva à conclusão de que há uma relação necessária
entre ensinar e aprender. Pensou-se e agiu-se (ou ainda se faz) baseados na crença de que tudo o
que se ensina é aprendido e tudo o que se aprende foi por meio de um ensino. Falar em processo
ensino-aprendizagem dessa forma, leva, além dessa conclusão, à redução do significado da
palavra processo a progresso, de caminho ascendente, com certos altos e baixos, alguns
percalços, mas que leva, necessariamente, de um ponto (de obscuridade-ignorância) a outro ponto
123
(de esclarecimento, um lugar onde há mais luz). Esclarecimento, processo progressivo. Processo
pelo qual se passa para atingir o conhecimento em uma subida, exatamente como o homem
platônico que consegue se livrar do agrilhoamento dentro da caverna e galga a dialética
ascendente até o inteligível. Assim, uma relação necessária entre ensinar e aprender leva à uma
concepção do ensinar como revelação de uma verdade já pronta e o método como transmissão
(mesmo quando se fala em construtivismos, é necessário construir segundo certos pressupostos:
há objetivos predeterminados a serem alcançados, em etapas determinadas pelos métodos que
modulam e regulam as forças e caminhos dessa “construção” dominada). Mas, se não se está
pensando em formação, em sujeitos, em processos-progressos...
Jacotot tinha sido professor por trinta anos quando, por problemas políticos, foi morar nos Países
Baixos. Foi com grande surpresa que ele constatou a inscrição de muitos alunos interessados em
seu curso de leitura, que, porém, na sua maioria não sabia falar nem uma palavra de francês.
Jacotot, por sua vez não sabia falar holandês. Jacotot decidiu então, adotar uma edição bilíngüe
francês-holandês de Telêmaco e com a ajuda de um tradutor pediu que os alunos lessem o livro,
para que, amparados pela tradução, aprendessem o texto em francês. Quando mais tarde ele
resolveu pedir um texto aos seus alunos, em francês, dizendo o que pensavam do que tinham
aprendido, teve uma grande surpresa: seus alunos realizaram essa tarefa tão bem quanto muitos
franceses o fariam. Assim surge todo o questionamento de Jacotot quanto à necessidade de um
professor-explicador para qualquer aprendizagem. Assim surge uma experiência filosófica muito
particular que resulta na teoria do Ensino Universal.
A areia na grande engrenagem da máquina de ensinar, na qual Jacotot tinha acreditado até o
momento, é justamente o questionamento sobre a necessidade daquilo que é fundamento no papel
do professor: a explicação. Seria mesmo possível haver aprendizagem sem a explicação de um
mestre? Esta crença é fundamental à escola até hoje. No entanto, “[e]xplicar alguma coisa a
alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. Antes de ser
o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido em
espíritos sábios e espíritos ignorantes” (RANCIÈRE, 2002, p. 24). Este “mito da pedagogia”, que
fundamenta a escola até hoje, separa o mundo em dois e separa as inteligências em duas, a
124
inferior que deve ser instruída até o ponto de alcançar a superior, a primeira empírica e ingênua e
a segunda, conhecedora das causas, científica. Ainda platônicos. A explicação “decreta um
começo absoluto”, como diz Rancière, como se o aluno nunca tivesse aprendido nada antes e a
parte de seu encontro com um professor, como se só houvesse aprendizagem se houver
ensinamento, dirigido, governado, processo progressivo. Tudo conspira para que ele se sinta
incapaz de usar sua inteligência por si mesmo.
Tanto naquela época como hoje – e segundo Rancière é justamente a atualidade da obra de
Jacotot que o leva a reativá-la – a educação é concebida como o instrumento de progressão dos
sujeitos submetidos a ela.
É o professor, com suas explicações que tem o papel de propiciar a “entrada do povo na
sociedade e na ordem governamental modernas” (RANCIÈRE, 2002, p. 11). A escola tem o
papel, em uma sociedade pedagogizada, de reduzir as diferenças sociais. No entanto, Jacotot já
prevenia, é justamente a desigualdade, que a escola e a sociedade pedagogizada pretendem
reduzir, que as alimentam. Sempre que a igualdade é colocada como objetivo a ser alcançado é
porque se está tomando como ponto de partida a desigualdade. Ao contrário, para Jacotot, a
igualdade deve ser ela o ponto de partida. A igualdade das inteligências. Sendo assim, a instrução
pode ser nada mais do que a confirmação da incapacidade do aluno, que é, aliás, justamente o que
ela quer combater, ou, ao contrário pode forçar para que uma capacidade que não se conhece ou
que não acredita em si, se reconheça e desenvolva tudo o que possa surgir a partir desse
reconhecimento.
125
progresso e essa instrução são justamente a forma de tornar perpétua a desigualdade, tanto social,
quanto – o que muito interessa aqui- a desigualdade das inteligências.
A igualdade ensinava Jacotot, não é nem formal nem real. Ela não consiste nem
no ensino uniforme de crianças da república nem na disponibilidade dos
produtos de baixo preço nas estantes de supermercados. A igualdade é
fundamental e ausente, ela é atual e intempestiva, sempre dependendo da
iniciativa de indivíduos e grupos que, contra o curso natural das coisas, assumem
o risco de verificá-la, de inventar as formas, individuais ou coletivas, de sua
verificação. Essa lição, ela também, é mais do que nunca atual (RANCIÈRE,
2002, p. 16).
Esta verificação é parte do método de Ensino Universal de Jacotot, segundo o qual não há
necessidade de um mestre-explicador para qualquer aprendizagem porque as inteligências são
iguais, entre todos os homens. O método consiste na ideia de que qualquer um, com base no que
sabe, pode descobrir pontos de articulação com o que não sabe e, no exercício da comparação, do
ensaio e da associação, vir a apropriar-se de seu próprio impulso de saber, sua própria
inteligência pode verificar a adequação e veracidade das proposições que se lhe apresentam. E
usar essa mesma atenção incondicionada aos seus atos intelectuais, essa mesma capacidade de
dar a volta sobre si mesmo para criar conhecimentos novos. Promover a invenção de novas
formas de subjetividade. Inventar novas formas de ensino!
Tem-se aí uma possibilidade de saída para ações educacionais governadoras. É uma possibilidade
de ação de ensino que permite a promoção de invenção de novas subjetividades, novas e
imponderáveis, sem o controle do professor-Estado instituidor de ordens e progressos. Isso seria
despedagogizar. Não domesticar, não é catequese não há jesuítas e índios. Ensino acontecimento:
não controlar, não se sabe o que pode vir a surgir a partir dele, sementes ao vento.
“A natureza joga o filósofo como uma flecha no meio dos homens, ela não visa, mas espera que a
flecha venha a se cravar em algum ponto.” (NIETZSCHE, 2003a, p. 201).
126
professor, despedagogizar os aprenderes e ensinares, não se acredita em processos-progressos de
formação, profundidade interior do sujeito, identidade. Para além de todas essas negações, o que
há? O que há de afirmativo no território da ação do professor nas aulas de filosofia?
[N]ossos mestres são aqueles que nos tocam com uma novidade radical, aqueles
que sabem inventar uma técnica artística ou literária e encontrar as maneiras de
pensar que correspondem à nossa modernidade, quer dizer, tanto às nossas
dificuldades, quanto a nossos entusiasmos difusos [...] Quem nos ensinou novas
maneiras de pensar? [...] Os novos temas, um certo estilo novo, uma nova
maneira polêmica e agressiva de levantar os problemas, tudo isso veio de Sartre
(DELEUZE, 2006b, p. 107).
Afetar. Afetar os alunos com a filosofia, na filosofia, para a filosofia. Todo o questionamento que
a retomada, feita por Rancière, da contundente experiência de Jacotot nos leva a pensar em
eliminar a explicação do professor, mas não o professor. O mestre, no sentido colocado por
Deleuze em relação a Sartre é um intercessor, alguém que intercede no processo de subjetivação
do outro de forma potente, que gera questionamentos, desanestesia, que mostra novas formas de
pensar e possibilidades de criação. É alguém que faz lembrar-se da vida, da vivacidade da vida,
que engendra novas formas de subjetividade, e, portanto é resistência, re-existência. O professor
escolar pode ser isso. Alguém que toque, que afete. Não é incomum, nas experiências escolares
particulares, ter exemplos disso, não importa tanto a “matéria” que o professor ensinava, mas
algo em sua maneira tocou e foi inesquecível, algo que foi um ensinamento, que talvez o
professor nem saiba que tenha ensinado. Os professores podem tomar para si a função não de
explicação, mas de afetação: deliberadamente escolher elementos e formas de afetar os alunos
para a filosofia, através da filosofia. “Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas de
guerra.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 18) Afetá-los para se afetarem com os problemas
filosóficos e posteriormente com os conhecimentos erigidos em cima disso (porém, ainda, sem
que se tenha a certeza de que isso vai acontecer do modo previsto, como coisa viva que é, é
imponderável). A posição do professor tomada dessa forma, de afetação, seria o vetor de um
ensino-vírus: espalhar a ocupação e a pre-ocupação com problemas filosóficos nos alunos.
Infestar na sala de aula o desejo de lidar com problemas filosóficos, fazer com que isso possua os
alunos, que se hospede neles e faça com que já não sejam mais os mesmos, que adoeçam de
filosofia ou que se curem.
127
Esse será um ensino contra a escola, operando contra a formatação, a formação. Será uma
deformação das individualidades governadas, submissas a processos de controle de seus corpos,
os pensamentos, as sensibilidades. Um ensino contra o seu tempo, com Nietzsche pensar o
presente contra o presente, “agir de uma maneira extemporânea, quer dizer, contra o tempo,
portanto sobre o tempo e em favor (espero-o) de um tempo que virá”36. O tempo que virá é o
tempo dos alunos, incontrolável. Pensar contra o seu tempo é pensar contra a história, contra o
determinismo do fato, contra a formação do sujeito, contra o ensino transmissão-aplicação de
conhecimentos, contra o presente. Pensar contra o seu tempo é pensar o devir, devirescamente. O
devir foge, escapa à história, para criar algo novo. O pensamento que pensa contra seu tempo é o
pensamento que reativa sua relação com a vida, o novo, a criação. “Trata-se sempre de liberar a
vida lá onde ela é prisioneira” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 222), de criar novos modos de
existência, novas maneiras de sentir, novas crenças, que liberem a vida onde ela foi capturada no
presente, sonhar com esse mesmo presente, sonhar na ação, sonhar de olhos abertos, não por
meio dos universais modernos, mas das moléculas que podem criar múltiplos possíveis. Molécula
ensino de filosofia como acontecimento: professor virótico, intercessor. Será, mesmo, que o
ensino tem, invariavelmente, de ser praticado como direcionamento das consciências, como
submissão das inteligências? Distinguimos formação como processo fechado na execução de
etapas para alcançar objetivos fixados previamente, de intercessão, acontecimento aberto e
imponderável de enriquecimento no processo de subjetivação. Com a intercessão virótica 37 do
professor, no decorrer do curso de filosofia, os alunos poderão chegar a estranhar aquele “eu” do
qual tinham certeza antes de serem afetados por seus problemas de forma filosófica. E podem se
alegrar com isso, apesar do desconforto, podem sentir alegria de ter de buscar e criar por si
mesmos maneiras de lidar com esses problemas. Essa mudança de posicionamento do professor
em sala de aula, de controlador para intercessor virótico é, muitas vezes, difícil de ser tomada,
pois implica diretamente nas relações de poder que ali se dão. Professores, são habituados e até
afeiçoados à ideia de serem condutores de condutas, de serem formadores de consciências.
Desapegar.
36
Conferir nota 23.
37
Os vírus somente se reproduzem pela invasão e posse do controle da maquinaria de autorreprodução celular. Fora
do ambiente intracelular, os vírus são inertes. Porém, uma vez dentro da célula, a capacidade de replicação dos vírus
é surpreendente: um único vírus é capaz de produzir, em poucas horas, milhares de novos vírus. Vírus não é bom ou
mau. Vírus é um modo de operar: tecnologia de invadir e usar a energia do hospedeiro para se replicar. Invadir e
tomar posse, transmutando o hospedeiro.
128
Colocada a relação entre professor e alunos dessa forma, talvez se possa encontrar uma direção
para a tensão colocada por Nietzsche entre professor de filosofia e filósofo. O ensino de filosofia
não está sendo pensado aqui como uma obrigação do filósofo-professor de filosofar diante dos
alunos em horários pré-determinados. Em horários pré-determinados ele irá se encontrar com os
alunos para uma aula que deseja poder fazer como acontecimento. Ele leva algo para propor, mas
tudo o mais, tudo o que vai acontecer é imponderável, pois depende da ação dos alunos, não se
pode controlar, estão vivos, eles terão de fazer.
As aulas foram uma parte da minha vida, eu as dei com paixão [...] Eram longas
sessões, ninguém escutava tudo, mas cada um pegava aquilo de que precisava ou
de que tinha vontade, aquilo que podia aproveitar para alguma coisa [...] entendi
a que ponto a filosofia tinha necessidade, não só de uma compreensão filosófica,
por conceitos, mas de uma compreensão não-filosófica, a que opera por
perceptos e afectos. Ambas são necessárias. A filosofia está numa relação
essencial e positiva com a não-filosofia: ela se dirige diretamente aos não-
filósofos. Tome o caso mais surpreendente, Espinosa: é o filósofo absoluto, e a
Ética é o grande livro do conceito. Mas, ao mesmo tempo, o filósofo mais puro é
o que se dirige estritamente a todo mundo: qualquer um pode ler a Ética, desde
que se deixe levar suficientemente por esse vento, por esse fogo. Ou então
Nietzsche. Há, por outro lado, um excesso de saber que mata o que é vivo na
filosofia. A compreensão não-filosófica não é insuficiente nem provisória, é uma
das duas metades, uma das duas asas (DELEUZE, 1992, p. 174-5).
A máquina de guerra não se define pela guerra, absolutamente, ela se dá por ações de guerrilha,
pequenos movimentos constantes, esparsos, de ataque. Estar dentro e fora ao mesmo tempo. O
ensino de filosofia-máquina de guerra se dirige diretamente a qualquer um, qualquer um que
esteja ao alcance de seus ataques e que possa vir a afetar-se. Qualquer um que possa ser tocado a
ponto de transformar uma simples percepção em um percepto, algo que se mantém, que resiste e
opere metamorfoses nas subjetividades. Processo revolucionário de guerrilha contra as ações de
captura do aparelho de Estado, captura do vivo no pensamento, contra o “excesso de saber” dessa
filosofia escolar comumente aplicada nos estudantes como freio à possíveis fluxos de
pensamento, ou antes, como muretas protetoras ao longo de estradas, caminhos modulados,
caminhos que determinam pontos de saída e pontos de chegada como realidade única. Guerrilha
contra o aprisionamento-modulação dos corpos, pensamento e sensibilidades.
129
Do ensino de filosofia como re-existência: aprendizagem e pensamento
131
Nas discussões que se faz sobre ensino e aprendizagem é comum, entre os leitores de Deleuze,
citar a passagem em que ele afirma: “Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer
forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação
de conteúdos objetivos.” (DELEUZE, 2003, p. 21). O interessante é que o uso dessa ideia pode
levar, muitas vezes, ao abandono um tanto romanceado da questão da aprendizagem, como quem
se abandona à sorte, às forças mágicas da natureza ou a Deus. “Quem sabe como um estudante
pode tornar-se repentinamente „bom em latim‟, que signos (amorosos ou até mesmo
inconfessáveis) lhe serviriam de aprendizado?” (DELEUZE, 2003, p. 21). Ora, na lamentável
tentativa de responder a esta questão, pode decorrer justamente a prática de tornar o ensino uma
tentativa de “imprimir” signos nos alunos, que não passam de tentativas de fazer com que eles
passem por “assimilação de conteúdos objetivos”. Apresentar os “temas” filosóficos aos alunos e
mesmo levá-los a ler algum texto filosófico não basta para que esses “signos” sirvam de
aprendizado. Os professores colocam-se a apresentar conteúdos filosóficos aos alunos, que para
eles, professores, são interessantes e que acreditam ser úteis aos alunos, e diante do desinteresse
pelas aulas de filosofia, do descaso dos alunos e do automatismo em cumprir tarefas para se
livrarem das aulas, os professores ficam indignados. Desaprovam veementemente a ausência de
“boa vontade” dos alunos em aprender. Critica-se a falta de “responsabilidade”, a falta de
“consciência” da importância de um tal estudo. O que sustenta e justifica essa indignação é a
crença de que bastaria ter essa “boa vontade” e “consciência” para que ocorresse o aprendizado,
como se aprender e pensar fossem naturais, bastando para isso querer. “Quem procura a verdade?
[...] só procuramos a verdade quando estamos determinados a fazê-lo, em função de uma situação
concreta, quando sofremos uma espécie de violência que nos leva a essa busca.” (DELEUZE,
2003, p. 14). Quem procura a verdade é o ciumento diante dos signos da mentira do amado. É
aquele que é feito faminto, obcecado, voraz, por meio da violência de algum signo. “O erro da
filosofia é pressupor em nós uma boa vontade de pensar, um desejo, um amor natural pela
verdade. A filosofia atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem perturbam.”
(DELEUZE, 2003, p.15). Verdades abstratas. Não comprometem nem perturbam. Não se sai do
lugar por elas, não afetam, não mudam as formas de sentir e de pensar, de crer, não fazem criar
nada, nada de novo, de vivo. “Há sempre a violência de um signo que nos força a procurar, que
nos rouba a paz. A verdade não é descoberta por afinidade, nem por boa vontade, ela se trai por
signos involuntários.” (DELEUZE, 2003, p.14-5). Esses signos são involuntários, por certo, se
133
tromba com eles. Involuntários para os alunos, mas não para os professores. O ensino, este sim,
pode ser planejado, planejado para ser acontecimento, isto é, para trombar com os alunos (como
signos) e mudar algo em suas formas de sentir e de pensar. O ensino de filosofia como
resistência, o ensino-máquina de guerra, é aquele que não é adestramento do pensamento rumo à
reprodução de verdades dadas, não é treino de assimilação de conteúdos objetivos e não
pressupõe uma boa vontade. Deleuze vai insistir na necessidade absoluta de que o pensamento
nasça por arrombamento, dirá ele “que é primeiro no pensamento [...] o arrombamento, a
violência, [...] o inimigo” (DELEUZE, 2006, p. 203). Não se pode contar com uma disposição
natural para o pensar, mas apenas com “a contingência de um encontro que força a pensar, a fim
de erguer e estabelecer a necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar”
(DELEUZE, 2006, p. 203). Bem, está aí o que é interessante repetir: o involuntário, o fortuito, o
contingente, o é para quem aprende e não para quem pretende ensinar. Sendo assim, pergunta-se:
como ensinar de forma intencional, planejada, cheia de táticas, porém criando ensejo para esse
encontro com signos que provoquem o pensar no pensamento? Como ensinar de tal forma que os
alunos sejam afetados por signos sem tentar imprimir algo neles? Como ser professor-vírus sem
inocular com uma seringa? Pode-se tentar enxamear, vetor de signos, sementes ao vento, hélice,
espraiar, voar, mover. Que signos são esses que é necessário irradiar por tudo, excessivamente,
para que possam vir a afetar? Certamente não são conteúdos filosóficos: os textos, os métodos, a
história, os conceitos, tudo isso vêm posteriormente, como consequência da busca, pois então já
se estará tomado por essa busca, pela paixão de pensar. O ensino-máquina de guerra possibilita
aos alunos encontrar (ser encontrados, “tomar um encontrão”) com signos que os forcem a
pensar. Estes signos estão em relação com as impossibilidades: a impossibilidade de pensar
filosoficamente, a impossibilidade que obriga a inventar possíveis. É isto, é isto o que aquele que
pretende ensinar poderá enxamear: impossibilidades.
Que encontros são esses? Encontrar as impossibilidades para criar, ser forçado a criar possíveis.
Trazer para a aula de filosofia signos indecifrados, hieróglifos, becos sem saída, as
impossibilidades que forçam a criação de possíveis. Eis: dar o que pensar.
135
Inakomysliachtchtie: os que pensam de outra maneira
Essa palavra – “dissidência” – talvez pudesse, de fato, convir muito bem para
isso, quer dizer, para essas formas de resistência que dizem respeito, que visam,
que têm por objetivo e por adversário um poder que se atribui por encargo
conduzir, conduzir os homens em sua vida, em sua existência cotidiana.
[...]
o terror não é quando alguns comandam os outros e os fazem tremer: há terror
quando mesmo aqueles que comandam tremem, porque sabem, que de qualquer
modo o sistema geral da obediência os envolve tanto quanto àqueles sobre os
quais exercem seu poder [...]. Não queremos essa salvação, não queremos ser
salvos por essa gente e por esses meios. É toda a pastoral da salvação que é
posta em questão. É Soljenitsin quem diz: Não queremos obedecer a essa gente.
Não queremos esse sistema em que até os que comandam são obrigados a
obedecer pelo terror. Não queremos essa pastoral da obediência. Não queremos
essa verdade. Não queremos ser pegos nesse sistema de verdade. Não queremos
ser pegos nesse sistema de observação, de exame perpétuo que nos julga o
tempo todo, nos diz o que somos no fundo de nós mesmos, sadios ou doentes,
loucos ou não, etc.
[...]
Foi no início dos anos 1970 que a palavra “dissidência” se impôs para designar o
movimento intelectual de oposição ao sistema comunista, na URSS e nos países
do bloco soviético. “Dissidentes” corresponde à palavra russa
inakomysliachtchie, “os que pensam de outra maneira”. (FOUCAULT, 2008b, p.
264-5 e 294 nota 27).
137
Problema: existe algum meio, através de um ensino de filosofia, de subtrair o pensamento
ao modelo de Estado?
Pensar de outra maneira. Os que pensam de outra maneira não são os que pensam outras coisas. É
o modo de pensar que os faz ser de outra natureza. Outra maneira de se posicionar no mundo, um
bando, uma minoria. “Acontece criticarem conteúdos de pensamento julgados conformistas
demais. Mas a questão é primeiramente a da própria forma.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p.
43). Essa distinção entre o que se pensa e como se pensa é feita por Deleuze e Guattari quando
propõem a confirmação da exterioridade da máquina de guerra pela noologia, ou seja, pelo
estudo das imagens do pensamento e sua historicidade 38.
Por imagem do pensamento não entendo o método, mas algo mais profundo,
sempre pressuposto, um sistema de coordenadas, dinamismos, orientações: o que
significa pensar, e „orientar-se no pensamento‟ [...] A imagem do pensamento é
como que o pressuposto da filosofia, precede esta, desta vez não se trata de uma
compreensão não filosófica, mas sim de uma compreensão pré-filosófica. Há
pessoas para quem pensar é „discutir um pouco‟. Certo, é uma imagem idiota,
mas mesmo os idiotas têm uma imagem do pensamento, e é apenas trazendo à
luz essas imagens que se pode determinar as condições da filosofia. Ora, será
que nós temos do pensamento a mesma imagem que teve Platão ou mesmo
Descartes ou Kant? (DELEUZE, 1992, p. 185).
Não, certamente que Deleuze e Guattari não têm a mesma imagem do pensamento que Platão,
Descartes ou Kant. Certamente que são inakomysliachtchie, dissidentes dessas formas de pensar.
Esses três filósofos da tradição fizeram uso de uma imagem abstrata do pensamento que está
calcada nas noções de identidade, representação e recognição. Platão, tendo armado o mundo da
representação, “recobre o exercício do pensamento com uma imagem dogmática que o pressupõe
e o trai” (DELEUZE, 2006a, p. 207). Esse mundo da representação está baseado no “primado da
identidade” (DELEUZE, 2006a, p.15), é definido pela identidade, que tem, como se sabe,
estatuto ontológico na filosofia platônica. Essa imagem dogmática do pensamento trai o próprio
pensamento, pois esse se reduz à recognição. A representação é uma re-apresentação do idêntico,
daquilo que já está dado a priori, e que por isso não cria nada novo, não é vivo, não se move. O
38
No entanto, antes dessa obra Deleuze já demonstrava uma paixão pelo assunto da imagem do pensamento que está
em Diferença e repetição bem desenvolvida e também em Lógica do sentido e Proust e os signos.
139
estatuto ontológico dado à identidade, por Platão, se prolonga até a modernidade através de
Descartes e Kant.
Para Descartes, de um pensar que se pensa a si mesmo surge o pensamento e a certeza que vem
depois, vem através de uma evidência intuitiva. Pelo pensamento o sujeito garante sua identidade,
reconhece-se e se mantém sempre o mesmo e disso não se pode duvidar. Para Kant “os
fenômenos não são coisas em si, mas o simples jogo de nossas representações” (KANT, 2001,
B101), fazendo com que a recognição seja a atividade intelectual por excelência, já que, mediante
a aplicação das categorias e dos princípios transcendentais, obtém-se conhecimento. Somente
com a recognição algo pode ser pensado.
Toda a minuciosa análise que Deleuze (2006a) faz das imagens do pensamento, na história da
filosofia, se deu em função da defesa da diferença e da repetição. Sua pesquisa (e defesa) toma a
direção da diferença sem negação, já que, não se subordinando ao idêntico, não chega à
contradição, e de uma repetição que não seja repetição do mesmo, mas uma repetição como
criação, onde se desloca um “diferencial”. É em Mil Platôs que Deleuze, juntamente com
Guattari, vai criar uma “nova imagem do pensamento” ou um “pensamento sem imagem”, que
seria uma imagem do pensamento da diferença, da multiplicidade: o rizoma39, que “se estende
sob” a imagem arbórea do pensamento. “Nessa questão temos não um modelo, nem mesmo um
guia, mas um referente, um cruzamento a ser operado sem cessar: é o estado de nossos
conhecimentos sobre o cérebro.” (DELEUZE, 1992, p. 186). O rizoma funciona como o cérebro,
com suas conexões, sinapses, não se reduz ao Uno e tampouco ao múltiplo, é movente: conexões
entre um ponto qualquer e outro ponto qualquer, sem existência prévia à conexão, sem hierarquia.
39
Deleuze e Guattari usam rizoma da botânica para falar de uma outra forma de pensar que não aquela que toma o
modelo da árvore. Rizoma é um caule subterrâneo, “comum em plantas vivazes” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p.
1672). Brotos podem ramificar-se em qualquer ponto, assim como engrossar e transformar-se em um bulbo ou
tubérculo; o rizoma tanto pode funcionar como raiz, talo ou ramo, independente de sua localização na figura da
planta. Exemplos: gengibre, espada de São Jorge, bananeira, samambaia, grama.
140
“Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças [...] Ele constitui
multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto, exibíveis num plano de
consistência e do qual o Uno é sempre subtraído (n-1).” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 32).
Rizoma deleuttariano “se estende sob” (um subterrâneo, sub, menor) o modelo da árvore, este
milenar, fundamental, ordenador e tão indubitado. A árvore tem raízes fundadoras e um tronco
principal que se conecta a galhos, uns mais altos que outros e cada um com suas miríades de
folhas: um sistema com uma forte hierarquia, cada coisa em seu lugar, uma estrutura de começo-
meio-fim, valores fixos, é um objeto de reprodução. Trata-se, porém, em outra direção, de
conceber o pensamento como multiplicidade, “pensamento sem imagem”, sem centro, sem
hierarquias. Partir do meio, de qualquer parte, não há genealogia, mas a possibilidade de
conexões quaisquer entre heterogeneidades, fluxos, fluxos e intensidades. “Uma tal
multiplicidade não varia suas dimensões sem mudar de natureza nela mesma e se
metamorfosear.” (DELEUZE; GUATTARI 1995a, p. 32). Sem identidade, sem re-cognição,
mudar de natureza a cada nova conexão. Dessa forma o pensamento remete à experimentação:
pensar não é representar. Os que pensam de uma outra forma não são os que pensam outras
coisas da mesma forma.
Como pensar um ensino de filosofia desprovido de uma imagem do pensamento? Como ensinar
filosofia sem direcionar, dar coordenadas, modular os fluxos? Repetir deleuttarianamente: há
alguma maneira de subtrair o pensamento ao modelo de Estado?
Há uma imagem do pensamento que recobre todo pensamento: “O pensamento já seria por si
mesmo conforme a um modelo emprestado do aparelho de Estado, e que lhe fixaria objetivos e
caminhos, condutos, canais, órgãos, todo um organon [...] a forma-Estado desenvolvida no
pensamento.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 43). Como devir inakomysliachtchie? Como
criar saídas para a modulação-captura do aparelho de Estado: forma de pensar-Estado, forma de
sentir-Estado, forma de agir-Estado, reprodução-Estado? Levar a sério o pensamento. Levar a
sério o pensamento quer dizer dedicar-se a encontrar outras formas de pensar. “[Q]uanto menos
as pessoas levarem a sério o pensamento, tanto mais pensarão conforme o que quer um Estado.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 47). Dedicar-se a um ensino de filosofia que leva a sério o
pensamento.
141
história dos
143
Da tecnologia remendando-louco como possibilidade de ensino de filosofia.
“[S]e as opressões são tão terríveis é porque impedem os movimentos.” (DELEUZE, 1992, p.
152). Não impedir os movimentos, os movimentos do pensamento. Pensar um ensino de filosofia
que leva a sério o pensamento e por isso não o impede de se mover. Pensamento nômade:
Um ensino de filosofia que pretende ser vetor de possibilidades de criação, que pretende dispor as
ferramentas específicas da filosofia para uso livre, não é um ensino que comunica a filosofia, que
dá informação sobre a filosofia. “[T]er uma idéia não é da natureza da
comunicação.”(DELEUZE, 1999, s/p). Um ensino de filosofia que use a tecnologia remendando-
louco como forma de ensinar não é um ensino que planeja conteúdos filosóficos a serem
reproduzidos pelos alunos. “[A] comunicação é a transmissão e a propagação de uma informação
[...] uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o
que julgam que devemos crer.” (DELEUZE, 1999, s/p). Ensino de filosofia remendando-louco
não quer levar a crer, não é emissão de palavras de ordem. “[A] informação é exatamente o
sistema do controle.” (DELEUZE, 1999, s/p). Não controlar. Ensinar filosofia de forma a
possibilitar que outras formas de pensar possam surgir, sem se saber quais serão e como se
configurarão. Trata-se de ser extremamente rigoroso no ensino das filosofias, seus métodos, seus
conteúdos, os conceitos etc., toda a disciplina filosófica no pensamento, mas dispondo disso
como ferramentas para uso livre, em novas criações.
145
crítica do mundo tornou-se cada vez mais premente. “Talvez o mais evidente dos problemas
filosóficos seja a questão do tempo presente e daquilo que somos neste exato momento.”
(FOUCAULT, 1995, p. 239). E mais contundente ainda, indo direto ao ponto ele afirma: “Talvez
o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos.” (FOUCAULT,
1995, p. 239). Recusar o que se é: recusar o que é produzido em si e para si. Recusar uma forma-
Estado de ser, a forma oficial de sentir, de pensar, de agir, sonhar, acreditar, desejar, a forma
maior, a comum, a de todos, a forma normal, a do deus-marketing, global. Recusar a
governamentalidade, recusar o controle. Para Foucault
[...] o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não consiste em
tentar liberar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos
liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga.
Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo
de individualidade que nos foi imposto há vários séculos (FOUCAULT, 1995, p.
239).
Não se trata de “tomada de consciência” do controle, não se trata de tornar-se esclarecido, não é a
saída da caverna. Trata-se justamente de não aprisionar as possibilidades de vida em uma
individualidade-sujeito. Trata-se antes de “uma tribo no deserto, em vez de um sujeito universal
sob o horizonte do Ser englobante” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 49).
40
Cf. nota 23 neste texto.
146
Trata-se de suscitar acontecimentos. “Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos
completamente o mundo, nos desapossaram dele.” (DELEUZE, 1992, p. 218). Acreditar no
mundo é criar o mundo, os mundos. “Acreditar no mundo significa principalmente suscitar
acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempo,
mesmo de superfície ou volume reduzidos.” (DELEUZE, 1992, p. 218).
Criar outras formas de pensar, dissidentes, criar “novas possibilidades de vida”, outros mundos,
multiplicidade de mundos, mundos compossíveis. “[U]m mundo que comporte um mínimo de
desordem, mesmo que seja apenas uma esperança revolucionária, um grão de revolução
permanente.” (DELEUZE, 2006b, p. 108).
147
A aula como acontecimento
Os atores ensaiam as mesmas falas por meses. São determinadas as marcações da movimentação
dos corpos no palco. O final da fala de um é a “deixa” para o começo da fala do outro, decora-se
estas passagens. Repetem isso à exaustão. Estreiam e continuam a temporada, por meses, e um
espetáculo não é idêntico ao outro.
Uma mãe muitas vezes leva os filhos de 5 e 15 anos à livraria, ao cinema e depois
lancham. Durante muitos finais de semana isso se repete, no mesmo centro comercial.
Certa vez, o pequeno está muito satisfeito e ao entrar no carro para irem embora,
exclama: – “Esse foi o melhor dia da minha vida!”. O irmão mais velho, indignado, o
olha agressivamente e diz: – “Que absurdo! Quantas vezes nós já não fizemos
exatamente esse programa?”. O pequeno vira o rosto, olha ao longe pela janela e diz:
– “É, mas não foi a mesma coisa”.
Não é a mesma coisa, a coisa idêntica, mas não da-se conta disso. A coisa torna-se a mesma
quando desenvolvemos técnicas de reprodução do Mesmo. Cria-se uma imagem que recobre todo
o pensamento e faz com que o conhecimento seja reduzido à recognição. A linguagem representa
o real e fala-se o Mesmo. Ensinar as crianças passa a ser muni-los de ferramentas para re-
conhecerem o conhecido, da mesma forma, e reproduzirem. Como escapar disso sem cair em um
espontaneísmo injustificável? Engendrar “um pouco de desordem”, como “um grão de revolução
permanente”. Está claro que esta é uma longa e complexa discussão na história da filosofia, por
exemplo, toda a filosofia de Deleuze, analisando o mundo da representação para afirmar a
diferença41. Não é uma coisa simples pensar como seria um ensino de filosofia sem representação
e sem recognição, fomentando a criação do novo. Uma forma de ensino que seja forma de
proliferação do pensamento, pensamento como experimentação e não paralisia do pensamento,
pensamento-reprodução.
41
A este respeito cf. Deleuze, (2006a).
148
Aula como acontecimento. A aula pode ser repetida, os assuntos se repetem, os exercícios
propostos se repetem, os textos lidos, algumas dificuldades, os anos se repetem, mas não é igual.
Isso não quer dizer que as aulas são diferentes entre si porque num dia chove e no outro bate sol,
alguém tropeça ou pergunta uma coisa inédita, ou porque o professor propõe uma coisa que
nunca fez antes. O acontecimento não é o que acontece, não é qualquer coisa que ocorra,
qualquer evento inesperado que “aconteça” ou alguma surpresa que se decida provocar.
O acontecimento não é uma escolha. Para Deleuze, todo pensamento, todo devir é involuntário.
Para ele a ideia de “mudar o mundo” por meio da realização de um projeto, uma utopia, uma
revolução, entendida como a realização de um possível, é completamente inadequada. Pode-se
dizer o mesmo de uma aula: não se pode pensar que deliberadamente se vai causar uma
determinada mudança nas consciências a partir de um plano prévio. No lugar de revolução
Deleuze privilegia os devires revolucionários. A inversão operada pelo pensamento de Deleuze
faz toda a diferença. Não se trata de realizar possíveis, mas de criar possíveis. Não se tem os
possíveis previamente, não se tem antes de tê-los criados. “O que é possível é criar o possível.”
(ZOURABICHVILI, 2000, p. 335). Sendo assim, não se trata da disponibilidade atual de um
projeto por realizar, mas de inventar. “O possível chega pelo acontecimento e não o inverso”
(ZOURABICHVILI, 2000, p. 335), isto é, o acontecimento não é a realização de um dos
possíveis do conjunto de possíveis que temos à disposição, à espera de realização (ou isso, ou
aquilo, ou...ou...em disjunções exclusivas), o acontecimento é uma abertura do possível, uma
“emergência dinâmica de novo” (ZOURABICHVILI, 2000, p. 337). Um “novo campo de
possíveis” não é a mesma coisa do que “um novo campo de realizáveis”, o possível que se realiza
não é o mesmo que o possível que se cria. O que é possível é “criar novas possibilidades de vida”
(ZOURABICHVILI, 2000, p. 338). E “[u]ma possibilidade de vida é sempre uma diferença”
(ZOURABICHVILI, 2000, p. 338), pois essas “novas possibilidades de vida” são novas formas
de sentir, novos modos de relação com aquilo que é o intolerável. Essa criação de novas
possibilidades de vida supõe novas maneiras de afetar e ser afetado, uma “distribuição diferencial
dos afetos” (ZOURABICHVILI, 2000, p. 339). Esse tipo de transformação nas subjetividades
não é deliberado, voluntário, não se escolhe, ele acontece, acontece por encontros. O que se pode
escolher é assumir as consequências dessa mutação ou fingir que nada aconteceu, como aponta
Zourabichvili. O que permite essa mutação é o encontro, o encontro com o fora, o encontro com
o impensado, com aquilo que torna uma eventualidade qualquer em algo que afeta, pois “se o
149
percepto se distingue de uma simples percepção é porque ele envolve um encontro, uma relação
com o fora.” (ZOURABICHVILI, 2000, p. 340). Por isso o “possível não preexiste, ele é criado
pelo acontecimento. É uma questão de vida. O acontecimento cria uma nova existência, ele
produz uma nova subjetividade (novas relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a
cultura, o trabalho...)”.42 (DELEUZE; GUATTARI, 2007, s/p apud ZOURABICHVILI, 2000, p.
343-4). Novas relações. Trata-se, pois, não de uma tomada de consciência, mas de uma nova
sensibilidade, se é atravessado por outras formas de sentir e de perceber, “[...] já não se suporta o
que se suportava antes, ainda ontem; a repartição dos desejos mudou em nós, as nossas relações
de velocidade e de lentidão modificaram-se, assalta-nos um novo tipo de angústia, mas também
uma nova serenidade. Os fluxos mudaram [...]” (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 153). Novas
relações e novos fluxos. As subjetividades são atravessadas e já não são mais as mesmas, já não
percebem e sentem e pensam como antes. Isso se dá por meio de encontros. Encontro com aquilo
que nos força a pensar, com o que nos faz sentir e perceber de outra maneira, o encontro com o
fora, com o impensável.
[A] busca da verdade é a aventura própria do involuntário. Sem algo que force a
pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada significa. Mais
importante do que o pensamento é o que "dá que pensar"; mais importante do
que o filósofo é o poeta [...] o poeta aprende que o essencial está fora do
pensamento, naquilo que força a pensar. O leitmotiv do Tempo redescoberto é a
palavra forçar: impressões que nos forçam a olhar, encontros que nos forçam a
interpretar, expressões que nos forçam a pensar (DELEUZE, 2003, p. 89).
Encontros que forçam a pensar, que forçam a olhar, a interpretar. Assim a aula acontecimento,
um ensino acontecimento. Quando se funda em uma imagem do pensamento pré-concebida
priva-se o pensamento de sua necessidade, e, portanto, nada é forçado, nada é criado. Por outro
lado, quando não se funda o pensamento e, ao invés, se força a pensar, tudo é possível. Tudo é
possível quer dizer que o campo de criação está aberto e, portanto, tudo está por fazer. É nesse
42
Tradução para o português de Maria Cristina Franco Ferraz. No original leia-se: “Le possible ne préexiste pas, il
est créé par l‟événement. C‟est une question de vie. L‟événement crée une nouvelle existence, il produit une nouvelle
subjectivité (nouveau rapports avec le corps, le temps de la sexualité, le milieu, la culture, le travail…).”
(DELEUZE; GUATTARI, 2007, s/p). Disponível em: <http://www.revue-chimeres.fr/drupal_chimeres/?q=node/87>
Aceso em: 7 maio 2012
150
sentido que um ensino acontecimento não é a realização de um plano, mas o enxameamento de
signos que forcem novas formas de pensar, novas formas de sentir e perceber.
Aula como acontecimento. A aula pode ser repetida, os assuntos se repetem, os exercícios
propostos se repetem, os textos lidos, algumas dificuldades, os anos se repetem, como uma peça
de teatro ou a rotina de uma família, mas não é igual. Se o curso estiver montado para gerar
signos que forçam novas formas de pensar e de sentir e de perceber, por meio dos signos da
filosofia, será um curso que promove novas formas de subjetividade. “Temos que promover
novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto
há vários séculos.” (FOUCAULT, 1995, p. 239).
Em um curso assim, o desvio é componente. Não há como seguir, estreito, um plano pré-
concebido. Planeja-se antes sim, e o planejamento e a seleção rigorosa do que se vai usar como
signo que força, como se vai usar tal coisa para que possa se configurar como signo que força,
mas nada está garantido, pode ser que nada aconteça. Não há situação ideal, não há como seguir
um modelo e tampouco tentar fazer caber o vivo em um modelo, um planejado, um almejado.
Não se pode almejar sem correr o risco de já estar governando, controlando. Não há ponto de
chegada, tudo é meio, é processo, remendando-louco descentrado, mudando de natureza a cada
novo remendo. Para os professores isso é o insuportável, isso é o que deveria ser combatido.
Porque os professores estão acostumados à sua identidade de balizadores, de guias no processo-
progresso de um ponto de partida a um ponto de chegada, ensinar sem saber onde vai dar parece
loucura, besteira, irresponsabilidade. Não é uma coisa simples pensar como seria um ensino de
filosofia sem representação e sem recognição, fomentando a criação do novo.
O conceito de gambiarra foi pensado por Boufleur43 como uma ação criativa de soluções para
problemas práticos. Na contramão da concepção negativa de gambiarra como improvisação
precária e desleixada, sua nova forma de pensar essa prática leva a aproximação desta com a
capacidade inventiva e inovadora face às adversidades às quais se está exposto. Da mesma forma
é necessário pensar as aulas de filosofia sob a tecnologia remendando-louco, aulas
43
Rodrigo Boufleur, designer cuja dissertação de mestrado, A questão da Gambiarra: Formas Alternativas de
Produzir Artefatos e suas Relações com o Design de Produtos, defendida na FAU-USP, em 2006, estuda as
aproximações possíveis entre a gambiarra e o design de produtos. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/9033571/TeseAQuestaodaGambiarra> Acesso em: 10 abr. 2012
151
acontecimento, aulas-vetores de novas formas de, aulas enxameamento de signos que forçam a.
Praticar a gambiarra, como a concebe Boufleur, quer dizer que se faz (a aula, o que se planejou
de “ensinar” naquela aula) com o que se tem na hora (o que se consegue fazer acontecer no
momento da aula: as reações, as relações, as proposições, negações e afirmações que os
participantes venham a fazer a partir da provocação do professor), não há ensaio, não há situação
ideal e não há o Mesmo.
Um curso de filosofia pensado para ser vetor de signos que forcem a novas formas de pensar,
novas formas de perceber e de sentir, que se proponha a se desdobrar em aulas-acontecimento,
não pode seguir um planejamento de curso. Deve-se fazer o planejamento, mas não se poderá
segui-lo. Se as aulas são propostas como lugar de experimentação de pensamento e isto for
levado a sério, não há como seguir o planejado a priori. Deve-se fazer um planejamento e refazê-
lo, indefinidamente, no processo. O desvio é componente. O que importa é seguir
experimentando no pensamento e é esse percurso que vai determinar os pontos onde se passa. E
não mais a determinação prévia de pontos onde se deve necessariamente passar. “Primeira regra
para o reto ensino, em particular, o reto ensino da filosofia: não temer os desvios, não temer a
errância. Os programas e „cronogramas‟ somente servem de esboços utópicos do percurso de uma
problemática” (GAGNEBIN, [2006?], s/p).
No nômade o habitat está subordinado ao percurso, monta-se a tenda, se constrói um iglu para o
pernoite, em seguida tudo é desmontado e abandonado para a continuidade do percurso.
[N]o espaço estriado as linhas, os trajetos têm tendência a ficar subordinados aos
pontos: vai-se de um ponto a outro. No liso é o inverso: os pontos estão
subordinados ao trajeto [...] é o trajeto que provoca a parada
[...]
O espaço liso é ocupado por acontecimentos ou hecceidades [...] É um espaço de
afectos, mais que de propriedades [...] É um espaço intensivo, mais do que
extensivo, de distâncias e não de medidas (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p.
184 e 185).
152
O trajeto da experimentação/investigação filosófica em sala de aula é que vai determinar, por
meio dos problemas que surgem, os pontos onde se deve passar. Tudo muda e deve ser
redirecionado porque está vivo. O planejamento de pontos a serem visitados, subordinado ao
percurso dos acontecimentos na experimentação de sala de aula, será obrigado, de tempos em
tempos, a se reorientar, remanejar, gambiarra-boufleur.
Quando algo acontece na aula, quando algo pode ser, subitamente, uma
verdadeira questão (para todos: estudantes e professor, não só para este último),
aí vale a pena demorar, parar, dar um tempo, descrever o impasse e, talvez,
perceber que algo está começando a ser vislumbrado, algo que ainda não tinha
sido pensado (não por ninguém na tradição filosófica inteira, isso é abstrato, mas
por ninguém dos participantes concretos agora e aqui na aula), algo novo e,
portanto, que não sabemos ainda como nomear (GAGNEBIN, [2006?], s/p).
153
Ensinar como experiência
[S]e aprender é uma experiência que envolve todo o ser, e não a troca entre um
sábio e um ignorante, o ensino ajusta-se às condições da aprendizagem, desde
que ele próprio seja uma experiência; este requisito será satisfeito caso se
coloque a atenção nos problemas e na diferença dos problemas
(ZOURABICHVILI, 2005, p. 1310).
Os problemas podem tirar o pensamento de seu torpor natural e fazê-lo criar o novo, no
acontecimento. Porém, não falsos problemas, problemas incrustados como matéria a ser
verificada. Não os problemas do professor. Não os problemas “da filosofia”. As coisas certas e as
duvidosas não nos levam a pensar, nada de “arrombamento”. Dirá Deleuze que “é absolutamente
necessário que ele [o pensamento] nasça por arrombamento” (DELEUZE, 2006a, p. 203), pois
com as coisas certas e as duvidosas há apenas recognição. O trabalho de reconhecer pode ser
árduo, mas não é pensamento, “O pensamento é aí [na recognição] preenchido apenas por uma
imagem de si mesmo, imagem em que ele se reconhece tanto melhor quanto ele reconhece as
coisas: é um dedo, é uma mesa, bom-dia Teeteto.” (DELEUZE, 2006a, p. 202). Bom dia Teeteto,
claramente uma crítica ao pensamento platônico, mas também ao cartesiano quando esse não
propõe nada além de “coisas duvidosas” igualmente impotentes para fazer com que “nasça o ato
de pensar no pensamento” (DELEUZE, 2006a, p. 202).
154
As aulas de filosofia como aulas de exposição de temas filosóficos, de história da filosofia, dos
problemas da filosofia, os seus métodos, os textos, não forçam o pensamento. Uma disciplina
filosófica no pensamento só poderá surgir por meio de problemas, problemas reais e esses são os
problemas dos alunos. Abandonar a representação, abandonar a recognição e trabalhar com a
literalidade (ZOURABICHVILI, 2005), com a imanência, a experiência. “É preciso mostrar a
diferença diferindo.” (DELEUZE, 2006a, p. 94). De nada serve pedir aos alunos que empatizem
com os problemas que não são os deles, isso não tem força para fazer nascer, no pensamento, o
ato de pensar, pois os problemas dados como matéria a ser reconhecida não levam à experiência,
ao acontecimento, à criação de saídas. O ensino de filosofia remendando-louco, ensino de
filosofia como experiência filosófica é aquele que trabalha para enxamear ocasiões de
possibilidade de conquista de uma disciplina filosófica no pensamento e isso está pensado como
resistência, resistência à captura do vivo, captura do pensamento e dos corpos e das
sensibilidades e das crenças e dos desejos. Não por meio de um ensino assim, mas no meio de um
ensino assim criar “novas formas de subjetividade” (FOUCAULT, 1995, p. 239). Envolver-se em
um processo de subjetivação que crie escapes aos poderes dominantes e aos seus saberes
correspondentes “através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários
séculos” (FOUCAULT, 1995, p. 239), recusar o sujeitamento aos deveres e saberes e poderes,
recusar a individualidade representante desses poderes-saberes. “Mais do que de processos de
subjetivação, se poderia falar principalmente de novos tipos de acontecimento [...] Subjetivação,
acontecimento ou cérebro, parece-me que é um pouco a mesma coisa.” (DELEUZE, 1992, p.
218). Suscitar acontecimentos como forma de resistência. Recusar os problemas de outrem,
escapar ao controle, recusar a formação.
No entanto, “sem um conjunto de impossibilidades não se terá essa linha de fuga, essa saída que
constitui a criação” (DELEUZE, 1992, p. 167). Para um ensino-acontecimento é necessário ,
como arsenal bélico, toda uma didática-táticas das impossibilidades, a cada momento lançar
impossibilidades, isso afeta, isso força, quer seja em qual fase do ensino for.
No livro Ensinar Filosofia, um livro para professores, Aspis e Gallo criam um sistema de
referências para o ensino de filosofia que gira em torno de algumas etapas: sensibilização,
problematização, conceituação e aplicação, aqui chamada de criação de sub-versões. São etapas
e, no entanto podem se justapor e repetir. Pode-se dizer que o que foi chamado lá de
155
sensibilização é uma constante. O ensino como acontecimento pressupõe que os alunos sejam
constantemente desafiados a se posicionarem sensivelmente sobre os signos que são aspergidos
na aula, impossível sentir isso e impossível não sentir isso, deparar-se com o que não se pode
mais tolerar. Não se trata de sensibilização moral ou intelectual, mas sim sensorial, dos sentidos
mesmo. O que se sente quando se assiste a um filme iraquiano sem legendas, por exemplo? O que
pode surgir a partir daí como problema?
Da mesma forma a problematização é constante, só aquilo que afeta e obriga à criação de saídas
pode ser considerado. Todo um movimento de transformações, de entrada em fluxos de busca
cheio de acidentes, de relações, pode ser constitutivo de algum “saber” nômade – não fixo a
identidades-soluções, que diga respeito ao acontecimento e que não seja busca e encontro (ou
determinação) de essências. Assim, menos se pergunta “O que é?” do que “Como?”, “Quem?”,
“Quando?”, “Em quais casos?”, “Sob quais condições?”, “Por quê?”. Constantemente, no
processo, no meio.
Diante das impossibilidades, criar saídas; por meio de problemas, criar conceitos, já que “todo
conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 27).
Conceber a filosofia como uma atividade de criação de conceitos pressupõe que o pensamento
não é natural, este precisa ser provocado e isto se dá por meio de signos que forçam a criação do
“ato de pensar no pensamento” porque abrangem o ainda não pensado. Deleuze afirma a
necessidade de um pensamento sem imagem, um pensamento que não esteja já condicionado em
sua forma a encontrar verdades já dadas. Para ele “o conceito deve dizer o acontecimento, e não
mais a essência” (DELEUZE, 1992, p. 37).
Trata-se aqui não de pensar os conceitos como criações estritamente racionais, mas também de
levar em conta sua parcela de parentesco com os afectos e os perceptos.
156
[...]
O objetivo da arte, com os meios do material, é arrancar o percepto das
percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto
das afecções, como passagem de um estado a outro. Extrair um bloco de
sensações, um puro ser de sensações (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 213,
216 e 217).
A composição estética da obra de arte é um finito que restitui o infinito, desprende as percepções
e as torna perceptos assim como as afecções são feitas afectos, blocos de sensações que se
conservam: resistem. Os conceitos estão em relação direta com estes. Quando Deleuze relata sua
experiência como professor diz ter descoberto uma relação essencial entre a filosofia e a não-
filosofia, a filosofia se dirige a não-filósofos e necessita de uma compreensão não apenas
conceitual, mas por afectos e perceptos. O pensamento é experimentação e esta não está separada
de todo o corpo.
Do problema, ainda: existe algum meio de subtrair o pensamento ao modelo de Estado? Conceber
o pensamento como um gigantesco remendando-louco: multiplicidade em movimento. Conceber
o ensino assim. Ensino remandando-louco não é formação e não é recognição. Ensino
remendando-louco: uma multiplicidade de singularidades em movimento: aula como
acontecimento, planejamento movediço, afetação, pensamento-problema, experimentação,
conceito-afecto-percepto, criação de sub-versões. Ensino de filosofia remendando-louco: “um
grão de revolução permanente”.
No entanto não nos iludamos de que qualquer coisa que ocorra no curso leva à filosofia, à criação
de uma disciplina filosófica no pensamento, à criação de conceitos e de sub-versões. Ensino
remendando-louco não é displicência, “vale-tudo”, qualquer coisa. A intencionalidade
educacional e tática e o rigor filosófico das escolhas dos signos que o professor faz é fundamental
para que um ensino assim desemboque em criação filosófica de sub-versões e não em
comunicação de opiniões, coisa para a qual a filosofia é absolutamente dispensável.
[É] falso definir o nômade pelo movimento. Toynbee tem profundamente razão
quando sugere que o nômade é antes aquele que não se move [...] é preciso
distinguir a velocidade e o movimento: o movimento pode ser muito rápido, nem
por isso é velocidade; a velocidade pode ser muito lenta, ou mesmo imóvel, ela
é, contudo, velocidade. O movimento é extensivo, a velocidade, intensiva
[...]
só o nômade tem um movimento absoluto, isto é, uma velocidade; o movimento
turbilhonar ou giratório pertence essencialmente à sua máquina de guerra
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 52 e 53).
44
Sobre perder tempo cf. interessantes manifestações artísticas da dupla Brigida Campbell e Marcelo Terça-Nada do
grupo Poro que faz intervenções urbanas e ações efêmeras. Disponível em:
<poro.redezero.org/ver/intervencao/perca-tempo> Acesso em: 10 abr. 2012
158
estabelecidos para chegar a verdades dadas. Ir muito devagar, refazer e voltar e refazer
novamente e de repente dar um salto ou ir muito rápido, não há regra se as aulas se derem no
modo problemático, afectivo e rigorosamente filosófico. Resistir à captura dos fluxos de
pensamento.
159
Os Diggers
[Peter Coyote] A ideia de dádiva, de livre, gratuito, que foi uma das mais
importantes para os Diggers, nos obrigava ao anonimato. Se você recebesse
alguma recompensa pelo que estava fazendo, então não era dádiva. Se você
estivesse construindo uma carreira, por mais que não estivesse ganhando
dinheiro, sua atividade era um investimento. Então uma extensão da dádiva é
que você precisava ser anônimo. Fazer as coisas só pelo prazer disso. Desse
jeito, a dádiva era simplesmente a ferramenta apropriada e eficaz para o tipo de
investigações que estávamos fazendo. Uma grande chave para entender isso é o
poema do poeta beat Gregory Corso: „Poder é permanecer de pé numa esquina
não fazendo nada‟. Porque o que estávamos pensando era na autonomia, em
encontrar onde estavam os autênticos impulsos autônomos. E sermos
responsáveis por eles, não criar desculpas nem esperar pela revolução para que
eles surgissem45 (COHN; PIMENTA, 2008, p. 186).
45
Fala de um dos membros do grupo de teatro anarquista de guerrilha de rua (anarchist guerilla street theater
group), Diggers, um dos ícones do movimento de contracultura dos anos da década de sessenta em Haight-Ashbury
São Francisco, EUA. Uma de suas ações mais famosas foi a distribuição gratuita e diária de comida em um dos
parques da cidade. Envolto em um místico anonimato, os Diggers (escavadores) tiraram seu nome do original
English Diggers, movimento de trabalhadores rurais que, entre 1649 e 1650, liderados por Gerrard Winstanley,
promoveram na prática a ideia de uma sociedade livre, sem propriedade privada. Para o historiador Christopher Hill,
Winstanley pode ser considerado um precursor do socialismo e comunismo dos séculos XIX e XX, ele compreendia
que a liberdade política é impossível sem igualdade econômica (HILL, 1987). No site encontra-se uma excelente
entrevista, em vídeo, de Peter Coyote, falando, atualmente, sobre as possibilidades de resistência na
contemporaneidade. Encontra-se disponível em: <http://www.diggers.org/top_entry.htm>. Acesso em: 21 abr. 2012.
161
Do ensino de filosofia como re-existência: ferramentas e armas
163
O Manifesto Hacker [A consciência de um Hacker]
+++O Mentor+++
08 de janeiro de 1986
Mais um foi apanhado hoje, deu em todos os jornais. “Adolescente preso por
crime virtual”, “Hacker preso depois de adulteração bancária”.
Mas vocês, em sua psicologia de três níveis e seus cérebros-tecno dos anos 50,
alguma vez deram uma olhada por trás dos olhos de um hacker? Por acaso
alguma vez imaginaram o que faz seu coração bater, que forças o constroem, o
que o moldou?
O meu mundo começa com a escola… Sou mais esperto do que a maioria dos
outros meninos, e o lixo que nos ensinam me deixa entediado…
E então aconteceu… uma porta se abriu para o mundo… passava pela linha
telefônica como a heroína nas veias de um viciado, um impulso eletrônico é
enviado, procura-se um refúgio das incompetências cotidianas… encontra-se a
tábua de salvação. “É isso… esse é meu lugar…”. Conheço todos por aqui…
ainda que não tenha sido apresentado a eles, mesmo que nunca tenha falado com
eles, que nunca venha a ouvir falar deles novamente… Conheço todos eles.
165
Maldito garoto. Ocupando a linha telefônica novamente. São todos iguais…
Pode apostar que somos todos iguais… recebíamos papinha de bebê na escola,
quando ansiávamos por um filé… os pedacinhos de carne que nos serviam eram
pré-mastigados e sem gosto algum. Fomos dominados por sadistas, ou ignorados
pelos indiferentes. Os poucos que tinham algo a nos ensinar encontraram alunos
desejantes, mas eram como gotas no deserto.
Sou um hacker, e este é meu manifesto. Vocês podem parar um indivíduo, mas
não poderão nos parar a todos… afinal, somos todos iguais46.
46
Tradução do original em inglês de Davina Marques.
Texto disponível em: <http://www.phrack.org/issues.html?issue=7&id=3&mode=txt> Acesso em: 7 maio 2012
166
Hackerismo e educação e hackerismo e um ensino de filosofia
Muito inspirador o manifesto hacker, de “o mentor”, feito em 1986, que, de forma tão simples, dá
a entender que os meninos que se põem a investigar apaixonadamente o funcionamento dos
computadores e passam a entender muito disso e passam a criar coisas a partir disso, são meninos
muito inteligentes com os quais a escola não soube o que fazer. As exceções nietzschianas
(NIETZSCHE, 2003a) que, a despeito da ausência de qualquer condição para sua sobrevivência,
florescem. Desviam e criam novos outros caminhos, linhas de fuga. Em face às impossibilidades
da escola, criam novos possíveis. No entanto, estes meninos, especificamente, são responsáveis
por ações consideradas ilícitas, que prejudicam outros, violam a propriedade privada de outros.
Este é o cerne de toda uma discussão em torno da palavra hacker, que surge na segunda metade
da década de oitenta do século passado, quando aparecem os primeiros “vírus de computador”,
transmitidos por meio de disquetes (SOLOMON, 1990). O manifesto autodenominado hacker, de
“o mentor”, vem a público na segunda metade da década de oitenta, exatamente quando ocorre o
primeiro exemplo notório de invasão em sistemas de informação. A partir desse manifesto, os
hackers originais cunham o termo crackers, “quebradores”, para defenderem-se da má utilização
– pela imprensa e pelos próprios crackers – do termo hacker, designando alguém que ameaça a
segurança de algum sistema (RAYMOND, 2000). No entanto, algumas décadas antes dessa
invasão, ocasião em que se coloca a necessidade da distinção entre os termos hacker e cracker, já
havia um sólido grupo que se autodenominava hacker e que, ao contrário de “o mentor”, estavam
muito bem instalados em uma das melhores universidades do mundo, o Instituto de Tecnologia
de Massachusetts, ou MIT, como é comumente conhecido. Para o contemporâneo e ainda atuante
Eric Steven Raymond, ou apenas ESR, norte americano que copilou e mantém atualizado o
dicionário dos hackers (RAYMOND, 1996a), “os hackers fazem coisas, os crackers só sabem
como quebrá-las”47.
Desvio: pode-se declinar o convite de confirmar o obsoleto jogo bem versus mal que facilmente
se coloca em distinções como essa. Não apenas por uma crença em outras possíveis maneiras de
pensamento, mas até mesmo em consideração aos fatos históricos que não deixam que se engane
a respeito da possibilidade de coexistência entre termos de naturezas contraditórias. Em 1989 o
muro de Berlim é derrubado a marretadas e isso é um ícone das mudanças na configuração social,
47
Palavras de Eric Steven Raymond, no filme Hackers: outlaws and angels, da Discovery: “Hackers make things,
crackers only know how to brake them.”
167
política e econômica do mundo e no capitalismo, que se sucederam. Com o fim da chamada
guerra fria e o suposto triunfo do capitalismo sobre as tentativas de realização do comunismo, a
forma bipartida e a lógica da exclusão para analisar e classificar o mundo, assim como o muro,
foram por terra. A revolução microeletrônica que abriu caminhos para a fluidificação das relações
sociais, políticas e econômicas, que contribuem para o acontecimento do processo de
globalização mundial, por meio de redes de informação, não admite mais apenas dois lados
antagônicos, para nada.
No dicionário dos hackers, The New Hacker's Dictionary, encontram-se algumas definições do
termo hacker48: “Hacker: [originalmente alguém que faz móveis com um machadinho].”
(RAYMOND, 1996a – tradução livre). É difundida a ideia de que a palavra hacker surge
juntamente com a primeira geração de hackers nos EUA, no final da década dos anos 50 do
século XX, advinda de hack, que em inglês significa talhar, talhar detalhes em madeira, com
preciosismo. É possível estender-se esse significado, usando-o também para alguém que produz
um trabalho criativo, inovador, com estilo e excelência técnica, pode-se dizer que esse trabalho
foi executado com talento de hacking. Os significados específicos do termo hacker, na área de
informática, apontam todos para determinados valores que são aqueles dos quais a comunidade
hacker se orgulha e faz questão de manter. Dentre eles encontram-se a curiosidade e a
persistência: “1. Uma pessoa que aprecia explorar os detalhes de sistemas programáveis e
descobrir formas de estender suas capacidades, diferentemente da maioria dos usuários que
prefere aprender apenas o mínimo necessário”; a praticidade e a paixão, independente do quanto
trabalho determinada tarefa possa despender: “2. Quem programa entusiasmadamente (até
obsessivamente) ou aprecia mais programar do que apenas teorizar sobre programação”; a
abertura para o prazer no trabalho: “3. Uma pessoa capaz de apreciar {um valor hacker}” e
finalmente a excelência, a expertise: “4. Uma pessoa que é boa em programar rapidamente. 5.
Um expert em um determinado programa, ou alguém que frequentemente trabalha usando um
48
No original leia-se: “Hacker: n. [originally, someone who makes furniture with an axe].” (RAYMOND, 1996a,
s/p). Disponível em: <http://catb.org/~esr/jargon/html/H/hacker.html> Acesso em: 24 mar. 2012
168
determinado programa ou nele; como quando se diz: „um hacker UNIX‟”49 (RAYMOND, 1996a
– tradução livre).
Linus Torvalds, muito jovem, aos 21 anos de idade, cria um sistema operacional alternativo
chamado Linux, que ameaça a hegemônica Microsoft Corporation por competir com o seu
extremamente popular sistema operacional Windows (TORVALDS; DIAMOND, 2001). Sua
experiência nessa criação é a de compartilhar, desde o início, suas descobertas, colocando seu
sistema operacional, de código-fonte aberto, em uma lista de discussão na Internet, para ser
debatido e melhorado por qualquer um que quisesse (e pudesse) fazê-lo. Esse movimento de
compartilhamento cria uma comunidade de co-laboração. Basicamente o modelo fonte aberta
funciona a partir da resolução de um determinado problema ou desafio considerado significativo
que é compartilhado na Rede. Aquele que recebe esta versão da solução pode usá-la livremente,
testá-la, desenvolvê-la e isto é possível quando as informações que levaram à solução, a fonte,
são passadas junto com ela – fonte aberta. Aquele que a recebe só tem duas obrigações em
relação à obtenção desses direitos: a transferência desses mesmos direitos quando a solução
original, ou uma versão desenvolvida, forem compartilhadas e, além disso, deve-se sempre dar os
créditos para aqueles que trabalharem nas versões compartilhadas. A ideia é a de compartilhar
uma solução em sua fase inicial acreditando nos benefícios da multiplicidade de pontos de vista.
49
No original leia-se: “1. A person who enjoys exploring the details of programmable systems and how to stretch
their capabilities, as opposed to most users, who prefer to learn only the minimum necessary. 2. One who programs
enthusiastically (even obsessively) or who enjoys programming rather than just theorizing about programming. 3. A
person capable of appreciating {hack value}. 4. A person who is good at programming quickly. 5. An expert at a
particular program, or one who frequently does work using it or on it; as in 'a UNIX hacker'. 6. An expert or
enthusiast of any kind. One might be an astronomy hacker, for example.” (RAYMOND, 1996a, s/p). Disponível em:
<http://catb.org/~esr/jargon/html/H/hacker.html> Acesso em: 24 mar. 2012
169
Assim esse novo sistema operacional vem se aprimorando desde a década de 1990. Aberto e
gratuito até hoje, é usado por milhares de pessoas e instituições50.
É essa cultura hacker a responsável pela criação, que não é governamental e não é corporativa, da
Internet, do email e da World Wide Web (HIMANEN, 2001, p. 158-9)51 e que mantém a cultura
de desenvolvimento livre como se conhece atualmente. “A Web é mais uma criação social do que
técnica. Eu a desenhei para obter um efeito social – ajudar as pessoas a trabalharem juntas – e não
como um brinquedo eletrônico.” (BERNERS-LEE, 1999, p. 123). Berners-Lee não caiu na
tentação de vender sua invenção e lucrar com isso, apesar das reiteradas propostas que recebeu.
Ele inventou a web para contribuir socialmente com o trabalho colaborativo. John Perry Barlow
da Electronic Frontier Foundation, no filme Hackers: outlaws and angels, permite-se sonhar
com “um mundo melhor” no ciberespaço:
50
Não foi Linus Torvalds que inventou o modelo de código-fonte aberto. O sistema operacional UNIX, de 1969, é
uma iniciativa pioneira do MIT juntamente com AT&T (empresa que na época monopolizava o sistema de telefonia
nos EUA) e a G&E, interessada em fabricar computadores e lucrar comercialmente com sua venda. Esse sistema
operacional, que mais tarde teve seu código fechado e tornou-se uma mercadoria comercializável, gerou muitos
outros sistemas operacionais, desenvolvidos a partir dele. O UNIX BSD, criado por Bill Joy, em 1977, e que exerceu
grande influência na criação do LINUX. Linus também sofreu a influência de Richard Stallman, inicialmente ligado
ao AI Lab do MIT, e que foi quem iniciou o desenvolvimento do sistema operacional chamado GNU, em 1983, na
intenção de criar um sistema operacional completamente compatível com o UNIX, mas que não usasse o código
fonte deste. Isso ocorreu como uma forma de resistência ao fato do UNIX ter começado a ser comercializado e ter
tido seu código fechado. Stallman, desde lá até os dias atuais, é conhecido por seu intenso ativismo a favor do
software livre. Atualmente UNIX é o nome do que se pode chamar uma grande família de sistemas operacionais. O
GNU usa o núcleo do LINUX, já que, em 1991, quando Stallman e sua equipe ainda trabalhavam no
desenvolvimento de um núcleo, Linus Torvalds apresenta seu LINUX, que era totalmente compatível com o UNIX.
Assim sendo trata-se do GNU/LINUX.
51
O apêndice “Uma breve história do hackerismo na computação” e as notas correspondentes, no livro de Himanen
(2001), são muito úteis para a compreensão do surgimento da internet e da web, assim como A Brief History of the
Internet (Uma breve história da Internet) disponível em: <www.internetsociety.org/internet/internet-51/history-
internet/brief-history-internet> Acesso em: 24. mar. 2012
170
No site de um dos mais antigos clubes de alunos do MIT (Instituto de Tecnologia de
Massachusetts), o Tech Model RailRoad Club (TMRC), clube de modelismo de tecno-ferrovia,
criado em 1946, há uma explícita nota sobre o uso do termo hack:
Nós aqui no TMRC usamos os termo 'hacker' só com o seu significado original,
de alguém que aplica o seu engenho para conseguir um resultado inteligente, o
que é chamado de 'hack'. A essência de um 'hack' é que ele é feito rapidamente, e
geralmente não tem elegância. Ele atinge os seus objetivos sem modificar o
projeto total do sistema onde ele está inserido. Apesar de não se encaixar no
design geral do sistema, um 'hack' é em geral rápido, esperto e eficiente52
(TMRC, s/d – tradução livre).
Este sentido de hacker, de pessoa com habilidade para modificar ou inventar artifícios que
transponham obstáculos à funcionalidade do sistema no qual está trabalhando, artifícios originais
e criativos, que não fazem parte do sistema antes do surgimento do problema e que, pela situação
de emergência do problema, muitas vezes não é uma invenção elegante, pode ser aproximado ao
sentido do termo gambiarra, dado por Boufleur (2006) e usado para designar uma ação criativa
para solucionar problemas práticos, enfatizando a capacidade inventiva e inovadora frente às
adversidades.
Ainda no dicionário dos hackers, The New Hacker's Dictionary, encontra-se outras definições do
termo que não estão ligadas especificamente ao universo dos computadores: “6. Um expert ou
entusiasta de qualquer tipo, alguém pode ser um astrônomo hacker, por exemplo. 7. Aquele que
aprecia o desafio intelectual de superar ou contornar limitações.”53 (RAYMOND, 1996a –
tradução livre).
52
No original leia-se: “We at TMRC use the term „hacker‟ only in its original meaning, someone who applies
ingenuity to create a clever result, called a "hack". The essence of a "hack" is that it is done quickly, and is usually
inelegant. It accomplishes the desired goal without changing the design of the system it is embedded in. Despite
often being at odds with the design of the larger system, a hack is generally quite clever and effective.” Disponível
em: <http://tmrc.mit.edu/hackers-ref.html. Acesso em: 7 maio 2012
53
No original leia-se: “6. An expert or enthusiast of any kind. One might be an astronomy hacker, for example. 7.
One who enjoys the intellectual challenge of creatively overcoming or circumventing limitations […] It is better to
be described as a hacker by others than to describe oneself that way. Hackers consider themselves something of an
elite (a meritocracy based on ability), though one to which new members are gladly welcome.” (RAYMOND, 1996a,
s/p). Disponível em: <http://catb.org/~esr/jargon/html/H/hacker.html> Acesso em: 24 mar. 2012
171
Vê-se que termo hacker pode não se restringir ao campo da informática. Ele é usado para
designar todos os que são excelentes naquilo que fazem, como, por exemplo, os artesãos que, no
passado, só tinham o machado como ferramenta de trabalho para transformar a madeira.
Atualmente o termo indica um bom especialista, um expert, em qualquer área, embora tenha
adquirido este sentido somente após seu uso na informática.
De São Francisco, na Primeira Conferência dos Hackers, em 1984, ouve-se: “É possível fazer
quase tudo, e ser um hacker. Há hackers carpinteiros. Não está necessariamente ligado a alta
tecnologia. É preciso ter habilidade e gostar do que se faz.” (LEVY, 1994, p. 434).
Zoom in: hack como gambiarra, tática inventiva de aula-acontecimento, tática para lidar com o
vivo imprevisível. No ato de sua criação, improvisada, pode ser deselegante, mas funciona. O
importante é que funcione. Ao mesmo tempo o hack como talhar com preciosismo, com
excelência, demorar-se nos detalhes, com rigor.
Zoom out: hackerismo como contra-conduta. Não permitir a condução prévia das condutas,
desviar da governamentalidade, e hackerismo como contracultura, revolver a cultura dada em
busca de.
172
É modificando progressivamente as tutelas que pesam sobre o desejo, que um
trabalho de equipe pode constituir máquinas analíticas e militantes de um novo
tipo. Assim como me parece ilusório apostar numa transformação paulatina da
sociedade, penso que as tentativas microscópicas, do tipo comunidades,
comissões de bairro, a organização de uma creche numa faculdade, etc., podem
desempenhar um papel absolutamente fundamental. É trabalhando em pequenas
tentativas como estas que se contribui para o desencadeamento de grandes
fraturas do tipo das de Maio de 68 [...] Neste campo, acredito num reformismo
permanente da organização revolucionária. Mais valem dez fracassos repetidos
ou resultados insignificantes que uma passividade embrutecida face aos
mecanismos de recuperação e às manipulações burocráticas dos militantes
profissionais (GUATTARI, 1985, p. 84-5).
173
Problema: como os ensinos de filosofia nômades inventam ou encontram suas armas?
Pode-se afirmar veementemente que o ensino de filosofia que opera por aulas-acontecimento e
que admite o nomadismo de seu planejamento e que enxameia signos, por meio de problemas,
não tem e não deve ter nada de impreciso. Em nenhum momento é admissível que não seja
garantido o filosófico. O processo de conhecer as ferramentas da filosofia, através das aulas de
filosofia, é rigoroso, não é “discutir um pouco” e tampouco “refletir” ao confrontar opiniões a
partir de fatos ocorridos e vividos, que se anuncia nos jornais, por exemplo, assim como não é
curso expositivo da história da filosofia e dos problemas da filosofia54.
54
A este respeito cf. Aspis (2009, p. 33-53).
174
exercitando. Aquilo que Favaretto insistentemente chama de “exercícios operatórios” e que talvez
sejam “o grande caminho do professor de filosofia” (FAVARETTO, 1995, p. 82). O exercício da
leitura filosófica leva ao contato direto dos alunos com os textos da tradição, fragmentos que o
professor selecione, dependendo da necessidade de cada momento. Sem o escudo da
intermediação do professor explicador, mas acompanhado pelo professor ferramenteiro-
instrumentador, o aluno se atraca com o texto. A insistência de Rancière na “igualdade das
inteligências” que se verifica por meio do contato direto do aprendiz com o livro é bonita e útil:
O livro é uma fuga bloqueada: não se sabe que caminho traçará o aluno, mas
sabe-se de onde ele não sairá – do exercício de sua liberdade. Sabe-se, ainda,
que o mestre não terá o direito de se manter longe, mas à sua porta. O aluno
deve ver tudo por ele mesmo, comparar incessantemente e sempre responder à
tríplice questão: o que vês? O que pensas disso? E assim até o infinito. Mas esse
infinito não é mais um segredo do mestre, é a marcha do aluno (RANCIÈRE,
2002, p. 44).
Com as ferramentas da filosofia, ler filosofia, diretamente do texto e decifrá-lo55, decifrar seu
modo de enunciar, apropriar-se de sua forma de tratar os problemas que estão postos e de compor
significado e deixar-se afetar e repetir isso, exercitar os fluxos, essa disciplina própria da
filosofia. Ler filosofia filosoficamente, fazer ensaios de escrever filosofia, exercícios de criar
conceitos, lidar com os problemas filosóficos em conexão com outras formas de pensamento e
criação, as ciências e as artes, fazer experimentações disso tudo, não mais a mercê do segredo do
mestre, mas na sua própria marcha.
55
Rejeitar a intermediação das explicações, os comentadores, e ir direto ao texto dos filósofos. A professora chilena
Olga Grau Duhart em um de seus trabalhos sobre ensino e filosofia para jovens sugere a leitura de Simone de
Beauvoir já que esta faz filosofia quando fala de sua vida. A filosofia viva, com relação direta com a vida vivida,
vida vivida filosoficamente e vivida por alguém capaz de produzir filosofia através dela, alguém capaz de perceber
filosoficamente o vivido e sair dele fazendo filosofia. Estas considerações foram feitas a partir do texto “Simone de
Beauvoir: el arte de vivir y pensar filosóficamente fuera de la disciplina” de Olga Grau Duhart. O texto se inscreve
no marco conceitual do Proyecto de investigación FONDECYT 110237, “Filosofía, literatura y género: la escritura
de Simone de Beauvoir”, do qual a autora é investigadora responsável e foi apresentado no IV Simposio
Internacional em Educação e Filosofia-Biopolítica, arte de viver e educação (7-9 de junho 2011), realizado na
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marilia.
175
Não é uma disciplina só, são várias as que pode aprender, pode aprender a compor, compor a sua
própria, com as ferramentas da filosofia, aprender a seguir fluxos filosóficos de pensamento e
criar aí, em movimento, não é fôrma, é remendando-louco (crazy-patchwork) filosófico,
pensamento filosófico com seu rigor próprio.
Ferramentas da filosofia: sua linguagem, suas lógicas, toda a forma filosófica de pensamento e
suas possibilidades, suas criações conceituais sua história. Quando e como isso deixa de ser
ferramenta e se torna arma?
Aqui e agora
E é difícil ver como a teoria dos erewhonianos difere da nossa, a palavra “idiota”
significa apenas a pessoa que forma suas opiniões por si mesmo [...] “Não é da
nossa conta”, ele disse, “ajudar os alunos a pensarem por si mesmos. Com
certeza essa é a última coisa que uma pessoa que os quer bem os encorajaria a
fazer. Nossa obrigação é nos assegurarmos de que eles irão pensar como nós
pensamos, ou, pelo menos, como é oportuno dizer que nós pensamos.”56
(BUTLER, 1996, p. 134 – tradução livre).
Nesse No Where, esse lugar nenhum, utopia, de Butler, o Erewhon (romance de 1872), o idiota é
aquele que não pensa como todos, que não tem uma opinião em conformidade com um público e
insiste em formar suas ideias por si mesmo. Erewhon também pode ser Now Here.
O homem que não quer pertencer à massa só precisa deixar de ser indulgente
para consigo mesmo; que ele siga a sua consciência que lhe grita: “Sê tu mesmo!
Tu não és isto que agora fazes, pensas e desejas”. Toda alma jovem ouve este
apelo dia e noite, e estremece; pois ela pressente a medida de felicidade que lhe
é destinada de toda a eternidade, quando pensa na sua verdadeira emancipação:
felicidade à qual de nenhum modo alcançará de maneira duradoura, enquanto
permanecer nas cadeias da opinião corrente e do medo. E como pode ser
56
No original leia-se: “And it is hard to see how the Erewhonian theory differs from our own, for the word „idiot‟
only means a person who forms his opinions for himself […] „It is not our business‟, he said, „to help students to
think for themselves. Surely this is the very last thing which one who whishes them well should encourage them to
do. Our duty is to ensure that they shall think as we do, or at any rate, as we hold it expedient to say we do‟.”
(BUTLER, 1996, p. 134)
176
desesperada e desprovida de sentido a vida sem esta libertação! Não existe na
natureza criatura mais sinistra e mais repugnante do que o homem que foi
despojado do seu próprio gênio e que se extravia agora a torto e a direito, em
todas as direções. Afinal, não se tem mesmo o direito de atacar um tal homem,
pois ele existe somente fora do seu eixo, como fantasia frouxa, tingida e gasta,
como um espectro sarapintado que não pode inspirar medo e menos ainda
paixão.
[...]
Qual não seria a aversão das gerações futuras, quando tivessem de se ocupar
com a herança deste período, em que não são os homens vigorosos que
governam, mas os arremedos de homem, os intérpretes da opinião. Esta é a razão
porque o nosso século passará talvez, para uma longínqua posteridade, como o
momento mais obscuro e desconhecido, como período mais inumano da história
(NIETZSCHE, 2003a, p. 139 e 140).
Como passar de arremedo de homens, intérpretes da opinião, para homens viventes? Toda alma
jovem ouve dia e noite este apelo...
Pode-se começar por proceder a uma diferenciação simples entre ferramentas e armas. As
ferramentas são próprias para produzir bens. As armas são usadas para ataque e defesa. É
desejável que as crianças aprendam paulatinamente a manejar ferramentas, armas não. As
ferramentas estão em relação direta com o trabalho, a ação à qual as armas estão em relação é
livre. Ferramentas pertencem ao aparelho de Estado, à escola. Instrumentalizar os alunos para...
é um discurso comum da escola. Os instrumentos aí não são certamente os musicais, mas
ferramentas para construir um saber fazer ligado a conhecimentos que devem ser reconhecidos
para a prática do trabalho. Também no ensino de filosofia pode-se falar em ferramentas, as
ferramentas específicas do pensamento filosófico, do discurso filosófico, do fazer filosófico. E eis
o ponto de interesse nessa diferenciação: há, no ensino de filosofia como re-existência, o ponto de
metamorfose, o ponto de transgressão em que se transformam as ferramentas em armas. E isto se
dá por meio dos diferentes agenciamentos que estão por trás da arma ou da ferramenta. Ser arma
ou ferramenta é só consequência. Não ensinar filosofia para a cidadania, não ensinar para a
democracia, não “instrumentalizar” para o trabalho, a competência, a concorrência, o mercado.
Subverter o uso que comumente se faz das ferramentas conhecidas e exercitadas nas aulas e
torná-las armas: usá-las para atacar, revidar, resistir. Usá-las como projéteis. Usá-las para a
criação de versões próprias do mundo, não se restringir a reproduzir a versão oficial que a escola
ensina. Rejeitar o professor erewhoniano.
177
Não se trata de restabelecer dualismos. Trata-se de estar fora e dentro ao mesmo tempo. A arma -
máquina de guerra, e a ferramenta - aparelho de Estado, são ambas feitas de metal. O que as torna
diferentes é o uso que é determinado pelo agenciamento que as toma. O ferramenteiro, ferreiro, o
metalúrgico, que faz ferramentas para o Estado, conhece os segredos da fabricação de armas, pois
conhece os segredos do metal. Ele conhece os segredos e pode propagá-los, para fora do Estado,
para outros que passam, os nômades, para minorias, para os alunos, que passam. O metalúrgico, o
professor, que assim o fizer não é um desertor. Não está abandonando a ferramenta para passar
para o lado da arma, são as duas coisas ao mesmo tempo. “É esse metalúrgico híbrido, fabricante
de armas e ferramentas, que se comunica ao mesmo tempo com os sedentários e com os
nômades.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 99).
As armas podem ser encontradas assim, os segredos do saber fazer armas podem ser transmitidos
de dentro do aparelho de Estado, de dentro das instituições de Estado, de dentro da escola, das
aulas de filosofia, por exemplo. A arma está em relação com o fora, o imponderável. A arma
desorganiza. O arranjo de saber e de poder da escola está ameaçado se o que se aprende nas aulas
de filosofia for usado como arma, como criação de sub-versões, revides, como resistências ao
governamento dos fluxos de pensamento, de ação, de percepção e sensação. Resistência como
insistência em existir vivo, re-existir em movimentos criadores de significado, moventes,
renitentes. Guerrilha. Ensino de filosofia como resistência para desarranjar a ordem, o regime da
escola como instituição disciplinar e de controle, de modulação prévia e necessária dos possíveis
fluxos dos corpos e do mundo. Vietcongues franzinos com armas de bambu contra o exército dos
EUA. Hakim Bey, a respeito das chamadas Zonas Autônomas Temporárias (TAZ): “[A]inda
existe muita „destruição criativa‟ para ser executada por comandos ou apaches (literalmente
inimigos) pós-bakunianos e pós-nietzscheanos. Esses nômades exercitam a razzia, são corsários,
são vírus.” (BEY, 2004, p. 28). Ocupar o espaço viroticamente, o espaço da educação, o
ciberespaço, o espaço político, em defesa do vivo, destruição criativa.
“[H]á metal por toda parte.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 94). O artesão segue o fluxo da
matéria, e por isso ele é o itinerante primeiro, porque ele segue o metal e é produtor de objetos
por excelência. Seguir o fluxo do pensamento sem uma imagem que o anteceda, sem estar preso a
uma forma prévia. “A filosofia se coloca ao lado do idiota como de um homem sem pressupostos
[...] Alguém que não se deixa representar e que também não quer representar coisa alguma [...]
178
Só ele não tem pressupostos. Só ele começa efetivamente e repete efetivamente.” (DELEUZE,
2006a, p. 190-1). Ele segue o metal, que não é vegetal e não é animal, portanto o artesão não é do
solo, mas do subsolo. “[T]oda mina é uma linha de fuga [...] As minas são uma fonte de fluxo,
de mistura e de fuga.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 95-6). O homem produtor de objetos
o faz por seguimento, segue o fluxo da matéria, se embrenha no sub, lençóis freáticos, cavernas,
tocas. Segue. “Mesmo que tenhamos de nos fazer de idiota, façamo-lo à maneira russa: um
homem do subsolo, que nem se reconhece nos pressupostos subjetivos de um pensamento natural,
nem nos pressupostos objetivos de uma cultura de seu tempo.” (DELEUZE, 2006a, p. 191). Não
pertence ao solo e tampouco ao céu, imperceptível e por caminhos bifurcados, em rede,
multiconectados, sem começo nem fim, puro meio, em movimento, como bando de milhares de
ratos em fuga, atravessa uns sobre os outros. Ele cria objetos, sem reproduzir a cartilha de seu
tempo, não se amalgama no consenso de sua cultura e não se entrega ao reconhecimento de uma
natureza, é o “que não dispõe de compasso para traçar um círculo. Ele é o Intempestivo, nem
temporal e nem eterno” (DELEUZE, 2006a, p. 191). Sub. Sub-versão é uma versão menor, um
subterrâneo. Enquanto o caçador anda na mata, abrindo o caminho com seu facão, acompanhado
de seus cachorros, certo de si, representante de um poder instituído, maior, masculino, branco,
cheio de razão ele avança e não vê as tocas – túneis labirínticos - sob seus pés, não percebe as
trilhas dos insetos e os rastros das serpentes pelos galhos assim como tampouco imagina as rotas
de voos dos pássaros, avança como se o mundo fosse um, o seu. Sub é menor, minoria, não uma
minoria quantitativa, mas uma minoria que se forma como tal por não ter um modelo ao qual
corresponder, não depende de um modelo e cria novas formas de vida, é um devir, está sempre
em processo, é um bando, um bando de gente, um agenciamento coletivo. No caso das versões
menores, trata-se de um agenciamento coletivo de enunciação. Um agenciamento não é uma
tribo, não tem chefe, não tem centro, não tem aldeia, está sempre se movendo. Suas tendas são
desarmáveis, bando de gente, bando de um, de um que fala como bando.
Os Sonhadores, filme de Bernardo Bertolucci: uma história que se passa no icônico ano de 1968,
em Paris, mas que, surpreendentemente, não trata diretamente dos conflitos nas ruas. Minoria
dentro da minoria: um casal de irmãos gêmeos que vivem em uma relação simbiótica, de incesto
179
sem sexo, conhece, em uma manifestação na frente da cinemateca, um estrangeiro: um norte
americano, também jovem, também lindo e amante do cinema, como eles. A partir daí toda uma
série de experimentações vai tendo lugar entre os três trancados dentro de um apartamento:
afetivas, sexuais, de pensamento, de poder, de jogo, sensoriais, políticas, estéticas...,
experimentações ousadas, de vida, a invenção de um “povo que falta”, experimentações menores,
devires. As manifestações, ação de minoria, explodem nas ruas enquanto dentro do apartamento
as experimentações do trio são ainda uma dobra desse menor, um menor dentro de um menor,
minoria da minoria. Os jovens burgueses, financiados para transgredir, experimentam.
E no exato momento em que a irmã decide suicidar-se e matar os dois rapazes porque percebe
que seus pais descobriram sobre eles, a rua invade o quarto: uma bomba caseira quebra o vidro
do apartamento e entra, a rua entra. Eles saem à rua, como única reação possível a essa invasão
em suas vidas, em seu deserto, e no meio da confusão se desentendem, as divergências sobre o
que é ação política se explicitam: o americano é pacifista, não aprova o coquetel molotov, é
contra a guerra e beija o irmão na boca, para demonstrar que suas manifestações são de outra
ordem, ele é contra a violência: paz e amor. O irmão está decidido a entrar no fluxo da multidão,
pega um coquetel e se precipita para atirá-lo contra a polícia. A irmã opta por segui-lo. O casal se
separa do americano. A polícia ataca. Em off, a voz de Edith Piaf canta: non, rien de rien, non, je
ne regret de rien. Há sempre uma minoria menor ainda. Minoria dentro da minoria, dentro da
minoria..., até não sobrar nada. Não sobra o indivíduo porque nada nunca foi divisível, tudo é
indivíduo, singularidades só são divisíveis por elas mesmas (são números primos!), não são
representáveis, exceto por um mapa 1:1, elas mesmas. Quando essa divisão se efetua: devir. Não
sobra nada porque devém, sobra o que era com o que está sendo e com o que será. Há sempre um
devir minoritário espreitando. Falar em sempre é maioria. Minoria da minoria, cada vez mais sub-
versiva, singular, cada vez mais potencializando as reviravoltas, mistureira, remendando-louco,
devir outro, devir imperceptível.
Edukators, filme de Hans Weingartner. Dois jovens amigos fazem intervenções em mansões que
invadem quando os moradores não estão: mudam as coisas de lugar, móveis são empilhados,
obras de arte no freezer, joias na privada. Deixam um bilhete: seus dias de fartura estão contados
e assinam Edukators. Os educadores se manifestam contra a desleal apropriação da riqueza. Em
180
determinado momento eles tem um diálogo que diz aproximadamente o seguinte: fazer revolução
hoje é difícil, antes bastavam drogas e cabelos compridos e automaticamente éramos contra o
sistema. O que antes era subversivo hoje se compra em lojas, camisetas do Che Guevara,
adesivos anarquistas..., por isso acabaram os movimentos juvenis. Eles acham que tudo já foi
dito, outros tentaram e falharam. Por que daria certo conosco? - se perguntam. Por uma série de
acasos que a vida sabe bem providenciar e que um bom roteirista sabe encadear e tornar
verossímil, os rapazes envolvem na ação de invasão de mansões a namorada de um deles, que a
certa altura já estava sendo namorada do outro também, sem que o primeiro soubesse. O trio tem
um problema com uma das invasões e é obrigado a sequestrar improvisadamente o milionário
dono da casa. O triângulo político-amoroso se esconde em uma cabana distante e inalcançável no
campo junto com o rico empresário. Daí várias descobertas são feitas. Duas principais: 1- que o
empresário não nasceu como o é atualmente, já foi jovem, estudante que protesta, hippie, já usou
drogas, sexo coletivo, comunidade alternativa, etc., e 2- a mais óbvia, a revelação do triângulo
amoroso, a confusão de sentimentos, amor, paixão, atração sexual, amizade, traição, confiança,
ciúmes, etc.. No final a situação se resolve e tem, romanticamente, um “final feliz”: eles decidem
que não querem ter sentimentos e posturas burguesas e assumem o triângulo, além disso, partem
juntos para se dedicar a intervenções políticas de dimensões maiores.
E não há outro meio senão fazer como os animais (rosnar, cavar o chão, nitrir,
convulsionar-se) para escapar ao ignóbil [...] falta-nos criação. Falta-nos
resistência ao presente. A criação de conceitos faz apelo por si mesma a uma
forma futura, invoca uma nova terra e um povo que não existe ainda [...] A arte e
a filosofia juntam-se nesse ponto, a constituição de uma terra e de um povo
ausentes, como correlato da criação (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 140).
“O povo que falta”, a filosofia e a arte carecem dele e o invocam, é o povo que cria o povo, no
acontecimento, enunciação e efetuação. Experimentações de vida. Afirmação de singularidades,
recusar os homens como suporte de valores dados, prontos, acabados, declinar a
governamentalidade, o controle.
O respeitoso camelo, pesadíssimo, carregado corre para o deserto, para o seu deserto, para
proferir o sagrado –“Não!” e aí já é leão, o espírito-camelo tornado leão procura seu senhor para
tornar-se seu inimigo, contra ele quer se opor com –“Eu quero!” O senhor, seu deus, o grande
181
dragão de escamas douradas, o “Tu-deves!”, com valores milenares resplandecendo em suas
escamas diz que tudo já está criado e que não há mais lugar para “eu quero!”. A potência do leão
é necessária para criar liberdade para nova criação, mas ainda uma outra transmutação do espírito
deve se dar, o leão ainda em criança deve se tornar, e por que? Porque a criança é “roda rodando
por si mesma”, é criação, eterno dizer sim, criação de novos valores. As três transmutações do
espírito, Das três transmutações, Zaratustra, Nietzsche. “Três transmutações vos citei do espírito:
como o espírito se tornou camelo, e em leão o camelo, e o leão, por fim, em criança. Assim falou
Zaratustra. E naquele tempo ele se demorava na cidade, que é chamada: A vaca colorida.”
(NIETZSCHE, 1978, p. 229-30). E naquele tempo ele se demorava na cidade que é chamada a
vaca colorida.
Da criação de sub-versões
Sub-versões são ensaios. Ensaios de possíveis que terão de ser criados a partir das
impossibilidades dos alunos: as impossibilidades de equacionar seus blocos de sensações em
problemas, as impossibilidades de articular sistematicamente os conteúdos filosóficos que se lhe
são lançados, as impossibilidades de decifrar modos de argumentação e de pensamentos para a
construção de referências que permitam descobrir formas de discursos vigentes e que permitam
enunciação filosófica, etc.
182
dificuldades da produção de sentido.” (FAVARETTO, 2008, p. 44). Para as sub-versões não há
um certo ou errado57, é um ensaiar-se, é enunciação de uma minoria. Não há um aonde chegar,
não é formação, trata-se de ensaiar pensamentos, novas formas de pensar, experimentações,
experimentamentos. Sub-versão é extemporaneidade, pensar contra si mesmo, contra o fato,
contra o presente, enunciando “o povo que falta”, trata-se de “novas possibilidades de vida”
(ZOURABICHVILI, 2000, p. 338), de “novas formas de subjetividade” (FOUCAULT, 1995, p.
239).
[...] as grandes paisagens têm, todas elas, um caráter visionário. A visão é o que
do invisível se torna visível... a paisagem é invisível porque quanto mais a
conquistamos, mais nela nos perdemos. Para chegar à paisagem, devemos
sacrificar tanto quanto possível toda determinação temporal, espacial, objetiva;
mas este abandono não atinge somente o objetivo, ele afeta a nós mesmos na
mesma medida. Na paisagem, deixamos de ser históricos, isto é, seres eles
mesmos objetiváveis. Não temos memória para a paisagem, não temos memória,
nem mesmo para nós, na paisagem. Sonhamos em pleno dia e com os olhos
abertos. Somos furtados ao mundo objetivo, mas também a nós mesmos. É o
sentir (STRAUS, 1989, p. 519 apud DELEUZE; GUATTARI, 1992 p. 220).
Esta passagem, que retiramos de uma nota de rodapé de Deleuze e Guattari refere-se aos afectos
exatamente do mesmo modo como podemos nos referir aos conceitos. Um pensamento
geográfico e não histórico seria um pensamento-paisagem. Tanto na arte quanto na filosofia.
História não é acontecimento. A história, deleuzeguattarianamente, capta do acontecimento
apenas sua efetuação em estados de coisas, é um conjunto de vividos, não é o acontecimento, este
57
Há certo e errado para os procedimentos do fazer da filosofia, argumentação, conceituação, etc., mas não há
exigências noológicas e ideológicas, espera-se criação.
183
escapa à história. Estamos acostumados a reverenciar hegelianamente a história como a revelação
das coisas como elas são. Essências se realizando em um movimento necessário. Estados de
coisas são encaixados nessa crença como o todo, o um, o que é. Assim nos acostumamos a nos
resignar à verdade dos fatos, inexoráveis. “Se todo sucedido contém em si uma necessidade
racional, se todo acontecimento é o triunfo do lógico ou da „Ideia‟ – então, depressa, todos de
joelhos, e percorrei ajoelhados toda a escada dos „sucedidos‟!” (NIETZSCHE, 1978, p. 68). Há
no pensamento histórico um apreço incondicional por uma preciosa interioridade, interioridade
cheia de riquezas em si mesmas, constitutivas do Homem, de sua Verdade, de sua Realidade
(mesmo que não venham a realizar-se), interioridade reconhecida como erudição: “indigestas
pedras de saber” nietzschianas, que o homem moderno arrasta consigo, “cultura histórica” que
não é cultura efetiva “mas apenas uma espécie de saber em torno da cultura; fica no pensamento-
de-cultura, no sentimento-de-cultura, dela não resulta nenhuma decisão-de-cultura”
(NIETZSCHE,1978, p. 62). Decisão de cultura: ação política: pensamento geográfico,
contingente, em movimento. Tomadas e abandonos de territórios, liso, conexões. “A geografia
[...] não é somente física e humana, mas mental, como a paisagem.” (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 125). Paisagem, superfície, pele, cérebro. Não pensar historicamente, mas
geograficamente, não busca de origem no desenrolar de um processo necessário, mas meio, sem
fim nem começo, sem pontos, pontos fixos de coordenadas, mas sim pontos que duram: linhas,
linhas de fuga, desenhando as singularidades das contingências, móveis. História não é devir, não
é criação de algo novo.
História não é experimentação. Experimentar tudo, pois, geografizar! “É verdade que os nômades
não têm história, só têm uma geografia.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 71). Não só um
pensamento geográfico, não só signos, mas também ações geográficas, ações políticas. História e
184
geografia. Cabe aos professores filósofos criarem estratégias para denunciar o intolerável de seu
tempo. Cabe a eles pensarem contra si mesmos.
No sentido político, talvez, a fabulação de Bergson, seja confabulação, na medida em que não se
pode fabular sem a intervenção de um ou mais intercessores, sem correr o risco de estar fazendo
o discurso do colonizador, dos universais, da História, da escola. Fabular com a intercessão de
alguém, um ou mais e interceder, sozinho ou com alguém, na fabulação de outrem. Delito de
fabular, delito de confabular. É o delito de disparar o processo de constituição de um povo. “[À]s
ficções pré-estabelecidas que remetem sempre ao discurso do colonizador, trata-se de opor o
discurso de minoria, que se faz com intercessores”. Um povo não preexiste, ele se constitui no
movimento de resistir, na fabulação. E isto é um delito porque é resistência, é criação. É um
delito contra a situação do presente. Resistir é o que há de comum entre a arte, a filosofia e o
povo. “A arte e a filosofia juntam-se neste ponto, a constituição de uma terra e de um povo
ausentes, como correlato da criação.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 140). O que cabe é
criar modos de liberar a vida da captura, denunciar o indigno, criar linhas de fuga para escapar à
participação na produção de miséria humana operada pelo capitalismo. Cabe ao povo, ao artista,
ao filósofo. “Eles têm em comum resistir, resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha,
ao presente.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 142). Isso faz com que o uso das ferramentas da
filosofia não seja feito para desvendar verdades preexistentes, mas para criá-las, criar outras
versões, menores.
185
Resistência como re-existência é movimento constante, é reincidência, insistência. Repetir,
repetir até gerar uma diferença. Microscopicamente e insistentemente resistir. Re-existir. Criar
diferença: repetir para criar diferença, não reproduzir. Pierre Menard, no conto de Borges,
pretende escrever o Quixote de Cervantes. Não quer copiá-lo, “sua admirável ambição era
produzir algumas páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha- com as de
Miguel de Cervantes” e por fim “o texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos,
mas o segundo é quase infinitamente mais rico” (BORGES, 1999, p. 55). Não se trata de pensar
outro mundo, não se trata de utopia, mas sim de um pensamento que seja criador de fabulações
no acontecimento. Aqui e agora. O que pode o povo? O que podem os professores de filosofia? O
que pode o qualquer um? Forjar outras sensibilidades e outros pensamentos e outros modos de
subjetivação e outros sexos e outras políticas e. “Escrever como um cão que faz seu buraco, um
rato que faz sua toca.” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 28). Fazer nossas tocas, subterrâneas,
multiconectadas, muitas entradas e saídas, mundos compossíveis.
Das armas
“Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.” (DELEUZE, 1992, p.220). A maneira de
fazer funcionar é o que torna uma ferramenta uma arma. Não se pode mais choramingar a
sedução que o ciberespaço e as sempre renovadas tecnologias exercem nos jovens estudantes. A
partir daqui um ensino de filosofia que tira proveito disso. Escolha-se uma ferramenta na web
para trabalhar com os alunos, juntos no processo. Fazer um site, espaço wiki, qualquer uma, não
importa, contanto que com ela se possa compor remendando-louco, que se possa transformá-la
em arma. Armas: o modo de ocupar. É o modo de ocupar, o modo de fazer funcionar que vai
tornar a ação uma ação de sub-versão, por mais que já nasça em um ambiente capturado,
controlado. Trata-se de uma determinada forma de ocupar o ciberespaço por meio do ensino de
filosofia como resistência. Internationale Situationniste, 1o de junho de 1958: “Não pode haver
música ou pintura situacionista, apenas o uso situacionista desses meios.” (DEMPSEY, 2010, p.
213).
Da entrevista que Deleuze dá a Antonio Negri, no ano de 1990, para a revista Futur Antérieur,
vê-se, da parte de Negri, uma visão, bastante em voga nos anos da década de 90, de otimismo em
186
relação aos poderes de ações políticas no chamado ciberespaço. Ele pergunta se não haverá nas
sociedades de controle ou de comunicação renovadas oportunidades para o comunismo se
entendido como “organização transversal de indivíduos livres”. (DELEUZE, 1992, p. 216).
Vislumbrou-se, àquela época, com esperança, o surgimento de novas possibilidades de criação de
uma sociedade livre, um comunismo, a partir das novas possibilidades de relações e invenções de
espaços-tempos que o ciberespaço já começava a disponibilizar. Perguntava-se sobre a
possibilidade de suscitar acontecimentos, no ciberespaço, como forma de resistência, assim como
John Perry Barlow da Electronic Frontier Foundation, no filme Hackers: outlaws and angels,
que se permite sonhar com “um mundo melhor” no ciberespaço: “[...] criaremos a civilização da
mente no ciberespaço. Que ela seja mais humana e justa que o mundo que os governos
construíram [...] Vamos nos espalhar pelo planeta para que ninguém prenda nossos
pensamentos.” (HACKERS, 2001)58. Ideias como esta não foram nada raras entre a cultura
hacker original, no entanto, viu-se ao longo de poucos anos, que uma mudança assim não era tão
simples.
Pode-se pensar já de saída que a esperança de substituir o mundo real-concreto – que não deu
certo, sob a perspectiva da igualdade entre os indivíduos e da liberdade de todos –, por um outro
mundo mais justo, no ciberespaço, seria, sobre essa questão, a ideia das mais ingênuas, que parte
da mesma raiz, bipolar, de lógica da exclusão, das utopias clássicas. Seria mais uma vez acreditar
na revolução como acontecimento universal baseado na ideia de mundo único apoiado no ou.
É nessa mesma época que se origina na Europa o conceito de mídia tática, nascida do mesmo
entusiasmo entre artistas e ativistas, dadas as mudanças políticas e a gradativa queda nos preços
dos computadores domésticos. “Mídia tática é o termo dado ao uso político feito tanto pelas
tecnologias antigas quanto pelas novas, como a organização de sit-ins virtuais, campanhas para
acesso mais democrático à Internet, ou mesmo a criação de novos softwares não dirigidos ao
mercado comercial.”59 (GALLOWAY, 2004, p. 175 - tradução livre). Mídia tática é uso político.
É resistência, assim como hackerismo. Galloway amplia ainda essa definição quando inclui nela
58
Em português encontra-se disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=x63IOClfkCs> e em inglês
encontra-se disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=VvZELcrClP8> Acesso em: 7 maio 2012 (para
ambas as versões).
59
No original leia-se: “Tactical media is the term given to political uses of both new and old technologies, such as
the organization of virtual sit-ins, campaigns for more democratic access to the Internet, or even the creation of new
software products not aimed at the commercial market.” (GALLOWAY, 2004, p. 175).
187
os vírus de computador. “Não sendo nem atraente nem feia, nem boa nem ruim, a mídia tática
aparece, ataca e desaparece novamente.” (ROSAS; VASCONCELOS, 2006, p. 14). Enxamear,
pulular aqui e ali, imprevisível, criação de zonas autônomas, efêmeras (BEY, 2004), não são
revolução, não são utopias, não são negação universal, são novas formas de ocupar, são criação
de novos espaços-tempos.
Contudo, o que se viu efetivamente acontecer depois das animadoras manifestações de 1999 de
Seattle, quando grupos das mais diversas naturezas e lugares do mundo se juntaram para protestar
contra a globalização na reunião dos países ricos, não foi o que se esperava. Novos mundos
possíveis foram anunciados ali, porém a necessidade de sua efetuação ainda está sendo sentida. A
década subsequente nos mostrou que essa efetuação não seria assim tão simples, como
conseqüência imediata da efervescência das manifestações que se impuseram como
acontecimento político.
Em 1990 Deleuze pensou vírus como arma. Já não mais as greves, os movimentos de classe
contra o capitalismo, já que “[j]á não dispomos da imagem de um proletário a quem bastaria
tomar consciência” (DELEUZE, 1992, p. 213), mas algo em rede, algo transversal, porém que
não fosse uma luta pela tentativa de tomada da palavra. Não ter mais à disposição a imagem de
um proletário a quem bastaria tomar consciência significa que não se pode mais compactuar com
o uso que o Estado tem feito do ensino de filosofia. Não se trata de ensino para a formação de um
sujeito cidadão. Não se trata de um ensino genérico de um bem pensar genérico para uma
188
cidadania genérica. Não se trata de arma revolucionária contra a repressão, luta de classes,
tomada de consciência. É combate pelo vivo, virótico.
Uma ação política no ciberespaço que não fosse ela mesma de novo e de novo comunicação.
Toda uma década de midiativismo e a pergunta que ainda incomoda é: o que persiste? O que
ainda persiste do que resiste? O que ficou?
2012. Passado o atordoamento dos ataques às Torres Gêmeas nos EUA e tudo que se sucedeu a
partir deste fato, uma década depois, vemos brotar estranhos novos movimentos políticos:
Wikileaks, Occupy Wall Street, e todos os outros movimentos de occupy, os indignados espanhóis
e outros europeus a respeito da crise econômica na União Europeia, o conjunto de manifestações
populares chamado de primavera árabe, as manifestações contra a censura no ciberespaço em
diversos países, inclusive no Brasil, onde também houve uma série de manifestações populares
em favor da liberdade, da maconha, etc., e mais tantos outros, Anonimous, todos esses mesclando
a ação nas ruas com a ação no ciberespaço. Inseparáveis, sem se ter como garantir uma
linearidade de causa e efeito entre elas. Claramente o uso do ciberespaço como espaço de
enunciação, de articulação, conexão, toma hoje as formas de viver, isto é um fato. A partir da
popularização dos computadores domésticos, e do desenvolvimento das redes de comunicação
através desses computadores, sente-se cada vez mais, e ainda sem compreender bem, o impacto
que têm na política, no social, na economia, no amor, na morte. É cada vez menos interessante e
eficaz dissociar a produção de formas de vida e o desenvolvimento de novas tecnologias.
É muito grande a tentação de pensar o espaço cibernético como um espaço liso, no qual a
colaboração, o coletivismo, a liberdade, a participação, efetivamente criam um mundo melhor do
que o mundo do capitalismo industrial e suas injustiças. É reconfortante pensar que apenas no
toque de um click pode-se conectar todo o mundo livremente.
O espaço liso é descentrado e cresce sem limites para todas as direções: fibra de bananeira e
papel reciclado, maçaroca prensada e aglutinada, enquanto o espaço estriado está preso às
coordenadas, trama e urdidura, euclidiano, Excel. Liso não é homogêneo, ao contrário, pertence
“a uma heterogeneidade de base” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 198). Não tem avesso, é
trajeto, velocidade, movimento em espaço aberto.
189
O ciberespaço, nova dimensão da vida humana, é um espaço liso? Pode-se, inicialmente, pensar
nele como um espaço que não foi totalmente estriado pelo capitalismo, pelo aparelho de Estado?
Pode-se pensar inicialmente que, embora sejam necessários instrumentos e conhecimentos
específicos para se adentrar esse espaço (que dependem de condições financeiras para a
aquisição), esse espaço ainda não foi totalmente capturado: qualquer criança de 12 anos, de 8
anos ou menos pode fazer para si um blog, por exemplo, pode fazer um perfil em sites de
relacionamento e ainda postar pequenos filmes de sua autoria, feitos pelo telefone celular, até,
além, claro, imagina-se poder “navegar” livremente, deslizando, por esse mar de signos. Parece
um sonho..., múltiplas conexões possíveis, links que levam a links que levam. Múltiplas entradas
e saídas, superfície, heterogeneidade, agenciamento. Simplesmente estar conectado ao mundo,
sem necessidade de identificar-se, ir conectando-se a sítios e sítios, procurando associações
interessantes em lugares de relacionamento, tudo fácil, sem levantar da cadeira, um novo mundo
se abre, ideias são trocadas, informações são passadas, comunidades se formam. Ideia muito
atraente de liberdade possível, porém, não. O que está por trás desse novo espaço, “totalmente
livre, aberto”? Como ele funciona?
“Não se pode ter entendido suficientemente as relações de poder em uma sociedade de controle a
não ser que se tenha entendido „como ela funciona‟ e „para quem ela funciona‟.”60
(GALLOWAY, 2004, p. xiii – tradução livre). Em seu livro, Protocol, how control exists after
decentralization, Galloway defende que é necessário ter um conhecimento técnico tanto quanto
teórico de qualquer tecnologia dada. Entender as redes não como metáforas, mas como mídia
materializada e materializante é um passo importante para diversificar e tornar mais complexo o
conhecimento que se tem sobre as relações de poder nas sociedades de controle. Não se pode
entender, ingenuamente, o ciberespaço e suas redes como metáfora de conectividade,
coletividade e participação.
60
“You have not sufficiently understood power relationships in the control society unless you have understood „how
it works‟ and „who it works for‟”.
190
tecnológicos e informáticos às didáticas planejadas não são mais uma forma de estriamento, de
captura, de reprodução do mundo das empresas e de governamentos de Estado? Instrumentalizar
para se encaixar, cada coisa em seu lugar, mundo do trabalho, mundo do fato consumado?
Informatizar para disciplinar, para governar, para controlar...
Há um certo encantamento, por parte dos professores, e receio ao mesmo tempo, em relação ao
crescente desenvolvimento das possibilidades de ação no ciberespaço assim como com o
constante surgimento de novos recursos tecnológicos no mercado e não é incomum que se passe a
acreditar na necessidade de adesão ao “mundo digital” e que se faça isso sem reservas, sem a
preocupação com o viés político que há nessa atitude. Quantos dos usuários da Internet sabem
que o Google guarda todas as informações sobre as buscas que são feitas e pode, através disso,
desenhar um perfil do usuário de determinado computador (IP)? Quantos desconfiam que talvez
esses dados possam ser usados comercialmente, ou seja, que possam ser vendidos para empresas
que podem bombardear o usuário com propagandas de produtos específicos de seu universo de
consumo? Em uma das cenas do filme Minority Report61 vê-se os indivíduos passarem, sem
perceber, por leitores de íris que rapidamente acionam a mudança das propagandas nos outdoors
de forma a que essas se adaptem imediatamente ao perfil do passante. Já não falta hoje literatura
sobre a governamentalidade na Internet em contraposição à suposta liberdade de navegação.
Não há dúvida de que haja um enorme abismo entre uma ocupação criativa, ativa, resistente,
potente: o uso do ciberespaço como lugar de enunciação de possíveis mundos, lugar de encontro
de co-laboradores, de pesquisa, de criação de conhecimento, lugar de cooperação entre cérebros
em busca de criações sensíveis, que se configurem como acontecimentos: criar novas formas de
sentir, de perceber, de lutar pelo vivo e, do outro lado do abismo uma ocupação de consumidor,
entradas para comprar e vender coisas, aproveitar “oportunidades”, buscar informações, ficar a
par das últimas notícias sobre a vida dos outros, comunicar, fazer negócios, procurar “sentir-se no
mundo”, contra a solidão e dificuldades de relacionar-se, divertir-se com joguinhos, etc. Uso do
ciberespaço como possibilidade de novos mundos versus reprodução do mesmo mundo,
reprodução imitação, sem sentido.
61
Filme de Steven Spielberg, EUA, 2002
191
O que não se pode deixar de dizer e repetir é que não se trata tanto de tentar caracterizar cada um
desses espaços- liso e estriado - com seus predicados, mas sim que eles se misturam
incessantemente em movimentos dissimétricos e a cada vez que se tenta uma oposição simples,
tudo se complica, se co-implica novamente, com alternâncias e superposições, e.
Há uma diferença muito mais complexa entre espaço liso e estriado - espaço nômade e
sedentário, entre o espaço máquina de guerra e o espaço instituído do aparelho de Estado - além
daquela de fazer uma oposição simples entre eles, porque entre esses espaços há não apenas a
possibilidade de coexistência, mas, a despeito da contradição, cada um dos dois só existe devido
à mistura que não param de fazer entre si. Pelo fato de um estar constantemente sendo
transvertido no outro, revertidos um no outro, movimento de mistura que não cessa, por isto é que
cada um existe. O ciberespaço pode ser tomado como um espaço liso ou como um espaço
estriado, ou pode ser as duas coisas ao mesmo tempo, mas não neutro.
O espaço estriado é regulado a priori, já está planejado sobre um plano métrico no qual se pode
localizar e seguir e contar. Nele, pode-se controlar para prever, pode-se prever para controlar.
Propriedades são determinadas e hierarquizadas, as extensões mensuráveis são calculadas. Há
uma lógica a ser seguida e joga-se xadrez euclidianamente.
Galloway deixa claro que a Internet não é uma simples ferramenta do tipo “pergunte e você
poderá receber”. Ela é constituída por uma lógica bi-nível. De um lado TCP/IP (Transmission
Control Protocol/Internet Protocol) torna possível à Internet criar distribuições horizontais de
informações de um computador para outro. Do outro lado, DNS (Domain Name System)
estratifica verticalmente aquela lógica horizontal por meio de um conjunto de corpos reguladores
que maneja os nomes e endereços da Internet (GALLOWAY, 2004). Trama e urdidura. Para ele,
entender essas duas dinâmicas da Internet significa entender a ambivalência do modo como o
poder funciona nas sociedades de controle. “O princípio fundador da Net é o controle, não a
liberdade – o controle existiu desde o começo.”62 (GALLOWAY, 2004, p. xv – tradução livre).
A tendência que se tem de deliciar-se com o ciberespaço como se ele fosse de antemão um
espaço liso sem a preocupação de ocupar-se também de seu lado estriado pode levar a enganos
62
No original leia-se: “[T]he founding principle of the Net is control, not freedom – control has existed from the
beginning”
192
em relação ao uso político que se possa fazer dele. Os sistemas de protocolos são sistemas
políticos. São eles que administram, modulam e controlam as inter-relações entre sistemas vitais:
são uma economia política. “Toda network é uma network porque é constituída por um
protocolo”63 (GALLOWAY, 2004, p. xix – tradução livre). O controle das sociedades de controle
emerge tanto tecnicamente quanto politicamente, protocolo é governamentalidade. As condições
das experiências que se possa viver no ciberespaço já estão de antemão determinadas, não são
produzidas pelos usuários. No entanto, no limite do estriamento há a possibilidade de
alisamento...
63
No original leia-se: “Every network is a network because it is constituted by a protocol.”
193
débi e lóide
195
O modo de ocupar: armas
Os computadores são baseados em uma linguagem tecnológica chamada código. Teremos todos
que entender de códigos? Teremos todos que ser hackers no sentido estrito para poder resistir?
O que faz a diferença é a forma de ocupar os espaços, de estar no espaço, de ser no espaço.
“Viajar de modo liso ou estriado, assim como pensar...” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p.
190).
Ocupar como Kiarostami. “No espaço liso sem corte nem módulo, pode-se dizer que não há
intervalo? Ou, ao contrário, tudo aí se tornou intervalo, intermezzo?” (DELEUZE; GUATTARI,
1997b, p.184). Tudo aí se tornou intervalo? “[U]m suporte de deslizamentos no tempo.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p.184).
Como o cineasta iraniano Abbas Kiarostami, por exemplo no filme Onde fica a casa do meu
amigo, de 1987, conta muita coisa sobre as relações autoritárias entre professor e crianças e o
funcionamento da vida dos aldeões onde se passa a história, suas relações, só por meio do
movimento de um menino andando pela aldeia, correndo entre uma aldeia e outra, indo e
voltando, em movimento, em busca, tudo é meio. Patchwork de intervalos, montagem de
retalhos, de partes menores, sintaxe de acontecimentos em detrimento do que geralmente é
considerado como “fatos notáveis” e dos profundos conflitos dos eus. Passagens, intermezzos em
movimento64.
“[N]um espaço-tempo liso ocupa-se sem contar, ao passo que num espaço-tempo estriado conta-
se a fim de ocupar” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p.183). Liso e estriado ao mesmo tempo, o
curso de filosofia como resistência, conta para poder ocupar quando planeja os signos, as
ferramentas, planeja o que se vai ensinar. E ao mesmo tempo ocupa sem contar quando pratica a
aula como acontecimento, na qual se incorpora os desvios, os afetos e outros imprevisíveis.
64
A este respeito cf. também o documentário brasileiro Dalva, de Caroline Leone, 10‟, 16mm, produzido pela
Fundação Armando Alvarez Penteado – FAAP –SP, 2004
197
É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior,
mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das
dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do
múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a
ser constituída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma
(DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 15).
Maneira nômade de ocupar: rizoma, espaço liso. “[R]atos são rizomas.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995a, p. 15). Ciberespaço pode ser rizoma. Em um rizoma, assim como em
qualquer espaço liso as junções não implicam um ambiente onde a multiplicidade estaria imersa,
multiplicidade é movimento, as distâncias variam, as mudanças de direção são constantes, não há
uma perspectiva de conjunto, não há conjunto. Tudo vai depender da forma de ocupar. Rizoma: e.
Não é. Trata-se de trocar um verbo por uma conjunção. Conexões, muitas conexões, abandonar
as essências, as identidades. Em português o e perde o acento agudo, um pequeno traço oblíquo e
toda a diferença. Em francês o est perde o s: et. A lógica do E. O princípio da não-contradição
tendo sido banido, permite que duas coisas contrárias por natureza possam coexistir.
Mas cuidado: “[j]amais acreditar que um espaço liso basta para nos salvar.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997b, p. 214). É certamente no espaço liso que surgem novos movimentos que
podem gerar vida, é onde inventam-se novas armas, onde surgem novas possibilidades de sentir e
perceber, no entanto esses espaços por si só não bastam para nos libertar.
Trata-se de pensar em como proceder para que haja a possibilidade de alisamento no curso de
filosofia. Como favorecer essa troca constante entre liso e estriado, que um se torne o outro,
alternância, balé, jogo de poder entre aparelho de Estado e máquina de guerra, ensinar estriado e
aprender liso e aprender estriado e ensinar liso e.
[A]mbos estão ligados, se relançam. Nunca nada se acaba: a maneira pela qual um
espaço se deixa estriar, mas também a maneira pela qual um espaço estriado restitui o
liso, com valores, alcances e signos muito diferentes. Talvez seja preciso dizer que
todo progresso se faz por e no espaço estriado, mas é no espaço liso que se produz todo
devir (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p.195).
198
Espaço de análise e síntese, de conceituação, de história, pontos, e espaço de criação, busca de
novas relações, trajetos, fabulações, ao mesmo tempo. Progresso e devir. Ao mesmo tempo. E.
Em 1990 Deleuze pensou resistência como vírus. Não é necessário que todos sejam hackers, que
saibam programar computadores, para que possam ocupar o ciberespaço de forma nômade. “Há
pessoas que adotam a postura de hacker em relação a coisas como eletrônica e música. Na
verdade, é possível encontrar hackers entre os níveis mais elevados de cientistas e artistas.”
(RAYMOND, 1996b, s/p). Trata-se de uma evidente postura política no ensino de filosofia ao se
propor a buscar, a tentar, criar novas formas. Novas formas de ensino e novas formas de resistir,
pequenas e insistentes, viróticas tentativas que embaraçam as coordenadas cartesianas em
movimento de rede, criar novas conexões. Trata-se de arquitetar um ensino de filosofia hacker
em rede com o vivo. Encontrar formas de “sabotagem”. Para a pergunta de Negri, de se as
sociedades de controle/comunicação não poderiam trazer novas oportunidades para um
comunismo, Deleuze responde: “Não sei, talvez. Mas isso não dependeria de as minorias
retomarem a palavra.” (DELEUZE, 1992, p. 217). Não se tem nada mais a comunicar. Já se falou
demais, fala-se demais, fala-se sem cessar, enxurrada de signos atropelam. Calar. Interromper as
ondas de informação que substituem qualquer possibilidade de criação de sentido.
199
rebanho, que é realizado por imitação, e todos escolhem, dentre as alternativas dadas, pensando
que estão decidindo. “[A] comunicação é a transmissão e a propagação de uma informação [...]
uma informação é um conjunto de palavras de ordem [...] Suponhamos que a informação seja
isso, o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade.”
(DELEUZE, 1999, s/p). As sociedades de controle funcionam através da comunicação de modos
de vida que devem ser acatados mimeticamente sem qualquer questionamento e que, no entanto,
se configurem como escolha. Protocolos que modulam as ações, sem que sejam visíveis, notados.
Não se faz efetivamente com que se tome decisões, mas que se escolha, que se escolha entre as
alternativas dadas, que desembocam todas no Mesmo. O semiocapitalismo está, justamente,
apoiado na redução da vida ao consumo de significados já prontos e organizados em um mundo
único já preparado para o consumo e que se reproduz incessantemente pela imitação. É o que
Maurizio Lazzarato (2006) diz quando afirma que o capitalismo hoje não é mais produtor de
mercadorias, mas de “mundos” e que há uma inédita cooperação entre os cérebros. Comunicação
à distância, transmissão, contágio, propagação: vírus. É o público, a opinião do público, a opinião
pública, de quem é essa opinião? O site do jornal de maior circulação no país estampa notícias
sobre a sucessão presidencial de um determinado país na Europa. Ao lado do texto da matéria
jornalística há uma enquete: quem você acha que deveria ganhar as eleições? E ali dois pequenos
quadrados vazios estão ao lado das fotografias dos dois candidatos, esperando serem preenchidos,
um ou outro, pela escolha do clicador. A opinião pública. Forma-se por transmissão de palavras
de ordem, por contágio, por imitação. Cada um pode se tornar um especialista em política
internacional escolhendo quem deve ser o presidente daquele país, pode dar sua opinião, pública,
ao mundo, pela rede. Todos participam, comunicação sem limites, “o mundo sem fronteiras”,
como manda o slogan da companhia de telefonia móvel.
O contemporâneo filósofo e economista finlandês, Akseli Virtanen, afirma que houve uma
transferência dos mecanismos de produção de valor para a esfera do ambiente mental. A
produção de objetos – mercadorias- do capitalismo industrial foi sobrepujada pela produção de
sujeitos, de modos de vida.
200
econômico-subjetivo, como diz Félix Guattari, e somos nós mesmos os órgãos
essenciais para o funcionamento deste bloco: nossas sensações, percepções,
esperanças, desejos e fantasias imaginárias não são algo separado, mas
componentes integrais do funcionamento da economia (VIRTANEN, 2011, p.
53).
São os próprios homens, suas almas, os desejos, as imaginações, sensações que passam a fazer
parte da economia. “É isto que Deleuze e Guattari quiseram dizer na famosa análise apresentada
em O Anti-Édipo: o desejo é social, o capitalismo trata da apropriação da produção desejante.”
(VIRTANEN, 2011, p. 53).
65
A este respeito há um interessantíssimo, muito criativo filme documentário chamado Surplus: terrorized into being
consumers, Suécia, de Erik Gandini, 2003, que tem um brilhante trabalho de montagem, uma sinfonia de imagens
dos mundos capitalistas e socialista, Cuba, diversas realidades, depoimentos, propagandas, realidades insuspeitadas,
201
Resistir, nas ruas e nas salas de aula e no ciberespaço, como vírus, sem que isso seja luta pela
retomada da palavra. “[C]riar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao
controle.” (DELEUZE, 1992, p. 217). Mais uma vez, não se trata de retomar a palavra, mas sim
de criar sub-versões. Não é comunicação, mas sim enunciação.
O que se pode enxamear no curso é que se expresse os próprios problemas. Poder elaborar os
próprios problemas, a própria maneira de equacionar as questões que incomodam e obrigam o
pensamento a buscar novas formas, obriga a criar saídas, isso já é resistência. “[A] questão do
„devir‟, como em Kafka, a do possível em nossa própria vida, a da criação de nossos próprios
problemas interfere diretamente no espírito da acumulação semiocapitalista.” (VIRTANEN,
2011, p. 54). A produção de versões filosóficas para os próprios problemas, a partir do curso de
filosofia, é resistência, na medida em que é luta contra a captura e modulação do tempo de
discursos políticos, tudo montado em velocidade, uma sintaxe complexa que nos faz adentrar a co(i)mplicação da
vida humana nesse planeta nos dias atuais. No sítio disponível em: <www.atmo.se/film-and-tv/surplus/> há as
informações e um icônico trailler de um minuto.
66
Como exemplo disso conferir o blog Generación Y disponível em: ,http://www.desdecuba.com/generaciony/> da
jovem blogueira cubana Yoani Sánchez que faz o mundo conhecer uma versão de sua ilha que não é a versão oficial
de seu governo e tampouco a versão dos EUA. Censurada, reprimida, proibida de sair do país por inúmeras vezes,
quando convidada para receber prêmios, Yoani já foi considerada uma das dez pessoas mais poderosas do mundo,
pela revista Times.
202
existência, do vivo, o desejo, a criatividade, da possibilidade de produzir sentido. Trata-se de
ativar a irredutibilidade. Trata-se de não reduzir os problemas às respostas. Não mais criar
respostas que calem os problemas, mas criar problemas que calem as respostas. Combate.
Combater as imagens dogmáticas do pensamento que impõem a ideia de que pensar é tecer
soluções para problemas já dados.
A arma está em relação com uma máquina capaz de despertar no pensamento a imagem que o
desestabiliza, pois o problema do pensamento é o problema de começar a filosofar sem
pressuposição. Trata-se então de uma questão de combate: como esvaziar o pensamento de toda
pressuposição? É na ausência de uma imagem estável que a filosofia se torna visionária, em que o
movimento do pensamento coincide com aquele da vida, em que os dinamismos dos conceitos
não são outra coisa que os movimentos vitais. A arma é o que nos permite relançar os dados da
vida no pensamento. A maneira de fazer funcionar é o que torna uma ferramenta uma arma.
Devir-imperceptível. “[O] desaparecimento parece ser uma opção radical bastante lógica para o
nosso tempo, de forma alguma um desastre ou uma declaração de morte para o projeto radical.”
(BEY, 2004, p. 64). Não se vai pegar em bandeiras, não escrever teorias, não reproduzir palavras
de ordem. Subtrair-se do grande Espetáculo, do show alucinado de signos, passar desapercebido
em ação, escapando da captura imediata, da semiotização, retirar-se da área de simulação,
colocar-se além da capacidade perceptiva do Estado-empresa. Não querer ser modelo, não
almejar ser seguido, apenas enxamear novas “possibilidades de revides inesperados, de iniciativas
imprevistas que determinam máquinas mutantes, minoritárias” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b,
p. 108). As sub-versões são código aberto, lançadas na web como potlatch, misturam-se.
A partir daqui: um ensino de filosofia que tira proveito da sedução que o ciberespaço e as sempre
renovadas tecnologias exercem nos jovens estudantes, adentrar para ocupar esse espaço de
disputa de criação de realidade, de verdade e de sentido. Escolha-se uma ferramenta na web para
trabalhar com os alunos, juntos no processo, fazer um site, espaço wiki, qualquer uma, não
importa, contanto que seja uma ferramenta que possa servir de suporte para o ensino de filosofia
remendando-louco, que possa ser transformada em arma: espaço não-linear de enunciação, com
multiplicidade de entradas e saídas, com multiplicidade de possibilidades de conexões, com
multiplicidade de possibilidades de publicações textuais e imagéticas e etc., espaço destituído de
203
autoria/propriedade: coletivo, abdicação de toda magnânima origem se um saber filosófico
formatador. Inventar um objeto estranho.
Trata-se de uma determinada forma de ocupar o ciberespaço por meio do ensino de filosofia
como resistência. Que seja, por exemplo, o wix67. Ali se encontram vários modelos de site,
formas vazias a serem preenchidas. Todas as coordenadas já estão determinadas, estriado ao
máximo. Como fazer isso funcionar ainda como liso, arma nômade? A questão é: como jogar GO
em um tabuleiro de xadrez? O uso do ciberespaço no curso de filosofia como resistência é um uso
desaparelhado. Agir de outra forma, uma forma dissidente de pensar, ir contra a tendência de usar
o texto como aparência, por meio do qual o aluno deve chegar a uma essência. Uso imanente das
ferramentas da filosofia, tornadas armas ao serem usadas no ciberespaço como forma de
enunciação, luta pelo vivo, em espaço de combate de determinação do que é real e verdadeiro.
204
Da impossibilidade de continuar
205
Das impossibilidades dos alunos, criar possíveis, das impossibilidades dos professores, criar
possíveis.
Esta tese acaba aqui porque tem de acabar em algum ponto. Até aqui já se desenvolveu um tanto
do que se pretendia: ensino de filosofia e resistência. E como toda filosofia, deixa mais perguntas
do que respostas e como todo rizoma, mais aberturas do que fechamentos.
Da impossibilidade de continuar essa tese, criar outros textos, outros objetos, para darem conta do
problema que incomoda e obriga à ação. A ação do pensamento, a ação da criatividade, da
imaginação, da capacidade de fazer relações em busca de recolocar o problema e renovadas vezes
se perguntar a mesma coisa, a partir de diferentes planos, onde se estiver, no movimento
remendando-louco de estar sendo, conglomerando e abandonando, velocidade, vivo.
Continuar no processo inventar filminhos, sites, etc., incomodar os alunos com essa ideia,
incomodar os colegas, deslocar: combate. Outros objetos estranhos, forasteiros: armas.
207
antes de existir alfabeto existia a voz
o silêncio
[...]
Arnaldo Antunes
209
Bibliografia
211
[obras referidas]
ASPIS, R. P. L.; GALLO, S. D. O. Ensinar Filosofia: um livro para professores. São Paulo: Atta
Midia e Educação, 2009.
BATAILLE, G. Teoria da religião. Texto estabelecido e apresentado por Thadée Klossowski.
Tradução Sergio Goes de Paula e Viviane de Lamare. São Paulo: Autêntica, 1993.
BEY, H. TAZ: Zona Autônoma Temporária. Tradução de Renato Rezende. 2. ed. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2004. Coleção Baderna.
BORGES, J. L. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1999.
BOUFLEUR, R. A questão da Gambiarra: Formas Alternativas de Produzir Artefatos e suas
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